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Full text of "Vieira abbreviado em cem discursos moraes, e politicos, divididos em dous tomos."

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VIEIRA 

ABBREVIADO 
TOMO  II. 


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VIEIRA 

ABBREVIADO 

EM  CEM  DISCURSOS 

MORAES^  E  POLÍTICOS;» 

DIVIDIDOS    EM    DOUSTO  MOS. 

ju  cr  O  R 
ANSELMO  CAETANO  MUNHOZ 

DEAVREUGUSMAM  E  CASTELLOBRANCO, 
Doutor  pela  Univeríidade  de  Coimbra  ^  e  Familiar  do  íanto  Officio. 

OFFERECIDO 

AOSENHOR 

FRANCISCO  DE  ALMEIDA 

J  o  R  D   A  M, 

Cav  alleiro  profeíTo  na  Ordem  de  Chrifto ,  Doutor  pela 

Univerfidade  de  Coimbra  &c. 

POR 

MANOEL   DA  GONCEIC,AM. 

TOMO   II. 

LISBOA. 

Na  Officina  de  M  1  G  U  E  L     RODRIGUES, 

Imprefsor  do  Eminentillimo  Senhor  Cardeal  Patriarca. 
M.  DCC.   X  L  V  I. 

Com  as  licenças  neceffàrias^  e privilegio  Real 

A'  cufta  de  Manoel  da  Conceição  ,  Livreiro  do  Eminentillimo  Senhor  Cardeal; 
Patriarca  :  vendefe  na  fua  logea  na  rua  direita  do  Loreto» 


\ 


A. 


/vflldiv/iJA  J-inCJ        J/IA 


M^ 


AO    SENHOR 

FRANCISCO  DE  ALMEIDA 

J  o  R  D  A  M 
Cavalleiro  profelTo  na  Ordem  de  Chrifto,  Dou- 
tor pela  Uiiiverfidade  de  Coimbra  &c. 


P.  António  Viei- 
ra abbreviado  vay  procurar- na 


gran- 


grandes  apaixonados  j  e  de f  en- 
fares. NaÕ  merece  menos  por 
abbreviado  ,  pontue  Joube  o 
feu  compilador  reduzir  todo 
aquelle  juperior  ejpirito  a  pe- 
queno volume.  Jijiefoy  o  mi- 
lagre da  arte  fazer  hum  com- 
pendio de  liuma  obra  immenfa 
pelafua  qualidade.  V.  m.  co- 
mo taõvenerador  daquellefe- 
cundiffimo  engenho.,  naò  ha  de 
ejlranhar  ejla  minha  oferta , 
porque  Jei  qual  he  a  venera- 
ção j  e  o  rejpeito ,  que  tem  a 
efte  Auãor ,  pois  naõ  conten- 
te de  ter  todas  as  fuás  obras 
impreffiis ,  fò  das  manufcritas 

-uw4  ^  *  ^^"^ 


tem  féis  volumes ,  que  afua 
curiofidadejouhe  ajuntar  com 
igual  difpendio.  Ne/ta  dou- 
ti  J/ima  collecçaõ  mo  fira  v.m. 
o  quanto  he  amigo  de  thef ou- 
ros literários ,  de  que  lhe  tem 
dado  a  pojfe  aperfeita  intelli- 
gencia  da  lingua  Franceza ,  e 
a  inclinação  ,  que  lhe  devem 
osfruõíos  daquelle  elevadij/i- 
mo  entendimento.  A  verdade 
he  ,  que  quem  naõfabe  a  artCy 
naô  a  efiima ,  e  que  v.  m.  naâ 
Julga  pelo  que  ouve ,  fenaõ pe- 
lo que  entende.  F^fiudou  v.  m. 
na  JJniverfdade  de  Coimbra  y 
efez  os  f eus  Aã  os  literários 

com 


!   I 


cófn  tanto  nmgijierio ,  comofà 
hoicoejfc  dejer  Mejire.  For- 
tuna grande  feria  dos-  dijcipu- 
los ,  porque  teriaõ  na  excel- 
lencia  do  Mejire  o  primeiro^ 
e  o  mais  nobre  motivo  para  ej- 
tudarem ;  masfe  na  JJniverJi- 
dade  podia  feroir  a  alguns  com 
dfeu  trabalho ,  traduzio  para 
utilidade  de  todo  Portugal  a 
Arte  Legal  ^  a  que  fe%  excel- 
lentes  addiçoens ,  dando  huma 
breve ,  mas  importante  noticia 
das  nojfas  Ordenaçoens.  Ago- 
ra ofereço  a  v.  m.  em  Vieira 
abbreroiado  mais  huma  occa- 
fiaõ ,  em  que  lhe  lifonjee  o 

gojlo, 


gojlo  ,  e  fará  que  veja  que 
pôde  o  engenho  humano  com- 
prehender  em  huma  pequena 
concha  hum  mar  profundijfi- 
mo  de  erudição.  T) cos  guar- 
de a  V.  m. 


\ 


I 


Mayor  venerador  de  v.  m. 


Manoel  da  Conceição, 


IN- 


li 


■r>  ■ 


índice 

DOS  DISCURSOS, 

>5        QiJ,e  contém  efte  fegundo  tomo, 

///  M. 


M  Andar  ,  efervir^  DiPcurJo  LIÍL 
Merecimentos^  Difcurfo  LIF. 
Mentira ,  Difcurfo  LV, 
Morte  ^  Difcurfo  LVI. 
Morte ,  Difcuf-Jo  LVIL 
Mortos ,  Difcurfo  LFIIL 
Mundo  ^  Difcurfo  LIX, 

N. 

Naf cimento  ,  Difcurfo  LX. 
Nafcimento ,  Difcurfo  LXL 
Nada,  Difcurfo  LXIL 
Necejfldade ,  Difcurfo  LXIIL 

O. 

Obras ,  Difcurfo  LXIV. 
Olhos ,  Difcurfo  LXV, 
Opprimao ,  Difcurfo  LXFI, 
Ouro ,  Difcurfo  LXFIL 

V. 

PaÕ,  Difcurfo  LXFIII. 

Pajfamento ,  Difcurfo  LXIX, 

Paz,  Difcurfo  LXX. 

Paz,  Difcurfo  LXXL 

Peccado ,  Difcurfo  LXXIL 

Peixes  j  Difcurfo  LXXIII^-^^^  o\  .u 


pag.  I. 
pag.  16. 


P^g 

P^g 
pag 


17. 
24. 

41. 

SS- 
64, 


pag.  68. 
pag.yi, 

P^g'  7S^ 
pag.  85. 


pag.  96. 

/j^^.  97. 
pag.  lOoV 
p^^.  10 1. 


/?/2^.  112. 

pag. 11^. 

pag.  140. 

/)/;^.  140. 

P^g'  H7- 
^^^.  148} 

Per* 


j 


»**.  #  ,»  f.  ■>#np'.' 


Pertendentes^  DifcurCo  LXXIF.  pag,  167. 

Pertençoens  j  Difcurfo  LXXV.  pag.i%2>. 
Per  tendentes  confolados ,  Dijcurfo  LXXVI,  p'^^5^ 

Pedir,  Difcurfo  LXXVIL  pag,  211. 

Peregrinação^  Difcurfo  LXXVllL  pag.2it, 

Prefença ,  Difctirjo  LXXIX.  pag,  213. 

Primazia^  Difcurfo  LXXX.  pag.  21^, 

Profetas,  Dijcurfo,  LXXXL  pag.  215'. 

Pregadores ,  Dijcurfo  LXXXIL  pag.  220. 

Querer  y  e  poder ,  Difcurfo  LXXXIIL    pa^.  250. 

R. 

Recreação,  Difcurfo  LXXXIF. 
Religião,  Difcurfo  LXXXV. 
Religiofos,  Difcurfo  LXXXV L 
Refoluçao,  Dtfcurfa  LXXXVIL 

s. 

Sábios ,  Difcurfo  LXXXIX, 
Sacerdotes ,  Difcurfo  XC. 
Segredo ,  Difcurfo  XCI. 
Soldados ,  Difcurfo  XCII. 
Soledade ,  Di/curfo  XCIIL 
'Sonho ,  Difcurfo  XCíV. 

T. 

Tributos ,  Difcurfo  XCF. 
Trijleza ,  Difcurfo  XCFL 

Falidos ,  Difcurfo  XCFIL 
Falidos ,  Difcurfo  XCFIIl 
União,  Difcurfo  XCIX^.^i,^^i^^ 
Felhice^  Difcurfo  C 


va 


pag.  265'. 
pag.  266. 
pag.  287. 


/>tíf^.  295. 

pag.  307. 
/)^^.  317. 
pag.^21, 

P^g-  332- 
/)^^.  348. 


pag.  35'!. 


/>^^'  374- 
pag:  3^7- 

'  pag.^oi' 


a 2.  I 


ABBREVIADO 

TOMO    ; 


DISCURSO    LIII. 

Tirado  de  hunifermao  de  S.  Roque  pregado  na  Ca- 

pella  Real,  elogiando  helle  ao  me  fino  Santo  por 

n ao  querer  mandar  ^  nemferviraos  homens. 

MANDAR,   E  SERVIR. 

O  homem  feio  Deos  para  man-Pa!t."4. 
I  dar,  aos  brutos  para  feryir.  E  fe^^^^^-^^^- 
os  brutos  fe  rebeilaraó  contra 
Adaó  ,  e  nao  quizerao  fervir  ao 
homem  ,  fendo  taõ  inferiores  , 
trifte,  emiferavel  condição  he  haver  hum  homem 
de  íervir  a  outro  ,  fendo^todos  iguaes.  A  primeira 
vez ,  que  fe  profetizou  neíle  mundo  haver  hum  ho- 
mem de  fervir  a  outros  ,  foy  com  o  nome  de  maldi- 
ção. AiTim  fadou  Noe  a  feu  neto  Canaãn  em  caíli- 
go  do  pay ,  e  mais  do  filho.  Ainda  entaó  fe  naò  fabia 
Xom.  II.  A  .  no 


i 


J 


í^-^-a^mmmmt^m 


2         Vieira  ahhreviado 

no  mundo,  que  coufa  era  fervir ,  entaõ  fe  começou  a 
entender  a  maldição  pelo  delidío  ,  e  a  miferia  pelo 
caíligo,  Meyos  homens  chamou  depois  o  Poeta  Ly- 
rico  aos  que  fervem,  e  diííe  bem.  Toda  a  nobreza  , 
ç  excellencia  do  homem  confífte  no  livre  alvedrio, 
e  o  fervir,  íe  naó  he  perder  o  alvedrio,  he  cativallo. 

NurH.45J7.  532-  A  mayor prova,  a mayor experiência,  o ma- 
yor  exame,  e  o  mayor  encarecimento  da  paciência, 
e  foíFrimento  humano  he  pôr  Eieos  huns  homens  fo- 

?f.  tfj.  II,  bre  a  cabeça  de  outros :  hnpofuijit  homines  fuper  ca- 
pita noftra-j  porque  os  que  eftaõ  de  cima,  faõ  os  que 
mandão ;  os  que  eítao  debaixo ,  íaõ  os  que  íervem ,  e 
fendo  os  que  fervem  iguaes  aos  outros  por  natureza, 
que  eftes  os  tragaô  fobre  a  cabeça ,  e  que  elles  os  me- 
tao  debaixo  dos  pés  :  Homines  fiíper  capita  no/Ira^ 
nem  toda  a  penitencia  dos  ConfeíTores  iguala  eíla 
dor ,  nem  todos  os  tormentos  dos  Martyres  eíle  mar- 

Num.49  8.^y''^^-  Onde  a  noíTk  Vulgata  lê  :  Impojuijií  homines 
fuper  capita  nojlra ,  no  original  Hebreo  eftá :  Equt- 
tarefecifti  homines  fuper  capita  noftra:  Fizeftes,Se- 
nhor ,  para  provar  a  noíía  paciência  ,  que  os  homens 
andaíTem  a  cavallo  fobre  as  noílas  cabeças.  Vede ,  fe 
vay  muito  de  huma  coufa  a  outra.  De  forte  que  aos 
miferaveis ,  que  fervem,  debaixo  ,  naõ  fe  contentao 
os  que  íerraô  de  cima  de  os  pizar  com  feus  pés , 
fenaõ  também  com  os  dos  cavallos :  Equitarefecifti 
homines  fuper  capita  noflra.  Se  me  perguntarem  po- 
rém ,  onde  podem  fucceder  taes  cafos  ,  que  homens 
tratem  aífim  a  homens  ,e  a  homens,  que  os  íervem, 
refpondo,  que  nas  Cortes. 

535     Para  intelligçncia  deita  verdade  (de  que 

bafta  va  por  prova  a  experiência )  havemos  de  fuppor, 

que  nas  Cortes,  por  çhriftans,  e  chriítianiflimas 

í  que 


Dijcurfo  LIII.       5 

que  fejaõ  ,  naõ  baila  lo  ter  a  graça  do  Príncipe  íii- 
premo  ,  fenaó  fe  alcança  também  a  dos  que  lhe  aílif- 
tem.  Efta  lie  a  primeira  fuppofiçaô  da  guerra  ,  que 
padecem  ,  ou  podem  padecer  nas  Cortes  ainda  os 
homens ,  que  melhor  fervem  ,  fe  tem  outros  fobre  íi: 
hripofuijii  homines  jttper  capita  iiojira, 

534  Masquaes  faô  os  que  os  pizaô  naÕ  íó  com  Num. 4^^. 
os  feus  pés ,  fenaó  com  os  de  feus  cava  lios  :  Equita- 
refecifti}  He  certo,  que  naô  faÓ  os  Reys  ;  porque 

os  pés  Reaes  nao  pizaÔ ,  nem  magoao  ;  honraõ  yQ^u- 
thorizaó.  Por  iílo  íe  líinçaô  a  feus  pés  os  vaíFallos  ,  e 
quanto  mayores ,  e  mais  dignos ,  mais  lhe  metem  de- 
baixo dos  pés  as  cabeças.  Lá  diílé  Tertuliiano,  que 
Minerva  calçava  na  cabeça  o  capacete  :  Minerva  cal- 
ceans galeam.  Afilm  he  o  calçado  dos  Reys.  Os  feus 
çapatos  nao  pizaô ,  coroaó.  Quaes  faô  logo  os  que 
pizaÓ  taó  honradas  cabeças  ,  como  aquellas,  entre  as 
quaes  fe  contava  a  de  David,  e  nito  fó  com  os  feus 
pés  ,  fenaó  com  os  dos  feus  cavallos ;  Equitarefe- 
eijii  homines  fuper  capita  nojlra  ? 

535  Aqui  entra  agora  a  fegunda ,  e  mais  laftimo- 
fa  fuppoíiçaõ ,  e  menos  digna  de  fe  crer ,  fenaó  diíTe- 

ra  SalamaÓ,  que  a  vio  com  feus  olhos:  Vidi fervos  ^^^ 
in  equis ,  ij^  Principes  arnbulantes  fuper  terramv 
Vi  os  fervos  a  cavallo ,  e  os  Principes  a  pé.  Sem  du- 
vida ,  que  iílo  vio  Salamaô  profeticamente,  quando 
vio  apeado  a  Roboaó  feu  filho ,  e  a  Jeroboaó  feu  fer- 
vo entronizado.  E  em.  outros  Reynos  quando  acon- 
tece iílo  mefmo  ?  Bem  he  que  o  perguntemos  ,  poÍ5 
naõ  vemos  no  noíTo  eíla  defgraça  ,  que  baftara  a  cor- 
romper todas  as  fuás  felicidades.  Acontece  iílo  , 
quando  o  Principe ,  a  quem  toca  ter  as  rédeas  na  maÔ, 
por  deíidia ,  e  negligencia  as  larga  ^  e  entrega  ao  íer- 

A  2  vo. 


I 


^ 


4 


Vieira  ahbrevfado 


vo.  Então  he,  que  o  fervo  montado  a  cavallo,  ven- 
dofe  impoílo  íbbre  as  cabeças  dos  homens ,  nao  fó  as 
piza  a  dous  pés  ,  fenaó  a  quatro.  Digao  Mnrdocheo 
debaixo  de  Araan  no  Reyno  de  Aíiuero,  e  D.  niel 
com  os  Satrapas  no  de  Nabuco,  e  Dário.  Em  taes 
tempos  em  vez  de  os  homens  fervirem  gloriofainen- 
teaosRcys,  fao  ignominiofamente  fervos  dos  fer- 
vos  ,  e  padecem  fem  lhe  valer  a  cor  do  roílo  (  onde 
fó  ihe  fâítao  os  ferretes)  a  maldição  de  Canaan  ,  que 
hoje  fe  cumpre  nos  Cafres ,  e  nos  Ethiopes :  Maledi- 
âliisCbanamí^  fervus  fervonim  eritfratribusjtiis. 
Veja  hum  efpírito  generofo  fe  ha  de  fujeitar  a  íua 
cabeça ,  ou  expôUa  por  nenhum  preço  a  femelhantcs 
abatimentos. 

Num,  SOI.  53^  Grandes  razoens  para  nao  fervir  a  homens, 
e  muito  mayores  para  naô  mandar  homens.  E  por- 
que ?  Porque  mayor  fervidaÔ  he  mandallos  ,  que  fcr^ 

Isium.  503.  villos.  Paliando  ElRey  Antigonocom  o  Príncipe 
feu  íilho  íobre  a  adminiílraçaô,  e  governo  do  Rey- 
no ,  de  que  o  havia  de  deixar  por  herdeiro  ,  admira- 
do o  generofo  moço  de  tamanhas  obrigaçoens ,  e  en- 
cargos ,  refere  Eliano  ,  que  lhe  diííe  o  pay  :  An  non 
novifti  ^fili  mi  ,  Regimm  nojlrum  cffe  nobilemfervi- 
tutem  ?  Ainda  naô  fabias,  filho  meu,  que  onoflorey- 
nar  na6  he  outra  coufa,  fenaõ  huma  fervidaõ  hon- 
rada? Honrada  diíTe,  e  com  grande  juizo;  porque  a 
íervidao  dos  fervos  he  fervidaô  íem  honra  ,  e  por 
iíFo  menor,  e  menos  pezada  ;  mas  fobre  o  pezoda 
fervidaô  haver  de  fuíleníar  também  o  da  honra,  he 
muito  mayor  fujeiçaõ ,  e-muito  mais  pezada  carga. 
He  fervir  á  fama ,  e  ás  bocas  dos  homens ,  cujos  gof- 
tos  íaõ  taõ  vários,  e  taó  eílrragados  ,  que  até  o mef- 
mo  maná  os  enfaília.  Sc  hum  homem  naõ  pode  fer- 
vir 


Difciirjo  XIII.        5 

vir  a  dous,  como  poderá  fervir  a  tantos  mil  ?  A  ca- 
da homem  deo  Deos  hum  Anjo  da  guarda  ,  e  naó 
mais  que  hum  homem  a  cada  Anjo  :  e  le  hum  Anjo, 
que  move ,  e  governa  com  tanto  concerto  ,  e  ordem 
todo  o  Ceo  das  eílrenas,naÓ  baila  para  guardar  huin 
homem  de  fi  mefmo,  e  governar  ordenada  ,  e  concer- 
tadamente a  hum  homem  entre  os  outros  ;  como 
bailará  hum  fò  homem  para  conter  dentro  das  leys, 
e  manter  em  juíliça  a  tantos  homens  ?  Naó  fabe  o 
que  íaô  homens  quem  ifto  naÕ  confidera ,  e  penetra. 

537  Os  Filoíofos  antigos  chamarão  ao  homem  Num.  504. 
mundo  pequeno  \    porém  S.  Gregório  Nazianzeno 
melhor  Filofofo  ,  que  todos  elles,  e  por  exceilencia 

o  Theologo  ,  diííeque  o  mundo  comparado  com  o 
homem  he  o  pequeno,  e  o  homem  em  comparação 
do  mundo  o  mundo  grande:  Mundum  in  parvo  ma- 
gnum.  NaÕ  he  o  homem  hum  mundo  pequeno  ,  que 
eííá  dentro  do  mundo  grande ;  mas  he  hum  mundo  , 
efaó  muitos  mundos  grandes,  que  eílaó dentro  do 
pequeno. 

538  Bafte  por  prova  o  coração  humano,  queíen- 
do  huma  pequena  parte  do  homem  ,  excede  na  capa- 
cidade a  toda  a  grandeza  ,  e  redondeza  do  mundo. 
Pois  fe  nenhum  homem  pode  fer  capaz  de  governar 
toda  eíla  machina  do  mundo ;  que  difíicuidade  fera 
haver  de  governar  tantos  homens ,  cada  hum  mayor, 
que  o  mefmo  mundo  ,  e  mais  difficultofo  de  tempe- 
rar, que  todo  elle  ?  A  demonílraçaó  he  manifeíia; 
porque  nefta  machina  do  mundo,  entrando  também 
nella  o  Ceo,  as  eílrelJas^ tem  feu  curfo  ordenado, 
que  nao  pervertem  já  mais ,  o  Sol  tem  feus  limites  , 
e  trópicos ,  fora  dos  quaes  naó  paíTa:  o  mar,  com  fer 
hum  monílro  indómito ,  em  chegando  ás  areâs  pára: 

Tom.  II.  A  3  as 


/^ 


6       Vieira  abbreviado 

as  arvores ,  onde  as  põem  ,  naÓ  fe  mudaó :  os  peixes 
contentaõíe  com  o  mar  :  as  aves  com  o  ar :  os  outros 
animaes  com  a  terra.  Pelo  contrario  o  homem,  monf- 
tro,  ou  chimera  de  todos  os  elementos,  em  nenhum 
lugar  pára,  com  nenhuma  fortuna  íe  contenta,  ne- 
nhuma ambição ,  ou  appetite  o  farta ,  tudo  perturba, 
tudo  perverte,  tudo  excede,  tudo  confunde ,  e  co- 
mo he  mayor ,  que  o  mundo  ,  naó  cabe  nelle. 

539  Grande  exemplo  no  mefmo  mundo  ,  naó 
cheyOjComo  hoje  eftá,  mas  vazio,  e  defpovoado,  com 
os  filhos  de  Adaô  ,  e  Noé.  A  AdaÓ  deolhe  Deos  o 
império  fobre  todo  o  mundo ,  fobre  os  peixes ,  fobre 
as  aves,  fobre  os  animaes  da  terra  ,  e  naó  pode  go- 
vernar em  paz  dous  homens ,  e  eíles  irmãos ,  fem  que 
hum  mataíFe  ao  outro.  Noé  governou  todos  os  ani- 
maes, e  confervou-os  pacificamente  dentro  em  hu- 
ma  arca ,  e  fora  delia  nao  pode  governar  três  ho- 
mens ,  fem  que  hum  o  nao  defcompuzeíle  ,  e  aíFron- 
talfe,  fendo  todos  três  feus  filhos.  Vede  fe  he  mais 
pezada  férvidaó,  e  mais  difficultofa  a  de  governar, 
e  mandar  homens,  que  a  de  fervir?  Quem  ferve, 
como  naó  pode  lervir  mais  que  a  hum ,  fujeitafe  a 
huma  fó  vontade;  mas  quem  manda,  como  ha  de  go- 
vernar a  todos,  ha  de  fujeitar  a  fí  as  vontades  de  to- 
dos ,  e  eílas  naó  de  filhos ,  em  que  he  natural  a  obedi- 
ência ,  e  o  amor ,  nem  de  irmãos  entre  fí  ,  em  que  as 
qualidades  laô  iguaes  ,  e  as  naturezas  femelhantes; 
mas  de  tantas ,  e  taõ  diverfas  condiçoens,  como  íaó 
nelles  os  roílos,  e  os  intentos. 

540  Daqui  fe  íegue  ,  que  o  que  ferve, , por  dura 
que  feja  a  fua  fervidaÔ ,  fempre  tetn  horas  de  alivio, 
e  de  defcanfo;  o  que  manda ,  nenhuma :  Ut  Solftare 
nefcit ,  ita  tu  Imperator,  diíTc  Pacato  em  hum  pa- 

negy- 


Difcurfo  LIII.       1 

necryrico  ao  Imperador  iheodoíio  Magno:  AíTim  co- 
mo o  Sol  nunca  pára,  aflim  vós,  ó  grande  Imperador, 
e  por  ido  grande.  Fez  Deos  ao  Sol  Príncipe  do  m^un- 
do  :  Lummare  7nmus  ,  ut  praeffet  diei'.  e  defde  o Gen.i.  ,tf. 
dia  em  que  lhe  deo  efte  officio  até  hoje  ,  naõ  deícan- 
fou  hum  momento.  Ta6  grande  trabalho  hefer  Sol^ 
e  taÓ  grande  a  lua  lujeiçaõ,  poílo  que  em  lugar  tao 
alto  :  huma  inquietação  perpetua  ,  hum  movimento 
continuo ,  hum  correr ,  e  rodear  fempre ,  e  dar  mil 
voltas  ao  mundo  fem  defcanfar  ,  nem  parar  ja  mais. 
Quando  dizemos  ,  que  o  Sol  íe  põem  ,  he  engano  ; 
porque  entaô  fe  parte  a  governar  os  antípodas. 

541  Naó  vamos  bufcar  a  prova  da  íemeíhança 
mais  longe ,  pois  a  temos  de  cafa ,  e  nos  noííos  Reys 
mais  própria  ,  que  em  nenhum  outro  do  mundo. 
Quando  os  vaíTailos  dormem  ,  e  deícanfaõ  ,  parece 
que  hum  Rey  de  Portugal  faz  o  meímo  depois  ao 
governo  ,  e  trabalho  de  todo  o  dia  ,  e  naõ,  he  íenaõ, 
que  paíTou  aos  antipodas.  Lá  anda  com  o  penfa- 
mento  ,  e  com  o  cuidado  pela  China  ,  pelo  Jap  , 
pelos  Reynos  do  Idalcaó ,  do  Samori,  do  Mcgor, 
pelo  Cabo  de  Boa  Efperança,  pelo  de  Comon,  ,3eIos 
Javas,  pelos  mares,  e  cofttis  da  Africa  ,  da  Afia  ,  e 
da  America  ,  vifilando  armadas  ,  e  fortalezas,  com- 
pondo pazes,  abrindo  comércios ,  e  meditando  fem- 
pre augmentos  do  Reyno  de  Deos ,  e  do  feu  ,  íem 
outra  quietação,  ou  defcanfo  mais,  que  apparen- 
te  aos  olhos ;  porque  o  Sol  naõ  tem  verdadeiro  occa- 
fo.  O  relógio ,  que  he  o  fubílituto  do  Sol  na  terra  , 
naó  foa  ,  nem  fe  ouve  por  fora ,  fenaõ  a  certos  tem- 
pos; masnemporiíTo  eftá  ociofo,  ou  quieto,  fem- 
pre os  pezos  eftaõ  a  carregar ,  fempre  as  rodas  eílao 
a  moer :  e  taes  íaó  os  cuidados  do  Principe  de  dia ,  e 

A  4  de 


I 


^ 


HmSiBÊm 


mm 


8       Vieira  abbreviado 

de  noite.  Para  os  fubditos,  que  obedecem,  e  fer- 
vem ,  ha  diíFerença  de  dias ,  e  noites  ,  para  o  Princi- 
pe ,  que  governa  ,  e  manda,  fempre  he  de  dia.  Aífim 
o  dizia  hum  Rey  dos  feus  cuidados :  Noãem  verte- 
runt  in  diem. 

542  Entre  o  fenhor ,  que  manda  ,  e  os  íubditos , 
que  fervem ,  ha  a  mefma  diíFerença  ,  que  entre  o  co- 
ração ,  e  os  fentidos.  Dorme  o  homem,  e  todos  os 
fentidos  defcanfaô:  os  olhos  naõvem,  os  ouvidos 
naó  ouvem  ,  a  lingua  naõ  falia  ,  e  aífim  os  demais; 
mas  fe  neíle  mefmo  tempo  a  elfe  mefmo  homem  lhe 
puzerdes  a  maó  fobre  o  peito,  vereis  como  eítá  ba- 
tendo nelle,  e  palpitando  o  coração  :  e  fe  tornardes 
depois  huma,  e  muitas  vezes,  e  a  qualquer  hora,  fem- 
pre o  haveis  de  achar  no  mefmo  movimento.  Pois  os 
fentidos  iguaes  na  baixeza  aos  dos  brutos,  dormin- 
do a  fono  folto  ,  e  o  coração  principio  da  vida,  e  no- 
biliífima  parte  do  homem  ,  fempre  velando  fem  def- 
canfarjámais?  Sim;  que  iíFo  he  ler  coração.  O  co- 
ração da  Republica  he  quem  a  manda  ,  e  governa  ,  e 
quando  a  meíma  Republica  lhe  deo  a  foberania  deífe 
cuidado  ,  depofitou  nelle  todos  os  feus  cuidados. 
E lie  ha  de  cuidar  íem  defcanfo ,  para  que  todos  def- 
canfem  ,  e  vigiar ,  para  que  todos  durmaõ :  Ego  dor- 
mio ,  é^  cor  meum  vigilat ,  dizia  Salamaó  :  e  o  leão 
Rey  dos  animaes  dorme  com  os  olhos  abertos.  Vigiar, 
quando  todo  o  corpo  dorme ,  he  fer  coração  entre  os 
íentidoji ,  e  fer  leaÕ  entre  os  animaes :  vigiar  como  o 
coração,  quando  todo  o  corpo  dorme,  he  fer  leão  en- 
tre os  animaes,  e  Salamaó  entre  os  homens.EíladiíFe- 

Nura,  5  5?./^"*^^  ^^^  ^  ^^"^  ^^s  Principesao  dos  outros  homens, 
"que  os  Pveyscuidaô  dormindo,  e  dormem  cuidando. 

543  ^  íono  dos  Reys  he  hum  fono  defvelado , 

he 


Cant.  5- 


Part." 


Difcurfo  LIII.       9 

he  hum  dormir  cuidadolb  ,  hum  defcanfar  inquieto , 
hum  deíiittender  advertido,  hum  defcuidarfe  vigian- 
do. Nos  outros  homens  o  fono  he  prizao  dos  fenti- 
dos  :  nos  Reys  he  diílimulaçaó  fomente.  Por  iíTo  ao 
leaó  lhe  derao  o  império  dos  animaes,  porque  dorme 
com  os  olhos  abertos.  Nenhum  Rey  fechou  os  olhos,  • 
que  lhe  naõ  fizefie  fentinella  o  coração :  Ego  dormio, 
^  cor  metini  vigilat ,  dizia  o  Rey  mais  fabío. 

544  Dormindo  efta va  Faraó ,  quando  vio  aquela  Canr-  5.  z. 
le  fonho  admirável  das  fete  vacas  fracas ,  que  comiaô 

as  fete  robuítas ,  em  que  fe  íígnificavaô  os  fete  annos 
de  fartura ,  e  os  outros  fete  de  fome,  que  haviao  de  ^"'  ^^' 
fucceder  no  Egypto.  Era  Rey ,  por  iíFo  lhe  inquieta- 
vaó  o  fono  eíles  cuidados.  Quatorze  annos  antes  le- 
vava Faraó  adiantado  o  governo  de  feus  vaííallos ,  e 
já  entaó  fonhava  com  feus  bens ,  e  o  defvelavaÓ  feus 
males.  lílohe  dormir  como  Rey. 

545  Nos  outros  homens  o  iono  he  huma  morte: 

nos  Principes  o  íono  faó  duas  vidas.  Faraó  acordado  i 

vivia  no  tempo  prefente  \  dormindo  vivia  no  prefen- 
te ,  e  mais  no  futuro  :  no  prefente  por  duração ,  no 
futuro  por  cuidado.  Maisvivia  Faraó  dormindo  com 
os  olhos  fechados ,  que  acordado  com  os  olhos  aber- 
tos :  acordado  com  os  olhos  abertos  via  o  que  já 
era:  dormindo  com  os  olhos  fechados  via  o  que 
ainda  naó  era,  fó  porque  havia  de  íer.  Fechou  os 
olhos  para  dobrar  a  esfera  da  vifta.  Com  os  olhos 
abertos  via  poucos  efpaços  de  lugar  ,  com  os  olhos 
fechados  alcançava  grandes  diftancias  de  tempo.  Aí- 
íim  dormia  o  Rey  do  Egypto  Faraó.  E  o  Rey  dos 
Aífyrios  Nabuco  como  dormia  ?  Dormia  fonhando 
com  o  feu  Reyno ,  e  com  os  eílranhos. 

54Ó    Vio  Nabucodonoíor  aquella  prodigiofa  ef-p"J^;J^^' 

tatuaj 


I  o       Vieira  abbreviado 

tatua  5  que  reprefentava  os  quatro  Impérios  dos  AíTy- 
rios  ,  dos  Perfas ,  dos  Gregos ,  e  dos  Romanos  :  o 
corpo  eítava  defcuidado  com  os  fentidos  prezos,  e 
a  aJma  andava  cuidadofa  levantando,  ederrubando 
eílatuas,  f^mtaíiando  Keynos,  e  Monarchias.  Mais 
fazia    Nabucodonofor  dormindo  ,    que  acordado  j 
porque  acordado  cuidava  no  governo  de  hum  Rey- 
no,  e  dormindo  imaginava  na  fucceílaô  de  quatro. 
Pois  fe  Nabuco  era  Rey  dos  AiTyrios ,  quem  o  metia 
com  o  Império  dos  Perfas  ,  com  o  dos  Gregos  ,  com 
o  dos  Romanos  ?  Quem  ?  A  obrigação  do  officio  , 
que  tinha.  Era  Rey ,  e  quem  quer  confervar  o  Rey- 
no  próprio,  ha  de  fonhar  com  os  eílranhos.  DoRey- 
no  próprio  ha  de  ter  cuidado,  e  os  Reynos  alheyos 
lhe  haó  de  dar  cuidado.  Ninguém  governou  bem  o 
feu  Reyno ,  que  naõ  attendeíie  ao  governo  de  todos. 
O  bom  Rey  tem  por  esfera  o  mundo  :  he  Rey  do  íeu 
Reyno  pelo  dominio  ,  e  Rey  de  todos  os  Reynos 
Part.  4.     pelo  cuidado.  Muito  me  admirou  fempre  na  fabri- 
Num.  507.^^  do  Jeito  de  SalamaÔ  ,  que  os  traveíTeiros,  em 
que  havia  de  inclinar  a  cabeça  ,  os  fízeíle  de  ouro  : 
c^^^.}.\o.  Heclinatorium  aitreum ,  afcenfum  ptirpureum:  A 
fubida  de  purpura  ,  mas  a  cabeceira  de  ouro.  Parece- 
me  ifto  com  o  que  cuidaÕ  os  rufticos  ,  que  os  Reys 
dormem  em  lançoes  de  brocado.  Traveíleiros  de  ou- 
ro faó  ricos,  e  preciofos,  íim;  mjs  muito  duros,  mui- 
to frios ,  e  muito  defagafalhados.  Quanto  melhor 
he  huma  manta  no  BuíTaco,  ou  huma  cortiça  na  Ar- 
rábida.? Porém  SahimaÔ  com  toda  a  fua  fabedoria 
naó  foube  traçar  á  cama  dos  Reys  outra  cabeceira 
mais  branda;  porque  naó  era  feita  para  conciliar  oíò- 
no  ,  fenio  para  o  inquietar.  Aflim  dormia  inquieto 
l''araó ,  fonhando  nos  fete  anncs  de  fartura  do  feu 

Reyno, 


1 


Difctirfo  LIII.       II 

Reyno  ,  enos  lete  da  fome.  AíTim  dormia  inquieto 
N..bucodonofor  ,  fònhando  na  duração  de  fua  Mo- 
narchia  ,  e  das  três,  que  lhe  haviao  de  fucceder.  E  até 
Jofeph ,  a  quem  Deos  hia  creando  para  mandar  ,^  e  fer 
Príncipe,  em  quanto  os  lavradores  íeus  irmacs  re- 
poufavaô,  elle  fendo  de  menos  annos ,  naô  podia 
dormir  quieto:  lá  andava  fonhando  com  as  paveyas, 
e  com  as  eílrelias ,  revolvendo  no  penfamento  o  Ceo, 
e  mais  a  terra.  A  purpura  podemna  defpir  os  Prínci- 
pes ,  quando  fe  deitaô  ;  mas  os  cuidados,  que  os  def- 
velao,  naó  podem.  Quando  a  Chrifto  no  Pretório 
de  Pilatos  o  íizeraô  reprefentar  a  jfigura  de  Rey ,  co- 
roaraõno  de  efpinliosjeveíliraóno  de  purpura.  Eno- 
tou  advertidamente  S.  Pafchafio ,  que  a  purpura  tor- 
naraõiha  a  defpir,  mas  a  coroa  de  eípinhos  nunca  a 
largou  dn  cabeça  :  Porro /pinas  ,  ^tms  capite  geft  a- 
vit ,  non  mutavit ,  nec  aliciibi  tranfpofuit.  As  efpi- 
nhãs  faó  os  cuidados  ,  como  lhe  chamou  o  mefmo 
Chrifío  ,  e  a  quem  he  Rey ,  ou  o  reprefenta  no  man- 
do ,  fempre  eíbs  efpinhas  lhe  eftaô  picando  a  cabeça, 
lempre  Iheeílaô  roendo  os  penfamentos ,  fempre  lhe 
eftaô  inquietando  os  fentidos,  fem  o  deixar  deícan- 
far,  nem  dormir. 

547  Aos  que  fervem  naÓ  ha  íenhor  taó  tyranno, 
que  lhes  nâõ  permitta  horas  de  defcanfo:aos  que  man^, 
daô  ,  he  tal  a  tyrannia  do  mefmo  mandar,  que  íe  nao 
tomaõ  por  alivio  os  meímos  cuidados^  (  como  diz 
Tácito  de  Tibério)  nem  hora, nem  momento  Ihecon- 
fentem  de  quietação ,  e  repouíò.  Só  poderá  replicar  Num;  5083 
contra  o  encarecimento  deftes  didames  ,  pofto  que 
verdadeiros,  o  defuío  ,  e  defprezo  delles ,  e  o  fer  or- 
dinário no  mundo  tomarfe do  mando  a  parte  iodo 
poder,  da  mageftade,  e  da  grandeza  ,  edeixarfe  a 

y  do 


I 


12       V  leira  m 

tio  pezo  ,  e  a  dos  cuidados  com  pouca ,  ou  nenhuma 
attençao  mais  que  ao  defcaníb ,  á  delicia  ,  ao  regalo, 
e  a  todososantojos  do  appetite  livre,  epoderofo: 
em  fun  a  igualar  as  indulgências  da  fuprema  fortu- 
na com  os  gofros,  e  prazeres  da  vida  ;  porque  íe  os 
que  tem  ornando,  fazem,  e  padecem  quanto  oraeí- 
mo  mando  os  obriga ,  dura  ,  e  triíle  fervidaó  he  a  íua; 
e  fe  o  naõ  fazem  ,  nem  o  querem  padecer ,  ainda  he 
mais  triíle,  e  mais  dura. 

5*48  Efta  foy  a  confideraçaõ ,  com  que  Pipino  em 
França ,  Rachiíio  em  ítaiia  ,  Sigiberto  em  Inglaterra, 
Trebellio  em  Bulgária,  Henrique  em  Chipre  ,Joaõ 
em   Arménia  ,  Ludovico  em  Sicilia  ,  Ramiro  em 
Aragão ,  Veremundo  em  Caílella  ,  eíla  foy  ,  digo ,  a 
coníideraçao  ,  da  qual  fortiíFimamente  convencidos 
eíles  ,  e  outros  Principes ,  ou  fendo  Reys ,  renuncia- 
rão as  coroas ,  ou  fendo  filhos  de  Reys  ,  as  heranças, 
elegendo  antes  fer  íubditos  ,  e  fervir  em  huma  Reli- 
gião, que  mandar  ,  e  íer  fenhores  do  mundo. 
Num.  513;     549     Vede,  fe  fao  loucos  todos,  os  que  querem 
Num.  514.  mandar  homens ,  ou  fervir  a  homens.  O  fervir ,  e  o 
mandar  ambos  começarão  juntamente  no  dominio 
de  Membroth.  Nelíe  começou  o  império ,  e  com  el- 
lea  íervidaõ.  Aílim  onota  S.  Jeronymo:  Quia  hic 
primusfuit ,  qiii  altos  fthi  fervire  coegit.  E  efte  do- 
minio  de  Membroth  quando  começou  ?  Segundo  a 
mais  certa  chronologia  começou  no  anno  de  1932. 
da  creaçaó  do  mundo  ,  qne  foy  o  mefmo  anno ,  em 
que  nafceo  Abrahaó.  Agora  noto  eu  ,  e  he  coufa 
muito  digna  de  fe  advertir  ,  que  quando  começou  o 
mandar ,  e  o  fervir ,  entaó  fe  encurtarão  as  vidas  dos 
homens ,  porque  dalli  por  diante ,  como  confta  da  ia- 
grada  Efcritura,  raros  foraó  os  que  chegarão  a  cem 

annos, 


Difcurfo  LIII.       15 

annos ,  e  rnriífímos  os  que  os  excederão.  De  forte 
que  antes  de  haver  no  mundo  fervir,  nem  mandar, 
viviaõ  os  homens  oito  centos  ,  nove  centos,  e  mais 
annos ;  porém  depois  que  eítas  duas  peites  entrarão 
no  mundo  ,  depois  que  os  homens  começarão  huns  a 
mandar,  e  outros  a  fervir,  nenhum  houve,  a  quem  a 
morte  naó  tiraíle  as  fete  ,  ou  as  oito  partes  da  vida. 
E  verdadeiramente,  que  fe  os  trabalhos ,  e  os  defgof- 
tos  mataô  ,  naô  he  muito  ,  que  o  fervir ,  e  o  mandar 
fejaô  enfermidades  mortaes. 

^^o  Mas  porque  o  fervir  a  Deos,  e  o  fervir  aos  Num.  515: 
homens  tudo  tem  nome  de  fervir,  vejamos  quanta 
headiííerença,  que  ha  entre  hum  fervir ,  e outro  fer- 
vir, para  que  todos  os  que  fervem,  eosquemandaÓ, 
queiraó  antes  íervir  s  Deos ,  e  fó  a  Deos.  Os  homens  Num.  5  ic, 
quando  mandaó,  (  e  mais  fe  tem  o  mando  fupremo  ) 
ou  feja  ingratidão  natural ,  ou  íoberania,  nem  eíli- 
maó  ,  nem  pagão  os  ferviços,  que  fe  lhe  fazem  ,  co- 
mo deverão;  porque  cuidaõ  ,  que  tudo  fe  lhe  deve. 
Pelo  contrario  Deos,  a  quem  devemos  tudo  o  que  te- 
mos, e  tudo  o  que  fomos,  nenhuma  coufa  manda  ,  a 
cuja  remuneração  fe  naÓ  obrigue  como  devedor. 
Os  homens  nas  fuás  leys ,  fe  mataítes ,  ou  furtaíles , 
caíligaovos;  mas  íe  naõ  matais,  nem  furtais,  naó 
vos  daó  por  iíFo  nada.  Naó  aíFim  Deos.  Naó  fó  vos 
remunera ,  quando  fazeis  o  que  vos  manda  fazer ,  fe- 
naõ  também  quando  naó  fazeis  o  que  vos  manda 
que  naô  façais.  Os  homens,  quando  pagaó,  ou  cui-Num.  517^ 
daó  que  pagaó  os  ferviços,  que  lhes  fízeíces,  elles  faó 
os  que  os  avaliaó.  O  eílylo  de  Deos  em  remunerar 
a  quem  o  ferve ,  vede  quaõ  differente  he.  Nós  fo- 
mos os  que  avaliamos ,  e  eiie  o  que  paga.  Os  homens  ^um.  5 18. 
para  fazer  as  mercês  olhaó  para  o  nalcimeoto  de 

quem 


\ 


I 


1 4       Vieira  ahhreviado 

quem  os  fervio :  Deos  fó  refpeita  ,  e  faz  caio  do  feti 
merecimento ,  e  das  acçoens  de  cada  hum ,  e  nenhum 
do  naícimento.  Os  nafcimentos  levarão  as  comandas 
dos  homens  ,  as  de  Deos  fò  para  o  merecimento  as 
tem  guardadas. 

551     Os  homens,  a  quem  os  ferve,  medem)heos 
merecimentos  pelos  annos :  Deos  mede-os  oelos  co- 
raçoens.  Os  homens  medindo  os  merecimentos  fó 
pelos  annos,  fazem  huma  grande  injuíliça  j  porém 
Deos,  que  he  juftiffimo,  mede-os  fó  pelos  coraçoens- 
porque  eile  fó  os  vê.  Oh  íe  os  homens  viíTem  os  co- 
raçoens ,  quaò  individados  fe  achariaó  os  de  mui- 
tos, que  cuidaô,  gueosíervem  pouco!  Por  iífo  fó 
,  Num.  çio.fe  pôde  fervir  aquém  vê  o  coração.  Os  homens  , 
a  quem  fervis ,  podem  pouco  ,  e  querem  menos  :  fe' 
quizeílem  dar  muito  ,  naõ  podem ,  e  eíTe  pouco,  que 
podem  ,  naó  querem.  Deos  pelo  contrario  pôde  tu- 
do, e  fempre  quer.  Quando  os  homens  pedem  aos 
homens,  ainda  que  fejaó  Reys,  pedem  hiins  pobres 
a  outros :  fó  quando  pedem  a  Deos ,  pedem  a  quem 
verdadeiramente  he  rico.    Os  Reys  quando  muito 
faó  ricos  para  alguns,  Deos  he  rico  para  todos. 

55^2  Os  homens  (já  que  falíamos  nos  feus  pode- 
res} fe  deres  por  eUes  a  vida ,  ainda  que fejao  Reys, 
e  Monarcas  ,  aífim  como  elles  vo  la  naó  deraô ,  aífim 
vo  la  naó  podem  reílituir;  eDeos,  fendo  elleoque 
vos  deo  a  vida ,  ainda  que  vós  a  naõ  deis  por  elle ,  íe 
a  empregardes  em  feu  ferviço,  davos  pela  temporal 
a  eterna.  Os  Reys  chamaófe  íenhores  da  vida ;  por- 
que com  juítiça,  ou  fem  ella  a  podem  tirar ;  mas  dalla 
nem  a  feus  filhos ,  nem  a  fi  mefmos  podem.  Só  Deos 
he  verdadeiro  fenhor  da  vida ,  porque  a  dá  no  nafci- 
mento  ,  porque  a  conferva  na  duração,  porque  a  re- 

fu  feita 


Num.  511. 


Difcurfo  LIII.       15 

fufcita  depois  da  morte  ,  e  a  eterniza  na  pátria.  Ve- 
de a  diíferença  da  voíla  meíma  vida  fantiíicada  a 
Deos ,  ou  aos  homens :  fe  a  dais  por  amor  de  Deos, 
ficais  bemaventurado  :  fe  a  dais  por  amor  dos  ho- 
menSjficais  morto.  Os  que  a  déraó  por  amor  de  Deos, 
íaó  os  que  adoramos  naquelles  altares  :  os  que  a  dé- 
raõ  por  amor  dos  homens ,  os  que  pizamos  neíTas  fe- 
pulturas. 

353  Os  homens  (para  que  fallemos  também  pe- Num.  jn» 
la  lua  boca  ,  e  naõ  fó  pela  divina  )  quando  vos  hao 
miíler,  fois  feu^  quando  os  haveis  mifter,  fois  voíTo. 
Aífim  o  cantou  ao  fom  do  Lima  aquelle  grande  ,  e 
deíenganado  efpirito ,  que  por  naó  ver  as  ribeiras  do 
Tejo  fugio  delias  p.ira  taÕ  longe.  Quando  te  hao  mif- 
ter, es  feu,  quando  os  has  mifter,  es  teu,  que  naó 
tens  donos  entaó.  E  Deos  pelo  contrario  he  taõ  bom 
Senhor ,  e  taõ  bom  dono ,  que  naõ  havendo  mifter  a 
ninguém ,  quando  nos  faz  mercê  de  fe  querer  fervir 
de  nós,  fomos  com  grande  honra  feus  :  e  quando 
nós  o  havemos  mifter  ( que  fempre  havemos )  nunca 
deixa  de  fer  noílo. 

554  Finahnente  os  homens,  a  quem  fervimos,  pof-Num.yij. 
to  que  íejaõ  Reys,  íaó  mortaes,  e  lhe  íuccedem  ou- 
tros; porém  Deos,  quando  naÕ  tiv^eramos  outras 
obrigaçoens  de  o  fervir ,  fó  por  fer  immortal ,  e  fem- 
pre o  mefmo  fem  outro,  que  lhe  haja  de  fucceder, 
o  devêramos  fervir  fó  a  elle.  Entenderão  ifto  tanto 
aííim  muitas  naçoens,  que  na  morte  dos  Reys  íe  fe» 
pultavaô  com  elies  os  íeus  criados  ,  náõ  fó  por  fine- 
za do  muito ,  que  os  amavaó  ,  mas  por  naÕ  vivereni 
em  tempo  de  outros  Principes,  que  naÕ  conhecef- 
lem  feus  ferviços,  e  merecimentos. 


i 


DIS- 


I 


ieira  abbreviado 

DISCURSO    LIV. 


Tirado  de  bumfermaÔdafegunda  Dominga  do  Ad- 
vento em  que  o  Ancior  mo/Ira  ,  que  o  juizo  dos    • 
homens  be  mais  temer ojo ,  que  o  juizo  de 
Deos. 


MERECIMENTOS. 


Pait.  5. 
Num.  6i. 


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A6  ha  mayor  delidlo  no  mundo ,  que  o 
fer  melhor.  Ao  menos  eu  a  quem  amara 
das  telhas  abaixo ,  antes  lhe  deíejara  hum  grande  de- 
lidlo  ,  que  hum  grande  merecimento.  Hum  grande 
delido  muitas  vezes  achou  piedade  :  hum  grande 
merecimento  nunca  íhe  faltou  a  inveja.  Bem  fe  ve 
hoje  no  mundo :  os  deliclos  com  carta  de  feguro  ,  e 
os  merecimentos  homiziados.  Sauí  condemnou  tan- 
tas vezes  á  morte  a  David ,  e  chegou  a  lhe  atirar  elle 
mefmo  ás  lançadas  :  c  porque  crimes  ?  Porque  íe  can- 
tava pelas  ruas  de  Jeruíafem  ,  que  David  era  mais  va- 
i.Reg.  18. lente ,  que  Saul :  Percuffit  Saulmille^  David  aut em 
^'  decem  viillia.  Eíle  premio  tirou  David  de  matar  hum 

gigante  com  huma  funda.  Mais  venturofos  haviao 
de  fer  os  tiros  ,  fe  naõ  derao  tamanho  eftalo.  Ao  gi- 
gante derrubou-o  a  pedra  ,  e  a  David  o  fonido.  Eis- 
aqui  porque  David  queria  que  o  julgaíTe  Deos,  e 
nao  os  homens.  No  juizo  de  Deos  pcrdoaófe  os  pec- 
cados  como  fraquezas  ;  no  juizo  dos  homens  cafti- 
gaofe  as  valentias  como  peccados.  Graças  a  Deos, 
que  já  nos  imos  emendando  deite. 


DIS- 


Difcurfo  LV.        1 7 

DISCURSO    LV. 

Tirado  de  htimfermcio  da  quinta  Dominga  da  Q^uh 

refma. 


MENTIRA. 


556 


Mentira  lie  filha  primogénita  do  ceio.  Prrt.  4. 
Vede  como  fe  forma  dentro  em  v  os  mef-  ^'""^-  3^^- 
mos  eíte  monílruoío  parto.  Quemeftá  ocioío  ,  nao 
tem  mais  que  fazer,  que  porfe  a  imaginar  :  da  ocio- 
fidade  nafce  a  imaginação,  da  imaginação  a  fufpeita, 
da  fufpeita  a  mentira."  Quem  trabalha  ,  trata  da  íua  Num.  3^1. 
vida ,  quem  eílá  ociofo  traía  das  alheyas.  (^uem  tra- 
balha ,  como  cuida  no  que  íaz ,  íalia  verdade;  por- 
que diz  as  coufas  como  faô.  O  ociofo  como  naó  tem  nu^.  j^^. 
queiazer,  mente;  porque  diz  o  que  imagina.  He  a 
imaginação  no  ocioib  como  a  íerpente  de  Heva.  Ef- 
tava  ociofa  Heva  no  Paraifo  :  entrou  a  Íerpente  col- 
leandofe  manfamente  fem  pés  ,  mas  com  cabeça  : 
começou  pela  efpeculaçao,  e  acabou  pela  mentira. 
Começou  peia  eípeculaçaô  :   Cur  pr£cepit   Tol;is ccti.  ^j.  t. 
Deus  :  e  acabou  pela  mentira  ,  e  duas  mentiras  :  Ne- 
qnaquam  fnorienmii'.  Eritis  Jicut  Dii.  Confentioíb.  4. 5-. 
Heva  na  mentira  peçonhenta  :    de  Heva  paííou  a 
Adão  ,  de  Adaõ  ao  género  hum.ano. 

^^y  Naó  fuccede  aíTim  ás  mentiras  imaginadas  , 
que  vós  como  bicho  da  leda  gerafres  dentro  em  vós 
mefmos,  fnbricando  de  voíTas  entranhas  a  mortalha 
para  vós ,  e  o  veílido  para  os  outros  }  Meterá  a  lin- 
gua  a  tefoura,  e  fem  tomar  as  medidas  á  verdade, 
vós  lhe  cortareis  de  veílir.  Porque  cuidais  que  fe  ái- 


Tom.  II. 


B 


zem 


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I- 


i 


'li:V 


ô       V  leira  uui 

zem  tantas  coufas  mal  feitas  ?  Porque  fe  fizeraõ  ? 
Naó  ;  que  a  mim  me  confta  do  contrario.  He  porque 
fe  imaginarão  :  e  tanto  que  vieraÕ  á  imaginação,  já 

Num.  3i3.eíla6  na  prancha  da  língua.  QLiantas  vezes  íe  diz  do 
honrado ,  e  da  honrada ,  do  innocente ,  e  da  innocen- 
te  o  que  nunca  lhe  paílòu  pela  imaginação  ?  Mas 
bwiíla  que  o  maldizente  o  imagine,  ou  o  queira  imagi- 
nar, para  o  pôr  na  converfaçaõ,  e  na  praça,  eo  affir- 
mar  com  tanta  certeza  ,  como  fe  o  lera  em  hum 
Euangelho.  Deos  vos  livre  de  taes  linguas,  e  muito 
mais  de  taes  imaginaçoens;  porque  íe  a  voífa  honra 
lhe  entrou  na  imaginação,  nenhum  remédio  tendes, 

Num.  315. ""'Õ  ha  de  parar  ahi,  ha  de  paíiar  á  lingua.  Diz  o 
Apoílolo  Santiago ,  que  naó  ha  fera  mais  diííicultoía 
de  enfrear ,  que  a  íingua.  Para  fe  pôr  o  freyo  na  Im- 
gua ,  haôfe  de  meter  as  cabeçadas  na  imaginação. 
Concertai  vos  com  os  yoílbs  penfa  mentos ,  fe  quereis 
eílar  feguros  das  voíTIis  linguas.  Mas  porque  dais  en- 
trada a  quanto  quereis  no  penfamento  ,  por  iílo  di- 
zeis tantas  coufas,  que  nunca  paífaraõ  pelo  penfa- 
mento. 

Num.  516.  55^  Vejo,  que  eftao  agora  alguns  no  auditório 
mui  contentes,  dizendo  comfigo,  que  ifto  naõ  falia 
com  elles;  porque  he  verdade,  que  naó  faó  mudos  , 
e  que  quando  íe  achaÒ  em  converfaçaô,  também  fal- 
laõ  nas  vidas  alheyas  ;  jnas  que  nao  íaó  homens  que 
digaõ  oque  imaginaô:  dizem  o  que  ouvem  ,  equem 
diz  o  que  ouve  ,  naô  mente.  Se  vós  íoubereis  quan- 
tas voltas  dao  as  palavras  defde  a  boca  até  os  ouvi- 
dos ,  nao  houvéreis  de  dizer  iílb  ,  ainda  que  fôreis 
mui  verdadeiros.  Qiiantas  vezes  vos  diíTeraõhuma 
coufa,  e  percebeíles  outra?  Quantas  vezes  ouvis  o 
que  nao  ouvis  .^  Quantas  vezes  entre  a  boca  do  ou- 
tro , 


tro,  e  os  voíibs  ouvidos  ficou  a  honni  alheya  pendu- 
rada por  hum  fio?  E  queira  Deos  nno  fícnííc  enfor- 
cada, lílo  acontece  quando  os  homens  ouvem  com 
os  ouvidos  ;  mas  quando  ouvem  com  os  coraçoens  ^ 
ainda  he  muito  peyor.  E  os  coraçoens  também  ou- 
vem ?  Nunca  viíles  coraçoens  ?  Os  coraçoens  tam- 
bém tem  orelhas  :  eftay  certos  ,  que  coda  hum  ouve, 
nao  conforme  tem  os  ouvidos,  íenaô  conforme  tem 
o  coração  ,  e  inclinação. 

559"   Em  quanto  Moyfés  eílava  no  monte  Sinai  Num,  3x7 
recebendo  oleyDeos,  pedirão  os  Judeos  a  Arao, 
que  lhe  fundille  hum  bezerro  de  ouro ,  e  como  era  o 
primeiro  dia  da  dedicação  daqueli:)  imagem  ^  ceie- 
braraóno  elles  com  grandes  feitas.  Deice  do  monte  Escd.  31: 
Moyfés  comjofué ,  ouvindo  as  vozes  ao  longe  :  diífe  '^• 
Moyfés.  Eu  ouço  cantar  a  coros  :  diOeJoíué  :  Naô  . 
he  fenao  tumulto  de   guerra.  Aqui  temos  choros Cs.nwj.j: 
caflrorum.  Se  as  vozes  eraõ  as  mefmas ,  como  a  hum 
parecem  muficas,  e  a  outro  parecem  trombetas.^  A 
razaô  he  clara.  Moyíés  era  religiofo  ^  Jofué  era  fol- 
dado  :    ao  religiofo  pareceraolhe  as  vozes   de  co- 
ro, ao  foldado  de  guerra.  Os  que  ouvem  íao  os  ou- 
vidos; mas  os  que  ouvem  bem  ,  ou  ma! ,  faõ  os  cora- 
çoens. Tudo  o  que  entra  pelo  ouvido ,  faz  eco  no 
coração,  e  conform.e  eftá  difpoílo  o  coração  ,  aílim 
fe  formão  os  ecos.  Cada  hum  ouve  conforme  o  feu 
coração ,  e  a  fua  inclinação.   Deos  nos  livre  de  hum 
coracaó  mal  inclinado,  fe  ouvir  hum  Te  Deiim  lau- 
damus  ^  ha  de  dizer,  que  ouvio  huma  carta  de  exco- 
munhão. 

560     Mais  fuccede  nefta  paífagem  dos  ouvidos  á  ^^jm.  3,1- 
boca.  Como  os  ouvidos  fno  dons  ,  e  a  boca  huma  , 
fuccede  j  que  entrando  pelos  ouvidos  duas  verdades, 

B  2  fahe 


I 


■■■ 


20 


7 


leira  aoor 


i 


m 


fahe  pela  boca  huma  mentira.  Parece  coufa  de  tre- 
geito  ;  mas  he  certa.  Qiierovos  moílrar  como  ifto 
pode  fer.  QtFiindo  quereis  dizer ,  que  fulano  he  gran- 
de mentiroíò  ,  dizeis,  que  he  huma  chímera.  Mas 
que  couAi  he  chimera  ?  Chimera  he  hum  animal  fin- 
gido, compoílo  de  dous  animaes  verdadeiros  :  hum 
monílro  meyo  homem,  meyo  cavalio  he  chimera: 
hum  m.onílro  meyo  águia,  meyo  ferpente  he  chi- 
mera :  hum  monílro  meyo  leaõ  ,  meyo  peixe  he 
chimera  ;  mas  nao  ha  taes  monílros  ,  nem  taes  chi- 
meras  no  mundo.  De  maneira  ,  que  as  ametades  faó 
verdadeiras,  os  todos,  ou  monltros  ,  que  delias  fe 
compõem,  íaô  fingidos.  As  ametades  íaô  verdadei- 
ras 5  porque  ha  homem  ,  e  cavalio,  ha  águia  ,  e  fer- 
pente ,  ha  leaó  ,  e  ha  peixe  :  os  monílros ,  que  fe  com- 
põem defcas  ametades ,  faÕ  fingidos ;  porque  naõ  ha 
tal  couHi  no  mundo.  ífto  mefmo  fazem  os  mentiro- 
fos:  partem  duas  verdades  pelo  meyo ,  e  fem  mudar, 
nem  accrefcentar  nada  ao  que  diífeíles,  de  duas  ver- 
dades partidas  fazem  huma  mentira  inteira.  Defen- 
dei vos  lá  agora  das  voílas  mentiras  com  dizer,  que 
diíleíles  as  mefmas  palavras  ,  que  ouviíles ,  e  que  naõ 
accrefccntaftes  nada.  Qiie  importa  ,  que  naõ  accref- 
centeis  ,  fe  diminuiíles  ?  Peyor  he  huma  verdade  di- 
minuida,  que  huma  mentira  mui  declarada  \  porque 
a  verdade  diminuída  na  eílència  he  mentira,  etem 
apparencias  de  verdade;  e  mentiras, que  parecem  ver- 
dades ,  íao  as  peyores  mentiras  de  todas. 
>jum,  331.  561  Mas  porque  acabemos  de  huma  vez  comas 
mentiras  de  ouvidas  :  para  que  íeja  mentira  o  que  di- 
zeis, nao  he  necelTario,  que  ouçais  mal,  nem  que 
diíuinuais  ,  ou  accrefcenteis  o  que  ouviíles:  pódc 
hum  homem  dizer  pontualmente  o  que  ouvio,  e  ou- 
vir 


A 


V 


Hjcurjo 

vir  pontualmcnce  o  que  diílerao  ,  e  com  tudo  iíib 
mentir.  Qiiantas  vezes  íè  dizem  as  palavras  íincera^ 
mente  com  hiima  tenção  nniiio  fã  ,  e  vós  as  inter- 
pretais ,  e  corrompeis  de  maneira  ,  qt  e  de  hum  Jou- 
Yor  fazeis  hum  aggravo,  de  huma  coníiança  huma 
injuria  ,  de  huma^gaiantaria  huma  blasfémia  ,  e  de 
huma  graça  levantais  huma  tal  labareda,  que  fe  ori- 
ginarão deíla  muitas  defgraças.  E  fe  rfto  fuccede  , 
quando  os  homens  dizem  o  que  ouvirão,  e  íó  o  qii^e 
ouvirão,  que  fera  quando  dizem  o  que  imaginarão, 
e  oque  fonharaó,  ou  o  que  ninguém  imaginou  ,  nem 

fonhou?  ^ 

562  Dizem  alguns,  ou  diz  algum:  Nao  lou  eu  Num.  333. 
daqueiles,  porque  a  mim  nunca  me  fahio  pela  boca 
coufa  ,  que  me  entraíle  pelos  ouvidos :  para  affirmar 
hei  de  ver  com  os  olhos  primeiro  ,  e  fe  para  iílo  for 
neceííario  ,  que  os  olhos  nad  durmaô  quarenta  noi- 
tes ,  eftando  vigiando  a  huma  efquina  ,  hei-o  de  fa-  — 
zer  íem  defcanfar  até  ter  averiguada  a  minha  fuf- 
peita.  Ah  ronda  do  inferno!  Ah  íentinela  de  Sata- 
nás !  Efte  meímo ,  fe  lhe  mandar  o  ConfeíTor  ,  que 
faça  exame  da  confciencia  meyo  quarto  de  hora  an- 
tes de  fe  deitar,  nao  o  ha  de  poder  fazer  com  ofono; 
mas  para  defiruir  honras  ,  para  abrazar  cafas  eftará 
feito  hum  Argos  quarenta  noites  inteiras. 

5Ó3  Naó  cuidem  porém  eftes  malignos  vigindo- 
res  ,  que  por  ahi  fe  livraó  de  mentiroíos.  Foftes ,  vi- 
gi**aes,obrervaftes,  viftes,  diOeíles,  e  tendes  para 
vó^  ,  que  fallaíles  verdade  ?  Pois  mentiftes  muito 
grande  mentira.  Os  olhos  mentem  de  dia  ,  quanto 
n\uis  de  noite.  Grande  cafo !  No  livro  quarto  dos 
Rcys  cnp.  3.  Sahiraõ  em  campanha  contra  os  Moa- 
biias  EiPvey  de  Ifraei ,  ElRey  de  Juda  ,  e  ElRey  de[^    ^•^' 

Tom.  II.  B3  Edon. 


I 


^«MiaSBEIS 


WÊÊSi 


iSmSS 


7 


-*  *r 


Num, 


5  34 


22      V  leira  aõDrevm 

Edon.  EílavaÔ  ainda  os  exércitos  para  dar  a  batalha 
na^manhã  feguinte  :  eis  que  ao  romper  do  Sol  olha- 
rão os  Moa bi tas  para  os  arrayaes  dos  inimigos,  e  vi- 
rão que  peio  meyo  deiles  corria  hum  rio  de  fangue. 
ComeçiiraÕ  a  clamar  cohn  grande  alegria  ,  langue  , 
fangue  ,  fem  duvida  que  os  três  Fveys  peleijaraô  efta 
noite  entre  íi ,  e  mataraóíe  huns  aos  outros :  vamos  a 
recolher  os  deípojos.  Sahirsô  os  Moabitas  correndo 
tumultusriamente;  mas  elles  foraô  os  defpojados  , 
e  os  vencidos;  porque  o  Tangue,  que  viraô,  ou  fe  lhes 
affigurou  ,  que  virão  ,  naô  era  langue.  Foy  o  caio  , 
que  paliava  hum  rio  por  meyo  dos  arrayaes  dos  três 
Reys,  e  como  ao  fahir  do  Sol  ferirão  os  rayos  na 
agua  ,  que  hia  correndo  ,  fez  taes  reflexos  a  luz ,  que 
parecia  fangue.  Eefta  apparencia  de  fangue  taõ  en- 
ganoiamentc  viílo ,  e  taô  falfa ,  e  taó  facilmente  cri- 
do ,  foy  o  que  precipitou  os  Moabitas ,  e  os  levou  a 
meteremíe  nas  maôs  de  feus  inimigos.  Se  reparais 
no  caio ,  as  duas  couías  roais  claras ,  que  ha  no  mun- 
do ,  he  o  Sol ,  e  a  agua.  Os  noíTos  Provérbios  o  di- 
zem: Claro  como  a  agua:  Claro  como  a  luz  do  Sol.  E 
quaes  foraÕ  as  coufas ,  de  que  fe  formou  aquelle  en- 
gano nos  olhos  dos  Moabitas  ,  com  que  cuidarão, 
que  o  rio  era  fangue }  Huma  coufa  foy  o  Sol ,  e  ou- 
tra coufa  foy  a  agua  :  o  Sol ,  porque  ferio  com  feus 
rayos  as  aguas,  e  as  agu-as,  porque  feridas  deraô  com 
os  reflexos  apparencias  de  fangue :  de  íorte  que  fe 
enganarão  os  olhos  nas  duas  couías  mais  claras,  que 
ha  fio  mundo.  Pois  fe  os  olhos  fe  enganaô  nas  cou- 
ías mais  claras,  como  íenao  enganarão  nas  n\ais  ef- 
curas  ,  e  ás  eícuras  ?  De  dia  enganavos  o  Sol,  e  de 
noite  qucreifvos  defenganar  com  as  trevas  ? 

564  Dirmehííis,  que  havia  Lua,  eeílrellas  quan- 
do 


Difcurjo  LV.        23 

do  vlftes.  Ella  pequena  luz  he  a  que  cega  mais  ;  por- 
que fiiz ,  que  hunvas  coufns  psreçaò  outras.  Trouxe- 
rao  hum  cego  a  Chntto  ,  pozlhe  o  Senhor  as  maõs 
nos  olhos  ,  Q  perguntou  lhe  Te  via  ?  Reípondeo  o  ce- 
go :  Vídeo  hoviincs  velut  arbor es  ambiLÍaiites  \  Se-Marc.  í. 
nhor ,  vejo  os  homens  como  arvores,  que  andaÕ.'^. 
Mais  cego  eíl:n  a  agora  eíle  cego ,  que  dantes  ;  por- 
que dantes  naó  via  íiada ,  agora  via  humas  coufas  por 
outras.  Os  homens,  que  faô  de  taô  differente  figura, 
e  eílatura,  via  os  como  arvores  ,  e  as  arvores,  que  ef- 
taõ  prezas  com  as  raízes  na  terra,  via  que  andavao 
como  homens.  Eisaqui  o  querem  ver  com  pouca  luz. 
O  mefmo  acontece  a  efies  cegos  vigiadores,  que  vaó 
eftudar  de  noite  o  que  haò  de  rezar  de  dia  :  Videa 
homínes  veliit  arbores  ambulantes. 

$6s  O  cego  deChriílofiguravarelhe,  que  os  ho- 
mens eraÕ  arvores  ,  e  eíies  cegos  do  diabo  affigurafe- 
ihe ,  que  as  arvores  fao  homens.  Poemíe  a  efpreitar , 
vem  huma  arvore  em  hum  quintal ,  eis  iá  vay  hum 
homem.  A  arvore  eftá  taô  pregada  peias  roizes,  que 
dous  cavadores  a  nao  arrancaráô  em  hum  dia ,  e  elle 
ha  de  jurar  aos  Tantos  Euangelhos  ,  que  vio  entrar ,  e 
fahir  aquelle  vuito:  Arbores  ambulantes.  Oh  mai- 
diro  odeio !  Oh  infernal  curiofidade !  Já  fe  os  olhos 
levarem  alguma  nuvemzinha  ,  como  fempre  levaõ  , 
ou  de  deíconfiança  ,  ou  de  ódio ,  ou  de  inveja ,  ou  de 
fufpeita ,  ou  de  vingança  ,  ou  de  outra  qualquer  pai- 
xão ,  ahi  vos  g"bo  eu.  Tenebroja  aqiia  in  milnbiís^í.  xj,  r 
aeris'.  Notou  David  ndmiravelsr.ente  ,  que  a  r.gua 
nas  nuvens  he  negra.  Vedes  !á  vir  hum  oguaceiro  ef- 
curo  mais  que  a  mefnía  noite :  que  negrume  he  aqiiel- 
Je  ?  Nar  he  mais  que  agua  ,  c  nuvem  :   anuvem  he 


hum  volante,  e  a  agua  he  hum  ci  vila.  ^ 

B4 


\\  e  deiles  dous 


ingre- 


itira  aborcviãã 

ingredientes  tao  puros,  etao  diáfanos  fe  fazhumã 
cícuridade  tm  negra  ,  e  taõ  efpeíla.  Sequem  vay  vi- 
giar 5  e  efpreitar  a  voíla  vida  ,  e  a  voíTa  honra ,  levar 
alguma  nuvem  diante  dos  olhos  ,  ainda  que  feja  taó 
delgada  como  hum  volante  ,  por  mais  que  a  voíla  vi- 
da ,  e  a  voíTa  honra  feja  tao  clara  ,  e  taÕ  pura  como 
hum  cryftal ,  haihe  de  parecer  efcura  ,  e  tenebroía: 
Tenebrofa  aqua  in  nubihus  aeris.  Finalmente  redu- 
zindo todo  o  difcurfo  ,  ou  todos  os  difcurfos  ,  men- 
tem as  linguas  ;  porque  mentem  as  imaginaçoens : 
mentem  as  linguas  ;  porque  mentem  os  ouvidos  : 
mentem  as  linguas  ;  porque  mentem  os  olhos  :  e 
mentem  as  linguas  j  porque  tudo  mente,  e  todos 
mentem. 


I  'i| 


DISCURSO     LVI. 

Tirado  de  hum  fermao  de  Cinza  para  a  Capella 

Realy  que  fenao  pregou  por  enfermidade  do 

Auóíor, 

M  O  R  T  E. 


Patt.  6. 

Num.  50. 


^66  JT^  Sta  he  a  íentença  de  morte  fulminada  con- 
JlLí  tra  Adaó  ,  e  todos  feus  defcendentes  ,  a 
qual  fe  tem  executado  em  quantos  atégora  viverão  , 
e  fe  ha  de  executar  em  nós  fem  appellaçaõde  innocen- 
cia  ,  fem  refpeito  de  eílado,  fem  excepção  de  pcllba. 
A  Igreja  folemnemente  hoje  naô  fó  no  la  repete  aos 
ouvidos  com  a  voz ,  mas  no  la  efcreve  na  teíla  com  a 
cinza  ,  como  fe  d i (lera  a  feus  filhos  luima  piedofa 
mãy  :  Filhos,  ouvi ,  e  lede  a  fentcnça  de  voílo  pay  , 
e  fabey ,  que  fois  pó  ,  e  vos  haveis  de  converter  em 

pó: 


pó  :  Piihts  es  ^  (ip-  inpulverem  reverteris.  O  pó  ,Gcn,  3.  i? 
que  fomos,  he  o  deqiie  íe  compõem  os  viv«s:  o  pó, 
que  havemos  de  rer,hc  o  em  que  fe  refolvem  os  mor- 
tos. E  fendo  eftcs  dous  extremos  tao  oppoílos  ,  co- 
mo o  fer ,  e  naô  fer ,  naó  he  muito  ,  que  os  eíFeitos  , 
e  aftedos  ,  que  prodiizem  era  nós,  íejao  lambem 
muito  diveríos;  por  iíio  amamos  a  vida  ,  e  tememos 

a  morte.  ^ 

^6y  Mas  porque  eu  depois  de  larga  confideraçao 
tenho  conhecido,  que  eitesdouseííeitos  no noílo en- 
tendimento, e  eíles  dous  aíFedos  na  noffa  vontade 
andaó  trocados ,  o  meu  intento  he  poios  hoje  em  feu 
lugar.  O  amor  eílá  fora  do  feu  lugar ;  porque  eílá  na 
vida.  O  temor  também  eftá  fora  do  feu  lugar;  por- 
que eílá  na  morte.  O  que  farei  pois,  íerá  deftrocar  ef- 
tes  lugares  com  tal  evidencia  ,  que  fiquemos  enten- 
dendo todos ,  que  a  morte ,  que  tanto  tememos ,  de- 
ve fer  a  amada  ,  e  a  vida ,  que  tanto  amamos  ,  deve 
fer  a  temida.  Mais  claro.  O  pó,  que  fomos,  he  a  vida, 
o  pó,  que  havemos  de  fer,  he  a  morte;  e  o  mayor  bem 
da  vida  he  a  morte ,  o  mayor  mal  da  morte  he  a  _ 
vida. 

568  Quem  mais  que  todos  quiz ,  foube  ,  e  podeN«m.  51; 
experimentar  os  bens  defia  vida ,  e  com  effeito  fez  de 
todos  elles  a  mais  univerfal  ,  e  exada  experiência, 
foy  Salamao.  E  que  juizo  fez  Saíamaô  com  toda  a 
fua  fabedoria ,  é  depois  de  todas  as  fuás  experiências 
entre  a  morte,  e  ávida  ?  Ellemefmo  o  declarou  : 
Laudavimagis  nwrtuos ,  quam  viventes.  Como  íeEcci.4.  t. 
diíTera  o  mais  fabio  de  todos  os  homens  :  Se  com  to- 
da a  minha  eloquência  houvera  de  orar  pelos  mortos, 
e  pelos  vivos ,  aos  mortos  havia  de  dar  os  parabéns , 
e  fazer  hum  largo  panegyrico  de  fuás  felicidades  ;  e 

aos 


2  6      Vieira 


iado 


aos  vivos  havia  de  d;ir  os  pezames ,  e  fazer  huma  ora- 
çnô  verdadeirair.ente  fúnebre,  e  triíle ,  em  que*ia- 
mentaíie  Çm$  miíerias,  e  defgraças. 

Ninu  51.       -f^^     (^^ioniGhriíloaLazaro,  quandoohadere- 
riiícírar,  nao  ochorandoinorto;  porque  eílando  já 
Jivre  dos  trabalhos,  das  mifírias  ,  e  dos  perigos  da 
\'ilU  por  meyo  da  morte,  agora  por  mevo  da^refur- 
reiçaò  o  tornava  outra  vez  a  metemos  íiíefmos  tra- 
balhos ,  nas  meímas  miíerias ,  e  nos  mefmos  perigos. 
A  todos  eiieve  bem  a  reílirreiçaò  de  Lazaro  ^  e  iò  ao 
mefmo  Lazaro  eíleve  mal ;  porque  a  reíurreiçao  o  ti- 
rou do  deícanfo  pira  o  trabalho,  do  erquecimento 
para  a  memoria  ,  da  quietação  para  os  cuidados,  da 
paz  para  a  guerra  ,  do  porto  para  a  tempellade ,  do 
íligrado  da  inveja  para  a  campanha  do  ódio,  da  ciau- 
fura  dofilencio  para  a  íoitura  dasiinguas,  do  cita- 
do da  inviíibilidade  para  ode  ver,  e  íerviíio,  de  en- 
tre os  oíTos  dos  pays  ,  e  avós  para  entre  os  dentes 
dos  — •'  -     -  ■   '  -^      ' 


em  u  los 


e  inimigos , 


SI 


^     ,  em  íim  da  liberdade  ,  em 
que  o  tinha  poílo  a  morte  ,  para  o  cativeiro,  e  cati- 
veiros da  vida. 
Num.  53.       5'7o     Períuadidos  os  homens  á  verdade  defte  de- 
fengano,naô  he  muito  que  a  morte,  Jhecomeçaííê 
a  parecer  menos  feya  ,  que  a  vida  ,  antes  que  a  vida 
Jhe  parece/Te  feya,  e  a  morte  formofa.  Os  PaíTianos, 
e  outras  naçoens,  que  barbaramente  fechamaÕ  bar- 
baras .  choravaõ ,  e  pranteavaõ  os  nafcimentos  dos  íi- 
ihos,  ecelebravaó  com  feílns  as  fuás  mortes;  por. 
que  cntendiao,  que  nafcendo  entravaô aos  trabalhos, 
e  morrendo  paíHwaô  ao  deícanfo.  E  certamente  ' 
que  as  lagrimas  dos  nafcimentos  os  mefmos  nafci- 
dos  lem  mais  eníino ,  que  o  da  natureza ,  as  approvaõ, 
c  ajudaõ  com  as  fuás ,  c  as  íeílas,  com  que  íe  ceJebra- 

vao 


Difcurfo  LVI. 


^ 
^á^ 


7 


vao  as  mortes  ,  também  os  mortos  peia  experienda 
do  íeu  deícanfo  ,  íe  podeliem  faihir,  as  louvarioo. 
Por  iííb  Samuel  obrigado  a  falias  com  Saui  depois  de 
morto  ,  e  íepultado  ,  o  que  lhe  diíle  foy  :  Qjiare  ht- ;  R^g-i?^ 
quietafti  me  ?  Porque  me  inquietaíle  ?  Muitos  Filo-  '^' 
fofos,  e  particularmente  os  Eftoicos,  cuja  feita  pe- 
la preferencia  da  virtude  fe  avizinhava  m.ais  ao  lu- 
me da  razaó ,  nao  íódavao  licença  a  íeus  profeíTores, 
para  que  antepuzelfem  a  morte  á  vida  ,  mas  aos  que 
em  caíbs  de  honra  tomavao  por  fuás  maós  a  mefma 
morte,  (  a  que  chamavaô  porta  da  liberdade)  os  in- 
tr.oduziao  por  ella  á  immortalidade  da  gloria.  Aífim 
o  fezaquelle  homem  ,  rnayor  que  todos  os  Romanos, 
Cataõ ,  cujo  juizo  ,  e  authoridade  na  opinião  da 
mefma  Roma  fe  punha  em  balança  com  a  dos  deo- 
fes,como  foberbiílimamente  cantou  delle  Lucano 
na  demanda  imperial  de  Cefar  com  Pompeo : 

Magno  fejiidice  qui [que  tuetur  y 
Vicirix  caufa  diis  placuit^  pars  viâía  Catoni. 
571     E  fe  alguém  me  replicar  ,  que  eítes  homens  mu^.  j^; 
eraõ  gentios,  eu  lhe  perguntarei  primeiramente,  íe     . 
era  gentio  Samfaõ ,  ou  Saul  ,  ou  Achitofel :  e  que  M- 
zeraô  em  femeíhantes  cafos  ?  Samfaô  nao  duvidou 
matarfe  a  íi  mefmo  por  fe  vingar,  como  elle  diíFe,  dos 
Filiíleos  pela  injuria,  que  lhe  tinhaó  feito  em  lhe 
arrancar  os  olhos.  Saul  por  naô  vir  ás  maôs  de  feus 
inimigos,  vencido  em  huma  batalha  ,  mandou  aofeu 
pagem  da  lança  ,  que  o  mataífe  ,  e  porque  nao  foy 
obedecido  ,  elle  pondo  a  ponta  da  efpada  no  peito  , 
com  todo  o  pezo  do  corpo  íe  atraveflou  nella.  Achi- 
tofel, queera  o  Cataõ  dosHebreos,  e  cujos  coníe- 
Ihos  por  teílimunho  da  Efcritura  fagrada  eraó  como 
os  oráculos  do  mefmo  Deos,  porque  Abfalao,  cujas 

partes 


Num,  5é. 


Num.  57, 


V  '  ' 


2  8      Vieira  ahbreviaâo 

partes  feguira  ,  os  nao  quiz  tomar,  tomou  elle  pof 
confelho  anticipar  por  íuas  próprias  mãos  a  morte  , 
prevendo  como  fabio  ,  que  naõ  podia  deixar  de  íer 
vencedor  David  ,  a  quem  a  tinha  bem  merecido. 

572  ^  Mas  inventou  o  amor  da  vida  huma  dif- 
tinçao  hmdada  no  que  ella  mais  aborrece ,  que  faõ  as 
miíerias,  e  no  que  mais  eílniia,  que  ÍI16  asfeJicida- 
cies.  Fazendo  pois  huma  grande  diírerença  entre  os 
miferaveis  ,  e  os  feiices  ,  dizem  os  defeníores  da  vi- 
da ,  que  para  os  miíeraveis  he  mayor  bem  a  morte; 
mos  para  os  feiices  naô ;  porque  affim  como  a  morte, 
e  a  íepuitura  para  os  contentes  da  vida  he  o  feu  ma- 
yor  temor  ,  aííim  para  os  defcontentes  delia  ,  e  mife- 
raveis  he  o  mayor  defejo.  Por  iílo  aquelle  Filofofo, 

que  refere Laercio,chamadoSecundo,perguntado pe- 
lo Jtnperador  ildriano ,  o  que  era  a  morte  ,  refpon- 
deo  ,  que  era  o  medo  dos  ricos  ,  e  o  defejo  dos  po^ 

_  ..,    ^-res  :   Pavor  divittmi  defiderium  pauperum.  Me- 

Herc.Fu-  Jhor  ainda  ,  e  mais  nervoíamente  o  diíFe  Séneca  o 
fen.  Trágico  por  boca  deLicho.  Era  Licho  hum  famo- 

riíTimo  tyranno,  o  qual  na  aufencia  de  Hercules  ma- 
tou a  Creonte  Rey  legitimo  de  Thebas ,  e  fe ihe  apo- 
derou do  Reyno.  Efte  pois,  como  tao  grande  mcílre 
da  tyrannia,  dizia,  que  quem  matava  a  todos,  nao 
íabia  íer  tyranno  :  Ql^i  morte  cunãos  hiere/uppli- 
ciíimjubet,  nejcit  tyrmmus  ejje.  Pois  que  havia  de 
fazer  hum  tyranno  para  íer  verdadeiramente  tyran-: 
no ,  e  cruel  ?  Diz ,  que  havia  de  dar  a  morre  a  huns  , 
e  a  vida  a  outros  conforme  a  fortuna  de  cada  hum : 
aos  feiices  a  morte ,  aos  miíeraveis  a  vida :  Miferurn 
'vita.perirefelicemjnhe:  Ao  feiice  mandai,  que  mor- 
ra ,  ao  miíeravel,  que  viva;  porque  tanta  pena  he 
condemnar  o  feiice  á  morte,  como  o  miíeravel  á 
^^^a-  .  573  Para 


Séneca  in 


Difcurfo  LVl. 

<;'73  Para  eu  refutar  os  defenfores  tia  vida  dos  fe-  Num.  j?. 
liccs  naÕ  quero  outro  argumento ,  fenaó  o  íeu.  Con- 
cedem que  a  morte  he  mayor  bem  ,  que  a  vida  dos 
miíeraveis :  logo  também  he  mayor  bem  ,  que  a  vida 
dos  que  elles  chamaô  felices.  E  fe  naõ  os  mefmos  fe- 
lices  odigaô.  Pergunto.  Fia,  ou  houve,  ou  pode  ha- 
ver nelle  mundo  vida  alguma  taõ  mimoía  da  fortu- 
na ,  e  taó  felice ,  que  careça  totalmente  de  miferias  ? 
Ninguém  fe  atreverá  a  dizer  ,  nem  imaginar  tal  cou- 
fa  :  logo  fe  naó  ha  ,  nem  pode  haver  vida  ,  que  care- 
ça de  miferias  ,  o  que  fe  tem  dito  da  vida  dos  mifera- 
veis,  íe  deve  entender  de  todas,  e  de  todos. 

574  Os  que  vulgarmente  fereputao,  e  chamao 
felices,  tanto  leenganaô  coma  fua  felicidade,  como 
com  a  fua  vida  ;  por  iílbamaóa  vida  ,  e  temem  a  mor- 
te. Mas  efte  engano  lhe  defcobriremos  agora ,  para 
que  conheçao/que  em  todo  oeílado,  e  em  toda.  a 
fortuna  a  morte  he  o  mayor  bem  da  vida. 

^y^  Todos  os  bens,  de  que  he  capaz  o  homem  ,  Num.  6o. 
em  quanto  vive  neíle  mundo  j  ou  faô  bens  da  natute- 
za  ,  ou  bens  da  fortuna  ,  ou  bens  da  graça  ;  mas  ne- 
nhum delles  he  tao  folido ,  inteiro  ,  e  puro  bem  ,  que 
o  gofe  fem  tributo  de  miferias  a  vida ,  nem  a  pofla  li- 
vrar deite  tributo ,  fenaó  a  morte.  Entre  os  bens  da 
natureza  o  mais  exceilente,  o  mais  útil,  e  ornais 
neceílario  he  aquelle,  fem  o  qual  nenhum  outro 
bem  fe  pode  gofar,  a  faude.  E  íó  quem  comprehen- 
der  o  numero  fem  numero  de  enfermidades,  e  dores, 
aqueeftáfujeita  ,  eexpoíla  a  faude,  ou  geradas  den- 
tro do  meímo  homem,  ou  nafcidas,  e  occaíionadas 
de  fora  ,  poderá  conhecer  exaòiamente ,  quaô  carre- 
gado de  durifíír.ias  peníoens  ,  e  quaô  cheyo  de  mife- 
rias oudeo,  ouempreílou  a  mefma  aatureza  ainda 

aos 


Hcrod.  hl 
z. 


riutarc.  in 
Conf.  ad 
Apol. 


Para.  i. 
col,  1047. 


Is"'!!;, 


O      V  leira  abbrevu 

aos  mais  faos ,  e  robuílos  efte  caiamitofo  bem.  Pois 
que  reinedio  ? 

_  Sy(i     Os  Egypcios,  entre  os  quaes  nafceo  a  Medi- 
'cina  ,  pára  cada  enfermidade,  como  refere  Heródo- 
to ,  tínnao  hum  Medico  particular,  mas  nem  por  iílb 
íaravaô  todos  ,  nem  de  cod.is.  EíPvey  í^^xchias  man- 
dou queimar  os  livros  de  Sulamaó/ porque  o  povo 
recorrendo  ás  virtudes  das  hervas  em  fuás  enfermi- 
dades ,  deix.iva  de  acudir  a  Deos ,  que  he  a  verdadei- 
ra raiz  da  faude.  Aííim  o  refere  Euíebio  Cefarleníe. 
Mas  em  quanto  durarão  os  mefmos  livros  ,  nem  aos 
enfermos  particulares,  nem  ao  meímo  Salamaó  apro- 
veitou aquelfa  grande  ciência  Medica  :   até  quan- 
do ?  Até  que  as  próprias  doenças  os  fujeitarao  ao 
Medico  uaiverfai ,  que  fem  aforifmos  ,  nem  receitas 
cura  em  hum  momejito  a  todas  ,  que  he  a  morte  :    O 
mors  ^  venl  nojlris  certus  Meãictis  malis  \  O'  mor- 
te ,  vinde ,  que  fó  vós  fois  o  verdadeiro ,  e  certo  Me- 
dico para  todos  os  nolTos  males  \  Fie  exclamação  pro- 
verbial dos  Gregos  referida  por  Plutarcho.  Morref- 
tes,  acabaraõfe  as  enfermidades  ,  acabaraofe  as  do- 
res, acabaraõíe  todas  as  molcílias,  eafrliçoens,  que 
maj^tyrizao  hum  corpo  humano  ,  e  até  o  temor  da 
meima  morte  fe  acabou  ;  porque  os  mortos  já  naó 
podem  morrer. 

S77  Tudo  acaba  a  morte ,  e  tudo  fe  acaba  com  a 
morte,  até  a  mefma  morte.  Qtiem  morreo,  jdnaõ 
pode  morrer.  Só  os  mortos  tem  efte  privilegio  con- 
tra ajuriídiçaô,  e  império  univerfal  da  morte,  Sa6 
Aíjeitos  á  morte  os  Principes  ,  os  Reys  ,  os  Monar- 
cas ,  fó  os  mortos  depois  que  huma  vez  lhe  pairarão 
tributo,  Hcarao  ifentos  de  íua  jurifdiçao.  Por  iíío 
Tertuiliano  chamou  judiciofamcnte  d  fepultura  Mor--. 

tis 


S    ' 


Difcurfo  lyi.' 

tis  afylum: AfyíOj  e  fagrado  dn  morte.  Contra  a  alça- 
.da  da  morte ,  nem  o  Yaticano  he  fagrado  ,  mas  a  le- 
pultura  rim;porque  os  mortos  já  nao  podem  morrer. 
578  Vede  a  grande  difFerença  dos  mortos  aos 
vivos.  Os  vivos  fobre  a  terra  temem  a  morte,  osParr.  <r. 
mortos,  debaixo  da  terra  eíperaõ  a  refurreiçaÔ  :  e^^'"-^^" 
quanto  vay  do  eíperar  ao  temer,  e  das  ifençoens  da 
immortalidade  ás  íujeiçoens  de  mortal,  tanto  melhor 
he  o  eftado  dos  mortos,que  o  dos  vivos.  Os  que  efca- 
paraõ  vivos  do  incêndio  de  Troya  chamavaõ  bem- 
aventurados  aos  que  morrerão  peleijandopor  elia: 

O  ter  que ,  quaterque  beati , 
Queis  ante  ora  patrum  magiue  fub  manibus  urbis 
Çojitigit  oppetere ! 

Sem  conhecer  a  bemaventurança  ,  nem  entender 
o  que  diziaô  levantarão  hum  admirável  penfamen- 
to;  porque  a  felicidade,  de  que  goíaó  os  mortos 
por  benefício  da  morte ,  íe  naô  he  como  toda  a  bem- 
aventurança do  Ceo  ,  he  como  ametade  delia  ;  por- 
que já  para  elles  navó  ha  lagrimas ,  nem  gemidos,  nem 
dores,  nem  enfermidades,  nem  a  mefma  morte.  As 
dores,  e  as  enfermidades  defta  vida  tem  dous  remé- 
dios ,'  ou  alivios  :  hum  natural ,  que  fao  as  lagrimas , 
e  os  gemidos ,  e  outro  violento ,  e  artificial ,  qúe  fao 
os  medicamentos.  E  a  morte  naô  fó  nos  livra  das  mi- 
ferias  da  vida ,  fenaõ  também  dos  remédios  delia.  Já 
diífemos  que  Cataô  fe  matou  a  íi  mefmo ,  mas  naÕ  feSenec: 
inatou  de  huma  vez ,  íenao  de  duas ,  com  modo  ,  e 
circunftancias  notáveis,  Eílando  fao,  e  valente,  me- 
teo  hum  punhal  pelos  peitos :  acudirão  logo,  e  curá- 
raolhe  a  ferida  ;  mas  elle  depois  de  curado ,  metendo 
as  mãos  na  mefma  ferida  ,  a  fez  muito  mayor,  e  fe 
acabou  de  matar.  De  forte  que  começou  a  fe  matar 

faõj 


3  2    ■  Vieira  abhreviado 

-faÔ ,  e  acabou  de  fe  matar  curado.  Saô  para  fe  livrar 
da  vida,  curado  para  fe  livrar  da  vida  ,  e  mais  dos 
remédios.  Por  iílb  ò^úXq  Santo  Agoílinho ,  que  quan- 
tas faÕ  as  medicinas ,  tantos  faõ  os  tormentos.  E  taes 
faõ  as  dobradas  mi  ferias,  a  que  eftá  ibjeita  amayor 
felicidade  da  natureza  ,  que  he  a  faude ,  bailando  pa- 
ra a  tirar  padecidas,  e  nao  bailando  para  a  coníervar 
remediadas. 

Num,  G-L.  579  Pnílemos  aos  bens  da  fortuna  :  e  fubindo  ao 
mais  alto  ponto,  aonde  ella  pôde  chegar,  preguemos 
hum  cravo  na  íua  roda ,  para  que  concedendo  as  fuás 

4^  felicidades  a  conílancia,  que  naô  tem  ,  vejamos  fe  fe 

podem  jadiar  ,  ou  preíumir  de  que  carecem  de  mife- 
rias.  Os  cetros,  e  as  coroas  faõ  as  que  poílas  no  cu- 
me da  mageílade ,  levaÕ  a  poz  fí  com  o  império  os 
applaufos  ,  e  adoraçoens  do  mundo  ,  e  ao  mefmo 
mundo  ,  o  qual  cego  com  os  reflexos  daquelíeefpíen- 
dor  os  acclama  felices,  e  feliciílimos  ,  nao  pene- 
trando o  interior  ,  e  íolido  da  felicidade ,  mas  olhan- 
do fó ,  e  parando  no  íobredourado  das  apparencias  : 

Senecepift.  Onuíium  iftorum  ,  qitos  incedere  altos  vides  ,  bra- 

^  ^  ^  •  Beata  felicitas  ^//  ,  d  i  ííe  fa  b  i  a ,  e  e  I  e  ga  n  te  m  e  n  te  S  e- 
neca,  Aílim  como  os  tcclos  fobredourados  dos 
templos,  e  dos  palácios  o  que  moílrao  por  fora  he 
ouro  ,  e  o  que  eícondem  ,  e  encobrem  por  dentro  , 
faó  madeiros  comidos  do  caruncho ,  pregos  ferru- 
gentos, teas  de  aranha  ,  e  outras  fevandijas,  aííim 
debaixo  da  pompa  ,  e  apparatos,  com  que  coíluma- 
mos  admirar  os  que  vemos  levantados  ao  zenith  da 
fortuna,  fe  viramos  juntamente  os  cuidados ,  os 
temores  ,  os  defgoítos ,  e  triílezas  ,  que  os  comem  , 
e  roem  por  dentro  ,  antes  haviamos  de  ter  compaixão 
das  fuás  vcrdadenas  miíerias,  que  inveja  á  falfa  re- 

preíen- 


Difcurfo  LVl. 


prefentaçaô ,  e  engano  do  que  nelles  íe  cfearoa  felicív 
dade.  Quem  duvidou  já  mais  de  reputar  a  Carlos  V. 
por  feliciílimo  com  tantas  viílorias,  tanta  fíífiiíi ,  tan- 
tos augmentos  da  Monarchia  ?  E  com  tudo  no  dia,, 
eaíque  renunciou  o  governo  ,  confeffou  ,  que  em  to- 
do o  tempo  delle  nem  hum  íó  quarto  de  hora  tivera 
livre  de  aFíiiçoens  ,  e  moleftias :  Se  totó  Regni  fem-- 
pore  ncc  ad  unum  quhkm  hora  quadrantem  puram 
habuijje ,  meramqtie  Idetitiam ,  fedmultis  ilíam  cu^ 
ris  ,  angoribus  ^doloribtifque  permijlam. 

580  '  O  diadema  antigo,  iníignia  dos  Reys.e  Im- 
peradores,era  liumafaxa  atada  na  cabeça.  E  dizia  Se- 
Jeuco  Rey  da  Afia,  que  fe  os  hsomens  íbubeílenj, 
quaó  pezada  era  aquella  tira  de  pano  ,  e  qúao  chea 
de  efpinhas  por  dentro ,  nenhum  haveria  ,  que  a  le-- 
vantaíle  do  chaó  para  a  pôr  na  cabeça.  ElRey  Anti-"i 
gono  vendo  que  feu  filho  pelo  fer  fe  eníoberbe- 
cia ,  com  que  lhe  abateria  os  fumos  ?  An  ignoras^  o* 
fili.,  Regnum  nojlriim  non  effealiud^  nifijplendídaiàli 
fervitutem  ?  Naô  fabes  ,  filho,  (  lhe  diíTe  >  que  onof-« 
fo  Reyíio,  eo  reynar  nao  he  outra  coufa,  que.hunji 
cativeiro  honrado  ?  Os  Reys  faô  fenhores  de  todos  ,^  ^j^  .,^1^.^ 
mas  faó  também  cativos  de  todos.  A  todos  mandaó 
como  Reys ,  e  de  todos  fao  julgados  como  reos. 

581  ComooReyheaalmadoReyno,  temobri^ 
gaçaó  de  viverem  todos  os  feus  vaíTallos ,  e  padecer 
nelles,  e  com  elles  quanto  elles  padecerem.  Senaó 
padece  aíTim  ,  naõ  he  Rey  ;  e  fe  padece  ,  que  mayorf.» 
martyrio?  Hafe  de  matar,  e  morrer,  para  que  elles 
vivaó  :  hafe  de  canfar,  para  que  elles  defcanfem,  e  ha 
de  velar,  para  que  elles  durmaõ  ,  fendo  mais  quieto  , 
e  focegado  o  iono  do  cavador  fobre  huma  cortiça  , 
que  o  do  Rey  debaixo  de  ceos  de  brocado.  AUi  def- 

Tom.  II.  C  veia- 


j4      Vieira  abbreviadQ 

velado  marcha  pelas  campanhas  com  íeus  exércitos^ 
alli  navega  os  mares  com  as  íuas  armadas  ,  e  a  qual-, 
quer  bandeira,  que  tremólacom  o  vento,  Ihe.paápita 
o  coração  na  contingência  dos  fucceíFos.  Taes  fao  a^s. 
miferaveis  felicidades,  ou  as  adoradas  miferias  dos. 
que  poftos  na  região  dos  rayos  ,  dos  trovoens,  c  das 
tempeítades  a  dignidade  com  razaõ,  e  aliíonja  feni 
ella  chama  SereniíTimos.  , 

lííum.  61.       S^  ^     Qy  ^  íeri  a ,  fe  e  u  a  qu  i  aj  u  n  ta  íFe  a  gora  os^  èa- 
taítrofes ,  e  fins  trágicos  dos  Xerxes ,  dos  Creííos, 
dos  Darios,  e  infinitos  outros  ?  Mas  o  meu  intento 
fó  he  deícobrir  as  miferias  dos  felices.  A  eftepropo-j 
fito  há  muito  que  tenho  notado  huma  couía  paraH 
mim  admirável,   e  he  que  fendo  Valério  Máximo 
taõ  univerfal  nas  hiftorias,  e  noticias  do  mundo,  ti 
trazendo  tantos  exemplos  aflim  doraefticos  ,  come 
eílrangeiros  em  todas  as  matérias,  quando  veyo  a 
tratar  da  felicidade  ,  fó  achou  entre  os  Romanos  a 
Metello  homem  particular,  centre  os  Reys  de  todasi'.^ 
as  naçoens  a  Gyges  Reyde  Lidia.  Eílahe  a  mefma\ 
falva  ,-com  que  elle  começa  dizendo  :  Vohibiiis  for- 

Vaier.  Ma  ^^ipf  ci^^f^plur^  exemplã  retulimus ,  conjianter  pro- 

lim.iib.  -j.pitiíe  admodumpauc a  narrar ipQffíint.  Inchado  pois. 

eap.  I.       Gyges  com  a  fingular ,  e  continua  proíperidade  de:> 
íua  fortuna  ,quizfe  canonizar  pelo  mais  felice  ho- 
mem do  mundo ,  e  a  efte  fim  confultou  peíFoalmente^^ 
o  Oráculo  de  Apollo,  para  que  arepoíla  ,  dequenaõ 
duvidava,  fofie  huma  prova  authentica,e  divina  de 
,  fua  felicidade:  enganoufe  porém  ,  ou  acabou  de  íe 
enganar  o  já  enganado  Rey ;  porque  refpondeo  O' 
Oráculo ,  que  Aglao  Sofidio  era  mais  felice ,  que  el- 
le.  \L  quem  era  Aglao  Sofidio  ?,  Era  hum  lavradorzi- 
nho  velho ,.  o  mais  pobre  de  toda  a  Arcádia ,  ao  qual 

hum 


v;  Difciirfo  LVI.      ^'f 

huiTí  pequeno  enxido  ,  que  tinha  junto  á  íua  clí o lí pa- 
na ,  cultivado  por  fuás  próprias  mãos  ,  íem  inveja 
fua  >  ou  alheya  ,  lhe  dava  o  que  era  baítante  para 
fuftentara  vida. 

^"5^3  Pois  eíle  Aglao  aílim  pobre  era  mais  felice 
4\uQ  Gyges  com  todas  as  fuás  fortunas  ?  Sim;  porque 
elfas  mefmas  fortunas,  ainda  que  grandes,  e  conti- 
nuas ,  naõ  o  livravaõ  do  temor  da  fuu  incorilnncia ,  o 
qual  fó  baftava  ao  fazer  infelice.  Debaixo  defte  te- 
mor fe  comprehendiaó os  cuidados,  as  fufpeitas,  as 
duvidas ,  as  imaginaçoens ,  os  indicies  falfos ,  ou  ver- 
dadeiros da  ruina  ,  que  íe  lhe  maquinaíle,  ou  podia 
maquinar,  e  todos  os  infortúnios  poííiveis  no  mar, 
e  na  terra  ,  na  guerra  ,  e  na  paz,  na  inveja  dos  emu- 
los,  no  ódio  ,  e  potencia  dos  inimigos  ,  no  defcoa- 
tentamento,  e  rebelião  dos  vaífallos:  em  fim  as  vio- 
lências fecretas,  os  roubos,  osíubornos,  as  traições, 
os  venenos ,  com  que  nem  o  íuílento  neceíFario  á  vi- 
da, nem  a  mefma  refpiraçaô  he  fégura.  Para  que  fe 
Veja  fe  era  felice  quem  fòdo  efte  tumulto  de  inquie- 
taçoens  ,  que  fó  conhecia  o  Oráculo  ,  trazia  dentro 
no  peito.  Ecomo  os  bens  da  fortuna  ,  ainda  os  mayd- 
res  ,  quaes  fao  os  dos  Reys  ,  e  ainda  nos  íingular ,  ç 
unicamente  felices  eftaô  fujeitos  a  tantas  miferias 
ou  padecidas  em  fí  mefmas ,  ou  no  temor  ,e  receyo, 
que  naó  he  tormento  menor ,  nenhum  outro  remédio 
tem  para  efcapar,  e  fe  livrar  delias  a  vida  ,  íenao  o 
da  morte.  Taõ  certo  hc  ainda  no  mayor  auge  dos 
bens  da  fortuna  ,  qual  he  a  dos  Reys  ,  Ter  o  mayor 
bem  da  vida  a  morte. 

584  E  para  que  em  huma  íò  demonftraçaô  veja- 
mos inteira,  enaõ  por  partes,  efta  mefma  prerogati- 
"va  da  morte ,  naó  inculcada  de  novo ;  mas  crida ,  ap- 

C  2  prova- 


í 


Num.  7°- 


Plutarc. 


:3^      Vieira  abbreviàdo 

provada ,  e  impreíía  nojuizodos  homens ,  ouçamos 
huma  notável  antiguidade. 

^^^  Houve  entre,  os  iabios  da  gentilidade  hum 
homem  chamado  Sileno,  femelhantena  opinião  aos 
noílos  Profetas,  cujas  repoftaSj  comoinfpiradas  por 
inftinto  mais  que  natural,  eraó  recebidas,  e  cridas 
como  oráculos.  A  efte  Sileno  poi^  coníultou  E!Rey 
Midas  fobre  qual  foíTe  o  mavor  bem  deíla  vida ,  e  de- 
pois  de  muitos  rogos ,  e  inftancias  a  repoíta  ,  que 
delie  alcançou  ,  foy  efta :  Non  nafciomnium  e/t  opti- 
ciceroTpi.1-  wum ,  njortíium  autem  e[fe  longe  ejl  melius  ,  quam 
to ,  Amiot.  vívere:  O  melhor  de  tudo  he  naó  nafcer ;  mas  no  ca- 
&^in.  Çq  ^q  haver  nafcido ,  muito  melhor  he  ao  homem  o 
.  morrer ,  que  o  viver.  AíFim  o  dilfe  Sileno ,  e  naô  íó 
do  vulgo  roy  recebido ,  como  provérbio  etle  dito , 
mas  o  approvaraô ,  e  celebrarão  fempre  os  dous  ma- 
yores  lumes  da  Filofofía  racional  Platão,  e  Ariftote- 
les.  Pindaro  Príncipe  dos  Poetas  Lyricos  da  Grécia 
parece,  que  duvidofo  ainda  deíla  verdade  quiz  fa- 
zer mayor  exame  delia ,  e  como  pelo  Oráculo  de  Del- 
fos lhe  folTe  refpondido  o  mefmo  ;  que  bria  ?  Fez  o 
que  devera  fazer  com  femelhante  defengano  todo  o 
Chriílaô.  Deixou  as  Mufas  ,  e  em  vez  de  compor 
verfos,  tratou  decompor  a  vida  :  His auditis y  ad 
mortem  fe  co7nparaJ]e^  ^paulopoji  vivendi  finem fe- 
ci/fe^  diz  Plutarcho. 
Niun  71.  5'36  Naõ  parou  aqui  a  providencia  divina,  mas 
para  mayor  prova  deíle  defengano  obrigou  ao  pay  da 
mentira ,  que  fallava  ,  cobrava  nos  idolos ,  a  que  mui- 
to afeu  pezar  o  coníirmaíle  com  dous  notáveis  pro- 
digios.  Agria  era  facerdotizada  deofaJuno;e  como 
na  mefma  hora  ,  em  que  havia  de  fazer  ofacrificio, 
tardaíTem  os  cavallos ,  que  a  coílumavaò  levar  em 

carro- 


>    i 


Difcurfo  LVI.       3  7 

carroça  ,  dous  tiihos,  que  tinha,  chamados  Bilon  ,  e 
Cleobo,  Te  meterão  no  lugor  dos  cavalios  ,  e  com 
tanta  forca  ,  e  prcíTa  tiráraõ  a  carroça  ,  que  nem  hum 
momentJ  de  tempo  faltou  a  may  á  pontualidade  do 
facriíicio  Fov  tao  admirado  ,  e  eftimado  elte  âtto 
verdadeiramente  heróico  ,  de  piedade  para  com  a 
mãy ,  ede  religião  para  com  a  deoía  ,  que  deo  confi- 
ança a  A^ria  para  pedir  a  Juno  em  premio  delia ,  que 
défle  áqueiles  feus  dous  filhos  nao  menos ,  que  a  me- 
lhor coufa,  que  os  deofes  nefta  vida  podiacl  dar  aos 
homens.  Concedeo  a  deofa  ,  como  também  íervida, 
o  que  a  may  pedia  ;  e  qual  feria  o  dcípacho  da  peti- 
ção ?  No  mefmo  ponto  cahiraó  mortos  diante  de  feus 
olhos  os  mefmos  filhos ,  confirmando  a  falfa  deida- 
de com  verdadeiro  documento  ,  que  entre  os  bens  , 
e  felicidades  naturaes,  que  ao  homem  podem  fuc-  ' 
ceder  nefta  vida  ,  o  mayor,  e  mais  fegoro  he  a  mor- 
te. A  efte  famonííimo  par  Bithon  ,  e  Cleobo  ajtsnta 
Platão  outro  nao  menos  famofo ,  Agamedes  ,  e  Tro- 
fonio.  Edificarão  eftes  dous  hum  templo  a  Apoilo 
Pithio,  e  no  dia  da  dedicação  orarão  a  Deosdefta 
maneira  :  Que  fe  aquelia  obra  lhe  agradava,  o  feu  in- 
tento era  pedirem  lhes  concedelíe  o  que  m.elhor  po- 
dia eftar  ahum  homem  nefta  vida;  e porque  ellesnaô 
fabiaó  ,  que  coufa  foíTe  efta  melhor  ,  elle  ,  de  quem 
efperavaô  a  mercê,  o  refolveíTe.  Reípondeo  Apoj- 
lo,  que  dalli  a  íete  dias  lhes  concederia  o  que  pediaój 
eoque  luccedeoao  fetimodia  ,  foy ,  que  deitandofe 
a  dormir  Agamedes,  eTrofonio,  nunca  mais  acorda- 
rão :  Cimque  ohdormijjent ,  nunquam  deuide  furre- 
xi/fe.  E  efta  verdade  então  admirada  ,  e  antes  ,  e  de- 
pois taó  mal  entendida  quiz  a  mefma  providencia  , Num:  71: 
para  que  acabaiíemos  de  entender ,  que  ficaíFe  efta- 
Tom.  ÍI.  G  3  bek- 


Num.  7  3 . 


1  m 


Kum.  7j. 


5  5      V  leira 

belecida  ,  e  perpetuada  ,  como  em  quatro  edatuds  , 
nao  levantadas,  mas  cabidas  ,  em  Bithon ,  e  Cleobo 
mortos,  e  em  Agamedes  ,  e  Trofonio  dormindo. 

587  A'  viíla  pois  deftas  quatro  eflatuas,  as  quaes 
em  quanto  vivas  ,  e  em  pé  eraó  o  pó ,  que  íomos  ,  e 
em  quanto  cabidas  ,  e  jazendo  em  terra  faó  o  pó ,  que 
havemos  de  fer  ,  que  fará  todo  o  entendimento  ra- 
cional,  echriftaõ?  Se  o  pó,  que  havemos  de  fer,  he 
o  mayor  bem  do  pó,  que  fomos,  e  f e  o  mayor  bem  da 
vida  he  a  morte  j  que  bavemos,  ou  que  devemos  fa- 
zer os  vivos  ?  Se  o  melhor  bem  da  vida  he  a  morte, 
psílemos  como  mortos  á  melhor  vida.  E  fe  dos  mor- 
tos dizemos  também,  que  os  levou  Deos  para  fi, 
deixemonos  levar  de  Deos,  e  vivamos  como  mortos. 

588  O  mefmo  corpo  noíTo ,  que  em  quanto  viva 
eílá  fobre  a  terra,  depois  da  morte  eílá  debaixo  da 
terra.  E  fe  o  corpo  ,  que  eftá  fobre  a  terra,  fe  compa- 
rar comíigo  meímo,  quando  eíliver  debaixo  da  ter- 
ra, nenhuma  confideraçaó  pode  haver  mais  eííicaz 
para  o  períuadir  a  que  viva  como  morto.  Dizeme, 
corpo  meu  ,  depois  que  .eftiveres  debaixo  da  terra  , 
q  has  de  fazer }  Has  de  continuar  nos  mefmos  vicios, 
em  que  todo  te  empregavas,  quando  eílavas  fobre  a 
terra  ?  Hasjie  continuar  nos  mefmos  vicios ,  que  pô- 
de fer  foraô  os  que  te  matarão,  e  te  apreíTaraô  a  fe- 
pultura  }  Agora  o  nao  podes  negnr  com  a  voz ,  e  de- 
pois confeíEirds,  quenaó,  com  o  íilencio.  Todo  o 
morto  he  como  aquelle,  de  quem  diííe  Tácito  :  Ma- 
gis  fine  viíiis ,  qnam  cum  virtuiihtis :  O  morto  nao 
tem  virtudes,  mas  também  nao  tem  vicios.  Nao  tem 
odio^,  naó  tem  inveja  ,  nao  tem  cubica  ,  naó  tem  am- 
bição :  nao  fe  queixa,  nao  murmura,  naõ  fe  vinga  , 
nao  mente,  nao  adula,  nao  rouba,  naó  adultera. 

Pois 


i  t 


* 


Dijcíirfo  LVI.      )9 

Pois  fe  de  tudo  iílo  has  de  carecer  debaixo  da  terra, 
porqne  te  naô  abílcns  diílo  melmo  em  quanto  ellás 

Ibbre  ella  ? 

589  O  morto ,  quando  o  levaó  á  fepultura  ,  pelas  Num.  7^» 
mefmas  ruas  ,  por  onde  palíeava  arrogante  ,  taó  con- 
tente vai  envolto  em  huma  mortalha  velha  ,  e  rota  , 
como  fe  fora  veftido  de  purpura  ,  ou  brocado.  Che-    . 
gado  á  fepultura,  tao  íatisfeito  eílá  com  fete  pés  de 

terra ,  como  com  os  maufoleos  de  Caria  ,  ou  as  pyra- 
mides  do  Egvpto  ;  e  fe  até  eíla  pouca  terra,  que  o 
cobre,  lhe faltaíie,  diria,  fepodeíFefallar,  quea  quem 
naô  cobre  a  terra  ,  cobre  o  Ceo :  C(s/o  tegitiir  qui 
non  habet  urnam.  Fois  fe  entaó  tao  pouca  differença 
has  de  fazer  da  riqueza,  ou  pobreza  das  roupas;  porj 
que  agora  tedefvanecem  tanto,  e  gaífas  o  que  naõ 
tens  na  vaidade  das  galas  ?  Pois  fe  eníaó  has  de  caber 
em  huma  cova  taó  eílreita  ;  porque  agora  te  naô  me- 
tes entre  quatro  paredes  ,  e  procuras  a  largueza  da 
morada  tanto  mayor,  que  a  do  morador  ,  e  invejas 
a  oftentaçaô,  e  magnificência  dos  palácios  ?^ 

590  Ainda  reíla  por  te  dizer  o  que  mais  me  ef- 
candaliza.  Se  quando  eftás  debaixo  da  terra  ,  todos 
paíTlio  por  cim.a  de  ti,  e  te  pizaô,  e  te  naô  alteras 
por  te  ver  debaixo  dos  pés  de  todos  ,  agora  que  es  o 
mefmo ,  e  naô  outro ,  fó  porque  eftás  com  os  pés  fo- 
bre  menos  terra  da  que  entaò  has  de  occupar,porque 
te  enfoberbeces ,  porque  te  iras  ,  porque  te  inchas  ,  e 
enches  de  cólera  ,  de  raiva,  de  furor,  e  a  qualquer 
fombra  ,  ou  fufpeita  de  menos  veneração  ,  ou  refpei- 
to  oqueres  vingar  naô  menos  que  com  o  fangue,  e 
a  morte  ?  Mashe  porque  a  mefma  morte  te  nao 
amanfa  ,  e  emenda.  Morreo  o  leaô ,  morreo  o  tigre, 
morreo  o  bafilifco  ,  e  onde  eftá  a  braveza  do  leaô  ,  ^ 

C4  onde 


4°       Vieira  ahbrcviado 

onde  eftá  a  fereza  do  tigre  ,  onde  eftá  o  veneno  do 
bafílifco  ?  Já  o  leaò  naô  he  bravo ,  já  o  tigre  naó  he 
feroz ,  já  o  baíilifco  naõ  he  venenoíc) ,  já  todos  eííes 
brutos,  e  monílros  indómitos  eílaÓ  maníos  ;  porque 
pf.  8i.  10,  os  amanfou  ^  morte :  Quoniam  fiipervenit  manjue- 
tudo.  Efeaílim  emenda,  e  tanta  mudança  faz  a  mor- 
te nas  feras  ;  porque  a  nao  fará  nos  homens  ? 

591  Perguntou  hum  Monge  ao  AbbadeMoyfés, 
famofo  Padre  do  ermo,  como  poderip  hum  homem, 
adquirir  a  mortificação,  que  enfina  S.  Paulo,  tal,  que 
eílandovivo,  viveíle  como  morto.  E  refpondeo  o 
Abbade  ,  que  de  nenhum  outro  modo ,  nem  tempo , 
fenaó  quando  totalmente  íe  perfuadiííe,  que  havia 
já  hum  íriennio  ,  que  eílava  debaixo  da  terra  :  Niji 
quis  arbitratus  fuerit  fe  habere  jam  triennium  in 
fepulchro ,  ad  hunc  fermonem  pervenire  non  poteft, 
E  quem  eílá  certo ,  que  o  feu  corpo  ha  de  eílar  debai- 
xo da  terra ,  naô  três  annos ,  nem  três  íeculos ,  fenaó 
em  quanto  durar  o  mundo  até  o  fim  ,  como  nao  per- 
fuadirá  ao  mefmo  corpo ,  e  o  fujeitará  a  que  viva 
como  morto eíTes quatro  dias,  e  incertos  ,  em  que  po- 
de tardar  a  morte  ?  Se  eíle  corpo ,  que  hoje  he  pó  fo- 
bre  a  terra  ,  á  manha  ha  de  fer  pó  debaixo  da  terra ; 
porque  fe  naõ  accommodará  ,  e  concordará  comfigo 
mefmo  a  viver,  e  morrer  de  tal  modo ,  que  na  vida 
logre  o  mayor  bem  da  morte,  e  na  morte  naô  padeça 
o  mayor  mal  da  vida  ?  v 


DIS- 


Dijcurfo  LVII. 

DISCURSO    LVII. 

Tirado  do  fermaÔ pregado  nas  exeqmas  de  D.  Ma- 
ria de  At aide  filha  dos  Condes  de  Jiougma  Da- 
ma de  Falacio, 

MORTE. 

ro2  f^  Afos  fuccedem  no  mundo ,  que  parece  fe  Part.  4.    , 
V^  deícuida  Deos  do  governo  delle  ,  e  íe^al-Num.4<;í, 
guris  faó  a  noíía  admiração  mayores  motivos,  faôos 
da  vida  ,  e  da  morte    Efta  admiração  introduzio  no 
juizQ  dos  homens  o  erro  de  fados  ,  e  de  fortuna ,  que 
fe  bem  entre  nós  perderão  a  divindade,  ainda  confer- 
vaó  os  nomes.    Se  repararmos  bem  com  attençaó 
quem  vive  neíle  mundo,  e  quem  morre,  he  neceíTaria 
muita  fé  para  crer,  que  ha  providencia  :  Domine non 
ejt  tibi  cura  ?  Todo  o  motivo  deíla  queixa  de  Mar- 
tha  foy  ver,  que  a  deixara  Maria,  equeeílavâ  com 
Deos.  Talhe  o  motivo,  que  temos  prefente ,  mas 
com  mayores  circunftancias  de  dor ,  (  naó  fel  fe  diga 
de  femrazaõ  , )  e  aflim  havemos  de  ouvir  hoje  mais 

Queixas 

593  Em  fim  Maria  eílá  com  Deos:  Sedensfecusy<'i^>\H\ 
pedes  Domini  :  defatouíe  dos  cuidados  ,  e  das  obri- 
gaçoensdo  mundo,  rompeo  os  laços  da  humanida- 
de', deixou  em  foiedade  o  fangue,  o  amor,  e  a  mef- 
ma  vida  :  Reliquit  mefclam.  Contra  eíle  naó  efpe- 
rado  apartamento  temos  três  queixofas  a  modo  de 
Martha ,  e  naó  queixoías  de  Maria ,  porque  o  execu- 
ta, fenaõ  de  Deos  porque  o  permitte:  Domine  non 
eji  tibi  cura  ?  E  que  queixofas  faó  eítas  ?  A  primei- 
ra 


42       V  leira  ãí 

Z\cl  'p'f° '  '  ^f^r^J  '  gentileza  ,  a  terJJÍra  a  dif- 
1^'>  ,T="'<'  '"'i'^  (  como  Marcha  ,  O^^aylem  , 
f;,„ '•,?'' ■'^"','^"^'홫!^^°"'e  "^  q"^ix^!  Corpo 
Í  Por  IZt  •  '°^''  2  ^'^'"."  do  comporto  huma- 
no; nrSÀ  ,"  "'"'"  '5"'^'^^^'^  =>  '^Í^Jí^  cortnda: 
da  ■  n.rn  ?  í'  '^""^^^'"'^  '^  "^'^"'"^'''^  emmuded- 
Dfidrrf  ?  'í^''"^"  '^"eixafe  a  gentileza- ecli- 
kncib  "^^^  !^  '^^'^''^  ogo'P«,  chora  a  d.ícriçaó  oíi- 
v^S,rl;  ^S™^''''^''  «^'^'ipfe;  porque  lhe  naõ 
nêm  f     ?  , '  '  '"°"^ '  ""'"  •'*  *''="í^^  o  '"àis  florente, 

Nam.47o.,,„f,^í  i'''''"'''''aT"^^  ^"^'^^'''^  «  ''íade  contra  a 
"  ' '''/''"^'"«'^«damente  le queixa!  Oh  morte 
Cl  iiel ,  que  enganados  vivem  comtigo  os  que  dizem 

"'c^omovT' ^°'"  ^"^^•^•'  ^^™''^  -reditaramorTê 

piza  igualmente  os  palácios  dos  Rex-s,  e  as  cabanas 

Kegfm^M  turres.  Que  os  palácios  dos  Reys  ,  poí 
«ia  s  cercados  que  eftejaó  de  guardas,  naô  poffaô  re- 

l-l/.Ti^^^^fT'"' '^'^  """''^  '  ''^'"  o  experimentou 
e.ta  vida.  Jufto  era  ,  que  aquellas  portas,  que  taÔ 
cerradas  coitumaõ  eftar  ás  verdades  ,  lhe  deixe  ao 

menos  a  natureza  aberto  efte  poftigo  aos  defenganos . 
Mas  nelta  melma  igualdade  cõn^ette  grandS  def- 

S^''  a  "'°'í^  .^'  'g"^'  '  P°^1"e  ""õ  faz  exce- 
pção de  peíToas:  he  deíigual;  porque  nao  Faz  differen- 

tu^llr,  '  "em  de  merecimentos:  matar  a  todos 
lem  perdoara  ninguém  igualdode  he,  mastirar  avi- 
nm 'c  í^""' ^,'"  '^"'^!'  e  '"'"^"''  taõ  cedo,  deixar  os 

o  n,ll  7m  '"^°  '^'^  '"^'"'^°'  ^  '^^'^'-  °^  q^e  eraô  O 
ornato  delle  ,  que  defigualgade  mayor?  Todos  fe 

queixaõ 


',  í 


mjcurfo  LVIL 

qiieixao  da  preíía  ,  ci.m  que  corre  a  vida  ;  eu  na5  me 
queixo  fenaó  da  deíigualdade  ,  com  que  caminha  a 
morte. 

595     Appareceo  huma  vez  a  morte  ao  Profeta  Num.  471; 
Habachuc  ,  e  vio,quehia  andando  no  triunfo  de 
Chrifto:  Ante  faciem  ejus  ibh  mors ,  Appareceo  ou- Habac.  3. 
tra  vez  a  morte  a  S.  João  no  Apocalypíe,  e  vio,que5- 
vinha  pizando  fobre  humcavaho:  Et  ecce  equns  ^  ^ 

•     r        I      t  r>  •7/'  A  ApOC.  O.   5, 

i^  qut  fedebat  juper  enm ,  nomm  lUi  mors.  A  p pa  re- 
ceo  terceira  vez  a  (norte  ao  Profeta  Zacharias  j  e  vio 
huma  fouce  com  azas :  F/V/V,  à"  ecce  falxvolans.  Dezach.  5.  i, 
maneira  que  temos  a  morte  a  pé,  morte  a  cavallo  ,  e- 
m.orte  com  azas.  A  vida  fempre  caminha  ao  meímo 
palio ,  porque  fegue  o  curfo  do  tempo  ;  a  morte  ne- 
nhumia  ordem  guarda  no  caminhar  ,  nem  ainda  no 
ler.  Humas  vezes  he  huma  anatomia  deoíTos,  que 
anda  .  outras  hum  cavalleiro  ,  que  corre ,  outras  hu- 
ma fouce,  que  voa.  Para  eíles  vem  andando  ,  para 
aqueiies  correndo,  para  os  outros  voando.  Se  a  mor- 
te ou  para  todos  andara  ,  ou  para  todos  correra  ,  ou 
p;ira  todos  voara  ,  era  igual  a  m.orte.  Mas  andar  para 
huns,  para  outros  correr ,  epnra  mim  voar  1  Oh  mor- 
te ,  quem  te  cortara  as  azas  I  Mas  bem  he ,  que  bata 
as  az:is,  para  que  nós  abatamos  as  rodas. 

596  Pintafe  a  morte  com  huma  fouce  fegndora 
na  mao  direita  ,  e  hum  relógio  com  azas  na  maó  ef- 
querda  :  íe  algum  dia  ,  ou  hora  foy  aíTim  a  morte  , 
troquefe  daqui  por  diante  a  pintura,  quejánaôhe 
aíBm :  Ecce  falxvolans.  Tirou  a  morte  as  azas  do  re- 
lógio da  mao  eíquerda,e  paíTou-as  á  fouce  da  mao  di- 
reita ;  porque  he  mais  apreílada  a  fouce  da  morte  em 
cortar ,  que  o  relógio  da  vida  em  correr.  Ainda  quan- 
do a  morte  naÕ  voa ,  corre  mais  que  a  vida.  Aqueile 

cavallo 


Iiiifl'!' 


L      >'  . 

1  :í;!::,1 

44       Vieira  ahbreviado 

Cíivallo,emqiieS.Joaô  vio  a  morte,  diz  o  texto  na 
veríaÔ  de  Tertulliano,  queera  verde:  Et  equus  vi- 
rtdis.  Q^iem  vio  já  mais  cavallo  verde  ?  Mas  era  o 
^    cavaíío  da  morte,  Veílefe  eíle  animai  indómito  da 
cor  dos  anno.':,  que  corta,  arreafe  das  eíperanças,  que 
piza,  pintafedasprimaverjs,  queatropella.  Todos 
osannoseftaôíujeitos  á  morte,  mas  nenhuns  mais, 
que  os  que  pareciao  mais  íeguros  ,  os  verdes. 
Num.  47  j.     S97     Moítrou  Deos  huma  vifaõ  ao  Profeta  Amos, 
(que  era  homem  do  campo)  e  perguntoulhe  ,  aue 
via:  Qtiíd  vides  tu  Amos}  Lleípondeo  o  Profeta  : 
Senhor:  Uncinum  pomorum  :oquevejohehumavara 
comprida,  e  farpada,  com  que  os  ruílicos  alcançamos 
a  fruta ,  e  a  colhemos  das  arvores.  Pois  eíla  vara ,  que 
vês,  diz  Deos,  he  a  morte.  Todo  eíle  mappa  do 
mundo  he  hum  pomar :  as  arvores,  humas  altas  ,  ou- 
tras baixas ,  faò  as  diverías  geraçoens ,  e  familias :  os 
frudlos,  huns  mais  maduros,  outros  menos,  faó  os 
homens  :  a  vara,  que  alcança  ainda  os  ramos  mais  le- 
vantados, he  a  morte:  colhe  huns,  é  deixa  outros.  Ah 
Senhor,  que  eíía  he Vmorte  como  havia  de  fer,  e 
naõ  como  he.  Qiiem  entra  a  colher  em  hum  pomar, 
paíTa  pelos  pomos  verdes,  e  colhe  os  maduros;  mas 
a  morte  naó  faz  aílim  :  vemos  que  deixa  os  maduros, 
e  colhe  os  verdes.  E  já  fe  colhera  fó  os  frudos  ver- 
des, colhera  frudlos ,  mas  a  queixa  minha  he  .  que 
deixa  de  colher  os  frudlos,  e  colhe  as  flores:  Flores 
apparuenmt  in  terra  noftra ,  tempus  putationis  ad- 
venit :  Appareceraõ  as  flores  na  nolfa  terra ,  naõ  lhe 
aguardou  mais  tempo  a  morte:  appareceraõ,  e  defap- 
pr;recera6.  A'ierta,  flores,  que  a  piimavera  da  vida 
he  o  outono  da  morte.  A  fouce  fegadora,  que  traz 
na  maõ,  iníhumento  he  do  Agoílo ,  e  naÔ  do  Abril; 

mas 


i  i 


mfcurfo  LVU'     45 

mas  armafe  aflim  com  ardilofa  impropriedade  a  mor- 
te, ameaça  as  efpigas,  para  que  le  defacnutelem  as 
flores.  Ha  tal  crueldade  !  Ha  tal  engano  !  Nao  me 
queixo  do  golpe  ,  fenaõ  do  tenjpo :  Llores  apparui^- 
r««   ,  tetnpusputationh.  Qt,e  haja  tempojde  flore, 
cer ,  è  tempo  de  cortar ,  he  natureza ;  mas  que  o  terar 
po  de  florecer  ,  e  o  de  cortar  feja  o  mefmo  !  Qu.^^a 
fdade  .nais  florida  feja  a  mais  mortal.'  ,Queavuk 
mais  digna  de  viver  feja  a  mais  lujeita  ^  mo"e;^ 
que  haja  império  íupenor ,  que  domme  efte  ty  anno 
Que  haja  providencia  no  mundo  ,  que  o  goven^l 
Domine,  non  ell  tibi  curai  .  ,    .,    .'VI, 

rr  A  eftas  queixas  taôjuílificadas  da  idade  feNu..  474. 
feguem  as  da  gentileza  ,  naÔ  menos  laílimofa ,  mas 
mais  para  laftimar.  Por  úYo  lá  Jejemias  no  pranto  de 
Belém  as  lagrimas ,  que  houverao  de  fer  de  Lia ,  trai- 
ladou-as  aos  olhes  de  Rachel,  naÔ  porque  houveflem 
de  íer  mais  íentidamente  choradas,  mas  porque  ha- 
viaó  de  fer  mais  laílimofamente  ouvidas.  Queixale  a 
gentileza  contra  a  moi te  por  conceder  a  taiitojuzi- 
mento  taó  breves  dias  ,  a  tanta  [eprefentaçao  tao 
pouca  theatro.  E  pois  as  queixas  da  boca  de  Rachel 
faÔ  melhor  ouvidas ,  leja  Rachel  a  primeira  aliegona 

deílas  queixas.  ^       /:„„«i 

coo  Muito  tenho  reparado  em  quão  deligual- 
mente  íe  houverao  com  Rachel  quem  lhe  deo  o  fer, 
e  quem  lho  tirou  ,  LabaÔ ,  e.  a  morte.  Pedia  Jacob  a 
LabaÓ  o  premio  dos  primeiros  fete  annos ,  que  íervi- 
ra ,  e  deolhe  LabaÔ  a  Lia  em  lugar  de.  Rachel ,  alie- 
nando ,  que  Lia  era  a  filha  primeira,  e  que  havia  de 
preceden  Teve  paciência  Jacob,  fervio  outros  fete 
annos  ,  eem  huma  jornada ,  que  depois  fezdeBethel. 
a  Belém ,  morreo  Rachel ,  e  ficou  lepultada  no  eamir 
'  nnO; 


4^      Vieira  ahhreviado 

nhoi,  e  Lia  depois  deíle  fucceílb  viveo  ainda  muitos 
annos.  Nao  fey  íe notais  adeíigualdade.  De  manei- 
ra, que  Labao,  quando  houve  de  dar  cafa  ahumadas 
hlhas,  reparou  na  p.rerogativa  dos  annos,  e  prece- 
deo  Lia :  e  a  morte  quando  houve  de  dar  lepuitura  a 
fiuma  das  irmans  ,  naó  repirou  nos  privilégios  da 
Idade,  e  precedeo  Rachel.  Pois  íe  íe  ha  de  dar  pri- 
meiroxafa  a  Lia  ,  que  a  Rachel ,  porque  tem  ninais 
annos  Lia  ;  porque  íe  ha  de  dar  primeiro  fepultura  a 
nachel ,  que  a  Lia ,  fe  tem  menos  annos  Rachel  ?  He 
poihvel ,  que  para  a  cafa  ha  de  íçr  Rachel  a  ultima  , 
e  para  a  íepultura  a  primeira  ?  Sim  ,  que  iíTo  he  feí 
■  ' '  Rachel.  Nas  leys  de  LabaÓ  tem  precedência  para  a 
caía  a  mayor  idade ,  nas  leys  da  morte  tem  preceden- 
cia  para  a  fepultura  a  mayor  belieza       -  ^ 
'Nana.  475.     6oo     Defde  a  terra  até  O  Ceo  eílá  efebelecida  ef- 
ta  ley.  Na  terra  a  rofa  Rainha  das  flores  he  efímera 
de  hmndia :  toda  aquella  pompa  branca ,  toda  aquel- 
ía ^ambição  encarnada,  de  que  fe  vefte  ,  pela  manha 
lao  mantilhas,  ao  meyo  dia  galas ,  á  noite  mortalhas. 
JNo  Ceo  a  Lua  Rainha  das eftrellas  quem  a  viocbcya 
retrato  da  formofura  ,  que  logo  a  nao  yiiTQ  minguan- 
te  depois  da  mudança  ?  (fiando  refplandece  com 
toda  a  roda,  entaÔ  fe  eclipfa:  quando  faz  oppoll- 
çoens  ao  Soly  entaÔ  a  encobre  aterra.  Ajuntefe  a 
tormoí^ura  da  terra  com  a  formofura  do  Ceo ,  e  na 
uniao  de  ambas  veremos  o  mefmo  exemplo. 

6õi.  Transfiguroufe  Chnílo  no  Thabor,  appare- 
cerao  Jogo  no  m^fmo  monte  com  o  Senhor  Moy fés , 
iuc.;,.  3i.e  Lliaá':  Et  loquehantur  de  excefU,  qntm  completu- 
ruseralin  Jerufalem.  Ha  tal  pratica  em  talocca- 
H?  Huma  vez,  que  a  formofura  de  Chriílo  quiz 
t^t^i  oítentaçaó  de  luas  gaJas,  que  logo  os  Profetí»s 
'  lhe 


Difcurfo  LVIL      47 

lhe  liajaó  de  coitar  os  lutos  ?  Sim  ,  e  muito  a  feu  tem- 
po ;  porque  a  meíma  forniofura,  que  viaó,  era  profe- 
cia da  morte ,  em  que  fallavaõ :  Loquebantur  de  ex- 
cejjw.  de  hum  exceílb  arguiaô  o  outro  ;  que  quem 
excedia  tanto  na  formofura  ,  naô  podia  durar  muito 
na  vida.  Qiianto  fe  diíle  no  Thabor  ,  foraõ  pregoens 
defte  defengano.  No  Thabor  fallarao  os  dous  ProFe^  . 
tas ,  e  Fallou  S.  Pedra.  S.  Pedro  faliou  como  nefcio  5 
porque  cuidou,,  que  formofura  taô  grande  podia  per- 
manecer muito  neíla  vida  :  Bonum  eji  nos  hu  ejje^ 
os  Profetas  fallaraõ  como  diícretos;  porque  tanto  que 
virão  o  extremo  da  formofura ,  logo  deraô  por  infafe 
livel  o  exceíTo  da  morte  :  Loquebantur  de  exceffu^j 
Antes,  fe  bem  repararmos,  a  mefma  formofura  de 
Chrifto  no  Thabor  foy  a  mayor  confirmação  de  íua 
pouca  dura.  Dizem  os  Euangeliílas  :  Refplenduit  ,^3.^^. 
jactes  ejus  ftcut  Sol ,  veftimenta  atitem  e jus  f a 61  a  ^,.. 
funt  alhaficut  nix,  Qiie  o  rofto  de  Ghriílo  ficou  ref- 
plandecente  como  o  Sol ,  e  fuás  veíliduras  brancas' 
como  a  neve:  formofura  de  neve  ,  e  Sol  he  grande; 
mas  de  dias  breves.  Quando  o  Sol  fe  vê  junto  com  a- 
neve,  faô  breves  os  dias  do  Sol,  quando  a  neve  fe  vê 
junta  com  o  Sol ,  faô  poucas  as  horas  da  neve.  Bem 
fevio:  tanta  neve,  e  tanto  Sol  que  duração  tiveraô?' 
Sabefe  que  foy  de  hum  fò  dia  ,  nao  fe  íabe  de  quan-^ 
tas  horas.  Oh  neve  derretida  a  rayos  do  Sol!  Oh  Sol  Num.  47^.' 
lepultado  em  occafos  de  neve !  que  larga  matéria  de 
affinar  a  queixa  offereceis  nefte  paílo  á  minha  orâ^^ 
ça6;  mas  obrigame  a  mim  adifcriçaô,  aque  remetta- 
aofiiencio  o  enternecido  deitas  queixas,  para  què 
ouçamos  o  poderofo  das  fuás.  "^^ 

602    Queixaíe  finalmente  a  difcriçaõ ,  (  que  fem-Num.477; 
pre  a  difcriçaõ  he  a  ultima  em  queixarfe)  e  tomara 

eu , 


17. 


4  S       Vieira  ahhreviado 

eu ,  que  ella  tivera  melhor  interprete  para  declarar, 
com  quanto  fundamento  fe  queixa.  O  mayor  inimi-^ 
go  da  vida  quem  vos  parece  que  fera?  Omayorini^ 
migo  da  vida  he  o  entendimento.  Taõ  madraíta  fe 
houve  com  o  homem  a  natureza  ,  que  produzindo 
tantos  antidotos  ms  entranhas  dos  animaes ,  dentro 
na  alma  do  homem  lhe  creou  o  mayor  veneno.  Se 
buícarmos  a  primeira  origem  da  morte  ,  na  arvore  da 
ciência  poz  Deos  o  fruto  da  mortalidade  :  por  onde 
os  homens  quizerao  fer  mais  entendidos ,  por  alli  co- 
meçarão a  fer  mortacs.  Até  no  meímo  Deos  teve  lu- 
gar efta  terxivel  confequencia.  Houve  de  encarnar  , 
e  morrer  hunia  das  peíloas divinas,  e  porque  mais  o 
Filho,  que  alguma  das  outras  }  A  verdadeira  razaó 
íabe-a  Deos.  Éu  fó  fey ,  que  á  peíloa  do  Filho  fe  atri- 
bue  o  entendimento ,  e  que  á  petlba  do  Filho  fe  unio 
a  mortalidade.  Como  o  Verbo  ab  aterno  procedeo 
por  entendimento,  ab  ater  no  propendeo  para  mor- 
tal. Se  ifto  foy  em  Deos ,  que  fera  nos  homens  ?  To- 
dos os  homens  lao  mortaes ,  mas  o  mais  entendido 
mais  mortal  que  todos. 

6o j  Naqueíla  parábola  das  dez  virgens  as  vodas 
íigniíicavaõ  a  morte ,  e  he  muito  de  notar,  que  fendo 
cinco  as  entendidas ,  e  cinco  as  nefcias ,  todas  as  cin- 
co entendidas  morrerão  primeiro.  Entend,er  muito, 
e  viver  muito  ou  no  entendimento  he  engano,  ou 
na  vida  he  milagre.  Arazaódifto  a  meu  juizodeve 
fer ;  porque  cada  hum  fente  como  entende.  Quem 
entende  muito,  nao  pode  fentir pouco,  equem  fen- 
te muito  ,  naopòde  viver  muito.  O  homem  he  vi- 
vente, fenfitivo,  e racional :  o  racional  apura  o  fen- 
íitivo,  e  o  fenfitivo  apurado  deftroe  o  vivente. 
Num. 478.     604    Mas  como  os  homens  igualmente  amaô  a 

vida, 


Difcurfo  LVII'      49 

vida  ,  e  fe  prezaõ  do  entendimento ,  daqui  vem ,  que 
fe  perfiiadem  difficultoíumente  a  eíta  triíle  Filofofia. 
Dizia  David  a  Deos  :  Da  inibi  intelkcíiim^  (i^  vi-  pí.  ns. 
vam:  Senhor,  daime  entendimento  ,  e  vivirei.  Ah  J-^^- 
David  ,  e  como  naõ  fabeis  o  que  pedis  !  Sc  quereis 
morrer,  pedi  embora  a  Deos,  que  vos  dôenceísdi- 
mento ;  mas  fe  quereis  viver,  pedilhe  ,  que  vos  tire  o 
entendimento ,  que  tendes. 

605  Naô  havemos  de  ir  bufcar  a  prova  a  outra 
parte.  Vay  depois  diíto  David  á  Corte  d'£iRey 
Achiz,  tem  noticia,  que  o  querem  matar,  e  fazfe 
doudo.  E  bem  ,  David  ,  naó  éreis  vós  o  que  dizieis  a 
Deos ,  que  vos  déíTe  entendimento  para  viver  ?  Pois 
como  agora  para  viver  vos  desfazeis  do  entendimen- 
to? Dantes  governavafe  David  pelo  difcurfo,  ago- 
ra pela  experiência.  Pelo  difcurío  parecialhe  a  Da- 
vid ,  que  naõ  havia  coufa  para  viver ,  como  fer  en- 
tendido ;  mas  a  experiência  moílrou  depois  a  David, 
que  era  neceíTario  fer  defentendido  para  viver. 

60Ó  Já  dêmos  a  razaó  difto  em  qoaoto  natureza,  Num.  47^; 
demola  agora  em  quanto  femrazaô.  Seja  por  hum 
exemplo.  Entrarão  pelo  Horto  os  foldados,  que  vi- 
nhaó  prender  a  Chrifto ,  mete  mao  á  efpada  S.  Pedro, 
enveíle  a  Malcho ,  e  fere-o.  Sempre  reparei  muito 
nefta  enveftida ,  eneíle  golpe.  Se  Pedro  quer  defen- 
der a  feu  Meftre,  avance  aos  efquadroens  armados  , 
envifta,  ematefecomelles.  Mas  a  Malcho?  A  Mal- 
cho, que  naõ  trazia  na  maõ  mais  que  huma  lanterna 
com  que  alumiava?  Eisahi  como  trata  o  mundo  as 
luzes:  em  apparecendo  a  luz,  todos  os  golpes  a  eiía. 
Em  vez  de  arremeter  aos  que  traziaó  as  armas ,  arre- 
mete ao  que  trazia  a  luz ;  porque  de  nenhuma  coufa 
fe  daó  os  homens  por  mais  ofendidos ,  que  da  luz 

Tom.  II.  D  alhea. 


5  o      Vieira  abbreviado 

aihea.  Se  vierdes  com  exércitos  armados  :  Cum 
gladiis  ^  írfujlibus ,  tervoshaô  quando  muito  por 
inimigo ,  mas  naô  vos  faraõ  mal ;  porém  fe  vos  cou- 
be em  forte  a  lanterna ,  fe  Deos  vos  deo  huma  pouca 
de  luz,  (ainda  que  naõ  íeja  para  luzir,  íenaõ  para 

Nmii.48o.aÍumiar)  foíles  mofino,  apparelhai  acabeça.  Detu- 
do  o  dito  íe  colhe ,  que  quando  vemos  faltar  ante 
tempo  as  luzes  ou  porque  morrem  ,  ou  porque  as 
mataó  ,  ou  porque  íe  mataõ  ,  naó  temos  matéria  de 
efpanto  ,  poílo  que  a  tenhamos  grande  de  queixa  : 
de  efpanto  naõ,  porque  eíle  hc  o  mundo :  de  queixa 
ílm-,  porque  o  governa  Deos :  Domine ,  non  eji  tiln 
curs  ? 

607  He  poíTivel,  Senhor ,  que  tendes  providen- 
cia ,  e  que  haÔ  de  viver  as  trevas ,  e  morrer  as  luzes  ? 
O  neício  fepultado  nas  trevas  da  ignorância  ha  de 
ter  pazes  com  a  morte ,  e  o  entendido  alumiado 
com  as  luzes  da  razaó  ha  de  andar  em  guerra  com  a 
vida  ?  Ameaçando  David  aos  poderofos  com  o  ine- 
vitável da  morte ,  diz ,  que  os  nefcios ,  e  os  entendi- 
dos todos  haviaô  de  morrer  juntamente:  Cum  vidé-f 

Pf.  48.  n.  rit  fã  pi  entes  mor  i  entes ,  Jimnl  injtpiens ,  (l^Jlultus 
peribunt.  Se  aííini  fora  ainda  era  deíigualdade ;  mas 
que  a  morte  apreíTada  feja  tributo  do  entendimen- 
to, e  a  vida  larga  attributo  da  ignorância  ?  Naõ  lhe 
bailava  aos  nefcios  hum  attributo  ,  naô  lhe  bailava 
ferem  infinitos  no  numero  ,  fenaó  também  eternos 
na  duração?  Qiie  no  Paraifo  dê  fru^^os  de  morte  a 
arvore  da  ciência,  e  que  no  mundo  a  ignorância  fe- 
ja arvore  da  vida  ?  Que  dentro  de  nós  feja  enfermi- 
dade mortal  o  entendimento,  e  que  fora  de  nós  feja 
deliíSto  mortal  o  ufo  da  razaõ  ?  Qlic  fendo  o  racional 
natureza,  ninguém  polfa  fer  racional  fob  pena  de 

—  vidai! 


4«S 


Difcurfo  LVII^    ^  51 

vida?  E  que  cíhs  injuítiças  da  morte  fejao  diípoíí- 
^oens  da  providencia?  Domine  imn  eft  tibi  curit'^, 

608  Mas  acudamos  já  pela  providencia  divina  ,  Num. 
e  reípondamos  ás  noílas  três  queixoííis  ,  que  he  len^- 
po.  Na6  íè  queixe  a  idade  por  cortada  ,  nem  a  dií- 
criçao  por  eínmudecida  ,  nem  a  gentileza  porccsi- 
píada,que  para  todos  efcolheo  Maria  a  melhor  parte. 

He  verdade  ,  que  morreo  ,  mas  por  meyo  da  morte 
eternizou  a  idade,  meííiorou  a  gentileza  ,  canonizou 
a  diícricaó.  Vede,  fe  tem  razaó  de eftarera  queixo- 
fas,  ou  agradecidas. 

609  Primeiramente  eíernizou  a  idsde  ;  porque  Num.  484 
cortalla  foy  artificio  de  a  eternizar.  Dizia  Job  :  In 
mdulo  meo  moriar ,  0^  ficut  phwnix  multtpltcahú 

dies  meos.  Morrerei  ,  è  multiplicarei  meus  dias. 
Notável  modo  de  fallar !  Parece ,  que  havia  de  dizer 
Job :  Morrerey ,  e  acabarei  meus  dias  ;  mas  morrerei, 
e  multiplicarei  meus  dias  :  Moriar ,  ó"  muliiplicã' 
bo  dies  meos  j  como  pode  fer  iíTo  ?  O  mefnío  Job 
diíFe  como:  Siatt  phmúr^.  l\eparo,  diz  Job,  que 
eu  naÕ  fallo  como  homiem ,  fallo  como  fenix :  o  ho- 
mem diz  :  Morrerei ,  e  acabarei  meus  dias,  porque 
com  a  morte  acaba:  a  fenix  pelo  contrario  diz  :  Mor- 
rerei,  e  multiplicarei  meus  dias,  porque  na  fenix  o 
cortar  a  vida  he  artificio  de  muíiipíicar  a  idade.  En- 
tre todas  as  mortes  fó  huma  ha  no  mundo ,  que  naó 
feja  digna  de  fentimento,  he  a  da  fenix.  Se  a  fenix 
morrera  para  acabar  ,  fora  a  fua  morte  mais  laílimo- 
fa,  e  mais  digna  de  íentimento,  que  todas  ,  porque 
he  única  ;  mas  como  a  fenix  morre  para  renaícer , 
como  a  íenixdiminue  ávida  para  multiplicar  a  ida- 
de, nao  he  digna  de  lagrimas  a  fua  morte,  fenaõ  dtí 
applaufos.  Callefe  logo  a  idade  qu€Íxofa  \  que  nao 

D  2  me- 


5  2      Vieira  abbreviado 

merece  queixas  quem  morre  fénix. 
Nu».  48^.     6jto     Também  a  gentileza  naó  tem  razaó  nas  fuás 
.  queixas.  O  morrer  naõ  foy  perder  ,  foy  melhorar  a 

formofura.  Oh  fe  a  cegueira  do  mundo  tivera  olhos 
para  ver  efta  verdade  ,  que  menos  idolatradas  foraõ 
fuás  apparencias!  Oh  que  admiráveis  transforma- 
çoens  de  formoíura  faz  invifivelmente  a  morte  de- 
baixo da  terra !  Os  Chimicos  naÔ  acharaÔ  atégora  a 
pedra  fiiofofal  j  porque  naó  íizeraõ  enfayo  nas  pe- 
dras de  huma  fepultura.  Paliando  Deos  a  Abrahaô 
na  gloriofa  defcendencia  de  léus  filhos,  humas  vezes 
comparou-os  a  pó,  e  outras  a  eftrellas  para  enfinar 
(  diz  Filo)  que  o  caminho  de  fe  fazerem  eílrellas 
era  desfazeremfe  em  pó.  Que  cuidais,  que  he  huma 
fepultura,  fenaô  huma  officina  de  eftrellas.?  Ainda 
a  mefma  natureza  produz  mayores  quilates  de  for- 
mofura embaixo  ,  que  em  cima  da  terra.  As  flores, 
formofura  breve  ,  criaofe  na  fuperficie ,  as  pedras 
preciofas,  formofura  permanente,  no  centro. 

611  Julgue  agora  n  eiv^nnada  gentileza,  fe  foy 
injuriofa  a  Rachel  a  fepultura  ,  ou  fe  foube  efcolher 
Maria  a  melhor  parte.  Enterroufe  flor  para  fe  con- 
gelar diamante:  dcsfezfe  em  cinzas  para  fe  formar 
em  eftreiía. 
Num.  487.  5|2  Mns  quando  por  meyo  da  morte  naó  alcan- 
çara a  gentileza  a  melhoria  da  transformação,  per- 
gunto :  E  fora  pequeno  beneficio  livrarfe  por  eíta  via 
dos  dajnnos  da  mudança  ?  Efte  género  apparente  ,  a 
que  os  homens  chamaó  formofura,  ainda  tem  mais 
inimigos,  que  a  vid;i ,  com  fer  taó  frágil.  A  vida  tem 
contra  fi  a  morte  ,  a  formofura  ainda  antes  da  morte 
tem  contra  íi  a  mefma  vida:  Forma  hojiumfragik  ejiy 
quanttimque  accedit  acl  annos ,  fit  númr.  Os  pri- 
mei- 


L"  Jr^.JO^^^ 


Difcurfo  LVIL       53 

melros  tyrannos  da  formofura  laÓ  os  annos  ,  e  a 
fua  primeira  morte  he  o  tempo.  Debaixo  do  mípcno 
da  morte  acaba  ,   debaixo  da  tyrannia  do  tempo 

mudafe.  ,  ^         ^         ^„^i 

6 1 2     E  fe  alguém  perguntara  a  formofura  ,  qual 
lhe  eílá  melhor ,  fe  a  morte  ,  ou  a  mudança  ,  nao  ha 
duvida ,  que  havia  de  refponder :  Antes  morta  ,  que 
mudada    A  formofura  morta  fuílentafe  na  memoria     . 
do  que  foy  ,  a  formofura  mudada  afrcntafe  no  teí- 
timunho  do  que  he.  A  viòloria  ,  que  da  íormolura 
alcança  a  morte,  he  hum  rendimento  fecreto ,  co- 
bre-o  a  terra  :  a  vidoria  ,  que  da  formoíura  alcança  o 
tempo,  he  hum  triunfo  publico,  todos  a  vem  :  c  tra- 
zer o  epitáfio  no  rofto  ,  ou  telo  na  fepultura  yay 
muito  a  dizer.  Parece  eíla  razão  demafiadamente  hu- 
mana ;  mas  Deos  a  fez  divina.  i    tvt     rv    /  . 
614     Occultou  Deos  o  lepulchro  de  Moyfes ,  (  a 
mavor  formofura  do  mundo ,  fem  fer  affronta  em 
hum  homem)  naÓ  porque  os  homens  o  nao  vijlem 
morto,  mas  porque  nao  viífem  a  fua  formosura  mu- 
dada :  Nefaciem ,  qu^  radiaverat ,  fuppreffam  ví-  Deut.  h* 
deret,  Morta  fim  ,  mudada  nao ,  nmguem  a  ha  de  ' 
ver.  Aílim  trata  Deos  a  formofura  ,  a  que  quer  lazer 
o  mayor  favor :  e  taó  certo  he  o  juízo  do  mefmo 
Deos  ,  que  lhe  eílá  melhor  á  formofura  a  morte ,  que 
a  mudança.  Chegada  pois  a  gentileza  humana  áquel- 
le  termo  precilo  de  fua  perfeição ,  em  que  o  parar  he 
vedado,  o  crefcer  impoflivel ,  e  o  dimmuir  forçoío, 
fazer  tregoas  com  a  morte  por  fenaò  fujeitar  a  ty- 
rannia do  tempo  ,  fenaó  foy  eleger  a  melhor  parte, 
foy  ao  menos  aceitar  o  melhor  partido :  Mana  optt- 
tnam  partem  elegit.              .     ,      .  -    ,^Num.488. 
61  <    Fmalmente  a  diícriçao  nao  tem  razão  de 
Tom.  II.                       D  3                       q^ei^ 


i 


Vieira  ahhreviado 


queixarfe  ;  porque  fe  a  morte  a  emudeceo,  a  morte 
a  canonizou.  A  difcriçaõ  verdadeira  naó  confiíle  em 
laber  dizer,  confifte  em  faber  morrer.  Até  á  morte 
ninguém  fe  pode  chamar  com  certeza  nefcio ,  ou  di  í- 
creto.  O  ultimo  acerto,  ou  ultimo  erro  he  oquedá 
nome  ao  )uizo  de  toda  a  vida.  PoriíFo  Deos  no  prin- 
cipio do  mundo  approvando  todas  as  creaturas,  fó  ao 
homem  naó  approvou  ;  porque  a  approvaçaô  do  ho- 
mem  efta  íèmpre  dependendo  do  fim :  Non  in  exor^ 
atojedtnfine  laudatur  homo,  dilFe  Santo  Ambrofío. 
6i6     Nao  fe  pode  feguramente  louvar  o  homem, 
nem  quando  começa ,  nem  quando  he,  fenaô  quan- 
do acaba  de  fer.  Em  quanto  paÔ  chegou  o  dia  ulti- 
mo ,  eltava  em  opiniaô  a  prudência  das  virgens :  aí- 
fentoufeamortenafuprema  cadeira  ,  definioquaeí? 
erao  as  nefcias ,  e  quaes  as  prudentes. 

617^  Em  nenhuma  couía  fe  vê  tanto  o  acerta  da 
eleição ,  como  naquiílo  ,  que  acertado  huma  vez 
nao  pode  ter  mudança ,  ou  errado  huma  vez  nad 
pode  ter  emenda.  He  eleição ,  de  quedepende  tudo  , 
e  huma  parte ,  que  encerra  em  fi  o  todo ,  e  por  iffo  a 
melhor  parte:  Optimam partem elegit, 
N«m.49i.  618  Tenho  acabado,  e  fatisfeito,  fe  menaô  en- 
gano, asnodas  três  queixofas.  Mas  fe  elías  tiveraô 
tempo  para  fe  queixar  de  novo ,  e  eu  forças  para  di- 
zer,  e  vós  paciência  para  ouvir,  he  certo,  que  as 
queixas ,  que  fe  fízeraõ  tanto  fem  razaô  contra  efta 
íporte,  fehaviaó  de  converter  todas,  ecom  muita 
razão  contra  noíTas  vidas. 

6 19  Oh  idades  cegas !  Oh  gentilezas  enganadas  \ 
Oh  difcriçoens  mal  entendidas :  Vive  a  idade ,  como 
fe  naó  houvera  morte :  vive  a  gentileza ,  como  fe  naõ 
paílara  o  tempo  :  vive  a  difcriçaõ,  comofenaõte- 

mera 


Dijcurfo  LVU.      55 

meraojuizo.  Oh  acabemos  já  algum  dia  de  fer  ce- 
gos. Ponhamos  diante  dos  olhos  eftas  imagens  tu- 
neftas ,  retrato  de  nós  mefmos ,  que  naó  fem  particu- 
lar providencia  nos  meteDeos  em  caía  taó  repeti- 
damente. Apenas  ha  cafa  illuftrc  em  Portugal ,  que 
fe  naô  viíTe  cuberta  de  lutos  efte  anno  :  e  ainda  nao 
he  acabado. 

620  Já  que  os  parentes  morrem  para  íi,  e  para 
Deos ,  morraõ  também  para  nós.  Confideremos  , 
que  foraô  o  que  fomos  :  que  havemos  de  fer  o  que 
faó:  que  alli  vay  a  parar  tudo :  e  que  tudo,  o  que  alli 
naó  apioveita,  he  nada.  Se  nos  dá  confianças  a  ida- 
de ,  reparemos  quaó  frágil  he ,  e  quaô  fujeita  ao  me- 
nor accidente.  Se  a  gentileza  nos  engana ,  defenga- 
nenos  huma  caveira  ,  que  he  o  que  fó  tem  durável  a 
mayor  formofura.Se  a  difcriçaó  finalmente  nos  deíva- 
nece,  faibamos  fer  dilcretos ,  que  he  laber  falvarnos. 

DISCURSO    LVIII. 


A 


Tirado  de  hum  fermaô ,  que  o  AuBor  pregou  na  Igre- 
ja da  Mifericordia  da  Bahia  ao  efiterro  dos 
ojjos  dos  enforcados. 

MORTOS. 

521  TT  Um  dos  grandes  efcandalos ,  que  tenho  Part:  v. 

XX  do  mundo,  he  ,  porque  fe  naÕ  ha  de  tef  Num.  jyj. 
tar  dos  amigos.  Na  morte  teftaõ  os  homens  de  to- 
dos os  feus  bens,  e  poreíFa  mefma  razão  parece,  que 
haviaõ  de  teftar  dos  amigos  em  primeiro  lugar ;  por- 
que entre  todos  os  bens  nenhum  bem  ha  mayor, 
que  os  amigos  ,  e  entre  todas  as  coufas  noíTas  ne- 

J34  nhuraa 


Pavt.  2. 


5  ^      Vieira  ahhreviaão 

nhuma  he  mais  noíTa ,  que  os  amigos. 

622  Pois  fe  os  amigos  faô  os  noíTos  mayores  bens, 
e  os  bens  mais  noíTos  ,  porque  nao  teftamos  delies  ? 
A  razão  he  eíla;  porque  os  bens,  de  que  teftaó ,  e  po- 
dem teftar  os  homens  ,  faô  aquelles  ,  que  permane- 
cem depois  da  morte :  e  os  amigos  ,  ainda  que  fejao 
os  noíTos  mayores  bens,  faô  bens,  que  feacabaôcom 
a  vida.  O  mayor  amigo  permanece  até  á  morte  j  de- 
pois da  morte  ninguém  he  amiga 

Num.  450.  ^3  ^^''^  ^"^  ^^  defenganem  todos  os  mortaes  de 
Kum.  445).  ^"2Õ  pouco  fe  devem  fiar  os  mortos  dos  vivos ,  po- 
nhamos o  exemplo  nos  mais  refpeitados  ,  e  nos  mais 
refpeitofos  do  mundo ,  que  faô  os  Reys ,  e  os  que  an- 
daõ  mais  chegados  a  elles. 
.  624  Morreo  ElRey  Herodes,  aquelle ,  que  logo 
em  feu  nafcimento  quiz  tirar  a  vida  a  Chrillo  ,  e  o 
obrigou  a  fugir  ao  Egypto  \  e  tanto  que  morreo ,  ap- 
pareceo  o  Anjo  a  S.  Jofeph ,  e  diíTelhe  ,  que  fegura- 
niente  podia  tornar  para  as  terras  de  Ifrael :  Defun- 
ciifunt  enini ,  qui  quarebant  animam  pueri  ;  por- 
que já  eraô  mortos  os  que  períeguiaó  ao  minino. 

625  Eíle  porque  do  Anjo  parece ,  que  foy  mais 
largo  do  que  havia  de  fer.  O  Euangeiifta  diz ,  que  fó 
morrera  Herodes  :  Defunão  Herode,  Pois  fe  o  que 
morreo  foy  íó  Herodes  perfeguídor  de  Chriílo  ,  co- 
mo diz  o  Anjo ,  que  morrerão  todos  os  que  o  perfe- 
guiaó?  Porque  com  a  morte  dos  Reys  morrem  to- 
dos os  rei  peitos,  queosacompanhaó  na  vida.  Hero- 
des perfeguia  a  Chrifto  por  refpeito  da  coroa ,  os 
demais  perfeguiaóno  por  refpeito  de  Herodes,  e  co- 
mo morreo  Herodes,  também  morrerão  com  elle  to- 
N«ai.45o.  Jos  eífes  refpeitos.  Ediz  o  Anjoangelicaraente,  naô 
que  morrerão  os  refpeitos ,  fenaó  que  morrerão  os 

refpei- 


Difcurfo  LVIII.     57 

reípeitolos,  ou  refpeaivos,  ifto  he  os  familiares  de 
Herodes.  Em    algumas  naçoens   da  índia  quanuo 
morrem  Reys,  mataófe  juntamente  com  elles  todos 
Tfeus  cr,ados,  e  validos.   Cá  naó  le  matao     mas 
também  morrem.  Morrem  para  elles,  e vivem^co- 
mo  fempie  viverão  )  fó  para  fi.  E  fe  ú\o  fuceeue  nos 
Revs  ,  que  íerá  dalli  abaixo  ?  Defenganemonos  pois, 
Jue  pa^a  os  mortos  nao  ha  vivos    Todos  morren^ 
com  quem  morre :  Defimão  Herode.defunãtfunt 
eniní  Atai  as  palavras  do  Euangelifta  com  as  do 
Anjo ,  e  notai  mtiito  aquelle  enm.  Morrem  os  vivos 
coni  os  mortos  fem  outro  achaque,  nem  porque, 
fenaô  porque  elles  morrerão.  Nao  morreria  muito 
trefvariado,  e  fora  de  fi  quem  nomeaífe  por  leu  tef- 
tamemeiro  a  hum  morto  ?  Pois  affim  o  fazem  os  que 
na  morte  encommendaó  os  defcargos  defuaalma  aos 

vivos.  .    .  , 

627     Até  os  que  na  vida  morriao  por  vos ,  na  mor- 
te morrem  comvofco.  Vede  o  nos  íilhoj  para  com 
os  pays ,  e  nos  irmãos  para  com  os  irmãos ,  e  o  que 
he  mais  que  tudo  nos  amigos  para  com  os  amigos.  O 
par  mayor  de  amigos ,  que  lemos  na  Efcritura  ,  ( que 
os  outros  faõ  fabulofos)  forao  Jonathas  ,  e  David. 
Morreo  Jonathas  ,  ficou  David  vivo ,  e  tudo  ,  o  que 
fez  por  elle ,  foy  tirar  a  fazenda  a  ftu  filho  ,  e  com- 
por hum  Soneto,  ou  huma  Canção  á  lua  morte :  Do- 
leo  fnper  te  ,  fraler  mi  Jonatha ,  decore  nmts ,  & ,.  ^e^. ,; 
amabilisfuper  amorem  miilterum.  Sicut  mater  iini-t^.  &  17- 
amiamatfiliumfimni,  ita  egotediligebam.  Repa- 
ray  nodiligebamy  amava.  Elle  mefmo  confella  ,  e 
diz  naõ  que  ama,  fenao  que  amava  j  porque  com  a 
morte  de  Jonathas  morreo  também  o  amor  de  Da- 
vid. Fiaivos  lá  de  amigos .  e  mais  dos  mais  diícretos. 

O  q^ue. 


i 


w^^— m  ij  .  .  .L   iiP  ■ 


Num.  45í« 


5  S       Vieira  ahhrcoiado 

o  que  podeis  efperar  quando  muito  da  fua  memoria 
oudofeu  entendimento,  hehuma  meya  folha  de  pa! 

deftmtr"""'""  ''""'*''  •■ '"'"'°'  ^°^^ ''"™''  *'""»  de 

•  628  .MastornandoaHerodes,eádedaraca6dos 
refpe.tos  porque  na  fua  morte  morrerão  com  e,^ 
todos  os  feus ,  he  de  laber ,  que  efte  Herodes    por 

as  artes,  e  manhas  foube  melhor  ganhar,  íuieitar 
e  un.r  a  fi  os  ânimos  dos  homens.  Como  era  ?ntru?ô 
na  coroa  reynou  quarenta ,  edous  annosfempre  cora 
receyo  de  que  o  privalfem  do  Reyno :  a  huns  grai" 
geava  com  favores,  e  mercês,  como  Rey,  a  outros  fu- 

io  X'°'";"Sr''  ^"?'g°^'  ^«-"Otyraro    E 
por  efte  modo  dominava  de  tal  forte  a  todos ,  que 

naohav.a  nofeu  Reyno  mais  que  huma  fóvontaV 
que  era  a  fua.  Bem  fe  vio  na  entrada  dos  Magos  em 
Jerufalem  com  voz  de  outro  Rey:  Turbatusejl  He- 
rodes:  Turbouie  Herodes  :  Et  omnis  JerofolpL 
cum  tilo:  E  todos  por  elle ,  e  com  elle.  Eiffin,  como 
todos  viviao  com  elle  ,  quando  vivo ,  aflim  todos 
morrerão  com  elle ,  quando  morto.  Em  quanto  vivo 
huns  viviao  com  elle  pelo  beneficio ,  outros  pelo  me- 
ão: tanto  que  morreo,  morrerão  também  todos  cora 
ene ;  porque  nenhuns  tinhaõ  já  que  temer,  nem  ou- 
tros  que  efperar. 
Num.  4,4.     629     Mas  muitas  vezes  íao  fervidos ,  e  honrados 
os  mortos ,  naõ  por  fi ,  mas  por  refpeito  dos  vivos. 
Wao  vedes  nas  mortes,  efuneraes,  prmcipalmente 
los  grandes ,  os  concurfos ,  e  affiftencias  de  todos  os 
eltados,  que  fe  fazem  áquelles  perfumados  cadáve- 
res, de  cujas  almas  por  ventura  íe  naó  tem  tanto  cui- 
oado.''  Fois  naõ  cuideis,  que  cuidamos,  que  o  fazeis 


st:.;.  ■■ 


Bifcurfo  LVIIL      59 

por  piedade  dos  mortos.  Todos  fabemos  taô  bem 
como  vós ,  que  faÕ  puras  ceremonias ,  e  hfonjas,  com 
que  inceníais  os  vivos.  Por  mais  que  lejao  tuneraes 
os  obfequios,  aos  vivos  he  que  fe  fazem ,  e  nao  aos 
mortos.  Ouvis  aquelles  refponfos  de  corpo  preíente 
taô  concertados  ,  e  taó  fentidos  ?  Pois  nao  fe  rezao 
aos  defuntos ,  cantaÔfe  aos  vivos.  Por  iflo  os  de  N  aim  Num.  4f  y. 

no  enterramento  do  filho  da  viuva  hiaô  com  eUa ,  e 
naó  com  elle:  Eccedefttnâiusefferehatur^fiíiusuní'  Luc.7.  "• 
cus  matrisfíia  ,  &  hac  vidua  erat\  &  miiltttudo 
copiofa  plebís  cum  illa  \  porque  ordmariamente  o 
que  parece,  que  fe  faz  aos  defuntos,  fazfe  aos  vivos. 
O  filho  era  defunto  ,  e  a  mãy  a  acompanhada.  Os  da 
tumba  levavaó  o  morto ,  os  do  acompanhamento  le- 
vava os  aviva.  Elle  hia  para  alepultura,  eellesnao 
hiaó  com  quem  hia ,  hiaó  com  quem  ficava  :  Cum 

630    Se  ifto  he  o  que  paHa  nas  Cidades  pequenas,  Nu».  4jí. 
como  a  de  Naim ,  que  fera  nas  grandes  Cortes ,  onde 
he  tamanha  a  lifonja  dos  vivos ,  como  o  efquecimen- 
to  dos  mortos  ?  Ponhamonos  na  de  Mênfis.  Mor- 
reo  Jacob  pay  de  Jofeph  no  Egypto,  e  depois  mor- 
reo  também  Jofeph  na  mefma  Corte.  Mas  he  digno 
de  admiração,  e  de  pafmo  o  modo,  com  que  fe  porta- 
rão os  Egypcios  em  huma ,  e  outra  morte.  Na  de  Ja- 
cob durarão  os  prantos,  e  as  exéquias  fetenta  dias : ceneí.  50, 
Tlevit  eumpopulus  feptuaginta  dies.  E  porque  logo  '* 
fe  trasladou  o  feu  corpo  para  a  terra  de  Canaan ,  co- 
mo tinha  mandado,  acompanharaôno  até  lá  todos  os 
Principes,  e  Grandes  do  paço  de  Faraó,  e  todos  os 
Magiftrados ,  e  fenhores  do  Egypto  com  grandes 
tropas  de  cavallaria,  e  apparato  de  carroças:  lerunt^t^-^o.^,^ 
eum  eo  cunâii  fèniores  domus  Pharaonis ,  cunBique^  ^' 

maí(h 


!^^^^^S^ 


^o      Vieira  ahhreviado 

maiores  natuEgypti-,  habuitque  in  comitatu  cur- 
rjiSy  (^  equites.  Aífim  foraó  caminhando  até  fora 
T'  '^y^'^^^  %7Pto ,  e  depois  que  paílaraÒ  o  Jor- 
iíao,  e  chegarão  ao  lugar  do  fepulchro,  renovarão 
outra  vez  as  exéquias  por  efpaço  de  fete  dias  com 
tantas  lagrimas,  e  extraordinários  prantos,  que  ad- 
mirados os  Gananeos  pozeraõ  por  nome  áquelle  fi- 
r.n  .      Tl '  ^^^^^'^^'-^  ^^ypt^  '  O  pranto  do  Egvpto  :  Uâí  ce- 
Gen.ío.xo. /ehyttes  exequias  planãu  magno,  atque  vehementu 
ímpleveriint  feptem  dies.   Ouoà  cum  vidiffent  habi- 
tat ores  terr^  Chanaan.vocatum  èfi  nomen  loci  ilHus' 
Planâius  Egypti.  Tao  fentida,  e  taó  mageílofamen- 
te  como  jfto  celebrarão  os  Egypcios  as  exequias  de 
Jacob  pay  de  Jofeph. 

^?  ^     ^  quaes  vos  parece  agora ,  que  feriaÓ  as  do 
nieimojoreph,  quando  depois  morreo  no  mefrao 
i^.gypto?  De mduílriarefen  rodeis  ns  palavras,  com 
que  a  Efcritura  defcreve  as  do  pay ,  para  que  a  mef- 
mahfcritura  nos  diga  também  as  do  filho.  Ouvi  com  ^ 
aííombro  o  que  diz  :  MorUms  ejl  Jofeph  expletis 
centum ,  i;'  decem  vttafua  annis ,  dr  conditns  aro- 
ma tíbus  repofttus  eji  inloculo  in  Egypto:  Morreo 
Jofeph  de  idade  de  cento  edez  annos,é  ungido,  como 
era  coftume  dos  Hebreos,  o  meterão  em  hum  lugar 
do  tamanho  dofeu  corpo  no  Egypto.  Enaô  diz  mais 
a  hiftoria  fagrada ,  fendo  eílas  as  ultimas  palavras  de 
Kum.  457.  toda  a  que  efcreveo  Moyfés.  Eque  hedas  exequias  ? 
Que  he  dns  lagrimas ,  e  prantos  ?  Qiie  he  da  folemni- 
oade  do  enterro  ?  Qiie  he  dos  apparatos  fúnebres  ? 
Qiie  he  dos  mauíoleos ,  e  pyramides  Egypciacas? 
Qi'e  he  do  concurfo  da  Corte  ?  Qiie  he  do  acompa- 
nhamento ,  eaííiftencia  dos  tribunaes,  dos  Minif- 
tfos,  e  fenhores  grandes  da  cafa  de  Faraó,  de  que 

Jofeph 


Difctirfo  LVIII      ^i 

Tofeph  era  o  mayor ,  o  mais  valido  ,  o  mais  refpeita- 
do ,  e  adorado ,  e  lobre  tudo  o  mais  benemérito  ? 

6,i    Nada  d.fto  diz  Moylés  ,  fendo  lem  duvida 
nue  o  liaviade  dizer ,  fe  o  houvera ,  aílim  como  com 
?:nta  elpecialidade ,  e  miudeza  àfcrc^'f^^'J^;;^l; 
e  exéquias  de  Jacob.  Pois  íe  a  Jacob  ío  por  ftr  pay 
de  Toleph    íem  outro  merecimento,   ou   lerviço  , 
í^ií  que  tivelle  obrigado  aos  Egypcios  -^  -  fazem 
na  morte  tao  magnificas  exéquias  ,  e  tao  e^q"  f^^ 
honras,  e  o  que  Ine  mais,  acompanhadas  de  tamas  la- 
IZZ,  e  p?antos,  como  falta  tudo  ifto  na  morte  de 
fofeph    na  morte  outra  vez  daquelle  mefmojoíeph, 
a  quem  os  mefmos  Egypcios  deraÕ  nome  de  Redemp- 
tor  do  mundo ,  porque  ao  Rey  tinha  femido ,  e  con- 
fervado  ao  R^yno,  e  aos  vaíTallos  pnme.ro  tinha 
dado  a  vida  ,  depois  a  fazenda ,  e  uiumamente  a  Ii- 

bcrdâCiC 

62Z     Aqui  vereis  quanto  vay  de  mortos  a  mor- 
tos ,  qu.ndo  concorre ,  ou  falta  o  relpeito  dos  vivos. 
Otiando  morreo  Jacob,  era  vivo Jolepb,  e  porque  era 
vivo  o  filho ,  e  tal  filho ,  fizeraó  tantas  honras  ao  pay. 
Pelo  contrario,  quando  morreo  Jofeph  ,  nao  deixou 
vivo  depois  de  fi  a  quem  os  Egypcios  relpeitaí.em , 
ou  de  ouem  dependelíem  5  e  como  nao  havia  vivos 
para  os  obfequios ,  nao  houve  exéquias  para  o  detun- 
ío    So  iepodiaõdefculpar  os  Egypcios  com  Jofeph, 
dizendo  ,  que  lhe  faltarão  com  as  lagrimas  na  morte, 
porque  lá  lhas  tinhaó  dado  em  vida  ,  e  aíFim  foy.  Nas 
exéquias  de  Jacob  o  chorado  naÓ  era  opay  ,  era  o  fi- 
lho i  porque  nao  choravaó  os  Egypcios  pelo  morto, 
choravaó  para  o  vivo.  SahiaÓ  as  lagrimas  dos  feus 
olhos ,  para  que  as  viíTem  os  de  Jofeph :  e  nao  as  ex- 
primia a  dor ,  ou  a  faudade ,  fenaÔ  a  dependência ,  e 


I 

1' 


ieira  ahhrev^adò 

lifonja  ,  como  lagrimas  de  figuras  pintadas  ,  que  af- 
íimcorao  íenm  íem  alegria,  também  chorão  fem 
tnrreza. 

Num  45 1  634  E^C'^  ^^e  a  mayor  miíeria  dos  mortos,  ferem' 
gente,  que  iiaó  podem  fazer  bem  ,  nem  mal.  \L  por- 
que com  elles  morrera  ,  e  fe  acabaô  todos  os  refpei- 
tos ,  e  dependências ,  porque  fe  governao  os  aíteaos 
humanos,  por  lílo  aílim  como  nelles  aqueljahe  a  ma- 
yor miferia ,  aíilm  para  com  elies  eíia  he  a  mayor  mi- 
fericordia:  mifericordia  íem  refpeito,  raifericordia 
íem  dependência,  mifericordia  fem  motivo  ajgum 
que  naõ  feja  pura  mifericordia.  ' 

Num.  452.      Ó35     Naofou  muito  amigo  de  authoridades;  por- 
que raramente  fe  podem  ajuílar  com  quem  diífer  o 
que  naõ  eílá  dito.  Ouçamos  porém  a  de  Santo  Am- 
brofío  ,  que  melhor  ,  e  mais  altamente  tocou  efte 
ponto.  Naquelie  feu  famofo  livro  ,  que  intitulou  de 
Offkiis^  failando  da  fepultura  dos  mortos  diz,  que 
entre  todos  os  benefícios,  que  pode  fazer  a  piedade 
humana  ,  eíle  he  o  mais  excellente  :  Nihil  hoc officto 
pr^flantius.  Outros  diziaó  ,  que  mayor  beneíicio, 
e  mayor  obra  de   miíericordia  he  fuftentar  os  po- 
bres, e  remir  os  cativos;  porque  a  huns  dáíeavida, 
e  a  outros  a  liberdade.  Com  tudo  eíle  grande  Dou- 
tor da  Igreja ,  e  Meílre  de  Santo  Agoftiího  diz ,  que 
dar  fepultura  aos  mortos,  ainda  da  parte  de  quem  re- 
cebe o  beneíicio,  he  o  mais  excellente  de  todos,  e  dá 
2  razaó  :  Nihil  hoc  eficiopr^ftantius ,  ei  conferre , 
qui  tibijam  non pote/i reddere :  He  (  diz )  o  mais  ex- 
cellente de  todos,  porque  he  beneíicio  feito  a  quem 
onao  pode  pagar :  eu  accrelcentara ,  nem  dever.  He 
fazer  bem  a  quem  vos  naô  pode  flizer  bem:  eu  ac- 
crefcentara ,  nem  mal.  He  obra,  de  que  fe  naó  efpera 

agra- 


Difcurfo  LVIIL     ^3 

agradecimento:  eu  accrefcentara,  nem  queix.  He 
finalmente  compadecerme  eu ,  e  remediar  a  q.em 
niô  Pidece  a  mi  feria ,  nem  lente  o  beneficio,  que  if- 
tohe^fer  morto.  Obèm,  que  fe  faz  -^  v-os,  (como 
bem  fabem  os  que  o  fazem ,  e  nao  .gnotao  os  q..  o 
recebem  )  PÓde-o  negociar  o  intereife ,  pode-o  fou- 
c  tar  a  dep' ndencia  rpóde-o  violentar  o  re  peito  e 
nada  dirto  fepóde  elperar  ^e  hunsoflos  fe.os^  m  _ 

temer  de  humas  cinzas  frias,  La  dilíe  com  alta  r  no 
fofia  Séneca ,  que  a  verdade  do  bem  fazer  nao  con- 
fifte  em  dar  ò  beneficio ,  e  perdello    fenaÕ  em  o  per- 
der   êdallo:  Benefcium  e(lmndare,  &perdere; 
T/pmlerc&dare.  Dat  o' beneficio,  e  perdello  he 
cafo    que  fuccede  muitas  vezes  ou  por  impruden- 
c  a  de^em  o  dá ,  ou  por  impolfibilidade     ou  por 
avareza ,  ou  por  ingratidão  de  quem  o  recebe ,  e  nel- 
?e  cafo  à  boa  obra^naô  he  beneficio ,  he  ignorância  , 
ou  defgraça  :  pois  quando  he  verdadeiro  beneíicio  a 
obra  bSa?  Quando  quem  afaz,  fabe  que  aperde,  e 
com  tudo  a^z  :  e  tL  faó  os  benefícios    que  fe  fa- 
zem aos  mortos.  Como  os  mortos  "/o  fentem  ,  ne  n 
conhecem  o  beneficio ,  que  fe  lhe  faz,  e  ainda  que 
o  conhecerão,  na6o  podem  agradecer,  nem  pagar, 
tudo  ,  o  que  (e  faz  aos  mortos  ,  he  como  fe  fe  peide- 
ra ;  e  por  iflb  a  fepultura  fe  chama  perdição  :  inje-ii  g^.  .g 
pukhro ,  m  perdítíone. 


DlSr 


^4       Vieira  abbr  caiado 

DISCURSO     LIX. 

Thydo  de  humfermao  do  Jamifflmo  Sacramento ,  e 
de  outro  de  y  JoaõBautiJia  pregado  naprafií- 
I  cm  da  Senhora  Madre  Soror  Maria  da  Cf 


iilba  do  Excelíentiff/mo  Duque  de  Medina 
Sidónia. 


MUNDO, 


Pare.    3. 
Nura.  54;. 


^17 


Vum.  547 


A  terra  poz  Deos  a  mefa  aos  homens  ,  e 

rnm^  ^      .        ^"^"/^  ^^'^'^  "^^^^'^  ^^  ^ígradccimento , 
como  ae  admiração  ,  que  de  íeis  dias  ,  em  que  creou 
o  mundo,  empregaííe  os  três  mayores  ,  e  mais  fecun- 
dos íó  em  prover  eíla  mefa.  Tudo  quanto  nada  no 
mar ,  tudo  quanto  voa  no  ar ,  tudo  quanto  naíce ,  ou 
paíce  na  terra  ,  faÔ  os  íimples,  que  produzio  a  natu- 
reza   para  que  delles  compuzeíTe ,  e  temperaOe  a  ar- 
te  o  luitento ,  e  regalo  do  homem.  As  eípecies ,  que 
le  contem  debaixo  deites  quatro  géneros  vartiffimos, 
tao  varias  na  formofura  ,  taõ  exquiíitas  nos  fabores 
e  inhíiitas  no  numero ,  excedem  íem  limite  a  capaci- 
dade do  gofto ,  e  dos  outros  fentidos.  E  que  difcurfo 
na,  quenaõpafme  na  coníideraçaô  do  poder,  ma- 
gnihcencia    e  grandeza  ,  com  que  mais  parece  quiz 
Ueos  enfaftiar  o  appetite  humano  com  a  luperfluida- 
de  da  rneía ,  que  fartar  a  ncceíTidade  com  a  abun- 
dância ? 

.  ,  638  E  fequizera  fabricar  outro  mundo  mais  pre- 
cioío ,  em  que  a  terra  fora  ouro ,  o  mar ,  e  os  rios  pra- 
ta ,  as  áreas  pérolas,  os  penhafcos  diamantes,  as 
plantas  efmeraJdas,  as  flores  rubis,  efaíiras,  e  os  fru- 

d:os , 


ifcurfo  LIX.       ^5 

òtos  ,  e  feus  Libores  proporcionados  a  efta  riqueza, 
e  ciclicia,  com  outro  aceno  da  meíma  vontade ,  e  fem 
mais  tempo  ,  que  hum  inílante  ,  o  podéra  crear  de 

-nada. 

6:59  E  nao  ha  duvida  ,  que  dos  bens  temporaes  r^n.  5.  ^ 
inais  liberal  he  o  mundo  com  funs  promeílas ,  que^'"™'"^^^' 
Mleos  com  íuas  liberalidades.  Naó  coftuma  Deos  dar 
tanto,  quanto  o  mundo  coíluma  prometter.  Bem 
fe  íegue  logo  ,  que  mais  dá  a  Deos  quem  lhe  dá 
3S  promeiTas  do  mundo  ,  que  quem  lhe  torna  as 
fuás  dadivas.  Se  dais  a  Deos  ,  o  que  Deos  vos  dá, 
dareis  muito;  mas  fe  dais  a  Deos  o  que  o  mundo 
vos  promette  ,  dnis  muito  mais.  Oh  quanto  liberal 

•eítá  com  Deos  quem  dandolhe  as  mayores  grande- 
zas, ainda  bufca  artifícios  de  lhas  dar  accrefcenta- 
das!  Eque  artifício  pode  haver  para  accrefcentar  os 
bens,  e  grandezas  do  mundo?  Eu  o  direi.  Os  bens, 
e  grandezas  do  mundo  faifamente  fe  chamao  bens, 
porque  fao  males  ,  e  fem  razaó  fe  chamao  grandezas, 
porque  fao  pouquidade^.  Pois  que  remédio  para  fa- 
zer das  pouquidades  grandezas ,  e  dos  males  bens  ?  O 
remédio  he  deixallos,  e  deixallos  em  eíperanças  ; 
porque  efíes  ,  que  o  mundo  chama  grandes  bens  ,  fó 
faó  bens  quando  fe  deixao  ,  fó  fao  grandesquando  fe 
efperaô.  A  efperança  lhe  dá  a  grandeza  ,  o  defprezo 
lhe  dá  a  bondade  :  defprezados  fao  bens  ,  efperados 
fao  grandes,  e  aíFim  mais  dá  quem  defpreza  oqueef- 
pera ,  que  quem  dá  o  que  polTue. 

640  Nmgue.m  melhor  facrifíca  aDeos  o  mundo, Nuai.4j?tí 
que  quem  lho  oíFerece  em  eíbtua  ;  porque  o  mundo 
em  eílatua  he  muito  mayor ,  que  fí  mefmo.  Para  der- 
rubar com  huma  pedra  ao  Golias  bailou  a  funda  de 
David  :  para  derrubar  com  outra  pedra  a  eílatua  de 
Tom.  ÍI.  E  Ng- 


Part.  1 1. 


66       Vieira  abbreviado 

Nabuco  foraó  neceílarios  impulfos  (  poftoque  inví- 
íiveis  )  do  braço  de  Deos.  O  Golias  tinha  de  altura 
leis  covados  ,  a  eíhitua  tinha  fellenta  ,  que  nas  gran- 
dezas mais  pompeias  do  mundo  íempre  faõ  ínayo- 
res,  que  os  gigantes,  as  eftatuns.  Nunca  as  machi- 
nas  vivas  igualaó  a  medida  das  fonhadas. 

64T  Sonha  a  fantaíía  ,  promette  a  efperança  y 
profetiza  o  deíejo  ,  reprefenta  a  imaginação,  e  ain- 
da que  a  foltura  dellies  fonhos,  o  cumprimento  def- 
t2s  promeíTas  ,  o  prazo  delias  profecias  ,  a  verdade 
deftas  reprefentaçoens  nunca  chegao,  mais  triunfa  o 
amor  divino ,  quando  piza  o  fantaltico  ,  que  o  verda- 
deiro ,  o  efperado ,  que  o  poffuido.  Deixar  antes  de 
poíTuir  he  ufura  de  merecer ;  porque  quem  mais  dá, 
mais  mereee ,  e  quem  dá  os  bens  na  efperança  ,  da-os 
onde  íaô  mayores.  A  melhor  parte  dos  bens  defta  vi- 
da he  efperar  por  elles:  iogo  mais  faz  quem  fe  inha- 
bilita  para  os  efperar,  que  quem  fe  priva  de  os  poí^ 
fuir.  Por  iílb  Ghriílo  chamou  os  Principes dos  Apoí- 
tolos,  quando  lançavaô  as  redes  ,  e  naõ  quando  as 
recolhiao :  Mitt entes  rete  in  maré.  Porque  mais  faz 
quem  deixa  as  redes  lançadas  ,  que  quem  deixa  os 
lanços  recolhidos.  As  redes  quando  fe  lançaô  ,  levao 
em  cada  malha  huma  efperança ,  os  lanços  quando  fe 
recolhem  ,  trazem  muita  r^áo.  vazia. 

642  He  efte  mundo  como  o  monte  Calvário,  em 
que  fe  vem  todos  os  eílados  dos  homens  ,  e  todos  em 
cruz.  Todos  os  homens  do  mundo  ou  íaÓ  juílos, 
ou  pcccadores  ,  ou  penitentes.  Se  íois  juílo,  haveis 
de  ter  cruz;  porque  Chriílo  erajuílo,  antes  a  mefma 
juíliça  ,  e  tinha  a  fua.  Se  íois  peccador,  haveis  deter 
cruz;  porque  o  mao  ladrão  era  peccador,  e  eílava 
cruciiicado.  E  fe  fois  penitente ,  também  haveis  de 

ter 


Difcurfo 


^7 


ter  cruz;  porque  o  bom  ladrão  em  penitente,  ea 
cruz  era  a  mayor  parte  da  íua  penitencia.  Se  fores 
Rey  ,  haveis  de  ter  cruz ;  porque  Chrifto  tinha  hum 
tiiulo,  aue  dizia  Rex  Jiidaortim ,  e  o  titulo,  e 
mais  o  Rev  ambos  eílavaó  pregados  nelia.  E  fe  fores 
dos  que  eíiio  ao  lado  do  Rey  ,  também  haveis  de  ter 
cruz  ;  porque  ao  lado  de  Chrifto  eftava  Dimas ,  e 
Geftas ,  e  eftava  cada  hum  na  fua. 

643  Muito  em  feu  lugar ,  e  muito  fora  de  feu  íu-  Kum.  70. 
gar  eftavaó  eftes  duos  ladroens.  Eftavaó  muito  em 
feu  lugar  ,  porque  eftavaó  crucificados  com  as  rtiaõs, 
e  pés  pregados  na  cruz  ,  e  eftavaó  muito  fora  de  feu 
lugar,  porque  eftavaó  ao  lado  do  Rey.  Seviveresna 
corte  ,  haveis  de  ter  cruz,  que  pelas  ruas  dejerufa- 
Jem  levou  Chrifto  a  Cruz  ás  coftas:  e  fe  viveres  no 
monte  ,  também  haveis  de  ter  cruz ,  que  no  monte 
Calvário  teve  a  Cruz  a  Chrifto  nos  braços.  Em  fim, 
fe  tiveres  vontade  de  levar  a  cruz ,  levallaheis ,  qu^ 
Chrifto  defejou  muito  levalla  ,  e  levou  a  :  e  fe  nao 
tiveres  vontade  de  a  levar,  também  a  levareis^,  que 
o  Cyreneo  naó  queria  levar  a  cruz ,  e  forçaraóno  a 
quea  levaíle.  De  maneira ,  que  ou  por  aáto  de  virtu- 
de, ou  por  remédio  de  neceííidade  nao  ha  paíTar  ef- 
ta  vida  fem  cruz.  Antes  a  mayor  felicidade  dos  vi- 
vos he  como  o  enterro  dos  defuntos  :  quanto  mais 
pompa ,  mais  cruzes. 


E2 


DIS- 


ieíra  ablreviado 


D  I  S  C  U  R  S  o    LX. 

Tirado  de  hum  fermao  de  S.  Jofeph  pregado  na  Ca- 

pella  Real  no  dia  do  fnefma  Santo ,  eut  que  fez  an- 

nos  EIRey  D,  João  IV.  ede  outro  do  najcwien- 

toda  May  de  Deos, 


NASCIMENTO. 


Part.  II. 

Num.  J97, 


^44 


Ueílao  foy  mui  duvidada  entre  os  anti- 
gos, qual  dia  deíla  vida  era  mais  felice,  fe 
o  primeiro ,  íe  o  uirimo ,  fe  o  do  nafcimeR- 
to ,  íe  o  da  morte.  Daqui  veyo ,  que  feguindo  varias 
gentes  varias  opinioen§ ,  humas  fe  alegravaõ  nos  naf- 
cimentos,  outras  os  celebravaó  com  lagrimas:  hu- 
mas fe  entrifteciaô  nas  mortes  ,  outras  a  folemniza- 
vaõ  com  í^ÇtãS,  Chegou  finalmente  a  duvida  ao  tri- 
bunal d'ElRey  Salamao,  o  qual  inclinandofe  apar- 
te ,  que  parecia  menos  provável ,  reíblveo ,  que  me- 
lhor he  o  dia  da  morte,  que  o  dia  do  nafcimento : 
Melior  e/i  dies  mortis  die  nativitatis. 
Part.  7.  645  Os  homens  (deve  fer  porque  fao  mortaes) 
Num.  13 í.  o  que  coítumaõ  feílejar  com  mayores  demonft rações 
degoílo,  parabéns,  e  applaufos  affim  publica /co- 
mo privadamente,  íaó  os  naícimentos.  Mas  iílo  de 
nafcer  pelo  que  tem  de  íi ,  nem  merece  alegria ,  nem 
triíleza  ;  antes,  fe  bem  fe  confidera  ,  mais  digno  he 
de  trifteza  ,  que  de  alegria  Naõ  de  bíHde  com  íer  o 
rifivel  a  primeira  propriedade  de  noíla  natureza,  a 
mefma  natureza  nos  enfina  a  nafcer  chorando.  Com 
bgnmas  chorarão  muitas  naçoens  os  nafcimentos, 
que  nós  folemnizamos  com  feílas,  e  naô  feyfe  nos 

deve- 


^'  Difiiirfo  LX. 

devera6  tornar  o  nome  de  bárbaros  ,  que  lhe  damos. 
Queixamonos  da  vidn  ,  e  a-ílejamos  os  nafamentos, 
como  íe  o  nafcer  naÕ  forn  principio  da  meíma  viua, 
que  nos  traz  queixofos.  O  nafcimento  hc  o  principio 
da  vida  .  como  a  morte  o  Hm  :  e  huma  carreira  ,  que 
tem  o  fim  taÒ  davidofo ,  huma  navegação  ,  que- tem 
o  porto  tao  pouco  feguro  ;  como  pode  ter  o  princi- 
pio alecrre  ?  Nafcemos  íem  faber  para  que  naíccmos, 
e  bailava  ió  erta  ignorância  parafòzcr  a  vida  pezada, 
quando  nao  tivera  tantos  encargos  hibidos.  Us  aito-- 
fos     e  os  defgraçados  todos  naíceraõ  ,  e  como  íao 
mais  os  que  accufaÕ  a  fortuna^que  os  que  lhe  daô  gra- 
das    m.ayor  matéria  dao  os  naícimentos  ao  temor, 
^ue'áeíperança.  A  efperança  promette  bens  ,  o  te^ 
mor  ameaça  males ,  e  entre  promeílas,  e  ameaças  tanr 
to  vem  a  íe  padecer  o  que  íeeípera,  como  o  que  le 
teme.  Aquém  começa  a  vida,  tudo  ficafuturo,  eiio 
futuro  nenhuma  difíinçaô  ha  de  males  a  bens^  todos 
faÔ  males,  porque  todos  íe  padecem.  Os  males  pa- 
decemíe ,  porque  fe  temem ,  os  bens  padecemíe,  por- 
que fe  efperaô  ;  e  para  afíligir  o  mal  bsíla  fer  poííi- 
vel,  parambleítar  o  bem  baila  ler  duvidofo.  Se  íOí 
guma  coufa  nos  podéra  íegurar  os  fobrefaltos  deita 
contingência ,  parece  que  era  o  tempo ,  o  lugar ,  e  as 
peíToas,  de  que  nafcemos  ;  mas  por  ma?s  que  deitas 
circunilanciasconjedure  a  vã  íabedoria  felicidades, 
o  certo  he,  que  nem  o  tempo  asinílue,  nem  a  pátria 
as  produz,  nem  dos  mefmos  pays  fe  herdaó.ôírrrjiuí 
-    646     Domermopaynafceoííac,eirmaél,ehíun 
foy  o  morgado  da  fé,  outro  da  hereiia.  Na  meíma 
hora  nafceo  Jacob,  e  Efaú ,  e  hum  foy -amado  de 
Deos,  outro  aborrecido.  Na   mefma  terra  nafceo 
Caim  ,  e  Abel ,  e  hum  foy  o  primeiro  tyranno,  outro 
Tom.  II.  t:  3  ^  P"' 


9 


Vieira  ahhreviado 


©  primeiro  martyr.  Aílim  que  avaliar  o  nafcimento 
pelos  pays  he  vaidade,  medillo  pelo  tempo  he  fuperf- 
tiçaó,  e  eftimallo  pela  pátria  he  ignorância,  e  f ó 
julgallo  peio  fim  he  prudência. 

647     SalamaÓ  ,  o  mais  fabio  de  todos  os  que  naí- 
cerao,  faz  huma  comparação  taó  fuperior  ao  noíTo 
JUÍZO,  que  fó  podia  caber  no  íeu.  Compara  o  dia  da 
morte  com  o  dia  do  nafcimento,  ena  differenca  def- 
tes  dous   extremos  quem   naô   imaginará  ,  que  íe 
compara  o  dia  com  a  noite  ,  a  luz  com  as  trevas     a 
alegria  com  a  trifteza,  a  felicidade  com  adefgraca, 
e  acoufa  mais  defejada  com  a  mais  temida,  e  com 
a  mais  terrivel  a  mais  amável  ?  Sendo  porém  taõ  pre- 
nhe de  admiração  a  propoíla,  mais  digna  de  efpan- 
to  he  a  fentença.  Refolve  Saiamaó  ,  que  melhor  he 
Ici.  7.  z.    ^.^*^  ^^  morte  ,  que  o  dia  do  nafcimento  :  Meliorefi 
dieis  martis  ãie  nativitatis,  E  que  tem  o  dia  da  mor- 
te para  fer  melhor,  que  o  do  nafcimento?  O  dia 
do  nalcimento  naó  he  o-mais  alegre  ,  e  o  da  morte  a 
mais  trifte  ?  O  do  nafcimento  naó  he  o  que  povoa  o 
mundo,  o  da  morte  o  que  abre,  e enche  as  fepultu^ 
ras  ?  O  do  nafcimento  o  que  veííe  de  gala  as  famí- 
lias ^  e  as  Cortes ,  o  da  morte  o  que  as  cobre  de  lu- 
tos ?  A  morte  naõ  he  o  mayor  inimigo  da  vida  ,  e  a 
nafcimento  naô  he  oque,  fendo  ella  mortal,  a  immor- 
taliza  ?  Qije  he  o  nafcer ,  íenaó  o  remédio  do  naó  fer^ 
e.que  feria  do  mundo  ,  fe  em  lugar  dos  mortos  nad 
nafceraó  outros ,  que  lhe  fuccedellem  ? 

648  Até  em  Deos  neceííita  de  nafcimento  a  mef- 
ma  Trindade,  porque  fendo  fó  a  peflba  do  Padre  in- 
nafcivcl ,  Deos  fem  nafcimento  feria  hum  ,  mas  naó 
feria  trino.  Pois  fe  tantos  faô  os  beris  ,  e  felicidades, 
que  traz  comíigo  o  dia  do  nafcimento ,  os  quaes  to* 

do& 


Dijcurfo  LX.        ji 

dos  funefta ,  coníume  ,  e  acaba  o  dia  da  morte  ,  que 
motivo  teve  ojuizo  de  Salaniaó,  para  antepor  o  dia 
da  morte  ao  dia  do  nafcimento  ?  Entendeo-o  melhor, 
que  todos  o  mayor  interprete  d?s  Efcriruras.  He  me- 
lhor (  diz  S.  Jeronymo  )  o  dia  da  morte  ,  que  o  dia 
do  nafcimento;  porque  no  dia  do  nafcimento  nin- 
guém pôde  faber  o  para  que  nafce  ,  e  fó  no  dia  da 
morte  fe  fabe  o  íim  ,  para  que  nafcco  :  Certe  quod  in^i.  Hyer. 
morte  qualesfimus  notumfit ,  in  exórdio  vero ^  naf-  ibi. 
cendi ,  quifuturifimus,  ignoratur.  Se  no  nafcimen- 
to de  Judas  ,  e  Dimas  fe  levantaíTe  a  figura  certa  aa 
que  cada  hum  havia  de  fer  em  fua  vida  ,  a  do  primei- 
ro diria  ,  que  havia  de  fer  Apofl:olo  ,  a  do  fegtindo , 
que  havia  de  íer  ladraô  ;  eaílim  foraó  na  vida.  Mas  o    . 
verdadeiro  juizo  do  fim  ,  para  que  cada  hum  delles 
nafcera  ,  ainda  eftava  incerto :  veyo  finalmente  o  dia 
da  morte  ,  que  foy  o  mefmo  ,  em  que  ambos  acaba- 


rão 


e  efledia  declarou  com  aíFombro  do  mundo, 
que  Judas  nafcera  para  morrer  enforcado  como  la- 
drão, e  Dimas  para  confeílar,  e  pregar  a  Chrifto  co- 
mo Apoftolo.  -  ^ 

D  I  S  C  U  R  S  Q    LXI. 

Tirado  de  hum  fermao  da  prifheira  Dominga  do 
Advento  ,  que  o  AuÓíor  pregou  na  Capella  Real. 

NASCIMENTO. 

649  X)  Em  me  parecia  a  mim ,  que  nao  podia  flil-  r>arr.  j. 
X5  tar  Deos  a  dar  huma  grande  fatisfaçaó  no^'''"'*  ^^í" 
dia  do  juizo  á  defigualdade  ,  com  que  nafcem  os  ho-. 
fendo  todos  da  mefma  natureza.  Naô  le  faz 


mens 


E4 


aggra- 


f^ 


Vieira  abreviado 


Mattb 


aggravo  na  defigualdade  do  nafcer  a  quem  fe  deo  a 
eieiçaô  do  refulcitar.  E  quanta  gente  bem  nafcida  fe 
verá  naquelle  dia  mal  refufcitada  1  Entre  a  refurrei- 
çao  natural,  e  afobrenatural  ha  huma  grande  difFe- 
rença  ,  que  na  reíurreiçao  natural  cada  hum  refufcita 
como  nafce:  na  refurreiçaô  fobrenatural  cada  hura 
refuícíta  como  vive.  Na  refurreiçaô  natural  naíce 
Pedro  ,  e  refufcita  Pedro  :  na  refurreiçaô  íobrenatu- 
,^  ral  nafce  pefcador,  e  refufcita  Principe  :  Sedebitisin 
regeneratione  judicantes  duodecim  tribiis  Ifrael. 
Oli  que  grande  confoiaçaõ  eíla  para  aquelles ,  a  quem 
naô  alcançou  a  fortuna  dos  altos  nafcimentos !  A  re- 
furreiçaô hehum  fegundo  nafcimentocom  alvedrio. 

Nusi.  loí.     650     Tanta  propriedade  confiderou  Job  neíle  fe- 
gundo nafcimento  ,  que  até  outro  pay  ,  e  outra  may 

job.i7.i4.*^^^'^í  quetinhamos  na  fepultura  :  Putredini  díxi\ 

'  Pater  meus  es  tu  :  mater  me  a  ,  à^foror  me  a ,  ver- 

mibus.  Temos  outro  pay ,  e  outra  may  na  fepultura, 

em  que  jazem  noíTos  olfos ;  porque  alli  fomos  outra 

vez  gerados,  dalli  fahimos  outra  vez  nafcidos.  No- 

Heb.^.  17- tai  agora.  Statutum  ejl  hominibus  femelmori'.  Qiiiz 
Deos,  que  morreíTcmos  huma  fó  vez ,  e  que  nafceífe- 
mos  duas  ;  porque  como  o  morrer  bem  dependia  de 
noíFo  alvedrio ,  bailava  huma  ló  morte  ;  mas  como  o 
nafcer  bem  naô  eílava  na  rioíía  maô ,  eraô  neceífarios 
dousnafcimentos ,  para  que  podeílemos  emendar  no 
fegundo  tudo,  o  que  nos  faitaííe  no  primeiro.  Bem 
poderá  Deos  fazer  ,  que  nafcefiem  os  homens  todos 
iguaes  ,  mas  ordenou  íua  providencia  ,  que  houveífe 
no  mundo  eíla  mal  foíFrida  defigualdade ,  para  que 
a  mefma  dor  do  primeiro  nafcimento  nos  excitaíle  d 
melhoria  do  íegundo. 
651     Homens  humildes  p  edefprezadosdopovo,. 

boa 


AHriÉ 


Diícurfo  l^X.        75 

boa  nova  :  fe  aÍturez1,  ou  a  fortuna  foy^'c^^* 

de  nafcer  outra  vez ,  e  taõ  'lonr^^l^""^'"^' 'g^"^"  ^,  „. 
zerdes :  então  emendareis  a  natureza ,  então  vos  ^  in 

gareis  da  fortuna.  ^,f„„f„ni    mie  as  mu- Num  107Í 

6,-2     Que  mavor  vmgança  da  fortuna  ,  que  as  mu 
danças  taõ  notav'eis ,  que  fe  veraó  naquel  e  d.a !  \  1- 
rS  ellèaia  as  àlínas  do  grande,  e  do  pequeno 
b.d-rS  corpos  á  fepultura,  e  tal  vez  a  n,eh na 
Ig  eja :  e  que  fuccederá  pela  mayor  P^t^     "  P^^'f^. 
no  achará  feus  ollos  em  hum  adro  íem  ped.  a    nem  e 
?reiro    e  refufcitará  taó  iUuftre  como  as  eftre  las .  o 
Jra  dè  pe  o  contrario  achará  feu  corpo  embalfnma- 
do  em  emas  de  porfido  aos  hombros  de  leoens ,  ou 
Íefames  de  mármore  com  foberbos  ,  e  magmfi- 
cos  epit^iios,  ereluícitarámaxs  v.l,  que  a  mefma 

''"óí '■   Oh  que  metamorfofe  taÕ  trifte,  mas  que  ver- 
dadeíla  !  Vede  fe  ha  de  dar  Deos  boa  f^t.sfaçaaaos 
Som  ns  da  defigualdade,  com  que  hoje  "«  cem  O  ler 
bem  nafcido  ,  que  he  huma  vaidaae  ,  que  le  acaDa 
com  a  V  da ,  he  verdade ,  que  o  naô  poz  Deos  na  nof- 
famaV-  mas  o  fer  bem  refufcitado,  que  he  aquelh 
tZA   que  ha  de  dnrar  por  toda  a  eternidade    eja 
deixou  Deos  no  alvedrio  de  cada  hum    No  nalu- 
m  mo  fomos  filhos  de  noífos  pays ,  ^^^^^^"^3°J{ 
remos  filhos  de  nolfas  obras.  E  que  ^Jj»  ."?f '^^"^^I 
tadopor  culpa  íua  quem  foy  bem  "^fÇ^f^  ™^. 
recimento  feu  ,  bftima  grande  !  ^«'"i^^^f  ^i''. 
bre haver  nafcido  mal  he  eniendar  =>&«"";' -^^^f; 
citar  mal  fobre  haver  nalcido  bem  he  peyor  ,  que 
Sen"r:l5^an.turcza.Q,erelufcitebe^^^^^^^^^ 
br?  nafcer  de  JeíTé,  grande  glonado  «lho  de^hajn 


Num.  io8. 


74       Vieira  ahhreviado 

os  I  omél'  f     ^  *  "'°"''  ''^  ''"•°  ^^  hum  Rey  í  Se 
os  homens  fe  prezaó  tanto  de  fer  bem  náfcidn,   p^ 

N^nfu^ coírtr  "'■"  'k^  '^^  "-"  ."  Sn^Jos" 

B  -póft^eu    'n^  .      obr,gaçoens,  com  que  nafcerao. 

obrfpaçoens'?  t  f^e^''.""?'  '^^l''"'"  '^"^^^  '"^°  «t^'' 
tar  melhor  Fftl/f'  y  «bngaçaõ  de  refurci- 
ceftes  ""^  "'  obng.içoens  ,  com  que  naf- 

•     654     O  mais  bem  nafcido  homem     oue  hnn„„ 
nem  pode  haver,  foy  Chrifto,  ninguèr;  t^Mor 

^r/?J?Í  /?"'!'""  bem ,  refufcitou  melhor:  G?o. 
T£X^,fZrt'*"''"'°"f'-  CiTifto,  diz  ^^n. 

gratrrè-:?;„^--;^^^ 

055     I^e  Deos  pozera  na  maõ  do  homem  o  nafcer 

I  M  ,,  ,   cn  m  H  r?  ""  Vn^<^\xo  naícimento  tem  a  def- 

i  tem  í  „i      ^"?  '^'S""'^°  nenhuma  defculpa  tem  • 

Ijj^  tem  a  glor.a  de  /ermos  nós  os  que  nos  fizemos  Tfpfi 

,  6S6    Q,,e  gloria  fera  naquelle  dia  para  hum  ho- 


mem 


Dijcurfo  LXI.       75 

mem  poder  tomar  para  íi  em  melhor  íentido  o  elo- 
gio do  grande  Bautiíla  :  Internatos  miilierummn''^^^' 
furrexit  maior :  Entre  os  nafcidos  das  mulheres  ne- 
nhum refufcitou  mayor.  Ser  o  mayor  dos  naícidos, 
€m  quanto  naícido  ,  he  pequeno  louvor,  e  de  pouca 
dura:  fer  o  mayor  dos  nalcidos,  em  quanto  refuíciía- 
do  ,  illo  he  verdadeiramente  o  fer  msyor.  Na  nolia 
mao  eftá  ,  fe  o  quizermos  ler.  Neíla  vida  o  mais  ven- 
turofo  pode  naícer  filho  do  Rey  :  na  outra  vida  to- 
dos,os  que  quizerem,  pedem  nalcer  filhos  do  mefmo 
Deos :   Dedit  eis  potejiatem  filios  Dei  fieri,  E  que joan.i. iz, 
naófejaõ  iílo  confideraçoens  ,  fenao  verdades,  eíé 
cathoUca  ?  Bemdito  íeja  aquelle  Senhor ,  que  he  noí- 
fa  reíurreiçaó  ,  e  noíla  vida  :  Ego  [um  rejurreãíOy 
^  vita. 

DISCURSO     LXII. 

Tirado  cio  panegyrico  ,  que  fez  o  AuStor  nafegunãa 

novena  de  S.  Francifco  Xavier  intitulada  Nada  , 

que  for  ao  todas  as  riquezas  ,  que  elle  dejejou , 

e  pojfuio  ,  e  o  mefmo  querperfuadirnos. 

NADA. 

657  T  Sto,que  a  baixo  do  Ceo  chamamos  mundo,  Patt.  s. 
X  naô  he  outra  coufa ,  que  huma  maquina  na-  ^  •  '^  5* 
tural  maravilhofamente  compoílade  mar,  e  terra, 
abraçados,  e  unidos  entre  fi.  Donde  fis  íegue  ,  que 
quem  debaixo  de  hum  pé  tiver  a  terra  ,  e  debaixo  do 
outro  o  mar ,  terá  lujeito  o  mundo  todo  ,  e  fera  fe- 
nhor  delle.  Tal  he  a  dobrada  fuperioridade ,  que  fi- 
cniíica  aquelle  dobra do/zz/^^r  do  noílb  thema  :  St- 

nijtriim 


Luc, 


P/.  8. 


7á 


Vieira  ahht 


nijlrumfuperterram^  dextnmjuper  maré.  E  hou- 
ve ja  mais  nomefmo  mundo  quem  foíle  fenhor  de 
todoelle?  Muit-os  o  preíumiraô  como  Nabucodo- 
nofor ,  e  Alíuero  :  muitos  o  defejaraócomo  Aíexan- 
dre  Magno  ,  e  [ulio  Cefar  :  ajgum  houve  ,  que  o  poz 
.  em  praxe  como  Tibério  :  Ut.  dtjcriberetur  tiniver- 
jusorbis  ,  ehum  fó  ,  que  realmente  tiveíle  eíta  gran- 
de tort  una,  que  foy  o  mefmo  que  a  perdeo,  Adão.   ,• 
à^^     Delcre vendo  David  naõ  a  grandeza  da  per- 
da ,  fenaóa  do  fenhorio,  diíle  :  Cojifthuijli  ewn  fu^ 
per  opera  mammm  tuariim :  Q^ie  confrituira  Deòs  a 
AdaÕ  fobre  todas  as  obras  de  íuas  maõs ,  iílo  he  íb- 
bretudo  o  que  tinha  creado  neíle  mundo  inferior, 
íendo  o  mefmo  AdaÕ  a  raayor ,  e  ultima  obra  fua. 
b  baitando,  como  nota  Santo  Agoílinho.  eftas  pala- 
vras para  declaração  do  domínio  univerfal  do  pri- 
meiro homem ,  accrefcenta  o  meímo  Profeta  :  Omnia 
Juojecijlí  fiibpedihus  ejits\   (^je  todas  as  mefmas 
creaturas  lhe  tinha  Deos  pofto  debaixo  dos  pés  com 
expreíTao  de  humas  ferem  as  da  terra  ,  outras  as  do 
mar ,  como  fe  flillara  no  noíFo  cafo :  as  da  terra:  Oves 
&  bovesinfuper  ,  &  pecara  campi :  as  do  mar :  Fo- 
lueres  coeh  ,,  f  pifces  ?naris ,  quiperambulantfevii- 
tasmans,  entrando/neííle  fegundo  coro  as  aves  co- 
mo creadas  também  com  os  peixes  no  elemento  da 


a,^ua. 


f  59  pe  íorte  ,  que  efte  íenhorio  do  mundo  em 
Adão  fe  declarou  por  dous  termos ,  hum  de  fuperio- 
ridaae  nelle,  como  cabeça  ,  pelo  adverbio /íz/^ít  : 
Lonjittutjti  eumfuper  opera  ffianuum  tuarnm ,  e  ou- 
tro de  fujcíçaó  nas  coufas  poílas  a  feuspés  pelo  ad- 
vevoíofub:  Omnia  fubjectfíi fubpedibus  f/W.  E  por- 
que, ou  com  que  niyílerio.?  Porque  aílim  como  a 

poíle 


77 


cur  ^ 

pi.decorpor.i,  e  ci^/il  das  coulas  fe  toma  com  as 
^  aós,  pondo  as  .mÓs  nellas,  affim  a  efpiruual,  e  t.o- 
rnl  fc  loma  com  os  pés,  pizando-as,  e  metendo  as  de- 

^'óóo^^ISndafe  a  realidade  defts  ceremonianaquel- 
)a  promelia  de  Deos ,  tantas  vezes  vepetida  aos  huios 
He  Ifrael  para  quando  entraílem  na  terra  de  píom.f- 

erit  ■  Tudo,  o  que  pizarem  os  volios  pes,  lera  vollo.  j„,„, ,. ,. 
A  terra  de  proimliaó  fempre  fignifica  n.s  a>vmas  le- 
tras a  bemaventurança  ou  da  outra  vala ,  que  con- 
filfe  em  ver  a  Deos ,  ou  defta ,  que  cdniifte  em  o  ler- 
vir,  eaoradar:  e  aflim como  chegou  a;i'f '^.''fe^-.Ojf  "• 
nes   que  fe  eUe  no  Ceo  pizaffe  o  iugar  de  Lúcifer ,  a  h-,. .. 
cad'eil-a  de  Lúcifer  feria  fua  ;  affim  he  certo ,  que  tu- 
do, o  que  pizamos  nefte  mundo,he  noifo,  e  fo  do  qu. 
pizanios  ,lbmos  verdadeiros  fenhores    lucoo  mais 
bor  grande ,  alto ,  e  fubUme  que  feja,  fe  o  nao  mete- 
mos debaixo  dos  pés  por  defprezo  ,  mas  o  trazemos 
ou  na  cabeça  por  eftimaçaõ ,  ou  no  coração  por  amor, 
ou  nas  paimas  por  oftentaçaõ ,  ou  no  defejo  (  os  que 
o  naó  tem )  por  ambição ,  e  cubica ,  tao  fora  eftaraos 
de  fer  fenhores  de  qualquer  deitas  coufas ,  que  antes 
ellas  nos  dominaõ,  fenhoreao,  e  poíTuem  a  nos,  e 
nós  fomos  feus  efcravos.  De  qualquer  outro  modo, 
que  le  tratem  ascoufas  defte  mundo  ,  ou  jaopezo, 
ou  hõ  embaraço  ,  ou  faô  cuidado  ,  ou  fao  dor ,  ou 
faó  íujeiçaõ  ,  õu  faô  cativeiro  ;  fó  pizadas  ,  e  meti- 
das debaixo  dos  pés  faó  domínio.         ,     .  ,    .      , 

66i  Supoofto  pois ,  que  meter  tudo  debaixo  dos 
pés  he  o  verdadeiro  modo  de  dominar,  epoíluir  tu- 
do; effe  mefmo  dominar  ,  e  poífuir,  bem  apertado, 
que  vem  a  fer,  ou  em  que  confilte?  Coufa  mai-avi- 


2.  Cor.  6. 

IO. 


7  S       Vieira  abbreviado 

™Í  í^°""í^  ^'"  "'''°  f^'' '  "'^'^  querer  nada  de 
quanto  íepofrue    ou  pôde  poíiuir.  Texto  expreiio 

JS:>da  temos ,  e  tudo  polTuimos.  Pois  le  o  ,fada  he  o 
contrario  do  tudo,  e  o  naõ  ter  he  o  contrario  do  pof- 
fmr  como  podem  polFuir  tudo  os  que  naó  tem  na- 
dâ     Íj.JoaoChryloilomo  comentando  o  mefmo  tex- 

tf  a,  mm  e/i  ?  v  os  dizeis  como  pôde  fei- ifío  ?  Eu  pe- 
lo cmurano  digo ,  como  pode  naõ  fer  ?  Elle  o  prova 
eu)  6.  lauioantes  das  mefmas  palavras:  eu  o  nro- 
jare.  em  S,  Franciíco  Xavier ,  que  o  confirmou  Sm 

elegantes  argumentos  :  eu  com  hum  fó  argumento, 
eícm  elegância.  Argumento  aaim.  Porque  tem  Xa- 
vier o  mar  ,  e  a  terra  debaixo  dos  pés  ?  Porque  ter 
debaoco  dos  pés  he  defprezar ,  e  ter^^ebaixo  3ospés 
he  dominar:  Ioga  porque  Xavier  correndo  tantas 
terras     e  navegando  tantos  mares  ,  nenhuma  coufa 

ZL    'T '  "'-  t  '"''  '  P^»-  "f«  °  "^d«  d,  terra 
toe  deo  o  domínio  de  toda  a  terra :  Pedemfup^r  ter- 

dZf^  ''°  mar  odominio  de  todo  ornar:  Pí- 

dím  luper  maré. 

fel..,t.  6á2  Agora  para  acabar  fallemos  hum  pouco  com 
nolco  Navegando  ao  meímo  Oriente  os  Portueue- 
zes,  fizeraofe  fenhores  do  mar,  e  da  terra  :  .e  como 
utaraat^efte  dominia  naquelles  felices  principies 
taoaWoluto?  Com  grande  diferença.  Otextonaõ 

1?' "3  r'^  "A"-*"  ''".''''  ''"™  P*^  "°  '""  '  e  ootro  na 
teira,  fenaohum  pé  fobre  a  terra  :  Sinifirwn  fuper 
ferram ,  e  outro  fobre  o  mar :  Dextrum  fuper  maré. 
M:'em  tem  os  pés  fobre  o  ma  r,  e  fobre  a  cerra,  piza  o 
mar,  epiza  aterra,  e  fó  quem  os  piza,,  os  fenhorea 


verda- 


■  ^^*  ,/cx 


Difcurfo  LXÍÍ.     79 

verdadeirameiuc :  Omms  locus ,  quem  calcavertt  pes 
vcíler ,  ve/ter  erit.  E  ifto  he  o  que  tez  Xavier 

66^'  Porém  os  que  navegarão ,  e  conqu.ftnrao  o 
O-iente  com  outro  efpirito ,  naó  meterão  o  m.ir  e  a 
"a  dcba>xo  dos  pés ';  mas  meterão  os  pes  "o  mar    e 

na  terra  para  adq,,irir  »  <5"/ ^/^^^l^"  ^f 'V^\°"t' 
a  terra ,  e  o  que  debaixo  ue  fi  efcond.a  o  m"- ^^ -^/ 
fov  lá  evar  a  beneaõ  de  Deos,  elles  forao  la  bulcar 
Í°  eç  õ  de  Hacha^r.  E  que  d,..  elFa  benção  :  Im^n^  ^^„, 
tionm  maris  quafi  lac  \ugent ,  ér  tbelaurs  «JM«;  „. 
ditos  arenarum.   As  tormentas  do  cabo  de  Boa  hl 
perança  ,  e  os  tufoens  dos  mares  da  China  parecer- 
Ihehaô  mar  leite :  inundaúonemmarts  ^J^fJ^feí 
eent  ■  oorque  vaô  bulcar  os  thefouros ,  que  eltao  el- 
f  ond'idos  n1,s  áreas :  Et  thefauros  ah fcondnos  arena- 
rum As  perdas  bufcallashaô  deb.ixo  do  mar  de  mer- 
auto  na  coita  da  pefcaria  :  o  âmbar  elperarao,  que 
as  tempeftades ,  ou  as  baleas  o  lancem  as  prayas  :  os 
diamantes  cavalloshao  debaixo  d.  terra  de  Colocon- 
dâ  :  os  ruDÍs  delenterralloshao  na  de  Pegu :  as  fahras 
hillashaô  bufcar  mais  longe  na  dos  Perfas  ,  e JV.edos. 
E  porque  fe  meterão  debaixo  da  terra ,  e  debaixo  do 
mar ,  e  naÕ  a  terra ,  e  o  mar  debaixo  dos  pes ;  por  .lia 
osnaó  dominarão  verdadeiramente. 

664  Demócrito,  por  teftimunho  de  Séneca  ,  o 
mais  fubtil  de  todos  os  Filofofos ,  teve  para  fi  ,  que 
todas  edas,  que  chamamos  eftrcllas,fa6  outros  tantos 
mundos  mayores  que  efte,  que  habitamos;  e  pofto 
que  naÔ  fe  enganou  na  grandeza  ,  em  ferem  outros 
mundos  dilfe  hum  erro,  em  que  outros  o fegmrao. 
Ouvindo  ifto  Alexandre  Magno,  faltaraolheas  lagu- 
mas  pelos  olhos ,  e  diffe  chorando :  He  poffivel ,  que 
ha  tantos  mundos ,  e  que  eu  ainda  naô  acabei  de  con- 


í.Cor.  8. 
5. 


80 


Vieira  ahhreviado 


quiftarhum!  AÍIimdiíTe  aquelle  monílro  de  fober- 

cioi    poiqiienao  íabui  em  que  confifte  o  Jom.nio  do 
jnundo.  U  dom.nio  do  mundo  n.õ  confiftc  em  o  pof- 
íuir,  conlifte  em  o  pizar,  EíTa  he  a  razaõ  aitiíji  iv 
porque  Deos  fendo  tao  liberal  deo  todo  o  mundo  ^ó 
pn.neno  aomem  ,  e  creando  tai)tos  homens  ,  creou 
hum  ío  mundo.  Porque  para  end.  homem  po  r"i? 
um  mundo   en,  necelíkrio  que  foíTem  tantos  mun- 
dos, quantos  íao  os  homens;  mas  para  todos  os  ho- 
>.  uís,  e  eada  hum  homem  pizar  todo  o  mundo  baf- 
la  numfo  mundo.  Defta  lorte  o  dominou  Xavier 
pizanao-o,  e  nap  querendo  delienada:  e  do  ireímo' 
niouo  o  dominarão  todos,  os  que  o  fouberaô  pizar! 

6Ô5     Oh  fe os cubiçofos  de  riquezas  fouberaô  en- 
tender, e  penetrar  bem  efte  ponto !  Ouvi  huma  no- 
tável ponderação  de  S.  Paulo ,  n.6  fei  le  bem  enten- 
aiaa:  òcttts grattam  Domini  noflri  Jelh  Cbrifit 
quontam  propter  vos  egeiwsfaãus  efl ,  cum  elht  di- 
■ves,  ut  tlhus  tnopia  vos  divites  efjctis :  Berrrfabeis 
a  grande  mercê  ,  e  graça  de  Deos;  com  que  elle  por 
amor  de  nos  fendo  rico  fe  fez  pobre  paVa  nos  enri- 
quecer com  a  fua  pobreza.  Suppoem  o  Apoftolo, 
qut  todos  fabemos  lílo;  mas  he  certo  ,  que  muitos  ô 
mo  fabem ,  antes  cuidaõ  ,  que  ha  coufa  ,  que  Ic  naõ 
pode  faber.  Sediílera  ,  que  Deos  lendo  rico  fe  fez 
pobre  para  nos  enriquecer  com  a  fua  riqueza,  bem  fe 
entendia ;  mas  para  nos  enriquecer  com  a  fu a  pobre- 
za    Mm    E  he  hftima ,  que  naô  entendaó  efta  Fiio- 
Jcuaos  Chnftaos,  enfendendo-a  os  çentios.  Quem 
ao  os  ricos  nefte  mundo  ?  Os  que  tem  muito  .^Naf) 
1  orquc  qu,em  tem  muito,  defeja  mais,  equem  dcfeja 
mais,  faltalhe  o  que  defcjp  ,  c  effa  ftlta  ofaz  pobre : 

Inven- 


Difcuffo  LXII       8i 

Iriventtts  eft  qui  aliquid  micupifceret  poft  omnia: 
Houve  nefte  mundo  hum  homem ,  diz  Séneca  ,  que 
depois  de  ter  tudo,  ainda  defejou  mais.  Efte  decla- 
rou elle  ,  que  foy  Alexandre  \  mas  com  encarecimen- 
to falfo,  porque  Alexandre  nunca  foy  fenhor  de  tu- 
do. O  fenhor  de  tudo  foy  fó  Adaó.  Mas  a  eíTe  tcim- 
bem  o  perdeo  a  fua  pobreza ;  porque  tendo  tudo> 
ainda  quiz  mais  do  que  tinha.  De  maneira ,  que  naó 
herico  quem  tem  muito,  ainda  que  fejatudo^  P0Í3 
quem  he  o  verdadeiro  rico  ?  Aquelle  que  naó  quer 
nada  ,  porque  nenhuma  coufa  lhe  falta.  Eefta  he  a 
verdadeira  riqueza,  com  que  Ghriílo  nos  enriqueceo 
com  a  fua  pobreza ,  enfiaandonos  a  naô  querer  nada, 
€omo  elle  naõ  quiz. 

666  Ainda  naõ  eftá  dito ;  porque  aqui  fe  devem 
notar  duas  couías  muito  particulares.  A  primeira 
dizer  S.  Paulo ,  que  o  Filho  de  Deos  nos  enriqueceo 
com  a  fua  pobreza,  e  nao  com  a  fua  omnipotência  J 
Vtiílius  inópia  vos  divites  ejjetis,  E  porque.?  Por* 
que  com  a  fua  omnipotência  pôde  Deos  dar^muitas 
riquezas  aos  homens;  mas  fazellos  ricos  naõ  pode; 
Deo  muitas  riquezas  aos  AíTyrios,  aos  Perfas,  aos 
Gregos ,  aos  Romanos ;  mas  todos  elles  com  eftas  ri- 
quezas fempre  ficavaó  pobres;  porque  lhe  faltava  o 
mais  ,  que  todos  appeteciaó  ,  e  por  iíTo  fe  deftruiao 
com  guerras.  Que  remédio  logo  para  Deos  poder  fa- 
zer os  homens  ricos  ?  O  remédio  foy  o  que  elle  to- 
mou fazendofe  homem  ,  e  pobre  ,  e  enfinandonos 
com  a  fua  pobreza  a  naó  querer  nada.  Torno  a  di- 
zer a  naô  querer  nada  :  e  efta  he  a  fegunda  enejgia 
das  palavras  de  S.  Paulo  ,  em  que  me  admiro  naõ  re- 
paraífem  os  Interpretes.  Se  diz  ,  que  Chrifto  fe  fez 
pobre  para  nos  enriquecer  com  a  fua  pobreza  3  por^ 
^  -Tom.  II.  F  que 


III 


fart.  I. 
col,  6)^ 


8  2      Vieira  abbreviado 

que  nao  íignificou  eíTa  pobreza  com  a  palavra  pau^ 
pertas,  fenaô  com  a  palavra  inópia^  ForquQ pmíper- 
iw  Sencc,  fas,  a  qual  fe  define  p^rz;/  poj/effw ,  fígnifica  a  po- 
^p-  8.  jn  ]jYQza  ,  que  poíTue  pouco  ;  porém  a  palavra  inópia 
"*' /       por  aquella  negação  />/,que  nega  tudo,  fignifica  a  po- 
breza, que  naó  quer  nada ,  e  fó  2íinopia ,  e  a  pobre- 
za ,  que  naó  quer  nada ,  he  a  que  faz  o  homem  verda- 
deiramente rico  :  Ut  ejus  inópia  vos  divites  effetis. 
Aílim  o  entenderão ,  como  dizia ,  até  os  mefmos  gen- 
tios ,  por  onde  Atalo  famofo  Filofofo  em  frafe  tam- 
Apud.se-  bem  gentilica  diíTe:  Nihil  defideres  oportet  ^ftvis 
nec.  ép.    Jovem  provocare  nihil  dejiderantem :  Se  queres  fer 
taórico,  que  defaíies  ao  mefmo  Júpiter,  naó  deíejes 
nada,  aífim  como  elle  nada  defeja.  A  porta  certa  da 
riqueza  naó  he  accrefcentar  a  fazenda ,  fenaõ  dimi- 
nuir a  cubica. 

GGj  Que  ricos  feriaô  os  homens ,  e  logo ,  e  nefte 
mefmo  inftante  fe  foubeíTem  conhecer ,  e  eílimar  os 
thefouros  do  naó  querer  !  Comparemos  pois  com 
os  olhos  bem  abertos  hlim  nada  com  outro  nada:  o 
nada  do  que  le  poíTue  com  ò  nada  do  que  fe  nao  quer, 
cacharemos  ,  que  o  nada  do  que  fe  poífue  (ainda  fem 
encargo,  ou  encargos  da  coníciencia)  he huma  car- 
ga pezadiáma ,  chea  de  cuidados ,  de  defgoílos,  de 
temores,  de  dependências  ,  de  fujeiçoens,  de  cati- 
veiros :  huma  matéria  tanto  mayor,  quanto  ellas  fo- 
rem mayores ,  fempre  aparelhada ,  e  expofta  aos  gol- 
pes ,  e  vaivéns  do  tempo  ,  e  da  fortuna  ,  e  fem  def- 
canfo,  íem  quietação,  fem  liberdade:  huma  riqueza 
rica  de  miferias,  e  a  mais  neceíTitada ,  e  extrema  po- 
breza. Pelo  contrario  o  nada  do  naó  querer  he  hum 
thefouro  fó  efcondido  aos  cegos,  no  qual  fe  encer- 
ra a  iíençaõ  de  todos  os  males,  perigos,  epezares 
oi:  u  .  defta 


Dijcurfo  LXII       8  3 

deíla  vida  ,  e  defcanlb  íem  trabalho  ,  a  alegria  fein 
triíteza  ,  a  liberdade  íem  fujeiçaó  ,  e  a  poíFe  íegura, 
e  inalterável  de  todos  os  bens ,  e  do  mayor  de  todos, 
que  he  do  lenhorio  de  nós  mefmos. 

668     Se  acafo  eíla  riqueza  vos  naõ  parece  rique- 
za ,  porque  os  menores  a  naó  appetecem  ,  nem  os 
iguaes  a  invejaô ,  nem  os  mayores  a  perfeguem .  e  car- 
regaõ  de  penfoens  ,  e  tributos:  fe  vos  naõ  parece  n- 
.queza  ,  porque  naõ  depende  no  campo  do  Sol ,  e  da 
chuva,  que  a  criem  ,  nem  do  muito  Sol ,  que  a  feca, 
nem  da  muita  chuva,  que  a  inunda,  e  afoga,  nem  da 
formiga ,  da  lagarta ,  do  gafanhoto ,  e  das  outras  pra~ 
gas ,  de  que  nenhuma  induítria ,  ou  poder  humano  a 
pode  defender  :  fe  vos  naõ  parece  riqueza  ,  porque 
naó  le  fazem  fobre  eila  pleitos  ,  nem  eílá  fujeita  a 
affedojou  ódio  do  Juiz,  nem  á  verdade,  ou  falíida- 
de  das  teítimunhas,  nem  a  fer  citada ,  e  levada  ajuí- 
zo para  ouvir,  e  fer  ouvida  nos  tribunaes :  fevos 
parece ,  que  naô  he  riqueza  ,  porque  íe  naó  adquire 
com  trabalho,  nem  feconíerva  com  cuidado,  nem  fe 
perde  com  dor  própria  ,  com  que  ás  vezes  roais  doe 
com  agrado,  e  triunfo  dos  inimigos  :  fevos  parece, 
que  naó  he  riqueza ,  porque  por  eila  fe  naó  entrega  a 
cubica  ásondas ,  e  tempeílades  do  mar,  nem  os  exér- 
citos fe  combatem  nas  campanhas  ,  e  fe  derrama  o 
fangue ,  e  perdem  as  vidas  ,  para  fuílentar  a  mefma 
vida  ,  e  o  mefmo  fangue  :  fe  vos  parece ,  que  naó  he 
riqueza,  porque  com  anticipada  crueldade  de  apofr 
fuir  vos  naó  defejaó  a  morte  os  filhos ,  os  parentes ,  e 
quaefquer outros,  que  aefperaô  herdar  :  fe  vos  pare- 
ce ,  que  naó  he  riqueza ,  porque  a  naõ  daó  os  Reys  , 
nem  a  confultaóosMiniílros,  nem  a  folicitaõos  re^ 
querimentos,  e  vós  íois o  requerente,  o Miniftro,  e 

F2  oRey, 


Pàrt.  8. 
Foi.  87. 


ProY.  30. 
«5- 


S  4      Vidra  ahbreviadb 

o  Rey ,  que  fó  comvofco  vos  defpachais :  fe  vos  hao 
parece  riqueza ,  porque  vos  naõ  tira ,  nem  inquieta  o 
fono ,  a  vigilância ,  e  aílucia  do  ladrão ,  a  dil igencia, 
e  negociação  do  emulo ,  e  a  calumnia ,  e  engano  do 
que  a  quer  para  íi.  Finalmente,  fe  todas  eftas  conve- 
niências naõ  baítaó ,  fendo  cada  huma  delias  riquiíR- 
nia  ,  coníiderai ,  que  da  riqueza  donao  querer  nem 
vos  haó  de  pedir  conta  os  homens ,  nem  vós  a  haveis 
de  dar  a  Deos;  antes  o  mefmo  Deos  em  premio  do 
voíTo  naô  querer  vos  ha  de  dar  aquella  única  bem- 
aventurança ,  e  femelhante  á  íua ,  na  qual ,  como  diz 
Santo  Agoftinho,  tereis  tudo  o  quequizerdes,  e  na- 
da do  que  naó  quizerdes :  Ibi  erit  quidquidvoles ,  í^ 
non  erit  quidqiãd  noles. 

66^  Porque  naÕ  fera  alguma  vez  a  noíFa  virtude, 
como  fao  òs  noíTos  vicios  ?  Que  vicio  ha,  que  naõ 
defeje  infaciavelmente  fempremais,  e  mais?  Sala- 
maõ ,  que  tanto  conhecia  o  bem  ,  e  o  mal  do  mundo, 
diz,  que  lançando  os  olhos  por  todo  elle,  achou  qua- 
tro coufas ,  que  nunca  fe  fartaô  ,  e  fempre  eftaó  di- 
zendo Ajfer  ^ajfer :  mais,  mais,  mais  :  Triafuntin- 
faturabilia  ,  é^  quavtum  niínquam  dicit :  Sufficit, 
Que  quatro  coufas  fejaóeftas,  explica  o  mefmo  Sala- 
maõ  poj  metáforas  ,  evem  a  lerfegundo  acommua 
interpretação  dos  Padres,  e  Expoíitores  a  ira ,  alen- 
fualiaadc ,  a  cubica ,  e  a  ambiçaÕ :  a  ira  ,  que  fe  naó 
farta  de  fangue ,  e  de  vinganças :  a  fenlualidade ,  que 
fe  naõ  farta  de  deleites ,  e  prazeres :  a  cubica ,  que  fe 
naó  farta  de  dinheiro ,  e  riquezas :  a  ambição ,  que  íe 
naó  farta  de  honras,  e  dignidades. 

670  Ifto  diífe  defeu  tempo  o  mais  fabio  homem 
de  todos  os  tempos,  e  ainJa  mal,  porque  tanto  fe 
verifica,  e  fe  experimenta  nos noíTos!  Mas  q  que  eu 

mui- 


Bifcurfo  LXIII.     S5 

muito  ndmiio,  e  rcpnro,  he,  que  todos  eíles  infacia- 
veis  fejao  vicios.  Nao  haverá  também  huma  virtude 
infaciavel?  Infaciavel  queria  Chriílo,  que  foíTe  anof- 
ia  virtude,  quando  dilíe  :  Beaíi  qin  elurkint ^  & u^iA^.^,i:i 
Jiúuntjiijlitimn.  Mas  fomos  neíla  paífagem  da  vi- 
da ,  como  os  filhos  de  Ifrael  na  do  deferto  ,  que  nos 
enfaítia  o  manná  ,  e  todo  o  noíTo  appetite ,  e  a  noíla 
fome  he  pelas  groffarias  do  Egypto.  O  manná  era  do 
Ceo  ,  nós  fomos  terra  :  os  viàos  nunca  nos  íartao  , 
a  virtude  logo  nos  enfaília. 

DISCURSO     LXIIL 

Tirado  de  hum  fermao  do  Rofario. 
NECESSIDADE. 

•  ^71  TVT  ^  paía^^io  d'EIRey  Dário  ,  em  quanto  p^h.  10; 

1^  elle  dormia  três  Guardas  mores  da  peíToa^""'-^  ^* 
Real ,  que  lhe  vigiavaô  o  íono  ,  fííofofando,  ao  que 
parece ,  fobre  o  focego,  com  que  deícanfava  aqueile 
grande  Monarcha ,  lem  o  deívelar  o  governo  de  cen- 
to, e  dezoito  Reynos,  de  que  era  fenhor,excitaraó  en- 
tre fi  aquella  famoía  queílaó  ,  que  refere  Esdras  : 
Qiíal  folFe  a  mais  poderofa  coufa  do  mundo.  Defper- 
tou  o  Rey ,  e lendo  a  queítao  ,  que  os  mefmos  autho- 
res  delia  lhe  tinhaó  poíloefcrita  debaixo  dos  travef- 
feiros  ,  prometteo  grandes  prémios  aquém  melhor  a 
refolvede.  Hum  dilfe,  que  a  mais  poderofa  coufa  do 
mundo  he  o  Rey  ;  porque  os  Reys  podem  quarito 
querem,  e  ainda  quequeiraõ  o  que  naó  podem,  nin- 
guém ha  ,  que  lhes  reíiíla  ,  tudo  executaÕ  ,  e  confe- 
guem.  Outro  diíle ,  que  mais  poderofo  he  o  vinho ; 
Tom.  II.  F3  por- 


8  6      Vieira  ahbreviado 

porque  á  força  íliboroía  deíle  licor  fe  rendem  muitas 
cabeças  coroadas,  e  o  podéra  provar  com  a  de  Noé, 
da  qual  fiou  Deos  o  governo  ,  e  reílauraçaó  do  mun- 
do ,  e  naõ  arreando  na  mayor  tempeftade  ,  que  foy  a 
do  diluvio,  o  vinho  o  derrubou.  O  terceiro  finalmen- 
te ,  que  era  Zorobabel,  diíTe  ,  que  mais  poderofa  he  a 
mulher,  e  o  provou  com  hum  notável  exemplo  de 
certa  mulher  chamada  Apemen,  bailando  o  primei- 
ro de  todos,  que  foy  o  de  Heva.  Mas  naõ  contente 
com  efta  refoluçaó,  em  que  maniteílamente  venceo 
as  dos  companheiros ,  accrefcentou ,  e  concluio ,  que 
a  mais  poderofa  coufa  do  mundo  he  a  verdade  :  Fe- 

Esd.34.  Irritas  magna ,  à  fortiorpr^  omnibus. 

Num.  184.  ^7^  Efta  ultima  fentença  approvou  o Rey :  efta 
foy  applaudida  de  todos  com  publicas  acclamaçoens: 

fb.  41.  Et  omnes  populi  clamaverunt ,  ^  dixerunt :  Magna 
ejl  veritas ,  irpr^valet :  E  efta  fegui  eu ,  e  tive  por 
certa  muitos  annos ;  porque  com  efte  grande  concei- 
to da  verdade  na  cabeça  me  nafceraõ,  e  crefceraó 
nella  ascans  em  todas  as  partes  da  Europa.  Porém 
depois  que  paífado  a  efte  mundo  novo  vejo  de  mais 
longe  o  velho ,  tenho  achado  por  experiência  ,  que 
muitas  vezes  mais  poderofa  he  a  mentira  ,  que  a  ver- 
dade. Nao  fe  pode  ifto  dizer  fem  efcandalo  da  ra- 
zão 5  e  horror  da  mefma  natureza ;  mas  naõ  fe  pode 
negar.  E  porque  ?  Porque  a  mentira  he  crida ,  e  acre- 
ditada ,  e  a  verdade  nao  tem  fé ,  nem  credito :  a  men- 
tira efcufa  os  culpados ,  e  a  verdade  nao  pode  defen- 
der os  innocentes  :  a  mentira  he  abfoluta  fobre  fua 
palavra ,  e  a  verdade  condemnada  íem  fer  ouvida  :  a 
mentira  profana  facrilegamente  a  religião ,  e  o  lacer- 
docio  ,  e  a  verdade  nao  lhe  vai  fagrndo  :  em  fim  a 
mentira ,  que  devera  ferpizada,  traz  debaixo  dos  pés 

a  ver- 


Difcurfo  LKIII.     87 

a  verdade  ,  e  a  verdade ,  de  que  fe  diz  ,  que  nada  fo- 
bre  tudo ,  fe  vê  tao  foçobrada  ,  e  afogada  da  vioten- 
cia,  que  nem  reípirar  pôde. 

672  E  poílo  que  os  juizes  íejao  redos ,  ou  o  quei- 
raô  parecer ,  he  tal  o  enredo  dos  teítimunhos  talfos, 
indu/idos,  e  fobornados  ou  com  o  dinheiro  ,  ou 
com  o  ódio ,  ou  com  o  temor ,  ou  com  a  dependen- 
cia ,  ou  com  a  lifonja  ,  ou  com  tudo ,  que  a  remira 
he  a  que  vence,  e  a  falfidade  a  que  triunfa.  Aííim 
que  muitas  vezes  a  mentira  hoje  no  mundo  he  mais 
poderofa,  que  a  verdade  :  aílumpto ,  que  eu  poderá 
provar  com  exquifitos  ,  e  tormidaveis  exemplos,  le 
naÕ  fora  outro  o  meu  intento. 

674    Suppoílo  pois  ,  que  na  noíTa  experiência  Num.  185, 
por  abufo  feja  mais  poderofa  a  mentira ,  que  a  ver- 
dade, e  na  íentença  de  Zorobabel  por  razão  feja 
mais  poderofa  a  verdade,  que  todo  outro  poder  5  fe- 
gueíe  por  ventura  daqui ,  que  a  coufa  mais  poderofa 
do  mundo  ou  bem  ,  ou  mal  governado  feja  qual- 
quer delias  ?  NaÔ.  Porque  ainda  ha  no  mundo  outra 
coufa  mais  poderofa.  E  qual  he  ?  A  neceíTidade :  a  ne- 
ceílidade,  a  pobreza,  a  fome,  a  faltado  neceírano 
para  o  fulknto  da  vida  he  o  mais  forte ,  o  mais  pode- 
rofo  ,  o  mais  abíoluto  império ,  que  dijpoticamente 
domina  fobre  todos  os  que  vivem.  Naó  ha  couía  taó 
difficultoía,  taô  árdua,  taô  repugnante  á  natureza^, 
á  que  a  naó  obrigue ,  a  que  a  na.6  renda ,  a  que  a  naó 
fujeite  ,  naó  por  vontade  ,  mas  por  força  ,  e  violên- 
cia, a  duriífima,  e  inviolável  ley  da  neceíFidade.       ^ 
óys     A  neceífidade  he  a  que  leva   o  foldado  á 
guerra,  e  a  efcalar  as  muralhas,  onde  vendo  cahir 
huns  a  ferro,  e  voar  outros  a  fogo.  avança  com  tudo, 
e  naó  defmaya.  A  neceífidade  he  a  que  engolfa  o  ma- 

F4  rinhei- 


Vieira  ahhreviado 


rinheiro  nas  ondas  do  Oceano:  ellas  com  os  naufrá- 
gios á  vifta ,  e  elle  com  tal  oufadia ,  que  metido  den- 
tro em  quatro  taboas  fe  atreve  a  pelejar  naó  fó  com 
os  ventos ,  e  tempeftades ,  mas  com  todos  os  elemen- 
tos. Aneceílidade  he  a  que  mete,  ou  precipita  o  mi- 
neiro ao  mais  profundo  das  entranhas  da  terra ,  e 
fem  temor ,^que  as  mefmas  montanhas,  que  tem  fo- 
bre  fí  ,  cayaô ,  e  o  fepultem  ,  elle  lhe  vay  cavando  as 
raízes  ,  e  fangrando  as  veyas.  Finalmente  com  mais 
ordinário ,  e  gerai  defprezo  da  vida  ,  e  da  íaude 
quem  faz ,  que  o  lavrador  nao  tema  os  regeíos  do  in- 
verno ,  nem  o  fegador  as  calmas  ardentes  do  eílio  , 
nem  o  paílor  os  dentes  do  lobo ,  e  daurfo ,  e  em  mui- 
tas partes  as  unhas  do  leão  ,  e  do  tigre  ,  lenaõ  a  ne- 
ceíTidade?  Epofto  que  huns  ,  e  oufros  tantas  vezes 
perecem  era  taó  conhecidos  perigos ,  a  melma  necef- 
íidade  com  implicação  manifefta  da  própria  confer- 
vaçaóhe  a  que  para  fuftentar  a  vida  os  obriga  a  per- 
der a  mefma  vida.  Até  o  pobre,  e  atrevido  ladraó  , 
que  defde  o  primeiro  paíTo  ,  com  que  íalteou  os  ca- 
minhos, começou  a  caminhar  para  a  forca  ,  fe  ao  pé 
delia  lhe  perguntaô  quem  o  trouxe  a  taõ  miíeravel 
eílado,  refponde  com  o  laço  na  garganta,  que  a  ne- 
ceíFidade.  E  para  que  ninguém  íe  admire  deíle  gran- 
de poder  da  neceífidade  fobre  todos  ,  a  razaó  he ,  diz 
o  provérbio ,  porque  todos  os  outros  poderes  faõ  fu- 
jeitos  ás  leys ,  e  f ó  a  neceílidade  nàó  tem  ley :  Necef'- 
Jitas  carct  lege. 
Num.  z86.  (yjy  Aífim  como  os  fabios  dos  Perlas,  e  Medos 
deraõ  o  principado  do  poder  á  verdade ,  allim  os  Gre- 
gos ,  e  Latinos ,  mais  fabios  que  elles,  fobre  a  mef- 
ma  controveríia  o  deraó  ao  amor.  Eílcs  diííeraó : 
Omnia  vincit  amor ,  e  naó  houve  naçaõ  taó  dura  ,  e 

har- 


Difcurfe  IXIII.     89 

Mrbara    que  fe  naó  affinaiTe  ,  ou  aliftaffe  debaixo 
S    híent^a.  Mas  fe  no  mefrao  cafo  con-mr  o 
amor ,  e  a  nêceffidade  ,  quem  vos  parece ,  q"e  ha  cie 
vencer?  Claudiano  difle  :  Paupertas  mefavapie-a..i.i. 
'S^Údusque  Cupido^  S^dtoUranda^^^^^^ 
toleramius  amor.  Quer  dizer ,  que  apertado  hum  ho 
mem  por  huma  parte  da  fome  ,  ^Por  outra  do   mor 
com  a  fome  fer  cruel ,  e  o  amor  brando  ,   a  fome  he 
tolerável,  oamornao.  Eu  çreyo    que  qua  do  elte 
Poeta  iftoefcreveo,  devia  de  ter  bem  comiuo,  e 
tamlem  bebido.  Em  dizer  :  Sed  tokrj.ndafam^., 
non  tolerandus  amor ,  naõ  foube  o  que  dilie.  Havia 
e  d  ze    pio  contraAo :  Sed  tolerandus  amor ,  non 
Tolerand!fames;  porque  quando  ^oncorrcn.J^^^ntos 
o  amor  ,  e  a  fome  ,  a  fome  triunfa  do  «'nof '^  ^"/^ 
o  que  tudo  vence.  EfenaÔ,  ponhamos  ambos  em 
campo,  e  veiamos  qualleva  a  viftona. 

óU     Padeciafe  grande  fome  nas  terras  de  Ca-Nu.,.sr, 
naan ,  quando  Jacob  para  remédio  delia  de  onze  fi- 
lhos,  que  tinha,  mandou  os  dez  ao  Egypto.  l/ouxe- 
raÓ  paõ  para  alguns  dias ,  mas  com  obrigação  de  le- 
varem também  o  filho  undécimo ,  que  era  Benjamm, 
quando  folTem  bufcar  mais.  Era  Benjamin  o  m,mo  , 
e  amor  de  Jacob :  e  na5  fe  podem  crer  os  extremos , 
que  elle  fez  para  naó  apartar  de  fi  o  filho ,  que  unica- 
mente amava.  InftavaÓ  os  irmaÕs  ,  e  atodasasin- 
tancias  refpondia  ,  e  fatisfazia  o  pay  :  ate  que  fina- 
mente o  apertarão  com  huma  ,  a  que  nao  teve  olu- 
çaó  ,  nem  reporta ,  e  fe  deo  por  vencido.  L  qual  foy 
efta?  Ada  neceíFidade.  Em  quanto  durou  o  pao, 
efteve  forte  Jacob;  mas  tanto  que  fe  foy  acabando 
aquelle  fiador  da  vida ,  e  lhe  dilTerao  os  «lhos,  que 
elles,  e  feus  netos  morreriaÒ  todos  a  fome,  fe  nao^^^ 


:ll 


-   90      Vieira  abhreviadó 

vaíTem  a  Benjajtiin ,  cedeo  o  amor  á  neceflidade ,  e 
venceo  a  neceffidade  o  amor.  Aflim  o  dilTe  em  pro- 
pnos  termos  o  meimo  Jacob :  Si  fie  neceffe  ejl  ,hci- 
íí  ?«o^z;«//„ :  Já  que  aílim  o  pede  a  neiffidade  fa- 
ze.  o  que  qu.zírdes.  O  que  quizerdes ,  diz ,  e  naõ  o 

n?„t  %fu°'  P"'''"^ *"  """ó  '^"'^e''''  "Paftar  de  mim 
o  imico  hlho,  que  tanto  amo;  mas  a  minlia  vontade, 

cen  dade.  He  ponderação  de  S.  JoaÓ  Chrvfoftomo, 
o  qual  nos  encommenda ,  que  reparemos  nélia  :  Fide 
rninc ,  qumiodo  7teceffitas  patris  amor  em  'oincit  ■  Re- 
parai  nefte  caio,  e  vede  como  a  neceffidade  vence  o 
amordopay. 

(yy9     O  amor  dos  pays  he  o  mais  forte  de  todos ,  e 
nenhum  pay  amou  mais  ,  que  Jacob  ,  nem  houve  fi- 
lho mais  amado    que  Benjamim  ;  porém  á  viíh  da 
neceílidade  ,  e  da  fome  apartefe  o  paj(  do  filho  ,  e  o 
hJho  do  pay,  rompaôfe  os  coraçoens  db.ambos  com 
dor,  chore  aaufencia,  fufpirem  as faudad^s,  renda- 
le  violentado  o  amor,  e  a  neceífidade  triuiíe  :  Si  ftc 
7iece/Je  e/t ,  faate  quod  vultis.  Mas  que  muito  he 
que-o  amor  do  pay  para  dar  de  comer  aos  filhos  ven- 
ceífe  a  necefiidade ,  e  fome  de  Canaan ,  fe  na  fome 
debamana,  e  dejerufalem  venceo  tanto  a  neceíFi- 
clade  o  amor  das  máys ,  que  chegarão  a  comer  feus 
próprios  filhos! 
Num.. 88.     680     Eftes  últimos  exemplos  poucas  vezes  viftos 
lao  os  que  com  mayor  horror  da  natureza  encarecem 
o  poder,  e  violência  da  necefiidade  j  mas  os  que  ca- 
da dia  acontecem  ,  naÓ  faÓ  menos  feyos  ,  menos  trif- 
tes,  nem  menos  para  temer.  O  primeiro  efieito/ou 
con/equencia  da  necefiidade  he  o  deíprezo  da  hon- 
ra ;  o  legundo  a  deílruiçaõ  da  virtude ,  e  ponho  em 

le- 


Difitirfo  LXÍÍÍ.     n 

leeundo  lugar  a  deítruiçaÓ  da  virtude ;  porque  o  mu- 
ro da  virtude  he  a  honra,  e  derrubado  efte  muro,  a 
virtude  ,  que  elle  defendia,  facilmente  re/e'uie. 
Qiiem  fe  naÓ  envergonha  dos  homens,  que  ve  ,  tacii- 
niente  perde  o  refpeito  a  Deos ,  que  nao  ye.  Us  Ro- 
manos para  a  emulação  de  tal  íorte  edihcarao  os 
templos  da  honra ,  e  da  virtude ,  que  pelo  da  virtude 
fe  entrava  ao  da  honra ;  e  o  demónio  para  a  tentação 
primeiro  bate  o  da  honra  para  derrubar  o  da  virtu- 
de. Por  illb  fendo  todo  o  peccado  oílenfa  de  Deos, 
'ime  de  leia  Mageftade  divina  ,  introduzto  o  mel- 


ecri 


mo  demónio  no  mundo,  que  alguns  peccados  nao 
foíTem  infames,  para  que  tirado  o  temor  da  deshonra, 
ficaíle  facilitado  o  precipício  da  culpa. 

68 1  Aberta  pois  a  primeira  brecha  no  muro 
da  honra,  a  penas  fe  acha  virtude  taó  confiante ,  que 
fitiada  da  neceflldade  ,  e  apertada  da  fome  pela  trit- 
te  condição  fomente  de  ter  com  que  íuílentar  a  vida, 
naó  renda  à  confciencia  ,  e  a  alma  a  taÓ  infame  par- 
tido. Efta  he  a  razaô  conhecida  até  dos  gentios, 
porque  Virgílio  quando  defcreveo  o  pórtico,  e  en- 
trada do  inferno,adornado  feamente  daquelles  monl- 

tros  horrendos,  collocou  também  entre  eiles  a  po- 
breza ,  e  a  fome :  Malefuada  fames ,  &  turpts  egef-rsxg.6, 
tas.  A'  fome  chamou  makfuada,  e  á  pobreza  /ír/r-^"^'^- 
pis ,  porque  nao  ha  vicio  ,  nem  maldade  ,  que  a  fo- 
me naó  perfuada  ,  nem  torpeza  ,  ou  infâmia ,  que  a 
neceíTidade  ,  e  pobreza  naõ  facilite. 

682  Vamos  áEfcriturafagrada,  em  que  no  velho,  Num.  18^, 
e  novo  teftamento  defta  mefma  fome  ,  e  defta  mef- 
ma  pobreza  temos  dous  admiráveis  reparos  ,  e  am- 
bos em  dous  defcendentes  da  nolFa  Ruth ,  David ,  e 
o  filho  de  David ,  Chriílo.  Jejuou  Chnílo  no  defer- 

to  qua* 


^*"^ 


'■tfV.Vil.-''."Vfc-7 


5^2       Vieira  ahhreviado 

to  quarenta  dias  ,  e  em  todo  efte  tempo  nao  o  t^n- 
tou  o  demónio.  No  fim  do  jejum  teve  o  Senhor  fo- 
u.s\..,umQ'  Pojlea  efurttt ,  q  no  meímo  ponro  diz  o  Euan- 
geliíta,  que  odemonio  Te  chegou  a  elle,  e  o  tentou: 
ib.  3.       £/  ^rf^^^;/j  tentator.  Pois  fe  o  tentador ,  que  naÔ  íó 
era  demónio ,  fenno  o  mayor  de  todos  os  demónios  , 
em  quarenta  dias  fe  naó  atreveo  a  chegar  a  Chriílo  , 
^  antes  o  temia  ,  e  fugia  delle ,  e  retirado  eílava  obfer- 

vando  fomente  a  prodigiofa  abílinencia  daquelle  ho- 
niem  ;  como  agora  ,  elogo  no  meímo  ponto,  em  que 
reconlieceo  que  tinha  fome  ,  fe  atreveo  a  o  acome- 
ter  ,  e  tentar?  Porque  he  tao  naturai  efFeito  da  fome 
o  enfraquecer  a  virtude ,  que  até  hum  íanto  taô  for- 
te ,  tao  confiante  ,  e  taÔ  milngrofo ,  que  pode  paíFar 
lem  comer  quarenta  dias ,  entendeo  o  demónio ,  que 
íípertado  da  fome  nao  poderia  refiftir  d  tentação. 

683     S.  Bafil  10  :  Semiens  dtaholus ,  quia  ubi  fa- 
mes,  tbt  tmoecilhtas,  aggreditur  ad  tentandum.  Fez 
o  demónio,  dizS.  Bafiiio,  eífedifcurfo:  Onde  ha  fo- 
me,  ha  fraqueza;  pois  agora  he  o  tempo  de  tentar  ef- 
te  homem ,  pofto  que  taÕ  miíagrofo ,  porque  fe  a  fo- 
me o  tem  meyo  rendido,  a  tentação  o  acabará  de  ven- 
cer.  bile  bem  deve  de  conhecer ,  que  fou  eu  o  demó- 
nio ;  mas  hum  homem  com  fome,  e  fem  remédio,  ain- 
da que  o  comer  ,  que  íe  lhe  offerece  ,  feia  dado  pelo 
demónio  ,  ha  o  de  aceitar. 
Num.  190.     684     AOim  animado  o  tentador ,  fez  defcuberta- 
mente  o  tiro ,  e  o  que  diífe  a  Chriílo,  foy  :  Si  Filius 
Det  es  ,  dic  ut  iaptdes  ijli panes  Jicmt,  Com  muita 
razão  argue  aqui  S.  Pedro  Chrvíòlogo  ao  demónio 
de  que  quiz  tentar,  e  naÓ  foube:  Cupis  tentarejed 
nejcis.  A  primeira  coufa  ,  que  o  demónio  diíle ,  fov 
a  primeira  ,  que  havia  de  callar.  Vem  cá,  demónio 

igno- 


Match.4. 3. 


Chryfol. 
ferm.  de 
ccnt.  1 1. 


Dlícurfo  LXIII.     9^ 

ignorante,  queres  render,  e  derrubar  a  efte  mefmo 
hmnem ,  a  quem  tentas ,  e  trazeslhe  á  memoria  o  fer 
So  dè  Deos  :  S:  Pilius  Dei  es  ?  Naó  labes ,  que  o 
„  avor  brio ,  e  o  mayor  empenho  de  hum  homem  de 
"  to  nafcimento  para  naô  commetter  .nd.gn.dades , 
nem  vi  e^as ,  heíembraríe  da  nobreza  de  léus  pays. 
e  naô  querer  pôr  mancha  na  fua  geração  ?  Affim  he, 
diz  o  demónio ,  mas  ilTo  íe  entende ,  quando  o  filho 
de  bons  pays  íem  que  comer;  P»),!'"  q»^'!"^^^ 
com  fome,  e  fe  vê  apertado  da  neceflidade ,  nem  az 
cafo  de  pays ,  nem  fe  lembra  de  geraçoens   nem  olha 
para  as  manchas  da  honra ,  nem  para  o  credito  ,  e  re 
Dutaçaó  da  pelToa ,  a  tudo  fecha  os  olhos ,  com  tanto 
5ue  tinha  com  quê  fuftentar  a  boca.  Affim  o  cuidou 
o  demónio  de  Chrifto,  e  fenelle  fe  enganou,  naofe 
enganou  em  Efaú ,  nem  em  Jonathas,  nem  no  Prodi- 
To^  e  infinitos  outros.  A  regra  geral  he-Uhfames 
ibimbecillhas :  e  aífim  como  á  fome  fe  fegue  a  fra- 
queza ,  allim  á  fome  de  muitos  dias  muitas  fraquezas. 
^  68?     O  outro  defcendente  ,  e  mais  chegado  de  Num. 
Ruth  foy  David.  Eque  nos  dirá  de  fi  aquelle  valen- 
te de  Deos ,  que  com  as  maôs  defarmadas  efpedaça- 
va  leoens  ,  e  com  huma  pedra  derrubava  gigantes  í 
Diz  o  que  ninguém  podéra  imaginar  ;  porque  diz 
affim:  Infirmàtaeft  in  paupertate  vtrtus  mea,  ir  pi.\m 
offa  mea  conturbatajunt :  Na  minha  pobreza  entra- .... 
queceole  a  minha  virtude ,  e  chegou  a  fraaueza  a  tan- 
to ,  que  até  os  mefmos  oíTos  me  derrocou/  Quem  po-      . 
dera  imaginar  de  David  duas  taes  coufas  ,  pobreza  , 
e  fraqueza  ?  Nem  a  pobreza  diz  bem  com  hum  Key, 
nem  a  fraqueza  com  hum  homem  taõ  valente.  Mas 
em  tudo  fallou  David  como  quem  bem  fe  conhecia 
como  homem ,  e  muito  melhor  ainda  como  Rey.  bo 


x^Vf 


50. 


DfmJS^^Ê^'. 


•-á^a-J>.3títeí<-. 


^4     Vieira  ahhreviado 

eítranhará  o  nome  de  pobreza  nos  Reys  quem  naÔ 
labe,  queos  Reys  faÓ  mais  pobres,  que  os  vaílaljos. 
rsao  he  mais  pobre  quem  tem  menos,  íenaõ  quem 
Jieceííita  de  mais.  E  ninguém  tem  mais  neceííidade , 
liem  mayores  neceífidades,  que  os  Reys  :  neceílida- 
ae  de  fabricar  armadas ,  neceííidade  de  fornecer  exér- 
citos   neceííidade  de  fortificar  praças,  e  preíidiar 
tortaiczas ,  neceffidade  de  faiarear  Miniílros  nos  Rev- 
nos  próprios  ,  neceífidade  de  manter,  eauthorizar 
limbaixadores  nos  eítranhos ,  neceífidade  de  fuften- 
tar  com  decência ,  apparato ,  e  magnificência  Real  a 
própria  Mageflade,  e  mil  neceíTidídes  outras  pubJi- 
<cas ,  ^  e  occuitas ,  das  quaes  pedia  o  mefmo  David  a 
^a4.x7.Deosolivraííe:  De  nece[fitatibusmeis..erue  nw  e 
cercada,  antes^opprimida  de  tantas  ,  etaõforçoíls 
neceffidades  a  falfa  potencia  ,  e  verdadeira  pobreza 
dos  Keys,, vede  a  quantas  quebras  de  confciencia    e 
aquantas  fraquezas  de  virtude  eílará  expoíla  •  Infir- 
mata  eft  m  paupertate  virttis  mea  ?  Fraqueza  nos 
mefmos  tributos ,  e  fubfidios  necefiarios ,  tolerando 
que  carreguem  fobre  os  pequenos,  emiíeraveis,  eíi^ 
quem  izentos  os  grandes  :    fraqueza  nas  doaçoens 
moííiceofas  ,  e  indevidas,  naÕ  fe  pagando  no  mermo 
tempo  o  que  fe  deve  aos  Jegitimosacredores-  fra- 
.:,     queza  nas  chamadas  graças  feitas  prodigamente  aos 
que  a  lograo  de  perto ,  efquecidos  os  que  fervem ,  e 
trabalhão  ao  longe :  fraqueza  na  obfervancia ,  e  dií- 
íimulaçao  das  leys  com  os  poderofos  :  fraqueza  na 
jgua.dadedajuftiça:  fraqueza  no  verdadeiro,  edeA 
iiiitereífado  exame  das  caufas  :  fraqueza  na  attençaó 
ao  luxo,  e  regalo,  para  que  tudo  fobeja:  fraqueza  no 
cJeícuido  da  confervaçaó  do  que  íe  perde  ,  para  que 
tudo  fâJta ,  e  tantas  outr^is  fraquezas  de  virtude,  que 

ainda 


Difcurjo  LXlll      9  5 

ainda  nos  Reys ,  que  parecem  timoratos ,  mais  fe  po- 
dt»  chorar  ,  oue  dizer. 

686  Ifto  confeíFava  David  de  fi  no  tempo ,  em  que  Num. .,.. 
eraRev.  Mas  antes  de  cingir  a  coroa,  e  depois  que 
leu  próprio  ftUio  lha  tirou  da  cabeça  ,  em  que  a  lua 
pobreza  foy  mais  manifefta  ,  também  nao  faltajao 
fraquezas  á  fua  virtude.  No  tempo ,  em  que  íervia  a  .  Reg.  zy. 
Eláey  Achis  faltando  á  fé  da  hofpitahdadc ,  rouba-  «•    <^^- 
va  os  vaflallos  do  mefmo  Rey ,  e  para  que  fe  nao  fou-  ; 

belTe,  matava  a  todos,  o  que  naô  podia  fazer  hcita-  • 

mente ,  porque  a  fua  authoridade  ainda  era  privada. 

No  tempo  ,  em  que  andava  eícondido  de  Saul ,  por-  r  Reg.zs. 

que  Nabal  Carmelo  lavrador  grolfo  o  nao  quiz  fo^-  "• 

correr,  deliberou,  e  jurou,  que  a  ele,  e  a  todos  os 

de  íua  cafa  havia  de  tirar  a  vida  ,  e  por  o  fogo  a  quan. 

to  poliu  ia.  ^      .      j     Aurí    -'      «^..     « 

687     No  tempo,  em  que  fugia  de  Abfalao  y  por^.Reg.  u\ 
hum  prefente,comque  Siba  criado  do  Principe  Isbo-7. 
feth  Ihefahio  ao  caminho,  fem  mais  mtormaçao , ^  j^^^^^. 
que  a  fua  ,  lhe  deo  todos  os  bens  de  feu  fenhçr  :  e  o  ^7.  &  íe^, 
peyor ,  e  mais  he  ,  que  depois  de  lhe  conítar  da  inno- 
cencia  de  Isbofeth  ,  devendo  mandar  enforcar  abiba 
como  ladraÓ ,  e  falfario ,  para  nao  emendar  de  todo 
o  que  tinha  feito,  mandou,  que  o  ladrão  ,  e  o  rouba- 
do  partiííem  entre  fi  os  bens.  Nao  coníla  das  H^ícri- 
turas  areílituiçao  defta  injuftiça  ;  mas  ,  como  notao 
todos  os  Theoíogos ,  e  Expofitores ,  he  certo  ,  que 
depois  afez  David  ;  porque  doutro^modo  nao  le  lal- 
varia.  Tanta  razaó,  e  tantas  razoens  teve  eíte  he- 
roe,  por  tantas  outras  qualidades  grande,  psra  dizer, 
e  confeíTar  ,  que  na  íua  pobreza  enfraquecera  a  íua 
virtude:  Infirmata  ejtmpaupertatevirtus  tnea. 

DIS. 


:v]tjmj-5.aa^- 


Part'  14, 
KUJD.  Sx. 


96     Vieira  abhreviado 

DISCURSO     LXiy. 

Tirado  do  difcurfo  prhneiro  das  cinco  pedras  da  fun- 
da de  David  pregadas  em  Roma, 


OBRAS. 


688 


Num.  f  2,. 


AS  obras  faó  filhas  dos  penfamentos ,  no 
penfamento  fe  concebem ,  do  peníamen- 
to^nafcenijcom  o  penfamento  fecriaó,  feaugmen- 
taõ,  e  feaperfeiçoaó:  ecomo  os  filhos  recebem  dos 
pays  a  natureza  ,  o  fangue  ,  e  o  appellido ,  affim  fe 
recebe  do  penfamento  todo  o  bem  grande,  e  louvá- 
vel, que  refplandece  nas  obras.  Todos  comummen- 
te cuidaó,  que  as  obras  íaó  filhas  do  penfamento,  ou 
ideas,  com  que  fe  concebem,  e  conhecem  as  mefmas 
obras :  eu  digo ,  que  faô  filhas  do  penfamento ,  e  da 
idea,  com  que  cada  hum  fe.concebe,  e  fe  conhece  a  íi 
meímo- 

689  A  imagem  mais  perfeita ,  a  proporção  mais 
ajuftada ,  e  a  medida  mais  igual  da  obra  he  o  conhe-^ 
cimento  de  fímefmo  em  quem  afaz.  Quando  Apel- 
Jes  pintava  a  Alexandre,  tinha  na  mente  a  Alexan- 
dre: quando  Alexandre  conquiftava  o  mundo,  tinha 
na  mente  a  íi  mefmo.  Na  idea  de  Apelles  cabia  Ale- 
xandre em  hum  quadro  :  na  idea  de  íi  mefmo  nafi  ca- 
bia Alexandre  no  mundo ,  e  por  ilTo  o  conquiílou 
todo. 


..  / 


DIS- 


Difcurfo  LXV.     9T 

DISCURSO     LXV. 

Tirado  de  hum  fermaÕ  da  qiihna   terça  feira  da 
Qtiarefvia  pregado  em  Roma  áferenifjlnia  Rai- 
nha de  Suécia  Chriflifia  Alexandra  em  obfe- 
qiiío  de  hum  diÕiame  daquellc  [uhlime  e/piri- 
to ,  que  deteftando  as  beat árias  publicas ,  fó 
reputava  por  verdadeiras  virtudes  as  que 
Je  occultavao  aos  olhos  do  mundo  :  e  de 
'     outro  da  canonização  de^  S.  Francifco 
Xavier. 

OLHOS. 

690     A    Mayorgraça  danatureza^  e  o  mayor  pe-Pa«.  7. 
xiL.  rigo  da  graça  faÕ  os  olhos.  Saô  duas  iu-  ^""^'  ^^^*' 
áes  do  corpo ,  faó  dous  laços  da  alma.  Mas  coino  os 
i-nefni  os  olhos  ou  faó  os  próprios,  com  que  vemos, 
ou  os  alheyos,  com  que  fomos  viílos  j  queftao  pode 
fer  naÕ  vulgar  ,  e  útil  curiofidade  íaber,  quaes  delles 
fejaõ  o  mayor  laço  ,  e  o  mayor  perigo.  Eu  em  tanta 
eíireiteza  de  tempo  naô  o  tenho  para  difputar :  eaf- 
fmi  digo  refoiutamente  ,  que  o  mayor  perigo,  eo 
mayor  laço  fao  os  olhos  alheyos.  E  porque  t  Porque 
fendo  taô  natural  no  homem  o  defejo  de  ver ,  o  ap- 
petite  de  fer  viílo   he  muito  mayor.  Coníiderava 
Job  a  fua  morte,  e  vede  a  efpinha  ^  que  mjais  lhe  pi- 
cava o  coração :  Nec  ajpiciet  me  vifus  hominis'.  Mor-  Job.  7.  Sj 
rerei ,  e  naõ  me  veráô  mais  os  olhos  dos  homens.  O 
uío  de  ver  tem  fim  com  a  vida,  o  appetitede  fer  vif- 
to  naó  acaba  com  a  morte. 
691     Efta  foy  a  origem  das  eílatuas  Rom.anas  íe-' 

■  Tom.  II.  G  pui- 


5>  8      Vieira  ahhreviaão 

pulchraes.  Punhafe  a  eíbtua  imagem  do  defunto 
fobre^o  repulchro,para  que  o  homem,  que  dentro  del- 
Je  naõ  podia  ver,robre  eile  foííe  vifto.  Já  que  me  fal- 
ta a  vida  própria, ao  menos  naó  me  falte  a  viíla  alheya. 
De  maneira,  que  devendo  os  mármores  da  fepultura 
fer  huns  efpelhosj  em  que  fe  viíTem  os  vivos ,  faó  hu- 
ma  anticipada  refui  reiçaõ  da  arte ,  em  que  íe  vem  os 
defuntos.  Taó  immortal  he  nos  mortaes  o  defejo  de 
ferviílos!  E  fe  eíla  ambição  vive  nos  mortos,  nos 
vivos  que  fera  ?  Será  o  que  diz  o  texto  ,  que  propuz, 
com  major  erro  ainda ,  e  indignidade  na  vida  ,  c- ue  a 
ambição ,  e  vaidade  depois  da  morte :  Nemo  in  occul- 
to  quidfacit.  Ninguém  faz  occultamente  coufa  di- 
gna de  louvor;  porque  occulta  naõ  pode  ferviíla. 
Tirai  do  mundo,  diz  Séneca,  os  olhos  alheyos  ,  e 
nada  fe  fará  do  que  o  mefmo  mundo  admira,  epre- 
Seaec.epift.  za :  Nemo  oculisfuis  lautus  eji  :  ubi  tejiis ,  ac  fpe- 
^^'  Bator  abfcejjit^  fubjidunt  omnia^  quorum  fruâíus 
monjlrari ,  é^  confpici. 

692  A  inclinação  maisnatutal,  mais  viva  ,  eque 
mais  fortes,  e  profundas  raizes  tem  lançado  na  natu- 
reza humana  ,  he  o  defejo  ou  appetite  da  gloria. 
Ariftoteles  lhe  chamou  ao  homem  :  Animal  glorio- 
fum,  E  Tácito  mais  verfado  nas  politicas  do  mundo, 
que  nas  do  efpirito,  diíTe  ,  que  efte  he  o  ultimo  vi- 
Tacic.4hif.ci0,  de  que  fe  defpem  os  fabios :  Gloria  cupiditatem 
*°íimfi?^'^'  ^^^^^f^pi^^^tibus  novijflmam  exui.  E já  PlataÕ  tinha 
dito  pela  meímafrafe,  que  era  a  ultima  túnica  ,  de 
que  ledefpiaó  as  almas.  Poílo  que  em  dizer,  que  as 
ahnas  fe  defpiaó,  dilfe  mais  do  que  devera  ;  porque 
fendo  ellas  immortaes,  eos  cadáveres  mortos,  naó  fó 
nos  gentios,  fenao  também  nos  Chriílaõs  vaó  com 
elles  amortalhadas  á  fepuitura.  AíFim  o  pregou  mais 

fabia« 


Part,  8. 
foi.  403, 


91  Lypfio. 


Difairfo  LKV.      99 

íabiamente  ,  que  todos,  S.  João  Chryfoftomo :  Oim  chryfoí\: 
reliqua  vitia  unà  ciim  morte  diffolvanttir ^  fuperbta^^^^^^^^ 
pojl  mortein  omnl  conatu  in  ipjo  cadáver e  contendh  ^^"^^  * 
naturam  fitam  prodere. 

6^-^     Efenaõdigaôno  tantas  teftimunhas  de  már- 
more, em  que  o  mefmo  appetite  de  fazer  immortal 
a  gloria  ou  fabrica  em  vida ,  ou  manda  fabricar  de- 
pois da  morte  os  foberbos  fepulchros,  e  efcrever, 
ou  gravar  nclles  com  letras  de  bronze  os  gloriofos 
epitáfios.  Mas  paííando  dos  que  fervem  á  vaidade 
aos  que  profeíTaõ  a  virtude;    quantos  vimos  ainda 
com  opinião  de  fantos  ,  que  depois  de  vencerem  os 
outrosvicios,  fe  deixarão  vencer  miferavelmente  da 
mefma  gloria  de  os  ter  vencido  ?  Qijantos  pizaraó 
animofamente  o  mundo ,  e  depois  de  o  meter  debai- 
xo dos  pés,os  derrubou,  e  pizou  a  elles  a  mefma  glo- 
ria de  o  ter  pizado  ?  Saõ  como  os  que  pizaô  a  planta 
de  Noé  ,  e  bebendo  depois  o  licor  do  que  pizarao, 
perdem  como  o  mefmo  Noé  ojuizo.  Os  mais  fízu- 
dos  di^em  a  Deos  :  Non  nobis  ,  Domine  ,  non  nobis^  pí-  iij; 
fed  nomini  tuo  dagloriafu.  lílo  he  o  que  fazem  os  *^- 
mais  timoratos  partindo  pelo  meyo  aquelle  Nomi- 
ni tuo  da  gloriam :  ifto  he  deixando  para  Deos  a  glo- 
ria ,  e  tomando  para  nós  o  nome.  Se  pregamos  a  glo- 
ria para  Deos ,  mas  para  nós  o  nome  de  grande  Pre- 
gador: fe  eníinamos  a  gloria  para  Deos,  mas  para 
nós  o  nome  de  grande  letrado  :  fe  fazemos  obras  de 
mifericordia ,  a  gloria  para  Deos ,  mas  para  nós  o  no- 
me de  caritativo :  fe  nos  mortificamos,  e  jejuamos, 
a  gloria  para  Deos  ,  mas  para  nós  o  nome  de  abíli- 
nente:  finalmente  íe  exercitamos  quaefquer  virtu- 
des, ou  todas,  a  gloria  para  Deos,  mas  para  nós  o  no- 
me de  virtuoío,  e  lanto. 

Gz  694  Os 


i  Keg.  1 1 
18. 


1^0     Vieira  abhreviado 

F.9I  407.       694    Osgenerofos ,  e  fieis  Toldados ,  e  Capitaens 
,-  toda  a  gloria  das  fuás  façanhas  ,  e  vidlorias  a  devem 

•    renunciar  de  fua  parte ,  e  naõ  a  querer  para  íi ,  e  para 
lua  fama  ,  e  honra  ;  fenaó  inteiramente  para  o  Rey , 
a  quem  fervem.  líto  he  o  que  fez  entre  os  Hebreos 
Joab  no  memorável  cerco  da  infigne  Cidade  de  Rab- 
bat ,  que  tinha  rendida ,  refervando  o  nome  da  vicíio- 
na  para  David:  Neiíominimeo  adjcribatur  viâio- 
ria.  E  iílo  entre  os  Romanos  Germânico  no  trofeo, 
que  levantou  fobre  hum  monte  de  armas  depois  das 
Germânicas  domadas ,  e  fujeitas  ao  Império  dedi- 
cando o  mefmo  trofeo  depois  dos  deofes  a  Auguíto 
fem  mençaô  alguma  de  leu  próprio  nome,  comono- 
Tacit. !.  2.  tou  Tácito  :  Congeriem  armorum  Jiruxit  fuperba 
annai.       ^^^^  tittilo ,  à^  cum  Cã  momimentã  Auguflo  facravif- 
fetj  defe  nihil  addit.  A  acçaõ  de  Joab  fe  naõ  foy  li- 
fonja  j  foy  cortezia :  a  de  Germânico  pareceo  modef- 
tia  ,  €  pode  fer  demafiada  prefumpçao,  como  naó 
deixou  de  morder  o  mefmo  Tácito  ;  mas  ambos  el- 
^-        les  por  eíte  rodeyo  fendo  publico  negociarão  mayor 
gloria,  porque  de  homem  a  homem  a  gloria  mayor 
he  de  quem  a  dá :  e  que  excefTo  de  gloria  como  dar 
viílorias  a  David ,  e  trofeos ,  e  triunfos  a  Auguílo  ? 

D  I  S  C  UR  S  O    LXVI. 

1  irado  dehumfermaô^  pregado  na  Cape  11  a  Realpe^ 
lo  bom  fticcejfo  das  nojjas  armas. 


Pare.  7. 
Num.  4^0, 


^9S 


A. 


O  P  I  N  I  A  M. 

S  matérias  da  opinião  fao  muito  deli- 
cadas ,  e  a  confciencia  da  honra  naõ  ad- 

mitte 


«■Mi 


Difcurjo  IXFIJ.    loi 

mitte  eícrupulos.  A  mais  perigofa  confequencia  da  Num.  487? 
guerra  ,  e  o  que  mais  le  deve  recear  nas  batalhas  ,  he^ 
a  opinião.  Na  perda  de  huma  batalha  arrifcafe   hum 
exercito  ,  na  perda  dà  opiniat  arrifcaíe  hum  Reyro.Num.488:i 
Sdlamao  o  Rey  mais  fabio  dizia  ,  que  melhor  era  o 
bom  nome ,  que  o  óleo,  com  que  fe  ungiaõ  os  Reys  : 
Melins  eji  bonum  iiomen,  qtiam  oletim  uJiãwfns.quo^^cMj.z. 
ungehannir  capita  Regum\  porque  a  unçaó  pódedar^^^^j^  " 
Reynos,  a  opinião  pôde  tirailos. 

DISCURSO     LXVII. 

Tirado  de  hum  ferm ao  da  quinta  Dominga  da  Qita- 
refma  ,  e  de  outro  da  primeira  oitava  de  Pajchoa 
pregado  no  gr  ao  Pará  na  occajtaô  ^  em  que  che- 
gou a  nova  defe  ter  dejvafiecido  a  efperança 
das  minas j  que  com  grandes  empenhos  Je  ti- 
nha^ ido  defcobrir, 

OURO. 

696  C  E  J^^  ^^^^^  "^  mundo ,  que  podéra  compe-  Part.  z: 

O  tir  no  fenhorio  com  Deos,  he  o  idolo  uni-^"^'*^^. 
verfsl  do  ouro  ,  e  prata.  Muitas  naçoens  ha  no  mun- 
do,  que  naó  conhecem  a  Deos:  nenhuma,  que  naõ 
adore,  e  obedeça  a  eíte  idolo.  E ainda  dos  que  pro- 
feíTaô  fervir  a  Deos ,  quem  ha ,  que  o  naô  firva  ?  Pois 
aíTim  como  ninguém  pode  fervir  a  dous  fenhores , 
allim  diz  Chr^ílo ,  que  nao  pode  fervir  a  Deos  ,  e  mais 
ao  dinheiro:  Nonpotejlis  Deofervire^  &  mammon^. 
Servir  a  Deos  com  o  dinheiro  bem  pode  fer ,  e  he  - 
bem  que  feja ;  mas  fervir  a  Deos ,  e  aodmheiro  junta- 
mente he  impoíFivel.  Quando  Zachco  fe  refolveoa 
Tom.  II.  G3  fervir 


I02 


Vieira  abhrcviado 


Matth.  t7. 


Match.  6. 


fervir  a  Chnfto,  logo  renunciou  o  dinheiro :  e  quan- 
do Judas  íerefoiveu  a  íervír  o  dinheiro,  logo  renun- 
CIOU  a  Chnfto.   Arrependido  o  mcTnioJudas  deter 
vendido  n  íeu  Meftre  ,  lançou  os  trinta  dinheiros  no 
íempio :  Projecn  eos  in  tewplum.  Eos  Miniftros  do 
teo)plo  reíolveraó,  que  naõ  fe  podiaõ  meter  na  bol- 
ça: Non  licet  mtttere  eos  in  cor bonam. Moúno  dinhei- 
ro, que  nem  roubado,  nem  reílituido  ,  nem  no  tem- 
plo, nem  na  bolça  teve  lugar  com  Deos:  e  aííim  he 
todo.  Se  o  roubais,  perdeis  a  Deos:  fe  o  reftituis  , 
perdeis  o  dinheiro  :  fe  quereis  fei^vir  a  Deos ,  Deos , 
e  o  dinheiro  naô  cabem  no  mcímo  templo  :  íe  que- 
reis fervir  ao  dinheiro,  odinheiro,  eDeosnaôca- 
bem  na  mefraa  bolça  :  Jut  unum  ódio  habebit ,  <i^ 
alterum  diliget :  aut  tmumjtijtimbit ,  ^  alteriim 
xontemnet.  Ou  haveis  de  renunciar  o  dinheiro,  fe 
amais,  e  prezais  a  Chriílo,  como  fez  Zacheo,  ou 
haveis  de  renunciar  a  Chrifío  fe  amais,  e  prezais  o 
dinheiro  ,  como  fez  Judí?s.  Oh  quantos  Judas ,  e  quaó 
poucos  Zacheos  ha  no  mundo  !  Se  Deos  tivera  tan- 
tos fervos,  e  taó  diligentes  como  tem  o  dinheiro  , 
que  bem  fervido  que  fora  !  Mas  quantos  deíTerviços 
fe  fazem  a  Deos  em  ferviço  defte  mao  idolo  ?  O  ma- 
yor  facrilegio  de  todos  he ,  que  em  vez  de  os  homens 
le  lervirem  do  dinheiro  para  fervir  a  Deos,  chegaõ 
Iíai45.a4.^  ^^  ícrvjr  de  Deos  para  fervir  ao  dinheiro  :  Servi- 
re  mefecijli  inpeccatis  tuis.  Quantas  vezes  os  bens 
EccieíiafticoSjquefaò  de  Deos,  os  vemos  applicados, 
e  confumidos  em  ufos  profanos ,  e  os  vafos  do  tem- 
plo de  Jerufalem  ou  levados  aos  thefouros  de  Na- 
buco,  ou  fervindo  nas  meias  de  Balthafar!  Quando 
já  mais  fe  encontrou  Deos  com  o  intereííè ,  que  o  def- 
prezado  naõ  folFe  Deos  ?  Ou  quem  leguio  os  idolos 
-  '  de 


Difairfo  LXFlí.    105 

deloroboao  ,  que  nao  vimíTe  as  coftas  á  arca  do  tef- 
tameiuo  ?  O  ouro,  que  os  Hcbreos  roubarão  no  hgy- 
pto  ,  adoniraõno  no  deferto.  E  quantos  ha  ,  que  ta- 
zem  o  melmo  fó  com  a  figura  mudada  ?  Q^ie  impor- 
ta ,  que  naó  adoreis  a  fórma,  fe  adorais  a  mntena  ? 
Que  importa  ,  que  naô  adoreis  o  bezerro  de  ouro  ,  íe 
adorais  o  ouro  do  bezerro?  P:no  mefmo  tempo  (co* 
mo  os  de  Azoto  )  pondes  a  Deos  ,  e  o  ídolo  fobre  o 
mefmo  altar ,  e  credes  com  alieòlada  hypocreíia  , 
que  podeis  fervir  juntamente  a  hum  ,  e  a  outro  t 

697    Ede  Eítado  fem  ter  minas  foy  já  tao  requef  p^-^  4. 
tado ,  e  períeguido  de  armas ,  e  mvafoens  eítríingei- 
ras  ;  que  leria  fe  tiveíTe  eífes  theíouros  ?  La  traz 
Chrifto  Senhor  noífo  a  comparação  de  hum  campo, 
que  era  cultivado  fomente  na  fuperíicie  da  terra  ,  ter- 
til  de  flores,  e  frutos;  porém  fabendo  hum  homeni 
acafo ,  que  no  mefmo  campo  eftava  enterrado  ,  e  el- 
condido  hum   thefouro  :    7befauro  abjcondito  ///Matth.ij. 
agro,  o  que  fez  com  todo  o  fegredo ,  e  diligencia, ^^• 
fo-y  ir  logo  comprar  o  campo  a  todo  o  cufto  ,  e  deite 
modo  ficou  fenhor  naó  do  campo  por  amor  do  cam- 
po ,  lenaô  do  campo  por  amor  do  thefouro.  De  ior- 
te,  que  toda  a  defgraça  do  campo  em  mudar  de  íe- 
nhorio ,  e  paffar  de  hum  dono  a  outro  dono  eíleve 
em  ter  thefouro  dentro  em  fi  ,  e  íaberfe ,  que  o  tinha.      - 
Conrentemonos  de  que  nos  dem-os  nofibs  campos 
pacificamente  o  que  a  agricultura  colhe  da  íuperfi- 
cie,  enao  lhe  defejemos  thefouros  eícondidos  nas 
entranhas  ,  que  efpertera  a  cubica  atheya  ,  principal- 
mente quando  os  mefmos  campos  naõ  eftaõ  cerca- 
dos de  tao  fortes  muros  ,  que  lhe  poífaô  facilmente 
defender  a  entrada.  E  terras ,  que  tem  ouro  ,  e  prata,  Num.  ^^%\ 
e  naó  tem  muros  fortes,  que  asdefendaô,  natural- 

G  4  mente 


Jcreni.  15 
it. 


104     Vieira  ahhreviado 

mente  eílaó  expoftas  á  cubica  ,  e  invafaõ  dos  inimi- 
gos j  porque  o  ouro ,  e  a  prata  ,  que  tem,  excita  a  cu- 
bica ,  e  os  muros,  e  fortifícaçoens ,  que  naó  tem ,  fa- 
ciiitaoainvafaô. 
Num.  4Z5.  598  A  paz  das  outras  naçoens  fegurança  he  mui- 
to enganofa.  Onde  ha  nova  occafiaõ  de  intereíle ; 
naõ  ha  confideraçaõ ,  que  dure.  Ouvi  hum  dito  no- 
.  taveldejeremias:  Numquidfoederabiturferrum fer- 
ro abAquilone,ir^.s}  Cuidais,  que  o  ferro  doNorte, 
(do  Norte  diz  nomeadamente:  Ab  Jquilone)  cuidais, 
que  o  ferro  do  Norte  íe  pode  confederar  com  outro 
ferro ,  e  o  leu  bronze  com  outro  bronze  ?  Enganais- 
vos ,  diz  o  Profeta  áquelles  ,  com  quem  fallava  :  e  o 
mefmo  vos  certifico  eu  fem  fer  Profeta.  Livrouvos 
Deosda  prata,  porque  vos  quiz  livrar  do  ferro.  A 
arte  com  a  prata  liga  os  outros  metaes,  e  a  cubica 
com  a  prata  desfaz ,  e  rompe  todas  as  ligas. 

699  Mas  dado ,  que  as  minas  taõ  eíperadas ,  e  ap- 
petecidas  naó  tiveíFem  por  confequencia  de  fua  fa- 
ma eíles  perigos  de  fora  ,  baftava  aconíideraçaô  dos 
trabalhos  ,  e  miferias  domefticas  ,  que  com  ellas  fe 
vos  haviaõ  de  levantar  debaixo  dos  pés,  para  que  o 
voílojuizo,  fe  o  tiveífeis,  trataíTe  antes  de  fepultar  as 
meímas  minas  depois  de  achadas,  que  procurar  de 
as  deíenterrar  ,  c  defcubrir,  ainda  que  foraõ  muito 
certas.  Hum  dos  mayores  caftigos ,  que  Deos  podia 
dar  a  eíla  Cidade,  e  a  efte  Eftado,  era  deícobriremíe 
Num.43  3."^J^^  "^^".^s  ;  porquc  cífas  minas ,  que  tanto  fe  defe- 
jaó,  eeftimao,  ordinariamente  naó  as  defcobre,  nem 
Nuai,43  4"S  dá  Deos  por  merecimentos  ,  fenaó  em  caftigo  de 
grandes  peccados.  Saô  caftigos  efcondidos  debaixo 
de  apparencios  contrarias;  porque  fe  appetecem, 
ellimaõ ,  e  feílejaô  enganofa ,  e  enganadamente,  fen- 
do 


Num.  431, 


Difctirfo  LXVIL     105 

do  certo ,  que  debaixo  do  preço ,  e  efplendor  do  ou- 
ro, e  prata  fe  occultaÔ ,  e  efcondem  grandes  traba- 
lhos ,  affliçoens  ,  e  miferias  ,  com  que  a Juftiça  divi- 
na por  peccados  quer  caftigar  ,  e  açoutar  as  meí mas 
terras,  onde  as  veyas  deites  metaes  fe  defcobrem. 
Deos  tanto  pode  açoutar  com  varas  de  ferro  ,  como 
com  varas  de  ouro  ,  e  de  prata  ,  antes  eíles  açoutes 
faÓ  muito  mais  pezados  ,  quanto  a  prata ,  e  o  ouro 
pezaô  mais  ,  que  o  ferro. 

700     Aqueila  ponta  de  terra  montuoía ,  que  hoje 
chamamos  Cabo  de  S.  Vicente ,  antigamente  íe  cha- 
mava  Promontório  fagrado  por  eftar  ajli  o  fepulchro  Num.  435. 
de  Tubal,  primeiro  pay  da  nofla  nação  ,  e  também  o 
de  Hercules ,  hum  dos  mais  tamofos ,  e  amados  Keys 
da  Lufitania.  Havia  minas  nefte  promontório ,  as 
quaes  por  caufa  da  mefma  veneração  também  era  ve- 
dado cavaremfe  :  e  dizem  as  hiftorias  daquelle  tem- 
po ,  que  ió  em  hum  cafo  fe  permittia  aos  moradores 
aproveitaremfe  do  ouro ,  e  prata  das  ditas  minas. 
Mas  qual  era  eíle  cafo  ?  Couía  verdadeiramente  ad- 
mirável ,  e  muito  digna  de  fe  notar.  O  cafo  era,  quan- 
do cahia  do  Ceo  algum  rayo  ,  que  penetraíle  a  terra_, 
e  defcobriíTe  os  preciofos  metaes ,  que  nella  eltavao 
elcondidos.   De  forte  ,  que  naquella  terra  ,  também 
nolFa ,  o  abriremfe  minas ,  e  o  cahirem  rayos  do  Ceo 
tudo  vinha  junto ,  como  fe  oCeo  nos  pregara ,  que  o 
defcobrimento  de  minas  na  terra  naô  íaô  fehcida- 
des ,  e  boas  fortunas ,  como  fe  imagina ,  fenao  exe- 
cuçoens  da  ira  de  Deos ,  e  caftigos  do  Ceo.^ 

701     E  para  que  vos  naõ  pareça ,  que  fao  ifto  en- 
carecimentos lenitivos ,  inventados  para  divertir  a 
trifteza ,  e  dar  efpecie  á  confoiaçaÓ  ,  troquemos  efte  Nam.  4Jí. 
ouro ,  e  prata  em  raiudos ,  e  vejamos  os  proveitos , 
'    ^  e  in- 


Num.  4J7 


Ifai  z. 
ao. 


io6     Vieira  abhreviado 

e  interelTes  que  do  defcobrimento  de  min.ns  haviaí 
de  uíultar  a  yolia  te.ra  no  cafo ,  cm  que  fe  ISí 
achado.  Lu  nunca  fuy  ao  Potoíi  nea,  vi  mm  s  p^ 
remno.hvros,que  defcreveoi  o  que  nelías  palffó 
naofocaufaelpawo,  mas  horror  ler  a  ftb  va  l  ' 
maqumas,  os  artifícios,  e  a  força,  o  trabalho  e  os 
perigos,  com  que  as  montanhas  11»  cavaõ ,  as  betas  fe 
reguem,  e  perduias  fe  tornaõ  a  bulcar:  osencon 
tros  de  pedrenaes  impenetráveis  ,  ou  de  aguas  fufa 

camfn^na    f^    f  ^""^  ''"'"''^'^  '  °"  ''^'"^'he  novo 
cammho  ,  furando  por  outra  parte  os  mefmos  mon- 
tes :  o  eftrondo  dos  maços ,  d.s  cunhas ,  das  alavan- 
cas ,  e  dos  outros  inftrumentos  de  ferro,  alguns  dos 
quaes  tem  cento  e  cincoenta  libras  de  pezo  %Z  oue 
fe  batem,  cortaó  ,  e  arrancão  as  pedras  ,  ou  le  pred! 
pitao  com  ma  yor  perigo  do  alto  :  e  tudo  ifto  naque- 
las profundifltmas  concavidades,  ou  infernos ,  onde 
nunca  entrou  o  rayo  do  Sol ,  alumiados  malignàmen! 
te  aquelles  mfeiices  Cyclopes  fó  com  a  luz  S  ,  e 
coutrafeita  de  alguns  fogos  artificiaes,  cujo  hálito 

turno,  e  vapor  ardente  lhe  toma  a  refpiraca6,  e  mui- 
tas vezes  os  afoga.  *     >  «^iiiui 

702  Faz  aqui  padecer  a  cubica  muito  mais  do 
q..e  profetiza  Ilaias ,  que  fará  em  algum  tempo  a  pe- 
nitencia:  Introibum  infpeluncas petrartim  ,  è>i„ 
■  ■"oragmes  terra:  projiciet  homo  idola  orgemirni 
&fimulacraannfui,  qua fecerat ftbi  ut  adorarei, 
taipas  ,  0-  vefperttliones  :  MeterfehaÕ  os  homens 
pelas  covas  ,  e  pelas  concavidades  maisprofundas  da 

mlíL"'".  f  •'""'  ■^"'"f  «»™  '  "u  P"ta  ,  mas  abomi- 
nando e  lançando  de  (i  os  Ídolos,  que  do  ouro ,  e  da 
prara  tuihao  feito,  toupeiras ,  e  morcegos.  Vede  ago- 


ra 


Difcurfo  LXVll.    107 

rflcftas  meímas  tiguras  como  as  ajunta  ,  e  introduz 
todas  a  cubica  nefte  efcuro,  e  horrendo  theatro  da 
paciência  fem  virtude.  Aili  os  penitentes  snepenai- 
dos  entraõ  pelas  grutas  ,  e  concavidades  ca  ttrra  : 
aqui  os  cubiçoíbs,  e  enganados  também  le  metem 
naÔ  pelas  covas,  que  aterra  tem  aberto  ,  fenao  pelas 
que  elles  cavaõ ,  e  rompem  á  viva  força ,  muito  mais 
penetrantes  ,  e  profundas.  Alii  defprezaóíe  os  aiolos 
de  ouro ,  e  prata  ,  conhecida  fua  mentira  ,  e  vaidaue: 
aqui  eíUmafe ,  e  adorafe  tanto  a  mefma  vaidade  ,  que 
por  novos ,  e  occultos  caminhos  de  tantos  eítadiosíe 
vay  buícar,  e  defenterrar  o  ouro  ,  e  prata  para  le 
fundirem  ,  e  lavrarem  Ídolos.  Aili  as  figuras  dos  luo- 
los  fâô  toupeiras  ,  e  morcegos  :  Taipas  ,  &  vejper- 
tilíones  :  e  aqui  os  homens  desfigurados  como  tou- 
peiras vivem  debaixo  da  terra  fem  ter  olhos  para 
ver  a  luz ,  e  como  morcegos  fogem  do  Sol ,  e  do  dia, 
e  fe  vaó  mais  fepultar  ,  que  viver  naquella  eícura  ,  e 
perpetua  noite.  Ainda  tem  outra  propriedade;  por- 
que huns  como  toupeiras  com  os  pés ,  e  mnõs  na  ter- 
ra a  andaõ  cavando ,  e  revolvendo ,  e  mudando  con- 
tinuamente ,  e  outros  como  morcegos  fuípenfos  no 
ar  eftaõ  picando  as  pedras  ,  e  fangrando  as  íuas  veyas 
com  o  corpo  ,  e  com  a  vida  pendente  de  huma  corda^ 
Houve  já  mais  algum  Anacoreta  dos  que  habitavao 
as  covas,  que  fizeíie  tal  penitencia?  Pois  ainda  naó 
ouvifbes  o  mais  temerofo  delia. 

703  Solapadas  por  baixo  aquellas  grandes  mon- j^y„,^j.8, 
tanhas  ,  todo  o  pezo  immenfo  delias  fe  íu (lenta  fobre 
pilares  da  meíma  matéria  ,  que  vaò  deixando  a  efpa- 
ços  ,  os  quaes  fe  fe  enfraquecem  ,  ou  quebraó  como 
acontece  muitas  vezes  ,  qual  he  o  elFeito  .?  Toda  a 
montanha,  ou  grande  parte  delia  cahe  de  repente ,  e 

a  mui- 


^ 


10  5      V  leira  abbreviado 

a  multidão,  que  andava  defenterrando  a  prata^fíca  fe- 
pultada  com  elia  [em  hum  momento  fem  outra  noti- 
cia de  ínmanho,  e  taô  miferavel  eíimgo  ,  que  a  que 
ÚQ<^  aos  de  muito  longe  o  eftrondo  da  ruina ,  e  o  tre- 
mor de  toda  a  terra,  lllo  he  o  que  Te  efcreve ,  e  fe  ef- 
creve  muito  menos  do  que  verdadeiramente  he.  Baf- 
te  por  prova  ,  que  a  fevicia  ,  e  crueldade  dos  Neros, 
e  Dioclecíanos  cómutavaô  a  morte  ,  e  os  tormentos 
dos  Chriílaós  em  os  mandar  íervir ,  e  trabalhar  nas 
mmss :  e^a  Igreja ,  que  com  tanta  difficuidade ,  e  con- 
lideraçaõ  examma ,  e  avalia  os  merecimentos  dos  fan- 
Num.  440  í^^'  canonizava,  e  venerava  por  martyres  aos  que  nel- 
Jas  acabavaõ  a  vida.   Ainda  falta  por  dizer  o  que 
mais  vos  havia  de.deílruir  ,  e  aífolar.  Quantos  Mi- 
njftros  Reaes,  e  quantos  officiaes  de  juíliça  ,  de  fa- 
zenda ,  de  guerra  vos  parece ,  que  haviaò  de  fer  man- 
dados cá  para  aextraçaó,  íegurança,  e  remeíía  def- 
te  ouro  ,  ou  prata  }  Se  hum  fó  deíles  poderofos  ten- 
des experimentado  tantas  vezes ,  que  bailou  para  af- 
folar  o  Eílado ,  que  fariao  tantos  .?  Naõ  fabeis  o  no- 
me do  ferviço  Real  (contra  a  tenção  dos  mefmos 
Keys )  quanto  fe  eílende  cá  ao  longe ,  e  quaô  violen- 
to he  ,  e  infupportavel .?  Qiiantos  Adminiftradores  , 
quantos  Provedores,  quantos  Thefoureiros,  quan- 
tos Almoxarifes ,  quantos  Efcrivaens ,  quantos  Con- 
tadores, quantosGuardas  no  mar,  ena  terra,  e quan- 
tos outros  officiaes  de  nomes ,  e  jurifdiçoens  novas  fe 
haviaô  de  çrear ,  ou  fundir  com  eílas  minas  para  vos 
confundir,  e  fepultar  nellas.í^  Que  tendes,  que  poí- 
fuis,  que  lavrais,  que  trabalhais,  que  naó  houveíle 
de  fer  neceílario  para  ferviço  d'ElRey  ,  ou  dos  que 
fe  fazem  mais  que  Reys  com  efte  eípeciofo  pertex- 
to.í^  E  vós  meffuos  naõ  haveis  de  fer  voífosjporque  vos 

haviaô 


DiJcurfoLXVII.    109 

haviaÔ  de  apenar  para  o  que  tiveíTeis,  ou  na6  tivef^ 
féis  preílimo  ,  e  fó  os  voflos  engenhos  Gavião  de  ter 
muito  que  moer ,  porque  vós  ,  e  voíTos  filhos  havíeis 

de  fer  moidos. 

704    Fique  logo  por  conclufaÔ ,  que  muito  mayor  Num.  44». 
mercê  vos  fez  Deos  ,  e  muito  mais  bemafortunados 
foftes  em  naÓ  fe  acharem  as  minas ,  que  [e  o  ouro  ,  e 
prata,  que  fe  fuppunha  ,  e  efperava  delias  fedeíco- 
briíTe.  Ouvi  a  fentença  de  hum  gentio  fundado  fona 
razaó  natural,  e  experiência  fem  nenhum  principio 
de  fé,  que  anos  nos  devia  levantar  mais  da  terra: 
Jurumtrrepertum ,  &  fie  mellus  fitum  ctim  terra 
celat :  O  ouro ,  diz  Horácio ,  he  melhor  nao  fe  achar, 
nemdefcobrir,queacharíe:  Aurumtrrepertum.  h. 
porque  ?  Porque  em  quanto  a  terra  o  efeonde ,  e  en- 
cobre :  Cum  terra  celat ,  eftá  elle  no  fitio,e lugar, 
que  ihe  deo  a  natureza  ,  que  he  o  melhor  :  Et  mehm 
//•///^//.Excellente  razaô.  As  coufas  naturaes  em  quan- 
to eftao  no  leu  próprio  lugar ,  em  que  as  fituou  a  na- 
tureza, nenhum  damno  fazem;  tiradas  delle,  fao  mui- 
to damnofas.  A  agua  no  feu  centro  naõ  peza,oiogo  na 
fua  esfera  naõ  queima ,  a  terra  fe  fobe  ao  ar,faz  rayos, 
o  ar  fe  fe  mete  debaixo  da  terra ,  faz  terremotos ,  der- 
ruba caías ,  e  Cidades :  aíTim  também  o  ouro ,  e  prata 
das  minas,em  quanto  eftaó  efcondidas  lá  no  centro  da 
terra ,  onde  as  poz  a  natureza  ,  confervaófe  innocen- 
tes ,  e  nao  fazem  mal  a  ninguém;  mas  fe  fe  cavaó,  e  fe 
tiraó  fora,  entaô  faõ  muito  perniciofas,  e  fazem  gran- 
des ellragos.  Olhay  para  o  paíFado,  fe  vos  nao  quereis 
enganar  com  o  prefente. 

^o'^  Aquella  idade  dourada  tao  celebre  nos  pri- 
meiros tempos,  quem  a  fez?  Parece,  que  a  havia jle 
fazer  o  ouro ,  e  nao  a  fez  o  ouro ,  que  havia ,  fenao  (^ 

ouro, 


J 


lio 


Vieira  abbreviado 


cuherV^"  r"""  '''"'''' '  P"''''"^  ^'■"'í^  f«naô  tinha  dei 
cuberto.  Em  quanto  no  mundo  naó  houve  ouro   en 

ro°  0°,^ ,; £'"  f -°"^°  í  J^P°'^  q"«  appareceo  o' ou 
to  no  mundo,  então  começou  a  idade  de  ferro  •  'Tnni 

TerToíZ"''"'^'''7'l"'  «--^'-~^/'- 
tózíw.  o  que  era  neceíTario,  e  útil  para  ávida  f 
confervaçaõ  dos  homens,  notou  Séneca  Den'oci'to 
e^.nda  o  mefi,,o  Epicuro ,  que  o  poz  a  natureza  mu^ 
to  perto  de  nós ,  e  muito  deícuberto ,  e  pa  ente   co- 

trario  oqirenaofoeramutil,masperniciofo   doJq 

Í^^H^  '.  ^^''^''°"''°'  ^aprata.  Houvefe  em 
tudo  a  natureza  como  mty :  a  mây  dá  a  maca  ao  fi- 

Ih.nho,  eefcondelheafaca.  Porque?  Parque  quer 

ETe?'  '"^^"/•'rf 'í"^  '"^  fira:  efe  ^min^mo 
chora  pelo  que  o  ha  de  ferir,  naô  hejufto,  que  os  ho- 
mens de  razaõ,  e  de  juízo  tenhaô  fentimmo  de  ml 

fíum.444:^7o6  Masvejo,quemeperguntaÔoscuriofos.  e 
me  argue.n  os  cr.ticos :  Se  as  minas  eraõ  taõ  damno, 
1  .„'.  1^""^°^^' ^o  homem ,  e por  ilTo lhas efcondeo, 

re  ponder  a  efta  pergunta  façovos  píi.neiro  outra 
h,  a  arvore  da  fcenc.a ,  que  foy  a  occafiaÔ ,  e  a  origem 
de  todos  os  males  do  mundo  ,  porque  a  creou  Deos 
noPara.fo?  Ou  aquella  arvore  era  boa,  ou  má,  co- 
mo argumenta  Santo  Agoftinho :  fe  era  má ,  para  que 
3  plantou  Deos  :  fe  era  boa  ,  para  que  a  p^hibio  ? 
Ameaça  ao  homem  com  a  morte ,  fe  comer  daquelle 
rrutto,  e  pinta  o  meímofruélo  com  taes  cores,  que 

^e  dekâlabile  ?  Sim.  Porque  aquelle  fruído  taÕ  for- 

mofo 


•w- 


Difciirfo  LXVIL     1 1 1 

moio  naõ  tby  creado,para  que  Adão  conjeíTe,  ou  pro- 
i^alie  delle  ,  íenaó  para  que  Deos  tentaíle  a  Adão  ,  e 
o  provafle  com  elle.  Efta  he  tamlum  a  razão  porque 
Deos  creou  o  ouro ,  e  a  prata  ,  e  lhe  deo  tanta  formo- 
fura  de  cores.  Chilon  hum  dos  fete  íabios  da  Grécia 
dizia ,  que  affim  como  a  pedra  de  toque  prova  o  ou- 
ro ,  e  a  prata  ,  affim  o  ouro  ,  e  a  prata  íao  a  pedra  de 
toque  dos  homens.  Qiiereis  provar  quem  íao  os  ho^ 
mens,  tentai-os  com  ouro  ,  e  com  prata,  ^o  ouro  o 
dille  o  Ecclellaftico :  X>///  pojl  aw^t^^^  non  ^^^^^^P^'  ^^^^^' 
batuseíiintllo.  Eda  prata  odiíle  David.  Ut^^^clu- ^.^^^^^^.^ 
da?iteos,qidprobattfunt  ^r^^^ía.  E  notai ,  que  o   u 
que  nefta  tentação  ficou  approvado,foy  hum  fo:  i^tit 
probatuseftinillo\  e  os  que  ficarão  reprovados,  e 
excluídos,  foraó  muitos  :  Utexcludanteos,  quípra- 
batifunt  argento.  Ora  já  que  todos  os  dias  pedimos 
a  Deos ,  que  nos  livre  das  tentaçoens ,  ou  que  nos  nao 
meta  nellas :  Ne  nos  inducas  in  tentationem ,  demos- 
lhe  muitas  graças ,  pois  nos  livrou  defta,  em  que  nos 
nos  tinhamos  metido.  . 

707  ..Eis  aqui  os  augmentos  ,  que  havia  de  ter  0Num.4í^ 
Reyno  com  os  haveres ,  que  lhe  promettiaó  as  nollas 
minas.  Encherlehia  a  terra  de  ouro,  e  prata  j  maseíie 
ouro.  e  prata,pofto  que  naturalmente  défce  para  bai- 
xo ,  havia  de  fubir  para  cima  :  nao  havia  de  chegar 
aos  pequenos,  e  pobres,  mas  todo  fe  havia  de  abar- 
car ,  e  confumir  nas  mãos  dos  grandes ,  e  poderofos  \ 
porque,  como  bem  diíTe  o  outro ,  as  magnetes  attra- 
hem  o  ferro ,  e  os  magaates  oouro  ,  e  as  obras  pias^, 
em  que  eíTes  thefouros  fe  haviao  de  defpender ,  erao 
mais  cavallos ,  e  mais  carroças  ,  e  mais  galas ,  e  mais; 
palácios ,  e  obras  magnificas  ,  e  oítentofas,  e  tam- 
bém haviaÓ  de  ter  parte  nelles  os  idolos  bautizados^^ 

que 


112 


leira  abbreviado 


oe  truido.  Jlto  fuccedena  no  revnado ,  e  ffovernn  ã. 
K-.4i..Salam3Õ  :  vede  ,  fe  fe  pode  efperar,  ou  Jmer  "utr 
ta^-uo,  quando  „aô  fore^.  SalaLens'os  q^teS " 

DISCURSO    LXVIII. 

T/>^</s  ^í  humfermao  da  quarta  Dominga  da  Qua~ 
-  rejma. 


P  A  M. 


708 


\\M 


ra«.  .^.      ■        /-\  ^^      PT'^'" '  '^°'"  q"e  Deos  creou  o 
N»m..,.._,_.  -f^-^"o«if™.  he  o  comer.  Lançai  os  olhos 
por  todo  o  mundo,  e  vereis  que  todo  elle  fe  vem  a 

V  ado7n.T  ''"^'"  °  P?°  P^-^ '=- ''°"-  Qye  ft   o  la- 
vrador na  terra  cortando-a  com  o  aradoT  cavando 

tft^  '"«"'íando  ,  femeando  ?  Buíc   pa6    Quê 

indo  n  f  "^°  ".'  "r  P^"''^  '^"^'^g^do  de  ferro ;  ,S| ! 
ando  peleijando,  derramando  o  fantçue  ?  Bufei  baô 

...         24^o.'avegantenamariça„do,amaina„l  lon: 
oando,  lutando  com  as  ondas ,  e  com  os  ventos  ?  Buf- 
ca  pao.  O  mercador  nas  cafas  de  contratação  DálTan- 
do  etras,  ajuftando  contas,  formando compafi 
O  eftudante  nas  Univeríidades  tomando  poftillas 

rente  nos  tribunaes,  pedindo  ,  allegando,  replican- 
do  danjo  promettendo,anul!ando?  Bufca  paó  Em 

caf  Of  :Í"  "'f^'  'f"" '  ^  '"'^«  '^  npplica^a  o  buí: 
De  o  ^J)'^'  ^T  P''?  P=°  °  trabalho fos ricos  dao 
peio  pao  a  fiizenda    os  de  eípiritos  generofos  daõ  pe- 

hon  r  "Vh"  '  "1  ^^  ^^^r'""'  ''='''=0^  d«S  pelo  pa6  a 
iíonra,  os  de  nenhum  efpirito  daó  pelo  paõaalma,. 

•'  een- 


\\  > 


Difcurfo  LXVIIL   115^ 

e nenhum  homem  ha ,  que  naó  dè  pelo  paô ,  e  ao  pao 
todo  o  feu  cuidado.  Parecevos ,  que  tenho  dito  mui- 
to? Pois  ainda  naó  eílá  difcorrido  tudo. 

709     Tirai  o  penfamento  dos  homens  ,  e  lançai-o  Num.  zr^; 
por  todas  as  outras  coufíis  do  mundo,  achareis  ,^que 
todas  elias  eítaó  fervindo  a  efte  fim ,  ou  penfao  do 
fuftento humano.  A  efteíim  nafcem  ashervas,  aeíte 
fim  crefcem  as  plantas ,  a  efte  fim  florecem  as  arvo- 
res, a  efte  íim  produzem ,  e  amadurecem  os  frudios, 
a  efte  fim  trabalhão  os  animaes  domefticos  em  cafa, 
a  efte  fim  pafcem  os  manfos  no  campo ,  a  efte  fim  fe 
criaô  os  íylveftres  nas  brenhas ,  a  efte  fim  os  do  mar , 
e  os  dos  rios  nadaõ  em  fuás  aguas,  em  fim  tudo,  o  que 
nafce ,  e  vive  nefte  mundo ,  a  efte  fim  vive ,  e  nafce. 
Que  digo  eu  o  que  vive,  e  o  que  nafce  ?  Os  elementos 
naó  faõ  viventes ,  e  a  efte  meímo  fim  canfamos  ,  e  fa- 
zemos trabalhar  aos  próprios  elementos.  O  fogo  nas 
forjas ,  e  nas  fornalhas ,  a  agua  nas  levadas ,  e  nas  aze- 
nhas ,  o  ar  nas  vellas ,  e  nos  moinhos ,  a  terra  nas  vi- 
nhas ,  e  nas  fearas ,  e  até  o  Sol ,  e  a  Lua ,  e  as  eftrel- 
las  naó  deixamos  eftar  ociofas  defta  penfaó ;  porque 
o  que  todos  aquelles  orbes  celeftes  fazem  andando 
em  perpetua  roda  ,  e  voltando  fem  nunca  defcanfar, 
he  produzir,  e  temperar  com  íuas  influencias  o  que 
ha  de  comer  o  homem.  Ha  mais  para  onde  fubir  ? 
Ainda  ha  mais.Subi  doCeo  acima  até  ao  mefmo  Deos, 
e  achareis,  queelle  he  o  que  maisoccupado  eftá,  que 
todos  em  noflb  fuftento  ;  porque  todas  as  outras  cou- 
fas  cada  huma  trabalha  em  fi,  e  Deos,  ainda  que  fem 
trabalho,  obra  em  todas.  De  maneira,  fenhores,  que  Num.  114: 
a  occupaçaó  do  Ceo  ,  e  da  terra ,  e  de  todo  efte  mun- 
do, amayor  penfaó,  o mayor cuidado,  e  o mayor tra- 
balho dos  homens  he  bufcar  pao  para  aboca;  pois 
Tom.  11.  H  ifto, 


114     Vieira  ahhreviado 

ifto,  porque  todos  trabalhão  ,  hei  de  enfinar  hoje  ú 
.     modo,  com  que  íe  polFa  alcançar  íem  trabalho. 

710     Todos  os  homens  querem  ter  paô  ,  e  muito 
;•  ps6:  dousalvitreslhe  trago  hoje  para  iíTo:  hum  pa- 

ra terem  paô ,  outro  para  terem  muito.  Vamos  ao  pri- 
Num.2ií.^ejj.Q.   Masque  alvitre  vos  parece  ,  que  fera  eíle  P' 
Que  meyo  vos  parece ,  que  fc  pode  dar  para  hum  ho- 
mem em  toda  a  lua  vida  ter  o  pao  certo ,  íem  nunca 
lhe  haver  de  faltar  }  Será  porventura  ajuntar  mais  l 
Trabalhar  mais  ?  Lavrar  mais  ?  Negociar  mais  ?  Def- 
velar  mais  ?  Poupar  mais  ?  Mentir  mais.í^  Adular  mais.?' 
Alguns  cuidao,  queeíles  faó  os  meyos  deter  paó  ; 
ma^s  enganaóíe.  Sabeis  qual  he  o  meyo  feguro  de  ter 
paó ,  íem  nunca  haver  de  faltar  ?  He  feguir  a  Chriílo. 
Affim  lhe  aconteceo  a  cinco  mil  homens ,  porque  íe- 
guiaó  a  Chriílo  tiveraõ  pao  no  deferto.  Se  cinco  mil 
homens  com  mulheres ,  e  íilhos  entraííem  de  repente 
em  huma  grande  Gidade,naõ  haveria  promptamente, 
que  lhes  dar  a  comer,  quanto  mais  em  hum  deferto. 
Em  hum  deíerto  porém  íc  achavao  eftes  homens  fem 
eafa,  íem  venda  ,  e  fem  dinheiro  para  comprar  o 
mantimento,  ainda  que  o  houveíFe,  e  Ibbre  tudo  com 
fome  de  três  dias  ;  mas  porque  feguiao  a  Chriílo  ti- 
veraõ que  comer  todos,  fem  lhes  faltar  nada.  Senho- 
res meus,  que  taô  defveiados  andais  todos ,  e  taó  ef- 
faimados  por  ter  de  comer ,  e  por  deixar  de  comer  a 
voíTos  filhos,  fegui,  e fervi  a  Chriílo,  eeu  vos  fegu-, 
fo  da  fua  parte  ,  que  nem  a  vós ,  nem  a  elles  lhes  fal- 
tará paô. 

Nam.z37-     7^  ^   Temos  díto  O  primeiro  slvif  c  quepromette- 
mos,  que  he  como  havemos  de  alcançar  o  paó:  vamos 
agora  ao  fcgundo,  como  havemos  de  alcançar  muito. 
Oh  que  ponto  eíle  para  os  cubiçoíos,  e  para  os  ava- 
rentos! 


DíJcurfoLXVllJ.   11^ 

tentos!  Sc  eu  os  coníultaíle  a  eilcs  do  remédio  p-ira 
accreícentar  paó,  para  multiplicar  fazenda  ,  huns  ha- 
•viaô  de  dizer,  que  negociar ,  e  melhor ,  que  tudo,  ne- 
gociar para  o  Maranhão ;  porque  o  que  em  Po!  tugai 
vai  dous  ,  aqui  l*e  vende  por  vinte.  Efte  mcyo  lerá 
muito  bom  quando  no  mundo  na6  houver  quatro 
icouías :  quando  em  Zelanda  naô  houver  Pechilin- 
gues :  quando  em  Argel  naô  houver  Turcos :  quando 
na  agulha  de  marear  naó  houver  Sueftes:  e  quando  na 
cofta  do  Maranhão  naó  houver  baxios.  Mas  em  quan- 
to ha  eftas  quatro  coufas,  he  muito  arrifcado  modo 
de  ganhar  eíTe. 

712     Outros  dirão  ,  que  he  bom  meyo  fervir  a  El-  Num.  rji 
Rey  em  algum  poílo  grande,  ou  muito  junto  a  elle, 
ou  muito  afaílado  deile,  que  efteí?  íaÔ  os  poftos,  em 
íjue  os  homens  fe  aproveitao.  Dizem  ,  que  o  Rey  íe 
ha  de  tratar  como  o  fogo  ,  nem  taó  perto  ,  que  quei- 
me ,  nem  taó  longe,  que  naõ  aquente.  A's  aveças  ha 
defer.  Do  Rey  ou  muito  perto,  ou  muito  longe.  Se 
tendes  poílo  muito  perto  ao  Rey,  tudo  fe  vos  fujei- 
ta  ,  tudo  vos  vem  ás  mãos  ;  e  íe  tendes  poílo  muito 
longe  do  Rey,  tudo  vós  fujeitais,  e  em  tudo  vós  me- 
teis a  mao.  Eíie  modo  de  accrefcentar  fazenda  nao  ha 
duvida,  que  he  muito  prompto,  e  muito  eíFedtivo,  e 
-também  me  atrevera  eu  a  dizer ,  que  era  bom  ,  fe  neí- 
te  mundo  naó  houvera  huma  conta ,  e  no  outro  mun- 
do outra.  Se  no  outro  mundo  naô  houvera  inferno , 
e  neíle  mundo  naó  houvera  jufliça  ,  era  muito  bom; 
mas  neíla  vida  limoeiro  ,  e  na  outra  vida  fogo  eter- 
no :  neíla  vida  confifcado  ,  e  na  outra  vida  queima- 
do,  naó  he  bom  modo  de  ganhar. 

713     Bufcais  mil  traças  ,  e  invençoens  para  ajun- Num.  232Í 
tar  o  alheyo  ao  voíTo,  e  eífas  faó  as  que  em  lugar  de 

lí  2  volo 


i.Cor,  5. 


11^     Vieira  ahhreviado 

vo  lo  accrefcentar,  vo  Io  roem,  e  vo  lo  desbarataô.  He 
o  alheyo  pontualmente ,  como  o  vomitório.  Recei- 
tavos  o  Medico  hum  vomitório :  e  que  vos  acontece 
depois,  que  o  tomais  ?  Lançaillo  a  elíe  ,  e  tudo  o 
mais,  que  tínheis  dentro.  Affim  he  o  alheyo,  guar- 
daivos  de^o  meter  no  eílamago  ;  porque  primeira- 
mente naô  vo  lo  ha  de  lograr ,  e  ha  vos  de  puxar,  e 
levar  comfigo  o  mais ,  que  tiverdes  nelle.  E  vede 
quaõ  pouco  bafta  para  fazer  eftes  efFeitos.  Achab  era 
Rey ,  tomou  a  Naboth  huma  vinha  ,  e  tanto  que  a 
vinha  fe  ajuntou  ao  Reyno ,  perdeo  o  Reyno ,  e  mais 
a  vinha.  Fez  a  vinha  o  que  faz  o  vinho  ,  vomitou-a 
Num.  IO,.  Achab,  ecomellatudo  ornais.  Lá  dilFe  S.Paulo, 
que  hum  pequeno  fermento  corrompe  toda  a  maíía  : 
Modicum  fermentum  totam  majfam  corrumpit ;  e 
taes  faó  os  eíFeitos  do  alheyo,  airida  que  a  maíla,  com 
que  íe  ajunta,  ou  miílura,íeja  huma  Monarchia  intei- 
ra. Que  comparação  tinha  a  vinha  de  Naboth  com  o 
Reyno  de  Achab?  Maseraalheya,  poílo  que  taÓ  pe- 
quena. E  como  fe  Naboth  com  as  vides  da  fua  vinha 
lhe  pozera  o  fogo,aílim  ardeo  em  hum  momento  a  ca- 
fa  de  Achab ,  a  Coroa,  o  Reyno,  a  vida  fua  ,  e  de  fua 
mulher ,  a  honra ,  a  fama ,  o  eftado ,  a  íucceíTaó ,  e  até 
os  oíTos  de  ambos. 

714     Conta  TitoLivio  de  hum  Príncipe  dos  Pie- 
zenigos  chamado  Cures  ,  que  querendolhe  tomar 
fuás  terras  vSuat islão  Príncipe  dos  Ruthenos  ,  elle  o 
houve  ás  maôs  em  huma  embofcada ,  e  mandandojhe 
tirar  a  cabeça  ,  fez  da  fua  caveira  huma  taça  encaf- 
çi'j^"3p4^/íoada  em  ouro,  por  onde  bebia,com  efta  letra:  Qii£- 
Ttom.i.^o^r endo  aliena^  própria  amifil^  :  Bufcando  o  alheyo, 
P«w.         perdeo  o  próprio.  Oh  que  boa  lembrança  para  a  me- 
ia dos  Príncipes ,  e  dos  que  o  naó  fao !  Se  em  todas 

as 


Naua.  23 


^'-'  ji 


Dífairfo  LXVIII-    117 

asmeí-islc  bebera  por  efta  taça  ,  naõ  íe  comera  em 
rantas  o  paó  allieyo  ,  e  íe  no  Braíii  déramos  em  def- 
enterrar  caveiras  ,  em  quantas  poderá  mos  eícreycr  a 
niefma  letra!  Cuja  he  eíb  caveira  ?  He  de  kibno. 
Yiveo  rico  5  e  morreo  pobre  :  íeftou  de  niintos  núl 
cruzados,  e  íeus  íilhos  pedem  eír.iola.  Pois  que  íov 
iíto?  Que  ar  mao  deo  por  eíla  fazenda  ?^  Ojiareník 
tilicua  ,  própria  amifit :  MiíHirou  a  íua  fazenda  com 
a  alheya  ,  pej  deo  a  alheya  ,  e  niais  a  fua.  Fazenda  ad- 
quirida com  defervico  "de  Deos,  e  contra  feus  man- 
damentos/ Deosnos  livre. 

715  Outrosdiraô,  quepara  ter  muito  ,  o  melhor  j^.^j,,^  ^j,. 
remédio  he  tello ,  guardar ,  poupar ,  naõ  galrar,  mor- 
rer de  fome  ,  e  m.atar  á  fom.e  j  porque  dizem  ,  que 
muito  mais  crefce  a  fazenda  com  poupar  muito  ,  que 

com  ajuntar  muito.  Eíle  meyo  eu  coofeílb,  que  he 
muito  bojn  ;  mas  bom.  para  ajuntar  fazenda  psra  ou- 
tros, e  nao  para  fi  ;  porque  o  que  eu  poupo,  e  o  que, 
naô  gaito,  naóhcmeu;  hedaquelles,  aquém,  eu  o  hei 
de  deixar ,  e  depois  o  haô  de  gafcarm.uiíoalegrem.en- 
te  :  e  poupar ,  ê  morrer  de  fome  ,  para  que  outros  vi- 
vaô  ,  e  aiardeem  ,  he  huma  avareza  mui  louca. 

716  Pois  que  remédio  para  sccrefcentar  a  fazcn-  Num.  24° 
da  i.til  ,  diícretii ,  e  muito  feguraroeníe  ?  O  remé- 
dio he  muito  fácil :  dar  da  que  tiverdes  por  air^or  de 
Deos.  De  maneira,  que  ambos  os  ncilos  pontos  íe 

vem  a  rcfumiir  a  Deos/Quereis  ter  paô  ?  Servi  a  Deos. 
Qiíereis  ter  muito  ?  Dai  por  amor  de  Deos.  Poiso 
dar  ,  o  tirar  de  mim  he  cammho  de  accrefceníar  ?  An- 
tes parece  caminho  de  diminuir.  Se  fora  dar  por  amor 
dos  homens  ,  ou  por  outro  reípeito,  ílm  ,  que  era?ca- 
minho  de  perder  o  que  fe  dá  ;  mas  dar  por  an.ior  de 
Deos  HGÕ  ha  mais  certa  negociação  ,  naô  ha  m.ais 
Tom.  II.  H3  ^^^^^ 


iiS     Vieira  abbreviado 

certo  modo  de  ajuntar  fazenda.  Vede-o  no  noíFo 
Joan.  6. 5.  Euangeího  :  Unde  ememus  panes,  tit  manducent  hi  ? 
Ferguntou  o  Senhor  ,  onde  achariaô  paó,  para  que 
comeílem  todos.  Refpondeo  Santo  André,  que  to- 
ibih.  <,.  ^^^  os  paens  ,  que  havia,  naó  paíTavaó  de  cinco  :  EJi 
puer  unus  hic ,  qui  habet  quinque  pmies  ,  e  com  ef- 
tes,  fendo  fó  cinco  ,  quiz  Chriílo  dar  de  comer  a  to- 
dos. Pois,  Senhor ,  nao  vedes  que  tendes  doze  difci- 
pulos,  que  íuílentar ,  e  que  os  paens  naó  íao  mais 
que  cinco  ?  Se  tiveííeis  muito  paô  ,  entaó  eílavaõ. 
bem  eíTas  liberalidades ;  mas  fendo  taõ  pouco  }  An- 
tes por  iíío  mefmo:  fe  os  Apoítolos  tiveraó  doze 
paens,  enjao  naó  era  neceílario  mais,  porém  como 
naó  tinhaó  mais ,  que  cinco ,  era  força  bufcar  algum 
modo  de  os  accreícentar ,  e  naó  podia  ha\^r  meyo 
mais^  breve ,  nem  mais  certo ,  que  dailos  aos  pobres. 
E  aflim  foy  ,  que  os  Apoítolos,  porque  deraó  cinco 
paens,  naó  fo  receberão  doze  paens,  íenaó  doze  al- 
cofas :  Duodecim  cophinos.  Se  os  Apoftolos  foraó  de 
animo  avarento,  e  acanhado,  equizeraó  comer  os, 
feus  cinco  paens  ,  íahira  menos  de  meyo  paó  a  cada^ 
hum  ;  mas  porque  cada  hum  deo  o  feu  pedaço  de  paõ, 
ficou  com  huma  alcofa  cheya  :  Duodecim  cophhws. 

717  Ides  daqui  para  Portugal  ,  naó  embarcais 
nada  comvofco ,  que  haveis  de  comer  ?  Refpondeis: 
Levo  huma  letra  de  tantos  mil  cruzados.  Pois  tendes 
por  certo,  que  naó  vos  pode  faltar  paó  ,  porque  le~ 
vais  a  letra  de  hum  mercador,  e  naÕ  tendes  por  cer- 
tç  com  tantas  efcrituras  de  Deos,  que  vos  naó  ha  de 
faltar  nada  }  Apertemos  mais  efte  ponto.  Na  praça 
de  Londres  quereis  ir  para  Liorne ,  levais  letra  de 
hum  herege  :  na  de  Amílerdaó  para  Alemanha  ,  le- 
vais letra  de  hum  Judeo  :  na  de  Veneza  para  Conf- 

tan- 


■■ft 


Dijairfo  LXVllL    119 

tantinopla  ,  levais  letra  de  hum  Turco,  e  ides  fegu- 
ro  de  que  vos  naó  ha  de  faltar  pao.  Pois  coni  as  letras 
dehumherege,  dehumjudeo,  de  hum  Turco  cui- 
dais que  ides  muito  íeguro  ,  e  com  as  de  Deos  naô  ? 
AhmodiC(£Jidei^  que  nao  tendes  fé! 

718  Dizeime:  Se  no  monte  da  piedade  de  l\oma.  Num.  xa\> 
ou  no  banco  de  Veneza  fe  dera  a  cento  por  hum, hou- 
vera quem  alli  naó  metera  o  feu  dinheiro  ?  Pois  os 
os  pobres  íati  os  banqueiros  de  Deos.  Dafe  nsquelle 
banco  a  cento  por  hum. ,  e  fendo  nós  ts6  amigos  de 
accrefcentar,  naó  metemos  todo  o  noíTo  cabedol  na- 
quelle  banco.  Pois  credem.e,  que  o  banco  de  Vene- 
za pode  quebrar,  como  eílá  hoie  menos  íeguro  com 
a  guerra  do  Turco ,  e  o  de  Deos  naô  ha  de  quebrar , 
nem  quebrou  nunca. 


DISCURSO 


LXIX. 


Tirado  de  him  fermaÕ  da  primeira  Domifíga  do  Ad- 
vento ,  em  que  o  Auãor  mojlra ,  qtie  tudo  pajfa. 

PASSAMENTO. 

y  iQ  A  Verdade ,  e  defcngano ,  de  que  tudo  páf-  Pa«-  s- , 
jt\.  fa,pofto  que  fêja  por  huma  parte  taó  evi- ^"™-  *^ 
dente  ,  que  parece  naó  ha  mifter  prova  ,  he  por  ou- 
tra taó  difiicultofo ,  que  nenhuma  evidencia  baila  pa- 
ra o  perfua-dir.  Lede  os  Filofofos ,  lede  os  Profetas , 
lede  os  Apoílolos  ,  lede  os  fantos  Padres,  e  vereis 
como  todos  empregarão  a  penna  ,  e  naó  huma  ,  fenaÔ 
muitas  vezes ,  e  com  todas  as  forças  da  eloquência  na 
declaração  defte  defengano  ,  pofto  que  por  fi  meímo 

taó  claro. 

H  4  720  Gon- 


Num.  4 


I 


1 2  o     Vieira  abbreviado 

'        720     ConfiJeraime  o  mundo  à^Çá^  feus  princí- 
pios, e  veioheis  fempre  como  nova  figura  no  theatro 
apparecenao,  edefapparecendo  juntamente,  porque 
íempre  paliando.  A  primeira  fcena  deíle  theatro  foy 
o  Parai fo  terreal  ,  no  quai  appareceo  o  mundo  veíii- 
do  de  immortalidade ,  cercado  de  delicias ,  mas  quan- 
to durou  efta  apparencia  ?  Eftendeo  Heva  o  brlço  á 
truta  vedada  ,  e  no  breviíTimo  efpaço,  em  que  o  bo- 
cado 1-ataI  paliou  peia  garganta  do  íiomem,  paflou 
tanibem  com  qWq  o  mundo  do  eílado  da  innocencia 
ao  da  culpa,  da  immorralidade  á  morte,  da  pátria 
aodeíierro     das  flores  ás  efpinhas  ,  do  defcanfo  aos 
trabalnos,  da  felicidade  fumma  ao  íuramoda  infeli- 
Cíuade,  e  miferia.  Oh  miferavel  mundo  ,  que  fe  pa- 
raras affim  ,  e  te  contentaras  com  comer  o  teu  pao 
com  o  fuor  do  teu  rofto,  foras  menos  miferavel !  Mas 
nao  íerias  mundo ,  íe  de  huraa  miferia  grande  naó 
pauaííes  fempre,  e  por  tua  natural  inclinação  a  outra 
mayor.  Os  homens  naquelJa  primeira  infância  do 
munuo  todos  veftíaô  de  pejies  ,  todos  eraó  de  huma 
cor,  todos  fallavaõ  a  mefmaiingua,  todos  guarda- 
vao  a  mefma  ley  ;  mas  naõ  foy  muito  o  tempo  ,em 
que  íe  confervaraó  na  harmonia  defta  natural  irman- 
dade. Logo  variarão  ,  e  mudarão  as  pelles  com  tanta 
din-erença  de  trajos ,  que  cada  dia  de  pés  a  cabeça  ap- 
pajecem  com  nova  figura.  Logo  variarão,  e  muda- 
rão as  línguas  com  tanta  diiTonancia,  e  confufaó,  co- 
mo a  da  torre  de  Babel.  Logo  variarão  ,  e  mudarão 
as  cores  com  a  diverfidade  á.\s  terras,  e  climas  ,  e 
com  a  miftura  do  fungue,  poíloque  todo  vermelho. 
Logo  variarão,  e  mudarão  as  leys,  naõ  com  as  de  Pla- 
tão ,  Sólon  ,  ou  Licurgo  ,  mas  com  a  do  mais  impe- 
nofo ,  e  violento  legislador ,  que  he  o  próprio  alve- 
drio. 


•  1* 


'      Difcurfo  LXl^-     121 

drio    Tudo  mudarão,  ou  tudo  fe  mudou  ;  porque 

tudo  palia.  . 

721     As  vidas  naquelle  tempo ,  ou  naquede  prin-Num.  5. 
cipiocoftumavaÓ  fer  de  fete,  de  oito,  de  novecen- 
tos, e  quafi  de  mil  annos,  e  que  brevemente  fe  acabou 
efte  bom  coílume !  EntaÓ  o  viver  muitos  íecuios  era 
natureza,  hoje  chegar  naõ  a  humíeculo,  >r;ns  per- 
to delle  he  milagre.  Tardarão  em  paílar  ate  iNoe, 
e  também  panarão.  Com  aquellas  vidas  nao  íocrel- 
ciaÒ  os  annos  ,  fenaó  também  os  corpos:  e  acs  tilnos 
de  Deos ,  que  erao  os  defceivdentes  de  Seth ,  e  das  h- 
Ihas  dos  homens ,  que  erao  as  deícenúentes  de  Caim, 
nafceraô  os  gigantes,de  quem  diz  a  Efcritura  :  trant  ^^^^^  ^^ 
ç-io-antesfiiperterram.  Alguns  oíTos,  que  ainda  du  4. 
raó  deftes  ,  que  o  mefmo  texto  fagrado  chama  va- 
roens  famoíos,  demoílraó  peia  fymetria  humana,que 
naò  podiao  fer  menos  que  de  vinte  ,  e  mais  covados: 
e  ainda  na  hiftoria  das  batalhas  de  David  temos  me- 
moria de  outros  quatro  ,  poílo  que  de  muito  menor 
eílatura.  Mas  em  fim  acabou    a  era  dos  gigantes  5 
porque  tudo  nefta  vida,  e  mais  depreda  o  que  he 
grande,  acaba,  e  paíTa. 

722     Diminuídos  os  homens  nos  corpos,  e  nas^^^  ^^ 
idades  ,  quando  tinhaò  a  morte  mais  perto  da  vifta, 
(quem  tal  crera  )  entaõ  crefceraô  mais  na  ambição, 
e  loberba ,  e  fendo  todos  iguaes ,  e  livres  por  nature- 
za ,  houve  alguns,  que  entrarão  em  penfaracnto  de  fe 
fazerem  fenhores  dos  outros  por  violência,  e  o  con- 
íeguiraó.  O  primeiro ,  que  fe  atreveo  a  pôr  coroa  na 
cabeça,  foy  Membroth ,  cu3  também  com  o  nome  de 
Nino  ,  ouBelo  deo  principio  aos  quatro  impérios  , 
ou  Monarchias  do  mundo.O  primeiro  foy  o  dos  AlTy- 
rios,  eChaldeos;  e  onde  eílá  o  Império  Chaldaico? 

O  fe- 


122     Vieira 


o  U06  Romanos ;  e  ondeeftá  o  Impeno  Romano  ?  Se 
p.n!,irao  ;  porque.tudo  paíTa. 

Pft^r^    /?^"'  V''*  íamoííis  vifoens  reprefentou  Deos 
eites  mef.nos  Impérios  a  hum  Rev,  c  a  dous  Profe 
tas    Apnme,ravift5  foy  a  Nabuc;dono°orna  eíS 
tua  de  quntro  metaes:  a  fegunda  a  Zaeharias  em  qua- 
tro  .arroças  de  cavallos  de  d.fFerenres  cores  :  "Ter- 
ce  a  a  Dan.ei  em  hum  confli^-io  dos  qu.tro  ventos 
pnnupaes    que  ao  meyo  do  niar  fe  davaó  batalha 
lois  íe  todas  eftas  vifoens  ernõ  de  Deos,  e  todas  re: 
pre  entavaõ  os  melmos  Impérios  ,  po  que  va  iou 
tanto  a  fabcdoria  divina  as  figuras ,  l  Ibbrla  primet 

nidulT,  f  "?■■''  ^  "f 'f'^'**  =.ccrercenLu  ou- 
trás  duas  t:io  diverfas  emtudo  ?  Porque  a  eltatuina 
dureza  dos  metaes ,  de  que  era  compolb  ,  e  no "nef 

b  .dade  e  firmeza  :  e  porque  nenhum  daquelles 
Impérios  hava  de  pcrfeverar  firme,  eeftaveTmas 
todos  ehav.ao  de  mudar  fucceffivamenteV  e  '>  paff 
lando  de  humas  naçoens  aoutras,  por  iíTo  os  tornou 

aS'""'."'  '"'"^''^'  '^''  ""°Ç^^'  e  n«  i"conf- 
vaílós  mV.-  '  "  "'  ''"''"  '  '  -'='"'^id='de  dos  ca- 
vallos. Mas  nao  parou  aqui  a  energia  da  reprefenta- 
çao,  como  nao  encarecida  ainda  baftantemente  A  ef- 
tatua  eftava  em  pé  ,  e  as  carroças  podiaô  eftar  para- 
uas;  e  porque  aquelles  Impérios  correndo  mais pre- 
cip,tadamente,que  á  rédea  folta,  naó  haviaó  dep  rar 
no  mefmo  p.iro ,  nem  por  hum  fó  momento,  e  fem- 
pre  íe  haviao  de  ir  mudando,  e  paliando,  poriffb  fí- 

nalmen- 


' ' 


«■fli 


7.1. 


Difcurfo  LXIX.     1 25 

nalmente  os  renrelentou  Deos  na  coufa  mats  inquie- 
ta ,  mudável ,  e  inftavel ,  quaes  faÓ  os  ventos  ,  e  mui- 
to mais  quando  embravecidos,  efunofos:  tt  ecce ^_^^ 
quatnor  veuti  cceli  pugnaba?it  in  mart  magno. 

724     Em  quanto  paliarão  eftes  quatro  Impérios, Num. 7. 
que  fov  a  terceira  ,  quarta  ,  quinta  ,  e  lexta  idade  do 
mundo,  entrando  também  pela  íetima,  quem  have- 
Fá,  que  poíTa  comprehender  quanto  paíFou  no  meímo 
mundo  ?  Quando  começou  o  primeiro  império  ,  en- 
tão começou  também  a  idolatria  ,  digno  caíiigo  do 
Ceo,  que  pois  os  homens  fe  íizeraõ  adorar ,  chegal- 
fem  os  mefmos  homens  a  adorar  paos  ,  e  Pedras.  Us 
Revs  porém  ,  que  eraó  ,  ou  tinhao  fido  os  idolatras, 
canonizados  depois  pela  adulação  ,  e  lifonja  ou  na- 
vida  ,  ou  deoois  da  morte,  vinhao  também  eiles  a  íer 
Ídolos.  AíTim  Saturno,  aílim Júpiter,  afíim  Mercu^ 
no,  affimApollo,  affimlMarte,  affim  Vénus,  alíim 
Diana  :  e  pofto  que  todos  eíles  deixarão  os  feus  no- 
mes gravados  nas  eílrellas ,  ellas  permanecem  ,^mas 
eiles  paíTaraó.  PaíTaraô  os  idoios,  e também  paíiarao 
os  Oráculos,  com  que  nelles  refpondia  o  pay  da  men- 
tira ;  porque  ao  fom  da  verdade  do  Euangelho  todos 
emmudecerao. 

725  Entaó  começarão  as  guerras ,  e  que  direi  doSj^^^^  ^ 
exércitos  inumeráveis,  das  batalhas  campaes  ,  e  ma- 
rítimas,  das  ridtorias  ,  e  triunfos  de  humas  naçoens, 
eda  ruina,  abatimento,  e  fervidaó  de  outras  ,taõ  va- 
ria ,  e  alternada  íempre  ?  Só  digo  ,  que  aíFim  a  glo- 
ria ,  e  alegria  dos  vencedores ,  como  a  dor ,  e  afronta 
dos  vencidos,  tudo  paíTou  ,  porque  tudo  paíTa.  O 
exercito  de  Xerxes ,  que  foy  o  mayor  ,  que  vioj) 
mundo  ,,conftava  de  cinco  mil  nãos ,  e  cinco  milhões 
de  combatentes â  e  porque  de  huma  parte,  e  da  ou- 
tra 


i.eira  abbr 

tra  fez  continente  o Helerponto ,  e  cavou,  e  Fez  na- 
vegável o  monte  Atho  ,  diíFe  delle  Marco  Tulíio, 
que  caminnava  os  mares  a  pé ,  e  navegava  os  montes: 
cicer.  lib.  lantts  clajjwus  Xerxes  in  Gradam  tranfitt,  ut  He-- 
..ueinn.  klpmto  junão  ,    Athoquc  monte  perfoffo  ,  mar  ia 
ambulartt ,  terramque  navigartt ,  maria  pedibus 
peragrans,  ciafjlbus  montes.  Mas  todo  aquelieim- 
menío,  eformidovel  apparato,que  viílofez  tremer  o 
mar  ,  e  terra  ,  tao  brevemente  paíToíi ,  e  defapparc- 
ceo,  fendo  desbaratado  ,  e  vencido,  que  í  o  ficou  del- 
iecíleuito.  OmeímoTemiílccles,  que  com  muito 
oeligual  poder  o  desfez  ,  e  poz  em  fugida  ,  também 
paíioii ,  como  na  Grécia, -e  fora  deila  pallarsõ  todos 
osfamofosCapiíaens,  e  fuás  vidorias.  Paífou  Fir- 
mo ,  paíiou  Mitridates,  paííbu  Filippe  de  Macedó- 
nia ,  panarão  Heitor,  e  Achilies  ,  patiaraóAnibal    e 
ScipiaÓ  ,  painmio  Fompeo  ,  ejulio  Cefar  ,  paíloJo 
grande  Alexandre,  nome  ílngular  ,  e  fem  parelha    e 
até  Hercules,  ou  foífe  hum ,  ou  muitos ,  todos  paífa- 
rao,  porque  tudo  paífa. 

726     Coílumaô  as  letras  feguir  as  armas ,  porque 
tudo  leva  a  poz  de  /í  o  mayor  poder  ,  e  affim  ílorece- 
raô  variamente  ,  e  em  díverfas  partes  no  tempo  á^Ç- 
tes  impérios  Codas  as  fciencias  ,  e  artes.  Fioreceo  a 
Filofofia  ,  íloreceo  a  Mathematica  ,  íloreceoa  Theo- 
logia,  íloreceo  a  Aílrologia  ,  íloreceo  a  Medicina  , 
íloreceo  a  Muíica  ,  florcceo  a  Oratória,  íloreceoa 
Poética  ,  íloreceo  a  Hiíloria ,  íloreceo  a  Architetura, 
íloreceo  aPmtura  ,  Horcceo  a  Eítatuaria  ;  mas  aííim 
como  as  flores  fe  murchao  ,  efecaõ,  aíllm  paífaraò 
os  Authores  mais  celebridos  ái^  mcfmas  fciencias, 
e  artes.  Na  Eílatiiiria  paíibu  Phidi.-s  ,  e  l.yfinpo  ,  na 
i  lULura  paíFcu  Timantes ,  e  Apeiie:s,  na  Àrcnitetura 
'  paf- 


Num.  p. 


\\  i 


aatt 


Diícurfo  IXÍX.     125 

míTou  Mellagenes  ,  e  Democrates,  na  Mufica  paliou 

&rpheo,  e  Amphion,na  Hiftoria     "^,f  "'l%^oe^^^^ 
na  Eloquência  Dcmoílhenes  ,  e  rulho ,  naPoeuca 
Homero    e  Virgílio  :  na  Aílrologia  Anaxagoias  ,  e 
?d  o  em^o  na ledicina  Eículapio ,  e  Hippocrates, 
na  Mathem'atica  Euclides,  ^  Archuijedes    na  1 1  o- 
foíia  PlataÓ  ,  e  Ariftoteles,  na  Theologia  Meuuno 
Tremigifto     e  Apollonio  Tyaneo,  e  por  junto  em 
7odaTa's  fclncias^íTaraô  no  mefmo  tempo  os  fe te 
fabíos  de  Grécia  ;  porque  ou  junto  ^^^uJiM^^n^ 
do  paíla.  Só  a  Ethica ,  e  Moral  como  tao  nc.eí Ur  a 
á  vida  ,  e  a  virtude  parece  ,  que  nao  havia  de  paliar, 
mas  os  Platónicos,  os  Peripateticos,  os  Epicmeo  ,  o 
Cinicos,  os  Pitagoricos,osEíboicos,os  Academi 
cos,elles,eíuaselcolas,efeitastodospairarao 

727     Nenhuma  coufa  he  mais  própria  defta  con-  Num.  i< 
fideraçaÔ  ,  cm  que  imos,  que  os  jogos,  e  eípeCtacu- 
los  públicos,  que  os  homens  inventarão  a  titulo  de 
paílatempo,como  fe  o  mefmo  tempo  nao  paíFara  mais 
velozmente  ,  que  tudo  quanto  paíTa.  Huns  jogos  to- 
rao  os  Circenfes ,  outros  os  Diony  fios ,  outros  osju- 
venaes  ,  outros  os  Nemeos ,  outros  os  Maratoneos  , 
todos  cheyos  de  difFerentes  divertimentos  ,  em  que 
ou  fe  perdia  a  honeftidade,  como  nos  de  Vénus,  ou  o 
iuizo,  como  nos  de  Baccho  ;  mas  nenhuns  mais  indi- 
gnos dos  olhos  humanos  ,  e  piedade  natural ,  que  os 
Gladiatorios.  Sahia  toda  a  Roma  ao  Anfiteatro,  a 
que?  Aver,  e  feílejar  como  fe  matavao  homens  a 
homens:  cahia6  huns  ,  fobrevinhao  outros,  e  outros, 
fem  eftar  o  poílo  vago  hum  fó  momento ,  acclaman- 
do  a  cabeça  do  mundo  com  applaufos  mais  carnicei- 
ros, que  cmeis  aíTim  no  dar,  como  no  receber  das 
feridas,  tanto  a  intrepideza  dos  mortos,  como  a  turia 


12 


Num. 


II. 


Vieira 


'toiadó 


dos  matadores.  Os  jogos  Seculares  íe  cliamava6  af* 

fér„'li'.'"''^"*-  *  eelebravaô  hnma  fó  vez  de  fecio  a 

^^SL^TV^7F?  P"''-''"°'  1"^  convidava  pa- 
ra elles.  Kenite  ad  ludos ,  quos  nemovidit  unanõf 

nem  ha  de  tornar  a  ver:  e  com  efte  defeng.no  da  vi- 
ver^ ff.'  'u"  ''^'^^'P^.^Ç^ô  da  futura  os  hiaõ  todos  a 
ver,  tíe  chama  vao  jogos.  Os  Olymnicos  foraô  os 

én  cinco''"'''  '  '  ^"""""^'^  fodos/em  que  drcro 
do  ZlZl  •""■"'  '°,'^°  °  ""'"^^°  ==  h""'»  Cidade 
J  ~  f  ]'  °"  '.'"''''■''  °"  *'' ver  quem  levava 

MascSnS'  '^^™"f^^^ô'Cdiíhnguiaõ  os\„nos. 
ivias  como  toda  a  competência  era  a  correr,  e  o  aue 

SrTAI  °'J"^t'-'»"f^v=''  "«-5  Podiaõ  deixar  de 
fnl.   f  0'yrapiadas ,  como  p.ílaraõ  todos  os  outros 

àiZlt^  ''  '""P*''  '  °"  '«^"^  «^  paílatempos 
daqueíles  jogos.  *^^ 

^728     Só  huma  coufa  ha  ,  que  nnõ  pode  paíTar, 
porque  o  que  nunca  foy ,  naÔ  pode  deixor  de  Ver     e 
taes  parece,  que  forao  as  fabulas,  que  nefte  mefmo 
tempo  fe  inventarão  ,  e  íliig\r,6 ;  mns  fe  eJlas  naô  paíl 
Tarao  em  fi  meímas ,  paíTar.o  naqueiles  cafos ,  e  cou- 
Ins    quederaÔ  occaíiao  a  fe  fingirem.  Na  íeca  uni- 
jeríaí,  que  abrazou  todo  o  mundo^paíFou  a  fabula  de 
l^aetonte:  no  drluvioparricuJar,  que  inundou pran^ 
de  parte  delie,  paílbu  .  fabula  de  Deucalion  •  no  ef- 
tudo,  com  que  ElRey  Atlante  contemplai  a  o  curfo 
e  movimento  das  eílreiias ,  paílbu  a  flibula  de  traze? 
o  C.eo  aos  hombros  :  na  efpeculaçaô  continua  de  to- 
aas  as  noites,  com  que  Endemion  obfervava  os  efiei- 
tos  ao  planeta  mais  vizinho  á  terra  ,  paliou  a  fabula 
dos  íeus  amores  com  a  Lua  ^e  porque  também  osnof. 

íos 


MMÉ 


Dlfiurfo  LXIX.     127    ■ 

V)c  vicios  ,  a  noíTa  fraca  virtude  ,  e  a  noíTa  mefma  vi- 
U  palTa  como  fabula,  o  amor,  e  complacência  de 
lós  mefmos  paflbu  na  fabula  de  Narciío  :  a  nctue-      . 
!a  femiuizo  na  fabula  de  Midas :  a  cubica  iníacia- 
/el  na  fabula  de  Tântalo:  a  inveja  dobemalheyo 
ia  fabula  ,  e  abutre  de  Ticio :  a  mconftancia  da  for- 
tuna mais  alta  na  fabula  ,  e  roda  de  Euxion  :  o  pen- 
ço  de  acertar  com  o  meyo  da  virtude ,  e  nao  decimar 
aos  vicios  dos  extremos  na  fabula  de  Sciila  ,  e  Gary- 
bdes  :  e  finalmente  a  certeza  da  morte  ,  e  amcerteza 
da  vida  pendente  fempre  de  hum  fio  paliou,  e  eíla 
continuamente  paíTando  na  fabula  dss  Parcas.  Aíiim 
envolverão  ,  e  mifturaraÓ  os  fabios  daquelie  tempo  o 
que  ha  com  o  que  naô  ha ,  e  o  certo  com  o  flibuiofo , 
para  que  nem  o  louvor  nosdefvaneça,  nem  a  caiu- 
mnia  nos  defanime,  pois  o  verdadeiro,  e  falfo,  a  ver- 
dade ,  e  a  mentira  tudo  paíTa. 

729     Mas  naô  he  juílo ,  que  nefta  paíTagem  de  tu-  Num.  12.: 
do  o  que  paílou  no  tempo  dos  quatro  Impérios  pro- 
fanos do  mundo ,  paífemos  nós  em  filencio  aquella 
Republica  fagrada',  que  alcançou  a  todos  quatro ,  e 
por  fer  fundada  por  Deos  parece,  que  tinha  direito 
a  naó  paíTar.  Naíceo  a  Republica  Hebrea  no  cativei- 
ro do  Egypto ,  e  quem  entaó  lhe  levantaíTe  a  figura, 
facilmente  lhe  podia  prognoft içar  os  três  cativeiros, 
e  tranfmigraçoens,  com  que  foy  arrancada  da  pátria. 
Hum.a  vez  cativa  por  Salmanafar  ,  em  que  paíFou 
defterrada  aos  AiTyrios :  outra  vez  cativa  por  Nabu- 
codonoíor ,  em  que  paíTou  defterrada  aos  Babyio- 
nios:  e  a  terceira,  e  ultima  vez  cativa  por  Tito  ,  e 
Vefpafiano ,  em  que  paíTou  defterrada  a  todas  as  ter- 
ras ,  e  naçoens  do  mundo. 
730    Começou  no  famofo  Triumvirato  de  Abra- 

haô, 


128     Vieira  ahhreviado 

haó,  Ifaac,  e  Jacob  ,  tantas  vezes  nomeado,  e  hon- 
rado por  boca  do  mefmo  Deos  ^  mas  nem  por  iílb  dei- 
xarão de  paíTar  todos  três.  Succedeolhe  Jofeph ,  o 
quefonhou  as  fuás  felicidades  ,  e  asadoraçoens  de 
feu  pay  ,  e  irmãos ,  e  pofto  que  todas  fe  cumprirão, 
todas  paíTaraô ,  como  fe  foraô  íonho.  Teve  o  mefmo 
povo  três  eílados  de  governo  ,  o  dos  Juizes  ,  o  dos 
Reys ,  o  dos  Capitaens  ,  e  fe  bem  fubindo ,  e  defcen- 
do ,  as  varas  fe  trocarão  com  os  cetros  ,  e  os  cetros 
com  os  baíloens ,  nenhum  daquelíes  eftados  toy  ef- 
tavel ,  jodos  paíTarao.  Nos  Juizes  paliou  a  eípada  de 
Gedeao,  o  arado  de  Sangar ,  e  a  queixada  de  Siimfaõ. 
Nos  Reys  paíTou  a  valentia  de  David ,  a  íabedoria  de 
Salamaõ ,  e  a  piedade ,  e  religião  de  Jofias.  Nos  Ca- 
pitaens  paííou  o  braço  invencível  de  Judas  Macha- 
beo  vencedor  de  tantas  batalhas:  paífou  a  façanha 
immortaí  deEleazaro,  que  metendofe  debaixo  do 
elefante,  matou  a  fua  própria  fepultura  :  e  paílbu 
mais  gloriofo ,  que  todos ,  o  honrado ,  e  zeloío  tefta- 
mento  do  velho  Mathatias  ,  digno  de  íer  efcrito  em 
bronzes.  E  porque  naõ  fiquem  totalmente  em  filen- 
cio  as  heroinas  da  meíma  naçaõ  :  quatro  houve  nella 
infignes  na  formofura ,  Sara  ,  Rachel ,  Eílher ,  e  Ju- 
dith ,  todas  porém  fataes  a  quem  as  amou.  Sara  a  hum 
peregrino  com  perigos  ,  Rachel  a  hum  paílor  com 
trabalhos,  Efther  a  hum  Rey  com  defgoílos,  eju- 
dith  a  hum  General  com  a  morte.  Eíle  acabou  miíe- 
ravelmente  a  vida  ;  masasformoíuras  antes  de  fe  aca- 
barem  as   vidas  já  tinhaó  paífado.  Florecerao  no 
meímo  povo,além  de  outros  iguahnente  verdadeiros, 
defaíeis  Profetas  canónicos,  quatro  mayores,  e  do- 
ze menores ;  mas  em  efpaço  de  três  feculos  os  mayo- 
res ,  e  menores  defde  Ofeas   a   Malachias   todos 

paíFa- 


«    !> 


tmm 


Difairfo  LXIXl     129 

pníTaraó.  Paílaraô  os  milagres  da  vara,  paílaraõ  oS 
da  ferpente  de  metal ,  paflaraô  os  de  Elias ,  e  de  Eli- 
feo :  e  porque  lo  faltava  paliar  a  ley  de  Moyfés  ,  e  o 
íacerdociode  Araò,  a  íeV , -e  Oííacerdocio  também 
palFarao,  porque  tudo  paíí*a.         ^  :^>'  -^ 

731     Agora  quizera  eu  perguntar  ao  mundo,  íeNM«i.ij. 
como  me  enche  a  memoria  de  tantas  çouias  ,  que  to- 
das paflaraô  ,  me  molhara  alguma  aos  olhos ,  que  naó 
pairaíle.  A's  íete  fabricas,a  que  a  fama  deo  o  nume  de 
maravilhas,  accrefcentarao  algun,s  como  oitava  o  Anf 
fitheatro  Romano ;  mas  a  maravilha  oitava  ,  ou  nona 
he,  que  todas  eíTas  maravilhas, que  psieciaó  eternas, 
paliarão.  A  primeira  maraviilíaj-for^ô  as  Pyramides 
do  Egypto  ,  ,a  fegunda  os  Muras  de.Babylonia,  a  ter- 
ceira a  Torre  de  Faro  ,  aquartaioCoIolíb  deRhodes, 
a  quinta  o  Mauíoleo  de  Caria,  a  íexta  o  Templo  de 
Diana  Efeílna ,   a  íetima    o  Siiii.ulaero^4e  Júpiter 
Olympico.Edeixando  o  Anfitheàtrojde  qui^fo Te  vem 
as  rujhas, 'asPyramid.es  eahiraõ,  os  Muros  ar r azarão- 
fe,  o  ColoíTo  desfezfe  ,  o  Maufoleo  fepultt)ure  ,  a 
Torre  fumidíe,  o  Farol  apagoufe,  o  Templo  ardeOj  e 
o  Sijttulacro,como  íimulacro,dervaneceore  em  fi  meír 
mo.  Tem  mais  que  dizer ,  ou  que  oppor  p>  mundo  ? 
Só  pode  appellar  para  as  mais  fortes,  ebem/undaf 
das  Cidades  ,  Cortes.,  e  Metrópoles  dos  mais  pode- 
rofos   Impérios  :    argumento   verdadeiramente  de 
grande  voato  antes  de  fe  lhe  tomar  o  pezo.  Ninive 
Corte  de  Nino  foy  a  mayor  Cidade  do  mundo  :  an- 
davafe  de  porta  a  porta  naõ  menos  ,  que  em  três  dias 
de  caminho :  edificada  de  propofito  com  arrogância 
de  que  nenhuma  outra  a  iguaiaíle  ,  como  naÕ  igua- 
lou.' Mas  onde  eftá  efca  Ninive  ?  Ecbatanis;  Cor- 
te de  Arfaxad,  e  Cidade^  que  o  texto  fagrado  chama 
^.  Tom.  II.  I  poten- 


.i^iou: 


1 3  o     Vieira  ahhreviado 

porentiíTima ,  era  cercada  de  íete  ordens  de  muros  , 
todos  de  pedras  quadradas,  cada  huma  de  vinte e  íe- 
te palmos  por  todas  as  faces ,  e  as  portas  com  prodi- 
gioía  altura  de  cem  covados.  Mas  onde  eítá  eífa 
Ecbatanis?  Suza  Corte  de  AíTuero,  e  Metrópole 
de  cento  e  vinte  e  fete  Províncias  ,  cujo  palácio  re- 
prefentava  hum  ceo  eftrellado  fundado  íobre  colu- 
nas de  ouro ,  e  pedras  preciofas  ,  e  cujos  muros  erao 
de  mármores  brancos  ,  e  jaípes  de  diferentes  cores, 
bem  íe  deixa  ver  quaó  forte  ,  e  inexpugnável  feria  , 
pois  defendia  taô  grande  Monarchia  ,  dominava  tan- 
tos Reynos  ,  e  guardava  tantos  thefouros.  Mas  on- 
de eftá  Suza  ?  Se  hèuv^ílemos  de  fazer  a  meíma  per- 
gunta ás  ruinas  deTheba^,  de  Memphis,de  Badra^de 
Carthago,  de  Corintlw,  de  Sebafte^e  da  mais  conhe- 
cida de  todas  Jerufalem  ,  neceífario  feria  dar  volta  a 
toda  a  redondeza  da  terra.  De  Trova  diíFe  Ovidio  : 

In  Hercid.  ^mnfege^:efl^ubp7r&yafttit.  E  o  mefmo  podemos 
dizer  das  planicies,  valles,  e  montes,  donde  íe.levaii-r 
tavaóás  nuvens  aquelles  vaíliíIimos< corpos  de  caías^ 
muralhas  j^e  torres.  De  humas  fenaó  fábem  os  luga- 
res j  onde  eftiverao ,  de  outras  fe  lavrao  ^-femea^.,  e 
plantão  os  meímos  iugares  fem  mais  veftigíos  de 
haverem  íido ,  que  os  que  encontrão  os  arados ,  quan- 
do rompem  a  terra,  para  que  os  homens  compoílos 
de  carne  ,  e  fangue  íe  naõ  queixem  da  brevidade  da 
vida ,  pois  também  as  pedras  morrem  ,  e  para  que 
ninguém  fe  atreva  a  negar ,  que  tudo  quanto  houve 
paliou ,  e  tudo  quanto  he  paíTa. 

Num.  14.  752  A  razão  defte  curfo,  ou  precipício  geral  , 
,  com  que  tudo  paíía  ,  nao  he  huma  fó  ,  fenaó  duus  : 
huma  contraria  a  toda  a  eftabiiidade,  e  outra  repu- 
gnante ao  mermo  fer.  E  quaes  faò  ?  O  tempo ,  e  an- 
tes 


t  * 


Difairjo  JLXÍ  Xí    1 3 1 

tes  do  tempo  o  nada.  Que  coufa  mais  veloz  ,  mais 
fugitiva,  e  mais  infíavel,  que  o  tempo?  Taõinílavel, 
que  lieuhum  poder,  nem  ainda  o  divino  o  pode  pa- 
rar; por  iílo  os  quatro  animaes,  que  tiravao  pela  car- 
roíj-a  da  gloria  de  Deos  nefte  mundo  ,  naõ  tinhaÕ  ré- 
deas. Defcreveo  o  tempo  no  palácio  do  Sol  o  mais 
engenhofo  de  todos  os  Poetas ,  e  dividindo-  o  em  Tuas 
p-irtes ,  diíreaíTim  elegantemente. 

A  dextra  Uvaque  cites ,  à^  menjis ,  ér  annus^ 
Soículaque  ,  à^pofitafpatiis  aqualibiis  hor^y 
Ver  que  novumftahat ,  cinâítm  florente  corona^ 
Stabat  nnãaJEJlas^  (l^fpicaferta  gerebat  ^ 
Stabat  ér  Autíimmis  calcatis  forãibus  uvtSj 
Et  glacialis  Hyems  canis  hirjtna  capiUls. 
Elegantemente ,  torno  a  dizer  ,  mas  falfa  ,  e  impro- 
priamente. Aqueile  Stabat  tantas  vezes  repetido  he 
p  que  tirou  toda  aíemelhança  de  verdade  áengenho- 
fa  pintura  \  porque  nem  a  Primavera  com  as  fuás  flo- 
res ,  nem  o  Eftio  com  as  íuas  eípigas ,  nem  o  Outono 
com  os  feus  fruílos ,  nem  o  Inverno  com  os  Teus  frios, 
é neves,  por  mais  tolhido,  e entorpecido  que  pare- 
ça ,  podem  eílar  parados  hum  miOmento.  Pallao  as 
horas ,  paífaõ  os  dias,  paííaÒ  os  mezes ,  paííaô os  an- 
nos,  paílaó  os  feculos,  e  fe  houveíle  jeroglifico,  com 
que  fe  podelTem  pintar^  havia  de  fer  todos  com  azas^ 
naÓ  fó  correndo ,  e  fugindo ,  roas  voando  ,  e  defap- 
parecendo. 

733  Nem  eícufa  efta  impropriedade  eílar  o  Sol 
aíTentado  :  Sedebat  in  folio  Phoebus ;  porque  o  Sol 
pôde  parar ,  como  no  tempo  de  Jofué,  ou  tornar 
a  traz,  como  no  tempo  de  Ezechias;  mas  o  tempoem 
nenhum  tempo  nem  parar,  nem  deixar  de  ir  por  di- 
ante, fempre  ,  e  com  a  mefma  velocidade.   Bem 

1 2  emen- 


Meraai. 
lib.  1. 


n2 


Vieira  abbreviado 


Met.  Iib. 
4- 


Num.  15. 


emendou  eíla  fua  impropriedade  o  mermo  Poeta  , 
quando  depois  diíle : 

Ipfa  qiioque  affiduo  labuntitr  teriipora  motu , 
Nonfecus  ac  fliimen^  neque  enim  conjiftereflumen, 
Atit  levis  hora  potefi.  ,    ; 

E  como  o  tempo  naô  tem ,  nem  pode  ter  confiften-. 
cia  alguma,  e  todas  as  coufas  defde  feu  principio  naf- 
cerao  juntamente  com  o  tempo  ,  por  iíTo  nem  elle  , 
nem  ellas  podem  parar  hum  momento ,  mas  com  per- 
petuo moto,  e  revolução  infuperavel  palFar,  eir  paf- 
fando  fempre. 

734  A  fegunda  razaó  ainda  he  mais  natural,,  e 
mais  forte,  oiVi:/i'/í2.Todasas  coufas  fe  refolvem  natu^ 
ralmente  ,  e  vao  bufcar  cora  todo  o  pezo,  e  Ímpeto 
da:  natureza  o  principio,  donde  nafceraó.  O  homem 
porque  foy  formado  da  terra,  ainda  que  feja  com 
difpendio  da  própria  vida ,  e  íumma  repugnância  da 
vontade,  fempre  vay  buícar  aterra,  e  fódefcanfa 
na  fepultura.  Os  rios  efquecidos  da  doçura  de  íuas 
aguas  ,  poílo  que  as  do  mar  fejaõ  amargofas  ,  como 
todos  nafceraó  do  mar  ,  todos  vaó  bufcar  o  mefmo 
mar ,  e  fó  nelle  fe  defafogaó ,  e  paraÓ  como  em  feu 
centro.  Aífim  todas  as  coufas  deite  mundo,  por  gran- 
des, e  eítaveis  que  pareçaõ  ,  tirou-as  Deos  com  o 
mefmo  mundo  do  naó  fer  ao  íer,  e  como  Deos  as 
creou  de  nada  ,  todas  correm  precipitadamente  ,  e 
fem  que  ninguém  as  poífa  ter  maó  ,  ao  meímo  nada , 
de  que  foraó  creadas.  Viftes  o  torrente  formado  da 
tempeftade  fubita  como  fe  defpenha  impetuofo,  e 
com  ruido ,  e  tanto  que  ceifou  a  chuva ,  também  elle 
ceifou,  e  íefumiofubitamente,  e  tornou  a  fero  nada, 
que  dantes  era  ?  Pois  aífim  he  tudo ,  e  íomos  todos , 
?^-j7.8.  diz  David  :  Ad  nihilum  devenient  tamqumn  aqtta 


I  ^ 


•■^T'      """—-■ 


•■• 


Difiurjo  LXIX.     153 

(Jecurrens,  Sonhalles  no  ultimo  quarto  cia  noite  , 
quando  as  reprefentaçoens  da  fantafia  laõ  menos 
confufas,  que  poíluieis  grandes  riquezas,  que  gofa- 
veis  grandes  delicias,  e  que  cílaveis  levantado  a 
grandes  dignidades;  e  quando  depois  acordaíles,  vif- 
tes  com  os  olhos  abertos  ,  que  tudo  era  nada.  Pois 
aíTini  paíFaô  a  fernada  em  hum  abrir  de  olhos  todas 
as  apparencias  defte  mundo,  diz  o  mefmo  Profeta  : 
Velntfomniumfnrgentium.Domine,  imaginem  ípf o-  n.  n^,  tm 
mm  ad  nihilum  rediges.  De  íbrte ,  que  eítas  la5  as 
duas  razoens  ,  porque  todas  as  coujas  paííaó.  Paííaô, 
porque  voaô  com  o  tempo,  e  paílaõ,  porque  voaô  ca- 
minhando para  o  nada,donde  fahiraõ;  por  iíTo^^como 
diz  oEfpiritoSanto,  quando  humas  paíFaraô  ,  ou 
tem  paliado  ,  he  necelFario  ,  que  venhaõ  outras  para 
também  paliar:  Generatio  praterif,  ér  g^neratio^^^^^ç-^ 
íidvenit  :  terra  atitem  in  aternumjiat. 

735  Mas  fe  bem  fe  repara  nefta  mefma  fentença,  Num.  itf. 
fendo  taô  poucas  as  fuás  palavras ,  aílim  como  humas 
confirmaó,  aíFim  outras  parece  que  impugnaô  ,  e 
deílroem  quanto  imos  dizendo.  Porque  fe  a  terra 
eftá  fempre  firme ,  e  eftavel  :  Terra  autein  in  £ter- 
numjlat  ^  feguefe  ao  menos,  que  a  mefma  terra  nao 
paíTa  ,  e  que  ha  no  mundo  alguma  coufa^,  que  naô 
palfe.  Concederemos  pois  efta  excepção  ao  noíTb 
aíTumpto,  e  diremos,  que  paíTao  as  figuras,  como  diz 
S.  Paulo,  mas  que  a  terra,  que  he  o  theatro,  naô  paf- 
fa  ?  Naõ  digo  ,  nem  concedo  tal.  A  terra  toda  nao 
paífa,  maspaíFaó,  efempre  eílao  paíFando  todas  as 
partes  delia.  A  terra  compoemíe  de  Reynos  ,  os 
Reynos  compoemfe  de  Cidades ,  as  Cidades  com- 
põem fede  ca  fas  ,  e  campos,  principalmente  de  ho- 
mens ,  e  tudo  iílo ,  que  tudo  he  terra ,  ( e  toda  a  ter- 
Tom.  II.  I3  i"a) 


Dan.  2.  XI, 


Icclef.  iQ 
i. 


1 3  4     Vieira  ahhreviado 

ra  )  perpetuamente  eílá  paíTando. 

73<^.    Daniel  revelando  a  Nabucodonofor  aintel^ 
Iigencia  da  fua  eflaíua,  diíle,  que  Deos  muda  os  tem- 
pos    e  as  idndes  ,  e  conforme  elbs  paíTa  os  Revnos 
de  huma  parte  para  outra  :  Ipfe  mutat  têmpora,  ir 
States,  transferi  Regna ,  atque  conjlituit.  AíTun 
paliou  o  Reyno  do  meímo  Nd)uco  para  a  Períia,  o 
dos  Perfas  para  a  Grécia ,  o  dos  Gregos  para  Rofna , 
e  o  dos  Romanos  para  tantos  outros,  quantos  hoje 
coroao  outras  cabeças^  as  quaes  fe  devem  lembrar 
daquella  infa Uivei  fcntença  :  Regnmn  agente  in^en- 
íemtransfertur  propter  injuftitias.  O  noííb  Rey- 
no  nao  fendo  no  fitio  originai  dos  mayores  ,  quantas 
vezes  panou  a  outras  gentes?  PaíTou  aos  Suevos, 
pairou  aos  Alanos,  paíTouaos  Gartbagmezes,  paíTou 
aos  Romanos,  paíTou  aos  Árabes,  e  Saracenos ,  e 
dentro  da  mefma  Hefpánha  também  paílbu,  e  tor-^ 
nou  a  paífar.  Os  terremotos ,  que  fe  geraõ  do  ar  vio- 
Jentado  nas  entranhas  da  terra ,  fio  muito  raros :  mas 
os  que  fe  ftzem  na  fuperficie  delia ,  fempre  a  trazem 
em  perpetua  movimento. 
Num.  17.      7V\    E  fe  os  grandes  Reynos,  e  Impérios  naÔ  faÔ 
eltaveis ,  e  paífaô ,  que  ferao  as  Cidades  particulare.s 
para  que  nao  he  neceífario ,  que  a  roda  da  fortuna  dê 
toda  a  volta  ?  Nao  fallo  daquellas ,  que  acabarão  co- 
mo de  morte  fubita  abrazadas  até  á  ultima  cinza  no 

l^^?x"  !^/r^^  ^^^^  "^^^^  '  ^^^^«  '^^oy^  »  ^  Lugduno. 
Deita  diíTe  judjciofamente  Séneca :  Qtwndo  una  nox 

fmt  inter  nr bem  maximam ,  f  miHa7n,  nihil  priva- 
tmij  mhtlpuhlicejlabiíe  eft  :  t am  bominum ,  quam 
urbíiimfata  volvimtur.  Deixadas  pois  eftas  ,  que 
lubitameni-e  pamirao  do  íer  ao  nao  íer ,  fo  fallo  das 
^ue  por  feus  pálios  contados  vieraõ  de  humdomi- 

nia 


Senec. ep 


■■• 


Difcurfo  LXiX.     155 

nio  a  outro  dominio.  E  quantas  vezes  as  Pombas 
deBabylonia,  quantas  osLeoens  dejerufalem, quan- 
tas as  Águias  de  Roma  ,  e  de  Coníbntinopla  vi- 
rão fobre  fuás  muralhas  outras  bandeiras?  O  mayor 
theatro  de  Marte  no  noíTo  feculo  ,  e  por  ventura,  que 
em  nenhum  outro  ,  foraô  as  guerras  Belgicas  ,  e  na 
grande  Província  de  Hollanda  excepta  Dorth  ,  por 
iíTo  chamada  a  Virgem,  nenhuma  Cidade  houve,  que 
nao  foíTeconquiftada  ,  e  alternclTe  o  dominio.  Qiie 
direi  dos  confins  fempre  incertos  ,  e  taõ  frequente- 
mente  mudados  de  Hefpanha  com  França  ,  e  de  Fran- 
ça com  Germânia  ,  de  Germânia  com  a  Turquia  ,  e 
da  Turquia  com  Itália  ?  Annos  ha  ,  que  a  antiga 
Creta  ,  hoje  Cândia  ,  fem  fer  das  ilhas  errantes  do 
Archipeiago,  tem  pofto  em  duvida  o  mundo  para 
onde  ha  de  ir ,  e  fe  ha  de  reconhecer  as  Cruzes,  ou  as 
jTjeyasLuas. 

758  Em  quanto  ás  cafas,  membros  menores  ,  de  Num.  18. 
que  fe  compõem  innumeraveimente  as  Cidades  ; 
quem  poderá  comprehen-Jcr  o  inextricável  labyrin- 
to,  com  que  á  maneira  de  peixes  no  mar  fe  andaó 
fempre  movendo ,  e  pafíando  de  hum  dono  para  ou- 
tro dono?  Ouçamos  a  familiar  evidencia,  com  que  o 
grande  juizo  de  Santo  Agoftinho  demoílrou  a  hum 
delles  efta  perpetua  inftabilidade.  Introduz  hum  ri- 
co ,  quejadanciofode  fer  fenhor  da  fua  cafa,  dizia: 
Domum  meam  habeo.  E  perguntaihe  o  Santo  aílim  : 
Qnam  domum  tuam  ?  Qtíam  pater  meus  mihi  dimi-  ^^^^  ^^^^ 
ftt.  Et  tinde  tile  habtiit  ?  Avus  nojler  tilam  reltquit.  in  pí.  izi. 
Recurve  adproavum^inde  ad  abavum^  ^jamno- 
mina  non  potes  dicere.  Pater  tutis  híc  eam  dimifit  ^ 
tranfivit per  tilam  ^fic  <ÍT  iu  tranfibis.  Eíla  cafa,  de 
que  vos  jadaisleríenhor,  porque  he  voífa  ?  Porque 

1 4  a  her- 


1^6     Vieira  ahhreviado 

a  herdei  de  meu  pay  :  e  yoíTo  pay  de  quem  a  houve  ? 
De  meu  avo:  e  de  quem  a  houve  voíTo  avo  ?  De  meu 
..biíavo:  e  voílo  biíavo  de  quem  ?  De  meu  trefavo  : 
já  nao  tendes  palavras,  com  que  profeguir  de  quem 
maisfoy  ,  e  a  quem  mais  paílbu  eíta  cafa,  que  cha- 
inais  voíla.  Pois  aífim  como  ella  paííou  ,  e  voílbs  an- 
tepaíTados  paílaraó  por  elJa  ,  aíTim  ella  ,  e  vós  tam- 
bém haveis  de  paíTar. 

739  Por  eíte  modo  fem  firmeza ,  nem  eftabilida- 
de  aJguma  eftao  íempre  paíTando  nefte  mundo  as  ca- 
ías ,  as  quintas,  as  herdades,  os  morgados :  huns,  por- 
cjue  os  faz  paíTar  a  morte ,  outros,  porque  os  manda 
paíTar  a  juíliça,  outros,  porque  os  convida  a  paílar  a 
riqueza  dos  que  os  compraõ,  outros,  porque  os  obri- 
ga a  neceílidade  dos  que  os  vendem  ,  outros,  porque 
a  força ,  e  poder  os  rouba  ,  e  íenhorea  por  violência: 
em  íumma ,  que  naó  ha  pedra ,  nem  telha ,  nem  plan- 
ta ^  nem  raiz ,  nem  palmo  de  terra  ,  que  naÔ  eíteja 
fempre  paílàndo,  porque  tudo  pníTa. 
Nura.  !<?.  740  Deíle  tudo ,  que  eílá  íempre  paíJando  ,  he  o 
homem  naô  fó  a  parte  principal ,  mas  verdadeiramen- 
te o  tudo  do  mefmo  tudo.  E  vendo  o  homem  com  os 
olhos  abertos ,  e  ainda  os  cegos,  como  tudo  pafía,  fó 
nós  vivemos  como  fe  naõ  palfaramos.  Somos  como 
os  que  navegando  com  vento,  e  maré,  e  correndo 
velociíTimamente  pelo  Tejo  acima  ,  fe  olhaÕ  fixa- 
mente para  terra,  parecelhe  que  os  montes,as  torres, 
e  a  Cidade  he  a  que  paíla  ,  e  os  que  paflaÓ  faõ  elles. 
He  o  que  diífe  o  Poeta  :  Montes ,  iirbesqiie  recedunt. 
Mas  demos  volta  a  eíta  mefma  comparação  ,  e  vere- 
mos na  terra  outro  género  de  engano  ainda  mayor. 
A  mayor  oílentaçaõ  de  grandeza  ,  e  mageílade ,  que 
fe  vio  nefte  mundo  ,  e  huma  das  três ,  que  Santo 

Agofti' 


m 


Diícurfo  L^IX.     157 

Agoftinho  delejnra  ver ,  foy  a  pompa  ,  ^  magn-ficen-     ■ 
cia  dos  triunfos  Romanos.  Entravao  por  huma  cias 
portas  da  Cidade,  naqnelletenipovaft.ffima    enca- 
minhados longamente  ao  Cap.toho  :  PJ^^^J^   .".°^ 
íoldados  vencedores  com  acciamaçoens:  legui-'<^'e 
renrcentadns  ao  natural  as  Cidades  vencidas     as 
monta n    "sina^ceniveis  efcaladas,  osr.os  caudalofos 
Si  com  pontes ,  as  fortalezas ,  ^  -"-  ^o-- 
migos  ,  e  as  maclVmas ,  com  que  [""«^f  "J?™: 
em  arande  numero  de  carros  os  deípojos  ,  e  r.que 
zas  ^e  tudo  o  raro ,  e  admirável  das  reg.oens  nova- 
n  nt     lueitas  :    depois  de  tudo  .fto    .mu  t.dao 
dos  cativos  ,  e  tal  vez  os  mefmos  Reys  '^^»  f"^»^  ' 
e  por  fim  em  carroça  de  ouro    e  Pedraria  ,t  rada  por 
elefantes  ,  tigres ,  ou  leoens  domados  ,0  ^^0^°  "'  . 
unfador    ouvindo  a  elpaços  aquelSe  glonofo,  e  te^ 
merofo  pregaó  :    Memento  te  effe  morta/em.  Em 
quanto  eftalrándeprociíTaô  (que  affim  lhe  chama 
Séneca)  caminhava,  eftavaõ  as  ruas ,  as  praças    ^s 
janeilas,  eos  palanques ,  que  para  efte  fi™  f'^  ff '  «' 
cubertos  de  infinita  gente  ,  tocos  a  ver.  E  fe  Dió- 
genes entaS  perguntalle,  quaes  erao  os  q"f  P=^fl  vao 
fe  os  do  triunfo,  fe  os  que  eftavao  vendo  ,  nao  ha 
duvida ,  que  pareceria  a  Pf  g""t«^<gna  de  nfo.  Mas 
o  certo  he ,  que  tanto  os  da  procilTao ,  e  do  tnunto , 
como  os  das  janeilas  ,  e  palanques,  que  os  eftavao 
vendo ,  huns ,  e  outros  igualmente  paíTavao ,  porque 
a  vida ,  e  o  tempo  nunca  pára  ,  e  ou  indo ,  ou  eftan- 
do,  ou  caminhando,  ou  parados,  todos  fempre  ,  e 
com  igual  velocidade  paliamos.  ,      ,      .-j  v,,™  ,«: 

741     Declarou  efta  verdade  taÔ  mal  advertida^™- 
com  huma  femelhança  muito  propna  Santo  Ambro- 
fio  elegantemente:  Eíjnon  videmur  ire  corporoh- f,^^,^f_  ■ 


!l   i 


Num.  ti. 

Socrat.  in 

Cfat. 


3.14,  t. 


1 5  ^     F/^/r^  ahbreviado 

tjr ,  progredimur.  Nam  ficut  in  navibus  dormien 
Ímf^y  .^ "^T'" ^»"íl'"fl''e finem,  cjfu la- 

q  fe  he  n  vil,    rL'f°'  ^'^''«^"dos  na  nicH^a  nao^ 
HUL  ne  a  vida  ,  e  todos  navegamos  com  o  mefmo  v^n 

ver'n?5:tm»''"P°'  "'«--'"o  na  naThuns  gt 
vernao  o  íeme  ,  outros  mareaõ  as  velías    hun^j  violou 

troVrí  nhnm"    ° '  "f"^  J'>g '^ .  outros  comem ,  ou- 
tros nuihuma  couía  fazem  ,  e  todos  igualmente  ca 
mmhao  ao  mefmo  porto ,  affim  nós,  amda  n^^l  3 
Pnreça    infenfivelmente  imos  paflandó  femn  e    aW 
zmhandofe  cada  hum  ao  íeu  fim  ;  porque  trío^clue 
Ambrofio ,  dormes ,  e  o  tempo  anda  Tn'dmm?sií 

bemrnof^/r''"??''''^'  ^^°^;  masad.Wtio 
olhos  bertoAT'  ""'  ^^'"''T''^  Po-^q^e  tendo  os 
omosabertos  para  ver,  que  tudopalía,  (ó  oara  con- 

,  742  Dito  foy  do  grande  Filolofo  Heraclito  al- 
legado    e  celebrado  por  Sócrates  :  Non po/Tenuem. 

L  porque?  Porque  quando  entralTe  a  fesunda  vez 
m-rinfi  '  "^"^  '^'"'P''*  ''"''^  '  ^  P^-IT^  '  he  outro.  E da! 
rio  rf  -  ?"  '  '^"'  °  "'"^™°  íuccederia ,  fe  naó  folie 

entk^?"  ^^°'  ^^  •  "^f ''"^  '"J"^""*'  ^"^  q"e  o  homem 
entra  (Te,  porque  ainda  que  a  agua  do  higo ,  e  do  tan- 
que naô  corre    nem  fe  muda ,  corre  porém ,  e  ?emp"e 

mdmoTâ"'.%°^"^^"' '  "í-  -""  P-n-nec"^;: 
mel  mo  eftado  :  Et  nmquam  in  eodemjlatu  perma- 

net. 


1 ' 


ÉÊÊÊm 


Difcitrfo  IXÍX.     i]9 

net.  AiTim  o  dilíe  Job  ,  e  quem  o  na6  diíTer  aílim  de 
todo  o  homem  ,  e  de  íl  mefmo ,  naÓ  fe  conhece.  Ad- 
mirale  Phdo  Hebreo  de  qne  perguntando  Deos  a 
Adaó  onde  ellava :  Jdam  ubi  es,  eile  naó  refpondef-  Ccn.j.  9. 
fe    Mas  logo  efcuía  ao  meímo  Adaô,  e  a  qualquer 
outro  homem  ,  a  quem  Deos  fizeííe  a  mefma  pergun- 
ta ;  porque  como  pode  refponder  onde  eíla  quem 
naoeíláPSedilTéra-.Eftouaqui,  (;  como  fubtilmente 
areue  Santo  Agoftinho  }  entre  a  primeira  fy liaba  ,  e 
a  fegunda  já  o  eílou  nao  íeria  eílou ,  nem  o  aqui  le- 
ria o  mefmo  lugar ;  porque  como  tudo  eíla  p^aííando, 
tudo  fe  teria  mudado.  Por  ilTo  conclue  o  meímo  i  hi- 
lo  ,  que  fe  AdaÓ  houveííe  de  refponder  própria  ,  e 
verdadeiramente  onde  eftava  ,  havia  de  dizer  NtiJ- 
qiiam  em  nenhuma  parte;  porque  em  nenhuma  par- 
te eftá  aquilio,  que  nunca  eftá,  mas  fempre  paíla  :  -^^ 
quodproprie  refponderepoterat  .nufquom,  eo  quoU^^'"- 
humana  res  niinquam  Í7j  eodemftatu  maneat. 

743     Confiderando  efte  continuo  paiTar  do  ho-Num.ziu 
mém  ,  (  mo  fora  de  fi ,  fenaô  onde  verdadeiramente 
parece  que  cítá  ,  e  permanece  ,  que  he  dentro  em  li 
mefmo )  diziaõ  os  Sábios  da  Grécia,  como  refere  Eu- 
febio  Ceíarienfe,  que  todo  o  homem, que  chega  a  íer 
velho, morre  féis  vezes.  E  comoPPaíTando  da  infância 
á  puerícia  ,  morre  a  infância  :  paíTando  da  puerícia  á 
adolefcencia  ,  morre  a  puerícia:  paílandoda  adolef- 
cencia  ájuventud  ,  morre  a  adolefcencia:  paíTando 
á^íjuventud  á  idade  devaraô,  morre  ájuventud  ^ 
paliando  da  idade  de  varão  á  velhice,  morre  a  idade 
devaraô:  e  finalmente  acabando  de  viver  por  tanta 
continuação ,  e  fucceíTao  de  mortes ,  com  a  ultima  , 
que  fó  chamamos  morte,  nwrre  a  velhice.  Aííim  o 
coníideravaõ  aquelles  Sábios  mais  larga ,  e  menos 

íabia- 


3^í 


i!    i 


1 40     Vieira  abbreviado 

fabiamente  do  que  deverão,  aosquaes  porilToemen- 

'■c°'-  .!■  olfv       °''''^?,"'^°''í"^  "^o""'"''''  todos  os  dias: 
Qimidumorm:  Bjá  pôde  fer,  que  da  communica- 

tZ  'Tv    -"^' r  ''?  '^om  S.  Paulo ,  enfinou  eile  efta 
meíma  l.çao  aofeu  difcipulo,  quando  lhe  dilPe:  Sin- 
gulos  dtesjingulas  vitasputa.  Se  o  Sol ,  que  fera- 
pre  he  o  mefmo ,  todos  os  dias  tem  hum  novo  nafd- 
mento,  e  hum  novo occafo,  quanto  mais  o  homem 
por  lua  natural  inconltancia  taõ  mudável ,  que  ne- 
nhum he  hoje  o  que  %  hontem  ,  nem  ha  de  fer  á 
manha  o  que  he  hoje!  Defeng.nemonos  pois  todos, 
e  diga  ,  ou  digafe  cada  hum  com  EiRev  Ezechias: 
Demam  tifque  ad  vefper-am  finies  7ne.  Èlejaacon- 
cluíao  defte  largo  difcurfo  ,  queentaõ  definirem^ 
bem  ,  e  conheceremos  o  que  he  efta  vida  ,  e  efte 
niundo  ,  quando  entendermos  ,  que  naÕ  fó  eftamos 

faraento.  ''"'^'^"'  ^'""'^'""  '  ""'  ^'"  P^'P""°  P^*"^ 
D  I  S  C  U  RS  O     LXX. 

Tirado  de  humfermaS  da  fegunda  oitava  da  PaC- 

choa pregado  em  Roma:  dia,  em  que  he  obris-açal 

e  cojtume  de  toda  Itália  pregar. da  paz. 

P  AZ. 


IfaK  3 
1^. 


Part.  6. 
Nuia.  i^í). 


744 


7^  A  cafa ,  ou  família ,  que  he  huma  Repu- 
X  ^  blica  pequena  ,  e  na  Republica  ,  que  he 
iiumacafa,  ou  família  grande ,  toda  a  paz  confifte 
em  que  o  império  do  que  manda,  e  a  íujeiçaó  dos 
que  obedecem,  elíe  ordenando ,  e  elies  fubordena- 
aos  eítejao  concordes. 

745  Ago- 


Difcurjo  XXX.      I 

^4^  Ao^ora  pergunto  eu:  Eque  Terá  neccfílino  de  Num.  zooi 
huma  ,  c  d?outra  parte,  para  que  a  ordem  defta  eou- 
cordia  fe  conferve,  e  com  a  ordem,  e  a  concórdia 
fe  configa  a  paz  ?  Refpondo  com  a  mefma  propor- 
ção, que  Ía5  necelTarias  outras  duas  coufas  :  da  p^^rte 
do  fuperior  ,  e  do  que  manda ,  igualdade  :  da  parte 
dos  inferiores  ,  e  dos  que  íaÔ  mandados  ,  paciência  : 
fem  iaualdade  de  huma  parte ,  e  fem  paciência  da  ou- 
tra naÓ  fe  poderá  confeguir ,  nem  confervar  a  paz. 
Vós  ,-que  na  familia  ,  ou  na  Republica  íois  manda<^ 
dos,  eluieitos,  requereis  paz, paciência.  „  m,„,  ,«^- 

746     Aqui  vereis ,  fenhores ,  o  engano  deíle  mun-  N-.  -4, 
do    Todas  as  guerras  defte  mundo  le  fazem  a  fim  de 
confeguir  a  paz :  Onmis  homo  ,  diz  Santo  Agoítmiio,. 
etiamheliigerando ,  pacem  reqmrtt :  pacts  tntenttO' 
ne^enintiir  &  bella.  A  guerra  fe  applica  afabedo- 
ria ,  na  guerra  fe  emprega  a  potencia  ,  com  a  guerra 
fe  defpendem  as  riquezas ,  e  com  a  gverra  fe  perten-; 
de  a  paz;  mas  he  engano:  Viam  pacis  mn  cognove^^f^^-  n. 
runt,  A  paz  naÕ  fe  conquifta  com  exércitos  arma- 
dos ,  conquiílafe  com  huma  fó  eípada  ,  e  com  dous 
efcudos  :  com  huma  fó  efpada  ,  que  he  a  da  juínça , 
e  com  dous  efcudos  ,  que  faó  os  das  fuás  balanças. 
Divida  a  efpada  igualmente  pelo  meyo  o  que  partir, 
e  ponhaÓfe  as  partes  ,  ou  as  ametades  iguaes ,  huma 
em  huma  balança  ,  e  outra  na  outra  ,  e  debaixo  delta 
igualdade  fe  achará  a  juftiça  ,  e  neíle  equiliono  a 

Daz 

747  Tal  foY  o  primeiro  juizo  de  Salamaó ,  e  a 
primeira  íentença  do  Rey  pacifico.  AíFentado  Sala- 
maó no  trono  Real ,  a  primeira  coufa  ,  ou  cafo ,  que 
lhe  foy  propofto,fov  a  contenda  de  duas  mulheres  le- 
bre hum  minino,  ó  qual  cada  huma  delias  proteíta- 

va,  . 


142     Vieira 

va    que  era  feu  filho.  NaÔ  havia  teílimunhas,  nem 
outra  prova    E  que  faria  o  Key  ?  O  que  eu  acabo  de 
3  Rcg-  3-  ^\^^.^-  ^^^^jpda  que  o  minino  íe  parta  pelo  mevo'  Di- 
.5.  vidnepfammi :  e  eíla  foy  a  igualdade  da  efpada  da 

juítiça  :  manda  mais,  que  das  duas  ametades  huma 
iede  a  huma  mulher,  ea  outra  á  outra  :  Datedhm- 
,       diam  partem  uni  ,  f  dimidiam  partem  alteri  •  e  ef- 
ta  foy  a  Igualdade  das  balanças.  Oh  admirável*  iero- 
giifico  da  juíliça  igual ,  e  digno  de  o  tomar  por  em- 
preza  o  Rey  paciírco !  Mas  naó  parou  aqui  a  decifaô 
da^caufa.  Deícuberta  com  eíla  índuftria  a  verdadev 
nao  íe  partio  o  minino  ,  mas  vivo ,  e  inteiro  fe  deo  a^ 
que  erajua  may  :  eneílas  duns  partes  da  íentença  de 
balamao  íe  manifeílaraô  os  dous  eíFeitos  da  juílica 
particular ,  ou  univerfal ,  que  devem  obfervar  os 
lleys    A  juftiça  particular  tem  obrigação  de  dar  a 
cada  hum  o  feu,  enefta  ordinariamente  fehuma  par- 
te fica  fatisfeita,  a  outra  fica  queixofa;  porém  a  jufti- 
çaumverfal,  e  commua  tem  obrigação  de  fericrual 
com  todos ,  e  deíh  igualdade ,  que  a  todos  fatisfaz  , 
e  abraça,  nafce  a  verdadeira  ,  e  confiante  paz.  Em 
huma  Igual ,  em  outra  de%ual  SalamaÕ ,  e  em  am- 
basjufto  ;  mas  fò.na  da  igualdade  Rey  pacifico. 
Num.  zo8^^  ^48^    Senhores  meus,  vós  que  na  familia,  ou  na 
nepublica  tendes  o  officio ,  e  a  obrigação  de  as  con- 
íervar  em  paz ,  igualdade :  jEquet  amor  quos  aaua- 
vit  natura   diz  Santo  Ambrofio.  E  fe  acaío  com  os 
exemplos  de  Jacob,  de  ífaac,  e  de  Rebecca  me  repli- 
cardes ,  que  inclinar  mais  a  huns  ,  que  a  outros ,  ain- 
da entre  pays  ,  e  filhos ,  he  afFedo  natural ,  com  os 

"le^nios  exemplos  vos  reípondo,  que  também  he  na-  , 
tural  feguirfe  a  defigualdade  depilas  inclinaçoens  a  í 
rotura  da  paz ,  e  as  diícordias  doíiieíticas-,  e  civis.  O 

veida- 


li ' 


WêêêÊêí 


Dijcurfo  LXX.     145 

verdadeiro,  e  único  exemplo  he  fó  o  de  Chriílo  ho- 
je, como  Meftre  Rey  ,  ecomo  Meílre  Pay  :  SietU 
in  médio  difci[)ulor um.  Ouvi  huma  grande  máxima 
politica  ,  e  económica  tirada  do  meímo  texto.  O 
Príncipe  hefenhor  da  Republica,  o  pay  he  fenhor 
da  caía,  mas  nem  o  Príncipe,  nem  o  pay  he  fenhor 
da  fua  inclinação ;  In  media.  . 

749     Todas  as  coiifas  deíle  mundo  tem  a  fua  m-Num.io^, 
clinaçaó  natural :  íó  huma  ha  ,  que  naó  tem  inclina- 
ção :  e  qual  he  ?  O  centro.  Todas  as  partes  do  imi- 
verfo  propendem  ,  carregaó  ,   e  inclinaô  para  o  cen- 
tro :  fó  o  centro ,  que  eíiá  no  meyo  de  todas ,  naó  in- 
clina para  parte  alguma.  E  porque  razão  ?  Porque  íe 
o  centro  fe  inclinaire  a  huma  ,  ou  a  outra  parte  ,  nô 
mefmo  ponto  íe  arruinaria  toda  a  maquina  do  mun- 
do. De  maneira,  que  todas  as  partes  do  univerfo  fe 
inclinaÕ  ao  centro  ,  e  o  ceritl-oâ  nenhuma  delbs  fe 
inclina ,  porque  eftá  no  meyo  'An  médio.  Grande  do- 
cumento'da  natureza  para  as  incíinaçoens  das  voa- 
tades  fuperiores.  Quereis  levarapos  vós  as  incíina- 
çoens de  todos,  naô  vos  inclineis  a  neiihum.  Porque 
o  centro  poílono  meyo  naó4:íém  inclinação  a  nenhu- 
ma das  partes ,  por  iílb  todas  as^partes  do  univerío  íe 
inclinat)  concordemente  ao  centro  ,  e  com  a  meíma 
inclinação  ,  e  com  s  mefma  concórdia  fe  unem  en- 
tre íi,  e  feconfervaõ  em  paz.  Agora  entendereis  o  Num.  110. 
próprio  fentido  de  hum  texto  muito  commum  ,  mas 
naó  pouco  difficil :  Dominifum  cardines  terr^y-&'^ 
pojuitfuper  eos  orbem.  Quer  dizer ,  que  Deos  aílen- 
tou,  eeftabeleceo  o  mundo  fobre  os  centros  da  ter- 
ra. P:íra  he  a  figniíicaçaõ  da  palavra  Cardines,  como 
fe  lê  no  original  Hebreo  :  e  aqui  eftá  a  diíiicutdâdel 
A  terra  naõ  tem  ,  nem  pode  ter  mais  que  hum  ceiv- 

tro* 


Feg.  »: 


Mil 


1 44     Vieira  ahhreviado 

-tro,  eem  fer  lium  fó  coníifte  toda  afua  firmeza:  co- 
mo diz  logo  a  Eícritura  ,  que  Deos  poz  ,  e  eílabele- 
ceo  o  mundo  febre  os  centros  da  terra  ?   Porque  íú{-\ 
do  mundo  politico  com  alluíao  ao  mundo  nstural. 
O  mundo  natura]  tem  hum  fó  centro ,  e  o  mundo  po- 
Jjtico-tem  muitos  centros.  O  centro  do  m.undo  natu- 
ral he  o  meyo  da  terra  ,  os  centros  do  mundo  poli- 
tico íaõ  todos  os  que  tem  o  mando,  e  o  governo 
do  mefmo  mundo ,  ou  de  íuas  partes,  diz  S.  Jerony- 
mo.  Dentro  deíle  orbe  politico  ha  muitos  círculos 
lUayores ,  ou  menores ,  e  cada  hum  tem  o  feu  centro. 
Os  círculos  mayores  íaõ  os  Reinos  ,  e  o  centro  do 
Reyno  he  o  Príncipe  :  os  circules  menores  iaõ  as 
Cidades,  e  o  centroda.Çídade  he  oMagiftrado:  os 
círculos  mínimos  faô  as^famílías  ,  e  o  centro  da  famí- 
lia he  o  pay.  Eftes  faò  pois  os  centros  muitos,  e  var 
nos,  fobre  os  quaes  Deos  eílabeleceo  eíle  orbe  rar 
cional  do  mundo  politico  :  Dominifunt  cardines 
terr^y  & pofuit fuper ^eos orbem.  Eque  feíegue  da- 
-quí?  Segueíe,,  que  para  cada  hum  deíles  centros 
le  conícrvar  dentro  da  fua  esfera ,  e  para  a  confervar 
a  ellaem  paz,  e  concor-dic»  ,  he  neceíhirioque  fe  po, 
nha  como  verdadeiro  cçntro  no  meyo  ,  e  fe  mante- 
nha, efuftente  na  ímWferença, deíle  equilíbrio  fem 
inclinação  a  huma,  iiem  a  outra  parte:  In  médio,  ^w 
Num.  211.     7S^     Aos  Reys  de  Ifrael  dizia  Deos  fallandocom 
cada  hum  :  Nec declinabis  ad dexteram  ^  neque  adJI- 
nifiram.  Eu  vos  fíz  Rey ,  eu  vos  fiz  Governador ,  eu 
vos  íiz  pay  do  meu  povo  ,  pelo  que  adverti ,  que  o 
inclinar  em  vós  he  declinar  ,  e  aíiim  vos  deveis  por- 
tar de  maneira  ,  que  nem  inclineis  para  huma  parte, 
nem  para  a  outra  ,  nem  para  a  efquerda ,  nem  para  a 
4keita.  Ndta  ultima  palavra  eítá  a  nijnha duvida; 
-'■!•'  Nec 


>-A 


Difcurfo  LXX.^     145 

KenueaddcxteraffL  Qiico  i-iincipe  nnó  incline  para 
a  parte  cíquerda ,  que  he  a  peyor  parte ,  bem  eíláj 
mas  piíra  a  direita  ,  porque  naô  ?  A  parte  d^eita  naw 
he  a  melhor  ?  Sim.  i'ois  porque  naõ  qrer  Deos,  que 
o  Prificipe  fe  incline  nem  d  melhor  parte  ?  Forque 
melhor  he  nao  incluiar,  que  inclinar  no  melhor.  l)e- 
clararmehei  com  hum  exemplo  domellico.  Hum  dos 
companheiros  de  noíTo  Padre  Santo  Ignacjo,  e  que 
depois  lhe  fuccedeo  no  Generalato  foy  o  Mtíire  Lai- 
nes,  e  querendo  o  Santo  empregar  eíle  grande  ta- 
lento ,  que  era  o  mais  eminente  de  tcdos  (  como  bem 
fe  vio  íendo  Theologo  do  Papa  no  Concilio  Tnden- 
tino )  naquelle  exercido  ,  que  friile  mais  coníoimc  á 
fua  inclinação,  perguntoulhe  a  que  íe  inclinava.  E 
que  refponderia  Laines  ?  Inclinome  a  nao  me  incli- 
nar. Eílehe  o  verdadeiro  dia-ame  de  hum  perfeito 
fuperior:  inclinarfe  a  nao  ter  inclinação:  Ncc  decli- 
tiabís  addexteram  ,  7ieqiie  adjintjlram  ;  porque  in- 
clinarfe a  huma  parte  ,  qualquer  que  íeja  ,  he  faltar 
ao  equilibrio  da  igualdade  ,  e  com  a  deíigualdade 
perder  a  união  ,  perder  apa;z,  perder  a  concórdia, 
perder  ,  e  perturbar  tudo.  E  aíRm  feria  na  família  , 
ou  na  Pvepubiica,  fe  fe  moveíTe  o  centro,  fe  fe  deixaf- 
fe  o  mcyo  ,  e  íe  fe  inclinaíle  a  cabeça  :  Stetit  in  mé- 
dio', naõ  fóno  meyo:  In  médio,  mas  no  meyo  fem  in- 
clinação :  Stetit. 

'  751  No  corpo  natural  bem  fe  pode  inclinar  a  ca*  ^""^•^^"' 
beça  fem  movimento  ,  nejii  mudança  do  eorpo  :  no 
corpo  politico  nao  pode.  Vede  huma  grande  figura 
no  meyo  do  mundo  ,  que  foy  o  monte  Cah  ai  io  :  p,-^^^^^ 
Ops7'aius  eft  falutem  in  médio  terra.O  mefmo  Chrif- 
to,  que  refufcitado  íietit  in  médio,  morrendo ,  in- 
clinou  a  cabeça:  Inclinat o  capite.  Eque  aconteceo^  '  •   '- 


Tom.  II. 


K 


no 


ÍT^ 


1 46     Vieira  Mreviado 

no  mefmo  ponto  ?  Et  ecce  velum  templifcíffum  e/l 
m  duas  partes  ,  f  terra  mota  ejt  ,  f  petrafá]j,e 
funt ,  irmmumenta  aperta  funt ,  f  multa  corpo- 
ra, qua  d&rmierpjit ,  furrexermít.  ínclinoufe  ha* 
ma  cabeça  coroada ,  inciinoufe  hiima  cabeça  ,  que  ti- 
nha efcnto  em  cima  o  titulo  de  Rey  :  Inclinato  ca- 
pite ?  Et  ecce :  e  o  que  no  mefmo  ponto  íe  feguio  a 
eíla  mclmaçaõ,  foraó  terremotos,  divifoens,  inquie- 
taçoens  ,  tumultos  :  tudo  perturbado  ,  tudo  dcí- 
compoílo,  tudo  alterado,  e  defunido.  Até  as  pe- 
dras míenfiveis  fe  quebrarão  de  dor  :  Petrafci/J^ 
fíint:  aténomaisíagrado  houve  divifoens,  e  rotu- 
ras: Felum  templí  fcifum  e/i ;  até  as  fepulturas  fe 
abriraó:  Monument a  aperta  fimt\  porque  em  íeme- 
Ihantes  cafos   muitas  coufns ,  que  eílavao  íepulta- 
das  no  efquecimehta,  fe  defenterraó ,  e  em  defpeito 
dos.Vivos  íahem  outra  vez  á  luz  do  mundo ,  e  rei uf- 
citaõosmortos:  Et  multa  corpora^  quadormierant^ 
nam.zi;.furrexerunt.  Pelo  que ,  íenhores  meus,  íequereis 
quietação,  íe  quereis  paz,  igualdade:  e  igualdade 
re£í:a  ,  e Tem  mclinaçaô  a  nenhuma  das  partes,  coma 
a  de  Chriíto  hoje  poílo  em  meyo  dos  difcipulos : 
Stetit  m  médio  dífcipulorum. 

DISCURSO     LXXI. 

Tirado  de  humfermao  bifíorico ,  e  panegyrico  nos 
annos  da  fereíúgima  Rainha  de  PortusiaL 


P  A  Z. 


?>rc.  14. 


752 


Ue  de  tempos  coftuma  gaííar  o  mundo^ 
naó  digo  no  ajuílamento  de   qualquer 

ponto 


\\ ' 


Dijcurjo 


ponto  de  huma  paz,  mas  (6  em  rejeitar  ,  e  compor 
os ceremoniaes  delia  !  Tratados  preliminares  l^hecha- 
maó  os  politicos :  mas  quantos  degraos  fe  haó  de  fu- 
bir ,  e  defcer ,  quantas  guardas  íe  ha(5  de  romper  ,  e 
conquiftar  antes  de  chegar  ás  portas  da  paz,  para 
que  le  fechem  as  de  J  ano  ?  E  depois  de  aceitas,  com 
tanto  exame  de  clauíulas  as  plenipotencias  :  depois 
de  alíentadf^s  com  tantos  ciúmes  de  authoridade  aS 
juntas  :  depois  de  aberto  o  pairo  ás  que  chamao  con- 
ferencias ,  e  fe  haviao  de  chamar  differenças  ,  que 
tempos  ,  e  que  eternidades  faõ  neceíTarias  para  com- 
por os  intricados,  e  porfiados  combates,  queallife 
Jevantao  de  novo  ?  Cada  propofta  he  bum  pleito , 
cada  duvida  huma  diiaçaõ  ,  cada  conveniência  huma 
difcordia  ,  cada  razaó  huma  difficuidade,  cada  In  te- 
relfe  hum  impòííivel ,  cada  praça  hnma  conquifta  ^ 
cada  capitulo  ,  e  cada  claufula  delle  huma  batalha ,  e 
mil  batalhas.   Em  cada  palmo  de  terra  encalha  a  paz, 
e  em  cada  gota  de  mar  fe  afoga  ,  em  cada  átomo  de 
ar  fe  íufpende,  e  pára  Os  avifos,  e  as  polias  a  correr, 
e  cruzar  os  Reynos  ,  e  a  paz  muitos  annos  fem  dar 
hum  paíTo. 

DISCURSO    LXXII. 

Tirado  de  hum  ferm ao  da  piúiUcaçao  do  Juhiíeo. 
P  E  C  C  A  D  O. 


753 


H  fe  Deos  nos  defcobrira  ,  e  moílrara  Part.  7. 
_    nefte  auditório  a  fealdade  de  hum  pecca-  ^"'^'  '^7- 
do ,  ainda  dos  menos  íeyos  ?  Sabeis  vós ,  e  vós,  ( íál- 
lo  particularmente  com  o  género  feminino )  íabeis 

K  2  por- 


porque  naô  tendes  ao  peccado  o  horror,  eaborrecr^ 
mento ,  que  o  menor  delles  merece  ?  He  porque  naa 
conheceis  a  fua  fealdade.  Repreíentalla  como  ver- 
dadeiramente he  5  naó  he  poffivel,  mas  para  que  ve- 
jais ao  menos  quanto  mayor  he  ,  que  a  da  Jepra 
Num.iu.confideraimeliuma  cara  (que  naô  merece  nome  de 
roílo  ,  nem  ainda  de  monílro  )  disformilFimamente 
macilenta ,  feca  ,  e  efcaveirada ,  a  cor  verdenegra ,  e 
funeíla  ,  as  queixadas  fumidas  ,  a  teíta  enrugada  ,  os 
olhos  fem  peílanas,  nem  fobrancelhas  ,  e  e m  lugar 
das  mininas  com  duas  groíílis  belid.is  ,  calva ,  rame- 
Jofa ,  defnarigada ,  a  boca  torta  ,  os  beiços  azues ,  os 
dentes  enfreílados,  amarellos,  e  podres,  a  garganta 
carcomida  de  alporcas,  em  lugar  de  barba  hum  lo - 
binho ,  que  lhe  chegue  até  os  peitos  ,  e  no  mevo  del- 
le  hum  cancro  fervendo  em  bichos  ,  manandopodri- 
daô,  e  matéria,  naô  fóafcorofo,  e medonho  á  vif- 
ta  ,  mas  horrendo,  peílilente  ,  e  infupportavel  ao 
cheiro.  Cuidais  que  tenho  dito  alguma  coufa.?  Do 
que  verdadeiramente  he,  nem  fombras ;  mas  iílo  baf- 
ta  para  fe  conhecer  ,  que  nenhum  roílo  ha  cuberto 
de  lepra,  cuja  fealdade  naó  íeja  muito  menos  feya, 
que  a  do  peccado. 

DISCURSO    LXXÍII. 

Tirado  de  hum  fermao  de  Santo  António  pregado  no 
Maranhão ,  no  qual  debaixo  da  allegoria  dos  pei- 
xes reprehendeo  os  vicios  dos  homens. 


Part.  2. 
Num.  3}3« 


PEIXES. 

754  1^^  Uero  hoje  á  imitação  de  Santo  António 
voltarnie  da  terra  ao  mar,  ejá  que  os  ho- 
mens 


\\  f 


Difcurjo  nKXllI.  149 

mens  fe  naó  aproveitaó  ,  pi  cgar  aos  peixes.  O  mar 
eftá  taó  perto  ,  que  bem  me  ouviráó. 

Em  fim  ,  que  havemos  de  pregar  hoje  nos  pei-Num.  534. 
xes  ?  Nunca  peyor  auditório.  Ao  menos  tem  os  pes^ 
xes  duas  boas  qualidndcs  de  ouvintes:  ouvem  ,  e  nap 
fallaó.  Huma  íó  couía  podéra  deíconíolar  ao  Pre- 
gador ,  que  he  íerem  gente  os  peixes  ,  que  fe  nao  ha 
de  converter  ;  mas  eíía  dor  he  taÓ  ordinária ,  que  ja 
pelo  coítume  fe  naô  fente. 

Fos  eftis  fal  terf\e.  Haveis  de  íaber  ,  irmãos  Num.  jjj. 
peixes  ,  que  o  fal  íilho  do  mar ,  como  vós  ,  tem  duas 
propriedades,  as  quaes  em  vós  mefmos  le  expen- 
mentaó  :  confervar  o  íao,  e  prelervallo  ,  para  que  íe 
nao  corrompa.  Eílas  mefmas  propriedades  tinhaô  as 
prégaçoens'do  voHb  Pregador  Santo  António  ,  co- 
mo também  a  devem  ter  as  de  todos  os  Pregadores. 
Huma  he  louvar  o  bem  ,  outra  reprehender  o  mal : 
louvar  o  bem  para  o  confervar ,  e  reprehender  o  mal 
para  prefervar  delle.  Nem.  cuideis,  que  iílo  perten- 
ce fó  aos  homens  ;  porque  também  nos  peixes  tem 
íeu  lugar.  AíTim  o  diz  o  grande  Doutor  da  Igreja  S. 
Bafilio :  Non  carpere  folum  ,  reprehendereque pojjii- 
mus  pílces ,  fedfunt  in  illis  ,  ir  qu^  profequeiida 
fiint  ^  imitatione  \  Naõ  fó  ha  que  notar ,  diz  o  San- 
to ,  e  que  reprehender  nos  peixes ,  fenaó  também  que 
imitar,  e  louvar.  Qiiando  Chrifto  comparou  a  fua 
Igreja  á  rede  de  peícar :  Sãgen£  mi(f£  in  mare^  dizMath.  13. 
que  os  peícadores  recolherão  os  peixes  bons  ,  e  lan^  47. 
çaraó  fóra  os  maôs:  Collegermit  bonos  in  vafa^  ma- 
ios aut em  foras  mifertmt.  Eonde  ha  bons ,  e  mãos , 
ha  que  louvar,  e  que  reprehender.  Suppofto  ifto  , 
pjra  que  procedamos  com  clareza, dividirei, peixes, o 
voíío  íermaó  em  dous  pontos.  No  primeiro  louvar- 
Tom.  II.  K3  vos- 


:  \ 


,  !M 


Gcncf.   1. 


150     Vieira  ahhrevíado 

voshei  as  voíías  virtudes,  no  fegundo  repreiíender- 
voshei  os  volfos  vícios.  E  deita  maneira  íatisfaremos 
ás  obrigaçoens  do  íal,  que  ineihor  voseítá  ouvillas 
vivos,  que  experimentailas  depois  de  mortos. 

7SS  Começando  pois  pelos  volfos  louvores  ,  ir- 
mãos peixes,  bem  vos  podéra  t^u  dizer,  que  entre 
todas  as  creaturas  viventes  ,  e  leníitivas  vós  foíles 
as  primeiras  ,  que  Deos  creou.  A  vós  creou  primei- 
ro ,  que  as  aves  do  ar  ,  a  vós  primeiro  ,  que  aos  ani- 
maes  da  terra ,  e  a  vós  primeiro ,  que  ao  meímo  ho- 
mem. Aohomem  deolhe  Deos  amonarchia,  e  do- 
minio  de  todos  os  animaes  dos  três  elementos ,  e  nas 
proviíoens ,  em  que  o  honrou  com  eítes  poderes ,  os 
pritneiros  nomeados  forao  os  peixes :  Ut  p-afit  pij^ 
cibuj  maris,  ér  vo  lati  li  bus  cwli,  èr  beftiís  tiniver- 
fa  terra.  Entre  todos  os  animaes  do  mundo  os  pei- 
xes faô^os  mais,  eos  peixes  os  mayores.  Que  com- 
paração tem  em  numero  as  efpecies  das  aves  ,  e  áos 
anim^aes  terreílres  com  as  dos  peixes  ?  Que  compa- 
ração na  grandeza  o  elefante  com  a  balea  ?  Por  iíla 
Moyfés  Chroniíla  da  creaçaô ,  Câliando  os  nomes  de 
todos  os  animaes,  íó  a  e!la  nomeou  pelofeu:  Creazit 
Deus  ceie  gr  an  dia.  E  os  três  Muíicos  da  fornalha  de 
Babylonia  o  cantarão  também  como  íinguiar  entre 

Pan,  3.7^.  todos :  Bemdicite  cete^  ir  omniãy  qua  vioi^entur  in 
aquis.  Domino.  Eftes,  e  outros  louvores,  eílas ,  e  ou- 
tras excellencias  devoíTa  geração ,  e  grandeza  vos 
podéra  dizer  ,  ó  peixes  ;  mas  iíío  he  lá  para  os  ho- 
mens ,  que  fe  deixaÕ  levar  àQ&':x^  vaidades. 

yS^     Vindo  pois,  irmãos ,  ás  voííls  virtudes  ,  que 
fao  ás  que  fe  podem  dar  o  verdadeiro  louvor,  pailb 

Nai".  3  38.45  virtudes  naturaes ,  e  próprias  v  oíFas.  FallaJidodos 
peixes  Ariíloteies ,  diz^  que  fó  elies  entre  todos  os 

ani- 


Ccnef.  I. 


m 


Dlpirfo  LXXIIL  151 

jnimacs  fe  nao  doiivío ,  nem   domeílicao.  Dosam- 
mães  terreílres  o  caò  he  taô  domeílico ,  o  cavalio  tao 
fijjeito  ,  o  boy  tao  lerviçal ,  o  bngio  taô  amsgo  ,  ou 
tnó  íifongeiro,  e  até  os  ieoer.s ,  e  os  tigres  com  arte, 
e  benefícios  fe  amanfaõ.  Dos  animaes  da  ar  a  tora 
aquelLíS aves,  que  íe  criao  ,  e  vivem  com nofco  ,  o 
pâruigayo  nos  falia,  o  rouxinol  nos  canta  ,  o  açor 
nos  ajuda,  e  nosrecrea  ,  e  até  as  grandes  aves  de  ra- 
pina encolhendo  as  unhas   reconhecem   a   ipao  de 
quem  recebem  o  fuftento.  Os  peixes  peto  contrario 
tó  vivem  nos  feiís  mares,  e  rios ,  lá  te  mergulhão 
nos  feus  négos  ,  lá  fe  efcondem  nos  íuas  grutas ,  e  núo 
ha  nenhum  tao  grande  ,  que  fe  fie  do  homem  ,  nefrt 
taô  pequeno;  qiíe  nao  fuja  delle.  Os  Authores  com- 
nnimmente  condemnaó  eíla  condição  dos  peixes,  e  aí 
deitaô  á  pouca  docilidade,  ou  ádemaíiívda  bruteza  ; 
insseufou  de  muito  difterente  opinião.  Naôconde- 
mno,antes  louvo  mu ito  aos  peixes  eíle  feu  retí ro,e  me 
parece  ,  que  íe  naõ  fora  natureza  ,  era  grande  pru- 
dência. Peixes ,  quanto  mais  longe  dos  homens ,  tan- 
to melhor:  trato,  e  familiaridade  com  elles,  Deos 
nos  livre.  Se  os  animaes  da  terra  querem  icr  feus  fa- 
miliares, façaõno  muito  embora ,  que  com  fuás  pen- 
foens  o  fazem.  Cantelhe  aoshomenso  rouxinol,  mas 
naiuagayola:  digalheditos  opapagayo,  mas  na  íua 
cadeya:  vá  com  ellesácaçaoaçor,  mas  nas  fuás  pio- 
zes:  façalhe  bufonerias  o  bugio,  mas  no  feu  cepo  : 
contentefe  o  cao  de  lhe  roer  hum  oíTo  ,  mas  levado 
onde  nao  quer  pela  trella  :  prezefe  o  boy  de  lhe  cha- 
marem formofo,  ou  fidalgo,  mas  com  o  jugo  fobre 
a  cerviz ,  puxando  pelo  arado  ,  e  pelo  carro  :  glorie- 
fe  o  cavalio  de  maítigar  freyos  dourados  ,  mas  de- 
baixo da  vara  ,  e  da  efpora  ;  e  íe  os  tigres,  e  leoen^ 

K4  lhe 


I  r 


:\\ 


*í^ 


•I  f 


152     Vieira  abbreviadó^ 

lhe  comem  a  ração  da  carne,  que  naó  caçara6  na 
bofque,  fejao  prezes  ,  e  encerrados  com  grades  de 
terro  Entre  tnnto  vós  peixes  longe  dos  homens,  e 
roradeíías  cortezanias  vivireis  lócomvoíco,  fim  • 
mas  como  o  peixe  na  agua.  ' 

ííum.  34J.     ys7     Vós  fois  os  que  íuílentais  as  Cartuxas  ,  e 
os  BuíTacos ,  e  todas  as  Tantas  famílias ,  que  profeíTaó 
mais  rigorofa  aufteridade:  vós  os  que  a  todos  os  ver- 
dadeiros Chriítaôs  ajudais  a  levar  a  penitencia  das 
Quarefmas :  vós  aquelles,  com  que  o  mefmo  Chriílo 
feítejou  a  fua  P^afchoa  as  duas  vezes  ,  que  comeo 
com  feusdifcifuíos  depois  de  reíufcitado.  Prezem- 
fe  as  aves ,  e  os  animaes  terreftres  de  fazer  efplendi- 
dos,  e  cuftofos  banquetes  dos  ricos,  evósgloriai- 
vos  de  fer  companheiros  do  jejum  ,  e  da  abftinencia 
dos  juftos.  Tendes  todos,  quantos  íois,  tanto  paren- 
tefco,  eíimpathia  com  a  virtude,  que  prohibmdo 
Deos  no  jejum  a  peyor ,  e  mais  groíTeira  carne ,  con- 
cede o  melhor ,  e  mais  delicado  peixe.  E  poílo  que 
na  femana  fó  dous  fe  chamaó  voííos ,  nenhum  dia 
vos  he  vedado.  Hum  fó  lugar  vos  deraó  os  Autho- 
res  entre  os  íignos  celeftes  ;  mas  os  que  fó  de  vós  íè 
mantém  na  terra  ,  faó  os  que  tem  mais  feguros  os  lu- 
gares do  Ceo.  Em  fim  fois  creaturas  daquelle  ele- 
mento ,  cuja  fecundidade  entre  todos  he  própria  do 

Gen.  I.  sEfpirito  Santo:  Spiritus  Dominifoeciindabat  aquas. 

Num.  34Í.  7S^  Deitou  vos  Deos  a  benção ,  que  creíceiTeis  , 
e  multiplicaífeis  :  e  para  que  o  Senhor  vos  confirme 
eíla  benção,  lembraivos  de  naõ  faltar  aos  pobres 
com  o  feu  remédio.  Entendei ,  que  no  íuftento  dos 
pobres  tendes  íegurosos  voíTos  augmentos.  Tomai 
o  exemplo  nas  irmans  Sardinhas.  Porque  cuidais  que 
as  multiplica  o  Creador  em  numero  taó  innumeravel? 

Por- 


DifcurfoLX%JU-  155 

Porque  faó  lufteuto  de  pobres.  Os  Solhos ,  e  os  .Sal- 
moens  fao  muito  conrados,porque  lervem  a  mel.  os 
Rcvs  ,  e  dos  poderofos  ;  mos  o  peixe  ,  q"=  /"«f^^a 
rfomè  dos  nobres  de  Chrifto  ,  o  mefmo  Chntto  o 
nv  Idplica  ,  e  .ugmenta.  Aquelles  dous  peaescora- 
;3ros  dos  cico  paens  do  deferto  mult.pnca- 
íaô  tanto,  que  deraó  de  comer  a  cinco  mil  hointns. 
Pois  le  peixes  mortos  ,  que  iuftent.^  a  pobres ,  mu  - 
tiplicaó  tanto  ,  quanto  mais ,  e  melhor  o  faraó  os  vi- 
vos "crelce,,  peixes  ,  crefcei ,  e  multiplicai,  e  Deos 

vos  confirme  a  íua  bençaô.  ..„„„inr;a 

7CQ  Vede ,  peixes  ,  e  naÕ  vos  venha  vangloria  , 
quant^o  melhores  lois ,  que  os  homens.  Os  "omens 
"iveraô  entranhas  para  deitarjonasao  mar  ,  e  oj^ei^N^nr 
xe  recolheo  nas  entranhas  a  Jonas  para  o  levar  vivo 
á  terra  He  poffivel ,  queos peixes  ajudao a  ['•"^^çao 
dos  homens ,  e  os  homens  lançaõ  ao  mar  os  Miniftros 

dafalvaçaoi  ^      ,   ^,  _ 

760     Efte  he,  peixes,  em  commum  o  natural,  que  ^um.  540 
em  todos  vos  louvo,  e  a  felicidade,  de  que  vos  dou 
o  parabém  naófem  inveja.  Mas  para  que  da  admi^Num.  34- 
raçaô  de  huma  tao  grande  virtude  voíTa  paíTemos  ao 
louvor ,  ou  inveja  de  outra  naô  menor,  admirável  he 
igualmente  a  qualidade  daquelloutro  peixezmho ,  a 
que  os  Latinos  .hamarao  Torpedo.  Efte  peixe  co- 
nhecemos cá  mais  de  fama  ,  que  de  vifta^;  mas  líto 
tem  as  virtudes  grandes  ,  que  quanto  lao  mayores, 
mais  íe  efcondem.  Eftá  o  pefcador  com  a  cana  na 
maÓ ,  o  anzol  no  fundo  ,  e  a  boya  íobre  a  agua  ,  e  em 
lhe  picando  na  ifca  a  Torpedo,  começaihe  a  tremer  o 
braço.  Pôde  haver  mayor,  mais  breve,  e  mais  admi- 
rável efFei  to?  De  maneira  que  num  momento  palta 
a  virtude  do  peixezinho  da  boca  ao  anzol ,  do  anzol 


154     Vieira  ahhrcoiado 

á  linhn,  da  linha  á  cana ,  e  da  cana  ao  braço  do  pefca- 
dor.  Co„,  muita  razwdiíre,  que  efte  volTo  louvor 

A^T.l7^  '■f''";  '°"'  '"""-'='■  ^^^"'  'i'^"  ''«s  pesca- 
dores do  noflo  elemento  ,  ou  quem  lhe  pozera  eík 

\ln  ri     V'"-"""'^  ^"^  '"''° '  "  '5"e  Pi.-fcaó  na  terra? 
Muitopercao;  mas  naó  meefpantodomulto:  oque 

T"ITt        '  ^J^Í^P^f^q'"--'"  t^nto,  equetremaôí.ô. 
p-.',.Lo.   raiuopeícar,etaõpouco  tremer!  Podera- 

'  iu!dof  r  '""?'  '"'.'^'  ""'  m.ispelcadores,  emais 
modos ,  e  traças  de  pefcar,  fe  no  mar ,  ou  na  terra  >  E 
le  certo  ,  que  na  terra.  NaÕ  quero  difcorrer  por  el- 

hM^T^^^'"  ^'^""-'  '^""'"l^çaô  para  os  peixes: 
balte  tazer  a  comparação  com  a  cana  ,  pois  he  oinf- 
trumento  do  noíFo  cafo.   No  mar  pefc^ô  as  canas   na 
terra  pcfcaõ  as  varas,  ( e  tanta  foríe  de  varas )  pefcaô 
as  gnietas ,  pelcaô  as  bengalas,  pefcaõ  os  baftoens ,  e 
ate  os  cetros  peícaó ,  e  pelcaó  mais  que  todos;  por- 
que pefcao  Qdades ,  e  Reynos  inteiros.  Pois  h^  Jof- 
nel ,  que  pefcando  os  homens  cou  (as  de  tanto  pezo. 
he  nao  trema  a  maó ,  e  o  braço .?  Se  eu  nré^ra  aos 
homens,  e  tivera  a  língua  de  Santo  AnroniS,  eu  os 
nzera  tremer.  ' 

^  ^%     Antes  porém  que  vos  vades  ,  aíTím  como 
Num.  347.ouv,ftes  os  voílos  louvores  ,  ouvi  também  n^ora  as 
voíTas  reprehenroens  :  fervirvoshaõ  deconfulaõ,  iá 
qoe  nao  feja  de  emenda.  A  primeira,  coufa  que  me 
deíedihca ,  peixes ,  de  vós ,  he  que  vos  comeis  huns 
aos  outros.  Grande  efcandalo  heefte;  masacircunf- 
tancii  o  faz  amda  mayor.  NaÓ  íó  vos  comeis  huns 
aos  outros  ,  fenaõ  que  os  grandes  comem  os  peque- 
nos. :5e  tora  peio  contrario  ,  era  menos  mal.  Sc  os 
pequenos  comerão  os  grandes  ,  bailara  hum  grande 
para  muitos  pequenos  5  mas  como  os  grandes  comem 

os 


N 


•^ 


DifciirfoLXXIII.  155 

os  pequenos,  naÓ  b:jftaÓ  cem   pequenos,  nem  mil 
para  hum  fó  grande.  Olhai,  como  eílranha  ifto  .;anto 
Ac^oíUnho:  Homines  pravís,  perverfisque  ctiputua- 
tibiis  faãi  Jtint  veluti  pijces  invuem  fe  dtxor an- 
tes- Os  homens  com  fuás  más,  e  perverías  cubicas 
vem  a  ler  como  os  peixes ,  que  fe  comem  huns  aos 
outros.  TaÔ  alheya  coufa  he  naô  fó  da  rozao  ,  mas 
da  meíma  natureza,  que  fendo  todos  creados  nomeí- 
mo  elemento  ,  todos  cid-idaos  da  mefma  patna  ,  e 
todos  finalmente  irmaôs  ,  vivais  de  vos  comer,  ban- 
to  A<^oilinho,  que  pregava  aos  homens,  para  encare- 
cer a^feildade  defte  eícandalo  moítrouiho  nos  pei- 
xes   E  eu  que  prego  aos  peixes ,  para  que  vejais  , 
quão  feyo ,  e  abominável  he  ,  quero  que  o  vejais  nos 
homens.  Olhai,  peixes,  lá  do  mar  pí^ra  a  terra.  iSao, 
naÓ    NaÓheiiro  o  que  vos  digo.  Vós  virais  os  olhos 
para  os  matos  ,  e  para  o  fertaõ  ?  Para  cá,  para  ca.  Ir^a- 
ra  a  Cidade  he,  que  haveis  de  olhar.  Cuidais,  que 
fóos  Tapuyas  fe  comem  huns  aos  outros.^  Muito  ma- 
vor  açoiíeue  he  o  de  cá  ,  muito  mais  fe  comem  os 
brancos.  Vedes  vós  todo  aquelle  bullir ,  vedes  todo 
aquelie  andar,  vedes  aquelie  concorrer  ás  praças,  e 
cruzar  as  ruas  ,  vedes  aquelle  fubir  ,  e  defcer  as  cal- 
çadas ,  vedes  aquelle  entrar,  e  fubir  íem  quietação, 
Lmfocego?  Pois  tudo  aquillo  he  andarem  buícan- 
do  os  horaeiís  como  haó  de  comer ,  e  como  fe  haode 

comer.  ,        ■  r    kt         * 

762     Morreo  algum  delles,  vereis  logo  tantos  fo-Num.  h«. 

hrre  o  miíeravel  a  defpedaçallo,  e  a  comeilo.  Comem- 
no  os  herdeiros,  ccmem.no  os  teftamenteiros,  co- 
memno  os  legatários ,  comemno  os  acredores  ,  co- 
memno  os  officiaes  dos  orfaõs  ,  e  os  dos  defuntos ,  e 
aufentes  ^  conie-o  oJ^kdico,  que  o  corou,  ou  ajudo» 
^  amor- 


15^     Vieira  abhreviado 

íjiii. ,  come-o  a  mefma  mulher  ,  que  de  má  vonnJp 
lhe  da  para  mortalha  o  lançoi  maisVelho  wá   co 

"orque^cí  nf"  Y" '^  °  '^"^  "^  ^^ng:  os  W; 
t  OS  que  caiuando  o  levaõ  a  enterrar  •  em  Pm  o,*,,  4 

ao  pobre  defunto  o  naõ  comeo  a  rerra ;  e  á  o  ^««"0' 
mido  toda  a  terra.  Já  fe  os  homens  fe  come  á^  rf" 
roente  depois  de  mortos ,  parece  que  era  mTnos  h  .r" 
ror  e  menos  materra  de  fentimento,  M^p"  ra  nue" 
conheça.s  a  que  chega  a  voiFa  crueldade    Sde! 

»  ?  Porque  me  perfeguis  taõ  deshumanan/e  ué  vós 

nnacaine?  Qiiereis  ver  humTob  deftes?  Ved^h,,™ 
homem  delFes ,  que  andao  pe4guTdos  de i   os  ou 

„:  „  „  S^  "  "  Me.rmho ,  come  o  o  Carcereiro ,  co- 
mv-ooEfcnvao,  come-o  o  Solicitador,  come-00 
Advogado,  comeo  olnquiredor,  comlo  "teft, 
munha    come-o  o  Julgador,  e  ai^da  nao  eftá  fen 
tencado  ,  e  já  eftá  comido.  SaÔ  peyoresos  homens 
que  os  corvos.  O  trifte ,  que  foy*^  foZ     níô  o  co' 
mem  os  corvos    íenaô  de^í-ois  dl  executado    e  mor- 
to, e  o  que  anda  em  juizo,  ainda  naô  eftá  executa- 
do, nem  lentenciado,  ejá  eftá  comido 
N«m.  ,4í.     763     fc  para  que  vejais  como  eftes  comidos  na 
terra  fao  os  pequenos ,  e  pelos  melmos  moJÔ      «>„ 

fe  deft^l^^e^/T'' 'r  ""•" '  ""^'' ^  Deos  queix'an"o 
le  dUte  peccado  :  No7mc  cogmfcent  onwer    aui  nn^ 

ctbumpams^.  Diz  Deos,  que  comem  os  homens  iao 

íó 


P/.l).4. 


DifcurfomXIII.  157 

ró  oíeu  povo,  l^nao  declaradamente  a  íuo  plebe ^ 
Plebem  meam.  Porque  a  plebe ,  e  os  plcbeos ,  que  lao 
3S  mais  pequenos  ,  os  que  menos  poaem  ,  e  os  qi.e 
,enos  avultaó  na  Republica  ,  eftes  íao  os  comidos. 
E  n  -Õ  ío  diz  ,  que  os  comem  de  qualquer  modo ,  íe- 
QaÒ  que  os  engolem  ,  e  os  deverão  ,  nao  como  os  ou- 
ros co-eres  ffenao  como  paô:  Qm  devoram  ple^ 
hemmeam,  tit  abinn  pams.  A  diíferença  ,  que  ha 
entre  o  paÔ,  e  os  outros  comeres,  he,  que  para  a  car-^ 
ne  ha  dias  de  carne  ,  epara  o  peixe  dias  de  peixe  ,  e 
pnra  as  frutas  diíterentes  mezes  no  anno  ;  porem  o 
nao  he  comer  de  todos  os  dias ,  que  íempre ,  e  conti- 
nuamente fe  come  :  e  ifco  he  o  que  padecem  os  pe- 
quenos, faÕ  o  paó  quotidiano  dos  grandes:  e  auim  co- 
mo o  oao  íe  come  com  tudo ,  aílim  com  tudo  ,_^e  em 
tudo  faÓ  comidos  os  miíeraveis  pequenos,  nao  ten- 
do ,  nem  fazendo  officio ,  em  que  os  naÕ  carreguem,' 
em  que  os  nao  multem ,  em  que  os  naõ  defrauderny 
em  que  os  nao  comao,  traguem,  e  devorem :  (hnae- 
ruorant  plebem  meam,  ut  c i bum  pams.?àveQc\ os  bem 
iíto,  peixes?  Reprefentafeme,  que  com  o  movi- 
mento das  cabeças:  eílais  todos  dizendo,  que  nao 
e  com  olhardes  huns  para  os  outros,  vós  eftais admi- 
rando, e  paímando  de  que  entre  os  homens  haja  tal 
injuftiça  ,  e  maldade.  Pois  ido  mefmo  he  o  que  vos 
fazeis.  Os  mayores  comeis  os  pequenos,  os  muito 
grandes  naò  fó  os  comem  hum  por  hum ,  íenao  os 
cardumes  inteiros  :  e  iíto  continuadamente  fem  dif- 
ferença  de  tempos ,  naõ  fó  de  dia ,  fenaô  também  de 
noite,  ás  claras,  e  ás  efcuras,  como  também  fazem 

os  homens.  .  •   n-     -^>j>,ni  t<( 

764     Se  cuidais  por  ventura,  que  eftas  injuíliças^"^'  J? 

entre  vós  fe  toleraô ,  e  paííaó  fem  caíligo ,  enganaif- 

\os. 


^ 


4^ 


I'      iSií 


1 5  S     Vieira  ahhreviado ' 

vos    Affirii  como  Deos  as  cartiga  nos  homens    amiri 
tambe,,,  por  feu  modo  as  caíhga  em  vós    Os  m  i^ 

1  T^°'  e  quando  menos  ouviríeis  murmurar 
::  P?£sen;os  nas  «noas,  e  muito  maist^en  r 
aosmiíetaveis  reme;ros  delias,  qneos  mavore/n,.^ 
f  a  foraõ  mandados  ,  em  ve^,  dego4°na?l  auemln 
tar  o  mefmoEft.do,  o  dertrufraó;  Jorque  toda  ." 
fome ,  que  de  iá  traziaô ,  a  fartavaõ  em  corer   e  de 

auao  acaioa/guns  dos  que  feguindo  a  efteira  dos 

ma.ts  pátrios,  bem  ouviriaõeíks  lá  noTeio    nZ 
^  es  me  mos  mayores,  que  cá  co,niaó  os  pequeno 
quando  a  chegnó.achaó  outros  mavores  aSc"' 
«nao  também  a  ciíes.  Efte  he  o  efty ló  da  di?  na  Tufti' 

n^hec:r:r,Tc;,:";-.;f  °  -  ^-  "^-^ent^o^íct . 
Vos,  qmbus  rcaor  mar  is ,  atque  terra 
JJisdeditmagnumnecis,  atqtievita 
lomte  mflatos,  Umúdosquevultus' 
W"aqu'd  a-iobis  minorextimercit. 
Maior  boc  vobis  Dominus  minatur 

m7rh  '  ^r''.'  ^q^^^llil diffiniçaõ  de  Deos :  Reitor 
mins,  atque  terra:  Governador  domar,  e  da  ter- 
ra pnra  que  naõ  duvideis,  que  o  mefmo  eftylo  Jue 
ptos  guarda  com  os  homens  na  terra ,  obferv-,  tam 
bem  comvofco  no  mar.  Necedario  he  lo^o  nne 
oihe.s  por  vós  e  que  naõ  faça,s  pouco  cS"da'dr 
trma ,  que  vos  deo  o  grande  Doutor  da  Igrei,,  Santo 

Uuardefeopeixe,  queperfegue  o  mais  fraco  para  o 

comer, 


I 


DifairfoLXXlII.   i^9 

'omer  ,  naô  fe  ache  na  boca  do  mais  forte,  que  oen- 
ruhi  a  elle  !  Nós  o  vemos  aqui  cada  dia.  V  ay  o  Aa- 
*eo  correndo  a  traz  do  Bagre ,  como  o  cao  iipos  do  le- 
)re ,  e  naÓ  vê  o  cego,  que  lhe  vem  nas  coitas  o  i  uba- 
■aÓ  .com  quatro  ordens  de  dentes,  que  o  ha  de  en- 
,uHr  de  hum  bocado.  He  o  que  com  inayor  elcgaiv 
^avosdille  também  Santo  Agoíiinho:  Pr^ao  mt- 
wr is  fit  prado  maioris.  Mos  naóbaftao  ,  peixes,  ei- 
tes  exemplos  ,  par.  que  ac.be  de  fe  perfuadir  a  voíTa 
Rula,  que  a  mehna  crueldade  ,  que  ufais  com  os  pe- 
quenos ,  tem  já  aparelhado  o  caítigo  na  voracidaue 

dos  erandes.  ,  ,.  ,  ^  ^^ 

7?c  Dirmeheis  (  como  também  uizem  os  no- Num.  jjt; 
m4s)  q-ac  naò  tendes  outro  modo  de  vos  íuftentar. 
Ed- que  íefuftentaó  entre  vós  muitos,  que  naoco-. 
mem  os  outros  ?  O  mar  he  muito  largo  ,  njuito  íer^ 
tii ,  maito  abundante ,  e  fó  com  o  que  bota  as  prayas, 
pôde  íuílentar  grande  parte  dos  que  vivem  dentra 
nelíe.  Comeremfe  huns  animaes  aos  outros  he  vora* 
cidade  ,  e  fevicia ,  e  naõ  eftatuto  à-:x  natureza.    ^ 

7Ód     Deícendo  ao  particular,  direi  agora,  peixes,  Num.  ss^l 
o  que  tenho  contra  alguns  de  vós.  E  começando  aqui 
pela  noíFa  cofta  ,  no  meímo  dia  ,  em  que  cheguei  a 
elJa,  ouvindo  os  Roncadores,  e  vendo  o  íeu  tainanho, 
tanto  me  moverão  a  rifo,  como  a  ira.  He  pofíiveL^ 
que  fendo  vós  huns  peixinhos  tao  pequenos  ,  haveis, 
de  fer  as  roncas  do  mar }  Se  com  huma  linha  de  co-^ 
zer,  e  hum  alfenete  torcido  vos  pôde  pefcar  hum 
aleijado  ,  porque  haveis  de  roncar  tanto  ?  Mas  por 
iíío  melmo  roncais.  Dizeime,  o  Eípadarte  porque 
nao  ronca  ?  Porque  ordinariamente  quem  tem  mui- 
ta elpada  tem  pouca  lingua.  IftonaÓ  he  regra  geral;. 
mas  he  regra  geral ,  Que  Deos  naó  quer  roncadores  ^ 
°     °  eq.uô 


160 


^ielra  ahhreviado. 


€  que  tem  particular  cuidndo  de  abater  ,  e  humilhar 
-^os  que  fiiuito  roncao.  S.  Pedro,  a  quem  muito  be.n 
conhecerão  .'oíios  antepaílados,  tinha  taÔ  boaeipa- 
oa  ,  que  eiie  fo  avançou  contra  hum  exercito  inteiro 
cie  ÍOidauos  Romanos^  e  íe  Chrifio  lha  nao  manda- 
da meter  na  b.imha  ,  eu  vos  prometto ,  que  havia  de 
cortar  mais  orelhas,  que  a  de  Malco.  Com  tudo , 
que  jiie  iuccedeo  naquella  meíma  noite?  Tmha  ron- 
cauo     e  barbateado  Pedro  ,  que  fe  todos  fraqueaf- 
^em  ,  fo  e he  havia  de  fer  coriftnnte  até  morrer,  Te 
íoi.enecehario:  e  foy  tanto  pelo  contrario  ,  que  íb.' 
elíe  mqueou  mais  que  todos  ,  e  baítoii  a  voz  de  hu- 
ma  mMiiíerzmha  para  o  fazer  tremer,  e  neí^ar.  An- 
tes diíioja  ímha  fraqueado  na  mefma  hora";  emoue 
prometteo  tanto  deíi.  Diíielhe  Chrifto  no  Horto  , 
<3ue  vigiaíPe,  e  vindo  dahi  a  pouco  a  ver  íe  o  fazia 
achou-o  dormmdo  com  tal  deícuido,  que  nao  fó  o 
Marc.  14.  ^"«/^«'^^^o  fono ,  feuno  também  doquetmha  brazo- 
.7.  nado  '  Sic  mn  potuifii  una  hora.  ^igtlare  mecim} 

Vosjiredro,  fois  o  valente  ,  que  havíeis  de  morrer 
por  mim  ,  e  naô  podeftes  huma  hora  vigiar  comigo? 
louco  ha  tanto  roncar,  e  agora  tanto  dormir  ?  Mas 
ahim  fuccedeo.  O  muito  roncar  antes  da  occanaó 
he  íínal  de  dormir  nella.  Pois  que  vos  parece,  irmãos 
Koncadores  ?  Se  iílo  fuccedeo  ao  mavor  pefcador  , 
que  pode  acontecer  ao  menor  peixe?  Áledivos,  e  lo- 
go  vereis  quaò  pouco  fundamento  tendes  de  brazo- 
nar,  nem  roncar. 
Num.  357.     y(i7    Se  as  Baleas  roncarão,  tinha  mais  defculpa  a 
ília  arrogância  na  fua  grandeza.  Mas  ainda  nas  mef- 
nias  Baleas  naõ  feria  eíla  arrogância  fegura.  O  que 
he  a  Balea  entre  os  peixes ,  era  o  gigante  Golias  en- 
tre os  homens.  Se  o  rio  Jordão,  e  o  mar  de  Tibe- 

riades 


161 


Difcurfo  LXXIl 

íiadesremcommunicaçnõ  com  o  Oceano,  como  de- 
^em  ter,  pois  delle  manaó  todos  ,  bem  deveis  de  ía- 
jer ,  que  elle  gigante  era  a  ronca  dos  Filifteos.  Q,ia- 
•-enta  dias  contínuos  eíleve  armado  no  campo  dcíafí- 
mdo  a  todos  os  arrayacs  de  lírael ,  fem  haver  quem 
Ce  lhe  atrevelFe  :  e  no  cabo  ,  que  fim  teve.  toda  aquel- 
la  arrogância?  Bailou  hum  paítorzinho  com  hum 
:aj.ido,  e  huma  funda  para  dar  com  elle  em  terra. 
Ds  arrogantes  ,  e  íoberbos  tomaõfe  com  Deos  ,  e 
quem  le  tomn  com  Deos,  fempre  fica  debaixo.  AíTim 
que,  amigos  Roncadores ,  o  verdadeiro  confeiho  he 

ca  11  ar. 

768  Neíla  viagem,  de  que  fiz  menção,  e  em  to-  Num.  358- 
das  as  que  paíTei  a  íinha  Equinocial ,  vi  debaixo  delia 
o  que  muitas  vezes  tinha  viílo,  e  notado  nos  homens,- 
e  ineadmirou  que  íe  houveíFe  eílendido  efta  ronha,. 
e  pegado  também  aos  peixes.  Pegadores  íe  chama- 
vao  eíles,  de  que  agora  fallo  ,  e  com  grande  proprie- 
dade ,  porque  íendo  pequenos  ,  nao  fó  fe  chegaõ  a 
outros  mayores  ,  mas  de  tal  forte  fe  lhe  pegaô  aos 
cortados ,  que  já  mais  os  defafferraõ.  De  alguns  anij 
mães  de  menos  força,  ejnduftria  fe  conta  ,  que  vao 
feguindo  de  longe  aos  leoens  na  caça  parafe  fuftenta- 
rem  do  que  a  elles  fobeja.  O  mefmo  fazem  eíies  Pe- 
gadores ,  taÓ  feguros  ao  perto,  como  aquelles  ao 
longe;  porque  o  peixe  grande  nao  pôde  dobrar  a  ca- 
beça ,  nem  voltar  a  boca  fobre  os  que  traz  ás  coitas , 
e  aíFim  lhe  íuftenta  o  pezo,  e  mais  a  fome.  Eíle  mo- 
do de  vida  mais  aíluto,  que  generoío,  fe  acaío  fepaf- 
fou  ,  e  pegou  de  hum  elemento  a  outro,  fem  duvi- 
da, que  o  aprenderão  os  peixes  do  alto, depois jque  os 
noflos  Portuguezes  o  navegarão  ;  porque  nao  parte 
Vifo-Rey ,  ou  Governador  para  as  Conquiílas,  que 
Xòm..  ÍI.  L  nao 


Vieira 


hreviado ' 


nao  va  rodeado  de  pegadores ,  os  quaes  fe  arrimaõ  a 
ellesj^para  que  cá  lhe  matem  a  fome,  deque  Já  nao 
tinnaô  remédio.  Os  menos  ignorantes  defenganados 
da  experiência  defpegaóre,  e  buícaó  ávida  por  ou- 
tra via  ;  mas  os  que  fe  deixao  eílar  pegados  á  mercê, 
e  fortuna  dos  mayores  vemliie  a  lucceder  no  fim  o 
que  aos  Pegadores  do  mar. 
Num.jíp.  js^  Kodea  a  nao  o  Tubarão  nas  calmarias  da  Li- 
nha com  os  feus  Pegadores  ás  cortas ,  taô  cirzidos 
comapeMe,  que  mais  parecem  remendos,  ou  man- 
Cíias  naturaes,  que  oshofpedes,  ou  companheiros. 
Lançaoíhe  hum  anzol  de  cadea  com  a  ração  de  qua- 
tro foldados,  arremeílafe  furiofamente  áVreza,  en- 
gole tudo  de  hum  bocado,  eíica  prezo.  Corremeya 
companhia  a  alallo  acima ,  bale  fortemente  o  convez 
com  os  uitimos  arrancos,  em  íim  morre  o  Tubarão, 
e  morrem,  com  eJie  os  Pegadores.  Pareccme  que  ef- 
tou  ouvindo  a S.  Mattheus,  femTer  Apoílolo  pefca- 
dor,  defcrevendo  iílo  mefmo  na  terra.  Morto  He- 
rodes,  dizoEoangeliíta,  appareceoo  Anjo  ajofeph 
no  bgypto ,  e  diílelhe ,  que  já  fe  podia  tornar  para  a 
patjia  ;  porque  eraõ  mortos  todos  aquelles ,  que  que- 
Matth.  2.  ''^^9  tJi'aí'  a  vida  ao  Minino  :  Defunãi  fimt  enim 
xo.  qm  quarebant  animam  pueri.  Os  que  queriaõ  tirar  a 

Vida  a  Ghriíl:oMinino,eraó  Herodes,e  todos  os  feus, 
toda  a  fua  famiiia,  todos  os  feus  adherentes,  todos  os 
que  feguiao  ,  e  pendiaô  da  fua  fortuna.  Pois  he  pof- 
íivel,  que  todos  q^qs.  morreílem  juntamente  com 
Herodes.í^  Sim.  Porque  em  morrendo  o  Tubarão  , 
morrem  também  com  elíe  os  Pegadores  :  Defunão 
Herode,  defuncíi  ftint  qiii  quarebmit  animam  pueri. 
Eis  aqui,  peixezinhos  ignorantes,  emiferaveis,  quaó 
errado,  e  engnnofo  he  eíle  modo  de  vida,  que  ef- 
colheílcs.  770  Con- 


nfctirfo  LXX 

7-0     Conriderai,pegadoresvivos5Comoni-orreraÓKum.  3^1. 
os  outros,  que  le  pegarão  áquelie  peixe  gr;inde  ,  e 
porque?  O  Tubarão  morreo,  porque  comeo  ,  e  el.es 
ir.orrero  pelo  que  naÒ  comerão.  Pôde  haver  mayor 
ignorância,  que  morrer  pela  fome,  ebocaa.heya? 
Que  morra  o  Tubarão,  porquecomeo,  matou-o  a  lua 
pula,  mas  que  morra  o  Pegador  pelo  que  nao  comeo^, 
he  amayordeígraça,  que  fe  pôde  imagmm"  !  Nao 
cuidei ,  que  também  nos  peixes  havia  peccaclo  origi- 
nal    Nós  os  homens  fomos  taÔ  delgraçados  ,  que 
outrem  comeo ,  e  nós  o  pag^.mos.  Todii  a  noí.a  mor- 
te teve  principio  na  golodice  de  Adão ,  e  Heva  ,  e 
que  hajamos  de  morrer  pelo  que  outrem  comeo, 
2rande  deigraca  !  Mas  nós  íavamonos  oeíla  delgra- 
ça  com  huma  pouca  de  agua ,  e  vós  naô  vos  podeis  la- 
var da  vona  ignorância  com  quanta  agua  tem  o  mar. 

-T^i     Deos  também  tem  os  feus  pegadores.  Muni  Num.  3^^. 
á^'ík^s  era  David ,  que  dizia  :  Mthi  atitem  adlmrere 
Deo  bonum  eft.  Peguemfe  os  outros  aos  grandes  daPf-  7'-  ^. 
terra,  que  eu  fó  me  quero  pegar  a  Deos.  E  poíto  que 
defte  modo  fó  fe  podem  pegar  os  homens  ,  e  vos, 
meus  peixezinhos,  nao,  ao  menos  devereis  imirar  aos 
outros  animaes  do  ar ,  e  da  terra ,  que  quando  fe  c^he- 
gaÓ  aos  grandes ,  e  íe  amparao  do  feu  poder ,  nao  le 
pegaó  de  tal  forte  ,  que  morrão  juntamente  com  el- 
les.  Lá  diz  a  Efcritura  daquella  famofn  arvore  ,  em 
que  era  figniíicado  o  grande  Nabucodonoíor  ,  que 
todas  as  aves  do  CeodefcanfavaÓ  fobre  léus  ramos,e 
todos  os  animaes  da  terra  fe  recolhiaô  a  fua  lombra  , 
huns,  e  outros  fefuftentavaõ  de  (eus  fructos;  mas 
também  diz,  que  tanto  que  foy  cortada  eíla^arvore, 
as  aves  voarão  ,  e  os  outros  animaes  fugirão.   Cne- 
gaivos  embora  aos  grandes ;  mas  naó  de  tal  maneira 

L2  P^^ga- 


1 6  4     Vieira  ahbreviado 

pegados,  que  vos  mateis  por  elles,  nem  morrais  com 
elles. 
"""'  ^  "-     yji     Com  os  Voadores  tenho  também  huma  pa- 
lavra, enaõhe  pequena  a  queixa.  Dizeime,  Voado- 
res, naó  vosfez  Deos  para  peixes  ,  pois  porque  vos 
meteis  a  fer  aves  ?  O  mar  feio  Deos  para  vós ,  e  o  ar 
para  ellas:  contentai  vos  com  o  mar,  e  com  nadar,  e 
naoqueirais  voar,  pois  fois  peixes.  Se  acafo  vosnao 
conheceis,  olhai  para  as  voílas  efpinhas,  e  para  as 
voíTâs  efcamas ,  e  conhecereis  ,  que  naó  fois  ave  ,  fe- 
nnó  peixe,  e ainda  entre  os  peixes  naó  dos  melhores. 
Dirmeheis,  Voador,  que  vos  deo  Deos  ma)  ores  bar- 
batanas ,  que  aos   outros  do  voílo  tamanho.  Pois 
porque  tiveftes  mayores  barbatanas,  por  ilfo  haveis 
de  fazer  das  barbatanas  azas.^  Mas  ainda  mal ,  por- 
que'tantas  vezes  vos  defengana  o  voíFo  caftigo!  Qljí- 
zeíles  fer  melhor  queos outros  peixes,  e  por  iífo  lois 
íiiais  mofino  que  todos.  Aos  outros  peixes  do  alto 
mata-os  o  anzol ,  ou  a  fifgii ,  a  vós  fcm  fifga ,  nem  an- 
zol matavos  a  voíía  prefumpçaó,  e  o  voííb  capri^ 
cho.  yay  hum  navio  navegando ,   e  o  marinheiro 
dormindo  ,e  o  Voador  toca  na  vella ,  ou  na  corda  ,  e 
cahe  palpitando.  Aos  outros  peixes  mata-os  a  fo- 
me, e  engana-os  a  ifca,  ao  Voador  mata- o  a  vaidade 
de  voar ,  é  a  fua  ifca  he  o  vento.  Qiianto  melhor  lhe 
'fora  mergulhar  por  baixo  da  quilha,  e  viver,  que 
Voar  por  cima  das  entenas  ,  e  cahir  morto!  Grande 
ambição  he,  que  fendo  o  mar  taó  immenfo  ,  lhe  naÓ 
'baile  a  hum  peixe  taó  pequeno  todo  o  mar,  e  queira 
outro  elemento  mais  largo.  Mas  vede ,  peixes ,  o  caf- 
tigo da  ambição.  O  Voador  feio  Dt  os  peixe,  qqWq 
quiz  fer  ave  ,  e  permitte  o  mefmo  Deos,  que  tenha 
OS  perigos  de  ave ,  e  mais  os  de  peixe.  Todas  as  vel- 
4  ias; 


ifcurfo LXmiI.    \(>s 

las  para  ellc  faô  redes,  como  peixe,  e  todas  as  cor- 
das laços ,  como  ave.  Vê ,  Voador ,  como  correo  pe- 
la  pofta  o  teu  caíligo.  Pouco  ha  nadavas  vivo  no  mar 
com  as  barbatana^s,  e  agora  jazes  em  hum  convez 
amortalhado  nas  azas.  Naô  contente  com  fer  peixe, 
quizeíle  fer  ave ,  e  já  naÒ  es  ave  ,  nem  peixe ,  nem 
voar  poderás  já, nem  nadar.  A  natureza  deo-te  a  agua, 
tu  nao  quizeíte  íenaÕ  o  ar ,  e  eu  já  te  vejo  poílo  ao 
foo^o    Peixes  ,  contentefe  cada  hum  com  o  leu  ele- 
mento. Se  o  Voador  naõ  quizera  paíTar  do  legundo 
ao  terceiro ,  nao  viera  a  parar  no  quarto.  Bem  legu- 
ro  eítava  elle  do  fogo ,  quando  nadava  na  agua  ;  mas 
porque  quiz  íer  borboleta  das  ondas,  vieraoíelhe  a 
queimar  as  azas.  Se  o  mar  tomara  exemplo  nos  nos,  Num.  5^3; 
depois  que  ícaro  íe  afogou  no  Danúbio ,  naó  haveria 
tantos  ícaros  no  Oceano. 

77  >     Masjáqueeftamos  nas  covas  domar,  antes  Num.  565, 
que  fayamos  delias ,  temos  lá  o  irmaô  Polvo ,  contra 
o  qual  tem  fuás  queixas,  e  grandes  naô  menos  que 
S.  Bafilio ,  e  Santo  Ambrofio.  O  Polvo  com  aquelle 
feu  capello  na  cabeça   parece  hum  Monge  ,  com 
aquelies  feus  rayos  eílendidos  parece  huma  eílrella, 
com  aquelle  naõ  ter  oíío ,  nem  efpinha  parece  a  mef- 
ma  brandura,  a  mefma  manfidaÕ.  E  debaixo  deíla 
apparencia  taô  modefta ,  ou  defta  hypocrefia  taô  fan- 
ta  teftimunhaó  conteíkmente  os  dous  grandes  Dou- 
tores da  Igreja  Latina ,  e  Grega ,  que  o  dito  Poh^o  he 
o  mayor  traydor  do  mar.  Coníiíle  eíla  trayçaó  do 
Polvo  primeiramente  em  fe  veftir,  ou  pintar  das  mef- 
mas  cores  de  todas  aquellas  cores  ,  a  que  eílá  pega- 
do. As  cores,  que  no  cameleaõ  faÕ  gala,  no  polvo  íaõ 
malicia  :  as  figuras,  que  em  Protheo  fao  fabula ,  no 
polvo  faô  verdade, e artificio.  Se  eftános  limos,  faz- 
Tom.  II.  L3  Te 


ié6    Vieira  ahbreviado 

íe  verde ,  fe  eftá  na  are.rfazfe  branco  ,  fe  eílá  no  Io- 
do  ,  fazíe  pardo  ,  fe  eilá  em  alguma  pedra  ,  como 
mais  oramariamente  coftuma  eílar,  fazfe  da  cor  da 
nieíma  pedra.  E  daqui  que  fuccede?  Succede,  que  o 
outro  peixe  innocente  da  trayçaÒ  vay  paliando  deía- 
cautelado  e  o  falteador  ,  que  eftá  de  embofcada 
dentro  do  feu  próprio  engano  ,  lançalhe  os  braços  de 
repente ,  e  falo  pnzioneiro.  Fizera  mais  Judas  ?  NaÓ 
hzera  mais ;  porque  nem  fez  tanto.  Judas  abraçou  a 
^íirilto,  mas  outros  o  prenderão :  o  Polvo  he  o  que 
abraça,  e  mais  o  que  prende.  Judas  comos  braços 

tez  o  íinal    e  o  Polvo  dos  próprios  braços  faz  as  cor- 
das.  Judas  he  verdade ,  que  f  oy  traidor ,  mas  com  lan- 
ternas diante :  traçou  a  traição  ás  efcuras ,  mas  exe- 
cutou-a^iiuito  ás  claras.  O  Polvo  efcurecendofe  a  fi 
tira  aviíla  aos  outros,  e  a  primeira  traição  ,  e  roubo 
que  taz,  h e  a  luz,  para  que  naÓ  diílinga  as  cores. 
A  e,peixe  aleivofo,  e  vil ,  qual  he  a  tua  maldade,  pois 
Judas  em  tua  comparação  já  he  menos  traidor. 
Num.  3^7.     774     ^h que exceíFotaóaíFrontorOjetaó indigno 
de  hum  elemento  taõ  puro,  taõ  claro  ,  e  taó  cryftal- 
Imo,  como  o  da  agua,  efpelho  natural  naÓ  íò  da  ter- 
ra,  íenao  do  meímo  Ceol  E  que  neíle  mefmo  ele- 
mento fecrie,  feconferve,  eíe  exercite  com  tanto 
damno^do  bem  publico  hum  monílro  taÓ  diílimula- 
do ,  tao  fingido ,  taõ  aftuto ,  taó  enganofo ,  e  taó  co- 
nhecidamente traidor  I  Vejo,  peixes ,  que  pelo  co- 
nhecimento, que  tendes  das  terras,  em  que  batem  os 
voílos  mares ,  me  eftais  reípondendo  ,  e  convindo  , 
que  também  nellas  ha  falíidades ,  enganos ,  fingimen- 
tos, embuíles,  ciladas,  e muito mayores,  e  mais  per- 
mcioías  traiçoens.  E  fobre  o  meímo  fujeito ,  que  de- 
íendeis,  também  podereis  applicar  aos  femelhantes 

outra 


Dlfciirfo  LKXIV .   1^7 

outra  propriedade  muito  própria  ;  mas  pois  vos  a 
callais ,  eu  também  a  callo  ;  com  grande  contuíao  po-  , 
rém  vos  confeíTo  tudo ,  e  muito  mais  do  que  dizeis, 
pois  o  na6  podo  negar.  Mas  ponde  os  olhos  em  An- 
tónio voíTo  Pregador,  e  vereis  nelle  o  mais  puro 
exemplar  da  candura ,  da  íinceridade ,  e  da  verdade , 
onde  nunca  houve  dolo,  fingimento,  ou  engano. 

DISCURSO     LXXIV. 

Tirado  de  bmifermao  da  terceira  quarta  feira  da 
Quarefma  pregado  im  Capella  Real, 

PER.TEN  DENTES. 

775  C  Eg^^-^do  ^  experiência ,  e  queixa  commua  ,  Pat^  x. 
<  OoufejacomrazaÕ,  oufemella,  acho  eu^^-  '' 
Que  os  pertendentes  das  Cortes  em  feus  requerimen- 
tos TaÓ  como  os  nolFos  Argonautas  ,  e  primeiros 
defcubridores  da  índia ;  fenaÓ  que  rtavegaõ  ao  revez, 
e  fazem  a  viagem  ás  aveças.  Os  noíTos  defcubrido- 
res primeiro  paíTaraÔ  o  cabo  de  Naõ,  e  depois  o  ca- 
bo de  Boa  Efperança  :  os  pertendentes  pelo  contra- 
rio começaó  pelo  cabo  de  Boa  Efperança ,  e  aca- 

baõ  pelo  deNaó.  ^^  ^         j-    •  kt 

776    Terrivel  palavra  he  hum  ;/6?if?.Nao  tem  direi-  N""'-  5°. 
to,  nem  aveço:  por  qualquer  lado  que  o  tomeis,  fem- 
pre  íoa  ,  e  diz  o  mefmo.  Lede-o  do  principio  para  o 
..fim  ,  ou  dò  fim  para  o  principio  ,  fempie  he  non. 
Qiiando  a  vnra  de  Movfés  fe  converteo  naquella  fer- 
pcnte  taó  feroz  ,  que  fugia  delia  ,  porque  o  naô  mor- 
deife ,  d:fi'elhe  Dcos,  que  n  tomafie  ao  revez ,  e  logo 
perdco  a  figura ,  a  ferocidade  ,  e  a  peçonha.  O  mn, 
^  L4  "^o 


1^8     Vieira  ahhreviado 

naó  he  affiro:  por  qualquer  parte,  que  o  tomeis,  fem- 
pre  he  ferpente,  lempre  morde,  fempre  fere,  íémpre 
eva  o  veneno  comfigo.  Mata  a  efperança,  queheo 
ultimo  remédio ,  que  deixou  a  natureza  à  todos  os 
nialeí.  Nao  ha  corredivo ,  que  o  modere ,  nem  ar- 
te, que  o  abrande,  nem  lifonja,  que  o  adoce    Por 
ma,s  que  confeiteis  hum  naó,  fempre  amarga  -  Dor 
ma>s  que  o  enfeiteis,  fempre  he  feyo  :  por  mai's  que 
o  doureis,  fempre  he  ferro.  Em  nenhuma  folfa  o  po- 
deis por    que  nao  feja  mal  foante ,  afpero ,  e  duro. 
Quereis  faber  qual  hea  dureza  de  hum  naô?  A  mais 
dura  coufa ,  que  tem  a  vida,  he  chegar  a  pedir ,  e  de- 
pois de  chegar  a  pedir ,  ouvir  hum  naõ :  vede  o  que 
lera?  A  língua  Hebraica  ,  que  he  a  que  fallou  AdaÕ 
e  a  que  mais  naturalmente  figniíica ,  e  declara  a  eflen- 
cia  das  coufas,  ch^ma  ao  negar  o  que  fepede,  enver- 
,.  Reg.  ^.  gonli"  a  face.  Affimldiffe  Bethfabee  a  SalamaÓ  ■  Pe- 
ti.         tmonem  unam  precor  a  tè  ,  ne  confundas  faciem 
meam.  Tragovos,  íenhor,  huma  petição  ,  naô  me  Z 
vergonheis  a  face.  E  porque  fe  chama  envergonhar 
a  face  negar  o  que  fe  pede  .?  Porque  dizer  naÓ  a 
quem  pede,  he  darlhe  huma  bofetada  coro  a  lingua. 
i  ao  dura  tao  afpera,  taô  injuriofa  palavra  he  hum 
nao :  para  a  neceffidade  dura  ,  para  a  honra  aíFronto- 
la^  para  o  merecimento  infoíFriveí.  E  fe  hum  naÓ  he 
tao  duro  para  quem  o  ouve ,  creyo  eu  ,  que  naó  he 
menor  a  fua  dureza  para  quem  o  diz  ,  e  tanto  mais 
quanto  mais  generofo  for  o  coração ,  e  mais  fobera- 
Num.  ,t.  no  o  animo,  que  o  houver  de  pronunciar.  Os  Reys, 
e  Príncipes  foberanos  naõ  podem  deixar  de  ouvir  pe- 
tiçoens,  e  fer  importunados  de  requerimentos,  a  que 
nao  devem  deferir.  E  porque  dizer  naÓ  a  pertenden- 
tes  he  coufa  taó  dura  para  elles,  como  para. o  mef- 


Num.  jíi. 


Difairfo  LXXIV .   i^9 

mo  Príncipe,  íera  matéria  mui  própria  defte  lugnr,  e 
deíle  Euangelho  pôr  hoje  em  queílaÓ,  e  averiguar 
du.scoufas"  Primeira:  Se  he conveniente ,  e  decea- 
te  a  hum  R.ey  dizer  naÔ  ?  Segunda :  Qual  he  o  modo, 
com  que  o  deve  dizer  no  calo ,  que  convenha  t 

777     Dos  Imperadores,  queprecederao  ao  Impe- Num.,  5, 
rio  de  Trajano,  diz  o  feu  Panegyrifta  PJinio ,  que  de- 
feiavaô  muito  fer  rogados  ,  e  que  todos  lhe  pediG- 
fem ,  íó  pelo  gofto  que  tinhao  de  dizer  nao :  Pfío- 
res  Príncipes  à  fingidis  rogarigefltehant  mntam 
praftandi  animo  ,  quam  negandt    U^s  Gomo^eftes^, 
queelle  chamava  Príncipes,  verdadeiramente  erao 
tyrannos ,  e  mais  monftros  da  natureza  humana ,  que 
homens  ,  excluido  fem  controverfia  ,  eíle  efcandalo 
da  razaÓ  ,  e  da  humanidade  ,  e  começando  a  noíia 
queftaÓ  pelas  razoens  prováveis  de  duvidar,  parece 
que  naó  he  conveniente,  nem  decente  a  raageftade, 
e  authoridade  de  hum  Rey  ,  que  pronuncie  de  pala- 
vra ,  ou  firme  com  a  penna  hum  naó.  Ou  o  Key  diz 
naó ,  porque  naÓ  quer ,  ou  porque  nao  pode  v  le  por- 
que naó  quer ,  oíFende  o  amor  :  fe  porque  nao  pode, 
deíacredita  a  grandeza.  Efe  as  petiçoens  ,  e  os  re- 
querimentos faó  taes  ,  que  fe  naÓ  devem  conceder_^, 
entendaÓ  os  pertendentes  o  naÕ;  mas  nao  o  ouçao:! 
feja  difcurfo  feu,  e  naó  rcpofta ,  ou  refoiuçao  Real. 
Mais  decente  negativa  he  para  o  governo,  e  menos 
defubertadefconfolaçaó  para  os  que  requerem  ,  que 
elles  tomem  por  fi  o  defengano.  Deíengane-os^a  di- 
lação ,  deíengane-os  o  tempo:  e  fede  dia  nao  cu  1- 
daó,  nem  de  noite  fonhaó  mais  ,  que  no  feu  delpa- 
cho,  os  mefmos  dias,  e  noites  lhe  di^aó  oqueíe 
lhe  naó  diz  ,  epor  ellas  laibaó  o  que  nao  querem  en- 
tender. Suftentemfe  na  fuadperança ,  pofto  que  falr 


NuiB.  4^ 


170     Vieira  ahhreviado 

fa,  e  fique  feinpre  inteiro  ao  Príncipe  o  pundonor 
de  que  nao  negou.  Se  por  efte  modo  fe  eftendem  os 
requernr.entos ,  e  fe  entretém ,  e  multiplicaô  os  que 
vem  requerer  ,  iíío  mefmo  he  hum  certo  gene  o  de 
grandeza ,  e  authoridade  haver  muitos  pertendentes 

fliJ      aT\^  ^'"^^^"^  ''  C^^f^s  dos  que  na6 
íao  Mageílade.  Ja^que  pertendem  fem  merecimen^ 

dks^dfcríi^n'"^''  ^'  rua  ambição,  efirvalhesa 
eiíes  de  caíbgo ,  e  aos  mais  de  exemplo. 

77^  Contra  o  fofiílico  deílas  razoens  (que  ver- 
dadeiramente tem  muito  de  vaidade )  parece  que  faó 
maisfohdas  as  do  didame  contrario.  Taó  viTíie  na 
mentira  o  fim ,  como  honrado  na  verdade  o  naó  A 
verdade  (  que  por  iílo  fe  pinta  defpida  )  naÔ  fabe'en. 
cubnr,  nem  fingir,  nem  enfeitar,  nem  corar,  e mui- 
to menos  enganar:  e  a  primeira  virtude  do throno, 

onrHfí.    -^i^^^^^V^^^^^S^'?''  he  a  verdade.  Todo 
oartihcio  hecoufa  mecânica,  enaó  nobre,  quanto 
mais  real.  O  Sol  abranda  a  cera,  e  endureceTbar- 
ro ,  porque  obra  conforme  a  defpofiçaó  dos  fu  jeitos- 
mas  em  todos ,  ecom  todos  defcubertamente;  por  if- 
10  o  cajor  he  mfeparavel  da  luz.  Importa  diftincruir 
obaftaodocetro.  OseílratagemasnaÔfaÓpara  odef- 
pacho :  íejao  embora  para  a  campanha ,  mas  naÓ  pa- 
ra a  Uorte :  para  os  inimigos ,  e  naÓ  para  os  vaíFalJos. 
^aibao  os  pertendentes  fe  podem  efperar ,  ou  naÔ, 
para  que  no  fim  nao  defefperem.  Qiiem  diz  ,  que  he 
arte  denao  defgoílar,  naò  diz,  nem  cuida  bem   Me- 
iiior  he  dar  hum  defgofto  que  muitos.  Queixemíe de 
que  os  naofatisfízeraô,  mas  naÔ  pofiaô  dizer  juíla- 
menre  ,  que  os  enganarão.  Se  he  dura  palavra  hum 
nao,  mais  duras  faó  as  boas  palavras,  que  fufpen- 

dem, 


m 


Difciirío'  LTKIV.  171 

3em  ,  e  eticobrcrn  o  mefmo  naò  ,  até  que  o  deícobre 
3eífcito.  Qiíem  kz  o  naó  taó  breve,  nao  quiz  que 

^""'y^T^Pcáio  Filippe  de  Macedónia  á  RepublicnNun,.M. 
de  Athenas  o  deixaíFe  paíTar  com  exercito  pelas  luas 
terras  ,  o  que  o  Senado  lhe  naó  quiz  conceder  ;e  por- 
que  o  eílvio  dos  Athenienfcs  (  que  ainda  hoje  le  cha- 
ma eftvlo  Lacónico  )  era  refumir  tudo ,  o  que/e  ha- 
via  de'dizer,  ás  palavras  mais  breves  ,  tomarão  hum 
srande  pergaminho,  (que  era  opapel  daqueile  tem- 
lo)  e  efcreveraô  neiíe  hum  naó  com  tamonhas  le- 
trás,  que  o  enchia  todo,  e  cerrado  ,  e  íeliacio  ,  eíta 
foy  a  ?epofta  ,  que  deraó  aos  Embaixadores  ^e  filip- 
pe   He  muito  celebre  nas  hiílorias  Gregas  efte  bre- 
ve ,  e  grandiíTimo  naÓ ;  mas  na  noíla  Athenas  ainda 
os  ha  mayores.  Tantas  petiçoens ,  tantas  remiífoens, 
tantas  provifoens  ,  tantas  patentes  ,   tantas  certi- 
doens,  tantas  juftifícaçoens,  tantas  folhas  corridas  , 
tantas  viítas ,  tantas  infoímaçoens  pedidas  muitas 
vezes  á  Afia  ,  e  á  America ,  tantas  confultas  ,  tantas 
interlocutórias,  tantas  replicas  ,  tantas  outr^iscere- 
monias  ,  e  myílerios  por  efcrito ,  a  que  íe  nao  labe  o 
numero ,  nem  o  nome ,  e  ao  cabo  de  quatro  ,  de  leis, 
e  de  dez  annos  ou  o  defpacho ,  ou  o  que  fignihca  o 
defpacho  em  meya  refma  de  papel,  he  hum  nao.  Nao 
fora  melhor  elle  defengano  ao  principio  ?  L  as  dei- 
pezas  deite  injufto  entretenimento  ,  que  le  devem 
reftituir  nefta  vida ,  ou  fe  haÓ  de  pagar  na  outra ,  por      . 
cuja  conta  correm  ?  Já  que  naÓ  haveis  de  tazer  ao 
pertendente  a  mercê ,  que  pede ,  porque  lha  mo  ta- 
reis ao  menos  do  que  ha  de  gaftar  inutnmente  na 
pertençao  ?  Ao  outro,  que  aprefentava  o  feu  memo- 
rial,  dilfe  ElRey  DJoaó  o  II.  na  primeira  audiência, 
'  que 


Num.  p6. 


172     Vieira  ahhreviado 

Forque  me  beijais  logo  a  maõ  ?  Porque  me  fez  V. 

,tcoíf  "T'  ''"'^'"heiro,  que  trazia  paragaftar 

Fft..T,^  ^"'^  ^  'T°  ^  '^^'^^  P^^a  minha  cala. 
tftns  íao  as  mercês  do  defengano ,  .e  os  defpachos  do 
mo  d,to  a  feu  tempo    Naõ  o  dizer  fera  mavor  Tl 

Im  ,;,.?''*"■  r"'',°'''¥^'  e  decência;  masdizelJo 
em  muitos  cafoshe  obrigação,  econfciencia. 
nnpft?;<  ^'Í^PUtada  aflim  problematicamente  a  noíTa 
queftao,dehumas,  e outras  razoens  de  duvidar  le 
conclue  com  certeza ,  que  o  naõ,  fem  fer  coufa  algu! 
ma    he  como  as  outras  coufas  defte  mundo,  queío- 

?eS„'"' ''•'"'•  ^/^"^'"'"^'S  fuasutilidade  ,  e 
feus  inconvenientes.  Para  naií  cahir,  ou  tropeçar  nef- 
tes  ,  que  a  cada  paíFo  fe  ofFerecem ,  ou  atrâveíTaÔ 
em  t.inta  muitidaõ  de  requerimentos  ,  o  pnmei  o 
cuidado,  ou  cautela  do  prudente  Prindpe de  "e  e? 
evitar,  quanto  for  poffivel  ,  as  occafioens  de  dizer 
..aa  Mas  como  fe  podem  evitar,  ou  atalliareftas  oc- 
ren,?.T/%  °'  pertendentes ,  e  as  pertenfoens,  os 

requerentes,  eos  requerimentos  tantos.?  Digo,  que 
fazendo  com  deftreza ,  e  conftancia  ,  que  (t\À  m"! 
nos ,  e  muito  menos,  e  ufando  para  iflo  dos  meyos 
que  agora  apontarei.  ^     ' 

781     Oprimeiro  meyohe,  que  os  validos,  ou  pri- 
vados, por  mais, untos  que  eftejaô  ápeffbaReal    e 

Veiros'".  n'"7  '^"^  ^^'^'\  "'  8^=»?''  ''^J^°  ««  P"" 
nieiros^  a  que  fe  nao  conceda  o  que  pertenderem. 

A  razão    ou  confequencia  he  manifefta.  Porque  fe 
05  que  eftaó  de  fora ,  virem  que  os  que  eftaó  de  den- 

Num  „    co^,;„  r'°.    '^'""!:°'„"'°  alcançaÕ oque  pertendem, 
""■"■«   como  fe  atreverão  elles  a  pertender .?  Diráó  porém 

os 


NilHl.  1)7, 


m 


Diícurjo  L^XIV.  175 

os  melnios  vnlídos ,  ou  alguém  por  elles ,  que  na6  p^ 
rece,  ne,n  he  juilu-a  ,  nem  ainda  bom  exemplo  e 
credito  do  meímo  t<.ey  ,  que  aos  que  fei-vem  ,  e  tia- 
bnlhaô  junto  i  fua  pdlba  ,  e  fuftentaô  o  pezo  da 
■Monarchia ,  devendo  fer  os  primeiros  ,  e  ina.s  remu^ 
nerados  fiquem  (em  mercê,  e  íem  premio  li  he 
íouca  mercl ,  e  pouco  premio  o  fer  validos  Aos^^^^n,,..  .0. 
licios  aue  looraó  a  Qraça  do  Príncipe  ,  battalhe  a 
Síc;  rmefii  graç?.  kr  ilFo  vemos  os  cheyos  deN.;"^.  -• 

cnca  taõcheyos:  e  todas  as  outras  (e  lhe  poileni  fj„„,  ,„,. 

negar  confiadamente ,  e  elles  prezaremfe  nuuto  dei- 

fasnes^açoens.  i 

782     Os  Filofofos  diftinguem  dous  géneros  úc^^^,,^-u 
nes-içoens  ,  humas  fe  chamao  puras  negaçoens  ,  e  ou- 
tras, a  que  deraÔ  nome  de  privaçoens.  A  pura^nega- 
çaÔ   nerra  o  ndlo ,  e  mais  a  aptidaÓ  :  a  pnyaçao  íup- 
poem  a  aptidaÓ  ,  e  nega  o  ado.  O  íilencio  he  negação 
de  fallar ,  mas  com  grande  diíFercnça^no  homem  ,  e 
na  eftatua  :  na  eftatua  he  pura  negação  ;  porque  a  el- 
tatua  nuó  falia  ,  nem  he  apta  para  falUr  ,  fenao  rne- 
Ota   Porém  no  homem  he  privação;  porque  amda  qiie 
o  homem  nuÔ  falle,  he  apto  ,  ecapaz  de  hllar.  Da- 
qui fe  íegue ,  que  aílim  como  o  íllencio  na  elíatua  he 
incapacidade  ,  e  no  homem  virtude  ,  aíTim  o  que  fe 
nega  ao  indigno,  he  pura  negação,  a  qual  o  íittionta^ 
eòque  fe  nega  ao  digno,  he  privação,  que  o  honra, 
e  acredita,  e  tanto  mais  ,  quanto  for  mais  djgno.     . 
Taes  faó  as  negaçoens  ,  que  os  Priacipes  fizerem  ,  e 
devem  fazer  aos  feus  validos.  Sao  privaçoens  ,  com 
<]ue  naó  íó  fe  acredita  a  fi ,  fenaô  também  a  elles  > 
porque  o  mayor  credito  do  valido  he  que  a  fua  pri- 
vança  feja  privação.  Por  iíío  os  validos  coni  mais^ 
aobre,  e  heróica  etimoloRia  íe  chamaó  privados  ,  & 
'  q^uaa=- 


JàA 


•174 

quando  elles  folgarem  de  o  fer,  ou  o  Príncipe  fizer 
que  o  fejao  ,  ainda  que  naõ  folguem  ,  as  pn.açoens 
dos  priv^Hios  faraõ  mais  toleráveis  as  negacoens  dos 
>que  o  noô  íaô.  E  defenganado.  os  de  mai/com  eíe 
exemplo ,  nem  eiles  fe  atreverão  a  pedir  o  que  fe  lhe 
de^^e  negar  nera  o  Príncipe  fera  forçado  a  nesar  o 
que  líie  pedirem, ficando  livre  por  eíle  meyo  de  mui- 
tas ,  e  mojeftas  occafioens ,  em  que  contra  o  decoro 

eagrado^daMageíladefeja  obrigado  a  dizer  naó^^ 
Num.  103.     783     O  iegundo  meyo,  ou  mdLíílria  de  prevenir 
e  atalhar  o  naõ,  e  as  occaíioens  de  o  dizer  he  que  o 
Frmcipe  em  todos  os  feus  defpachos  ,  e  refolu4cns 
eja  mteiro  ,  jaílo  ,  e  re61o  ,  e  conhecido  pJr  tal 
iJeíiajuftiça    e  inteireza,  (que  por  outra  parte  he  a 
íua  pnnieira  obrigação}  fe  Teguiráo  douseiíeitos  no- 
táveis. O  primeiro   que  ninguém  fe  atreverá  a  pedir 
fenao  o  que  for  jufto  :  o  fegundo  ,  que  pedindo  to- 
.  dosfromente  o juílo,  a  todos  concederá  o  Princioe 
G  que  pedirem ,  e  nunca  dirá  naõ 
Nua:.xo4.     784     O  mais  juílo,  rec^o,  intciro ,  e conftante  ho- 
meoT,  que  houve  entre  os  Romanos,  foy  Marco  Por- 
Cio  CataÓ    Equeconfeguio  com   eíla  inteireza,  e 
conílancia  de  íua  juíliça  infiexivei?  Confeguio,como 
refere  1  iinio  ,  que  ninguém  no  feu  Co^nfulado  fe 
atreyeo  a  lhe  pedir  coufa,  quenaõ  foílejuíla.  Aífim 
Jno  diíle  com  admiração  a  eloquência  de  Tullio:  O  te 
J-ehcem^  Mar ce  Porei  ^  à  quo  rem  improbam  petere 
ne?m  audet\  Tú  fera  a  reverencia  do  governo ,  e  tal 
a  felicidade  do  Rey ,  que  em  todas  fuás  refoluçoens, 
euelpachosobíervar  confiantemente  juíliça    Aiuí- 
íiça,  como  definem  os  Theologos,  e  Juriílas,  naõhe 
outra  coufa  ,  que  huma  perpetua,  e  conílante  von- 
tade de  dar  a  cada  Imm  o  que  merece.  Se  eíla  von- 

tade 


Difcurfo  LXXIV .  175 

tade  (  que  ordinariamente  he  taô  mudável  nos  sffe- 
áos  humanos)  for  conftante ,  e  perpetua  no  Prmci- 
pe    todos  ie  deníenganaráó  ,  que  naô  hao  de  aican- 
çar'delle,  fenaÔ  o  que  for  devido  a  feus  ferviços  ,  e 
proporcionado  a  feus  merecimentos :  e  por  meyo  dGC' 
fe  defencrano   confeguirá   a  felicidade  de  que  nm- 
guem  le  atreverá  a  lhe  pedir  ,  íenaÕ  oque  for  jofío  : 
O  te  felicem,  à  quo  rem  improbampetere  nemo  audet\ 
Felice ;  porque  naÔ  fe  atrevendo  ninguém  a  pedir  , 
fenaô  o  juílo  ,  íerao  muito  menos  as  petiçoens ,  e  re- 
querimentos. Felice  5  porque  naÓ  pedindo  nmguem, 
fenaõ  oque  lhe  he  devido,  haverá  com  que  íatista-, 
2er  a  todos.  Felice ;  porque  fendo  as  petiçoens  ,  e  re- 
querimentos juíliíicados  ,  fempre  o  Prmcjpe  conce^ 
dera  o  que  fe  lhe  pedir,  e  nunca  dirá  naÓ.  Nao  he 
melhor,  e  mais  decente  ,  e  mais  breve,  e  mais  utii , 
que  o  naô  o  digaó  a  fi  mefmos  aquelles  ,  que  haviao 
de  pedir  ,  do  que  dizerlho  a  eiies  o  Príncipe  depois 
de  pedirem  ?  Pois  iíFo  he  o  que  fuccederá  ,  íe  nin- 
guém íe  atrever  a  pedir  ,  fenaó  oque  merecer. 

785     Seja  o  Príncipe  jufto  ,  e  taó  conftantementeNum.  105., 
juílo ,  que  por  nenhum  outro  motivo  ,  nem  reípeito 
de  a  ninguém  ,  fenaó  o  que  merecer ,  e  lhe  for  devi- 
do, e  logo  os  vaífallos  fe  naô  atreveráó  a  pertender  a^^ 
femrazoens  ,  e  exorbitâncias  ,  que  vemos  ,  e  fe  ben'-" 
zeráo  de  pedir,  como  de  tentação:  Non  petam^  «à^ifai.y.  ix- 

non  tentabo  Domhiunt.  ... 

78Ó  Oh  fe  os  Reys  tantas  vezes  ,  e  tao  mjurioís-|^^j^.  ^oé. 
mente  tentados  ao  nienos  nao  Confentiflem  na  ten- 
tação! Nao  digo,  que  caíliguemfeveramente  algu- 
mas petiçoens  ,  polto  que  imitariaô  niílo  a  Salamaô, 
o  qual  por  huma  petiçiiózinha  (  que  aífim  lhe' cha- 
mou a  interceíTora :  Petitiomm  parvuiam )  mandou- 

cortar 


pr.  ti: 
270. 


17Í    Vieira  ahhreviado 

cortara  cabeça  a  Adonias.  E  verdadeiramente  ha  t>e-. 
ííçoens,  cjue  bem  interpretadas  faÕ  libellos  infama- 
torios  dos  meímos  Principes  ,  em  cujas  mãos  íe  me- 
tem. Porque  fe  íaó  doloías,  como  Qr-:^  eíia  de  Ado- 
m^^  ,  fuppoem  que  ho  nefcios  :  fe  faÕ  exorbitantes, 
íuppoem  que  faó  pródigos:   fe  faÔ  contra  os  Cano-' 
nes  Apoftohcos,  (  como  faÔ  muitas  )  fupDoem  que 
naoíaÔCatholicos:  e  de  qualquer  modo  ,  que  peçao, 
<)  quenaóiíejuílo,  fuppoem  que  faÓ  injuílos.  Mas 
imantes  de  fazeran  as  petiçoens  luppozerem  ,  e  fe 
derenganarem  ,  que  nenhuma  coufa  hao  de  confe- 
guir ,  íenao  o  que  ditar  a  inteira  ,  e  reda  juftiça 
ei.es  íe  comporão  com  a  fua  ambição ,  e  tomaráô  por 
partido  onaó  pedir:  Non peiam.  Notai  onde  eftá  o 
A^í»// ,  evede  quanto  mais  conveniente  he  para  o  vaf- 
íalío,  e  maisexpediente  para  o  governo,  e  mais  de- 
cente para  o  Re^  o  naõ  antes  do  Petam  ,  que  depois 
da  petição,   He  mais  conveniente  para  o  vafl^aJlo 
porque  melhor  lhe  eftá  ,  que  deíenganado  tome  por 
ii  meímoonaõ,  e  o  ponha  antes  das  fuás  petiçoens, 
que  ouvido  depois  delias.   He  mais  expediente  para 
o  governo,  porque  ceílando  o  tumulto,  e  inunda- 
ção dp$  requerimentos,  que  verdadeiramente  o  ofo- 
,ga<),teraÔ  mais  fácil  expediçapos  negócios.  Eíinal- 
mentehe  mais  decente,  e  decorofo  paraoRey  ,  por- 
que nenhum  ,  que  vier  bufcar  o  premio  ,  ou  o  remé- 
dio aos  pés  da  Mageílade ,  fe  apartara  delles  defcon- 
tente.  Virao  afer  por  efta  via  todas  as  petiçoens  da 
noira  Corte  ,  como  as  que  íe  deípachaõ  na  do  Ceo. 
David  dizia  a  Deos :  Intret  poftulatiomea  in  con- 
fpeãu  tuo.  Entre,  Senhor ,  a  minha  petição  ao  VDÍfo 
conípeélo.  Nas  Cortes  da  terra  deíéja  opertenden- 
í^^que  fpya  a  fua  petição,  na  do  Ceo  defejn,.queen-.. 

tre; 


Dífcurfo  LXXIV .   177 

tre  ;  porque  huma  vez  ,  que  a  petição  foy  tal ,  que 
podeíTe  entrar  ,  infallivelmente  íahe  deípachada. 
Aílim  fera  cá  também  ,  fe  ninguém  pedir,  fenao  o 
que  for  juílo  ;  porque  o  Rcy  juílo  á  petição  juita 
nunca  pode  dizer  naó. 

787     Mas  que  fiirá  o  Rey  para  adquirir  eíle  cre-Num.  107: 
dito ,  e  reputação  univerfal  de  juílo ,  e  por  meyo  del- 
ia evitir  as  petlçoens ,  e  requerimentos  injuítos  ,  fem 
os  qu-ies  fique  livre  dos  inconvenientes ,  e  diiTal3ores 
donaò?  Digo  que  fó  o  poderá  confeguir  applican- 
do  o  nao  também  a  íi ,  e  primeiro  a  fi ,  que  aos  fub- 
ditos.  He  grande  documento  do  noíib  texto,  e  di- 
gno de  íe  reparar  muito  neiie.  A'on  eftimum  dare 
mbis^  diz  o  Senhor,  que  o  dar  naó  he  íeu  :  e  o  naõ 
primeiro  cabe  íobre  eile ,  que  fobre  os  dous ,  a  quem 
negou  o  que  pertendiao.  Primeiro  fobre  o  metim ,  e 
depois  fobre  o  vobis.  Aílim  ha  de  fazer  o  Rey ,  que 
quer  fer  jufto ,  e  ter  opinião  de  tal.  Cuidaô  os  Reys, 
que  o  dar  he  feu  ;  e  o  Rey  dos  Reys  diz  ,  que  naó  he 
feu  o  dar :  No7i  ejt  meum dare.  Pois  Chrifto  em  quan- 
to Deos,  e  em  quanto  homem  naõ  hé  fenhor  de  tu- 
do ?  Sim  íie.  Logo  pode-o  dar  a  quem  quizer  ,  e  co- 
mo quizer?  Diftingo:  com  juíliça  fim,  íemjuíliça 
naó.  Santo  Ambrofio  :  Non  eji  meum ,  quijufthiam 
fervo ,  nongratiam  :  Eu  dou  por  juftiça  ,  e  naÕ  por 
graça  :  por  juftiça  he  meu  o  dar  ,  por  graça ,  como 
vós  quereis ,  naó  he  meu  :  Ncn  eji  vieum  dare  vobis. 

788  Nenhuma  coufa  anda  m.ais  mal  entendida  5Nutn.  loS, 
e  peyor  praticada  nas  Cortes  ,  que  a  diftinçao  entre 
a  juftiça  ,  e  a  graça.  Donde  íe  íegue,  que  apenas  ha 
mercê  das  que  fe  chamr.ó  graça ,  que  nsó  feja  injufti- 
ça,  e  contenha  muitas  injuftiças.  Naô  nego,  que  os 
Revs  podem  fazer  graças,  eque  o  fazeilas  he  muito 
Tom.  II.  M  pro- 


I7§     Vieira  ahhreviado 

próprio  da  benifícencia  ,  e  maí^niíicencia  Real ;  mas 
líTo  ha  de  fer  depois  de  fatisfeitas  as  obrigaçoens  da 
juíliçp.   O  que  perde  naô  fó  o  governo ,  mascas  conf- 
ciencias,  e  almas  dos  Príncipes,  he  cuidarem,  que 
podem  tudo,  porque  podem  tudo.  Se  affimlhodi- 
zem,  he  lifonja,  e  fe  o  crem,  he  engano.  O  Rev  pode 
tudo  o  que  he  iuilo  :  para  o  que  for  injuílo ,  nenhum 
poder  tem.  Efta  he  a  verdadeira,  e  mayor  iifonja,  que 
íe  pode  dizer  aos  Reys;  porque  he  fazellos  podero- 
íbs  como  Deos.  Deos  he  onmiporente  :  e  poderá 
Deos  fazer  huma  injuílíça?  De  nenhum  modo.  Pois 
aííim  devem  entender  os  Reys  ,  que  íaõ  poderofos. 
E  fe  os  fubditos  íe  perfuadirem  ,  que  o  Rey  aíljm  o 
-entende,  e  aílim  o  obferva,  nem  etles  defenganados 
pedirão ,  íenao  o  que  for  jufto,  nem  oRev  importu- 
nado terá  occafioens  de  dizer  naó. 
Kum.  109.     789     O  terceiro  meyo  de  fe  cortarem  as  occaficés 
de  dizer  naó,  he  a  obfervancia  inviolável  das  leys. 
Se  as  leys  fe  confervarem  em  todo  o  feu  vigor  fem 
difpenfaçaõ,  fem  privilegio,  fem  excepção  da  pef- 
foa,  onaódiloha  a  ley  ,  e  naõ  o  Rey.  As  leys  de 
Deos  prohibitivas  todas  começaõ  por  naõ  :  Nc-noc- 
cicies-.  Non  moschaberls'.  Non  furaberis'.  Nonfal- 
fiim  tefiimonium  dices.  Houve  algum  homem  até 
hoje,  por  atrevido,  e  infolente  qiieíeja,  queíizef- 
fe  petição  a  Deos  para  matar,  para  adulterar,  para 
fartar,  para  levantar  falfo  teftimunho  ?  Nenhum. 
Porque  eíías  leys  faõ  invioláveis,  e  indifpenfaveis. 
Pojs  o  meímo  fuccederá  ao  Principe  ,  feconfervar, 
e  mantiver  as  fuás  inviolável ,  eindifpenfavelmente. 
E  por  efte  oiodo  taó  decorofo ,  e  íaô  fácil  fe  livrará 
de  mui-tas  occafioens  de  dizer  naó,  porque  já  o  tem 
dito  a  ley. 

790  Pro- 


Difairfo  LXXÍF.  179 


■  790     Pronunciou  Deos  depois  do  primeiro  pec-Num 
cado  a  lev  univeríal  da  morte  ,  á  qual  quiz  que  ficaf- 
fe  íujeito  Adaó ,  e  todo  o  género  humano  :  e  no  mer- 
mo  ponto  ,  em  que  íqz  a  ley  ,  fez  também  ,  que  íoHe 
inviolável.  A  ley  da  morte  parece  inviolável  de  lua 
mefma  natureza  ,  mas  naquelie  tempo  podiaíe  vio- 
lar facilmente  ;  porque  comendo  AdaÕ  ,  c  qualquer 
outro  homem  do  frudo  da  arvore  ^h  vida  ,  ficava 
iíento  de  morrer.  E  que  fez  Deos  ?  Ne  forte  fumai  Gcncf.  j 
etiam  de  ligno  vit^e ,  &  comedat ,  &  viyatm  ater-  ^  ^■ 
iium\  Porque  naõ  aconteça  ,  que  Adão  aíhm  como 
quebrou  a  primeira  ley  ,  comendo  da  arvore  da  fci- 
encia  ,  quebre  também  a  fegunda  comendo  da  arvo- 
re da  vida  ,  e  fique  immoríal :  CoUocavit  ante  Para-- 
difum  Cberuhim  ,  f  flammeum  gladíum  od  cuftodí- 
endani  viam  ligm  vita:  Poz  á  porta  do  Paraifo  hum 
Cherubiin  com  huma  efpada  de  fogo,  para  que  íera 
exvepçaó  defendeíTe  a  entrada  a  todos  j  e  fe  algum 
intentdíTe  eximirfe  da  ley  de  morrer ,  morreíFe  pri- 
meiro. Eíla  foy  a  ordem  cerrada  do  Gherubím,  e 
efte-o  rigor  indifpenfavel  da  ley  ,  da  qual  nao  qui?. 
Deos ,  que  foíle  privilegiado  nem  feuprOprio  Fiiho. 
O  privilegio  chamafe  em  direito  VuUmsdegis  ,  fej 
rida  da  ley  ;  e  o  poder,  e  a  efpada  do  legislador  naó 
ha  de  fer  para  ferir  as  leys  ,  fenaô  para  ferin,  ii^atar, 
e  queimar  a  quem  intentar  quebrallas  ,  queporiílo 
a  eípada  do  Cherubim  era  eípada  ,  e  de  fogo.  Bem 
podéra  Deos  cortar  ,  ou  fecar  a  arvore  da  vida,  com 
que  fe  elcufavaõ  todos  aquelles  apparatos  de  hor- 
ror ;  quiz  porém  ,  que  a  arvore  ncaííe  em  pé ,  e  a  ley 
le  guardaiie  com  tudo  invioiavelmente  ,  para  que 
entendeíTemi  os  legisladores ,  que  ainda  que  elies  pof- 
iaõ  difpenfar  nas  ieys  ,  e  o  modo  da  difpenfa^aô  fe- 

M  2  ja  fa- 


no. 


p^ 


■i 


I S  o     Vieira  ahhrevíado 

ja  fácil ,  nem  por  iíFo  o  hao  de  permittir.  Mas  ,  Se- 
nhor ,  a  arvore  da  vida  eílá  carregada  de  frudos 
huns  nafcem  ,  outros  cahem  ,  e  todos  fe  perdem ,  po- 
dendofe  aproveitar  com  tanta  utilidade.  Uh  mal- 
ditas utilidades  !  Eíle  he  o  engano,  que  perde  aos 
Pnncípes.  Difpenfaôíe  as  leys  por  utilidades,  (que 
ordinariamente  faõ  dos  particulares  ,  e  nao  fuás  )  e 
abreíe  a  porta  á  ruina  univerfal ,  que  fó  fe  pode  evi- 
tar com  a  obíervancia  inviolável  das  leys.Percaófe  os 
frudos  da  arvore  da  vida,  que  faó  a  mais  preciofa 
coufa  ,  que  Deos  creou  :  percaõfe  as  mefmas  vidas 
ensô  íe  recupere  aimmortalidade  :  morra  ,  efepul- 
tefe  o  mundo  todo ;  mas  a  \q^  naó  fe  quebre ,  nem  íe 
diípenfe. 

^  791  E  que  fe  feguio  deíle  rigor  indifpeníavel  da 
ley?  Seguiofe  aquelle  defengano  univerfal,  que 
pregou  David  :  Quis  efi  homo ,  quivivit ,  d^  non  vi- 
debít  mortem  ?  Que  homem  ha ,  que  viva ,  e  naõ  ha- 
ja de  morrer  ?  Edefenganados  huma  vez  os  homens 
de  que  a  ley  era  inviolável ,  fendo  a  morte  a  coufa 
mais  aborrecida  ,  e  a  vida  a  mais  amada  ,  ninguém 
houve  já  mais  ,  que  fe  atreveíTe  ,  nem  lhe  vieífe  ao 
penfamento  intentar  fer  difpeníado  para  naó  mor- 
rer. Guardem  fe  as  leys  taõ  fevera  ,  e  inviolavelmen- 
te ,  que  fe  defenganem  todos ,  que  fe  nao  haó  de  dií- 
peníar ,  e  com  o  naõ ,  que  ellas  dizem ,  fe  livrarão  os 
Príncipes  de  o  dizer. 

>íiiní.  1:3.  792  Eu  nao  nego,  que  em  matéria  de  conceder, 
e  negar  pode  haver  mayor  razaô  em  huns  ,  que  em 
outros  ;^  mas  a  confequencia  de  concedeíles  a  outro , 
logo  naó  me  haveis  de  negar  a  mim ,  he  argumento, 
que  fenaó  folta  com  mayor  razaÔ. 

Num.  114.  793  Perluadafe  o  Príncipe ,  que  o  que  fe  conce- 
de 


Num.  III, 


K  88.4. 


DifairfoLXXIV.   i§i 

de  a  hum  ,  porque  o  pede ,  também  íe  deve  conceder 
aos  outros,  ainda  que  o  naó  peçaó.  Entenda,  que  as 
difpenfaçoens,  e  privilégios  naÓ  fó  faó  fendas  da 
lev,  mas  feridas  mortaes,  e  que  a  ley  morta  nao  po- 
de dar  vida  á  Republica  :  coníldere  ,  que  as  leys  íao 
os  muros  delia,  e  que  fe  hoje  feabrio  huma  brecha, 
por  onde  poíTa  entrar  hum  íó  homem  ,  a  manha  íera 
ta6  larga  ,  que  entre  hum  exercito  inteiro.  Olhe  pa-  - 
ra  as  leys  politicas,  para  as  ordenanças  militares,  e 
para  tantas  pragmáticas  económicas,  que  fendo iní- 
tituidas  para  remédio ,  vieraÔ  por  efta  caufa  a  íer  dil- 
credito.  E  leja  a  ultima  ,  e  a  única  refoluçaô  do  Prín- 
cipe jufto  tratar  as  fuás  leys ,  como  fuás,  fuftentan- 
do-as  ,  e  mantendo-as  em  íeu  vjgor  inviolável ,  e  in- 
difpenfavelmente  ;  porque  o  que  a  ley  nega  a  todos 
fem  injuria,  depois  que  fe  concede  a  hum,  (  ainda  que 
feia  com  razaÔ  )  naÔ  fe  pode  negar  a  outro  fem  ag- 
gravo.  E  he  melhor,  mais  facil ,  e  mais  decente,  que 
as  mefmas  leysdigaó  o  naó  confervandofe,  do  que 
Guebrailas  o  Principe  pelo  naó  dizer.       .,-,., 

794    O  quarto,  e  ultimo  meyo,  ou  induftria  de  Nm 
evitar  o  naó  heanticipar  os  provimentos  ,  e  naó  ter 
lugares  vagos  ;  porque  tanto  que  o  lugar  eftá  provi- 
do, ceíTaó  as  pertençoens.   Admirável  he  a  diligen- 
cia, e  cuidado,  que  a  natureza  põem  em  impedir  o 
vácuo.  E  que  em  todo  o  univerfo  naó  haja  lugar  va- 
zio. A  eíle  fim  vemos  fubir  a  agua ,  deícer  o  ar ,  mo- 
verfe  a  terra,  romperemfe  os  marmores,ertallarem  os 
bronzes,  e  correrem  todas  as  creaturas  com  ímpeto 
contra  fuás  próprias  inclinaçoens.  Daqui  nafcem  os 
frequentes  terremotos,  e  os  extraordinários,  ehor- 
j-endos  ,  que  naó  poucas  vezes  derrubarão ,  e  deftrui- 
raó  Cidades  inteiras.  O  mefmo  que  faz  a  natureza 
Tora.  II.  M3  por 


iij. 


Num.  1 1 7 


f'  >■' 


Vieira  ahhreviado 

por  impedir  o  vácuo,  faz  a  ambiçaó  pelooccupar 
b  havendo  lugares  vagos,  de  todas  as  partes  concor 
rein  tumuJtuanainente  a  elles  os  pertendentes  nac 
por  impedir,  ( que  íó  íe  impedem  huns  a  outros  )  ma^ 
por  occupar  o  vácuo ,  e  tanto  com  mayor ,  e  mais  vio- 
lento ímpeto ,  quanto  a  natureza  acode  ao  bem  com- 
mum  do  univerfo  ,  e  a  ambição  ao  particular  de  ca- 
da hum.  hquaes  fejaó  os  terremotos ,  e  perturba- 
çoens  da  Republica  ,  que  daqui  felevantaô,  baíta 
que^o  digao  as  batalhas  interiores  de  Roma  no  con- 
curío  dos  Confulados.  No  governo  xMonarchico  he 
muito^facil  atalhar  todos  eftes  inconvenientes ,  anti- 
cipando  o  vácuo  de  tudo  aquillo ,  que  fe  pode  per- 
tender,  ou  pedir ,  com  prevenir  vigilantemente  ,  que 
nao  haja  lugares  vagos;  eaííim  o  deve  fazer  todo  o 
prudente  Príncipe. 

795     A  mayor,  e  mais  difficultóía  occafiaÕ ,  que 
tem  havido  nefte  género  ,  foy  o  provimento  da  fuc- 
ceífao  de  David.  Queria  David,  e  fabia ,  que  era 
conveniente  ao  bem  do  Reyno,  que  o  feu  fucceíTor 
toílebalamao,  equeaíTira  o  tinha  Deos  decretado. 
Contra  lítoeftava  ferSalamaÓ  illegitimo,  e  menor, 
e  Adonias  feu  competidor  naó  fó  legitimo ,  mas  dê 
todos  os  filhos  de  David ,  que  entaõ  viviaó ,  o  primo- 
WTr  ^^.^^'^o  ^^1  aífiftido  do  fequito  commum  do 
nccleiíiaítico ,  e  popular ,  e  de  grande  parte  da  mili- 
cia.  hra  chegado  o  negocio  a  termos,  que  em  hum 
banquete ,  que  naquelle  dia  tinha  dado  Adonias  a  to- 
dos os  Príncipes  ,  e  fenhores  da  fua  parcialidade,  já 
le  lhe  íaziao  os  brindes  á  faude  d'ElRey.  Teve  no- 
ticia difto  naquella  mefma  hora  David  ;  e  que  refo- 
luçao  tomaria  ?  Selefe,  diz,  a  minha  mula,  (que 
mo  os  cavallos,  de  que  entaó  ufavaô  os  Reys )  mon- 
te nel- 


-4^ 


Difcurfo  LXXIV.   1 8  5 

te  nella  Salamaó  ,  e  ungido  pelo  Profeta  Nathan 
fava  por  Jerufalem  com  trombetas  ,  e  atabales  dian- 
te, edigaõ  todos:  VivaElRey.  Aílim  Ic  executou 
no  mefmo  ponto.  Ouviole  no  banquete  com  allom- 
bro  o  fom  das  trombetas,  foubefe  o  que  paíTava  , 
retiraófe  cheyos  de  medo  os  convidados,  e  todos  no 
meí mo  dia  beijarão  a  mao  a  Salamaõ.  Mas  que  razaõ 
deo  de  fi  David ,  e  do  que  tinha  mandado  ?  Como 
refpondeo  ao  direito,  e  pertençaô  de  Adonias?  E 
como  enfeitou  ,  ou  adoçou  o  naõ  de  o  naó  ter  no- 
meado aelle?  Nenhuma  coufa  lhe  diíTe,  nem  teve 
neceflidade  de  lha  dizer  ,  porque  vendo  Adonias  o 
Jugar  provido,  compozíe  com  a  fua  fortuna,  foy 
beijar  a  maô  a  Salamaó ,  e  nem  a  elle ,  nem  a  feu  pay 
replicou  huma  fó  palavra.  Tanto  importa  o  prom- 
pto  provimento  dos  lugares  para  pôr  filencio  á  am- 
bição dos  pertendentes ,  e  também  ao  naõ  dos  Prin- 

796     A  praxe  defta  politica  exercitou  gloriola- Num.  ns. 
mente  no  noíío  Reyno  ElRey  D  Joaó  o  II.  digno  de 
fer  chamado  D.  Joaó  o  do  bom  memorial ,  aííim  co- 
mo D.  Joaó  ol.  fe  chamou  o  de  boa  memoria.  Ti- 
nha efte  prudentiífimo  Rey  hum  memorial  fecreto, 
no  qual  trazia  apontados  todos  os  que  fe  avantaja-. 
va6  em  feu  ferviço ,  ou  foíFem  Miniftros  do  Eílado^ 
ou  dajuftiça,  ou  da  Fazenda,  ou  da  Guerra:  e  fegun- 
do  o  merecimento  de  cada  hum  lhe  tinha  deftinado 
os  lugares ,  e  os  prémios ,  aíHm  como  foíTem  vagan- 
do. Era  provérbio  dos  Hebreos  ,  de  que  também 
ufou  Chrifto :  Ubicumquefuerit  corpus.illic  congre-i^^^^-^i-^f- 
gahuntur  i^  aqiiiU.  Onde  houver  corpo  morto , 
Jogo  alli  correráó  as  águias.  Falia  das  águias  vultu- 
rinas,  quefaó  aves  dle  rapina ,  as  quaes  tem  agudif- 

M  4  fíraa, 


rii^«iàÉÍ^iÍáÍ« 


184     Vieira  ahbreviado 

fima  vifta,  e  fubtiliflimo  olfato,  e  em  vendo,  ou  chei- 
rando corpo  morto ,  logo  correm  a  empolgar ,  e  ce- 
varfe  nelle.  Aífim  fuccede  com  a  ambiçaó  dos  per- 
tendentes   a  todos  aquelles  ,  por  cuja  morte  va^a 
omcio ,  comenda,  vara ,  cadeira,  mitra ,  governo,  ou 
outro  emolumento  útil,  e  pingue,  em  que  empre- 
gar ( nao  digo  as  unhas  )  as  maôs.  Mas  que  fazia  nef- 
tes  cafos  quotidianos  o  Rey  do  bom  memorial  ?  Co- 
mo nelle  tinha  já  deftinadas  as  pcfloas  ,  a  quem  havia 
de  1-azer  o  provimento  ,  refpondia  ,  que  já  o  lugar  , 
otlicio  ,  ou  beneficio  eftava  provido  ,  e  as  águias, 
que  corriaó  famintas  aos  defpojos  do  morto  ,  enco- 
Jhiâo  as  azas,  embainhavaõ  as  unhas ,  e  ainda  que 
queriaõ  graínar,  tapavaõ  o  bico. 
Num.  11^.     797     He  o  que  aconteceo  hoje  aos  noíTos  dous 
pertendentes,  No  mefmo  caminho ,  em  que  fe  fez  a 
petição,  acabava  Chrifto  de  dizer,  que  hia  ajeruía- 
lem  a  morrer.  JoaÔ  era  a  águia  ,  e  Diogo  feu  irmaõ, 
e  como  lhe  cheirou  a  corpo  morte,  também  quize- 
rao  empolgar ,  e  aproveitarfe  da  occafiao;  mas  ainda 
que  os  lugares ,  que  pediaô,  ti  veílem  fido  do  morto, 
e  elle  fora  como  os  outros  mortos,  que  morrem  ,  e 
nao  refufcitao  ,  a  razaô,  com  que  Chrifto  lhes  tapou 
a  boca  ,  foy  com  dizer ,  que  aquelles  lugares  Já  efta- 
vao  deftinados,  e  dados  a  outrem  :  Non  vobis^Jed 
quihus paratum  eji  à  Patre  meo. 

7.9B  Temos  apontado  osmeyos  ,  com  que  anti- 
cipadamente  fe  podem  atalhar,  ou  diminuir  asocca- 
íioens  de  íe  dizer,  nem  ouvir  efte  taó  duro  adverbio. 
MiS  porque  fe  podem  ofFerecer  com  tudo  algumas, 
em  que  íeja  forçofo  negar  ,  vejamos  agora  o  modo  , 
ou  modos,  com  que  nos  taes  caíos  com  menos  fenti- 
mento  dos  vaflallos,  e  menor  mortificação  doPrin- 

cipe, 


Num.  izi. 


'    i  L 


Difcurfo  LXXIF-    1S5 

cipe  fehadedizero  naô.  ElRey,  que  eítá  no  Ceo , 
diire  a  hum  feu  confidente  ,  que  tinha  vinte  e  quatro 
modos  de  negar  :  teve  efta  noticia  hum  Enibaixa- 
dor,  que  havia  tempos  requeria  certo  dePpacho  e 
com  a  confiança  de  criado  antigo ,  que  tmha  fido  de 
Sua  Mageftade  ,  começou  humn  nova  mftancia  com 

eftas  palavras :  Cá  ouço,  que  V.  f^^f'^'''^^: 
te  e  quatro  modos  de  negar:  Senhor,  fe  V.  Magefta- 
de tem  vinteequatro  modos  denegar,  eu  tenho  vin- 
te e  cinco  de  pedir.  Quaes  foirem  eftes  vmte  e  qua- 
tro modos  de  negar ,  eu  o  naô  íei ,  nem  me  oc.wrem; 

mas  como  faó,  e  podem  fer  mais  «s^^odos  de  pedir, 
neceííario  fera  contra  a  importunidade  dos  perten-     - 
dentes  repulfallos  talvez  com  hum  nao  mais  ,  ou  me- 
nos defenganado  fegundo  o  que  pedir  a  miséria 

790     Primeiramente  me  parece  ,  que  lao  merece-Num.  i, 
dores  de  hum  naÔ  muito  claro  ,  e  muito  feco  certo 
género  de  alvitreiros,  que  inventando  ,  e  otterecen- 
do  novos  arbítrios  ,  e  induftrias  de  accrelcentar  o 
erário  ,   ou  fazenda  Real  ,  juntamente   dizem  (  e 
aqui  bate  o  ponto  )  que  elles  haÔ  de  fer  também  os 
executores,  e  para  iffo pedem  meyos,  ejurifdiçoens. 
Nafceo  cizânia  ,  diz  Chrifto  ,  entre  a  feara  de  hum 
pay  de  familias  ,  o  que  vendo  os  criados  ,  vierao  lo- 
eo  mui  zelofos  encarecendo  aqueila  perda  da  fazen- 
da de  íeu  amo  ,  e  ofFerecendofe  a  ir  mondar  a  feara, 
e  arrancar  a  cizânia  :  Fis ,  imus ,  &  colUgimus  eat  Math. 
Quereis ,  fenhor ,  que  a  vamos  colher  ?  Colher  ,dif-  ^s. 
feraô,  e  naÔ  arrancar  ,  porque  eftes  zelos,  eoftere- 
cimentos  íempre  íe  encaminhaó  á  colheita.  Reípon- 
deo  o  pay  de  familias  fem  lhes  agradecer  o  cuidacio: 
e  que  refpondeo?  Ait  illis\  Non,  DuTelhe:  Nao.  Aí-  Math 
fim  fe  ha  de  refponder  com  hum  ^naò  muito  ieco  ,  e  ^9, 

muito 


!?• 


í  ?. 


!|)| 


1 8  6    Vieira  abbreviado 

........xtir.isrsiz*; .  „„„„. 

C3d"  ^enir^  '  ?,  ,    -'  '^"^  '^°f='"  '"''''^  eminentes  em 
i-Joa  género,  Uibao  aos  inayores  iusares    e  N-nh^A 

os  pn,,e.ros  prcniios  Mas  tirafe  porlxce^^ô^^^^^^^^^ 
ftb.r  aeftes  lugares  na5  baíb  a  eminência  dos  ta! 

de  an'',ilT''?'r''f ''."^"^''^'  '«f»'f'>  certo  Jraa 
de  qualidade,  baftando  fó  eíFa  qualidade  feni  outrn 

n  erec.mento,  nem  talento  para  pertender.eakn- 
çar    ou  alcançar  fem  pertender  os  mefmos  lugares 
Efe  oseftrangoros  fe  adniiraô,  e  paímaô  de  v^T 
que  os  homens,  que  elles ,  e  o  mundo  venera     Zl 

hutn  dos  nofTos  pertendentes  do  Euangelho  (  e  feia 
Sant  ago    que  veyo  aPortugal )  viera  hoje,  e  emlu 

B  ín  In^f^n'  '  1"^P^'^i'''  pertendera  a  dequalquè 
Bifpado  do  Reyno ,  haviaólhe  de  refponder ,  que  „« 

u  '"^yPI^vof.  que  fe  lhe  podia  fazer,  eradarlh? 
hum  Bifpado  ultramarino  :  e  logo  lhe  nomeariaá  f^     ~ 

Lr TeTor" '^  ""^'i^Pr  P"^'"--  corda  pÍ^   » 
cana.  Sejofueconquiftador  de  trinta  e  três  Reynos 

Capitão  General ,  também  lhe  haviaó  deoppor  aue 
fnhaíidocnadodeMoyfés:  ejpfeph,  oq^uT|'t^eve 

mayor 


'vkk. 


Difcurfo  L^^W.   187 

mayor  induftria  ,  que  todos  os  homens,  parn  adqui- 
rir fazenda  a  feu  Rey  ,  e  mayor  fidelidade  para  a 
confervar ,  fe  quizeíTe  fer  Veador  da  Fozenda  ,  vede 
fe  lho  confentiriaÓ  as  ovelhas  ,  que  tinha  guardado 
íeu  pay  ?  NaÒ  fallo  em  Bartholo  ,  fe  lhe  vieíie  ao 
penlbmento  a  regência  da  Juftiça,  ou  a  Navarro  a  da 
Coníciencia  ;  porque  o  fegundo  tendo  enfinado  em       . 
Portugal  com  afiombro  de  todas  as  Univeríldades 
O  que  aprendeo  na  de  Coimbra  ,  foy  a  tomar  por  1  o 
nao,  e  ir  morrer  em  terras  eítranhas,  porque  íe  lhe 
naõ  diíTeíTe  na  noíTa  :  Non  e(i  in  loco  mjiro  conjuetu- 
dinis.  A  cenfura  defte  ,  que  íe  chama  coftume,  he 
que  naÔ  he  coftume  ,  fenaò  abuíb  contrario  a  nature- 
za ,  á  razaô ,  á  virtude ,  e  prejudicial  á  Republica  :  e 
que  os  Principes  ,  que  fe  efcufaÔ  com  efte  modo  de 
naó  ,  clle  nao  ío  os  naô  efcuía  ,  mas  accuía  ,  e  con- 
demna  mais ,  fazendo-os  odiofos  aos  vaíiallos ,  ao 
mundo,  e  ao  mefmo  Deos,  o  qual  por  iflofez  a  to- 
dos os  homens  filhos  do  meímo  pay,  edameímamay. 

801     Excluido  pois  efte  abufo  particular  da  noíiaNum.  txy, 
terra,  o  modo,  que  em  todas ,  e  todos  approvaó,  exDS 
melhores  politicos  enfinaó ,  como  mais  decente ,  he, 
que  nas  occafioens  denegar,  para  abrandar  a  dure- 
za do  naó ,  depois  de  mandar  confuitar  as  matérias , 
fe  efcufe  o  íabioPrincipe  com  os  feus  Concelhos.  He 
neceíTario  porém  advertir  nefte  meyo ,  que  deve  ler 
applicado  com  tal  moderação  ,  e  cautela  ,  que  por 
enfeitar  o  naô  naô  íe  afee  a  authoridade  do  Rey , 
nem  o  credito  dos  Concelhos,  nem  as  mefmas  ra- 
zoens  da  efcuía.  Havendo  pois  o  Principe  de  fe  ef- 
cuíar,  ou  efcudar  com  os  feus  Concelhos ,  diga ,  que 
mandou  confiderar  a  matéria ,  e  que  íe  conformou 
com  elles ,  e  naô  diga  mais. 


1 8  8     Vieira  abbreviado  • 

DISCURSO    LXXV. 

eirado  de  bum  fermaÕ  da  terceira  Dominga  do  Ad- 
vento ,  pregado  na  Capella  RcaL 


PERTENCOENS. 


Part.  í.  802 

Num.  105. 


Uma  coufa,  que  eu  defejara  muito  ao 
Iift.ST.~-  ^^'"?  ^^  Portugal,  conta  o  Eunnge- 
f.lem  'rv  "" '  "^""^  ^^  V"  ^^'^  "^  Republica  de  Jcru- 
laiem.  Uiz  ,  que  os  do  governo  daquella  grande  Ci- 
dade mandarão  huma  embaixada  aos  deíertosde  Tu- 
dea  ,  na  qual  oftereciaó  ao  Bautifta  a  mayor  dianJda- 
de  ,  que  nunca  houve  no  mundo  ,  querendo-o  reco- 

SrcaVohe^^^^P"'*  MeiTias    O  ql.e  reparo  muito 
nelte  cafo  he,  que  em  vez  de  o  Bautifta  vir  do  deíer- 

fovH.  r '^.  '  pertender  a  dignidade,  a  dignidade 
toy  da  Corte  ao  deferto  a  pertender  o  Bautiífa    E  if- 

Keyno.  He  força  ,  que  haja  pertençoens ,  e  perten- 
dentes,  mas  eftes  naó  ha6  de  íer  as  peíFo.  ,  fenaó  os 
offiaos.  E  porque?  Porque  naô  pôde  haver  r?e^ 
mais  bem  governada  ,  nem  mais  bem  fervida  Repu- 
t>lica  ,  que  onde  os  officios  forem  os  pertendentes  e 
os  homens  os  pertendidos.  Aííim  foy  hoje  o  Bautif- 
ta o  pertendido ,  e  o  Meífiado  o  pertendente 
Num.  107.     803     Oh  que  venturofo  feria  o  noííb  Reyno ,  fe 

N«..  les.^"",^"  "^^^°^"^'^e  ^ft^  nova,  e admirável  politica  I 
i^m  todo  o  Reyno  bem  governado  naÕ  devem  os 
homens  pertender  os  officios ,  fenaÔ  os  officios  per- 
tender os  homens.  As  razoens  deita  politica  doCeo 
pouco  entendida,   e  menos  praticada  na  terra  faó 

muitas. 


I  ' 


.'«.y^ 


•■ítt 


Éi 


Difcurfo  LXXF.    189 

xiitas.  Eu  para  mayorbrevidnde,  e clareza  a  redii- 
5,rei  nefte  difcurfo  a  três  principaes  com  nome.  cie 
:onv€nÍ£ncias.  Primeira;  pgrque  andarão  mr.is  aii- 
thorizados  os  officios.  Segunda  ;  porque  efiara  mais 
defembaraçada  a  Corte.  Terceira;  porque  viviiao 
mais  defcanfados  os  beneméritos.    . 

.    804     Q.jantoá  primeira  conveniência  de  que  os  Num.  lo^, 
officios ,  miando  nao  forem  pertendidos  ,  então  .erao 
mais  authorizados  ,  naõ  faltará  quem  cuide  ,  ou  diga 
o  contrario:  e  parece  que  com   bons  tundamentos. 
NaÓhesrande  authoridade,  e  credito  do  ouro  en- 
tre os  outros  metaes  ,  que  todos  o  ^^^.^f  ^P'^^^"' 
rem  ,  e  facão  tantos  extremos  por  elle  ?  Nao  foy 
grande  authoridade  da  formoíura,  que  pela  de  Hele. 
na  contendeílem  com  tanto  empenho  ,  e  fe  deííem 
tantas  batalhas  a  Grécia  ,  e  Troya  ?  Logo  ^^  ^efma 
maneira  fera  grande  authoridade  ,  e  credito  dos  offi- 
cios ,  que  concorraÓ  muitos  a  ospertender,  eque 
a  ambicaÓ  ,  e  emulação  dos  oppofitores^  fe  empenhe 
com  tJdas  as  forças  em  os  coníeguir.  h  quanto  ma- 
vores  forem  as  negociaçoens ,  as  diligencias ,  as  con- 
troverfias ,  as  valias ,  e  ainda  as  adulaçoens  ,  e  os  ío- 
bornos  dos  que  os  pertendem  alcançar  ,  tantro  mais 
creícerá  a  eílimaçao ,  e  authoridade  dos  meimos  otti-, 
cios  affim  pertendidos.  Pelo  contrario  fe  elles  to- 
rem  os  que  haÓ  de  pertender  ,  naô  teraô  eílimaçao  , 
nem  fequito,  e  ficaráÓ  folitarios  ,  e  quando  menos 
mal  providos.  Já  Tert^lliano  ponderou  gravemente 
a  quantas  indignidades  fefujeitaô,  e  abateiB  os  que 
pertendem  fubir  ás  dignidades:  ele  os  officios  íeh- 
zerem  pertendentes ,  pelo  mefmo  cafo  fe  íarao  indi^ 
gnos,  eperderáo  o  nome  da  honra,  e  dignidade,  que 

he  o  que  os  acredita ,  e  authoriza.  ^  ' 

^  '  807  Ora 


mÊ^màÊÊím 


190     Vieira,  ahhrerviado  - 

Nam.no.     807     Ora  aiites  que  desfaça  a  apparencia  deftas, 
objecçoens,  quero-as  coiwencer  com  a  evidencia  de 
hum  exemplo,  que  todos  trazemos  diante  dos  olhos, 
e  nmguem  o  pode  negar.  O  officio ,  os  Embajxado- 
res ,  e  os  que  hoje  os  mandarão ,  e  o  mefmo  Bautif- 
ta  tudo  era  ecclefiaftico  ,  íeja  pois  também  ecclefi- 
aítico  o  exemplo.  Pergunto  :  Qtiando  efteve  mais  au- 
tnonz^do  na  igreja  o  officio ,  e  dignidade  Epifcopal? 
Qtiando  os  Santos  ( de  que  he  infinito  o  numero  )  íe 
iiaoatreviaõ  a  ò  pertender  ,  mas  pertendidos  clles, 
buícados,   eacclamados  íe  metiao  pelos  bofques, 
e  íeeícondiaõ  nas  covas,  temendo,  efugmdodetao 
alta  dignidade  }  Ou  agora  quando  tantos  Frequentaô 
os  palácios  dos  Reys  ,  e  os  tribunaes,  e  caías  dos 
miniílros,  fazendo  oppofrçaiõ  com  a  cara  defcuber- 
ta  ás  Mitras,  e  oílentando  letras,  antiguidades,  e 
cargos  da  Religião  ,  e  talvez  os  procedimentos,  e  as 
meímas  virtudes,  para  que  as  cabeças  cheas  deíles 
peníamentos  fejaó  coroadas  com  í^qul-lla  íagrada  in- 
fígnia?  Torno  a  perguntar:  Qiiando  efteve  o  officio, 
e  dignidade  Epifcopal  rnaisauthorizada:  agora  quan- 
do tantos  a  pertendem  ,  ou  quando  ella  era  a  perten- 
étwiQ,}  Agora  que  a  procura  defcubertamente  a  am- 
bição, ou  quando  a  recufava  a  raodcdia  ,  e  fugia  del- 
ia a  confciencia  ?  Os  mefmosfagrados  Cânones  ref- 
pondem  á  minha  pergunta ,  e  que  dizem  ?  Oiiaratur 
cogendus,  quirogatus  recedat ,  ir  invitatus  fupat. 
Notai   a  palavra  Oii^ratur ^  bufquefe.  Equemha 
de  íer  bufcado .?  O  Bifpado ,  e  o  officio  ?  Naó ,  fenaó 
o  homem  digno  delle.  EeíTe  homem  digno,  que  qua- 
hdades  ha  de  ter }  Grande  cafa  }  Grande  nobreza  } 
Grande  appellido  ?  Grandes  cargos  antecedentes  } 
Naõ  diz  iíto  o  Canon.  Pois  que  ^và.  Queíeja  tal, que 

o  ha- 


l 


lÉi 


Difcurfo  iXXF.    i5>i 

ohajaô  de  obrigar  por  força  a  ^.ceirar:  Oi4£ratur  co^ 
ícemlus ,  e  que  rogado  com  a  igreja  fe  retire ,  e  con- 
f  idado  com  a  dignidade  fuja  delia :  Qiit  rogatus  re- 

8oó     Equanto  ao  concurfo  dos  pertendentes,  eNutr-iu- 
competidores,  quando  os  homens  laô  os  que  p-rtcn- 
dem  os  officios ,  e  naó  elles  aos  homens ,  tao  tora  el- 
tá  eíla  multidão  de  accrefcentar  a  authoridade  ao  ot- 
íicio ,  que  antes  fe  defacredita  a  fi ,  e  a  elle  ,  e  íe  nao 
di^aô  os  mefmos  pertendentes,  porque  pettendem  o 
oleio  ?  Ou  pela  honra  ,  ou  pelo  mtereUe  :  íe  pela 
honra,  mal  a  podem  dar  ao  officio  os  que  fe  perten- 
dem  honrar  com  eile  :  e  fe  pelo  intereíie  ,  bem  íe  ve , 
que  naÔ  querem  o  officio  para  o  fervir,  fenaopara  íe 
íerviremdelle:  e  onde  íicará  o  oíiicio  mais  autnorr- 
zado  :  onde  ler  vir  ,  ou  onde  for  fervido  ?  Feio  con^ 
trario ,  quando  o  officio  he  o  pertendente  do  homem, 
fendo  o  homem  fempre  o  mais  digno  ,  na  meíma  di- 
gnidade do  homem  pertendido  le  coníervâ^aautho- 
ridade  do  oíiicio  pertendente ,  e  na  exclufao  dos  in- 
dignos fempre  excluídos  fica  fempre  a  authondade 
fegura  de  íearrifcar,  ou  perder.  •       •     j 

807  Seguiafe  agora  a  fegunda  conveniência  aef^,^n,.  j,^^ 
que  por  efte  modo  eftariaó  mais  defembaraçadas  as 
Cortes,  ponto  de  pouco  goílo  ,  e  utilidade  para  os 
que  neíle  embaraço  tem  a  fua  lavoura  ,  e  íem  cav«r 
nem  femear,  a  fua  colheita.  Mas  porque  eftetumuU 
to,  econfufao  nas  portas  ,  e  efcadas  dos  miniítros, 
enas  mefmas  ruas  he  taó  frequente,  que  igualmen- 
te tropeção  nellas  os  pés ,  e  os  olhos,  para  naó  gaitar 
o  pouco  tempo ,  que  nos  reíla ,  em  matéria  taõ  íabi- 
da ,  e  taõ  vifta ,  deixada  a  conveniência  delia  á  confi- 
deracaô  dos  que  me  ouvem ,  paíTçmos  como  mais  im- 

por-:^ 


1 5^  2     Vieira  ahbreviado 

Nuir  117  ^^Q^^^o^^',^  "^^"^^  advertida  á  terceira. 

7.      ^c8     A  terceira  conveniência  defte  trocado  mo- 
do  de  pertender  iie ,  que  viviráô  mais  defcaníados  os 
beneméritos.  ProcuraráÔ  fomente  merecer ,  eftando 
muito  certos,  que  ainda  que  vivaô  retirados  da  Cor- 
te ,  e  muito  ionge  dos  olhos  do  Principe  ,  iá  os  iraÓ 
bu.car ,  e  pertender  as  dignidades,  como  ao  Bautif- 
ta  no  feu  deíerto.  Confideraime  (  diz  S.  Bafilio  )  a 
iJeos  no  Ceo,  e  a  David  no  campo,  e  notai  quão 
differentes  íaô  no  mefmo  tempo  os  cuidados  do  fu- 
prenioMonarcha,  e  do  humilde  pdlorinho.  David 
1u     ^fl^^^^^J^^'^  o  rebanho ,  e  Deos  fazendo  confe- 
hos  fobre  D^viá  :  David  levando  as  ovelhas  aopaf- 
to,  eDeosprcparandoJheothrono.  Ainda  eu  con- 
liuero  mais  deícanfado  a  David  ,  do  que  a  eíoquen- 
cia  de  Baíiho  o  reprefenta.  Qiiando  elle  fugindo  de 
baul  fe  acohieo  á  Corte  d'EiRey  Achiz,  e  para  vi- 
ver íefíngio  doudo,  vahaíe  para  efta  diííimuiacaó 
das  artes,  em  que  fe  exercitara  quando  pnílor,  ehu- 
ma  era  tocar  o  tamboril,  e  a  frauta.  Aílim  o  exprime 
o  texto  Grego.  Confideraime  pois  ao  paííorzinho 
como  Tityro  á  fombra  da  faya  tocando  a  lua  frauta  , 
e  Deos ,  que  ihQ  conhecia  o  talento,  decretandoJhe  a 
coRoa.  Pode  haver  mayor  cuidado  no  Ceo,  emayor 
defcanfo  na  terra  ?  Pois  efte  he  o  que  gofaó  no  feu 
retiro  os  beneméritos. 
Num.  118.     809     Paliemos  do  campo  ao  mar ,  e  ponhamonos 
nas  prayas ,  e  ribeira  do  Tiberiadcs.  Por  ventura  em 
toda  a  fua  vida,  quando  Pedro  ouvia  dizer,  que  em 
Jeruíalem  reíidia  o  Summo  Pontífice,  ou  folfe  Si- 
mon,  GuMathias,  ou  Joazaro ,  ouEieazaro,  ou 
Anano,  ou  Caifaz  ,  que  fao  os  que  fuccederaòem 
leu  tempo,  veyolhe  algum  dia  ao penfamento,  ou 

âcor- 


Difcurfo  LXXF.    1^5 

acordado,  ou  fonhando,  que  poderia  elle  fubir  áquel- 
ía  fuprema  dignidade  ?  He  certo  ,  que  nunca  a  Tua 
Darca  navegou  com  taõ  proípero  vento,  emaré  ,  que 
ral  coufa  JÍie  pallaífe  pela  imaginação.  E  com  tudo 
áefde  a  fua  eternidade  otinlia  Deos  deíliníido  para 
outra,  e  mais  univeríal  tiara,  naõ  deper.dente  dos 
Cefares  Romanos ,  ou  dos  íeus  Tenentes  na  Syria ,  e 
najudea,  que  eraô  os  que  punhas")  huns ,  e  deípu- 
nhaó  outros,  mas  eftabelecida  em  fi  ,  e  em  feus  fuc- 
ceíFores  pela  eleição  immutavel  da  providencia  di- 
vina. 

•  810  Se  naó  bafíaô  os  exemplos  humanos  para  Num.  ut^ 
nos  perfuadir  efta  honrada,  e  defcaníada  induftria  , 
ponhamos  os  olhos  em  todas  ns  outras  creaturas  ,  a. 
que  a  natureza  naõ  deo  razão,  nem  fentido,  e  vere- 
mos como  todas  as  que  tem  valor  ,  e  preftimo ,  oc- 
cupadas  íóem  crefcer  ,  e  íe  fazer  a  fi  mefmas,  fem 
elks  pèrfendei^em ,  nem  bufcarem  a  outrem  ,  todos 
as  buícaô^,epertendem  aellas.  Qiie  fazia  a  oliveira, 
a  figueira,  e  a  vide,  fenaõ  earregarfe  de  frudos  , 
quando  toda  a  republica  verde  das  arvores ,  e  plantas 
lhe  foy  ofFerecer  o  governo  ,  e  o  império  ?  Naô  o 
quizeraÓ  aceitar  ,  porque  fe  contentarão  com  o  me- 
recer. Deixefe  crefcer  o  pinheiro ,  e  fubir  até  ás  nu- 
vens na  Noroega,que  lá  o  iráo  tirar  para  maílro gran- 
de ,  e  levar  a  bandeira  no  tope.  Crefça  também  o  ce- 
dro gigante  do  Líbano ,  e  faiba  ,  que  quando  daquel- 
le  monte  for  paíTado  ao  de  Sion  ,  naô  he  para  o  fo- 
bredourar  o  ouro  do  templo ,  mas  para  elle  com  ma- 
yor  dignidade  cobrir ,  e  reveílir  o  mefmo  ouro. 
Bem  mal  cuidava  o  marfim  na  fua  fortuna  ,  quando 
fe  via  endurecer  nos  dentes  do  elefante  ,  e  dalli  foy 
levado  para  throno  de  Salamaó.  Que  defcuidados 
-;  Tom.  II.  N  cref- 


15^4    Vieira  abbreviado 

creícem  os  rubinsem  CeilaÔ  ,  e  em  Coilocondâ  os 
diamantes  ,  e  lá  os  mandão  conquiftar  com  armadas 
os  Reys  para  refplendor,  e  ornato  de  fuás  coroas. 
Empreguem  Jogo  o  feu  cuidado  os  grandes  fujeitos 
em  aperfeiçoar  os  talentos,  e  dotes,  quenelies  depo- 
litou  a  natureza  ,  ou  a  graça  ,  e  fe  por  retirados  ,  e 
efcondidos  cuidarem  ,  que  perdem  o  tempo,  e  eftL- 
maçaó ,  lembremfe,  que  fepultadas  as  pérolas  no  fun- 
do do  mar ,  e  a  prata  no  centro  da  terra ,  nem  ás  pé- 
rolas falta  quem  pelas  defafogar  afogue  a  refpiraçaó, 
nem   á  prata  quem  pela  defenterrar  enterre  a  vida. 
Num.  it  j.  C)s  que  fe  acharem  com  eípiritos  guerreiros  ,  exerci- 
tem a  architedura  militar,  e  a  formatura  dos  exérci- 
tos na  paz ,  e  dem  fós  por  íós  comíigo  as  batalhas  fe- 
cas,  para  que  depois  as  poífaó  tingir  no  fangue  dos 
inimigos.  O  politico  façafe  verfado  em  toda  a  liçaó 
das  hiftorias ,  e  aprenda  mais  na  pratica  dos  exem-. 
pios,  que  na  efpeculaçaõ  do  difcurfo  a  refoluçaã 
dos  cafos  futuros,  e  a  experiência  dos  paíTados.  O 
inclinado  ás  letras  procure  com  o  eíludo  univerfal 
as  noticias  de  todas  as  fciencias ,  e  naò  cuide ,  que  fó 
com  a  memoria  de  poucos  textos  das  Jeys  lhe  podem 
dar  as  demandas ,  e  trapaças  o  falfo  ,  e  mal  merecido 
nome  de  letrado:  em  fim  por  humilde,  e  rafteira 
que  feja  a  inclinação ,  ou  fortuna  de  cada  hum,  faça- 
íe  no  feu  eftado  infígne  ,  lembrandofe  que  os  anti- 
gos Romanos  do  arado  eraó  efcolhidos  para  o  baí- 
tao,  e  do  triunfo  tornavaÔ  outra  vez  ao  arado. 


6i>    ..  . 


I 


DIS- 


Dijcurfo  LlLXVl.  19$ 

DISCURSO     LXXVL 

tirado  de  humfermm  da  terceira  quarta  feira  da 
Quarejma  pregado  na  Capella  Real, 

PERTENCENTES  CONSOLADOS. 

811  T^Ous  lugares,  edous  pertendentes,  ^''^l^W' 
X-/ memorial  ,    e  huma  interceíTora  ,  hum     •  '^' 
Príncipe,  ehum  defpacho  faó  a  reprefentaçaÕ  poli- 
tica ,  e  a  hiítoria  chrifta  defte  Euangelho.  Nos  luga- 
res  temos  as  mercês ,  nos  pertendentes  as  ambiçoens, 
na  interceíTora  as  vaiias  ,  no  memorial  os  requeri- 
mentos ,  no  Príncipe  o  poder,  e  a juftiça  ,  no  defpa- 
cho  o  defengano  ,  e  o  exemplo.  Eíle  ultimo  ha  de  íer 
a  vey  a  ,  que  hoje  havemos  de  fangrar.  Qiieira  Deos, 
que  a  acertemos ,  que  he  muito  funda.  A  enfermida- 
de mais  geral ,  de  que  adoecem  as  Cortes ,  e  a  dor , 
ou  o  achaque,de  que  todos  comummente  fe  queixao, 
hedemaldefpachados.  Em  alguns  fe  queixa  o  me- 
recimento ,  em  outros  a  neceíTidade  ,  em  muitos  a 
própria  eftimaçaó,  e  em  todos  ocoílume.  O  bene- 
mérito chamalhe  femrazaó  ,  o  neceffitado  diz  ,  que 
he  crueldade ,  o  prefumido  toma-o  por  aggravo ,  e  o 
mais  modefto  dalhe  nome  dedefgraça,  e  pouca  ven- 
tura. Eque  naóhouveíTe  atégora  no  púlpito  quem 
tomafle  poralTumpto  aconfolaçaó  defta  queixa,  o 
alivio  defta  melancolia  ,0  antidoto  defte  veneno ,  e 
a  cura  defta  enfermidade?  Muitosdos enfermos  bem 
haviaó  mifter  hum  hofpital.  Mas  á  obrigação  defta 
cadeira  (  que  he  de  Medicina  das  almas  )  fó  lhe  toca 
difputar  a  doença ,  £  receitar  o  remédio.  E  fe  efte  for 

N  2  prova- 


provado,  e  pouco  cu  ftofo ,  fera  facil  de  aDplicar 

Ora  eu  movido  da  obrigação,  e  da  piedade /e  pare- 

cendome  efta  matéria  huma  das  mais  importantes 

para  todas  as  Cortes  do  mundo  ,  e  a  mais  neceírarià 

para  a.noííano  tempo  preíente  ,  determino  pregar 

hoje  a  confolaçsô  dos  ma]  deípachados.  Nem  com  a 

ambição  dos  Zebedeos  hei  de  condemnar  os  perten- 

dentes,  nem  com  a  negociação' da  may  hei  de  arguir 

©s  interceílores  ,  nem  com  a  reíoluçaô  de  Chrillo  hei 

de  abonar  os  Príncipes,  e  os  Miniftros :  fó  com  o  de- 

lengano  do  requerimento  :  Nefcitis  qutd  petatis\ 

pertendo  coníoiar  efficazmente  a  todos  os  que  fe 

queixaô  dos   feus  deípachos  ,   ou   fe   íentem  dos 

aiheyos.  Coníoiar  hum  mal  deípachado  he  o  aílum- 

imt  ptodofermaó. 

PP  ^^^     Havendo  pois  de  coníoiar  hoje  os  mal  deG- 

pachados,  aquella  gente  muita,  e  naó  vulgar,  de 

&;  i    ^"^"^  ^^  P^^^  ^^2er :  Non  eft  qui  confoletur  eam ,  pa- 

J7^    '  '  ra  que  procedamos  diftintamente ,  e  fallemos  ló  cora 

quem  devemos  fallar,  heneceílario  excluir  primei- 

Ij  '         ro  deíla  honrada  liíla   os  que  importunamente,  e 

|!  fem  razaõ  fe  querem  meter  nella.  E  quem  faó  eftes  ? 

i !'  Sao  aquelles ,  que  íendo  hoje  tanto  mais  do  que  eraõ, 

e  tendo  tanto  mais  do  que  tinhaõ  ,  e  eílando  tanto 

«pais  levantados  do  que  eílavaô ,  ainda  íe  queixaô ,  e 

íe  chamaô  mal  defpachados. 

8i^  Adaô  antes  de  Deos  o  formar ,  naÕ  era  na- 
da .-formado  era  humaeílatua  de  barro  lançada  na- 
•q^uqW^  chaó  :  bafejou-o  Deos,  pozfe  AdaÕ  em  pés, 
começou  a  fer  homem  ,  e  foy  com  taõ  extraordinária 
fortuna  ,  que  tinha  (  diz  o  texto  )  elle  fó  três  preíi- 
dencias.  A  preíidencia  da  terra  fobre  todos  os  ani- 
-inaes,  apreíideuciadoar,  fobre  tcdssasaves,  a  pre,- 
•-^  •  i  '  íiden- 


Dijcurfo  LXXVI.  i97 

fidencia  ao  mar  lobre  todos  os  peixes.  Efiava  bem 
defpachado  AdaÓ  ?  Parece,  que  naÓ  podia  fer  mais, 
nem  melhor.  Com  tudo  nem  elle,  nem  fua  mulhej 
ficarão  contentes  ,  ainda  pertendiaó.  E  que  ^JS^^o 
mais,  que  fer  como  Deos  :  Eritts Jicut  Dn.  Hata.Gener.j.j. 
ambição  deíubir?  Ha  tal  defatino  de  creícer  ?  /m^ 
tehontem  nada  ,  hontem  barro  ,  hoje  homem  ,  a  ma- 
nha Deos?  Nao  fe  lembrará  AdaÓ  do  que  era  hon- 
tem ,  e  muito  mais  do  que  era  antehontem  ?  Quem 
hontem  era  barro,  naô  íe  contentará  com  íer  hoje 
homem,  e  o  primeiro  homem  ?  Qtiem  antehontem 
era  nada,  naô  fe  contentará  com  íer  hoje  tuao ,  e  siian- 
dar  tudo  ?  NaÓ.  Porque  já  entaó  era  Adão ,  como  ho- 
je 1^6  muitos  de  feus  hlhos  ,  que  íahem  como  elle  ao 
barro,  e  ao  nada,de  que  foraÓ  creados.  Mai  creaaos,e 
maoscriados;por  iflodefcontentes,  e  ingratos,  quan- 
do deverão  eílar  mui  contentes  ,  e  mui  agraueciaos. 
E  a  razaÓ  deíla  femrazaÓ  he;  porque  dos  (entidos 
perderão  a  viíla  ,  e  das  potencias  a  memoria  ,  nem 
oihao  para  o  que  faÕ ,  nem  fe  lembraó  do  que  forao. 
814     Mas  do  que  éreis  ,  e  do  que  fois  ,  paílemos 
ao  que  tinheis,  e  ao  que  tendes.  Enthronizado  Jolepn 
no  Qoverno  ,  e  Império  do  Egypto  ,  foube  ElRey 
Faraó ,  que  tinha  pay ,  e  irmaÓs  na  terra  de  Canaan, 
e  mandou-os  logo  chamar ,  para  que  vieiFem  íer  com- 
panheiros da  fortuna  de  feu  irmaó.  O  recado  foy  no- 
tável ,  e  dizia  aífim  :  Properate,  nec  dímittattsquid- 
qtiam  de  fupelleãili  vejlra  ,  quia  omnes  opes  Egyptt 
iefira  ertint:  Vinde  logo ,  e  naÔ  deixeis  coufa  algu- 
ma das  voins  alfayas  ,  porque  todas  as  riquezas  do 
EeyptohaÓde  fer  voíFas.  Elle  porque  naÔ  entendo^ 
Antes,  porque  todas  as  riquezas  do  Egypto  haviao 
de  fer  fuás  ,  naõ  era  neceííario ,  que  írouxeílem  cou- 
Tom.  II.  N3  ia  ai- 


I  ^  S     Vieira  abhre-oiado 

fah.aodasc.ban.s,  e  telhados  de  colmo  na nv?ro,t 
morarem  palácios  dourados  debaixo  das  nvrL  Z 
e  obeiífcos  do  Eg).pto.  Pois  tragaõ°s  íSk-     S 
fuás  mantas ,  os  feus  peliotes  de  pano  da  L^^^r      t'r  ' 

teiras .  tiagao  as  fuás  efcudeílas  de  pao    e  ov  fenc 
tarros  de  cort.ça  ,  para  que  quando  fe^^r^^  cotías 

S"a  ftT''  ^'"^P'fd«.  «P-ta  rodar  pd 
meias  ,  a  feda  ,  e  ouro  das  galas  ,  as  pérolas     e  o^ 
diamantes  das  joyas ,  os  criados ,  os  cavalos   as  c.r 
roças ,  conheçaõ  quanto  vai  de  tempo  a  tempo   ede 

aratrconb:ír%-~^ 

A^Jní  ríçafd^rmtiírc-;^^ 
quanto  ferv.r.a  p.ra  o  agradecimento,  e  para  a  n "o^ 
deft.a    e  amda  para  fazer  laftro  á  mefnía  ftfrtuna  ' 
nhel/  ,    '""''".'J^^^feis,  eoquelois.oqueti- 
rt    o'ndeJ'  '""'^"^ '  '^^'  '  ^on^binaçao  dos^uga- 
res.ondeeíhveis,  eondeeftais.  No  fe-^undo livro 

So    tTirr-f-  ^•'^í^°  -8'ft-^-  -  nferces    ;: 
rtnVr       J'^°  "  "''^"'  '  e  dizaffim   o  reèifto  • 

duxfuper  omnem  populJn  :  Eu  (  diz  Deos )  ti  d  a 

S  s  de  t:T  "^  Pf  T" '.  «"'^^  g-rda v/a   ove! 
iíias  de  feu  pay  ,  e  o  fiz  Càp.taÔ,  e  Governador  lo- 

bre 


DifcnrfoLXXVI-    19 

brc  todo  o  meu  povo.  Naó  fó  diz  Deos  o  lugar ,  on- 
de o  poz ,  fcn^õ  também  o  lugar  ,  donde  o  tirou  :  o 
onde  ,  e  mais  o  donde.  Pois,  Senhor  meu  ,  que  tao 
grandiofo  fois,  fe quereis  ,  que  fiquem  regiíiadas  cm 
vollbs  livros  as  mercês,  que  fizeítes  a  David  ,  por- 
que mandais  ,  que  fe  regiftem  tam.bcm  nelíes  o  cxcr- 
cicio ,  de  que  vivia ,  e  o  lugar  humilde  ,  de  que  o  ie- 
vantaftes?  Para  que  á  viíla  defte  lugar  conheça  me- 
lhor David  a  grande  mercê  ,  que  lhe  ten!)o  feito.   , 
Qiiando  fe  vir  com  o  baftao  na  maõ  ,  Icmbrefe  que 
na  meíma  maó  trazia  o  cajado.  Se  algum  dia  (que 
tudo  íe  pode  temer  dos  homens  }  lhe  parecerem  pe- 
quenas a  David  as  mercês,  que  lhe  fiz,  lembrarfeha 
do  lugar,  que  tinha  antes ,  e  do  que  tem  agora  :  lenv 
braríeha  donde  o  tirei,  e  onde  o  puz  ,  e  logo  lhe  pa- 
recerão grandes.  Eftesondes,  e  eftes  dondcs  naõ  fe 
coílumaô  regiftar  nos  livros  das  mercês.  Sena  bem, 
que  ao  menos  fe  regiftaífem  nas  memorias  dos  que  as 
recebem.   ]á  que  tiveíles  tanta  eílrella  ,  pondelhe 
huma  eftrellinhaá  margem.  Lembreíe  odeíconren- 
te  com  David  onde  eítava  ,  e  onde  eílá  :  lembreíe 
com  os  irmãos  de  Jofeph  do  que  tinha ,  e  do  que  tem: 
lembrefe  com  Adaó  do  que  era  ,  e  do  que  he ,  e  logo 
verá  qual  deve  fer  o  queixoío ,  fe  o  defpacho  ,  ou  o 
defpachado. 

816  Naô  deípachou  Chriílo  hoje  os  noíkís  per- 
tendentes ;  mas  eu  noto  ,  que  nenhum  delles  fe  quei- 
xou. Pedirão  as  duas  fupremas  cadeiras  do  Reyno,t 
pedirão  que  Chrifto  os  defpachaíTe  logo  ,  com  três 
letras:  Dtc  :  Dic ,  utjedeant  hiduo  filii  mel  E^foraõ 
rcfpondidos  logo  com  outras  tresj  Non\  Non  cfi 
meu?n  dare  vobis,  E  fendo  efte  nao  taõ  claro  ,  taó 
feco,  taó  defcnfeitado  .  queixoufe  por  veatura  a  in- 

N4  tercef- 


!Í 


2o  o      V  lara  aubr 

t^rceíTora  ?  QueixaraÕfe  os  pertendentesT  Nem  hu- 
ma  palavra  d.lieraô.  E  porque  ?  Porque  eraô  T^nã 
que  fab.a  tomar  as  medidas  á  fua  fortina.  Compara: 
rao  o  que  tmhaô  fido  com  o  que  eraõ,  e  o  qT/erac 
com  o  que  pertendiaô  íer.  Na 'comparação  doaueti- 
nnao  fido  com  o  que  eraõ,  viaõ  a  melhoria  do  feu 
eftado  :  na  comparação  do  que  eraõ  com  o  que  per- 
tendiao  fer ,  reconheciaõ  o  exceffo  da  fua  ambicaõ. 
b  elhs  duas  comparaçoens  lhes  taparão  a  boca°  de 
mane.ra ,  que  naÕ  teve  por  onde  brotar  a  queixa! 
S^.  H'"r''T'T^°  ^  ^r^"" '  ^  '•«■rendando  as  redes 

eltejamos  contentes,  e  nos  atrevamos  a  pertenderos 
dous  iugares  fupremos  ?  Mais  razaó  teií  logo  nolTo 

ned?r  Pm"'^""'  'l'"]"^  tevenoffamãy,  e  nósde 
pedii  Elle  negou  como  ,u(to  ,  nós  pedimos  como 
demafiados,  enefcos:  Nefcitis quidpetath. 

fem  r.„rw  "'J'  °'  q^eixofos ,  e  deCcontentes 
iem  caufa  (  e  que  por  ventura  fao  a  caufa  de  haver 
t.ntos  defcontentes  )  ouçaó  agora  os  beneméritos 
mal  defpachados  a  muita  razaõ  ,  que  tem  de  fe  confo- 

fnrr.  ^  ^  ';"''"2tl''°'  ^°'"''  '°S°  moftrarei ,  he  a  mais 
forte  de  todas  Mas  /em  recorrera  motivos  da  fé,  fe 
eu  íora  hum  dos  beneméritos,  em  mim  mefmo,  eno 
meu  propno  merecimento  achara  tao  grandes  ra- 
^oens  de  me  coníolar  ,  que  fem  outra  mercê  ,  nem 
defpacho  me  dera  por  .nui  contente,  e  fatisfeito. 
iJilcorrei  hum  pouco  comigo. 

8i8  Ou  mereceis  os  prémios,  que  vosfaltaõ,  e 
com  que  vos  fnltaõ  ,  ou  naÕ :  fe  os  naÕ  mereceis,  naÕ 
tendes  de  que  vos  queixar:  fe  os  mereceis,  muito  me- 
W)s.  Ainda nao  fabieis,  que  naÕ  ha  virtude,  nem 

mere- 


:íuí;Mí 


Difcurfo  XXXFÍ. 


2oI 


merecimento  fem  premio?  Aííim  como  o  vicio  !ie 
B  caftiso ,  aflim  :.  virtude  he  o  premio  de  fi  ir.c.ma. 
Umafor  premio  das  acçoens  heróicas  he  razella  . 
Com  melhores  palavras  o  diíTe  Séneca  ,  V^r^^^^f'^- 
lava  em  melhor  lingua  :   (haJ  confc^uar ^n<p.s  ,^J^ 

me  perguntas ,  que  as  de  confeguir  ,pelo  que  hzefte 
outorte,  ou  geiíeroíamente  , 


refpondote 


que  te- 


lo  feito :  Rerum  honeftarimpretium  tn  tpjts  ejt .  U 
premio  das  aeçocns  honradas ,  eibs  o  tem  em  íi ,  e  o 
levaÔ  logo  comfigo ,  nem  tarda ,  nem  efpera  requeri- 
mentos rnem  depende  de  outrem:  íaô  fatisfacao  aefi 
meí mas.  No  dia,  em  que  as  íizeíles ,  vos  íatisnzeftes. 
819     Eícfóra  de  vós  meímoeíperaveis  outro  pre- 
mio  ,  contentaivos  com  o  da  opiniaÔ ,  e  da  honra,  be 
voíTos  fervicos  faô  mal  premiados  ,  baílevos  faber, 
que  nò  bem  conhecidos.  Eíle  premio  mental  aíTen- 
tado  no  juizo  das  gentes  ninguém  volo  pôde  tirar, 
nem  diminuir.  Qiie  importa,  que  fubais  mal  coníul- 
tado  dos  Miniftros,  fe  eílais  bem  julgado  da  íama.^ 
Oue  importa,  que  fahiíkis  efcufado  do  tribunal ,  fe  o 
tribunal  fica  accufado?  PaíTai  pela  chancellana  eíTe 
delpacho,  deixai-o  por  brazaô  a  voíTos  .defcenden- 
tes ,  e  fereis  duas  vezes  gloriofo.  Só  vos  dou  licença, 
que  vos  arrependais  de  ter  pertendido.  Pouco  tez, 
ou  baixamente  avalia  fuás  acçoens  quem  cuida ,  que 
lhas  podiaó  pagar  os  homens.  r      - 

820  Se  ferviftes  a  pátria  ,  que  vos  foy  ing^*^^^  » 
YÓsfizeftesoquedevieis,  ella  oquecoíluma.  Mas 
que  paga  mayor  para  hum  coração  honrado,  que  ter 
feito  o  que  devia  .?  Quando  fizeftes  o  que  devíeis, 
entaÕ  vospagaftes.  Ouvi  ao  Meftre  divino,  que  tu- 
do nos  enfina.  Dizia  Chrifto  a  feus  foldados,  a  quem 

ene  ar- 


Luc.  17. 


20  2     Vieira  ahbreviado 

iize, ,  que   o,s  íervos  inuteis^otavel  fei  te.  c.  1  (í 

^ar    e  ui/ei  ,  que  l,e  fervo  imid)  ?  Sim.  N  neuem  p-, 
tendeo  me  ior  eífe  fpYrr^     .-...^  „     "■  ^Mnguem  ea- 
N.,nf,ii.,<-i!    rL     f  '^'-^f,°'  que  o  venerave    Beda 
INao  h,l,a  Chrifto  da  utilidade,  que  recebe  n S^nh^ 
íenaôdautdidade,  que  naô  recebeoíervo    O  írvô 
nao  recebe  utilidade  do  Ceu  ferviço ,  poròue  he  ol    i 

ra.aomu,tocomo  Tua:  0««./^.W,iS-  ^ 
W/J-.  O  que  devíamos  fazer,  ilfo  fizemos    Quem  feV 
o  que  devin ,  devia  o  que  fek ,  e  ninguém  ei>erT  t 
gn  de  pagar  o  que  deve.  Sefèrvi,  f?pereiei^  fe  tra-" 

quem  fe  defempenhou  de  tamanhas  dividas    nafíh! 

ie^cí^H''""^^^  PfSn.  Alguns  ha  taõdeAanec  dos 
quecuidao  ,  que  hzeraÕ  maisdoque  deviaõ  Fn^a 
naoíe.  Quem  mais  he,  e  mais  pode,  mais  dev^^O 
Soi,easeftrellas  fervem  fem  ceifar  efémílcom 
grande  utihdade;  mas  eíTa  toda  he  do  un?ve  fo  "e 
nada  fua.  Prezaivos  lá  de  filhos  do  Sol  e  ti5  ninf 
três  como  as  eftrellas,  e  abateivos  a  mèndíg:;'!,^ 

r*  o*»  * 

tíii     Eu  naõ  pertendo  com  ifto  efcufar  ni  n,,^ 
vos  nçcufais.  Porque  vós  fois  beneme     o    nTô  ?)" 

loíidade  a  fer  generofos ,  e  liberaes.  Que  daff  0.1 
que  podem  dar  a  quem  deo  por  elles  o  ftngue  ?  Mas 

por- 


^LlÉfili^-^; 


ÉÊ 


Difairfo  LXXVI.   203 

jorque  ainda  com  o  pouco  ,  que  podem  v  f-ltao  no 
lirradecimento  ,  quero  eu  que  vos  naó  falte  a  conlo- 
acaó.  Se  voílos  feitos  foraò  Romanos,  con(o]aivos 
-om  Cataó  ,  que  naô  teve  eftatua  no  Capitólio.  Yi- 
ihaó  os  eílrangeiros  a  Roma  ,  viao  as^  eíbtiias  da- 
quelles  varoens  famofos  ,  e  perguntavao  pe.a  de  Ca- 
taó    Eíb  pergunta  erá  a  mayor  cíhtua  ck  todas,  aos 
outros  pozihes  eftatua  o  Senado,  a  CataÔ  o  mundo^. 
Deixai  perguntar  ao  mundo  ,  e  admirarfe  de  vos  nao 
ver  premiado.  Eíía  pergunta  ,  e  elia  admiração  he  o 
mayor,  e  melhor  de  todos  os  prémios.  O  que  vos 
deo  a  virtude  ,  naó  volo  pôde  tirar  a  inveja  :  o  que 
vosdeo  afama,  nao  volo  pode  tirar  a  ingratidão. 
Deixai  os  fer  ingratos,  para  que  vós  fejais  mais  glo- 
riofo.  Hum  grande  merecimento  fobre  huma  gran- 
de ingratidão  Hca  muito  maisíubido.  Senaó^houvef- 
íem  ingratidoens,  como  haveria  finezas?  Naõ  deis  lo- 
go queixas  ao  defagradecimento  ,  daiihe  graças. 

822     Dirmeheis,  que  vedes  difterentemeiUe  pre- 
miados os  que  fizeraõ  menos  ,  ou  naô  fízerao  nada. 
Dor  verdadeiramente  grande !  Já  diíFe  huma  Rainha  in  7ita 
de  Caftella  ,  que  os  feus  ferviao  como  vaflallos  ,  os  J<-^^"-  ^ 
noiTos  como  filhos.  E  naÔ  pode  deixar  de  fer  grande 
efcandalo  do  amor  ,  e  grande  monftruoíidade  da  na- 
tureza ,  que  foflem  huns  os  filhos ,  e  fejaõ  outros  os 
herdeiros.  Mas  efia  mefmainjuftiça  vos  deve  fervif 
de  coníolaçaó.  Se  o  mundo  ,  e  o  tempo  fora  taó  juf- 
to,  quediftribuira  os  prémios  pela  medjda  do  me- 
recimento ,    então  tinheís  muita   razaó   de   quei- 
xa ;  porque  vos  faltava  o  teftimunho  da  virtude, 
para  que  os   mefmos    prémios,  foraô   inítituidos  ;. 
mas  quando  as  mercês  naõ  faõ  prova  de  íer  homem , 
fenaõ  de  ter  homem ,  e  quando  naõ  fignificaõ  valor,. 

feuao> 


!  m ;!' 


■ffin,  II 


204    'Vieira  abhreviado 

í»m°  ni-  '  P°""  '."•'"'■''^  '"«  í"^^  ^  quem  fe  naõ  f 

""eM  ex  me  ,fortímamex  ali!s 
J2l    Finalmente  iè  os  homens  vos  faô  ingntos 
nao  íejais  vos  ingrato  a  Deos.  Se  os  ReysTos  nof 
dao  o  que  poden,  ,  contenta.vos  coni  que  vos  d 
Deos  o  que  naô  podem  dar  os  Reys    âs  Re"s  no 

m6  nn  t'm   Q^^^    ^  compõem  a  verdadeira  honra 
nío  podem.  Se  Deos  vos  fez  eftas  mercês   f^,.<;  r.„  ' 
CO  caio  das  outras  ,  que  nenhuma  varo'quel-Cfta" 

meniia    hL.h   P     ""'°'  P'^'^^^'  ^  morrerão  nas 
melmas  batalhas,  e  naó  fequeixaó.  Os  que  morre- 

\m:VIT/',''%^  P"^''"^  deraóT^ida "por 
ficou  tor,oíí/  '^"■-  ^^'''"^'"  P'^''  ""^'-^^  d^  Deos 
dea,achado°s;  ^"'''0,'  «mo  fe  queixará  de  mal 

c^s,  que  vos  nao  fez  ,  beijai  a  maó  da  volfi  efnaHa 
que  vos  fez  digno  delias.  Olhe  o  Revpa„  vós  como 
SoílT  P"P"r  f^^'°^'  ^'«'onai^-os  deque  fe 

car  a  vM.    r    ft'^"' '"""°  P"^ '^'^ ° ^^"8»^ ,  e arrif- 
O  (oftmnento.  EntaÓ  batalhaftes  com  os  inimigos 
«gora  he  tempo  de  vos  vencer  a  vós.  Se  o  foidudo  íê 

vê 


«■li 


Difcurfo  LXXVIy  20  5 

vê  defpido  ,  folgue  de  defcobrir  as  feridas ,  e  de  en- 
lergonhar  com  eilas  a  pátria  ,  por  quem  as  recebeo. 
Se  depois  de  tantas  cavailarias  fe  vê  a  pe)  tenha  eíia 
pela  mais  illuítre  carroça  de  léus  triunfos,  b  le  em 
fim  fe  vê  morrer  á  fome ,  deixefe  morrer ,  e  vmguele. 
Perdeloha  quem  o  na6  fuftenta ,  e  perdera  outros 
nvjitoscom  eífe  defengano.  Naõ  filtnrá  quem  diga 
por  elle :  Quanti  mercenarii  ahimãant  pantbiis  ,ego  luc. i 5. ití 
autembkfamepereol  Eeíleãngrato,  e eícandalofo 
epitáfio  fera  para  fua  memoria  muito  mayor ,  e  mais 
honrada  commenda   de  quantas  podem  dar  os  que 
as  daõ  em  huma  ,  e  muitas  vidas. 

8^4     Eftes  faõ  os  motivos  glonofos,  com  que  eu 
naÓ  fò  me  confolara,  mas  ainda  me  defvanecera  ,  íe 
fora  hum  dos  mais  beneméritos.  Mas  (  P^^q!»^  ^'^^Mauh  i,: 
07?2nes  capinnt  ver  bum  iftud )  vamos  a  razão  divma  ^  ^^    ■ 
do  Euangel ho ,  com  que  fe  naô  podem  deixar  de  con- 
folar  ,  e  conformar  todos  os  que  tem  fé ,  e  ainda  os 
que  a  nao  tem.  Oiivime  ao  principio  como  homens^ 
e  depois  como  Chriftaõs.  Nefcitisquidpetatu'.  Nao 
fabeis  o  que  pedis.   Nenhum  homem  iia  neíte  mun- 
do, í  faltando  do-Ceo  abaixo)  que  faiba  o  que  ctefeja^ 
nem  o  que  pede.  Fundemos  eíla  verdade  na  experi- 
ência ,  para  que  as  confequencias  deila  fejaó  de  ma- 
yor, e  mais  fegura  confolaçaõ.  E  porque  a  petição 
doEuangelhofoy  dehumamây,  e  dous  filhos,  po^ 
nhamos  também  o  exemplo  em  dous  filhos,  e  huma 

mãv.  . 

825     A  mais  encarecida ,  a  mais  empenhada ,  e  a 
mais  importuna ,  e  impaciente  petição ,  que  fez  mu- 
Ihernefte  mundo,  foy  a  de  Rachel  a  feu  maridoja*;. 
cob:  Datnihiliberoí^alioquinfnoriar  :  Jacob,  daiineGenef.  ja; 
fithos,  fenaó  hei  de  morrer,  Refpondeolhe  Jacob^que  u 

,  os 


m\\: 


2o  6    Vieira  abbreviado 

os  fillios  íó  Deos^os  ái.^Çó  elle  os  pode  dar.  E con 
ler  eíta  razão  tao  certa,  e  taÓ  experimentada,  na< 
fe  conformava  com  eik  Rachel.  Iníhva :  Z)./.«;^/7/ 
beros.  Dizialhe ,  que  advertiífe ,  como  eftava  na  pri 
inavera  de  íeus  annos,  eque  ainda  Jhe  reftavaõ  mui- 
tos,  em  que  podia  ter  naturalmente  o  que  tanto  de- 
nr2''i    ri  '^'  "^f'"^^  efperança  a  inquietava  mais  : 
Oamthtliberos    Amiíiava-a  com  o  exemplo  de  fua 
avo  bara  ,  que  depois  de  ta6  comprida  ellerilidade 
houvera  a  Ifaac  feu  pay.  Mas  Rachel  fempre  mais  im- 
paciente :  ^^  ,,;/;&/ //^^^.^j..  Ajuntava  Jacob  a  eílas 
razoens  as  da  liíonja,  mais  poderoías  muitas  vezes 
com  a  traqueza  ,  e  prefumpçaõ  daquelle  fexo  :  dizia- 
Jíie ,  que  olhaíFe  para  fi ,  e  fe  confolaíle  com  a  roía  . 
a  qualíendo  a  belleza  dos  prados,  e  a  Rainha  dns  flo- 
res, he  Hor,  que  naó  dá  frudo.  Masnemalifonja 
nem  a  razão    nem  o  exemplo ,  nem  a  efperança  baf- 
tava  a  ihe  moderar  as  anciãs ,  nem  as  vozes  :  Da  mi- 
hl  hberos :  Da  mihi  liberos.  Eíla  era  a  petição ,  efle 
o  aperto,  eftas  as  inftancias.  Mas  qual  foy  o  deípa- 

cho,e  o  fucceíTo.?  Gafo  verdadeiramente  admirável! 
O  defpacho  foy  affim  como  Rachel  pedia ,  e  o  íuc- 
ceíío  em  tudo  contrario  ao  que  pedia.  O  que  pedia 
Rachel,  naofoera  filho,  fenaõ  filhos:  Da  mihi  li^ 
beros    h  aíFim  lho  concedeo  Deos ;  porque  a  fez  mav 
tíe  joíeph,  e  de  Benjamim.  Mas  o  fucceíTo  foy  em 
tudo  contrario  ao  que  pedia  ;  porque  parindo  feliz- 
mente o  primeiro  filho ,  morreo  de  parto ,  e  no  mef- 
mo  parto  do  fegundo.  Lembraivos  agora  dos  ter- 
mos ,  com  que  Rachel  pedia  os  filhos :  Da  mihi  libe-- 
ros.altoqum  moriar :  Daime  filhos,  (  dizia  )  fe  naô 
iiei  de  morrer.  E  quando  cuidava,  que  havia  de  mor- 
rer, le  nao  tiveíTe  filhos,  porque  teve  fíiiios,  eno  mef- 


Hf-  ■  I 


Difiurfo  LXXVI.   20  j 

10  ponto,  em  que  os  teve  ,  morreo.  Cuidava,  que 
,edia  a  vida ,  e  pedia  a  morte :  cuidava ,  que  pedia  a 
legria  fua  ,  e  de  Tua  caía ,  e  pedia  a  trifteza ,  o  luto  , 
^  orfandade  delia,  e  os  que  lhe  haviao  de  trocar  a  mef- 
na  cafa  cm  fepultura.  TaÔ  errados  faoos  penfamen- 
os  ,  e  delejos  humanos  :  e  taó  certo  he  ,  que  no  que 
)edimos  com  mayores  anciãs,  naó  fabemos  o  que  pe- 
inxios:  Ne fcitis'quídpetatis.  v     ,      rr  u 

82Ó     Confirmado  o  defengano  da  may  dos  Zebe- 
jeos  com  o  exemplo  defta  mãy  ,  confirmemos  o  de 
feus  dous  filhos    com  o  exemplo  de  outros  dous , 
polto  que  filhos  de  diflferentes  pays.  Sabida  he  ahil- 
toria  de  SaníaÓ ,  e  fabida  a  do  Pródigo ,  ambos  famo- 
íos  por  íeus  excefl^os.  Deixados  pois  os  princípios,' 
e  prosrefibs  de  huma  ,  e  outra  tragedia,  ponhamo- 
nos  ao  fim  de  ambas ,  e  vejamos  o  eftado  de  extrema 
miferia ,  a  que  os  pafi^os  de  cada  hum  os  levarão  por 
taódiverfos  caminhos.  Vedesaquelle  homem  robuí- 
to  ,  e  agigantado ,  que  com  afpedlio  ferozmente  trif- 
te ,  tofquiados  os  cabellos  ,  cavados  os  olhos ,  e  cor- 
rendo fangue  ,  atado  dentro  em  hum  cárcere  a  duas 
fortes  cadeyas ,  anda  moendo  em  huma  atafona  ?  Pois 
aquelle  heSanfaó.  Vedesaquelle  mancebo  macilen- 
to, e  penfativo,  que  roto,  e  quafí  defpido  com  hu- 
ma corneta  pendente  do  hombro,  arrimado  fobre 
hum  cajado  eftá  guardando  hum  rebanho  vil  do  ga- 
do mais   afcorofo?   Pois  aquelle  he  o  Pródigo. 
Quem  haverá ,  que  le  naó  admire  de  huma  tal  volta 
de  fortuna  em  dous  lujeitostao  notáveis,  hum  tao 
valente,  outro  taó  altivo!  Hepoffivel ,  que  niíto  pa-* 
raraõ  as  façanhas,  e  vidorias  de  Sanfaó?  He  poffi-í 
vel,  quenifto  pararão  as  riquezas,  e  bizarrias  do 
Pródigo  ?  Nifto  pararão ,  ou  para  melhor  dizer ,  nao 

parar* 


r" 


Judie,  1 4. 
1. 


luc,  15. 

12. 


208     Vieira  ahhreviado ' 

pararão  fó  niílo ;  porque  o  Pródigo  perecendo  i  fo- 
ií)e  no  meyo  do  montado,  naÓ  tinha  licença  para  fe 
^ftentar  das  bolotas,  com  que  apafcentava  o  \^^  ga. 
do    e  Sanfao  tirado  em  publico  para  ludribio  do  po- 
vo foy  tratado  com  taes  efcarneos,  e  indecenci^s 
que  decorrido,  e  aíFrontado  com  fuás  próprias  maós 
fe  íiiou  a  v,da.  Mas  qual  feria  a  cauía  deíles  fuccef! 
los,  ededuss  mudanças  taô  eftranhas?  Agora  nar^ 
vos  peço  admiração,  fenaopaímo.  Amb.s  títasmu- 
danças  de  fortuna  nao  tiverao  outra  caufa,  que  o 
l?ojii  defpacho  de  duas  peíiçoens,  em  que  Saníâô,  e 
o  t^rodigo  fe  empenharam  Pedio  Sanfiô  a  Teus  pavs 
que  lhe  deílem  por  ;mulher  huma  Filiílea  •   Onam 
quajo,  ut  accípmth míbhíxorem.  ConcederaÓihe  os 
pays  o  que  pedia  :  e  eíh  Fililleafoy  a  caufa  das  i^uer- 
ras ,  que  SanfaÕ  teve  com  os  Fiiiíteos,  e  dos  enga^ 
nos  ,  e  traiçoens  de  Dalila  ,  e  da  íua  prifao ,  e  do  feu 
cativeiro,  e  da  fua  cegueira,  e  das  fuás aíFrontas  ,  e 
cio  fim  laíhmoío,  e  trágico  do  feu  valor.  Da  mefma 
maneira  pedio  o  Pródigo  a  feu  pay  ih^  déífe  em  vi- 
da a  herança  ,  que  lhe  havia  de  caber  por  fua  morre  • 
Va  mthtportwnenifuhllanúa.qua  me  conthmt 
Concedeolhe  o  pay  o  que  pedia  ,  e  efta  heranoa  con- 
iumída  em  larguezas ,  ^>e  vícios  da  mocidade  foy 
cauta  da  fua  pobreza  ^  der  fua  vileza  ,  da  fua  miferian 
da  íua  í-ome,  da  fuafervidao,  da  (uadeshonra,  que' 
ío  tiverao  de  defconto  o  pezar,  e  arrependimento. 
iorne  agora  Rachel ,  e  perguntemos  áquella  may, 
e  a  eííes  dous  filhos,  fe  pediriaó  depois  de  tao  pefa- 
úji^\,^^  contrarias  experiências  o  aue  antes  delias  pe- 
dirão. Pediria  Rachel  íilhos,  fe  fôubeífe  ,  que  o  ter 
Whos  lhe  havia  de  culbr  a  vida  ?  Pediria  SanfaÔ  a 
Fiiiltea  ,  fe  foubeííe ,  queeila  havia  deíer  a  caufa  de. 

fua 


ii 


Difcurfo  LXXVL   209 

fua  aífronta  ,  de  lua  morte  ,  e  de  perder  os  olhos  , 
com  que  a  vira  ?  Pediria  o  Pródigo  a  herança  anti- 
cipada  ,  fe  foubera  ,  que  com  ella  havia  de  comprar 
a  miíeria,  a  fervidaô,  a  deshonra?  Ciaro  eíhí  que  naõ. 
Pois  fe  agora  nnó  haviaÕ  de  pedir  nada  do  que  pedi- 
rão ,  fenaô  antes  o  contrnrio  ;  porque  o  pedirão  en- 
tão ?  Já  fabeis  a  rerpoíla.  Pediraóno  ,  porque  naò  ía- 
biaõ  o  que  pediaõ  :  pediraÕno  ,  porque  ninguém  fa- 
beoquepede:  e  pediraôno  ,  porque  foraô  aquella 
mãy  5  eaquelles  dousíiíhos,  como  a  may  ,eos  dous 
filhos  do  noílo  Euangeiho  :  Nefchis  quíãpetatis. 

827  Suppofto  eíle  principio  certo,  e  infallivel, 
que  ninguém  fabe  o  que  pede  ,  tirem  agora  a  confe- 
quencia  os  que  fe  tem  por  mal  defpachados.  Se  vós 
foubeíleis  ,  que  vos  eftava  bem  o  que  pediíles  ,  cn- 
taõ  tinheis  razaÕ  de  eftar  contente,  fe  vo  lo  conce- 
derão, ou  defcontente,  fe  vo  lo  negarão.  Mas  quando 
ignorais  igualmente  ,  fe  vos  eftava  bem  ,  ou  n'isl  o 
que  pertendieis ,  porque  vos  defconfolais  ?  Se  me 
defconfolo,  porque  cuido,  que  me  podia  eftar  bem  ; 
porque  me  naõconfoloconfiderando  ,  que  me  podia 
eftar  mal ,  e  mais  quando  nas  coufas  defte  mundo  o 
mal  he  o  nlais  certo.  Confolaivos  com  a  defgraça  de 
Rache!,  confolaivos  com  a  tragedia  de  Sanfao  , 
confolaivos  com  o  arrependimento  do  Pródigo.  E  fe 
eftes  exemplos  vos  movem  menos  por  ferem  de  lon- 
ge ,  confolaivos  com  os  de  mais  perto ,  e  com  os  que 
viftes,  e  vedes  com  vofíbs  olhos.  Quantos  viftes,  que 
cuidavao  ,  que  eftava  o  feu  remédio  ,  onde  acharão  a 
fua  perdição?  Qiiant  os  viftes  ,  que  cuidavaõ  ,que  ef- 
tava a  fua  honra,  donde  tirarão  o  feu  defcredito  ? 
Quantos  viftes,  que  cuidavaõ,  que  eftava  o  feu  au- 
gmento,  onde  experimentarão  a  lua  ruína  ?  Quantos 

Tom.  II.  O  final- 


f^ 


^BF 


2 1  o     Vieira  abhreviado 

finalmente  viíles,  que  os  efperava  a  morte  ,  onde 
elles  eíperavaó  os  mayores  intereífes  ,  e  felicidades 
da  vida?  Alcançarão  o  que  pedirão,  aceitarão  mui- 
ovid  mat  ^?  ^«"^5"f<^s  O  parabém  do  defpacho  ;  mas  o  deípa- 
*'  5  /?  "^°  ^^^  parabém  :  Pwnam  pro  mmiere pojcis  y 

diífe  o  Sol  a  Faetonte  ,  quando  lhe  pedio  o  gover- 
no do  feu  carro  :  Olha  filho  ,  que  cuidas,  que  pedes 
mercê  ,  e  pedes  caftigo.  O  audor  he  fabulofo ,  mas 
a  fentença  verdadeira.  E  fe  naó  perguníai-o  aos  nof- 
fosPaetontes  ,  aos  do  Oriente  na  Afia  ,  aos  do  Meyo 
dia  na  Africa,  aos  do  Occidente  na  America.  O  mef- 
ino  carro,  que  pedirão,  foy  o  feu  precipício,  e  o 
inefmo  excefib  dos  rayos  o  feu  incêndio.  Se  lhes  buf- 
cardes  os  ofios  fulminados,  (  como  fe  bufcaraó  os  de 
Faetonte  )  hus  achareis  nas  ondas,  outros  nas  areyas, 
outros  nos  hofpitaes ,  outros  nos  cárceres,  e  nos  def- 
terros ,  e  poucos  nas  mefmas  terras ,  que  perderão ,, 
que  fora  mais  honrada  fepultura.  Eftes  faó  os  vofibs 
bem  defpachados.  Qtiantos  partirão  ,  Jevavaô  apoz 
fi  as  invejas  :  quando  tornarão  ,  ou  naô  tornarão , 
trouxeraó  as  lagrimas.  E  fe  elles  fe  enganarão  com 
o  feu  defejo ,  e  com  a  íua  fortuna  ,  porque  naõ  fou- 
berao  o  que  pedirão ;  vos  que  também  o  naô  fabeis, 
porque  vos  haveis  de  enganar.?  Deíenganaivos  com 
o  feu  engano,  e  confofaivos  com  o,  feu  erro,  pois 
nem  elles ,  nem  vós  fabeis  o  que  pedis :  Neíciús  qtád. 
petatis^  '         ^ 


DIS- 


DiJcurfoLXXVIL  211 

DISCURSO    LXXVII. 

Tirado  de  hum  fermao  de  SaÔ  Pedro  Noiafco  ,  e^n 
.    que  o  Anãor  louva  a  SaÔ.  Pedro  ,  porque  deo 
tudo  para  remir  cativos ,  e  pedio  ejmola 
para  lhes  dar  mais. 

PEDIR. 

828     XT  Aô  ha  coufa  que  tanto  repugnem  osP-^-^^^ 
^  homens  como  o  pedir.  He  tal  eíta  re- 
pugnância ,  que  nem  o  fangue  a  modera  ,  nem  o 
amor  a  facilita  ,  nem  ainda  a  mefma  ambição,  que 
he  mais,  a  vence.  Deixar  he  grandeza  ,  pedir  heíu- 
jeiçaô  :  deixar  he  defprezar  ,  pedir  he  tazeríe  deí- 
prezado  :  deixar  he  abrir  as  mãos  próprias  ,  pedir  he 
beijar  as  aíheyas:  deixar  he  comprarfe,  porque  quem 
deixa,  livraíe:  pedir  hevenderfe,  porque  quem  pede, 
cativafe:  deixar  finalmente  he  acçaõ  de  quem  tem,Nurr.^é9. 
pedir  he  acçaÔ  de  quem  naó  tem.  E  tanto  vay  de  pe- 
dir a  deixar  ,  quanto  vay  de  naÓ  ter  a  ter.  C^jem  da  o 
que  tem  ,  dá  a  fazenda  :  quem  pede  para  dar ,  da  o 
faneiie  ,  e  o  fangue  mais  honrado ,  e  mais  feníitivo, 
que  he  o  que  íahe  ás  faces.  Quem  dá  o  que  tem  ,  po- 
de dar  o  que  vai  pouco  j  mas  quem  dá  o  que  peue , 
nao  pode  dar,  fenaô  o  que  cufta  muito  ;  porque  ne- 
nhuma coufa  cufta  tanto  ,  como  o  pedir. 

829  A  palavra  mais  dura  de  pronunciar  ,  e  que 
para  fahir  da  boca  huma  vez  fe  engole,  e  affoga  mui- 
tas  he  Peço  :  Molejium  verhum  ejt ,  onerojum  ,  & 
dimi[Jo  vultu  dicendum  Rogo  ,  diz  Séneca  ,  eacref- 
centa  ,  que  até  aos  deoíes  nao  pedinaÔ  os  homens, 

O  i  1^ 


IH^ 


212 


Vieira  abbreviado 


>am  14. 
Kum.  3  I. 


fe  o  naó  fizeífem  em  fecreto    O  ce^rtr^u^  u 

8,0  o  mi?  Pi-eÇomais  caro ,  e  md  cuftofo.  ' 
firn^^  ^"'°''  "'°'1°  «íe  pedir  he  agradecer  Af 
ficTnT^°,'"ST  '■•^  P^'^  '"8^«'da6  perde  o  benefi. 
men^f^l-'  ''"'"  "^gfa^íecido  fó  pelo  agradeci- 
daviXas e  Den,  H '  h  "^  P"'  "osenilnar  a  pedir 
"«vaj,raças,eueos  da  huma graça  Doroutn    P^loc 

porque  o  mefmo  agradecer  para  com  Deos  heS' 

he°.ríSaTf°eír"'^^^'  °"  ^^^^-  P^^^'^- 

DISCURSO     LXXVIII. 

Tirado  de  hum  fermaS  das  novenas  de  S.  Francifco 

Xavier, 

PEREGRINARAM. 

^^  ^  í^  ^^'  P^]«  "lundo  naõ  he  a  mefma  coufa  pa- 
V-^  ra  todos,  diz  Séneca.  Se  o  homem  for  ía^ 

bio 


Part,  8. 
coJ.  4zp, 


Difcurfo  IXXFÍÍÍ.  215- 

,io  ,  hc  peregrinação ,  fe  for  nefcio,  he  deíterro  :  Sa-  sencc_  de 
mns  peregrinatur.finltm  extilat.  He  peregrinação,  -m.  lor- 
é  for  íabio  ;  porque  terá  muito  que  aprender  do  que 
'ir,  e  experimentar,  e  íerd  para  elie  a  nreíma  pere^- 
^rinacaÔ  eíludo.  Pelo  contrario  ,  fe  for  nelcio ,  nao 
'irará^outro  frudo  das  terras ,  que  andar ,  fenao  eí.ar 
•orada  pátria  ,  eifto  propriamente  he  aeíleiro.  A 
jeo^rafía  do  mundo  melhor  íe  aprende^iiia  no  me^ 

no  mundo,  que  pintada  no  mappa.  AíTim  o  .iseiaa 
DS  dous  mayores ,  e  mais  famofos  Medres  de  numa, 
e outra  Filofoíiaj  Platão,  eAriíloteles. 

DISCURSO     LXXIX. 

Tirado  de  hum  fermaÔ  de^  nojja  Senhora  do  O. 

P  R  E  S  E  N  C,  A. 


83 


Prefenca  parfi  fer  D^efença  ha  de  ter  ai-  Part.  4: 
^  ^guma  coufa  de  ai/fencia:  O  objeálo  daNum.  í^; 
vifta  para  fe  poder  ver  ha  de  fer  preféiite  j  masfeeí- 
tá  peffaxio ,  e  unido  d  mefma  potencia  ,  he  como  íe^ 
eíliveráaufente:  h.rdeeílar  apartado  dos  olhos  pa-; 
ra  fe  poder  ver.  Affim  a  preféhça  para  íer-iTreíença 
na6  'ha  de  pàíTar  a  fér  inti'ma  ,  nem  ha  de  eítar  t^^al-; 
mente  unida  ,  fenao  de  algum  modo  diílante.  ^He  a 
queixa  de  Narcifo  com  verdadeira  razão  em  hilto- 
riafabulofa:   Oíwdcupw ,mecmieji\  tmpemmeMo- 
pia  fecit :  O  que  deíejo,  tenho-  o  em  mim ,  e  porque  o 
tenho  em  mim ,  careço  do  que  tenho.  Pois  que  reme- 
dio?  Votum  in  amante  novnm\  O  remédio  helnim- 
defejo  novo ,  qual  nUnca  defejou  quem  amaíle.h que" 
defeio  he  edeR  Vellémquodamommahejje'.  Délejar 
Tom.  II.  O  3  que 


»nuH 


•,*f^ 


214     Vieira  abbreviado 

q^ue  o  que  amo,  reacfente,  e  fe  aparte  de  mim. 
Parr.  7.         833     A  prefcnça  íem  vífta  he  mayor  pena ,  que  a' 
Num.  Mo-auíencia  ;  porque  o  naõ  ver  eílando  prefente,  ou  nad 
vereftando  aufente,  ainda  que  feja  a  mefma  priva- 
ção, nau  he  a  mefma  dor.  Eílar  aufente,  enaõ  ver 
he  padecer  a  aufencia  na  aufencia  ;  mas  nao  ver  ef- 
tando  prcfente  he  padecer  a  aufencia  na  prefença. 
E  fe  jfto  nas  palavras  he  contradição,  que  violência 
fera  na  vontade } 

DISCURSO     LXXX. 

1'irado  cie  humjermao  de  nojja  Senhora  da  Con- 
ceição, 

P  R  I  M  A  Z  I  A. 

Nui,^;^      ^34  X?  Eni  dizia  íia  muitos annos  hum  dos  mayo- 
uw,  X4I  ^  jj  ^^^  Oradores  de  Hefpanha :  Ninguém  po- 

de pôí-o  pé  ,  fenaó  fohre  pegada  alheya.  Boa  fatil- 
íaeaõ  para  adefculpa,  mas  muito  defconfolada  par,a 
odefejo.  Deíla  mefma  fe  valeo  Terêncio,  aquelíe 
taõ  celebrado  Cómico.,  o  qual  pedia  perdão  ao  thea- 
tro  Romano  de  lhe  reprefentar  o  que  já  tinha  ouvi- 
do ,  e  allegava  em  feu  abono ,  que  o  mefmo  tinhao 
íeito  os  yeihos ,  e  aílim  o  faziaô  os  modernos. 
Nullum  efijam  diBum^quodnon  àiãimjitpriíis. 
Qiiareaquum  e/i  ms  cognojcere  ,  c^  ignofcere, 
Quodveteresfaâíítarunty  (tcfactunt  fwvi. 
E  íe  iílo  fe  ufava  na  cabeça  do  mundo  ha  mais  de  mil 
annos ,  que  fera  hoje  entre  nós,  onde  naó  he  tao  fa- 
di  inventar  novos  argumentos,  como  novos  trajos  .?* 
Nam.  Í4Z.     835    Eu  poréi^j  naó  me  acabo  de  fujeitar  a  efte  di- 

damej 


Tespra,.  íd 

Eun. 


Dif curf o  IXXXJ.    215 

aaiT^e;  porque  ainda  que  os  antigos  beberaÓ  primei- 
ro nas  fontes  ,  nem  por  iíFo  as  eígotarao  :  Mu/tum 
eKerunt  qui  ante  nos fnerunt ,  fed  nonperegerunt 
diz  Séneca:  Muito  ftzeraÕ  os  que  vierao  antes  de  ,. 

nós ,  mas  naÓ  perfizeraÓ.  Entre  o  fazer ,  e  o  perhizer 
ha  Jrandes  intervallos  •  Multtm  atitem  rejiat  ope^ 
ris,  multiwique  rejlabit.  Aíllm  como  ellcs  nccreí- 
centaraó  fobre  o  que  tinhaÓ  dito  os  mars  antigos  , 
ailim  nós  podemos  accrefcentar  ,  e  deícobrir  de  no- 
vo o  que  elles  naÓ  acharaó ,  como  tambcm  fobre 
v.ós  os  que  depois  vierem.  lHo  efcreveo  animoía- 
mente  o  mayor  eípirito  dos  Eíloicos. 

DISCURSO    LXXXI. 

Tirado  dehtmjermaoda  terceira  Dominga  do  Ad- 
vento ,  em  qtie  o  AuBor  moftra  haver  jmzo  de  ca- 
da hum  para  comfigo ,  johre  aquella  pergunta , 
que  os  Embaixadores  fizerao  ao  Bauttjta  : 
Propheta  es  tu  ? 

P  a  o  F  E  T  A  S. 

8^6  rp  EnhaÓ  os  Reys  Profetas  ao  lado  e elles  tç-  ^j^.^^ 

X  raô  feguras  as  fuás  glorias.  Chritto  Pe- 
nhor noíTo  nafceo  entre  dous  animnes ,  morreo  entre 
dousladroens,  etransfiguroufe  entre  dous  Profetas. 
Entre  dous  animaes  efteve  pobre  ,  entre  dous  la- 
dfoens  efteve  crucificado ,  e  entre  dous  Profetas  eí- 
teve  gloriofo.  Ora  já  que  importa  tanto  ao  Reynô 
o  ter  Profetas,  examinemos  o  Propheta  es  tu,  e  veja. 
mos  por  onde  íe  haÔ  d^  conhecer  os  verdadeiras  Fro- 
ibtas:  PrimeirameRte  advirto  ,  -que  os  Profetas  naoN«ra.<,&, 

O4  ^^ 


Num.  59, 


21;  6    Wicírcí  ahhreviado  ^^ 

íehao  de  conhecer ,  nem  avaliar  pelo  numero.  Ain- 
ttía  c}ue.íejaÔ  maisas  que  dizem  liuma  coufa  ,  neir 
pqrjíío  íe  hao  de  ter  por  Profetas.  Os  quatrocentoí 
•n-ofetas  contados  erao  mais,  que  Micheas ,  e  Mi- 
cheaspezadoera  mais  que  os  quatrocentos. 
Num.  100.     «37     SuppoílopDÍs,queos.Pro.feiasfenaôha6de 
eonhecer  peio  numero  ;  por  onde  íe  hao  de  conhe- 
cer ?  Por  três  coufas  :  pelos  olhos-,  pelo  coração  ,-  e 
pelos  íucceiros.  .Conhecemfê  os  verdadeiros  Profe- 
tas pelos  olhos  ,  porque  o  ver  he  o  fundamento  do 
proktizar.  Os  Profetas  na  EfcriturachamaÓíe.^/- 
dentes\  Os  que  vem.  Só  os  que  vem',íliÕ  Profetas.  Áf- 
lím  como  a  mais  nobre  profecia  fobrenaturai  con- 
íiíie  na  vifaÕ  ,  aíFim  a  mais  certa  profecia  natural 
conhfte  na  viíla:  fó  quem  vio,  pode  profetizar  natu- 
raimeíite  com  certeza.  E  a  razão  he  muito  ciara.  A 
profecia  humana  coníiíle  no  verdadeiro  difcurfo  •  b 
diícurfo  verdadeiro  nao  íe  pode  fazer  íem  todas  as 
noticias,   e  todas  as  noticias íó  as  pode  ter  quem 
vio  com  os  olhos.  Nenhuma  coufa  houve  mais  aíTen- 
tada  na  antiguidade  ,  que  fer  inhabitavel  a  Zona  tór- 
rida;  e  asrazoens,  com  que  os  Filofofos  o  prova vao, 
erao  ao  parecer  taô  evidentes ,  que  ninguém  havia, 
•  í  .v.^  que^oinegaíle.  Deícobrirao  finalmente  os  pilotos,  e 
^-^^^    marinheiros  Portuguezes  as  coílas  de  Africa  ,  e  da 
America  ,  e  fouberaõ  mais,,  e  fílolofaraô  melhor  fo- 
\y^Q  \\^^m  fó  dia  de  viíta  ,  que  todos  os  fabios,  eFilq- 
fofosdo  mundo  em  cinco  mil  annos  de  erpecuiaçaò. 
Os  diíeurfos  de  quem  .naõ, vio,  íao  diiairfos,:^s^4Í- 
'òcam^sdequem  vio,  íao  profecias.       ':^*  '^.     -'"♦ 
Nuui.  ]oi.    ^38     Outro  linal  da  profecia  he  o  coração ;  poc- 
que  conforme  cada  hum  tem  o  coríiçaô  ,  a ííim  profe- 
tiza, (Js  autigo^  quando  qUgriaópi-ognQfticat: ofa- 
* '  •  •  í  tUfO, 


X 


■   DifciirfôZXXXl.  217 

tooVracnticavaó  osanimaes,  conrultavaóihe  a,s,..en>- 
tranhas  ,  e  conforme  o  que  viaó  nellas  ,  aílim  pror 
rnoíticavao.  Naô  coníultavaõ  a  cabeça ,  que  he  p  at- 
fento  do  entendimento  ,  íenao  as  entranhas  ,  que  he 
o  lugar  do  amor;  porque  naÔ  prognoílicaya  meinor 
quem  melhor  o  entende  ,  fenao  quem  maisama,^  b 
efte  coílume  era  geral  em  toda  a  Europa  antes  da  vin- 
da de  Chriílo  ,  e  os  Portuguczes  tmhaõ  huma  gran- 
de fin2ularidade  nelle  entre  os  outros  gentios.  Os 
outros  confultavaó  as  entranhas  dos  animaes,  os  i  or- 
tuguezesconfultavaóasentranhas  dos  homens.  AiUni 

o  diz  Strabo  no  livro  3.  Ltifitanis  vetus  mos  erat  ^^suab.ub.j; 
intefimls  hominum  exta  profpicere  ,  atque  nu/e  omtj 
m ,  &  divtnationes  captare ;  Era  coílume  dos  anti- 
sp^Portuguezes  ( diz  Strabo)  coníultar  as  entranhas 
dos  homens ,  que  facr-iftcavaÕ  ,  e  delias  conjedurar , 
e  adivinhar  os  futuros.  AfuperaiçaÕ  era  falia  ,  mas  a 
íUlegoria^  era  muito  verdadeira.  Naó  ha  lume  de  pro- 
fecia (¥*^  is  certo  no  mundo  ,  que  coníultar  as  entra- 
nhas dos  homens..  E  de  que,  homens.?  Detqdos?  í^aô; 
Dosíacriíkados.;  A&eqtJ^anhas.do^  íaciífiçaclos  eraf 
as  que  confultavaõ  os  antigos :  primeiro. fazsiaõ  o  fa- 
ciificio,  entaô  confultavaõ  as  entranhas.  ;Se  qpereis 
profetizar  os  futuros,  coníultai  as,en,tT.at]t^a3,4os.ho.- 
.mens  facriácados:  coníuíteAiíe  asentran^has^^os,  qpe  ,^  ^^^^ 
fe;  facrificaraó ,  e  dos  que  fe  facrificaõ,-  e  o<f^eQUes  ?;. 

diílerem ,  iílb  íe  tenha  por|);Qfecia.  Porém  cpníultjM: 
as  entranhas  de  querir  naó  fe  ífocri  íjcopi^  nem  .íe  facr^- 
fica ,  nem  fe  ha  de facriíicar,  hen.ao^cj^er^rpro(eqia^ 
verdadeiras :  h^^^^^^o^f&^i^fS^^^^ 
.t^ar  o  futura,    c^y-.',-   /,'^  -ro-'*  v.rre  ttyo,,  inií^omol^úí  j 

8^9     O  ultím.ò  fínal  de  conhecer  os  Profetas  fao Num.  loi, 
PS  fucceíTos.  No  DeuteroQomio  prométteo  Deos  a 

feu 


2 1 S     Vieira  ahhreviado 

fèú  pòvb  ,  í^ue  lhe  daria  Profetas,  e  o  final ,  que  Ihg 
deo  pára  os  conhecer ,  foy  fó  eíle :  Hoc  vobisjigjmm: 
Sltiod  Propheta  pr^dixerit ,  é^  non  evenerit ,  boc 
Donmmsnmi  efi  Igcuíhs.  Quando  duvidares  de  al- 
gum fe  he  Profeta,  òuna6,obfervareis  efta  regra  •  Sè 
o  qué  élle  diíler  antes ,  fucceder  depois ,  tende-o  por 
verdadeiro  Pròí^ta;  mas  fe  oquê  elle  diíTer,  naõ  ííjc- 
ceder,  tende  ò  por  Profeta  falfo.  NaÕ  pode  haver  Çv 
nal  nem  mais  fácil,  nem  mais  certo.  Sabeis  aquém 
haveis  de  ter  por 'Profetas  ?  Sabeis  dequaes  haveis 
í^e  cuidar  ,  que  acertarão  com  os  futuros  ?  Aquelíes, 
ae  quem  tiveres  experiência  ,  que  tudo,  ou  quafi  tu- 
?>?i  ^ Tc^  diíferaô  antes  ,  veyo  a  fucceder  depois. 
i!ite  difame  feguio  Faraó  còm  Jofeph  ,  Nabucodo^ 
hofor  cohi  Daniel,  e todos  os  Principes  prudentes 
com  feus  confelheiros.  MasaíFim  como  ha  Profetas 
de  antes,  aííim  ha  Profetas  de  depois.  Ha  muitos 
inui  prezados  de  Profetas ,  que  depois  de  acontece- 
rem os  mãos  fucceílosentaô  profetizao  pelo  arrepen^ 
láimento  ò  que  fora  melhor  ter  profetizado  antes 
|»elo  difcurfo.  Efte  foy  hum  dos  tormentos  da  pai- 
xaó  de  Chrifto.  AtaraÓ  a  Chriílo  hum  pano  pelos 
^íhos.^  davaõlhe  comas  maõs  facrilegas  jia  fagrada 
dabeça ,  e  di^iad  por  eícarneo ,  que  profetiza ífe  quera 
Matth.  %(^'^^  í3eí-a  :  Prophetiza mbis  CJjviJle ,  qttis  eji ,  qtii  te 
«í8.         fevcugiit.  Profeti^at  depois  de  levar  na  cabeça  he 
profecia  de  quem  tem  os  olhos  tapados:  he  efcar- 
fieo  da  paixão  de  Chrifto.  Naó  haveis  de  profetizar 
^quem  Vos  dièa,  fena6  quem  vos  pode  dar ;  porque  he 
ineFhor  i^eparar  os  golpes ,  qufecuralios  :  e  feofuc- 
ceíTo  moftrar ,  que  a  profecia  foy  certa ,  aquém  â  dií^ 
Ter  ,  tende-o  por  Profeta :  Tfopheta  es  tu. 

%©    Já  fiabeis ,  que  havemôS  ^  íazer  ^a  -meí niâ 

pergun- 


m 


Dijcurjo  LX^XI.  219, 

pergunta  na  noíla  terra:  Propheta  es  tu}  Qííííí dí-i^^n^  91. 
eis  de  te  ipfo  ?  Vós ,  que  tantas  coufas  dizeis  de  vos , 
fois  também  Profeta  ?  Propheta ,  &  plufquam  Fro- 
pbeta.  Osvoflos  diícurfos  faò  vaticínios  ,  as  volias 
propofi^oens  fao  revelaçoens ,  os  voíTos  didames  lao 
profecias  ,  os  voílos  futuros  naó  tem  contingência: 
o  que  fuccede  depois ,  he  tudo  o  que  diíTeftes  antes: 
tendes  intelligencias  na  fecretaria  do  Efpirito  San- 
to :  naó  fe  decreta  lá  couía.,  que  fe  na6  regiftc  pri- 
meiro comvofco.  Bafta  iílo  ?  Ainda  tendes  mais.  be 
fe  traraÓ  matérias  de  eftado  ,  íois  hum  Profeta  Da- 
niel :  fe  íe  trataó  matérias  de  guerra ,  fois  hum  Pro- 
feta Ilaias  :  fe  fe  trataô  matérias  de  mar  ,  fois  hum 
Profeta  Jonas :  fe  íe  trataò  matérias  eccleíiaílieas, 
fois  hum  Profeta  Ezechiel :  fe  fazeis  advertências  aos 
Reys,  fois  hum  Profeta  Nathan:  fe  chorais  as  calami- 
dades do  povo  ,  íois  hum  Profeta  Jeremias :  fe  pedis 
foccorros  ao  Geo ,  fois  hum  Profeta  Barueh :  efe  ten- 
des algum  intereíle,  como  tendes  muitos,  fois  hum 
Profeta  Balaô.  Muitas  graças  fejaó  dadas  a  Dej)s  ^ 
que  nos  deo  tantos  Profetas  na  nofla  idade.  Naô  de 
balde  eftaó  prognoilicadas  tantas  felicidades  ao  nof- 
fo  Reyno!  Naó  poderá  elle  deixar  de  fer  muito  glo- 
riofo ,' tendo  dentro  em  fi  tantos,  e  taes  Profetas, 


DIS* 


t?      T^íiV. 


Parf ,   I , 
coJ.  í. 


«ol.  14, 


220     Vieira  áhbrevkdò% 

Kl- 

DISCURSO    LXXXII. 

Uipeíla-Real  contra  os  ejiylos  dos  Prégcidores. 

P  R  E'  G  A  DORES. 

^4í  T?  Se  qufzeííe  Deos,  que  eíle  tao  iJluílre  ,  c 
J^  taò  numèrofo  auditório  fahille  hoje  t-i6 

tíe^enganado  da  pTégaça6,  como  vem  enganado  com 
oi-^regadorí  Ouçamos  o  Euangelho,  eoucamoJo  to- 
^10    Que-íodo  iie  do  cafo ,  que  me  ievou  ,  e  tmuxe  de^ 

^-nriito ,  que  rahii>  o  Frégíidor  Euanoelico  a  femear' 
a  palavfã  divina:  Sémen  efiverhufjfiíei    O  trigo  - 
Que  íemeóuò  Pregador  Èuanaeíico,  diz  Ghnfto?-' 
que  he  a  pnkvrtr  de  Deos.  Os  efpinhosv  as  pedrps.-B^ 
caminho ,  eá  terra  boa y-em  que  o  trigo  cahio  ,  TaÕ  òs' 
díveríoscôrácoens  dos  homens.  Os  efpínhos  ^'oé 
coraçoens  embaraçados  com  cuidados vcdm'Hqiie- 
z^s ,  com  delidas ,  e  neíles  afogaíe  a  palavra  dèí^etts. 
As  .pedras  fao  os  coraçoens  duros,  e  óbílinados',  e 
neíles  fecafe  a  palavra  ãt  Deos ,  e  fe  nafce,  naõ  cria 
raízes.  Os  caminhos  faô  os  coraçoens  inquietos,  e 
perturbados  com  a  pallagem  ,  e  tropel  das  coufas  do 
mu^^ido,  humas,queva6,  outras,que  vem,  outras,que 
arraveílao  ,  e  todas  paífaô ,  e  neíks  he  pizada  a  pala- 
vra de  Deos,  porque  ou  a  deílittendem  ,  ou  a  defpre- 
zao.  Finalmente  a  terra  boa  ího  os  coraçoens  bons, 
ou  os  homens  de  bom  coraçK") ,  e  neíles  prende,  e 
íructjfíca  a  palavra  divina  com  tanta  fecundidade,  e 
abundância  ,  que  fe  colhe  cento  por  hum  :  Et  fru~ 


ecit  centuplum. 


842  Eíle 


.■"■■■^-1  I. 


DiJcurfoLXXXn.  221 

842     Eíte  grande  frudifícar  da  palavra  de  Deos 
he  o  em  que  reparo  hoje  :  e  he  huma  duvida  ,  ou  ad- 
miração ,  que  me  traz  fufpenío ,  e  confufo  depois 
que  lubo  ao  púlpito.  Se  a  palavra  de  Deos  he  taó  eíii- 
caz,  e  taó  poderofa ,  como  vemos  taó  pouco  fructo 
da  palavra  de  Deos  ?  Diz  Chrillo  ,  que  a  palavra  de 
Deos  frutifica  cento  por  hum  :  e  Já  eu  me  contenta- 
ra com  que  fruaiticafle  hum  por  cento.  Se  com  cada 
cem  fermoens  fe  convertera,  e  emendara  hum  ho-- 
mem ,  já  o  mundo  fora  fanio.  Eíle  argumento  de  fé 
fundado  na  authoridade  de  Chrifto  fe  aperta  amda 
mais  na  experiência  comparando  os  tempos  paíTados 
com  osprefentcs..  Lede  as  hiílorias  Ecclefmílicas,  e 
achallasheis  todas  cheyas  de  admiráveis  eífeitos  da 
pregação  da  palavra  de  Deos.    Tantos  peccadores 
convertidos ,  tanta  mudança  de  vida ,  tanta  reforma- 
ção de  coílumes  ,  os  grandes  defprezando  as  rique- ' 
zas ,  e  vaidades  do  mundo  ,  os  Reys  renunciando  os 
cetros,  e  as  coroas,  as  mocidades,  e  as  gentilezas 
metendoíe  pelos  defertos ,  e  pelas  covas :  e  hoje  ?  Na- 
da dífto.  Nunca  na  Igreja  de  Deos  houve  tantas  pré- 
gaçoens,  nem  tantos  Pregadores  como  hoje.  Pois  íe 
tanto  fe  fêmea  a  palavra  de  Deos,  como  he  taó  pou- 
co o  fru6to?  Naõ  ha  hum  homem  ,  que  em  hum  fer- 
maó  entre  em  fi ,  e  fe  refolva  :  naó  ha  hum  moço , 
que  fe  arrependa :  naó  ha  hum  velho  ,  que^íe  deíen- 
gane:  que  he  ifto  .?  Aífim  como  Deos  naó  he  hoje 
menos  omnipotente,  aíTim  a  fua  palavra  naó  he  ho- 
je menos  poderofa  do  que  dantes  era.  Pois  fe  a  pala- 
vra de  Deos  he  taó  poderofa ,  íe  a  palavra  de  Deos 
tem  hoje  tantos  Pregadores ;  porque  naó  vemos  hoje 
nenhum  fruòlio  da  palavra  de  Deos  ?  Eila  taó  gran- 
de, e  taó  importante  duvida  fera  a  matéria  do  fer- 
ina^ 


Ili 


2  2  2     Vieira  ahhreviado 

inaô.  Qiiero  começar  prégandome  a  mim.  A  mim  fe- 
ra, e  também  a  vós  :  a  mim  para  aprender  a  pre- 
gar, a  vos  para  que  aprendais  a  ouvir. 

843     Fazer  pouco  fru^ro  a  palavra  de  Deos  no 
mundo  pode  proceder  de  hum  de  três  princípios 
ou  da  parte  do  Pregador,  ou  da  parte  do  ouvinte,  ou 
da  parte  de  Deos.  Para  huma  alma  fc  converter  por 
meyo  defhum  fermao  ha  de  haver  três  concuríos  • 
ha  de  concorrer  o  Pregador  com  a  doutrina  períua- 
dmdo ,  ha  de  concorrer  o  ouvinte  com  o  entendi- 
mento  percebendo  ,  ha   de  concorrer  Deos  com  a 
graça  allumiando.  Para  hum  homem  fe  ver  a  íi  mef- 
mo  fao  neceíFarias  três  couías ,  oJhos,  efpelho,  e 
Juz.  6e  tem  eípelho  ,  e  he  cego  ,  nao  fe  pode  ver  por 
talta  de  olhos :  íe  tem  efpeiho ,  e  olhos  ,  e  he  de  noi- 
te, nao  fe  pode  ver  por  falta  de  Juz    Logo  ha  miíler 
Juz ,  ha  mifter  efpelho  ,  e  ha  miíler  olhos.  Qiie  cou- 
a  he  a  converfiô  de  huma  alma  ,  fenaô  entrar  hum 
Jiomem  dentro  em  /i ,  e  veríe  a  íi  mefmo  ?  Para  efta 
viílafaõ  neceílaríos  olhos,  he  neceííliria  luz,  e  he 
neceíTario  efpelho.  O  Pregador  concorre  com  o  eí- 
peího  ,  que  he  a  doutrina  :  Deos  concorre  com  a  luz, 
que  he  a  graça  :  o  homem  concorre  com  os  olhos, 
que  he  o  conhecimento.  Ora  íuppoílo  que  a  conver- 
íao  á'^^  almas  por  meyo  da  pregação  depende  á^Çí^^ 
três  concuríos,  de  Deos,  do  Pregador,  e  do  ouvin- 
te; por  qual  delles  havemos  de  entender,  que  falta  .í* 
ror  parte  do  ouvinte,  ou  por  parte  do  Pregador,  ou 
por  parte  de  Deos  }    Primeiramente  por  parte'  de 
Deosnaõ  falta,  nem  pòdefaitar.  Eíla  propoíiçao  he 
de  fe  definida  no  Concilio  Tridentino,  e  no  noílo 
Luangelho  a  temos.   Do  trigo  ,  que  deitou  á  terra  o 
ienieador,  huma  parte  fe  logrou  ,  e  três  fe  perderão. 

E  por- 


L 


DifcurfoLXXXII.  225 

B  porque  le  perderão  elbs  trcs  ?  A  primeira  perdeo- 
fe,  porque  a  afogarão  os  efpinhos  :  a  fegunda  ,  por- 
que a  fejarao  as  pedras:  a  terceira ,  porque  a  piza- 
raoos  homens,  e  a  comerão  as  aves.  Il^tohe  o  que 
dizChriílo;  mas  notai  o  que  nao  diz.  Naôdiz,que 
parte  alguma  daquelie  trigo  fe  perdeíle  por  caufa  do 
Sol,  ou  da  chuva.  Acauía.  porque  orduianamentefe 
perdem  as  íementeiras  ,  he  pela  deíigualdade  ,  e  pe- 
la intemperança  dos  tempos  ,  ou  porque  fa!ta  ,  011 
fobeja  a  chuva  ,  ou  porque  falta,  ou  fobeja  o  Sol. 
Pois  porque  naõ  introduz  Chrifto  na  parábola  do 
Euangelho  algum  trigo,  que  fe  perdeíle  por  caufa 
do  Sol ,  ou  da^chuva  ?  Porque  o  Sol ,  e  a  chuva  fao 
as  influencias  da  parte  do  Ceo,  e  deixar  de  fruòlificar 
a  femente  da  palavra  de  Deos  nunca  he  por  f^alta  do 
Ceo,  fempre  he  por  culpa  noífa.  Deixará  de  frutifi- 
car a  fementeira  ou  pelo  embaraço  dos  efpinhos,  ou 
pela  dureza  das  pedras ,  ou  pelos  defcaminhos  dos 
caminhos;  mas  por  falta  das  influencias  do  Ceo,  iíTa 
nunca  he  ,  nempòde  fer.  Sempre  Deos  eflrá  prompto 
de  fua  parte  com  o  Sol  para  aquentar,  e  com  a  chu- 
va para  regar ,  com  o  Sol  para  allumiar ,  e  com  a  chu- 
va para  amollecer,  fe  os  noíTos  coraçoens  quizerem: 
Qtíí  folem  fíium  oriri  facit  ftiper  bmos  ,  ir  maios ,  Mauh.  ji 
irpliiit  fuperjuflos^  &  injujios.  Se  Deos  dá  o  feu  ^^ 
Sol ,  e  a  íua  chuva  aos  bons  ,  e  aos  mãos  ,  aos  mãos 
que  fe  quizerem  fazer  bons  ,  como  a  negará  ?  Efte 
ponto  he  taó  claro  ,  que  nao  ha  para  que  nos  deter- 
mos em  mais  prova.  Qiúd  debui  f acere  vin£  mea^iiz 
íi^nonfeci^.  diífe  o  mefmoDeos  por  Ifaias.  Sendo 
pois  certo,que  a  palavra  divina  nao  deixa  de  frudliíi- 
car  por  parte  de  Deos  ,  feguefe,  que  ou  he  por  falta 
do  Pregador ,  ou  por  falta  dos  ouvintes.  Por  qual 


lai,  5   44 


224     Vieira  ahhreviado 

fera  ?  Os  Pregadores  deitaô  a  culpa  aos  ouvintes 
mas  naô  he  affim.  Se  fora  por  parte  dos  ouvintes ,  nai 
íizera  a  palavra  de  Deos  muito  grande  frudo;  ma 
nao  fazer  nenhum  frudo,  e  nenhum  eíFeito  naÔ  h( 
por  parte  dos  ouvintes.  Provo.  Os  ouvintes  ou  fa( 
niaos  ,  ou  faô  bons  :  fe  fao  bons,  hz  nelles  gra^ndí 
frudlo  a  palavra  de  Deos :  fe  faó  maõs,  ainda  que  nac 
façj  neiies  frudo,  faz  eíFeito.  No  Eunngelho  o  te- 
mos. O  trigo ,  que  cahio  nos  efpinhos ,  nafceo  ,  maj 
afíogaraóno:  Siviul  exorta  fpin£  fuffocavertmt  il- 
lud.  O  trigo,  que  cahio  nas  pedras,  nafceo  também, 
masfecoufe:  Et  naUim  ariút.  O  trigo,  que  cahio 
na  terra  boa,  naíceo,  e  frudifícou  com  grande  mul- 
tiplicação: Et  natumfecitfrucítimcentíipium.  De 
maneira  que  o  trigo,  que  cahio  na  boa  terra,  naíceo, 
e  frudifícou  :  o  trigo,  que  cahio  na  má  terra,  naõ  fru^ 
ébfícou ,  mas  nafceo  ;  porque  a  palavra  de  Deos  he 
tao  fecunda,  que  nos  bons  faz  muito  frudo,  ehetaô 
efficaz,  que  nos  mãos  ainda  que  naó  faça  frudo,  faz 
efi-eito:  lançada  nos  efpinhos  naõ  frudificou ,  mas 
nafceo  até  nos  efpinhos  :  lançada  nas  pedras  naó  fru- 
diíicou  ,  mas  nafceo  até  nas  pedras.  Ospeyores  ou- 
vintes ,  que  ha  na  Igreja  de  Deos,  íaõ  as  pedras,  e  os 
efpinhos.  E  porque  .í^  Os  efpinhos  por  agudos,  as  pe- 
dras por  duras.  Ouvintes  de  entendimentos  agudos, 
e  ouvintes  de  vontades  endurecidas  faõ  os  peyores 
que  ha.  Os  ouvintes  de  entendimentos  agudos  faó 
mãos  ouvintes,  porque  vem  fó  a  ouvir  fubtilezas,  a 
efperar  galantarias  ,  a  avaliar  penfamentos ,  e  ás  ve- 
zes também  a  picar  a  quem  os  naõ  pica  :  Alitid ceei- 
dit  inter  fpinas :  o  trigo  naõ  picou  os  efpinhos ,  aii- 
jtes  os  erpinhos  o  picarão  a  elle :  o  mefmo  fuccede  cá. 
Cuidais,  que  o  fermaõ  vos  picou  a  vòs^  e  naõ  he  af- 

íim, 


my» 


DifcurfoLXXXII.  225 

im  ,  vós  íois  o  que  picais  o  fermao.  Por  ifto  fao  máos 
Duvintes  os  de  entendimentos  agudos,mas  os  de  von- 
tades endurecidas  ainda  Ía6  peyores  ;  porque  hum 
intendimento agudo  pódeíe  ferir  pelos  melnios  nos, 
s  vencerfe  huma  agudeza  com  outra  ir.ayor ;  mas 
contra  vontades  endurecidas  nenhuma  coufa  apro- 
^reita  a  agudeza  ,  antes  damna  mais  ;  porque  quanta 
as  íetaslaó  mais  agudas,  tanto  mais  fs.cihiiente  íe 
defpontaô  na  pedra.  Oh  Deos  nos  iivre  de  vontades 
endurecidas,  que  ainda  faô  peyores  ,  que  as  pedras. 
A  vara  de  Movfés  abrandou  as  pedras,  e  nao  pode 
abrandar   huma  vontade  endurecida   :    Percuíiens 
virga  bis  filicem ,  &  egreffa  funt  aquái  iargifjmi£.  ^^^,^^ 
Inuuratum  ejl  cor  Pharaonis.  E  com  os  ouvintes  de  33. 
entendimentos  agudos,  e  os  ouvintes  de  vontades '^^"'"- ^°- 
endurecidas  ferem  os  mais  rebeldes,  he  tanta  a  for- 
ça da  divina  palavra  ,  que  a  pezar  da  agudeza  nafce 
nos  elpinhos,  e  a  pezar  da  dureza  nafce  nas  pedras. 
Poderamos  arguir  ao  lavrador   do  Euangeiho  de 
nao  cortar  os  efpinhos  ,  e  de  naô  arrancar  as  pedras 
antes  de  femear ;  mas  de  induftria  deixou  no  cam- 
po as  pedras ,  e  os  efpinhos ,  para  que  fe  yiíTe  a  força 
do  que  femeava.  He  tanta  a  forçada  divina  palavra, 
que  fem  cortar  ,  nem  defpontar  efpinhos  ,  nafce  en- 
tre efpinhos.  He  tanta  a  força  da  divina  palavra,  que 
fem  arrancar ,  nem  abrandar  pedras,  nafce  nas  pedras. 
Coraçoens  embaraçados  como  efpinhos  ,  coraçoens 
fecos,    e   duros  como  pedras,  ouvi  a  palavra  de 
Deos,  e  tende  confiança   :  tomai  exemplo  neílas 
melmas  pedras  ,  e  neíTes  efpinhos.  Eíies  efpinhos, 
e  eífas  pedras  agora  refiftem  ao  femeador  do  Ceo  , 
mas  virá  tempo,  em  que  eíTas  mefmas  pedras  o  accla- 
mem  ,  e  eíTes  meímos  efpinhos  o  coroem.  Quando 
Tom.  II.  P  o  fe- 


il! 


p 


""fp 


226     l^ieira  abbreviado 

Matth.  17  O  femeador  do  Ceo  deixou  o  campo  fahindo  defte 

«L"  saíTaf  ^^^'"^^^^ '  ^^  P^^^^"^^  ^?  quebrarão  para  íhe  fazerem  ac- 
íunc  ib'z9.c!amaçoens,  e  osefpinhos  fe  tecerão  pára  Ihefaze- 
Coroa.mdcrem  coroa.  E  fe  a  palavra  de  Deos  até  dos  efpinhos, 
íuèmníTú-  ^  ^^^  pedras  triunfa  :  fe  a  palavra  de  Deos  até  nas  pe- 
pcr  capnc  dras ,  até  nos  elpinhos  nafce  ,  naó  triunfar  dos  alve- 
«i"s-  drios  hoje  a  palavra  de  Deos ,  nem  nafcer  nos  cora- 
eoens  naõ  he  por  culpa,  nem  por  indifpofiçaõ  dos 
ouvintes. 

844  Suppoftas  eftas  duas  demonftraçoens  ,  fup- 
poílo  que  o  frudo ,  e  eííeito  da  palav  ra  de  Deos  naô 
íica  nem  por  parte  de  Deos,  nem  por  parte  dos  ou- 
vintes ,  feguefe  por  coníequencia  clara ,  que  fica  por 
parte  do  Pregador.  E  aífim  he.  Sabeis, Chriílaôs,por- 
que  naô  faz  fruâío  a  palavra  de  Deo^  ?  Por  culpa  dos 
Pregadores.  Sabeis,  Pregadores,  porque  naó  faz  fru- 
do  a  palavra  de  Deos  ?  Por  culpa  noífa. 

845'  Mas  como  em  hum  Pregador  ha  tantas  qua- 
lidades, e  em  huma  prégaçaô  tantas  leys  ,  e  os  Pre- 
gadores podem  fer  culpados  em  todas ,  em  qual  con- 
íiílirá  efta  culpa  .?  No  Pregador  podemfe  confiderar 
cinco  circunílancias  :  a  peíToa  ,  a  ciência ,  a  matéria, 
o  eftylo,  a  voz.  A  peíTba,  que  he,  a  ciência,  que  tem, 
a  matéria,  que  trata ,  o  eftylo,  que  fegue,  a  voz,  com 
que  falia.  Todas  eftas  circunftancias  temos  no  Euan- 
gelho.  Vamolas  examinando  huma  por  huma ,  e  buf- 
cando  efta  caufa. 

846  Será  por  ventura  o  nao  fazer  frudo  hoje  a 
palavra  de  Deos  pela  circunftancia  da  peíToa  }  Se- 
rá , ^porque  antigamente  os  Pregadores  eraó  fantos  , 
eraó  varoens  Apoftolicos  ,  e  exemplares,  e  hoje  os 
Pregadores  íaô  eu  ,  e  outros  como  eu.  Boa  razaó  he 
«fta.  A  diíiini^aõ  do  Pregador  he  a  vida,  e  o  exem- 
plo. 


* 


7 


Difairfo  LXXXIL  22 

pio.  PoriíTo  Chrifto  no  Euangeího  naÔ  o  compa- 
rou ao  femeador ,  fenaò  ao  que  íèmea.  Reparaj.  Na6 
diz  Chrifto  :  Sahio  a  femear  o  feineador,  fenaõ  lahio 
a  femear,  o  que  fêmea;  Ecce  exiit,  qtit  feminat,  femi- 
nare.  Entre  o  femeador,  e  oque  ferr^er,  ha  muita  dif- 
ferença:  huma  couía  hc  o  foldado,  e  outra  coufa=0 
que  peleja  :  huma  coufa  he  o  Governador ,  e  outra  o 
que  governa.  Di  mefma  maneira  huma  coufa  he  o 
femeador,  e  outra  o  que  íemea:  huma  coufa  he  o  Pre- 
gador ,  e  outra  o  que  prega.  O  femeador  ,  e  o  Prega- 
dor he  nome,  oque  (emea  ,  e  o  que  prega  he  acção, 
e  as  acçoens  faõ  as  que  dao  o  fer  ao  Pregador.  Ter 
nom.e  de  Pregador,  ou  íer  Pregador  de  nom.e  nao 
importa  nada:  as  acçoens,  ávida,  o  exemplo ,  as 
obras  faó  as  que  convertem  o  mundo.  O  melhor 
conceito,  que  o  Pregador  leva  ao  púlpito,  qual  cui- 
dais que  he?  He  oconceito,  que  de  íua  vida  tem 
os  ouvintes.  Antigamente  convertiaíe  o  mundo ,  ho- 
je porque  fe  naó  converte  ninguém  ?  Porque  hoje  ■- 
prcgaófe  palavras  ,  e  penfamentos:  antigamente  pré- 
gavaofe  palavras,  cobras.  Palavras  fem  obras  faò 
tiro  fem  bula  ,  atroaõ ,  m.as  naõ  ferem.  A  funda  de 
David  derrubou  ao  Gigante ;  mas  naÔ  o  derrubou 
com  o  eftalo,  fenao  com  a  pedra:  Infixtis  eft  lápis  i.Reg.i<í. 
in fronte  ejí/s.  As  vozes  da  arpa  de  David  lançavao4p. 
fora  os  demónios  do  corpo  de  Sauí  ;^  mas  nao  eraô 
vozes  pronunciadas  com  a  boca  ,  eraÕ  vozes  forma- 
das com  a  maõ :  Davui  tolhhat  citharam ,  èrperm--  ^  ^^^  ^^^ 
tiebatmanu  lua.  Por  iílo  Chrifto  comparou  oPré-zj. 
gador  ao  femeador.  O  pregar  ,  que  he  í^llar  ,  fazfe 
com  a  boca  :  o  pregar ,  que  he  íem.ear,  fazfe  com  a 
maõ.  Para  fallar  ao  vento  b.^ft:a6  palavras,  para  fal-  . 
lar  ao  coracaõ  faõ  neceíTarias  obras.  Diz  o  Euange- 

P  2  iho, 


228     Vieira  abbreviado 

.  Jho,que  a  palavra  de  Deos  fru6liíicou  cento  por  hum. 
Que  quer  iílo  dizer  ?  Quer  dizer,  que  de  huma  pa- 
lavra nafcerao  cem  palavras?  Naó.  Querdizer,  que 
de  poucas  palavras  nafcerao  muitas  obras.  Pois  pa- 
lavras ,  que  frudlificaó  obras,  vede  ,  fe  podem  fer  fó 
palavras  ?  Quiz  Deos  converter  o  mundo ,  e  que  fez? 
Mandou  ao  mundo  feu  Filho  feito  homem.  Notai.  O 
Filho  de  Deos,  em  quanto  Deos,he  palavra  de  Deos, 
nao  he  obra  de  Deos :  Genitum^  nonfacium.  O  Fi- 
lho de  Deos,  em  quanto  Deos ,  e  homem,  he  palavra 
joan.j.  14.  de  Deos,  e  obra  ds  Deos  juntamente :  Verbum  caro 
faâíum  ejl.  De  maneira  ,  que  até  de  fua  palavra  á^^- 
acompanhada  de  obras  naó  fiou  Deos  a  convsrfao 
dos  homens.  Na  união  da  palavra  de  Deos  com  a  ma- 
yor  obra  de  Deos  confíílio  a  efficacia  da  falvaça5  do 
mundo.  Verbo  divino  he  a  palavra  divina;  mas  im- 
porta pouco ,  que  as  noíias  palavras  íejao  divinas ,  fe 
forem  defacompanhadas  de  obras.  A  razaô  diílo  he; 
porque  as  palavras  ouvemfe  ,  as  obras  vemfe :  as  pa- 
lavras entraô  pelos  ouvidos  ,  as  obras  entraó  pelos 
olhos,  e  a  noíTa  alma  rendefe  muito  mais  pelos 
olhos ,  que  pelos  ouvidos.  No  Ceo  ninguém  ha,  que 
naÕ  ame  a  Deos ,  nem  poíFa  deixar  de  o  amar.  Na 
terra  ha  tao  poucos ,  que  o  amem  ,  todos  o  ofFendem. 
^  Deos  naô  he  o  mefmo ,  e  tao  digno  de  fer  amado  nq 
Ceo,  como  na  terra?  Pois  como  no  Ceo  obriga,  e  ne- 
ceífita  a  todos  a  o  amarem  ,  e  na  terra  naó  ?  A  razaó 
he;  porque  Deos  no  Ceo  he  Deos  vifto,  Deos  na 
terra  he  Deos  ouvido.  No  Çeo  entra  o  conhecimen- 
Joan.  I.  3.  to  de  Deos  á  alma  pelos  olhos:  Videbinitts  euniji- 
^'  cuti  e/l :  na  terra  entralhe  o  conhecimento  de  Deos 

Rom  10    P^'^^  ouvidos :  Fides  ex  auditu ,  e  o  que  entra  pelos 
36.         ouvidos  crêíe,   o  que  entra  pelos  oihos  neceflíta. 

Yiraõ 


éH 


DifcurfoLXXXII.  229 

ta.  Viraò  os  ouvintes  em  nòs  o  que  nos  ouvem  a 
nós,  e  o  abalo  ,  e  os  efteitos  do  íermaô  feriao  mui- 
to outros. 

847     Vai  hum  Pregador  pregando  a  paixão  ,  che- 
ga ao  Pretório  de  Piiatos ,  conta  como  a  Chrifto  o  fi- 
zeraóRey  de  zombaria,  diz  ^  que  tomarão  huma  pur- 
pura ,  elhapozeraô  aos  hombros  :  ouve  aquilío  .0 
auditório  muito  attento.  Diz  y  que  tecerão  huma  co- 
roa de  efpinhos  ,  e  que  lha  pregarão  na  cabeça  ,:  ou- 
vem todos  com  a  mefma  attençao.  Diz  mais,  que 
lhe  ataraô  as  maôs  ,  e  lhe  meterão  nellas  huma  cana 
por  cetro:  continua  o  mefmo  filencio,  e  a  meíma 
íuípenfaó  nos  ouvintes.  Correfe  nefie  psílb  huma 
cortina,  apparece  a  imagem  do  Ecceòomo:  eis  todos 
proftrados  por  terra,  eis  todos  a  bater  nos  peitos  ,  eis 
as  lagrimas ,  eis  os  gritos  ,  eis  os  ahiridos ,  eis  as  bo- 
fetadas ,  que  he  iílo  ?  Que  appareceo  de  novo  neíla 
Igreja }  Tudo,  o  que  defcubrio  aquelia  cortina  ,  tinha 
ja  dito  o  Pregador.  Já  tinha  dito  daquella  purpura  , 
jd  tinha  dito  daquella  coroa  ,  e  daqueiies  efpinhos  , 
já  tinha  dito  daquelle  cetro  ,  e  daquella  cana.  Pois  fe 
ifto  entaó  nad  fez  abalo  nenhum  ,  como  faz  agora 
tanto  ?  Porque  entaô  era  Ecce  homo  ouvido  ,  e  ago- 
ra hc  Ecce  bomo  \iíko.  A  relação  do  Pregador  entra- 
va pelos  ouvidos  ,  a  reprefentaçao  daquella  figura 
entra  pelos  olhos.  Sabem, Padres  Pregadores. porque 
fizem  pouco  abalo  os  noílbs  fermoens  ?  Porque  naó 
pregamos  aos  olhos ,  pregamos  fó  aos  ouvidos.  Por- 
que convertia  o  Bautiíia  tantos  peccadores  ?  Porque 
aíTim  como  as  fuás  palavras  prégavaõ  aos  ouvidos ,  o 
feu  exemplo  pregava  aosoihcs.^  As  palavras  do  Bnu-  ^ 

tifta  prégavaò  penitencia  :  Agite pceniientímn  :  Ho-  M^-ch  3.1, 
mens  fazei  penitencia  ,  e  o  exemplo  clamava  :  Ecce 


Tom.  11. 


P 


homOt 


230 


Vieira  ahhr 


homo:  Eis;aqui  eftá  o  homem  ,  que  he  o  retrato  da  pe- 
nitencia ,  e  da  afpereza.  As  palavras  do  Bautiíla  pié- 
gavaô  jejum,  e  reprehendiao  os  regalos  ,  edeaiafias 
da  gula  ,  e  o  exemplo  clamava  :  Ecce  homo ,  Eis  aoui 
eílá  o  homem  ,  que  fe  fuílenta  de  gafanhotos,  e  mel 
íyh'eílre.  As  palavras  do  Bautiíla  prégavaocompofi- 
çaó ,  e  modeítia  ,  e  condemnavaõ  a  ícberba  ,  e  a  vai- 
dade das  galas,  e  o  exemplo  clamava  :  Ecce  homo  \ 
Eis  aqui  eítá  o  homem  vefíido  de  peiks  de  camelo 
com  as  cerdas,  e  cilicio  á  raiz  dac^rne.  As  palavras 
do  Bautiíb  prégavaó  defpegos  ,  e  retiros  do  mundo, 
e fugir  das  occafioens  ,  e  dos  homens,  e  o  exemplo 
cbmava:  Ecce  ^í?wí?:Eís  aqui  o  homem, que  deixou  as 
Cortes,e  as  Cidades,e  vive  em  hum  deíerto,  e  em  hu- 
ma  cova.  Se  os  ouvintes  ouvem  huma  coufa  ,  e  vem 
Gcnef.  3o.^^'^^3)  ^omo  fe  hao  de  converter?  Jacob  punha  as  va- 
39  Fafruni-ras  manchadas  diante  das  ovelhas,  quando  conce- 
oveslmuel^^'"^^'  e  daqui  procedia  ,  que  os  cordeiros  nafciaõ 
rentur  vir-  manchados.  Se  quando  os  ouvintes  percebem  osnof- 

feTem^rir '"^^  ^^"^^^^^^  '  ^^"^  díaotc  dos  olhos  as  noífas  man- 
aS.  ""''^^^^j  como  haõ  de  conceber  virtudes  ?  Se  a  minha 
vida  he  apologia  contra  a  minha  doutrina  :  íe  as  mi- 
nhas palavras  vaó  já  refutadas  nas  minhas  obras:  íe 
huma  coufa  he  o  femeador ,  e  outra  o  que  fêmea ,  co- 
mo fe  ha  de  f^izer  frudo  ? 

048  Muito  boa  j  e  muito  forte  razão  era  eíla  de 
naó  fazer  frudlo  a  palavra  de  Deos;  mas  tem  contra 
Si  o  exemplo,  e  experiência  de  Jonas.  Jonas  fugiti- 
vo de  Deos,  defobediente,  contumaz,  e  ainda  de- 
pois de  engulido,  evomitiKlo  iracundo,  impacien- 
te ,  pouco  caritativo ,  pouco  miíbricordiofo  ,  e  mais 
zeloíb,  e  amigo  da  própria  eílimaçao,  queda  honra 
dç  Deos  ;  e  íalvaçaõ  das  almas ,  defejofo  de  ver  íub- 

veft> 


Jonar  i, 
3'  4. 


:r 


Bifcurfo  LXX 

vertida  a  Niiiive,  e de  a  ver  íubverter  com  feusolhos, 
havendo  nclla  tantos  mil  innoceiítes  :  com  tudo  eiíe 
mefmo  iiomem  com  hum  fermaÕ  converteo  o  mayor 
Rev ,  a  mavor  Corte .  e  o  mayór  Reyno  do  mundo , 
e  nlô  de  liornens  fieis ,  fenaô  de  gentios  idolatras. 
Outra  he  logo  a  cauD  ,  que  bufcamos.  (^ual  ler.. . 

849     Serd  por  venturl  o  eftyio  ,  que  !u>je  te  ufa 
nos  púlpitos  ?  Hara  eftyio  taóempeçado  ,  hum  efi^ 
loà  difficuitolb ,  hum  eftyio  taó  aftedado  ,  hum  el- 
tvio  tiõ  encontrado  a  toda  a  arte,  e  a  toda  a  natuic- 
;°  BoVr"  z""  he  também  efta.  O  eftyio  ha  de  fer 
muito  fácil,  e  muito  natural  PorriloChrn'io  com- 
parou o  pregar  ao  íeniear  :  Exat ,  qtajcmnat  ,,c- 
mnare  Comparou  Chrifto  oprégr.r  ao  enlear;  por- 
í  é  o  femear  L  huma  arte ,  que  tem  ma.s  de  nature- 
za     que  de  arte.  Nas  outras  artes  tudo  he  arte  ,  na 
MJfica  tudo  íe  faz  por  compiifcna  Architeclura  tu- 
do fe  faz  por  regra ,  na  Arithmetica  tudo  fe  taz  por 
conta  ,  na  Geometria  tudo  fe  faz  por  medida.  O  U- 
mearnaõ  heaffim.  Hehuma  artefera  arte,  caya  on- 
de cahir    Vede  como  femeava  o  nolio  lavraaor  uo 
Euantrelho    Cahia  o  trigo  nos  efpmhos  ,  e  nalcia  : 
jnJ  cecidit  inter  jpinas  ,  ir  fimul  exorta  fpna 
Cahia  o  trigo  nas  pedrss ,  c  nafcia :  Abua  uctdit  ,u- 
perpetram,  6^  natum.  Cahia  o  tr.go  na  terra  boa  , 
e  naícia  :  Aliudccddh  in  terram  honam ,  &  natum. 
Hiaotrigocahindo.ehianafcendo  ,^^„^.    „„ 

8,-0  Affim  ha  de  fer  o  pregar.  Hao  de  cahjr  as 
couías,  e  haÕdenafcer:  taõ  naturaes,  que  vaoca- 
hindo :  taô  próprias ,  que  venhao  nafcenao.  Qiie  dií- 
fcrente  he  o  eftvlo  violento,  e  tyrannico ,  que  hoje 
fe  u(a  >  Ver  vir  bs  triftes  palfos  da  Efcntura  como 
quem  vem  ao  martyrio  :  huns  vem  acarretados,  ou- 


Vieira  ahhreviado 


232 

Íemlnr^.T^'''"''  """■''^  vem'eftiradôs^  outro, 
naõ  vem  H/r'.U ''■^'  vem  defpedaçados ,  k  audo 
nao  vem.  Ha  tal  tyrannia?  EntaÕ  nomeyo  difto-  Que 

vantar,  efta  nocahir :  Cectdit.  Notai  huma  allesTorl^ 
propr.a  da  noíTa  lingua.  O  trigo  do  eSo     aTn d 
que  cah,o  quatro  vezes ,  íódetresnafceo  p/r  ofer 
n^ao  v,r  naícendo   ha  de  ter  três  modos  decah  r  Ha 
de  cahir  com  queda,  ha  de  cahir  com  cadencia    ha 

dencia  para  as  palavras ,  o  cafo  para  a  difpoíicaõ    A 

^idas,  eemfeu  lugar,  haõ  de  ter  queda:  a  cadencia 
)t  P"""  '^  r ''""' '  P°'1"^  "^õ  hiõ  de  ler  efcabr^ 

def!ff.4  T  ^'° '  P°"5"^  ''="  ''^  ^«^  t«3  nntural ,  e  taó 

antigo  Pregador ,  que  houve  no  mundo,  foy  o  Ceo  • 

oCeo  he  Pregador,  deve  de  ter  fermoens,  e  deve  de 
er  palavras.  Sim  tem ,  diz  o  meímo  David  :  tem  pa- 
ZTr  Vf^  '^^/moens,  e  mais  muito  bem  ouvidos. 
^^^J»nt  loqueU ,  mquefermones,  quorum mn  au- 
dmntur  vocês  eorum.  E  quaes.faô  eftes  lermoens,  e 
eft;s  palavras  do  Ceo  .'  As  palavras  íaõ  as  eftrellas 
e  o  c  r '?  if  '  ,^,o"^pofiça6  ,  a  ordem ,  a  armonia ' 
1  r.5  '^^"^^•/,ede  como  diz  o  eftylo  de  prégaj 
do  Ceo  cora  o  eftyio,  que  Chriíto  eníinou  na  terraj 

1  Hum" 


pf.  18 


DiJciirfoLXX^II-  255 

Hum  ,  e  outro  he  femear  :  a  terra  femeada  de  trigo  , 
o  Ceo  femeado  de  eftrellas.  O  pregar  ha  de  ler  como 
quem  fêmea  ,  e  nao  como  quem  ladrilha ,  ou  azuleja: 
ordenado,  mas  como  as  eftrellas:  Síe/I^  manemesuk.  ji 
/>/  ordíiiefuo.  Todas  as  eftrellas  eftaÒ  por  fua  ordem^  ^°- 
mas  he  ordem  ,  que  faz  influencia  :  nao  he  ordem, 
que  faca  lavor.  NaÓ  fez  Deos  o  Ceo  em  xadrez  de 
eftrellas ,  como  os  Pregadores  fazem  o  fermao  em  xa- 
drez de  palavras.  Sede  huma  parte  eftá  brcnco,  da 
outra  ha  de  eftar  negro  :  fe  de  huma  parte  efta  dia  , 
da  outra  ha  de  eftar  noite  :  fe  de  huma  parte  dizem 
luz ,  da  outra  haÓ  de  dizer  fombra  :  fe  de  huma  par- 
te dizem  deícco,  da  outra  haó  de  dizer  fubio.  Baí- 
ta  que  naõ  havemos  de  ver  em  hum  íermaó  duas  pala- 
vras em  paz  ?  Todas  haõ  de  eftar  fempre  em  frontei- 
ra com  o  feu  contrario  ?  Aprendamos  do  Ceo  o  ef- 
ty lo  da  difpofiçaó ,  e  também  o  das  palavras.  Como 
haó  de  feras  palavras?  Como  as  eftrellas.  As  eftrel- 
las í  ao  muito  diftindas,  e  muito  claras.  Aífimhade 
fer  o  eftylo  da  pregação  ,  muito  diftindo,  e  muito 
claro.  Enem  por  iílo  temais,  que  pareça  o  eftylo  bai- 
xo: as  eftrellas  faõ  muito  diftindas,  e  muito  claras, 
e  altiíTimas.  O  eftvlo  pode  fer  muito  claro  ,e  muito 
alto :  tao  claro ,  que  o  entendaô  os^  que  naõ  fabem , 
e  tao  alto ,  que  tenhaó  muito  ,  que  entender  nelie  os 
que  fabem.  O  ruftico  acha  documentos  nas  eftrellas 
para  a  fua  lavoura ,  e  o  mareante  para  a  fua  navega- 
ção, e  o  Mathematico  para  as  fuás  obfervaçoens,  e 
paraos  feus  juizos.  De  maneira,  que  o  ruftico,  eo 
mareante,  que  nao  fabem  ler,  nem  efcrever,  enten- 
dem as  eftrellas  ,  e  o  Mathematico,  que  tem  lido 
quantos  efcreveraõ,  nao  alcança  a  entender  quan- 
to nellas  ha.  Tal  pôde  fer  o  fermaô :  eftrellas ,  que 

todos 


éÊÊ 


234, '  Vieira  ahhreviado 

todos  as  vem ,  e  muito  poucos  as  medem.  Sim  Padre. 
Porém  eíie  eílylo  de  prégnr   nao  he  pregar  culto! 
Mas  foííe!  EftedelVenturado  eílvlo,  que  hoieíeuía, 
os  que  o  querem  honrar,  chama^liie  culto,  os  que  o 
condemnaó,  chamaoihe  efcuro ;  mas  ainda  lhe  fazem 
muita  honra.   O  eílylo  culto  naõ  he  efcuro  ,  he  ne- 
gro, e  negro  bucal  ,  e  muito  cerrado.  Hepoííivel, 
que  íomos  Portuguezes,  e  havemos  de  ouvir  hum 
Pregador  em  Portuguez,  e  naõ  havemos  deentender 
o  que  dfz }  Affim  como  ha  Lexicon  para  o  Grego  ,  e 
Calepino  para  o  Latim  ,  aílim  he  neccílarÍQ  haver 
hum  vocabulário  do  púlpito.  Eu  ao  menos  o  tomara 
para  os  nomes  próprios;  porque  es  cultos  tem  def- 
bautizados  os  Santos,  ecada  Áuthor,  queaííegao,  he 
hum^enigma.  Affim  o  diífe  o  Cetro  penitente  :  affim 
o  dííle  o  Euangelifta  Apelíes:  aííim  o  diíle  a  Águia 
de  Africa  ,  o  Favo  de  Claraval ,  a  Purpura  de  Belém, 
a  Boca  de  ouro.  Ha  tal  modo  de  allegar !  O  Cetro  pe- 
nitente dizem  que  he  David,  como  fe  todos  os  ce- 
tros naõ  foraó  penitencia.  OEuangeliíla  Apelies , 
que  he  S.  Lucas,  o  Favo  de  Claraval  S.  Bernardo, 
a  Águia  de  Africa  Santo  Agoítinho,  a  Purpurada 
Belém  S.  Jeronymo,  a  Boca  de  ouro  S.  Chryfoílo- 
ino,  Equem  quitaria  ao  outro  cuidar,  que  a  Purpura 
de  Belém  heHerodes,  que  a  Águia  de  Africa  he  Ci- 
pião j  e  que  a  Boca  de  ouro  he  Midas  ?  Se  houveííe 
hum  advogfído,  queaiiegaííe  aílim  a  Bartholo ,  e 
Baldo ,  havíeis  de  fiar  delie  o  volFo  pleito  ?  Se  hou- 
veíFe  hum  homem,  que  aííím  fallaíle  na  converíaçaõ, 
nan.o  havíeis  de  ter  por  nefcio  ?  Pois  o  que  na  con- 
verfaçao  feria  necedade ,  como  ha  de  íérdifcriçaó 
no  púlpito.?* 

852     Boa  me  parecia  também  eíla  razaó  \  mas  co- 
mo 


DifcurfoLXXXII.  235 

mo  os  cGitos  pdo  polido,  e  dludado  fe  defendem 
com  o  grande  N.izuinzcno,  com  Ambrofio  ,  com 
Chrvío!ogo,comLenÓ,  epeloeícuio,  e  duro  com 
Clemente  Alexandrino  ,  com  Tertulliano,  com  ba- 
filio  de  Seleucia  ,  com  Zeno  Veroneníe  ,  e  outros  , 
na6  podemos  negar  a  reverencia  a  tan^anhos  Auí  10- 
res,  poílo  que  defejaramos  nos  que  fe  prezao  ue  be- 
berdeíles  nos  ,  a  íua  profundidade.  Qual  lera  logo 
a  cauía  de  noílaqueixa? 

8^^     Será  pela  matéria,  ou  matérias,  q^ie  tomao 
os  Preí^íidores  ?  Uíafe  hoje  o  modo  ,  que  chamao  ue 
anoruibr  o  Euangelho  ,  em  que  íomaõ  muitas  maté- 
rias ,   levanta6  muitos  aílumptos  ,  e  quem  levanta- 
muita  caça  ,  e  nao  fegue  nenhuma  ,  naô  he  muito  , 
que  {e  recolha  com  as  mãos  vazias.  Boa  razão  he  tam- 
bém eíta    O  fermaô  ha  de  ter  hum  íó  aíTumpto ,  e  hu- 
ma  íó  matéria.  Por  iífo  Chrlfto  diííe  ,  que  o  lavra- 
dor do  Euangelho  nao  femeara  muitos  géneros  de 
fementes  ,  íenaõ  huma  íó  :  Exiit ,  q!JÍ  fcmmat  ,  Je- 
mbiarefemem  Semeou  huma  femente  íó  ,  e  nao  mui- 
tas ;  porque  o  fermaó  ha  de  ter  huma  íó  matéria  ,  e 
naõ  muitas  matérias.  Se  o  lavrador  íemeara  primei- 
ro trigo  ,  e  fobre  o  trigo  femeara  cente^/o ,  e  fobre  o 
centeyo  femeara  milho  groílo,  e  miúdo,  e  íobre  o 
milho  femeara  cevada,  que  havia  de  niícer  ?  Huma 
mata  brava  ,  huma  confufaô  verde.  Eis  aqui  o  que 
acontece  aos  fermoens  defte  género.  Como  íemeao 
tanta  variedade  ,   naõ  podem  colher  couía  certa. 
Quem  fêmea  mifturas,  mal  pode  colher  trigo.  Se  hu- 
ma nao  fizeíTe  hum  bordo  para  o  Norte,  outro  para 
o  Sul  ,  outro  para  Leíle ,  outro  para  Oeíle  ,  como 
poderia  fazer  viagem  ?  Por  iíTo  nos  púlpitos  fe  traba- 
lha tanto ,  e  fe  navega  taó  pouco.  Hum  aíTumpto 

vat 


2^6     Vieira  ahhreviado 

vai  para  hum  vento  ,  outro  aíTumpto  vai  para  outro 
vento,  que  fe  ha  de  colher,  fcnaô  vento  ?  OBiutilla 
convertm  muitos  em  Judea^  mas  quantas  materi.s 
Matth.3.3. tomava?  Huma  fó  matéria:  Parate  uiam  Domini' 
A  preparação  para  o  Reyno  de  Chrifto.  Jo„as  con^ 

Jon  .  .  íf'^''''.?'^^"^^^^^^^v  mas  quantos  aílumptos  tomou? 
J°"-  5-  4.  Hum  fo  aíTumpto :  Adhuc  quadraginta  dies  &  Ni- 
mvefubverteti.r:  A  fubverfaó  da  Cidade.  De  manei- 
ra ,  que  Jonas  em  quarenta  dias  pregou  hum  íó  aíTum- 
pto ,  e  nós  queremos  pregar  quarenta  aílbmptosem 
numa  hora?  PcriíTonaô  pregamos  nenhum  O  fer- 
mao  ha  de  íer  de  huma  fó  cor,  ha  de  ter  hum  fó  ob- 
jecto ,  hum  fó  aífumpto ,  huma  fó  matéria. 

854     Ha  de  tomar  o  Pregador  huma  fó  matéria 
ha  de  diffiniiia ,  para  que  fe  conheça ,  ha  de  di  vjdilla' 
para  que  fediílinga  ,  ha  deprovalia  com  a  Efcritura! 
na  de  declaralia  com  a  razaõ ,  ha  de  confírmaila  com 
o  exemplo,  ha  de  amplificai  ia  com  as  cauías,  com  os 
eíteitos  5  com  as  circunftancias ,  com  as  conveniên- 
cias, que  fe-haô  de  feguir,  com  os  inconvenientes 
que  fe  devem  evitar.  Ha  de  refponder  ás  duvidas' 
ha  de  fatisfazer  ás  difficuJdades,  ha  de  impugnar,  e 
refutar  com  toda  a  força  da  eloquência  os  argumen- 
tos contrários  ,  e  depois  diílo  ha  de  colher,  ha  de 
apertar ,  ha  de  concluir ,  ha  de  perfuadir  ,  ha  de  aca- 
bar. Ifto  he  fermao ,  ifto  he  pregar ,  e  o  que  naõ  he 
líto,  hefallar  de  mais  alto.  Naô  nego,  nem  quero  di- 
.     2er  ,  que  o  íeriraõ  ní.õ  haja  de  ter  variedade  de  dif- 
curfos;  mas  eífes  hao  de  nafcer  todos  da  mefma  ma- 
téria ,  e  continuar ,  e  acabar  nella.  Qiiereis  ver  tudo 
ifto  com  os  olhos  ?  Ora  vede.  Huma  arvore  tem  raí- 
zes, tem  troncos  ,  tem  ramos  ,  tem  folhas,  tem  va- 
ras, tem  flores,  tem  frudos.  AíFim  ha  de  fer  o  fer- 

j 


') 


DifcurfoLXXXU.  25 


7 


maÓ :  ha  de  ter  raizes  fortes  ,  e  folidas  ,  porque  ha  de 
ler  fundado  no  Euangelho  :  ha  de  ter  hum  tronco  , 
porque  ha  de  ter  hum  íó  aHumpto ,  e  tratar  huma  fo 
matéria.  Defte  tronco  haÓ  de  nafcer  diverfos  ramos, 
queíaõ  diverfos  difcurfos,  mas  nafcidos  da  meíma 
matéria ,  e  continuados  nella :  eftes  ramos  nao  hao  de 
feríecos,  fenao  cubertos  de  folhas  ,  porque  os  d lí- 
curfos  haÔ  de fer  veftidos ,  e  ornados  de  palavras.  Ha 
de  ter  efta  arvore  varas ,  ^ae  faó  a  reprehenfao  dos 
vícios ,  ha  de  ter  flores ,  que  l^.as  fentenças     e  por 
remate  de  tudo  ha  de  ter  frudos,  que  he  o  trudo,  e  o 
fim,  a  que  fe  ha  de  ordenar  o  fermao.  De  maneira, 
que  ha  de  haver  frudos,  e  ha  de  haver  flores  ,  ha  ae 
haver  varas ,  ha  de  haver  tolhas ,  ha  de  haver  ramos; 
mas  tudo  nafcido ,  e  fundado  em  hum  ló  tronco,  que 
he  huma  fó  matéria.  Se  tudo  faÓ  troncos^,  nao  he  ler- 
maÓ,  he  madeira :  fe  tudo  faÓ  ramos ,  nao  he  fermaj?, 
fao  maravalhas :  fe  tudo  faÓ  folhas ,  naÓ  he  Jermao  , 
faó  verfas  :  fe  tudo  faÓ  varas  ,  naô  he  fermao ,  he  tei- 
xe  •  fe  tudo  faô  flores,  naõ  he  fermaÔ,  he  ramalhete : 
ferem  tudo  frudos ,  naÓ  pode  fer ;  porque  nao  ha 
frudosfem arvore.  Aflim  que  nefta  arvore,  a  que  po- 
demos chamar  arvore  da  vida ,  ha  de  haver  o  provei- 
tofo  do  frudo ,  o  formoío  das  flores ,  o  rigorofo  das 
varas ,  o  veftido  das  folhas ,  o  eftendido  dos  ramos ; 
mas  tudo  ifto  nafcido,  e  formado  de  hum  fo  tronco, 
e  eíFe  nao  levantado  no  ar,  fenao  fundado  nas  raízes 
do  Euangelho :  Seminare  femen.  Eis  aqui  como  hao 
de  fer  os  fermoens:  eis  aqui  como  nao  fao,  Eallim 
naô  he  muito ,  que  fe  naÓ  faça  frudo  com  elles. 

855  Tudo  o  que  tenho  dito  poderá  demonltrar 
largamente  naô  fó  com  os  preceitos  dos  Ariílot eles, 
dosTullios,  dos  Quintilianos,  mas  com  a  practica 

obfer- 


'  »^-  ^^  '"' 


^^ 


2  3  8     F/^/r^  ahbreviado 

fjTrt''  fo  Principe  dos  Oradores  Euangelicos  S. 
João  Chry foílomo ,  de  S.  Boíilio  Magno ,  l  Bernar- 
do ,  b.  Cypriano .  e  com  .s  famoíiíTimas  oracoens  de 
^.GregonoNazianzeno,  Meílre  de  ambas  as  Ipre- 

wf  ^?f  ^  "o'^^'  "'"^'^^^  ^'^^^^^s.  comovem 
SantoAgoibnhoS.  Gregório,  e  muitos  outros  íe 
achao  osEuangelhos  apoíHiíados  com  nome  de  fer- 
inôens  ,  e  homiiins  ,  huma  couía  he  expor  ,  e  outra 
pregnr ,  huma  enfmar  ,  e  outra  perfuadir.  E  defta  m\^ 
tima  hequeeu  fallo,  com  a  qual  tanto  frudo  fizeraÓ 
no  mundo  ôanto  António  de  Pádua ,  e  S.  Vicente 
Eerrer.  Mas  nem  por  iíFo  entendo,  que  feja  ainda  eí- 
ta  a  verdadeira  cauia  5  que  bufco. 

856     Será  por  ventura  a  f^ilta  de  ciência ,  que  ha 
em  muu-os  Pregadores  ?  Muitos  Pregadores  iia  ,  que 
VI vem^do que  naô  coiheraô ,  e  femeao  o  que  naÓ  tra- 
baHiao.  Depois  da  fentença  de  Adaõ  a  terra  naÓ 
coítuma  darfruílo,  fenaõ  a  quem  come  o  íeu  paó 
com  o  íuor  do  íeu  roíío.  Boa  razaô  parece  também 
f/r    4   ^'^r  ,^' ^^  ^e  P''égar  o  feu^e  naÔ o  ai heyo.Por 
ío  diz  Chnílo,  que  femeou  o  lavrador  do  Euapae- 
Jiio  o  tngo  íeu  :  Sémen  fuum  :  Semeou  o  feu  .  e  naó  o 
aioeyo;  porque  o  aJheyo  ,  e  o  furtado  naôhe  bom 
pnraíemear,  amda  que  o  furto  feia  de  ciência.  Có- 
rneo Heva  o  pomo  da  ciência ,  e  queixavp.me  eu  an- 
tignmente  defta  noíTa  m.ly  ,  já  que  comeo  o  pomo  , 
porque  lhe  nao  guardou  as  pevides.  NaÕ  feria  bem 
que  chegaíie  a  nos  a  arvore ,  já  que  nos  chegarão  os 
encargos  delia  ?  Pois  porque  o  náo  Ç^z  aílim  Eleva  ? 
i:'orqu€  o  pomo  era  furtado  .,  e  o  aiheyo  he  bom  para 
comer,'  mas  naÓ  he  bom  para  femear  :  he  bom  para 
comer ,  porque  dizem  que  he  íaborofo  :  naÔ  he  boiri 
para  femear,  porque  naõ  nafce.  Algutm  terá  expe- 

rimen- 


Patioclo 

armas  cem  ai  ar-^ 


DifciirfoLXXXII.  259 

rimentado  ,  que  o  alheyo  naõ  nafce  em  cafa  ;  maò  ef- 
teia  certo ,  que  fe  nafce ,  naõ  ha  de  deitar  raízes  ,  e  o 
que  naotem  raizes,  naõ  pode  dar  fruao.  Eis  aqui 
porque  muitos  Pregadores  naõ  fazem  frua©  ;  porque 
pregão  o  alheyo ,  e  naõ  o  feu  :  Sémen  jutim.  O  pre- 
gar he  entrar  em  batalha  com  os  vicios,  e  armas  ^^^^^  ^ 
alheyas,  ainda  que  lejaõ  as  de  Achilles  ,  a  nmguem  ^j^^j,^,^  ^^ 
deraõ  vidoria.  Quando  David  fahio  a  campo  com  o  vencido,  c 
Gigante,  ofFereceolhe  Saul  as  fuás  armas  ,  mas  elle'«°^í°- 
naõ  as  quiz  aceitar.  Com  armas  alheyas  ninguém  po- 
de  vencer  ,  ainda  que  feja  Daf  id.  As  armas  de  bauí 
fó  fervem  a  Saul,  e  as  de  David  a  David  :  e  mais 
aproveita  hum  cajado ,  e  hiuna  funda  própria  ,  que  a 
efpada  ,  e  a  lança  alheya.  Pregador,  que  peleja  com 
as  armas  alheyas ,  naÕ  hajais  medo ,  que  derrube  Ov- 

gante.  . 

857     Fez  Chrifto  aos  Apoftolos  pefcadores  de  ho-  p,,,.^^  ^^^ 
mens,  que  fov  ordenallos  de  Pregadores ;  equefa-fíen  piíca- 
ziaÕos  Apoílólos?  Diz  o  texto,  que  eftavaÒ  Refi  ;';;;;^°'^'- 
cientesretiafua\  Refazendo  as  redes  fuás:  eraõ  aSjvi.nh.  4. 
redes  dos  Apoílolos ,  e  naõ  eraõ  alheyas.  Notai :  Re-  ^u 
tiafiia  :  naõ  diz ,  que  eraõ  fuás  ,  porque  as  cornpra- 
raó ,  fenaõque  eraõ  fuás,  porque  as  faziaô :  naõ  eraõ 
íuas ,  porque  lhe  cuftaraô  o  feu  dinheiro ,  fenaõ  por- 
que lhe  cuítavaõ  o  feu  trabalho.  Defta  maneira  eraó 
as  redes  fuás ,  e  porque  defta  maneira  eraõ  íuas ,  por 
iífo  eraõ  redes  de  pefcadores,  que  haviaõ  de  pefçar 
homens.  Com  redes  alheyas  ,    ou    feitas  por  maó 
alheya  podemfe  peícar  peixes ;  homens  naõ  fe  podem 
pefcar.  Arazaó  diílo  he  ;  porque  neíla  pelca  de  en- 
tendimentos fó  quem  fabe  fazer  a  rede,  fabe  fazer 
o  lanço.  Como  íe  faz  huma  rede .?  Do  fio,  edonó 
fe  compõem  a  malha :  quem  naõ  enfia ,  nem  ata ,  co* 


'i»  ,  ^- 


240     Vieira  abhreviado 

íno  ha  de  fazer  rede?  EquemnaÓfabeenílnar,  nem 
1     star ,  como  ha  de  pefcar  homens  ?  A  rede  tem 
chumbada  ,  que  vai  ao  í^ndo ,  e  tem  cortiça ,  que  na- 
da em  cima  da  agua.  A  pregação  tem  humas  couías 
de  mais  pezo,  e  de  mais  fundo  ,  e  tem  outras  mais 
fuperhciaes   e  ma .s  leves  :  e  governar  o  leve ,  e  o  pe- 
^ado  fo  o  fabe  fazer  quem  faz  a  rede.  Na  boca  de 
quem  naofaz  a  pregação,  até  o  chumbo  he  cortiça 
As  razoens  nao  haôde  íer enxertadas,  haó  de  fernaf- 
cidas.  O  pregar  naó  he  recitar.  As  razoens  próprias 
finícem  do  entendimento:  as  alheyas  vaô  pegadas  á 
niemoria,  e  os  homens  naofe  convencem  pela  memo- 
na ,  íenao  pelo  entendimento.  Veyo  o  Efpirito  San- 
to fobre  os  Apoítolos,  e  quando  as  Jinguas  defciaô 
c^o  Ceo  ,  cuiaava  eu  ,  que  le  lhes  haviaÔ  de  pôr  na 
boca;  mas  ellasforaõfe  pôr  na  cabeça.  Pois  porque 
na  cabeça ,  e  nao  na  boca ,  que  he  o  lugar  da  lingua  ? 
1  orque  o  que  ha  de  dizer  o  Pregador,  naÓ  lhe  ha  de 
íamr  fo  da  boca  ;  halhe  de  lahir  pela  boca  ,  mas  da 
cabeça.  O  que  fahe  fó  da  boca ,  pára  nos  ouvidos  ■  o 
que  nafce  do  juízo,  penetra  ,  e  convence  o  entendi- 
mento. 

858  Com  tudo  eu  nao  rne  firmo  de  todo  nefl-a  ra. 
zao  ;  porque  do  grande  Bautifta  (abemos ,  que  pre- 
gou o  que  tinha  pregado  ífaias,  como  notou  S.  Lu- 
cas ,  e  naõ  com  outro  nome  fe  naô  de  íermoens :  Pr^- 
dtcans  baptifmuni  pmiitenti^  jn  remiffionem  pecca- 
torum  ,  Jkiit  fcriptum  eji  in  libro  fermonum  Ifata 
Propketa,  Deixo  o  que  tomou  Santo  Ambrofio  de 
S.  Bafiho ,  S.  Profpero ,  e  Beda  de  Santo  Agoftinho, 
Iheohlato,  e  Euthymio  de  S Joaó  Chryfoftomo. 

859  Será  finalmente  a  caufa  ,  que  tanto  ha  buíca- 
mos;  a  voz,  com  que  hoje  failaó  os  Pregadores }  An- 

tiga- 


■i 


Difcurfo  LXXXÍÍ.  241 

tigamcnte  ptcgavíió  bradando,  hoje  prégao  conver- 
fando.  Antigamente  a  primeira  parte  do  Pregador 
sra  boa  voz,  e  bom  peito.  E  verdadeiramente  como 
o  mundo  fe  governa  tonto  pelos  fentidos,  podem  ás 
vezes  mais  os  brados ,  que  a  razão.  Boa  era  também 
efta  ;  mas  naô  a  podemos  provar  com  o  femeador , 
porque  jd  dilTemos ,  que  naó  era  oíRcio  de  boca.  Po- 
rém o  que  nos  negou  o  Euángelho  no  femeador  me- 
tafórico, nosdeo  no  femeador  verdadeiro  ,  que  he 
Chriílo.  Tanto  que  Chrifto  acabou  a  paraboia  ,  diz 
o  Euangelho ,  que  começou  o  Senhor  a  bradar:  FI^clvlz.  8. «. 
dicens  clamabat.  Bradou  o  Senhor  ,  e  naô  arrazoou 
fobre  a  paraboia  ;  porque  era  tal  o  auditório  ,  que 
íiou  mais  dos  brados,  que  da  razaõ. 

860     Perguntarão  ao  Bautifta ,  quem  era.  Ref- 
pondeo  elle  :  Ego  vox  clamantis  in  deferto :  Fiu  fou  joan.  u 
huma  voz  ,  que  anda  bradando  nefte  deíerto.  Defla  '5* 
maneira  fe  defínio  o  Bautiíta.  A  definição  do  Prega- 
dor, cuidava  eu,  que  era  :  Voz,  que  arrazoa,  enaô: 
Voz,  que  brada.  Pois  porque  fe  definio  o  Bautifta  pe- 
lo bradar ,  e  naó  pelo  arrazoar:  naô  pek  razaô ,  fenaõ 
pelos  brados  ?  Porque  ha  muita  gente  neíle  mundo, 
com  quem  podem  mais  os  brados,  que  a  razaõ,  e 
taeseraõ  aquelles,aquem  oBautifta  pregava. Vede- o 
claramente  em  Chrifto.  Depois  que  Pilatos  exami- 
nou as  accufaçoens  ,  que  contra  eíle  fe  davaô  ,  lavou 
as  macs  ,  e  diíTe  :  Ego  niillam  caufam  ijtvejiio  in  ho-  ^^^  ^^^ 
mine  iJlo\  Eu  nenhuma  caufa  acho  nefte  homem.  14» 
Nefte  tempo  todo  o  povo  ,  e  os  Efcribas  bradavaó 
de  fora ,  que  foíTe  crucificado  :  At  illi  magis  clama-  ^,{3^^.  17* 
bant :  Crucifígatiir .  De  maneira ,  que  Chrifto  tinha  13. 
por  fi  a  razaô  ,  e  tinha  contra  fi  os  brados.  El  qual  po- 
de mais  ?  PodéraÔ  mais  os  brados ,  que  a  razaô.  A 

Tom.  II.  Q^  razão 


!■ 


^42     Vieira  abhreviado 

razaó  nao  valeo  para  o  livrar,  os  brados  bailarão  pa- 
ra o  pôr  na  cruz.  E  como  os  brados  no  mundo  po- 
dem tanto ,  bem  he  que  bradem  alguma  vez  os  Pre- 
gadores ,  bem  he  que  gritem.  Por  illb  Ifaias  chamou 
líai.éo  8. aos  Pregadores  nuvens:   (hú funt  ijli ,  qui ut  nubes 
voJant  ?  A  nuvem  tem  relâmpago  ,  tem  trovão ,  e 
tem  rayo.  Relâmpago  para  os  olhos ,  trovaô  para  os 
ouvidos ,  rayo  para  o  coração :  com  o  relâmpago  alu- 
mia ,  com  o  trovão  aíTombra  ,  com  o  rayo  mata.  Mas 
o  rayo  fere  a  hum,  o  relâmpago  a  muitos,  otrovaôa 
todos.  AíTim  ha  de  fer  a  voz  do  Pregador ,  hum  tro- 
vaô do  Ceo ,  que  aíTombre ,  e  faça  tremer  o  mundo, 
86i     Mas  que  diremos  á  oração  de  Moyíés  ?  Co7í- 
Deut.  32.  crefcat  ut  pluvia  doãrina  mea  :  fiuat  ut  ros  elo- 
quiummeiím.  Defça  a  minha  doutrina  como  chuva 
do  Ceo ,  e  a  minha  voz ,  e  as  minhas  palavras  como 
orvalho,  que  fediílilla  brandamente,  e  fem  ruido. 
Que  diremos  ao  exemplo  ordinário  de  Chriíto  ,  ta5 
ifai.  42.  X.  celebrado  por  Ifaias  ?  Non  clamabit ,  neque  audietur 
vox  ejusforis :  Naó  clamará ,  naõ  bradará ,  mas  fal- 
Iara  com  huma  voz  taõ  moderada ,  que  íe  nao  poíla 
ouvir  fora.  E  naÕ  ha  duvida ,  que  o  praticar  familiar- 
mente, e  o  fallar  mais  ao  ouvido,  que  aos  ouvidos, 
naó  fó  concilia  mayor  attençaõ  ,  mas  naturalmente, 
e  fem  força  fe  infmua ,  entra ,  penetra  ,  e  fe  mete  na 
alma. 

8Ó2  Em  conclufaõ ,  que  a  caufa  de  nao  fazerem 
hoje  fru6to  os  Pregadores  com  a  palavra  de  Deos 
nem  he  a  circunftancia  da  peflba :  Qui feminat ,  nem 
a  do  eílylo  :  Seininare ,  nem  a  da  matéria  :  Sémen, 
nem  a  da  ciência  :  Suum  ,  nem  a  da  voz:  Clamabat. 
Moyfés  tinha  fraca  voz,  Amos  tinha  grofleiro  eíly- 
lo,  Salamaó  multiplicava,  e  variava  os  aíFumptos, 

BaJaÓ 


Exod.  4. 
10. 


«Éi 


Difiurfo  IXXXÍI.  243^ 

Balaô  naó  tinha  exemplo  de  vida,  o  fcu  animal  naô 
tinha  ciência  ,  e  com  tudo  todos  eltes  fallando  ,  per- 
luadiaó  ,  e  convenciaó.  Pois  fe  nenhuma  deitas  ra- 
zoens,  que  difcorremos ,  nem  todas  cilas  juntas  iao  a 
cauía  principal,  nem  baftante  do  poucofrudlo  ,  que 
hoje  faz  a  palavra  de  Deos  ;  qual  diremos  finalmen- 
te, que  he  a  verdadeira  caufa  ? 

863  As  paíavr3S,que  tomei  por  them3,o  dizem  : 
Sémen ejl  verhiim  Dei.  Sabeis  (  Chriílaós)  a  caufa, 
porque  fe  faz  hoje  taô  pouco  frudo  com  tantas  pré- 
gGçoens  ?  He  porque  as  palavras  dos  Pregadores  fao 
palavras,  mas  naõ  fao  palavras  de  Deos.  Fallo  do 
que  ordinariamente  íe  ouve.  A  palavra  de  Deos  (^co- 
mo dizia )  he  tao  poderofa  ,  e  tao  efficaz ,  que  naó  fó 
na  boa  terra  faz  frudo ,  mas  até  nas  pedras ,  e  nos  eí- 
pinhos  nafce.  Mas  fe  as  palavras  dos  Pregadores  naó 
fao  palavras  de  Deos ,  que  muito ,  que  naõ  tenhaó  a 
efficacia ,  e  Os  effeitos  de  palavra  de  Deos  ?  Ventumoi^^  8.  7. 
Jeminabimt ,  ir  turbmem  colligent ,  diz  o  Efpirito 
Santo.  Quem  fêmea  ventos  ,  colhe  tempeftades.  Se 

os  Pregadores  femeaô  vento  ,  fe  o  que  fe  prega  he 
vaidade ,  fe  naõ  fe  prega  a  palavra  de  Deos,  como  naó 
ha  a  Igreja  de  Deos  de  correr  tormenta  em  vez  de 
colher  fru 61o? 

864  Mas  dirmeheis;  Padre,  os  Pregadores  de  ho- 
je naó  prégaõ  do  Euangelho  ?  Naó  prégaó  das  íagra- 
das  Efcrituras  ?  Pois  como  naõ  prégaõ  a  palavra  de 
Deos.í^  Eífeheomal.  Prégaõ  as  palavras  de  Deos  ; 
mas  naõ  prégaõ  a  palavra  de  Deos  :  Qtti  habet  fer- ^^^^^ 
monem  metim  ,  loquatur  fennonem  meum  vere ^  áx^Q  ^{^ 
Deos  por  Jeremias.  As  palavras  de  Deos  pregadas 
no  fentido,em  que  Deos  as  diífe,  fao  palavra  de  Deos^, 
mas  pregadas  no  featido  ,  que  nós  queremos,  naõ 

QjL  Iao 


ím,  zj. 


244     Vieira  ahbreviado 

faô  palavra  de  Deos ,  antes  pode  fer  palavra  do  de 
momo.  Tentou  o  demónio  a  Chriílo ,  aquefízeíTí 

Matth,4  4.das  pedras  paõ.  Reípondeolhe  o  Senhor :  Non  info 
lo  pane  vtvit  homo ,  fcdin  omni  verbo ,  quod procedi i 
de  ore  Dei,  Efta  íentença  era  tirada  do  cap.  8.  de 
JJeííteronomw.  Vendo  o  demónio ,  que  o  Senhor  fí 
defendia  da  tentação  com  a  Eícritura ,  leva-o  ao  tenv 
pio  ,  e  allegando  o  lugar  do  Pfalmo  90.  dizlhe  deás 

?f. 50. 1 1.  maneira  :  Mitte  te deorfum  \fcriptum  eft  enim ,  quia 
AngeUs  fms  Deus  mandavit  de  te  ,  ut  ciijiodiant  te 
m  omnibus  viis  tuis  :  Deitate  dahi  abaixo ,  porque 
promettido  eflá  nas  fagradas  Eícrituras ,  que  os  An- 
jos te  tomarão  nos  braços ,  para  que  te  naó  faças  mal. 
De  forte,  que  Chrifto  defendeofe  do  diabo  com  a 
Efcritura ,  e  o  diabo  tentou  a  Chrifto  com  a  Efcritu- 
ra.  Todas  as  Eícrituras  íaó  palavra  de  Deos  ;  pois  fe 
Chrifto  toma  a  Eícritura  para  fe  defender  do  diabo , 
como  toma  o  diabo  a  Efcritura  para  tentar  a  Chrifto? 
A  razaó  he  ;  porque  Chrifto  tomava  as  palavras  da 
Eícritura  em  feu  verdadeiro  fentido  ,  e  o  diabo  to- 
mava as  palavras  da  Efcritura  em  fentido  alheyo,  e 
torcido  :  eas  mefmas  palavras,  que  tomadas  em- ver- 
dadeiro fentido  íliõ  palavras  de  Deos  ,  tomadas  em 
fentido  alheyo  íaó  armas  do  diabo  :  as  mefmas  pa- 
lavras^,  que  tomadas  no  íentido ,  em  que  Deos  as  dif- 
fe,^fa6  defeza,  tomadas  no  fentido,  em  que  Deos  as 
naòdiíTe,  faõ  tentação.  Eisaqui  a  tentação,  com  que 
e/ita6  quiz  o  diabo  derrubar  a  Chrifto  ,  e  com  que 
hoje  lhe  faz  a  meíma  guerra  do  pinnaculo  do  templo. 
O  pinnaculo  do  templo  he  o  púlpito;  porque  he  o  lu- 
gar mais  alto  delle.O  diabo  tentou  a  Chrifto  no  defer- 
to,  tentou  o  no  monte,  tentou  o  no  templo:  no de- 
íerto  tentou-o  com  a  gula ,  no  monte  tentou-o  com 

aam^ 


Difciirjo  LXXXIl.  245 

a  ambição  ,  no  templo  tentou-o  com  as  Efcrituras 
mal  interpretadas:  e  eíla  he  a  tentação  ,  de  que  mais 
padece  hoje  a  igreja  ,  eque  em  muitijs  parles  tem 
derrubado  delia,  íe  naô  a  Chriílo,  a  fua  fé. 

8Ó5.     Dizeime,  Pregadores,  (  aqiielles,  com  quem 
eu  tallo,  indignos  verdadeiramente  de  tao  fagrado 
nome)  dizeime:  EíTes  aílumptos  inúteis  ,  que  tantas 
vezes  levantais  ,  eíFasemprezas  ao  voílo  parecer  agu- 
das ,  que  profcguis,  achaíles-as  alguma  vez  nos  Pro- 
fetas do  teftamento  veího ,    ou  nos  Apoftolos  ,  e 
Euangeliílas  do  teílamento  novo  ,  ou  no  Author  de 
ambos  os  teftamentos  ,  Ciiriílo  ?  He  certo  que  naõ. 
Porque  deíde  a  primeira  palavra  do  Genefis  até  á 
ultima  do  Apocaiypíe  naõ  ha  tal  coufa  em  todas  as 
Efcrituras.  Pois  íe  nas  Ef:rituras  naõ  ha  o  que  di- 
zeis ,  e  o  que  pregais ,  como  cuidais  ,  q  ue  pregais  a 
palavra  deDeos?  Mais:  Nefles  lugares,  neíTes  tex- 
tos ,  que  allegais  para  prova  do  que  dizeis  ,  he  eíle  o 
fentido ,  em  que  Deos  os  diíTe  ?  He  eíTe  o  fentido,  era 
que  os  entendem  os  Padres  da  Igreja  ?  He  eíFe  o  fen- 
tido da  mefma  Grammatica  das  palavras  ?  Naó  por 
certo.  Porque  muitas  vezes  as  tomais  peio  que  toao, 
e  naô  peio  que  figniFicaó,  e  talvez  nem  peio  que 
toaó;  pois  fe  naó.  he  eíle  o  fentido  das  palavras  de 
Deos,  fegueíe  que  naô  faó  palavras  de  Deos.  Efe 
naó  faõ  palavras  de  Deos  ;  que  nos  queixamos  de  que 
nao  façaó  fruclo  as  prégnçoens.í^  Bafta  que  havemos 
de  trazer  as  palavras  de  Deos  a  que  digao  o  que  nós 
queremos,  e  naó  havemos  de  querer  dizer  o  queel- 
las  dizem  !  E  então  ver  cabecear  o  auditório  a  efras 
couías ,  quando  deviamos  de  dar  com  a  cabeça  pelas 
paredes  de  as  ou  vir!  Verdadeiramente  naóíeideque 
ma-s  meefpante,  fedos  noííos  conceitos,  íe  dos  vof- 
Tom.  II.  a?  ^^s 


leira  abbr 

fos  applaufos  ?  Oh  que  bem  levantou  o  Pregador ! 
Aíljm  he ;  mas  que  levantou  ?  Hum  falío  teílimunho 
ao  texto ,  outro  falío  teftimunho  ao  Santo ,  outro  ao 
entendimento ,  e  ao  íentido  de  ambos.  Entaô  que  Ce 
converta  o  mundo  com  falíbs  teílimunhos  da  palavra 
Coi.  7z.  ^^  D^<^s  !  Qiie  muito  logo  ,  que  as  noíTas  imagina- 
çoens^,  as  noíTas  vaidades,  e  as  noíTas  fabulas  naó 
tenhaõ  a  efficacia  da  palavra  de  Deos! 

866  Miferaveis  de  nós  ,  e  miferaveis  dos  noííos 
tempos  ;  pois  nelles  fe  veyo  a  cumprir  a  profecia  de 
a.  Tim.43.  S,  Paulo  \  Erit  tempus  ,  cum  fanam  doâirinam  non 
fnjiinebunt\  Virá  tempo,  diz  S.Paulo,  em  que  os 
homens  naó  foíFreráô  a  doutrina  fã:  Sedadfuadefi- 
der  ia  coacervabuntjibi  magijlros  prurientes  auri- 
bus;  Mas  para  feu  appetite  teráô  grande  numero  de 
Pregadores  feitos  a  montão ,  e  fem  efcolha ,  os  quaes 
nnô  façaó  mais,  que  adularlhes  as  orelhas  :  Averita- 
te  quidem  auditum  avertent ,  ad fabulas  aiitejn  con- 
vertentur :  Fecharão  os  ouvidos  á  verdade ,  e  abri- 
ioshaõ  ás  fabulas.  Fabula  tem  duas  fignificaçoens : 
quer  dizer  fingimento  ,  e  quer  dizer  comedia  ,  e  tu- 
do íaõ  muitas  prégaçoens  deíle  tempo.  Saó  fingi- 
mento, porque  faôíubtilezas,  epenfamentos  aéreos 
fem  fundamento  de  verdade  :  íao  comedia  ,  porqu© 
os  ouvintes  vem  á  pregação  ,  como  á  comedia  ,  e  ha 
Pregadores ,  que  vem  ao  púlpito  como  comediantes. 
Huraa  das  felicidades  ,  que  fe  contava  entre  as  do 
tempo  prefente ,  era  acabaremfe  as  comedias  em  Por- 
tugal;  mas  naó  foy  aíllm.  Naó  fe  acabarão,  muda- 
raôíe  :  paílaraófe  do  theatro  ao  púlpito.  Naô  cui- 
deis ,  que  encareço  em  chamar  comedias  a  muitas 
prégaçoens  das  que  hoje  fe  ufaó,  Tomara  ter  aqui  as 
comedias  de  Plauto ,  de  Terêncio ,  de  Séneca  ,  e  ve- 
ríeis 


DifcurfoL^^Xll.  247 

ricis,  lenao  nchaveis  nellas  muitos  defenganos  da  vi- 
da ,  e  vaidade  do  mundo  ,  muitos  pontos  de  doutri- 
na moral  muito  mais  verdadeiros,  e  muito  m;i!S  ío- 
lidos,  do  que  hoje  íe  ouvem  nos  púlpitos.  Gr-ànúo 
mileria  por  certo  ,  que  fe  achem  m.ayores  documen- 
tos para  a  vida  nos  verfos  de  hum  Poeta  prof^mo  ,^e 
gentio ,  que  nas  prégoçoens  de  hum  orador  Chnftaó, 
e  muitas  vezes,  (obre  Chi  iftaó ,  Religiofo ! 

\^67     Pouco  diíTe  S.  Pauio  em  ihes  chamar  come- 
dia ;  porque  muitos  fermoens  ha  ,  que  naõ  fao  come- 
dia, lâo  íarça.  Sobe  talvez  ao  púlpito  hum  Pregador 
dos  que  profeílbõ  fer  mortos  ao  mundo  ,  vcílido  ,  ou 
amortalhado  em  hum  habito  de  penitencia  ,  (que  to- 
dos ,  mais ,  ou  menos  afperos  ,  íiió  de  penitencia  ,  e 
todos  ,  defdeo  dia  que  osprofeílamos,  mortalhas)  a 
viíh  he  de  horror,  o  nome  de  reverencia,  a  matéria 
de  compunção,  a  dignidade  de  oráculo,  o  lugar,  e 
a  expedaçaô  de  filencio  :  e  quando  eíle  fe  rompeo  , 
que  he  o  que  fe  ouve  ?  Se  neíle  auditório  eíliveiíe 
hum  eftrangeiro  ,  que  nos  naó  conheceíle ,  e  viíie  eu- 
trar  eíle  homiem  afallar  em  publico  naquelles  trajos, 
eem  tal  lugar,  cuidaria,  que  havia  de  ouvir  huma 
trombeta  do  Ceo  ,  que  cada  palavra  fua  havia  de  íer 
humrayo  para  os  coraçoens ,  que  havia  de  pregar 
com  o  zelo  ,  e  com  o  fervor  de  hum  Eiias  ,  que  com 
a  voz,  com  o  geíto,  e  com  as  acçoens  havia  de  fazer 
em  pó  ,  e  em  cinza  os  vicios.  Ifto  havia  descuidar  o 
eftrangeiro.  E  nós  ,  que  he  o  que  vemos?  Vemos  ía- 
hir  da  boca  daquelle  homem  aíFim  naquelles  trajos 
huma  voz  muito  aíFeélada  ,  e  muito  polida  ,   e  logo 
começar  com  muito  defgarro,  a  que  ?  A  motivar  deí- 
vellos^  a  acreditar  empenhos  ,  a  requintar  finezas',  a 
lifongear  precipicios,  a  brilhar  auroras ,  a  derreter 

0^4  cryí- 


248     Vieira  abhreviado 

cryílaes,  a  defmayar  jaíinins,  a  toucar  primaveras, 
e  OLicras  mil  indignidades  deftas.  NaÔ  he  ifto  farça  a 
iriais  digna  de  rifo,  fe  naõ  fora  tanto  para  chorar  ?  Na 
comedia  o  Reyveíle  como  Rey,  e  falia  como  Rey, 
olacíiyoveftecomo  Jacayo,  e  falia  como  lacayo,  o 
f uftico  vefte  como  ruílico ,  e  filia  como  ruftico  ;  mas 
hum  Pregador  veílir  como  Religiofo  ,  e  faliar  co- 
mo :  naõ  o  quero  dizer  por  reverencia  do  lugar.  Já 
que  o  púlpito  hetheatro,  e  o  fermaô  comedia,  fe 
quer  naó  faremos  bem  a  figura  ?  Naô  diraó  as  pala- 
vras com  o  veíHdo ,  e  com  o  oíficio  ?  Affim  pregava 
S.  Paulo ,  aííim  prégavaô  aquelles  Patriarcas ,  que  fe 
veftiraô,  e  nos  veíUraõ  deíles  hábitos  ?  Naõ  louva- 
mos, e  naõ  admiramos  o  leu  pregar?  Naõ  nos  preza- 
mos de  feiís  filhos  ?  Pois  porque  os  naó  imitamos  ? 
Porque  naô  pregamos,  como  elíes  prégavaô  ?  Nefte 
mefmo  púlpito  pregou  S.  Franciíco  Xavier,  neííe 
mefmo  púlpito  pregou  S.  Francifco  deBorja,  e  eu 
que  tenho  o  mefmo  habito  ;  porque  naõ  pregarei  a 
lua  doutrina,  jáqu^me  faltaofeu  efpirito? 

868  Dírmeheis  o  que  a  mim  me  dizem ,  e  oque 
já  tenhj)  experimentado  :  que  íe  pregamos  aífim  , 
zombaõ  de  nós  os  ouvintes  ,  e  naÕ  goftaó  de  ouvir. 
Oh  boa  razaó  para  hum  íervo  de  Jeíu  Chriílo  í 
Zombem  ,  e  naõ  goílem  embora,  e façamos  nósnof- 
fo  oíFicio.  Que  Medico  ha  ,  que  repare  no  goílo  do 
enfermo,  quando  trata  de  lhe  darfaude.í^  Sarem  ,  e 
naô  goílem:  falvemfe,  e  amarguelhes,  que  para  iílo 
Coi.  8a.  fomos  Médicos  das  almas.  Em  fim  para  que  os  Pre- 
gadores laibaô  como  haô  de  pregar  ,  e  os  ouvintes 
aquém  haô  de  ouvir,  acabo  com  hum  exemplo  do 
noílb  Reyno,  equaíi  dos  noílbs  tempos.  Prégavaô 
em  Coimbra  dous  famoíos  Pregadores ,  ambos  bem 

conhe- 


«■Mi 


DifcurfoLXXXn.  249 

conhecidos  por  wus  efcritos  :  nao  os  nomeyo  ,  por- 
que os  hei  de  defigualar.  Altercouíe  entre  alguns 
Doutores  da  Univeríidade,  qual  dos  dous  toíie  ma- 
vor  Pregador  ?  E  como  naô  ha  juizo  Tem  inchnaçao  , 
íuins  diziaó ,  efíe  :  outros,  aquelle.  Mi^s  hutii  Lente, 
que  entre  os  mais  tinha  inayor  authondade ,  concluio 

defta  maneira  :  Entre  dous  fujeitos  taÔ  grandes  nao 
me  atrevo  a  interpor  juizo  :  íó  direi  huma  diferen- 
ça ,  que  fempre  experimento.  Quando  ouço  hum, 
iayo  do  fermaô  muito  contente  do  Pregador  :  quan- 
do ouço  outro,  fayo  muito  defconteníe  de  mim.  Com 
iílo  tenho  acabado.  Algum  dia  vos  enganaftes  tanto 
comigo  ,  que  íahieis  do  fermaÔ  muito  contentes  do 
Predador  :  agora  quizera  eu  deíenganarvos  tanto  , 
que^^lahiíTeis  muito  defcontentes  de  vós.f^emeadores 
do  Euangelho,  eis  aqui  o  que  devemos  pertender  nos 
noíTos  íermoens  ,  naõ  que  os  homens  fayaô  contentes 
de  nós  ,  íenaô  que  fayaô  muito  deícontentes  de  li: 
naóque  lhes  pareçaô  bem  os  noíFos  conceitos ;  mas 
que  lhes  parecaõ  mal  os  íeus  coftumes ,  as  fuás  vidas, 
os  feus  paflatempos ,  as  fuás  ambiçoens ,  e  em  fim  to« 
dofi  os  feus  peccados.  Com  tanto  que  fe  defconten- 
tem  de  fi ,  defcontentemfe  embora  de  nós  :  Si  hoim- 
nibus  placerem  ,  Chrijii  Jervus  mn  elJem  ,  dizia  o 
mayor  de  todos  os  Pregadores ,  S.  Paulo :  Se  eu  con- 
tentara aos  homens,  naô  feria  fervo  de  Deos.  Oh 
contentemos  a  Deos ,  e  acabemos  de  naô  fazer  cafo 
dos  homens! 


DIS« 


2  5  o     Vieira  ahhreviado 

DISCURSO    LXXXÍII. 

Tirado  de  hum  Jermao  da  terceira  Dominga  poíl 

Epiphani2m  ,  pregado  na  Sede  Lisboa  hbre  eftas 

palavras  :  Si  vis,  potes.  Mattii.  8. 


aU  E  R  E  R  ,     E     PODER. 


Part.  6.  g^Q 

Nusn.  zjg.  ^ 


Qiierer ,  e  opoder,  fe  divididos  fao  nada, 
juntos ,  e  unidos  fao  tudo.  O  querer  fem 
o  poder  he  fraco  ,  o  poder  (cm  o  querer  he  ociofo  ,  e 
defte  rnodo  divididos  faô  nada.  Pelo  contrario  o 
querer  com  o  poder  he  efficaz ,  o  poder  com  o  querer 
headivo,  e  defte  modo  juntos,  e  unidos  íaõ. tudo. 
Aíííin  confiderava  o  querer  ,  e  o  poder  de  Ghriílo  , 
certo  do  Teu  poder ,  e  duvidoíb  do  leu  querer ,  hum 
homem  pobre ,  e  enfermo  ,  o  qual  na  hiftoria  do  pre- 
fente  Euangelho  proftrado  a  íeus  divinos  pés  lhe  pe- 
dio,  que  oremediaíle,  dizendo,  que  fe  quizelle  po* 
^'''^^•' -dia '.Si  vis,  potes.  ^  ^  f 

Num.  Z60.  ^70  Oh  que  grande  ventura  he  requerer  diante 
dehum  Principe,  que  quer,  epóde/  Afiim  feria  tam- 
bém a  mayor  de  todas  as  defgraças  efperar  o  remédio 
de  algum  taó  pouco  poderofo,  que  naó  poíía,  e  de 
tao  má  vontade,  que  nao  queira.  A  Augullo  Cefar 
difle  Marco  Tullio  prudente  ,  e elegantemente,  que 
a  nature-^a ,  e  a  fortuna  lhe  tinhao  dado,  huma  a  ma- 
yor ,  e  outra  a  melhor  coufa,  que  podiaô ,  para  fazer 
bem  a  muitos  :  Nec fortuna  tua  maius  quam  ut pof- 
fts ,  nec  natura  tua  melius  (juani  ut  velis ,  confèr- 
vare  quamplurimos  :  A  mayor  coufa ,  que  pode  dar 
afortuna  a  hum  Principe,  he  o  poder,  e  a  melhor, 

que 


Difcurfo  LXXXIII.  2  5 1 

que  lhe  pode  dar  a  natureza,  he  o^ querer  para  po- 
der,  e  querer  fazer  bem  a  todos. 

871  Mas  como  o  poder,  e  querer  fó  naquelleNum.xíi. 
fupremo  Senhor ,  que  pode  qunnto  quer ,  laó  iguaes, 
e  pelo  contrario  no  homem  o  poder  he  pouco ,  e  li- 
mitado ,  e  o  querer  fempre  iníaciavel ,  e  íem  limite  , 
como  fe  poderá  na  contrariedade  deíh  difcordia 
achar  algum  meyo  de  uniaõ  ?  Reconheço  a  difiicul- 
dade  ;  mas  por  iiYo  íerá  ella  todo  o  emprego  do  meu 
difcurfo  :  Si  vis  ,  potes  :  fobre  eftas  duas  palavras 
confideradas  variamente  por  todos  os  modos  ,  com 
que  íe  podem  combinar ,  veremos  como  fe  ha  de  ajuf- 
tar  o  querer  com  o  poder  ,  e  o  poder  com  o  querer. 
He  huma  das  mais  importantes  matérias,  que  fe  de- 
ve enfinar  ao  mundo ,  e  de  que  depende  toda  a  felici- 
dade humana. 

872     Se  bufcarmos  com  verdadeira  confideraçaoNum.  z6z. 

a  caufa  de  todas  as  ruinas,  e  males  do  mundo,  acha- 
remos ,  que  naô  ÍÒ  a  principal ,  fenaõ  a  total ,  e  a  yni- 
ca  he  nao  acabarem  os  homens  de  concordar  o  feu 
querer  com  o  feu  poder :  Si  vis  ,  potes.  A  raiz^  defte 
veneno  mortal  nalcida  naó  fó  na  terra ,  fenao  tam- 
bém no  Ceo  he  a  inclinação  natural,  com  que  toda 
a  creatura  dotada  de  vontade  livre  naó  fó  appetece 
fempre  fer  mais  do  que  he ,  fenaô  também  querer 
mais  do  que  pode.  Qtje  quiz  o  Anjo  no  Ceo,  eque 
quiz  o  homem  no  Paraifo  ?  Ambos  quizeraó  fer  co- 
mo Deos.  Menos  me  admiro  das  fuás  vontades ,  que 
dos  feus  entendimentos  Vem  cá  Lúcifer  ,  vem  cá 
Adaõ  :  tu  Anjo ,  e  o  mais  fabio  de  todos  os  Anjosj 
tu  homem ,  e  o  mais  fabio  de  todos  os  homens  ^na5 
entendeis  ,  e  conheceis  com  evidencia  ,  que  naõ  po- 
deis fer  como  Deos  ?  Pois  como  appeteceis  o  que 

nao 


252     Vieira  abbreviado 

naõ  podeis  ?  Porque  tal  he  a  cegueira  de  hum  enten- 
dimento ambicioío  ,  e  a  ambição  de  huma  vontade 
livre.  Ha  de  querer  mais  do  que  pôde,  ainda  que  co- 
nheça ,  que  he  impoíFivel.  O  poder  ,  ou  poderes  do 
homem  eraÕ  fobre  todos  os  peixes  do  miir,  fobre  to- 
das as  aves  do  ar ,  e  fobre  todos  os  animaes  da  terra  : 
o  poder,  e  poderes  do  Anjo  eraó  íbbre  a  terra  ,  fobre 
o  mar ,  fobre  o  ar ,  fobre  o  fogo  ,  e  nao  lo  fobre  to- 
dos os  eí^mentos  ,  mis  também  fobre  todos  os  cor- 
pos celeíles ,  e  íbbre  todos  os  aPcros,  e  léus  movi- 
mentos.  E  porque  ainda  havia  no  mundo  outro  po- 
der mayor ,  poUo  que  eíle  foífe  o  de  Deos  ,  nem  o 
Anjo  ,  nem  o  homem  fe  contentarão  com  poder  o 
quepodiaS.   Eque  fe  leguiodaqui  ?  Aruina  univer- 
fal  do  mundo,  a  ruina  da  terceira  parte  dos  Anjos,  e 
a  ruina  de  todos  os  homens. 
Num.  Zé  3.     ^75     M^s  deixados  os  Anjos ,  que  naó  fao  capazes 
de  emenda  ,  fa "liemos  com  os  homens ,  que  fe  podem 
emendar^  fe  quizerem.  Começando  pelos  mayores 
corpos  políticos ,  que  fao  os  Reynos  ,  qual  he  a  cau- 
fa  de  tantos  fe  terem  perdido ,  de  que  a  penas  íe  con- 
ferva  a  memoria  ,  e outros  fe  verem  taô  arruinados, 
e  enfraquecidos,  fenic)  o  appetite  defordenado  ,  e 
cego  de  quererem  os  Reys  mais  do  que  podem  .?  Da- 
qui íe  feguem  as  guerras  ,  e  a  ambição  de  novas  ,  c 
temerárias  emprezas  ,  como  as  de  Membroth :  daqui 
as  fabricas  de  cdiíicios  magnifícos,  e  infanos,  como 
a  torre  de  Babel :  daqui  a  prodigalidade  deexceífi- 
vas  mercês,  amontoando  em  hum  o  que  fetira  a  to- 
dos, como  asde  Aflueroem  Aman:  daqui  as  feftas, 
e  jogos  públicos  com  os  apparatos  mais  monílruo- 
íbs,  que  extraordinários  ,  fem  outro  fim  ,  que  afalfa 
oítentaçaô  ,  e  vaidade  ,  do  que  naó  ha,  nem  he.  E 
^'-'•'  quando 


l 


m 


Dijcurfo  LXXXIB-  2  5  5 

quando  as  defpezas  de  tudo  ifto  deverão  íahir  do  que 
fobejaíFe  nos  erários,  e  thefouros  Reaes  ,  que  lera 
onde  fe  vem  tiradas  ,  e  efprimidas  todas  do  fangue , 
do  íuor ,  das  lagrimas  dos  vaflailos  carregados ,  econ- 

fumidos  com  tributos  fobre  tributos  ,  chorando  os 
naturaes,  para  que  fe  alegrem  os  eftranhos,  e  anti- 
cipandofe  as  exéquias  á  pátria ,  por  onde  felhe  deve- 
ra procurar  a  faude? 

874     SalamaÓ  foy  oRey  ,  que  em  todo  o  íeu  rey- 
nado  ufou  da  mais  alta ,  e  íegura  paz  de  quantos  hou- 
ve dentro  ,  e  fora  de  Ifrael;  mas  foy  tal  a  guerra  ,  que 
elle  fez  á  fua  mefma  Corte  ,  e  Reyno  com  os  prodi- 
gioíos  efpedaculos  de  grandeza  ,  e  mageítade  ,  cuja 
fama  trazia  a  Jerufalem  todas  as  naçoens  do  mundo, 
que  o  mefmo  Salamaó  foy    o  que  deílruio  o  que 
tanto  enobreceo,  e  exaltou  :  e  naô  por  outra  razão, 
ou  defeito  ,  fenaó  porque  fendo  mais  poderofo ,  que 
todos ,  fe  naó  contentou  com  o  que  podia.  A  prata  no 
feu  tempo,  diz  a  fagrada  Efcritura  ,  que  era  tanta 
em  Jeruíalem,  como  as  pedras  da  rua ,  e  nefte  mefmo 
tempo  eraó  tantos,  taó  multiplicados  ,  e  taó  exceífi- 
vos  os  tributos,  com  que  o  gloriofo ,  e  miferavel  po- 
vo fuftentava  a  fama  de  fer  chamado  feu  hum  tal 
Rey,  que  naó  podendo  fupportar  hum  pezo  taó  into- 
lerável ,  com  que  em  toda  a  vida  os  opprimio,  e  nem 
na  morte  os  aliviou,  a  primeira  coufa  ,  que  pedirão 
a /eu  fuccelTor  Roboaó,  foy  a  íufpenfaõ,  e  remédio 
deílas  oppreíloens.   Mas  como  o  filho,  que  fenaô 
contentava  com  menos  que  poder  ainda  mais ,  que 
feu  pay ,  naó  déífe  ouvidos  a  huma  taó  juftificada 
queixa  ,  rebellados  os  mefmos  vaflailos  lhe  negarão 
a  obediência ,  e  de  doze  Tribus  ,  de  que  conftava  o 
Reino,  perdeo  em  hum  dia  os  dez ,  05  quaes  nem  nos 

dias 


2  54     Vieira  ahbreviado 

dias  de  RoboaÓ  ,  nem  nos  de  todos  feusdefcendentes 
le  unirão,  ou  íujeitaraÓ  já  mais  d  meíma  Coroa. 

hom/ncf    ^^  ""^^^  "''."''^  'P^''^''^  ^^^  quererem  os 
l.oiiiens  fempre  mais  do  que  podem  ,  nem  na  fobera- 
nni  dos  que  podem  tudo  íe  farta  ;  que  fera  dahi  abai- 
.^       xo  ÚQiái^  os  mayores  entre  os  grandes  até  os  mini- 
nos  entre  os  pequenos?  Ooffical  pode  viver  como 
olticiai^  e  quer  viver  como  efcudeiro  :  o  efcudeiro 
pode  viver  como  efcudeiro,  e  quer  viver  como  fí- 
tíaigo  :  o  hdalgo  pode  viver  como  fidalgo  ,  e  quer 
viver  como  titulo  :  o  titu  lo  pode  viver  cSmo  titíiio. 
e  quer  viver  como  Principe.  E  que  fe  fegue  deíle 
tao  defordenado  querer  ?  O  menos  he  ,  que  por  que- 
rerem^o  que  na6  podem  ,  venhaô  a  naò  poder  o  que 
podiao.  Qiianto  fobe  violentamente  o  querer  para 
cima,  tanto  defce  fem  querer  o  poder  nara  baixo.Ou- 
VI  o  que  agora  direi  como  provérbio    Quem  quer 
mais  do  que  Jhe  convém,  perde  o  que  quer ,  e  o  que 

Num.iíj.  ^y6  No  teftamento  velho ElReyBalthafar,  por- 
que qu iz  mais  do  que  podia  ,  Liventus  efi  ininus  \ha- 

Dan  5.  ^•J.  bcns  E  doude  veyo  eíle  menos,  fenao  daquelle  mais? 
Kejpexífhs  ad  amplius ,  (^  eccefaâíum  eji  mimiy , 

Agg..i...diz  o  Profeta  Aggco.  No  teílamento  novo  o  filho 
•frodigo,  porque  no  gaftnr,  e  alardear  quiz  o  que 
nao  podia  ,  nem  pedia  o  efiiado  de  filho ,  veyo  a  pe^ 

Y^^-^5'  uir  por  mifericordia  a  fortuna  de  criado  :  Facmc/l' 
ctit  unum  demercenariistuis.  Qiiantos  vieraó  a  íer- 
vir  ,  porque  quizeraó  fer  mais  fervidos  ,  ou  fervidos 
de  mais  do  quepodiaó  manter?  Se  apenas  podeis  fuf- 
tentar  hum  cavallo  com  hum  mochila,  porque  ha- 
veis de  ter  huma  carroça  com  oito  lacayos?  Elum  he 
aíteiçoado  á  caça ,  e  quando  os  caens  andao luzidios, 

e  ana- 


i 


Difcurjo  rKXXIII.  2  5  5 

janaflidos  ,  veriheheis  os  criados  pallidos,  e  mortos 
i  fome.  O  outro  he  prezado  ,  ou  picado  de  pinturas, 
í  quando  elle  com  falfo  teftimunho  ridículo  chama 
los  feus  quadros  originaes  de  Ticiano ,  os  pagens  ,  e 
DS  lacayos  fao  verdadeiramente  copias  de  Lazaro. 
Que  direi  do  que  para  fahir  hum  dia  aos  touros  ,  e 
DÍlentar  cincoenta  lacayos  veílidos  de  tela ,  empe- 
nhou o  morgado,  e  as  commendas  por  muitos  annos? 
As  fortes  feriaó  quaes  quiz  a  ventura  ,  mas  a  peyor, 
e  mais  certa  foy  a  da  pobre  cafa.Elle  poderia  ter  hum 
dia  de  Pafchoa  ,  mas  ella  ha  de  jejuar  dez  annos  de 
Q^iarefma.  Eis  aqui  o  que  vem  a  naó  poder  os  que 
querem  mais  do  que  podem.  Com  eífa  mal  confide- 
rada  vaidade  que  he  o  que  adquiriiles  ,  ou  o  que  per- 
deftes  ?  Perdeftes  a  felicidade  de  nao  pedir ,  perdef- 
tes  a  liberdade  de  naó  dever,  perdeftes  o  deícanfo 
de  naó  pagar ;  e  o  que  adquiriiles  com  o  que  tinheis, 
e  com  o  que  naó  tinheis,  forao  as  invejas  dos  ami- 
gos, as  murmuraçoensdosíjzudos,  as  perfeguiçoens 
dosacredores,  e  a  defgraça,  e  máo  conceito  dos  mef- 
inos  Principes  ,  aquém  quizefteslifonjear,  efervir  ; 
porque  como  vos  ha  de  fiar  a  fua  fazenda  quem  aí- 
ílm  vê  ,  que  efperdiçais  a  voíFa  ? 

877  Mas  ifto  paífe  embora  ,  porque  he  damno 
particular.  O  máohe,  que  para  reftaurar  eftes  def- 
manchos ,  que  fempre  fe  devem ,  e  nunca  fe  pagaó , 
quem  os  eftá  continuamente  pagando  porvarios  mo- 
dos, he  o  commum.  O  official  de  penna ,  a  cujos  raí- 
gos  mede  o'  regimento  as  regras  ,  e  conta  as  letras, 
fe  ellequer  gaftarfem  conta,  e  fem  medida  ,  que  ha 
de  fazer  ?  Troca  as  fuás  pennas  com  as  dos  gavioens^ 
e  minhotos ,  e  naõ  ha  ave  de  rapina ,  que  tanto  leve 
nas  unhas.  O  letrado,  ou  julgador,  cuja  authorida- 

de 


li'  ,, 


2^6     Vieira  ahhreviado 

de  confiava  antigamente  de  huma  mula  mal  penfnda 
Gom  íua  guaídrapa  preta  ,  fe  hoje  fora  de  cafa  ha  de 
fuftentar  a  liteira,  e  dentro  as  alfayas,qiie  lhe  rcfpon- 
dem ,  nao  bailando  os  ordenados  para  a  terceira  par- 
te do  anno,  quem  hadefupprir  a  deípeza  das  outras 
duas  partes  ,  fenaõ  as  partes,  e  a  juíliça  ?  O  que  en-' 
tré fumos  de  nobreza,  e  fidalguia  vive  á  mercê  da 
fuajierdade ,  a  qual  quando  as  novidades  nao  men- 
tiaÕ  ,  ló  dava  para  farja  no  veraô,  e  baeta  no  inver- 
no, agora  que  já  ás  lans  fe  naõ  fabe  o  nome,  de  que 
fe  ha  de  veitir  fendo  o  gallo  da  fua  aldeã  ,  fenaõ  das 
pennas  dos  que  podem  menos  ?  O  mercante ,  que  to- 
mou  os  aífentos ,  ou  contratos  reaes  de  publico  ,  e  fe 
contratou  de  fecreto  com  os  zeladores  da  flizenda 
do  mefmo  Rey  ,  de  que  modo  fe  ha  de  foldar,  quan- 
do fe  vê  quebrado,  fenaõ  com  o  foldo,  e  fardas  dos 
miferaveis  foidados,  tornando  a  comprar  os  já  com- 
prados miniflros,  para  que  lhe  fubaó  os  preços  ,  e 
ajufle  as  quebras? 

878  Infinita  coufa  feria  fe  houveíTemos  de  dif- 
correr  por  todos  os  eílados  aílim  da  paz  como  da 
guerra  ,  com  que  a  fazem  cruel  á  Republica  os  mef- 
nios,  que  tinhaõ  obrigação  de  a  defender.  Com  ra- 
zão difíe  Séneca  ,  que  a  riqueza  fe  faz  de  muitas  po- 
brezas:  Divitia  ex paupertatibus fiunt ;  porque  pa- 
ra enriquecer  hum  homem  fe  empobrecem  outros,  e 
para  fe  levantar,  ou  reíufcitar  huma  cafa  fe  arrui- 
nao  ,  e  fepultaó  muitas.  Os  empenhos  do  morgado 
tirallos  ha  o  governo ,  o  cativeiro  das  commendas  re- 
millohaõ  as  penfoens  j  e  fe  a  limitação  dos  ordena- 
dos naõ  abrange  a  tanto ,  eflendeliahaó  lem  limite  os 
delbrdenados.  O  que  naõ  pode  pagar  a  gineta,  pa- 
galíoha  a  companhia:  o  que  naõ  pode  pagar  o  baílaõ, 

pagai- 


raf,  pagalloha  o  Brafil,  pagalloha  a  Africa  ,  pagallo- 
ía  a  índia.  E  para  que  poucos  ,  que  querem  mais  ao 
lue  podem  íejaó  fiageilos  ,  aíFolaçao  ,  e  rayos  aas 
Juatro  partes  do  mundo,  íe  lhe  dará  licença  por  el- 
-rito  ,  para  que  polFaó  quanto  quizerem. 
'  879  Lembrame  a  eíle  propofito  hum  apophthegma 
loquelle  famofo  legislador  dos  Gregos  Sólon  :  i-^u- 
Kus  erit  in  tyrajmidem ,  dimtantim  migrat  m  cor- 
ma.  Quer  dizer  a  primeira  parte,  que  do  luxo  naf- 
:era  a  tyrnnnia  ,  pçíUma  filha  de  máo  pay.  E  íegun- 
Joos  gemidos  doi  tyrannizados,  cujas  íeráôeftas  ty- 
-annias  ,  fenao  dos  que  eu  vou  fallando  ?  Todos  que- 
dem mais  do  que  podem ,  nenhum  fe  contenta  com  o 
leceíTario,  todos  alpiraô  ao  íbperíiuo,  e  iílo  he  o  que 
fe  chama  luxo.  Luxo  na  peíToa  ,  luxo  no  veílido ,  iu- 
ío  na  mefa ,  luxo  na  caía ,  luxo  no  eílrado  ,  luxo  nos 
filhos,  luxo  nos  criados,  e  criadas,  e  onde  naõ  baí- 
ta  o  próprio ,  claro  eílá,  que  ou  por  arte ,  ou  j3or  vio- 
lência fe  ha  de  roubar  o  alheyo  ,  que  eftas  faõ  mais, 
DU  menos  defcubertas  as  tyrannias  :  Liixus  erit  hi 
tyrannidem.  E  porque  naó  pareça  difficultofo^,  ou 
impróprio,  que  de  huma  caufa  taò  branda  ,^e  tao  ae- 
leitavcl ,  como  o  luxo,  nafça  hum  eíFeito  taó  duro  ,  e 
tao  cruel ,  como  a  tyrannia  ,  declara  a  primema  par- 
te da  fua  fentença  Sólon  com  a  comparação  da  fe- 
gunda  ,  que  verdadeiramente  he  fubtiliíTima  :  Dum 
fanum  migrat  in  cor  nua.  O  paílo,com  que  fe  regala, 
e  fe  engroíTa  o  touro  ,  naó  he  o  feno  brando  ,  e  para 
elle  ta5  faborofo ,  que  o  come  de  dia  ,  e  o  torna  a  re- 
comerde  noite?  Pois  eíle  feno  na  teílâ  do  niefmo 
bruto  he  o  que  fe  conv^crte  naquellas  duas  pontas 
durns  ,  fortes ,  e  agudas,  que  íaó  o  inítrumento  ,  e  as 
c   Tom.  II.  K  armas 


;li9!i; 


2^S     Vieira  abbreviado 

armas  de  toda  a  íua  fereza.  Lançayo  no  corro ,  e  ve- 
reis como  a  todos  remete  ,  a  to.los  atropelia  ,  a  huns 
bora  para  o  ar  ,  a  outros  piza  ,  a  outros  fere ,  ou  mj- 
ta  j  e  o  que  melhor  livrou  da  fua  fúria  ,  foy  deixando- 
Jhe  a  capa  oas  mefmas  pontas.  Se  o  luxo  he  o  feno, 
quonto  mais  fe  come  delle  ,  e  fe  gofta  ,  e  fe  rumia  , 
tanto  mayores  íerao  as  tyrannias,  e  mais  feros  os  él- 
tragos:  Dum  fienum  mígrat  in  comua.  Boa  mate-' 
ria  íe  me  oíFerecia  agora  para  faiiar  das  durezas  tao 
cruéis,  e  das  agudezas  taõ  fubtis  ,  e  das  armaçoens- 
tao  bem  armadas  deftas  armas  da  tyrannia.  Mas  o  di- 
to bafrará ,  para  que  fe  entenda  a  verdade  do  funda- 
mento ,  que  puz  ,  ou  fuppuz  ,  como  primeira  pedra 
defte  tao  importante  difcurfo.  Eque  a  caufa,  e  raiz 
detodososdamnos  particulares,  e públicos,  que  pa- 
decem as  famílias,  as  Communidades ,  e  os  Reynos, 
e  com  que  fe  eftá  indo  a  pique  o  mundo  ,  he  nao 
acabar  o  appetite ,  a  ambição  ,  e  a  cegueira  humana 
de  tomar  as  medidas  ao  que  pode ,  e  ajuftar  o  leu  que- 
rer  ao  feu  poder :  Si  vis ,  pot£S. 

Nuin.  Z68.  <^^o  Para  reduzirmos  á  pratica  efte  tao  neceíTario 
ajuílamento ,  a  prim.eira  diligencia ,  que  ha  de  fazer 
todo  o  homem  prudente  de  íi  para  conifigo  ,  e  fem 
paixaô ,  nem  amor  próprio  ,  he  medir  o  feu  poder  : 

Luc.i  4.18.  ^v/j  ex  vohis  volens  turrim  adi  fie  are ,  non  priys  je^ 
dens  comptitat  fumptus  ,  qtíi  necèjfarii  funt  ^Jiba- 
heat  adperficiendum  ? 

Num.  17  j .  881  Feito  aíli m  o  exame  do  poder,  e  feito,  como 
dizia ,  fem  paixão ,  nem  amor  próprio,  para  fer  bem 
feito  ,  feguefe  a  el-eiçaô  do  querer  ,  em  que  coníille 
todo  o  acerto,  e  pode  haver  m.uitos  erros.  Ou  eu 
poíFo  q.uerer  fomente  o  que  poílb  ,  ou  querer  mais 
do  que  poíTo;  ou  querer  menos  do  que  polFo.  E  co* 

«10 


Dijcurfo  LXXXIII.  259 

mo  neítes  três  modos  de  ajuílar  o  querer  com  o  po- 
der, ou  igualando,  ou  excedendo,  ou  diminuindo 
fe  pode  alterar  muito  a  devida  proporção,  vejanos 
pelamelma  ordem  qual  ít-ra  a  mais  acertada,  e  por 
iíFo  mefmo  a  mais  conveniente. 

882     Qiianto  á  primeira  de  querer  íómente  o  que  Num.  ^74. 
polio  ,  he  tao  excellente ,  e  adequada  cila  proporção, 
que  por  hum  modo  admirável  parece  fe  iguala  o  que- 
rer, e  poder  humano  com  a  vontade,  e  omnipotência 
divina. Qiial  he  aexcellencia,  e  íoberania  da  vontade, 
e omnipotência  divina.?  He  que  Deos  pode  quanio 
quer.   Pois  íe  Deos  pckic  quanto  quer  ,  e  eu  quero  íb 
quanto  poílo,  eíle  he  o  caio,  como  diz  Séneca  em  ou- 
tro ,  no  qual  pode  o  homem  competir  na  felicidade 
com  Deos.  Porque  fe  Deos  pôde  quanto  quer.eu  tam- 
bém polToquanto  quero, porque  fó  quero  quí^iuo  pof- 
fo.  Aííimonotoucom-fubtil,  e  bem  fundada  adver- 
tência o  douto ,  e  engenhofo  Auòcor  da  arte  da  von- 
tade. He  verdodc,  que  Deos  pode  fazer  mais  do  que 
quer;  mas  também  o  homem  pode  querer  mais  do  que 
pode:  e  a  proporção  do  querer  com  o  poder  tanto 
confirte  em  Deos  em  fe  medir  o  poder  divino  com  a 
vontade  divina ,  como  no  homem  em  íe  medir  a  vori- 
tadí:hjmana  com  o  poder  humano.  Daqui  fe  fcgue) 
qos  muito  poderofos ,  e  os  que  pouco  podem.,  todos 
íao  igunes  neíla  felicidade  ,  em  que  fe  fazem  tar  íe- 
melnantes  a  Deos.  Porque  fe  huns ,  e  outros  fe  con- 
formao ,  e  contentao  com  o  que  podem. ,  nem  o  mui- 
to de  huns  he  mais ,  nem  o  pouco  de  outros  he  menos; 
porque  todos  dentro  da  medida  do  feu  poder  tem  tu- 
do quanto  querem. Oh  que  ditoío,e  bem  ordenado  vi- 
v.ria  univerfalmente  o  mundo,  fe  todos  penetraf- 
fem  o  mtefioF  deite  ftgredo  ,  e  naÔ  traípaíliàíkm  o 

R2  feu 


2  6  o     Vieira  ahbreviaão 

feti  querer  além  das  rayas  do  íeu  poder  !  % 

Num.  27J.      883     Advirtaõ  porém  aqui  principalmente  os  po- 
derofos  ,  que  o  que  dizemos  do  poder ,  fó  fe  entende 
do  que  licita ,  e  jultamente  fe  pôde.  O  iilicito  ,  e  in- 
juílo  nunca  fe  pode  fazer,  ainda  que  fe  faça.  Mas 
he  tal  a  joòlancia  dos  poderofos,  e  mais  daquelles, 
que  cuidaó  ,  que  podem  tudo  ,  que  tem  por  afronta 
do  íeu  poder  cuidarfe ,  que  tem  limite  o  que  podem. 
Aílim  como  o  Juiz  naõ  pode  exceder  as  leys  do  Rey, 
aílim  o  Rey  naõ  pôde  exceder  as  da  razaó,  e  juíliça. 
A  EIRey  Creonte  diífe  Medea :  Sijudicas ,  cognofce: 
ftregnas  ^jube\  Se  obras  como  Juiz  toma  conheci- 
mento da  caufa  ,  mas  íe  obras  como  Rey  mandão 
que  quizeres.  A  íegunda  parte  defte  aforifmo  he  ti- 
rada dos  archivos  naô  íó  da  tyrannia  ,  mas  do  atheif- 
mo  :  e  naõ  fó  a  feguem  os  Reys,  fensó  também  os 
Juizes.  Pilatos  era  Juiz  com  vezes  de  Rey,  porque 
era  em  Judea  Locotenente  doCefar  :  e  vede  o  fober- 
biiTimo  conceito  ,  que  tinha  dos  feus  poderes.  Co- 
mo Chrifto  Senhor  noíFo  accufado  pelos  Judeos  naõ 
refpondeííe  a  huma  pergunta,  que  lhe  fizia  Pilatos, 
joan.  19.   diííelhe  aífim  :  Mihi  non  loqueris  }  A  mim  me  naó 
*°'  refpondes  ?  Nefcis  quiapoteftatem  habeo  crucifigere 

te^  à^potejiatem  habeo  dimittere  te }  Naõ  fabes  que 
tenho  poder  para  te  crucificar,  e  que  tenho  poder  pa- 
ra te  livrar }  Naõ ,  Pilatos:  naó  fabe  iílo  Chriílo.  EíTe 
homem,  q  teíis  em  pé  diante  de  ti ,  he  o  mais  fabio  de 
todos  os  homens,  e  juntamente  Deos  :  e  nem  como 
homem  ,  nem  como  Deos  fabe  o  que  dizes  ;  porque 
dizes  o  que  naõ  he  ,  nem  pode  fer.  Se  eífe  homem  he 
reo  ,  naõ  tens  poder  para  o  livrar ,  e  fe  he  innocente, 
Jiaõ  tens  poder  para  o  crucificar.  E porque?  Porque 
fe  he  reo,  naõ  o  podes  abíolver  da  culpa  ,  e  fe  naó 

tem 


DífcurfoLXXXIII.  2^r 

tem  culpa  ,  nao  lhe  podes  condemnar  a  innocencia. 
Mas  quantos   innocentes    vemos  conJemnados  ,    e 
quantos  culpados  abíolutos ,  tudo  pela  falia  ,  e  arro- 
gante oílenracaõ  dos  que  cuidaô  ,  que  podem  tudo  ! 
-  884     Ora  eu  vos  quero  conceder  o  que  nao  ten-Num.  t?^. 
dcs,  e  fuppondo  com.volco,  que  verdadeiramente 
podeis  ,  ouvi  agora  o  que  ignorais,  e  por  ventura 
nunca  ouviíles.  Cuidais  que  o  poder  todo  confiíle 
em  naohaver  coufa  alguma,  a  que  fe  naõ  eílenda  o 
voílo  poder;  e  he  eng>no  manueíto.  O  poder  todo 
conílfteem  poder  algumas  coufas,  e  nao  poder  ou- 
tras :  coníiíle  em  poder  o  licito  ,  c  juílo  ,  e  em^nao 
poderoillicito,  einjuílo:  e  fó  quem  pode,  e  nao  po- 
de defta  maneira,  he  todo  podei  ofo.Naô  he  para-  : 
doxo  meu  ,  fenaõ  verdade  de  fé  divinamente  Qxpli- 
cada  por  Santo  Agoftinho:  Qj/nm  mídtanonpoteji 
Deus ,  ér  omnipotens  eft  ?  Immoonvdipotens  efi,  qum 
ijla  mnpoteft.  E  a  razaó  he  ,  porque  o  Jer  todo  po~ 
derofò  coníifte  em  poder  humas  coufas ,  e  naõ  poder 
outras :  em  poder  todas  as  que  faó  1  idías ,  e  Juftas ,  e 
naõ  poder  nem  huma  fó  das  que  faõ  illicicss,  e  in- 

juftfls. 

88^  Qlie  dirdo  agora  a  iftoos  todo  poderofos  do  Num.  17». 
mundo  ?  Se  quereis  {'^x  omnipotentes ,  podei  íomen 
teojufto  ,  e  licito,  enaòqneirais  poder  o  iiiicito,  e 
injufto.  Se  aíTim  o  fizerdes  ,  lereis  omnipotentes  co- 
mo Deos ,  e  fe  nao  ,  feraó  os  voílbs  poderes  como  os 
do  diabo ,  que  pode,  e  faz  muitas  coufas^ique  Deos 
nao  pode.  Suppoílo  pois  ,  que  ^ó i<^  pode  o  que  lici- 
ta ,  e  juílamente  fe  pode,  quem  neíla  forma  ajuílar 
o  feu  querer  com  o  feu  poder,  poderá  quanto  qui- 
zer,  porque  ló  quererá  quanto  pode,  E  para  que 
acabeis  de  ver  quanto  tem  de  divina  elia  proporção 
Tom.  II.  a  3  ^^ 


262     Vieira  ahbreviado 

do  querer  njuílado  com  o  poder,  notai  por  íim  ,  que 
Deos  íó  pode  fazer  o  que  pode  querer  :  de  forte  , 
que  rd  póJe  obrar  a  fua  omnipotência  o  que  pode 
querer  a  íua  vontade.  E  íe  eíhis  faõ  as  medidas  do 
poder,  e  querer  immenfo,  poder  fó  o  que  quer;  por- 
que íenaô  contentará  a  iimitaçaohumanacom  que- 
rer íò  o  que  pode?  Querei  fó  o  que  podeis,  e  Tereis 
omnipoteutes.  Prorjus  om?iipotens  efl  ,  qui  facit 
quidquid  vult :  Verdadeiramente  lie  omnipotente 
C  conclue  Agoftinho  )  quem  pode  quanto  quer ;  com 
tal  condição  porém ,  que  fó  queira  o  bem  feito ,  e  naó 
queira  o  mal  feito ;  porque  neíle  querer,  e  naõ  que- 
rer coníifte  a  verdadeira  omnipotência. 

Num.zy?.  ^86  Atéquitemos  víílo  a  grande  conveniencig, 
e  excellencia  mais  que  humana  da  primeira  propor- 
ção do  querer  com  o  poder ,  que  he  querer  cada  hum 
íómente  o  que  poder  A  fegunda  he  dos  que  exce- 
dem efta  medida,  e querem  mais  do  que  podem, 
com  os  quaes  agora  fallaremos.  E  que  lhe  direi  eu  ? 
Digo  geralmente  fenhores,  (porque  os  fenhores  fa6 
os  que  mais  ordinartamente  Te  naó  querem  medir , 
ainda  que  feja  comfigo  meímos  )  que  para  defenga- 
nodeíledefejo,  e  emenda  defta  vaidade  baftava  fò 
a  coníideraçaó  do  erro ,  que  lhe  haõ  de  achar  no  h'm, 
c  fora  melhor  atalhar  no  princàpio.  Coníiderai,  que 
querendo  mais  do  que  podeis,  naõ  fó  deítruis  o  vof- 
ío  poder ,  fenao  também  o  vollb  querer.  Porque  íe 
eu  quero  mais  do  que  poíio  ,  claro  eílá,  que  hei  de 
perder  o  que  poílo,  e  naó  hei  de  confeguir  o  que 

Num.  28  r.  quero.  Pondevos  junto  ao  boíque  chamado  de 
Efraim  ,  e  alli  vereis  pendurado  de  hum  carvalho  pe* 
los  cabellos ,  e  traípaífado  pelo  peito  com  três  lanças 
o  mais  galhardo  n^áncebo  ,  que  para  inveja  da  for- 
'^  mofu- 


I 


Difcin^fo  LXXXIII.  2^5 

mofura  creou  a  natureza.  Tal  foy  o  trogico  fim  de 
Abfdlao  ,  o  qual  traidor  a  Deos  ,  ao  pny  ,  á  patna  ,  e 
aíi  mefmo  ,  lendo  terceiro  íilho  de  David  ihequiz 
tirar  a  coroa  da  cabeça  ,  e  pola  na  íua  ,  como  naó  de- 
vera, nem  podia.  Pondevos  nos  campos  de  Bíibylo- 
nia,  e  vereis  com  horror  andar  fobre  quatro  pés, 
pafcendo  feno ,  e  bebendo  do  rio  com  os  brutos  hum 
homem  convertido  na  mefma  figura,  o  qual  pouco 
antes  adorado  no  throno  Red  íe  chamava  Nabuco- 
donoíor.  Era  o  mais  poderoío  Monarcha  do  mundo; 
mas  porque  quizfer,  e  poder  mais  do  que  podia,  o 
fez  Deoscurfar  naquella  efcola  fete  annos  para  elle 
aprender  ,  e  nos  enfin^r  o  que  podem  vir  a  fer  os 
que  querem  mais  do  que  podem.        > 

887  Olhem  os  homens  para  as  outrss  creaturasNuin..i«4. 
fcm  ufode  razaõ,  enao  queimo  fer  ingratos^  efo- 
berbos  contra  Deos,  quando  todas  ellas,  grandes,  e 
pequenas  ,  o  louvaó,  e  lhe  dao  graças  peio  que  delle 
receberão.  Se  o  rato  naó  quer  fer  ieaõ  ,  nem  o  par- 
dal quer  fer  águia ,  nem  a  formiga  quer  fer  elefante, 
nem  a  ra  quer  fer  balea  ;  porque  fe  nao  contentará 
o  homem  com  a  medida  do  que  Deos  lhe  quiz  dar  ? 
Eque  leria,  fe  nem.  os  leoens ,  nem  as  águias ,  nem  os 
eici^intes  ,  nem  as  baleas-fe  contentafiem  com  a  fua 
grandeza  ,  e  huns  fe  quizeflem  comer  aos  outros  pa- 
ra poder  mais,  e  fer  mayores?  lílo  he  o  que  querem, 
e  fs«cm  continuamente  os  homens  ,  e  por  iílo  os  al- 
tos cahem,  os  grandes  rebentão,  e  todos  fe  perdem. 
Os  inftrumentos  ,  que  creou  a  natureza  ,  ou  fabricou 
a  arte  para  ferviço  do  homem  ,  todos  tem  certos 
tcrmosdeproporçaô,dentrodosquaesfe  podem  con- 

fervar ,  e  fora  dos  quaes  nao  podem. Com  a  carga  de- 
mariadacaheojumenio,  rebentão  canh.6  ,  evai-fe 

1\  4  o  na- 


ÍNuin 


31.8  8,. 


2^4     Vieira  abbreviado:^'\ 

o  navio  a  pique ,  por  iílo  fe  vem  tantas  quedas  ,  tan- 
•tos  defaílres,  e  tantos  naufrágios  no  mundo.  Se  a 
carga  íor  proporcionada  ao  calibre  da  peça  ,  ao  bo- 
jo do  navio,  e  á  força,  ou  fraqueza  do  animal ,  no 
marlaríeha  viagem  ,  na  terra  faríeha  caminho ,  e  na 
.Xerra,  e  no  mar  tudo  andará  concertado.  Mas  tudo 
le  defcojicerta ,  e  fe  perde  ,  porque  em  tudo  quer  a 

ambição  humana  exceder  a  esfera,  c  proporção  do 
poder.  r     r     3 

Num.  187.  888  Só  quem  quer  menos  do  que  pode  ,  he  fem- 
pre  poderofo  ,  porque  quem  quiz  quanto  podia  ,  en- 
cheoamedida  do  feu  poder,  e  naó  pckie  paílar  da- 
ni;  porém  quem  quer  menos  do  que  pode,  fempre 
pode  mais  do  que  quer. 

889     Daqui  fe  fcgue ,  que  o  rico ,  que  quer  írtaís 
do  que  pode  ,  he  pobre  ;  e  o  pobre  ,  que  quer  menos 
do  que  pode  ,  he  rico  :  o  rico  ,  que  quer  maisdoque 
pode  ,  he  pobre  ;  porque  lhe  falta  o  mais,  que  quer ; 
e  o  pobre,quequer  menos  do  que  pôde,  he  rico;  por- 
que lhe  íobeja  o  maisi,  quepóde.  Aílim  no  lo  enfmou 
a  mefma  natureza  ,  meílra  de  noíFas  acçoens ,  quan- 
do nos  provéo  dos  inftrumentos,  medindo  os  com  eir 
ias.   Porque  difpoz  a  natureza  ,'que  a  mao  foíJè  ihíí- 
yor  que  o  coração,  e  o  coração  hum  ,  e  as  m.aos  duas? 
Iorque  o  coração  he  o  iníliHimento  do  querer,  e  as 
maõs  do  poder:  no  cdraçao  eftá  a  deliberí^çaó  da  von.- 
tilde  ,  e  ms  maõs  a  execução  das  obras  ;  e  ordenou , 
que  a  rnaò  foííe  mayor  ,  qúe  o  corsçaõ',  e  o  coração 
iium,easma6sduas,  para  que  fempre  podeífemos 
mais  do  que  quizeíTemos  ,  e  nunca  queiramos  tanto, 
quanto  podemos.  Oh  íe  os  homens  entendeííemos  ef- 
ta  política  natural  ,  e  domcftica  ,  e  nos  perfuadiíle-  . 
mos  a  elia  ,  quão  defcanfada  feria  eíla  vida,  que  nós 
-^'^^  ^  pelo 


Dijcurfo  XXXXíy.  26^ 

pelo  deigoveriio  da  noíTa  vontade,  e  pelos  exceíFos 
das  nolTas  vontades  fazemos  taó  caníada,  e  traba- 
Ihofa ! 

D  I  S  C  U  Pv  S  O     LXXXIV. 

Tirado  de  hum  fermaó  de  S.Jojeph  ,  pregado  no  dia 
dos  annos  dElRey  D.  Joaó  IF, 


R  E  G  R  E  À  C,  A  M. 


890 


Omnr  hum  dia  de  monte  ,  tomar  huma  Part.  7. 
hora  de  recreação  no  meyo  dos  mayores^"'"- H^. 
cuidados ,  também  he  parte  de  Rev  :  Duciin  monta- 
napars  regni  eft  ^  dille  dsfcretamente  S.  Jeronymo. 
Defcanfar  para   caníar   mais   antes  he  ambição   de 
trabalho,  que  defeiodedeícanfo.  Qiiandoas  poten- 
cias da  ahna  eílaõ  tao  fatigadas  ,  juíto  he ,  que  íe  dê 
algum  alivio  aos  fentidos  do  corpo.  M<is  reparo  nas 
palavras  do  Santo :  Pars  regm  eji  \  /e  dilíera  S.  Jero- 
nymo ,  que  os  .moderados  paílatempos  faõ  privilé- 
gios das  iMageílades  :  fediííera,  que  faó  gages  do 
poder  fupremo,  que  iuô  divertimentos  licita  ,  e  ho- 
neftamente  foberanos  ,  bem  eílava  ;  masdizer,  que      -- 
faó  qualidades  de  Rey  ,  è  parte  de  reynar :  P/?r.rr^- 
gni  eft  ?  Sim.  Porque  o  principal  attributo  de  reynar 
he  attender  ao  cuidado  do  Reyno  ,  e  também  he  par- 
te de  attender  aos  cuidados  defcuidarfe  por  huma  ho- 
ra delles.  Poradigirir  o  negocio  he  neceílario  deí- 
afogar  o  animo:  parte  he  kgo  de  cuidado  o  diver- 
tirfe ,  quando  o  recrear  os  fentidos  vem  a  ier  habili- 
tar as  potencias.  O  demafiado  cuidado  em.baraça  a 
refoluçaõ  ,  e  o  moderado  deícanfo  reíolve-o  o  cui- 
dado. ^         ^^  j^j3_^ 


2  66     Vieira  abbreviado^\ 


í>  I  S  G  U  R  S  o    LXXXV. 

Tirado  de  dons  f ermo  em  da  quinta  Dominfra  da 

Huarefma  pregados  na  C^peíla  Real,  enaCa- 

thedralde  Lisboa, 

R  E  L  I  G  I  A  M. 


Joan.  8. 
4í. 


gou  contra  os  Efcnbas  ,  e  Farileos.  E  porque  íaó  as 
meímas  ,  parece ,  que  naô  lie  razão  fe  nos  preguem  a 
nos.  Ghriílo  n^ftas  palavras  queixavafe  dosjudeos, 
porque  o  naõ  criaó  :  Quare  mm  creditisfnihi  ^  E  naó 
leria  grande  impropriedade  ,  e  ainda  aííronta  da  nof. 
ia  fe ,  íe  em  hum  auditório  taõ  catliolico  fízeííe  eu  a 
meíma  queixa,  eaffirmaíTe,  ou  íuppozeílede  nós, 
que  lendo  Clinílaos^  naÕ  cremos  aGbfiílo  ?  Eík  foy 
o  meu  piNmeiro  reparo ,  e  me  pareceo  Conforme  a  eU 
Je,  que  as  palavras  do  Euangelho  ,  que  propiíz ,  fó 
as  rp.indava  referir  a  igreja  como  hiílorh  dò  tempo 
paílado ,  e  naõ  como  doutrina  necèílâria  aos  tempos, 
e  coftumes  prefentes. 
Num.i5<,      %2^  Dei  hum  paíFo  mais  avante  com  a  coníí- 
deraçaò ,  e  comecei  a  duvidar  diílo  mefmo.  Olhei 
para  a  té,  que  fe  ufa  :  olhei  para  a  vida,  e  obras,  que 
correípondem  á  meíma  fé  :  olhei  para  os  pequenos  , 
e  muito  mais  para  os  grandes:  olhei  para  os  leigos  ,  e 
também  para  os  Ecclefiaílicos,  cachei ,  eme  perfua- 
dl  com  grande  confufaò  minha,  que  tao  neceílaria 
ne  hoje  cila  pregação,  como  foy  no  tempo  de  Ghril* 

to.  £ 


l 


Difcurfo  XXXXF.  267 

to.  E  porque  ?  O  dia  he  de  verdades  :  hei  de  dizer  o 
porque  muito  claramente.  Forque  fe  os  Eícribas ,  e 
Fanjeos  n^o  criaõ  a  CKriílo,  lambem  os  Chrirtaõs, 
eCatholicos  naó  cremos  a  Chriílo.  Iramonos  mui- 
to, e  dizemos  grandes  injurias  contra  os  Judeos  da- 
quelle  tempo,  e  nós  fomos  como  elles.  Contra  elles 
pregou  Chriílo,  contra  nós  prega  o  Euangelho.  E 
fe  Chriílo  falia ra  daquelle  íacrano ,  aííim  como  en- 
tão diíFe  aos  Judeos :  Q^uare  nos  crediiis  mihi ,  afíim 
havíamos  de  ouvir  ,  que  nos  dizia  a  nós:  Chriílaós  , 
porque  me  naõ  credes  ?  Se  íbis ,  e  vos  chamais  Chrif- 
taôs  ,  porque  naó  credes  a  Chriílo  ? 

893  Pareceme  ,  fenhores,  que  vos  vejo  inquie- Nam.zíío; 
tos ,  e  ainda  indignados  contra  mim  por  eíia  propof- 
ta  ,  e  que  cada  hum  dentro  de  fi  naó  fó  me  eftá  ar- 
guindo, e  condemnando,  mas  cuida,  que  me  temi 
convencido.  Nós  (  dizeis  todos  )  por  graça  de  Deos 
fomos  Chriílaos,  e  o  Chriílo,  em  que  creinos  ,  e  por 
cuja  fé  daremos  a  vida  ,  he  o  meímo  Chriílo ,  qae  os 
Judeos  hoje  negarão.  Elles  cruciíicaraono  ,  nós  ado-c 
ramolo  :  elles  na ót  crerão  ,  que  era,  verdadeiro  Mcí- 
íias  ,  nós  cremos ,  que  he  verdadeiro  Deos,  e  verda- 
deirojiomem  ,  que  inc^irnou  ,  que  naíceo,  que  mor- 
reo,  que  refufcitou,  que  lalvou  ,  e  remio  o  rnundo. 
Logo  grande  injuria  he  a  que  faz  á  noífa  fé  ,  e  á  nof- 
fa  chriílandade  quem  diz,  que  fomos  como  os  Ju- 
deos em  naó  crer  a  Chriílo.  E  que  feria ,  fe  eu  diílef- 
fe,  que  nella  parte  ainda  fomos  pavores  ? 

894     Entendei  bem  o  que  diz  o  texto  de  Chriílo,  Num.  zír. 
e  logo  vereis  como  a  voíla  inílancia  nem  desfaz  a 
minha  propoíla ,  nem  he  argumento  contra  elia.  Di- 
zeis ,  que  fois  Chriílaós  ?  Aííim  he.  Dizeis ,  que  cre- 
des muito  verdadeiramente  em  Chriílo  ?  Também  o 

con- 


lUÍ 


ê 


2  ~'6S     Vieira  ahhreviado  ^ 

concedo.  Mas  Chrifto  naó  fe  queixa  denaò  crerem 
nclle:  querx.iíe  de  o  naò  crerem  a  elíe.  Notai  aspa- 
iavras.  ^^oá\z\  Qtummn  cr edi tis in  me}  Porque 
mo  credes  em  min)  l   O  que  diz  he :  Qiicire  mn  cre- 
ams^miht}  Porque  me  nnÔ  credes  a  mim?  Huma 
coufa  he  crer  em.Chriíto  ,  que  he  o  que  vós  provais, 
e  eu  vos  concedo:  outra  coufa  he  crer  a  Chriíio,  que 
ne  o  que  naô  podeis  provar ,  e  em  que  eu  vos  hei  de 
convencer.  De  ambos  eíles  termos  ufou   o  meAno- 
fonn.u.i.feenhor  muiias  vezes.  Aos  diícipulos :  Creditis  in 
joan.  w.   Denni^^  ^  .^  .^,^  credite.  A  Martha  :  Qui  credit  in 
jo.n.4  M.^;^^  )  etianifimortuiís  fuerit ,  vivet.  Por  outra  oarre 
joao.  .o.    a  Samaruana  :  MiiUer ,  crede miht ,  eaos  mefmisju- 
deos:  St  nnhi  non  -uultis  credere ,  operibus  credite: 
De  maneira ,  que  ha  crer  em  Chrifto  ,  e  crer  a  Chrif-- 
tov?e  huma  crença  he  muito  difíerente  da  outra. 
CreremChriílo  he  crer  oqii&eiiehe:.  crer  a.ChriP 
to  he  crer  o  que  elJediz:  crerem.Chriílo  he  crer 
nelle:  crer   a  Ghriílo  he  creílò  a  elie.  Os  Judeos 
nem^criaô.em  Ghriílo,  nerá  criao'  a  Chriíto.  Nao 
criao  em  Chrifro  ;  porque  na6  criaô  a  fua  divindade, 
e  nao  criao  a  Chriílo  ;  porque  nao  criao  a  fua  verda- 
de. K  neíhi  fegunda  parte  he  ,  que  a  iiolla  fé,  ou  a 
noíHi  incredulidade  fe  parece  com  a  \\.r^ ,  e  ainda  a  ex- 
cede mais  feyamente;  O  Judeo  nao  crê  em  Chrifto  , 
ner,T]  crê  a  Chriílo :  e  que  naõ  creya  a  Chrifto  quem 
riaí).;crêem  Chrifto  he  proceder  cohcrentemente.  Pe- 
jo contrario  nós  cremos  em  Chrifto,  e  nao  cremos 
a  Chrifto  ,  e  nao  crer  a  Chrifto  quem  crê  em  Chrif- 
to ,  nao  crer  a  fua  verdade  quem  crê  na  fua  divin-' 
dade  he  huma  contradição  taóaJheyade  todo  o  en- 
tendimento ,  qije  fò  fe  pcSde  preíumir  de  quemte- 
nha  perdido  o  ufo  da  raz.iò  j  e  por  líFo  o  mefmo  Se- 
nhor, 


m 


DifcurfoLXXXV.  269 

nhor  nos  pergunta  por  ella  :  Qjiare  ? 

895     Todos  os  que  aqui  eílamos  por  mercê  ^e^^um.Vp?. 
Deos  ,  fomos  homens ,  e  fomos  Chriílaõs  :  em  quan- 
to Chriílaós  fomos  obrigados  a  ter  fé  ^  e  em  quanto 
homens  íomos  obrigados  a  dar  a  razão.  E  fe  eu  te- 
nho razaó  para  crer  o  queChrifto  diz,  que  razão 
poílb  ter  para  naó  fazer  o  que  Chriílo  dizj  Se  tenho 
razaô  para  dar  a  vida  pela  fé,  que  razaõ  poíTo  ter 
para  naó  concordar  a  fé  com  a  vida  ?  Que  diz  Chrif- 
toaosjudeos?  Si  ver it atem  dico  iwbis  j  ouare  non 
credhis  7nihi}  Se  vos  digo  a  verdade  ,  porque  me 
naó  credes?  Qiie  diz  Chrifto  aosChriílaòs]  Se  cre- 
des a  verdade  ,  que  vos  digo  ,  porque  a  nao  obrais  ? 
Osjudeos  erraoem  naÓ  concordar  a  fua  Jé  coma 
fua  efperança :  os  Chriftaôs  erraó  em  naô  concor- 
dar a  fua  vida  com  a  fua  fé  :  e  qual  he  mayor  erro , 
e  mayor  cegueira  ?  Naõ  ha  duvida  ,  que  a  dos  Chrif- 
taós/ Porque  ?  Porque  a  fé  he  das  coufas  que  naó  fe  ' 

vem  :  Argumentutníion  apparentitim  ;  e  o  naó  crer 
pode  ter  alguma  defculpa  nos  olhos  :  porém  crer 
huma  couía  ,  e  obrar  a  contraria  nenhuma  defcul- 
pa pode  ter ,  nem  apparencia  de  razaó  ainda  falfa. 
Aqui  nos  aperta  a  nós  mais,  queaosjudeos  aquel- 
\^ Quare,  Òl^are}  Porque  razaó?  Day-acá. 

896  Dito  he  antigo,  e  como  verdadeiro ,  e  difere-  Num.  500; 
to  muito  celebrado  ,  que  na  Chriílandade  naÔ  havia 
de  haver  mais  ,  que  duas  prifoens ,  a  dos  cárceres  do 
fanto  Officio  ,  e  a  da  cafa  dos  Orates.  Porque  hum 
homem  ,  qualquer  que  feja  ,  ou  tem  fé  ,  ou  naó  tem 
fé:  fe  naó  tem  fé,  he  hereje  ,  e  pertence  aos  cárce- 
res do  fanto  Officio  :  fe  tem  fé ,  e  crê  que  ha  Deos  , 
Çeoj  e  Inferno,  e  com,  tudo  vive ,  como  fe  o  naó 
crera ,  he  rematadamente  doudo  ,  e  pertence  á  cafa 

dos 


Joan,  8. 
48. 


2  70     Vieira  ahhreviado 

dos  Orates.  OsJudeosdonoíTo  Eiiangelho  de  huma 
e  outra  cenfura  ,  e  de  huma ,  e  outra  pena  fe  moftra' 
rao  bem  merecedores,  Qiiamo  á  fé,  e  ^o  crecútis 
nao  ío  negarão  a  fe  de  Ghriílo  :  Non  creditis  mthii 
mas  a  íua    infidelidade  accreíc-entaraó  blasfémias: 
i\onne  bene  dtctmm  fios  ,  quta  Samaritanus  ejl  tu , 
&  djemomum  uabes  ?  De  forte,  que  no  mefmo  a(fto 
da  í-e,  e  no  meímo  cadafalfo  fe  peia  infidelidade 
mereciao  a  regueira  ,  pela  blasfémia  mereciaó  a  mor- 
daça. E  quanto  ao  juizo  ,  e  ao  ufo  da  razaÓ  :  Quare, 
i-l  V^^'^""^  T^  tom^r^^ô  pedras  para  atirlTem  a 
Joan.  j,.    Chriíto  :  Jmerunt  ergo  lapides  ,   ta  jacerent  m 
eum.   JNo  fagrado    do  templo  nem  as  pedras  eraó 
tao  miúdas  ,  nem  taô  foltas  ,  que  ss  podeíiem  tomar 
aiíirííoalhelogo,  quejá  ns  traziaõ  comfigo.  Vede 
femerectaõ  fer  levados  á  caía  dos  Orates  ,  pois  naó 
erao  doudos  ,  fe  naõ  doudos  de  pedras. 

897     PaíTemos  agora  de  Jeruíalem  á  Chriftanda- 
de  For  venturn  he  melhor  o  noílo  uío  da  razaó ,  que 
o  feu^//^r^  ?  He  melhor  a  noífa  fé,  que  o  feu  Iwn 
credms't  Naó  crer  he  ter  o  entendimento  ce^o  ,  e 
obíunado:  crer  huma  coufa  ,  e  obrar  outra  he  to- 
talmente nao  ter  entendimento  :  íe  nao  temos  en- 
tendimento, naó  fomos  homens:  íe  nao  temos  fé,  nao 
fomos  Chriílaós.  Qiíe  fomos  logo  ?  Terrivcl  coníe- 
quencia  huma  ,  e  outra!  Se  naó  fomos  homens,  quan- 
d^o  muito  íbmos  animaes :  fe  naÔ  íbmos  Chriííaõs ,  e 
Catholicos  ,  quando  menos  fomos  hereges.  Nao  me 
atrevera  a  dizer  tanto,  fenaÕ  tivera  experimentado 
ambas  eílas  confequencias  ,  e  viUo  ambas  com  os 
olhos.  Nefta  ultima  viagem  :  (  fejame  licita  a  narra* 
çnodocafo,  que  por  raro,  e  próprio  do  intento  he 
bem  notável.)  Neíta  ultima  viagem  minh^ ,  que  k^y 

das 


Num.  501. 


Difciirfo  LXXXV .  271 

das  Ilhas  a  Lisboa ,  em  que  aquella  traveíia  no  Inver* 
no  he  huma  das  mais  trabalhofas  ,  o  navio  era  de  he* 
regos,  e  hereges  o  Piloto,  e  marinheiros :  ospalía- 
geiros  éramos  alguns  Reiigiofos  de  dilierentes  Reli- 
gioens  ,  e  grande  quantidade  daquelles  muficos  ínfu- 
lanos  ,  que  com  os  noííus  rouxinoes  ,  e  pintacilgos 
vem  cá  a  fazer  o  coro  de  quatro  vozes ,  canários ,  e 
melros. 

898     As  tempeílades  foraõ  mais  ,  que  ordinárias ,  Num  501. 
mas  osefte!tos,que  neilas  notei,  verdadeiramente  ad- 
miráveis.  Os  Reiigiofos  todos  eftavamos  occupados 
em  or;:Çoens ,  e  ladainhas ,  em  fazer  votos  ao  Ceo ,  e 
exorciímos  ás  ondas  ,  em  iançar  reliquias  ao  mar  ,  e 
fobre  tudo  em  aélos  de  contrição ,  confeífandonos 
como  para  morrer  huma  ,  e  m.uitís  vezes.  Os  mari- 
nheiros ,  como  hereges  ,  com  as  machadinhas  ao  pé 
dos  martros  comiaó,  e  bebiiÓ  alegremente  mais  que 
nunca  ,  e  zomba vaó  das  noífas  ,  que  elles  chamavaõ 
ceremonias.  Os  pallarinhos  no  mefmo  tempo  com  o 
fonido ,  que  o  vento  fazia  nas  enxárcias,  como  fe 
aquellas  cordas  foraó  de  inílrumentos  muíicos  ,  deí- 
faziaõíe  em  cantar.  Oh  valhame  Deos  !  Se  o  traba- 
lho ,  e  o  temer  naô  ievaífe  toda  a  attençaó  ,  quem  fe 
naõ  admiraria  neíte  piíTodeeíFeitos  tao  vários,  e  tao 
encontrados ,  fendo  a  caufa  a  mefraa  ?  Todos  no  mef- 
mo navio  ,  todos  na  mefma  tempeílade,  todos  no 
mefmo  perigo ,  e  huns  a  cintar  ,  outros  a  zombar,  ou- 
tros a  orar,  e  chorar?  Sim.  Os  paíTarinhos  canta- 
vao  ,  porque  naó  tinhaô  entendimento,  os  hereges 
zombavaõ  ,  porque  naó  tinhaõ  fé ,  e  nós  ,  que  tinha- 
nios  fé ,  e  entendimento,  bradávamos  ao  Ceo,  batia- 
mos  nos  peiíos ,  chorávamos  noífos  peccados. 

899    lílo  he  o  que  eu  vi ,  e  paíTei ,  e  iílo  mefmo  Num.  503:2 

o  que 


272 


ira  úbbreviado 


pf.  103- 
26. 


o  que  nós  naõ  vemos,  eílando  no  mefmo ,  e  em  peyor, 
e  mayor,  e  mais  perigofo  eftado.  A  traveíTa  heda 
terra  para  o  Ceo ,  e  da  vida  mortal  para  n  eternidade, 
o  mar  he  q£íq  mundo  ,  os  navegantes  fomos  todos,  o 
navio  o  corpo  de  cada  hum ,  taô  fraco ,  e  de  taó  pou- 
ca refiílencia  por  todos  os  coitados,  ea  tempefíade: 
e  as  ondas  muito  mayores:  AJcendunt  ufque  ad  coe- 
los,  irdefcendimt  ufque  adahyj]os\  SaÔ  tao  grandes, 
ou  taô  immenfas  as  ondas,  diz  David,  que  humas 
íobem  até  o  Ceo  ,  e  outras  defcem  aos  abylmos.  Illo, 
que  nos  Poetas  he  hyperboJe,  no  Profeta  he  verdade 
pura,  e  certa  fem  encarecimento.  Se  quando  a  on- 
da vos  afoga  ,  eílais  em  graça,  poemvos  no  Ceo  : 
Afcendunt  ujqiie  ad  coehs :  íe  quando  vos  foçobra  , 
e  tolhe  arefpiraçao,  eftais  em  peccado,  metevos 
no  inferno :  Defcendunt  ufque  ad  abyffos.  E  que  no 
meyo  de  hum  perigo  mais  que  horrivej ,  e  tremendo, 
em  que  o  menos  ,  que  fe  perde  ,  he  a  vida  ,  huns  naõ 
temao,  e cantem ,  outros  zombem  ,  e  nao  façao  cafo, 
e  fejaÔ  tao  poucos  os  que  fecompunjaó,  e  tratem 
da  falvaçao?  Sim  outra  vez.  Porque  os  menos  faõ  os 
que  tem  entendimento :  os  de  mais  nem  tem  fé,  nem 
entendimento. 
Num.  J04.     900     Orajá  que  todos  imos  embarcados  qo  mef- 
mo navio  ,  perguntefe  cada  hum  a  fi  mefmo,  a  qual 
deílas  partes  pertence.  Sou  dos  que  cantão ,  fou  dos 
que  zombao,  ou  íou  dos  que  chorão }  Sou  dos  Chrií- 
taõs,  e  Catholicos,  ou  fou  dos  hereges }  Sou  dos  ho- 
mens com  ufo  da  razão,  ou  dos  irracionaes.^^  Qiie  as 
avefinhas  naõ  reconheçao  o  perigo  da  vida  ,  naó  al- 
cança mais  o  feu  inftinto :  que  os  hereges  naõ  temao 
a  eílreiteza  da  conta  ,  eíla  he  a  cegueira  da  fua  iníi- 
deiidade ;  mas  que  hum  homem  Chriílaó  no  meyo 

deftes 


m\ 


^ 


il 


Difcw^fo  LXXXV .  27^ 

deftes  dous  perigos  com  a  morte,  e  a  conta  diante 
dos  olhos,  nefte  meímo  tempo  efteja  cantando  íiq 
fom  dos  ventos  ,  e  zombando  ao  balanço  das  ondíis! 
Chriftaô ,  aonde  cftá  a  tua  fé  ?  Homem,  aonde  eftá  o 
teu  entendimento  ?  Se  tens  uíb  de  razaõ,  dá  cá  a  ra- 
zão:  Quare ,  quare  ? 

901  He  taõ  difficultoía ,  e  tao  impoíTivel  efta  ra- 
zão, que  nenhum  homem  ha  ,  nem  houve,  nem  ha- 
verá,  que  por  mais  voltas ,  que  dê  20  entendimento, 
a  poíía  dar  ,  naô  digo  verdadeira ,  e  folida ,  mas  nem 
ainda  falfa ,  e  apparente.  Se  coníultardes  os  bons ,  e 
osjuftos,  que  caminhão  pela  eftrada  real  da  verda- 
de, e  da  virtude  ,  todos  haô  de  dizer,  e  dizem  conf- 
tantemente,  que  a  vida  fe  ha  de  concordar  com  a  fé: 
e  fe  fizerdes  a  mcfma  pergunta  aos  mãos  ,  e  aos  pef- 
íimos ,  que  feguem  os  caminhos  do  erro ,  e  os  prece- 
picios  da  infidelidade,  até  eftes,  fenaó  refponde-  . 
rem ,  que  a  vida  le  ha  de  conformar  com  a  fé ,  ao  me- 
nos haó  de  dizer,  que  a  fé  fe  ha  de  corformar  com  a 
vida.  Ouvi  agora  huma  notável  ponderação  ,  e  tao 
certa,  como  admirável.  Sendo  a  féhumafó  fé,  aífim 
como  Deos  he  hum  íò  Deos  :  Unus  Deus ,  ttnafides^  Epiief.4. 5; 
qual  he  o  fundamento,  ou  motivos  porque  os  ho- 
mens fe  dividirão  em  tantas  feitas  ?  Naó  ha  duvida , 

que  fe  lhe  cavarmos  ao  pé  ,  e  lhe  bufcatmos  as  raí- 
zes, acharemos,  que  todas  íe  femearaó  nos  vícios,  e 
delles  brotarão,  e  nafceraõ. 

902  Primeiro  fe  depravarão  as  vontades,  ede-Num.  40Ê. 
pois  íe  perverterão  os  entendimentos.  Epicuro  era 
deliciofo^  Mafoma  era  torpe,  Luthero,  e  Calvino 

erao  relaxados  da  fua  profilíao  ,  e  depois  depravados 
em  tudo.  Vinde  cá,  mãos  homens,  íede  embora  mãos, 
eviciofes,  vivei  embora,  ou  na  má  hora  ávoífavon-  , 
Tom.  II.  S  tade, 


m 


174  -  V  leiraaõi 

tade  ,  largai  a  rédea  a  voíTos  appetites  ;  mas  naó  fa- 
çais ,  nem  inventeis  novas  feitas.  Epicuro  íeja  quaô 
deliciofo  quizer  ,  mas  naÔ  negue  a  Deos  o  attributo 
da  juíliça ,  para  que  os  homens  tenhaõ  por  bemaven- 
turança  as  delicias.  Mafoma  feja  taÔ  torpe ,  e  taô 
abominável,  como  foy ;  mas  naô  faça  também  torpe 
o  Ceo,  para  que  os  homens  efperem  na  bemaventu- 
rança as  torpezas.  Luthero  ,  e  Calvino  vivaó  taó  vi- 
eiofa,  e depravadamente,  como  viverão;  mas  naô  en- 
finem ,  que  o  Tangue  de  Chrifto  nos  ha  de  falvar  fem 
Cooperação  noíía  ,  para  que  os  homens  creaô ,  que 
pode  haver  falvaçaõ  ,  e  bemaventurança  fem  obras. 
Pois  fe  eíles  homens  podiaó  fartar  a  bruteza  dos  feus 
appetites  fem  aggravo ,  nem  mudança  da  fé ;  porque 
a  mudarão  taô  cegamente,  e formarão  feitas  taô  bar- 
baras, e  taô  novas? 

Num,  507.  P03  Aqui  vereis  como  naô  ha  entendimento  taô 
depravado  ,  e  taô  cego ,  nem  erro  taõ  irracional ,  e 
taô  atrevido ,  que  ditaíle ,  ou  admittifle  já  «lais ,  que 
a  vida  naô  havia  de  concordar  com  a  fé.  Avidajdi* 
ziaô  todos,  neceflariamente  ha  de  concordar  coma 
fé ;  nós  naô  queremos  mudar  a  vida ,  fenaô  continuar 
em  noífos  vicios,  que  faremos  logo  ?  Naô  temos  ou- 
tro meyo,  fenaô  trocar  os  mefmos  extremos ,  e  mu- 
dar á  fé  ;  porque  defta  maneira  ,  já  que  a  vida  naõ 
concorda  com  a  fé,  ao  menos  a  fé  concordará  com 
ávida.  Naô  queremos  fazer  vida  nova.-*  Pois  faça- 
mos fé  ílova  :  e  aíFim  o  fizeraô.  Aífim  o  fez  na  genti- 
lidade Epicuro ,  aflim  o  fez  no  paganifmo  Mafoma , 
affim  o  fizeraô  na  Chriílandade  Luthero,  e  Calvino, 
€  fe  tornarmos  aoadro  da  fédosjudeos,  aífim  o  ti- 
Híhaôellesjá  feito  muito  antes  de  todos. 

2um.  511      ^04    Acabamos  de  dizer*,  qu€  os Judeos também 

fegui- 


ii 


Difiurfo  LXXXV.  275 

fegiiiraó,  ou  nnticiparaó  os  paíTos  dos  gentios,  cios 
pagãos,  e  dos  hereges  em  trocar,  e  mudar  a  fé  par» 
a  concordar  com  a  vida.  Agora  laibamos/eosChnl- 
taõs  procedem  mais  coherentemente.  e  coníorme  a 
Tazaõ  ,  e  fe  refpondem  melhor  áquelle  Qíit^re.  Os 
outros  mudaÔ  a  fé  ,  os  ChriftaÕs  iiaó  a  mudao  :  a  ^e 
dos  outros  mudada  he  falfa,  a  fé  dosChnftaos  con- 
fervada  he  verdadeira  ;  mas  fe  olharmos  para  as  vi- 
das ,  as  dos  outros  concordaô  com  a  fua  ré  ,  as  de 
muitos  Chriílaos  naó  concordaô  cora  a  fua.  Quaes 
vivem  logo,  e  procedem  mais  coherentemente,  e 
mais  conformes  com  a  razão?  Nao  ha  duvida,  ( mife- 
ria  ,  e  vergonha  grande  !  )  que  mais  contorrae  á  ra- 
zão procede  o  gentio,  mais  conforme  á  razão  o  pa- 
gão ,  mais  coní-orme  á  razaô  o  herege ,  e  mais  confor- 
me á  razaô  o  Judeo  ,  que  faô  todas  as  quatro  efpecies 
da  infiddídade.  E  porque  ?  Porque  todos  eOes  fe- 
guem  com  a  vida  o  que  crem  com  a  f é  ,  e  o  mao 
Chriílaõ  com  a  fé  crê  huma  coufa ,  e  cora  ávida  fe- 

-gue  outra. 

905     Cbriílaos  (  os  que  naô  obramos  o  que  deve-  Nuhi.  5 14. 
mos  )  a  quem  feguimos  :  Ufquequo  claiulicatts  in    ^^  ^^ 
duas  partes^.  Será  bem  que  tenhamos  hum  pé  em  ^;^  '^' 
Romii  adorando  a  Chriílo  ,  outro  em  Conftantino- 
pla  guardando  o  Alcorão  ?  Hum  em  Roma  beijando 
o  pé  a  S.  Pedro ,  outro  em  Jerufalem  beijando  a  maô 
a  Herodes  ?  Hum  em  Roma  rezaado  a  Santa  Maria 
Mayor ,  outro  em  Chipre  ofFerecendo  facrifícios  á 
deofa  Vénus  ?  Hum  em  Roma  vifitando  as  fete  Igre- 
jas, outro  em  Londres,  ou  Am fterdao  profanando 
os  altares ,  e  perdendo  a  reverencia  ás  ifinagersfagra- 
das  ?  Ifto  faz  o  Tureo  ,  o  Judeo  ,  o  gentio  ,  o  here- 
ge ,  e  cada  hum  conform^e  a  fua  fé  :  e  íendo  a  noíTa 

S  a  taô 


Num. 


5M 


27^     Vieira  ahhreviado  "^ 

taõ  contraria,  fera  bem ,  que  em  nós  Chriílaos,  e  Ca- 
tholicos  íe  ache  o  mefmo  ?  Se  naÕ  concordar  a  vida 
com  a  fé,  he  hum  diclame  taÔ  bárbaro,  e  taÕ  irra- 
cional, que  naÕcabç  no  entendimento  de  Luthero 
que  nao  cabe  no  entendimento  de  Epicuro  ,  que  naó 
cabe  no  entendimento  de  Mafoma  :  e  como  cabe  no 
noílo entendimento?  Pôr  a  bemventurança  nas  de- 
licias, como  Epicuro,  he  fer  gentio,  palie:  pôr  a 
bemaventurança  nas  torpezas,  como  Mafoma,  he  fer 
i  urco,  feja :  efperar  a  bemaventurança  íem  obras, 
como  Luthero ,  e  Cal vino ,  he  fer  hereje ,  vá  na  má 
hora.  Mas  fer  ChriftaÓ  na  fé  ,  e  a  vida  fer  de  Epicu- 
ro :  fer  GhriílaÔ  na  fé ,  e  a  vida  fer  de  Mafoma  :  fer 
Chriftao ,  e  Gatholico  na  fé ,  e  a  vida  fer  de  Luthe- 
ro^, e  de  Calvmo ,  em  que  entendimento  pode  caber 
tao  rematada  loucura  ?  Ha  quem  reíponda ,  ha  quem 
de  razão  ,  ha  quem  diga  o  qiiare  ? 
.     90Ó    Eu  em  toda  a  Efcritura  fagrada  fó  acho  hum 
homem  ,  que  fatisfizeífeá  minha  pergunta,  e  refpon- 
ceíTe  a  propofito.  E  que  homem  fera  efte  ?  Chrif- 
taó  ?  NaÒ  Judeo  ?  Naõ.  Gentio  ?  Nao.  Turco  ?  NaÕ. 
Hereje  ?  Naõ.  Pois  que  caUa  de  homem  fera ,  ou  po- 
de fer  o  que  fó  refpondeo  a  propoíito  ao  noíFo  q^a- 
re?  Hum  Atheo.  Todos  elfoutros  ou  fieis,  ou  in- 
fiéis conhecem  a  Deos;  fó  o  Atheo  o  naó  conhece , 
e  íó  eíle  pôde  dar  a  verdadeira  razaõ  do  que  per- 
guntamos. ElKey  Faraó  tinha  cativo  o  povo  de  If- 
rael  npEgypto,  e  com  o  mais  duro,  e  intolerável 
cativeiro  ,  que  fe  pôde  imaginar.  Naõ  lhe  pagava  o 
trabalho,  antes  lho  accrefcentava  cada  dia,  para  que 
naõ  tiveíTem  hora  de  defcanío  :  punhalhe  por  mi- 
niftros,  que  fuperintendefiem  ás  obras,  em  que  íer 
viaô,  os  de  condição,  afpera,  e  cruel  para  que  mais  os 

oppri» 


I 

l 


ii 


Difciirfo  LXXXV .  277 

òpprimiílem  :  nao  lhes  dava  de  comer,  com  que  íuf- 
tcntar  a  miíeravel  vida  ,  e  até  os  filhos  lhes  matnvá 
cautelofamente,  fem  que  os  podeíFcn^  cfconder,  nem 
livrar  :  em  fim  o  íummo  da  lyrannia.  Neíle  eftado  de 
tanto  aperto,  em  que  le  nao  ouvia  mais  que  clanuj- 
res  ao  Ceo ,  chegou  Moy  fés  ao  Egy  pto ,  e  notificou 
a  Faraó  da  parte  de  Deos ,  que  déllé  liberdade  ao  íeu 
povo  para  lhe  ir  fijcrificar  no  deíerto :  H^c  íiicit  Do-  Exod.  5.  i-: 
7HÍ1WS  Deus  lirael :  Dimhte  popuhmi  meum ,  m  fch  i- 
crificet  núhi  in  deferto.  E  que  vos  parece  ,  que  ref- 
ponderia  Faraó  ?  Oiiis  cfl  Dominus^  tit  audiam  vo- 
rí-Wé-y/yj?  Que  Deos,  e  que  ^enho^heeí^e,  para  que 
o  eu  obede»,'a  ?  Nejcio  Dumlniim  ^  C^  Ifraelmn  di- 
núttanr.  Nao  conheço  tal  Deos,  nem  tal  Senhor,  nem 
hei  dediir  tal  liberdade  ao  povo.  Oh  bárbaro/  Oh 
rebelde !  Oh  infolente  ,  e  brutal  tyranno ! 

907  lllo  he  o  que  eíiaó  dizendo  todos ;  mas  eu  NutK.  jif. 
nao  digo  allim.  Digo  ,  que  refpondeo  Faraó  muito 
coherente ,  e  difcretamente.  Como  bárbaro  fim  ;  mas 
como  bárbaro  bem  entendido  :  como  defobediente 
lím  ;  mas  como  defobediente  racional.  Naõ  conheço 
a  Deos ,  e  naÔ  hei  de  libertar  o  feu  povo  ?  Ruim  fé ; 
mas  boa  coníequencia.  Na  fé  fallou  como  bruto  ,  na 
confcquencia  refpondeo  como  homem.  NaÔ  obede- 
cer a  Deos ,  e  dar  por  razaÕ,  nao  o  conheço ,  bem  íe 
fegue.  Mas  conhecer  a  Deos  ,  e  naÕ  querer  fazer  o 
que  manda  Deos,  he  confequencia ,  e  razão ,  que  nao 
cabe  em  nenhum  entendimento.  Oh  quantos  Faraós 
mais  bárbaros,  oh  quantos  Atheos  mais  irracionaes 
ha  na  Chriílandade  !  Opprimir  os  povos  ,  cativar  os 
jivres  ,  gemei eii  os  pobres  ,  ttiunfarem  os  podero- 
íos,  naõ  fe  dar  de  comer  a  quem  trabalha  ,  nao  fe  pa,- 
gar  a  quem  ferve  ,  tiraremfe  as  vidas  aos  innocentes, 

Tom.  II.  S3  evi- 


l!"í!!!' 


278     Vieira  ahbreviado  % 

e  viverem  os  qire  as  tiraô,  naó  íó  do  feii  fuor ,  fenao 
do  feii  fangue  ,  e  dar  por  ra-^ao  de  tudo  iílo  :  Nefcio 
Dominiwi :  Nao  conheço  a  Deos ,  he  obrar  mal ,  mas 
fallar  coherentemente.  Porém  opprimir,  cativar, 
deílruir,  roubar ,  aíTolar  ,  aíFiontar,  matar,  tyranni- 
zar ,  e  lobre  iíto  dizer  conheço  a  Deos ,  fobre  lílo  di- 
zer íou  Chriílao  ,  fobre  ifto  dizer  tenho  fé,  naó  ha 
juízo  humano  ,  nem  entendimento  racional ,  em  que 
caiba  tal  couía.  E  fenaó  dai  cá  a  razaó ,  Quare  ^ 
quare  ? 
Kum.  513.  908  Affim  como  nao  ha  coufa  mais  coherente  , 
nem  confequencia  mais  pofta  em  razaô,  que  feguir 
hum  homem  com  a  vida  aquiilo  ,  que  adora,  e  crc 
çom  a  fé  ,  aííim  naó  ha  ,  nem  pode  haver  didame 
mais  irracional ,  e  mais  contrario  a  toda  a  razaõ,  que 
crer  huma  coufa  com  a  fé ,  e  íeguir  outra  com  a  vi- 
•  da.  Moílre  agora  cada  hum  de  nós  a  fua  fé ,  e  feja  ti- 
da por  verdadeira  fé  a  que  moftrar  que  o  he.  A  de- 
monftraçaô  da  fé ,  que  he  interior  ,  e  inviíivel,  pare- 
ce difficuitofa,  e  impoífivel ,  e  naó  he  fenaõ  muito 
fácil.  A  fé  he  cega  ,  mas  aííim  como  o  cego  me  naó 
vê  a  mi^m,  e  eu  o  vejo  a  elle,  aífim  a  fé  naó  vê,  mas  vê- 
fe :  naó  vê  ,  porque  naó  vê  os  feus  objedos ,  mas  vê- 
fe^  porque  fe  vê  nos  feus  efFeitos.  Os  feus  eíFeitos 
faó  as  obras  conformes  a  ella  :  pelas  obras  fe  vê  ma- 
nifeftamente,  e  fem  obras  como  fe  pôde  ver } 

909  Diz  Santiago ,  que  a  fé  íem  obras  he  inorta : 
Fides  Jine  operibiis  mortua  ejl  in  femet  ipfa.  Aííim 
como  o  corpo  fem  alma  he  morto,  aíTim  a  fé  fem 
obras  he  morta.  Com  tudo  ainda  que  hum  homem, 
nao  faça ,  nem  tenha  obra  alguma  boa,  dirá :  Eu  creyo 
tudo  o  que  crê  a  fanta  Madre  Igreja  :  logo  a  minha  fé 
he  a  meíma,  que  a  do  mayor  Santo .?  Aííim  he.  A  mef- 

ma. 


Nuin.  515. 


Num.  jij. 
Jacob.  X. 
17.  18. 


DifcurJoL%XXV.  279 

ma ,  mas  morta :  Mortua  infemet  ipfa.  No  Santo  he 
viva,  porque  he  com  obras,  e  em  \òs,  porque  care- 
ce de  obnís,  he  morta. 

010  Olhe  agora  cada  hum  para  as  luas  mãos  ,  e  Num.sjt. 
veíá  qual  he  a  lua  té.  Eu  taparei  os  ouvidos  ao  que 
fediz,elódireioquerevêcomosoihos,  e  feapon- 
ta  com  o  dedo.  Como  eílamos  na  Corte,  onde  das 
cafas  dos  pequenos  naÕ  íe  faz  cafo,  nem  tem  nome 
de  cafas  ,  buíquemoseíla  fé  em  alguma  caía  granue, 
e  dos  grandes,  Deosmeguie.    -;.-'- 

911  Oefcidodefti  portada  em  hum  quartel  tejn  Num.  jjj» 
as  quinas ,  em  outro  as  lizes ,  em  outro  águias ,  ieoes, 
ecaftellos,  fem  duvida  efte  deve  ler  o  palácio,  em 
que  mora  a  fé  Chrifta  ,  Catholica  ,  c  Ghriítianiíiima. 
Entremos,  e vamos  examinando  o  que  virmos  parte 
por  parte.  Prmieiro ,  que  tudo  ,  vejo  cavallos  ,  litei- 
ras e  coches :  vejo  criados  de  diverfos  calibres,  huns 
com  libré,  outros  fem  ella  :  vejo  galas,  vejo joyas  , 
V€Jo  baixellas  :  as  paredes  vejo-as  cobertas  dè  ncos 
tapizes :  das  janelas  vejo  ao  perto  jardins  ,  e  ao  lon- 
ge quintas ,  em  fim  vejo  todo  o  palácio  ,  e  também  o 

oratório,  m.s  mo  vejo  a  fé.  E  porque  naÓ  apparece 
a  fé  neíla  cafa  ?  Eu  o  direi  ao  dono  delia.  Se  os  vol- 
fos  cavallos  comem  á  cufta  do  lavrador ,  e  os  íreyos, 
que  maftigaô  ,  as  ferraduras  ,  que  pizao,  e  as  rodas  , 
e  coche ,  que  arraftao ,  faô  dos  pobres  ofíiciaes  ,  que 
andao  arraílados  fem  poder  cobrar  hum  real  ;  como 
fehadeverafé  na  voíTa  cavalheriça?  Seoquevef- 
tem  os  lacavos  ,  e  os  pagens  ,  e  os  foccorros  do  ou- 
tro exercito' mafculino  ,  e  feminino  depende  das  me- 
fadas  do  mercador,  que  vos  aííifte  ,  e  no  principio 
do  anno  lhe  pagais  com  eíperanças ,  e  no  fim  com  de- 
lefperaçoens  a  riíco  de  quebrar ,  como  fe  ha  de  ver 
afé  navoírafamiliaH  S4  912  Se 


28o     Vieira  abbreviado 

Num.  554.     912    Se  as  galas ,  as  joyas,  e  as  baixellas  ou  no 
Key no ,  ou  fora  delle  foraô  adquiridas  com  tanta  in- 
juíliça,  e  crueldade,  que  o  ouro,  ea  prata  derreti- 
<ios,  e  as  fedas,fe  fe  eípremeraõjhaviaó  de  verter  fan- 
gue  ^  como  fe  ha  de  ver  a  fé  neífa  falfa  riqueza  ?  Se 
as  voíTas  paredes  eílaô  veílidas  de  preciofas  tapeça- 
rias, e  os  mj/eraveis,  a  quem  defpiftes  para  as  velti^  a 
ellas  ,  eftao  nus ,  e  morrendo  de  frio  ;  como  le  ha  de 
ver  a  fe  nem  pintada  nas  voíTas  paredes?  Se  a  ori- 
mavera  ella  rindo  nos  jardins,  e  nas  quintas,  eas 
fontes  eítao  nos  olhos  da  triíle  viuva  ,  eorfaós     a 
quem  nem  por  obrigação  ,  nem  por  eímola  íatisfa- 
zeis  ,  ou  agradeceis  o  que  feus  pays  vos  ferviraô  • 
como  fe  ha  de  ver  a  fé  neífas  flores ,  e  alamedas  ?  Se 
as  pedras  da  mefma  cafa ,  em  que  viveis,  defde  os  te- 
Ihados  ate  os  alicerfes  eílaô  chovendo  o  fuor  dos  jor- 
naleiros, a  quem  nao  fazeis  feria  ,  e  fe  queriaó  ir  buf- 
çar  a  vida  a  outra  parte,os  prendieis,  eobriíraveis  oor 

vofla  ca^faT  ^^^  ^'  "^^  '^'  '  ^^'  "^'"  ^'"''^''  "^^^^^  "^ 

Num.s35.  915  Maspaííemos  dopulpito  ao confeífionario. 
.^e  o  Conf eííor ,  quando  com  toda  efta  carga  vos  pon^ 
des  a  íeus  pes ,  puxa  pelo  çuare  do  noíTo  texto ,  e  vos 
pergunta  a  razaõ,  porque  naõ  reftituis  devendo  tan- 
to j  a  repoíla  ,  e  a  Theologia  ,  que  trazeis  muito  ef- 
tudada ,  he,  que  íem  embargo  das  dividas  deveis  fuf- 
tentar  a  voífa  cafa  com  a  decência ,  que  pede  o  voífo 
eítado ,  e  que  as  rendas  naó  daô  para  tanto.  Bem  E 
os  pays,  de  quem  herdaíles  eííb  mefmo  eftado,  eeraÕ 
tao  honrados  como  vós,  naõ  fuílentavaô  a  honra  ,  e 
a  decência  delk  com  menos  pompa  ,  com  menos 
cnados,  com  menos  librés,  com  menos  galas  ,  cora 
menos  regalos  ?  Mais.  E  o  que  gaftais  por  outra  via, 

naô 


r)/>/r>LXXXV.  28i 

naó  com  a  decência ,  fenaó  com  as  indecencias  da  ca- 
fa,  edapeíToa?  (hiare^  Que  reípondeis  a  iílo?  A 
mayor  galantaria  he  ,  que  ao  outro  dia  depois  da  con- 
liiraó,  e  deita  efcufa  ouve  o  mefmo  Confeíror  íem 
íigillo,  que  aquella  noite  perdeftes  dous  mil  cruza- 
dos, eque  pela  manha  os  mandaíles  emdobroens, 
aquém  os  ganhou  ;  porque  he  contra  a  pontualidade 
da  fidalguia  nao  pagar  logo  o  dinheiro  do  jogo.  Af- 
fim  jogais  com  os  homens,  e  aflim  com  Deos,  e  eí- 
ta  he  a  volTa  fé. 

914     Dirmeha  porém  em  contrario  a  noíTa  Cor- Num.5j(f; 
te,  que  fe  em  algumas  cafas  particulares  eítá  a  fé 
taõ  morta  ,  e  taõ  corrupta  ,  que  nas  cafas  de  Deos 
eftá  mais  viva  ,  e  mais  inteira ,  que  em  nenhuma  par- 
te do  mundo.  Aífim  fe  vê ,  e  demoílra  em  todos  os 
templos  de  Lisboa  ,  a  qual  muito  á  boca  cheya  po- 
de dizer  ao  mefmo  mundo  :  Ego  ojiendamtihi  ex -^^^^^^-^ 
operibíís  fidern  meam.  Eu  tenho  vifto  a  mayor  parte  1^. 
da  Chriftandade  da  Europa ,  e  em  nenhuma,  entran- 
do também  neíla  conta  a  mefma  Roma  ,  eílá  o  cul- 
to divino  exterior  taõ  fubido  de  ponto  ,  e  cada  dia 
mais.  Seria  laftima  grande  ver  aqui  desfazer,  e  ar- 
ruinar nos  mefmos  templos  as  fabricas  antigas  de 
tanta  formoíura ,  e  preço  ,  fe  depois  fenaó  viffem  as 
jmefmas  ruinas  gloriofamente  refufcitadas  com  tan- 
to mayores  riquezas  da  matéria  ,  e  tanto  mayores 
primores  da  arte.  Em  nenhuma  parte  do  mundo  he 
tanta  a  cubica  de  adquirir,  como  em  Lisboa  a  ambi- 
ção de  gaitar  por  Deos.  Que  Igreja  há  neíta  m.ulti- 
daô  de  tantas  em  hum  dia  de  feita ,  que  fe  naõ  pare- 
ça com  (a  que  vio  defcer  do  Ceo  S.  Joaõ  :  Tamquam  Apocal.iii, 
Jpoiífam  ornatam  virofuo  ?  O  ouro  ,  e  os  brocados,  *•• 
de  que  fe  veitem  as  paredes  ,  íaó  o  objedo  vulgar 

dâ 


2S2     Vieira  ahbreviado 

da  vifta  :  a  armonia  dos  coros  fufpeníao  ,  e  eleva- 
ção dos  ouvidos:  o  âmbar,  eoalmircar,  easoutras 
eipecies  aromáticas  ,  que  vaporaó  nas  caçoulas  ,  até 
peias  ruas  recendem  muito  ao  ionge  ,  e  convocaô 
peio  olfato  o  concurfo.  He  ifto  terra  ,  ou  Ceo  ?  Ceo 
ne,  mas  com  muita  miílura  de  terra.  Porque  no 
rpeyo  deíle  culto  celeftial  exterior  ,  e  fenfivel  o  def- 
fazem  ,  e  contradizem  também  fenfivelmente  naÔ  fó 
as  muitas  offenfas ,  que  fora  dos  templos  fe  commet- 
tem  ,  mas  ns  publicas  irreverências ,  com  que  dentro 
nelles  fe  perde  o  reípeito  á  fé ',  e  ao  mefmo  Deos. 
Qiieres  que  te  diga,  Lisboa  minha,  fem  lifonja  huma 
verdade  muito  fincera  ,  e  que  té defcubra  hum  enga- 
no ,  dequea  tua  piedade  muito  fe  gloria  ?  Eíla  tua 
fe  taô  liberal ,  taô  rica,  taõ  enfeitiçada  ,  e  taõ  cheí- 
rofa  nao  he  fé  viva.  Pois  que  he?  He  fé  morta,  mas 
embalfamada. 
Num.5ií;.     915     Sou  tao  amigo,  ereverenciador  da  razno, 
que  até  as  fombras  delia  ouço  de  boa  vontade.  Po- 
dem inílar  os  Chriflaos  ,  que  naõ  guardao  a  ley  de 
Chriífo,  eargumentar  porfi  neftafórma  :  He  verda- 
de ,  que  os  infiéis  de  todo  o  género ,  e  ainda  os  mef- 
mos  Atheos  parece  ,  que  procedem  mais  coherente- 
mente^,  e  mais  conforme  árazaô;  porque  elles  con- 
cordaô  a  fua  fé  com  a  fua  vida  ,  e  nós  nao  concorda- 
mos a  nomi  vida  com  a  noíla  fé  ;  mas  neíla  mefma 
difrerença  ha  outra  muito  mayor  ,  e  melhor,  que  faz 
pela  noílli  parte.  E  qual  he  }  He  que  nelíes  a  fé  he 
niá,  e  a  vida  também  má;  porém  em  nós,  ainda  que  a 
vida  feja  má,  a  fé  he  boa  :  logo  ao  menos  em  ame- 
tade  dos  procedimentos  faô  melhores  os  noílos ,  quô 
os  íeus?  Alíim  parece,  mas  naò  heaílim.  Porque.? 
Porque  aonde  a  vida  he  má,  naò  pode  a  fé  fer  boa. 

Texto 


■■■ 


»Ê^ 


Dijcurfo  LXKXY .  285 

Texto  expreíTo  de  S.  Joaó :  Qfíí  dicitfe  nojfe  Deiini,  jcaa.  ^.  4. 
^  mandata  ejiis  non  ciijlodít^  mendax  ejt ,  &  in  hoc 
"jerítas  non  eJt :  Qiiem  diz,  que  conhece  íi  Deos  ,  e 
naô  guarda  íeus  mandamentos,mente.  E  porque  men- 
te, fe  o  que  crê  he  verdade? 

916     Admirável ,  e  fubtiliíEmamente  fe  explicou  Num. 510, 
o  mefmo  S.  Joaó  :  Mendax  ejl ,  é^'  in  hoc  veritas  non 
efl  :  Mente  ,  e  a  verdade  naõ  eítá  nelle.  No  taUaío 
a  verdade  eftá  nos  myfterios ,  que  crê  ,  mas  naó  eílá 
no  que  crê  os  myílerios.  Notai.  Huma  couía  he  a 
verdade  da  fé  em  fi ,  a  qual  propriamente  fe  chama 
fé ,  outra  he  a  verdade  da  fé  em  nós ,  a  qual  propria- 
mente íe  chama  crença.  A  fé  em  fi  fempre  he  ver- 
dadeira ,  a  crença  em  nós  pôde  fer  verdadeira ,  e  po- 
de íer  falfa :  fe  concorda  com  a  vida  ,  he  verdadeira, 
porque  obramos  conforme  cremos :  fenaÔ  concorda 
com  a  vida,  he  falfa,  e  mentirofa,  porque  cremos  hu- 
ma coufa ,  e  obramos  outra.  Por  iíFo  o  que  naõ  guar- 
da os  mandamentos  ,  ainda  que  crea  ,  e  coníelfe  tu- 
do o  que  enfma  a  fé ,  mente  ,  e  nao  eftá  nelle  a  ver- 
dade:   (Jui  mandata  ejus  non  cujlodh  mendax  eflj 
^  in  hoc  veritas  non  efl.  Sc  oChriftaó ,  e  Catholico 
cuida  ,  que  a  íua  fé  he  melhor,  que  a  dos  infiéis,  fo- 
mente porque  crê  o  que  enfma  o  Credo,  enganafe, 
e  mentefe  a  fi  mefmo.  Naó  bafta  fó  crer  no  Credo  , 
heneceífario  crer  nos  Mandamentos.  A  noíTa  fé  pá- Part.  j; 
ra  no  Credo  ,  nao  pafla  aos  Mandamentos.  Se  Deos  ^"'"-  ^^ 
nos  diz ,  que  he  hum ,  creyo :  fe  nos  diz ,  que  faó  três 
peífoas ,  creyo :  fe  nos  diz ,  que  he  Creador  do  Ceo  ,' 
e  da  terra,  creyo:  fenos  diz,  que  fe  fez  homem  ,quej 
nosremio,  e  que  ha  de  vir  a  julgar  vivos,  e  mortos,! 
creyo.  Mas  fe  diz,  que  naó  jureis,  que  naó  mateis  , 
que  naõ  adultereis,  que  naõ  furteis,  naó  cremos. 


T 


iiiii 


Patt.  II 


AdTic.  I, 
16. 


284     Vieira  ahhreviado 

Efta  he  a  noíTa  fé,  eíla  a  voíTa  Chrift.ndade.  Somos 
Cathohcos  do  Credo  ,  e  hereges  dos  Mandamentos. 

Na:n.-    J^^     ^^'^  ^^^^  >  ^  boa  fé  ,  torno  a  dizer,  lie  menti- 

-•  5^3. ra.  E  porque  outra  vez  ?  Porque  o  que  profeíFa  a  fé, 

nega  o  a  vida:  o  que  diz  o  fom  das  palavras,  nega-o  a 

diíTonanciadasobras.  Vede  como  concorda  S   Pau- 

!^^''''?^'  ••-íf '  Vi"""'  'i^ayoresTheoIogos  da  efco- 

tem  negam  :  Com  as  vozes  confeíTaÔ  a  fé  de  Deos    e 
,  com  as  obras  ncgaõ  ao  mefmo  Deos ,  e  a  mefma  fé  ,' 

que  confeíko.  Dizeime:  He  boa  a  fé  dos  Chriílaos 
que  a  negao  em  Argel  ?  Pois  fabei ,  que  para  fer  re- 
iiegadosnao  he  neceíTario  ir  lá  cativos.  Ouvi  aS 
Salviano  Bifpo  de  Marfelha  ,  que  eftá  defronte  do 
nieímo  Argel  :  Cbrtfliani  ftne  operibus  bonis  nthil 
Míperjideifupercihimiufiirpare  dehent    Notefe 
muito  ofideifnperciliiim.  Por  huma  parte  naÓ  fó 
vazios  de  obras  boas  ,  fenao  cheyos ,  e  carregados  de 
obras  mas  :  e  por  outra  com  as  íobrancelhas^levanta- 
das,  mujto  prezados  ,  e  prefumidos  de  ChriftaÕs  , 
lií  arpando  ,  e  roubando  o  nome ,  que  lhes  naõ  he  de- 
.  Vido.  l  or  huma  parte  com  a  voz  ,  e  com  os  penfa- 

mentos  blafonando ,  que  navegao  na  barca  de  Pedro 
e  por  outra  com  ambos  os  braços  remando  nas  galés 
deMafoma  He  boa  fé  eíla?  He  melhor,  que  a  dos 
nieímos  Turcos?  NaÔ  faltará  quem  replique,  Qá\- 
Píl^^a^/'!!'  ^  '^^'^  omeímo  exemplo.  Porque  os 
Cnriítaos  forçados  ,  que  remaó  nas  galés  de  Mafo- 
ma  debaixo  das  bandeiras  Turquefcas,  nem  poriílb 
perdem  a  fé  de  Chrifto.  -i  '         F        " 

Nam  5M.  piS  Agradeço  a  agudeza  da  replica ;  mas  vamos 
navegando  pelo  Mediterrâneo  acima.  Aporta  a  mef- 
ma gale  ao  porto  de  Chipre,  falta  Mulei  Hamet  no 

meyo 


m 


\ 


D/>/r>LXXXV.  285 

meyodacoxia,derembainha  a  cimitarra,  edizalíim: 
Comeíla  a  todo  oChriftaõ,  que  nnó  adorar,  aquel- 
Ja  imagem  de  Vénus,  hei  de  cortar  a  cabeça.  E  que 
(uccederá  nefte  caio  ?  O  Chriftaõ ,  que  naõ  quiz  ado- 
rar, perdeo  a  cabeça,  e  Hcou  maityr,  o  que  adorou, 
coníervou  a  vida  ,  e  ficou  renegado.  Agora  pergun- 
to :  E  íe  aquelle  Chriílao  ,  que  por  força  ,  e  contra 
fua  vontade  adorou  a  Vénus  em  huma  eftatua  de 
mármore,  he  renegado  ,  que  diremos  daquelles  ,  que 
naó  por  força  ,  fenao  muito  por  fua  vontade ,  e  por 
feu  gofto  adoraõ  a  mefma  Vénus,  naó  em  huma  eíla- 
tua  de  mármore  ,  fenaó  em  outras,  que  naó  faô  de 
pedra?  Se  aquelle,  que  dantes  era  Chriílao,  e  de- 
pois negou  a  fé  ,  he  renegado :  o  que  no  meí  mo  tem- 
po confelfa  a  fé ,  e  a  nega ,  que  fera  ?  Deíles  he  que 
falia  S.  Paulo :  Confitentur  fe  no[/e  Deum^faâíis  au- 
tem  negant;  No  mefmo  tempo  confeíTaÔ  a  Deos  ,  e 
no  mefmo  tempo  o  negaó  :  e  fé  juntamente  confef- 
fada ,  e  negada ,  que  fé  he  ?  Peyor  que  a  do  Turco; 
porque  o  Turco  naó  nega  o  que  coníeíla  ;  o  Chrif- 
taõ nega  o  que  confeíía  com  manifeíla  contradição. 
Aííim  o  definio  com  authoridade  Pontifical  S.  Gre- 
gório Papa:  ty/y?//^?//  operibus  tenet  ^fimoribusíion 
contradícit.  Confeílar  a  fé  coni^taó  manitefta  con- 
tradição naó  fó  he  crer  em  Deos  com  fé  falfa;  mas 
he  crer  em  Deos  á  falfa  fé  ,  com  fé  mentirofa  ,  com 
fé  renegada  ,  com  fé  traidora.  E  ninguém  fe  admire 
de  eu  chamar  a  efta  fé  dos  que  fe  chamaõ  Chriíla6s, 
peyor  que  a  do  Turco ;  porque  o  meímo  S.  Paulo  ef- 
tranhando  muito  menores  defeitos  de  boas  obras , 
naó  duvidou  dizer  ,  que  fó  pela  omiífaó  delias  era 
peyor  o  Chriílao,  que  o  infiel :  Et  ejt  infideli  de-  jj^^^-í'- 
t^rior. 

919  E 


2  8  6     Vieira  ahhreviado 


Part.  t.         919     E  porque  nos  nao  lifonjeemos  com  a  fé  de 
Num.  ^M.Chf  lítaos ,  e  Gatholicos ,  que  nos  diftingue  dosgen- 
tios ,  e  dos  hereges  ,  quero  acabar  eíhs  verdades 
com  huma  verdade,  em  que  naô  cuidamos  os  Portu- 
guezes  ,  e  nos  devera  dar  a  todos  grande  cuidado 
ÍMamonos  muito    em  que  cremos  firmemente  em 
Chnílo  como  fieis  Gatholicos?  Pois  eu  vos  digo  da 
parte  do  meímo  Chriílo,  e  vos  defengano,  quefe 
faltarmos  á  íegunda  parte  da  fé ,  também  nos  faltará 
a  primeira  :  e  que  fe  naÔ  crermos  a  Chrifto ,  eílamos 
muito  arnfcados  a  nao  crer  em  Chrifto.  Inglaterra 
Hollanda ,  Dinamarca ,  Suécia  ,  e  tantas  outras  Pro- 
víncias, e  naçoens  da  Europa  ,  ou  totalmente  per- 
didas ,  ou  inficionadas  da  herella ,  também  foraô  Ca- 
thohcas  como  nós  ,  também  ílorecerao  na  fé,  tam- 
bém deraô  muitos ,  e  grandes  Santos  á  Igreja.  Epor^ 
que  cuidais  ,  que  apoílatáraó  da  mcfmalgreja ,  e  da 
verdadeira  fé ,  que  fó  ella  enfina  ?  Diga-o  a  fua  dou- 
trina, eos  ícus  Meftres.  Luthero,  e  Calvino,  eos  ou- 
tros, queelles  levarão  apoz  feuserros.tambem  criaõ 
em  Chriílo ;  mas  porque  nao  crerão  a  Chriílo ,  já  naó 
crêm  nelle.  ImpugnaÔ ,  e  negaô  o  Euangelho ,  por- 
íjuenao  crerão  ao  Euangelho.  Deraófe  íbltamente 
aos  vícios  ,  e  peccados  ;  e  porque  os  nao  quizeraõ 
iconfeíTar,  negarão  o  Sacramento  da  Confiíraõ,  hirga- 
rao  a  rédea  á  torpeza ,  e  fenfualidade ;  e  porque  naõ 
<]uizeraõ  guardar  continência  ,  negarão  a  caílidade , 
entregaraõfe  dsdemafias,  e  intemperanças  da  gula; 
e  porque  naõ  quizeraõ  fer  íobrios  ,  negarão  o  jejum, 
e  a  penitencia,  feguiraô  em  tudo  a  largueza,  e  li- 
berdade da  vida  ;  e porque  naõ  quizeraõ  obrar  bem, 
negarão  o  valor ,  e  nec^ílidade  das  bnas  obras.  Em 
fim  deixada  a  ley  de  Deos  como  fieis ,  e  a  da  razaõ 

como 


Difcurfo  LXXXV .  287 

:omo  homens ,  Hzerao  outra  ,  que  elles  chainaõ  re- 
ligião ,  na  qual  ió  fe  crê  o  interelle ,  e  le  obedece  ao 
appetire.  Vede  que  fé  fe  podia  coníervar  entte  cof- 
tumes  de  brutos?  Gonfervaraõ  o  Bauíifmo,  é  noiTie 
de  Chriílaós  ;  mas  verdadeiramente  faó  Atheos  ;  e 
porque  naõ  crerão  a  Chriílo,  paílaraô  a  naô  crer  em 
Chrifto.  Eftas  faó  as  diípofiçoens,  por  onde  íe  intro- 
duzio  ,  e  fe  ateou  em  tantos  Reynos  a  pefte  da  here- 
fia :  e  praza  a  Deos ,  que  do  Setentriaõ  naó  paíTe 
também  ao  Occidente  !  Ainda  cá  naó  chegou  ,  mas 
á  eftá  em  caminho ,  e  fegundo  os  vicios  lhe  tem 
aberto  as  eítradas ,  naó  fera  difficultofa  a  paflagem. 

DISCURSO    LXXXVI. 

Tirado  dehíimjermaô  deS.  Pedro  Nolafco  pregado 

Jobre  as  palavras :  Ecce  nos  reliquimus  omnia  ,  & 

fecuti  fumus  te  :  quid  ergo  erit  nobis  ?  E  dasob- 

jeçoens ,  que  contrajimefmo  põem  o  AuSior  no 

fermao  da  protecção  de  S.  Francifco  Xavier  y 

a  quem  devem  imitar  os  Monarchas. 


''!''»' 


920 


RELIGIOSOS. 

EStas  duas  claululas  de  S.  Pedro:  deixar ,  e  Part.  ±:  ^ 
feguir ,  faõ  os  dous  poios  da  virtude ,  íaó  ^"'"'  ^°^* 
o  corpo,  e  a  alma  da  fantidade,  faó  as  duaspartes,  de 
que  fe  compõem  toda  a  perfeição  Euangelica.  A  pri- 
meira deixar  tudo  :  Ecce  nos  reliquimus  omnia,  A  fe- 
gunda  feguir  a  Chrifto  :  Et  fecuti  fumus  te.  Se  lan- 
çarmos com  advertência  os  olhos  por  todo  o  mundo, 
acharemos  nelle  quatro  differenças  de  homens,  em 
que  eíte  deixar ,  e  feguir  do  Euangelho  eftá  varia- 
mente 


2  8  S     Vieira  ahhreviadó 


r-i 


mente  complicado.  Ha  huns ,  que  nem  deixao ,  nem 
feguem:  ha  outros,  que  deixao,  masnaô  feguem  : 
outros,  que  feguem,  mas  naô  deixao  :  outros,  que 
deixaó,e  juntamente  feguem.  Naó  deixar,  nem  fe- 
guirhemiíeria:  deixar,  e  naófeguir  he  fraqueza: 
íeguir,  e  naó  deixar  he  deíengano:  deixar,  e  íe- 
guir  he  perfeição.  Em  nenhum  deftes  quatro  predi- 
camentos entraó  os  homens  do  mundo,  ainda  que  fe- 
jaó  Chriftaôs ;  porque  nenhum  delles  profeííh  dei- 
xar, efeguir.  A  fua  profíflaô  he  obedecer  aos  pre- 
ceitos ,  mas  naô  feguir  os  confelhos  de  Chrifto.  Os 
que  fomente  profelfaõ deixar ,  e  feguir,  fomos  todos 
os  que  temos  nome  de  Reiigiofos.  E  para  que  cada 
hum  conheça  em  que  predicamento  deites  eílá  ,  e  a 
qual  pertence,  fe  ao  damiferia,  fe  ao  da  fraqueza, 
fe  ao  do  defengano ,  fe  ao  da  perfeição  ,  fera  bem  , 
que  declaremos  eftes  nomes,  e  que  definamos  eftas 
differenças  ,  e  que  faibamos  quem  faô  eftes  mifera- 
veis,  quem  fao  eíl  es  fracos,  quem  faõ  eíles  defenga- 
nados ,  e  quem  faõ  eftes  perfeitos  ,  e  fantos. 
Num.  xoy     92 1  Os  miferavcis ,  que  naô  deixao ,  nem  feguem, 
faô  os  que  fe  metem  a  Religiolos ,  como  a  qualquer 
outroofficio,  para  viver.  Fica  no  mundo  hum  moço 
fem  pay ,  mal  herdado  da  fortuna  ,  e  menos  da  natu- 
reza, fem  valor  para  feguir  as  armas,  fem  engenho 
para  curíar  as  letras ,  fem  talento ,  nem  induftria  pa- 
ra grangear  a  vida  por  outro  exercicio  honefto ;  que 
faz }  Entrafe  em  huma  Religião  das  menos  aufteras, 
vefte ,  come ,  canta ,  converfa ,  naô  o  penhoraô  pela 
decima  ,  nem  o  prendem  para  a  fronteira  ,  naô  tem 
coiíía,  que  lhe  dê  cuidado,  nem  elleotoma  :  emfím 
he  hum  Reiigioío  de  muito  boa  vida ,  naô  porque  a 
faz,  nus  porque  a  leva.  Eíletal  nem  deixa ,  nem  fe- 

gue. 


vW 


Difcurfo  LXXXVL  285» 

gue.  Naó  deixa,  porque  naó  tinha  que  deixar:  naó 
fegue,  porque  naó  veyo  feguir  a  ChriUo,  veyo 

viver, 

022  Os  fracos  ,  que  deixao ,  e  nao  feguem  ,  lao 
os  que  traz  á  Religião  o  nojo ,  o  defar ,  a  defgraça  , 
e  naó  a  vocação.  Succedelhe  a  hum  homem  nobre  ^ 
e  briofo  lahir  mal  de  hum  defafio  ,  fnzeremlhe  huma 
aíFronta  ,  que  naó  pode  vingar  ,  negarlhe  ElRey  o 
defpacho ,  e  o  agrado ,  naó  levar  a  beca ,  ou  a  cadei- 
ra, ou  o  pofto  militar ,  a  que  fe  oppoz,  ou  levarihe  o 
competidor  o  caíamento,em  que  tinha  empenhado  o 
tempo ,  o  credito ,  e  o  amor :  enfadado  da  vida ,  e  in- 
dignado da  fortuna  entrega  a  fua  cafa  a  hum  irmaó 
fegundo^  metefe  em  huma  Religião  de  repente  ; 
mas  leva  comfigo  o  mundo  á  Religião  ,  porque  olha 
para  elle  com  dor  ,  e  naó  com  arrependimento.  Efte 
deixa,  mas  naó  fegue.  Deixa  porque  deixou  o  patri- 
mónio ,  e  a  fazenda :  naó  íegue  ,  porque  mais  o  trou- 
xe ,  e  tem  na  Religião  a  afronta ,  que  recebeo  no 
mundo ,  que  o  zelo ,  ou  defejo  de  leguir ,  e  fervir  a 

Chrifto. 

923  Os  defenganados,  que  feguem,  mas  naó  dei- 
xao ,  íaó  os  mal  pagos  dos  homens ,  que  o  verdadei- 
ro defengano  traz  a  Deos.  Viíles  o  foldado  vetera- 
no ,  que  feitas  muitas  proezas  na  guerra  fe  acha  ao 
cabo  da  vida  carregado  de  annos,  de  ferviços  ,  e  de 
feridas  íem  premio  :  e  defenganado  de  quaõ  ingra- 
to ,  e  mao  íenhor  he  o  mundo,  querendo  íervira 
quem  melhor  lhe  pague,  e  meter  algum  tempo  entre 
ávida,  e  a  morte,  troca  o  collete  pelo  fayal,  otali 
pelo  cordaó,  e  a  gola  pelo  capello  em  huma  Religião 
penitente  ,  e  naó  tendo  outro  inimigo  mais  que  a  íi 
meimo,  contra  elle  peleja,  a  elle  vence,  edelle  tri- 

Tom.  II.  T  unfa. 


^ 


Foi.  481, 


2^0.  ^Víeira  abbreviado    ■. 

linfa.  Efte  he  o  que  naó  deixa  ,  mas  fegue.  Naõ  dei- 
xa 5  porque  naô  tinha  que  deixar  mais  que  os  p^ipeis , 
que  queimou  ,  que  íempre  foraÕ  cinza  :  e  fegue ,  por- 
que já  naó  conhece  outra  caixa  ,  nem  outra  bandei- 
ra ,  íenao  a  voz  de  Chriílo  ,  e  a  fua  Cruz. 

924  Finalmente  os  perfeitos,  e  fantos,  que  dei- 
xaõ  ,  e juntamente  íeguem  ,  faô  os  que  chamados ,  e 
fubidos  pela  graça  divina  ao  cume  mais  alto  da  per- 
feição euangeiica  ,  imitaô  gloriofamente  a  S.  Pedro, 
e  aos  outros  Apoftolos  ,  os  quacs  tudo,  o  que  ti- 
nhaó,  e  tudo,  o  que  podiaó  ter,deixaraó,  e  renuncia*- 
rap  por  Chriílo,  e  em  tudo,  oque  obrarão,  e  enfina^ 
raó,  íizeraó,  e  padecerão  ,íeguira6,  e  imitarão  a 
Chriílo.  EporiíFo  S.  Pedro  em  nome  de  todos ,  e 
todos  por  boca  de  S.  Pedro  dizem  hoje  com  tanta 
confiança,  como  verdade:  Ecce  nos  reli  quimus 
omnia ,  (Ip^fecutifumus  te. 

925  Ser  religiofo,  e  fanto  aííim  como  para  a 
innocencia  da  menor  idade  he  o  meyo  mais  próprio, 
e  natural ,  aífim  para  a  idade  proveja  dos  Reys,  e 
malicia  do  mundo ,  que  elles  governào ,  naÔ  fó  pare- 
ce o  menos  eíiicaz ,  íenaó  ainda  o  mais  contrario.  Ar- 
íenio  foy  Meílre  do  Imperador  Arcádio  ,  e  Caííio- 
doro  d'ElRey  Theodorico,  ambos  porém  antes  de 
ferem  o  primeiro  Anacoreta  ,  e  o  fegundo  Monge. 
E  fe  S.  Raymundo  de  Penhaforte  fendo  Religioíb, 
acompanhou  a  ElRey  D.Jayme  a  Malhorca  defen- 
ganado  do  pouco,  que  valiao  com  elle  ícus  bons 
confelhos ,  negandolhe  embarcação  a  fez  de  feu  pró- 
prio manto  ,  e  navegou  fobre  ella  a  Catalunha  obe- 
decendo o  mar  ,  e  os  ventos  a  quem  naõ  pode  fujei- 
tar  hum  Rey  Chriílaõ  dominado  de  feus  appetites. 

92Ó     As  virtudes  religiofas  faó  muito  diverfas 

das 


i 


Ét 


Dijcurfo  LXXXYI.  291 

das  reaes ,  e  o  que  he  em  hum  Religiofo  a  mayor  vir- 
tude,  íeriaem  hum  Rey  o  mayor  vicio.  Ve-íe  clero 
na  obediência  ,  que  lendo  no  Religioío  o  fundarr  en- 
to,  e  elTencia  da  fua  profiiTao  ,  no  Rey  ,  ^omo  uiz  o 
Rev  Profeta,  feria  o  mayor  de  todos  os  del?Ctos 
dcixaríe  dominar,  e  obedecer  a  algum  ,  quando  de- 
ve mandar  a  todos:  Sh??eí  no7iJiiennt  domuiait, 
ttmc  iimuactilaíus  ero  :  &-  emuJidahor  à  dehão  má- 
ximo. Do  Religiofo  pódefe  eíperar  ,  que  faça  bmn 
hum  homem  ;  mas  fazendo  hum  homem  bom  ,  pode 
fizer  hum  Rey  mao;  porque  a  bondade,  que  faz  bom 
a  hum,  he  particular,  e  a  do  Rey  ha  de  Ter  univer- 
fal  para  todos.'  Os"  mcftres  íaÓ  os  eípelhos  dãquelles, 
a  quem  enfinao ,  e  como  feráo  neftes  efpelhos  os  re- 
flexos reacs,  moftrando  á  purpura  o  fayal ,  á  opa  a 
cogula  ,  e  o  capello  á  coroa  ?  A  tórma  ,  que  fc  ha  de  ^ 

introduzir ,  faz  femelhante  a  íi  a  matéria :  e  como  fe- 
ria D.  Afonfo  Henriques  taó  grande  Rey,  fe  nnó  foíle 
Egas  Moniz  ,  em  tudo  o  mais  leigo ,  taô  grande  ayo  ? 
C^ie  efpiritos  foberanos  ,  e  reaes  pode  influir  hum 
profeílor  de  tao  differente  eftado  ,  ainda  que  feja  de 
gr^inde  efpitito?  Enfinará  o  Rey  a  orar,  e  quando 
íaya  grande  rezador  ,  para  encaminhar  o  feu  Rey  no 
lerá  cego  David  ,  que  fez  o  Pfaiterio,  dizia,  que 
nas  fuás  Matinas  meditava  em  Deos  :  In  matutinis  pí".  6u  7. 
ineditabor  inte.  iVlas  os  pontos  da  meditação  nas 
nieímas  Matinas  eraõ  nrrancir  da  terra  todos  os 
niaos  :  ///  matutino  interficieham  oiJtnes  peccatores  pí.  101.  s. 
terr£.  Inclinaíloha  como  virtuoío,  aque  prefira  os 
virtuofos  ,  e  com  ifto  ,  íem  querer ,  o  meterá  nos  en- 
ganos Tantos  da  hypocreíia  ,  agradandolhe  mais  hum 
hypocrita  mal  veílido,  que  hum  CapitaÔ  bem  arma- 
do. O  cavallo  Troyano  fov  recebido  em  prociífuo 

T  2  dentro 


25^2     Vieira  ahbreviado 

dentro  dos  muros  como  voto  dos  Gregos  á  deofa 
Pailas,  e  debaixo  defta  eípecie  de  religião  ievava 
dentro  o  incêndio,  com  que  ardeo  1  roya.  Como  ar- 
bitro da  coníciencia  fajjoha  muito  eícrupulofo , 
mas  por  iíTo  irrefoJuto,  perdendo  em  coníultas  o 
tempo  ,  que  fe  havia  de  empregar  nas  execuçoens/, 
como  bem  eftranhou  Tácito  no  Imperador  Valente  ; 
ComeUib. ///////•//  cunaatíone  agendi  têmpora  confultando 
^'  ''  confumpfit.  E  ifto  acontece  aonde  falta  a  refoluçao, 
qoebufcandofe  o  impoíTivel  demeyos,  que  naó  ti- 
nhaó  inconveniente,  tudo  fe  teme,  e  nenhuma  coufa 
fe  faz. 

927  Deixo  os  damnos,  naó  do  habito  rei  igio- 
fo^,  fenaÔ  dos  hábitos ,  que  fe  podem  pegar  ao  Rey; 
taõalheyos  da  obrigação,  como  da  Mageílade.  Pe- 
lo defejo  da  paz  a  defattençaó  das  armas  ,  e  da  guer- 
ra ,  pelo  efcrupulo  da  vangloria  o  eíquecimentoda 
fama,  pelo  amor,  e  nome  da  piedade  o  perdão  na 
tolerância  dos  delidos,  em  fim  pelo  penfamento  úni- 
co do  Ceo  perder  a  terra ,  e  fer  como  o  Mathemati- 
co  de  Séneca  ,  que  naó  vendo  onde  punha  os  pés , 
porque  levava  os  olhos  nas  eftrellas ,  cahio  na  cova. 
Taes  eftatuas  faõ,como  dizêos  politicos,  ( t  eftatuas 
fomente)  as  que  fe  podem  fabrica»,  e  íahir  das  offici- 
nas  clauílraes ,  e  no  cabo  de  muita  lima ,  ou  fundição 
quando  a  Republica  ha  mifter  hum  grande  Rey, 
acharfeha  quando  muito  com  hum  beato. 


DIS- 


YW' 


Difiurfo LXXXVII.  29  5 

DISCURSO     LXXXVII. 

Tirado  de  hum  ferniaÕ  de  S.  Jofcpb  pregado  na 
Capella  Real. 


R  E  S  O  L  U  C,  A  M. 


8?.8 


iíTo  fa?.em 


COníidcrar  antes  de  reíblver  ,  iíio  fa?.em  .  p.m.  7. 
ou  devem  fazer  todos  ;  mas  depois  de  re-  ^'"«^-  53^- 
folver ,  devefe  confiderar  ainda  ;  porque  as  matérias 
de  grande  importância  haófe  de  coníiderar  antes,  e 
mais  depois.  Antes  de  reíblver  hafe  de  coníiderar  o 
calo:  depois  de  reíblver,  hafe  de  coníiderar  a  reío- 
luçaó.  Eíla  diíferença  acho  entre  a  Filoíoíia  natural, 
e  a  moral ,  e  a  politica  ,  que  a  Filofoíia  natural  pede 
hum  conhecimento  antes  da  deliberação  :  Nthtlvo- 
lituin ,  quin  pracognitum.  A  Filofofía  moral ,  e  a  po- 
litica pede  hum  conhecimento  antes ,  e  outro  de- 
pois:  hum  conhecimento  antes,  que  guie  a  vonta- 
de a  tomar  a  refoluçaô,  e  outro  conhecimento  de- 
pois, que  examine  a  refoluçaô  depois  de  tomada. 
Antes  de  fe  fazerem  as  coufas  haíe  de  temer  o  queN«m.  19? 
dirávõ-.  depois  de  feitas  hafe  de  examinar  o  que  di- 
zem. Huma  coufaheoacerto,outraoapplauío.  A  - 
boa  opinião ,  de  que  tanto  depende  o  bom  governo, 
naó  le  forma  do  que  he ,  íenaó  do  que  fe  cu  ida  ,  e  tan- 
to fe  devem  obíervar  as  obras  próprias  ,  como  ref- 
peitaros  penfamentcs,  e  linguas  alheyas.  A  provi- 
dencia ,  com  que  Deos  permitte  a  murmuração  ,  he 
porque  talvez  de  tao  má  raiz  fe  colhe  o  fruílo  da 
emenda.  E  fe  eu  de  murmurado  me  poílb  fazer  ap- 
plaudido ;  porque  me  naô  informarei  do  que  íe  diz  ? 
Tom.  II.  T3  DIS- 


25?4     Vieira  ahhreviaão 


B  I  S  C  U  R  S  O    LXXXVIII. 

Tirado,  domefmofermaãde  S.  Jofeph.. 
RE  Y. 


Part;.  7. 


9^9 


Num*  5  3  5 


Num. 5  3^ 


EM  nenhuma  coufa  femofíra  mais  o  fer  de- 
.  Rey ,  q;ae.  em  ter  querer.  A  liberdade  da 
vontade  humana  ,  como  dizem  os  Theologos ,  con- 
iifte  em  huma  indiferença,  que  fe chama,  quero, 
ou  na.6  quero.  Tal  ha  de  ler  a  vontade  Real:  livre,  e 
naô  fujeita.  O  Príncipe  nem  ha  de  ter  a  fua  vonta^ 
de  íujeitaa  outrem,  nem  ha  de  eftar  fujeito  á  fua 
vontade.  Se  tem  a  fua  vontade  fujeita  aoutrera,  naó 
he  Rey  dosfeus:  fe  eftá fujeito  á  fua  vontade,  naó 
«e  Rey  de  fí.  Pois  para  reynar  fobre  fi ,  e  lobre  os 
feus  ha  de  ter  a  vontade  em  huma  indiferença  taô  li- 
vre ,  e  taô  fenhora ,  que  feja  feu  o  querer ,  e  feu  o  naõ 
querer. 

.930  ^  E  porque  razaõ  importa  tanto,  que  o  Prín- 
cipe nao  feja  íujeito  a  vontade  alheya  ?  Por  duas  ra- 
zoens  ,  huma  da  parte  do  Rey  ,  outra  da  parte  do 
Reyno.  Da  parte  do  Rey  j  porque  naõ  he  Rey ,  he 
íubdito ,  da  parte  do  Reyno  j  porque  naó  he  Reyno, 
heconfufaô. 

93  r  Com  grandes  exemplos  deíles  fe  tem  infa^ 
mado  o  mundo  em  todas  as  idades,  e  fem  pedirmos 
aos  feculos  paíFados  as  memorias  de  Galba  ,  nem  de 
Tibério,  os  noííbs  olhos  faó  boas  teílimunhas.  Nós. 
o  vimos,  e  x\Qs  o  vemos.  Pergunto:  Portuguezes,  vós,. 
qpQ:VJÍles  oquepadeceíles,  vós,  que  vedes  o  que- 

golais,, 


Dijcurfo  LXXXVIIL29  5- 

^ofais,  donde  veyo  tanta  diífcrença  em  tao  paucos 
mnos?  AdifFerença  naó  a  pondero ,  porque  a  Mm 
)S  olhos.  A  caufa  ,  porque  a  vem,  hc  fò  o  que  per- 
gunto. Sabeis  porque  ?  Porque  entaó  tinhamcs 
lum  Rey  fujeito  a  huma  vontade  alheya ,  hoje  te- 
nos  hum  Rey  fenhor  das  vontades  aiheyas,  e  mais 
k  fua  :  entaó  tinhamos  hum  Rey  cativo,  hoje  te- 
noshum  Rey  livre:  entaõ  tinhamos  hum  Rey  obe* 
iiente  ,  hoje  temos  hum  Rey  obedecido  :  entaõ  fi- 
lhamos hum  Rey  fenhoreado,  hoje  temos  hum  Rey 
"enhor. 

DISCURSO     LXXXIX. 

Tirado  de  hum  fermao  de  Santo  Agojlinho  elogiado 

pelo  Aiiãor  por  confejjar  7íos  feiís  livros  os  Jeus 

peccados ,  e  por  fe  retratar  ndles  de  feus  erros, 

E  de  outro  fermao  de  Santa  Catharina ,  que 

Denceo  ,  e  convenceo  a  cincoenta  bilofofos. 


SÁBIOS. 


Part.  3. 


932      A    Mayor  acçaõ  de  Deos  fazerfe  homem ,  Num.  155- 

t\.  e  a  mayor  fineza  deita  acçaõ  nao  con- 
Iftio  tanto  em  tomar  a  noíla  natureza  ,  quantoemphiiip.i.  7* 
:omar  a  noíTa  femelhança  :  Jn  Jímilitudinem  homi- 
numfaêíus ,  <ÍT  habitu  inventus  ut  homo.  Naô  to- 
nou Deos  a  natureza  humana  como  a  tinha  dado  a 
A.daó ,  fena5  como  a  achou  depois  delle  ,  e  cahida  de 
feu  primeiro  eftado,  e  fujeita  a  tantas,  e  tao  peza- 
ias  miferias.  Sujeitoufe  a  nafcer  ,  a  morrer  ,  e  a  vi- 
^'er,  (  que  naÕ  he  menos)  a  trabalhar,  a  canfar,  a 

T4  fuar, 


T 


# 


2^6     Vieira  ahbreviado 

fuar,  adorcs,atriftezas,  a  lagrimas,  a  íer  perfegui- 
do,  a  fer  aíírontado,  a  íer  crucificado.  Mas  com  fe 
fujeitar  a  todo  dle  abifmo  de  miíerias,  e  baixezas, 
(^porque  como  diz  S.  Paulo  :  Debuit  per  omiúafra- 
tribus  Jimilari  ^)  exceptuaraoíe  com  tudo  duas  ,  de 
que  foy  totalmente  ifenta  ,  e  privilegiada  a  huma-. 
nidadedeChrifto.  Equaesforao?  Opeccado,  ea 
ignorância.  Porque  he  taô  feya  coufâ  o  peccado ,  e  a 
ignorância  taó  isuiecente ,  que  ainda  no  cafo ,  que 
fofle  poííivel ,  de  nenhum  modo  era  tolerável ,  que 
em  huma  humanidade  unida  a  Deos  houveíTe  pecca- 
do ,  ou  ignorância.  Sendo  pois  tal  fealdade  a  do  pec- 
cado, e  tal  indecencia  a  da  ignorância,  fó  quem  com- 
prehender  quaó  feya  coufa  be  o  peccado ,  e  quaô  in- 
decente a  ignorância,  poderá  avaliar,  como  merece, 
eftas  duas  acçoens  deAgoílinho. 

933  ^s  Santos,  como  conhecem  agra  veza,  e 
malicia  do  peccado  ,  e  quanto  maisfeyos  faó  os  de- 
feitos da  vontade,  que  os  do  entendimento,  mais 
íe  pejaõ  de  fer  máos  ,  que  de  fer  mal  entendidos  ,  e 
antes  querem  parecer  ignorantes ,  que  peccadoies. 
Por  iíTo  David  como  fanto  confeíTando  os  peccados 
por  deliòlos,  allega  as  ignorâncias  por  defculpas: 
Delicia  juventittis  mea  ,  ^  ignorâncias  meãs  7ie 
inemifieris  Domine.  A  razaõ  defta  diíFerença  he , 
porque  a  ignorância  oppoemfeá  fciencia,  e  o  pec- 
Num.  i!^6.  cado  á  virtude  :  e  quem  he  verdadeiramente  íanto, 
muito  mais  eftima  a  virtude,  do  que  fe  preza  da 
fciencia.  E  como  he  próprio  da  fantidade  eílimar 
mais  o  conceito  da  virtude  ,  que  o  da  fciencia  ,  e  fo- 
frer  antes  contra  íi  a  opinião  da  ignorância  ,  que  a 
do  peccado  ,  he  o  commum  conceito,  eeftimaçaó 
dos  homens  ter  por  menos  injuria  o  peccado  ,  que 
a  ignorância.  ^34  Con- 


Num.  195. 


Píalin.  14. 

7. 


■■• 


Difcurfo  LKXXIX.  297 

934     Condemna  Chrjfto  ?.s  injurios,  com  que  osNum.igs. 
homens  fe  afrontaó  de  palavra  ,  aííinalando  tnmbem 
o  caíligo  ,  que  cada  lumia  merece  ,  e  como  íobera- 
no  Legislador  manda  aíTim  :   Oiii  dixerit  frati'i  Juo  Matth.j; 
raça  ,  réus  erit  concilio  :  qui  atitem  dixerit  fa-  "• 
tiie^reus  erit  gehena  ignis  \  O  homeni  ,  que  cha- 
mar a  outro  raça  tenha  pena  arbitraria  ;  porém  o 
que  lhe  chamar/}^í?/e,  feja  queimado  em  huma  for- 
nalha. A  palavra /^í«í?  todos  Hibem  ,  que  fignifica 
neício  ,  e  ignorante:  a  outra  que  he  Arábica,  quer 
dizer  impio  ,  ou  mais  propriamente  blasfemo.  Qiieni 
haverá  pois,  que  naõ  julgue,  ou  ao  menos  lhe  naõ 
venha  ao  penfamento  ,  que  neíles  dous  cafos  tao  di- 
verfosfenaô  mede  bem  a  pena  com  a  culpa  ?  O  fer 
nefcio,  e  ignorante  he  hum  defeito  natural :  o  fer 
impio,  e  blasfemo  he  peccado  graviííimo  :  como 
logo  fe  di  pena  arbitraria  ao  que  chama  impio  ,  e 
ao  que  chama  ignorant;  pena  de  fogo  ?   Porque  ain- 
da que  o  fer  impio  pira  com  Deos  he  mayor  pecca- 
do ,  o  fer  ignorante  para  com  os  homens  he  mayor 
injuria.  A  injuria  ,  ou  contumelia  medefe  nefte  cafo 
pelo  fentimento  ,  e  afronta,  que  o  homem  recebe, 
e  nenhum  ha,  que  naô  finta,  e  fe  afronte  mais  de 
fer  motejado  de  ignorante  ,  que  fer  notado  de  mdo. 

935  Aífim  como  he  natural  a  todo  o  homem  en-Num.  175. 
cobrir  o  feu  peccado  ,  aífim  he  natural  a  todo  ofa- 
bioíuftentar,  e  naõ  íe  defdizer  do  feu  erro,  e  tan- 
to mais  ,  quanto  for  mais  fabio.  O  mais  íabio  efpi- 
rito ,  que  Deos  creou  >  foy  Lúcifer  ;  e  he  cafo  ver- 
dadeiramente eftupendo  ,  que  huma  creatura  dota- 
da de  taó  fublime  entendimento ,  e  allumiada  de  taa 
alta  fabedoria  cahiífe  em  hum  erro  taó  craílo ,  taó 
manifeílo  ,  e  taõ  nefcio  ,  como  cuidar ,  que  podia 

ler 


Ifaí. 


14,14 


Parr.  7. 
ív'uin.  10 1 


25^8     Vieira  ahhreroiado 

fer  reinelliantê  5  Deos,  e  dizer  ,  que  o  havia  de  fer- 
^tmihs  ero  Altiffímo,  Mas  ainda  eíh  naÔ  lie  a  mayor 
admiFaçno.  O  que  mais  admira,  e  hz  pafmar  he,  que 
nem  no  Ceo,onde  errou,  fe  quiz  deícer  de  taõ  errado 
peníamento;,  nem  no  inferno  ,  ondeoeftá  pagando, 
lequerdeídizer,  ou  arrepender  delle.  No  Ceo  entre 
o  peccado,  e  condemnaçao  de  Lúcifer  he  fenten- 
\l  ™i'^  a  ^^^^^^^^'^^^  á  piedade  divina  ,  que  lhe  deo 
Ueos  baílante  eípaço  para  fe  converter  :  e  no  infer- 
no  he  também  Theologia  certa,  que  ainda  tem  li- 
berdade  para  o  fazer  ,  fe  quizer.   Pois  como  he  pof- 
lu'^1,  quecoubeífe,  e  caiba  em  hum  entendimento 
tno  fai^io  querer  antes  cáhirdo  Ceo,  e  arder  no  in- 
|5rno  ,  que  dêídizerfe  do  que  huma  vez  diífe ,  e  per- 
iíítir  no  mefmo  erro  por  toda  a  eternidade  ?  Se  Lu- 
arcr  foubera  menos,elJe  reconhecera  o  feu  erro;  mas 
agrande  fcsencia  ,  que  tanto  o  inchou  para  errar    ef- 
la  mefma  o  obítinou  para  fenaô  defdizer.  De  forte 
que  he  tal  contumácia  a  do  muito  faber,  huma  vez 
que  íe  chega  a  ufar  mal  delle  ,  que  antes  quererá 
hum  fabio  prefumido  cahir  do  Ceo ,  que  deícerfe  da 
fua  opmiaõ,  e  antes  arder  no  inferno,  que  deídi- 
2.^x{q  do  que  já  tem  dito.  De  tal  maneira  obra  Deos 
com  a  fua  ,  e  íummá  fabedoria  ,  que  parece  fe  emen- 
da com  a  experiência.  Arruinoufelhe  o  primeiro  edi- 
fício  ,  porque  o  fundou  em  hum  homem  de  barro; 
para  que  fe  lhe  naÔ  arruine  o  fegundo,  funda-oem' 
luim  homem  de  pedra.  Retratafe  do  que  tem  feito 
Deos,  que  naõ  pode  errar,  e  os  homens  eílaõ  tao 
namorados  de  feus  erros  ,  que  antes  os  vereis  obíli- 
íiados,  que  arrependidos.  Dirnó  que  hetimbre.efte 
de  eníendimcntos  Angélicos  ,  porque  nenhum  Anjo 
firrou ,  que  fe  retratalle.  Eu  digo,  que  naõ  hc  íenaõ 

con- 


■M 


Difciirfo 


25)9 


contumácia  de  entendimentos  diabólicos,  porque  p^-.  3. 
nenhum  Anjo  errou  ,  que  nao  folie  demónio.  Se  fora  ^^i"'-  »  /j 
verdadeira  aquella  irriaginaçaõ  de  Ongencs  ,  o  qual 
teve  para  íi ,  que  as  nollas  almas  erno  Anjos,  qwean^ 
davaô  penando  dentro  nos  noílbs  corpos  ,  e  pagan- 
do algumas  culpas,  que  tinhaó  commettido  ,  de  mui- 
tos homens  fabios  ,  que  errarão  ,  e  nunca  fe  quize- 
raô  retratar,  dilleraeu,  queeraó  os  Anjos  fequazes 
de  Lúcifer. 

936     Tal  foy  o  mefino  Origenes,  tal  Tertúlia- Num.  i^^. 
no,  tal  Apollinar,  e  outros  famoíiífimos  Doutores 
£m  todo  género  de  erudição  divina,  e  humana,  os 
jquaes  tendo  fido  infignes  Meftres  da  Igreja  ,  e  ainda 
hoje  allegados,  por  fe  naô  quererem  retratar  de  al- 
guns erros ,  em  que  como  homens  cahiraô,  corn  per- 
petua dor  da  mefma  Igreja  foraõ  anathematizados, 
e  apartados  delia ,  podendofe  dizer  com  verdade  de 
pada  hum  ,  o  que  Félix  imputava  a  S.  Paulo  :  Mui-  ^ct  10.14.- 
t<e  te  liter^  ad  infaniam  convertimt.  Mas  fendo  ef- 
jtes  ,  e  outros  iníignes  varoens  taô  fortes  domadores 
de  outras  paixoens  humanas  ,  chegados  ao  ponto  de 
fe  haver  de  retratar  do  que  tinhaô  enfinado  ,  aqui 
fraqueou  todo  o  feu  valor  ,  aqui  perdeo  o  paflo  to- 
da a  fua  fabedoria ,  e  aqui  fe  cegarão  ,  e  efcurecerao 
de  tal  forte  aquelles  grandes  entendimentos,  que  an- 
tes quizeraõ  perder  a  união  da  Igreja ,  e  com  ella  o 
único  fundamento  da  própria  falvaçao,  que  defdi- 
zerfe  do  que  tinhaó  dito;  porque  a  retra&açaõ  do 
que  fe  efcreveO)  e  fahio  a  publico  em  homens  de  opi- 
nião hemuito  mais  difficil.  Prefentado  ChrÍíloantê^^ui„^  j^s^ 
Pilatos  ouvio  elleas  accufaçoens,  examinou  as  teíti^- 
munhas,  reconheceo  o  ódio,  e  inveja  dos  inimigos,^ 
epronuncionao  Senhor  por  innocente.  Inítandopo- 

réiiB 


JOau   19 

II. 


300     Vieira  abbreviado 

rém  os  accufadores :  Si  hunc  dimittis ,  non  es  amtcus 
Ca j  ar  is  :  omnis  enim^  qtii  J e  Regem  facit  ^  contradi- 
cit  Cafari:  Que  fe  abíblvia  nqueile  reo ,  incorria  em 
crime  de  lefa  Mageftade  contra  o  Cefar ,  pois  era 
contra  a  foberaDJa  do  Império  coníentir  dentro  nel- 
le  hum  homem ,  que  fe  chamava  Key.  Pode  tanto 
com  Pilatos  o  temor  deíle  requerimento  ,  e  o  reípei- 
to  do  nome  ,  e  amizade  do  Gelar  ,  que  condemnou 
em  Chriílo  a  innocencia  ,  e  crucificou  com  Chrifto 
a  juíliça.  Crucificado  em  fim  o  Senhor  ,  mandou  fi- 
xar na  Cruz,  como  era  coílume,  a  caufa  porque  pa- 
decia ,  efcrita  com  aqucllas  palavras  :  Jefu  Nazare- 
no Fvcy  dos  Judeos  ;  das  quaes  novamente  efcanda-^ 
iizados  os  accufadores  tornarão  a  replicar,  que  as 
n^íandaífe  emendar  ,  e  q  em  lugar  de  Rey  dos  Judeos 
diííelle,  por  fe  fazer  Rey  dosjudeos.  Porém  Pilatos 
joan.  \j.  refpondeo  '.  Qjod  fcripfi ,  fcripfi :  O  que  e  fere  vi , 
efcrevi :  e  de  nenhum  modo  o  podéraõ  perfuadir  a 
que  mudaíTe  o  que  tinha  efcrito.  O  grande  reparo , 
que  tem  eíta  refpoíla  ,  todos  o  eftaõ  vendo.  Muito 
mais  oíFendia  Pilatos  ao  Cefar  em  dar  a  Chriílo  o 
titulo  de  Rey,  que  em  lhe  naÓ  dará  morte,  e  muito 
mais  fe  condenava  em  lhe  dar  a  morte,  que  fe  oli- 
vraífe  delia.  Pois  fe  Pilatos  naó  repara  em  fe  con- 
demnar  a  íi ,  e  a  Chrifto  por  refpeito  de  Cefar ,  por- 
que naõ  lhe  tira  o  titulo  de  Rey  por  refpeito  do  mef- 
mo  Cefar  ?  Porque  aííim  o  tinha  já  efcrito ,  e  publi- 
cado: Qtiod fcripfi^ j cr ipft.  Oquehum  homem  de 
íciencia,  ou  prefumpçao  huma  vez  efcreveo  ,  e  pu- 
blicou ,  naô  o  torna  a  retratar  por  nenhum  refpeito. 
Condemnar  a  mefma  innocencia  falloha  ,  fe  naô  for 
redlo  ,  por  hum  refpeito  humano  ;  mas  rifcar  o  que 
huma  vez  efcreveo,  eeílá  publico  em  íeu  nome,  naó 

o  fará 


3-^. 


•■• 


Dijcurfo  L^XXIX.  501 

o  fará  hum  lábio  prefumido  por  nenhum  refpeito 
defte  mundo,  nem  ninda  do  outro 

937     Eila  he  intolerável  cegueira  do  entendimen-  Num.  i79* 
to,  mtoleravel  abufo  da  razaó  ,  e  intolerável  injuria 
da  j uftiça ,  e  da  verdade ,  que  aquillo,  que  fe n^õ  de- 
via eícrever  ,  fe  haja  de  fuftentar  ,  fó  porque  fe  ef- 
creveo  ,  e  que  o  fer  eícrito  huma  vez  ,  feja  coníe- 
quencia  de  eftar  efcrito  fempre  :  Quod  fcripji ^  /cri- 
p/i.  Masefta  íentença  como  fe  fora  de  melhor  Au- 
áor,  he  a  commummente  de  todos,  os  que  efcre- 
vem  ,  e  publicaô  feus  efcritos.  Querem  que  os  feus 
livros  feiaô,  como  o  livro  de  predeftinaçaó,emqueo 
que  ertá  eícrito  ,  naô  pode  fer  rifcado :  querem  que 
os  feus  caraderes  fejao  coroo  os  dos  facramentos, 
que  huma  vez  imprelfos  naõ  fe  podem  apagar  :  que- 
rem em  fim,  que  o  feu  efcrever  feja  prefcrcver:  Quod 
Jcrtpjl^fcrip/í. 

938     Quantos  Julgadores  ha ,  que  ou  no  voto ,  ou  Num.  loo. 
na  tençaõ  ,  ou  na  fentença  reputaó  por  diícredito  o 
retratarfe,  e  feguindo  o  didtame,  ou  feita  de  Pila- 
tos tem  por  timbre  o  dizer :  Qtwdfcripji  ^fcrtpfi.  E 
também  pode  fer  ,  que  haja  algum ,  o  qual  fem  repa- 
rar em  que  le  condemna,  naô  fe  retratando  ou  pe- 
la inveja  de  que  outro  votou  melhor,  ou  pela  fober- 
ba  de  naó  confeíTar,  que  errou ,  naô  tema  acompa- 
nhar a  Lúcifer  no  caftigo  ,  como  o  imita  na^ contu- 
mácia. O  retratarfe  naÕ  he  argumento  de  naô  faber; 
mas  de  faber,  que  muitas  vezes  pôde  acertar  o  me- 
nos douto  no  que  o  mais  letrado  naô  advertio.  Qiie 
comparação  tinha  na  fciencia  Jetro  com  Moyfés  ?  E 
com  tudo  conheceo  Moyfés ,  que  o  diéVame  de  Jetro 
era  mais  acertado ,  e  logo  retratou  o  feu ,  e  leguio  o 

alheyo. 

939  Naô. 


\ 


<€Z^ 


502 


Vieira  abbreviado 


Num.  101.      939     Nao  ha  ciência  tao  jubilada  ,  que  naô  poíFa 
deixar  de  ver  o  que  vê  outra  de  menos  afinos ,  e  de 
nienof  authoridade.  O  verdadeiro  íaber  he  defaber 
conhecer  a  verdade  ,  ainda  que  feja  fiiha  de  outros 
olhos,  ou  de  outro  entendiiiíento,  e  nao  íe  cegar 
com  o  próprio  ,  como  fe  cegou  Lúcifer. 
Num.  180      94^     A  rnz^io  deíle  engano  deo  cxcellentemente 
Saíiro  Ambrofio  :  Unumqucmquc  falhint  fua  J cri- 
pta ,  i^  authorempratereiínt :  atque  titfiiii  etiam 
deformes  dekcíant parentes  y  (te  etíam  fcriptor es  in- 
decores  qmqfz  fermones  palpant :  A  todos  os  A u do- 
res ,  diz  Ambrofio ,  eng maò  os  feus  efcritos ,  e  ain- 
da que  tenhaó  erros  ,  fó  elles  os  nao  vem.  E  a  razaõ 
defta  cegueira  he  ,  porque  fao  partos  do  feu  enten- 
dimento.  E  aíFim  cotno  os  filhos,  pofto  que  fejaõ 
feyos,  agradao  a  feus  pays  ,  e  lhe  parecem  formofos, 
aílim  os  efcritos  de  cada  hum,  por  imperfeitos,  erra- 
dos ,  e  mal  compoílos  que  fejaÔ,  naturalmente  W- 
fongeaõ  a  íeus  Au6lores  ,  e  lhe  parecem  bem  ;  por- 
que fe  parecem  com  elles.  Lá  diííe  Elifaz ,  o  mais  fa- 
bio  dos  três  amigos  de  Job ,  que  ajufriça  de  Deos  ,  e 
^  perfpicacia  dos  olhos  divinos  he  tao  pura  ,  que  até 
Job  4. 18.  "OS  feus  Anjos  achou  imperfeição  :  In  Angelis  fuis 
Tepcrlt  pravitatem.  E  nao  eftá  o  encarecimento  cm 
dizer,  que  achou  imperfeição  nos  Anjos,  fendo  An- 
jos ,  fenaõ  em  que  achou  imperfeição  nos  Anjos  fen- 
do feus :  /;/  Angelis  fuis.  Se  os  olhos  de  Deos  foílcin 
como  os  dos  homens,  ainda  que  os  Anjos  o  naô  fo- 
rao  ,  bailava  que  foíTem  feus  ,  para  que  lhe  parecef- 
fem  Anjos. 
Num.  181.  '  941     A  águia  ,  como  diz  Ariftoteles,  e  fe  íabe 
vulgarmente  ,  depois  que  lhe  nnfcem  os  filhos,  e  lhe 
dá  a  primeira  creaçao  indiílindlamente ,  tira-osdo 

ninho 


Difcurfo  XXXXIX.  5  o  5 

ninho,  íafpetKie-os  nas  unhas,  e  exnmina-os  hum 
por  hum  aos  rayos  do  Sol  :   íe  oíiuiô  de  tito  cm  filo 
para  o  Sol  fem  peftnnenr  ,  reconhece-os  ,  e  confer- 
va  os  como  tilhos  proprios;'mas  fe  íechaô  ,  ou  a!aí- 
tao  os  ollios,  e  naõ  foffrem  toda  a  luz,  repudin-os  ,  e 
lança  os  de  fi,  como  adulterinos.  Pergunto  :  No  exa- 
me, e  prova, que  faz  de  feus  filhos  a  águia, quaes  fíciJO 
mais  examinados, e  mais  qual i ficados, os  olhos  da  mãy, 
ou  os  olhos  dos  filhos  ?  Naó  ha  duvida  ,  que  os  olhos 
da  mãy  ;  porque  os  olhos  dos  filhos 'naõ  fe  cegarão 
com  o  Sol ,  os  olhos  da  may  naõ  íe  cegarão  com  os 
filhos.  Naó  fe  cegarem  os  filhos  com  o  Sol  ,  ifib  he 
ferem  águias;  mas  naô  fe  cegar  a  águia  com  os  filhos, 
iífo  he  fer  may  fem  amor  de  máy.  Naõ  ha  amor ,  Num.  i8z: 
que  mais  facilmente  perdoe  ,  e  mais  benignamente    ^ 
interprete ,  e  diífimule  defeitos ,  que  o  amor  de  pay. 
Grandes  defeitos  foraõ  os  do  filho  Pródigo  ,  e  taó 
grandes,  que  elle  mefmo  reconhecia  ,  que  era  indi- 
gno de  Ter  chamado  filho  de  tal  pay  :  Patey\  nonfmn^y^c.  if. 
digniis  "úocarifilhis  tutis  ;  mas  o  pay  nem  por  iífo  ^í. 
o  defconheceo  de  filho  ,  óu  o  lançou  de  ^\ ,  antes  o 
abraçou  apertadiffimamente,  e  o  íeu  primeiro  cui- 
dado foy  cubrillo ,  e  vcíHllo ,  e  enfeitallo  com  as  me- 
lhores, e  mais  viílofas  galas:  Lho  proferte  Jiolam 
primam.  Ifto  he  o  que  fazem  todos  os  Efcritores  fe- 
veriífimos  com  os  defeitos  alheyos  ,  e  benigniílimos 
com  os  próprios,  como  pays  em  fim.  David,  fendo  Num.  183. 
taô  enormes  os  erros  de  feu  filho  Abíaiaó ,  e  elle  taõ 
incapaz  de  perdaõ  ,  oudefculpa,  lá  lhe  buícou  ,  e 
achou  na  idade  hum  motivo,  com  que  oefcufar,  e 
i alvar :  Servate  mihi  ptierum  Abfalom,  Pois  fejoab  1.%^^^  i?. 
lhe  naõ  perdoou ,  e  todo  o  Reyno  entaõ  ,  e  hoje  to-  5. 
do  o  mundo  o  condemna ,  como  lhe  perdoa  íó  Da- 
vid, 


Ijj^ 


'iqiili' 


Num.jíi. 


304     Vieira  ahhreviado 

vid  >  e  o  quer  fal  var  ?  Porque  era  pay ,  diz  Santo  Am- 
brofio.  E  efta  he  a  única  ,  e  verdadeira  razaó.  Naó 
ha  opinião  taÔ  errada  ,  naó  ha  propofiçaó  taõ  teme- 
rária ,  e  taõ  Ímpia  como  Abfalaó  ,  que  feus  Auclo- 
res ,  como  pays  y  naó  queiraó  falvar ,  efcufar ,  e  de- 
fender; porque  ainda  que  partos /taó  monftruoíos, 
faó  partos  do  próprio  entendimento. 

942  Quem  naô  he  dócil,  fenhores ,  naó  pode  fer 
douto :  antes  a  meíma  docilidade  he  hum  fynonymo 
da  fciencia.  A  fciencia  nenhuma  outra coufa  he,  que 
o  conhecimento  claro  de  muitas  verdades,  humas 
em  fi  ,  que  faó  os  princípios,  e  outras,  que  delias  fe 
feguem  ,  que  faõ  as  conclufoens.E  aquelles,  que  naó 
tem  docilidade  ( como  faó  os  tenazes  do  propriojui- 
zo ,  e  ferrados  á  fua  opinião)  ainda  que  a  verdade  fe 
lhe  reprefente ,  naÓ  faÕ  capazes  de  a  receber.  Por  if- 
fo  eftes  taes  cadavez  fabem  menos,  e  todas  as  vezes 
que  a  opinião  paíTa  a  erro ,  períeveraõ  nelle.  No  er- 
ro fecreto,  em  que  fenaó  perde  a  honra  ,  facilmen- 
te fe  íujeita  a  própria  opinião  á  verdade ;  mas  no 
publico ,  e  ceníurado  ,  em  que  a  honra  fe  perde,  ou 
ella  defende  o  erro  ,  ou  o  erro  a  defende  a  ella  con- 
tra a  mefma  verdade  conhecida. 

943  Conhecer  hum  fabio  a  fua  ignorância  ,  ou 
Nuns.35<f.o  feu  erro  he  muito  fácil :  naõ  fora  fabio ,  fe  o  naó 

conhecera.  Porém  chegara  o  confeífar,  e  confeíTal- 
lo  publicamente  he  o  ponto  mais  árduo,  e  difficul- 
tofo  ,  a  que  fe  pode  reduzir  o  brio  humano  ,  e  tan- 
to mais ,  quanto  mayor  for  o  nome ,  a  opinião  ,  e  o 
gráo,  que  tiver  de  douto.  Ponderou  Nicodemos  a 
doutrina  de  Ghrifto  juntamente  com  a  grandeza  de 
íeus  milagres .  e  veyo  â  conhecer ,  que  fó  ella  era  a 
verdadeira ,  e  toda  a  outra  falia  ;  Schnus  quia  à 

Deo 


Num.iSs». 


Joan 
s.i. 


DifairfoLXXXIX.  505 

Deo  venijli  magifter  :  Jtemo  enim  pote/l  h<£c  Jigna 
f acere  ^  qu£  tiifocts.  Deliberafe  a  ir  bufcar  o  di- 
vino Mellre  ,  e  lançaríe  a  íeus  pés,  psra  que  o  eníl- 
ne:  mas  como?  Erat  homo  ex  P bar ifkis ^  Nicoãe- 
niusiiomine:  hic  venit  adjefiun  noâíe'.  Defpio  a  to- 
ga, ou  a  beca, e disfarçado  ,  edefconhecidofoy  buf- 
car ao  Senhor  de  noite.  Vede  como  o  nrgue  S.  Joaô 
Chryfoíloíiio  :  Scimus  ,  inquit ,  quia  à  Deo  x-é-?;//^  chryíoft. 
//"  magijler.  Oj/id  ergo  noBu  venis  ,  (^  clanciihim  '  *'* 
adetim ,  qut  divina  docet  y  qui  à  Deo  venit  r  Oiiid 
non  aperte  profiteris}  Se  conheceis  ,  que  Chriílo 
he  Meftre  vindo  do  Ceo ,  íe  conheceis,  que  a  íua 
doutrina  he  divina  ,  eo  vindes  buícar,  para  que  vos 
enfine;  porque  vindes  de  noite,  e  ás  efcondidas, 
porque  naó  confeílais  iilb  mefmo  clara  ,  e  publica- 
mente? Porque  Nicodemosera  hum  Meílre  de  gran- 
diííima  reputação  em  Ifrae).  Aífim  o  declara  o  tex- 
to Gi-ego :  Tu  es  magifter  ille  Í7i  Ifrael.  E  poílo, 
que  elie  já  reconhecia  os  feus  erros  ,  iíTo  era  em  íe- 
gredo ,  e  das  portas  do  feu  entendimento  para  den- 
tro ;  porém  que  elFes  mefmos  erros,  e  ignorâncias, 
de  que  já  eftava  convencido ,  os  houveífe  de  con- 
feílar  publicamente,  de  nenhum  modo  fez,  ou  fe 
atreveo  a  fazer  tal  coufa  Nicodemos  ,  porque  lho 
naó  confentia  a  reputação  ,  e  o  credito  ,  e  por  iííb 
vinha  de  noite.  De  noite  reconhecia  ,  que  era  mor- 
cego ,  de  dia  queria  oftentarfe  águia.  Oh  fe  os  livros 
failaraó,  quantas  ignorâncias  haviao  de  dizer ,  que 
confuitaõ  com  elles  de  noite  os  que  de  dia  fe  publi- 
C3Õ  grandes  letrados!  Qiianto  he  mais  cuílofo  á  pre-  Pa-r.  n. 
fumpçan  abater  as  fobrancelhas,  que  queimar  f  s  pef-  Níum.44o. 
tanas  !  Mas  naó  he  fó  a  capa  da  noite,  a  que  diíTiniuI- 


Parr.  j. 


la  eílcs  defeitos.  Quantas  vezes  reconhece  oquindojv^fJn,; 


Tom.  II. 


35: 


na 


o 


T 


i^ . 


V  Vi 


Part,  II. 

Num.  5  3 


na  confcieíicÍLi  o  mefrao  ,  que  na  cadeiríí  o  defende  â 
vozes  ?  Pouco  íabe  queíTi  naõ  conhece  a  força  do  ar- 
gumento ,  e  a  fraqueza  da  foluçao.  Huma  coufa  he 
'refpGnder ,  outra  fallar  no  cabo.  Mas  fendo  inuy  fre- 
quentes as  contriçoens  deíles  peccados  iá  no  fecreto 
da  coníciencia ,  chegar  conr»  eiles  a  publica  confiíTaò 
quem  tem  opinião  de  fabio  he  milagre  íb  da  graça 
de  íanía  Cathorina,  Eíla  publica  conOíiaó  foy  o 
niayor  triunfo  da  victoria  de  Catharina  ,  mayor  con- 
tra Democritos ,  e  Diógenes  fem  eípada,  que  fe  fo- 
raoScipioeas  armados.  As  batalhas  mais  invencíveis 
f  10  as  do  entendimento  ;  porque  onde  as  feridas  naõ 
tiraÕ  fangue,  nem  a  fraqueza  íe  vê  pela  cor,  nenhum 
fabio  fe  confeíía  vencido.  Diz  S.  Paulo  que  a  fcien- 

i.Cor.  8.1.  cia  incha  :  Scientia  inflat.  E  naõ  fó  he  difficil  íem 
graça  muito  fingular  fciencia  fem  inchaçaõ,mas  fem- 
pre  a  inchação  he  mayor  que  a  fciencia.  A  mayor 
fciencia  ,  e  o  mayor  entendimento ,  que  Deos  creou 
entre  os  homens,  e  Anjos,  foy  o  de  Lúcifer;  mas  ain- 
da foy  mayor  a  fua  inchação ,  e  foberba :  Similis  ero 

ifai.14.  ^^-  jiltijpmo,QontX2i  efta  rebelião  fe  deo  no  Ceo  aquella 
grande  batalha  de  entendimetos:  Faâíum  ejipralkím 

h^oc.ii.j.magnum  in  cmlo.  Sahio  vencedor  Miguel,  ficou  ven- 
cido Lúcifer;  mas  de  que  modo  vencido  ?  Com  tal 
inchação,  e  íoberba  do  feu  íaber,  e  taÕ  namorado 
do  meímo  entendimento  ,  que  o  cegou  ,  que  antes 
quiz  cahirdoCeo,  que  defcer  da  fua  opinião.  Ha 
mais  dp  íeis  mil  annos ,  que  arde  no  Inferno  Lúcifer, 
e  ha  de  arder  por  toda  a  eternidade  fó  por  naÕ  admit- 
tir  hum  inílante,  em  que  confeíTe  que  errou. 


DIS 


Difcurfo  XC.       507 

D  1  S  C  U  R  S  o     XC. 

Tirado  de  hum  fermao  da  primeira  Dominga  da 
Quarefma  pregado  em  Ror/ia. 


944 


SACERDOTES. 

Ermittio  Chrifto  Senhor  ncíFo  fer  tenta- Part.  7. 

do  do  demónio  hoje  ,  naõ  para  fc  honrar  N^^m-jotf. 
com  a  vidloria,  (  que  era  pequeno  triunfo  )  m?s  para 
nos  enfinnr  a  vencer  com  feu  exempio.  1'enrado  no 
deferto  com  o  paó  ,  e  com  a  fome  para' exemplo  á 
abftinencia  do  Monge  :  tentado  no  monte  com  as 
promellasde  todo  o  mundo  para  exemplo  á  cubica 
do  leigo :  e  tc^ntado  na  Cidade  íanta  com  o  lugar 
mais  alto  do  templo  para  exemplo  á  ambição  do  Ec- 
clefiaftico.  Eíla  ultima  tentação  por  fer  tao  própria 
do  lugar,  e  taóaccommodada  ao  auditório  íerá  ho- 
je o  argumento  de  todo  o  meu  difcurfo.  Veremos 
nelle  hum  corcezaõ  de  Roma,  fegundo  as  três  partes 
do  thema  ,  três  vezes ,  e  por  três  modos  tentado. 
Tentado  quando  vem  pertender  á  Cidade  fanta  : 
Jijjumpjít  etim  diabclus  infanõlam  civitatem :  ten- 
tado quando  confegue  o  lugar, ou  dignidade  da  igre- 
ja ,  que  pcrtendia  :  Statittt  eum  fuper  pimíacnhnn 
templi  :  e  tentado  com  o  mefmo  lugar  depois  de 
coníeguido  ,  quando  o  diabo  o  inítiga  a  que  fe  pre- 
cipite :  Aíitte  te  deorfiim. 

945      Para  hum  fujeito  fer  fublimado  ao  lugar  ^'"^' 5°^' 
mais  alto  da  Igreja ,  que  qualidades  fao  as  que  fe  re- 
querem ?  Requerfe,  aindaque  menos  ,  a  nobreza  do 
naícimento,  requerfe  o  exemplo  da  vida,requer- 

V2  fe 


508     Vieira  ahhreviado 

íe  o  exercício  das  virtudes,  requerfc  o  efpirito  mui- 
to provado ,  e  requeremíe  finalmente  as  letras  naó 
íb  fabidas  mas  praticadas. 
946  Todas  eftas  qualidades  entaô  concorrido  juntas 

Num.  jcs.em  Chriíto,  ejá  reconhiecidos  pelo  nieímo  demónio. 
A  nobreza  do  nafcimento:  Si  Filitis  Dei  eji^  o  exem- 
plo da  vida  :  DuÓlus  ejl  à  fpiritti  in  dejertum^  o 
exercício  das  virtudes  :  Cumjejmiajfet  quadragiiita 
diebus  ,  <Í3^  quadragÍ7ita  noóitbus ^  o  eípirito  prova- 
do: Ut  tentaretur  à  diabolo  ,  as  letras  naõ  fó  fabi- 
das ,  mas  praticadas:  Scriptum  ejl  enÍ77i'.  Noninfo- 
lo  pane  vivit  homo ,  fed  in  omnt  verbo ,  quod  proce- 
dit  de  oreDei.EquQ  fobre  todas  eftas  qualidades  jun- 
tas ,  fobre  toda  efta  capacidade  de  merecimentos 
ainda  íeja  tentação  fubir  ás  alturas  do  templo  I  Oh 
mundo!  Oh  cabeça  do  mundo!  E que  tentação  feria, 
fe  o  Eccleíiaftico  tentaíTe  a  fubida  naõ  com  efpirito 
provado,  mas  reprovado,  naõ  com  o  exemplo,  mas 
com  o  eícandalo  ,  naÕ  com  virtudes ,  mas  com  ví- 
cios, naõ  com  letras,  mas  com  ignorâncias?  Naõ 
fAÍlo  na  qualidade  do  nafcimento ,  porque  depois  que 
Chriílo  tirou  a  Pedro  ,  e  a  André  da  barca  para  a  ca- 
deira, ainda  que  naó  reprovou  a  grandeza  dosappel- 
lidos  ,  moftrou  ,  que  fe  era  decente  para  o  lujeito , 
naõ  era  neceíTaria  para  o  offieio. 

947     Em  três  partes  (  como  dizia )  dividio  o  de- 
mónio a  fua  tentação:  vir,  fubir,  cahír.  Vir  á  Cida- 

Num.  309.  dQ  fanta  :  AJJúmpJit  eiim  in  [miâíam  civitatem  ,  fu- 
bir ao  pinnaculo  do  templo  :  Et  ftatuit  eum  fiiper 
pimiacííliim  templi ,  cahir,  e  arrojarfe  ao  precipício : 
Mitte  te  deorfum.  Si/^amos  o  tentador  pelos  mefmos 
palFos. 

Nam.  3 10.     948  A  primeira  parte  da  tentação,  fenhores  meus, 

•    he 


a 


Dijairfo  XC.        5  05^ 

he  vir  o  pertendente  á  Cidade  fanta.  Pois  vir  á  Ci- 
dade ílinta,  e  pertcnder  liuma  Igreja  tnmbcm  fanta 
pode  íer  tenfaçaÕ  do  demónio?  Sim.  Porque  quan- 
do a  eleição  he  de  Deos,  e  mo  tentação  do  demónio, 
quando  Deos  quer ,  que  o  Ecclefiaftico  tenha  Igreja, 
e  eípofa ,  naô  he  elle  o  que  ha  de  ir  á  Cidade  íanta  , 
a  Cidade  fanta  he  a  que  ha  de  ir  a  eíle.  No  capitulo 
penúltimo  do  Apocaiypfe  conta  S.Joaô  o  que  vio, 
e  diz  aíTim  :  Fuii  civitatem  fcmâíamjerujakm  def-  Apoc.  n: 
cendentem  de  coslo  à  Deo  ,  par  atam  ficut  fponfam  '• 
ornatúfn^virojuo:  Vi  deícer  do  Ceo  a  Cidade  íanta 
mandada  por  Deos ,  e  ornada  como  efpoía  para  fe 
receber  com  o  efpofo.  Notável  vifaÕ  !  Os  homens 
fao  os  que  vaô  á  Cidade ,  e  naó  a  Cidade  aos  homens: 
o  eípofo  he  o  que  pertende  a  efpofa  ,  e  naô  a  eípofa 
o  efpofo.  Pois  porque  vio  S.  Joaó  tudo  ás  aveflas  ? 
Porque  o  vio  ás  direitas.  Vinha  a  Igreja  do  Ceo ,  vi- 
nha de  Deos :  Defcendentem  de  ccelo  à  Deo ,  e  quan- 
do a  Igreja  ,  e  a  efpofa  vem  pelo  Ceo ,  e  por  Deos , 
naô  he  o  homem  o  que  vay  á  Cidade  fanta ,  a  Cida- 
de fanta  he  aquém  vem  ao  homem.  Naó  he  o  eípofo 
o  que  vay  bufcar  a  efpofa  ,  a  efpofa  he  a  que  ovem 
bufcar  a  elle  :  Skut  fpofifam  ornatam  viro  fuo.  E 
quando  ifto  nao  he  aíTim ,  lenaó  ás  aveíT^s  ,  que  fera? 
Nao  he  eleição  de  Deos ,  he  tentação  do  diabo :  Af- 
fumpftt  eum  diabolus  infcinõiam  civitatem. 

949     Quanto  melhor  providas  feriaó  as  Igrejas  , Num.  j ti. 
quanto  mais  defcanfados  viviriaõ  osquefoílem  di 
gnos  delias ,  e  quanto  menos  occaGaõ  íe  daria  ás  ten- 
taçoens  do  demónio  na  Cidade  fanta  ,  fe  as  efpofas 
foifem  bufcar  aos  eípofos ,  como  Rebeca  a  Ifaac  ,  e 
naó  os  efpofos  ás  efpofas  como  Jacob  a  Rachel !  Em  nu^.  5,4. 
quanto  o  efpofo  pertendeo ,  e  requereo  dentro  da 

Tom.  II.  V  3  Cida- 


Num.  3 1 


3. 1 0     Vieira  ahhreviai 

Cidade  ranía,na5  foy  ouvido;miiS  quando  cílava  "íóx^ 
delía^entao  foy  bufcado.Naó  íois  vós  o  que  haveis  de 
bofcar,  haô  vos  de  bufcar  a  vós,  e  em  tal  forma,  que 
á  ígrej:!  fe  dê  os  parabéns  de  vos  huver  acbcdo,  q 
qsie  íejj  neceíiària  força  ,  e  violência,  para  que  acei* 
teis  o  defpoíarvos  com  elía.  Aílim  le  delpofou  a 
Igreja  de  Mdaò  coili  Ambrofio  ,  aííim  a  de  Magde- 
burg  com  Norberto  ,  aíFuti  a  de  Cracóvia  com  Elta* 
níslao ,  aíFim  a  univeríai  com  Gregório.  Huns  efcon- 
dia^ófe ,  outros  fugiaô ,  e  outros  refiíliâô ,  e  repugiia* 
Vaô ,  e  por  iíFo  mereciao ,  que  Deos  por  força  ,  e  com 
jíiiíagres  os  fubiíTii  á  mayor  altura  do  templo  ,  e  o» 
toliocaííe  neiía.  Mas  quando  efteslugares  íe  perten* 
dem,  efe  vem  buícar^  ainda  que  feja  á  Cidade  fari* 
ta ,  quem  duvida  ^  que  pódeíer,  como  hoje  foy,  ten- 
tação do  diabo  ?  AffUmpJit  eutn  diabolus  in  fanâian 
tivitatem. 

950  Atéqui  o  vir ,  que  he  coufa  canfada  :  paíTe- 
mos  ao  fubir,  que  ainda  que  feja  cofta  arriba,  he  mais 
■fuávê,  e  fubamos  quatito  he  poííivel.  Chegados  o 
tentador,  e  o  tentado  á  Cidade  fanta  ,  naó  p;trou  o 
dêrfionio  até  o  pôr  no  pinnacuío  do  templo  :  Et  fta*- 
ttãt  eutn  fuptr pinnaculinn  tempU .^\Xi  nenhuma  Cor- 
te do  mundo  tem  lugar  o  extremo  deita  tentação^ 
fenaô  na  Corte  da  Cidade  fanta  ,  onde  eílamos.  Em 
todas  as  outras  Cortes  podem  os  Cortezaós  afpirar 
a  fubir,  mas  naó  ao  pinnacuío.  Podem  aípirar  á  gran- 
deza ,  mfjs  naó  á  Mageftnde:  ao  titulo,  mâs  naô  á 
Coroa.  O  fidalgo  particular  pode  afpirar  a  Conde  j 
o  Conde  a  Marquez,  o  Marquez  a  Duque.  E  aqui 
pára  o  defejo  ,  porque  o  fer  Rey  eíld  fora  da  esfera 
da  ambição.  Nefta  Corte  naó  he  aílim.  Da  fotana 
ipodeis  fubir  á  murça ,  da  raurça  ao  mantelcte ,  do 

man- 


m 


Difcurfo^C.       ^11 

mnntelete  á  mitra,  da  mitra  á  purpura  ,  e  da  purpura 
á  tiara.  Subir  ás  dignidades  pôde  íer  bom  ,  e  pode  í^'"'"' 3^»- 
fer  mao  ;  mas  o  que  fempre  he  mao  ,  e  nunca  pode 
fer  bom  ,  fenaô  peílimo,  he  íazer  de  hiíma  dignidade 
degrao  para  outra  ,  e  querer  íempre  lubir  fem  jd  mais 
parar.  Naõ  fe  fobe  hoje  ás  dignidades  ,  íobeíe  por 
ellas.  Hnviaô  de  fer  fim  ,  e  faô  meyo  :  haviaÕ  de  íer 
termo,  e  fao  degrao.  E  tal  modo  ,  ou  tal  fúria  de 
ambição  naô  he  humana,  he  diabólica,  he  luciferma. 
Aílim  íbbe  fempre  a  foberba  do  demónio ,  e  aílim  fo- 
be ,  e  cftá  fubmdo  fem  aquietar,  nem  parar  já  mais 
á  foberba  dos  que  elle  tenta  ,  ou  dos  que  fem  ("cr  ten- 
tados o  feguem,  A  foberba  ,  e  ambição  de  lubir  mm* 
ca  eílá  mais ,  que  fobre  hum  pé.  1  em  hum  pé  no  lu- 
gar, que  poíTue  ,  e  o  outro  já  vay  peio  ar  para  o  lu* 
gar,  que  pertende.  ífto  he  íubir  fempre.  Qiiem  fo- 
be, quando  firma  hum  pé  num  degrao,  já  levanta  o 
outro  para  o  pôr  no  que  fe  íegue.  AíFím  fobe ,  e  vay 
*  íubirtdo  íempre  (  por  mais  alto  que  feja  o  lugar  ,  a 
que  tem  fubindo)  quem  for  tocado  defta  tentação. 

951     Fercuhimfectt  fibl  Reoc  Saiomon  :  reclina- czm.  3,  ^, 
ioruimaurenm^  afienfum  purpureum:  Fez  Salamaó  lo- 
hum  leito  para  fi  ,  cujo  reclinatorio  era  de  ouro  ,  e 
a  fubida  de  purpura.  Com  licença  da  íabedoria  dcNum.  jip. 
Salaniiô  eu  naõ  fizera  o  leito  por  efta  troça  :  fize- 
ra o  reclinatorio  de  purpura  ,  e  a  fubida  de  ouro. 
Pura  reclinar ,  e  defcaníar  a  cabeça  o  curo  ,  amda 
que  feja  muito  íuílroío,he  muito  duro,  e  muito  frio. 
Para  os  degráos  era  muito  decente  ,  e  muito  antho- 
rizado  o  ouro;  porque  nao  ha  modo  de  fubir  mais 
magcíloío,  que  metendo  o  ouro  debaixo  dos  pés, 
epi//.mdo-o.PeIo  contrario  a  purpura  era  mais  accó- 
rnodada  para  o  re^clinatorio ,  porque  he  branda  ,  e 

V  4  con- 


312     Vieira  ahhreviádo 

conferva  o  calor.  Mas  a  purpura  para  os  degráos : 
Ajceniiim purpLireum  ?  Sim;  porque  fazia  Salainao  o 
feu  leito,  naõ  como  era  bem  que  í-oíle ,  fenaó  como 
via  ,  que  havia  de  fer.  Via  que  das  purpuras  fe  ha- 
viaÕ  de  fazer  os  degráos  para  o  reciinatorio  ;  porque 
he  tal  a  tentação  de  fubir ,  que  nem  nas  purpuras  fe 
pára ,  nem  nas  purpuras  fe  deícanfa  :  Afcenfum  pur- 
pureum. 

952  Eílou  vendo  porém,  que  me  dizem  os  meus 
Nnm  jiG.Portuguezes:  Ainda  que  temos  o  exemplo  deS.  Da- 
mafo  ,  e  de  Jí)aa  XXií.  os  nolTos  penfamcntos  naõ 
fobem  ao  pinnacuio,nem  a  taõ  alta  fuppoíiçaó.  Com 
huma  Igreja  das  que  vagaõ  na  nolfa  terra  ,  nos  con- 
tentamos,  iíío  he  o  que  fó  pertendemos  na  Cidade 
fanta.  Mas  também  ahi  pode  entrar  com  igual  peri- 
go a  tentação  do  demónio.  Eu  naô  fou  muito  curial 
delias  tentaçoens ,  e  aífim  fallarei  por  boca  de  quem 
tinha  grande  experiência  ,  e  pratica  delias.  O  Car- 
deal Bellarmino  paflando  por  hum  lago  deites  ar- 
redores vio  hum  moço  ,  que  eftava  pefcando  rans  , 
e^a  ifca ,  com  que  lhes  armava  ,  era  a  pelle  de  outra 
rã  já  morta.  Lançava  o  anzol  com  aquella  pelíe  da 
morta  ,  e  aííim  pefcava  as  vivas.  Eis  aqui ,  diz  Bel- 
larmino ,  como  pefca  o  diabo  aos  Eccleíiaílicos. 
Morreo  o  Cónego ,  o  Prior ,  o  Abbade  :  e  que  faz 
o  diabo  }  Toma  a  pelle  do  defunto  ,  que  he  a  mur- 
ça  ,  ou  a  fobrepeíiiz ,  e  eílola  ,  mete-a  no  leu  anzol, 
que  he  a  tentação  ,  e  vemfe  de  Portugal  a  pefcar  a 
Roma.  Quem  cuidaífe  tal  coufa  !  Que  o  diabo  fe  vi- 
nha a  fazer  pefcador  na  borca  deS.  Pedro !  E  que  fa- 
zem as  rans ,  que  ellaõ  efperando  no  lago,  e  atroan- 
do os  ouvidos  de  todos  }  Tanto  que  chega  a  nova  , 
tanto  que  vem  a  peik  da  morta  ,  todas  a  ella  com 

tan- 


Difí 


ifciirfo  XC. 


5M 


tant.i  boca  aberta:  e  fe  alguma  fe  adianta  ás  demais, 
todas  a  abocanhaíl:; ,  e  a  mordella.  Eu  nao  o  vi ,  mas 
alfim  o  ouço.  Niíto  faó  peyores  as  rans ,  que  os  pei- 
xes. Os  peixes  mordem  ,  e  callaô  :   as  rans  atronõ  , 
e  naõ  ha  quem  íe  ouça,  nem  valha  com  ellas.  Que 
cada  luim  pertcnda  para  fi,  humano  he;  mas  he  gran- 
de deshumanidade  ,  que  homens  da  meíma  pátria, 
da  meíma  nação  ,  e  do  mefmo  langue  íe  mordaô, 
femalíratem,  e  fe  afrontem  por  introduzira  íl ,  e 
aíFaílar  os  outros.  O  dote  da  íubtileza  no  Ceo  faz, 
que  o  higir  ,  que  occupa  hum  ,  nao  impida  a  paíla-  M"™-J"« 
gem  ao  outro  :  e  cá  o  eftudo,  e  emprego  de  todas 
as  íubtilezas  he  impedir  aos  outros  para  lhe  occu- 
paro  lugar.  Em  fim  bem,  ou  mal  occupado,  que  fe 
íègue  depois  diíTo  ?  A  terceira  parte  da  tentação  ,  e 
a  mais  perigoía  de  todas. 

953     Depois  de  vir,   e  íubir  feguefe  o  cahir  :Num.3iz; 
Mate  te  deorfum,  Confeguio  o  pertendente  o  feu 
delpacho,  expedio  as  fuás  bulias  ,  voltou  contente 
para  a  pátria,  veie  coUocado,  ou  collado  na  Igre- 
ja com  fuperioridade  ,  e  authoridade  delia  ,  e  aqui 
eftá  o  fim  de  toda  a  tentação ,  que  he  o  precipício : 
Míite  te  deorfinn.^^z  precipício  pode  fer,como  or- 
dinariamente he  ,  ou  para  a  parte  da  primeira  ten^ 
taçao,  ou  para  a  parte  da  terceira  ,  com  que  ficará 
cahindo  em  todas  três.  Na  primeira  tentação  ten- 
tou o  demónio  a  Chriílo  com  pao  :  Dic  at  lapides- 
ijli panes  fiant :  na  terceira  tentou-o  çom  tudo: 
Híec  omnia  tibi  dabo.  Em  ambas  pode  cahir  facil- 
mente o  tentado ,  ou  por  fome  ,  ou  por  cubica.  Tra- 
tavafe  aqui  em  Roma  de  mandar  a  Portugal  contra 
Viriato ,  e  erao  pertendentes  do  poílo Sulpicio  Gal- 
ha ,  e  Aurélio  Cotta  :  e  como  os  votos  dos  Padres 

conf- 


ji4    Vieira  abreviado 

çonícriptos  fe  dividifiem  no  Senado ,  huns  por  parte 
do  primeiro ,  outros  do  fegundo  ,  diz  Valério  Máxi- 
mo ,  que  Scipiaó  excluio  ;a  ambos,  e  deo  a  razão 
exceíleote  per  eftas  púâvr^s  \Neuter  mitu  placet , 
qiaa  aitermhtl  hahet ,  alter í  nibil  ejljatis  :  NaÓ 
convém  ,  que  fe  imwá^  a  Portugal  nem  hum  ,  nem 
outro  ;  porque  hum  nenhuma  coufa  tem  ,  a  outro 
nenhuma  couía  lhe  baíh.  Aos  que  nada  tem,  ten- 
ta-os  o  diabo  com  op3Ó:  aos  que  nada  lhe  baila,  ten- 
ta-os  Gom  tudo  :  e  íendo  taô  perigofa  tentação  a  da 
neceííidade  com  a  da  cubica  ,  eíies  íaó  os  dous  pre- 
cipícios ,  em  que  pode,  e  coftuma  cahir  quem  vay 
Num.ji3.,je  Roma  com  defpacho.  Os  que  de  cá  vao  com  fo- 
me ,  tenta-os  o  diabo  com  paô  ,  e  muito  mais  aper- 
tadamente do  que  a  Chriíio;  porque  a  Chriao  ten- 
tou o  o  demónio  com  paõ  ,  que  fe  havia  de  fazer  : 
Dic  tit  panes  fiam  \  mas  a  eítes  tenta-os  com  paô 
feito.  Deos  livre  a  todo  o  faminto  de  que  o  diabo 
o  tente  com  paÔ  feito,  e  preparado.  A  Heva  ten- 
tou-a  o  diabo  com  a  fruta  madura,  e  fazonada  :  a 
Efau  tentou  o  com  as  lentilhas  coíinhadas,  e  tem- 
peradas. Equefuccedeo  a  ambos.í'  Ambos  cahiraô 
fem  reíiftencia.  Ser  tentado  com  o  comer ,  que  fe 
ha  de  fazer  ,  ainda  que  haja  fome,  naõ  he  tao  í?,rande 
tentação.  Se  o  pomo  eíiivera  em  flor  ,  e  as  lentilhas 
em  herva,  nem  Heva  ,  nem  Efaií  fe  haviaó  de  ten- 
tar, quanto  mais  cahir.  Porém  tentar  com  o  paô  ,  e 
feito:  tentar  com  o  paô,  que  outros  íizeraó,  e  vós  o 
tendes  recolhido  no  voíFo  celeiro  com  obrigação  de  J 
o  repartir  nos  pobres ,  grande  temaçaõ!  U  Eccleliaf- 
tico  he  dirpenfeiro  do  paô  ,  e  naó  fenhor  j  mas  he 
grande  tentação  dodifpenfeiro,  que  podendofe  fa  - 
zer  fenhor ,  fe  naó  faça ,  e  podendo  coiner  o  pao,  <* 

naô 


xc 


njciirfo  At.  ■      315 

rtíió  coma.  Nctl-a  parte  Ía6  mais  venturof^ss  as  ove- 
lhas do  cnmpo  ,  que  as  de  Chriílo  :  porque  o  pao  daí? 
ovelhas  do  campo  nâ6  o  Í3Óde  comer  u  poílor ,  e  ó 
dás  ovelhiis  de  Chliílo  fim.  E quando  o  pao  do  ga- 
do he  de  tal  qualidnde  ,  que  o  pode  comer  o  paílof  , 
nqiíi  eíhi  a  tentação.  O  filho  Pródigo  depois  dedef-Niim.  314. 
b-iratar  todo  o  património  para  remediar  a  fua  ne- 
ceíTidade ,  pozfe  a  paftor ,  e  o  mantimento  do  íeu  ga- 
do era  tal ,  que  também  o  paílor  o  podia  comer.  Foy 
porém  taõ  honrado ,  e  taô  pontual  eíle  moço ,  (  co- 
mo filho  de  bons  pays  que  era  )  que  até  daquelle 
mantimento  ruílico,  e  groíTeírò,  quê  íe  lhe  dava  pa- 
ra o  feu  gado  ,  nem  huma  bolota  tomava  para  fi. 
Mas  qual  era  a  íua  tentação  ?  Cupiebat  explere  ven^ 
trem  de  filiqtiis  ,  quas  porei  manducahant  \  toda  â 
fua  tentação  ,  e  todo  o  feu  appetite  era  comer,  e  en- 
cherfe  daquelJe  mefmo  mantimento  ,  que  íe  lhe  da- 
va para  o  íeu  gido.  E  fe  ifto  fazia  â  fome  do  filho 
Pródigo ,  que  fará  a  do  Padre  avarento }  Paílor  com 
fome  ha  de  comer  o  paõ  do  gado ,  qualquer  que  feja: 
e  mais  os  que  de  cá  va6  com  fome  de  tantos- annos. 
Os  Pregadores  zom.baó  do  diabo  tentar  a  Chriíld 
com  paó  de  pedras  ,  e  naÕ  repàraõ  em  que  eítava  ó 
tentado  com  fome  de  quarenta  diâS    Para  fome  d é 
muitos  dias  nao  ha  pao  çiuro,  quanto  maisp^ara  fGK 
me  de  tantos  annos.  N?ís  grandes  fom.es,  como  a  de 
Jeru falem  ,  e  Samaria /chegarão  as  mays  a  comer  os 
próprios  filhos.  Haveis  de  comer  o  pao  das  ovelhas, 
e  haveis  de  fazer  das  mefmas  ovelhas  paÔ  :  Qui  de- ^.^     _ 
'voraitt  piebetn  meam  ,  ut  ctbmnpams.  ' 

954    O  fundamento  ,  que  tenho  para  aííim  o  te-^uj^  ^^^^ 
mer ,  e  cuidar,  he,  que  quando  ouço  Éillar  nos  voííos 
provimentos ,  ou  promoçoens ,  fó  íe  eítimaÓ  os  def- 

pachos, 


ji6    Vieira  ahhreviado 

pachos  ,  e  fe  avaliaô  os  lugares  pe!o  que  rendem.  A 
hum  graó  Príncipe  deíla  Itaiia  pedio  hum  Eccleíijf- 
tico  íeu  vaílallo ,  que  ihe  fizelle  mercê  de  certa  Igre- 
ja. E quanto  rende  eíTa  Igreja  ?  perguntou  o  Prínci- 
pe. Sereniífimo ,  refpondeo  o  pertendente ,  rende  oi- 
tocentos até  mílefcudos.  Bem  eftá  ,  naô  he  muito 
o  rendimento.  E  quantos  freguezes  tem.?*  tornou  o 
Principie  a  perguntar.  Ecomo  o  pertendente  díííeíTe, 
que  nnÕ  fabia ,  o  deípacho  com  ultima ,  e  fevera  re- 
foiuçaõ  foy  eíle  :  Evos  fabeis  a  conta  aos  efcudos, 
que  haveis  de  comer  ,  e  naô  fabeis  o  numero  das  al- 
mas ,  que  haveis  de  curar  }  Pois  naó  fois  digno  de 
ter  Igreja ,  nem  de  a  pertender  diante  de  mim  ,  ide 
embora.  Oh  fe  todos  os  que  fazem  femelhantes  pro- 
vimentos, fízeííem  eíle  exame  ,  e  fe  ao  menos  o  fízef- 
fem  os  que  os  pertendem ,  e  faô  providos  !  Por  ilFo 
guardaõ  os  efcudos,  e  nao  guardaó  as  ovelhas :  mer- 
cenários, e  naó  paftores  ,  ou  tuíquíadores,  que  he 
peyor.  Eftas  faô  as  contas  ,  que  fazem,  fem  fe  fazer 
conta  da  que  hao  de  dar  a  Deos ,  quando  a  pedir ,  do 
preço  do  íeu  fangue.  Mas  aquelles  ,  que  fó  fegover- 
naõpelo  ardor  habendi  ^  iraõ  arder  onde  elJe  os  le- 
va. Aqui  irá  parar  a  alegria  dos  bons  deípachos, 
e  os  faifos  parabéns  dos  que  os  recebem ,  taó  faifos, 
como  os  dos  que  os  daõ. 


DIS' 


n 


Difcurfo  XCI.      5 1 7 

DISCURSO    XCI. 

Tirado  de  hum  fermao  do  Efpojo  da  May  de  DeoT 

S.  Jofepb ,  pregado  na  Capeila  Real  no  dia  dos 

annos  d'ElRey  D.JoaÔ  IV.  de  gloriofa  me- 

morta  ,  no  qual  o  Au6íor  na  paixão  de 

huns  ciúmes  forma  a  ide  a  de  hum 

Principe  perfeito. 


SEGREDO. 


955 


1|  ,T  Aterias ,  ern  que  pode  fer  perigofa  ap^.^  ^; 

Jixl  falta  do  fegredo  ,  nao  haó  de  fahir  do  Num.  519, 
peito  do  Principe,  nem  para  o  mayor  valido  ,  nemN"™-5^'<^- 
para  o  mayor  confidente ,  nem  para  o  mayor  ami- 


go. 


^$6  He  certo,  que  perguntou  S.Joaô  a  Chrif-Niia,.j4j.^ 
to ,  quem  era  o  traidor  ,  que  o  havia  de  entregar : 
he  certo ,  que  Chrifto  lhe  reípondeo :  he  certo  ,  que 
dormio  reclinado  em  leu  peito  S.Joaó  ;  mas  naõ  he 
certo  ,  quando  adormeceo.  Pergunto  :  Em  que  pon- 
to adormeceo  S.Joaõ  ?  Dizem  alguns  Doutores,  que 
adormeceo  tanto  que  acabou  de  perguntar;  de  ma- 
neira ,  que  quando  Chriílo  refpondeo  ,  já  Saõ  João 
eftava  dormindo  FundaÓ  efte  parecer  no  texto  ;  por- 
que diz  abfolutamente  ,  que  nenhum  dos  que  efta- 
vaô  á  mefa ,  foube  o  que  Chriílo  diíTe  a  Judas ,  quan- 
do logo  foy  executar  o  mefmo  fegredo  :  Hoc  autem^^^'^^' 
nemo  fcivit  difcumbentium.  Se  nenhum  :  logo  nem 
S.Joaô.  E  fe  Saô  Joaõ,  a  quem  fe  dilFe,  o  naõ  ouvio: 
logo  já  eftava  dormindo.  Pois  que  myfterio  teve  ef- 
te fono  lubito ,  que  em  tal  occafiao  naó  podia  fer 

aca- 


m 


1 8     Vieira  ahhreviado 

acafo?  Porque  adormeceo  Sno  João  á  reípofta  de 
Chriílo  Senhor  nolFo  naquella  occafiao  confrangi- 
do a  faltar  a  huma  de  duas :  ou  ao  refpeito  de  aniigo, 
ou  á  obrigação  de  Rey  :  íe  naõ  digo  a  Joaõ,  o  que 
me  pergunta  ,  falto  aos  reípeitos  de  amigo  :  fe  def- 
cubro  hum  fegredo  de  tanta  importância,  falto  ás 
obrigaçoens  de  Rey  ;  pois  que  remédio  para  naõ  fal- 
tar ao  amor  ,  nem  ao  fegredo  ? 

957     Oremediofoy  ordenar Chrifto,  que SJoaó 
iclormeceíTe,  tanto  que  perguntou,  paro  que  naó  po- 
ú^[\ii  ouvir  o  mefmo  ,  que  lhe  reípondia.  E  defta 
maneira  ficou  o  fenhor  latisfazendo  juntamente  ás 
^brigaçoens  de  Rey  ,  e  aos  refpeitos  de  amigo  :  aos 
refpejtos  de  amigo,  porque  reípondeo  ao  que  SJoaó 
ihe  perguntara,  e  ás  obrigaçoensde  Rey,  porque  naõ 
eommunicou  o  que  convinha  encubriríe.  De  forte 
que  na  boca  de  Chriílo ,  e  nos  ouvidos  de  S.  Joaõ  ef- 
teve  o  fegredo  juntamente  encuberto,  erevel.ido: 
revelado  na  boca  de  Chriílo ,  como  íegredo  de  ami- 
go :  encuberto  nos  ouvidos  de JoaÕ  como  fegredo 
de  Rey.  Tanto  devem  os  Príncipes  recatar  algum 
íegredo  ainda  dos  mayores  privados,  qual  era  Joaõ. 
E  íe  naõ  ,  conííderemfeos  inconvenientes,  que  do 
contrario  íe  ftguiaõ.  Se  o  Senhor  defcobria  o  fegre- 
do a  Joaõ  ,  Joaõ  havia-o  de  dizer  &  Pedro ,  que  para 
iífo  o  perguntava  :  lejoaõo  dizia  a  Pedro,  Pedjo 
havia  de  matar  ajudas ,  que  a  elTe  fim  o  queria  conhe- 
cer :  fe  Pedro  matava  ajudas,  naõ  fe  executava  a 
venda ,  e  morte  de  Chrifto:  e  naõ  morrendo  Chrifto, 
ficava  impedido  o  remédio  do  mundo  ,  o  género  hu- 
mano Tem  redempçao  ,  e  o  império  do  meímo  Chrif- 
to fruftrado.  Pia  mnyotes  inconvenientes?  De  ma- 
neira ,  que  de  fe  confervar  aqueiie  fegredo,  que  naó 

pare- 


MHft 


m 


Bifcurfo  XCl,      3i5> 

pnrecia  nula  ,  depenJeo  a  coníbrvoçao  do  Império 
de  Chriílo.  Naõ  importa  menos  hum  íegredo^  que 
hum  Império. 

958     Tanto  que  Chrifto  efpiroii ,  rafgoufe  o  véo^^''^-  H7- 
do  templo  em  llnal  de  que  também  afynagoga  efpi- 
rava ,  e  ^c  acúbiva  a  Monarchia  Hcbrea.  AíFim  o  di- 
zem todos  os  Doutores ;  mns  cu  :  cpiico.  O  final  fem- 
pre  ha  de  ter  proporção  com  o  que  fignjíica  ,  e  mui- 
ta, íe  he  natural, pois  que  proporção  tinha  rafgarfe  o 
véo  do  templo  com  le  haver  de  acabar  o  império  da 
fynagoga  ?  Grande  proporção  ,  diz  S  Leaó  Papa  : 
Sacrinn  illud ,  myjltcumque  fecrettim  ^  qiiod  jolus 
JLimmus  Pontifex  juffus  fuerat  intrare ,  referatum 
ejl.  Aquelle  véo  do  templo  era  a  cortina  ,  que  cobria 
o  Sanda  Sandlrorum  ,  onde  eílavao  efcondidos  os  fe- 
gredos,  e  myilerios  daquelia  ley  ,  vedados  a  todos, 
e  ró  ao  fummo  Sacerdote  permittidos  ;  e  por  iíío  ti- 
nha grande  proporção  raígarfe  o  véo  do  templo  pa- 
ra figniíícar ,  que  fe^acabava  a  fynagoga;  porque  naò 
ha  mais  próprio  final  de  fe  acabar  hum  Império,  hu- 
ma  Monarchia  ,  que  romperemfe  as  cortinas  dos  feus 
myfterios  ,  e  rafgaremfe  os  véos  de  feus  fegredos. 
Os  Reynos  ,  e  as  Monarchias  fufientaófe  majs  do 
myíleriofo ,  q  do  verdadeiro :  e  fe  fe  manifeílaó  feus ' 
myfterios,  mal  os  defendem  as  fuás  verdades.  A  opi- 
nião he  a  vida  dos  Impérios  ,  o  fegredo  he  a  alrna  da 
opinião.  A  prevenção  fabida  ameaça  a  huma  fó  par- 
te ,  fecreta  ameaça  a  todas.  Os  intentos  ignorados 
fufpendem  a  attençaõ  do  inimigo  ,  manifeftos  faó 
a  guia  mais  fegura  dos  íeus  acertos.  Reyno,  cujas  re- 
foluçoens  primeiro  forem  publicas,  que  executa- 
das ,  oh  que  perigofa  conjedura  tem  de  fua  confer- 

vaçaól 

959  Que 


32o     Vieira  ahhreviado 

,  9S9  Qye  bem  entendia  efta  politica  ElRey  Da- 
vid! Levantoufe  Abfaiao  com  o  Reyno,  começou  a 
fazer  grandes  ievas  de  gente,  grandes  exércitos' con- 
tra David:  e  David  que  faria  contra  Abíaiaô?  Cha- 
mou Chufay  hum  grande  Teu  Coníelheiro,  diíTelhe, 
que  fe  paífaíTe  á  conHdencia  de  Abíalaõ ,  e  que  co- 
mo foífe  admitrido  aos  coníeihos  ,  \\\q  revelaíFe  por 
z.  Rtg.15.  ^^^^  occultas  tudo  o  que  lá  paíFaíTe :  Onwe  ver  bum , 
35.  quodcumqtie  audieris  de  domo  Regis,  ifulicabis.  iílo 

fez  David ,  e  nao  fez  mais.  Pois,  David  ,  fe  vem  con- 
tra^vós  taó  numerofos  exércitos  de  Abíalaó ,  porque 
nao  fazeis  também  exercito  ?  E  já  que  vos  defcui- 
dais  deftas  prevençoens,  a  queíim  mandais  lá  Chu- 
fay ?  Que  ha  de  fazer  hum  homem  contra  Abfaiao  ? 
Obrou  David  como  foldado  taó  experimentado  ,  e 
como  Rey  tao  politico.  Q^ierendofe  oppor  ao  po- 
der de  Abíalaõ,  tratou  fobre  tudo  de  lhe  meter  hum 
confidente  feu  no  confelho  ;  porque  entendeo  ,  que 
mayor  guerra  fazia  a  Abfaiao  com  hum  homem,  que 
lhe  rompeífe  os  feus  fegredos  ,  que  com  muitos  mil 
homens ,  que  lhe  rompeflem  os  feus  exércitos.  Hum 
exercito  roto  pódefe  refazer;  mas  hum  fegredo  roto, 
naõ  fe  pode  remediar.  Hum  exercito  roto  ,  pódeíe 
refazer  com  loldiidos :  hum  fegredo  roto ,  naó  íe  po- 
de foldar  com  exércitos. 

960  Qualquer  grande  poder  fem  fegredo  he  fra- 
Num.  549  queza  ,  e  a  mefma  fraqueza  com  fegredo  he  gran- 
de poder.  Em  quanto  Sanfao  encubrio  o  fegredo  de 
íeuscabellos,  deílruio exércitos  inteiros,  como  uef- 
cobrio  o  fegredo  a  Dalila,  cortaranlhe  os  cabcllos 
os  Filiíleos,  e  podéraõ  atar  aqucllas  vak-ntes  maõs 
de  que  tantas  vezes  foraõ  vencidos.  Oh  grande 
Kum.  J4S.  exemplo  do  poder  do  fegredo !  De  maneira ,  que  fe- 

te  ca- 


Diíairío  XCII, 


te  cabellos  com  fepredo  faziaõ  tremer  exércitos  ar- 
mndos ,  e  eílc  meíir.o  poder ,  que  fazia  tremer  exér- 
citos armados  ,  íem  íegredo  buílou  hum  golpe  de 
huma  thefoura  para  os  desbaratar.  Por  iílo  David 
contra  Abfalaõ  tratou  de  lhe  conquiílar  os  íegrs- 
dos ,  e  nau  de  lhe  vencer  os  exércitos. 

DISCURSO     XCÍI. 

Tirado  de  hum  fermao  da  fanta  Cruz  pregado  nã 
feftã  dos  Jòldados  ejiando  na  Bahia  a  Armada 
Real  com  muita  da  nobreza  de  ambas  as  Coroas^ 
em  o  qual  o  Auâlor  no  wyfteriofo  noyne  de  Nicode- 
mos  5  que  quer  dizer  Victor  Populi ,  def cobre  três 
qualidades ,  que  deve  ter  hum  foldado ,  para  fer 
'valcrofo :  nobreza  de  Jangiie ,  familiaridade  com 
Deos  j  e  docilidade  no  juizo  :  nobreza  de  Jangue 
para  o  valor  :  familiaridade  com  Deos  para  o 
faijor  do  Ceo ,  e  docilidade  720  juizo  para  o  con- 
felho. 


SOLDADOS. 


962 


Icodemos,  diz  a  Gloíía  ordinária  ,  querpa^r.  s. 

dizer  ViBor  populi  :  O  vencedor  do^uK^-i^j. 
povo.  Grande  titulo  !  E  fe  bem  repararmos  nss  qua- 
lidades ,  com  que  o  deícreve  o  Euangeliíla  ,  grandes 
partes  tinha  Nicodemos  para  vencedor.  Primeira- 
mente era  nao  íó  nobre ,  mas  da  primeira  nobreza  : 
Princeps  Judaorum  :  e  fer  iliuílre  quem  vay  á  guer- 
ra ,  he  levar  ametade  da  vidloria  ganhada.  Naô  fabe 
vencer  quem  naô  fabe  dar  o  Tangue  ,  e  mal  o  pode 
dar  quem  o  nao  tem.  Qiiando  David  f«hio  ao  defa- 
Tom.  II.  X  íio 


mm 


ili! 


3  2  2     Vieira 

fio  com  o  Gigante  ,  voltou  o  rofto  ElRey  Saul  para 
Abner  Teu  Capitão  General  ,  e  perguntouihe :  Ex 
qua  ftirpe  ejl  bic  aãolefcens  ?  De  que  geração  era 
fiquei le  moço  ?  Pers^untoulhe  pela  geração  ,  dizern 
osRabbinos,  que  refere  Abulenfe,  porque  taõ  brio- 
los  alentos  ,  etao  animofa  reíoluçaõ  em  hum  paftcr, 
pareceolhe  ao  Key  ,  que  naÕ  podia  nafcer ,  fenaõ  de 
mais  altas  raízes.  Vio-o  atreverfe  a  huma  empreza 
íaóarduajvio-o  arrojarfe  intrepidamente  a  hum  peri- 
go taó  manifeílo  ,  e  para  julgar  fe  fahiria  vencedor, 
quizfe  informar,  íe  era  honrado.  Tinhalhe  dito  Da- 
vid, (apertemos  mais  o  ponto}  tinhalhe  dito  David, 
que  defpedaçava  urfos ,  e  delqueixava  leoens :  e  naô 
fe  aquieta  com  tudo  iílo  Saui ,  perguntalhe  pela  ge- 
ração :  Ex  qua  ftirpe  eft  bic  adoJeJcefis  ?  Porque  era 
melhor  fiador  de  haver  de  levar  ao  cabo  taò  grande 
empreza  o  fangue ,  que  tiveíle  herdado  dos  pays, 
que  o  que  derramava  das  feras. 
Part,  7.  963  Já  David  tinha  dito  a  Saul ,  que  partira  urfos, 
Num.  507.  Q  defqueixára  leoens  :  e  fobre  tudo  iílo  perguntalhe 
ainda  o  Rey  pela  geração ;  porque  era  melhor  fiador 
da  vi(5loria  o  fangue  nobre ,  que  tinha  ,  que  o  fangue 
bruto,  que  derramara.  Os  homens  de  inferior  condi- 
ção ,  ainda  que  fejaó  valerofos,  peíejaõ  fós  :  o  nobre 
fempre  peleja  acompanhado  ;  poique  peleja  com  elle 
a  lembrança  de  feus  mayores ,  que  he  a  melhor  com- 
panhia. Em  Aícanio  pelejava  Eneas,  e  Heitor :  em 
Pirrho  pelejava  Achilles,  e  Peleo  :  nos  Decios,  nos 
Fabios,  nos  Scipioens  pelejavao  os  fjmofos  progeni- 
tores de  feus  appellidos  :  e  com  taÓanimofos  lados 
quem  naô  ha  de  fer  valente.^  Com  os  ofibs  do  gran- 
de Afonfo  de  Albuquerque  dizia  ElRey  D.  Joaõ  o 
lií.  que  tinha  fegura  a  Índia.  Efe  eílava  fegura  a  ín- 
dia 


^ 


ifcurfo  XCII.     525 

dia  com  os  oúbs  mortos  de  hum  Capitão  ,  quão  íe- 
guro  eílará  Portugal  com  o  Tangue  vivo  de  tantos  ? 
Tanto  aproveita  o  fungue  para  os  aninmfos  procedi- 
mentos ,  quenaóeílá  o  valor  nos  braços,  eílá  nas 
veyas. 


964     Naó  quero  dizer  com  iíto  ,  que  feja  neceíTa-  ^^^J;^;^^, 
rio  delcender  dos  Godos  para  fer  valente,  que  iíloíe-' 
ria  contradizer  a  razão ,  e  negar  a  experiência^   A  ef- 
pada  ,  que  faz  a  guerra  ,  e  dá  as  vitorias  ,  naõ  he  ía- 
brica  do  ouro  ,  íenaó  do  ferro  ,  nao  do  metal  mais 
refplandecente,  e  ifluilre, fenaô  do  mais  duro,  e  forte. 
Para  fer  taó  valeroíb  como  Alexandre  nao  he  iicceí- 
íarioferíiíhodc  Filippe  de  Macedónia.  O  teílamen- 
to  ,  ou  morgado  de  Marte  nao  exclue  a  rudeza  dos 
nomes  ,  nem  a  vulgaridade  dos  appeilidos.  Bnila  ler 
Gonçalo  ,  e  fer  Fernandes  para  fer  graô  Capitão. 
Honrada  coufa  he  ,  que  a  valentia  venha  por  heran- 
ça ,  e  por  continuação  de  m.uitas  idades,  mas  tal  vez 
pode  vir  de  tíío  longe  ,  que  chegue  já  mui  canfada. 
Quantos  do  arado  íubiraõ  ao  triunfo  ,  e  do  triunío 
tornarão  outra  vez  laureados  ao  arado  ?  As  lentilhas 
deraó  a  Roma  osLentulos  ,  e  as  favas  os  Fabios.  O 
campo  para  elles  era  a  campanha  ,  e  a  agricultura  , 
diz  Plínio  ,  a  arte ,  e  exercício  militar ;  porque  na  or- 
dem^com  que  difpunhaô  as  plantas, aprendiao  a  orde- 
n?r,  e  governar  os  exércitos:  Sive  tlli  eadem  cura  nin.Wh.  9, 
femina  tracíabant  ,  qua  hella  :  eademque  ãiligen-^^^'  ?• 
tia  arva  difponebant ,  qua  cajlra,  Paílor  tinha  faio 
o  terror  dos  mefmos  Romanos  o  noíFo  Portuguez  Vi- 
riato ,  e  tanto  que  trocou  o  cajado  com  o  baihiô  ,_dos 
feus  Toldados  fóube  fazer  leoens,  e  dos  Teus  inimigos 
ovelhas.  AíTin»  que  naó  faõ  totalmente  neceífarios 
os  altos  nafcimentos  para  ter  valeroíos  procedimen- 

X2  tos. 


3  24     Vieira  abhreviado 

Num.  i^s.^^'^*^;  ^^'^^  O  ^]ue  íó  quero  dizer  he,  que  na  nobreza 
eftá  o  valor  livais  certo,  e  móis  feguro.  Oqueniõhe 
nobre ,  pode  íer  valeroío  ,  o  nobre  tem  obngaçaô  de 
o  íer  :  e  vay  muito  do  que  poíFo  por  liberdade,  ao 
que  devo  por  natureza.  As  águias  mo  gQVãó  pombns, 
e  íe  algtama  vez  a  natureza  produziíle  hum  tal  monf- 
tro,  a  pomba  Te  animaria  a  íer  águia  por  naô  dege- 
nerar dos  que  a  gerarão.  Naõ  ha  eípora  para  a  ouía- 
dia  ,  nem  freyo  para  o  temor,  com>o  a  memoria  do 
próprio  naícimento,  fe  hedegeneroías  raizes. 

965.  EílavatemerofoS.Joreph,  etemerofocom 
razaô,  porque  era  matéria  de  honra  :  appareceolhe 
hum  Anjo  ,  e  diílelhe  :  Jojepbfilí  David  noli  time- 
re\  Jofeph  filho  de  David  nao  temas.  A  defcenden- 
cia  de  David  podia  eílar  taó  efcurecida  na  rtiemoria 
de  Jofepji  ,  quanto  vay  do  cetro  real  aos  inftrumen- 
tos  mecânicos,  que  elíe  manejava;  mas  quando  o 
Anjo  o  exhorta  a  que  naõ  tema  ,  iembralhe ,  que  he 
da  geraçaófJe  David ;  porque,  como  diz  o  douto  Pa- 
lácio ,  com  nenhuma  outra  confideraçaõ  mais  efficaz- 
mente  lhe  podia  tirar  o  temor  ,  que  com  a  memoria 
de  que  era  defcendente  de  hum  homem ,  que  nunca 
pan,  7.  íbube  temer.  Como  ha  de  ter  medo  no  coração 
Ku:i:.  soy.quem  tem  a  David  nns  veyas }  O  meímo  Chrifto  Re- 
demptor  noíTo  quando  houve  de  tirar  a  capa  para 
entrar  naquelía  ultima  batalha,  em  que  venceo  a 
morre,  e  o  inferno,  diz  o  Euangelifta  S  João  ,  que 
Part.  6.  íe  lembrou  primeiro  de  quem  era,  e  donde  vinha  : 
Num  1^8.  Sciens  quia  à  Deo  exivit ,  ér  ad  Dcmn  vadit ,  pofiit 
vejiimenta  fita.  Lembrou  fe  da  geração  altiílima,  de 
que  procedia,  lembroufe  de  que  era  filho  do  Monar- 
ca univerfal  de  todo  o  creado  ,  e  como  entrou  com 
eíta  lembrança  na  batalha,  ainda  que  o  amor  da  vida 

lhe 


Dijcurfo  XCII.     325 

lhe  fez  feus  proteílos  no  Horto,  por  fim  pelejou  ani^ 
moíamente,  e  poíto  que  com  tanto  Tangue,  triun- 
fou ,  e  venceo.  .  .,      X. 

966  A  legunda  boa  qualidade ,  e  muiito  melhor  N«'^-  ^99^ 
que  a  paííada'^  he  a  que  iogo  le  íegue  :  Et  'venit  ad 
Jejum  noâie :  Qtie  veyo  Nicodemos  a  tratar  com  Je- 
ludenoire.  Os  dias  fellos  Deos  para  nós,  e  as  noites 
para  fi  :  os  dias  para  as  occupaçoens  do  corpo,  e  as 
noites  para  os  retiros  da  alma  :  os  dias  para  o  exte- 
rior,  e  vifivel ,  e  por  úXo  claros  ,  as  noites  para  o  in- 
terior ,  e  invifivel ,  e  por  iíío  eícuras  :  aíEm  repartia 
Nicodemos  o  tempo.  Os  dias  dava- os  ás  obrigaçoens 
doofíicio  como  peíFoa  publica,  e  para  íatistazer  ás 
meímas  obrigaçoens  com  acerto ,  e  bom  íuceeílo 
gaftava  as  noites  com  Deos.  Oh  fe  a  noíía  milícia  ,  e 
os  cabos  mayores  ,  e  menores  delia  feguiirem  efte 
exemplo  em  parte  das  noites  ,  que  coníiadamente 
me  atreveria  eu  a  lhe  prometter,  que  para  o  felice, 
e  defejado  fim  de  tantas  prevençoens  ,  e  apparatos 
bellicos  naô  faitaria  Deos  em  lhe  dar  hum  bom  dia  1 

9Ó7     Nenhum  General  teve  nefte  mundo  mayor,  Num.  50». 
nem  melhor  dia,  quejoíué  Governador  das  arm^sde 
Ifrael  na  conquifta  dos  Cananeos.  Deo  batalha  aos 
Madianitas,  rotos  já ,  e  fugitivos  ,  quando  o  Sol  pre- 
cipitava a  fe  efconder  no  Occafo :  e  para  que  pódeíTe 
profeguir  ,  e  acabar  a  vidoria  ,  como  íe  o  Sol  fora 
foldido  feu ,  mandoulhe Jofué  ,  que  paraíle ,  e  parou, 
ou  fez  alto  o  Sol.  Diz  a  Híítoria  fagrada  ,  que  nem 
antes,  nem  depois  houve  tao  grande  dia  :  iVb»//^ /Vjcíue  10. 
a7itea  ,  7íec  poftea  tani  longa  dies  :  grande  nn  dura-  ^4. 
çaó ,  grande  na  victoria  ,  grande  no  império  do  Ge- 
neral,  e  mais  que  grande  na  obediência  do  meímo 
Deos  á  voz  de  hum  homem  :  Obediente  Deo  voei 

Tom.  11.  X3  ho7ni- 


leira  aooreviaao^ 

hominis.  Mas  porque  deo  Deos  a  Jofué  hum  tal  dia? 
Porque  o  tal  Jofué  dava  n  Deos  as  nokes.  Antes  de 
dar  principio  a  toda  aquella  conquiíta  nos  arrebaldes 
da  Cidade  de  Jericó  ,  (ahio  Jofuv^  de  noite  ao  campo 
a  orar,  como  coíiumava,  quando  íubitamentevio di- 
ante de  íi  liBiiT  vulto  armado  de  armas  brancas  com  a 
efpada  deíembainhada  na  maó :  Nofter  es ,  anacher- 
fartoriim  ?  Sois  nojTo,  ou  dos  contrários  ?  pergun- 
tou fem  o  perturbar  a  viíao  :  e  S.  Miguel ,  que  era  o 
armado,  reípondeo  :  Eu  fou  o  Príncipe  dos  exércitos 
de  Deos  ,  que  em  leu  nome  vos  venho  aíliítir,  e  aju- 
dar ,  para  que  em  tudo  ,  o  que  emprcnderdes  ,  fejais 
vencedor.  Que  muito  logo ,  que  Deos  déíle  hum  dia 
taô  grande,  e  tantos  outros  dias  a  quem  aíllm  os  par- 
tia com  Deos  ?  Mayor  vifao  foy  a  do  noílo  primeiro 
Afonfo  na  noite  daquelle  dia  ,  em  que  amanheceo 
Key,  pois  vio  ,  eouvio  ao  Senhor  dos  Anjos,  que 
de  íua  boca  lhe  deo  o  titulo ,  e  lhe  aííegurou  o  Rey- 
no.  Mas  que  fazia  entaó  ovaierofo,  e  devoto  Prín- 
cipe? Vigiava,  e  orava  na  fua  tenda,  e  na  Hiíloria 
íivgrada  de  Gedeaô,  como  em  efpelho,  feeftava  ven- 
do a  íi ,  e  lendo  a  fua  mefma  viòloria. 

Num.  301,  968  Qlic  diraô  aqui  muitos  Capitaens  com  no- 
me de  Chriílaos  ,  ou  íejaõdos  menores,  ou  também 
(  que  pode  fer)  dos  niayores  ?  Qije  dias  podem  ef- 
perar  de  Deos ,  fe  daõ  as  noites  ao  diabo  ?  Gaílar 
as  noites  com  Dalila  ,  e  de  dia  íer  Sanlaõ  ,  ainda  que 
íeja  levar  a  vid:oria  pelos  cabellos  ,  lo  por  milagre 

Num.  303.  íerá  poíFivel.  Nno  nos  fiemos  em  armadas  ,  nem  em 
•  exércitos,  ainda  que  as  armadas  foíiem  de  cinco  mil 
nnos,  e  os  exércitos  de  cinco  mdlioens  de  Toldados, 
como  o  deXerxes,  todo  eííe  apparato  nada  impor- 
taria ,  como  naô  importou  entaõ  paru  fegurar  a  em- 

preza. 


«ím^pm 


Dtfcurfo  XC  Jí .     327 

prezí3.  Deos  he  o  que  áá. ,  e  tira  as  viòlorias^  e  íb  as 
podem  efpeiar  com  contiança  os  que  peia  emenda 
dos  peccados  ,  e  obíervancia  de  íua  ley  o  tiverem 
propicio. 

9Ó9  Ainda  tinha  outra  boa  parte  Nicodemos  ^  ^^^^^ 
que  tantas  íaò  necelFarias  para  o  nome  de  vencedor. 
Et  dixit  íllí  :  Rahbi  :  o  fim,  para  que  vinha  buícar  a 
Chrifto,  era  para  o  coníultar  ,  e  ouvir  como  meílre. 
Meílre  era  também  Nicodemos :  Tu  magtfter  es  in 
Ifrael :  e  nefia  reflexão  de  fendo  mefíre  vir  bufcar 
outro  meftre  confiítia  o  fer  bem  fundado  ,  e  naojao 
o  nome  ,  que  tinha.  O  mayor  perigo ,  e  perdição  da 
guerra  he  cuidarem  os  Doutores  defta  arte  ,  que  fa- 
bem  tudo.  Os  lábios  em  qualquer  faculdade  mais 
fabem  ouvindo,  que  diícorrendo,  e  mais  acompa- 
nhados, que  fcs.  Melíores  afttmanínr  qui  foli  non 
omniaprafimimt ,  diz  o  grande  politico  CaíFiodo- 
ro  :  Q-ie  fempre  foraó  eítimados  por  melhores  os 
que  de  fi  fó  naõ  prefumem  tudo.  Já  fe  a  prefum- 
pçaó  do  faber  fe  ajunta  á  íoberania  do  poder ,  com.o 
em  Nicodemos ,  que  era  meílre  ,  e  Príncipe  ,  neíles 
dous  refvaladeiros  eftá  certo  o  precipício  ,  e  a  rui- 
na.  Para  confeguir  eíFeitos  grandes  ,  e  para  levar  ao 
cabo  em  prezas  difficultoías  mais  feguro  he  huma 
ignorância  bem  aconfelhada ,  que  huma  fciencia 
preíumida.  A  primeira  vidoria  para  alcançar  outras 
muitas  he  fujeitar  o  juizo  próprio  quem*  nao  he  fu- 
jeito  ao  mando  alheyo.  Perguntado  Alexandre  Ma- 
gno com  que  induílria  ,  ou  com  que  meyos  em  taô 
breve  tempo  fe  fizera  fenhor  do  mundo,  diz  Eíto- 
beo,  que  refpondera  eílas  palavras  :  ConfiUis  ,  elo- 
quentia  ,  ér  arte  imperatoria  \  Com  os  confeihos  , 
com  a  eloquência  ^  e  arte  de  governar  exércitos.  No 

X4  ulti- 


^m. 


Q 
ò 


--  ^^'^eviú 


n 


Vieira 

ultimo  lugar  poz  a  arte,  e  no  primeiro  o  confelho; 
porque  o  coníelho  he  a  arte  daj-  artes  ,  e  a  alfiia  ,  e 
intelligencia  do  que  ella  eníina.  A  arte  prefcreve 
preceitos  em  commum  ,  o  coQceího  conlldera  as  cir- 
cuiifiancias  particulares  :  a  arte  eníina  o  que  íehade 
fazer,  o  coníelho  delibera  quando,como,e  por  quem. 
Vegeíiio  dirpoz  os  fitios,  e  batalhas  de  longe,  o  con- 
felhejro  tem  diante  dos  olhos  o  exercitoinimigo  , 
e  o  próprio  ,  os  Capitaens ,  os  Toldados ,  o  numero , 
a  naçaõ,  as  armas  ,  e  até  a  occaíiao  do  terreno  ,  do 
Sol ,  e  do  vento ,  que  fe  nao  vem,  fenaÓ  de  perto. 

970  Os  Levitas,  que  quizerao  imitar  as  faça- 
nhas dos  Machabeos ,  porque  pelejarão  fem  confe- 
lho ,  perderão  em  hum  dia  o  que  elles  com  pruden- 
te ,  e  bem  acon Telhado  valor  tinhaõ  ganhado  em 
muitos.  Se  algum  Capitão  podéra  eTcuíar  o  coníe- 
iho  ,  era  o  génio  de  Alexandre,  formado  pela  natu- 
reza para  conquiftar  ,  e  vencer.  Mas  nem  a  fua  arte, 
nem  a  íua  fortuna  o  lifonjeou  de  maneira,  que  nao 
antepuzeífe  o  confelho  a  ambas.  O  que  deíigualou 
o  poder ,  pode  o  fupprir  a  arte  :  o  que  errou  a  meTma 
arte ,  pode-o  emendar  a  fortuna ,  mas  o  que  fe  inten- 
tou fem  confelho,  ainda  que  o  favoreça  o  cafo ,  nun- 
ca he  vidoria.  A  que  alcançou  de  fi  meTmo  Alexan- 
dre ,  eíTa  ihe  deo  todas  as  outras ;  porque  fe  Tujeitou 
a  perguntar  quem  fabia  fujeitar  o  mundo ,  e  haven- 
do de  dever  de  algum  modo  as  fuás  vidlorias,  naô  as 
quiz  dever  ao  feu  braço ,  fenaõ  ao  feu  confelho. 
Kum,  305.  971  Ouçamos  ao  homem  mais  íabio,  o  qual  fó 
logrou  perpetua  paz,  porque entcndeo  melhor  que 
todos  a  guerra.  No  capitulo  20.  dos  Provérbios  dá 
Salamao  hum  documento  militar  notável.  Diz  que 
as  guerras  íe  haõ  de  governar  com  os  lemes :  Guber- 

nacU' 


Bijcurfo  XCIL     3  29 

naculis  traòianda  fiiiU  helía,^  Se  failara  das  guet  ras, 
c  baralhas  navaes ,  pouca  difHculdaue  tinha  eíle  pro- 
vcrbio;  porque  naõ  ha  duvida  ,  que  nas  \  iòlorias  do 
mar  grande  pdrte  cabe   ao  leme.  Mas  failando  de 
todas\is  guerras  abfolutamente  ,  que  proporção  tem 
as  armadas  com  os  exércitos,  os  navios  com  os  efqua  • 
droens,  e  osxombates  do  mar  com  as  batalhas  da 
terra,  c  da  campanha  ?  No  fundo  do  original  Hebreo 
lançou  Saiamaô  a  ancora ,  e  eícondeo  o  fentido  def- 
te  íeu  provérbio.  Onde  a  noíla  Vulgata  diz  ingu- 
bernaculis ,  lê  o  Hebreo  in  conftliii  :  e  chama  Sala- 
maó  aos  confeihos  lemes  da  guerra  ,  para  que  enten- 
da a  politica  militar  dos  exércitos  ,  que  tanto  cafo 
haò  de  fazer  os  Generaes  do  confelho  ,  como  os  Pi- 
lotos do  leme.  Se  na  Capitania,  onde  vay  a  bandeira, 
e  o  farol,  faltou  o  leme  ,  derrotoufe  a  armada  :  e  fe 
o  General  defcuidado  ,  ou  prefumido  defprezar  o 
confelho,  de-fe  também  por  derrotado  ,  e  perdido. 
Aífim  como  para  navegar,  e  fazer  viagem  a  nao  he 
neceílario  que  vá  fcmpre  o  leme  na  maõ  já  a  huma, 
já  a  outra  parte ,  accommodandofe  as  velias^  ao  ven- 
to ,  aíTim  na  guerra,  em  que  os  accidentes  faó  taó  vá- 
rios ,  nenhuma  coufa  fe  deve  intentar  ,  nem  feguir, 
fenaõ  com  maduro  confelho.  Mas  que  feria  ,  ou  que 
fuccederia  ,  fe  o  confelho  naó  fe  ouviflé,  ou  ouvi- 
do fe  naõ  tomaíTe  ?  Sem  confultar  as  eftreilas ,  fe  po- 
de prognoíticar  facilmente.  A  nao ,  que  naó  dá  pelo 
leme,  e  toma  por  davante,  muy  arrifcada  vay  a  en- 
calhar em  hum  baixo,  ou  a  fe  romper  em  hum  recife. 
Livrenos  Deos  de  que  naó  feja  taõ  fatal  o  nome , 
como  he  próprio. 


DIS- 


li 


3  5  o     Vieira  abbreviado 

D  I  S  C_,U  R  S  o    XCIII. 

Tirado  de  humfermaÕda  quarta  Dominga  da  Oua* 
refma,  pregado  71a  Capella  Real  7ia  occajtaô, 
em  que  o  Auctor  tendo  feito  a  primeira  retira- 

í.  da  da  Corte  para  o  Maranhão^  dijpunha  a  fe~ 

yy^gunda  ,  que  tainhem  teve  effetto, 

•  '. .'./  '-,■ 

SOLEDADE. 

97^'     "^T  Ao  foge  huma  fó  vez  quem  foge  de 
Part.  3.  .     -J^^  coração.  Já  o  EuangeiiíU  S.JoaÕ  ti- 

.Num.241.nha  dito,  que  o  Senhor,  e  Salvador  dos  homens  fu- 
gira dos  mefmos  homens  huma  vez, e  agora  nos  diz, 
que  fugio  outra-.Fugit  iterum.  Quando  Herodes  quiz 
matar  a  Chriílo,  para  que  naô  foíFe  Rey,  fugio  para 
o  Egypto,  agora,  que  o  querem  fazer  Rey,  foge  pa- 
ra o  monte  :  In  montem.  Os  amigos  ,  e  os  inimigos 
todos  por  feu  modo  perfeguem  ,  e  quem  conhece, 
que  o  amor  de  huns ,  e  o  odio  de  outros  tudo  he  per- 
feguiçaó,  foge  de  todos.  Naô  fó  fugio  o  Senhor  hoje 
das  turbas,  que  o  feguiaó,  mas  também  dos  meímos 
difcipulos  ,  que  o  acompanhava© ,  e  por  iíFo  fugio 
ió  \  Ipfe  Jolus  \  Oh  fe  o  mundo  conhecera  quanto 
fe  tira  de  hum  retiro,  e  quanto  colhe  quem  fe  aco- 
lhe: Fugit\  A  fobremefa  pois  do  famofo  banquete 
de  hoje,  qual  cuidamos  que  feria  ?  Foy  o  exemplo, 
com  que  o  Senhor  fugio  dos  mefmos  ,  que  lhe  que- 
riaô  dar  o  que  elle  naó  queria  ,  nem  havia  miíter :  e 
a  doutrina  nTió  de  palavra,  mas  de  obra, com  que  fe 
foy  meter  fó  comfígo  na  foledade  de  hum  monte  : 
Fugit  in  7?iontem  ipje  folus.  Deixar  o  povoado  pelo 

defer- 


■■• 


Difcurfo  X£II.. 


)  > 


deferto  ,  trocar  as  Cidades  pelos  montes  ,  fugir  do 
trato,  e  frequência  diis gentes  para  viver  com  Deoc, 
e  conifigo ,  grande  ponto  de  doutrina  em  Chrifío ,  e 
grande  reíoluçaó  de  prudência  em  quem  o  imitar. 

973  Bem  fei  que  dizem  os  defenfores  das  CorNum.  144. 
tes,  ou  os  enfeitiçados  delias,  que  também  fe  pode 
fer  Ermitão  em  México  ,  como  refpondeo  em  nollbs 
dias  hum  varaô  de  mui  celebrado  efpirito  a  quem 
fe  queria  retirar  daquella  grande  Cidade  ,  e  lhe  pe- 
dia confelho.  Mas  nem  todos  os  confelhos  fervem 
para  todos  oscafos,  como  nem  todas  aí?  receitas  pa- 
ra todoi  os  enfermos.  Bem  íei ,  que  dizem  ,  (  e  por 
modo  deaftíonta  )  que  o  fugir  he  iraqueza  ;  como  fe 
quem  foge  ,  fe  quizera  acreditar  de  valente  ,  e  como 
lenaôfora  valor  quebrar  as  cadeas,  de  que  tantos  fe 
naó  defataó.  Gataó  com  Cefar ,  e  Pompeo  á  viíla 
dizia  :  vSei  de  quem  devo  fugir  ,  mas  naÕ  fei  para  on- 
de. Equem  fabe ,  e  tem  para  onde  ,  porque  íe  enver- 
gonhará de  que  \\\'^  chamem  fraco ,  quando  foge  com 
Catão?  Dizem,  que  a  natureza  fez  ao  homem  ani- 
mal íociavei ,  e  que  trocar  a  fociedade ,  e  communi- 
cação  dos  homens  pela  íolidao  dos  deíertos  he  que- 
rer accufar,  ou  emendar  a  natureza,  ecomoarrepen- 
derfe  de  fer  racional.  Mas  quem  fe  ri  de  femelhan- 
tes  ditos  com  provar  o  racional  pelo  rifivel ,  fe  exi' 
me  defta  calumnia  ,  e  naó  tem  por  crime  emendar  a 
natureza  ,  quando  ella  eílá  tao  corrupta. 

974  Í3izem  ,  como  diífe  Ariftotcles  ,  que  quem 
go,ít  1  de  eftár  fó  ,  ou  he  Deos ,  ou  fera  :  yltit  Deus , 
aut  beftia.  Mas  fe  elle  alcançara  ,  que  em  Deos  ha 
três  peífoas  >  nao  havia  de  íuppor,  que  Deos  eílava 
fó :  e  íe  foubera  ,  que  quem  fe  aparta  dos  homens,  he 
para  mais  fe  chegar  a  Deos,  também  o  naÕ  havia  de 

pôr 


3  5  2     Vieira  ahhreroiado 

pôr  no  predicamento  das  feras,  antes,  como  gentio > 
no  numero  dos  deofes.  Dizem  finalmente  ,  que  dei- 
xar a  Corte,  o  ierviço  dos  Príncipes,  ea  benevolên- 
cia ,  e  graça  dos  rimigos  he  filta  de  juizo  ,  e  rema- 
tada loucura.  Aílim  o  digo,  porque  aíiim  lho  ouvi 
dizer. 

Nurr.  Z45.  975  Mns  a  eftn  cenfura  ,  que  mais  pertence  aos 
Médicos,  que  aosTheologos,  reíponderá  Hippocra- 
tes.  Demócrito  aquelie  famofo  Filolbfo  ,  que  de  tu- 
do fe  ria ,  e  ízz  chorar  a  Alexandre  Magno  por  di- 
zer, que  havia  mais  mundos,  canfado  de  zombar 
dos  defpropofitos  deíle  ,  que  taõ  mal  conhecemos  , 
deixou  a  pátria,  e  todo  o  povoado  ,  e  foyíe  meterem 
hum  deferto.  Correo  logo  fama ,  que  Demócrito 
endoudecera ,  e  compadecidos  os  feus  naturaes ,  que 
eraó  os  Abderitas,  mandarão  rogar  por  huma  em- 
baixada a  Hippocrates ,  que  pelo  amor ,  que  tinha ,  e 
honra  ,  que  fazia  ás  fciencias ,  fe  dignaíle  de  querer 
ir  curar  hum  fujeito  taó  notável ,  e  taô  benemérito 
delias.  E  que  vos  parece ,  que  refponderia  Hippocra- 
tes ?  Refpondeo ,  como  refere  Laércio ,  que  íe  a  en- 
fermidade foífe  outra ,  elle  iria  logo  curar  a  Demó- 
crito ;  porém  que  retirarfe  das  gentes,  eiríe  viver 
nos  defertos,  o  que  elles  reputavao  por  doudice, 
mais  era  para  invejar,  que  para  curar;  porque  nunca 
Demócrito  eíli vera  mais  fifu^o  ,  nem  tivera  o  juizo 
mais  <a6 ,  que  quando  fugia  dos  homens :  Haocre  in 
eomagis^  qiiod  fufpictat  ^  qtiam  quoà  fanet  \  i)^  il- 
ludfchema  vita  effe  fartam  ,  tcSíamque  aniviaja» 
nitatem:  milloque  modo  melius  Jtbí  conftdi  contra 
pe/Jilentem  hoininum  atiram ,  quam  rccipiendo  fe  in 
tuta  folittidinumloca. 

Num.24í.     ^y(^    Xíto  he  o  que  faziaó;  e  iílo  o  que  eníinavao 

os 


n 


DipirfoXCIII.   5  55 

os  Filofofos  ( já  que  começaínus  por  elies  :  )  e  a  ra- 
ou  razoens  ,  que  para  iíío  tiveraô  ,   dá  em  va- 


zão , 

rios  lugares  Seíieca 


mais  ventiiroro  íe  os  imitara. 


Elcreve  a  Teu  amigo  ,  e  difcipulo  Lucilio  ,  o  qual  lhe 
tinha  perguntado  de  que  fe  havia  de  guardar  para 
viver  quieta  ,  e  felizmente  :  e  o  primeiro  documen- 
to ,  que  lhe  dá,  he ,  que  fuja  da  multidão  ,  e  frequên- 
cia de  gente:   Oiiidtihi  vitaiidiimmaxime  ^^^ft'^- stvxc. 
mem-y  quiris  ?  Turbam.  Oh  quanto  refumio  o  gran-  Epift  7.' 
de  Fiiofofo  em  huma  ío  palavra!  E  a  razaô  he ,  diz  r'-^-^- 
elle  ;  porque  o  trato  ,  e  converfaçaó  dos  homens  he 
huma  efpecie  de  contagio ,  com  que  fem  querer , 
nem  fentir  nos  pegamos  huns  a  outros  cada  hum  a 
íua  doença  :  e  aíTim  como  nos  mayores  lugares  fe 
accende  mais  a  peíle,  affim  nas  Cidades  mais  popu- 
lofas  he  mayor  o  perigo  :    Inimica  eft  miiltorum 
conver fatio  :  nemo  non  aliqiiod  nobis  "citium  ,  aut 
commodat ,  aut  tmprimit ,  aut  nefcieiítibus  aliinit, 

Itc  '  .  .- 

lim  como  no  tempo  da  peite  deixao  os  quep( 
as  Cidades  ,  e  fe  retiraô  aos  campos  ,  allim  he  pru- 
dente cautela  em  qualquer  tempo  ,  pois  todo  he  de 
pefte,  fugir  para  os  defertos.  Mas  íigamos  ao  nof- 
lo  Filofofo  ,  e  a  bandeira  da  faude ,  que  eile  nos  le- 
vantou :  Sanablnuir .,  Jimodo  feparemur  à  catu. 

977  Prova  Séneca  o  feu  documento  ,  e  ailega  a^um.  247, 
Lucilio  hum  exemplo  nao  alheyo,  fenaó  domeftico, 
e  experimentado  em  íi  mefmo  :  Ego  certe  confiteor 
imbeWcilttatem  meam  :  nunquam  mores ^  qtios  extu^ 
li  ,  refero.  Aliquid  ex  eo ,  quod  covjpofui ,  turbattir\ 
aliquidex his ^  qua  fugavi,  redlit :  ConfeíTote  (diz 
o  Eítoico )  a  minha  fraqueza  ;  nunca  fahi  a  tratar 

com 


4     Vieira  abhreviado 

com  os  homens,  que  naô  tornaíle  peyor  do  que  fuy. 
Sempre  Te  rae  deícompoz  alguma  das  paixoens  ,  que 
já  tinha  compoílo  ,  e  fempre  tornei  a  trazer  comigo 
i3igum  dos  vícios,  que  já  tinha  deílerrado.  Cuida- 
rás por  ventura ,  que  te  hei  de  dizer  ,  que  torno  mais 
avarento  ,  maisambicioío,  mais  incontinente  ?  Pois 
íabe,  (  o  que  naõ  imaginas  )  que  também  torno  mais 
cruel ,  e  mais  deshumano ,  íò  porque eílive  entre  ho- 
mens :  Immo  vero  ^  crudeltor  ^   ^  inhumanior  , 
quoniam  inter  homines  fui.  Naó  fe  podéra  mais  al- 
tamente encarecer  o  perigo  de  tratar  com  homens! 
Se  diílera  ,  que  nos  pegavaô  outros  achaques  ,  mi  fe- 
ria he  de  íecuío  taô  enfermo  ;  mas  pegarem  os  ho- 
mens deshumanidade  ?  A  humanidade  naô  he  a  ef- 
íencia  de  homem  ?  As  feras  com  o  trato  do  homem 
naô  íe  humanao?  Affim  he  ,  ou  aílim  era  ;  mas  tem 
degenerado  tanto  a  natureza  humana  do  feu  próprio 
fer,  que  em  lugar  de  fe  tirar  humanidade  do  trato 
com  os  homens,  o  que  fe  bebe  deftas  fontes  ,  he  def- 
humanidade.  Éreis  humano  antes  de  tratar  com  el- 
\t^  5  depois  que  os  írataíles  ,  íem  o  fentír  ,  nem  f.ber 
como  5  achaisvos  deshumíino:  Et  inhumanior  ^  qiio- 
fiiam  inter  honújies  fui.  Já  íe  na 6  cont então  os  ho- 
mens com  fazer  deshumanidades  ,  mas  chegio  afa- 
zer deshu manos  ,  que  he  muito  peyor.  Fazer  deshu- 
manidades he  fer  cruel ,  fazer  deshumanos  he  naô 
fer  homem  ;  antes  fer  o  contrario  de  homem.  Se  vif- 
femos  que  o  Sol ,  devendo  allumiar,  efcurecia  ,  e  que 
o  fogo, devendo  aquentar, esfriava,  e  que  hum  homem 
em  lugar  de  gerar  homens  gerava  tigres  ,  e  ferpen- 
tes,  naó  íeria  huma  horrenda  monfíruofidader  Pois 
iifo  he  o  que  fazem  os  homens  :  naô  íó  tem  dcshuma- 
nado  a  fua,  iiws  deshumanaô  a  humanidade  daquel- 


m 


ifcurfo  XCIÍÍ .     3  3  5 

les ,  que  os  trataó.   Vede  fc  hc  prudência  fugir  dos 
homens  quem  quizerconíervar  o  íer  de  homem. 
•    978     A  íegunda  razaô  ,  que  da  Séneca  para  iílo ,  Nl^m.  148. 
he  ferem  muitos  aquelles,  de  que  fe  deve  fugir.  Nas 
facçoens  ,  ou  parcialidades  he  muito  iiatural  leguir  o 
partido  dos  mais:  Facile  tranfttiir  ad p lures.  E  co- 
mo a  multidão  dos  homens  toda  propende  para  os 
vicios,  que  virtude  haverá  taô  forte  ,  que  poíTa  re- 
fiílir  ao  ímpeto  ,  e  torrente  de  tantos  ?  Socrati ,  Ca- 
toni  ,  à"  Lélio  excutere  mentem  fuam  dijflmilis  mui- 
titudo  potuijfct  :  adeo  nemo  noflrúm  ,  qui  maxime 
concinnamiis  ingenium^  ferre  impetum  vitiorum  tam 
magno  cornitatn   venieiítium  poteji.  Até  Sócrates, 
atéCataõ,  até  Lélio,  que  entre  Gregos  ,  e  Roma- 
nos foraõ  os  Atlantes  da  virtude,  fe  nao  poderiao 
fuílentar  firmes  contra  o  pezo  ,  e  bateria  dos  vicios, 
acompanhados  de  taô  numerofo  exercito.  E  fe  eíles, 
perdidas  as  cores  da  própria  vida  ,  e  coftumes  ,  fe  re- 
veíliriaô  das  contrarias  ,  pofto  que  tao  diíFemelhan- 
tes;  quanto  mais  os  que  conhecemos  a  fraqueza  da 
noíía  imperfeição,  e  fó  temoso  eíludo  de  a  enfeitar? 
979       Forçados  pois  da  violência  ,  do  exemplo 
comm.um  ,  e  qcaíi  .necelTitados  entre  os  homens  a  fer 
como  elles  ,  que  remédio  pode  haver  em  partido  ta5 
defigual ,  fenao  fugir  ?  Aííim  o  refolve  o  mefmo  Sé- 
neca com  hum  argumento  muito  do  feu  engenho: 
Necefje  efl ,    ant  imiteris  ,   aiit  oderis.  Utrumqtie 
atitem  vitandum  efl :  ne  velfimilts  malisfias  ,  qui  a 
multi  funt :  neve  inimicus  multis ,  quia  diffimiles 
funt.  Sendo  eíla  a  condição  dos  que  enchem  o  mun- 
do ,  e  por  ventura  também  a  dos  que  o  iPiardao ;  que 
pode  fazer  hum  homem  entre  taes  homens  ?  Ou  os 
ha  de  imitar  fendo  taes^ou  os  ha  de  aborrecer,porque 

faó 


leira  ahhrevu 

h.^  taes  j  e  na  duvida  de  os  imitar  ,  ou  aborrecer  nem 
a  imitação  >  nem  o  ódio  lhe  pode  eíiar  bem  ;  porque 
para  imitados  faó  máos ,  e  para  inimigos  í ao  mui- 
tos :  Velfimilis  ma  lis  ,  vel  inimicus  miiitis.  Logo  o 
que  convém  he  fugir ,  e  queira  Deos  que  baile. 
Num.z4c,'.  .  ^^°     ^  terceira  razaõ  ,  e  que  no  mefmo  Séneca 
'tinha  grande  lugsr  ,  e  o  pode  ter  em  outros  ,decla- 
senecai.i.  ^^  ^^'^  ^^"^  ^^^  qucixa  da  fua  primeira  vida  :  Onniem 
cp.z.        operam  de  dl ,  tit  me  multitiuimi  edu  cerem  ,  ^  ali- 
(jíiam  dote^n  ^totabilem f acerem:  Trabalhei,  diz, 
com  todas  as  minhas  forças  por  me  íeparar  do  nume- 
ro dos  muitos  ,  e  por  fazer  alguma  obra  notável  ,  a 
qual  me  fervilFe  de  dote  para  credito ,  e  eílimaçaó  do 
mundo.  E  que  tirei  deíle  meu  trabalho  }  Qtnd aliud 
quam  telis  me  oppojtii ,  cr  malevolemia  ,  quod  mor- 
derei oftendi:  O  que  tirei  foy  provocar  contra  mim , 
e  expor  o  peito  ás  lanças ,  e  dar  matéria  á  maievo- 
Jencia,  em  que  enipregaíTe  os  dentes,  e  tiveíTe  que 
morder.  E  porque  }  Dá  a  razaó,  apontando  a  com  o 
dedo  :  Vides  tu  ijios  qui  eloquentiam  laudant ,  qui 
opes  feqmmtur ,  qui  grati£  adulantur ,  quipoteii- 
fiam  extollunt }  Omnes  aut  fiint  hoftes  ,  out  (  quod 
in  aqiio  eft )  effepoffimt'.  Vês  tu  eíles  ,  que  louvao  a 
eloquência  ,  que  íeguem  a  cubica ,  que  adulaÕ  a  gra- 
ça ,  que  adoraó  a  potencia  ?  Pois  íabe  que  todos  ou 
íao  inimigos,  ou  o  podem  fer ,  que  vai  o  meímo  : 
Oiiam  magnus  mirantium ,  ta^n  magjjus  invíden- 
titim.  populus  eft  :  Qiisõ  grande  he  o  povo  dos  que 
te  admiraõ  ,  taó  grande  he  o  numero  dos  que  te  in- 
vejaõ.  A  admiração  eílará  por  algum  tempo  fufpen- 
fa ,  e  muda,  com  coítuma  j  mas  a  inveja  reconcen- 
trfida  rebentará  com  mais  força  como  de  mina ,  e  o 
que  foraõ  applauíos ,  fcraõ  eítragos. 

981  An- 


Difcurjo  XCIII,    5j7 

981  Antes  nos  tenhao  inveja  ,  que  compaixão, 
fentença  foy  nafcida  na  gentilidade  ,  que  depois  fez 
chriílã  S.  Gregório  Nazianzeno  ,  mas  no  mefmo  Na- 
zianzeno  moílrou  a  experiência  ,  que  antes  íe  deve 
eleger  o  eftado  da  compaixão  ,  que  o  da  inveja  ;  por- 
que a  de  feus  emulos  o  perfeguio  de  tal  modo  (  ou 
taô  fem  modo)que  obrigado  a  fe  lançar  ao  mar, como 
Jonas  ,  a  mefma  inveja  lhe  veyo  a  ter  compaixão. Em 
quanto  e!la  naõ  chega  a  fe  defpicar  aíTim  ,  nao  def- 
canfa.  Por  iíTo  Séneca  conclue,  que  arrependido  do 
primeiro  inftituto  da  íua  vida  ,  e  de  fe  ter  moíkado 
ao  mundo  tomara  por  ultimo  confeiho  recolherfe 
comfígo  dentro  em  íi  mefmo ,  e  cultivar  a  própria  al- 
ma com  taes  exercidos  ,  que  elle  fó  os  podelle  fen- 
tir  ,  e  nenhum  homem  os  podelfe  ver  :  Qj^in  potius 
qu£ro  aliquidufti  bonum  ,  qtiod  fentiam  ^  non  qmd 
ojlendam.  ^        ^  Num.  25© 

982*  Eftas  foraõ  asrazoens,  porque  fe  retiiavaó 
aos  defertos ,  e  fugiaó  da  communicaçao  dos  homens 
aquelles  grandes  Filofofos:  hum  dos  quaes  pergunta- 
do ,  que  fruclo  tinha  colhido  de  todos  feus  eftudos, 
reípondeo  :  Saber  viver  íó  comigo.  Affim  o  refere 
Eliobeo,  e  o  qualificou  o  mefmo  Séneca  dizendo: 
Frirnitm  argiimenitím  bene  compofita  mentis  exijli- 
tno  ,  pojje  confijlere  ,  ér  fecmn  íjiorari :  O  primeiro 
argumento  naó  de  fe  ter  alienado  o  juizo  ,  como  ao 
principio  fe  dizia ,  mas  de  eftar  muito  em  íeu  lugar , 
e  bem  comporto,  he  fabsr  hum  homem  morar  com- 
íigo  :  Seciim  morari.  Mas  paífemos  da  Filofoíia  á 
chriíiandade,  e  dos  documentos  darazaófemfé  aos 
da  fe  ,  e  razão ,  que  faô  os  dos  Santos. 

983     Arfenio  ,  aquelle  infigne  varão  em  todos  os  Num-tsi» 
eílados  ,  pedido  pelo  Imperador  Theodofio  ,  c  no- 

Tom.  II.  Y  meado 


meado  pelo  Papa  S.  Dimafo  para  Meílre  de  Arcá- 
dio ,  já  dsiclarado  íuccelíor  do  íniperio  ,  era  taó  eili- 
modo  do  meímo  Imperador,  que  entrando huma  vez 
a  ouvir  dar  liçaÔ  a  feu  íilho  ,  e  vendo  que  Aríenio 
eílava  em  pé,  e  Arcádio  aííentado,  reprehendeo  a 
ambos  dsquella,  que  ellesnnó  tinhao  por  indecencia, 
e  mandou  ,  que  didli  por  diante  Arfenioenfinalíe  af- 
feníado,  e  Arcádio  ouvifle  em  pé,  e  com  a  cabeça 
deícuberta.  Com  efte  credito  ,  e  favor  de  hum  taó 
grande  Monarcha,  e  com  o  applaufo  de  todo  o  i'a- 
ço ,  e  Corte  ,  que  por  reverencia  ,  ou  lifonja  fempre 
feguem  ,  ou  moftraô  feguir  o  aíFeólo  dos  Principes, 
vivia  com  tudo  inquieto ,  e  deícontente  Aríenio  naó 
íe  fiando  nem  do  que  era,  nem  do  que  lhe  promet- 
tia  aquella  fortuna.  Duvidofo  pois  da  refoluçaô,  que 
devia  tomar ,  naó  pedio  confelho  aos  amigos  de  ma- 
yor  authoridade,  e  mais  fieis,  nem  menos  íe  quiz 
aconfelhar  comfigo ,  mas  recorrendo  a  Deos ,  que  fó 
he  o  norte  íeguro  nas  bonanças  ,  ou  tempeftades  de 
hum  mar  taô  incerto ,  ouvio  huma  voz  do  Ceo,  que 
lhe  dizia  :  Arfeni^fugehomines^  efalvus  eris\  Ar- 
íenio ,  foge  dos  homens,  e  falvartehas.  Com  efte 
avifo  ,  que  naó  era  neceílario  fer  em  voz  para  íe  en- 
tender, fem  pedir  iicença  ao  Imperador  (  porque  ía- 
bia,  que  iha  naÓ  havia  de  dar)  fe  embarcou  occulta- 
mente  Arfenio  de  Conftantinopla  para  oEgypto,  e 
metendofe  pelo  mais  interior  do  deíerto  ,  alli  efco- 
Iheo  para  perpetua  morada  huma  cova ,  na  qual  por- 
que fe  foube  enterrar  em  vida ,  tanto  verificou  o  Orá- 
culo do  Ceo  em  fe  falvar,  como  o  tinha  obedecido 
em  fugir  dos  homens  :  Fuge  homines  ,  ^  jalvus  eris. 
Num,  153.  984  Viviaó  no  mefmo  deíerto  naõ  juntos ,  mas 
apartados,  cada  hum  na  íua  cova,  ou  choupana,  ou- 
tros 


Dljcurfo  ^CIII.     5  59 

tros  Anacoretas ,  e  com  eíles  failava  algumas  vezes 
Aríenio,  ouvindo  os  como  a  Mellres  da  difciplina 
monacha! ,  e  vida  eremitica.  E  como  hum  dos  nmis 
anciãos  lhe  perguntaíFe,  qual  fora  o  motivo  daquella 
íua  retirada  taõ  eílranha,  a  repoíla,  que  deo,  foy  ef- 
ta  :  No7i  poffe  fe  cum  Deo  fim ul^  (í^  cum  homiiríbus 
vive7'e  :  Qiie  o  motivo  ,  que  tivera  para  fugir  do 
mundo  ,  for.j  ter  experimentado  no  meímo  mundo  , 
que  viver  juntamente  com  os  homens,  e  mais  com 
Deos  naô  he  poílivel.  E  declarando  a  razão  defta 
impoíiibilidade,  dizia  que  era  ;  porque  as  vontades 
dos  homens  raramente  íe  ajuftaô  com  a  vontade  de 
Deos,  e  porque  fendo  a  vontade  de  Deos  huma  íó, 
e  íempre  a  mefma ,  as  dos  homens  pelo  contrario  faõ 
tantas ,  taõ  diverfas  ,  e  taÕ  encontradas  ,  quantos  fao 
os  mefmos  homens,  e  feus  intereíFes ,  eappetiíesje 
porque  ainda  no  mefmo  homem  naô  dura  muito  a 
mefma  vontade  por  fer  inconftante  ,  e  varia.  Aííim 
provava  ,  e  concluia  a  íua  razaõ  Arfenio  ,  e  defta  de* 
monftraçaõ  infallivel  fe  tira  huma  de  três  conclu- 
íoens  igualmente  certas,  ou  que  os  que  cuidiiôque 
vivem  com  Deos,  e  com  os  homens ,  fe  enganaõ,  ou 
que  os  que  vivem  com  os  homens,  naõ  vivem  com 
Deos ,  ou  que  quem  quizer  viver  com  Deos,  ha  de 
deixar  os  homens. 

985  Se  o  mefmo  Deos  naõ  concorda  as  vontades  Num.  254. 
dos  homens  com  a  fua  ,  como  poderá  hum  homem  , 
por  mais  que  faça  ,  ou  fc  desfaça  ,  concordar  as  von- 
tades dos  homens  com  a  de  Deos  ?  De  David  diíFe 
Deos,  que  tinha  achado  hum  homem  conforme  íeu 
coração  ,  o  qual  faria  todas  as  fuás  vontades  :  Jnvc7n 
Díivid  virufn  fecundum  cor  meiím  ,  quifactet  oiiuies ^l]'  '^' 
volii?itates  meãs,  E  com  fer  efte  homem  íií)gular 

Y2  entre 


Num.  1Í3 


3  40     Vieira  abbrroiado'. 

entre  todos  os  homens  ,  e  eíle  Rey  a  excepção  de 
todos  os  Reys,  quando  eile  mandou  tirar  a  vida  a 
Unas  ,  quando  o  fez  portador  de  íua  própria  morte 
em  huma  carta  aleivoía  ,  e  quando  no  primeiro  adto 
deíla  tragedia  lhe  mandou  roubar  a  mulher  de  cala, 
fem  íe  lembrar ,  que  o  mefmo  Urias  o  eílava  íervin- 
do  Wà  campanha  com  tanto  valor  ,  e  lealdade  ,  have- 
ria algum  adulador  tao  íabio  ,  ou  taó  fem  pejo ,  que 
podeííe  concordar  eílas  vontades  com  a  de  Deos  ? 
Mal  podiãõ  logo  caber  íemelhantes  concordatas  em 
hum  animo  taõ  amigo  da  verdade ,  taõ  rc£to ,  taô  in- 
teiro 5  e  taõ  conílante,  como  o  de  Arfenio.  As  expe- 
riências ,  a  que  eile  fe  referia  ,  eraò  as  de  Roma,  e 
Conílantinopla,  as  duas  mayores  Cortes  do  mundo, 
das  quaes  coftumava  dizer  ,  que  os  três  mais  fortes 
inimigos  ,  que  nellas  lhe  faziaó  guerra ,  hum  fe  cha- 
mava ver,  outro  ouvir,  outro  fallar,  e  que  de  todos 
eftes  o  livrara  o  deíerto,ondefe  naõ  vê,  nem  ouve, 
nem  falia:  Quifedet  infolitudine  ^  quiefcit  ^  (^  à 
tribus  belUs  eripitur  ^  id  ejl  ^  auditus^  locutionisj 
é^  vifiís.  E  em  hum  mundo,  onde  fe  vem  tantas  cou- 
fas,  que  fe  naó  podem  ver,  e  fe  ouvem  as  que  fenao 
podem  ouvir,  e  fefallaõ,  e  faõ  falladas  as  que  fe 
naõ  podem  dizer  ,  como  pode  viver  hum  homem  , 
que  naó  for  cego,  furdo,  nem  mudo,  íenaõ  fugindo 
dos  homens:  Fuge homines  ? 

986  S.  Jeronymo  como  quem  tao  experimenta- 
do tinha  a  quietação  do  deferto  ,  e  as  perturbaçoens 
do  povoado,  egallado  a  vida  alternadamente  já  em 
Roma  ,  e  nas  Cidades  da  Grécia,  já  nos  deíertosda 
Thebaida  ,  e  da  Paleílina ,  efcrevendo  a  Ruftico  di- 
zia :  Mihi  oppidum  carcer  eft ,  folitudo  paradijus: 
Para  mim  o  povoado  he  cárcere ,  e  o  deferto  paraifo. 

Livrar- 


-^ 


Difcurfo  XCÍÍI.     341 

Livrarfe  pois  de  tal  cárcere  ,  de  tal  Babylonia  ,  e  de 
tal  cativeiro ,  eíla  he  a  primeira  prerogativa  dos  que 
fe  deliberao  a  deixar  o  povoado ,  e  fugir  com  Chrif- 
to  ao  monte  :  Fiigit  in  mo7item.  Diz  o  Euangeiifta ,  Num.  z6u\ 
quefugio  o  Senhor  para  o  monte,  enaô  diz  qual  fot- 
fe  o  monte  ,  para  que  fugio.  Mas  até  o  fugir  para 
monte  fem  nome  he  circunftancia,  que  acredita  o 
higir.  Fugio  como  quem  bufcava  o  retiro,  e  naõ  a 
fama  :  fugio  como  quem  queria  ,  que  naô  foubellem 
delle,  nem  onde eftava.  AíFim  fepultou  DeosaMoy- 
íésj  fem  fe  faber  já  mais  aonde,  e  aíFim  fe  deve  enter- 
rar, e  eíconder  quem  toma  o  deferto  por  íepultu- 
ra.  E  porque  o  nome  de  fepultura  naó  faça  horror 
aos  vivos  ,  nem  os  ecos  do  deíerto  aos  que  nao  fa- 
bem  viver  fós,  paliemos  ao  monte  Sinai. 

987     Coufa  notável,  e  muito  digna  de  reparar  Num.  1^4 
he ,  que  havendo  Deos  de  efcrever ,  e  dar  ley  aos  ho- 
mens ,  eícolheíTe  paraiflo  hum  monte  no  meyo  de 
hum  deferto,  qual  foy  o  monte  Sinai  nos  defertos 
da  Arábia.  As  leys  naó  fe  íizeraõ  para  os  montes, 
nem  para  os  defertos ,  fenaô  para  os  povoados ,  e  pa- 
ra as  Cidades.  Da  Cidade  de  Jerufalem  diíFe  o  Pro- 
feta ,  que  havia  da  fahir  a  ley :  De  Sion  exibit  lex^  ^ ifaí.  2,.  y> 
'verbum  Domini  de  jerufalem.  As  partes,  de  que  fe 
compunha  a  mefma  ley  ,  todas  fe  ordenao  a  povo,  a 
Cidade,  a  congregação  de  homens.  Porque  na  par- 
te moral  o  fegundo  preceito  da  primeira  taboa ,  e  os 
fete  da  fegunda  todos  eftaó  fundados  na  juíliça  ,  e 
caridade   do  próximo  fem  lefaó ,   nem  oífenfa  do 
trato  humano  :  a  parte  ceremonial ,  que  pertencia  ao 
culto  divino,  expiaçoens,  e  facrificios  ,  também  ti- 
4iha  todo  o  feu  exercício  naó  fora  ,  fenaó  dentro  da 
Cidade ;  porque  o  templo  era  hum  fó,  e  na  Cidade 
,   Tom.  II.  Yd  ^^ 


342     V  leira  ai}t>reviú 

de  feru falem  ,  e  a  elle  havia  de  concorrer  todo  o  po- 
vo três  vezes  no  anno:  finalmente  a  parte  civil,  e 
forenfe  no  niefmonomeeílá  dizendo  Cidade,  Com- 
munidade  ,  Republica  ,  Tnbunaes  .Juizes,  Partes. 
Pois  íe  as  leys  fe  fizeraÔ  para  os  povos ,  porque  ns  dá 
Deos  no  defpovoado?  Se  para  as  Cidades,  e  Repu- 
blicas ,  porque  as  dá  em  hum  monte,  e  no  meyo  de 
hum  deíerto?  Porque  fó  nos  montes,  e  nos  defer- 
tos,  diz  PhiloHtbreo,  eftaô  os  homens  capazes  de 
receber  em  fuás  almas  ,  como  convém  ,  os  preceitos, 
Nuin.zí5.e  didames  da  íabedoria  divina :  Qiiod adf acras  le- 
ges  recípiendas  animus  purificatus  reqtiiritur  elu- 
tis  maculís ,  qu^  harent  ex  mifcellani£  turba  in  ci- 
'vitatibus  degentis  contagio ,  id  vero  non  ejl  pojjlbi- 
le  a  li  ter  ,  quam  in  dejerto  efficere.  Para  receber ,  e 
perceber  a  fantidade  ,  e  efpirito  das  leys  divinas  he 
neceílario  ,  que  os  ânimos  eftejaõ  puros ,  e  fem  mif- 
tura,  nem  mancha  dos  aíFedlos,  e  cuidados  terrenos, 
queos  defcompoem,  ealteraõ:  eefta  pureza,  tran- 
quillidade,  e  ferenidade  de  animo  naó  a  pode  haver 
entre  a  perturbação,  e  tumulto  dos  povos,  eiabyrin- 
to  das  Cidades  ,  fenao  no  retiro  dos  montes ,  e  na 
quietação  ,  e  íilencio  dos  defertos.  As  leys  de  Deos 
fao  as  regras  da  vida  ,  os  efpelhos  da  alma ,  e  as  ba- 
lanças da  confciencia  .,  e  no  meyo  dos  embaraços, 
encontros,  e  batalhas  continuas  do  povoado  as  re- 
gras perdem  a  redlidao ,  os  efpelhos  a  pureza ,  as  ba- 
lanças a  igualdade,  e  tudo  fe  defcompoem,  e per- 
turba ,  com  que  naõ  he  poííivel  ( diz  Philo )  que  nem 
o  que  Deos  manda, fe  perceba ,  nem  o  que  mal  fe  per- 
cebe ,  fe  guarde.  É  fe  nao  vede-o  nas  taboas  da  mef- 
nia  ley.  Em  quanto  elliveraóno  monte,coníervaraÕ- 
fe  inteiras ,  tanto  que  Moyfés  chegou  com  ellas  ao 
r  povo 


Difairfo  XCIII.    545 

novo,  I020  íe  quebrarão.  E  depois  de  quebradas,  que 
remédio  houve  para  fe  reformarem  ?  NaÕ  houve  ou- 
tro remédio,  fenaÔ  tornar  Moyícs  a  Deos,  e  ao  mon- 
te •  porque  íó  com  Deos  em  hum  monte  le  guardao 
as  fuás  leys,  fem  fe  quebrnrem,  e  fó  com  Deos  em  hu 
monte  fe  reformao  depois  de  quebradas,  hm  hm  , 
quando  Deos  deo  a  mefma  ley,  fendo  iey  univeríal 
para  todos  ,  em  todos  os  preceitos  delia  íempre  fai- 
lou  com  hum  fó  :  Nonoccuks ,non  m(Fcbabens',nonv^od.to. 
furtum  fácies:  para  que  cntendeílemos,  queíoos   ^ 
que  vivejn  fós  as  venerao,  fó  os  que  vivem  íos  ,  as 
obíervaó,  íóos  que  vivem  fós,  colhem  frutlo  delias. 
Eeíles  faó  os  que  feguindo  o  nafcimento  das  meí- 
mas  leys,  do  povoado  fe  retirao  para  o  deíerto ,  e  das 
Cidades  para  o  monte  :  In  montem. 

988     Bem  podéra  o  Senhor  efcolher  outro  lugar  5^^^,  ,g^. 
no  povoado ,  e  ainda  outro  monte  (  como  o  de  Sion 
no  meyo  de  Jerufalem  )  para  aíTentar  nelle  a  fua  ef- 
cola ;  mas  elegeo  efte  taõ  diílante  da  meíma  Cidade, 
e  taô  apartado  do  mundo  ,  para  nos  enfmar  com  o 
primeiro  exemplo,  que  a  efcoladafabedoria  doCeo 
he  a  vida  foíitaria ,  e  do  deferto.  AíTim  o  diz  Sac  Pe- 
dro Damião,  aquelle,  que  pelo  deferto  trocou  a  Ro- 
ma, e  pelo  fayal  a  purpura  :  Solitária  vita  ccshjtís 
doãrinafcLola  efl ,  &  divinarum  artium  difciplt- 
na :  illic  enim  Deus  eft  totum  ,  quod  difcitur  -.Ávi- 
da foíitaria  he  a  efcola  da  doutrina  do  Ceo ,  e  as  ?,r- 
tes,  que  nella  fe  profeífaó,  todas  faó  divinas,  porque 
tudo  o  que  alli  fe  aprende,  he  Deos :  Illic  emm  Deus 
ejt  totum  ,  quod  difcitur.  Oh  quem  levantara  huma 
deftas  cadeiras  fem  emulação,  nem  oppofíçao  em 
todas  as  Univerfidadesjdo  mundo!  Aqui  fe  graduarão 

os  iá  nomeados  Antonios ,  e  Arfenios ,  aqui  os  Pau- 
•^  Y  4  los, 


344     Vieira  cíbhreviaão 

ios,os  HilarioenSjOs  Pacomios,e  todos  aquelies  dou- 
tifiímos  idiotas  iauresdos  na  etcrnidnde  ,  que  ou  de 
ignorantes  Je  íizerâó  íabios  \  ou  de  íabios ignorantes 
por  Chrifto, 

Nnm:.é7      ?^^     Os  livros,  por  quc  eftudavaó  fem  efpecula- 
'çaõ  ,  e  mais  com  o  efquecimento ,  que  com  a  memo- 
ria jfaÕ  aquelles  tao  approvados  por  S.  Bernardo 
e  tao  alheyos  de  toda  a  inveja  ,  como  de  toda  a  cen- 
fura.  Eícrevia  S.  Bern.irdo  a  hum  deíejofo  de  íaber 
a  quem  elíe  defejava  fazer  mais  íabio,  e  diz  aíTim  : 
Experto  crede  ^  aliquid  ampUus  inventes  in  fylvis 
^uani  in  libris:  Credeme  como  a  experimentado  ' 
que  mais  haveis  de  aprender  nos  boíques,  que  nos 
livros.  Que  arvore  ha  em  hum  boíque  ou  mais  al- 
ta ,  ou  mais  humilde ,  que  naó  crefça  fenipre  para  o 

,è  ^eo  ?  E  fe  tanto  anheiaõ  ao  Ceo  as  que  tem  raizes 

na  terra;  que  devem  fazer  as  que  naó  tem  raizes? 
As  do  povoado,  e  cultivadas  dependem  da  induííria 
dos  homens,  as  do  deferto,  e  fem  cultura  depen- 
dem fó  do  Ceo  ,  e  de  Deos ,  e  nem  por  iífo  creícem, 
ou  duraõ  menos.  As  que  defpe  o  Inverno ,  enfinaó  a 
efperar  pelo  Vera5,  e  as  que  vefte,  e  enriquece  o  Ve- 
-raõ  ,  a  naô  fiar  da  prefen  te  fortuna,  porque  lhe  ha  de 
ÍLicceder  o  Inverno.  As  que  fe  dobrão  ao  vento  ,  en- 
íinaõ  a  coníervaçaõ  própria  ,  e  as  que  antes  querem 
quebrar  ,  que  torcer ,  a  redidaõ ,  e  a  conftancia.  Em 
-fim  cada  arvore  he  hum  livro  ,  cada  folha  huma  li- 
ção, cada  flor  hum  deíengano,  e  cadafruòlo  três  fru- 
d:os:  os  verdes  ainda  naó  faò,  os  maduros  duraó  pou- 
co ,  e  os  paliados  já  foraõ.  Efta  he  a  efcola  muda  do 
deferto  ,  em  que  S.  Bernardo  eíludou  no  feu  valle  :  e 
eíia  a  que  Chrifto  aíFentou  no  mefmo  monte ,  onde 

Num.  ié^.diíTe  a  voz  do  Ceo :  Ipfu?n  audite.  Grande  razaõ  te- 
'    ^  ve 


I 
I 


ijcurjo  J^C  111.    345 

ve  o  Euangehlhi  axi  caiar  o  nome  próprio  do  monte, 
para  onde  o  Senhor  hoje  fe  retirou,  e  por  ilfo  tendo  já 
declarado,  que  era  deferto  ,  fe  contentou  com  lhe 
chamar  monte  :  In  montem. 

990     RetiroLiíe  o  Senhor ,  ou  fugio  para  o  mon-  Num.i;© 
te  ,  e  retlrouíe  elle  ío  :  Ipfejolus.  Nefta  palavra  ef-  , 

taó  recopilados ,  ou  feamente  pintados  todos  os  hor- 
rores, e  medos  da  foledade.  E  quantos  deíles  medro- 
fos  cobrindo  o  mefmo  medo  com  apparenciasde  dif- 
cretos  eílaraó  ailegando  com  Salamaó,  e  dizendo 
com  elle:  V^e  foli\  Aydofó?  Sentença  %  eíla  da-^^^j^  ^^^ 
GuelleRey  rapientiffimo  :  e  fem  lhe  perguntarmos 
a  razaó  ,  elle  a  deo  logo :  Qtiia  cum  ceciderit,  non  ^ 

habet  jublevantem  fe.  Ay  do  ló ;  porque  quando  ca- 
hir  ,  naô  terá  quem  o  levante.  Mas  naó  he  necella-  ' 

rio  fer  Salamaõ  para  refutar  eíle  inconveniente.  Se  o 
fó  naó  terá  quem  o  levante,  também  naõ  terá  quem 
o  derrube.  E  mayor  felicidade  he  carecer  do  perigo  .. 

de  quem  me  derrube ,  que  haver  miíler  o  foccorro  de 
quem  me  levante.  Quanto  mais ,  que  os  que  podem, 
e  coílumaó  derrubar ,  íao  os  muitos ,  e  os  grandes: 
eoscahidos,  a  quem  eíles  derrubaô  ,  mais  facilmen- 
te acharão  huma  liíbnja  ,  que  lhes  ponha  o  pé  em  ci- 
ma ,  que  huma  amizade  conílante  ,  e  valerofa,  q^ue  fe 
atreva  a  lhes  dar  a  maô.  Mas  fe  lhes  faltar  a  maõ  dos 
homens ,  uaô  lhe  faltará  a  de  Deos  :  Cnm  cecidertt ,  pf.  jí.  t^t 
non  collidetur^quia  Dominus  lupponit  majiumjjiam^ 
diíTe  melhor,  que  Salamaó,  feu  pay  David.  Salamaó 
doefe  do  lo ,  porque  fe  cahir  ,  naô  terá  quem  o  le- 
vante :  e  David  dalhe  o  parabém  ,  porque  fe  cahir  , 
Deos  lhe  porá  a  maõ  debaixo,  para  que  nada  lhe  fa- 
ça mal.  Aquelle  fó  acharfeha  fó  ,  porque  lhe  falta- 
ráó  os  homens ;  mas  eíle  íó  nunca  eílará  fó ,  porque 
'  fem- 


Nura.iyí. 


3  46     Vieira  ahhreviado 

fempre  terá  comfigo,  e  por  fi  a  Deos.  Aquelle  fó 
poderá  cahir,  ainda  que  o  nao  derrubem  :  eíte  fó 
por  mais  que  o  queiraô  derrubar ,  nunca  poderá  ca- 
hir  ,  porque  quem  cahe  fobre  as  maõs  de  Deos  ,  a 
mefma  queda  o  levanta. 

991  Daquifefegue,  quena  foledade  tomada  por 
Deos  o  fó  nunca  eftá  fó.  O  fó  na  foledade  nunca  ef- 
tá fó,  porque  Deos  eftá  com  elle,  e  eile  com  Deos. 
Por  iíTo  dizia  S.  Bernardo  :  Nunquam  minus  folus , 
guamjolus'.  Nunca  eftou  menos  fó  ,  que  quando  ef- 
tou  fó  ;  porque  quando  naó  eftou  ló  ,  eftou  com  os 
homens,  e  quando  eftou  fó  ,  eftou  com  Deos.  E  he 
demonftraçaó  evidente,  que  quem  eftá  com  Deos, 
eftá  menos  íó,  que  quem  eftá  com  os  homens  ;  por- 
que a  companhia  dos  homens,  ainda  que  fejaõ  mui- 
tos, he  limitada  ,  e  a  companhia  de  Deos,  ainda  que 
feja  hum  fó  ,  he  immenfa. 

Num;  tjt.  99^  ^^  ^^  acabaflem  de  entender  os  homens 
'quanto  perdem  de  íi ,  e  de  tudo  em  naÓ  íaberem  ef- 
tar  fós  com  Deos  ,  e  comfigo  !  Em  quanto  Adaó  ef- 
reve  íó  ,  confervoufe  no  Paraifo  ,  na  graça  de  Deos, 
e  na  Monarchia  do  mundo  :  depois  que  efteve  acom- 
panhado, perdeo  o  Paraifo,  perdeo  a  graça  ,  perdeo 
o  Império  ,  perdeofe  a  íi ,  perdeonos  a  nós ,  perdeo 
tudo.  E  porque  nao  pareça  que  ponho  a  feUcidade 

Num.  27j.ja  folidao  em  revelaçoens  interiores ,  occultas  aos 
fentidos  humanos  ,  outras  vifoens  tem  os  íolitarios 
manifeftas ,  e  que  todas  vem ,  fendo  elles  porém  mais 
ditofos  que  todos,  porque  as  vem  de  longe,  e  em  lu- 
gar íeguro.  Nefta  mefma  occafiaô ,  em  que  Chrifto 
Senhor  noíTo  fe  retirou  ao  monte  ,  os  difcipulos,  que 
fe  tinhaó  embarcado ,  padecerão  huma  terrivcl  tem- 
peftade,  na  qualjádefconíiados  de  remédio,  faltou 

pou- 


• 


Difcurfo  XCW.    3  4  7 

pouco  que  o  mar  os  naõ  comelFe  :  e  no  mefaio  tem- 
po nota  o  Euangeliíla  ,  que  o  Senhor  efcava  fó  cm 
terra:  Et  ipfs  Joltis  Í7i  terra.  O  meímo  faccede  aM3tc.í.47. 
quem  vive  l'ó  no  feu  deferto.  Os  outros,  que  andao 
no  mar  deíle  mundo  ,  lutao  com  os  ventos ,  e  com  as 
ondas  :  huns  fe  perdem  ,  e  Te  aff^ogao  ,  outros  fe  íal- 
vaõ  mal  a  nado,  e  todos  correm  fortuna  :  e  fó  o  f ó 
vêtudoifto  de  longe,  porque  eftá  em  terra  '.Etipfe 
falas  interra.  Arde  o  mundo  em.  guerras ,  huns  ven- 
cem, outros  fao  vencidos, combatemfe  Cidades, con- 
quilbõfe  Reinos ,  morrem  os  homens  a  milhares  ,  e 
fó  o  fó  ,  fe  lá  lhe  chegao  os  ecos  ,  tudo  iílo  ouve  fem 
fem  temor,  porque  a  fua  paz  he  fegura  :  Etipjefo- 
lusin  terra.  Voltafe  o  mefmo  mundo  em  perpetua 
roda ,  a  huns  derruba  ,  a  outros  levanta ,  huns  cret- 
cem  até  ás  nuvens  ,  outros  defcem  até  aos  abyfmos , 
e  fó  o  fó,  que  eftá  fora  da  jurifdiçaõ  da  fortun  a,nem 
áprofpera  tem  inveja,  nem  da  advería  tem  medo,^^^ 
porque  fó  o  feu  eílado  he  incapaz  de  mudança  :  Et 
ipfefolus  in  terra:  Alli  fe  quebrao  as  azas  á  vaida- 
de ,  alli  fe  dá  em  terra  com  a  foberba ,  alli  fe  atalhaó 
os  paííos  á  cubica  ,  alli  fe  cortaõ  as  maós  á  vjngan- 
ça,  alli  cahe  em  fi  a  injuftiça,  ea  fem  razaó,  alli 
morre,  e  fe  deshz  eícumando  a  ira  ,  e  todos  os  ou- 
tros monftros  da  intemperança  poderofa  ,  e  fem  fre- 
yo  ou  fe  mataõ  ,  ou  fe  affugentaõ ,  ou  fe  domaó. 


DIS* 


"/"-; 


teira  abbreviaão 


DISCURSO    XCIV. 

eirado  da  prefação ,  que  o  Aiiãor  fez  aos  panegy- 

ricos  dos  três  jonhos ,  que  myfteriofamentefonhou 

S.  Francifco  Xavier. 


Pa-t    8. 
fui.  6. 


993 


S  O  N  H  O. 

Sonobebuma  morte  breve;  por  onde  Sé- 
neca Hibiamente  chamou  á  morte  mor- 
te longa  para  a  diíHnguir  do  fono.  Se  o  íbno  he 
imagem  da  morte,  os  fonhos  de  que  feraó  imagem  ? 
O  Tono  he  imagem  da  morte  ,  os  fonhos  faó  imagem 
da  vida.  Cada  hum  fonha  como  vive:  Eamaxime 
Joffmiamus,  qua  agimus^  aut  aâíuri fimius ,  aut  vo- 
lumus.  Os  fonhos  íaô  huma  pintura  muda,  em  que 
a  imaginação  a  portas  fechadas,  e  ás  efcuras  retrata 
a  vida,  e  a  alma  de  cada  hum  com  as  cores  das  luas 
acçoens ,  dos  feus  propoíitos ,  e  dos  feus  defejos.  Fa- 
raó, como  providente  Principe,  fonhava  com  a  fo- 
me ,  e  com  a  fartura  do  povo :  o  feu  copeiro  mor,  e 
o  outro  miniftro  da  meia  real  (que  naò  tem  nome, 
nem  officio  nas  noíTas  Cortes  )  hum  fonhava  com  a 
taça,  outro  com  as  iguarias:  o  foldado  Madianita 
fonhava  com  a  efpada  deGedeaõ  :  Nabucodonofor 
fonhava  com  Impérios  ,  e  Monarchias ,  cada  hum  eni 
fim  fonhava  de  noite  com  o  que  exercitava  de  dia. 
Galeno,    para  conhecer  os  humores  do  enfermo, 
manda  obfervar  os  fonhos,  e  também  íe  podem  ob- 
íervar  para  conhecer  os  aíFeélos  ,  que  faõ  os  humo- 
res da  alma.  O  melancólico  fonha  coufas  triftes  ,  e 
trágicas ,  o  fanguinho  fonha  felicidades  y  e  feílas ,  o 
.      :[:  cole- 


Difctirfo 


^^^ÍF. 


549 


colérico  kvÃWà  guerras  ,  e  batnlhas,  o  íleumatico 
crcyo,  que  naô  fonha,  porque  nàb  vive.  Até  no  ef-  - 
tado  da  innocencm  reconheceo  Santo  Agoítinho  , 
qae  havia  íonhos ;  mi.s  logo  advertio  ,  que  eraô  fe- 
nieihantes  á  vida  :  Tamf  elida  ercmt  fomnia  dormt- 
entiuni ,  quam  -oh a  vigilantium  :  Eraó  tao  fel  ices  os 
íonhos  .  quando  dormiaó,  como  era  felice  a  vida  , 
quando  vigiuvaó.  Porque  o  dormir  heconiequencia 
do  viver ,  e  o  fonhar  do  modo,  com  que  fe  vive. 

994  A  razão  deíla  Filofofía  he  ,  porque  os  fo- 
nhos  íaó  Híhosdos  cuidados,  como  muitos  cuidados 
filhos  dos  (bnhos:  De  his enim  (conclue  oEílagirita) 
maxlme  cogitatlones  ,  imaginai  tones  que  obveniunt.  — 

Et  qui  inJtrucH  virtutibus  funt  ,  meliora  fomnta 
vident  ,  quod  etiam  vigilantes  meliora  animadver-    , 
tunt.  Quando  Nabucodonofor  íonhou  toda  ahiílo- 
ria  famoía  ,  e  íucceflos  daquella  prodigiofa  eílatua , 
antes  de  Daniel  declarar  o  myfterio ,  começou  a  con- 
tar o  foniio  deíla  maneira:  Tu y  Rex ^  cogitar eccepif- ^^^^  ^,,^^ 
ti  inftratotuo;  Vós  Rey  começaíles  a  cuidar  no 
voflb'leito.  Tende  maó  Daniel :  ElRey  naô  vos  per- 
gunta o  que  fazia,  quando  eílava  acordado,  per- 
guntavos  o  que  fonhou  quando  dormia.  AíTim  he , 
diz  Diiniel ;  mas  eu  quero,  e  devo  contar  ocafo  def- 
de  fua  primeira  origem,  e  a  origem  do  íonho  de  Na- 
buco  forao  os  feus  cuidados:  T//,  Rex ,  cogitarecos- 
pifti.   Cuidava  no  que  íeria,  e  poriflo  fonhou  o  que, 
havia  de  fer.  Cuidou  defperto  ,  e  íonhou  dormindo,^ 
e  naô  fonhou  outra  coufa,  íenaô  aquella  mefma,  que. 
tinha  cuidado;  porque aquillo,  emquecadahum  cui- 
da, e  lhe  dá  mayor  cuidado  ,  quando  vigia  ,  iíFo  he 
o  em  que  fonha,  quando  dorme.  Se  Nabuco  fe  lem- 
brara do  que  cuidava ,  elle  fe  lembraria  também  do; 

que 


Match. 

IO. 


550     Vieira  ahhreviado 

que  fonhou  ;  mas  o  eíquecimento,  que  lhe  roubou  á 
memoria  do  cuidado,  Q^^t  \\\q  ievou  também  a  lem- 
brança do  fonho  pela  grande  connexao,  que  tem  os 
fonhos,  e  os  cuidados.  Em  fím  íonhou  em  Reynos, 
eMonarchias  futuras,  porque  os  Reynos,  as  Mo- 
narchias,  e  os  futuros  era  a  matéria  ,  (digna  verda- 
deiramente de  hum  Rey )  em  que  elle  eftava  cuidan- 
do :  Tu ,  Rex ,  cogitare  cc3pijli ,  quidfuttirum  eíJet 
pojt  h£c.  -^ 

995     He  verdade,  que  o  fonho  de  Nabuco,  teve 
muit^o  de  profecia ;  mas  os  cuidados  íaócomo  as  cor- 
das da  cithara,  que  mandou  tocar  Samuel,  quando 
quíz  profetizar.  Ainda  para  os  íonhos  divinos  fao 
difpoííçao  natural  os  cuidados.  Sonhou  o  Rey  com 
os  feus  cuidados ,  porque  adormeceo  ao  fom  de  feus 
penfamentos.  Sonho  divino  fov  aquelie,  em  que  o 
Anjo  revelou  a  S.  Joíeph  o  fegredo  da  Incarnação 
do  Verbo  nas  entranhas  de  fua  Kfpoía    Equando  te- 
ve efte  fonho  Jofeph  ?  Qiiando  eílava  cuidando  na 
mefma  matéria:  H^c  autem  eo  cogitante ,  ecce  Jn<re^ 
lus  Domini  apparuit  infomms  et.  Mas  íe  Jofeph*ef- 
tava  dormindo:  Infomnis,  como  eílava  juntamente 
cuidando :  H£c  autem  eo  cogitante }  Porque  dormia 
Jofeph;  mas  naó  dormia  o feu  cuidado.  Sonhava  de 
noite  com  o  que  cuidava  de  dia.  Entre  o  cuidado 
e  o  fonho  de  Jofeph  fó  havia  eíla  diíFerença  ,  que  o 
cuidado  era  cuidado  de  Jofeph  defperto,  o  fonho, 
era  cuidado  de  Jofeph  dormindo.  Por  iílb  Jofeph  ,  e 
Nabuco  íonharao,  e  tiveraõ  revelação  do  que  lhes 
dava  cuidado,  nao  antes  ,  nem  depo'is,  fenaó  quan- 
do cuidavao:  7"//,  Rex,  cogitare  cwpijii:  Hac autem 
eo  cogitante. 


DIS- 


Hfcurfo  HCV.      3  5 1 

DISCURSO    XGV. 

T^ ir  a  do  de  hum  fermao  de  Santo  António^  tcnâofe 

publicado  as  Cortes  para  o  dia  feginnte ,  nú  qual 

tomou  o  Auâíor  por  thenia :  Vos  eílis  fal  terrie. 

Matth.  5. 


TRIBUTOS. 


996 


S  primeiríis  Cortes  forao  de  boas  venta  p^^^  ^^ 
1.  Jk-des  ,  ertas  fegundas  podem  fer  de  bons  Num.  143.' 
entendimentos.  Nas  primeiras  tratouíe  de  remediar 
o  Reyno  :  neftas  tratafe  de  remediar  os  remédios. 
Para  íe  curar  huma  enfermidade  vê-fe  em  que  pec- Num.  144, 
ca  a  enfermidade:  para  fe  curarem  os  remédios  ve- 
jaíe  cm  que  peccaraó  os  remédios.  Os  remédios,  co- 
mo diz  a  queixa  publica, peccaraõ  na  violência,  mui- 
tos arbitnos ,  mas  violentos  muito.  Pois  moderefe 
a  violência  com  a  fuav idade,  íicaráoos  remédios  re- 
mediados. Foraõ  inefficazes  os  tributos  por  violen- 
tos ,  fejaõ  fuaves  ,  e  feraÕ  effedtivos.  Vos  ejiis  Jal 
terr£\  Duas  propriedades  tem  o  fal ,  diz  aqui  Santo 
Hilário:  conferva  ,  e  mais  tempera  :  he  oantidotoda 
corrupção,  e  lifonja  dogoílo:  he  o  prefervativo  dos 
prefervativos,  e  o  fabor  dos  fabores  :  Sal incorru- 
ptionem  corporibus ,  quibtis  fuerit  afperfus ,  /w- 
pertit ,  cÍT^  ad  omnem  Jenftim  condítifaporis  aptiffl- 
mus  eJl.TaQs  como  iíío  devem  fer  os  remédios,  com 
que  fe  haõ  de  confervar  as  Refpublicas.  Confervati- 
vos  fim  ,  mas  defabridos  na6.  Obrar  a  coníervaçaõ, 
e  faborear  ,  ou  ao  menos  naó  cífender  o  gofto  he  o 
primor  dos  remédios.  Naõ  tem  bons  eíieitos  o  fal , 

quan- 


í 


p 


Sencf 
II. 


332     Vieira  ahhrcviado 

quando  aquillo  ,  que  fe  íalga ,  fica  fentido.  De  tal 
maneira  fe  ha  de  coníeguir  a  confervaçaó ,  que  fe  ef- 
cufe,  quanto  forpoíTivel,  o  fentimento.  Tirou  Deos 
huma  cofta  a  Adaó  para  a  fabrica  deHeva  ;  mas  co- 
mo a  tirou  ?  Imnújít  Deus  j opor  em  Í7i  Adam ,  diz  o 
texto  fagrado :  Fez  Deos  adormecer  a  Adaó ,  e  aílim 
dormindo  lhe  tirou  a  cofta. 

997  Pois  porque  razaõ  dormindo,  e  nao  acorda- 
Nunj.145.  doPDiíTe-o  advertidamente  o  noífo  PortuguezOleaf- 
tro  ,  e  he  peníamento  taó  tirado  da  cofta  de  Adaõ  , 
como  das  entranhas  dos  Portuguezes  :  O/lejtdit , 
qnam  difficile  Jit  ab  homine  auferre  ,  qiiod  et  iam  in 
ejiis  cedit  utUitatem  :  qiiamohrem  opus  ejl  ab  eo 
Jurripere ,  quodipfe  conceder e  negiigit.  A  cofta,  de 
que  fe  havia  de  forsnar  Heva,  tirou-a  Deos  de  Adão 
dormindo  ,  e  nao  acordado  ,  para  moftrar  quaó  dif-? 
ficultofaraente  fe  tira  aos  homens,  e  com  quanta  fua- 
vidade  fe  deve  tirar  ainda  o  que  he  para  feu  pro- 
veito. Da  creaçao ,  e  fabrica  de  Heva  dependia  nao 
menos ,  que  a  coníervaçaô ,  e  propagação  do  género 
humano ;  mas  repugnao  tanto  os  homens  a  deixar 
arrancar  de  íi  aquillo ,  que  fe  lhe  tem  convertido  em 
carne  ,  e  fangue  ,  ainda  que  feja  para  bem  da  fua  ca- 
fa  ,  e  de  feus  filhos,  que  por  iílb  traçou  Deos  tirar 
a  cofta  a  Adaó  ,  naô  acordado  ,  fenaô  dormindo  : 
adormeceolhe  os  fentidos  para  lhe  efcufar  o  fenti- 
mento. Com  tanta  fuavidade  como  ifto  íe  ha  de  tirar 
aos  homens  o  que  he  necefiario  para  a  fua  conferva- 
çaó. Se  he  neceftario  para  a  confervaçaó  da  pátria, 
tirefe  a  carne  ,  tirefeo  íangue  ,  tiremfe  os  oObs,  que 
aftim  he  razaó  que  feja  ;  mas  tirefe  com  tal  modo, 
com  tal  induftria  ,  com  talluavidnde,  que  os  homes 
naõ  o  fintaó ,  nem  quafi  o  vejaó.  Deos  tirou  a  cofta  a 

Adaó, 


m 


ycwifo  XCV.      5  5  3 

Adão ,  mas  elie  naó  o  vio ,  nem  o  íentio ;  e  fe  o  Ibu- 
he,  foy  por  revelação.  Afiini  aconteceo  aos  bem  go- 
vernados vairallos^do  imperador  Theodorico  ,  dos 
quacs  por  grande  gloria  íiia  d\z\i\  cWc:  Senl ími/s  an- 
õicis  iilatioiíes^  vos  addita  tributa  nejcitís  :  Eu  lei 
que  ha  tributos;  porque  vejo  as  minhas  rendas  acref- 
centadas  :  vós  mo  fabeis,  le  os  ha;  porque  naó  íentis 
as  voílas  diminuídas. Razão  he,  que  por  todas  as  vii^s 
le  acuda  d  coníervaçaô  ,  mas  como  fomos  compoftos 
de  carne  ,  e  ínngue ,  obre  de  tal  m.aneira  o  racionai , 
que  tenha  fempre  reípeito  ao  feníiíivo.  Taó  afperos 
podem  fer  os  remédios  ,  que  feja  menos  feya  a  mor- 
te, que  a  faudc.  Que  me  importa  a  mim  íarar  do  re- 
médio ,  le  hei  de  morrer  do  tormento  ? 

5^98  Divina  doutrina  nos  deixou  Chriílo  deílaNum.  i4<f. 
moderação  na  fujeita  matéria  dos  tributos.  Mandou 
Chriftoa  S.Pedro,  que  pagalie  o  tributo  a Cerar,e 
diíFelhe,  que  toíTe  pefcar,  e  que  na  boca  do  primei- 
ro peixe  acharia  huip.a  moeda  de  prata,  com  que  pa- 
galie. Se  Deos  naõ  faz  milagres  {tm  neceíTidade, 
porque  o  fez  Chrifto  nefta  occafiaó  fendo  ao  parecer 
fuperíluo }  Poderá  o  Senhor  dizer  a  Pedro,  que  foííe 
pefcar ,  e  que  do  preço  do  que  pefcaíle,  pagaria  o 
tributo.  Pois  porque  difpoem ,  que  fe  pague  o  tribu- 
to nao  do  preço ,  fenao  da  moeda  ,  que  fe  achar  na 
boca  do  peixe?  Quiz  o  Senhor ,  que  pagaíle  S.Pedro 
o  tributo  ,  e  mais  que  lhe  íicaíTe  em  cafa  o  fruto  de 
feu  trabalho ,  que  illo  he  o  fuave  m.odo  de  pagar  tri- 
butos. Pague  Pedro  o  tributo  íim  ,  mas  feja  com  tal 
fuavidade,  e  com  tsô  pouco  difpendio  feu  ,  que  ía- 
tisFazendo  as  obrigaçoens  de  tributário  ,  naô  perca 
os  intereífes  de  pefcador.  Coma  o  feu  peixe  ,  comb 
ii'antes  comia,  e  mais  pague  o  tributo  ,  que  dVntes 

Tom.  II.  Z  naô 


Mash.iy 
í6. 


2'^ 

) ; 

nao  píigava.Por  iíío  tira  a  moeda  naódo  preço, fenao 
da  boca  do  peixe  :  /Iperto  ore  ejiis  ^  invenies  jl ate- 
rem. Aperto  ore  :  notay.  Da  boca  do  peixe  íe  tirou 
O  dinheiro  do  tributo;  porque  he  bem,  que  para  o 
tributo  fe  tire  da  boca.  Mas  eíla  diíFerença  ha  entre 
os  tributos  fuaves,  e  os  violentos:  que  os  fuaves  ti- 
raôíe  da  boca  do  peixe ;  os  violentos  á:i  boca  do  pef- 
cador.  Haôfe  de  tirar  os  tributos  com  tal  traça,  com 
tal  induílria  ,  com  tal  invenção :  Inventes Jl aterem^ 
que  pareça  o  dinheiro  achada ,  e  nao  perdido ,  dado 
por  mercê  da  ventura  ,  e  nao  tirado  á  força  da  vio- 
lência. Aííim  o  fez  com  Adaó ,  e  aífim  o  fez  Ghriílo 
com  S.Pedro ;  e  para  que  naô  diga  alguém  ,  que  fao 
milagres  a  nós  impoíTiveis  ,  aíTim  o  fez  Theodorico 
com  feus  vaíTallos.  A  boa  induílria  he  fupplemento 
da  omnipotência  ,  e  o  que  faz  Deos  por  todo  pode- 
rofo,  fazem  os  homens  por  muito  induftriofos. 

^^^  Sim.  Mas  que  induílria  poderá  haver,  para 
que  os  tributos  fe  naô  íintaó ,  para  que  fejao  fuaves, 
Num.  14S.  e  fáceis  de  levar  }  Que  iaduílria  ?  Vos  eftis  fal  ter- 
r£.  Nota  aqui  Saò  João  Chryfoílomo  a  generali- 
dade, com  quefallou  Chriílo  aos  difcipulos.  Nao 
lhes  chamou  fal  de  huma  cafa ,  ou  de  huma  famí- 
lia, ou  de  huma Cidade,  oudehuma  naçaõ  ,  íenaó 
íal  de  todo  o  mundo ,  fem  exceptuar  a  ninguém  : 
Vos  eflis  Jal  terra  ,  no7i  pro  ima  gente ,  fedpro  uni- 
verfo  mundo ,  commenta  o  fanto  Padre.  Queremos, 
lenhores ,  que  o  fal ,  qualquer  que  for ,  naõ  feja  defa- 
brido  ?  Q»^íeremos ,  que  os  meyos  da  confervaçao 
pareçao  íuaves.^  Non  pro  una  gente  ,  feã  pro  uni- 
verfo  mundo.  Nao  fejao  os  remédios  particulares,  fe- 
jao iiniverfaes  :  naó  carreguem  os  tributos  fomente 
fobre  huns ,  carreguem  fobre  todos.  Naó  fe  trate  de 

-fal- 


Difcurfo  XCF. 

falgar  fò  hiini  género  de  gente  :  Non  pro  una  gente  : 
repartnfe,  e  aicnnce  o  íal  a  terra:  Vos  eftisfal  terra. 
looo  O  mayorjugo  de  hum  Reyno  ,  a  niais 
pezada  carga  de'  huma  Republica  fao  os  immo- 
dcrados  tributos.  Se  queremos  ,  que  fejaó  ieves , 
fe  queremos  ,  que  fejno  fuaves  ,  repartaóíe  por  to- 
dos. Niio  ha  tributo  mais  pezado  ,  que  o  da  mor- 
te, e  com  tudo  todos  o  pagaô  ,  e  ninguém  le  quei- 
xa ;  porque  he  tributo  de  todos.  Se  huns  homens 
morrerão,  e  outros  naÕ  ,  quem  levara  em  paciência 
eíh  rigorofa  penfaõ  da  mortalidade?  Mas  a  ineíma, 
razaó,  que  a  eílende,  a  flicilita;  e  porque  naó  ha  pri- 
vilegiados ,  naó  ha  queixofos.  Imitem  as  reíoluçoens 
politicas  o  governo  íiatural  doCreador :  Otiifolem 
fíium  oriri  facit  fuper  bonos ,  ir  maios ,  (irpàdiju- 
per  jnftos  y  <i^  injí/JJos.  Se  amanhece  o  Sol,  a  todos 
aquenta  ,  e  íe  chove  o  Ceo,  a  todos  molha.  Se  toda  a 
luz  cahira  a  huma  parte,  e  toda  a  tempeílade  a  outra, 
quem  o  fofréra  ?  JNlas  naÕ  fei ,  que  injuíla  condição 
he  a  defte  elemento  groíTeiro,  em  que  vivemos,  que 
as  meímas  igualdades  do  Ceo  em  chegando  á  terra 
logo  fe  deílguaíaô.  Chove  o  Ceo  com  aquella  igual- 
dade diílributiva  ,  que  vemos  ;  mas  em  a  agua  che- 
gando á  terra ,  os  montes  ficao  enxutos ,  e  os  vailes 
afogandofe  :  os  montes  eícoaõ  o  pezo  da  agua  de  íi, 
e  toda  a  força  da  corrente  òq^cq  a  alagar  os  vaiíes  : 
e  queira  Deos,  que  naõ  íeja  theatro  de  recreação 
para  os  que  eftaô  oihando  do  alto  vér  n^.à^.r  as  ca- 
banas dos  pafrores  fobre  os  dilúvios  de  fu^is  ruinas. 
Ora  guardemonos  de  algum  diluvio  univerfai  ,  que 
quando  Deo^  iguala  defigualdades  ,  até  os  mais  altos 
montes  íicaó  debaixo  da  agua.  O  que  importa  he  , 
que  os  montes  Te  igualem  com  os  vaiíes,  pois  os  pion- 

Zi'  tes 


Num.  150. 


\\i' 


3  5^     Vieira  abbrevíado 

tes  íaô  a  quem  principalmente  ameaçao  osrayos  :  e 
repartaíe  por  toJos  o  pezo ,  para  que  íiqueleve  a 
todos,  Os  meíinos  animnes  de  carga,íe  lha  deltuõ  to- 
da a  huma  parte,  cahem  com  elia  :  e  a  muitos  navios 
meteo  nas  maós  dos  piratas  a  carga  ,  naô  por  muita, 
mas  por  deícoinpaírada.  Se  fe  repartir  o  pezo  com 
igualdade  dejuíliça,  todos  o  levaráô  com  igurdda- 
ÚQá^  animo  :  Nulius  enim gravanter  obtulit ,  qitod 
cum  ^^íjuitateperfolvitítr\?ovq\xQ  ninguém  toma  pe- 
zatiamente  o  pezo  ,  que  fe  diíiribuio  com  igualdade, 
diííe  o  politico  CaíTiodoro. 

DISCURSO    XCVI. 

Tirado  de  hum  fermao  da  quarta  Dominga  depois 
da  Pafchoa. 

T  R  I  S  T  E  Z  A. 


Part.  7. 
Kum.  3  8  tf. 


looi  Ç  E  houveíTe  huma  arte,  ou  remédio  uni- 
\3  verfal ,  que  totalmente  nos  livraíTe  de 
triílezas,  e  que  em  nenhum  caio  houveiremos  ,  ou 
podeíTemos  eftar  triíles  ,  naô  feria  muito  para  ^Kq^q- 
jar  ,  e  para  todos  a  quererem  aprender  ?  Pois  ifto  he 
o  que  hoje  pertendo  enfínar  com  a  divina  graça.  De- 
termino enfinar  hoje  a  todo  o  homem  em  qualquer 
fortuna  huma  arte  muito  certa  ,  muito  útil  ,  muito 
agradável ,  e  muito  breve,  que  he  a  arte  de  na6  ef- 
tar triíle. 
Num.  387.  loo-  A  enfermidade  mais  univerfal,  que  pade- 
ce ncíle  mundo  a  fraqueza  humana  ,  e  naõ  fó  a  mais 
contraria  á  Auide  dos  corpos  ,  fenao  tambeír»  a  mais 
perigofa  para  a  falvaçaó  das  almas,  qual  cuidais  que 

fera  ? 


Difcurfo  XCFÍ.     357 

fera  ?  He  a  trifteza.  Primeiramente  he  enfermidade 
univerfal  de  todos  os  homens  ,  c  univerfal  igualmen- 
te de  todas  as  terras ;  porque  nenhuma  ha  taó  fadia , 
e  de  ares  tao  benignos ,  e  puros  ,  que  eíleja  ifenta 
defí-e  contagio ,  e  nenhum  homem  ha  taô  bem  acom- 
plexionadode  todosos  humores,  que  quaíi  habitu- 
almente naó  eíleja  fujeito  aos  triítes  accidentes  de 
melancolia.  O  primeiro  ,  e  infallivel  prognoftico , 
e  também  univerfal  defta  doença  ,  quando  ainda  nao 
fabemos  dearticular  vozes,  he  entrarm.os  neíle  mun- 
do todos  chorando.  Entramos  todos  chorando,  diz 
Salamaõ,  ( metendofe  também  elle  na  conta)  porque 
aíTim  confeíTamos  elta  miíeria  natural  ^  e  começa- 
mos nos  primeiros  paíTos  da  vida  a  pagar  efte  tributo 
á  triíleza  ,  a  que  havemos  de  eftar  íujeitos  em  toda 
ella.  A  trifteza  (  fe  buícarmos  a  razão  defte  tribu- 
to )  naó  he  filha  da  natureza  ,  fenao  da  culpa.  Do 
primeiro  peccado  do  género  humano  nafceo  hum 
taô  negro ,  e  feifíimo  monftro :  e  como  todos  fomos 
filhos  de  Adaõ,  todos  herdamos  délle  efte  triíte  pa- 
trimónio. Nenhum  filho  daquelle  pay  foy  tao  pri- 
vilegiado da  natureza  ,  nem  tao  mimofo  da  fortuna, 
nem  tao  lifonjeado  da  vida  ,  nem  taô  efquecido  da 
morte  ,  que  antes  delia  naô  padeceíTè  muitas  trifte- 
zas  ,  que  lhe  fizeíTem  defagradaveis  eflas  mefmas  fe- 
licidades. 

1003  Efte  mundo,emque  vivemosjtodo  hevalle 
de  lagrimas ,  nome  ,  com  que  o  bautizou  David  ain- 
da para  depois  de  Chrifto  :  In  valle  lacrymarum  inn.  s ji 
loco,  quempofuit.  Em  todo  efte  valle  ninguém  pode 
melhorar ,  ou  altear  de  lugar,  ainda  que  o  ponha  on- 
de quizer :  In  locOy  quem  pofuit :  e  ninguém  fe  pode 
iíentar  detriftezas,  porque  todo  o  mundo  he  valle ,  e 
í    Tom.  II.  Z3  todo 


m 


r 


3  5  8     Yieira  ahhrcviaão 

todo  o  valle  he  de  lagrimas:  Invalle lacrymarum.  Só 
eíle  valle  he  valíe  lem  montes  :  e  poíio ,  que  alguns 
quizeraõ  levantar  montes  neíte  valle ,  e  parece ,  que 
o  Gonfeguiraô  ,  todos  eííes  montes  por  altos,  e  altif- 
íimos  que  fejao  ,  naõ  eícapaõ  do  diluvio  da  trifteza. 
Os  Reys,  os  Príncipes  ,  os  Monarchas,  os  Impera- 
dores ,  os  Papas ,  por  mais  que  o  feu  eftado  os  tenha 
levantado  tanto  fobre  os  outros  homens,  nem  por 
iíFo  deixaõ  de  chegaria  os  nublados,  e  chuveiros 
contínuos  das  triílezas.  He  verdade,  queastriftezas 
dos  Príncipes  andaô  fobredouradas  com  os  reíplan- 
dojes  dos  cetros  ,  e  das  coroas  ;  mas  por  iíTo  meímo 
faõ  mayores  ,  e  mais  pezadas  :  porque  faó  mais  inter 
riores.  As  triílezas,  que  correm  pelos  olhos,  naôfao 
as  mais  triíles  :  as  que  fe  afogaô  no  coração ,  e  as  que 
o  afogaó  ,  eíTas  faÔ  as  mais  íenílveis,  e  penetrantes^ 
Aquelles  mefmos  refplandores  ,  que  cá  fe  admirao 
por  fóra  ,  faô  os  relâmpagos  das  grandes  tempefta-? 
des,  que  lá  íeoccuítao,  edevorao  por  dentro.  Aflim 
que  a  triíleza,he  |hum  mal ,  e  enfermidade  univer- 
fal,  de  que  ninguém  efcapa. 

Num.3S^.  1004  He  também, como  dizia, a  doença  mais  con- 
traria á  faude  dos  corpos,  porque  mais ,  ou  menos 
aguda  fempre  he  mortal.  Naõ  o  hei  de  provar  com 
aforifmos  de  Hippocrates,  ou  Galeno,  mas  com  tex- 
tos expreíTos  todos  do  Efpirito  Santo.  No  cap..  17. 
dos  Provérbios  diz  o  Efpirito  Santo  por  boca  de  Sa- 

Prov,  17.  lamao,  que  a  trifteza  féca  os  oíFos  :  SpirittístriJIís 
exficcat  offa.  Se  diíTera ,  que  murcha ,  e  féca  a  cor,  a 
pelle ,  as  veyas ,  a  carne ,  muito  dizia  ;  mas  os  oíTos  , 
que  faó  as  partes  mais  interiores ,  mais  folidas,  mais 
duras  ,  mais  fortes,  com  que  fe  fuftenta  eíla  fabrica 
do  edifício  humano  ?  Aílim  o  diz  a  fabedoria  daquelr 


i 


Dijcurfo  XGVi:    5/5^ 

I-és  olhos,  que  penetrao  dentro  em  nós  o  que  nos 
naõ  podemos  ver.  De  forte  que  he  a  trifteza  hum 
giiíano  negro  ,  (  á  difFcren(^a  dos  brancos  ,  que  roem 
o  bronze  )  o  qual  nos  eílá  fempre  comendo  ,  e  car-? 
comendo  por  dentro  ,  e  bebendo,  e  íecando  o  hu-  t 

mido  daquellas  taizes  ,  em  que  íe  fuítenta  o  calor  "^ 

da  vida,  atéqueelle  fe  apaga,  eella  morre. 

1005  Mas  efte  até  que  quanto  tardará  ?  NaoNum,  j^o. 
muito  tempo  ,  nem  com  paíFos  vagarofos  ;  porque 
aquelle  Cavalleiro  do  Apocalypfe  ,  que  montado  fe- 
bre hum  cavallo  pallido  tinha  por  nome  Morte  ,  ef- 
poreado  da  triíleza  corre  a  toda  apreíFa.  O  mefmo 
Efpirito  Santo  o  diz  no  cap.  38.  do  Ecclefiaílico  : 

A'  triftitiafeftinat  mors.  Para  huns  homens  parece,  Ecdef.  38. 
que  vem  a  morte  a  pé  ,  para  outros  a  cavallo  ,  para  ^^• 
huns  andando,  para  outros  correndo  ;  porque  huns 
morrem  de  vagar,  outros  depreíTa ;  mas  a  Parca ,  que 
fempre  antes  de  tempo  corta  os  fios  á  vida  ,  he  a  trif- 
teza. Acereis  a  hum  deíles  ,  quando  ainda  fe  conta  no 
numero  dos  vivos ,  defcoi^ado  ,  pallido  ,  macilento , 
mirrado,  as  faces  fumidas ,  os  olhos  encovados,  as 
fobrancelhas  cabidas  ,  a  cabeça  derrubada  para  ater-- 
ra  ,  e  a  eílatura  toda  do  corpo  encurvada ,  acanhada, 
diminaida.  E  fe  elle  fe  deixaíTe  ver  dentro  da  cafa  , 
ou  íepultura ,  onde  vive  como  encantado  ,  velohieis 
fugindo  da  gente  ,  e  efcondendofe  á  luz  ,  fechando 
asportas  aos  amigos ,  e  as  janellas  ao  Sol ,  com  tédio, 
e  faftio  uni verfaí  a  tudo,  o  que  viílo,  ouvido,  ou  ima- 
ginado pôde  dar  goílo.  E  eftes  efpeltos  tao  deshuma- 
nos  cujos  fao,  e  de  que  procedem  ?  Sem  duvida  da 
melancolia  venenoía  ,  e  occulta  ,  que  a  paíTos  apref- 
fados  leva  o  triíle  á  morte:  Â'  triftla  fejliyiat  mors.  . 

1006  Para  prova  deíla  funeíla  verdade  bailava  Num.  39X 

Z  4  hum 


3  ^°     Vieira  ahbreviadó 

hum  fó ,  e  fobeja  /aõ  os  dous  textos  referidos  do  Ef- 
pirito  Santo ;  mas  fobre  elles  accrefcentou  a  mefma 
labedoria  o  terceiro  taó  admirável,  e  encarecido, 
que  fe  naõ  fora  da  boca  divina,  podéra  parecer  incri- 
íccief.  xj/.vel :  Omnis plaga  triftitia  cordis  eji  :  A  trilleza  do 
^7-  coração  naó  he  huma  íó  chaga  ,  ou  huma  ío  ferida, 

fenaô  todas.  Sendo  chaga ,  e  ferida  do  coração  baf- 
taria  ferhuma  ló  para  íer  morra! ;  mas  como  no  co- 
ração depofitou  a  natureza  todo  o  thefouro  da  vida, 
alílm  no  mefmo  coração  deícarregou  a  triíleza  toda 
a  aljava  das  fuás  fetas.  Dalli  fahem  todos  os  elpiri- 
tos  vitaes,que  fe  repartem  pelos  membros  do  corpo, 
e  dalli,  fe  o  coração  he  triíte ,  todos  os  venenos  mor- 
taes ,  que  o  laítimaô ,  e  ferem.  Ferem  a  cabeça ,  e 
perturbando  o  cérebro  lhe  confundem  o  juizo:  fe- 
rem os  ouvidos,e  lhe  fazem  diíTonantea  armonia  das 
vozes :  ferem  o  gofto ,  e  lhe  tornaô  amargofa  a  do- 
çura dosíabores:  ferem  os  olhos,  e  Iheefcurecem 
a  viíla:  ferem  a  lingua,  e  lhe  emudecem  a  falia:  íe- 
rem  os  braços ,  e  os  quebrantaó:  ferem  as  maõs,  e  os 
pés  ,  e  os  entropecem  :  e  ferindo  hum  por  hum  to- 
dos os  membros  do  corpo,nenhum  ha,  que  naó  adoe- 
ça daquelle  mal ,  que  mayor  moleftia  lhe  pode  cau- 
íar,  e  mayor  pena.  Confideraime  hum  cadáver  vivo, 
morto,  e  iníeníivel  para  o  gofto,  vivo,  efenliti- 
vo  para  a  dor ,  e  ferido ,  e  laftimado ,  chagado ,  e  laf- 
timofo,  cercado  por  todas  as  partes  de  penas,  de  mo- 
leftias  ,  de  afíliçoens ,  de  anguftias,  imaginando  to- 
do o  mal ,  e  naó  admittindo  penfamento  de  bera, 
aborrecido  de  tudo ,  e  muito  mais  de  11  mefmo ,  fem 
alivio,  fem  coníolaçaô,  lem  remédio,  efemefpe- 
rança  de  o  ter,  nem  animo  ainda  para  o  defcjar :  ifto 
he  hum  trifte  de  coração. Os  outros  venenos  em  che- 
gando 


Dlfciirfo  XCVI.     }6i 

gando  ao  coração  mataó;  mas  efte  como  nafcc  ,  ele 
cria  no  meímo  coração,  vay  mais  de  vagar  em  matar, 
mas  naó  pode  tardar  muito.  .     ,    ..        r     3    v,m  ,oV 

1C07     Fofie  embora  taõ  contraria  a  vida,  efaude^^^^Mí^v 

dos  corpos  a  enfermidade  da  triíleza  ,  mas  o  peyor 
mal  defte  mal  he  fer  igualmente  perigofa  ,  e  nociva 
á  falvacaó  das  almas.  Neíle  fentido  íe  haÕ  de  enten- 
der humas  palavras  do  grande  Doutor  da  Igreja  b. 
Bafilio,  asquaes  parece,  que  dizem  mais:  Nímta 
triíiitia  author  peccati  ejfe  folet ,  cum  mxror  mm- 
tem  fubmergat ,  &  confilii  inópia  verttgmem  ajf^- 
rav.  A  grande  trifteza ,  diz  S.  Bafilio ,  coftunja  íer  a 
authora  ,  e  caufa  dos  peccados  ;  porque  efta  tortiili- 
roa,  eefcuriffima  paixaó  affoga  àalma,  e  allirn  como 
os  que  padecem  vertigens  na  cabeça,  cahem,  aíiim  el- 
la  por  falta  de  juizo,  e  confelho  faz ,  que  cayao  os 
homens  no  peccado.  j      vt      ,  v 

1008     Tal  he  o  eftado  de  hum  trifte  ,  quando  a  Num.  5^^ 
forçada  fua  mefma  melancolia  o  mete  no  profun- 
do ,  e  efcuriíTimo  abyfmo  da  defconfolaçao.  Alhm 
como  ao  Egypcio  naó  lhe  valia  contra  as  íuas  tre- 
vas nem  a  luz  do  Sol ,  nem  a  do  fogo ,  aíTim  naó  lhe 
bafta  a  hum  trifte  nem  o  lume  da  fé,  nem  o  lume  da 
razaó  para  vencer  as  fuás ,  que  fó  lhe  faó  palpáveis. 
E  aíFim  como  o  Egypcio  com  aquella  cadeya  tem  fer- 
ro   mais  dura  porém  que  o  mefmo  ferro ,  eftava  ata- 
do de  pés,  e  ma6s,aírim  o  triíle,prezo  fem  grilhoens, 
nem  algemas  á  cadeya  de  fua  própria  trifteza ,  (  con- 
tandolhe  fempre  os  fuzis  ,  a  que  naó  acha  numero  > 
nem  tem  pés  para  tugir  ,  nem  mãos  para  reíiftir  as 
tentaçoens  do  demónio;  e  por  iíFo  eflá  fempre  ex- 
porto ,  e  quafi  rendido  ao  peccado.  Diííe,  quafi  ren- 
dido ,  e  dilfô  muito  menos  do  que  devera  j  porque  fe 

o  de* 


r 


Num,  3  c)  5, 


5  62     Vieira  ahhrcviadd 

o  demónio  he  o  que  tenta  ,  e  vence ,  a  força  ,  ou  fra- 
queza ,  que  ihe  dá  a  vidoria  ,  he  a  da  triíieza.  Ouça- 
mos a  mais  eloquente  voz  da  igreja  Cathoiica  ,  e  fe- 
che nosodiícuroChryfoílomocom  chave  de  ouro: 
Omni  diabólica  aãione  potentior  ad  nocendtdm  efl. 
fímrorisfpiritus-^  d^mon  enim  quofcumquefere  fu-. 
perat  ,per  mmrorem  fiiperat.Eumfi anferas^  nemoà. 
d^fmmeUdi  potertt.  E  porque  efte  teílimunho  taõ: 
notável  naõ  p^ireça  íingular ,  o  mefmo  diz  S.  Bernar- 
do, affirmando,  que  entre  todos  es  eípiritos  mali- 
gnos o  peíhmo  ,  e  mais  nocivo  de  todos  he  a  trifteza:. 
Certe  triftitia  facularis  miniiim  malorum  fpirituu 
eji  pefflmus.  De  forte  que  o  demónio  faiudado  da 
triíieza  naÕ  he  hum  fó  demónio,  íenaôdous,  e  a  trif- 
teza peyor  ,  e  mais  diabólica  ,  que  o  mefmo  demó- 
nio. E  f e  me  perguntardes  como  concorre  a  trifteza 
zacom  o  demónio  para  o  peccado  ,  pofto  que.bcm. 
creyo,  que  o  terá  cada  hum  experimentado  em  fi,  eu 
odireifacihnente. 

1009     He  muita  natural  aos  triftes  defejar  o  ali- 
vio, e  procurar  o  remédio  á  fua  trifleza  :  e  quando 
a  trifte  alma  chega  a  eítes  pontos ,  então  entra  a  ten- 
tação, e  o  demónio,  e  os  alívios,  e  remédios,  que  lhe 
offerece,  fao  taes  como  ú\q.  Se  a  trifteza  he  por  am- 
bição ,  e  defejo  de  íer  mais,  perfuadclhe,  que  naõ  fa- 
Genef.j.    çg  cafo  da  ley  de  Deos  como  Adâo ,  e  Eícva  ,  que  pof 
ferem  como  Deos  a  quebrarão.  Se  a  trifteza  he  por 
pobreza ,  perluadelhe  que  furte,  como  a  Achan  íol- 
dado  illuftre ,  mas  pobre  ,  que  furtou  facrilegamen- 
tea  purpura,  e  regra  de  ouro  nos  defpojos  de  Jeri- 
có. Se  a  trifteza  he  por  amor  ,  perfuadelhe  a  que  ven- 
1  Rçer  ,    ^^  ^^^  ^OYçi ,  e  violência  o  que  naõ  pode  por  vonta- 
•  '2'  '^'  de,  coiiio  Amnon  a  Thamar,  fem  reparar  na  dobrada 

infa- 


Jofuc  7. 


.Reçi.  II. 


IJ- 


infâmia  ern  ambos , e  igualmente  fua.  Se  a  triíle/a  'le 
por  appcttite  do  fuperfluo  ,  como  a  d'iilRey  Achab, 
perfuadclhe  ,  que  ao  domínio  univerfiil  da  coroa  nc- 
crefcente  a  vinha  de  Nabuth,ecom  teílimunho  falíb  ^ 
jurado,  fenao  houver  outracauía.Sea  triíleza  hepor 
afronta  ,  perfuadelhe  a  que  a  vingue  ainda  que  fcja 
por  traição,  como  Abfalaó,  que  contra  as  obrigações 
do  fangue  ,  e  leys  da  hofpitalidade  matou  aleivofa- 
mente  a  Amnon.  Se  atriíleza  he  por  inveja,  perlua- 
delhe,  que  derrube  o  invejado,  poftoque  innocente, 
e  benemérito,  como  Aman  valido  d'EiRey  Aíluero  Efth.<?. 
ao  íideIi(íimo  Mardocheo. 

.    1010     Se  atriíleza  he  porfaudades,  perfuadelhe  j^^,j^^^^^g^. 
a  que  dos  retratos  do  aufente  faça  Ídolos ,  como  de- 
raõ  principio  á  idolatria  de-todo  o  mundo  as  fauda-^^^  ^^ 
des  de  Belo.  Se  a  triíleza  he  por  falta  de  fiihos,  e  fuc- 
ceíEió,  como  a  da  outra  Thamar  mais  antiga,períua- 
delhe  ,  que  fe  lhos  naõ  ha  de  dar  Sela  feu  efpofo  ,  os  Gen.38. 
buíque  em  quem  lhos  pode  dâr,  como  ella  fez  em  Ju- 
da  ,  poílo  que  adultera  ,  e  inceíluofamente.  Se  a  tríf^ 
teza  he  por  ódio ,  como  a  de  Saul  a  David ,  perfua-  j.Reg.  18, 
delhe,  que  ingrato  ás  cordas  da  fua  harpa,  como 
ferro  da  própria  lança  o  pregue  a  huma  parede.  Se  a 
triíleza  he  por  falta  de  faude  ,  perfuadelhe  que  tro- 
que as  receitas  da  medicina  pelos  feitiços  da  arte 
magica,  como  depois  dejeroboam  fízeraô  todos  os 
Reys  de  Ifrael ,  aos  quaes,  e  ao  mefmo  Reyno  fepul-  ^■^*^2"  '* 
tou  Deos  vivos,  e  efres  faó  osoílos  já  então  fecos,  e'  , 

myrrados,  que  vio  Ezechiel  ha  mais  dedousmiUn-  ^"  '  ^''* 
nos.  Iníinita  matéria  fora ,  fe  houvéramos  de  difcor- 
rer  por  todos  os  peccados ,  com  que  o  'demónio  aju- 
diido  da  triíleza  mata  as  almas.  A  Caim  triíle  por  fe 
vêr  menos  favorecido  perfuadiolhe  o  demónio ,-  quecen.  4; 
. .  mata- 


1f^ 


Acúi.iS. 
Nuiii.  3P7 


Mum.  398 


3  64.     Vieira  ahhreviado 

mataíTe  a  feu  irmaõ,  e  matou  o.  A  Achitofel  trifte, 
porque  Abíalaó  naõ  feguira  o  feu  voto,  perfuadio- 
líie  ,  que  íe  mataíPe  a  fi  mefmo  ,  e  matou  fe.  Ajudas 
triíle  pelo  que  tinha  feito  contra  feu  Meítre,  perfua- 
diolhe,  que  íeenforcaííe;  mas  antes  que  lhe  impe- 
diíle  a  refpiraçao  o  aperto  do  laço  ,  a  mefma  triíle- 
za ,  quê  nao  cabia  dentro,  lhe  fez  eílalar  o  coração, 
e  por  ilfo  rebentou  pelo  meyo  :  Crepuit  medius, 

loi  I  Eftes  faó  os  eíFeitos  da  trifteza,  (doença,  de 
que  ninguém  efcapancfta  vida,  e  muito  mais  os  mais 
entendidos)  e  efte ,  que  ultimamente  declarei ,  he  o 
modo,  com  que  a  mefma  trifteza  naô  fó  chega  a  ma- 
tar os  corpos,  fenaõ  também  as  almas.  Refta  agora 
nefte  fegundo  difcurfo  menos  melancólico  tratar 
do  remédio  deftapefte  do  género  humano,  e  eníinar, 
como  prometti  ^  a  arte  de  nunca  eftar  trifte. 

1012  Nas  breves  palavras  ,  que  propuz,  temos 
huma ,  e  outra  coufa  ,  ifto  he  ,  a  trifteza ,  e  mais  o 
remédio.  A  trifteza  :  ()ina  hac  locutus  fum  vobisj 
triftttia  imphvít  cor  vejirum,  O  remédio:  Nemo  ex 
mbis  interrogat  me y  quovadis'.  Porque  vos  d i He, 
que  me  aufento  ,  encheo  a  trifteza  os  voíTos  cora- 
çoens ,  e  nenhum  de  vós  me  pergunta  para  onde  vou. 
•Neftas  duas  palavras:  ^/0T;^^/>,(accommodando  as 
a  nós )  nefta  pergunta  tao  breve ,  e  nefta  única  máxi- 
ma, ou  preceito  confifte  toda  a  arte,  que  prometti, 
de  nunca  eftar  trifte.  Homem  trifte ,  fe  a  trifteza  te 
naõ  tirou  ainda  o  ufo  da  razaõ ,  perguntate  a  ti  mef- 
mo para  onde  vás:  Quovadist  Eefta  confideraçaó 
em  qualquer  cafo ,  ou  eftado  da  vida ,  por  trifte  que 
feja,  naô  fó  te  fervirá  deconfolaçaõ,  de  alivio,  ede 
remédio,  mas  te  livrará  para  fempre  de  toda  a  trif- 
teza. 

1013  Ifto 


^ciirjo  XCVI. 


1013  lílí)  he  o  que  digo.  E  iílo  fuppoílo  ,  laiba-  Num.  39?; 
mos  ligo r a  para  onde  imos  todos,  e_  cadii  hum  de 

nós  ?  :>endo  couía  muito  íabida  ,  poílo  que  em  parte 
a  vemos,  e  em  parte  naõ,  o  Eípirico  Santo  no  la 
mandou  advertir  por  boca  deSaiamaõ  no  cap.  1 2.  do 
Ecclcfiaíies:  Revertatur  palvis  in  terram  fuain^uz\i:{,\x: 
mnieevat^  é^  Jpiritus  redeat  adDeum^  qiá  dedif^' 
ílliim.  Nefta  vida  andaô  unidas  no  homem  aquellas 
duas?  p:irtes  ,  que  depois  fe  haó  de  dividir ,  e  tornar 
cadaiiumaparadonde  veyo,  a  terra  para  aterra,  a 
ahna  para  o  Ceo. 

1014  Pergunte  agora ohomem  aleu  corpo:  Cor- Num. 400. 
po  meu  ,  para  onde  vás  ?  Qiio  vadis  ?  Pergunte  o 
homem  á  íua  ahna  :  Alma  minha  ,  para  onde  vás  ? 

Ouo  vadis  ?  E  como  o  corpo  com  a  evidencia  dos 
oihoshadererpoader,qiJevay  para  a  fepuitura  ,  e  a. 
aima  com  a  certeza  da  fé  ha  de  confeíTar  ,  .que  vay 
para  o  Ceo,  á  luz  delle  conhecimento  taó  claro ,  e 
taõ  forte  nao  haverá  nuvem  de  triíleza  taô  eípeíIV,  e 
tao  efcura ,  que  totalmente  fe  nao  desfaça  ,  e  defva- 
neça.  Naô  diífemos  pouco  ha  no  primeiro  difcurfo, 
que  a  triíleza  naò  fó  atormenta  ,  e  mata  o  corpo ,  fe- 
naó  também  a  alma  ?  Pois  eíle  he  o  antidoto  invencí- 
vel,  que  o  corpo,  e  anima  tem  contra  aquelle  vene- 
no duas  vezes  mortal,  e  efta  a  arte  facil,  e  breve,  com 
que  ohomem  fe  livrará  infallivelmente  de  toda  a 
triíleza  fó  com  perguntar  ao  mefmo  corpo ,  e  á  mef- 
ma  alma  para  onde  vavõ :  Qtio  vadis^ 

1015     E começando  pelo  corpo,  feo  homem  IheNum.^ei,: 
perguntar  para  onde  vay  :  Quo  vadis'?  eelle  refpon- 
der,  que  vay  para  a  íepuhura  ;  que  hom,em  haverá 
tao  cego  ,  que  havendo  de  cahir  o  meímo  corpo  na- 
,quella  cova ,  naô  caya  eiie  em  fi ,  e naó  caya  na  razaó. 


Nmíi.404.q^ís  tesn  para  nao  eílar  triíle?  Oh  quantas  lagrimas 
íe  chorão  ,  e  quantas  lamentaçoens  fe  ouvem  ,  por-. 
que  naó  ha  quem  ponha  os  olhos  nefie  caminho  ine- 
vitável, eíe  pergunte:  Qiio  vadis}  Ahurjscomepor 
dentro  a  trifteza  ,  porque  íe  vem  pobres  :  a  outros 
roe  a  inveja  ,  porque  põem  ,  ou  lhe  leva  os  olhos  a 
abundância  dos  ricos,  e  fe  huns,  e  outros  tiveravojui- 
zoj^e  fe  perguntarão  para  onde  vaô,  taó  pouco  ha- 
viaô  de  chorar  huns  o  que  lhes  falta  ,  como  eílimar 
outros  o  que  lhes  fobeja. 

Num.407.     l^^^     ^e  bem  coníiderarmosascaufas,  (  que  lhe 
naô  quero  chamar  razoens  )  porque  os  queixofos  da 
fua  fortuna  vivem  triftes ,  'e  fe  lhe  faz  triíte  a  vida  , 
acharemos  ,  que  principalmente  iaÔ  naÔ  poderem 
gofar  osdousmais  faborofos  frudos  dasmefmasri- 
quezas.  O  comer,  e  o  veílir  faô  duas  coufas,  fem  as 
quaes  fe  naô  pode  viver ,  em  que  tem  grande  batalha 
no  homem  a  moderação  do  neceílario,  e  a  intempe- 
rança do  fuperíiuo. 
Kum.  411.      ^°^7     Ao  que  pode  entriílecer  o  corpo  por  fe  ver 
'menos  nobremente  trajado  ,  que  diremos  ?  Que  fe 
lembre  bem  do  Qíío  vadis  :  e  íeja  pela  boca  de  Job  : 
Niidus  egreljtis  jum  de  útero  matris  me  a ,  cb"  nudtis 
revertar  illuc.  Mas  naó  vamos  bufcar  eíle  defenga- 
no  á  terra  de  Hus. 

101^8  Adoecerão  na  noíTa  terra  ou  hum  mance- 
bo taô prezando  da  gentileza  como  Abfalaó,  ou  humi 
dama  de  taô  celebrada  formofura  como  Rachel ,  e 
taó  requeílada  por  ella  como  Helena  :  e  chegados 
ambos  á  ultima  defconfiança  da  vida ,  na  primeira 
claufula  do  teíla mento  depois  da  protefunçaó  da  fé  , 
diz  cada  hum  ,  que  feu  corpo  feja  íepultado  no  hobi- 
to  de  S.  Francifco.  líto ,  que  pelo  coílume  fe  naô  ef- 

tranha, 


Nura^4ii. 


Difcurfo  XCFi .     5  ^7 

tranha,  verdadeiramente  he  digno  Je  grande  admira- 
ção. Naó  éreis  vós  (  hum  ,  e  outra)  06 que  tanto  vos 
prL.*zaveis  das  galas,  os  que  g  lítaveis  as  telas,  os  que 
inventáveis  os  bordados,  os  que  empregáveis  em  nu- 
ma joya  quanto  tinhèis,  e  talvez  oque  naõ  tinheis? 
Pois  como  agora  vos  mandais  veílir  com  tanta  diífe- 
rença  ,  e  vos  contentais  com  hum  habito  de  burel, 
e  eiie  reinendado?  Porque  agora  imos  para  a  fepul- 
tura  Agora  dizeíii ,  e  dizem  o  que  cuidavao  ;  por- 
que dantes  nao  fabiao  para  onde  hiao.  (Jh  miíeria  ! 
Oh  cegueira  .'  Oh  engano  da  vida  ,  e  ignorância  hu- 
mana i  Cuidamos  ,  que  íó  imos  para  a  fepultura 
quando  em  hombros  alheyos  fomos  Jevados  a  elia ,  e 
nao  acabamos  de  entender  ,  que  úQÍ^áQ  a  hora ,  em 
que  nafcemos,  começamos  eíle  mefmo  caminho.  Se 
a  hum  recém  nafcido  ,  quando  fahe  do  ventre  da 
mãy  ,  lhe  perguntaíTemos  :  Qiio  vadis  ?  Minino ,  que 
agora  entraftes  no  mundo,  para  onde  ides?  he  fem 
duvida  ,  que  fe  qWq  tiveílè  já  ufo  da  razaõ ,  e  falia  pa- 
ra refponder,  refponderia  com  as  palavras  de  Job  : 
De  útero  ad  tumulum\  Defde  a  hora  de  meu  nafci-job.  lo: 
mento  vou  caminhando  para  a  fepultura,  e  eftasfai-  '^• 
xas  fao  a  minha  primeira  mortalha.  Deíenganemo- 
nos  os  mortaes  ,  que  todo  eíle  ,  que  cham.amos  cur- 
fo  da  vida  ,  nao  he  outra  coufa ,  fenaó  o  enterro  de 
cada  hum:  por  final ,  que  quanto  mais  pompa ,  mais 
cruzes. 

1019  Pois  fe  eftas  haõ  de  fer  as  galas  da  ultima  Num. 433: 
jornada  da  vida,  porque  naÔ  nos  contentaremos,  que 
fejaó  menos  vans  as  de  toda  ella  ?  Gloriacfe  tanto 
das  galas  os  perdidos  por  efta  vaidade,  que  até  o  mef- 
mo Chriílo  fallando  das  de  Salamaõ,  lhe  chamou  a 
lua  gloria  :  Nec  Salomon  in  omni  gloria Jua.  E  eíla  Matth.  í; 

gloria  v?i 


r" 


Ff.  4S.  18 


i.  Cor.  tf. 
10. 
"Num.  414 


3  ^8     Vieira  abhreviado 

gloria  ha  de  defcer  com  elles  á  fepultur?.  ?  Nao:  Quo- 
inam  cimi  inter ierit^  nonfumet  omnia ,  nec  defcenãet 
ciini  eo gloria  ejus.  Pois  porque  nos  ha  de  levar  tan- 
to apoz  íi  o  que  cá  ha  de  ficar ,  e  naô  nos  accommo- 
daremos  defde  logo  ao  que  fó  haverrios  de  levar 
comnofco  ?  Aquelle  grande  Sokiao  do  Egypto,  o  fa- 
irvofo  Saladino  ,  eílando  para  morrer  ,  mandou  levar 
■por  todo  o  íeu  exercito  a  mortalha ,  em  que  havia  de 
ícr  íepuJtado,  na  ponta  de  huma  lança  com  hum  pre- 
gão, que  dizia:  De  tudo  quanto  sdquirio  Saladino  , 
-ifto  he  o  que  íó  ha  de  levar  defte  mundo.  Ditoíbs  os 
íbldados,  qae  entaÕ  fe  refolveílem  a  defpir  a  cota  ,  e 
militar  debaixo  daquella  bandeira  !  O  Imperador 
Carlos  V.  anticipando  o  racfino  deíengano  ,  trazia 
fempre  comíigo  a  fua  mortalha.  Por  iíFo  tomou  aquel* 
la  valente  reíoluçao,  mayorque  todas  fuás  vistorias, 
:de  íeíepultar  em  Jufte,  e  acabar  ávida  antes  da  mor- 
te. Melhor  o  fazem  ainda  os  que  todos  os  dias 
<]yando  fe  veílem  ,  de  tal  modo  fe  compõem  do  pé 
í5té  á  cabeça  com  o  efpelho  da  fepultura  diante  dos 
olhos  ,  como  fe  o  veftido  fora  a  mortalha  ,  com  que 
haó  de  fer  levados  a  ella.  Eíle  he  o  trajo  dos  defer- 
tos,  e  cíauftros  religiofos,  em  que  todos  os  que 
profeíTamos  fervir  a  Deos ,  o  mefmo  habito ,  que  vef- 
timos,  he  amortalha  ,  em  que  havemos  de  fer  fepul- 
íados.  O  mundo  errado  julga  eíle  trajo  por  trifte  ; 
mas  nós  em  confiança  delle  nunca  triíles,  e  fempre 
contentes:  Qjioji  trifles^  femper  autem  gaudeiites, 
1020  Se  a  coníideraçao  da  fepultura  ,  e  a  noíFa 
'  pergunta  Oíwvadis  he  laó eííicaz  para  perfuadir  feni 
triíleza  a  forço  fa  pobreza  dns  roupas,  para  afazer 
tolerável  na  mais  fenfivel  da  mefa  naohe  m.enor  a  fua 
eííicacia.  Qiieixafe  da  íua  fortuna  o  pobre,  porque 

fendo 


Difcurfo  XCFJ.     5/^ 

fendo  tao  liberal  com  os  ricos  ,  com  clle  feja  taó  ava- 
ra, que  apenas  para  comer  lhe  conceda  com  o  fuor 
de  feu  roíto  hum  pedaço  de  paô.  Eu  antes  depaílar 
ao  noííb  remédio,  naó  íó  quero  reparar  no  paó,  fe- 
naõ  no  mefmo  pedaço  ,  que  o  faz  queixoío  ,  e  triíle. 
Perto  de  cem  annos  havia  ,  que  o  primeiro  Ermitão 
S.  Paulo  vivia  em  huma  cova  ,  quando  nella  o  viíltou 
o  grande  António  ,  a  quem  nós  para  íjgnifícar  a  fua 
mefma  grandeza  chamamos  Antaò.  Depois  de  fe 
faudarem  fòs  ,  chegou  hum  corvo  com  hum  paó  no 
bico,  eopozentreos  dous.  Admirouíe  ohofpede, 
e  o  habitador  da  cova  lhe  diífe:  Has  de  faber,  irmaó 
António,  que  de  muitos  annos  a  eíla  parte,  depois 
que  me  foraó  desfalecendo  as  primeiras  forças,  por 
efte  corvo  me  manda  Deos  todos  os  dias  meyo  pa6 , 
e  agora, porque  fomos  dous,  dobrou  o  Senhor  a  ração 
a  feus  fervos  ,  e  por  iíTb  nos  mandou  o  pao  inteiro. 
Quem  nao  pafmará ,  que  eílejantar  para  os  dous  ma- 
yores  homens,  que  Deos  tinha  no  mundo,  foíTe  man- 
dado da  fua  meia  ?  He  poífível ,  que  a  providencia  , 
a  grandeza  ,  a  magnificência  de  Deos  a  Paulo  fuílen- 
ta  cada  dia  com  meyo  mo  ,  e  a  Paulo ,  e  António 
com  hum  pac  !  E  he  poífivel ,  que  hum  homem  com 
fé  naÕeflimc,  e  fe  glorie  muito  de  que  ás  duas  ame^ 
tades  de  paó  de  Paulo,  e  António  le  ajunte  também 
o  pedaço  do  feu  ,  fendo  elle  em  tal  companhia  ©ter- 
ceiro convidado  de  Deos  !  Nao  ha  duvida  ,  que  fe 
es  Chriílao,  nunca  a  tua  ambição,  e  cubica  podia 
aípirar  a  mayor  fortuna  ,  que  efta  ,  a  que  te  tem  le- 
vantado a  tua  própria  pobreza  igualandote  nao  aos 
Príncipes  das  cento  e  defifete  Provindas  no  banque- 
te de  A  lluero  ,  mas  aos  dous  mayores  amjgos  ,  e  fa- 
vorecidos ,  que  tem  no  mundo  o  fupremo  Senhor  de 
Tom.  il.  Aa  todo 


m 


3  7°      V  tcira  aoí 

todo  eíle.  Vê  agora  quão  enganoía  he  a  tua  triíleza, 
e  tu  quaô  enganadamente  queixofo  áã  tua  fortuna. 
Num.  415.  102 1  Mas  porque  naÕ  cuides,  que  te  quero  coni-  1 
folar  por  outro  caminho,  refpondeme  :  í-^ara  onde 
vás:  Qj^iouadis}  Vás  para  a  repuitura?  Sim  :  e to- 
dos os  mais  ricos  ,  e  abundantes  do  mundo  para  on- 
de vao  ?  Para  a  fepultura  também.  Dá  pois  muitas 
graças  á  eílreiteza  da  tua  meia ,  e  ao  teu  pouco  paÓ ; 
porque  fendo  certo  ,  que  todos  haõ  de  chegar  á  íe* 
pultura  fem  nenhum  remédio  ,  íó  tu  por  comeres  me- 
nos, chegarás  á  fepultura  mais  tarde,  e  fó  tu  por  co- 
meres menos ,  feras  nella  menos  comido.  A  natureza 
fez  o  comer  para  o  viver  ,  e  a  gula  fez  o  comer  muito 
para  o  viver  pouco.  De  certos  homens  da  cr»  íladaquel*  \ 
ies,  de  quem  dizia  Sócrates,  que  naõ  comiaõpara 
viver,  masíóviviaô  para  comer,  conta  a  fagradaEí- 
critura ,  queexhortandoíe  de  commum  confentimen' 
to  diziaÕ :  Comedamiis ^  é?"  bibamus  ^  eras  ejiim  mo-^ 
riemiir.  Comamos ,  e  bebamos,  porque  á  mnnha  ha- 
vemos de  m.orrer.  A  confequencia  era  taÔ  bárbara, 
e  brutal,  como  quem  a  inferia.  Mas  que  fundamento 
tinhaõ  eíles  homens  ,  ou  eíles  brutos  para  prognoíli- 
car,  que  ao  outro  dia  haviaÕ  de  morrer?  Omefmo 
que  elles  diziaó :  Comedamus  ,  é^'  bibamus.  Das  de- 
inaíias  da  lua  gula  inferiaó  a  brevidade  da  fua  vi- 
da. O  dia  dos  banquetes  era  a  vefpera  do  dia  da 
morte.  A  gula  havia  de  cantar  as  vefperas  hoje ,  e  a 
morte  as  havia  de  chorar  á  manha  :  Cr  as  enim  mo^ 
riemur.  Naó  allego  Hippocrates ,  nem  Galenos ,  que 
aíFiin  deíinem  eíla  brevidade;  porque  naÕ  íaõ  necef- 
farios  osaforifmosda  íua  arte,  onde  temos  osdanof- 
fa  experiência.  Das  intemperanças  do  comer,  por 
mais  que  o  tempere  agula,  nafcem  as  cruezas,  das 
'       '  CKue- 


Ifai.  zi. 
13- 


ii 


Difciirfo  XCVl.     371 

cruezas  aconfufaô,  e  difcordia  dos  humores ,  dos 
humores  diícorJes,  e  defcompoftos  ss  doenças,  e 
das  doenças  a  morte.  Suppoíi:o  pois  que  todos  ha- 
vemos de  morrer,  e  todos  imos  para  a  fepultura  ,  o 
mayor  favor, que  Deos  pode  conceder  n  hum  mortal, 
he  que  morra  ,  e  chegue  iá  mais  tarde.  E  eíle  he  o 
primeiro  privilegio  dos  pobres,  aquém  a  providen- 
cia divina  quanto  nega  de  abundância ,  e  regalo , 
tanto  accreícenta  de  vida. 

1022     Ouçaó  os  abundantes,  e  regahndos  o  queNum.4itf. 
fobre  ifto  enílna  a  verdade  daquelle  Senhor,  que  o 
he  da  vida ,  e  da  morte  :  Onwis  potentatus  vita  bre-  Ecdef.  10. 
vís.  Porque  os  ricos,  e  poderofos  daõ  muita  mate-*^* 
ria  á  gula,  os  pobres,  ainda  que  queiraó,  nao  podem. 
Santo  Agoftinho  dava  graças  a  Deos  por  lhe  haver 
eníinado ,  que  ufaíle  dos  alimentos ,  como  das  medi- 
cinas :  Hoc  me  dociiifti ,  ut  qtiemaãmodum  aã  ínedi-  Auguft. 
camenta ,  Jic  aã  alimenta  fimpt  urus  accederem.  De  ^^^^^^^^^-^ 
forte  que  aquillo ,  fem  que  naô  podemos  viver ,  he  o 
mefmo,  que  nos  mata,  tomado  íem  medida.   Ecomo 
o  alimento  tomado  fem  medida  he  o  veneno  da  vi- 
da ,  e  com  medida  o  medicamento  delia  ,  eftá  he  a 
defgraça  naô  conhecida  dos  ricos  ,  e  a  ventura  tam- 
bém mal  entendida  dos  pobres.  A  vida  ,  e  a  via  de 
huns  ,  e  outros  igualmente  caminha  para  o  mefmo 
termo,  que  he  a  fepultura;  mas  os  paíTos  naô  íaô 
iguaes.  Porque  como  a  abundância  ,  e  gula  dos  ricos 
he  o  feu  veneno ,  e  a  eílreiteza  ,  e  abftinencia  dos  po- 
bres o  feu  medicamento,  os  ricos  chegao  á  íepultu- 
ra,  como  S.  Joaó  á  de  Chriílo  ,  primeiro  ,  e  mais  de- 
preda ,  e  os  pobres,  como  S.Pedro ,  mais  de  vagar ,  e 
mais  tarde. 

1023     E  depois  de  chegados  huns^  e  outros  á  fe-  Num.  417. 

Aa2  pui- 


572     Vieira  abbreviado 

pultura  ,  tem  também  dentro  nella  alguma  difFeren- 
ça  ?  Sim  ,  e  muito  grande  ,  que  he  o  íegundo  privi- 
legio dos  pobres.  A  gula  aííim  como  ceva  as  aves, 
para  que  as  comaó  os  homens,  aííim  ceva  os  homens, 
pnra  que  os  comaô  os  bichos.  Miíeravel  condição  da 
noíía  carne ,  comer  para  fer  comida!  Por  iíTo  diz  hum 
provérbio  dos  Hebreos  :  Qiá  multiplicat  carnes  y 
multiplicat  vermes.  Os  corpos  dos  ricos  cheyos,  e 
anafados  faÕ  o  banquete  dos  bichos  ,  os  dos  pob;es 
fecos ,  e  poílos  nos  oílbs  faõ  o  feu  jejum.  Qiie  bem 
le  vio  ifto  naquelJe,  em  que  o  pobre  Lazaro ,  e  o  rico 
Avarento  foraô  á  fepultura  /  O  rico  em  fepulcro  de 
mármores  banqueteando  efplendídamente  os  bichos, 
como  elle  coftumava  comíigo :  e  o  pobre  ,  que  nem 
as  migalhas  ,  que  lhe  cahiaô  da  mefa  ,  tinha  para  fe 
fuftentar,  fepultado  na  terra  nua;  mas  naó  tendo  a 
mefma  terra  que  comer  nelle. 
Nnm.418.  1024  Os  regalos  exquifitos  trazidos  de  taó  lon- 
ge com  tantos  perigos,  comprados  com  tanto  preço, 
guifados  com  tantos  artifícios  íaó  para  o  ventre  do 
homem  :  e  eííe  ventre  aílim  regalado,  aíEm  mimoíb, 
e  aílim  cuftofo  para  quem  he  ?  Para  o  comerem  os 
bichos.  Eíle  he  o  paradeiro  das  íuperfluidades  dos 
ricos.  Coníidere  pois  o  rico  ,  e  o  pobre  para  onde 
vay  :  ^0  vadis  ?  Para  que  o  rico  modere  a  fua  abun- 
dância ,  e  o  pobre  fe  componha  com  a  fua  modera- 
ção. E  porque  o  pobre  ,  e  o  rico  (  e  o  rico  mais  apref- 
fadamente,  que  o  pobre")  todos  imos  parar  alli ,  la- 
mentemíe  os  ricos  da  fua  riqueza  ,  e  das  fuás  galas  , 
e  regalos :  fejao  os  pobres  os  contentes ,  e  elles  os  trif- 
I.  Timot.  tes.  Hãh  entes  alimenta  ,  i^  q  tá  bus  tegamur ,  his 
^'  ^'  Cmitenti  ftimus :  Com  que  tenhamos  o  que  baile  pa- 
Nam.410.ra  íuílentar  ,  e  cobrir  o  corpo,  teremos  também  o 
a  que 


■M 


■V^TfT 


Difciirjo  XCVI.      5  75 

que  baila  para  eílar  contentes ,  eícreve  o  Apoíloio  a 
Timothco.  E  S. Jeronymo  commentnndo  efte  texto, 
e  contrapondo  a  largueza  ,  e  abundância  dos  ricos  á 
eílreiteza,  e  moderação  dos  pobres  no  mefmo  veí- 
tir,  e  comer,  fiioíofa  nílim  elegantemente:  Grondis 
extiltatin ,  ctim  parvo  contentus  fiieris  ,  mimdum 
habere  fuh  pedibus  ,  é^  propter  qii£  diviti£  compa- 
rantur ,  vUibiis  mtitare  cihis ,  ér  crajjiore  túnica 
compenfare  :  Naõ  cuidem  as  galas,  e  gulas  dos  ricos, 
diz  o  Doutor  Máximo  ,  que  carecem  os  pobres  do 
que  elles  gofao  ;  porque  tudo  o  que  elles  alardeao 
com  largueza  no  feu  muito,  lograô  conipenfado  oSv 
pobres ,  e  abbreviado  no  feu  pouco :  os  ricos  ,  e  vaõs  ^^ 

nas  galas ,  elles  no  veftido  groileiro :  os  ricos ,  e  vaós 
nos  regalos ,  elles  no  mantimento  vil.  E  que  fe  fegue 
daqui?  Seguefe,  que  o  contentamento,  e  alegria, 
que  a  riqueza ,  e  vaidade  pertende  ,  fó  a  pobreza  íi- 
zuda  o  alcança  ,  e  muito  mnyor  :  Grandis  exultatiOy 
ctim  pa7'vo  contentus  fueris  ,  mundum  habere  fuh 
pedibus.  Deixo  de  ponderar  eftas  ultimas  palavras; 
íó  digo  ,  que  para  quem  caminha  para  a  fepulíura  le- 
var o  mundo  debaixo  dos  pés ,  mais  he  triunfo  ,  que 
enterro  ,  pofto  que  mal  banqueteado,  e  mal  veílido. 

1025  Já  perguntámos  ao  corpo  :  Qjw  vadis  ?  Num.  41? 
para  onde  hia  ?  e  nos  refpondeo  por  boca  doEfpiri- 
to  Santo  ,  que  para  a  fepultura.  Agora  faremos  á  al- 
ma a  mefma  pergunta  ,  e  refponderá  por  boca  do 
mefmc  Oráculo  divino,  como  também  vim.os,  que 
vai  para  o  Cco.  Pois  aílim  como  o  corpo  achou  re- 
médio da  fua  triíleza  no  feu  Quo  vadis  \  aííirn  ,  e 
muito  m.elhor  achará  a  alma  o  remédio  das  fuás  no 
feu  ,  quanto  vai  do  Ceo  á  terra. 


Tom.  II. 


Aa3 


DIS- 


3  74     Vieira  abhreviado 


DISCURSO 


XCVII. 


l^iraão  àe  hmn  fermao  da  terceira  quarta  feira  da 
Quarefnía  pregado  na  Capei  la  Real  fohre  as  pa- 
lavras do  Euangelho  :  Dic  ,  ut  fcdeant  hi  duo  íi- 
lii  mei ,  unus  ad  dexterain  tuain  ,  &  unus  ad  finif- 

Math  20. 


tram  m  regno  tuo. 


VALIDOS. 

Part.  3.         1026     ~|~^Sta  foy  a  petição  da  may  dos  Zcbe- 
^•»"^'  ÍI5-  .Jj^deos  a  Chriílo  ,  tantas  vescs  ouvida 

nefte  Real  auditório  ,  como  variamente  ponderada 
defte  íagrado  lugar.  Mas  porque  o  fobernno  Senhor 
refpondeo  aos  filhos,  para  que  o  entendeíle  a  may; 
eu  determino  hoje  reíponder  á  may  ,  para  que  me 
entendaõ  os  filhos  ,  e  os  que  naó  faõ  filhos  também. 
Com  huma  fó  hei  de  fallar;  mas  para  todos  hei  de  di- 
?er.  Começando  pois  a  fallar  com  a  may  dos  Zebc- 
deos  y  o  que  lhe  digo ,  (  ou  diílera  )  he  deíla  manei- 
ra. 
Nona.  116.  1027  Viílo  ,  fcnhora  ,  eíle  voíTo  mernorial,  (  o 
qual  coníidero  ,  antes  que  fe  prefentaíle  a  Chrifto  ) 
poílo  que  eu  naÓ  tenha  authoridade  para  o  emen- 
dar, nem  ainda  coníiança  para  o  arguir  ,  a  muita  de- 
voção ,  que  profeíío  com  voílbs  íiiiios ,  e  o  grande 
refpeito  ,  que  por  ellcs ,  e  por  volla  venerável  peflba 
vos  he  devido,  excita,  perfuade,  e  ainda  obriga  o 
meu  zelo  a  que  repare  ,  e  advirta  por  vos  fervir 
o  que  neíta  petição  me  faz  duvida.  E  para  que  feja 
com  diílinçaó,  clareza,  e  brevidade ,  examinando 
huma  por  huma  todas  as  palavras  delia ,  direi  fobre 

cada 


m 


DiJciirfoXCVII.   3  75 

cada  huma  o  que  eu  noto,  mas  nao  condcmno  ,  pof- 
to  que  outros  o  póJem  eO: ranhar. 

1028       A  primeira  coiifa  pois  ,  em  que  a  minha  Num.  117. 
confideraçao  repara  ncfle  mem.orial  ,   he  a  primeira 
palavra  delle  :  Dic  :  Dizei.  Naó  heefte  o  ellylo  por 
onde  começao  ,  nem  devem  começar  as  petiçoens. 
As  petiçoens  comcçao  por  Diz,e  wàò  por  Dizei. Mas 
como  vós  ,  balomé  ,  fois  mííy  do  valido  ,  parece-.me 
que    o  valimento  vos  ditou  a  petição.  Os  outros 
nas  fuás  petiçoens  comcçao :  Diz  fulano  :  os  validos 
nao  dizem  :  Diz  ,  dizem  :  Dizei.  Tal  eílylo  de  pedir 
nao  he  pedir,  heeníinar,  ou  mandar.  OPrincipe, 
que  afum  defpacha  ,  nao  concede  ,  obedece  :  mõ  dá 
a  mercê  ,  dá  a  lição    Chrifto  he  Meílre  ,  e  Senhor  : 
Fos  "cocãtis  me  Magifter  ^  Cr  Domine  :  e  nem  co-joan.  ij. 
mo  Senhor  deve  ler  mandado,  nem  como  Meftre  en-  'J- 
ílnado. 

1029     Se  o  quepedis,  que  diga  :  Dic  ^  he  que  osNum.n». 
voíTos  filhos  tenhao  os  dous  lugares  do  lado  ,  como 
quereis  ,  que  vos  defpache  Chriílo  logo  y  e  em  huma 
palavra  ?  1  aõ  leve  negocio  he  a  eleição  de  hum  pri- 
meiro iMiniíiro  ,  e  muito  mais  a  de  dous  Miniílros, 
ambos  primeiros  ,  que  por  huma  íimples  petição  fem 
mais  conTulta,  nem  confelho  fe  haja  de  conceder? 
Se  o  pedira  todo  o  Reyno, ainda  havia  muito  que  du- 
vidar ;  porque  nao  cuidaíTem  os  vaílallos  ,  que  jun- 
tos ,  nem  divididos  podiao  ter  acção ,  ou  iírpulíb  nas 
rcfoluçoens  íoberanas.  Q^ianto  mais,  que  femelhan- 
tes  lugares  npo  fe  daõ  a  quem  os  defeja  ,  e  os  pede  ; 
antes  quando  osdefejaõ,  então  começao  a  os  defme- 
recer,  e quando  íe  atrevem  aos  pedir,  então  os  def- 
merecem  de  todo.  O  pedir  ,  e  o  deípedir  em  tses  ca- 
ibs  huo  de  fer  correlativos.  Oh  quanto  melhor  tive- 

Aa4  raô 


Num.  114 
Num.  115 


Pf.43-^. 


Nnm,  li;? 


37^     Vieira  abbreviado 

rao  negociado  os  voííos  cious  pertendentes,  fequan- 
do  Chriíto  os  eílremava  dos  outros  parn  lhes  fiar  os 
cafos  de-mayor  importância  ,  elles  fe  retiraíTem  com 
modeília ,  e  com  difcreta  reíiílencia  fecfcufaíiem  ! 
Qijando  Moyfés  fe  eícufou  de  primeiro  Miniílro  de 
Deos  íobre  o  Egypto ,  então  o  levantou  Deos  ao  feu 
lado ,  e  lhe  delegou  o  Teu  poder  ,  e  mais  o  feu  nome : 
Conftitui  te  Deum  Pharaonis.  Paliemos  á  fegunda 
palavra. 

1030  TJt  Jedeant.  Que  feaíTentem.  Também  efte 
termo  naõ  he  curial,  antes  muito  impróprio,  e  ainda 
indecente.  Que  íejao,  Salomé,  voílbs  filhos  muito  aí- 
fentadoSjiíFo  procurai  vós;mas  que  eftejaó  aíFentados 
he  implicação  do  q  pedis.  Pedis  o  lado,  e  dizeis,  que 
feaíTentem?  Naófabeis,  que  em  palácio  aílim  como 
naô  ha  mais  que  hum  fó  docel,  ha  também  huma  ío 
cadeira  }  Na5  fabeis  que  os  grandes  alli,  íe  canfaó  de 
eílarem  pé5ró  defcanfao  de  joelhos,  arrimados  quan- 
do muito  a  huma  credencia  daquelles  idolatrados  al- 
tares? Bailava  para  iílo  fer  Chrifto  L\ey, quanto  mais 
fendo  Rey,  e  Deos  juntamente:  Tti  esipje  Rex  meus, 
é^  Deus  meus.  O  throno  de  Deos  no  templo  he  o 
Propiciatório  ,  donde  ouve ,  e  refponde  :  e  poílo  que 
nem  vós,  nem  voíFos  filhos  entra  líeis  naquelle  (agra- 
do, porque  he  vedado  a  todos,  bemjdeveis  de  ter  ou- 
vido, que  ao  lado  direito  do  Propiciatório  eílá  hum 
Cherubim  ,  e  ao  lado  efquerdo  outro,  mas  ambos  em 
pé.  Logo  fe  quereis  ,  que  osvoílosdous  filhos  fucce- 
daÕ  no  lugar  deíles  Gherubins,  e  que  occupem  hum, 
e  outro  lado  do  throno  de  Chrifto  ,  como  pedis,  que 
fe  aíFentem  :  Ut  fedeant  ?  Os  Gherubins  eftaô  em  pé, 
e  os  filhos  do  Zcbedeo  haó  de  eftar  aííentados  ? 

105 1  Hi,  A  palavra  he  muito  breve ,  mas  naó  di- 
gna 


MM 


DifairfoXCVIL    577, 

gnade  menor  reparo.  Vós  Jizies:  Hr.  Eíles.  iMjueai 
naodirá:  Qiícm  1  a 6  eíles  ?  Muito  hc  de  crer  íc  ern- 
baraçaráó  logo  com  as  redes,  e  corci  a  barca ;  mas  eu 
tao  longe  eílou  de  encalhar  neíle  baixo,  (poíto  queQ 
feja  )  que  antes  o  exercício  de  peícadores  .me  [.niece  . 
o  melhor  noviciado,  que  eíles  Apoliolos  podiaó  ter 
para  a  proriílaó  de  primeiíos  Miniliros.  Qiie  he  hu- 
ma  barca,  íenaô  huma  Republica  pequena?  Eque 
he  huma  Monarchia  ,  fenaó  huma  barca  grande  ?  Nas 
experiências  de  huma  íe  aprende  a  pratica  da  outra. 
Saber  deitar  o  leme  a  hum ,  e  a  outro  bordo  ,  e  cerrai- 
lo  de  paíicada  ,  quando  convém  :  faber  vogor,  quan- 
do fe  ha  de  ir  adíante  ,  e  feyar,  quando  íe  ha  de  dar 
volta  ,  e  fufpender ,  ou  fincar  o  remo  ,  quando  íe  ha 
de  ter  íirme:  laber  eíperar  as  marés  ,  e  conhecer  as 
conjunçoens,  e  obfervar  o  cariz  do  Ceo  :  íaber  tem- 
perar as  velias  conforme  os  ventos,  largar  a  efcota  ^ 
ou  carregar  a  bolina ,  ferrar  o  pnno  na  tempeíhde ,  e 
na  bonança  iíFar  até  os  topes.  Tao  politica  como  iílo 
he  a  arte  do  pefcador  na  mareaçaô ,  e  mais  ainda  nas 
induílriasda  peíca.  Saber  tecer  a  malha  ,  eleguraro 
nó :  íaber  pezar  o  chumbo  ,  e  a  cortiça  :  faber  cercar 
o  mar  para  prover ,  e  fuílentar  a  terra  •.  faber  eftorvar 
o  anzol ,  para  que  o  peixe  o  naó  corte,  e  encubrillo, 
para  que  o  nao  veja :  faber  largar  a  íédela  ,  ou  tella 
em  tezo  :  faber  aproveitar  a  ifca  ,  e  eíperdiçar  o  en- 
godo. Só  hurn  defeito  reconheço  no  pefcador  para 
os  lugares  do  lado  ,  que  he  o  exercício  de  puxar  pa- 
ra fi.  E  eíte  he,  íenhora ,  o  que  naõ  ío  fe  argue  ,  mas 
íe  prova  do  meímo,  que  voíFos  íillios  pertendem  ,  e 
vós  pedis. 

1032     D//0.  Ainda  eíle  Dí/o  tem  mayor  diíTonan-  ^^^^  ^ ^^ 
cia.  Pertendeis  o  valimento  doKey,  e  quereis  que 

os 


7  8     Vieira  abbreviado 

os  validos  fejao  dous :  Dno  ?  Se  convém  ,  que  os  Reys 
tenhaÔ  valido,  ou  naó,  he  problema  ,  que  ainda  nao 
eílá  decidido  entre  os  políticos.  Mas  dous  validos 
ninguém  hn,  que  tal  diííeíre,  nem  imaginaíle.  Se  os 
voíTos  filhos  tiveraó  lido  as  hiílorias  (agradas,  e  pro- 
fanas áMQ  o  principio  do  mundo  até  hoje  ,  naõ  lhe 
havia  de  paííar  tal  coufa  pelo  penfamento.    Creou 
Deos  a  Adão  no  fcxto  dia  do  mundo,  para  que  no  go- 
verno delle  foíie  fua  iinagem ,  e  logo  no  dia  feguinte 
fe  diz,  que  dcícanfou  Deos  ^  porque  os  íupremos 
Principes  he  bein  ,  que  tenhaó  huma  cauía  fegunda  , 
que  os  rcprefente  ,  e  fobre  quem  deícanfem.    Mas 
eíle  homem  (  que  lefuppoem  íerem  tudo  o  primeiro 
homem  )  ha  de  fer  hum  ,  e  naõ  dous    Por  iílo  fez 
Deos  hum  Adaõ ,  e  naó  dous  Adoens.  Entre  os  Chal- 
deos  foy  priuieiro  Miniílro  de  Nabucodonofor  Da- 
niel;  mas  íò  Daniel:  entre  os  Egypcios  Jofeph  de 
Faraó  ,  mas  íó  Jofeph  :  entre  os  Gregos  Hefeftiaô  de 
Alexandre  ,  mas  fó  Hefeíliao:  entre  os  Perfis  Aman, 
e  Mardocheo  de  AíFuero  ,  mas  nao  juntos,  fenaõ  em 
di  verfos  tempos ,  e  fempre  hum  íó.  Se  algum  exem- 
plo houve  de  dous  juntamente  ,  foy  para  ruina  do 
Rey,  e  perdição  da  coroa.  Nenhum  Rey  teve  a  feu 
lado  mayor,  e  melhor  Minillro,  que  Abfilao,  quan- 
do começou  a  reynar;  porque  teve  a  Achitofel,  cujos 
conf^lhos  por  teftimunho  da  mefma  Efcritura  (agra- 
da erao  como  oráculos  de  Deos.   E  porque  David 
quiz  tirar  a  coroa  a  Abíalaó,  como  a  Rey  intruío  ,  e 
rebelado  ,  que  fez?  A  traça,  de  que  ufou  ,  como  tao 
prudente,  foy  meterlhe  do  outro  lailo  outro  Minii- 
tro  ,  que  foy  Chulay  :  e  aífim  íuccedeo.   Encontra- 
raôíe  os  dous  Miniílios  nos  pareceres,  feguio  Abía- 
laó o  de  Chufay ,  e  naó  o  de  Achitofel :  e  fendo  que 

com 


MB 


Bifcurfo  XCVII.    3 

com  efte  fe  confervani  fem  duvidn ,  como  diz  o  mef- 
mo  texto,  porque  teve  dous,  íe  perdeo. 

1033  A  razão  naturai  defte  inconveniente  he,  Num. 134. 
porque  onde  ha  dous  entendimentos  ,  duas  vontades, 
duas  naturezas ,  e  duas  peíloas  difiei  entes  ,  nao  pode 
liaver  uniaô.  A  uniaô  hypoftatica  em  Chriílo  (  que 
foy  o  mayor  milagre  da  íabedoria  ,  e  omnipotência 
divina)  unio  duos  naturezas,  dous  entendimentos,  e 
duas  vontades.  Mas  notay  ,  que  ncíle  meímo  com- 
poftocom  íer  milagrofo  as  peíloas nao  faó  duas,  fe- 
naõ  huma  ío.  Em  huma  peíiba  por  milagre  podem 
eítar  unidas  duas  naturezas  ,  dous  entendimentos  ,  e 
duas  vontades  j  mas  em  duas  peílV>as  diíterentcs  ( co- 
mo dous  homens  :  Díw  )  he  milagre ,  que  nem  Deos 
fez  já  mais  ,  nem  fará.  Na  Santiífima  Trindade  ha 
também  uniaô  deíle  género  por  outro  modo  ainda 
mais  admirável.  As  peílbas  faÔ  trcs  realmente  diílin- 
das,  e  todas  entendem  o  meímo  ,  e  querem  o  mef- 
mo.  Mas  ainda  que  as  peíioas  lac  três  ,  as  naturezas^ 
os  entendimentos,  e as  vontades  naòfaotres,  fenao 
huma  fó  natureza ,  hum  fó  entendimento  ,  e  huma  fó 
vontade.  Vede  agora,  fe  em  dous  homens,  em  que  as 
naturezas,  os  entendimentos,  as  vontades  ,  e  as  pef- 
foaa  íaó  diverfaF ,  e  em  taõ  diverías  matérias  ,  como 
faó  as  que  concorrem  numa  Monarchia  ,  poderá  ha- 
ver uniàô ,  nem  concórdia  ? 

1034  F/7//  7?m.  Em  dizer ,  que  fãô  voííbs  filhos,  ^"'"'  '^7-. 
eílou  vendo,  Salomé,  que  defprezais  todo  eíte  meu 
difcurfo,  imaginando  como  mulher,  e  may  ,  que  to- 
dos os  inconvenientes,  e  temores  de  difcordia  fe  fe- 
guraõ  com  ferem  irmãos,  poílo  que  fejaô  dous.  Sao 
irmãos,  e  irmãos  inteiros  ,  filhos  do  mefmo  pay,  e 
da  mefma  may,  fegura  eftá  logo ,  eeílará  fempre nel- 

les 


o 


leira  abbr 


Jes  a  uniad  ,  e  concórdia.  Ah  fenhora  ,  que  mal  fa- 
beis  ,  quaf)  fraca  íigniíicaçao  he  a  deííe  erpeciofo  no- 
me, que  entre  os  homens  fe  chama  irínnndade?  Baf- 
ta  fer  fundado  ein  carne,  e  fangue  para  nao  ter  fub- 
fiftencia  ,  nem  firmeza.  DitFerenre  poder  he  oda  am- 
bição, da  cubica  ,  da  emuiaçaô,  da  inveja  ,  e  de  to- 
das as  outras  neíles  da  uniaò,  e  fociedade  humana, 
com  que  os  mais  fagrados  vínculos  da  natureza  fe 
profanaô,  e  rompem.  E  como  a  má  Temente  deftes 
vícios  nafce,  e  fe  dá  melhor  entre  iguaes  ,  por  ilFo 
entre  os  que  nafceraó  dos  mefmos  pays  ,  he  mais  na- 
tural a  difcordia.  Da  mefma  fonte  naícem  os  rios  do 
Paraifo  ,  e  nenhum  faz  companhia  com  outro,  cada 
hum  fegue  differente carreira  ,  naó  fó divididos,  mas 
oppoílos.  E  fe  ifto  fe  acha  na  fineza  da  agua  ,  que 
fera  no  calor  do  fangue  ?  Diga- o  o  de  Abel  derrama- 
do por  Caim  ,  e  o  de  Remo  por  Rómulo.  Se  dous 
irmaôs  fundadores  daqueila  portenlofa  Cidade,  que 
hoje  naõ  cabe  no  mundo  ,  naÕ  couberao  juntos  na 
mefina  Cidade  :  fe  dous  irmãos  primogénitos  da  na- 
tureza para  propagação  do  género  humano  naó  cou- 
berao em  toda  a  terra  ,  onde  naÕ  havia  outros;  co-- 
mo  caberão  os  voíFosdous,  e  como  eílarao  confor- 
mes em  hum  gavinete  ,  onde  cada  memorial ,  cada 
confulta  ,  e  cada  requerimento  he  huma  maça  da 
difcordiaí'  Agora  fao  amigos,  agora  conformes,  ago- 
Num.  i38,j,^  verdadeiramente  irmãos,  e  fó  defejaó  íer  compa- 
nheiros; masaílim  como  agora  fe  unem  para  fubir, 
aíFim  fe  dividiráo  depois  para  fe  derrubar.  Qiiantos 
fe  uníraõ  para  a  batalha  ,  que  depois  fe  matáraó  fo- 
bre  os  defpojos }  A  ambição  ,  que  agora  os  une ,  ef- 
fa  mefma  os  ha  de  apartar  depois,  e  de  hum  lado 
contra  outro  lado ,  como  de  dous  montes  oppoílos, 

fe 


o 


_  ufcurfo 

fe  haó  de  combater  ,  e  fazer  a  guerra. 

1035  Se  vós  foubereis ,  que  coufa  he  hum  Rey-  ^^^^^  ^^^^ 
no,  e  o  pezo  delie  ,  e  mais  quando  carrega  íobre  caa- 
ias  íegundas,  eu  vos  prometto  ,  que  vos  benzereis 
de  tal  penfamento ,  quanto  mais  defeiallo  para  os  fi- 
lhos ,  a  quem  tanto  bem  quereis.  Qiiie  Flercules  he 
Joaõ,  ou  que  Atlante  Jacobo  para  tomarem  fobre 
feus  hombros  huma  Monarchia  ?  Em  que  Cortes  fe 
creáraó  ,  que  terras  viraó  ,  que  hiílorias  ieraó  ,  que 
negócios  manejarão  ?  ide  a  Jerufalem  ,  entrai,  íe^^^^^^^^ 
vo  lo  permittirem  as  guardas  ,  ou  no  palácio  profa- 
no deFIerodes,  ou  no  fagrado  deCaifaz  ,  e  naquel- 
le  tropel ,  e  concurfo  de  pertendentes  esfaimados 
(que  todos  procuraõ  comer,  e  todos  fe  cornem^) 
vereis,  fe  entre  tanto  tumulto  pode  haver  quietação, 
entre  tanta  perturbação  focego  ,  entre  tanta  varie- 
dade firmeza  ,  entre  tanta  mentira  verdade .  entre 
tanta  negociação  juftiça,  entre  tanto  refpeito  intej- 
reza  ,  eíitre  tanta  inveja  paz  ,  entre  tanta  adulação, 
e  adoração  modeília ,  temperança  ,  nem  ainda  fé. 
Vede  fobre  tudo  ,  fe  tanta  í^áç:  de  ambição  ,  e  cubi- 
ca infaciavel  pode  ter  fatísfaçao,  que  a  farte,  ou  mo- 
dere :  e  fe  a  podem  dar  voííbs  filhos  a  tantos,  que 
pertendem,  e  batalhão  fobre  a  mefma  coufa  ,  que  ou 
fe  deve  negar  a  todos,  ou  concederfe  a  hum  fó  "^  Da- 
qui fe  fcguem  os  defcontentamentos,  as  queixas,  as 
murmuraçoens  do  governo,  as  arrogâncias  dos  gran- 
des, as  lagrimas,  e  lamentaçoens  dos  pequenos,  as 
diíFenfoens,  as  parcialidades,  os  ódios,  lendo  o  al- 
vo de  todas  eílas  lettas  avenenadas  os  que  aííifiem 
mais  chegados  ao  throno  do  fupremo  poder ,  os  que 
refpondem  em  feu  nome  ,  os  que  declaraõ  íeus  orá- 
culos, os  que  diílribuem  feus  decretos.  E  fe  iílo  [he 

o  que 


■^ 


382     Vieira  ãí 

o  que  fe  experimenta  ,  e  padece  naõ  em  BabyJonia  , 
ou  Ninive,  fenaó  em  Jeruíalem  :  nem  no  Império 
dos  Aílyrios  ,  Perfas  ,  Gregos  ,  ou  Romanos  ,  íenao 
em  huma  Republica  taõ  arruinada  hoje,  e  taõ  limi- 
tada como  a  dejudea  ^  que  fera  no  Reyno  univerfal 
de  Chriíto  :  In  Rcj^no  tuo  ? 


Num.  148.      103Ó     Tm.  Dizeis,  íem  advertir,  ou  faber  o  que 


que  fe  lhe  fujeitaráõ  ,  e  o  viráô  a  adorar  os  do  Ori- 
ente, eosdo  Occidente,  os  do  Setentriaô,  e  os  do 
Meyo  dia  :  o  Profeta  Daniel  ,  que  todas  as  gentes , 
todos  os  povos,  todas  as  línguas  o  confeífaráo,  e  que 
ícvi  obedecido  ,  e  fervido  de  todos  osReys ,  e  Mo- 
narchas  do  mundo.  Eíla  he  a  grandeza  do  Reyno.  E 
que  capacidade,  que  talentos  vos  parece,  que  faône- 
ceíFarios  para  mover  com  proporção  ,  e  íullentar  os 
duus  poios  de  huma  machina  taó  immenía  ?  Bailará 
o  voíTo  João ,  e  o  voíToJacobo ,  que  nunca  tomarão 
o  compaífoiía  mao,  nem  viraó  carta  para  conhecer 
£is  regioens,  e  as  gentes,  para  perceber,  e  entender 
as  linguas,  para  comprehender  os  negócios  de  efta- 
do ,  c  de  tantos  eftados  ,  para  refponder  ás  embaixa- 
das ,  para  aceitar  as  obediências  ,  para  capitular  as 
condiçoen^,  para  eílabeíecer  as  páreas  ,  para  ajuftar 
os  tratamentos,  em  fim  para  concordar  as  vontades, 
e  compor  os  intereíTes  de  todos  os  Reys ,  e  Príncipes 
do  univerfo  ?  O  certo  he ,  que  ou  nao  conheceis  vof- 
fos  filhos ,  ou  naÓ  tomaíles  bem  as  medidas  aos  pof- 
tos  ,  aonde  os  quereis  levantar. 

1037    Jofeph,  e  Daniel ,  dous  fujeitos  de  tama- 
nha esfera ,  toda  ella  empregarão  cada  hum  em  hum 

íó 


Dljcurfo  XCYII.     3S5 

fòReyno:  Jofeph  no  do  Egypto  ,  D/íiiiel  nodcBa- 
bylonia.E  que  proporção  tem  huma  Babylonia,  mm 
cem  Babylonias,  humEgypto,  nem  n»il  Fgypícs 
com  o  Keyno  ,  e  Monarchia  de  Chi  iPlo  ?  Deníro  em 
caía  temos  ainda  mayor  exemplo.  Moyícs  squelle 
homem  ,  que  no  nome  trazia  a  divindode  ,  e  na  mno 
a  omnipotência,  quantas  vezes  fe  queixou  a  Dcos  de 
naÕ  poder  com  o  pezo  de  hum  íb  povo,  e  povo  da 
lua  ley  ,  da  íua  naçaõ,  e  da  fua  lingua  ?  Áceitoulhs 
Deos  a  elcuía  ,  íubítituiolhe  o  lugar,  mas  com  quem, 
e  com  quantos  ?  Naõ  com  menos  ,  que  com  íetenta 
anciãos  do  mefíno  povo  ,  efcolhidos  dos  mayores  ,  e 
melhores  de  todo  elle.  Se  para  o  pezo  de  hum  Rey- 
no  ,  que  ainda  entaô  o  naó  era  ,  foraó  neceílarias  íe- 
tenta columnas  taô  fortes;  como  quereis  vós,  que 
fobre  duas  taõ  fracas  fe  íullente  aquelle  immenío 
ediíicio,  que  ha  de  recolher  dentro  em  íi  tudo  quan- 
to rodeaõ,  e  cobrem  as  abobadas  do  firmamento. 

1038  Dirmeheis  ,  que  no  Reyno  de  Chriílo  por  j^^^ 
feu  :  In  Regno  ttio  ^  naõ  haverá  taníos  perigos,  e  "^^'^^^A 
diíiiculdades,  como  nos  outros,  quanto  vai  de  tai 
Rey  aos  outros  Reys.  No  que  toca  á  peííba  ,  juíii- 
ça ,  e  bondade  do  Rey  ,  tendes  razaô.  A  mayor  ú^^- 
graça  dos  privados  dos  Reys  do  mundo  ,  e  o  mayor 
precipicio  das  meímas  privanças  he  ferem  qW^^  nao 
fo  Mmiftros  do  feu  governo,  fenaõ  de  íuas  paixões, 
aduladores  de  {^m  appetites ,  e  cúmplices  de  feus  ví- 
cios. Aífim  defprezaó,  e  perdem  a  graça  de  Deos 
por  naó  arrifcar  a  dos  Reys,  ou  por  mais  fe  infinuar, 
e  coníervar  nelia.  Chegado  AbrahaÓ  a  Egypto , 
acompanhado  de  Sara  mulher  fua  ,  mas  com  nome 
deirmá,  as  novas,  que  logo  ievaraô  ao  Rey  os  do 
feu  lado ,  naó  foraó ,  que  era  chegado  á  Corte  hum 

ho- 


Part.'4- 
Kuai.  i6o 


Part.  14. 
Num.  1451 

PaT.  7. 
Kum.  144' 


Part.  ?. 
Kum.  149 


3  S  4     Vieira  ahhrcviãdo' 

^lOmem  fanto  ,  fenao  hutna  mulher  dotada  doquellas 
prííndas,  que  eílimao  ,  e  .idolatrao  os  que  nao  íao 
lantos.  Se  ElPvey  Herodes  quer  a  Herodias  ,  ou  EI- 
Rey  David  a  Betíabé,  os  privados  faõ  os  que  faci- 
íitao  os  adultérios ,  e  os  que  por  íl ,  e  por  outros  ap- 
provao  os  homicidios.  Se  alguma  vez  na  antecame- 
•ra  de  David  (  onde  elle  o  naõ  ouvi  lie  )  íe  tocou  no 
íeu  peccado,  o  que  os  palacianos  diícorriao,  era  defta 
maneira  :Que  o  amor  de  Betílibé  fora  hum  galanteyo 
de  Príncipe  íoldado,  que  o  cafarfe  com  ella  fora  húa 
honrada  reftituiçaÔ  de  lua  fama,  que  o  matar  a  Urias 
foraiium  coníelho  neceíLirio,  prudente  ,  e  generoío: 
generoío  ;  porque  o  fez  morrer  nobremente  na  guer- 
ra: prudente;  porque  pareceo  acafo  o  que  foy  in- 
duílria  :  e  neceíiario;  porque  o  modo  mais  feguro 
de  fepultar  o  aggravo  he  meter  debaixo  da  terra  o 
affsravado.  Tao  levemente  fe  fallava  em  hum  cafo 

1  1  ri' 

mais,  que  efcandalofOjatroz,  chatnando  ao  adultério 
galanteyo,  ao  homicídio  neceííidade,  e  á  nleivoíia, 
prudência.  CompunhaÔfe  poemas  á  foberba  ,  pane- 
gyricos  á  cubica  ,  hymnos  á  ambição.  Eis  aqui  quem 
faõ  os  aduladores ,  gente ,  que  mente  com  a  verdade, 
e  afronta  com  a  cortezia.  lílo  haviaó  de  efcrever  os 
políticos  no  feu  íivro  do  duelio,  que  mais  afronta  hu- 
ma  mifura  de  hum  adulador  ,  que  huma  bofetada  de 
hum  inimigo.  Por  iíTo  Chrifto  ,  que  nas  bofetadas 
fe  moílroutao  fofrido,  quando  ouvio  as  adulaçoens, 
parece ,  queperdeoa  paciência. 

1039  Se  o  Rey  he  avarento  ,  como  Roboa6,^ou 
vaô  como  Aífuero,  elles  faó  os  que  aconfelhaÔ  os 
tributos,  elles  os  que  louvao  as  prodigajidades,  e 
celebraó  as  ollentaçoens.  Em  fim  elles  fao  os  adora- 
dores da  eílatua  dcNabuco  ,  e  os  que  fervem  de  lan- 
çar 


Difciirfo  XCFJÍ.    385 

çar  lenha,  e  aílbprar  ns  fornalhas  de  Babylonia,  ou 
procurando  ,^  ou  nao  fazendo  eícrupuío  de  que  nel* 
jas  fe  abrazeui  os  innocentes.  lílo  nao  haverá  no  rei- 
nado de  Chriílo ,  porque  ái  parte  do  Rey  tudo  fera 
igualdade,  juíliça  ,  modeília,  temperança.  Nein  os 
que  aíliílirem  a  íeu  lado  ,  fe  atreverão  a  abuíar  ,  ou 
exceder  do  poder ,  que  lhes  for  commettido ,  que  fó 
fera  o  judo ,  e  neceílario.  Nao  i'e  vingará  Aman  com 
a  niao  real  dos  aggravos  de  Mardocheo,  nem  as  in- 
vejas de  Doeg  coin  a  lança  dcSauí,  nem  es  ódios 
de  Joab  com  a  diílimulaçaõ  de  David.  Mas  ainda 
que  da  porte  do  Rey  eílarao  os  que  eíliverem  ao 
lado  de  Chriílo  feguros  deíles  perigos ,  da  parte 
dos  íubditos,  e  das  ieys  nao  deixaráõ  de  ter  grandes 
difficuldades ,  que  vencer,  e  grandes  repugnancias, 
que  contrafcar. 

1040      Eftá  profetizado  ,  que  no  Reynado  de^um.  ijo. 
Chriílo  tudo  fera  novo  ;  Ecce  novafacio  omnia^  e^r°^-^í- 
novidades,  ainda  que  fejGÔ  úteis,  bem  vedes  quaÕ^' 
diíiicultoíns  íiiõ  de  introduzir.  Se  fe  ha  de  fundir  de 
novo  o  inundo,  he  força  ,  que  fe  desfaça,  e  derreta 
primeiro  ,  e  iíio  nao  pode  fer  fem  fogo  o  mais  violen- 
to de  todos  os  elementos.  Eílá  profetizado,  (  eaíJim 
o  pubiixzou  em  noíTos  dias  o  Precurfor  do  mefmo 
Chriílo  )  que  os  valles  fe  enchercáo ,  e  os  montes ,  e 
outeiros  feraõ  abatidos,  enaÕ  alguns,  fenao todos: 
Omnis  valiis  implcbitur  ,  é^  omnis  moiis  ^  ^  collis  l„c 
httwiliabitur.  E  abater  os  grandes ,  e  levantar  os  pe- 
quenos em  tanta  deíigualdade  de  nafciniento,  e  de 
fojtunas,  e  fazer,  que  pequenos,  e grandes  todos fe- 
jao  iguaes  ,  quem  íerá  taó  valente,  e  animofo,  que 
tome  fobre  íi  cila  conquiíla  ?  Se  os  cavadores  da  vi- 
nha naõ  foffreraó  ,  que  os  igualaííera  ,  fem  Iheiira- 
'  Tom.  11.  Bb  rena 


3.  y. 


r 


3  S  ^     Vieira  abhreviado 

rem  nada  do  que  lhe  deviaó  ;  quem  reduzirá  a  eíla 
moderação  a  arrogância,  a  íoberba  ,  e  a  inchação  dos 
grandes  do  mundo  ,  que  cuidaó ,  que  tudo  lhe  he  de- 
vido ,  e  a  ninguém  daó  o  que  fe  lhe  deve  ? 

1041     Eftá  profetizado,  que  no  mefmoreynado 
o  lobo  morará  com  o  cordeiro,  e  queoleaó,  como  o 
ifai.  II.  6.  ^^Y  ->  comerá  palha :  Habitabit  lúpus  cum  agno  ,  ^ 
7.  leoqtiafibos  comedet  paleas.  Mas  quem  poderá  con* 

ter  a  voracidade  do  lobo  a  queobíerveeílaabíHnen- 
cia  5  e  a  ferocidade ,  je  gida  real  do  leaõ  a  que  fe  fuf- 
tente  como  o  boy  da  eira ,  e  naô  da  montaria  ,  e  do 
boíque  ?  A  ley  naó  pode  fer  mais jufta ,  nem  mais  be- 
nigna  ;  porque  allaz  indulgência  ,  e  favor  fe  faz  ao 
leão ,  que  paíFea ,  e  naô  trabalha ,  em  que  coma  igual- 
mente á  cufta  do  boy  o  que  elle  puchando  pelo  ara- 
do ,  pela  grade ,  pelo  carro ,  e  pela  trilha ,  começou, 
e  acabou  com  tanto  trabalho.  Mas  como  eíle  mao 
foroeftá  taô  introduzido  pelo  coftume,  e  taó  cano- 
nizado pelo  tempo ;  que  zelo ,  que  força  ,  e  que  re- 
foluçaó  haverá  de  Miniftros  taõ  intrépidos ,  e  conf- 
tantes  ,  que  contra  taô  poderofos  contrários  a  prati- 
que, a  eíbbeleça,  e  a  defenda?  Aífimque,  fenhora, 
deixando  o  muito,  que  ainda  podéra  dizer,  e  refu- 
ndindo o  que  tenho  dito,  nem  ao  credito  do  Rey, 
nem  ao  bem  do  Keyno,  nem  avós,  nem  avoflos  fi- 
lhos convém,  que  os  lugares  ,  que  para  elles  pedis, 
íq\\\q  concedaô,  e  ainda  que  lhos  dellem  fem  os  pe- 
idir,  os  aceitem.  Pelo  que  fe  opezo  de  todas  eÔas 
razoens  tem  comvolco  alguma  authoridade,  o  meu 
confclho  ,  e  parecer  he  ,  que  vós  mefma  vos  defpa- 
cheis  com  ornais  breve,  mais  fácil ,  e  mais  leguro 
dcfpacho  j  que  he  naô  dçfejar ,  nem  pertender,  nem 
pedir, 

DIS- 


Difcurfo  XCVIII.  587 

DISCURSO     XCVÍÍÍ. 

Tirado  de  hum  fermaÕ  de  S.  João  Euangelifta  pre- 
gado fia  Cape II a  Real  na  fejia  do  Frincipe  D, 
Theodo/ío, 

Validos. 

1042  /^"^Uidava  eu  ,  que  fó  dos  que  feguem  aopart.  y. 
\^^  mundo,havia  venturoíbSj  edeígraçados.  ^^^-  J7©. 
Também  na  fantidade  ha  fortuna.  S.Joaõ  Bautiíla 
foy  defgraçado  com  Reys.  S.  João  Euangeliíla  foy 
venturolocom  Príncipes. 

^  1043  A  primeira  boa  parte,  que  eu  reconheço  Num.  37^; 
em  S.  João  para  valido ,  he  fer  Euangeliíla.  Os  vali- 
dos haô  de  íer  Euangeliftas.  O  officio  dos  Euangelif- 
tas  he  dizer  verdade  ,  e  es  validos  haó  de  ter  o  dizer 
verdade  por  oííicio.  Alguns  homens  tem  havido 
Euangeliíbs  ,  muitos  homens  tem  havido  validos; 
inas  valido,  e  Euangelifta  juntamente  fó  S.Joaõo 
foy.  A  razão,  ou  femrazaó  diílo  he;  porque  os  que 
laõ  validos  ,  naó  querem  fer  Euangeliftas:  e  os  que 
faó  Eugngeliftas,  naó  chegao  a  fer  validos.  Só  em  S. 
Joaõ  fe  ajuntarão  eftas  duas  propriedades ,  das  quaes 
íe  compõem  a  mayor  prcrogativa  fua.  Sabeis  qual 
he  a  maisíingular  prerogativa  do  Euangelifta  ama- 
do ?  He  fer  amado  fendo  Euangelifta.  Ordinaria- 
mente nas  Cortes  dos  Príncipes  os  que  contrafazem 
a  verdade  faô  os  que  grangeaõ  o  amor.  Na  Corte  de 
Chriftonaõ  he  aftim  :  os  que  tem  por  profilfaõ  fer 
verdadeiros,  faô  os  que  tem  por  premio  íer  amados. 
O  que  importa,  Senhor,  he  ,  que  feja  fempre  aíhm, 

Bb  2  Os 


Vidra  abbreviado 


Os  amados  fejaó  fó  os  Eiiangeliílas  :  e  quem  naó  for 
Euan^eíiíia  nao  fcja  amacio. 

Num  577.  1044  Equalhe  a  razaõ  porque  os  Eiiangeliílas 
devem  fer  os  amados  ?  A  razaõ  he  evidente  ;  porque 
o  mayor  merecimento  pnra  fer  amado  he  amar,  e  a 
mayor  prova  do  amar  he  failar  verdade.  Perguntou 
D  Uiia  a  Saníaõ  por  três  vezes  em  que  parte  tinha 
vinculada  fua  fortuleza  ,  e  que  remédio  podia  haver 
para  íer  vencido.  RefpondeoSaníaõ  a  primeira  vez, 
que  fe  o  ataííem  fortemente  com  nervos  :  a  fegun- 
da  vez,  que  fe  o  ataíTem  com  cordas:  a  terceira  vez, 

^  que  íe  o  ataííem  cp-Hi  os  cabellos  ;  mas  de  todas  as 

três  vezes  ronipeò  elle  com  facilidade  as  ataduras.  E 
que  faria  Dalila  vendofe  affim  enganada  }  Queixoufe 
muito  de  Sanfao  :  diíle  que  fabia  de  certo ,  que  a  naó 
amava,  e  fezlbe  eíle  argumento  :  Qtiomodo  dicis  , 
qiioci  amas  me  ?  Per  três  vices  mentitus  es  mihi : 

Judie.  \6.  Como  dizes  tu  ,  Saníao  ,  q.ue  me  amas  ,  fe  me  men- 
tiíle  três  vezes.''  Bem  tirada confequencia  :  mentif- 
teme ,  logo  naó  me  amas.  A  confequencia  he  clara  ; 
porque  amar  he  entregar  o  coração  ,  mentir  he  enco- 
brillo:  bem  fe  fegue  logo,  que  quem  naõ  falia  verda- 
de ,  naõ  ama ;  porque  como  ha  de  entregar  o  coração 
quem  o  encobre  ?  De  maneira ,  que  da  verdade  de 
cada  hum  pode  julgar  o  Príncipe  o  feu  amor;  com.  j| 
advertência  po.''ém  ,  quenaÕ  deve  efperar  como  Da- 
lila pela  terceira  mentira  :  Fer  três  vices  mentitus 
es  mihi.  Pela  primeira  falíidadc,  em  que  o  vaflallo 
for  achado,  ha  de  cahir  logo  da  graça  do  Príncipe,  e 
cahir  para  fempre.  Parece  demaíiado  rigor;  porque 
a  graça  de  Deos  naõ  fe  perde  por  qualquer  mentira: 
bem  pode  hum  homem  naÕ  failar  verdade,  e  mais  fí- 
íçar  em  graça  de  Deos.  Com  tudo  no  Príncipe  naõ  he 

bem 


?5 


Difcurfo  XCVlll.    38^ 

bem  que  feja  alTim.  Porque  ?  Porque  para  Deos,  que 
conhece  os  coraçoens  ,  bem  pode  haver  mentiras  ve- 
niaes  ;  mas  para  quem  os  naó  conhece ,  todas  he  bem 
que  fejaõ  mortaes,  e  que  por  todas  íe  perca  a  graça. 
A  graça  coníiíle  no  amor  :  quem  naô  hUa  verdade , 
naõ  ama  :  logo  onde  fe  prova  o  defamor,  bem  he  que 
le  perca  a  graça.  Percafe  a  graça  onde  fe  provar  o 
defamor ,  que  he  a  mentira  :  ganheíe  a  graça,  onde 
fe  f^rovar  o  amor ,  que  he  a  verdade  :  e  andem  juntos 
como  em  Saóloíió  o  titulo  de  Euangeliíta  com  ode 
amado. 

1044  Naó  íou  amigo  de  deixar.duvidas  na  lí^í-».  _^ 
nha  doutrina.  Todos  me  eftaô  pondo  contra  eíla  hu-  "^*  ^  ^ 
ma  grande  inftancia.  S.  Matthcus ,  S.  Marcos  ,  S.Lu- 
cas também  foraô  Euangeliftas^com  tudo  naó  alcan- 
çaraópriviIegiodeamados:logoS.Joííó  naó  foy  ama- 
do por  fer  Euangelifta  :  e  fe  foy  amado  por  Euange- 
Jiíla  ,  qual  he  a  mayorrazaõ?  A  mayor  razaõ  he  eíia; 
porque  SJoaó  Euangelifta, como  notou  SJeronymo, 
diíle  no  feu  Euangelho  muitas  coufas ,  que  os  outros 
Eu.ingeliftas  deixarão  de  dizer  :  e  dizer  as  verdades, 
queos  outros  dizem  ,  naÓ  he  acção,  que  mereça  fln- 
gular  amor  ;  mas  dizer  as  verdades  ,  que  os  outros 
deixaõ  de  dizer,  quem  ifto  faz,  merece  fer  f«ngular- 
mente  amado.  As  verdades,  que diíTeSaó  Mattheus, 
diífe-as  Saõ  Marcos,  diíle-asSaÕ  Lucas  :  as  verda- 
des, que  diííe  S.  Marcos ,  diífe  as  S.  Lucas,  diílc-as 
S.  Mattheus  :  as  verdades,  que  diíie  S.Lucns  ,  dií- 
le-as  Saó  Mattheus  ,  diífe-as  Snô  Marcos.  Mns  mui- 
tas verdades,  que  diíle  S.  Joaô,  naó  as  dih'e  S.  Mat- 
theus ,  nem  S.  Marcos,  nem  S.  Lucas :  elle  fó  asdif- 
íe.  E  quem  fabe  dizer  as  verdades  ,  que  todos  os  OjU,- 
tros  cnllaó  ,  elle  íó  merece  fer  mais  amado,  que  ,^^ 
Tom.  IL  Bb3  dos. 


i  I 


/ 


f  íl 


õ     V  teii 

dos.  Naó  ha  de  íer  o  amado  quem  cslia  a5  verdades, 
que  os  outros  dizem  ,  fenao  quem  diz  as  verdades, 
que  os  outros  caliaô.  AíTim  o  fez  Snõ  Joaô,  e  por  if- 
ío  foy  o  íingularmente  amâáo  :  D ifcípuhim ,  ç/tíem 
diíigehat.  -;  '      ■ 

Num.  j7i?.  íôd^  A  fegunda  qualidade  de  valido,  que  teve 
S.  Joaõ  ,  eâqúe  admiro  muito  neíle  grande  Santo  , 
he  ler  hum  vaiido,  que  ficou  aílim:  Sjc  eiim  volo  ma-. 
ner€.VA>à\\td,  meu  vèf  huma  das  grandes  excelJen- 
cias  do  Eúangeliíia ,  fer  hum  valido,  que  ficou  aílim. 
Ser  valido  ,  e  ficar  logo  de  outra  maneira,  iílb  acon- 
tece a  todos ;  mas  fer  valido ,  e  ficar  aíTim  como 
d'antes  he  íingularidáde  de  S.  Joaó. 

1046      Huma  das  circunftancias  ,  em  que  reparo 
muito  na  creaçao  do  mundo,  heíormar  Deos  a  Heva 

Num.  jso.do  lado  de  Adaõ  :  naó  a  podéra  formar  da  cabeça 
para  que  fora  entendida  ?  Naó  a  podéra- formar  das 
ínaõs ,  para  que  fora  executiva  ?  Ká6  a  podéra  for- 
mar dos  pés  ,  para  que  fora  diligente  ?  Pois  porque 
a  forma  do  lado  ?  Porque  o  lado  de  Adaõ  era  a  par- 
te mais  accommodada  para  o  que  Deos  pertendia. 
D^os  de  huma  pequena  parte  de  Adaõ  queria  fazer 
fubitamente  huma  Heva ,  que  fofié  taô  grande  como 
elie.  Pois  por  iílo  a  formou  do  lado  ,  e  naó  doutra 
parte ;  porque  he  propriedade  dos  lados  crefcer  mui- 
to em  pouco  tempo.  Ainda  agora  coita  ,  e  já  Heva  ? 
Ainda  agora  huma  parte  taô  pequena  do  lado  de 
Adaó  ,  e  já  taó grande  como  o  mefmo  todo,  de  que 
era  parte  ?  Sim  ;  por(|ue  a  coft^  era  parte  do  lado  de 
Adaó.  Adaó  era  Principe  univerfal  de  todo  o  crea- 
do  :  e  riaó  ha  coufa  ,  que  mais  creíça  ,  nem  mais  de- 
preífa ,  que  òs  lados  dos  Principes.  Vejafe  em  Jofeph 
c^m  ElRey  Faraó :  vejafe  em  Aman  com  ElRey  Af- 

luero, 


Díjcurfo  Ji.^LA^  111.  5 5) I 

fiíero  :  vejafvjem  Daniel  com  ElRey  Durio.  ií  ç\\.)q. 
IcnJo  taô  nntural  o  crefccr  nos  lados  dos  Principes^ 
que  S  João, que  era  o  lado  do  mjyorPrincipedo  nuin- 
do,  nao  traíaile  de  accrcíccnt.nTienlo,  e  fedeixaíle 
ficar  sffim  :  Sic  eunimlo  inanerel  Grande  exceilenr 
cia  do  Euangeliíla  !ií>b  sr 

1047  líCS  cou fas ha  nefte  mundo  ,  que  íçmprçNum.  jsr. 
crefcem  ,  e  nunca  ficao  aílim  :  huma  faz  a  natureza  \ 
outra  faz  a  graça  ,  outra  faz  a  fortuna.  A  natureza 

as  palmas  :  a  graça  os  Santos :  a  fortuna  os  validos. 
Eíla  he  a  eftatura  das  palmas  alentadas  pela  natureza: 
efta  he  a  eflatura  dos  Santos  infpirados  pela  .graça  :  e 
eíla  he  a  eftatura  dos  validos  aíloprados  pela  fortuna. 
Eílatura,  que  por  mais  creícida ,  e  por  niais  .remonta- 
da até  ás  nuvens  que  a  vejamos ,  íempre  crefce  mais, 
emais.  E  fe  naô  lembrai  vos  dos  três ,  cjue  agora  di- 
zia. Oeo  Jacob  por  benção  a  Jofeph  ,  que  crefceíFe 
fempre :  Filitis  accrefcens  jojeph  ^fílius  ãccrefcef!f.^<^^^<^^^  ^t^ 
E  onde  íe  cumprio  efta  bençaó  ?  Na  privança ,  e  va-  '^^ 
limento  de  Faraó.  Aman  ,  grão  privado  de  AíTueròi 
até  o  dia,  em  que  acabou,  crefceo;  e  porque  nao  teve 
mais  para  onde  crefcer  ,  acabou.  Pareceo  deígraca  , 
e  foy  natureza  ,  qae  aílim  acontece  á  palma  ,  ou  cref- 
cer, ou  acabar.  Daniel  na  privança  de  Dário  tendo 
fubido  a  Ter  hum  dos  três  íupremos  Principes  de  tò-- 
da  3  Monarchia  ,  ainda  o  P^ey  queria  que  crefceíFe 
mais ,  e  que  foíTe  elJe  fó  íobre  todos.  Porro  Rex  co-  oanie).  4. 
gitahat  coiifthuere  eumfíiper  omne  Rpgniim. 

1048  i^ao  fei  que  influencias  tem  o  lado  do  Prinh 
cipe  ,  que  em  todo  eíle  elemento,  em  que  vivemos  , 
nao  ha  parte taó  fértil 5  e  taó  fecunda,  como  aquel- 
Jes  dous  pés  de  terra  :  tudo  alli  fe  dá  ,  tudo  aUi  mer 
dra  ,  tudo  alli  crefce.  Crefcem  os  parentes,  os  arai- 

Bb4  gos, 


Num.  38 


ao. 


'Joaíi.13, 


592     Vieira  abhreviado 

gos ,  os  criados :  crefcem  as  honras ,  os  poílos ,  os  ti- 
tulos :  crefce  a  cafa  ,  a  fazenda  ,  o  regalo  :  crefce  o 
poder ,  o  domínio  ,  o  refpeiío ,  a  adoração  ,  e  fobre 
tudo  crefce  a  eftatura  dos  meímos  adorados.  Hon^ 
tem  pygmeos,  hoje  homens ,  á  manha  gigantes,  o 
outro  dia  coloíTos.  Peza-me  defta  ultima  compara- 
ção;  porque  quando  lhe  acrefcentei  a  grandeza,  lhe 
tirei  a  alma.  Naó  aílim  o  mayor  valido  do  mayor 
Principe  S.  Joaô :  Sic  eum  valo  manere. 

1049  A  terceira  qualidade  admirável ,  que  ref- 
^'piandece  no  Euangeliíla,  foy  fer  hum  valido,  que 
fez  do  fegredo  ignorância.  Hum  dos  argumentos  de 
feu  valimento  ,  que  S,  Joaô  allega  nefte  Euangelho, 
foy  perguntar  a  Chriíio :  Quis  ejl  qtã  tradet  tet 
Qiiem  era  o  traidor  ,  que  o  havia  de  entregar?  Ref- 
pondeolbe  o  Senhor,  que  era  Judas  :  e  aecreícenta  o 
Euangelifta  :  Hoc  autem  nemo  Jcivit  àifcumben- 
thim\  Que  ifto  ninguém  o  íoube  dos  que  eftavaó  á 
mefa  :  logo  naó  o  foube  o  mefmojoaó ,  que  era  hum 
dos  queeílavaó  aella?  He  eonfequencia  de  Santo 
Agortinho.  Pois  fe  Chrifto  o  diíTe  a  S.  Joaô,  como 
jie  poíTivel ,  que  S.  João  o  naõ  foubelfe  t  Claro  eftá 
que  o  foube  :  pois  fe  o  foube  Saõ  Joaõ ,  como  diz  , 
que  o  nao  foube  t  Hoc  autem  nemo  fcivit.  A  razaõ 
he  eíla  ;  porque  o  que  Chrifto  diíFe  a  Saõ  Joaô  ,  dif- 
felho  em  íegredo ,  e  S.  Joaô  o  que  íabe  em  fegredo, 
naõ  o  fabe.  Nos  outros  homens  ofaber  em  fegredo 
he  faber^  em  Saó  Joaô  o  íaber  em  íegredo  he  igno- 
rar :  Nemo  fcivit.  Nenhum  fegredo  he  fegredo  per- 
feito ,  fenaô  o  que  paíTa  a  fer  ignorância ;  porque  o 
fegredo  ,  que  fe  fabe  ,  pódefe  dizer ;  o  que  fe  igno- 
ra, naô  fe  pode  manifeftar.  Efta  he  a  ca  ufa  de  os  ho- 
mens commummente  naó  faberem  guardar  fegredos; 

por- 


DifairfoXCVlII.  5^5 

porque  encommendaó  o  ilegredo  á  memoria  ,  fendo 
queohaviaodeencommendar  ao  efquecimento.  O 
fegredo  encommendiído  á  memoria  corre  perigo: 
o  legredo  encommendado  ao  efquecimento^  eftá  fe- 
guro.  A  razaô  he  ;  porque  o  fegredo  encommenda- 
do á  memoria  he  cautela  ,  e  o  que  íe  guarda  com 
cautela  ,  podefe  perder  :  o  fegredo  encommendado 
ao  efquecimento  he  ignorância  ,  e  o  que  fe  ignora 
totalmente  ,  naó  fe  pode  manifeíhr  :  logo  o  perfei- 
to fegredo  he  fó  o  que  chega  a  fer  ignorância,  tltal 
era  o  de  Saó  Joaó  :  Hoc  autem  nemo  fcivit  dijcum' 

bentium. 

1049     Ainda  naóeftá  encarecido  o  fino  do  fegre-^^j^,.  jsj. 
dodeS.Joaô.  Foy  taóefcrupulofo  valido  em  maté- 
rias de  fegredo,  que  nem  quiz  dizer  os  fegredos,que 
lhe  difleraó,  nem  quiz  dizer  ,  que  Ihediíreraójegre- 
dos.  Que  os  perguntara,  fim,  que  lhos  diíieraõ,  naõ. 
Naõ  dizer  hum  homem  o  fegredo,  que  fabe ,  he 
muito  ;  mas  naó  dizer ,  que  íabe  o  fegredo,  he  mui- 
to mais.  Porque  ?  Porque  naõ  dizer  o  fegredo,  que 
fabe ,  he  guardar  fegredo  ás  coufas  \  mas  naõ  dizer , 
que  fabe  o  fegredo ,  he  guardar  fegredo  ao  fegredo. 
S.  Joaó  guardou  fegredo  ás  couías,  porque  naó  dií- 
fe,  quem  era  o  traidor ,  e  guardou  íegredo  ao  fegre- 
do ,  porque  naõ  diíTe ,  que  lhe  defcobriraô  quem  erji. 
Que  muito  logo  ,  que  fendo  taô  íecretario  S.  Joaó , 
foífe  taõ  valido!  Difcipulumy  quem  diligebat  Jejus. 

1050  A  quarta,  e  ultima  boa  parte,  que  admi-Num.  ^%6\ 
ro  em  Saójoaó ,  he  fer  valido ,  que  quiz  a  graça  por 
amor  da  graça.  Logo  me  explicarei  mais  No  Sacra- 
mento da  Euchariftia  deixou  Chriílo  as  fontes  de 
íua  graça;  mas  he  muito  de  reparar  ,  que  naó  quiz 
Chrifto  ,  que  íicafle  aili  a  fubílancia  do  paõ.  Fundo 

ore- 


ieira  áhbrevíaão ' 


o  reparo.  Menos  milagres  erao  neceíTarios  para  eílar 
ò  corpo  de  Chriíto  ,  e  a  íubibncia  de  puó  juntasneii- 
te  ,  que  para^eíhir  o  corpo  de  Chriílo  fem  a  fuhftanr 
C!a  de  pao.  Pois  fe  com  menos  milagres  íe  podia  fa- 
zer cabalmente  o  myílerio,  Dvos,  que  fempre  acur- 
<ta  milagres  ,  porque  naó  quiz,  que  ncaíle  a  fub- 
Irancia  do  paò  no  Sacramento  ?  Eu  nao  vos  direi  ai 
verdadeira  razão,  mas  dirvoshei  huma  moralidade 
muito  verdadeira.  Todos  os  Sacramentos  faõ  inílru- 
mentos  da  gv^^q-à  ,  e  eílede  mais  gr^íça  que  todos :  e 
nuo  quiz  Ghrifto  ,  que  a  graça  íe  dêíFe  junta  com  o 
paô,  nem  que  o  pao  andaííe  junto  com  a  graçs.  O 
,  :         iTiayorabuíb,  e  o  mayor  rifco  ,  qiietem  á  graçados 
Principes ,  he  andarem  o  pao ,  e  a  graça  juntos.  Se  no 
iíkar  federa  o  paô  a  moyos,  ainda  que  naó  fora  con^ 
íagrado,  muitas  communhoens  íè  haviao  de  fazer 
por  amor  do  pno ,  que  fenaõ  fazem  por  amor  da  gra- 
ça. Querer  a  graça  por  amor  da  graça  he  devoção, 
querer  a  graça  por  amor  do  pao  he  fome.  Por  iíTo  ha 
tantos  famintos ,  ou  tantos  esfiiimados  da  graça.  To- 
dos querem  fer  cheyos'  de  graça ;  mas  naõ  de  graça 
vazia  :  Gratia  Dei  in  me  vácua  nmfult^  dizia  S. 
r  Cor.  14. Paulo  eoi  bem  mais  honrado  fentido. 

IG5 1  A  graça  ha  de  fer  para  vós  encheres  as  obri- 
gaçoens  da  graça  ,  e  nao  para  a  graça  vos  encher  a 
vós,  ou  vós  vos  encheres  com  elia.Entaoferia  a  gra- 
ça menos  cuílofa  a  quem  a  dá  ,  e  mais  bem  avaliada 
em  quem  a  logra.  Por  iílb  Chriílo  nao  quiz,  que  o 
pao  andaíTe  junto  com  a  graça.  Mas  porque  os  omni- 
potentes do  mundo  naõ  fa?:em  efta  feparaçaõ ,  como 
poderão  fem  grande  milagre, chegou  a  graça  a  tranf- 
íu bilra nciarle  tanto  no  pao ,  que  ninguém  bufca  jd  a 
graça  por  amor  da  graça ,  fenaó  a  graça  por  amor  do 

pao, 


!■■ 


Di/cwfoXCVlII.   3.9 

paó  ,  e  pela  medida  do  paõ  ,  oi)  pelo  psõ  fem  medi- 
da fe  avalia  a  graça.  Porque  tem  hoje  mais  paõ,  que 
todos,  quem 'honrem  naÕ  tinha  hum  paÕ  ?  Porque 
eílá  mais  na  graça,  que  todos.  Oh  qiiQ  groíleria  taÓ 
grande!  Masque  bem  acudio  Ch  ri  lio  a  è(iQ  incon- 
veniente. No  mefmo  Sacramento  ninda  que  noô  eíiá 
paõ  quanto  á  íubílancia  ,  eíld  pac  quanto  sos  acci- 
dentes;  porém  a  graça  naó  fe  mede  com  o  pnõ. Muitas 
vezes  quem  ccmmunga  huma  hoítia  muito  grande, 
leva  pouca  graça  ,  e  quem  communga  huma  partícu- 
la muito  pequena  ,  leva  m.uita  graça  :  para  que  cn- 
tendaó'  os  homens ,  que  a  graça  naô  íe  deve  medir 

com  o  paõ. 

10^2     Oh  que  bem  governado  andaria  o  mundo 

fe  viílemos  pobres  de  paó  os  que  vemos  ricos  da- 
graça !  Qiiem  ccnquiftu  a  graça  pela  graça ,  conten- 
taíe  com  o  coração.  Vejafc  no  noílb  pAiangeiifta. 
Conquiílou  a  graça  de  Chriílo,  e  veyofe  a  rematar 
a  conquifta  em  que  ?  Em  lhe  render  Chriílo  o  cora-^''^''  ^^7- 
çaô  :  Recíibnitjiipra pcãus  ejus.  Muito  eílimou  S. 
Joaó  o  coração  do  feu  Principe ;  mas  eílimou-o,  por- 
que fe  lhe  rendeo ,  e  naõ  porque  lhe  rendia.  O  cora?- 
çao  do  Principe  haíe  de  ellimar  pelo  readimenro, 
e  naõ  pelas  rendas  :  hafe  de  eftimar  nelle  o  rendido , 
e  naó  o  rendofo.  Só  Saô  JoaÕ  foube  eílimar  a  graça 
do  Principe,  como  fe  ha  de  eíHmar  :  a  graça  por 
amor  da  graça,  e  nada  mais.  E  como  em  S.Jocõha*- 
via  tantas  qualidades  de  amante,  e  taõ  grandes  par- Num.  391. 
tes  de  valido ,  que  muito  que  o  amaíle  tanto  o  Prin- 
cipe da  gloria  Chriílo !  Dtfcipulum^  qnemdiligebat^ 
quirecubuit  ftipra peclus Domini. 


DÍS- 


3  ^  ^    Vieira  abbreviado 

DISCURSO    XCIX. 

Th^ado  de  hú  fermaÕ  do  Santijjl-no  Sacramento  pré^ 
gaãoetn  Santa  Engracia  á  Nobreza  de  Portugal 
no  tempo ^etn  que  e/íe  Reyjjo  tinha  guerra  com  Caf- 
tella  ,  fendo  ?nayor  a  que  fazia  ao  mefmo  Reyno 
a  difcordia^  que  nejja  occajlao  havia  entre  os  Fi- 


dalgos, 


UNIAM. 


Part.  T. 

bluiU.  II  I. 


1051  A  S  obras  da  natureza ,  e  as  da  arte  to- 
•^'^^das  fe  confervaó  ,  e  permanecem 
na  Uniaõ ,  e  todas  [\^  deíuniao  fe  desfazem ,  fe  deí- 
truem  ,  e  fe  acabaò.  Eíta  machina  taô  bem  compof- 
ta  do  mundo  com  fer  obra  do  braço  omnipotente , 
que  he  o  que  a  fuílenta  ,  e  a  conferva ,  fcnaó  a  per- 
petua ,  e  a  confiante  uniaô  de  fuás  partes  ?  Naó  ve- 
mos o  cuidado  vigilantiíTiraOjCom  que  a  natureza  an- 
da fempre  em  vella  fobreeíle  ponto  principal  de  fua 
confervaçao,  violentandoíè  a  íi  mefma,  (fe  he  necef- 
fario  )  e  fazendo  fubir  os  corpos  pezados ,  e  defcer 
os  leves  fó  para  impedir  os  damnos  daquella  def- 
uniaô  ,  a  que  os  Filofofos  chamaõ  vácuo  ?  Seis  mil 
annos  ha  que  dura  o  univerfo  fem  fe  (entir  ,  nem  ver 
nelle  o  menor  final  de  defuniaõ  ,  e  por  iílb  dura  tan- 
to :  e  quando  finalmente  chegar  feu  fim ,  a  falta,  ou 
a  rotura  defl;a  uniaó  fera  o  ultimo  paroxiímo,  de  que 
ha  de  morrer  o  mundo.  EíTe  foy  o  penfamento  do 
graõ  Principe  da  Igreja  S.  Pedro ,  o  qual  chamou  ao 
fim  do  mundo  defuniaõ  do  univerfo  :  e  para  dizer, 

que 


MH 


07 


:urfo  JLVI2L.     -^y 

qué  todas  ns  coufas  íe  haõ  de  acabar ,  diíTe  que  todas  „ 
fe  hio  de  delunir  ;  Cu>n  igítnr bícc  omnia  dtjjblven- , /, ' 
dcj/vit.  Toda  a  vida  (  ainda  das  coufas,  que  naó  tetri' 
vida  )  naó  he  mais  que  huina  uniaô.  Huma  uniaõ  de 
pedras  he  edifício  :  huma  união  de  taboas  he  navio  : 
huma  uniaó  de  homens  he  exercito  ,  e  fem  eíla  uniaò 
tudo  perde  o  nome,  e  mais  o  íer.  O  ediíicio  feoi 
uniaõ  he  ruína  :  o-navio  íenuniiaó  he  naufrágio  : 
o  exercito  fem  uniaô  he  defpojo.  Até  o  homem  (cu- 
ja vida  coníifte  na  união  da  alma,  e  corpo)  com  unia6 
he  homem  ,  fem  uniaó  he  cadáver.  A  mayor  obra  dá 
fabedoria ,  e  da  omnipotência  divina,  ^^'^^  ^^y  o 
compofto  ineííavei  de  Chriílo  ,  coníiília  eín  duas 
unioens  :  huma  uniaô  entre  o  corpo,  e  a  ahna,  e 
outra  uniaô  entre  a  humanidade ,  e  o  Verbo.  Qiian- 
do  perdeo  a  primeira  uniaó ,  deixou  de  fer  homem  , 
fe  perdera  a  fegunda,  deixara  de  fer  Deos.  Oh  Deos! 
Oh  homens!  que  fó  a  voíla  uniaÔ  vos  ha  de  confer- 
var ,  e  fó  a  voíía  defuniaó  vos  pôde  perder. 

1054  Perdeofe  a  noífaeílatua  de  Nabuco,  (  queNum.  112, 
bem  lhe  podemos  chamar  nolTa ,  pois  nos  fervimos 
tantofdelia  )  vejamos  quem  a  perdeo.  Eílava  eila  em 
pé  ,  robuíla  ,  ufana  ,  e  foberba,  promettendofe  du- 
ração eterna  na  riqueza,  naformofura,  e  na  dureza 
dos  metaes  ,  de  que  era  corapoíla  :  arranca  fe  huma 
pedra  do  monte  ,  tocalhe  nos  pés  de  repente  ,  e  no 
mefmo  ponto  cahio  a  efi:atua,defappareceraõ  os  me- 


taes ,  e  naó  ficarão  delia  ,  e  delles  mais  que  o  lugar, 
e  as  cinzas.  Notável  cafo;  mas  mais  notável  o  tiro  I 
Sei  eu,  que  a  pedra  de  David  foy  direita  a  cabeça 
do  Gigante.  Pois  fe  a  pedra  do  Gigante  tirou  á  cabe- 
ça ,  a  da  eftatua  porque  tira  aos  pés  t  Nao  vos  lem-. 
bra,  que  nos  pés  da  çítatua  eítava  a  defuniaó  entre 

o  bai- 


j9^     Vieira  abbreviado 

barro ,  e  o  feri-o  ?  Pois  por  iíTo  o  tiro  fe  encaminhou 
aos  pés,  e  naó a  outra  parte,  porque  aonde  havia  a 
defuniao,  alíi  èílava  certa  a  ruína.  Nos  corpos  in- 
teiros, e  unidos,  como  era  o  Gigante  ,  o  melhor  ti- 
ro he  a  cabeça;  mas  em  corpos,  ondeha  deíuniaó, 
como  era  o  da  eílatua ,  o  mais  feguro  tiro  he  ao  def- 
unido,  ainda  que  fejaô  os  pés. 
Num. iij.  1055  Eadverti,  que  naó  faó  neceílbrias  muitas 
defunioens  para  huma  total  ruina.  Unido  eílava  o 
ouro ,  unida  eftava  a  prata ,  unido  eílava  o  bronze ,  e 
ainda  o  mefmo  ferro  em  parte  eílava  unido  ;  mas  baf- 
tou  huma  fó  defuniao  para  dar  com  tudo  em  terra. 
Faça  cada  hum  muito  efcrupulo  da  fua  defuniao, 
porque  pode  fer,  que  delia  dependa  ou  a  ruina  ,  ou 
a  confervaçaÔ  da  eílatua.  Cuida  a  providencia  poli- 
tica ,  que  os  Keynos  fe  confervaó  com  ferro ,  e  com 
bronze,  e  fobre  tudo  com  ouro,  e  com  prata,  e  he 
engano.  O  que  fuílenta ,  e  conferva  os  Reynos ,  he  a 
uniaó.  Muito  ferro,  e  muito  bronze,  muito  ouro, 
e  muita  prata  tinha  a  eílatua  ,  mas  porque  lhe  faltou 
a  união  ,  nao  lhe  ferviraó  de  mais  todos  eiTes  metnes 
bellicos ,  e  ricos,  que  de  accrefcentar  mayor  pezo  pa- 
ra a  cabida.  Ainda  naõ  tenho  dito  a  mayor  admira- 
ção. O  ouro,  e  a  cabeça  figni fica v ao  o  Império  dos 
AÍTyrios :  a  prata ,  o  peito ,  e  os  braços  íigniíicavaõ  o 
Império  dos  Perfas :  o  bronze  da  cintura  até  o  joelho 
íignificava  o  Império  dos  Gregos :  o  ferro  do  joelho 
até  os  pés  íignificava  o  Impcrio  dos  Romanos,  e 
bailou  huma  fó  defuniao  para  derrubar,  e  desfazer 
quatro  Impérios  dos  mais  valentes  ,  dos  mais  pode- 
rofos,  dos  mais  fabios  ,  e  dos  miis  bem  governados 
homens  do  mundo.  Se  quatro  Impérios  com  huma 
fó  defuniao  fe  arruinaó ,  e  acabao  ^  hum  Reyno ,  e 

naó 


Difciirfo  XC JX .     ^99 

nao  muito  grande,  dividido  em  muitas  defuiiioens, 
que  fe  pode  temer  delie  ? 

1056  Ainda  falta,  que  ponderar,  ehe  a  coroa  de  Num.  114: 
tudo.  A  pedra  ,  que  fez  aquelle  tiro  fatal ,  com  que 

de  hum  golpe  obrou  tamanho  eftrago  ,4^6  ma(5  ,  e 
queimpulfo  foy  oque  a  atirou?  Oh  cafoeítu pendo,  e 
inaudito  !  Abjcijus  eft  lopisfníe  jnanibus.  Ninguém  D^n.  x.  4j: 
poz  a  maó  na  pedra  ,  ella  por  íi  fe  defpegou  ,  cahio , 
e  rodou  do  monte,  e  desfez  o  que  desfez.  Aqui  ve- 
reis quaó  fácil  he  a  ruina,  e  quaó  aparelhada  eílá 
onde  ha  defuniaó.  Para  derrubar  hum  Reyno ,  e  mui- 
tos ReynoSjOnde  ha  defuniaó,  naõ  faô  neceílarias  ba- 
tarias, naó  faõ  neceílbrios  canhoens,  naõ  íaó  necef- 
farios  trabucos,  naó  faÔ  neceílarias  balas  ,  nem  pai* 
vora  ;  baila  huma  pedra  :  Lápis. 

1057  Para  derrubar  hum  Reyno,  e  muitos  Rey-* 
nos,  onde  falta  uniaó,  naó  fao  neceííarios  exércitos, 
naó  faô  neceílarias  campanhas  ,  naó  faô  neceífarias 
batalhas ,  naó  íaó  necelfarios  cavallos ,  naô  faó  necef- 
farios  homens,  nem  hum  homem  ,  nem  hum  braço, 
nem  huma  maó  :  Sine  manihtis .  Nós  temos  muito 
boas  maõs ,  e  o  fabem  muito  bem  noíTos  competido- 
•"'"  ;  mas  fe  naó  tivermos  uniaó  ,  nem  elles  haverão 


res 


miíier  maós  para  nós ,  nem  anos  nos  haó  de  valer 
as  noíFas. 

1058  Imperando  Galerio  Maximiano  em  Roma,  pg^t.  „^ 
e  conhecendo  por  muitas  experiências,  que  huma  Num.  45. 
Monarchia  taó  vaíla  naó  podia  fer  governada  por 
hum  fó  homem ,  (  o  que  já  tinha  anteviílo  o  melmo 
Júlio  Cefar  leu  fundador,  quando  lhe definio  certos 
Jimites )  determinou  dividilla  em  duas  partes ,  e  duas 
cabeças ,  como  com  eíFeito  a  dividio  em  dous  Impe- 
radores, e  dous  Impérios ,  hum  chamado  Occiden- 
tal, 


Num.  4^. 


40  o     Vieira  abbrcoiado 

tal,  de  que  continuou  a  íer  cabeça  Roma ,  outro  cha- 
mado Oíicntai ,  de  que  começou  a  íer  cabeça  Conf- 
tantinopla  :  e  foraô  os  dous  novos  imperadores  ,  do 
Occidente  Severo  ,  e  do  Oriente  Maximino. 

1059  Por  eíla  occaíiaó  a  Águia  infignia  dss  ban- 
deiras Romanas  ,  que  até  entaô  tinha  huma  fó  cabe- 
ça ,  começou  a  apparecer  com  duas ,  como  hoje  a  ve- 
mos, poíío  que  he  mais  fácil  copiar  o  pintado,  que 
reílaurar  o  verdadeiro.  Ecomo  a  divifaõ  em  todas 
as  eommunidades  de  homens ,  e  de  coroas  he  indicio 
fiital  de  deciinaçaó,  eruina,  aíTim  ofoy  no  Império, 
e  Águia  Romana  adivifaô  daqueUas  duas  cabeças. 

1060  Já  o  Profeta  Daniel  o  tinha  moftrado  na  mef- 
ma  divifaô  naó  das  cabeças  da  Águia  ,  íenao  dos  pés 
da  eílatua.  Na  eílatua  de  Nabucodonofor  formada 
das  quatro  Monarchias,  ou  Impérios  ,  que  fucceífiva- 
ínente  haviaõ  de  ílorecer  no  mundo ,  a  cabeça  de  ou- 
ro fignificava  o  Império  dos  AíTyrios ,  o  peito  de  pra- 
ta o  Império  dos  Perfas  ,  o  ventre  de  brônzeo  Im- 
pério dos  Gregos ,  e  o  reílo  de  ferro  até  os  pés  o  Im- 
pério dos  Romanos.  E  porque  bailou,  que  tocaífe 
os  mefmos  pés  huma  pedra  arrancada  do  monte  fem 
mãos,  para  que  cahiíTe  toda  a  eílatua  ,  eo  mefmo  Im- 
pério Romano  ,  e  as  outras  Monarchias,  que  nelle 
por  fuccèílao  fe  continuavaó,  fícaíFem  convertidas 
em  pó?  Porque  naquelles  dous  pés  divididos  entre 
íi ,  e  cada  pé  dividido  em  cinco  dedos  ,  e  cada  dedo 
dividido  em  ferro ,  e  barro .  teve  o  leu  ultimo  com- 
plemento a  divifaõ  do  Império  Romano.  Eaífim  co- 
mo nas  duas  cabeças  da  Águia  ,  em  que  começou  a 
divifaô  do  mefmo  Império,  começou  a  fua  declina- 
ção, aíFim  na  diviíaõ  dos  dous  pés  da  eílatua  ,  em 
que  teve  o  ultimo  compleniento  a  lua  divifaô ,  teve 

tam- 


Difcíirfo  C.        401 

também  o  ultimo  íim  a  fua  mina.  De  forte  que  a  ro- 
da da  fortuna  do  Império  Roínano  na  divifao  das 
duas  cabeças  da  'guia  com.eçou  a  voitar,  e  na  divi- 
fao dos  dous  pés  da  ellatua  acabou  a  volta. 

DISCURSO    C. 

Tirado  de  hum  fermaÓ de  S.  Gonçalo. 
VELHICE. 


io6r  A  S  cans  ,  '^['le  no  facerdocio  faó  os  ef- 
XA.  maltes  da  coroa  ,  e  na  prelazia  o  orna- 
mento da  dignidade,  nao  poucas  vezes  defmentem  o 
que  as  mefmas  cans  íignificao.  Saó  como  í5S  neves,  de 
que  lempre  ertá  cuberto  o  monte  Etna  ,  debaixo  das 
quaes  fe  ocultaõ  volcoens ,  e  incêndios :  faõ  como  as 
que  o  divino  Meftre  chamou  íepulturas  c^y-àázs:  Se- 
pulchra  dealhata  :  brancas  por  fora ,  e  corrupção  por 
dentro.  As  verdadeiras  cans ,  diz  o  Eípirito  Santo  j 
íao  o  juizo  fizudo  ,  e  nao  conlifte  a  velhice  na  cor 
dos  cabellos  ,  fenaõ  na  pureza  da  vida  :  Cani  atitem 
Jimt  fenfus  hominis  ,  é^'  ^tasfeneâíutis  vita  imma- 
€ulata.  Os  melhores  cabellos,  e  a  peyor  cabeça,  que 
nunca  houve ,  foy  a  de  Abfalaó :  os  cabellos  vendiaõ- 
fe  a  pezodeouro,  e  a  CiVbeça  nenhum  pezo  tinha. 
Mais  lhe  tomara  eu  o  chumbo  na  tefta,  que  o  ouro  na 
gadelha.  Também  ha  cabellos  ,  que  parecem  de  ou- 
ro ,  e  faó  de  prata  íobredourada  ,  e  ifto  he  o  peyopf 
que  tem  as  cans ,  poderemíe  tingir.  Nao  aílim  os  ca^ 
bellos  negros  ,  que  nao  admittem  outra  cor.  Por  ilFo 
a  paftora  das  Éclogas  de  Salamaõ  o  que  louvou  nos 
cabellos  de  íeu  paílor ,  foy  ferem  da  cor  do  corvo  : 
Tom.  II.  Ce  ,oi^^t,íComa 


Patr.  j. 
Num.  té7. 


Matth,  Z3. 
i7> 


Sap.  4.  8.^ 


i 


o  2     Vieira  ahhreviado 

iKant.  T I.  Conjíe  ejus  Jicut  eleita  palmar  um ,  nigra  qtiafi  cor- 
vus. 

1062  As  arvores,  que  naõ  mudao  a  folha, taõ  ver- 
des faô  de  poucos  annos,  como  de  muitos;  mas  quan- 
to com  mayor  indecencia  fc  devem  eílranhar  nos  ve- 
lhos as  verduras ,  tanto  he  digna  de  mayor  venera- 

Num.48p  çaô  nos  moços  a  madureza.  As  batalhas  da  razaó 
com  os  annos  he  huma  guerra  ,  em  que  refiílem  mais 
os  poucos ,  que  os  muitos.  Deixaremfe  vencer  da  ra- 
zão os  muitos  annos  naó  he  muito;  mas  deixaremfe 
vencer,  e  convencer  os  poucos  grande  poder  da  ra- 

•KT.,«,  .««  zaÔI  Seeuiremfe  aos  annos  os  defenganos  hefazero 
tempo  o  que  raz  o  tempo ;  mas  anticiparemíe  os  de- 
fenganos  aos  annos  he  fazer  a  razaõ  o  que  o  tempo 
havia  de  fazer. 

1063  Qiieixavafe  Marco  Tullio  ,  que  lendo  os 
homens  racionaes  ,  podéíTe  mais  com  elles  o  decurfo 
do  tempo ,  que  o  difcurfo  da  razaó.  QiiQ  naó  baítaf- 
lem  noventa  annos  para  dar  íizo  a  Heli ,  e  que  baftaf- 
fem  defoito  annos  para  fazer  íizudo  a  Samuel  ?  O 
que  grande  viáloria  da  razaõ  contra  a  femrazaô  do 
tempo!  Huma  velhice  enganada  he  a  mayor  femra- 
zaô do  tempo  :  huma  mocidade  defengnnada  he  a 

j.Reg.  3t  mayor  vi6boria  da  razaó.  Qiie  naÓ  corte  os  cabellos 
Sara  depois  de  pentear  defenganos  ,  e  que  os  cabei- 
los  de  Abíalaô  na  idade  de  ouro  íintaó  os  rigores  do 
ferro  !  Q<_ie  enxugue  a  Magdalena  as  lagrimas  dos 
pés  de  Chrifto  com  os  cabellos,  mas  que  os  naõ  cor- 
te ,  e  que  haja  outra  Maria  ,  que  ponha  aos  pés  de 
Chriílo  os  cabellos  cortados  com  os  olhos  enxutos! 
Qi)e  Jacob  na  primavera  dos  annos  enterre  a  fua  Ra- 
chel he  inconítancia  da  vida  ;  mas  que  Rachel  na 
primavera  da  vida  fe  fepuite  aíi  mefmo  :  grande  va- 
lor da  razaó!  1064    A 


Difciirfo  C.        403 

1064  A  velhice  he  o  horizonte  da  vida,  e  da  mor- nu«:.  isj. 
te,  o  horizonte,  onde  fe  ajunta  a  terra  com  o  Ceo ,  e 
o  tempo  com  a  eternidade  ,  que  refoliiçaf)  pode  ha- 
ver mais  bem  aconíelhada  ,  e  mais  digna  da  madure- 
za de  humas  cans  ,  que  dedicar  á  contemplação  da 
mefma  eternidade  aquelJes  poucos  dias  ,  e  incertos, 
que  pode  durar  a  vida  ?  Notou  judiciofamente  Séne- 
ca ,  que  de  todos  os  outros  géneros  de  morte,  fendo 
tantos,  e  taô  vários, pode  haver  eíperança  de  eícapar, 
fó  a  morte, que  traz  comfigo,  ou  apoz  de  fi  a  velhice, 
he  morte  fem  efperança.Mata  a  doença, mata  o  incên- 
dio ,  mata  o  naufrágio,  mata  a  efpada  ,  mata  a  feta 
ou  defcuberta  ,  ou  atraiçoada  ;  mas  de  todos  eftes 
géneros  de  morte  muitos  efcaparaô  ,  fó  da  morte  da 
velhice  ninguém  efcapou  :  Jlia genera  mortis  fpei 
Vííjtafunt ,  nihil  habet  quod  jperet  quem  feneci us 
ducit  ad  tnortem.  E  fendo  taô  defefperada  eíta  efpe- 
rança ,  mais  dignas  faó  para  mim  de  admiração  as 
noífas  velhices ,  pois  nos  naô  defenganamos  com  el- 
las.  Quanto  mais  temos  vivido  neftemuipdo,  tanto 
mais  amamos  o  mefmo  mundo,  e  a  mefma  vida  ,  e 
quanto  mais  faó  osannos,  que  conta  mos,  tanto  mais 
faó  as  raizes ,  com  que  eííamos  pegados  á  terra. 

F  I  N  I  S.     L  A  U  S    D  E  O. 


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