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VIEIRA
ABBREVIADO
TOMO II.
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VIEIRA
ABBREVIADO
EM CEM DISCURSOS
MORAES^ E POLÍTICOS;»
DIVIDIDOS EM DOUSTO MOS.
ju cr O R
ANSELMO CAETANO MUNHOZ
DEAVREUGUSMAM E CASTELLOBRANCO,
Doutor pela Univeríidade de Coimbra ^ e Familiar do íanto Officio.
OFFERECIDO
AOSENHOR
FRANCISCO DE ALMEIDA
J o R D A M,
Cav alleiro profeíTo na Ordem de Chrifto , Doutor pela
Univerfidade de Coimbra &c.
POR
MANOEL DA GONCEIC,AM.
TOMO II.
LISBOA.
Na Officina de M 1 G U E L RODRIGUES,
Imprefsor do Eminentillimo Senhor Cardeal Patriarca.
M. DCC. X L V I.
Com as licenças neceffàrias^ e privilegio Real
A' cufta de Manoel da Conceição , Livreiro do Eminentillimo Senhor Cardeal;
Patriarca : vendefe na fua logea na rua direita do Loreto»
\
A.
/vflldiv/iJA J-inCJ J/IA
M^
AO SENHOR
FRANCISCO DE ALMEIDA
J o R D A M
Cavalleiro profelTo na Ordem de Chrifto, Dou-
tor pela Uiiiverfidade de Coimbra &c.
P. António Viei-
ra abbreviado vay procurar- na
gran-
grandes apaixonados j e de f en-
fares. NaÕ merece menos por
abbreviado , pontue Joube o
feu compilador reduzir todo
aquelle juperior ejpirito a pe-
queno volume. Jijiefoy o mi-
lagre da arte fazer hum com-
pendio de liuma obra immenfa
pelafua qualidade. V. m. co-
mo taõvenerador daquellefe-
cundiffimo engenho., naò ha de
ejlranhar ejla minha oferta ,
porque Jei qual he a venera-
ção j e o rejpeito , que tem a
efte Auãor , pois naõ conten-
te de ter todas as fuás obras
impreffiis , fò das manufcritas
-uw4 ^ * ^^"^
tem féis volumes , que afua
curiofidadejouhe ajuntar com
igual difpendio. Ne/ta dou-
ti J/ima collecçaõ mo fira v.m.
o quanto he amigo de thef ou-
ros literários , de que lhe tem
dado a pojfe aperfeita intelli-
gencia da lingua Franceza , e
a inclinação , que lhe devem
osfruõíos daquelle elevadij/i-
mo entendimento. A verdade
he , que quem naõfabe a artCy
naô a efiima , e que v. m. naâ
Julga pelo que ouve , fenaõ pe-
lo que entende. F^fiudou v. m.
na JJniverfdade de Coimbra y
efez os f eus Aã os literários
com
! I
cófn tanto nmgijierio , comofà
hoicoejfc dejer Mejire. For-
tuna grande feria dos- dijcipu-
los , porque teriaõ na excel-
lencia do Mejire o primeiro^
e o mais nobre motivo para ej-
tudarem ; masfe na JJniverJi-
dade podia feroir a alguns com
dfeu trabalho , traduzio para
utilidade de todo Portugal a
Arte Legal ^ a que fe% excel-
lentes addiçoens , dando huma
breve , mas importante noticia
das nojfas Ordenaçoens. Ago-
ra ofereço a v. m. em Vieira
abbreroiado mais huma occa-
fiaõ , em que lhe lifonjee o
gojlo,
gojlo , e fará que veja que
pôde o engenho humano com-
prehender em huma pequena
concha hum mar profundijfi-
mo de erudição. T) cos guar-
de a V. m.
\
I
Mayor venerador de v. m.
Manoel da Conceição,
IN-
li
■r> ■
índice
DOS DISCURSOS,
>5 QiJ,e contém efte fegundo tomo,
/// M.
M Andar , efervir^ DiPcurJo LIÍL
Merecimentos^ Difcurfo LIF.
Mentira , Difcurfo LV,
Morte ^ Difcurfo LVI.
Morte , Difcuf-Jo LVIL
Mortos , Difcurfo LFIIL
Mundo ^ Difcurfo LIX,
N.
Naf cimento , Difcurfo LX.
Nafcimento , Difcurfo LXL
Nada, Difcurfo LXIL
Necejfldade , Difcurfo LXIIL
O.
Obras , Difcurfo LXIV.
Olhos , Difcurfo LXV,
Opprimao , Difcurfo LXFI,
Ouro , Difcurfo LXFIL
V.
PaÕ, Difcurfo LXFIII.
Pajfamento , Difcurfo LXIX,
Paz, Difcurfo LXX.
Paz, Difcurfo LXXL
Peccado , Difcurfo LXXIL
Peixes j Difcurfo LXXIII^-^^^ o\ .u
pag. I.
pag. 16.
P^g
P^g
pag
17.
24.
41.
SS-
64,
pag. 68.
pag.yi,
P^g' 7S^
pag. 85.
pag. 96.
/j^^. 97.
pag. lOoV
p^^. 10 1.
/?/2^. 112.
pag. 11^.
pag. 140.
/)/;^. 140.
P^g' H7-
^^^. 148}
Per*
j
»**. # ,» f. ■>#np'.'
Pertendentes^ DifcurCo LXXIF. pag, 167.
Pertençoens j Difcurfo LXXV. pag.i%2>.
Per tendentes confolados , Dijcurfo LXXVI, p'^^5^
Pedir, Difcurfo LXXVIL pag, 211.
Peregrinação^ Difcurfo LXXVllL pag.2it,
Prefença , Difctirjo LXXIX. pag, 213.
Primazia^ Difcurfo LXXX. pag. 21^,
Profetas, Dijcurfo, LXXXL pag. 215'.
Pregadores , Dijcurfo LXXXIL pag. 220.
Querer y e poder , Difcurfo LXXXIIL pa^. 250.
R.
Recreação, Difcurfo LXXXIF.
Religião, Difcurfo LXXXV.
Religiofos, Difcurfo LXXXV L
Refoluçao, Dtfcurfa LXXXVIL
s.
Sábios , Difcurfo LXXXIX,
Sacerdotes , Difcurfo XC.
Segredo , Difcurfo XCI.
Soldados , Difcurfo XCII.
Soledade , Di/curfo XCIIL
'Sonho , Difcurfo XCíV.
T.
Tributos , Difcurfo XCF.
Trijleza , Difcurfo XCFL
Falidos , Difcurfo XCFIL
Falidos , Difcurfo XCFIIl
União, Difcurfo XCIX^.^i,^^i^^
Felhice^ Difcurfo C
va
pag. 265'.
pag. 266.
pag. 287.
/>tíf^. 295.
pag. 307.
/)^^. 317.
pag.^21,
P^g- 332-
/)^^. 348.
pag. 35'!.
/>^^' 374-
pag: 3^7-
' pag.^oi'
a 2. I
ABBREVIADO
TOMO ;
DISCURSO LIII.
Tirado de hunifermao de S. Roque pregado na Ca-
pella Real, elogiando helle ao me fino Santo por
n ao querer mandar ^ nemferviraos homens.
MANDAR, E SERVIR.
O homem feio Deos para man-Pa!t."4.
I dar, aos brutos para feryir. E fe^^^^^-^^^-
os brutos fe rebeilaraó contra
Adaó , e nao quizerao fervir ao
homem , fendo taõ inferiores ,
trifte, emiferavel condição he haver hum homem
de íervir a outro , fendo^todos iguaes. A primeira
vez , que fe profetizou neíle mundo haver hum ho-
mem de fervir a outros , foy com o nome de maldi-
ção. AiTim fadou Noe a feu neto Canaãn em caíli-
go do pay , e mais do filho. Ainda entaó fe naò fabia
Xom. II. A . no
i
J
í^-^-a^mmmmt^m
2 Vieira ahhreviado
no mundo, que coufa era fervir , entaõ fe começou a
entender a maldição pelo delidío , e a miferia pelo
caíligo, Meyos homens chamou depois o Poeta Ly-
rico aos que fervem, e diííe bem. Toda a nobreza ,
ç excellencia do homem confífte no livre alvedrio,
e o fervir, íe naó he perder o alvedrio, he cativallo.
NurH.45J7. 532- A mayor prova, a mayor experiência, o ma-
yor exame, e o mayor encarecimento da paciência,
e foíFrimento humano he pôr Eieos huns homens fo-
?f. tfj. II, bre a cabeça de outros : hnpofuijit homines fuper ca-
pita noftra-j porque os que eftaõ de cima, faõ os que
mandão ; os que eítao debaixo , íaõ os que íervem , e
fendo os que fervem iguaes aos outros por natureza,
que eftes os tragaô fobre a cabeça , e que elles os me-
tao debaixo dos pés : Homines fiíper capita no/Ira^
nem toda a penitencia dos ConfeíTores iguala eíla
dor , nem todos os tormentos dos Martyres eíle mar-
Num.49 8.^y''^^- Onde a noíTk Vulgata lê : Impojuijií homines
fuper capita nojlra , no original Hebreo eftá : Equt-
tarefecifti homines fuper capita noftra: Fizeftes,Se-
nhor , para provar a noíía paciência , que os homens
andaíTem a cavallo fobre as noílas cabeças. Vede , fe
vay muito de huma coufa a outra. De forte que aos
miferaveis , que fervem, debaixo , naõ fe contentao
os que íerraô de cima de os pizar com feus pés ,
fenaõ também com os dos cavallos : Equitarefecifti
homines fuper capita noflra. Se me perguntarem po-
rém , onde podem fucceder taes cafos , que homens
tratem aífim a homens ,e a homens, que os íervem,
refpondo, que nas Cortes.
535 Para intelligçncia deita verdade (de que
bafta va por prova a experiência ) havemos de fuppor,
que nas Cortes, por çhriftans, e chriítianiflimas
í que
Dijcurfo LIII. 5
que fejaõ , naõ baila lo ter a graça do Príncipe íii-
premo , fenaó fe alcança também a dos que lhe aílif-
tem. Efta lie a primeira fuppofiçaô da guerra , que
padecem , ou podem padecer nas Cortes ainda os
homens , que melhor fervem , fe tem outros fobre íi:
hripofuijii homines jttper capita iiojira,
534 Masquaes faô os que os pizaô naÕ íó com Num. 4^^.
os feus pés , fenaó com os de feus cava lios : Equita-
refecifti} He certo, que naô faÓ os Reys ; porque
os pés Reaes nao pizaÔ , nem magoao ; honraõ yQ^u-
thorizaó. Por iílo íe líinçaô a feus pés os vaíFallos , e
quanto mayores , e mais dignos , mais lhe metem de-
baixo dos pés as cabeças. Lá diílé Tertuliiano, que
Minerva calçava na cabeça o capacete : Minerva cal-
ceans galeam. Afilm he o calçado dos Reys. Os feus
çapatos nao pizaô , coroaó. Quaes faô logo os que
pizaÓ taó honradas cabeças , como aquellas, entre as
quaes fe contava a de David, e nito fó com os feus
pés , fenaó com os dos feus cavallos ; Equitarefe-
eijii homines fuper capita nojlra ?
535 Aqui entra agora a fegunda , e mais laftimo-
fa fuppoíiçaõ , e menos digna de fe crer , fenaó diíTe-
ra SalamaÓ, que a vio com feus olhos: Vidi fervos ^^^
in equis , ij^ Principes arnbulantes fuper terramv
Vi os fervos a cavallo , e os Principes a pé. Sem du-
vida , que iílo vio Salamaô profeticamente, quando
vio apeado a Roboaó feu filho , e a Jeroboaó feu fer-
vo entronizado. E em. outros Reynos quando acon-
tece iílo mefmo ? Bem he que o perguntemos , poÍ5
naõ vemos no noíTo eíla defgraça , que baftara a cor-
romper todas as fuás felicidades. Acontece iílo ,
quando o Principe , a quem toca ter as rédeas na maÔ,
por deíidia , e negligencia as larga ^ e entrega ao íer-
A 2 vo.
I
^
4
Vieira ahbrevfado
vo. Então he, que o fervo montado a cavallo, ven-
dofe impoílo íbbre as cabeças dos homens , nao fó as
piza a dous pés , fenaó a quatro. Digao Mnrdocheo
debaixo de Araan no Reyno de Aíiuero, e D. niel
com os Satrapas no de Nabuco, e Dário. Em taes
tempos em vez de os homens fervirem gloriofainen-
teaosRcys, fao ignominiofamente fervos dos fer-
vos , e padecem fem lhe valer a cor do roílo ( onde
fó ihe fâítao os ferretes) a maldição de Canaan , que
hoje fe cumpre nos Cafres , e nos Ethiopes : Maledi-
âliisCbanamí^ fervus fervonim eritfratribusjtiis.
Veja hum efpírito generofo fe ha de fujeitar a íua
cabeça , ou expôUa por nenhum preço a femelhantcs
abatimentos.
Num, SOI. 53^ Grandes razoens para nao fervir a homens,
e muito mayores para naô mandar homens. E por-
que ? Porque mayor fervidaÔ he mandallos , que fcr^
Isium. 503. villos. Paliando ElRey Antigonocom o Príncipe
feu íilho íobre a adminiílraçaô, e governo do Rey-
no , de que o havia de deixar por herdeiro , admira-
do o generofo moço de tamanhas obrigaçoens , e en-
cargos , refere Eliano , que lhe diííe o pay : An non
novifti ^fili mi , Regimm nojlrum cffe nobilemfervi-
tutem ? Ainda naô fabias, filho meu, que onoflorey-
nar na6 he outra coufa, fenaõ huma fervidaõ hon-
rada? Honrada diíTe, e com grande juizo; porque a
íervidao dos fervos he fervidaô íem honra , e por
iíFo menor, e menos pezada ; mas fobre o pezoda
fervidaô haver de fuíleníar também o da honra, he
muito mayor fujeiçaõ , e-muito mais pezada carga.
He fervir á fama , e ás bocas dos homens , cujos gof-
tos íaõ taõ vários, e taó eílrragados , que até o mef-
mo maná os enfaília. Sc hum homem naõ pode fer-
vir
Difciirjo XIII. 5
vir a dous, como poderá fervir a tantos mil ? A ca-
da homem deo Deos hum Anjo da guarda , e naó
mais que hum homem a cada Anjo : e le hum Anjo,
que move , e governa com tanto concerto , e ordem
todo o Ceo das eílrenas,naÓ baila para guardar huin
homem de fi mefmo, e governar ordenada , e concer-
tadamente a hum homem entre os outros ; como
bailará hum fò homem para conter dentro das leys,
e manter em juíliça a tantos homens ? Naó fabe o
que íaô homens quem ifto naÕ confidera , e penetra.
537 Os Filoíofos antigos chamarão ao homem Num. 504.
mundo pequeno \ porém S. Gregório Nazianzeno
melhor Filofofo , que todos elles, e por exceilencia
o Theologo , diííeque o mundo comparado com o
homem he o pequeno, e o homem em comparação
do mundo o mundo grande: Mundum in parvo ma-
gnum. NaÕ he o homem hum mundo pequeno , que
eííá dentro do mundo grande ; mas he hum mundo ,
efaó muitos mundos grandes, que eílaó dentro do
pequeno.
538 Bafte por prova o coração humano, queíen-
do huma pequena parte do homem , excede na capa-
cidade a toda a grandeza , e redondeza do mundo.
Pois fe nenhum homem pode fer capaz de governar
toda eíla machina do mundo ; que difíicuidade fera
haver de governar tantos homens , cada hum mayor,
que o mefmo mundo , e mais difficultofo de tempe-
rar, que todo elle ? A demonílraçaó he manifeíia;
porque nefta machina do mundo, entrando também
nella o Ceo, as eílrelJas^ tem feu curfo ordenado,
que nao pervertem já mais , o Sol tem feus limites ,
e trópicos , fora dos quaes naó paíTa: o mar, com fer
hum monílro indómito , em chegando ás areâs pára:
Tom. II. A 3 as
/^
6 Vieira abbreviado
as arvores , onde as põem , naÓ fe mudaó : os peixes
contentaõíe com o mar : as aves com o ar : os outros
animaes com a terra. Pelo contrario o homem, monf-
tro, ou chimera de todos os elementos, em nenhum
lugar pára, com nenhuma fortuna íe contenta, ne-
nhuma ambição , ou appetite o farta , tudo perturba,
tudo perverte, tudo excede, tudo confunde , e co-
mo he mayor , que o mundo , naó cabe nelle.
539 Grande exemplo no mefmo mundo , naó
cheyOjComo hoje eftá, mas vazio, e defpovoado, com
os filhos de Adaô , e Noé. A AdaÓ deolhe Deos o
império fobre todo o mundo , fobre os peixes , fobre
as aves, fobre os animaes da terra , e naó pode go-
vernar em paz dous homens , e eíles irmãos , fem que
hum mataíFe ao outro. Noé governou todos os ani-
maes, e confervou-os pacificamente dentro em hu-
ma arca , e fora delia nao pode governar três ho-
mens , fem que hum o nao defcompuzeíle , e aíFron-
talfe, fendo todos três feus filhos. Vede fe he mais
pezada férvidaó, e mais difficultofa a de governar,
e mandar homens, que a de fervir? Quem ferve,
como naó pode lervir mais que a hum , fujeitafe a
huma fó vontade; mas quem manda, como ha de go-
vernar a todos, ha de fujeitar a fí as vontades de to-
dos , e eílas naó de filhos , em que he natural a obedi-
ência , e o amor , nem de irmãos entre fí , em que as
qualidades laô iguaes , e as naturezas femelhantes;
mas de tantas , e taõ diverfas condiçoens, como íaó
nelles os roílos, e os intentos.
540 Daqui fe íegue , que o que ferve, , por dura
que feja a fua fervidaÔ , fempre tetn horas de alivio,
e de defcanfo; o que manda , nenhuma : Ut Solftare
nefcit , ita tu Imperator, diíTc Pacato em hum pa-
negy-
Difcurfo LIII. 1
necryrico ao Imperador iheodoíio Magno: AíTim co-
mo o Sol nunca pára, aflim vós, ó grande Imperador,
e por ido grande. Fez Deos ao Sol Príncipe do m^un-
do : Lummare 7nmus , ut praeffet diei'. e defde o Gen.i. ,tf.
dia em que lhe deo efte officio até hoje , naõ deícan-
fou hum momento. Ta6 grande trabalho hefer Sol^
e taÓ grande a lua lujeiçaõ, poílo que em lugar tao
alto : huma inquietação perpetua , hum movimento
continuo , hum correr , e rodear fempre , e dar mil
voltas ao mundo fem defcanfar , nem parar ja mais.
Quando dizemos , que o Sol íe põem , he engano ;
porque entaô fe parte a governar os antípodas.
541 Naó vamos bufcar a prova da íemeíhança
mais longe , pois a temos de cafa , e nos noííos Reys
mais própria , que em nenhum outro do mundo.
Quando os vaíTailos dormem , e deícanfaõ , parece
que hum Rey de Portugal faz o meímo depois ao
governo , e trabalho de todo o dia , e naõ, he íenaõ,
que paíTou aos antipodas. Lá anda com o penfa-
mento , e com o cuidado pela China , pelo Jap ,
pelos Reynos do Idalcaó , do Samori, do Mcgor,
pelo Cabo de Boa Efperança, pelo de Comon, ,3eIos
Javas, pelos mares, e cofttis da Africa , da Afia , e
da America , vifilando armadas , e fortalezas, com-
pondo pazes, abrindo comércios , e meditando fem-
pre augmentos do Reyno de Deos , e do feu , íem
outra quietação, ou defcanfo mais, que apparen-
te aos olhos ; porque o Sol naõ tem verdadeiro occa-
fo. O relógio , que he o fubílituto do Sol na terra ,
naó foa , nem fe ouve por fora , fenaõ a certos tem-
pos; masnemporiíTo eftá ociofo, ou quieto, fem-
pre os pezos eftaõ a carregar , fempre as rodas eílao
a moer : e taes íaó os cuidados do Principe de dia , e
A 4 de
I
^
HmSiBÊm
mm
8 Vieira abbreviado
de noite. Para os fubditos, que obedecem, e fer-
vem , ha diíFerença de dias , e noites , para o Princi-
pe , que governa , e manda, fempre he de dia. Aífim
o dizia hum Rey dos feus cuidados : Noãem verte-
runt in diem.
542 Entre o fenhor , que manda , e os íubditos ,
que fervem , ha a mefma diíFerença , que entre o co-
ração , e os fentidos. Dorme o homem, e todos os
fentidos defcanfaô: os olhos naõvem, os ouvidos
naó ouvem , a lingua naõ falia , e aífim os demais;
mas fe neíle mefmo tempo a elfe mefmo homem lhe
puzerdes a maó fobre o peito, vereis como eítá ba-
tendo nelle, e palpitando o coração : e fe tornardes
depois huma, e muitas vezes, e a qualquer hora, fem-
pre o haveis de achar no mefmo movimento. Pois os
fentidos iguaes na baixeza aos dos brutos, dormin-
do a fono folto , e o coração principio da vida, e no-
biliífima parte do homem , fempre velando fem def-
canfarjámais? Sim; que iíFo he ler coração. O co-
ração da Republica he quem a manda , e governa , e
quando a meíma Republica lhe deo a foberania deífe
cuidado , depofitou nelle todos os feus cuidados.
E lie ha de cuidar íem defcanfo , para que todos def-
canfem , e vigiar , para que todos durmaõ : Ego dor-
mio , é^ cor meum vigilat , dizia Salamaó : e o leão
Rey dos animaes dorme com os olhos abertos. Vigiar,
quando todo o corpo dorme , he fer coração entre os
íentidoji , e fer leaÕ entre os animaes : vigiar como o
coração, quando todo o corpo dorme, he fer leão en-
tre os animaes, e Salamaó entre os homens.EíladiíFe-
Nura, 5 5?./^"*^^ ^^^ ^ ^^"^ ^^s Principesao dos outros homens,
"que os Pveyscuidaô dormindo, e dormem cuidando.
543 ^ íono dos Reys he hum fono defvelado ,
he
Cant. 5-
Part."
Difcurfo LIII. 9
he hum dormir cuidadolb , hum defcanfar inquieto ,
hum deíiittender advertido, hum defcuidarfe vigian-
do. Nos outros homens o fono he prizao dos fenti-
dos : nos Reys he diílimulaçaó fomente. Por iíTo ao
leaó lhe derao o império dos animaes, porque dorme
com os olhos abertos. Nenhum Rey fechou os olhos, •
que lhe naõ fizefie fentinella o coração : Ego dormio,
^ cor metini vigilat , dizia o Rey mais fabío.
544 Dormindo efta va Faraó , quando vio aquela Canr- 5. z.
le fonho admirável das fete vacas fracas , que comiaô
as fete robuítas , em que fe íígnificavaô os fete annos
de fartura , e os outros fete de fome, que haviao de ^"' ^^'
fucceder no Egypto. Era Rey , por iíFo lhe inquieta-
vaó o fono eíles cuidados. Quatorze annos antes le-
vava Faraó adiantado o governo de feus vaííallos , e
já entaó fonhava com feus bens , e o defvelavaÓ feus
males. lílohe dormir como Rey.
545 Nos outros homens o iono he huma morte:
nos Principes o íono faó duas vidas. Faraó acordado i
vivia no tempo prefente \ dormindo vivia no prefen-
te , e mais no futuro : no prefente por duração , no
futuro por cuidado. Maisvivia Faraó dormindo com
os olhos fechados , que acordado com os olhos aber-
tos : acordado com os olhos abertos via o que já
era: dormindo com os olhos fechados via o que
ainda naó era, fó porque havia de íer. Fechou os
olhos para dobrar a esfera da vifta. Com os olhos
abertos via poucos efpaços de lugar , com os olhos
fechados alcançava grandes diftancias de tempo. Aí-
íim dormia o Rey do Egypto Faraó. E o Rey dos
Aífyrios Nabuco como dormia ? Dormia fonhando
com o feu Reyno , e com os eílranhos.
54Ó Vio Nabucodonoíor aquella prodigiofa ef-p"J^;J^^'
tatuaj
I o Vieira abbreviado
tatua 5 que reprefentava os quatro Impérios dos AíTy-
rios , dos Perfas , dos Gregos , e dos Romanos : o
corpo eítava defcuidado com os fentidos prezos, e
a aJma andava cuidadofa levantando, ederrubando
eílatuas, f^mtaíiando Keynos, e Monarchias. Mais
fazia Nabucodonofor dormindo , que acordado j
porque acordado cuidava no governo de hum Rey-
no, e dormindo imaginava na fucceílaô de quatro.
Pois fe Nabuco era Rey dos AiTyrios , quem o metia
com o Império dos Perfas , com o dos Gregos , com
o dos Romanos ? Quem ? A obrigação do officio ,
que tinha. Era Rey , e quem quer confervar o Rey-
no próprio, ha de fonhar com os eílranhos. DoRey-
no próprio ha de ter cuidado, e os Reynos alheyos
lhe haó de dar cuidado. Ninguém governou bem o
feu Reyno , que naõ attendeíie ao governo de todos.
O bom Rey tem por esfera o mundo : he Rey do íeu
Reyno pelo dominio , e Rey de todos os Reynos
Part. 4. pelo cuidado. Muito me admirou fempre na fabri-
Num. 507.^^ do Jeito de SalamaÔ , que os traveíTeiros, em
que havia de inclinar a cabeça , os fízeíle de ouro :
c^^^.}.\o. Heclinatorium aitreum , afcenfum ptirpureum: A
fubida de purpura , mas a cabeceira de ouro. Parece-
me ifto com o que cuidaÕ os rufticos , que os Reys
dormem em lançoes de brocado. Traveíleiros de ou-
ro faó ricos, e preciofos, íim; mjs muito duros, mui-
to frios , e muito defagafalhados. Quanto melhor
he huma manta no BuíTaco, ou huma cortiça na Ar-
rábida.? Porém SahimaÔ com toda a fua fabedoria
naó foube traçar á cama dos Reys outra cabeceira
mais branda; porque naó era feita para conciliar oíò-
no , fenio para o inquietar. Aflim dormia inquieto
l''araó , fonhando nos fete anncs de fartura do feu
Reyno,
1
Difctirfo LIII. II
Reyno , enos lete da fome. AíTim dormia inquieto
N..bucodonofor , fònhando na duração de fua Mo-
narchia , e das três, que lhe haviao de fucceder. E até
Jofeph , a quem Deos hia creando para mandar ,^ e fer
Príncipe, em quanto os lavradores íeus irmacs re-
poufavaô, elle fendo de menos annos , naô podia
dormir quieto: lá andava fonhando com as paveyas,
e com as eílrelias , revolvendo no penfamento o Ceo,
e mais a terra. A purpura podemna defpir os Prínci-
pes , quando fe deitaô ; mas os cuidados, que os def-
velao, naó podem. Quando a Chrifto no Pretório
de Pilatos o íizeraô reprefentar a jfigura de Rey , co-
roaraõno de efpinliosjeveíliraóno de purpura. Eno-
tou advertidamente S. Pafchafio , que a purpura tor-
naraõiha a defpir, mas a coroa de eípinhos nunca a
largou dn cabeça : Porro /pinas , ^tms capite geft a-
vit , non mutavit , nec aliciibi tranfpofuit. As efpi-
nhãs faó os cuidados , como lhe chamou o mefmo
Chrifío , e a quem he Rey , ou o reprefenta no man-
do , fempre eíbs efpinhas lhe eftaô picando a cabeça,
lempre Iheeílaô roendo os penfamentos , fempre lhe
eftaô inquietando os fentidos, fem o deixar deícan-
far, nem dormir.
547 Aos que fervem naÓ ha íenhor taó tyranno,
que lhes nâõ permitta horas de defcanfo:aos que man^,
daô , he tal a tyrannia do mefmo mandar, que íe nao
tomaõ por alivio os meímos cuidados^ ( como diz
Tácito de Tibério) nem hora, nem momento Ihecon-
fentem de quietação , e repouíò. Só poderá replicar Num; 5083
contra o encarecimento deftes didames , pofto que
verdadeiros, o defuío , e defprezo delles , e o fer or-
dinário no mundo tomarfe do mando a parte iodo
poder, da mageftade, e da grandeza , edeixarfe a
y do
I
12 V leira m
tio pezo , e a dos cuidados com pouca , ou nenhuma
attençao mais que ao defcaníb , á delicia , ao regalo,
e a todososantojos do appetite livre, epoderofo:
em fun a igualar as indulgências da fuprema fortu-
na com os gofros, e prazeres da vida ; porque íe os
que tem ornando, fazem, e padecem quanto oraeí-
mo mando os obriga , dura , e triíle fervidaó he a íua;
e fe o naõ fazem , nem o querem padecer , ainda he
mais triíle, e mais dura.
5*48 Efta foy a confideraçaõ , com que Pipino em
França , Rachiíio em ítaiia , Sigiberto em Inglaterra,
Trebellio em Bulgária, Henrique em Chipre ,Joaõ
em Arménia , Ludovico em Sicilia , Ramiro em
Aragão , Veremundo em Caílella , eíla foy , digo , a
coníideraçao , da qual fortiíFimamente convencidos
eíles , e outros Principes , ou fendo Reys , renuncia-
rão as coroas , ou fendo filhos de Reys , as heranças,
elegendo antes fer íubditos , e fervir em huma Reli-
gião, que mandar , e íer fenhores do mundo.
Num. 513; 549 Vede, fe fao loucos todos, os que querem
Num. 514. mandar homens , ou fervir a homens. O fervir , e o
mandar ambos começarão juntamente no dominio
de Membroth. Nelíe começou o império , e com el-
lea íervidaõ. Aílim onota S. Jeronymo: Quia hic
primusfuit , qiii altos fthi fervire coegit. E efte do-
minio de Membroth quando começou ? Segundo a
mais certa chronologia começou no anno de 1932.
da creaçaó do mundo , qne foy o mefmo anno , em
que nafceo Abrahaó. Agora noto eu , e he coufa
muito digna de fe advertir , que quando começou o
mandar , e o fervir , entaó fe encurtarão as vidas dos
homens , porque dalli por diante , como confta da ia-
grada Efcritura, raros foraó os que chegarão a cem
annos,
Difcurfo LIII. 15
annos , e rnriífímos os que os excederão. De forte
que antes de haver no mundo fervir, nem mandar,
viviaõ os homens oito centos , nove centos, e mais
annos ; porém depois que eítas duas peites entrarão
no mundo , depois que os homens começarão huns a
mandar, e outros a fervir, nenhum houve, a quem a
morte naó tiraíle as fete , ou as oito partes da vida.
E verdadeiramente, que fe os trabalhos , e os defgof-
tos mataô , naô he muito , que o fervir , e o mandar
fejaô enfermidades mortaes.
^^o Mas porque o fervir a Deos, e o fervir aos Num. 515:
homens tudo tem nome de fervir, vejamos quanta
headiííerença, que ha entre hum fervir , e outro fer-
vir, para que todos os que fervem, eosquemandaÓ,
queiraó antes íervir s Deos , e fó a Deos. Os homens Num. 5 ic,
quando mandaó, ( e mais fe tem o mando fupremo )
ou feja ingratidão natural , ou íoberania, nem eíli-
maó , nem pagão os ferviços, que fe lhe fazem , co-
mo deverão; porque cuidaõ , que tudo fe lhe deve.
Pelo contrario Deos, a quem devemos tudo o que te-
mos, e tudo o que fomos, nenhuma coufa manda , a
cuja remuneração fe naÓ obrigue como devedor.
Os homens nas fuás leys , fe mataítes , ou furtaíles ,
caíligaovos; mas íe naõ matais, nem furtais, naó
vos daó por iíFo nada. Naó aíFim Deos. Naó fó vos
remunera , quando fazeis o que vos manda fazer , fe-
naõ também quando naó fazeis o que vos manda
que naô façais. Os homens, quando pagaó, ou cui-Num. 517^
daó que pagaó os ferviços, que lhes fízeíces, elles faó
os que os avaliaó. O eílylo de Deos em remunerar
a quem o ferve , vede quaõ differente he. Nós fo-
mos os que avaliamos , e eiie o que paga. Os homens ^um. 5 18.
para fazer as mercês olhaó para o nalcimeoto de
quem
\
I
1 4 Vieira ahhreviado
quem os fervio : Deos fó refpeita , e faz caio do feti
merecimento , e das acçoens de cada hum , e nenhum
do naícimento. Os nafcimentos levarão as comandas
dos homens , as de Deos fò para o merecimento as
tem guardadas.
551 Os homens, a quem os ferve, medem)heos
merecimentos pelos annos : Deos mede-os oelos co-
raçoens. Os homens medindo os merecimentos fó
pelos annos, fazem huma grande injuíliça j porém
Deos, que he juftiffimo, mede-os fó pelos coraçoens-
porque eile fó os vê. Oh íe os homens viíTem os co-
raçoens , quaò individados fe achariaó os de mui-
tos, que cuidaô, gueosíervem pouco! Por iífo fó
, Num. çio.fe pôde fervir aquém vê o coração. Os homens ,
a quem fervis , podem pouco , e querem menos : fe'
quizeílem dar muito , naõ podem , e eíTe pouco, que
podem , naó querem. Deos pelo contrario pôde tu-
do, e fempre quer. Quando os homens pedem aos
homens, ainda que fejaó Reys, pedem hiins pobres
a outros : fó quando pedem a Deos , pedem a quem
verdadeiramente he rico. Os Reys quando muito
faó ricos para alguns, Deos he rico para todos.
55^2 Os homens (já que falíamos nos feus pode-
res} fe deres por eUes a vida , ainda que fejao Reys,
e Monarcas , aífim como elles vo la naó deraô , aífim
vo la naó podem reílituir; eDeos, fendo elleoque
vos deo a vida , ainda que vós a naõ deis por elle , íe
a empregardes em feu ferviço, davos pela temporal
a eterna. Os Reys chamaófe íenhores da vida ; por-
que com juítiça, ou fem ella a podem tirar ; mas dalla
nem a feus filhos , nem a fi mefmos podem. Só Deos
he verdadeiro fenhor da vida , porque a dá no nafci-
mento , porque a conferva na duração, porque a re-
fu feita
Num. 511.
Difcurfo LIII. 15
fufcita depois da morte , e a eterniza na pátria. Ve-
de a diíferença da voíla meíma vida fantiíicada a
Deos , ou aos homens : fe a dais por amor de Deos,
ficais bemaventurado : fe a dais por amor dos ho-
menSjficais morto. Os que a déraó por amor de Deos,
íaó os que adoramos naquelles altares : os que a dé-
raõ por amor dos homens , os que pizamos neíTas fe-
pulturas.
353 Os homens (para que fallemos também pe- Num. jn»
la lua boca , e naõ fó pela divina ) quando vos hao
miíler, fois feu^ quando os haveis mifter, fois voíTo.
Aífim o cantou ao fom do Lima aquelle grande , e
deíenganado efpirito , que por naó ver as ribeiras do
Tejo fugio delias p.ira taÕ longe. Quando te hao mif-
ter, es feu, quando os has mifter, es teu, que naó
tens donos entaó. E Deos pelo contrario he taõ bom
Senhor , e taõ bom dono , que naõ havendo mifter a
ninguém , quando nos faz mercê de fe querer fervir
de nós, fomos com grande honra feus : e quando
nós o havemos mifter ( que fempre havemos ) nunca
deixa de fer noílo.
554 Finahnente os homens, a quem fervimos, pof-Num.yij.
to que íejaõ Reys, íaó mortaes, e lhe íuccedem ou-
tros; porém Deos, quando naÕ tiv^eramos outras
obrigaçoens de o fervir , fó por fer immortal , e fem-
pre o mefmo fem outro, que lhe haja de fucceder,
o devêramos fervir fó a elle. Entenderão ifto tanto
aííim muitas naçoens, que na morte dos Reys íe fe»
pultavaô com elies os íeus criados , náõ fó por fine-
za do muito , que os amavaó , mas por naÕ vivereni
em tempo de outros Principes, que naÕ conhecef-
lem feus ferviços, e merecimentos.
i
DIS-
I
ieira abbreviado
DISCURSO LIV.
Tirado de bumfermaÔdafegunda Dominga do Ad-
vento em que o Ancior mo/Ira , que o juizo dos •
homens be mais temer ojo , que o juizo de
Deos.
MERECIMENTOS.
Pait. 5.
Num. 6i.
sss
!5i
h
A6 ha mayor delidlo no mundo , que o
fer melhor. Ao menos eu a quem amara
das telhas abaixo , antes lhe deíejara hum grande de-
lidlo , que hum grande merecimento. Hum grande
delido muitas vezes achou piedade : hum grande
merecimento nunca íhe faltou a inveja. Bem fe ve
hoje no mundo : os deliclos com carta de feguro , e
os merecimentos homiziados. Sauí condemnou tan-
tas vezes á morte a David , e chegou a lhe atirar elle
mefmo ás lançadas : c porque crimes ? Porque íe can-
tava pelas ruas de Jeruíafem , que David era mais va-
i.Reg. 18. lente , que Saul : Percuffit Saulmille^ David aut em
^' decem viillia. Eíle premio tirou David de matar hum
gigante com huma funda. Mais venturofos haviao
de fer os tiros , fe naõ derao tamanho eftalo. Ao gi-
gante derrubou-o a pedra , e a David o fonido. Eis-
aqui porque David queria que o julgaíTe Deos, e
nao os homens. No juizo de Deos pcrdoaófe os pec-
cados como fraquezas ; no juizo dos homens cafti-
gaofe as valentias como peccados. Graças a Deos,
que já nos imos emendando deite.
DIS-
Difcurfo LV. 1 7
DISCURSO LV.
Tirado de htimfermcio da quinta Dominga da Q^uh
refma.
MENTIRA.
556
Mentira lie filha primogénita do ceio. Prrt. 4.
Vede como fe forma dentro em v os mef- ^'""^- 3^^-
mos eíte monílruoío parto. Quemeftá ocioío , nao
tem mais que fazer, que porfe a imaginar : da ocio-
fidade nafce a imaginação, da imaginação a fufpeita,
da fufpeita a mentira." Quem trabalha , trata da íua Num. 3^1.
vida , quem eílá ociofo traía das alheyas. (^uem tra-
balha , como cuida no que íaz , íalia verdade; por-
que diz as coufas como faô. O ociofo como naó tem nu^. j^^.
queiazer, mente; porque diz o que imagina. He a
imaginação no ocioib como a íerpente de Heva. Ef-
tava ociofa Heva no Paraifo : entrou a Íerpente col-
leandofe manfamente fem pés , mas com cabeça :
começou pela efpeculaçao, e acabou pela mentira.
Começou peia eípeculaçaô : Cur pr£cepit Tol;is ccti. ^j. t.
Deus : e acabou pela mentira , e duas mentiras : Ne-
qnaquam fnorienmii'. Eritis Jicut Dii. Confentioíb. 4. 5-.
Heva na mentira peçonhenta : de Heva paííou a
Adão , de Adaõ ao género hum.ano.
^^y Naó fuccede aíTim ás mentiras imaginadas ,
que vós como bicho da leda gerafres dentro em vós
mefmos, fnbricando de voíTas entranhas a mortalha
para vós , e o veílido para os outros } Meterá a lin-
gua a tefoura, e fem tomar as medidas á verdade,
vós lhe cortareis de veílir. Porque cuidais que fe ái-
Tom. II.
B
zem
i
I-
i
'li:V
ô V leira uui
zem tantas coufas mal feitas ? Porque fe fizeraõ ?
Naó ; que a mim me confta do contrario. He porque
fe imaginarão : e tanto que vieraÕ á imaginação, já
Num. 3i3.eíla6 na prancha da língua. QLiantas vezes íe diz do
honrado , e da honrada , do innocente , e da innocen-
te o que nunca lhe paílòu pela imaginação ? Mas
bwiíla que o maldizente o imagine, ou o queira imagi-
nar, para o pôr na converfaçaõ, e na praça, eo affir-
mar com tanta certeza , como fe o lera em hum
Euangelho. Deos vos livre de taes linguas, e muito
mais de taes imaginaçoens; porque íe a voífa honra
lhe entrou na imaginação, nenhum remédio tendes,
Num. 315. ""'Õ ha de parar ahi, ha de paíiar á lingua. Diz o
Apoílolo Santiago , que naó ha fera mais diííicultoía
de enfrear , que a íingua. Para fe pôr o freyo na Im-
gua , haôfe de meter as cabeçadas na imaginação.
Concertai vos com os yoílbs penfa mentos , fe quereis
eílar feguros das voíTIis linguas. Mas porque dais en-
trada a quanto quereis no penfamento , por iílo di-
zeis tantas coufas, que nunca paífaraõ pelo penfa-
mento.
Num. 516. 55^ Vejo, que eftao agora alguns no auditório
mui contentes, dizendo comfigo, que ifto naõ falia
com elles; porque he verdade, que naó faó mudos ,
e que quando íe achaÒ em converfaçaô, também fal-
laõ nas vidas alheyas ; jnas que nao íaó homens que
digaõ oque imaginaô: dizem o que ouvem , equem
diz o que ouve , naô mente. Se vós íoubereis quan-
tas voltas dao as palavras defde a boca até os ouvi-
dos , nao houvéreis de dizer iílb , ainda que fôreis
mui verdadeiros. Qiiantas vezes vos diíTeraõhuma
coufa, e percebeíles outra? Quantas vezes ouvis o
que nao ouvis .^ Quantas vezes entre a boca do ou-
tro ,
tro, e os voíibs ouvidos ficou a honni alheya pendu-
rada por hum fio? E queira Deos nno fícnííc enfor-
cada, lílo acontece quando os homens ouvem com
os ouvidos ; mas quando ouvem com os coraçoens ^
ainda he muito peyor. E os coraçoens também ou-
vem ? Nunca viíles coraçoens ? Os coraçoens tam-
bém tem orelhas : eftay certos , que coda hum ouve,
nao conforme tem os ouvidos, íenaô conforme tem
o coração , e inclinação.
559" Em quanto Moyfés eílava no monte Sinai Num, 3x7
recebendo oleyDeos, pedirão os Judeos a Arao,
que lhe fundille hum bezerro de ouro , e como era o
primeiro dia da dedicação daqueli:) imagem ^ ceie-
braraóno elles com grandes feitas. Deice do monte Escd. 31:
Moyfés comjofué , ouvindo as vozes ao longe : diífe '^•
Moyfés. Eu ouço cantar a coros : diOeJoíué : Naô .
he fenao tumulto de guerra. Aqui temos choros Cs.nwj.j:
caflrorum. Se as vozes eraõ as mefmas , como a hum
parecem muficas, e a outro parecem trombetas.^ A
razaô he clara. Moyíés era religiofo ^ Jofué era fol-
dado : ao religiofo pareceraolhe as vozes de co-
ro, ao foldado de guerra. Os que ouvem íao os ou-
vidos; mas os que ouvem bem , ou ma! , faõ os cora-
çoens. Tudo o que entra pelo ouvido , faz eco no
coração, e conform.e eftá difpoílo o coração , aílim
fe formão os ecos. Cada hum ouve conforme o feu
coração , e a fua inclinação. Deos nos livre de hum
coracaó mal inclinado, fe ouvir hum Te Deiim lau-
damus ^ ha de dizer, que ouvio huma carta de exco-
munhão.
560 Mais fuccede nefta paífagem dos ouvidos á ^^jm. 3,1-
boca. Como os ouvidos fno dons , e a boca huma ,
fuccede j que entrando pelos ouvidos duas verdades,
B 2 fahe
I
■■■
20
7
leira aoor
i
m
fahe pela boca huma mentira. Parece coufa de tre-
geito ; mas he certa. Qiierovos moílrar como ifto
pode fer. QtFiindo quereis dizer , que fulano he gran-
de mentiroíò , dizeis, que he huma chímera. Mas
que couAi he chimera ? Chimera he hum animal fin-
gido, compoílo de dous animaes verdadeiros : hum
monílro meyo homem, meyo cavalio he chimera:
hum m.onílro meyo águia, meyo ferpente he chi-
mera : hum monílro meyo leaõ , meyo peixe he
chimera ; mas nao ha taes monílros , nem taes chi-
meras no mundo. De maneira , que as ametades faó
verdadeiras, os todos, ou monltros , que delias fe
compõem, íaô fingidos. As ametades íaô verdadei-
ras 5 porque ha homem , e cavalio, ha águia , e fer-
pente , ha leaó , e ha peixe : os monílros , que fe com-
põem defcas ametades , faÕ fingidos ; porque naõ ha
tal couHi no mundo. ífto mefmo fazem os mentiro-
fos: partem duas verdades pelo meyo , e fem mudar,
nem accrefcentar nada ao que diífeíles, de duas ver-
dades partidas fazem huma mentira inteira. Defen-
dei vos lá agora das voílas mentiras com dizer, que
diíleíles as mefmas palavras , que ouviíles , e que naõ
accrefccntaftes nada. Qiie importa , que naõ accref-
centeis , fe diminuiíles ? Peyor he huma verdade di-
minuida, que huma mentira mui declarada \ porque
a verdade diminuída na eílència he mentira, etem
apparencias de verdade; e mentiras, que parecem ver-
dades , íao as peyores mentiras de todas.
>jum, 331. 561 Mas porque acabemos de huma vez comas
mentiras de ouvidas : para que íeja mentira o que di-
zeis, nao he necelTario, que ouçais mal, nem que
diíuinuais , ou accrefcenteis o que ouviíles: pódc
hum homem dizer pontualmente o que ouvio, e ou-
vir
A
V
Hjcurjo
vir pontualmcnce o que diílerao , e com tudo iíib
mentir. Qiiantas vezes íè dizem as palavras íincera^
mente com hiima tenção nniiio fã , e vós as inter-
pretais , e corrompeis de maneira , qt e de hum Jou-
Yor fazeis hum aggravo, de huma coníiança huma
injuria , de huma^gaiantaria huma blasfémia , e de
huma graça levantais huma tal labareda, que fe ori-
ginarão deíla muitas defgraças. E fe rfto fuccede ,
quando os homens dizem o que ouvirão, e íó o qii^e
ouvirão, que fera quando dizem o que imaginarão,
e oque fonharaó, ou o que ninguém imaginou , nem
fonhou? ^
562 Dizem alguns, ou diz algum: Nao lou eu Num. 333.
daqueiles, porque a mim nunca me fahio pela boca
coufa , que me entraíle pelos ouvidos : para affirmar
hei de ver com os olhos primeiro , e fe para iílo for
neceííario , que os olhos nad durmaô quarenta noi-
tes , eftando vigiando a huma efquina , hei-o de fa- —
zer íem defcanfar até ter averiguada a minha fuf-
peita. Ah ronda do inferno! Ah íentinela de Sata-
nás ! Efte meímo , fe lhe mandar o ConfeíTor , que
faça exame da confciencia meyo quarto de hora an-
tes de fe deitar, nao o ha de poder fazer com ofono;
mas para defiruir honras , para abrazar cafas eftará
feito hum Argos quarenta noites inteiras.
5Ó3 Naó cuidem porém eftes malignos vigindo-
res , que por ahi fe livraó de mentiroíos. Foftes , vi-
gi**aes,obrervaftes, viftes, diOeíles, e tendes para
vó^ , que fallaíles verdade ? Pois mentiftes muito
grande mentira. Os olhos mentem de dia , quanto
n\uis de noite. Grande cafo ! No livro quarto dos
Rcys cnp. 3. Sahiraõ em campanha contra os Moa-
biias EiPvey de Ifraei , ElRey de Juda , e ElRey de[^ ^•^'
Tom. II. B3 Edon.
I
^«MiaSBEIS
WÊÊSi
iSmSS
7
-* *r
Num,
5 34
22 V leira aõDrevm
Edon. EílavaÔ ainda os exércitos para dar a batalha
na^manhã feguinte : eis que ao romper do Sol olha-
rão os Moa bi tas para os arrayaes dos inimigos, e vi-
rão que peio meyo deiles corria hum rio de fangue.
ComeçiiraÕ a clamar cohn grande alegria , langue ,
fangue , fem duvida que os três Fveys peleijaraô efta
noite entre íi , e mataraóíe huns aos outros : vamos a
recolher os deípojos. Sahirsô os Moabitas correndo
tumultusriamente; mas elles foraô os defpojados ,
e os vencidos; porque o Tangue, que viraô, ou fe lhes
affigurou , que virão , naô era langue. Foy o caio ,
que paliava hum rio por meyo dos arrayaes dos três
Reys, e como ao fahir do Sol ferirão os rayos na
agua , que hia correndo , fez taes reflexos a luz , que
parecia fangue. Eefta apparencia de fangue taõ en-
ganoiamentc viílo , e taô falfa , e taó facilmente cri-
do , foy o que precipitou os Moabitas , e os levou a
meteremíe nas maôs de feus inimigos. Se reparais
no caio , as duas couías roais claras , que ha no mun-
do , he o Sol , e a agua. Os noíTos Provérbios o di-
zem: Claro como a agua: Claro como a luz do Sol. E
quaes foraÕ as coufas , de que fe formou aquelle en-
gano nos olhos dos Moabitas , com que cuidarão,
que o rio era fangue } Huma coufa foy o Sol , e ou-
tra coufa foy a agua : o Sol , porque ferio com feus
rayos as aguas, e as agu-as, porque feridas deraô com
os reflexos apparencias de fangue : de íorte que fe
enganarão os olhos nas duas couías mais claras, que
ha fio mundo. Pois fe os olhos fe enganaô nas cou-
ías mais claras, como íenao enganarão nas n\ais ef-
curas , e ás eícuras ? De dia enganavos o Sol, e de
noite qucreifvos defenganar com as trevas ?
564 Dirmehííis, que havia Lua, eeílrellas quan-
do
Difcurjo LV. 23
do vlftes. Ella pequena luz he a que cega mais ; por-
que fiiz , que hunvas coufns psreçaò outras. Trouxe-
rao hum cego a Chntto , pozlhe o Senhor as maõs
nos olhos , Q perguntou lhe Te via ? Reípondeo o ce-
go : Vídeo hoviincs velut arbor es ambiLÍaiites \ Se-Marc. í.
nhor , vejo os homens como arvores, que andaÕ.'^.
Mais cego eíl:n a agora eíle cego , que dantes ; por-
que dantes naó via íiada , agora via humas coufas por
outras. Os homens, que faô de taô differente figura,
e eílatura, via os como arvores , e as arvores, que ef-
taõ prezas com as raízes na terra, via que andavao
como homens. Eisaqui o querem ver com pouca luz.
O mefmo acontece a efies cegos vigiadores, que vaó
eftudar de noite o que haò de rezar de dia : Videa
homínes veliit arbores ambulantes.
$6s O cego deChriílofiguravarelhe, que os ho-
mens eraÕ arvores , e eíies cegos do diabo affigurafe-
ihe , que as arvores fao homens. Poemíe a efpreitar ,
vem huma arvore em hum quintal , eis iá vay hum
homem. A arvore eftá taô pregada peias roizes, que
dous cavadores a nao arrancaráô em hum dia , e elle
ha de jurar aos Tantos Euangelhos , que vio entrar , e
fahir aquelle vuito: Arbores ambulantes. Oh mai-
diro odeio ! Oh infernal curiofidade ! Já fe os olhos
levarem alguma nuvemzinha , como fempre levaõ ,
ou de deíconfiança , ou de ódio , ou de inveja , ou de
fufpeita , ou de vingança , ou de outra qualquer pai-
xão , ahi vos g"bo eu. Tenebroja aqiia in milnbiís^í. xj, r
aeris'. Notou David ndmiravelsr.ente , que a r.gua
nas nuvens he negra. Vedes !á vir hum oguaceiro ef-
curo mais que a mefnía noite : que negrume he aqiiel-
Je ? Nar he mais que agua , c nuvem : anuvem he
hum volante, e a agua he hum ci vila. ^
B4
\\ e deiles dous
ingre-
itira aborcviãã
ingredientes tao puros, etao diáfanos fe fazhumã
cícuridade tm negra , e taõ efpeíla. Sequem vay vi-
giar 5 e efpreitar a voíla vida , e a voíTa honra , levar
alguma nuvem diante dos olhos , ainda que feja taó
delgada como hum volante , por mais que a voíla vi-
da , e a voíTa honra feja tao clara , e taÕ pura como
hum cryftal , haihe de parecer efcura , e tenebroía:
Tenebrofa aqua in nubihus aeris. Finalmente redu-
zindo todo o difcurfo , ou todos os difcurfos , men-
tem as linguas ; porque mentem as imaginaçoens :
mentem as linguas ; porque mentem os ouvidos :
mentem as linguas ; porque mentem os olhos : e
mentem as linguas j porque tudo mente, e todos
mentem.
I 'i|
DISCURSO LVI.
Tirado de hum fermao de Cinza para a Capella
Realy que fenao pregou por enfermidade do
Auóíor,
M O R T E.
Patt. 6.
Num. 50.
^66 JT^ Sta he a íentença de morte fulminada con-
JlLí tra Adaó , e todos feus defcendentes , a
qual fe tem executado em quantos atégora viverão ,
e fe ha de executar em nós fem appellaçaõde innocen-
cia , fem refpeito de eílado, fem excepção de pcllba.
A Igreja folemnemente hoje naô fó no la repete aos
ouvidos com a voz , mas no la efcreve na teíla com a
cinza , como fe d i (lera a feus filhos luima piedofa
mãy : Filhos, ouvi , e lede a fentcnça de voílo pay ,
e fabey , que fois pó , e vos haveis de converter em
pó:
pó : Piihts es ^ (ip- inpulverem reverteris. O pó ,Gcn, 3. i?
que fomos, he o deqiie íe compõem os viv«s: o pó,
que havemos de rer,hc o em que fe refolvem os mor-
tos. E fendo eftcs dous extremos tao oppoílos , co-
mo o fer , e naô fer , naó he muito , que os eíFeitos ,
e aftedos , que prodiizem era nós, íejao lambem
muito diveríos; por iíio amamos a vida , e tememos
a morte. ^
^6y Mas porque eu depois de larga confideraçao
tenho conhecido, que eitesdouseííeitos no noílo en-
tendimento, e eíles dous aíFedos na noffa vontade
andaó trocados , o meu intento he poios hoje em feu
lugar. O amor eílá fora do feu lugar ; porque eílá na
vida. O temor também eftá fora do feu lugar; por-
que eílá na morte. O que farei pois, íerá deftrocar ef-
tes lugares com tal evidencia , que fiquemos enten-
dendo todos , que a morte , que tanto tememos , de-
ve fer a amada , e a vida , que tanto amamos , deve
fer a temida. Mais claro. O pó, que fomos, he a vida,
o pó, que havemos de fer, he a morte; e o mayor bem
da vida he a morte , o mayor mal da morte he a _
vida.
568 Quem mais que todos quiz , foube , e podeN«m. 51;
experimentar os bens defia vida , e com effeito fez de
todos elles a mais univerfal , e exada experiência,
foy Salamao. E que juizo fez Saíamaô com toda a
fua fabedoria , é depois de todas as fuás experiências
entre a morte, e ávida ? Ellemefmo o declarou :
Laudavimagis nwrtuos , quam viventes. Como íeEcci.4. t.
diíTera o mais fabio de todos os homens : Se com to-
da a minha eloquência houvera de orar pelos mortos,
e pelos vivos , aos mortos havia de dar os parabéns ,
e fazer hum largo panegyrico de fuás felicidades ; e
aos
2 6 Vieira
iado
aos vivos havia de d;ir os pezames , e fazer huma ora-
çnô verdadeirair.ente fúnebre, e triíle , em que*ia-
mentaíie Çm$ miíerias, e defgraças.
Ninu 51. -f^^ (^^ioniGhriíloaLazaro, quandoohadere-
riiícírar, nao ochorandoinorto; porque eílando já
Jivre dos trabalhos, das mifírias , e dos perigos da
\'ilU por meyo da morte, agora por mevo da^refur-
reiçaò o tornava outra vez a metemos íiíefmos tra-
balhos , nas meímas miíerias , e nos mefmos perigos.
A todos eiieve bem a reílirreiçaò de Lazaro ^ e iò ao
mefmo Lazaro eíleve mal ; porque a reíurreiçao o ti-
rou do deícanfo pira o trabalho, do erquecimento
para a memoria , da quietação para os cuidados, da
paz para a guerra , do porto para a tempellade , do
íligrado da inveja para a campanha do ódio, da ciau-
fura dofilencio para a íoitura dasiinguas, do cita-
do da inviíibilidade para ode ver, e íerviíio, de en-
tre os oíTos dos pays , e avós para entre os dentes
dos — •' - - ■ ' -^ '
em u los
e inimigos ,
SI
^ , em íim da liberdade , em
que o tinha poílo a morte , para o cativeiro, e cati-
veiros da vida.
Num. 53. 5'7o Períuadidos os homens á verdade defte de-
fengano,naô he muito que a morte, Jhecomeçaííê
a parecer menos feya , que a vida , antes que a vida
Jhe parece/Te feya, e a morte formofa. Os PaíTianos,
e outras naçoens, que barbaramente fechamaÕ bar-
baras . choravaõ , e pranteavaõ os nafcimentos dos íi-
ihos, ecelebravaó com feílns as fuás mortes; por.
que cntendiao, que nafcendo entravaô aos trabalhos,
e morrendo paíHwaô ao deícanfo. E certamente '
que as lagrimas dos nafcimentos os mefmos nafci-
dos lem mais eníino , que o da natureza , as approvaõ,
c ajudaõ com as fuás , c as íeílas, com que íe ceJebra-
vao
Difcurfo LVI.
^
^á^
7
vao as mortes , também os mortos peia experienda
do íeu deícanfo , íe podeliem faihir, as louvarioo.
Por iííb Samuel obrigado a falias com Saui depois de
morto , e íepultado , o que lhe diíle foy : Qjiare ht- ; R^g-i?^
quietafti me ? Porque me inquietaíle ? Muitos Filo- '^'
fofos, e particularmente os Eftoicos, cuja feita pe-
la preferencia da virtude fe avizinhava m.ais ao lu-
me da razaó , nao íódavao licença a íeus profeíTores,
para que antepuzelfem a morte á vida , mas aos que
em caíbs de honra tomavao por fuás maós a mefma
morte, ( a que chamavaô porta da liberdade) os in-
tr.oduziao por ella á immortalidade da gloria. Aífim
o fezaquelle homem , rnayor que todos os Romanos,
Cataõ , cujo juizo , e authoridade na opinião da
mefma Roma fe punha em balança com a dos deo-
fes,como foberbiílimamente cantou delle Lucano
na demanda imperial de Cefar com Pompeo :
Magno fejiidice qui [que tuetur y
Vicirix caufa diis placuit^ pars viâía Catoni.
571 E fe alguém me replicar , que eítes homens mu^. j^;
eraõ gentios, eu lhe perguntarei primeiramente, íe .
era gentio Samfaõ , ou Saul , ou Achitofel : e que M-
zeraô em femeíhantes cafos ? Samfaô nao duvidou
matarfe a íi mefmo por fe vingar, como elle diíFe, dos
Filiíleos pela injuria, que lhe tinhaó feito em lhe
arrancar os olhos. Saul por naô vir ás maôs de feus
inimigos, vencido em huma batalha , mandou aofeu
pagem da lança , que o mataífe , e porque nao foy
obedecido , elle pondo a ponta da efpada no peito ,
com todo o pezo do corpo íe atraveflou nella. Achi-
tofel, queera o Cataõ dosHebreos, e cujos coníe-
Ihos por teílimunho da Efcritura fagrada eraó como
os oráculos do mefmo Deos, porque Abfalao, cujas
partes
Num, 5é.
Num. 57,
V ' '
2 8 Vieira ahbreviaâo
partes feguira , os nao quiz tomar, tomou elle pof
confelho anticipar por íuas próprias mãos a morte ,
prevendo como fabio , que naõ podia deixar de íer
vencedor David , a quem a tinha bem merecido.
572 ^ Mas inventou o amor da vida huma dif-
tinçao hmdada no que ella mais aborrece , que faõ as
miíerias, e no que mais eílniia, que ÍI16 asfeJicida-
cies. Fazendo pois huma grande diírerença entre os
miferaveis , e os feiices , dizem os defeníores da vi-
da , que para os miíeraveis he mayor bem a morte;
mos para os feiices naô ; porque affim como a morte,
e a íepuitura para os contentes da vida he o feu ma-
yor temor , aííim para os defcontentes delia , e mife-
raveis he o mayor defejo. Por iílo aquelle Filofofo,
que refere Laercio,chamadoSecundo,perguntado pe-
lo Jtnperador ildriano , o que era a morte , refpon-
deo , que era o medo dos ricos , e o defejo dos po^
_ .., ^-res : Pavor divittmi defiderium pauperum. Me-
Herc.Fu- Jhor ainda , e mais nervoíamente o diíFe Séneca o
fen. Trágico por boca deLicho. Era Licho hum famo-
riíTimo tyranno, o qual na aufencia de Hercules ma-
tou a Creonte Rey legitimo de Thebas , e fe ihe apo-
derou do Reyno. Efte pois, como tao grande mcílre
da tyrannia, dizia, que quem matava a todos, nao
íabia íer tyranno : Ql^i morte cunãos hiere/uppli-
ciíimjubet, nejcit tyrmmus ejje. Pois que havia de
fazer hum tyranno para íer verdadeiramente tyran-:
no , e cruel ? Diz , que havia de dar a morre a huns ,
e a vida a outros conforme a fortuna de cada hum :
aos feiices a morte , aos miíeraveis a vida : Miferurn
'vita.perirefelicemjnhe: Ao feiice mandai, que mor-
ra , ao miíeravel, que viva; porque tanta pena he
condemnar o feiice á morte, como o miíeravel á
^^^a- . 573 Para
Séneca in
Difcurfo LVl.
<;'73 Para eu refutar os defenfores tia vida dos fe- Num. j?.
liccs naÕ quero outro argumento , fenaó o íeu. Con-
cedem que a morte he mayor bem , que a vida dos
miíeraveis : logo também he mayor bem , que a vida
dos que elles chamaô felices. E fe naõ os mefmos fe-
lices odigaô. Pergunto. Fia, ou houve, ou pode ha-
ver nelle mundo vida alguma taõ mimoía da fortu-
na , e taó felice , que careça totalmente de miferias ?
Ninguém fe atreverá a dizer , nem imaginar tal cou-
fa : logo fe naó ha , nem pode haver vida , que care-
ça de miferias , o que fe tem dito da vida dos mifera-
veis, íe deve entender de todas, e de todos.
574 Os que vulgarmente fereputao, e chamao
felices, tanto leenganaô coma fua felicidade, como
com a fua vida ; por iílbamaóa vida , e temem a mor-
te. Mas efte engano lhe defcobriremos agora , para
que conheçao/que em todo oeílado, e em toda. a
fortuna a morte he o mayor bem da vida.
^y^ Todos os bens, de que he capaz o homem , Num. 6o.
em quanto vive neíle mundo j ou faô bens da natute-
za , ou bens da fortuna , ou bens da graça ; mas ne-
nhum delles he tao folido , inteiro , e puro bem , que
o gofe fem tributo de miferias a vida , nem a pofla li-
vrar deite tributo , fenaó a morte. Entre os bens da
natureza o mais exceilente, o mais útil, e ornais
neceílario he aquelle, fem o qual nenhum outro
bem fe pode gofar, a faude. E íó quem comprehen-
der o numero fem numero de enfermidades, e dores,
aqueeftáfujeita , eexpoíla a faude, ou geradas den-
tro do meímo homem, ou nafcidas, e occaíionadas
de fora , poderá conhecer exaòiamente , quaô carre-
gado de durifíír.ias peníoens , e quaô cheyo de mife-
rias oudeo, ouempreílou a mefma aatureza ainda
aos
Hcrod. hl
z.
riutarc. in
Conf. ad
Apol.
Para. i.
col, 1047.
Is"'!!;,
O V leira abbrevu
aos mais faos , e robuílos efte caiamitofo bem. Pois
que reinedio ?
_ Sy(i Os Egypcios, entre os quaes nafceo a Medi-
'cina , pára cada enfermidade, como refere Heródo-
to , tínnao hum Medico particular, mas nem por iílb
íaravaô todos , nem de cod.is. EíPvey í^^xchias man-
dou queimar os livros de Sulamaó/ porque o povo
recorrendo ás virtudes das hervas em fuás enfermi-
dades , deix.iva de acudir a Deos , que he a verdadei-
ra raiz da faude. Aííim o refere Euíebio Cefarleníe.
Mas em quanto durarão os mefmos livros , nem aos
enfermos particulares, nem ao meímo Salamaó apro-
veitou aquelfa grande ciência Medica : até quan-
do ? Até que as próprias doenças os fujeitarao ao
Medico uaiverfai , que fem aforifmos , nem receitas
cura em hum momejito a todas , que he a morte : O
mors ^ venl nojlris certus Meãictis malis \ O' mor-
te , vinde , que fó vós fois o verdadeiro , e certo Me-
dico para todos os nolTos males \ Fie exclamação pro-
verbial dos Gregos referida por Plutarcho. Morref-
tes, acabaraõfe as enfermidades , acabaraofe as do-
res, acabaraõíe todas as molcílias, eafrliçoens, que
maj^tyrizao hum corpo humano , e até o temor da
meima morte fe acabou ; porque os mortos já naó
podem morrer.
S77 Tudo acaba a morte , e tudo fe acaba com a
morte, até a mefma morte. Qtiem morreo, jdnaõ
pode morrer. Só os mortos tem efte privilegio con-
tra ajuriídiçaô, e império univerfal da morte, Sa6
Aíjeitos á morte os Principes , os Reys , os Monar-
cas , fó os mortos depois que huma vez lhe pairarão
tributo, Hcarao ifentos de íua jurifdiçao. Por iíío
Tertuiliano chamou judiciofamcnte d fepultura Mor--.
tis
S '
Difcurfo lyi.'
tis afylum: AfyíOj e fagrado dn morte. Contra a alça-
.da da morte , nem o Yaticano he fagrado , mas a le-
pultura rim;porque os mortos já nao podem morrer.
578 Vede a grande difFerença dos mortos aos
vivos. Os vivos fobre a terra temem a morte, osParr. <r.
mortos, debaixo da terra eíperaõ a refurreiçaÔ : e^^'"-^^"
quanto vay do eíperar ao temer, e das ifençoens da
immortalidade ás íujeiçoens de mortal, tanto melhor
he o eftado dos mortos,que o dos vivos. Os que efca-
paraõ vivos do incêndio de Troya chamavaõ bem-
aventurados aos que morrerão peleijandopor elia:
O ter que , quaterque beati ,
Queis ante ora patrum magiue fub manibus urbis
Çojitigit oppetere !
Sem conhecer a bemaventurança , nem entender
o que diziaô levantarão hum admirável penfamen-
to; porque a felicidade, de que goíaó os mortos
por benefício da morte , íe naô he como toda a bem-
aventurança do Ceo , he como ametade delia ; por-
que já para elles navó ha lagrimas , nem gemidos, nem
dores, nem enfermidades, nem a mefma morte. As
dores, e as enfermidades defta vida tem dous remé-
dios ,' ou alivios : hum natural , que fao as lagrimas ,
e os gemidos , e outro violento , e artificial , qúe fao
os medicamentos. E a morte naô fó nos livra das mi-
ferias da vida , fenaõ também dos remédios delia. Já
diífemos que Cataô fe matou a íi mefmo , mas naÕ feSenec:
inatou de huma vez , íenao de duas , com modo , e
circunftancias notáveis, Eílando fao, e valente, me-
teo hum punhal pelos peitos : acudirão logo, e curá-
raolhe a ferida ; mas elle depois de curado , metendo
as mãos na mefma ferida , a fez muito mayor, e fe
acabou de matar. De forte que começou a fe matar
faõj
3 2 ■ Vieira abhreviado
-faÔ , e acabou de fe matar curado. Saô para fe livrar
da vida, curado para fe livrar da vida , e mais dos
remédios. Por iílb ò^úXq Santo Agoílinho , que quan-
tas faÕ as medicinas , tantos faõ os tormentos. E taes
faõ as dobradas mi ferias, a que eftá ibjeita amayor
felicidade da natureza , que he a faude , bailando pa-
ra a tirar padecidas, e nao bailando para a coníervar
remediadas.
Num, G-L. 579 Pnílemos aos bens da fortuna : e fubindo ao
mais alto ponto, aonde ella pôde chegar, preguemos
hum cravo na íua roda , para que concedendo as fuás
4^ felicidades a conílancia, que naô tem , vejamos fe fe
podem jadiar , ou preíumir de que carecem de mife-
rias. Os cetros, e as coroas faõ as que poílas no cu-
me da mageílade , levaÕ a poz fí com o império os
applaufos , e adoraçoens do mundo , e ao mefmo
mundo , o qual cego com os reflexos daquelíeefpíen-
dor os acclama felices, e feliciílimos , nao pene-
trando o interior , e íolido da felicidade , mas olhan-
do fó , e parando no íobredourado das apparencias :
Senecepift. Onuíium iftorum , qitos incedere altos vides , bra-
^ ^ ^ • Beata felicitas ^// , d i ííe fa b i a , e e I e ga n te m e n te S e-
neca, Aílim como os tcclos fobredourados dos
templos, e dos palácios o que moílrao por fora he
ouro , e o que eícondem , e encobrem por dentro ,
faó madeiros comidos do caruncho , pregos ferru-
gentos, teas de aranha , e outras fevandijas, aííim
debaixo da pompa , e apparatos, com que coíluma-
mos admirar os que vemos levantados ao zenith da
fortuna, fe viramos juntamente os cuidados , os
temores , os defgoítos , e triílezas , que os comem ,
e roem por dentro , antes haviamos de ter compaixão
das fuás vcrdadenas miíerias, que inveja á falfa re-
preíen-
Difcurfo LVl.
prefentaçaô , e engano do que nelles íe cfearoa felicív
dade. Quem duvidou já mais de reputar a Carlos V.
por feliciílimo com tantas viílorias, tanta fíífiiíi , tan-
tos augmentos da Monarchia ? E com tudo no dia,,
eaíque renunciou o governo , confeffou , que em to-
do o tempo delle nem hum íó quarto de hora tivera
livre de aFíiiçoens , e moleftias : Se totó Regni fem--
pore ncc ad unum quhkm hora quadrantem puram
habuijje , meramqtie Idetitiam , fedmultis ilíam cu^
ris , angoribus ^doloribtifque permijlam.
580 ' O diadema antigo, iníignia dos Reys.e Im-
peradores,era liumafaxa atada na cabeça. E dizia Se-
Jeuco Rey da Afia, que fe os hsomens íbubeílenj,
quaó pezada era aquella tira de pano , e qúao chea
de efpinhas por dentro , nenhum haveria , que a le--
vantaíle do chaó para a pôr na cabeça. ElRey Anti-"i
gono vendo que feu filho pelo fer fe eníoberbe-
cia , com que lhe abateria os fumos ? An ignoras^ o*
fili., Regnum nojlriim non effealiud^ nifijplendídaiàli
fervitutem ? Naô fabes , filho, ( lhe diíTe > que onof-«
fo Reyíio, eo reynar nao he outra coufa, que.hunji
cativeiro honrado ? Os Reys faô fenhores de todos ,^ ^j^ .,^1^.^
mas faó também cativos de todos. A todos mandaó
como Reys , e de todos fao julgados como reos.
581 ComooReyheaalmadoReyno, temobri^
gaçaó de viverem todos os feus vaíTallos , e padecer
nelles, e com elles quanto elles padecerem. Senaó
padece aíTim , naõ he Rey ; e fe padece , que mayorf.»
martyrio? Hafe de matar, e morrer, para que elles
vivaó : hafe de canfar, para que elles defcanfem, e ha
de velar, para que elles durmaõ , fendo mais quieto ,
e focegado o iono do cavador fobre huma cortiça ,
que o do Rey debaixo de ceos de brocado. AUi def-
Tom. II. C veia-
j4 Vieira abbreviadQ
velado marcha pelas campanhas com íeus exércitos^
alli navega os mares com as íuas armadas , e a qual-,
quer bandeira, que tremólacom o vento, Ihe.paápita
o coração na contingência dos fucceíFos. Taes fao a^s.
miferaveis felicidades, ou as adoradas miferias dos.
que poftos na região dos rayos , dos trovoens, c das
tempeítades a dignidade com razaõ, e aliíonja feni
ella chama SereniíTimos. ,
lííum. 61. S^ ^ Qy ^ íeri a , fe e u a qu i aj u n ta íFe a gora os^ èa-
taítrofes , e fins trágicos dos Xerxes , dos Creííos,
dos Darios, e infinitos outros ? Mas o meu intento
fó he deícobrir as miferias dos felices. A eftepropo-j
fito há muito que tenho notado huma couía paraH
mim admirável, e he que fendo Valério Máximo
taõ univerfal nas hiftorias, e noticias do mundo, ti
trazendo tantos exemplos aflim doraefticos , come
eílrangeiros em todas as matérias, quando veyo a
tratar da felicidade , fó achou entre os Romanos a
Metello homem particular, centre os Reys de todasi'.^
as naçoens a Gyges Reyde Lidia. Eílahe a mefma\
falva ,-com que elle começa dizendo : Vohibiiis for-
Vaier. Ma ^^ipf ci^^f^plur^ exemplã retulimus , conjianter pro-
lim.iib. -j.pitiíe admodumpauc a narrar ipQffíint. Inchado pois.
eap. I. Gyges com a fingular , e continua proíperidade de:>
íua fortuna ,quizfe canonizar pelo mais felice ho-
mem do mundo , e a efte fim confultou peíFoalmente^^
o Oráculo de Apollo, para que arepoíla , dequenaõ
duvidava, fofie huma prova authentica,e divina de
, fua felicidade: enganoufe porém , ou acabou de íe
enganar o já enganado Rey ; porque refpondeo O'
Oráculo , que Aglao Sofidio era mais felice , que el-
le. \L quem era Aglao Sofidio ?, Era hum lavradorzi-
nho velho ,. o mais pobre de toda a Arcádia , ao qual
hum
v; Difciirfo LVI. ^'f
huiTí pequeno enxido , que tinha junto á íua clí o lí pa-
na , cultivado por fuás próprias mãos , íem inveja
fua > ou alheya , lhe dava o que era baítante para
fuftentara vida.
^"5^3 Pois eíle Aglao aílim pobre era mais felice
4\uQ Gyges com todas as fuás fortunas ? Sim; porque
elfas mefmas fortunas, ainda que grandes, e conti-
nuas , naõ o livravaõ do temor da fuu incorilnncia , o
qual fó baftava ao fazer infelice. Debaixo defte te-
mor fe comprehendiaó os cuidados, as fufpeitas, as
duvidas , as imaginaçoens , os indicies falfos , ou ver-
dadeiros da ruina , que íe lhe maquinaíle, ou podia
maquinar, e todos os infortúnios poííiveis no mar,
e na terra , na guerra , e na paz, na inveja dos emu-
los, no ódio , e potencia dos inimigos , no defcoa-
tentamento, e rebelião dos vaífallos: em fim as vio-
lências fecretas, os roubos, osíubornos, as traições,
os venenos , com que nem o íuílento neceíFario á vi-
da, nem a mefma refpiraçaô he fégura. Para que fe
Veja fe era felice quem fòdo efte tumulto de inquie-
taçoens , que fó conhecia o Oráculo , trazia dentro
no peito. Ecomo os bens da fortuna , ainda os mayd-
res , quaes fao os dos Reys , e ainda nos íingular , ç
unicamente felices eftaô fujeitos a tantas miferias
ou padecidas em fí mefmas , ou no temor ,e receyo,
que naó he tormento menor , nenhum outro remédio
tem para efcapar, e fe livrar delias a vida , íenao o
da morte. Taõ certo hc ainda no mayor auge dos
bens da fortuna , qual he a dos Reys , Ter o mayor
bem da vida a morte.
584 E para que em huma íò demonftraçaô veja-
mos inteira, enaõ por partes, efta mefma prerogati-
"va da morte , naó inculcada de novo ; mas crida , ap-
C 2 prova-
í
Num. 7°-
Plutarc.
:3^ Vieira abbreviàdo
provada , e impreíía nojuizodos homens , ouçamos
huma notável antiguidade.
^^^ Houve entre, os iabios da gentilidade hum
homem chamado Sileno, femelhantena opinião aos
noílos Profetas, cujas repoftaSj comoinfpiradas por
inftinto mais que natural, eraó recebidas, e cridas
como oráculos. A efte Sileno poi^ coníultou E!Rey
Midas fobre qual foíTe o mavor bem deíla vida , e de-
pois de muitos rogos , e inftancias a repoíta , que
delie alcançou , foy efta : Non nafciomnium e/t opti-
ciceroTpi.1- wum , njortíium autem e[fe longe ejl melius , quam
to , Amiot. vívere: O melhor de tudo he naó nafcer ; mas no ca-
&^in. Çq ^q haver nafcido , muito melhor he ao homem o
. morrer , que o viver. AíFim o dilfe Sileno , e naô íó
do vulgo roy recebido , como provérbio etle dito ,
mas o approvaraô , e celebrarão fempre os dous ma-
yores lumes da Filofofía racional Platão, e Ariftote-
les. Pindaro Príncipe dos Poetas Lyricos da Grécia
parece, que duvidofo ainda deíla verdade quiz fa-
zer mayor exame delia , e como pelo Oráculo de Del-
fos lhe folTe refpondido o mefmo ; que bria ? Fez o
que devera fazer com femelhante defengano todo o
Chriílaô. Deixou as Mufas , e em vez de compor
verfos, tratou decompor a vida : His auditis y ad
mortem fe co7nparaJ]e^ ^paulopoji vivendi finem fe-
ci/fe^ diz Plutarcho.
Niun 71. 5'36 Naõ parou aqui a providencia divina, mas
para mayor prova deíle defengano obrigou ao pay da
mentira , que fallava , cobrava nos idolos , a que mui-
to afeu pezar o coníirmaíle com dous notáveis pro-
digios. Agria era facerdotizada deofaJuno;e como
na mefma hora , em que havia de fazer ofacrificio,
tardaíTem os cavallos , que a coílumavaò levar em
carro-
> i
Difcurfo LVI. 3 7
carroça , dous tiihos, que tinha, chamados Bilon , e
Cleobo, Te meterão no lugor dos cavalios , e com
tanta forca , e prcíTa tiráraõ a carroça , que nem hum
momentJ de tempo faltou a may á pontualidade do
facriíicio Fov tao admirado , e eftimado elte âtto
verdadeiramente heróico , de piedade para com a
mãy , ede religião para com a deoía , que deo confi-
ança a A^ria para pedir a Juno em premio delia , que
défle áqueiles feus dous filhos nao menos , que a me-
lhor coufa, que os deofes nefta vida podiacl dar aos
homens. Concedeo a deofa , como também íervida,
o que a may pedia ; e qual feria o dcípacho da peti-
ção ? No mefmo ponto cahiraó mortos diante de feus
olhos os mefmos filhos , confirmando a falfa deida-
de com verdadeiro documento , que entre os bens ,
e felicidades naturaes, que ao homem podem fuc- '
ceder nefta vida , o mayor, e mais fegoro he a mor-
te. A efte famonííimo par Bithon , e Cleobo ajtsnta
Platão outro nao menos famofo , Agamedes , e Tro-
fonio. Edificarão eftes dous hum templo a Apoilo
Pithio, e no dia da dedicação orarão a Deosdefta
maneira : Que fe aquelia obra lhe agradava, o feu in-
tento era pedirem lhes concedelíe o que m.elhor po-
dia eftar ahum homem nefta vida; e porque ellesnaô
fabiaó , que coufa foíTe efta melhor , elle , de quem
efperavaô a mercê, o refolveíTe. Reípondeo Apoj-
lo, que dalli a íete dias lhes concederia o que pediaój
eoque luccedeoao fetimodia , foy , que deitandofe
a dormir Agamedes, eTrofonio, nunca mais acorda-
rão : Cimque ohdormijjent , nunquam deuide furre-
xi/fe. E efta verdade então admirada , e antes , e de-
pois taó mal entendida quiz a mefma providencia , Num: 71:
para que acabaiíemos de entender , que ficaíFe efta-
Tom. ÍI. G 3 bek-
Num. 7 3 .
1 m
Kum. 7j.
5 5 V leira
belecida , e perpetuada , como em quatro edatuds ,
nao levantadas, mas cabidas , em Bithon , e Cleobo
mortos, e em Agamedes , e Trofonio dormindo.
587 A' viíla pois deftas quatro eflatuas, as quaes
em quanto vivas , e em pé eraó o pó , que íomos , e
em quanto cabidas , e jazendo em terra faó o pó , que
havemos de fer , que fará todo o entendimento ra-
cional, echriftaõ? Se o pó, que havemos de fer, he
o mayor bem do pó, que fomos, e f e o mayor bem da
vida he a morte j que bavemos, ou que devemos fa-
zer os vivos ? Se o melhor bem da vida he a morte,
psílemos como mortos á melhor vida. E fe dos mor-
tos dizemos também, que os levou Deos para fi,
deixemonos levar de Deos, e vivamos como mortos.
588 O mefmo corpo noíTo , que em quanto viva
eílá fobre a terra, depois da morte eílá debaixo da
terra. E fe o corpo , que eftá fobre a terra, fe compa-
rar comíigo meímo, quando eíliver debaixo da ter-
ra, nenhuma confideraçaó pode haver mais eííicaz
para o períuadir a que viva como morto. Dizeme,
corpo meu , depois que .eftiveres debaixo da terra ,
q has de fazer } Has de continuar nos mefmos vicios,
em que todo te empregavas, quando eílavas fobre a
terra ? Hasjie continuar nos mefmos vicios , que pô-
de fer foraô os que te matarão, e te apreíTaraô a fe-
pultura } Agora o nao podes negnr com a voz , e de-
pois confeíEirds, quenaó, com o íilencio. Todo o
morto he como aquelle, de quem diííe Tácito : Ma-
gis fine viíiis , qnam cum virtuiihtis : O morto nao
tem virtudes, mas também nao tem vicios. Nao tem
odio^, naó tem inveja , nao tem cubica , naó tem am-
bição : nao fe queixa, nao murmura, naõ fe vinga ,
nao mente, nao adula, nao rouba, naó adultera.
Pois
i t
*
Dijcíirfo LVI. )9
Pois fe de tudo iílo has de carecer debaixo da terra,
porqne te naô abílcns diílo melmo em quanto ellás
Ibbre ella ?
589 O morto , quando o levaó á fepultura , pelas Num. 7^»
mefmas ruas , por onde palíeava arrogante , taó con-
tente vai envolto em huma mortalha velha , e rota ,
como fe fora veftido de purpura , ou brocado. Che- .
gado á fepultura, tao íatisfeito eílá com fete pés de
terra , como com os maufoleos de Caria , ou as pyra-
mides do Egvpto ; e fe até eíla pouca terra, que o
cobre, lhe faltaíie, diria, fepodeíFefallar, quea quem
naô cobre a terra , cobre o Ceo : C(s/o tegitiir qui
non habet urnam. Fois fe entaó tao pouca differença
has de fazer da riqueza, ou pobreza das roupas; porj
que agora tedefvanecem tanto, e gaífas o que naõ
tens na vaidade das galas ? Pois fe eníaó has de caber
em huma cova taó eílreita ; porque agora te naô me-
tes entre quatro paredes , e procuras a largueza da
morada tanto mayor, que a do morador , e invejas
a oftentaçaô, e magnificência dos palácios ?^
590 Ainda reíla por te dizer o que mais me ef-
candaliza. Se quando eftás debaixo da terra , todos
paíTlio por cim.a de ti, e te pizaô, e te naô alteras
por te ver debaixo dos pés de todos , agora que es o
mefmo , e naô outro , fó porque eftás com os pés fo-
bre menos terra da que entaò has de occupar,porque
te enfoberbeces , porque te iras , porque te inchas , e
enches de cólera , de raiva, de furor, e a qualquer
fombra , ou fufpeita de menos veneração , ou refpei-
to oqueres vingar naô menos que com o fangue, e
a morte ? Mashe porque a mefma morte te nao
amanfa , e emenda. Morreo o leaô , morreo o tigre,
morreo o bafilifco , e onde eftá a braveza do leaô , ^
C4 onde
4° Vieira ahbrcviado
onde eftá a fereza do tigre , onde eftá o veneno do
bafílifco ? Já o leaò naô he bravo , já o tigre naó he
feroz , já o baíilifco naõ he venenoíc) , já todos eííes
brutos, e monílros indómitos eílaÓ maníos ; porque
pf. 8i. 10, os amanfou ^ morte : Quoniam fiipervenit manjue-
tudo. Efeaílim emenda, e tanta mudança faz a mor-
te nas feras ; porque a nao fará nos homens ?
591 Perguntou hum Monge ao AbbadeMoyfés,
famofo Padre do ermo, como poderip hum homem,
adquirir a mortificação, que enfina S. Paulo, tal, que
eílandovivo, viveíle como morto. E refpondeo o
Abbade , que de nenhum outro modo , nem tempo ,
fenaó quando totalmente íe perfuadiííe, que havia
já hum íriennio , que eílava debaixo da terra : Niji
quis arbitratus fuerit fe habere jam triennium in
fepulchro , ad hunc fermonem pervenire non poteft,
E quem eílá certo , que o feu corpo ha de eílar debai-
xo da terra , naô três annos , nem três íeculos , fenaó
em quanto durar o mundo até o fim , como nao per-
fuadirá ao mefmo corpo , e o fujeitará a que viva
como morto eíTes quatro dias, e incertos , em que po-
de tardar a morte ? Se eíle corpo , que hoje he pó fo-
bre a terra , á manha ha de fer pó debaixo da terra ;
porque fe naõ accommodará , e concordará comfigo
mefmo a viver, e morrer de tal modo , que na vida
logre o mayor bem da morte, e na morte naô padeça
o mayor mal da vida ? v
DIS-
Dijcurfo LVII.
DISCURSO LVII.
Tirado do fermaÔ pregado nas exeqmas de D. Ma-
ria de At aide filha dos Condes de Jiougma Da-
ma de Falacio,
MORTE.
ro2 f^ Afos fuccedem no mundo , que parece fe Part. 4. ,
V^ deícuida Deos do governo delle , e íe^al-Num.4<;í,
guris faó a noíía admiração mayores motivos, faôos
da vida , e da morte Efta admiração introduzio no
juizQ dos homens o erro de fados , e de fortuna , que
fe bem entre nós perderão a divindade, ainda confer-
vaó os nomes. Se repararmos bem com attençaó
quem vive neíle mundo, e quem morre, he neceíTaria
muita fé para crer, que ha providencia : Domine non
ejt tibi cura ? Todo o motivo deíla queixa de Mar-
tha foy ver, que a deixara Maria, equeeílavâ com
Deos. Talhe o motivo, que temos prefente , mas
com mayores circunftancias de dor , ( naó fel fe diga
de femrazaõ , ) e aflim havemos de ouvir hoje mais
Queixas
593 Em fim Maria eílá com Deos: Sedensfecusy<'i^>\H\
pedes Domini : defatouíe dos cuidados , e das obri-
gaçoensdo mundo, rompeo os laços da humanida-
de', deixou em foiedade o fangue, o amor, e a mef-
ma vida : Reliquit mefclam. Contra eíle naó efpe-
rado apartamento temos três queixofas a modo de
Martha , e naó queixoías de Maria , porque o execu-
ta, fenaõ de Deos porque o permitte: Domine non
eji tibi cura ? E que queixofas faó eítas ? A primei-
ra
42 V leira ãí
Z\cl 'p'f° ' ' ^f^r^J ' gentileza , a terJJÍra a dif-
1^'> ,T="'<' '"'i'^ ( como Marcha , O^^aylem ,
f;,„ '•,?'' ■'^"','^"^'홫!^^°"'e "^ q"^ix^! Corpo
Í Por IZt • '°^'' 2 ^'^'"." do comporto huma-
no; nrSÀ ," "'"'" '5"'^'^^^'^ => '^Í^Jí^ cortnda:
da ■ n.rn ? í' '^""^^^'"'^ '^ "^'^"'"^'''^ emmuded-
Dfidrrf ? 'í^''"^" '^"eixafe a gentileza- ecli-
kncib "^^^ !^ '^^'^''^ ogo'P«, chora a d.ícriçaó oíi-
v^S,rl; ^S™^''''^'' «^'^'ipfe; porque lhe naõ
nêm f ? , ' ' '"°"^ ' ""'" •'* *''="í^^ o '"àis florente,
Nam.47o.,,„f,^í i'''''"'''''aT"^^ ^"^'^^'''^ « ''íade contra a
" ' '''/''"^'"«'^«damente le queixa! Oh morte
Cl iiel , que enganados vivem comtigo os que dizem
"'c^omovT' ^°'" ^"^^•^•' ^^™''^ -reditaramorTê
piza igualmente os palácios dos Rex-s, e as cabanas
Kegfm^M turres. Que os palácios dos Reys , poí
«ia s cercados que eftejaó de guardas, naô poffaô re-
l-l/.Ti^^^^fT'"' '^'^ """''^ ' ''^'" o experimentou
e.ta vida. Jufto era , que aquellas portas, que taÔ
cerradas coitumaõ eftar ás verdades , lhe deixe ao
menos a natureza aberto efte poftigo aos defenganos .
Mas nelta melma igualdade cõn^ette grandS def-
S^'' a "'°'í^ .^' 'g"^' ' P°^1"e ""õ faz exce-
pção de peíToas: he deíigual; porque nao Faz differen-
tu^llr, ' "em de merecimentos: matar a todos
lem perdoara ninguém igualdode he, mastirar avi-
nm 'c í^""' ^,'" '^"'^!' e '"'"^"'' taõ cedo, deixar os
o n,ll 7m '"^° '^'^ '"^'"'^°' ^ '^^'^'- °^ q^e eraô O
ornato delle , que defigualgade mayor? Todos fe
queixaõ
', í
mjcurfo LVIL
qiieixao da preíía , ci.m que corre a vida ; eu na5 me
queixo fenaó da deíigualdade , com que caminha a
morte.
595 Appareceo huma vez a morte ao Profeta Num. 471;
Habachuc , e vio,quehia andando no triunfo de
Chrifto: Ante faciem ejus ibh mors , Appareceo ou- Habac. 3.
tra vez a morte a S. João no Apocalypíe, e vio,que5-
vinha pizando fobre humcavaho: Et ecce equns ^ ^
• r I t r> •7/' A ApOC. O. 5,
i^ qut fedebat juper enm , nomm lUi mors. A p pa re-
ceo terceira vez a (norte ao Profeta Zacharias j e vio
huma fouce com azas : F/V/V, à" ecce falxvolans. Dezach. 5. i,
maneira que temos a morte a pé, morte a cavallo , e-
m.orte com azas. A vida fempre caminha ao meímo
palio , porque fegue o curfo do tempo ; a morte ne-
nhumia ordem guarda no caminhar , nem ainda no
ler. Humas vezes he huma anatomia deoíTos, que
anda . outras hum cavalleiro , que corre , outras hu-
ma fouce, que voa. Para eíles vem andando , para
aqueiies correndo, para os outros voando. Se a mor-
te ou para todos andara , ou para todos correra , ou
p;ira todos voara , era igual a m.orte. Mas andar para
huns, para outros correr , epnra mim voar 1 Oh mor-
te , quem te cortara as azas I Mas bem he , que bata
as az:is, para que nós abatamos as rodas.
596 Pintafe a morte com huma fouce fegndora
na mao direita , e hum relógio com azas na maó ef-
querda : íe algum dia , ou hora foy aíTim a morte ,
troquefe daqui por diante a pintura, quejánaôhe
aíBm : Ecce falxvolans. Tirou a morte as azas do re-
lógio da mao eíquerda,e paíTou-as á fouce da mao di-
reita ; porque he mais apreílada a fouce da morte em
cortar , que o relógio da vida em correr. Ainda quan-
do a morte naÕ voa , corre mais que a vida. Aqueile
cavallo
Iiiifl'!'
L >' .
1 :í;!::,1
44 Vieira ahbreviado
Cíivallo,emqiieS.Joaô vio a morte, diz o texto na
veríaÔ de Tertulliano, queera verde: Et equus vi-
rtdis. Q^iem vio já mais cavallo verde ? Mas era o
^ cavaíío da morte, Veílefe eíle animai indómito da
cor dos anno.':, que corta, arreafe das eíperanças, que
piza, pintafedasprimaverjs, queatropella. Todos
osannoseftaôíujeitos á morte, mas nenhuns mais,
que os que pareciao mais íeguros , os verdes.
Num. 47 j. S97 Moítrou Deos huma vifaõ ao Profeta Amos,
(que era homem do campo) e perguntoulhe , aue
via: Qtiíd vides tu Amos} Lleípondeo o Profeta :
Senhor: Uncinum pomorum :oquevejohehumavara
comprida, e farpada, com que os ruílicos alcançamos
a fruta , e a colhemos das arvores. Pois eíla vara , que
vês, diz Deos, he a morte. Todo eíle mappa do
mundo he hum pomar : as arvores, humas altas , ou-
tras baixas , faò as diverías geraçoens , e familias : os
frudlos, huns mais maduros, outros menos, faó os
homens : a vara, que alcança ainda os ramos mais le-
vantados, he a morte: colhe huns, é deixa outros. Ah
Senhor, que eíía he Vmorte como havia de fer, e
naõ como he. Qiiem entra a colher em hum pomar,
paíTa pelos pomos verdes, e colhe os maduros; mas
a morte naó faz aílim : vemos que deixa os maduros,
e colhe os verdes. E já fe colhera fó os frudos ver-
des, colhera frudlos , mas a queixa minha he . que
deixa de colher os frudlos, e colhe as flores: Flores
apparuenmt in terra noftra , tempus putationis ad-
venit : Appareceraõ as flores na nolfa terra , naõ lhe
aguardou mais tempo a morte: appareceraõ, e defap-
pr;recera6. A'ierta, flores, que a piimavera da vida
he o outono da morte. A fouce fegadora, que traz
na maõ, iníhumento he do Agoílo , e naÔ do Abril;
mas
i i
mfcurfo LVU' 45
mas armafe aflim com ardilofa impropriedade a mor-
te, ameaça as efpigas, para que le defacnutelem as
flores. Ha tal crueldade ! Ha tal engano ! Nao me
queixo do golpe , fenaõ do tenjpo : Llores apparui^-
r«« , tetnpusputationh. Qt,e haja tempojde flore,
cer , è tempo de cortar , he natureza ; mas que o terar
po de florecer , e o de cortar feja o mefmo ! Qu.^^a
fdade .nais florida feja a mais mortal.' ,Queavuk
mais digna de viver feja a mais lujeita ^ mo"e;^
que haja império íupenor , que domme efte ty anno
Que haja providencia no mundo , que o goven^l
Domine, non ell tibi curai . , ., .'VI,
rr A eftas queixas taôjuílificadas da idade feNu.. 474.
feguem as da gentileza , naÔ menos laílimofa , mas
mais para laftimar. Por úYo lá Jejemias no pranto de
Belém as lagrimas , que houverao de fer de Lia , trai-
ladou-as aos olhes de Rachel, naÔ porque houveflem
de íer mais íentidamente choradas, mas porque ha-
viaó de fer mais laílimofamente ouvidas. Queixale a
gentileza contra a moi te por conceder a taiitojuzi-
mento taó breves dias , a tanta [eprefentaçao tao
pouca theatro. E pois as queixas da boca de Rachel
faÔ melhor ouvidas , leja Rachel a primeira aliegona
deílas queixas. ^ /:„„«i
coo Muito tenho reparado em quão deligual-
mente íe houverao com Rachel quem lhe deo o fer,
e quem lho tirou , LabaÔ , e. a morte. Pedia Jacob a
LabaÓ o premio dos primeiros fete annos , que íervi-
ra , e deolhe LabaÔ a Lia em lugar de. Rachel , alie-
nando , que Lia era a filha primeira, e que havia de
preceden Teve paciência Jacob, fervio outros fete
annos , eem huma jornada , que depois fezdeBethel.
a Belém , morreo Rachel , e ficou lepultada no eamir
' nnO;
4^ Vieira ahhreviado
nhoi, e Lia depois deíle fucceílb viveo ainda muitos
annos. Nao fey íe notais adeíigualdade. De manei-
ra, que Labao, quando houve de dar cafa ahumadas
hlhas, reparou na p.rerogativa dos annos, e prece-
deo Lia : e a morte quando houve de dar lepuitura a
fiuma das irmans , naó repirou nos privilégios da
Idade, e precedeo Rachel. Pois íe íe ha de dar pri-
meiroxafa a Lia , que a Rachel , porque tem ninais
annos Lia ; porque íe ha de dar primeiro fepultura a
nachel , que a Lia , fe tem menos annos Rachel ? He
poihvel , que para a cafa ha de íçr Rachel a ultima ,
e para a íepultura a primeira ? Sim , que iíTo he feí
■ ' ' Rachel. Nas leys de LabaÓ tem precedência para a
caía a mayor idade , nas leys da morte tem preceden-
cia para a fepultura a mayor belieza - ^
'Nana. 475. 6oo Defde a terra até O Ceo eílá efebelecida ef-
ta ley. Na terra a rofa Rainha das flores he efímera
de hmndia : toda aquella pompa branca , toda aquel-
ía ^ambição encarnada, de que fe vefte , pela manha
lao mantilhas, ao meyo dia galas , á noite mortalhas.
JNo Ceo a Lua Rainha das eftrellas quem a viocbcya
retrato da formofura , que logo a nao yiiTQ minguan-
te depois da mudança ? (fiando refplandece com
toda a roda, entaÔ fe eclipfa: quando faz oppoll-
çoens ao Soly entaÔ a encobre aterra. Ajuntefe a
tormoí^ura da terra com a formofura do Ceo , e na
uniao de ambas veremos o mefmo exemplo.
6õi. Transfiguroufe Chnílo no Thabor, appare-
cerao Jogo no m^fmo monte com o Senhor Moy fés ,
iuc.;,. 3i.e Lliaá': Et loquehantur de excefU, qntm completu-
ruseralin Jerufalem. Ha tal pratica em talocca-
H? Huma vez, que a formofura de Chriílo quiz
t^t^i oítentaçaó de luas gaJas, que logo os Profetí»s
' lhe
Difcurfo LVIL 47
lhe liajaó de coitar os lutos ? Sim , e muito a feu tem-
po ; porque a meíma forniofura, que viaó, era profe-
cia da morte , em que fallavaõ : Loquebantur de ex-
cejjw. de hum exceílb arguiaô o outro ; que quem
excedia tanto na formofura , naô podia durar muito
na vida. Qiianto fe diíle no Thabor , foraõ pregoens
defte defengano. No Thabor fallarao os dous ProFe^ .
tas , e Fallou S. Pedra. S. Pedro faliou como nefcio 5
porque cuidou,, que formofura taô grande podia per-
manecer muito neíla vida : Bonum eji nos hu ejje^
os Profetas fallaraõ como diícretos; porque tanto que
virão o extremo da formofura , logo deraô por infafe
livel o exceíTo da morte : Loquebantur de exceffu^j
Antes, fe bem repararmos, a mefma formofura de
Chrifto no Thabor foy a mayor confirmação de íua
pouca dura. Dizem os Euangeliílas : Refplenduit ,^3.^^.
jactes ejus ftcut Sol , veftimenta atitem e jus f a 61 a ^,..
funt alhaficut nix, Qiie o rofto de Ghriílo ficou ref-
plandecente como o Sol , e fuás veíliduras brancas'
como a neve: formofura de neve , e Sol he grande;
mas de dias breves. Quando o Sol fe vê junto com a-
neve, faô breves os dias do Sol, quando a neve fe vê
junta com o Sol , faô poucas as horas da neve. Bem
fevio: tanta neve, e tanto Sol que duração tiveraô?'
Sabefe que foy de hum fò dia , nao fe íabe de quan-^
tas horas. Oh neve derretida a rayos do Sol! Oh Sol Num. 47^.'
lepultado em occafos de neve ! que larga matéria de
affinar a queixa offereceis nefte paílo á minha orâ^^
ça6; mas obrigame a mim adifcriçaô, aque remetta-
aofiiencio o enternecido deitas queixas, para què
ouçamos o poderofo das fuás. "^^
602 Queixaíe finalmente a difcriçaõ , ( que fem-Num.477;
pre a difcriçaõ he a ultima em queixarfe) e tomara
eu ,
17.
4 S Vieira ahhreviado
eu , que ella tivera melhor interprete para declarar,
com quanto fundamento fe queixa. O mayor inimi-^
go da vida quem vos parece que fera? Omayorini^
migo da vida he o entendimento. Taõ madraíta fe
houve com o homem a natureza , que produzindo
tantos antidotos ms entranhas dos animaes , dentro
na alma do homem lhe creou o mayor veneno. Se
buícarmos a primeira origem da morte , na arvore da
ciência poz Deos o fruto da mortalidade : por onde
os homens quizerao fer mais entendidos , por alli co-
meçarão a fer mortacs. Até no meímo Deos teve lu-
gar efta terxivel confequencia. Houve de encarnar ,
e morrer hunia das peíloas divinas, e porque mais o
Filho, que alguma das outras } A verdadeira razaó
íabe-a Deos. Éu fó fey , que á peíloa do Filho fe atri-
bue o entendimento , e que á petlba do Filho fe unio
a mortalidade. Como o Verbo ab aterno procedeo
por entendimento, ab ater no propendeo para mor-
tal. Se ifto foy em Deos , que fera nos homens ? To-
dos os homens lao mortaes , mas o mais entendido
mais mortal que todos.
6o j Naqueíla parábola das dez virgens as vodas
íigniíicavaõ a morte , e he muito de notar, que fendo
cinco as entendidas , e cinco as nefcias , todas as cin-
co entendidas morrerão primeiro. Entend,er muito,
e viver muito ou no entendimento he engano, ou
na vida he milagre. Arazaódifto a meu juizodeve
fer ; porque cada hum fente como entende. Quem
entende muito, nao pode fentir pouco, equem fen-
te muito , naopòde viver muito. O homem he vi-
vente, fenfitivo, e racional : o racional apura o fen-
íitivo, e o fenfitivo apurado deftroe o vivente.
Num. 478. 604 Mas como os homens igualmente amaô a
vida,
Difcurfo LVII' 49
vida , e fe prezaõ do entendimento , daqui vem , que
fe perfiiadem difficultoíumente a eíta triíle Filofofia.
Dizia David a Deos : Da inibi intelkcíiim^ (i^ vi- pí. ns.
vam: Senhor, daime entendimento , e vivirei. Ah J-^^-
David , e como naõ fabeis o que pedis ! Sc quereis
morrer, pedi embora a Deos, que vos dôenceísdi-
mento ; mas fe quereis viver, pedilhe , que vos tire o
entendimento , que tendes.
605 Naô havemos de ir bufcar a prova a outra
parte. Vay depois diíto David á Corte d'£iRey
Achiz, tem noticia, que o querem matar, e fazfe
doudo. E bem , David , naó éreis vós o que dizieis a
Deos , que vos déíTe entendimento para viver ? Pois
como agora para viver vos desfazeis do entendimen-
to? Dantes governavafe David pelo difcurfo, ago-
ra pela experiência. Pelo difcurío parecialhe a Da-
vid , que naõ havia coufa para viver , como fer en-
tendido ; mas a experiência moílrou depois a David,
que era neceíTario fer defentendido para viver.
60Ó Já dêmos a razaó difto em qoaoto natureza, Num. 47^;
demola agora em quanto femrazaô. Seja por hum
exemplo. Entrarão pelo Horto os foldados, que vi-
nhaó prender a Chrifto , mete mao á efpada S. Pedro,
enveíle a Malcho , e fere-o. Sempre reparei muito
nefta enveftida , eneíle golpe. Se Pedro quer defen-
der a feu Meftre, avance aos efquadroens armados ,
envifta, ematefecomelles. Mas a Malcho? A Mal-
cho, que naõ trazia na maõ mais que huma lanterna
com que alumiava? Eisahi como trata o mundo as
luzes: em apparecendo a luz, todos os golpes a eiía.
Em vez de arremeter aos que traziaó as armas , arre-
mete ao que trazia a luz ; porque de nenhuma coufa
fe daó os homens por mais ofendidos , que da luz
Tom. II. D alhea.
5 o Vieira abbreviado
aihea. Se vierdes com exércitos armados : Cum
gladiis ^ írfujlibus , tervoshaô quando muito por
inimigo , mas naô vos faraõ mal ; porém fe vos cou-
be em forte a lanterna , fe Deos vos deo huma pouca
de luz, (ainda que naõ íeja para luzir, íenaõ para
Nmii.48o.aÍumiar) foíles mofino, apparelhai acabeça. Detu-
do o dito íe colhe , que quando vemos faltar ante
tempo as luzes ou porque morrem , ou porque as
mataó , ou porque íe mataõ , naó temos matéria de
efpanto , poílo que a tenhamos grande de queixa :
de efpanto naõ, porque eíle hc o mundo : de queixa
ílm-, porque o governa Deos : Domine , non eji tiln
curs ?
607 He poíTivel, Senhor , que tendes providen-
cia , e que haÔ de viver as trevas , e morrer as luzes ?
O neício fepultado nas trevas da ignorância ha de
ter pazes com a morte , e o entendido alumiado
com as luzes da razaó ha de andar em guerra com a
vida ? Ameaçando David aos poderofos com o ine-
vitável da morte , diz , que os nefcios , e os entendi-
dos todos haviaô de morrer juntamente: Cum vidé-f
Pf. 48. n. rit fã pi entes mor i entes , Jimnl injtpiens , (l^Jlultus
peribunt. Se aííini fora ainda era deíigualdade ; mas
que a morte apreíTada feja tributo do entendimen-
to, e a vida larga attributo da ignorância ? Naõ lhe
bailava aos nefcios hum attributo , naô lhe bailava
ferem infinitos no numero , fenaó também eternos
na duração? Qiie no Paraifo dê fru^^os de morte a
arvore da ciência, e que no mundo a ignorância fe-
ja arvore da vida ? Que dentro de nós feja enfermi-
dade mortal o entendimento, e que fora de nós feja
deliíSto mortal o ufo da razaõ ? Qlic fendo o racional
natureza, ninguém polfa fer racional fob pena de
— vidai!
4«S
Difcurfo LVII^ ^ 51
vida? E que cíhs injuítiças da morte fejao diípoíí-
^oens da providencia? Domine imn eft tibi curit'^,
608 Mas acudamos já pela providencia divina , Num.
e reípondamos ás noílas três queixoííis , que he len^-
po. Na6 íè queixe a idade por cortada , nem a dií-
criçao por eínmudecida , nem a gentileza porccsi-
píada,que para todos efcolheo Maria a melhor parte.
He verdade , que morreo , mas por meyo da morte
eternizou a idade, meííiorou a gentileza , canonizou
a diícricaó. Vede, fe tem razaó de eftarera queixo-
fas, ou agradecidas.
609 Primeiramente eíernizou a idsde ; porque Num. 484
cortalla foy artificio de a eternizar. Dizia Job : In
mdulo meo moriar , 0^ ficut phwnix multtpltcahú
dies meos. Morrerei , è multiplicarei meus dias.
Notável modo de fallar ! Parece , que havia de dizer
Job : Morrerey , e acabarei meus dias ; mas morrerei,
e multiplicarei meus dias : Moriar , ó" muliiplicã'
bo dies meos j como pode fer iíTo ? O mefnío Job
diíFe como: Siatt phmúr^. l\eparo, diz Job, que
eu naÕ fallo como homiem , fallo como fenix : o ho-
mem diz : Morrerei , e acabarei meus dias, porque
com a morte acaba: a fenix pelo contrario diz : Mor-
rerei, e multiplicarei meus dias, porque na fenix o
cortar a vida he artificio de muíiipíicar a idade. En-
tre todas as mortes fó huma ha no mundo , que naó
feja digna de fentimento, he a da fenix. Se a fenix
morrera para acabar , fora a fua morte mais laílimo-
fa, e mais digna de íentimento, que todas , porque
he única ; mas como a fenix morre para renaícer ,
como a íenixdiminue ávida para multiplicar a ida-
de, nao he digna de lagrimas a fua morte, fenaõ dtí
applaufos. Callefe logo a idade qu€Íxofa \ que nao
D 2 me-
5 2 Vieira abbreviado
merece queixas quem morre fénix.
Nu». 48^. 6jto Também a gentileza naó tem razaó nas fuás
. queixas. O morrer naõ foy perder , foy melhorar a
formofura. Oh fe a cegueira do mundo tivera olhos
para ver efta verdade , que menos idolatradas foraõ
fuás apparencias! Oh que admiráveis transforma-
çoens de formoíura faz invifivelmente a morte de-
baixo da terra ! Os Chimicos naÔ acharaÔ atégora a
pedra fiiofofal j porque naó íizeraõ enfayo nas pe-
dras de huma fepultura. Paliando Deos a Abrahaô
na gloriofa defcendencia de léus filhos, humas vezes
comparou-os a pó, e outras a eftrellas para enfinar
( diz Filo) que o caminho de fe fazerem eílrellas
era desfazeremfe em pó. Que cuidais, que he huma
fepultura, fenaô huma officina de eftrellas.? Ainda
a mefma natureza produz mayores quilates de for-
mofura embaixo , que em cima da terra. As flores,
formofura breve , criaofe na fuperficie , as pedras
preciofas, formofura permanente, no centro.
611 Julgue agora n eiv^nnada gentileza, fe foy
injuriofa a Rachel a fepultura , ou fe foube efcolher
Maria a melhor parte. Enterroufe flor para fe con-
gelar diamante: dcsfezfe em cinzas para fe formar
em eftreiía.
Num. 487. 5|2 Mns quando por meyo da morte naó alcan-
çara a gentileza a melhoria da transformação, per-
gunto : E fora pequeno beneficio livrarfe por eíta via
dos dajnnos da mudança ? Efte género apparente , a
que os homens chamaó formofura, ainda tem mais
inimigos, que a vid;i , com fer taó frágil. A vida tem
contra fi a morte , a formofura ainda antes da morte
tem contra íi a mefma vida: Forma hojiumfragik ejiy
quanttimque accedit acl annos , fit númr. Os pri-
mei-
L" Jr^.JO^^^
Difcurfo LVIL 53
melros tyrannos da formofura laÓ os annos , e a
fua primeira morte he o tempo. Debaixo do mípcno
da morte acaba , debaixo da tyrannia do tempo
mudafe. , ^ ^ ^„^i
6 1 2 E fe alguém perguntara a formofura , qual
lhe eílá melhor , fe a morte , ou a mudança , nao ha
duvida , que havia de refponder : Antes morta , que
mudada A formofura morta fuílentafe na memoria .
do que foy , a formofura mudada afrcntafe no teí-
timunho do que he. A viòloria , que da íormolura
alcança a morte, he hum rendimento fecreto , co-
bre-o a terra : a vidoria , que da formoíura alcança o
tempo, he hum triunfo publico, todos a vem : c tra-
zer o epitáfio no rofto , ou telo na fepultura yay
muito a dizer. Parece eíla razão demafiadamente hu-
mana ; mas Deos a fez divina. i tvt rv / .
614 Occultou Deos o lepulchro de Moyfes , ( a
mavor formofura do mundo , fem fer affronta em
hum homem) naÓ porque os homens o nao vijlem
morto, mas porque nao viífem a fua formosura mu-
dada : Nefaciem , qu^ radiaverat , fuppreffam ví- Deut. h*
deret, Morta fim , mudada nao , nmguem a ha de '
ver. Aílim trata Deos a formofura , a que quer lazer
o mayor favor : e taó certo he o juízo do mefmo
Deos , que lhe eílá melhor á formofura a morte , que
a mudança. Chegada pois a gentileza humana áquel-
le termo precilo de fua perfeição , em que o parar he
vedado, o crefcer impoflivel , e o dimmuir forçoío,
fazer tregoas com a morte por fenaò fujeitar a ty-
rannia do tempo , fenaó foy eleger a melhor parte,
foy ao menos aceitar o melhor partido : Mana optt-
tnam partem elegit. . , . - ,^Num.488.
61 < Fmalmente a diícriçao nao tem razão de
Tom. II. D 3 q^ei^
i
Vieira ahhreviado
queixarfe ; porque fe a morte a emudeceo, a morte
a canonizou. A difcriçaõ verdadeira naó confiíle em
laber dizer, confifte em faber morrer. Até á morte
ninguém fe pode chamar com certeza nefcio , ou di í-
creto. O ultimo acerto, ou ultimo erro he oquedá
nome ao )uizo de toda a vida. PoriíFo Deos no prin-
cipio do mundo approvando todas as creaturas, fó ao
homem naó approvou ; porque a approvaçaô do ho-
mem efta íèmpre dependendo do fim : Non in exor^
atojedtnfine laudatur homo, dilFe Santo Ambrofío.
6i6 Nao fe pode feguramente louvar o homem,
nem quando começa , nem quando he, fenaô quan-
do acaba de fer. Em quanto paÔ chegou o dia ulti-
mo , eltava em opiniaô a prudência das virgens : aí-
fentoufeamortenafuprema cadeira , definioquaeí?
erao as nefcias , e quaes as prudentes.
617^ Em nenhuma couía fe vê tanto o acerta da
eleição , como naquiílo , que acertado huma vez
nao pode ter mudança , ou errado huma vez nad
pode ter emenda. He eleição , de quedepende tudo ,
e huma parte , que encerra em fi o todo , e por iffo a
melhor parte: Optimam partem elegit,
N«m.49i. 618 Tenho acabado, e fatisfeito, fe menaô en-
gano, asnodas três queixofas. Mas fe elías tiveraô
tempo para fe queixar de novo , e eu forças para di-
zer, e vós paciência para ouvir, he certo, que as
queixas , que fe fízeraõ tanto fem razaô contra efta
íporte, fehaviaó de converter todas, ecom muita
razão contra noíTas vidas.
6 19 Oh idades cegas ! Oh gentilezas enganadas \
Oh difcriçoens mal entendidas : Vive a idade , como
fe naó houvera morte : vive a gentileza , como fe naõ
paílara o tempo : vive a difcriçaõ, comofenaõte-
mera
Dijcurfo LVU. 55
meraojuizo. Oh acabemos já algum dia de fer ce-
gos. Ponhamos diante dos olhos eftas imagens tu-
neftas , retrato de nós mefmos , que naó fem particu-
lar providencia nos meteDeos em caía taó repeti-
damente. Apenas ha cafa illuftrc em Portugal , que
fe naô viíTe cuberta de lutos efte anno : e ainda nao
he acabado.
620 Já que os parentes morrem para íi, e para
Deos , morraõ também para nós. Confideremos ,
que foraô o que fomos : que havemos de fer o que
faó: que alli vay a parar tudo : e que tudo, o que alli
naó apioveita, he nada. Se nos dá confianças a ida-
de , reparemos quaó frágil he , e quaô fujeita ao me-
nor accidente. Se a gentileza nos engana , defenga-
nenos huma caveira , que he o que fó tem durável a
mayor formofura.Se a difcriçaó finalmente nos deíva-
nece, faibamos fer dilcretos , que he laber falvarnos.
DISCURSO LVIII.
A
Tirado de hum fermaô , que o AuBor pregou na Igre-
ja da Mifericordia da Bahia ao efiterro dos
ojjos dos enforcados.
MORTOS.
521 TT Um dos grandes efcandalos , que tenho Part: v.
XX do mundo, he , porque fe naÕ ha de tef Num. jyj.
tar dos amigos. Na morte teftaõ os homens de to-
dos os feus bens, e poreíFa mefma razão parece, que
haviaõ de teftar dos amigos em primeiro lugar ; por-
que entre todos os bens nenhum bem ha mayor,
que os amigos , e entre todas as coufas noíTas ne-
J34 nhuraa
Pavt. 2.
5 ^ Vieira ahhreviaão
nhuma he mais noíTa , que os amigos.
622 Pois fe os amigos faô os noíTos mayores bens,
e os bens mais noíTos , porque nao teftamos delies ?
A razão he eíla; porque os bens, de que teftaó , e po-
dem teftar os homens , faô aquelles , que permane-
cem depois da morte : e os amigos , ainda que fejao
os noíTos mayores bens, faô bens, que feacabaôcom
a vida. O mayor amigo permanece até á morte j de-
pois da morte ninguém he amiga
Num. 450. ^3 ^^''^ ^"^ ^^ defenganem todos os mortaes de
Kum. 445). ^"2Õ pouco fe devem fiar os mortos dos vivos , po-
nhamos o exemplo nos mais refpeitados , e nos mais
refpeitofos do mundo , que faô os Reys , e os que an-
daõ mais chegados a elles.
. 624 Morreo ElRey Herodes, aquelle , que logo
em feu nafcimento quiz tirar a vida a Chrillo , e o
obrigou a fugir ao Egypto \ e tanto que morreo , ap-
pareceo o Anjo a S. Jofeph , e diíTelhe , que fegura-
niente podia tornar para as terras de Ifrael : Defun-
ciifunt enini , qui quarebant animam pueri ; por-
que já eraô mortos os que períeguiaó ao minino.
625 Eíle porque do Anjo parece , que foy mais
largo do que havia de fer. O Euangeiifta diz , que fó
morrera Herodes : Defunão Herode, Pois fe o que
morreo foy íó Herodes perfeguídor de Chriílo , co-
mo diz o Anjo , que morrerão todos os que o perfe-
guiaó? Porque com a morte dos Reys morrem to-
dos os rei peitos, queosacompanhaó na vida. Hero-
des perfeguia a Chrifto por refpeito da coroa , os
demais perfeguiaóno por refpeito de Herodes, e co-
mo morreo Herodes, também morrerão com elle to-
N«ai.45o. Jos eífes refpeitos. Ediz o Anjoangelicaraente, naô
que morrerão os refpeitos , fenaó que morrerão os
refpei-
Difcurfo LVIII. 57
reípeitolos, ou refpeaivos, ifto he os familiares de
Herodes. Em algumas naçoens da índia quanuo
morrem Reys, mataófe juntamente com elles todos
Tfeus cr,ados, e validos. Cá naó le matao mas
também morrem. Morrem para elles, e vivem^co-
mo fempie viverão ) fó para fi. E fe ú\o fuceeue nos
Revs , que íerá dalli abaixo ? Defenganemonos pois,
Jue pa^a os mortos nao ha vivos Todos morren^
com quem morre : Defimão Herode.defunãtfunt
eniní Atai as palavras do Euangelifta com as do
Anjo , e notai mtiito aquelle enm. Morrem os vivos
coni os mortos fem outro achaque, nem porque,
fenaô porque elles morrerão. Nao morreria muito
trefvariado, e fora de fi quem nomeaífe por leu tef-
tamemeiro a hum morto ? Pois affim o fazem os que
na morte encommendaó os defcargos defuaalma aos
vivos. . . ,
627 Até os que na vida morriao por vos , na mor-
te morrem comvofco. Vede o nos íilhoj para com
os pays , e nos irmãos para com os irmãos , e o que
he mais que tudo nos amigos para com os amigos. O
par mayor de amigos , que lemos na Efcritura , ( que
os outros faõ fabulofos) forao Jonathas , e David.
Morreo Jonathas , ficou David vivo , e tudo , o que
fez por elle , foy tirar a fazenda a ftu filho , e com-
por hum Soneto, ou huma Canção á lua morte : Do-
leo fnper te , fraler mi Jonatha , decore nmts , & ,. ^e^. ,;
amabilisfuper amorem miilterum. Sicut mater iini-t^. & 17-
amiamatfiliumfimni, ita egotediligebam. Repa-
ray nodiligebamy amava. Elle mefmo confella , e
diz naõ que ama, fenao que amava j porque com a
morte de Jonathas morreo também o amor de Da-
vid. Fiaivos lá de amigos . e mais dos mais diícretos.
O q^ue.
i
w^^— m ij . . .L iiP ■
Num. 45í«
5 S Vieira ahhrcoiado
o que podeis efperar quando muito da fua memoria
oudofeu entendimento, hehuma meya folha de pa!
deftmtr"""'"" ''""'*'' •■ '"'"'°' ^°^^ ''"™'' *'""» de
• 628 .MastornandoaHerodes,eádedaraca6dos
refpe.tos porque na fua morte morrerão com e,^
todos os feus , he de laber , que efte Herodes por
as artes, e manhas foube melhor ganhar, íuieitar
e un.r a fi os ânimos dos homens. Como era ?ntru?ô
na coroa reynou quarenta , edous annosfempre cora
receyo de que o privalfem do Reyno : a huns grai"
geava com favores, e mercês, como Rey, a outros fu-
io X'°'";"Sr'' ^"?'g°^' ^«-"Otyraro E
por efte modo dominava de tal forte a todos , que
naohav.a nofeu Reyno mais que huma fóvontaV
que era a fua. Bem fe vio na entrada dos Magos em
Jerufalem com voz de outro Rey: Turbatusejl He-
rodes: Turbouie Herodes : Et omnis JerofolpL
cum tilo: E todos por elle , e com elle. Eiffin, como
todos viviao com elle , quando vivo , aflim todos
morrerão com elle , quando morto. Em quanto vivo
huns viviao com elle pelo beneficio , outros pelo me-
ão: tanto que morreo, morrerão também todos cora
ene ; porque nenhuns tinhaõ já que temer, nem ou-
tros que efperar.
Num. 4,4. 629 Mas muitas vezes íao fervidos , e honrados
os mortos , naõ por fi , mas por refpeito dos vivos.
Wao vedes nas mortes, efuneraes, prmcipalmente
los grandes , os concurfos , e affiftencias de todos os
eltados, que fe fazem áquelles perfumados cadáve-
res, de cujas almas por ventura íe naó tem tanto cui-
oado.'' Fois naõ cuideis, que cuidamos, que o fazeis
st:.;. ■■
Bifcurfo LVIIL 59
por piedade dos mortos. Todos fabemos taô bem
como vós , que faÕ puras ceremonias , e hfonjas, com
que inceníais os vivos. Por mais que lejao tuneraes
os obfequios, aos vivos he que fe fazem , e nao aos
mortos. Ouvis aquelles refponfos de corpo preíente
taô concertados , e taó fentidos ? Pois nao fe rezao
aos defuntos , cantaÔfe aos vivos. Por iflo os de N aim Num. 4f y.
no enterramento do filho da viuva hiaô com eUa , e
naó com elle: Eccedefttnâiusefferehatur^fiíiusuní' Luc.7. "•
cus matrisfíia , & hac vidua erat\ & miiltttudo
copiofa plebís cum illa \ porque ordmariamente o
que parece, que fe faz aos defuntos, fazfe aos vivos.
O filho era defunto , e a mãy a acompanhada. Os da
tumba levavaó o morto , os do acompanhamento le-
vava os aviva. Elle hia para alepultura, eellesnao
hiaó com quem hia , hiaó com quem ficava : Cum
630 Se ifto he o que paHa nas Cidades pequenas, Nu». 4jí.
como a de Naim , que fera nas grandes Cortes , onde
he tamanha a lifonja dos vivos , como o efquecimen-
to dos mortos ? Ponhamonos na de Mênfis. Mor-
reo Jacob pay de Jofeph no Egypto, e depois mor-
reo também Jofeph na mefma Corte. Mas he digno
de admiração, e de pafmo o modo, com que fe porta-
rão os Egypcios em huma , e outra morte. Na de Ja-
cob durarão os prantos, e as exéquias fetenta dias : ceneí. 50,
Tlevit eumpopulus feptuaginta dies. E porque logo '*
fe trasladou o feu corpo para a terra de Canaan , co-
mo tinha mandado, acompanharaôno até lá todos os
Principes, e Grandes do paço de Faraó, e todos os
Magiftrados , e fenhores do Egypto com grandes
tropas de cavallaria, e apparato de carroças: lerunt^t^-^o.^,^
eum eo cunâii fèniores domus Pharaonis , cunBique^ ^'
maí(h
!^^^^^S^
^o Vieira ahhreviado
maiores natuEgypti-, habuitque in comitatu cur-
rjiSy (^ equites. Aífim foraó caminhando até fora
T' '^y^'^^^ %7Pto , e depois que paílaraÒ o Jor-
iíao, e chegarão ao lugar do fepulchro, renovarão
outra vez as exéquias por efpaço de fete dias com
tantas lagrimas, e extraordinários prantos, que ad-
mirados os Gananeos pozeraõ por nome áquelle fi-
r.n . Tl ' ^^^^^'^^'-^ ^^ypt^ ' O pranto do Egvpto : Uâí ce-
Gen.ío.xo. /ehyttes exequias planãu magno, atque vehementu
ímpleveriint feptem dies. Ouoà cum vidiffent habi-
tat ores terr^ Chanaan.vocatum èfi nomen loci ilHus'
Planâius Egypti. Tao fentida, e taó mageílofamen-
te como jfto celebrarão os Egypcios as exequias de
Jacob pay de Jofeph.
^? ^ ^ quaes vos parece agora , que feriaÓ as do
nieimojoreph, quando depois morreo no mefrao
i^.gypto? De mduílriarefen rodeis ns palavras, com
que a Efcritura defcreve as do pay , para que a mef-
mahfcritura nos diga também as do filho. Ouvi com ^
aííombro o que diz : MorUms ejl Jofeph expletis
centum , i;' decem vttafua annis , dr conditns aro-
ma tíbus repofttus eji inloculo in Egypto: Morreo
Jofeph de idade de cento edez annos,é ungido, como
era coftume dos Hebreos, o meterão em hum lugar
do tamanho dofeu corpo no Egypto. Enaô diz mais
a hiftoria fagrada , fendo eílas as ultimas palavras de
Kum. 457. toda a que efcreveo Moyfés. Eque hedas exequias ?
Que he dns lagrimas , e prantos ? Qiie he da folemni-
oade do enterro ? Qiie he dos apparatos fúnebres ?
Qiie he dos mauíoleos , e pyramides Egypciacas?
Qi'e he do concurfo da Corte ? Qiie he do acompa-
nhamento , eaííiftencia dos tribunaes, dos Minif-
tfos, e fenhores grandes da cafa de Faraó, de que
Jofeph
Difctirfo LVIII ^i
Tofeph era o mayor , o mais valido , o mais refpeita-
do , e adorado , e lobre tudo o mais benemérito ?
6,i Nada d.fto diz Moylés , fendo lem duvida
nue o liaviade dizer , fe o houvera , aílim como com
?:nta elpecialidade , e miudeza àfcrc^'f^^'J^;;^l;
e exéquias de Jacob. Pois íe a Jacob ío por ftr pay
de Toleph íem outro merecimento, ou lerviço ,
í^ií que tivelle obrigado aos Egypcios -^ - fazem
na morte tao magnificas exéquias , e tao e^q" f^^
honras, e o que Ine mais, acompanhadas de tamas la-
IZZ, e p?antos, como falta tudo ifto na morte de
fofeph na morte outra vez daquelle mefmojoíeph,
a quem os mefmos Egypcios deraÕ nome de Redemp-
tor do mundo , porque ao Rey tinha femido , e con-
fervado ao R^yno, e aos vaíTallos pnme.ro tinha
dado a vida , depois a fazenda , e uiumamente a Ii-
bcrdâCiC
62Z Aqui vereis quanto vay de mortos a mor-
tos , qu.ndo concorre , ou falta o relpeito dos vivos.
Otiando morreo Jacob, era vivo Jolepb, e porque era
vivo o filho , e tal filho , fizeraó tantas honras ao pay.
Pelo contrario, quando morreo Jofeph , nao deixou
vivo depois de fi a quem os Egypcios relpeitaí.em ,
ou de ouem dependelíem 5 e como nao havia vivos
para os obfequios , nao houve exéquias para o detun-
ío So iepodiaõdefculpar os Egypcios com Jofeph,
dizendo , que lhe faltarão com as lagrimas na morte,
porque lá lhas tinhaó dado em vida , e aíFim foy. Nas
exéquias de Jacob o chorado naÓ era opay , era o fi-
lho i porque nao choravaó os Egypcios pelo morto,
choravaó para o vivo. SahiaÓ as lagrimas dos feus
olhos , para que as viíTem os de Jofeph : e nao as ex-
primia a dor , ou a faudade , fenaÔ a dependência , e
I
1'
ieira ahhrev^adò
lifonja , como lagrimas de figuras pintadas , que af-
íimcorao íenm íem alegria, também chorão fem
tnrreza.
Num 45 1 634 E^C'^ ^^e a mayor miíeria dos mortos, ferem'
gente, que iiaó podem fazer bem , nem mal. \L por-
que com elles morrera , e fe acabaô todos os refpei-
tos , e dependências , porque fe governao os aíteaos
humanos, por lílo aílim como nelles aqueljahe a ma-
yor miferia , aíilm para com elies eíia he a mayor mi-
fericordia: mifericordia íem refpeito, raifericordia
íem dependência, mifericordia fem motivo ajgum
que naõ feja pura mifericordia. '
Num. 452. Ó35 Naofou muito amigo de authoridades; por-
que raramente fe podem ajuílar com quem diífer o
que naõ eílá dito. Ouçamos porém a de Santo Am-
brofío , que melhor , e mais altamente tocou efte
ponto. Naquelie feu famofo livro , que intitulou de
Offkiis^ failando da fepultura dos mortos diz, que
entre todos os benefícios, que pode fazer a piedade
humana , eíle he o mais excellente : Nihil hoc officto
pr^flantius. Outros diziaó , que mayor beneíicio,
e mayor obra de miíericordia he fuftentar os po-
bres, e remir os cativos; porque a huns dáíeavida,
e a outros a liberdade. Com tudo eíle grande Dou-
tor da Igreja , e Meílre de Santo Agoftiího diz , que
dar fepultura aos mortos, ainda da parte de quem re-
cebe o beneíicio, he o mais excellente de todos, e dá
2 razaó : Nihil hoc eficiopr^ftantius , ei conferre ,
qui tibijam non pote/i reddere : He ( diz ) o mais ex-
cellente de todos, porque he beneíicio feito a quem
onao pode pagar : eu accrelcentara , nem dever. He
fazer bem a quem vos naô pode flizer bem: eu ac-
crefcentara , nem mal. He obra, de que fe naó efpera
agra-
Difcurfo LVIIL ^3
agradecimento: eu accrefcentara, nem queix. He
finalmente compadecerme eu , e remediar a q.em
niô Pidece a mi feria , nem lente o beneficio, que if-
tohe^fer morto. Obèm, que fe faz -^ v-os, (como
bem fabem os que o fazem , e nao .gnotao os q.. o
recebem ) PÓde-o negociar o intereife , pode-o fou-
c tar a dep' ndencia rpóde-o violentar o re peito e
nada dirto fepóde elperar ^e hunsoflos fe.os^ m _
temer de humas cinzas frias, La dilíe com alta r no
fofia Séneca , que a verdade do bem fazer nao con-
fifte em dar ò beneficio , e perdello fenaÕ em o per-
der êdallo: Benefcium e(lmndare, &perdere;
T/pmlerc&dare. Dat o' beneficio, e perdello he
cafo que fuccede muitas vezes ou por impruden-
c a de^em o dá , ou por impolfibilidade ou por
avareza , ou por ingratidão de quem o recebe , e nel-
?e cafo à boa obra^naô he beneficio , he ignorância ,
ou defgraça : pois quando he verdadeiro beneíicio a
obra bSa? Quando quem afaz, fabe que aperde, e
com tudo a^z : e tL faó os benefícios que fe fa-
zem aos mortos. Como os mortos "/o fentem , ne n
conhecem o beneficio , que fe lhe faz, e ainda que
o conhecerão, na6o podem agradecer, nem pagar,
tudo , o que (e faz aos mortos , he como fe fe peide-
ra ; e por iflb a fepultura fe chama perdição : inje-ii g^. .g
pukhro , m perdítíone.
DlSr
^4 Vieira abbr caiado
DISCURSO LIX.
Thydo de humfermao do Jamifflmo Sacramento , e
de outro de y JoaõBautiJia pregado naprafií-
I cm da Senhora Madre Soror Maria da Cf
iilba do Excelíentiff/mo Duque de Medina
Sidónia.
MUNDO,
Pare. 3.
Nura. 54;.
^17
Vum. 547
A terra poz Deos a mefa aos homens , e
rnm^ ^ . ^"^"/^ ^^'^'^ "^^^^'^ ^^ ^ígradccimento ,
como ae admiração , que de íeis dias , em que creou
o mundo, empregaííe os três mayores , e mais fecun-
dos íó em prover eíla mefa. Tudo quanto nada no
mar , tudo quanto voa no ar , tudo quanto naíce , ou
paíce na terra , faÔ os íimples, que produzio a natu-
reza para que delles compuzeíTe , e temperaOe a ar-
te o luitento , e regalo do homem. As eípecies , que
le contem debaixo deites quatro géneros vartiffimos,
tao varias na formofura , taõ exquiíitas nos fabores
e inhíiitas no numero , excedem íem limite a capaci-
dade do gofto , e dos outros fentidos. E que difcurfo
na, quenaõpafme na coníideraçaô do poder, ma-
gnihcencia e grandeza , com que mais parece quiz
Ueos enfaftiar o appetite humano com a luperfluida-
de da rneía , que fartar a ncceíTidade com a abun-
dância ?
. , 638 E fequizera fabricar outro mundo mais pre-
cioío , em que a terra fora ouro , o mar , e os rios pra-
ta , as áreas pérolas, os penhafcos diamantes, as
plantas efmeraJdas, as flores rubis, efaíiras, e os fru-
d:os ,
ifcurfo LIX. ^5
òtos , e feus Libores proporcionados a efta riqueza,
e ciclicia, com outro aceno da meíma vontade , e fem
mais tempo , que hum inílante , o podéra crear de
-nada.
6:59 E nao ha duvida , que dos bens temporaes r^n. 5. ^
inais liberal he o mundo com funs promeílas , que^'"™'"^^^'
Mleos com íuas liberalidades. Naó coftuma Deos dar
tanto, quanto o mundo coíluma prometter. Bem
fe íegue logo , que mais dá a Deos quem lhe dá
3S promeiTas do mundo , que quem lhe torna as
fuás dadivas. Se dais a Deos , o que Deos vos dá,
dareis muito; mas fe dais a Deos o que o mundo
vos promette , dnis muito mais. Oh quanto liberal
•eítá com Deos quem dandolhe as mayores grande-
zas, ainda bufca artifícios de lhas dar accrefcenta-
das! Eque artifício pode haver para accrefcentar os
bens, e grandezas do mundo? Eu o direi. Os bens,
e grandezas do mundo faifamente fe chamao bens,
porque fao males , e fem razaó fe chamao grandezas,
porque fao pouquidade^. Pois que remédio para fa-
zer das pouquidades grandezas , e dos males bens ? O
remédio he deixallos, e deixallos em eíperanças ;
porque efíes , que o mundo chama grandes bens , fó
faó bens quando fe deixao , fó fao grandesquando fe
efperaô. A efperança lhe dá a grandeza , o defprezo
lhe dá a bondade : defprezados fao bens , efperados
fao grandes, e aíFim mais dá quem defpreza oqueef-
pera , que quem dá o que polTue.
640 Nmgue.m melhor facrifíca aDeos o mundo, Nuai.4j?tí
que quem lho oíFerece em eíbtua ; porque o mundo
em eílatua he muito mayor , que fí mefmo. Para der-
rubar com huma pedra ao Golias bailou a funda de
David : para derrubar com outra pedra a eílatua de
Tom. ÍI. E Ng-
Part. 1 1.
66 Vieira abbreviado
Nabuco foraó neceílarios impulfos ( poftoque inví-
íiveis ) do braço de Deos. O Golias tinha de altura
leis covados , a eíhitua tinha fellenta , que nas gran-
dezas mais pompeias do mundo íempre faõ ínayo-
res, que os gigantes, as eftatuns. Nunca as machi-
nas vivas igualaó a medida das fonhadas.
64T Sonha a fantaíía , promette a efperança y
profetiza o deíejo , reprefenta a imaginação, e ain-
da que a foltura dellies fonhos, o cumprimento def-
t2s promeíTas , o prazo delias profecias , a verdade
deftas reprefentaçoens nunca chegao, mais triunfa o
amor divino , quando piza o fantaltico , que o verda-
deiro , o efperado , que o poffuido. Deixar antes de
poíTuir he ufura de merecer ; porque quem mais dá,
mais mereee , e quem dá os bens na efperança , da-os
onde íaô mayores. A melhor parte dos bens defta vi-
da he efperar por elles: iogo mais faz quem fe inha-
bilita para os efperar, que quem fe priva de os poí^
fuir. Por iílb Ghriílo chamou os Principes dos Apoí-
tolos, quando lançavaô as redes , e naõ quando as
recolhiao : Mitt entes rete in maré. Porque mais faz
quem deixa as redes lançadas , que quem deixa os
lanços recolhidos. As redes quando fe lançaô , levao
em cada malha huma efperança , os lanços quando fe
recolhem , trazem muita r^áo. vazia.
642 He efte mundo como o monte Calvário, em
que fe vem todos os eílados dos homens , e todos em
cruz. Todos os homens do mundo ou íaÓ juílos,
ou pcccadores , ou penitentes. Se íois juílo, haveis
de ter cruz; porque Chriílo erajuílo, antes a mefma
juíliça , e tinha a fua. Se íois peccador, haveis deter
cruz; porque o mao ladrão era peccador, e eílava
cruciiicado. E fe fois penitente , também haveis de
ter
Difcurfo
^7
ter cruz; porque o bom ladrão em penitente, ea
cruz era a mayor parte da íua penitencia. Se fores
Rey , haveis de ter cruz ; porque Chrifto tinha hum
tiiulo, aue dizia Rex Jiidaortim , e o titulo, e
mais o Rev ambos eílavaó pregados nelia. E fe fores
dos que eíiio ao lado do Rey , também haveis de ter
cruz ; porque ao lado de Chrifto eftava Dimas , e
Geftas , e eftava cada hum na fua.
643 Muito em feu lugar , e muito fora de feu íu- Kum. 70.
gar eftavaó eftes duos ladroens. Eftavaó muito em
feu lugar , porque eftavaó crucificados com as rtiaõs,
e pés pregados na cruz , e eftavaó muito fora de feu
lugar, porque eftavaó ao lado do Rey. Seviveresna
corte , haveis de ter cruz, que pelas ruas dejerufa-
Jem levou Chrifto a Cruz ás coftas: e fe viveres no
monte , também haveis de ter cruz , que no monte
Calvário teve a Cruz a Chrifto nos braços. Em fim,
fe tiveres vontade de levar a cruz , levallaheis , qu^
Chrifto defejou muito levalla , e levou a : e fe nao
tiveres vontade de a levar, também a levareis^, que
o Cyreneo naó queria levar a cruz , e forçaraóno a
quea levaíle. De maneira , que ou por aáto de virtu-
de, ou por remédio de neceííidade nao ha paíTar ef-
ta vida fem cruz. Antes a mayor felicidade dos vi-
vos he como o enterro dos defuntos : quanto mais
pompa , mais cruzes.
E2
DIS-
ieíra ablreviado
D I S C U R S o LX.
Tirado de hum fermao de S. Jofeph pregado na Ca-
pella Real no dia do fnefma Santo , eut que fez an-
nos EIRey D, João IV. ede outro do najcwien-
toda May de Deos,
NASCIMENTO.
Part. II.
Num. J97,
^44
Ueílao foy mui duvidada entre os anti-
gos, qual dia deíla vida era mais felice, fe
o primeiro , íe o uirimo , fe o do nafcimeR-
to , íe o da morte. Daqui veyo , que feguindo varias
gentes varias opinioen§ , humas fe alegravaõ nos naf-
cimentos, outras os celebravaó com lagrimas: hu-
mas fe entrifteciaô nas mortes , outras a folemniza-
vaõ com í^ÇtãS, Chegou finalmente a duvida ao tri-
bunal d'ElRey Salamao, o qual inclinandofe apar-
te , que parecia menos provável , reíblveo , que me-
lhor he o dia da morte, que o dia do nafcimento :
Melior e/i dies mortis die nativitatis.
Part. 7. 645 Os homens (deve fer porque fao mortaes)
Num. 13 í. o que coítumaõ feílejar com mayores demonft rações
degoílo, parabéns, e applaufos affim publica /co-
mo privadamente, íaó os naícimentos. Mas iílo de
nafcer pelo que tem de íi , nem merece alegria , nem
triíleza ; antes, fe bem fe confidera , mais digno he
de trifteza , que de alegria Naõ de bíHde com íer o
rifivel a primeira propriedade de noíla natureza, a
mefma natureza nos enfina a nafcer chorando. Com
bgnmas chorarão muitas naçoens os nafcimentos,
que nós folemnizamos com feílas, e naô feyfe nos
deve-
^' Difiiirfo LX.
devera6 tornar o nome de bárbaros , que lhe damos.
Queixamonos da vidn , e a-ílejamos os nafamentos,
como íe o nafcer naÕ forn principio da meíma viua,
que nos traz queixofos. O nafcimento hc o principio
da vida . como a morte o Hm : e huma carreira , que
tem o fim taÒ davidofo , huma navegação , que- tem
o porto tao pouco feguro ; como pode ter o princi-
pio alecrre ? Nafcemos íem faber para que naíccmos,
e bailava ió erta ignorância parafòzcr a vida pezada,
quando nao tivera tantos encargos hibidos. Us aito--
fos e os defgraçados todos naíceraõ , e como íao
mais os que accufaÕ a fortuna^que os que lhe daô gra-
das m.ayor matéria dao os naícimentos ao temor,
^ue'áeíperança. A efperança promette bens , o te^
mor ameaça males , e entre promeílas, e ameaças tanr
to vem a íe padecer o que íeeípera, como o que le
teme. Aquém começa a vida, tudo ficafuturo, eiio
futuro nenhuma difíinçaô ha de males a bens^ todos
faÔ males, porque todos íe padecem. Os males pa-
decemíe , porque fe temem , os bens padecemíe, por-
que fe efperaô ; e para afíligir o mal bsíla fer poííi-
vel, parambleítar o bem baila ler duvidofo. Se íOí
guma coufa nos podéra íegurar os fobrefaltos deita
contingência , parece que era o tempo , o lugar , e as
peíToas, de que nafcemos ; mas por ma?s que deitas
circunilanciasconjedure a vã íabedoria felicidades,
o certo he, que nem o tempo asinílue, nem a pátria
as produz, nem dos mefmos pays fe herdaó.ôírrrjiuí
- 646 Domermopaynafceoííac,eirmaél,ehíun
foy o morgado da fé, outro da hereiia. Na meíma
hora nafceo Jacob, e Efaú , e hum foy -amado de
Deos, outro aborrecido. Na mefma terra nafceo
Caim , e Abel , e hum foy o primeiro tyranno, outro
Tom. II. t: 3 ^ P"'
9
Vieira ahhreviado
© primeiro martyr. Aílim que avaliar o nafcimento
pelos pays he vaidade, medillo pelo tempo he fuperf-
tiçaó, e eftimallo pela pátria he ignorância, e f ó
julgallo peio fim he prudência.
647 SalamaÓ , o mais fabio de todos os que naí-
cerao, faz huma comparação taó fuperior ao noíTo
JUÍZO, que fó podia caber no íeu. Compara o dia da
morte com o dia do nafcimento, ena differenca def-
tes dous extremos quem naô imaginará , que íe
compara o dia com a noite , a luz com as trevas a
alegria com a trifteza, a felicidade com adefgraca,
e acoufa mais defejada com a mais temida, e com
a mais terrivel a mais amável ? Sendo porém taõ pre-
nhe de admiração a propoíla, mais digna de efpan-
to he a fentença. Refolve Saiamaó , que melhor he
Ici. 7. z. ^.^*^ ^^ morte , que o dia do nafcimento : Meliorefi
dieis martis ãie nativitatis, E que tem o dia da mor-
te para fer melhor, que o do nafcimento? O dia
do nalcimento naó he o-mais alegre , e o da morte a
mais trifte ? O do nafcimento naó he o que povoa o
mundo, o da morte o que abre, e enche as fepultu^
ras ? O do nafcimento o que veííe de gala as famí-
lias ^ e as Cortes , o da morte o que as cobre de lu-
tos ? A morte naõ he o mayor inimigo da vida , e a
nafcimento naô he oque, fendo ella mortal, a immor-
taliza ? Qije he o nafcer , íenaó o remédio do naó fer^
e.que feria do mundo , fe em lugar dos mortos nad
nafceraó outros , que lhe fuccedellem ?
648 Até em Deos neceííita de nafcimento a mef-
ma Trindade, porque fendo fó a peflba do Padre in-
nafcivcl , Deos fem nafcimento feria hum , mas naó
feria trino. Pois fe tantos faô os beris , e felicidades,
que traz comíigo o dia do nafcimento , os quaes to*
do&
Dijcurfo LX. ji
dos funefta , coníume , e acaba o dia da morte , que
motivo teve ojuizo de Salaniaó, para antepor o dia
da morte ao dia do nafcimento ? Entendeo-o melhor,
que todos o mayor interprete d?s Efcriruras. He me-
lhor ( diz S. Jeronymo ) o dia da morte , que o dia
do nafcimento; porque no dia do nafcimento nin-
guém pôde faber o para que nafce , e fó no dia da
morte fe fabe o íim , para que nafcco : Certe quod in^i. Hyer.
morte qualesfimus notumfit , in exórdio vero ^ naf- ibi.
cendi , quifuturifimus, ignoratur. Se no nafcimen-
to de Judas , e Dimas fe levantaíTe a figura certa aa
que cada hum havia de fer em fua vida , a do primei-
ro diria , que havia de fer Apofl:olo , a do fegtindo ,
que havia de íer ladraô ; eaílim foraó na vida. Mas o .
verdadeiro juizo do fim , para que cada hum delles
nafcera , ainda eftava incerto : veyo finalmente o dia
da morte , que foy o mefmo , em que ambos acaba-
rão
e efledia declarou com aíFombro do mundo,
que Judas nafcera para morrer enforcado como la-
drão, e Dimas para confeílar, e pregar a Chrifto co-
mo Apoftolo. - ^
D I S C U R S Q LXI.
Tirado de hum fermao da prifheira Dominga do
Advento , que o AuÓíor pregou na Capella Real.
NASCIMENTO.
649 X) Em me parecia a mim , que nao podia flil- r>arr. j.
X5 tar Deos a dar huma grande fatisfaçaó no^'''"'* ^^í"
dia do juizo á defigualdade , com que nafcem os ho-.
fendo todos da mefma natureza. Naô le faz
mens
E4
aggra-
f^
Vieira abreviado
Mattb
aggravo na defigualdade do nafcer a quem fe deo a
eieiçaô do refulcitar. E quanta gente bem nafcida fe
verá naquelle dia mal refufcitada 1 Entre a refurrei-
çao natural, e afobrenatural ha huma grande difFe-
rença , que na reíurreiçao natural cada hum refufcita
como nafce: na refurreiçaô fobrenatural cada hura
refuícíta como vive. Na refurreiçaô natural naíce
Pedro , e refufcita Pedro : na refurreiçaô íobrenatu-
,^ ral nafce pefcador, e refufcita Principe : Sedebitisin
regeneratione judicantes duodecim tribiis Ifrael.
Oli que grande confoiaçaõ eíla para aquelles , a quem
naô alcançou a fortuna dos altos nafcimentos ! A re-
furreiçaô hehum fegundo nafcimentocom alvedrio.
Nusi. loí. 650 Tanta propriedade confiderou Job neíle fe-
gundo nafcimento , que até outro pay , e outra may
job.i7.i4.*^^^'^í quetinhamos na fepultura : Putredini díxi\
' Pater meus es tu : mater me a , à^foror me a , ver-
mibus. Temos outro pay , e outra may na fepultura,
em que jazem noíTos olfos ; porque alli fomos outra
vez gerados, dalli fahimos outra vez nafcidos. No-
Heb.^. 17- tai agora. Statutum ejl hominibus femelmori'. Qiiiz
Deos, que morreíTcmos huma fó vez , e que nafceífe-
mos duas ; porque como o morrer bem dependia de
noíFo alvedrio , bailava huma ló morte ; mas como o
nafcer bem naô eílava na rioíía maô , eraô neceífarios
dousnafcimentos , para que podeílemos emendar no
fegundo tudo, o que nos faitaííe no primeiro. Bem
poderá Deos fazer , que nafcefiem os homens todos
iguaes , mas ordenou íua providencia , que houveífe
no mundo eíla mal foíFrida defigualdade , para que
a mefma dor do primeiro nafcimento nos excitaíle d
melhoria do íegundo.
651 Homens humildes p edefprezadosdopovo,.
boa
AHriÉ
Diícurfo l^X. 75
boa nova : fe aÍturez1, ou a fortuna foy^'c^^*
de nafcer outra vez , e taõ 'lonr^^l^""^'"^' 'g^"^" ^, „.
zerdes : então emendareis a natureza , então vos ^ in
gareis da fortuna. ^,f„„f„ni mie as mu- Num 107Í
6,-2 Que mavor vmgança da fortuna , que as mu
danças taõ notav'eis , que fe veraó naquel e d.a ! \ 1-
rS ellèaia as àlínas do grande, e do pequeno
b.d-rS corpos á fepultura, e tal vez a n,eh na
Ig eja : e que fuccederá pela mayor P^t^ " P^^'f^.
no achará feus ollos em hum adro íem ped. a nem e
?reiro e refufcitará taó iUuftre como as eftre las . o
Jra dè pe o contrario achará feu corpo embalfnma-
do em emas de porfido aos hombros de leoens , ou
Íefames de mármore com foberbos , e magmfi-
cos epit^iios, ereluícitarámaxs v.l, que a mefma
''"óí '■ Oh que metamorfofe taÕ trifte, mas que ver-
dadeíla ! Vede fe ha de dar Deos boa f^t.sfaçaaaos
Som ns da defigualdade, com que hoje "« cem O ler
bem nafcido , que he huma vaidaae , que le acaDa
com a V da , he verdade , que o naô poz Deos na nof-
famaV- mas o fer bem refufcitado, que he aquelh
tZA que ha de dnrar por toda a eternidade eja
deixou Deos no alvedrio de cada hum No nalu-
m mo fomos filhos de noífos pays , ^^^^^^"^3°J{
remos filhos de nolfas obras. E que ^Jj» ."?f '^^"^^I
tadopor culpa íua quem foy bem "^fÇ^f^ ™^.
recimento feu , bftima grande ! ^«'"i^^^f ^i''.
bre haver nafcido mal he eniendar =>&«"";' -^^^f;
citar mal fobre haver nalcido bem he peyor , que
Sen"r:l5^an.turcza.Q,erelufcitebe^^^^^^^^^
br? nafcer de JeíTé, grande glonado «lho de^hajn
Num. io8.
74 Vieira ahhreviado
os I omél' f ^ * "'°"'' ''^ ''"•° ^^ hum Rey í Se
os homens fe prezaó tanto de fer bem náfcidn, p^
N^nfu^ coírtr "'■" 'k^ '^^ "-" ." Sn^Jos"
B -póft^eu 'n^ . obr,gaçoens, com que nafcerao.
obrfpaçoens'? t f^e^''.""?' '^^l''"'" '^"^^^ '"^° «t^''
tar melhor Fftl/f' y «bngaçaõ de refurci-
ceftes ""^ "' obng.içoens , com que naf-
• 654 O mais bem nafcido homem oue hnn„„
nem pode haver, foy Chrifto, ninguèr; t^Mor
^r/?J?Í /?"'!'"" bem , refufcitou melhor: G?o.
T£X^,fZrt'*"''"'°"f'- CiTifto, diz ^^n.
gratrrè-:?;„^--;^^^
055 I^e Deos pozera na maõ do homem o nafcer
I M ,, , cn m H r? "" Vn^<^\xo naícimento tem a def-
i tem í „i ^"? '^'S""'^° nenhuma defculpa tem •
Ijj^ tem a glor.a de /ermos nós os que nos fizemos Tfpfi
, 6S6 Q,,e gloria fera naquelle dia para hum ho-
mem
Dijcurfo LXI. 75
mem poder tomar para íi em melhor íentido o elo-
gio do grande Bautiíla : Internatos miilierummn''^^^'
furrexit maior : Entre os nafcidos das mulheres ne-
nhum refufcitou mayor. Ser o mayor dos naícidos,
€m quanto naícido , he pequeno louvor, e de pouca
dura: fer o mayor dos nalcidos, em quanto refuíciía-
do , illo he verdadeiramente o fer msyor. Na nolia
mao eftá , fe o quizermos ler. Neíla vida o mais ven-
turofo pode naícer filho do Rey : na outra vida to-
dos,os que quizerem, pedem nalcer filhos do mefmo
Deos : Dedit eis potejiatem filios Dei fieri, E que joan.i. iz,
naófejaõ iílo confideraçoens , fenao verdades, eíé
cathoUca ? Bemdito íeja aquelle Senhor , que he noí-
fa reíurreiçaó , e noíla vida : Ego [um rejurreãíOy
^ vita.
DISCURSO LXII.
Tirado cio panegyrico , que fez o AuStor nafegunãa
novena de S. Francifco Xavier intitulada Nada ,
que for ao todas as riquezas , que elle dejejou ,
e pojfuio , e o mefmo querperfuadirnos.
NADA.
657 T Sto,que a baixo do Ceo chamamos mundo, Patt. s.
X naô he outra coufa , que huma maquina na- ^ • '^ 5*
tural maravilhofamente compoílade mar, e terra,
abraçados, e unidos entre fi. Donde fis íegue , que
quem debaixo de hum pé tiver a terra , e debaixo do
outro o mar , terá lujeito o mundo todo , e fera fe-
nhor delle. Tal he a dobrada fuperioridade , que fi-
cniíica aquelle dobra do/zz/^^r do noílb thema : St-
nijtriim
Luc,
P/. 8.
7á
Vieira ahht
nijlrumfuperterram^ dextnmjuper maré. E hou-
ve ja mais nomefmo mundo quem foíle fenhor de
todoelle? Muit-os o preíumiraô como Nabucodo-
nofor , e Alíuero : muitos o defejaraócomo Aíexan-
dre Magno , e [ulio Cefar : ajgum houve , que o poz
. em praxe como Tibério : Ut. dtjcriberetur tiniver-
jusorbis , ehum fó , que realmente tiveíle eíta gran-
de tort una, que foy o mefmo que a perdeo, Adão. ,•
à^^ Delcre vendo David naõ a grandeza da per-
da , fenaóa do fenhorio, diíle : Cojifthuijli ewn fu^
per opera mammm tuariim : Q^ie confrituira Deòs a
AdaÕ fobre todas as obras de íuas maõs , iílo he íb-
bretudo o que tinha creado neíle mundo inferior,
íendo o mefmo AdaÕ a raayor , e ultima obra fua.
b baitando, como nota Santo Agoílinho. eftas pala-
vras para declaração do domínio univerfal do pri-
meiro homem , accrefcenta o meímo Profeta : Omnia
Juojecijlí fiibpedihus ejits\ (^je todas as mefmas
creaturas lhe tinha Deos pofto debaixo dos pés com
expreíTao de humas ferem as da terra , outras as do
mar , como fe flillara no noíFo cafo : as da terra: Oves
& bovesinfuper , & pecara campi : as do mar : Fo-
lueres coeh ,, f pifces ?naris , quiperambulantfevii-
tasmans, entrando/neííle fegundo coro as aves co-
mo creadas também com os peixes no elemento da
a,^ua.
f 59 pe íorte , que efte íenhorio do mundo em
Adão fe declarou por dous termos , hum de fuperio-
ridaae nelle, como cabeça , pelo adverbio /íz/^ít :
Lonjittutjti eumfuper opera ffianuum tuarnm , e ou-
tro de fujcíçaó nas coufas poílas a feuspés pelo ad-
vevoíofub: Omnia fubjectfíi fubpedibus f/W. E por-
que, ou com que niyílerio.? Porque aílim como a
poíle
77
cur ^
pi.decorpor.i, e ci^/il das coulas fe toma com as
^ aós, pondo as .mÓs nellas, affim a efpiruual, e t.o-
rnl fc loma com os pés, pizando-as, e metendo as de-
^'óóo^^ISndafe a realidade defts ceremonianaquel-
)a promelia de Deos , tantas vezes vepetida aos huios
He Ifrael para quando entraílem na terra de píom.f-
erit ■ Tudo, o que pizarem os volios pes, lera vollo. j„,„, ,. ,.
A terra de proimliaó fempre fignifica n.s a>vmas le-
tras a bemaventurança ou da outra vala , que con-
filfe em ver a Deos , ou defta , que cdniifte em o ler-
vir, eaoradar: e aflim como chegou a;i'f '^.''fe^-.Ojf "•
nes que fe eUe no Ceo pizaffe o iugar de Lúcifer , a h-,. ..
cad'eil-a de Lúcifer feria fua ; affim he certo , que tu-
do, o que pizamos nefte mundo,he noifo, e fo do qu.
pizanios ,lbmos verdadeiros fenhores lucoo mais
bor grande , alto , e fubUme que feja, fe o nao mete-
mos debaixo dos pés por defprezo , mas o trazemos
ou na cabeça por eftimaçaõ , ou no coração por amor,
ou nas paimas por oftentaçaõ , ou no defejo ( os que
o naó tem ) por ambição , e cubica , tao fora eftaraos
de fer fenhores de qualquer deitas coufas , que antes
ellas nos dominaõ, fenhoreao, e poíTuem a nos, e
nós fomos feus efcravos. De qualquer outro modo,
que le tratem ascoufas defte mundo , ou jaopezo,
ou hõ embaraço , ou faô cuidado , ou fao dor , ou
faó íujeiçaõ , õu faô cativeiro ; fó pizadas , e meti-
das debaixo dos pés faó domínio. , . , . ,
66i Supoofto pois , que meter tudo debaixo dos
pés he o verdadeiro modo de dominar, epoíluir tu-
do; effe mefmo dominar , e poífuir, bem apertado,
que vem a fer, ou em que confilte? Coufa mai-avi-
2. Cor. 6.
IO.
7 S Vieira abbreviado
™Í í^°""í^ ^'" "'''° f^'' ' "'^'^ querer nada de
quanto íepofrue ou pôde poíiuir. Texto expreiio
JS:>da temos , e tudo polTuimos. Pois le o ,fada he o
contrario do tudo, e o naõ ter he o contrario do pof-
fmr como podem polFuir tudo os que naó tem na-
dâ Íj.JoaoChryloilomo comentando o mefmo tex-
tf a, mm e/i ? v os dizeis como pôde fei- ifío ? Eu pe-
lo cmurano digo , como pode naõ fer ? Elle o prova
eu) 6. lauioantes das mefmas palavras: eu o nro-
jare. em S, Franciíco Xavier , que o confirmou Sm
elegantes argumentos : eu com hum fó argumento,
eícm elegância. Argumento aaim. Porque tem Xa-
vier o mar , e a terra debaixo dos pés ? Porque ter
debaoco dos pés he defprezar , e ter^^ebaixo 3ospés
he dominar: Ioga porque Xavier correndo tantas
terras e navegando tantos mares , nenhuma coufa
ZL 'T ' "'- t '"'' ' P^»- "f« ° "^d« d, terra
toe deo o domínio de toda a terra : Pedemfup^r ter-
dZf^ ''° mar odominio de todo ornar: Pí-
dím luper maré.
fel..,t. 6á2 Agora para acabar fallemos hum pouco com
nolco Navegando ao meímo Oriente os Portueue-
zes, fizeraofe fenhores do mar, e da terra : .e como
utaraat^efte dominia naquelles felices principies
taoaWoluto? Com grande diferença. Otextonaõ
1?' "3 r'^ "A"-*" ''".'''' ''"™ P*^ "° '"" ' e ootro na
teira, fenaohum pé fobre a terra : Sinifirwn fuper
ferram , e outro fobre o mar : Dextrum fuper maré.
M:'em tem os pés fobre o ma r, e fobre a cerra, piza o
mar, epiza aterra, e fó quem os piza,, os fenhorea
verda-
■ ^^* ,/cx
Difcurfo LXÍÍ. 79
verdadeirameiuc : Omms locus , quem calcavertt pes
vcíler , ve/ter erit. E ifto he o que tez Xavier
66^' Porém os que navegarão , e conqu.ftnrao o
O-iente com outro efpirito , naó meterão o m.ir e a
"a dcba>xo dos pés '; mas meterão os pes "o mar e
na terra para adq,,irir » <5"/ ^/^^^l^" ^f 'V^\°"t'
a terra , e o que debaixo ue fi efcond.a o m"- ^^ -^/
fov lá evar a beneaõ de Deos, elles forao la bulcar
Í° eç õ de Hacha^r. E que d,.. elFa benção : Im^n^ ^^„,
tionm maris quafi lac \ugent , ér tbelaurs «JM«; „.
ditos arenarum. As tormentas do cabo de Boa hl
perança , e os tufoens dos mares da China parecer-
Ihehaô mar leite : inundaúonemmarts ^J^fJ^feí
eent ■ oorque vaô bulcar os thefouros , que eltao el-
f ond'idos n1,s áreas : Et thefauros ah fcondnos arena-
rum As perdas bufcallashaô deb.ixo do mar de mer-
auto na coita da pefcaria : o âmbar elperarao, que
as tempeftades , ou as baleas o lancem as prayas : os
diamantes cavalloshao debaixo d. terra de Colocon-
dâ : os ruDÍs delenterralloshao na de Pegu : as fahras
hillashaô bufcar mais longe na dos Perfas , e JV.edos.
E porque fe meterão debaixo da terra , e debaixo do
mar , e naÕ a terra , e o mar debaixo dos pes ; por .lia
osnaó dominarão verdadeiramente.
664 Demócrito, por teftimunho de Séneca , o
mais fubtil de todos os Filofofos , teve para fi , que
todas edas, que chamamos eftrcllas,fa6 outros tantos
mundos mayores que efte, que habitamos; e pofto
que naÔ fe enganou na grandeza , em ferem outros
mundos dilfe hum erro, em que outros o fegmrao.
Ouvindo ifto Alexandre Magno, faltaraolheas lagu-
mas pelos olhos , e diffe chorando : He poffivel , que
ha tantos mundos , e que eu ainda naô acabei de con-
í.Cor. 8.
5.
80
Vieira ahhreviado
quiftarhum! AÍIimdiíTe aquelle monílro de fober-
cioi poiqiienao íabui em que confifte o Jom.nio do
jnundo. U dom.nio do mundo n.õ confiftc em o pof-
íuir, conlifte em o pizar, EíTa he a razaõ aitiíji iv
porque Deos fendo tao liberal deo todo o mundo ^ó
pn.neno aomem , e creando tai)tos homens , creou
hum ío mundo. Porque para end. homem po r"i?
um mundo en, necelíkrio que foíTem tantos mun-
dos, quantos íao os homens; mas para todos os ho-
>. uís, e eada hum homem pizar todo o mundo baf-
la numfo mundo. Defta lorte o dominou Xavier
pizanao-o, e nap querendo delienada: e do ireímo'
niouo o dominarão todos, os que o fouberaô pizar!
6Ô5 Oh fe os cubiçofos de riquezas fouberaô en-
tender, e penetrar bem efte ponto ! Ouvi huma no-
tável ponderação de S. Paulo , n.6 fei le bem enten-
aiaa: òcttts grattam Domini noflri Jelh Cbrifit
quontam propter vos egeiwsfaãus efl , cum elht di-
■ves, ut tlhus tnopia vos divites efjctis : Berrrfabeis
a grande mercê , e graça de Deos; com que elle por
amor de nos fendo rico fe fez pobre paVa nos enri-
quecer com a fua pobreza. Suppoem o Apoftolo,
qut todos fabemos lílo; mas he certo , que muitos ô
mo fabem , antes cuidaõ , que ha coufa , que Ic naõ
pode faber. Sediílera , que Deos lendo rico fe fez
pobre para nos enriquecer com a fua riqueza, bem fe
entendia ; mas para nos enriquecer com a fu a pobre-
za Mm E he hftima , que naô entendaó efta Fiio-
Jcuaos Chnftaos, enfendendo-a os çentios. Quem
ao os ricos nefte mundo ? Os que tem muito .^Naf)
1 orquc qu,em tem muito, defeja mais, equem dcfeja
mais, faltalhe o que defcjp , c effa ftlta ofaz pobre :
Inven-
Difcuffo LXII 8i
Iriventtts eft qui aliquid micupifceret poft omnia:
Houve nefte mundo hum homem , diz Séneca , que
depois de ter tudo, ainda defejou mais. Efte decla-
rou elle , que foy Alexandre \ mas com encarecimen-
to falfo, porque Alexandre nunca foy fenhor de tu-
do. O fenhor de tudo foy fó Adaó. Mas a eíTe tcim-
bem o perdeo a fua pobreza ; porque tendo tudo>
ainda quiz mais do que tinha. De maneira , que naó
herico quem tem muito, ainda que fejatudo^ P0Í3
quem he o verdadeiro rico ? Aquelle que naó quer
nada , porque nenhuma coufa lhe falta. Eefta he a
verdadeira riqueza, com que Ghriílo nos enriqueceo
com a fua pobreza , enfiaandonos a naô querer nada,
€omo elle naõ quiz.
666 Ainda naõ eftá dito ; porque aqui fe devem
notar duas couías muito particulares. A primeira
dizer S. Paulo , que o Filho de Deos nos enriqueceo
com a fua pobreza, e nao com a fua omnipotência J
Vtiílius inópia vos divites ejjetis, E porque.? Por*
que com a fua omnipotência pôde Deos dar^muitas
riquezas aos homens; mas fazellos ricos naõ pode;
Deo muitas riquezas aos AíTyrios, aos Perfas, aos
Gregos , aos Romanos ; mas todos elles com eftas ri-
quezas fempre ficavaó pobres; porque lhe faltava o
mais , que todos appeteciaó , e por iíTo fe deftruiao
com guerras. Que remédio logo para Deos poder fa-
zer os homens ricos ? O remédio foy o que elle to-
mou fazendofe homem , e pobre , e enfinandonos
com a fua pobreza a naó querer nada. Torno a di-
zer a naô querer nada : e efta he a fegunda enejgia
das palavras de S. Paulo , em que me admiro naõ re-
paraífem os Interpretes. Se diz , que Chrifto fe fez
pobre para nos enriquecer com a fua pobreza 3 por^
^ -Tom. II. F que
III
fart. I.
col, 6)^
8 2 Vieira abbreviado
que nao íignificou eíTa pobreza com a palavra pau^
pertas, fenaô com a palavra inópia^ ForquQ pmíper-
iw Sencc, fas, a qual fe define p^rz;/ poj/effw , fígnifica a po-
^p- 8. jn ]jYQza , que poíTue pouco ; porém a palavra inópia
"*' / por aquella negação />/,que nega tudo, fignifica a po-
breza, que naó quer nada , e fó 2íinopia , e a pobre-
za , que naó quer nada , he a que faz o homem verda-
deiramente rico : Ut ejus inópia vos divites effetis.
Aílim o entenderão , como dizia , até os mefmos gen-
tios , por onde Atalo famofo Filofofo em frafe tam-
Apud.se- bem gentilica diíTe: Nihil defideres oportet ^ftvis
nec. ép. Jovem provocare nihil dejiderantem : Se queres fer
taórico, que defaíies ao mefmo Júpiter, naó deíejes
nada, aífim como elle nada defeja. A porta certa da
riqueza naó he accrefcentar a fazenda , fenaõ dimi-
nuir a cubica.
GGj Que ricos feriaô os homens , e logo , e nefte
mefmo inftante fe foubeíTem conhecer , e eílimar os
thefouros do naó querer ! Comparemos pois com
os olhos bem abertos hlim nada com outro nada: o
nada do que le poíTue com ò nada do que fe nao quer,
cacharemos , que o nada do que fe poífue (ainda fem
encargo, ou encargos da coníciencia) he huma car-
ga pezadiáma , chea de cuidados , de defgoílos, de
temores, de dependências , de fujeiçoens, de cati-
veiros : huma matéria tanto mayor, quanto ellas fo-
rem mayores , fempre aparelhada , e expofta aos gol-
pes , e vaivéns do tempo , e da fortuna , e fem def-
canfo, íem quietação, fem liberdade: huma riqueza
rica de miferias, e a mais neceíTitada , e extrema po-
breza. Pelo contrario o nada do naó querer he hum
thefouro fó efcondido aos cegos, no qual fe encer-
ra a iíençaõ de todos os males, perigos, epezares
oi: u . defta
Dijcurfo LXII 8 3
deíla vida , e defcanlb íem trabalho , a alegria fein
triíteza , a liberdade íem fujeiçaó , e a poíFe íegura,
e inalterável de todos os bens , e do mayor de todos,
que he do lenhorio de nós mefmos.
668 Se acafo eíla riqueza vos naõ parece rique-
za , porque os menores a naó appetecem , nem os
iguaes a invejaô , nem os mayores a perfeguem . e car-
regaõ de penfoens , e tributos: fe vos naõ parece n-
.queza , porque naõ depende no campo do Sol , e da
chuva, que a criem , nem do muito Sol , que a feca,
nem da muita chuva, que a inunda, e afoga, nem da
formiga , da lagarta , do gafanhoto , e das outras pra~
gas , de que nenhuma induítria , ou poder humano a
pode defender : fe vos naõ parece riqueza , porque
naó le fazem fobre eila pleitos , nem eílá fujeita a
affedojou ódio do Juiz, nem á verdade, ou falíida-
de das teítimunhas, nem a fer citada , e levada ajuí-
zo para ouvir, e fer ouvida nos tribunaes : fevos
parece , que naô he riqueza , porque íe naó adquire
com trabalho, nem feconíerva com cuidado, nem fe
perde com dor própria , com que ás vezes roais doe
com agrado, e triunfo dos inimigos : fevos parece,
que naó he riqueza , porque por eila fe naó entrega a
cubica ásondas , e tempeílades do mar, nem os exér-
citos fe combatem nas campanhas , e fe derrama o
fangue , e perdem as vidas , para fuílentar a mefma
vida , e o mefmo fangue : fe vos parece , que naó he
riqueza, porque com anticipada crueldade de apofr
fuir vos naó defejaó a morte os filhos , os parentes , e
quaefquer outros, que aefperaô herdar : fe vos pare-
ce , que naó he riqueza , porque a naõ daó os Reys ,
nem a confultaóosMiniílros, nem a folicitaõos re^
querimentos, e vós íois o requerente, o Miniftro, e
F2 oRey,
Pàrt. 8.
Foi. 87.
ProY. 30.
«5-
S 4 Vidra ahbreviadb
o Rey , que fó comvofco vos defpachais : fe vos hao
parece riqueza , porque vos naõ tira , nem inquieta o
fono , a vigilância , e aílucia do ladrão , a dil igencia,
e negociação do emulo , e a calumnia , e engano do
que a quer para íi. Finalmente, fe todas eftas conve-
niências naõ baítaó , fendo cada huma delias riquiíR-
nia , coníiderai , que da riqueza donao querer nem
vos haó de pedir conta os homens , nem vós a haveis
de dar a Deos; antes o mefmo Deos em premio do
voíTo naô querer vos ha de dar aquella única bem-
aventurança , e femelhante á íua , na qual , como diz
Santo Agoftinho, tereis tudo o quequizerdes, e na-
da do que naó quizerdes : Ibi erit quidquidvoles , í^
non erit quidqiãd noles.
66^ Porque naÕ fera alguma vez a noíFa virtude,
como fao òs noíTos vicios ? Que vicio ha, que naõ
defeje infaciavelmente fempremais, e mais? Sala-
maõ , que tanto conhecia o bem , e o mal do mundo,
diz, que lançando os olhos por todo elle, achou qua-
tro coufas , que nunca fe fartaô , e fempre eftaó di-
zendo Ajfer ^ajfer : mais, mais, mais : Triafuntin-
faturabilia , é^ quavtum niínquam dicit : Sufficit,
Que quatro coufas fejaóeftas, explica o mefmo Sala-
maõ poj metáforas , evem a lerfegundo acommua
interpretação dos Padres, e Expoíitores a ira , alen-
fualiaadc , a cubica , e a ambiçaÕ : a ira , que fe naó
farta de fangue , e de vinganças : a fenlualidade , que
fe naõ farta de deleites , e prazeres : a cubica , que fe
naó farta de dinheiro , e riquezas : a ambição , que íe
naó farta de honras, e dignidades.
670 Ifto diífe defeu tempo o mais fabio homem
de todos os tempos, e ainJa mal, porque tanto fe
verifica, e fe experimenta nos noíTos! Mas q que eu
mui-
Bifcurfo LXIII. S5
muito ndmiio, e rcpnro, he, que todos eíles infacia-
veis fejao vicios. Nao haverá também huma virtude
infaciavel? Infaciavel queria Chriílo, que foíTe anof-
ia virtude, quando dilíe : Beaíi qin elurkint ^ & u^iA^.^,i:i
Jiúuntjiijlitimn. Mas fomos neíla paífagem da vi-
da , como os filhos de Ifrael na do deferto , que nos
enfaítia o manná , e todo o noíTo appetite , e a noíla
fome he pelas groffarias do Egypto. O manná era do
Ceo , nós fomos terra : os viàos nunca nos íartao ,
a virtude logo nos enfaília.
DISCURSO LXIIL
Tirado de hum fermao do Rofario.
NECESSIDADE.
• ^71 TVT ^ paía^^io d'EIRey Dário , em quanto p^h. 10;
1^ elle dormia três Guardas mores da peíToa^""'-^ ^*
Real , que lhe vigiavaô o íono , fííofofando, ao que
parece , fobre o focego, com que deícanfava aqueile
grande Monarcha , lem o deívelar o governo de cen-
to, e dezoito Reynos, de que era fenhor,excitaraó en-
tre fi aquella famoía queílaó , que refere Esdras :
Qiíal folFe a mais poderofa coufa do mundo. Defper-
tou o Rey , e lendo a queítao , que os mefmos autho-
res delia lhe tinhaó poíloefcrita debaixo dos travef-
feiros , prometteo grandes prémios aquém melhor a
refolvede. Hum dilfe, que a mais poderofa coufa do
mundo he o Rey ; porque os Reys podem quarito
querem, e ainda quequeiraõ o que naó podem, nin-
guém ha , que lhes reíiíla , tudo executaÕ , e confe-
guem. Outro diíle , que mais poderofo he o vinho ;
Tom. II. F3 por-
8 6 Vieira ahbreviado
porque á força íliboroía deíle licor fe rendem muitas
cabeças coroadas, e o podéra provar com a de Noé,
da qual fiou Deos o governo , e reílauraçaó do mun-
do , e naõ arreando na mayor tempeftade , que foy a
do diluvio, o vinho o derrubou. O terceiro finalmen-
te , que era Zorobabel, diíTe , que mais poderofa he a
mulher, e o provou com hum notável exemplo de
certa mulher chamada Apemen, bailando o primei-
ro de todos, que foy o de Heva. Mas naõ contente
com efta refoluçaó, em que maniteílamente venceo
as dos companheiros , accrefcentou , e concluio , que
a mais poderofa coufa do mundo he a verdade : Fe-
Esd.34. Irritas magna , à fortiorpr^ omnibus.
Num. 184. ^7^ Efta ultima fentença approvou o Rey : efta
foy applaudida de todos com publicas acclamaçoens:
fb. 41. Et omnes populi clamaverunt , ^ dixerunt : Magna
ejl veritas , irpr^valet : E efta fegui eu , e tive por
certa muitos annos ; porque com efte grande concei-
to da verdade na cabeça me nafceraõ, e crefceraó
nella ascans em todas as partes da Europa. Porém
depois que paífado a efte mundo novo vejo de mais
longe o velho , tenho achado por experiência , que
muitas vezes mais poderofa he a mentira , que a ver-
dade. Nao fe pode ifto dizer fem efcandalo da ra-
zão 5 e horror da mefma natureza ; mas naõ fe pode
negar. E porque ? Porque a mentira he crida , e acre-
ditada , e a verdade nao tem fé , nem credito : a men-
tira efcufa os culpados , e a verdade nao pode defen-
der os innocentes : a mentira he abfoluta fobre fua
palavra , e a verdade condemnada íem fer ouvida : a
mentira profana facrilegamente a religião , e o lacer-
docio , e a verdade nao lhe vai fagrndo : em fim a
mentira , que devera ferpizada, traz debaixo dos pés
a ver-
Difcurfo LKIII. 87
a verdade , e a verdade , de que fe diz , que nada fo-
bre tudo , fe vê tao foçobrada , e afogada da vioten-
cia, que nem reípirar pôde.
672 E poílo que os juizes íejao redos , ou o quei-
raô parecer , he tal o enredo dos teítimunhos talfos,
indu/idos, e fobornados ou com o dinheiro , ou
com o ódio , ou com o temor , ou com a dependen-
cia , ou com a lifonja , ou com tudo , que a remira
he a que vence, e a falfidade a que triunfa. Aííim
que muitas vezes a mentira hoje no mundo he mais
poderofa, que a verdade : aílumpto , que eu poderá
provar com exquifitos , e tormidaveis exemplos, le
naÕ fora outro o meu intento.
674 Suppoílo pois , que na noíTa experiência Num. 185,
por abufo feja mais poderofa a mentira , que a ver-
dade, e na íentença de Zorobabel por razão feja
mais poderofa a verdade, que todo outro poder 5 fe-
gueíe por ventura daqui , que a coufa mais poderofa
do mundo ou bem , ou mal governado feja qual-
quer delias ? NaÔ. Porque ainda ha no mundo outra
coufa mais poderofa. E qual he ? A neceíTidade : a ne-
ceílidade, a pobreza, a fome, a faltado neceírano
para o fulknto da vida he o mais forte , o mais pode-
rofo , o mais abíoluto império , que dijpoticamente
domina fobre todos os que vivem. Naó ha couía taó
difficultoía, taô árdua, taô repugnante á natureza^,
á que a naó obrigue , a que a na.6 renda , a que a naó
fujeite , naó por vontade , mas por força , e violên-
cia, a duriífima, e inviolável ley da neceíFidade. ^
óys A neceífidade he a que leva o foldado á
guerra, e a efcalar as muralhas, onde vendo cahir
huns a ferro, e voar outros a fogo. avança com tudo,
e naó defmaya. A neceífidade he a que engolfa o ma-
F4 rinhei-
Vieira ahhreviado
rinheiro nas ondas do Oceano: ellas com os naufrá-
gios á vifta , e elle com tal oufadia , que metido den-
tro em quatro taboas fe atreve a pelejar naó fó com
os ventos , e tempeftades , mas com todos os elemen-
tos. Aneceílidade he a que mete, ou precipita o mi-
neiro ao mais profundo das entranhas da terra , e
fem temor ,^que as mefmas montanhas, que tem fo-
bre fí , cayaô , e o fepultem , elle lhe vay cavando as
raízes , e fangrando as veyas. Finalmente com mais
ordinário , e gerai defprezo da vida , e da íaude
quem faz , que o lavrador nao tema os regeíos do in-
verno , nem o fegador as calmas ardentes do eílio ,
nem o paílor os dentes do lobo , e daurfo , e em mui-
tas partes as unhas do leão , e do tigre , lenaõ a ne-
ceíTidade? Epofto que huns , e oufros tantas vezes
perecem era taó conhecidos perigos , a melma necef-
íidade com implicação manifefta da própria confer-
vaçaóhe a que para fuftentar a vida os obriga a per-
der a mefma vida. Até o pobre, e atrevido ladraó ,
que defde o primeiro paíTo , com que íalteou os ca-
minhos, começou a caminhar para a forca , fe ao pé
delia lhe perguntaô quem o trouxe a taõ miíeravel
eílado, refponde com o laço na garganta, que a ne-
ceíFidade. E para que ninguém íe admire deíle gran-
de poder da neceífidade fobre todos , a razaó he , diz
o provérbio , porque todos os outros poderes faõ fu-
jeitos ás leys , e f ó a neceílidade nàó tem ley : Necef'-
Jitas carct lege.
Num. z86. (yjy Aífim como os fabios dos Perlas, e Medos
deraõ o principado do poder á verdade , allim os Gre-
gos , e Latinos , mais fabios que elles, fobre a mef-
ma controveríia o deraó ao amor. Eílcs diííeraó :
Omnia vincit amor , e naó houve naçaõ taó dura , e
har-
Difcurfe IXIII. 89
Mrbara que fe naó affinaiTe , ou aliftaffe debaixo
S híent^a. Mas fe no mefrao cafo con-mr o
amor , e a nêceffidade , quem vos parece , q"e ha cie
vencer? Claudiano difle : Paupertas mefavapie-a..i.i.
'S^Údusque Cupido^ S^dtoUranda^^^^^^
toleramius amor. Quer dizer , que apertado hum ho
mem por huma parte da fome , ^Por outra do mor
com a fome fer cruel , e o amor brando , a fome he
tolerável, oamornao. Eu çreyo que qua do elte
Poeta iftoefcreveo, devia de ter bem comiuo, e
tamlem bebido. Em dizer : Sed tokrj.ndafam^.,
non tolerandus amor , naõ foube o que dilie. Havia
e d ze pio contraAo : Sed tolerandus amor , non
Tolerand!fames; porque quando ^oncorrcn.J^^^ntos
o amor , e a fome , a fome triunfa do «'nof '^ ^"/^
o que tudo vence. EfenaÔ, ponhamos ambos em
campo, e veiamos qualleva a viftona.
óU Padeciafe grande fome nas terras de Ca-Nu.,.sr,
naan , quando Jacob para remédio delia de onze fi-
lhos, que tinha, mandou os dez ao Egypto. l/ouxe-
raÓ paõ para alguns dias , mas com obrigação de le-
varem também o filho undécimo , que era Benjamm,
quando folTem bufcar mais. Era Benjamin o m,mo ,
e amor de Jacob : e na5 fe podem crer os extremos ,
que elle fez para naó apartar de fi o filho , que unica-
mente amava. InftavaÓ os irmaÕs , e atodasasin-
tancias refpondia , e fatisfazia o pay : ate que fina-
mente o apertarão com huma , a que nao teve olu-
çaó , nem reporta , e fe deo por vencido. L qual foy
efta? Ada neceíFidade. Em quanto durou o pao,
efteve forte Jacob; mas tanto que fe foy acabando
aquelle fiador da vida , e lhe dilTerao os «lhos, que
elles, e feus netos morreriaÒ todos a fome, fe nao^^^
:ll
- 90 Vieira abhreviadó
vaíTem a Benjajtiin , cedeo o amor á neceflidade , e
venceo a neceffidade o amor. Aflim o dilTe em pro-
pnos termos o meimo Jacob : Si fie neceffe ejl ,hci-
íí ?«o^z;«//„ : Já que aílim o pede a neiffidade fa-
ze. o que qu.zírdes. O que quizerdes , diz , e naõ o
n?„t %fu°' P"'''"^ *" """ó '^"'^e'''' "Paftar de mim
o imico hlho, que tanto amo; mas a minlia vontade,
cen dade. He ponderação de S. JoaÓ Chrvfoftomo,
o qual nos encommenda , que reparemos nélia : Fide
rninc , qumiodo 7teceffitas patris amor em 'oincit ■ Re-
parai nefte caio, e vede como a neceffidade vence o
amordopay.
(yy9 O amor dos pays he o mais forte de todos , e
nenhum pay amou mais , que Jacob , nem houve fi-
lho mais amado que Benjamim ; porém á viíh da
neceílidade , e da fome apartefe o paj( do filho , e o
hJho do pay, rompaôfe os coraçoens db.ambos com
dor, chore aaufencia, fufpirem as faudad^s, renda-
le violentado o amor, e a neceífidade triuiíe : Si ftc
7iece/Je e/t , faate quod vultis. Mas que muito he
que-o amor do pay para dar de comer aos filhos ven-
ceífe a necefiidade , e fome de Canaan , fe na fome
debamana, e dejerufalem venceo tanto a neceíFi-
clade o amor das máys , que chegarão a comer feus
próprios filhos!
Num.. 88. 680 Eftes últimos exemplos poucas vezes viftos
lao os que com mayor horror da natureza encarecem
o poder, e violência da necefiidade j mas os que ca-
da dia acontecem , naÓ faÓ menos feyos , menos trif-
tes, nem menos para temer. O primeiro efieito/ou
con/equencia da necefiidade he o deíprezo da hon-
ra ; o legundo a deílruiçaõ da virtude , e ponho em
le-
Difitirfo LXÍÍÍ. n
leeundo lugar a deítruiçaÓ da virtude ; porque o mu-
ro da virtude he a honra, e derrubado efte muro, a
virtude , que elle defendia, facilmente re/e'uie.
Qiiem fe naÓ envergonha dos homens, que ve , tacii-
niente perde o refpeito a Deos , que nao ye. Us Ro-
manos para a emulação de tal íorte edihcarao os
templos da honra , e da virtude , que pelo da virtude
fe entrava ao da honra ; e o demónio para a tentação
primeiro bate o da honra para derrubar o da virtu-
de. Por illb fendo todo o peccado oílenfa de Deos,
'ime de leia Mageftade divina , introduzto o mel-
ecri
mo demónio no mundo, que alguns peccados nao
foíTem infames, para que tirado o temor da deshonra,
ficaíle facilitado o precipício da culpa.
68 1 Aberta pois a primeira brecha no muro
da honra, a penas fe acha virtude taó confiante , que
fitiada da neceflldade , e apertada da fome pela trit-
te condição fomente de ter com que íuílentar a vida,
naó renda à confciencia , e a alma a taÓ infame par-
tido. Efta he a razaô conhecida até dos gentios,
porque Virgílio quando defcreveo o pórtico, e en-
trada do inferno,adornado feamente daquelles monl-
tros horrendos, collocou também entre eiles a po-
breza , e a fome : Malefuada fames , & turpts egef-rsxg.6,
tas. A' fome chamou makfuada, e á pobreza /ír/r-^"^'^-
pis , porque nao ha vicio , nem maldade , que a fo-
me naó perfuada , nem torpeza , ou infâmia , que a
neceíTidade , e pobreza naõ facilite.
682 Vamos áEfcriturafagrada, em que no velho, Num. 18^,
e novo teftamento defta mefma fome , e defta mef-
ma pobreza temos dous admiráveis reparos , e am-
bos em dous defcendentes da nolFa Ruth , David , e
o filho de David , Chriílo. Jejuou Chnílo no defer-
to qua*
^*"^
'■tfV.Vil.-''."Vfc-7
5^2 Vieira ahhreviado
to quarenta dias , e em todo efte tempo nao o t^n-
tou o demónio. No fim do jejum teve o Senhor fo-
u.s\..,umQ' Pojlea efurttt , q no meímo ponro diz o Euan-
geliíta, que odemonio Te chegou a elle, e o tentou:
ib. 3. £/ ^rf^^^;/j tentator. Pois fe o tentador , que naÔ íó
era demónio , fenno o mayor de todos os demónios ,
em quarenta dias fe naó atreveo a chegar a Chriílo ,
^ antes o temia , e fugia delle , e retirado eílava obfer-
vando fomente a prodigiofa abílinencia daquelle ho-
niem ; como agora , elogo no meímo ponto, em que
reconlieceo que tinha fome , fe atreveo a o acome-
ter , e tentar? Porque he tao naturai efFeito da fome
o enfraquecer a virtude , que até hum íanto taô for-
te , tao confiante , e taÔ milngrofo , que pode paíFar
lem comer quarenta dias , entendeo o demónio , que
íípertado da fome nao poderia refiftir d tentação.
683 S. Bafil 10 : Semiens dtaholus , quia ubi fa-
mes, tbt tmoecilhtas, aggreditur ad tentandum. Fez
o demónio, dizS. Bafiiio, eífedifcurfo: Onde ha fo-
me, ha fraqueza; pois agora he o tempo de tentar ef-
te homem , pofto que taÕ miíagrofo , porque fe a fo-
me o tem meyo rendido, a tentação o acabará de ven-
cer. bile bem deve de conhecer , que fou eu o demó-
nio ; mas hum homem com fome, e fem remédio, ain-
da que o comer , que íe lhe offerece , feia dado pelo
demónio , ha o de aceitar.
Num. 190. 684 AOim animado o tentador , fez defcuberta-
mente o tiro , e o que diífe a Chriílo, foy : Si Filius
Det es , dic ut iaptdes ijli panes Jicmt, Com muita
razão argue aqui S. Pedro Chrvíòlogo ao demónio
de que quiz tentar, e naÓ foube: Cupis tentarejed
nejcis. A primeira coufa , que o demónio diíle , fov
a primeira , que havia de callar. Vem cá, demónio
igno-
Match.4. 3.
Chryfol.
ferm. de
ccnt. 1 1.
Dlícurfo LXIII. 9^
ignorante, queres render, e derrubar a efte mefmo
hmnem , a quem tentas , e trazeslhe á memoria o fer
So dè Deos : S: Pilius Dei es ? Naó labes , que o
„ avor brio , e o mayor empenho de hum homem de
" to nafcimento para naô commetter .nd.gn.dades ,
nem vi e^as , heíembraríe da nobreza de léus pays.
e naô querer pôr mancha na fua geração ? Affim he,
diz o demónio , mas ilTo íe entende , quando o filho
de bons pays íem que comer; P»),!'" q»^'!"^^^
com fome, e fe vê apertado da neceflidade , nem az
cafo de pays , nem fe lembra de geraçoens nem olha
para as manchas da honra , nem para o credito , e re
Dutaçaó da pelToa , a tudo fecha os olhos , com tanto
5ue tinha com quê fuftentar a boca. Affim o cuidou
o demónio de Chrifto, e fenelle fe enganou, naofe
enganou em Efaú , nem em Jonathas, nem no Prodi-
To^ e infinitos outros. A regra geral he-Uhfames
ibimbecillhas : e aífim como á fome fe fegue a fra-
queza , allim á fome de muitos dias muitas fraquezas.
^ 68? O outro defcendente , e mais chegado de Num.
Ruth foy David. Eque nos dirá de fi aquelle valen-
te de Deos , que com as maôs defarmadas efpedaça-
va leoens , e com huma pedra derrubava gigantes í
Diz o que ninguém podéra imaginar ; porque diz
affim: Infirmàtaeft in paupertate vtrtus mea, ir pi.\m
offa mea conturbatajunt : Na minha pobreza entra- ....
queceole a minha virtude , e chegou a fraaueza a tan-
to , que até os mefmos oíTos me derrocou/ Quem po- .
dera imaginar de David duas taes coufas , pobreza ,
e fraqueza ? Nem a pobreza diz bem com hum Key,
nem a fraqueza com hum homem taõ valente. Mas
em tudo fallou David como quem bem fe conhecia
como homem , e muito melhor ainda como Rey. bo
x^Vf
50.
DfmJS^^Ê^'.
•-á^a-J>.3títeí<-.
^4 Vieira ahhreviado
eítranhará o nome de pobreza nos Reys quem naÔ
labe, queos Reys faÓ mais pobres, que os vaílaljos.
rsao he mais pobre quem tem menos, íenaõ quem
Jieceííita de mais. E ninguém tem mais neceííidade ,
liem mayores neceífidades, que os Reys : neceílida-
ae de fabricar armadas , neceííidade de fornecer exér-
citos neceííidade de fortificar praças, e preíidiar
tortaiczas , neceffidade de faiarear Miniílros nos Rev-
nos próprios , neceífidade de manter, eauthorizar
limbaixadores nos eítranhos , neceífidade de fuften-
tar com decência , apparato , e magnificência Real a
própria Mageflade, e mil neceíTidídes outras pubJi-
<cas , ^ e occuitas , das quaes pedia o mefmo David a
^a4.x7.Deosolivraííe: De nece[fitatibusmeis..erue nw e
cercada, antes^opprimida de tantas , etaõforçoíls
neceffidades a falfa potencia , e verdadeira pobreza
dos Keys,, vede a quantas quebras de confciencia e
aquantas fraquezas de virtude eílará expoíla • Infir-
mata eft m paupertate virttis mea ? Fraqueza nos
mefmos tributos , e fubfidios necefiarios , tolerando
que carreguem fobre os pequenos, emiíeraveis, eíi^
quem izentos os grandes : fraqueza nas doaçoens
moííiceofas , e indevidas, naÕ fe pagando no mermo
tempo o que fe deve aos Jegitimosacredores- fra-
.:, queza nas chamadas graças feitas prodigamente aos
que a lograo de perto , efquecidos os que fervem , e
trabalhão ao longe : fraqueza na obfervancia , e dií-
íimulaçao das leys com os poderofos : fraqueza na
jgua.dadedajuftiça: fraqueza no verdadeiro, edeA
iiiitereífado exame das caufas : fraqueza na attençaó
ao luxo, e regalo, para que tudo fobeja: fraqueza no
cJeícuido da confervaçaó do que íe perde , para que
tudo fâJta , e tantas outr^is fraquezas de virtude, que
ainda
Difcurjo LXlll 9 5
ainda nos Reys , que parecem timoratos , mais fe po-
dt» chorar , oue dizer.
686 Ifto confeíFava David de fi no tempo , em que Num. .,..
eraRev. Mas antes de cingir a coroa, e depois que
leu próprio ftUio lha tirou da cabeça , em que a lua
pobreza foy mais manifefta , também nao faltajao
fraquezas á fua virtude. No tempo , em que íervia a . Reg. zy.
Eláey Achis faltando á fé da hofpitahdadc , rouba- «• <^^-
va os vaflallos do mefmo Rey , e para que fe nao fou- ;
belTe, matava a todos, o que naô podia fazer hcita- •
mente , porque a fua authoridade ainda era privada.
No tempo , em que andava eícondido de Saul , por- r Reg.zs.
que Nabal Carmelo lavrador grolfo o nao quiz fo^- "•
correr, deliberou, e jurou, que a ele, e a todos os
de íua cafa havia de tirar a vida , e por o fogo a quan.
to poliu ia. ^ . j Aurí -' «^.. «
687 No tempo, em que fugia de Abfalao y por^.Reg. u\
hum prefente,comque Siba criado do Principe Isbo-7.
feth Ihefahio ao caminho, fem mais mtormaçao , ^ j^^^^^.
que a fua , lhe deo todos os bens de feu fenhçr : e o ^7. & íe^,
peyor , e mais he , que depois de lhe conítar da inno-
cencia de Isbofeth , devendo mandar enforcar abiba
como ladraÓ , e falfario , para nao emendar de todo
o que tinha feito, mandou, que o ladrão , e o rouba-
do partiííem entre fi os bens. Nao coníla das H^ícri-
turas areílituiçao defta injuftiça ; mas , como notao
todos os Theoíogos , e Expofitores , he certo , que
depois afez David ; porque doutro^modo nao le lal-
varia. Tanta razaó, e tantas razoens teve eíte he-
roe, por tantas outras qualidades grande, psra dizer,
e confeíTar , que na íua pobreza enfraquecera a íua
virtude: Infirmata ejtmpaupertatevirtus tnea.
DIS.
:v]tjmj-5.aa^-
Part' 14,
KUJD. Sx.
96 Vieira abhreviado
DISCURSO LXiy.
Tirado do difcurfo prhneiro das cinco pedras da fun-
da de David pregadas em Roma,
OBRAS.
688
Num. f 2,.
AS obras faó filhas dos penfamentos , no
penfamento fe concebem , do peníamen-
to^nafcenijcom o penfamento fecriaó, feaugmen-
taõ, e feaperfeiçoaó: ecomo os filhos recebem dos
pays a natureza , o fangue , e o appellido , affim fe
recebe do penfamento todo o bem grande, e louvá-
vel, que refplandece nas obras. Todos comummen-
te cuidaó, que as obras íaó filhas do penfamento, ou
ideas, com que fe concebem, e conhecem as mefmas
obras : eu digo , que faô filhas do penfamento , e da
idea, com que cada hum fe.concebe, e fe conhece a íi
meímo-
689 A imagem mais perfeita , a proporção mais
ajuftada , e a medida mais igual da obra he o conhe-^
cimento de fímefmo em quem afaz. Quando Apel-
Jes pintava a Alexandre, tinha na mente a Alexan-
dre: quando Alexandre conquiftava o mundo, tinha
na mente a íi mefmo. Na idea de Apelles cabia Ale-
xandre em hum quadro : na idea de íi mefmo nafi ca-
bia Alexandre no mundo , e por ilTo o conquiílou
todo.
.. /
DIS-
Difcurfo LXV. 9T
DISCURSO LXV.
Tirado de hum fermaÕ da qiihna terça feira da
Qtiarefvia pregado em Roma áferenifjlnia Rai-
nha de Suécia Chriflifia Alexandra em obfe-
qiiío de hum diÕiame daquellc [uhlime e/piri-
to , que deteftando as beat árias publicas , fó
reputava por verdadeiras virtudes as que
Je occultavao aos olhos do mundo : e de
' outro da canonização de^ S. Francifco
Xavier.
OLHOS.
690 A Mayorgraça danatureza^ e o mayor pe-Pa«. 7.
xiL. rigo da graça faÕ os olhos. Saô duas iu- ^""^' ^^^*'
áes do corpo , faó dous laços da alma. Mas coino os
i-nefni os olhos ou faó os próprios, com que vemos,
ou os alheyos, com que fomos viílos j queftao pode
fer naÕ vulgar , e útil curiofidade íaber, quaes delles
fejaõ o mayor laço , e o mayor perigo. Eu em tanta
eíireiteza de tempo naô o tenho para difputar : eaf-
fmi digo refoiutamente , que o mayor perigo, eo
mayor laço fao os olhos alheyos. E porque t Porque
fendo taô natural no homem o defejo de ver , o ap-
petite de fer viílo he muito mayor. Coníiderava
Job a fua morte, e vede a efpinha ^ que mjais lhe pi-
cava o coração : Nec ajpiciet me vifus hominis'. Mor- Job. 7. Sj
rerei , e naõ me veráô mais os olhos dos homens. O
uío de ver tem fim com a vida, o appetitede fer vif-
to naó acaba com a morte.
691 Efta foy a origem das eílatuas Rom.anas íe-'
■ Tom. II. G pui-
5> 8 Vieira ahhreviaão
pulchraes. Punhafe a eíbtua imagem do defunto
fobre^o repulchro,para que o homem, que dentro del-
Je naõ podia ver,robre eile foííe vifto. Já que me fal-
ta a vida própria, ao menos naó me falte a viíla alheya.
De maneira, que devendo os mármores da fepultura
fer huns efpelhosj em que fe viíTem os vivos , faó hu-
ma anticipada refui reiçaõ da arte , em que íe vem os
defuntos. Taó immortal he nos mortaes o defejo de
ferviílos! E fe eíla ambição vive nos mortos, nos
vivos que fera ? Será o que diz o texto , que propuz,
com major erro ainda , e indignidade na vida , c- ue a
ambição , e vaidade depois da morte : Nemo in occul-
to quidfacit. Ninguém faz occultamente coufa di-
gna de louvor; porque occulta naõ pode ferviíla.
Tirai do mundo, diz Séneca, os olhos alheyos , e
nada fe fará do que o mefmo mundo admira, epre-
Seaec.epift. za : Nemo oculisfuis lautus eji : ubi tejiis , ac fpe-
^^' Bator abfcejjit^ fubjidunt omnia^ quorum fruâíus
monjlrari , é^ confpici.
692 A inclinação maisnatutal, mais viva , eque
mais fortes, e profundas raizes tem lançado na natu-
reza humana , he o defejo ou appetite da gloria.
Ariftoteles lhe chamou ao homem : Animal glorio-
fum, E Tácito mais verfado nas politicas do mundo,
que nas do efpirito, diíTe , que efte he o ultimo vi-
Tacic.4hif.ci0, de que fe defpem os fabios : Gloria cupiditatem
*°íimfi?^'^' ^^^^^f^pi^^^tibus novijflmam exui. E já PlataÕ tinha
dito pela meímafrafe, que era a ultima túnica , de
que ledefpiaó as almas. Poílo que em dizer, que as
ahnas fe defpiaó, dilfe mais do que devera ; porque
fendo ellas immortaes, eos cadáveres mortos, naó fó
nos gentios, fenao também nos Chriílaõs vaó com
elles amortalhadas á fepuitura. AíFim o pregou mais
fabia«
Part, 8.
foi. 403,
91 Lypfio.
Difairfo LKV. 99
íabiamente , que todos, S. João Chryfoftomo : Oim chryfoí\:
reliqua vitia unà ciim morte diffolvanttir ^ fuperbta^^^^^^^^
pojl mortein omnl conatu in ipjo cadáver e contendh ^^"^^ *
naturam fitam prodere.
6^-^ Efenaõdigaôno tantas teftimunhas de már-
more, em que o mefmo appetite de fazer immortal
a gloria ou fabrica em vida , ou manda fabricar de-
pois da morte os foberbos fepulchros, e efcrever,
ou gravar nclles com letras de bronze os gloriofos
epitáfios. Mas paííando dos que fervem á vaidade
aos que profeíTaõ a virtude; quantos vimos ainda
com opinião de fantos , que depois de vencerem os
outrosvicios, fe deixarão vencer miferavelmente da
mefma gloria de os ter vencido ? Qijantos pizaraó
animofamente o mundo , e depois de o meter debai-
xo dos pés,os derrubou, e pizou a elles a mefma glo-
ria de o ter pizado ? Saõ como os que pizaô a planta
de Noé , e bebendo depois o licor do que pizarao,
perdem como o mefmo Noé ojuizo. Os mais fízu-
dos di^em a Deos : Non nobis , Domine , non nobis^ pí- iij;
fed nomini tuo dagloriafu. lílo he o que fazem os *^-
mais timoratos partindo pelo meyo aquelle Nomi-
ni tuo da gloriam : ifto he deixando para Deos a glo-
ria , e tomando para nós o nome. Se pregamos a glo-
ria para Deos , mas para nós o nome de grande Pre-
gador: fe eníinamos a gloria para Deos, mas para
nós o nome de grande letrado : fe fazemos obras de
mifericordia , a gloria para Deos , mas para nós o no-
me de caritativo : fe nos mortificamos, e jejuamos,
a gloria para Deos , mas para nós o nome de abíli-
nente: finalmente íe exercitamos quaefquer virtu-
des, ou todas, a gloria para Deos, mas para nós o no-
me de virtuoío, e lanto.
Gz 694 Os
i Keg. 1 1
18.
1^0 Vieira abhreviado
F.9I 407. 694 Osgenerofos , e fieis Toldados , e Capitaens
,- toda a gloria das fuás façanhas , e vidlorias a devem
• renunciar de fua parte , e naõ a querer para íi , e para
lua fama , e honra ; fenaó inteiramente para o Rey ,
a quem fervem. líto he o que fez entre os Hebreos
Joab no memorável cerco da infigne Cidade de Rab-
bat , que tinha rendida , refervando o nome da vicíio-
na para David: Neiíominimeo adjcribatur viâio-
ria. E iílo entre os Romanos Germânico no trofeo,
que levantou fobre hum monte de armas depois das
Germânicas domadas , e fujeitas ao Império dedi-
cando o mefmo trofeo depois dos deofes a Auguíto
fem mençaô alguma de leu próprio nome, comono-
Tacit. !. 2. tou Tácito : Congeriem armorum Jiruxit fuperba
annai. ^^^^ tittilo , à^ cum Cã momimentã Auguflo facravif-
fetj defe nihil addit. A acçaõ de Joab fe naõ foy li-
fonja j foy cortezia : a de Germânico pareceo modef-
tia , € pode fer demafiada prefumpçao, como naó
deixou de morder o mefmo Tácito ; mas ambos el-
^- les por eíte rodeyo fendo publico negociarão mayor
gloria, porque de homem a homem a gloria mayor
he de quem a dá : e que excefTo de gloria como dar
viílorias a David , e trofeos , e triunfos a Auguílo ?
D I S C UR S O LXVI.
1 irado dehumfermaô^ pregado na Cape 11 a Realpe^
lo bom fticcejfo das nojjas armas.
Pare. 7.
Num. 4^0,
^9S
A.
O P I N I A M.
S matérias da opinião fao muito deli-
cadas , e a confciencia da honra naõ ad-
mitte
«■Mi
Difcurjo IXFIJ. loi
mitte eícrupulos. A mais perigofa confequencia da Num. 487?
guerra , e o que mais le deve recear nas batalhas , he^
a opinião. Na perda de huma batalha arrifcafe hum
exercito , na perda dà opiniat arrifcaíe hum Reyro.Num.488:i
Sdlamao o Rey mais fabio dizia , que melhor era o
bom nome , que o óleo, com que fe ungiaõ os Reys :
Melins eji bonum iiomen, qtiam oletim uJiãwfns.quo^^cMj.z.
ungehannir capita Regum\ porque a unçaó pódedar^^^^j^ "
Reynos, a opinião pôde tirailos.
DISCURSO LXVII.
Tirado de hum ferm ao da quinta Dominga da Qita-
refma , e de outro da primeira oitava de Pajchoa
pregado no gr ao Pará na occajtaô ^ em que che-
gou a nova defe ter dejvafiecido a efperança
das minas j que com grandes empenhos Je ti-
nha^ ido defcobrir,
OURO.
696 C E J^^ ^^^^^ "^ mundo , que podéra compe- Part. z:
O tir no fenhorio com Deos, he o idolo uni-^"^'*^^.
verfsl do ouro , e prata. Muitas naçoens ha no mun-
do, que naó conhecem a Deos: nenhuma, que naõ
adore, e obedeça a eíte idolo. E ainda dos que pro-
feíTaô fervir a Deos , quem ha , que o naô firva ? Pois
aíTim como ninguém pode fervir a dous fenhores ,
allim diz Chr^ílo , que nao pode fervir a Deos , e mais
ao dinheiro: Nonpotejlis Deofervire^ & mammon^.
Servir a Deos com o dinheiro bem pode fer , e he -
bem que feja ; mas fervir a Deos , e aodmheiro junta-
mente he impoíFivel. Quando Zachco fe refolveoa
Tom. II. G3 fervir
I02
Vieira abhrcviado
Matth. t7.
Match. 6.
fervir a Chnfto, logo renunciou o dinheiro : e quan-
do Judas íerefoiveu a íervír o dinheiro, logo renun-
CIOU a Chnfto. Arrependido o mcTnioJudas deter
vendido n íeu Meftre , lançou os trinta dinheiros no
íempio : Projecn eos in tewplum. Eos Miniftros do
teo)plo reíolveraó, que naõ fe podiaõ meter na bol-
ça: Non licet mtttere eos in cor bonam. Moúno dinhei-
ro, que nem roubado, nem reílituido , nem no tem-
plo, nem na bolça teve lugar com Deos: e aííim he
todo. Se o roubais, perdeis a Deos: fe o reftituis ,
perdeis o dinheiro : fe quereis fei^vir a Deos , Deos ,
e o dinheiro naô cabem no mcímo templo : íe que-
reis fervir ao dinheiro, odinheiro, eDeosnaôca-
bem na mefraa bolça : Jut unum ódio habebit , <i^
alterum diliget : aut tmumjtijtimbit , ^ alteriim
xontemnet. Ou haveis de renunciar o dinheiro, fe
amais, e prezais a Chriílo, como fez Zacheo, ou
haveis de renunciar a Chrifío fe amais, e prezais o
dinheiro , como fez Judí?s. Oh quantos Judas , e quaó
poucos Zacheos ha no mundo ! Se Deos tivera tan-
tos fervos, e taó diligentes como tem o dinheiro ,
que bem fervido que fora ! Mas quantos deíTerviços
fe fazem a Deos em ferviço defte mao idolo ? O ma-
yor facrilegio de todos he , que em vez de os homens
le lervirem do dinheiro para fervir a Deos, chegaõ
Iíai45.a4.^ ^^ ícrvjr de Deos para fervir ao dinheiro : Servi-
re mefecijli inpeccatis tuis. Quantas vezes os bens
EccieíiafticoSjquefaò de Deos, os vemos applicados,
e confumidos em ufos profanos , e os vafos do tem-
plo de Jerufalem ou levados aos thefouros de Na-
buco, ou fervindo nas meias de Balthafar! Quando
já mais fe encontrou Deos com o intereííè , que o def-
prezado naõ folFe Deos ? Ou quem leguio os idolos
- ' de
Difairfo LXFlí. 105
deloroboao , que nao vimíTe as coftas á arca do tef-
tameiuo ? O ouro, que os Hcbreos roubarão no hgy-
pto , adoniraõno no deferto. E quantos ha , que ta-
zem o melmo fó com a figura mudada ? Q^ie impor-
ta , que naó adoreis a fórma, fe adorais a mntena ?
Que importa , que naô adoreis o bezerro de ouro , íe
adorais o ouro do bezerro? P:no mefmo tempo (co*
mo os de Azoto ) pondes a Deos , e o ídolo fobre o
mefmo altar , e credes com alieòlada hypocreíia ,
que podeis fervir juntamente a hum , e a outro t
697 Ede Eítado fem ter minas foy já tao requef p^-^ 4.
tado , e períeguido de armas , e mvafoens eítríingei-
ras ; que leria fe tiveíTe eífes theíouros ? La traz
Chrifto Senhor noífo a comparação de hum campo,
que era cultivado fomente na fuperíicie da terra , ter-
til de flores, e frutos; porém fabendo hum homeni
acafo , que no mefmo campo eftava enterrado , e el-
condido hum thefouro : 7befauro abjcondito ///Matth.ij.
agro, o que fez com todo o fegredo , e diligencia, ^^•
fo-y ir logo comprar o campo a todo o cufto , e deite
modo ficou fenhor naó do campo por amor do cam-
po , lenaô do campo por amor do thefouro. De ior-
te, que toda a defgraça do campo em mudar de íe-
nhorio , e paffar de hum dono a outro dono eíleve
em ter thefouro dentro em fi , e íaberfe , que o tinha. -
Conrentemonos de que nos dem-os nofibs campos
pacificamente o que a agricultura colhe da íuperfi-
cie, enao lhe defejemos thefouros eícondidos nas
entranhas , que efpertera a cubica atheya , principal-
mente quando os mefmos campos naõ eftaõ cerca-
dos de tao fortes muros , que lhe poífaô facilmente
defender a entrada. E terras , que tem ouro , e prata, Num. ^^%\
e naó tem muros fortes, que asdefendaô, natural-
G 4 mente
Jcreni. 15
it.
104 Vieira ahhreviado
mente eílaó expoftas á cubica , e invafaõ dos inimi-
gos j porque o ouro , e a prata , que tem, excita a cu-
bica , e os muros, e fortifícaçoens , que naó tem , fa-
ciiitaoainvafaô.
Num. 4Z5. 598 A paz das outras naçoens fegurança he mui-
to enganofa. Onde ha nova occafiaõ de intereíle ;
naõ ha confideraçaõ , que dure. Ouvi hum dito no-
. taveldejeremias: Numquidfoederabiturferrum fer-
ro abAquilone,ir^.s} Cuidais, que o ferro doNorte,
(do Norte diz nomeadamente: Ab Jquilone) cuidais,
que o ferro do Norte íe pode confederar com outro
ferro , e o leu bronze com outro bronze ? Enganais-
vos , diz o Profeta áquelles , com quem fallava : e o
mefmo vos certifico eu fem fer Profeta. Livrouvos
Deosda prata, porque vos quiz livrar do ferro. A
arte com a prata liga os outros metaes, e a cubica
com a prata desfaz , e rompe todas as ligas.
699 Mas dado , que as minas taõ eíperadas , e ap-
petecidas naó tiveíFem por confequencia de fua fa-
ma eíles perigos de fora , baftava aconíideraçaô dos
trabalhos , e miferias domefticas , que com ellas fe
vos haviaõ de levantar debaixo dos pés, para que o
voílojuizo, fe o tiveífeis, trataíTe antes de fepultar as
meímas minas depois de achadas, que procurar de
as deíenterrar , c defcubrir, ainda que foraõ muito
certas. Hum dos mayores caftigos , que Deos podia
dar a eíla Cidade, e a efte Eftado, era deícobriremíe
Num.43 3."^J^^ "^^".^s ; porquc cífas minas , que tanto fe defe-
jaó, eeftimao, ordinariamente naó as defcobre, nem
Nuai,43 4"S dá Deos por merecimentos , fenaó em caftigo de
grandes peccados. Saô caftigos efcondidos debaixo
de apparencios contrarias; porque fe appetecem,
ellimaõ , e feílejaô enganofa , e enganadamente, fen-
do
Num. 431,
Difctirfo LXVIL 105
do certo , que debaixo do preço , e efplendor do ou-
ro, e prata fe occultaÔ , e efcondem grandes traba-
lhos , affliçoens , e miferias , com que a Juftiça divi-
na por peccados quer caftigar , e açoutar as meí mas
terras, onde as veyas deites metaes fe defcobrem.
Deos tanto pode açoutar com varas de ferro , como
com varas de ouro , e de prata , antes eíles açoutes
faÓ muito mais pezados , quanto a prata , e o ouro
pezaô mais , que o ferro.
700 Aqueila ponta de terra montuoía , que hoje
chamamos Cabo de S. Vicente , antigamente íe cha-
mava Promontório fagrado por eftar ajli o fepulchro Num. 435.
de Tubal, primeiro pay da nofla nação , e também o
de Hercules , hum dos mais tamofos , e amados Keys
da Lufitania. Havia minas nefte promontório , as
quaes por caufa da mefma veneração também era ve-
dado cavaremfe : e dizem as hiftorias daquelle tem-
po , que ió em hum cafo fe permittia aos moradores
aproveitaremfe do ouro , e prata das ditas minas.
Mas qual era eíle cafo ? Couía verdadeiramente ad-
mirável , e muito digna de fe notar. O cafo era, quan-
do cahia do Ceo algum rayo , que penetraíle a terra_,
e defcobriíTe os preciofos metaes , que nella eltavao
elcondidos. De forte , que naquella terra , também
nolFa , o abriremfe minas , e o cahirem rayos do Ceo
tudo vinha junto , como fe oCeo nos pregara , que o
defcobrimento de minas na terra naô íaô fehcida-
des , e boas fortunas , como fe imagina , fenao exe-
cuçoens da ira de Deos , e caftigos do Ceo.^
701 E para que vos naõ pareça , que fao ifto en-
carecimentos lenitivos , inventados para divertir a
trifteza , e dar efpecie á confoiaçaÓ , troquemos efte Nam. 4Jí.
ouro , e prata em raiudos , e vejamos os proveitos ,
' ^ e in-
Num. 4J7
Ifai z.
ao.
io6 Vieira abhreviado
e interelTes que do defcobrimento de min.ns haviaí
de uíultar a yolia te.ra no cafo , cm que fe ISí
achado. Lu nunca fuy ao Potoíi nea, vi mm s p^
remno.hvros,que defcreveoi o que nelías palffó
naofocaufaelpawo, mas horror ler a ftb va l '
maqumas, os artifícios, e a força, o trabalho e os
perigos, com que as montanhas 11» cavaõ , as betas fe
reguem, e perduias fe tornaõ a bulcar: osencon
tros de pedrenaes impenetráveis , ou de aguas fufa
camfn^na f^ f ^""^ ''"'"''^'^ ' °" ''^'"^'he novo
cammho , furando por outra parte os mefmos mon-
tes : o eftrondo dos maços , d.s cunhas , das alavan-
cas , e dos outros inftrumentos de ferro, alguns dos
quaes tem cento e cincoenta libras de pezo %Z oue
fe batem, cortaó , e arrancão as pedras , ou le pred!
pitao com ma yor perigo do alto : e tudo ifto naque-
las profundifltmas concavidades, ou infernos , onde
nunca entrou o rayo do Sol , alumiados malignàmen!
te aquelles mfeiices Cyclopes fó com a luz S , e
coutrafeita de alguns fogos artificiaes, cujo hálito
turno, e vapor ardente lhe toma a refpiraca6, e mui-
tas vezes os afoga. * > «^iiiui
702 Faz aqui padecer a cubica muito mais do
q..e profetiza Ilaias , que fará em algum tempo a pe-
nitencia: Introibum infpeluncas petrartim , è>i„
■ ■"oragmes terra: projiciet homo idola orgemirni
&fimulacraannfui, qua fecerat ftbi ut adorarei,
taipas , 0- vefperttliones : MeterfehaÕ os homens
pelas covas , e pelas concavidades maisprofundas da
mlíL"'". f •'""' ■^"'"f «»™ ' "u P"ta , mas abomi-
nando e lançando de (i os Ídolos, que do ouro , e da
prara tuihao feito, toupeiras , e morcegos. Vede ago-
ra
Difcurfo LXVll. 107
rflcftas meímas tiguras como as ajunta , e introduz
todas a cubica nefte efcuro, e horrendo theatro da
paciência fem virtude. Aili os penitentes snepenai-
dos entraõ pelas grutas , e concavidades ca ttrra :
aqui os cubiçoíbs, e enganados também le metem
naÔ pelas covas, que aterra tem aberto , fenao pelas
que elles cavaõ , e rompem á viva força , muito mais
penetrantes , e profundas. Alii defprezaóíe os aiolos
de ouro , e prata , conhecida fua mentira , e vaidaue:
aqui eíUmafe , e adorafe tanto a mefma vaidade , que
por novos , e occultos caminhos de tantos eítadiosíe
vay buícar, e defenterrar o ouro , e prata para le
fundirem , e lavrarem Ídolos. Aili as figuras dos luo-
los fâô toupeiras , e morcegos : Taipas , & vejper-
tilíones : e aqui os homens desfigurados como tou-
peiras vivem debaixo da terra fem ter olhos para
ver a luz , e como morcegos fogem do Sol , e do dia,
e fe vaó mais fepultar , que viver naquella eícura , e
perpetua noite. Ainda tem outra propriedade; por-
que huns como toupeiras com os pés , e mnõs na ter-
ra a andaõ cavando , e revolvendo , e mudando con-
tinuamente , e outros como morcegos fuípenfos no
ar eftaõ picando as pedras , e fangrando as íuas veyas
com o corpo , e com a vida pendente de huma corda^
Houve já mais algum Anacoreta dos que habitavao
as covas, que fizeíie tal penitencia? Pois ainda naó
ouvifbes o mais temerofo delia.
703 Solapadas por baixo aquellas grandes mon- j^y„,^j.8,
tanhas , todo o pezo immenfo delias fe íu (lenta fobre
pilares da meíma matéria , que vaò deixando a efpa-
ços , os quaes fe fe enfraquecem , ou quebraó como
acontece muitas vezes , qual he o elFeito .? Toda a
montanha, ou grande parte delia cahe de repente , e
a mui-
^
10 5 V leira abbreviado
a multidão, que andava defenterrando a prata^fíca fe-
pultada com elia [em hum momento fem outra noti-
cia de ínmanho, e taô miferavel eíimgo , que a que
ÚQ<^ aos de muito longe o eftrondo da ruina , e o tre-
mor de toda a terra, lllo he o que Te efcreve , e fe ef-
creve muito menos do que verdadeiramente he. Baf-
te por prova , que a fevicia , e crueldade dos Neros,
e Dioclecíanos cómutavaô a morte , e os tormentos
dos Chriílaós em os mandar íervir , e trabalhar nas
mmss : e^a Igreja , que com tanta difficuidade , e con-
lideraçaõ examma , e avalia os merecimentos dos fan-
Num. 440 í^^' canonizava, e venerava por martyres aos que nel-
Jas acabavaõ a vida. Ainda falta por dizer o que
mais vos havia de.deílruir , e aífolar. Quantos Mi-
njftros Reaes, e quantos officiaes de juíliça , de fa-
zenda , de guerra vos parece , que haviaò de fer man-
dados cá para aextraçaó, íegurança, e remeíía def-
te ouro , ou prata } Se hum fó deíles poderofos ten-
des experimentado tantas vezes , que bailou para af-
folar o Eílado , que fariao tantos .? Naõ fabeis o no-
me do ferviço Real (contra a tenção dos mefmos
Keys ) quanto fe eílende cá ao longe , e quaô violen-
to he , e infupportavel .? Qiiantos Adminiftradores ,
quantos Provedores, quantos Thefoureiros, quan-
tos Almoxarifes , quantos Efcrivaens , quantos Con-
tadores, quantosGuardas no mar, ena terra, e quan-
tos outros officiaes de nomes , e jurifdiçoens novas fe
haviaô de çrear , ou fundir com eílas minas para vos
confundir, e fepultar nellas.í^ Que tendes, que poí-
fuis, que lavrais, que trabalhais, que naó houveíle
de fer neceílario para ferviço d'ElRey , ou dos que
fe fazem mais que Reys com efte eípeciofo pertex-
to.í^ E vós meffuos naõ haveis de fer voífosjporque vos
haviaô
DiJcurfoLXVII. 109
haviaÔ de apenar para o que tiveíTeis, ou na6 tivef^
féis preílimo , e fó os voflos engenhos Gavião de ter
muito que moer , porque vós , e voíTos filhos havíeis
de fer moidos.
704 Fique logo por conclufaÔ , que muito mayor Num. 44».
mercê vos fez Deos , e muito mais bemafortunados
foftes em naÓ fe acharem as minas , que [e o ouro , e
prata, que fe fuppunha , e efperava delias fedeíco-
briíTe. Ouvi a fentença de hum gentio fundado fona
razaó natural, e experiência fem nenhum principio
de fé, que anos nos devia levantar mais da terra:
Jurumtrrepertum , & fie mellus fitum ctim terra
celat : O ouro , diz Horácio , he melhor nao fe achar,
nemdefcobrir,queacharíe: Aurumtrrepertum. h.
porque ? Porque em quanto a terra o efeonde , e en-
cobre : Cum terra celat , eftá elle no fitio,e lugar,
que ihe deo a natureza , que he o melhor : Et mehm
//•///^//.Excellente razaô. As coufas naturaes em quan-
to eftao no leu próprio lugar , em que as fituou a na-
tureza, nenhum damno fazem; tiradas delle, fao mui-
to damnofas. A agua no feu centro naõ peza,oiogo na
fua esfera naõ queima , a terra fe fobe ao ar,faz rayos,
o ar fe fe mete debaixo da terra , faz terremotos , der-
ruba caías , e Cidades : aíTim também o ouro , e prata
das minas,em quanto eftaó efcondidas lá no centro da
terra , onde as poz a natureza , confervaófe innocen-
tes , e nao fazem mal a ninguém; mas fe fe cavaó, e fe
tiraó fora, entaô faõ muito perniciofas, e fazem gran-
des ellragos. Olhay para o paíFado, fe vos nao quereis
enganar com o prefente.
^o'^ Aquella idade dourada tao celebre nos pri-
meiros tempos, quem a fez? Parece, que a havia jle
fazer o ouro , e nao a fez o ouro , que havia , fenao (^
ouro,
J
lio
Vieira abbreviado
cuherV^" r""" '''"'''' ' P"''''"^ ^'■"'í^ f«naô tinha dei
cuberto. Em quanto no mundo naó houve ouro en
ro° 0°,^ ,; £'" f -°"^° í J^P°'^ q"« appareceo o' ou
to no mundo, então começou a idade de ferro • 'Tnni
TerToíZ"''"'^'''7'l"' «--^'-~^/'-
tózíw. o que era neceíTario, e útil para ávida f
confervaçaõ dos homens, notou Séneca Den'oci'to
e^.nda o mefi,,o Epicuro , que o poz a natureza mu^
to perto de nós , e muito deícuberto , e pa ente co-
trario oqirenaofoeramutil,masperniciofo doJq
Í^^H^ '. ^^''^''°"''°' ^aprata. Houvefe em
tudo a natureza como mty : a mây dá a maca ao fi-
Ih.nho, eefcondelheafaca. Porque? Parque quer
ETe?' '"^^"/•'rf 'í"^ '"^ fira: efe ^min^mo
chora pelo que o ha de ferir, naô hejufto, que os ho-
mens de razaõ, e de juízo tenhaô fentimmo de ml
fíum.444:^7o6 Masvejo,quemeperguntaÔoscuriofos. e
me argue.n os cr.ticos : Se as minas eraõ taõ damno,
1 .„'. 1^""^°^^' ^o homem , e por ilTo lhas efcondeo,
re ponder a efta pergunta façovos píi.neiro outra
h, a arvore da fcenc.a , que foy a occafiaÔ , e a origem
de todos os males do mundo , porque a creou Deos
noPara.fo? Ou aquella arvore era boa, ou má, co-
mo argumenta Santo Agoftinho : fe era má , para que
3 plantou Deos : fe era boa , para que a p^hibio ?
Ameaça ao homem com a morte , fe comer daquelle
rrutto, e pinta o meímofruélo com taes cores, que
^e dekâlabile ? Sim. Porque aquelle fruído taÕ for-
mofo
•w-
Difciirfo LXVIL 1 1 1
moio naõ tby creado,para que Adão conjeíTe, ou pro-
i^alie delle , íenaó para que Deos tentaíle a Adão , e
o provafle com elle. Efta he tamlum a razão porque
Deos creou o ouro , e a prata , e lhe deo tanta formo-
fura de cores. Chilon hum dos fete íabios da Grécia
dizia , que affim como a pedra de toque prova o ou-
ro , e a prata , affim o ouro , e a prata íao a pedra de
toque dos homens. Qiiereis provar quem íao os ho^
mens, tentai-os com ouro , e com prata, ^o ouro o
dille o Ecclellaftico : X>/// pojl aw^t^^^ non ^^^^^^P^' ^^^^^'
batuseíiintllo. Eda prata odiíle David. Ut^^^clu- ^.^^^^^^.^
da?iteos,qidprobattfunt ^r^^^ía. E notai , que o u
que nefta tentação ficou approvado,foy hum fo: i^tit
probatuseftinillo\ e os que ficarão reprovados, e
excluídos, foraó muitos : Utexcludanteos, quípra-
batifunt argento. Ora já que todos os dias pedimos
a Deos , que nos livre das tentaçoens , ou que nos nao
meta nellas : Ne nos inducas in tentationem , demos-
lhe muitas graças , pois nos livrou defta, em que nos
nos tinhamos metido. .
707 ..Eis aqui os augmentos , que havia de ter 0Num.4í^
Reyno com os haveres , que lhe promettiaó as nollas
minas. Encherlehia a terra de ouro, e prata j maseíie
ouro. e prata,pofto que naturalmente défce para bai-
xo , havia de fubir para cima : nao havia de chegar
aos pequenos, e pobres, mas todo fe havia de abar-
car , e confumir nas mãos dos grandes , e poderofos \
porque, como bem diíTe o outro , as magnetes attra-
hem o ferro , e os magaates oouro , e as obras pias^,
em que eíTes thefouros fe haviao de defpender , erao
mais cavallos , e mais carroças , e mais galas , e mais;
palácios , e obras magnificas , e oítentofas, e tam-
bém haviaÓ de ter parte nelles os idolos bautizados^^
que
112
leira abbreviado
oe truido. Jlto fuccedena no revnado , e ffovernn ã.
K-.4i..Salam3Õ : vede , fe fe pode efperar, ou Jmer "utr
ta^-uo, quando „aô fore^. SalaLens'os q^teS "
DISCURSO LXVIII.
T/>^</s ^í humfermao da quarta Dominga da Qua~
- rejma.
P A M.
708
\\M
ra«. .^. ■ /-\ ^^ PT'^'" ' '^°'" q"e Deos creou o
N»m..,.._,_. -f^-^"o«if™. he o comer. Lançai os olhos
por todo o mundo, e vereis que todo elle fe vem a
V ado7n.T ''"^'" ° P?° P^-^ '=- ''°"- Qye ft o la-
vrador na terra cortando-a com o aradoT cavando
tft^ '"«"'íando , femeando ? Buíc pa6 Quê
indo n f "^° ".' "r P^"''^ '^"^'^g^do de ferro ; ,S| !
ando peleijando, derramando o fantçue ? Bufei baô
... 24^o.'avegantenamariça„do,amaina„l lon:
oando, lutando com as ondas , e com os ventos ? Buf-
ca pao. O mercador nas cafas de contratação DálTan-
do etras, ajuftando contas, formando compafi
O eftudante nas Univeríidades tomando poftillas
rente nos tribunaes, pedindo , allegando, replican-
do danjo promettendo,anul!ando? Bufca paó Em
caf Of :Í" "'f^' 'f"" ' ^ '"'^« '^ npplica^a o buí:
De o ^J)'^' ^T P''? P=° ° trabalho fos ricos dao
peio pao a fiizenda os de eípiritos generofos daõ pe-
hon r "Vh" ' "1 ^^ ^^^r'""' ''='''=0^ d«S pelo pa6 a
iíonra, os de nenhum efpirito daó pelo paõaalma,.
•' een-
\\ >
Difcurfo LXVIIL 115^
e nenhum homem ha , que naó dè pelo paô , e ao pao
todo o feu cuidado. Parecevos , que tenho dito mui-
to? Pois ainda naó eílá difcorrido tudo.
709 Tirai o penfamento dos homens , e lançai-o Num. zr^;
por todas as outras coufíis do mundo, achareis ,^que
todas elias eítaó fervindo a efte fim , ou penfao do
fuftento humano. A efteíim nafcem ashervas, aeíte
fim crefcem as plantas , a efte fim florecem as arvo-
res, a efte íim produzem , e amadurecem os frudios,
a efte fim trabalhão os animaes domefticos em cafa,
a efte fim pafcem os manfos no campo , a efte fim fe
criaô os íylveftres nas brenhas , a efte fim os do mar ,
e os dos rios nadaõ em fuás aguas, em fim tudo, o que
nafce , e vive nefte mundo , a efte fim vive , e nafce.
Que digo eu o que vive, e o que nafce ? Os elementos
naó faõ viventes , e a efte meímo fim canfamos , e fa-
zemos trabalhar aos próprios elementos. O fogo nas
forjas , e nas fornalhas , a agua nas levadas , e nas aze-
nhas , o ar nas vellas , e nos moinhos , a terra nas vi-
nhas , e nas fearas , e até o Sol , e a Lua , e as eftrel-
las naó deixamos eftar ociofas defta penfaó ; porque
o que todos aquelles orbes celeftes fazem andando
em perpetua roda , e voltando fem nunca defcanfar,
he produzir, e temperar com íuas influencias o que
ha de comer o homem. Ha mais para onde fubir ?
Ainda ha mais.Subi doCeo acima até ao mefmo Deos,
e achareis, queelle he o que maisoccupado eftá, que
todos em noflb fuftento ; porque todas as outras cou-
fas cada huma trabalha em fi, e Deos, ainda que fem
trabalho, obra em todas. De maneira, fenhores, que Num. 114:
a occupaçaó do Ceo , e da terra , e de todo efte mun-
do, amayor penfaó, o mayor cuidado, e o mayor tra-
balho dos homens he bufcar pao para aboca; pois
Tom. 11. H ifto,
114 Vieira ahhreviado
ifto, porque todos trabalhão , hei de enfinar hoje ú
. modo, com que íe polFa alcançar íem trabalho.
710 Todos os homens querem ter paô , e muito
;• ps6: dousalvitreslhe trago hoje para iíTo: hum pa-
ra terem paô , outro para terem muito. Vamos ao pri-
Num.2ií.^ejj.Q. Masque alvitre vos parece , que fera eíle P'
Que meyo vos parece , que fc pode dar para hum ho-
mem em toda a lua vida ter o pao certo , íem nunca
lhe haver de faltar } Será porventura ajuntar mais l
Trabalhar mais ? Lavrar mais ? Negociar mais ? Def-
velar mais ? Poupar mais ? Mentir mais.í^ Adular mais.?'
Alguns cuidao, queeíles faó os meyos deter paó ;
ma^s enganaóíe. Sabeis qual he o meyo feguro de ter
paó , íem nunca haver de faltar ? He feguir a Chriílo.
Affim lhe aconteceo a cinco mil homens , porque íe-
guiaó a Chriílo tiveraõ pao no deferto. Se cinco mil
homens com mulheres , e íilhos entraííem de repente
em huma grande Gidade,naõ haveria promptamente,
que lhes dar a comer, quanto mais em hum deferto.
Em hum deíerto porém íc achavao eftes homens fem
eafa, íem venda , e fem dinheiro para comprar o
mantimento, ainda que o houveíFe, e Ibbre tudo com
fome de três dias ; mas porque feguiao a Chriílo ti-
veraõ que comer todos, fem lhes faltar nada. Senho-
res meus, que taô defveiados andais todos , e taó ef-
faimados por ter de comer , e por deixar de comer a
voíTos filhos, fegui, e fervi a Chriílo, eeu vos fegu-,
fo da fua parte , que nem a vós , nem a elles lhes fal-
tará paô.
Nam.z37- 7^ ^ Temos díto O primeiro slvif c quepromette-
mos, que he como havemos de alcançar o paó: vamos
agora ao fcgundo, como havemos de alcançar muito.
Oh que ponto eíle para os cubiçoíos, e para os ava-
rentos!
DíJcurfoLXVllJ. 11^
tentos! Sc eu os coníultaíle a eilcs do remédio p-ira
accreícentar paó, para multiplicar fazenda , huns ha-
•viaô de dizer, que negociar , e melhor , que tudo, ne-
gociar para o Maranhão ; porque o que em Po! tugai
vai dous , aqui l*e vende por vinte. Efte mcyo lerá
muito bom quando no mundo na6 houver quatro
icouías : quando em Zelanda naô houver Pechilin-
gues : quando em Argel naô houver Turcos : quando
na agulha de marear naó houver Sueftes: e quando na
cofta do Maranhão naó houver baxios. Mas em quan-
to ha eftas quatro coufas, he muito arrifcado modo
de ganhar eíTe.
712 Outros dirão , que he bom meyo fervir a El- Num. rji
Rey em algum poílo grande, ou muito junto a elle,
ou muito afaílado deile, que efteí? íaÔ os poftos, em
íjue os homens fe aproveitao. Dizem , que o Rey íe
ha de tratar como o fogo , nem taó perto , que quei-
me , nem taó longe, que naõ aquente. A's aveças ha
defer. Do Rey ou muito perto, ou muito longe. Se
tendes poílo muito perto ao Rey, tudo fe vos fujei-
ta , tudo vos vem ás mãos ; e íe tendes poílo muito
longe do Rey, tudo vós fujeitais, e em tudo vós me-
teis a mao. Eíie modo de accrefcentar fazenda nao ha
duvida, que he muito prompto, e muito eíFedtivo, e
-também me atrevera eu a dizer , que era bom , fe neí-
te mundo naó houvera huma conta , e no outro mun-
do outra. Se no outro mundo naô houvera inferno ,
e neíle mundo naó houvera jufliça , era muito bom;
mas neíla vida limoeiro , e na outra vida fogo eter-
no : neíla vida confifcado , e na outra vida queima-
do, naó he bom modo de ganhar.
713 Bufcais mil traças , e invençoens para ajun- Num. 232Í
tar o alheyo ao voíTo, e eífas faó as que em lugar de
lí 2 volo
i.Cor, 5.
11^ Vieira ahhreviado
vo lo accrefcentar, vo Io roem, e vo lo desbarataô. He
o alheyo pontualmente , como o vomitório. Recei-
tavos o Medico hum vomitório : e que vos acontece
depois, que o tomais ? Lançaillo a elíe , e tudo o
mais, que tínheis dentro. Affim he o alheyo, guar-
daivos de^o meter no eílamago ; porque primeira-
mente naô vo lo ha de lograr , e ha vos de puxar, e
levar comfigo o mais , que tiverdes nelle. E vede
quaõ pouco bafta para fazer eftes efFeitos. Achab era
Rey , tomou a Naboth huma vinha , e tanto que a
vinha fe ajuntou ao Reyno , perdeo o Reyno , e mais
a vinha. Fez a vinha o que faz o vinho , vomitou-a
Num. IO,. Achab, ecomellatudo ornais. Lá dilFe S.Paulo,
que hum pequeno fermento corrompe toda a maíía :
Modicum fermentum totam majfam corrumpit ; e
taes faó os eíFeitos do alheyo, airida que a maíla, com
que íe ajunta, ou miílura,íeja huma Monarchia intei-
ra. Que comparação tinha a vinha de Naboth com o
Reyno de Achab? Maseraalheya, poílo que taÓ pe-
quena. E como fe Naboth com as vides da fua vinha
lhe pozera o fogo,aílim ardeo em hum momento a ca-
fa de Achab , a Coroa, o Reyno, a vida fua , e de fua
mulher , a honra , a fama , o eftado , a íucceíTaó , e até
os oíTos de ambos.
714 Conta TitoLivio de hum Príncipe dos Pie-
zenigos chamado Cures , que querendolhe tomar
fuás terras vSuat islão Príncipe dos Ruthenos , elle o
houve ás maôs em huma embofcada , e mandandojhe
tirar a cabeça , fez da fua caveira huma taça encaf-
çi'j^"3p4^/íoada em ouro, por onde bebia,com efta letra: Qii£-
Ttom.i.^o^r endo aliena^ própria amifil^ : Bufcando o alheyo,
P«w. perdeo o próprio. Oh que boa lembrança para a me-
ia dos Príncipes , e dos que o naó fao ! Se em todas
as
Naua. 23
^'-' ji
Dífairfo LXVIII- 117
asmeí-islc bebera por efta taça , naõ íe comera em
rantas o paó allieyo , e íe no Braíii déramos em def-
enterrar caveiras , em quantas poderá mos eícreycr a
niefma letra! Cuja he eíb caveira ? He de kibno.
Yiveo rico 5 e morreo pobre : íeftou de niintos núl
cruzados, e íeus íilhos pedem eír.iola. Pois que íov
iíto? Que ar mao deo por eíla fazenda ?^ Ojiareník
tilicua , própria amifit : MiíHirou a íua fazenda com
a alheya , pej deo a alheya , e niais a fua. Fazenda ad-
quirida com defervico "de Deos, e contra feus man-
damentos/ Deosnos livre.
715 Outrosdiraô, quepara ter muito , o melhor j^.^j,,^ ^j,.
remédio he tello , guardar , poupar , naõ galrar, mor-
rer de fome , e m.atar á fom.e j porque dizem , que
muito mais crefce a fazenda com poupar muito , que
com ajuntar muito. Eíle meyo eu coofeílb, que he
muito bojn ; mas bom. para ajuntar fazenda psra ou-
tros, e nao para fi ; porque o que eu poupo, e o que,
naô gaito, naóhcmeu; hedaquelles, aquém, eu o hei
de deixar , e depois o haô de gafcarm.uiíoalegrem.en-
te : e poupar , ê morrer de fome , para que outros vi-
vaô , e aiardeem , he huma avareza mui louca.
716 Pois que remédio para sccrefcentar a fazcn- Num. 24°
da i.til , diícretii , e muito feguraroeníe ? O remé-
dio he muito fácil : dar da que tiverdes por air^or de
Deos. De maneira, que ambos os ncilos pontos íe
vem a rcfumiir a Deos/Quereis ter paô ? Servi a Deos.
Qiíereis ter muito ? Dai por amor de Deos. Poiso
dar , o tirar de mim he cammho de accrefceníar ? An-
tes parece caminho de diminuir. Se fora dar por amor
dos homens , ou por outro reípeito, ílm , que era?ca-
minho de perder o que fe dá ; mas dar por an.ior de
Deos HGÕ ha mais certa negociação , naô ha m.ais
Tom. II. H3 ^^^^^
iiS Vieira abbreviado
certo modo de ajuntar fazenda. Vede-o no noíFo
Joan. 6. 5. Euangeího : Unde ememus panes, tit manducent hi ?
Ferguntou o Senhor , onde achariaô paó, para que
comeílem todos. Refpondeo Santo André, que to-
ibih. <,. ^^^ os paens , que havia, naó paíTavaó de cinco : EJi
puer unus hic , qui habet quinque pmies , e com ef-
tes, fendo fó cinco , quiz Chriílo dar de comer a to-
dos. Pois, Senhor , nao vedes que tendes doze difci-
pulos, que íuílentar , e que os paens naó íao mais
que cinco ? Se tiveííeis muito paô , entaó eílavaõ.
bem eíTas liberalidades ; mas fendo taõ pouco } An-
tes por iíío mefmo: fe os Apoítolos tiveraó doze
paens, enjao naó era neceílario mais, porém como
naó tinhaó mais , que cinco , era força bufcar algum
modo de os accreícentar , e naó podia ha\^r meyo
mais^ breve , nem mais certo , que dailos aos pobres.
E aflim foy , que os Apoítolos, porque deraó cinco
paens, naó fo receberão doze paens, íenaó doze al-
cofas : Duodecim cophinos. Se os Apoftolos foraó de
animo avarento, e acanhado, equizeraó comer os,
feus cinco paens , íahira menos de meyo paó a cada^
hum ; mas porque cada hum deo o feu pedaço de paõ,
ficou com huma alcofa cheya : Duodecim cophhws.
717 Ides daqui para Portugal , naó embarcais
nada comvofco , que haveis de comer ? Refpondeis:
Levo huma letra de tantos mil cruzados. Pois tendes
por certo, que naó vos pode faltar paó , porque le~
vais a letra de hum mercador, e naÕ tendes por cer-
tç com tantas efcrituras de Deos, que vos naó ha de
faltar nada } Apertemos mais efte ponto. Na praça
de Londres quereis ir para Liorne , levais letra de
hum herege : na de Amílerdaó para Alemanha , le-
vais letra de hum Judeo : na de Veneza para Conf-
tan-
■■ft
Dijairfo LXVllL 119
tantinopla , levais letra de hum Turco, e ides fegu-
ro de que vos naó ha de faltar pao. Pois coni as letras
dehumherege, dehumjudeo, de hum Turco cui-
dais que ides muito íeguro , e com as de Deos naô ?
AhmodiC(£Jidei^ que nao tendes fé!
718 Dizeime: Se no monte da piedade de l\oma. Num. xa\>
ou no banco de Veneza fe dera a cento por hum, hou-
vera quem alli naó metera o feu dinheiro ? Pois os
os pobres íati os banqueiros de Deos. Dafe nsquelle
banco a cento por hum. , e fendo nós ts6 amigos de
accrefcentar, naó metemos todo o noíTo cabedol na-
quelle banco. Pois credem.e, que o banco de Vene-
za pode quebrar, como eílá hoie menos íeguro com
a guerra do Turco , e o de Deos naô ha de quebrar ,
nem quebrou nunca.
DISCURSO
LXIX.
Tirado de him fermaÕ da primeira Domifíga do Ad-
vento , em que o Auãor mojlra , qtie tudo pajfa.
PASSAMENTO.
y iQ A Verdade , e defcngano , de que tudo páf- Pa«- s- ,
jt\. fa,pofto que fêja por huma parte taó evi- ^"™- *^
dente , que parece naó ha mifter prova , he por ou-
tra taó difiicultofo , que nenhuma evidencia baila pa-
ra o perfua-dir. Lede os Filofofos , lede os Profetas ,
lede os Apoílolos , lede os fantos Padres, e vereis
como todos empregarão a penna , e naó huma , fenaÔ
muitas vezes , e com todas as forças da eloquência na
declaração defte defengano , pofto que por fi meímo
taó claro.
H 4 720 Gon-
Num. 4
I
1 2 o Vieira abbreviado
' 720 ConfiJeraime o mundo à^Çá^ feus princí-
pios, e veioheis fempre como nova figura no theatro
apparecenao, edefapparecendo juntamente, porque
íempre paliando. A primeira fcena deíle theatro foy
o Parai fo terreal , no quai appareceo o mundo veíii-
do de immortalidade , cercado de delicias , mas quan-
to durou efta apparencia ? Eftendeo Heva o brlço á
truta vedada , e no breviíTimo efpaço, em que o bo-
cado 1-ataI paliou peia garganta do íiomem, paflou
tanibem com qWq o mundo do eílado da innocencia
ao da culpa, da immorralidade á morte, da pátria
aodeíierro das flores ás efpinhas , do defcanfo aos
trabalnos, da felicidade fumma ao íuramoda infeli-
Cíuade, e miferia. Oh miferavel mundo , que fe pa-
raras affim , e te contentaras com comer o teu pao
com o fuor do teu rofto, foras menos miferavel ! Mas
nao íerias mundo , íe de huraa miferia grande naó
pauaííes fempre, e por tua natural inclinação a outra
mayor. Os homens naquelJa primeira infância do
munuo todos veftíaô de pejies , todos eraó de huma
cor, todos fallavaõ a mefmaiingua, todos guarda-
vao a mefma ley ; mas naõ foy muito o tempo ,em
que íe confervaraó na harmonia defta natural irman-
dade. Logo variarão , e mudarão as pelles com tanta
din-erença de trajos , que cada dia de pés a cabeça ap-
pajecem com nova figura. Logo variarão, e muda-
rão as línguas com tanta diiTonancia, e confufaó, co-
mo a da torre de Babel. Logo variarão , e mudarão
as cores com a diverfidade á.\s terras, e climas , e
com a miftura do fungue, poíloque todo vermelho.
Logo variarão, e mudarão as leys, naõ com as de Pla-
tão , Sólon , ou Licurgo , mas com a do mais impe-
nofo , e violento legislador , que he o próprio alve-
drio.
• 1*
' Difcurfo LXl^- 121
drio Tudo mudarão, ou tudo fe mudou ; porque
tudo palia. .
721 As vidas naquelle tempo , ou naquede prin-Num. 5.
cipiocoftumavaÓ fer de fete, de oito, de novecen-
tos, e quafi de mil annos, e que brevemente fe acabou
efte bom coílume ! EntaÓ o viver muitos íecuios era
natureza, hoje chegar naõ a humíeculo, >r;ns per-
to delle he milagre. Tardarão em paílar ate iNoe,
e também panarão. Com aquellas vidas nao íocrel-
ciaÒ os annos , fenaó também os corpos: e acs tilnos
de Deos , que erao os defceivdentes de Seth , e das h-
Ihas dos homens , que erao as deícenúentes de Caim,
nafceraô os gigantes,de quem diz a Efcritura : trant ^^^^^ ^^
ç-io-antesfiiperterram. Alguns oíTos, que ainda du 4.
raó deftes , que o mefmo texto fagrado chama va-
roens famoíos, demoílraó peia fymetria humana,que
naò podiao fer menos que de vinte , e mais covados:
e ainda na hiftoria das batalhas de David temos me-
moria de outros quatro , poílo que de muito menor
eílatura. Mas em fim acabou a era dos gigantes 5
porque tudo nefta vida, e mais depreda o que he
grande, acaba, e paíTa.
722 Diminuídos os homens nos corpos, e nas^^^ ^^
idades , quando tinhaò a morte mais perto da vifta,
(quem tal crera ) entaõ crefceraô mais na ambição,
e loberba , e fendo todos iguaes , e livres por nature-
za , houve alguns, que entrarão em penfaracnto de fe
fazerem fenhores dos outros por violência, e o con-
íeguiraó. O primeiro , que fe atreveo a pôr coroa na
cabeça, foy Membroth , cu3 também com o nome de
Nino , ouBelo deo principio aos quatro impérios ,
ou Monarchias do mundo.O primeiro foy o dos AlTy-
rios, eChaldeos; e onde eílá o Império Chaldaico?
O fe-
122 Vieira
o U06 Romanos ; e ondeeftá o Impeno Romano ? Se
p.n!,irao ; porque.tudo paíTa.
Pft^r^ /?^"' V''* íamoííis vifoens reprefentou Deos
eites mef.nos Impérios a hum Rev, c a dous Profe
tas Apnme,ravift5 foy a Nabuc;dono°orna eíS
tua de quntro metaes: a fegunda a Zaeharias em qua-
tro .arroças de cavallos de d.fFerenres cores : "Ter-
ce a a Dan.ei em hum confli^-io dos qu.tro ventos
pnnupaes que ao meyo do niar fe davaó batalha
lois íe todas eftas vifoens ernõ de Deos, e todas re:
pre entavaõ os melmos Impérios , po que va iou
tanto a fabcdoria divina as figuras , l Ibbrla primet
nidulT, f "?■■'' ^ "f 'f'^'** =.ccrercenLu ou-
trás duas t:io diverfas emtudo ? Porque a eltatuina
dureza dos metaes , de que era compolb , e no "nef
b .dade e firmeza : e porque nenhum daquelles
Impérios hava de pcrfeverar firme, eeftaveTmas
todos ehav.ao de mudar fucceffivamenteV e '> paff
lando de humas naçoens aoutras, por iíTo os tornou
aS'""'."' '"'"^''^' '^'' ""°Ç^^' e n« i"conf-
vaílós mV.- ' " "' ''"''" ' ' -'='"'^id='de dos ca-
vallos. Mas nao parou aqui a energia da reprefenta-
çao, como nao encarecida ainda baftantemente A ef-
tatua eftava em pé , e as carroças podiaô eftar para-
uas; e porque aquelles Impérios correndo mais pre-
cip,tadamente,que á rédea folta, naó haviaó dep rar
no mefmo p.iro , nem por hum fó momento, e fem-
pre íe haviao de ir mudando, e paliando, poriffb fí-
nalmen-
' '
«■fli
7.1.
Difcurfo LXIX. 1 25
nalmente os renrelentou Deos na coufa mats inquie-
ta , mudável , e inftavel , quaes faÓ os ventos , e mui-
to mais quando embravecidos, efunofos: tt ecce ^_^^
quatnor veuti cceli pugnaba?it in mart magno.
724 Em quanto paliarão eftes quatro Impérios, Num. 7.
que fov a terceira , quarta , quinta , e lexta idade do
mundo, entrando também pela íetima, quem have-
Fá, que poíTa comprehender quanto paíFou no meímo
mundo ? Quando começou o primeiro império , en-
tão começou também a idolatria , digno caíiigo do
Ceo, que pois os homens fe íizeraõ adorar , chegal-
fem os mefmos homens a adorar paos , e Pedras. Us
Revs porém , que eraó , ou tinhao fido os idolatras,
canonizados depois pela adulação , e lifonja ou na-
vida , ou deoois da morte, vinhao também eiles a íer
Ídolos. AíTim Saturno, aílim Júpiter, afíim Mercu^
no, affimApollo, affimlMarte, affim Vénus, alíim
Diana : e pofto que todos eíles deixarão os feus no-
mes gravados nas eílrellas , ellas permanecem ,^mas
eiles paíTaraó. PaíTaraô os idoios, e também paíiarao
os Oráculos, com que nelles refpondia o pay da men-
tira ; porque ao fom da verdade do Euangelho todos
emmudecerao.
725 Entaó começarão as guerras , e que direi doSj^^^^ ^
exércitos inumeráveis, das batalhas campaes , e ma-
rítimas, das ridtorias , e triunfos de humas naçoens,
eda ruina, abatimento, e fervidaó de outras ,taõ va-
ria , e alternada íempre ? Só digo , que aíFim a glo-
ria , e alegria dos vencedores , como a dor , e afronta
dos vencidos, tudo paíTou , porque tudo paíTa. O
exercito de Xerxes , que foy o mayor , que vioj)
mundo ,,conftava de cinco mil nãos , e cinco milhões
de combatentes â e porque de huma parte, e da ou-
tra
i.eira abbr
tra fez continente o Helerponto , e cavou, e Fez na-
vegável o monte Atho , diíFe delle Marco Tulíio,
que caminnava os mares a pé , e navegava os montes:
cicer. lib. lantts clajjwus Xerxes in Gradam tranfitt, ut He--
..ueinn. klpmto junão , Athoquc monte perfoffo , mar ia
ambulartt , terramque navigartt , maria pedibus
peragrans, ciafjlbus montes. Mas todo aquelieim-
menío, eformidovel apparato,que viílofez tremer o
mar , e terra , tao brevemente paíToíi , e defapparc-
ceo, fendo desbaratado , e vencido, que í o ficou del-
iecíleuito. OmeímoTemiílccles, que com muito
oeligual poder o desfez , e poz em fugida , também
paíioii , como na Grécia, -e fora deila pallarsõ todos
osfamofosCapiíaens, e fuás vidorias. Paífou Fir-
mo , paíiou Mitridates, paííbu Filippe de Macedó-
nia , panarão Heitor, e Achilies , patiaraóAnibal e
ScipiaÓ , painmio Fompeo , ejulio Cefar , paíloJo
grande Alexandre, nome ílngular , e fem parelha e
até Hercules, ou foífe hum , ou muitos , todos paífa-
rao, porque tudo paífa.
726 Coílumaô as letras feguir as armas , porque
tudo leva a poz de /í o mayor poder , e affim ílorece-
raô variamente , e em díverfas partes no tempo á^Ç-
tes impérios Codas as fciencias , e artes. Fioreceo a
Filofofia , íloreceo a Mathematica , íloreceoa Theo-
logia, íloreceo a Aílrologia , íloreceo a Medicina ,
íloreceo a Muíica , florcceo a Oratória, íloreceoa
Poética , íloreceo a Hiíloria , íloreceo a Architetura,
íloreceo aPmtura , Horcceo a Eítatuaria ; mas aííim
como as flores fe murchao , efecaõ, aíllm paífaraò
os Authores mais celebridos ái^ mcfmas fciencias,
e artes. Na Eílatiiiria paíibu Phidi.-s , e l.yfinpo , na
i lULura paíFcu Timantes , e Apeiie:s, na Àrcnitetura
' paf-
Num. p.
\\ i
aatt
Diícurfo IXÍX. 125
míTou Mellagenes , e Democrates, na Mufica paliou
&rpheo, e Amphion,na Hiftoria "^,f "'l%^oe^^^^
na Eloquência Dcmoílhenes , e rulho , naPoeuca
Homero e Virgílio : na Aílrologia Anaxagoias , e
?d o em^o na ledicina Eículapio , e Hippocrates,
na Mathem'atica Euclides, ^ Archuijedes na 1 1 o-
foíia PlataÓ , e Ariftoteles, na Theologia Meuuno
Tremigifto e Apollonio Tyaneo, e por junto em
7odaTa's fclncias^íTaraô no mefmo tempo os fe te
fabíos de Grécia ; porque ou junto ^^^uJiM^^n^
do paíla. Só a Ethica , e Moral como tao nc.eí Ur a
á vida , e a virtude parece , que nao havia de paliar,
mas os Platónicos, os Peripateticos, os Epicmeo , o
Cinicos, os Pitagoricos,osEíboicos,os Academi
cos,elles,eíuaselcolas,efeitastodospairarao
727 Nenhuma coufa he mais própria defta con- Num. i<
fideraçaÔ , cm que imos, que os jogos, e eípeCtacu-
los públicos, que os homens inventarão a titulo de
paílatempo,como fe o mefmo tempo nao paíFara mais
velozmente , que tudo quanto paíTa. Huns jogos to-
rao os Circenfes , outros os Diony fios , outros osju-
venaes , outros os Nemeos , outros os Maratoneos ,
todos cheyos de difFerentes divertimentos , em que
ou fe perdia a honeftidade, como nos de Vénus, ou o
iuizo, como nos de Baccho ; mas nenhuns mais indi-
gnos dos olhos humanos , e piedade natural , que os
Gladiatorios. Sahia toda a Roma ao Anfiteatro, a
que? Aver, e feílejar como fe matavao homens a
homens: cahia6 huns , fobrevinhao outros, e outros,
fem eftar o poílo vago hum fó momento , acclaman-
do a cabeça do mundo com applaufos mais carnicei-
ros, que cmeis aíTim no dar, como no receber das
feridas, tanto a intrepideza dos mortos, como a turia
12
Num.
II.
Vieira
'toiadó
dos matadores. Os jogos Seculares íe cliamava6 af*
fér„'li'.'"''^"*- * eelebravaô hnma fó vez de fecio a
^^SL^TV^7F? P"''-''"°' 1"^ convidava pa-
ra elles. Kenite ad ludos , quos nemovidit unanõf
nem ha de tornar a ver: e com efte defeng.no da vi-
ver^ ff.' 'u" ''^'^^'P^.^Ç^ô da futura os hiaõ todos a
ver, tíe chama vao jogos. Os Olymnicos foraô os
én cinco''"''' ' ' ^"""""^'^ fodos/em que drcro
do ZlZl •""■"' '°,'^° ° ""'"^^° == h""'» Cidade
J ~ f ]' °" '.'"''''■'' °" *'' ver quem levava
MascSnS' '^^™"f^^^ô'Cdiíhnguiaõ os\„nos.
ivias como toda a competência era a correr, e o aue
SrTAI °'J"^t'-'»"f^v='' "«-5 Podiaõ deixar de
fnl. f 0'yrapiadas , como p.ílaraõ todos os outros
àiZlt^ '' '""P*'' ' °" '«^"^ «^ paílatempos
daqueíles jogos. *^^
^728 Só huma coufa ha , que nnõ pode paíTar,
porque o que nunca foy , naÔ pode deixor de Ver e
taes parece, que forao as fabulas, que nefte mefmo
tempo fe inventarão , e íliig\r,6 ; mns fe eJlas naô paíl
Tarao em fi meímas , paíTar.o naqueiles cafos , e cou-
Ins quederaÔ occaíiao a fe fingirem. Na íeca uni-
jeríaí, que abrazou todo o mundo^paíFou a fabula de
l^aetonte: no drluvioparricuJar, que inundou pran^
de parte delie, paílbu . fabula de Deucalion • no ef-
tudo, com que ElRey Atlante contemplai a o curfo
e movimento das eílreiias , paílbu a flibula de traze?
o C.eo aos hombros : na efpeculaçaô continua de to-
aas as noites, com que Endemion obfervava os efiei-
tos ao planeta mais vizinho á terra , paliou a fabula
dos íeus amores com a Lua ^e porque também osnof.
íos
MMÉ
Dlfiurfo LXIX. 127 ■
V)c vicios , a noíTa fraca virtude , e a noíTa mefma vi-
U palTa como fabula, o amor, e complacência de
lós mefmos paflbu na fabula de Narciío : a nctue- .
!a femiuizo na fabula de Midas : a cubica iníacia-
/el na fabula de Tântalo: a inveja dobemalheyo
ia fabula , e abutre de Ticio : a mconftancia da for-
tuna mais alta na fabula , e roda de Euxion : o pen-
ço de acertar com o meyo da virtude , e nao decimar
aos vicios dos extremos na fabula de Sciila , e Gary-
bdes : e finalmente a certeza da morte , e amcerteza
da vida pendente fempre de hum fio paliou, e eíla
continuamente paíTando na fabula dss Parcas. Aíiim
envolverão , e mifturaraÓ os fabios daquelie tempo o
que ha com o que naô ha , e o certo com o flibuiofo ,
para que nem o louvor nosdefvaneça, nem a caiu-
mnia nos defanime, pois o verdadeiro, e falfo, a ver-
dade , e a mentira tudo paíTa.
729 Mas naô he juílo , que nefta paíTagem de tu- Num. 12.:
do o que paílou no tempo dos quatro Impérios pro-
fanos do mundo , paífemos nós em filencio aquella
Republica fagrada', que alcançou a todos quatro , e
por fer fundada por Deos parece, que tinha direito
a naó paíTar. Naíceo a Republica Hebrea no cativei-
ro do Egypto , e quem entaó lhe levantaíTe a figura,
facilmente lhe podia prognoft içar os três cativeiros,
e tranfmigraçoens, com que foy arrancada da pátria.
Hum.a vez cativa por Salmanafar , em que paíFou
defterrada aos AiTyrios : outra vez cativa por Nabu-
codonoíor , em que paíTou defterrada aos Babyio-
nios: e a terceira, e ultima vez cativa por Tito , e
Vefpafiano , em que paíTou defterrada a todas as ter-
ras , e naçoens do mundo.
730 Começou no famofo Triumvirato de Abra-
haô,
128 Vieira ahhreviado
haó, Ifaac, e Jacob , tantas vezes nomeado, e hon-
rado por boca do mefmo Deos ^ mas nem por iílb dei-
xarão de paíTar todos três. Succedeolhe Jofeph , o
quefonhou as fuás felicidades , e asadoraçoens de
feu pay , e irmãos , e pofto que todas fe cumprirão,
todas paíTaraô , como fe foraô íonho. Teve o mefmo
povo três eílados de governo , o dos Juizes , o dos
Reys , o dos Capitaens , e fe bem fubindo , e defcen-
do , as varas fe trocarão com os cetros , e os cetros
com os baíloens , nenhum daquelíes eftados toy ef-
tavel , jodos paíTarao. Nos Juizes paliou a eípada de
Gedeao, o arado de Sangar , e a queixada de Siimfaõ.
Nos Reys paíTou a valentia de David , a íabedoria de
Salamaõ , e a piedade , e religião de Jofias. Nos Ca-
pitaens paííou o braço invencível de Judas Macha-
beo vencedor de tantas batalhas: paífou a façanha
immortaí deEleazaro, que metendofe debaixo do
elefante, matou a fua própria fepultura : e paílbu
mais gloriofo , que todos , o honrado , e zeloío tefta-
mento do velho Mathatias , digno de íer efcrito em
bronzes. E porque naõ fiquem totalmente em filen-
cio as heroinas da meíma naçaõ : quatro houve nella
infignes na formofura , Sara , Rachel , Eílher , e Ju-
dith , todas porém fataes a quem as amou. Sara a hum
peregrino com perigos , Rachel a hum paílor com
trabalhos, Efther a hum Rey com defgoílos, eju-
dith a hum General com a morte. Eíle acabou miíe-
ravelmente a vida ; masasformoíuras antes de fe aca-
barem as vidas já tinhaó paífado. Florecerao no
meímo povo,além de outros iguahnente verdadeiros,
defaíeis Profetas canónicos, quatro mayores, e do-
ze menores ; mas em efpaço de três feculos os mayo-
res , e menores defde Ofeas a Malachias todos
paíFa-
« !>
tmm
Difairfo LXIXl 129
pníTaraó. Paílaraô os milagres da vara, paílaraõ oS
da ferpente de metal , paflaraô os de Elias , e de Eli-
feo : e porque lo faltava paliar a ley de Moyfés , e o
íacerdociode Araò, a íeV , -e Oííacerdocio também
palFarao, porque tudo paíí*a. ^ :^>' -^
731 Agora quizera eu perguntar ao mundo, íeNM«i.ij.
como me enche a memoria de tantas çouias , que to-
das paflaraô , me molhara alguma aos olhos , que naó
pairaíle. A's íete fabricas,a que a fama deo o nume de
maravilhas, accrefcentarao algun,s como oitava o Anf
fitheatro Romano ; mas a maravilha oitava , ou nona
he, que todas eíTas maravilhas, que psieciaó eternas,
paliarão. A primeira maraviilíaj-for^ô as Pyramides
do Egypto , ,a fegunda os Muras de.Babylonia, a ter-
ceira a Torre de Faro , aquartaioCoIolíb deRhodes,
a quinta o Mauíoleo de Caria, a íexta o Templo de
Diana Efeílna , a íetima o Siiii.ulaero^4e Júpiter
Olympico.Edeixando o Anfitheàtrojde qui^fo Te vem
as rujhas, 'asPyramid.es eahiraõ, os Muros ar r azarão-
fe, o ColoíTo desfezfe , o Maufoleo fepultt)ure , a
Torre fumidíe, o Farol apagoufe, o Templo ardeOj e
o Sijttulacro,como íimulacro,dervaneceore em fi meír
mo. Tem mais que dizer , ou que oppor p> mundo ?
Só pode appellar para as mais fortes, ebem/undaf
das Cidades , Cortes., e Metrópoles dos mais pode-
rofos Impérios : argumento verdadeiramente de
grande voato antes de fe lhe tomar o pezo. Ninive
Corte de Nino foy a mayor Cidade do mundo : an-
davafe de porta a porta naõ menos , que em três dias
de caminho : edificada de propofito com arrogância
de que nenhuma outra a iguaiaíle , como naÕ igua-
lou.' Mas onde eftá efca Ninive ? Ecbatanis; Cor-
te de Arfaxad, e Cidade^ que o texto fagrado chama
^. Tom. II. I poten-
.i^iou:
1 3 o Vieira ahhreviado
porentiíTima , era cercada de íete ordens de muros ,
todos de pedras quadradas, cada huma de vinte e íe-
te palmos por todas as faces , e as portas com prodi-
gioía altura de cem covados. Mas onde eítá eífa
Ecbatanis? Suza Corte de AíTuero, e Metrópole
de cento e vinte e fete Províncias , cujo palácio re-
prefentava hum ceo eftrellado fundado íobre colu-
nas de ouro , e pedras preciofas , e cujos muros erao
de mármores brancos , e jaípes de diferentes cores,
bem íe deixa ver quaó forte , e inexpugnável feria ,
pois defendia taô grande Monarchia , dominava tan-
tos Reynos , e guardava tantos thefouros. Mas on-
de eftá Suza ? Se hèuv^ílemos de fazer a meíma per-
gunta ás ruinas deTheba^, de Memphis,de Badra^de
Carthago, de Corintlw, de Sebafte^e da mais conhe-
cida de todas Jerufalem , neceífario feria dar volta a
toda a redondeza da terra. De Trova diíFe Ovidio :
In Hercid. ^mnfege^:efl^ubp7r&yafttit. E o mefmo podemos
dizer das planicies, valles, e montes, donde íe.levaii-r
tavaóás nuvens aquelles vaíliíIimos< corpos de caías^
muralhas j^e torres. De humas fenaó fábem os luga-
res j onde eftiverao , de outras fe lavrao ^-femea^., e
plantão os meímos iugares fem mais veftigíos de
haverem íido , que os que encontrão os arados , quan-
do rompem a terra, para que os homens compoílos
de carne , e fangue íe naõ queixem da brevidade da
vida , pois também as pedras morrem , e para que
ninguém fe atreva a negar , que tudo quanto houve
paliou , e tudo quanto he paíTa.
Num. 14. 752 A razão defte curfo, ou precipício geral ,
, com que tudo paíía , nao he huma fó , fenaó duus :
huma contraria a toda a eftabiiidade, e outra repu-
gnante ao mermo fer. E quaes faò ? O tempo , e an-
tes
t *
Difairjo JLXÍ Xí 1 3 1
tes do tempo o nada. Que coufa mais veloz , mais
fugitiva, e mais infíavel, que o tempo? Taõinílavel,
que lieuhum poder, nem ainda o divino o pode pa-
rar; por iílo os quatro animaes, que tiravao pela car-
roíj-a da gloria de Deos nefte mundo , naõ tinhaÕ ré-
deas. Defcreveo o tempo no palácio do Sol o mais
engenhofo de todos os Poetas , e dividindo- o em Tuas
p-irtes , diíreaíTim elegantemente.
A dextra Uvaque cites , à^ menjis , ér annus^
Soículaque , à^pofitafpatiis aqualibiis hor^y
Ver que novumftahat , cinâítm florente corona^
Stabat nnãaJEJlas^ (l^fpicaferta gerebat ^
Stabat ér Autíimmis calcatis forãibus uvtSj
Et glacialis Hyems canis hirjtna capiUls.
Elegantemente , torno a dizer , mas falfa , e impro-
priamente. Aqueile Stabat tantas vezes repetido he
p que tirou toda aíemelhança de verdade áengenho-
fa pintura \ porque nem a Primavera com as fuás flo-
res , nem o Eftio com as íuas eípigas , nem o Outono
com os feus fruílos , nem o Inverno com os Teus frios,
é neves, por mais tolhido, e entorpecido que pare-
ça , podem eílar parados hum miOmento. Pallao as
horas , paífaõ os dias, paííaÒ os mezes , paííaô os an-
nos, paílaó os feculos, e fe houveíle jeroglifico, com
que fe podelTem pintar^ havia de fer todos com azas^
naÓ fó correndo , e fugindo , roas voando , e defap-
parecendo.
733 Nem eícufa efta impropriedade eílar o Sol
aíTentado : Sedebat in folio Phoebus ; porque o Sol
pôde parar , como no tempo de Jofué, ou tornar
a traz, como no tempo de Ezechias; mas o tempoem
nenhum tempo nem parar, nem deixar de ir por di-
ante, fempre , e com a mefma velocidade. Bem
1 2 emen-
Meraai.
lib. 1.
n2
Vieira abbreviado
Met. Iib.
4-
Num. 15.
emendou eíla fua impropriedade o mermo Poeta ,
quando depois diíle :
Ipfa qiioque affiduo labuntitr teriipora motu ,
Nonfecus ac fliimen^ neque enim conjiftereflumen,
Atit levis hora potefi. , ;
E como o tempo naô tem , nem pode ter confiften-.
cia alguma, e todas as coufas defde feu principio naf-
cerao juntamente com o tempo , por iíTo nem elle ,
nem ellas podem parar hum momento , mas com per-
petuo moto, e revolução infuperavel palFar, eir paf-
fando fempre.
734 A fegunda razaó ainda he mais natural,, e
mais forte, oiVi:/i'/í2.Todasas coufas fe refolvem natu^
ralmente , e vao bufcar cora todo o pezo, e Ímpeto
da: natureza o principio, donde nafceraó. O homem
porque foy formado da terra, ainda que feja com
difpendio da própria vida , e íumma repugnância da
vontade, fempre vay buícar aterra, e fódefcanfa
na fepultura. Os rios efquecidos da doçura de íuas
aguas , poílo que as do mar fejaõ amargofas , como
todos nafceraó do mar , todos vaó bufcar o mefmo
mar , e fó nelle fe defafogaó , e paraÓ como em feu
centro. Aífim todas as coufas deite mundo, por gran-
des, e eítaveis que pareçaõ , tirou-as Deos com o
mefmo mundo do naó fer ao íer, e como Deos as
creou de nada , todas correm precipitadamente , e
fem que ninguém as poífa ter maó , ao meímo nada ,
de que foraó creadas. Viftes o torrente formado da
tempeftade fubita como fe defpenha impetuofo, e
com ruido , e tanto que ceifou a chuva , também elle
ceifou, e íefumiofubitamente, e tornou a fero nada,
que dantes era ? Pois aífim he tudo , e íomos todos ,
?^-j7.8. diz David : Ad nihilum devenient tamqumn aqtta
I ^
•■^T' """—-■
•■•
Difiurjo LXIX. 153
(Jecurrens, Sonhalles no ultimo quarto cia noite ,
quando as reprefentaçoens da fantafia laõ menos
confufas, que poíluieis grandes riquezas, que gofa-
veis grandes delicias, e que cílaveis levantado a
grandes dignidades; e quando depois acordaíles, vif-
tes com os olhos abertos , que tudo era nada. Pois
aíTini paíFaô a fernada em hum abrir de olhos todas
as apparencias defte mundo, diz o mefmo Profeta :
Velntfomniumfnrgentium.Domine, imaginem ípf o- n. n^, tm
mm ad nihilum rediges. De íbrte , que eítas la5 as
duas razoens , porque todas as coujas paííaó. Paííaô,
porque voaô com o tempo, e paílaõ, porque voaô ca-
minhando para o nada,donde fahiraõ; por iíTo^^como
diz oEfpiritoSanto, quando humas paíFaraô , ou
tem paliado , he necelFario , que venhaõ outras para
também paliar: Generatio praterif, ér g^neratio^^^^^ç-^
íidvenit : terra atitem in aternumjiat.
735 Mas fe bem fe repara nefta mefma fentença, Num. itf.
fendo taô poucas as fuás palavras , aílim como humas
confirmaó, aíFim outras parece que impugnaô , e
deílroem quanto imos dizendo. Porque fe a terra
eftá fempre firme , e eftavel : Terra autein in £ter-
numjlat ^ feguefe ao menos, que a mefma terra nao
paíTa , e que ha no mundo alguma coufa^, que naô
palfe. Concederemos pois efta excepção ao noíTb
aíTumpto, e diremos, que paíTao as figuras, como diz
S. Paulo, mas que a terra, que he o theatro, naô paf-
fa ? Naõ digo , nem concedo tal. A terra toda nao
paífa, maspaíFaó, efempre eílao paíFando todas as
partes delia. A terra compoemíe de Reynos , os
Reynos compoemfe de Cidades , as Cidades com-
põem fede ca fas , e campos, principalmente de ho-
mens , e tudo iílo , que tudo he terra , ( e toda a ter-
Tom. II. I3 i"a)
Dan. 2. XI,
Icclef. iQ
i.
1 3 4 Vieira ahhreviado
ra ) perpetuamente eílá paíTando.
73<^. Daniel revelando a Nabucodonofor aintel^
Iigencia da fua eflaíua, diíle, que Deos muda os tem-
pos e as idndes , e conforme elbs paíTa os Revnos
de huma parte para outra : Ipfe mutat têmpora, ir
States, transferi Regna , atque conjlituit. AíTun
paliou o Reyno do meímo Nd)uco para a Períia, o
dos Perfas para a Grécia , o dos Gregos para Rofna ,
e o dos Romanos para tantos outros, quantos hoje
coroao outras cabeças^ as quaes fe devem lembrar
daquella infa Uivei fcntença : Regnmn agente in^en-
íemtransfertur propter injuftitias. O noííb Rey-
no nao fendo no fitio originai dos mayores , quantas
vezes panou a outras gentes? PaíTou aos Suevos,
pairou aos Alanos, paíTouaos Gartbagmezes, paíTou
aos Romanos, paíTou aos Árabes, e Saracenos , e
dentro da mefma Hefpánha também paílbu, e tor-^
nou a paífar. Os terremotos , que fe geraõ do ar vio-
Jentado nas entranhas da terra , fio muito raros : mas
os que fe ftzem na fuperficie delia , fempre a trazem
em perpetua movimento.
Num. 17. 7V\ E fe os grandes Reynos, e Impérios naÔ faÔ
eltaveis , e paífaô , que ferao as Cidades particulare.s
para que nao he neceífario , que a roda da fortuna dê
toda a volta ? Nao fallo daquellas , que acabarão co-
mo de morte fubita abrazadas até á ultima cinza no
l^^?x" !^/r^^ ^^^^ "^^^^ ' ^^^^« '^^oy^ » ^ Lugduno.
Deita diíTe judjciofamente Séneca : Qtwndo una nox
fmt inter nr bem maximam , f miHa7n, nihil priva-
tmij mhtlpuhlicejlabiíe eft : t am bominum , quam
urbíiimfata volvimtur. Deixadas pois eftas , que
lubitameni-e pamirao do íer ao nao íer , fo fallo das
^ue por feus pálios contados vieraõ de humdomi-
nia
Senec. ep
■■•
Difcurfo LXiX. 155
nio a outro dominio. E quantas vezes as Pombas
deBabylonia, quantas osLeoens dejerufalem, quan-
tas as Águias de Roma , e de Coníbntinopla vi-
rão fobre fuás muralhas outras bandeiras? O mayor
theatro de Marte no noíTo feculo , e por ventura, que
em nenhum outro , foraô as guerras Belgicas , e na
grande Província de Hollanda excepta Dorth , por
iíTo chamada a Virgem, nenhuma Cidade houve, que
nao foíTeconquiftada , e alternclTe o dominio. Qiie
direi dos confins fempre incertos , e taõ frequente-
mente mudados de Hefpanha com França , e de Fran-
ça com Germânia , de Germânia com a Turquia , e
da Turquia com Itália ? Annos ha , que a antiga
Creta , hoje Cândia , fem fer das ilhas errantes do
Archipeiago, tem pofto em duvida o mundo para
onde ha de ir , e fe ha de reconhecer as Cruzes, ou as
jTjeyasLuas.
758 Em quanto ás cafas, membros menores , de Num. 18.
que fe compõem innumeraveimente as Cidades ;
quem poderá comprehen-Jcr o inextricável labyrin-
to, com que á maneira de peixes no mar fe andaó
fempre movendo , e pafíando de hum dono para ou-
tro dono? Ouçamos a familiar evidencia, com que o
grande juizo de Santo Agoftinho demoílrou a hum
delles efta perpetua inftabilidade. Introduz hum ri-
co , quejadanciofode fer fenhor da fua cafa, dizia:
Domum meam habeo. E perguntaihe o Santo aílim :
Qnam domum tuam ? Qtíam pater meus mihi dimi- ^^^^ ^^^^
ftt. Et tinde tile habtiit ? Avus nojler tilam reltquit. in pí. izi.
Recurve adproavum^inde ad abavum^ ^jamno-
mina non potes dicere. Pater tutis híc eam dimifit ^
tranfivit per tilam ^fic <ÍT iu tranfibis. Eíla cafa, de
que vos jadaisleríenhor, porque he voífa ? Porque
1 4 a her-
1^6 Vieira ahhreviado
a herdei de meu pay : e yoíTo pay de quem a houve ?
De meu avo: e de quem a houve voíTo avo ? De meu
..biíavo: e voílo biíavo de quem ? De meu trefavo :
já nao tendes palavras, com que profeguir de quem
maisfoy , e a quem mais paílbu eíta cafa, que cha-
inais voíla. Pois aífim como ella paííou , e voílbs an-
tepaíTados paílaraó por elJa , aíTim ella , e vós tam-
bém haveis de paíTar.
739 Por eíte modo fem firmeza , nem eftabilida-
de aJguma eftao íempre paíTando nefte mundo as ca-
ías , as quintas, as herdades, os morgados : huns, por-
cjue os faz paíTar a morte , outros, porque os manda
paíTar a juíliça, outros, porque os convida a paílar a
riqueza dos que os compraõ, outros, porque os obri-
ga a neceílidade dos que os vendem , outros, porque
a força , e poder os rouba , e íenhorea por violência:
em íumma , que naó ha pedra , nem telha , nem plan-
ta ^ nem raiz , nem palmo de terra , que naÔ eíteja
fempre paílàndo, porque tudo pníTa.
Nura. !<?. 740 Deíle tudo , que eílá íempre paíJando , he o
homem naô fó a parte principal , mas verdadeiramen-
te o tudo do mefmo tudo. E vendo o homem com os
olhos abertos , e ainda os cegos, como tudo pafía, fó
nós vivemos como fe naõ palfaramos. Somos como
os que navegando com vento, e maré, e correndo
velociíTimamente pelo Tejo acima , fe olhaÕ fixa-
mente para terra, parecelhe que os montes,as torres,
e a Cidade he a que paíla , e os que paflaÓ faõ elles.
He o que diífe o Poeta : Montes , iirbesqiie recedunt.
Mas demos volta a eíta mefma comparação , e vere-
mos na terra outro género de engano ainda mayor.
A mayor oílentaçaõ de grandeza , e mageílade , que
fe vio nefte mundo , e huma das três , que Santo
Agofti'
m
Diícurfo L^IX. 157
Agoftinho delejnra ver , foy a pompa , ^ magn-ficen- ■
cia dos triunfos Romanos. Entravao por huma cias
portas da Cidade, naqnelletenipovaft.ffima enca-
minhados longamente ao Cap.toho : PJ^^^J^ .".°^
íoldados vencedores com acciamaçoens: legui-'<^'e
renrcentadns ao natural as Cidades vencidas as
monta n "sina^ceniveis efcaladas, osr.os caudalofos
Si com pontes , as fortalezas , ^ -"- ^o--
migos , e as maclVmas , com que [""«^f "J?™:
em arande numero de carros os deípojos , e r.que
zas ^e tudo o raro , e admirável das reg.oens nova-
n nt lueitas : depois de tudo .fto .mu t.dao
dos cativos , e tal vez os mefmos Reys '^^» f"^»^ '
e por fim em carroça de ouro e Pedraria ,t rada por
elefantes , tigres , ou leoens domados ,0 ^^0^° "' .
unfador ouvindo a elpaços aquelSe glonofo, e te^
merofo pregaó : Memento te effe morta/em. Em
quanto eftalrándeprociíTaô (que affim lhe chama
Séneca) caminhava, eftavaõ as ruas , as praças ^s
janeilas, eos palanques , que para efte fi™ f'^ ff ' «'
cubertos de infinita gente , tocos a ver. E fe Dió-
genes entaS perguntalle, quaes erao os q"f P=^fl vao
fe os do triunfo, fe os que eftavao vendo , nao ha
duvida , que pareceria a Pf g""t«^<gna de nfo. Mas
o certo he , que tanto os da procilTao , e do tnunto ,
como os das janeilas , e palanques, que os eftavao
vendo , huns , e outros igualmente paíTavao , porque
a vida , e o tempo nunca pára , e ou indo , ou eftan-
do, ou caminhando, ou parados, todos fempre , e
com igual velocidade paliamos. , , .-j v,,™ ,«:
741 Declarou efta verdade taÔ mal advertida^™-
com huma femelhança muito propna Santo Ambro-
fio elegantemente: Eíjnon videmur ire corporoh- f,^^,^f_ ■
!l i
Num. ti.
Socrat. in
Cfat.
3.14, t.
1 5 ^ F/^/r^ ahbreviado
tjr , progredimur. Nam ficut in navibus dormien
Ímf^y .^ "^T'" ^»"íl'"fl''e finem, cjfu la-
q fe he n vil, rL'f°' ^'^''«^"dos na nicH^a nao^
HUL ne a vida , e todos navegamos com o mefmo v^n
ver'n?5:tm»''"P°' "'«--'"o na naThuns gt
vernao o íeme , outros mareaõ as velías hun^j violou
troVrí nhnm" ° ' "f"^ J'>g '^ . outros comem , ou-
tros nuihuma couía fazem , e todos igualmente ca
mmhao ao mefmo porto , affim nós, amda n^^l 3
Pnreça infenfivelmente imos paflandó femn e aW
zmhandofe cada hum ao íeu fim ; porque trío^clue
Ambrofio , dormes , e o tempo anda Tn'dmm?sií
bemrnof^/r''"??''''^' ^^°^; masad.Wtio
olhos bertoAT' ""' ^^'"''T''^ Po-^q^e tendo os
omosabertos para ver, que tudopalía, (ó oara con-
, 742 Dito foy do grande Filolofo Heraclito al-
legado e celebrado por Sócrates : Non po/Tenuem.
L porque? Porque quando entralTe a fesunda vez
m-rinfi ' "^"^ '^'"'P''* ''"''^ ' ^ P^-IT^ ' he outro. E da!
rio rf - ?" ' '^"' ° "'"^™° íuccederia , fe naó folie
entk^?" ^^°' ^^ • "^f ''"^ '"J"^""*' ^"^ q"e o homem
entra (Te, porque ainda que a agua do higo , e do tan-
que naô corre nem fe muda , corre porém , e ?emp"e
mdmoTâ"'.%°^"^^"' ' "í- -"" P-n-nec"^;:
mel mo eftado : Et nmquam in eodemjlatu perma-
net.
1 '
ÉÊÊÊm
Difcitrfo IXÍX. i]9
net. AiTim o dilíe Job , e quem o na6 diíTer aílim de
todo o homem , e de íl mefmo , naÓ fe conhece. Ad-
mirale Phdo Hebreo de qne perguntando Deos a
Adaó onde ellava : Jdam ubi es, eile naó refpondef- Ccn.j. 9.
fe Mas logo efcuía ao meímo Adaô, e a qualquer
outro homem , a quem Deos fizeííe a mefma pergun-
ta ; porque como pode refponder onde eíla quem
naoeíláPSedilTéra-.Eftouaqui, (; como fubtilmente
areue Santo Agoftinho } entre a primeira fy liaba , e
a fegunda já o eílou nao íeria eílou , nem o aqui le-
ria o mefmo lugar ; porque como tudo eíla p^aííando,
tudo fe teria mudado. Por ilTo conclue o meímo i hi-
lo , que fe AdaÓ houveííe de refponder própria , e
verdadeiramente onde eftava , havia de dizer NtiJ-
qiiam em nenhuma parte; porque em nenhuma par-
te eftá aquilio, que nunca eftá, mas fempre paíla : -^^
quodproprie refponderepoterat .nufquom, eo quoU^^'"-
humana res niinquam Í7j eodemftatu maneat.
743 Confiderando efte continuo paiTar do ho-Num.ziu
mém , ( mo fora de fi , fenaô onde verdadeiramente
parece que cítá , e permanece , que he dentro em li
mefmo ) diziaõ os Sábios da Grécia, como refere Eu-
febio Ceíarienfe, que todo o homem, que chega a íer
velho, morre féis vezes. E comoPPaíTando da infância
á puerícia , morre a infância : paíTando da puerícia á
adolefcencia , morre a puerícia: paílandoda adolef-
cencia ájuventud , morre a adolefcencia: paíTando
á^íjuventud á idade devaraô, morre ájuventud ^
paliando da idade de varão á velhice, morre a idade
devaraô: e finalmente acabando de viver por tanta
continuação , e fucceíTao de mortes , com a ultima ,
que fó chamamos morte, nwrre a velhice. Aííim o
coníideravaõ aquelles Sábios mais larga , e menos
íabia-
3^í
i! i
1 40 Vieira abbreviado
fabiamente do que deverão, aosquaes porilToemen-
'■c°'- .!■ olfv °''''^?,"'^°''í"^ "^o""'"'''' todos os dias:
Qimidumorm: Bjá pôde fer, que da communica-
tZ 'Tv -"^' r ''? '^om S. Paulo , enfinou eile efta
meíma l.çao aofeu difcipulo, quando lhe dilPe: Sin-
gulos dtesjingulas vitasputa. Se o Sol , que fera-
pre he o mefmo , todos os dias tem hum novo nafd-
mento, e hum novo occafo, quanto mais o homem
por lua natural inconltancia taõ mudável , que ne-
nhum he hoje o que % hontem , nem ha de fer á
manha o que he hoje! Defeng.nemonos pois todos,
e diga , ou digafe cada hum com EiRev Ezechias:
Demam tifque ad vefper-am finies 7ne. Èlejaacon-
cluíao defte largo difcurfo , queentaõ definirem^
bem , e conheceremos o que he efta vida , e efte
niundo , quando entendermos , que naÕ fó eftamos
faraento. ''"'^'^"' ^'""'^'"" ' ""' ^'" P^'P""° P^*"^
D I S C U RS O LXX.
Tirado de humfermaS da fegunda oitava da PaC-
choa pregado em Roma: dia, em que he obris-açal
e cojtume de toda Itália pregar. da paz.
P AZ.
IfaK 3
1^.
Part. 6.
Nuia. i^í).
744
7^ A cafa , ou família , que he huma Repu-
X ^ blica pequena , e na Republica , que he
iiumacafa, ou família grande , toda a paz confifte
em que o império do que manda, e a íujeiçaó dos
que obedecem, elíe ordenando , e elies fubordena-
aos eítejao concordes.
745 Ago-
Difcurjo XXX. I
^4^ Ao^ora pergunto eu: Eque Terá neccfílino de Num. zooi
huma , c d?outra parte, para que a ordem defta eou-
cordia fe conferve, e com a ordem, e a concórdia
fe configa a paz ? Refpondo com a mefma propor-
ção, que Ía5 necelTarias outras duas coufas : da p^^rte
do fuperior , e do que manda , igualdade : da parte
dos inferiores , e dos que íaÔ mandados , paciência :
fem iaualdade de huma parte , e fem paciência da ou-
tra naÓ fe poderá confeguir , nem confervar a paz.
Vós ,-que na familia , ou na Republica íois manda<^
dos, eluieitos, requereis paz, paciência. „ m,„, ,«^-
746 Aqui vereis , fenhores , o engano deíle mun- N-. -4,
do Todas as guerras defte mundo le fazem a fim de
confeguir a paz : Onmis homo , diz Santo Agoítmiio,.
etiamheliigerando , pacem reqmrtt : pacts tntenttO'
ne^enintiir & bella. A guerra fe applica afabedo-
ria , na guerra fe emprega a potencia , com a guerra
fe defpendem as riquezas , e com a gverra fe perten-;
de a paz; mas he engano: Viam pacis mn cognove^^f^^- n.
runt, A paz naÕ fe conquifta com exércitos arma-
dos , conquiílafe com huma fó eípada , e com dous
efcudos : com huma fó efpada , que he a da juínça ,
e com dous efcudos , que faó os das fuás balanças.
Divida a efpada igualmente pelo meyo o que partir,
e ponhaÓfe as partes , ou as ametades iguaes , huma
em huma balança , e outra na outra , e debaixo delta
igualdade fe achará a juftiça , e neíle equiliono a
Daz
747 Tal foY o primeiro juizo de Salamaó , e a
primeira íentença do Rey pacifico. AíFentado Sala-
maó no trono Real , a primeira coufa , ou cafo , que
lhe foy propofto,fov a contenda de duas mulheres le-
bre hum minino, ó qual cada huma delias proteíta-
va, .
142 Vieira
va que era feu filho. NaÔ havia teílimunhas, nem
outra prova E que faria o Key ? O que eu acabo de
3 Rcg- 3- ^\^^.^- ^^^^jpda que o minino íe parta pelo mevo' Di-
.5. vidnepfammi : e eíla foy a igualdade da efpada da
juítiça : manda mais, que das duas ametades huma
iede a huma mulher, ea outra á outra : Datedhm-
, diam partem uni , f dimidiam partem alteri • e ef-
ta foy a Igualdade das balanças. Oh admirável* iero-
giifico da juíliça igual , e digno de o tomar por em-
preza o Rey paciírco ! Mas naó parou aqui a decifaô
da^caufa. Deícuberta com eíla índuftria a verdadev
nao íe partio o minino , mas vivo , e inteiro fe deo a^
que erajua may : eneílas duns partes da íentença de
balamao íe manifeílaraô os dous eíFeitos da juílica
particular , ou univerfal , que devem obfervar os
lleys A juftiça particular tem obrigação de dar a
cada hum o feu, enefta ordinariamente fehuma par-
te fica fatisfeita, a outra fica queixofa; porém a jufti-
çaumverfal, e commua tem obrigação de fericrual
com todos , e deíh igualdade , que a todos fatisfaz ,
e abraça, nafce a verdadeira , e confiante paz. Em
huma Igual , em outra de%ual SalamaÕ , e em am-
basjufto ; mas fò.na da igualdade Rey pacifico.
Num. zo8^^ ^48^ Senhores meus, vós que na familia, ou na
nepublica tendes o officio , e a obrigação de as con-
íervar em paz , igualdade : jEquet amor quos aaua-
vit natura diz Santo Ambrofio. E fe acaío com os
exemplos de Jacob, de ífaac, e de Rebecca me repli-
cardes , que inclinar mais a huns , que a outros , ain-
da entre pays , e filhos , he afFedo natural , com os
"le^nios exemplos vos reípondo, que também he na- ,
tural feguirfe a defigualdade depilas inclinaçoens a í
rotura da paz , e as diícordias doíiieíticas-, e civis. O
veida-
li '
WêêêÊêí
Dijcurfo LXX. 145
verdadeiro, e único exemplo he fó o de Chriílo ho-
je, como Meftre Rey , ecomo Meílre Pay : SietU
in médio difci[)ulor um. Ouvi huma grande máxima
politica , e económica tirada do meímo texto. O
Príncipe hefenhor da Republica, o pay he fenhor
da caía, mas nem o Príncipe, nem o pay he fenhor
da fua inclinação ; In media. .
749 Todas as coiifas deíle mundo tem a fua m-Num.io^,
clinaçaó natural : íó huma ha , que naó tem inclina-
ção : e qual he ? O centro. Todas as partes do imi-
verfo propendem , carregaó , e inclinaô para o cen-
tro : fó o centro , que eíiá no meyo de todas , naó in-
clina para parte alguma. E porque razão ? Porque íe
o centro fe inclinaire a huma , ou a outra parte , nô
mefmo ponto íe arruinaria toda a maquina do mun-
do. De maneira, que todas as partes do univerfo fe
inclinaÕ ao centro , e o ceritl-oâ nenhuma delbs fe
inclina , porque eftá no meyo 'An médio. Grande do-
cumento'da natureza para as incíinaçoens das voa-
tades fuperiores. Quereis levarapos vós as incíina-
çoens de todos, naô vos inclineis a neiihum. Porque
o centro poílono meyo naó4:íém inclinação a nenhu-
ma das partes , por iílb todas as^partes do univerío íe
inclinat) concordemente ao centro , e com a meíma
inclinação , e com s mefma concórdia fe unem en-
tre íi, e feconfervaõ em paz. Agora entendereis o Num. 110.
próprio fentido de hum texto muito commum , mas
naó pouco difficil : Dominifum cardines terr^y-&'^
pojuitfuper eos orbem. Quer dizer , que Deos aílen-
tou, eeftabeleceo o mundo fobre os centros da ter-
ra. P:íra he a figniíicaçaõ da palavra Cardines, como
fe lê no original Hebreo : e aqui eftá a diíiicutdâdel
A terra naõ tem , nem pode ter mais que hum ceiv-
tro*
Feg. »:
Mil
1 44 Vieira ahhreviado
-tro, eem fer lium fó coníifte toda afua firmeza: co-
mo diz logo a Eícritura , que Deos poz , e eílabele-
ceo o mundo febre os centros da terra ? Porque íú{-\
do mundo politico com alluíao ao mundo nstural.
O mundo natura] tem hum fó centro , e o mundo po-
Jjtico-tem muitos centros. O centro do m.undo natu-
ral he o meyo da terra , os centros do mundo poli-
tico íaõ todos os que tem o mando, e o governo
do mefmo mundo , ou de íuas partes, diz S. Jerony-
mo. Dentro deíle orbe politico ha muitos círculos
lUayores , ou menores , e cada hum tem o feu centro.
Os círculos mayores íaõ os Reinos , e o centro do
Reyno he o Príncipe : os circules menores iaõ as
Cidades, e o centroda.Çídade he oMagiftrado: os
círculos mínimos faô as^famílías , e o centro da famí-
lia he o pay. Eftes faò pois os centros muitos, e var
nos, fobre os quaes Deos eílabeleceo eíle orbe rar
cional do mundo politico : Dominifunt cardines
terr^y & pofuit fuper ^eos orbem. Eque feíegue da-
-quí? Segueíe,, que para cada hum deíles centros
le conícrvar dentro da fua esfera , e para a confervar
a ellaem paz, e concor-dic» , he neceíhirioque fe po,
nha como verdadeiro cçntro no meyo , e fe mante-
nha, efuftente na ímWferença, deíle equilíbrio fem
inclinação a huma, iiem a outra parte: In médio, ^w
Num. 211. 7S^ Aos Reys de Ifrael dizia Deos fallandocom
cada hum : Nec declinabis ad dexteram ^ neque adJI-
nifiram. Eu vos fíz Rey , eu vos fiz Governador , eu
vos íiz pay do meu povo , pelo que adverti , que o
inclinar em vós he declinar , e aíiim vos deveis por-
tar de maneira , que nem inclineis para huma parte,
nem para a outra , nem para a efquerda , nem para a
4keita. Ndta ultima palavra eítá a nijnha duvida;
-'■!•' Nec
>-A
Difcurfo LXX.^ 145
KenueaddcxteraffL Qiico i-iincipe nnó incline para
a parte cíquerda , que he a peyor parte , bem eíláj
mas piíra a direita , porque naô ? A parte d^eita naw
he a melhor ? Sim. i'ois porque naõ qrer Deos, que
o Prificipe fe incline nem d melhor parte ? Forque
melhor he nao incluiar, que inclinar no melhor. l)e-
clararmehei com hum exemplo domellico. Hum dos
companheiros de noíTo Padre Santo Ignacjo, e que
depois lhe fuccedeo no Generalato foy o Mtíire Lai-
nes, e querendo o Santo empregar eíle grande ta-
lento , que era o mais eminente de tcdos ( como bem
fe vio íendo Theologo do Papa no Concilio Tnden-
tino ) naquelle exercido , que friile mais coníoimc á
fua inclinação, perguntoulhe a que íe inclinava. E
que refponderia Laines ? Inclinome a nao me incli-
nar. Eílehe o verdadeiro dia-ame de hum perfeito
fuperior: inclinarfe a nao ter inclinação: Ncc decli-
tiabís addexteram , 7ieqiie adjintjlram ; porque in-
clinarfe a huma parte , qualquer que íeja , he faltar
ao equilibrio da igualdade , e com a deíigualdade
perder a união , perder apa;z, perder a concórdia,
perder , e perturbar tudo. E aíRm feria na família ,
ou na Pvepubiica, fe fe moveíTe o centro, fe fe deixaf-
fe o mcyo , e íe fe inclinaíle a cabeça : Stetit in mé-
dio', naõ fóno meyo: In médio, mas no meyo fem in-
clinação : Stetit.
' 751 No corpo natural bem fe pode inclinar a ca* ^""^•^^"'
beça fem movimento , nejii mudança do eorpo : no
corpo politico nao pode. Vede huma grande figura
no meyo do mundo , que foy o monte Cah ai io : p,-^^^^^
Ops7'aius eft falutem in médio terra.O mefmo Chrif-
to, que refufcitado íietit in médio, morrendo , in-
clinou a cabeça: Inclinat o capite. Eque aconteceo^ ' • '-
Tom. II.
K
no
ÍT^
1 46 Vieira Mreviado
no mefmo ponto ? Et ecce velum templifcíffum e/l
m duas partes , f terra mota ejt , f petrafá]j,e
funt , irmmumenta aperta funt , f multa corpo-
ra, qua d&rmierpjit , furrexermít. ínclinoufe ha*
ma cabeça coroada , inciinoufe hiima cabeça , que ti-
nha efcnto em cima o titulo de Rey : Inclinato ca-
pite ? Et ecce : e o que no mefmo ponto íe feguio a
eíla mclmaçaõ, foraó terremotos, divifoens, inquie-
taçoens , tumultos : tudo perturbado , tudo dcí-
compoílo, tudo alterado, e defunido. Até as pe-
dras míenfiveis fe quebrarão de dor : Petrafci/J^
fíint: aténomaisíagrado houve divifoens, e rotu-
ras: Felum templí fcifum e/i ; até as fepulturas fe
abriraó: Monument a aperta fimt\ porque em íeme-
Ihantes cafos muitas coufns , que eílavao íepulta-
das no efquecimehta, fe defenterraó , e em defpeito
dos.Vivos íahem outra vez á luz do mundo , e rei uf-
citaõosmortos: Et multa corpora^ quadormierant^
nam.zi;.furrexerunt. Pelo que , íenhores meus, íequereis
quietação, íe quereis paz, igualdade: e igualdade
re£í:a , e Tem mclinaçaô a nenhuma das partes, coma
a de Chriíto hoje poílo em meyo dos difcipulos :
Stetit m médio dífcipulorum.
DISCURSO LXXI.
Tirado de humfermao bifíorico , e panegyrico nos
annos da fereíúgima Rainha de PortusiaL
P A Z.
?>rc. 14.
752
Ue de tempos coftuma gaííar o mundo^
naó digo no ajuílamento de qualquer
ponto
\\ '
Dijcurjo
ponto de huma paz, mas (6 em rejeitar , e compor
os ceremoniaes delia ! Tratados preliminares l^hecha-
maó os politicos : mas quantos degraos fe haó de fu-
bir , e defcer , quantas guardas íe ha(5 de romper , e
conquiftar antes de chegar ás portas da paz, para
que le fechem as de J ano ? E depois de aceitas, com
tanto exame de clauíulas as plenipotencias : depois
de alíentadf^s com tantos ciúmes de authoridade aS
juntas : depois de aberto o pairo ás que chamao con-
ferencias , e fe haviao de chamar differenças , que
tempos , e que eternidades faõ neceíTarias para com-
por os intricados, e porfiados combates, queallife
Jevantao de novo ? Cada propofta he bum pleito ,
cada duvida huma diiaçaõ , cada conveniência huma
difcordia , cada razaó huma difficuidade, cada In te-
relfe hum impòííivel , cada praça hnma conquifta ^
cada capitulo , e cada claufula delle huma batalha , e
mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz,
e em cada gota de mar fe afoga , em cada átomo de
ar fe íufpende, e pára Os avifos, e as polias a correr,
e cruzar os Reynos , e a paz muitos annos fem dar
hum paíTo.
DISCURSO LXXII.
Tirado de hum ferm ao da piúiUcaçao do Juhiíeo.
P E C C A D O.
753
H fe Deos nos defcobrira , e moílrara Part. 7.
_ nefte auditório a fealdade de hum pecca- ^"'^' '^7-
do , ainda dos menos íeyos ? Sabeis vós , e vós, ( íál-
lo particularmente com o género feminino ) íabeis
K 2 por-
porque naô tendes ao peccado o horror, eaborrecr^
mento , que o menor delles merece ? He porque naa
conheceis a fua fealdade. Repreíentalla como ver-
dadeiramente he 5 naó he poffivel, mas para que ve-
jais ao menos quanto mayor he , que a da Jepra
Num.iu.confideraimeliuma cara (que naô merece nome de
roílo , nem ainda de monílro ) disformilFimamente
macilenta , feca , e efcaveirada , a cor verdenegra , e
funeíla , as queixadas fumidas , a teíta enrugada , os
olhos fem peílanas, nem fobrancelhas , e e m lugar
das mininas com duas groíílis belid.is , calva , rame-
Jofa , defnarigada , a boca torta , os beiços azues , os
dentes enfreílados, amarellos, e podres, a garganta
carcomida de alporcas, em lugar de barba hum lo -
binho , que lhe chegue até os peitos , e no mevo del-
le hum cancro fervendo em bichos , manandopodri-
daô, e matéria, naô fóafcorofo, e medonho á vif-
ta , mas horrendo, peílilente , e infupportavel ao
cheiro. Cuidais que tenho dito alguma coufa.? Do
que verdadeiramente he, nem fombras ; mas iílo baf-
ta para fe conhecer , que nenhum roílo ha cuberto
de lepra, cuja fealdade naó íeja muito menos feya,
que a do peccado.
DISCURSO LXXÍII.
Tirado de hum fermao de Santo António pregado no
Maranhão , no qual debaixo da allegoria dos pei-
xes reprehendeo os vicios dos homens.
Part. 2.
Num. 3}3«
PEIXES.
754 1^^ Uero hoje á imitação de Santo António
voltarnie da terra ao mar, ejá que os ho-
mens
\\ f
Difcurjo nKXllI. 149
mens fe naó aproveitaó , pi cgar aos peixes. O mar
eftá taó perto , que bem me ouviráó.
Em fim , que havemos de pregar hoje nos pei-Num. 534.
xes ? Nunca peyor auditório. Ao menos tem os pes^
xes duas boas qualidndcs de ouvintes: ouvem , e nap
fallaó. Huma íó couía podéra deíconíolar ao Pre-
gador , que he íerem gente os peixes , que fe nao ha
de converter ; mas eíía dor he taÓ ordinária , que ja
pelo coítume fe naô fente.
Fos eftis fal terf\e. Haveis de íaber , irmãos Num. jjj.
peixes , que o fal íilho do mar , como vós , tem duas
propriedades, as quaes em vós mefmos le expen-
mentaó : confervar o íao, e prelervallo , para que íe
nao corrompa. Eílas mefmas propriedades tinhaô as
prégaçoens'do voHb Pregador Santo António , co-
mo também a devem ter as de todos os Pregadores.
Huma he louvar o bem , outra reprehender o mal :
louvar o bem para o confervar , e reprehender o mal
para prefervar delle. Nem. cuideis, que iílo perten-
ce fó aos homens ; porque também nos peixes tem
íeu lugar. AíTim o diz o grande Doutor da Igreja S.
Bafilio : Non carpere folum , reprehendereque pojjii-
mus pílces , fedfunt in illis , ir qu^ profequeiida
fiint ^ imitatione \ Naõ fó ha que notar , diz o San-
to , e que reprehender nos peixes , fenaó também que
imitar, e louvar. Qiiando Chrifto comparou a fua
Igreja á rede de peícar : Sãgen£ mi(f£ in mare^ dizMath. 13.
que os peícadores recolherão os peixes bons , e lan^ 47.
çaraó fóra os maôs: Collegermit bonos in vafa^ ma-
ios aut em foras mifertmt. Eonde ha bons , e mãos ,
ha que louvar, e que reprehender. Suppofto ifto ,
pjra que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o
voíío íermaó em dous pontos. No primeiro louvar-
Tom. II. K3 vos-
: \
, !M
Gcncf. 1.
150 Vieira ahhrevíado
voshei as voíías virtudes, no fegundo repreiíender-
voshei os volfos vícios. E deita maneira íatisfaremos
ás obrigaçoens do íal, que ineihor voseítá ouvillas
vivos, que experimentailas depois de mortos.
7SS Começando pois pelos volfos louvores , ir-
mãos peixes, bem vos podéra t^u dizer, que entre
todas as creaturas viventes , e leníitivas vós foíles
as primeiras , que Deos creou. A vós creou primei-
ro , que as aves do ar , a vós primeiro , que aos ani-
maes da terra , e a vós primeiro , que ao meímo ho-
mem. Aohomem deolhe Deos amonarchia, e do-
minio de todos os animaes dos três elementos , e nas
proviíoens , em que o honrou com eítes poderes , os
pritneiros nomeados forao os peixes : Ut p-afit pij^
cibuj maris, ér vo lati li bus cwli, èr beftiís tiniver-
fa terra. Entre todos os animaes do mundo os pei-
xes faô^os mais, eos peixes os mayores. Que com-
paração tem em numero as efpecies das aves , e áos
anim^aes terreílres com as dos peixes ? Que compa-
ração na grandeza o elefante com a balea ? Por iíla
Moyfés Chroniíla da creaçaô , Câliando os nomes de
todos os animaes, íó a e!la nomeou pelofeu: Creazit
Deus ceie gr an dia. E os três Muíicos da fornalha de
Babylonia o cantarão também como íinguiar entre
Pan, 3.7^. todos : Bemdicite cete^ ir omniãy qua vioi^entur in
aquis. Domino. Eftes, e outros louvores, eílas , e ou-
tras excellencias devoíTa geração , e grandeza vos
podéra dizer , ó peixes ; mas iíío he lá para os ho-
mens , que fe deixaÕ levar àQ&':x^ vaidades.
yS^ Vindo pois, irmãos , ás voííls virtudes , que
fao ás que fe podem dar o verdadeiro louvor, pailb
Nai". 3 38.45 virtudes naturaes , e próprias v oíFas. FallaJidodos
peixes Ariíloteies , diz^ que fó elies entre todos os
ani-
Ccnef. I.
m
Dlpirfo LXXIIL 151
jnimacs fe nao doiivío , nem domeílicao. Dosam-
mães terreílres o caò he taô domeílico , o cavalio tao
fijjeito , o boy tao lerviçal , o bngio taô amsgo , ou
tnó íifongeiro, e até os ieoer.s , e os tigres com arte,
e benefícios fe amanfaõ. Dos animaes da ar a tora
aquelLíS aves, que íe criao , e vivem com nofco , o
pâruigayo nos falia, o rouxinol nos canta , o açor
nos ajuda, e nosrecrea , e até as grandes aves de ra-
pina encolhendo as unhas reconhecem a ipao de
quem recebem o fuftento. Os peixes peto contrario
tó vivem nos feiís mares, e rios , lá te mergulhão
nos feus négos , lá fe efcondem nos íuas grutas , e núo
ha nenhum tao grande , que fe fie do homem , nefrt
taô pequeno; qiíe nao fuja delle. Os Authores com-
nnimmente condemnaó eíla condição dos peixes, e aí
deitaô á pouca docilidade, ou ádemaíiívda bruteza ;
insseufou de muito difterente opinião. Naôconde-
mno,antes louvo mu ito aos peixes eíle feu retí ro,e me
parece , que íe naõ fora natureza , era grande pru-
dência. Peixes , quanto mais longe dos homens , tan-
to melhor: trato, e familiaridade com elles, Deos
nos livre. Se os animaes da terra querem icr feus fa-
miliares, façaõno muito embora , que com fuás pen-
foens o fazem. Cantelhe aoshomenso rouxinol, mas
naiuagayola: digalheditos opapagayo, mas na íua
cadeya: vá com ellesácaçaoaçor, mas nas fuás pio-
zes: façalhe bufonerias o bugio, mas no feu cepo :
contentefe o cao de lhe roer hum oíTo , mas levado
onde nao quer pela trella : prezefe o boy de lhe cha-
marem formofo, ou fidalgo, mas com o jugo fobre
a cerviz , puxando pelo arado , e pelo carro : glorie-
fe o cavalio de maítigar freyos dourados , mas de-
baixo da vara , e da efpora ; e íe os tigres, e leoen^
K4 lhe
I r
:\\
*í^
•I f
152 Vieira abbreviadó^
lhe comem a ração da carne, que naó caçara6 na
bofque, fejao prezes , e encerrados com grades de
terro Entre tnnto vós peixes longe dos homens, e
roradeíías cortezanias vivireis lócomvoíco, fim •
mas como o peixe na agua. '
ííum. 34J. ys7 Vós fois os que íuílentais as Cartuxas , e
os BuíTacos , e todas as Tantas famílias , que profeíTaó
mais rigorofa aufteridade: vós os que a todos os ver-
dadeiros Chriítaôs ajudais a levar a penitencia das
Quarefmas : vós aquelles, com que o mefmo Chriílo
feítejou a fua P^afchoa as duas vezes , que comeo
com feusdifcifuíos depois de reíufcitado. Prezem-
fe as aves , e os animaes terreftres de fazer efplendi-
dos, e cuftofos banquetes dos ricos, evósgloriai-
vos de fer companheiros do jejum , e da abftinencia
dos juftos. Tendes todos, quantos íois, tanto paren-
tefco, eíimpathia com a virtude, que prohibmdo
Deos no jejum a peyor , e mais groíTeira carne , con-
cede o melhor , e mais delicado peixe. E poílo que
na femana fó dous fe chamaó voííos , nenhum dia
vos he vedado. Hum fó lugar vos deraó os Autho-
res entre os íignos celeftes ; mas os que fó de vós íè
mantém na terra , faó os que tem mais feguros os lu-
gares do Ceo. Em fim fois creaturas daquelle ele-
mento , cuja fecundidade entre todos he própria do
Gen. I. sEfpirito Santo: Spiritus Dominifoeciindabat aquas.
Num. 34Í. 7S^ Deitou vos Deos a benção , que creíceiTeis ,
e multiplicaífeis : e para que o Senhor vos confirme
eíla benção, lembraivos de naõ faltar aos pobres
com o feu remédio. Entendei , que no íuftento dos
pobres tendes íegurosos voíTos augmentos. Tomai
o exemplo nas irmans Sardinhas. Porque cuidais que
as multiplica o Creador em numero taó innumeravel?
Por-
DifcurfoLX%JU- 155
Porque faó lufteuto de pobres. Os Solhos , e os .Sal-
moens fao muito conrados,porque lervem a mel. os
Rcvs , e dos poderofos ; mos o peixe , q"= /"«f^^a
rfomè dos nobres de Chrifto , o mefmo Chntto o
nv Idplica , e .ugmenta. Aquelles dous peaescora-
;3ros dos cico paens do deferto mult.pnca-
íaô tanto, que deraó de comer a cinco mil hointns.
Pois le peixes mortos , que iuftent.^ a pobres , mu -
tiplicaó tanto , quanto mais , e melhor o faraó os vi-
vos "crelce,, peixes , crefcei , e multiplicai, e Deos
vos confirme a íua bençaô. ..„„„inr;a
7CQ Vede , peixes , e naÕ vos venha vangloria ,
quant^o melhores lois , que os homens. Os "omens
"iveraô entranhas para deitarjonasao mar , e oj^ei^N^nr
xe recolheo nas entranhas a Jonas para o levar vivo
á terra He poffivel , queos peixes ajudao a ['•"^^çao
dos homens , e os homens lançaõ ao mar os Miniftros
dafalvaçaoi ^ , ^, _
760 Efte he, peixes, em commum o natural, que ^um. 540
em todos vos louvo, e a felicidade, de que vos dou
o parabém naófem inveja. Mas para que da admi^Num. 34-
raçaô de huma tao grande virtude voíTa paíTemos ao
louvor , ou inveja de outra naô menor, admirável he
igualmente a qualidade daquelloutro peixezmho , a
que os Latinos .hamarao Torpedo. Efte peixe co-
nhecemos cá mais de fama , que de vifta^; mas líto
tem as virtudes grandes , que quanto lao mayores,
mais íe efcondem. Eftá o pefcador com a cana na
maÓ , o anzol no fundo , e a boya íobre a agua , e em
lhe picando na ifca a Torpedo, começaihe a tremer o
braço. Pôde haver mayor, mais breve, e mais admi-
rável efFei to? De maneira que num momento palta
a virtude do peixezinho da boca ao anzol , do anzol
154 Vieira ahhrcoiado
á linhn, da linha á cana , e da cana ao braço do pefca-
dor. Co„, muita razwdiíre, que efte volTo louvor
A^T.l7^ '■f''"; '°"' '"""-'='■ ^^^"' 'i'^" ''«s pesca-
dores do noflo elemento , ou quem lhe pozera eík
\ln ri V'"-"""'^ ^"^ '"''° ' " '5"e Pi.-fcaó na terra?
Muitopercao; mas naó meefpantodomulto: oque
T"ITt ' ^J^Í^P^f^q'"--'" t^nto, equetremaôí.ô.
p-.',.Lo. raiuopeícar,etaõpouco tremer! Podera-
' iu!dof r '""?' '"'.'^' ""' m.ispelcadores, emais
modos , e traças de pefcar, fe no mar , ou na terra > E
le certo , que na terra. NaÕ quero difcorrer por el-
hM^T^^^'" ^'^""-' '^""'"l^çaô para os peixes:
balte tazer a comparação com a cana , pois he oinf-
trumento do noíFo cafo. No mar pefc^ô as canas na
terra pcfcaõ as varas, ( e tanta foríe de varas ) pefcaô
as gnietas , pelcaô as bengalas, pefcaõ os baftoens , e
ate os cetros peícaó , e pelcaó mais que todos; por-
que pefcao Qdades , e Reynos inteiros. Pois h^ Jof-
nel , que pefcando os homens cou (as de tanto pezo.
he nao trema a maó , e o braço .? Se eu nré^ra aos
homens, e tivera a língua de Santo AnroniS, eu os
nzera tremer. '
^ ^% Antes porém que vos vades , aíTím como
Num. 347.ouv,ftes os voílos louvores , ouvi também n^ora as
voíTas reprehenroens : fervirvoshaõ deconfulaõ, iá
qoe nao feja de emenda. A primeira, coufa que me
deíedihca , peixes , de vós , he que vos comeis huns
aos outros. Grande efcandalo heefte; masacircunf-
tancii o faz amda mayor. NaÓ íó vos comeis huns
aos outros , fenaõ que os grandes comem os peque-
nos. :5e tora peio contrario , era menos mal. Sc os
pequenos comerão os grandes , bailara hum grande
para muitos pequenos 5 mas como os grandes comem
os
N
•^
DifciirfoLXXIII. 155
os pequenos, naÓ b:jftaÓ cem pequenos, nem mil
para hum fó grande. Olhai, como eílranha ifto .;anto
Ac^oíUnho: Homines pravís, perverfisque ctiputua-
tibiis faãi Jtint veluti pijces invuem fe dtxor an-
tes- Os homens com fuás más, e perverías cubicas
vem a ler como os peixes , que fe comem huns aos
outros. TaÔ alheya coufa he naô fó da rozao , mas
da meíma natureza, que fendo todos creados nomeí-
mo elemento , todos cid-idaos da mefma patna , e
todos finalmente irmaôs , vivais de vos comer, ban-
to A<^oilinho, que pregava aos homens, para encare-
cer a^feildade defte eícandalo moítrouiho nos pei-
xes E eu que prego aos peixes , para que vejais ,
quão feyo , e abominável he , quero que o vejais nos
homens. Olhai, peixes, lá do mar pí^ra a terra. iSao,
naÓ NaÓheiiro o que vos digo. Vós virais os olhos
para os matos , e para o fertaõ ? Para cá, para ca. Ir^a-
ra a Cidade he, que haveis de olhar. Cuidais, que
fóos Tapuyas fe comem huns aos outros.^ Muito ma-
vor açoiíeue he o de cá , muito mais fe comem os
brancos. Vedes vós todo aquelle bullir , vedes todo
aquelie andar, vedes aquelie concorrer ás praças, e
cruzar as ruas , vedes aquelle fubir , e defcer as cal-
çadas , vedes aquelle entrar, e fubir íem quietação,
Lmfocego? Pois tudo aquillo he andarem buícan-
do os horaeiís como haó de comer , e como fe haode
comer. , ■ r kt *
762 Morreo algum delles, vereis logo tantos fo-Num. h«.
hrre o miíeravel a defpedaçallo, e a comeilo. Comem-
no os herdeiros, ccmem.no os teftamenteiros, co-
memno os legatários , comemno os acredores , co-
memno os officiaes dos orfaõs , e os dos defuntos , e
aufentes ^ conie-o oJ^kdico, que o corou, ou ajudo»
^ amor-
15^ Vieira abhreviado
íjiii. , come-o a mefma mulher , que de má vonnJp
lhe da para mortalha o lançoi maisVelho wá co
"orque^cí nf" Y" '^ ° '^"^ "^ ^^ng: os W;
t OS que caiuando o levaõ a enterrar • em Pm o,*,, 4
ao pobre defunto o naõ comeo a rerra ; e á o ^««"0'
mido toda a terra. Já fe os homens fe come á^ rf"
roente depois de mortos , parece que era mTnos h .r"
ror e menos materra de fentimento, M^p" ra nue"
conheça.s a que chega a voiFa crueldade Sde!
» ? Porque me perfeguis taõ deshumanan/e ué vós
nnacaine? Qiiereis ver humTob deftes? Ved^h,,™
homem delFes , que andao pe4guTdos de i os ou
„: „ „ S^ " " Me.rmho , come o o Carcereiro , co-
mv-ooEfcnvao, come-o o Solicitador, come-00
Advogado, comeo olnquiredor, comlo "teft,
munha come-o o Julgador, e ai^da nao eftá fen
tencado , e já eftá comido. SaÔ peyoresos homens
que os corvos. O trifte , que foy*^ foZ níô o co'
mem os corvos íenaô de^í-ois dl executado e mor-
to, e o que anda em juizo, ainda naô eftá executa-
do, nem lentenciado, ejá eftá comido
N«m. ,4í. 763 fc para que vejais como eftes comidos na
terra fao os pequenos , e pelos melmos moJÔ «>„
fe deft^l^^e^/T'' 'r ""•" ' ""^'' ^ Deos queix'an"o
le dUte peccado : No7mc cogmfcent onwer aui nn^
ctbumpams^. Diz Deos, que comem os homens iao
íó
P/.l).4.
DifcurfomXIII. 157
ró oíeu povo, l^nao declaradamente a íuo plebe ^
Plebem meam. Porque a plebe , e os plcbeos , que lao
3S mais pequenos , os que menos poaem , e os qi.e
,enos avultaó na Republica , eftes íao os comidos.
E n -Õ ío diz , que os comem de qualquer modo , íe-
QaÒ que os engolem , e os deverão , nao como os ou-
ros co-eres ffenao como paô: Qm devoram ple^
hemmeam, tit abinn pams. A diíferença , que ha
entre o paÔ, e os outros comeres, he, que para a car-^
ne ha dias de carne , epara o peixe dias de peixe , e
pnra as frutas diíterentes mezes no anno ; porem o
nao he comer de todos os dias , que íempre , e conti-
nuamente fe come : e ifco he o que padecem os pe-
quenos, faÕ o paó quotidiano dos grandes: e auim co-
mo o oao íe come com tudo , aílim com tudo ,_^e em
tudo faÓ comidos os miíeraveis pequenos, nao ten-
do , nem fazendo officio , em que os naÕ carreguem,'
em que os nao multem , em que os naõ defrauderny
em que os nao comao, traguem, e devorem : (hnae-
ruorant plebem meam, ut c i bum pams.?àveQc\ os bem
iíto, peixes? Reprefentafeme, que com o movi-
mento das cabeças: eílais todos dizendo, que nao
e com olhardes huns para os outros, vós eftais admi-
rando, e paímando de que entre os homens haja tal
injuftiça , e maldade. Pois ido mefmo he o que vos
fazeis. Os mayores comeis os pequenos, os muito
grandes naò fó os comem hum por hum , íenao os
cardumes inteiros : e iíto continuadamente fem dif-
ferença de tempos , naõ fó de dia , fenaô também de
noite, ás claras, e ás efcuras, como também fazem
os homens. . • n- -^>j>,ni t<(
764 Se cuidais por ventura, que eftas injuíliças^"^' J?
entre vós fe toleraô , e paííaó fem caíligo , enganaif-
\os.
^
4^
I' iSií
1 5 S Vieira ahhreviado '
vos Affirii como Deos as cartiga nos homens amiri
tambe,,, por feu modo as caíhga em vós Os m i^
1 T^°' e quando menos ouviríeis murmurar
:: P?£sen;os nas «noas, e muito maist^en r
aosmiíetaveis reme;ros delias, qneos mavore/n,.^
f a foraõ mandados , em ve^, dego4°na?l auemln
tar o mefmoEft.do, o dertrufraó; Jorque toda ."
fome , que de iá traziaô , a fartavaõ em corer e de
auao acaioa/guns dos que feguindo a efteira dos
ma.ts pátrios, bem ouviriaõeíks lá noTeio nZ
^ es me mos mayores, que cá co,niaó os pequeno
quando a chegnó.achaó outros mavores aSc"'
«nao também a ciíes. Efte he o efty ló da di? na Tufti'
n^hec:r:r,Tc;,:";-.;f ° - ^- "^-^ent^o^íct .
Vos, qmbus rcaor mar is , atque terra
JJisdeditmagnumnecis, atqtievita
lomte mflatos, Umúdosquevultus'
W"aqu'd a-iobis minorextimercit.
Maior boc vobis Dominus minatur
m7rh ' ^r''.' ^q^^^llil diffiniçaõ de Deos : Reitor
mins, atque terra: Governador domar, e da ter-
ra pnra que naõ duvideis, que o mefmo eftylo Jue
ptos guarda com os homens na terra , obferv-, tam
bem comvofco no mar. Necedario he lo^o nne
oihe.s por vós e que naõ faça,s pouco cS"da'dr
trma , que vos deo o grande Doutor da Igrei,, Santo
Uuardefeopeixe, queperfegue o mais fraco para o
comer,
I
DifairfoLXXlII. i^9
'omer , naô fe ache na boca do mais forte, que oen-
ruhi a elle ! Nós o vemos aqui cada dia. V ay o Aa-
*eo correndo a traz do Bagre , como o cao iipos do le-
)re , e naÓ vê o cego, que lhe vem nas coitas o i uba-
■aÓ .com quatro ordens de dentes, que o ha de en-
,uHr de hum bocado. He o que com inayor elcgaiv
^avosdille também Santo Agoíiinho: Pr^ao mt-
wr is fit prado maioris. Mos naóbaftao , peixes, ei-
tes exemplos , par. que ac.be de fe perfuadir a voíTa
Rula, que a mehna crueldade , que ufais com os pe-
quenos , tem já aparelhado o caítigo na voracidaue
dos erandes. , ,. , ^ ^^
7?c Dirmeheis ( como também uizem os no- Num. jjt;
m4s) q-ac naò tendes outro modo de vos íuftentar.
Ed- que íefuftentaó entre vós muitos, que naoco-.
mem os outros ? O mar he muito largo , njuito íer^
tii , maito abundante , e fó com o que bota as prayas,
pôde íuílentar grande parte dos que vivem dentra
nelíe. Comeremfe huns animaes aos outros he vora*
cidade , e fevicia , e naõ eftatuto à-:x natureza. ^
7Ód Deícendo ao particular, direi agora, peixes, Num. ss^l
o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui
pela noíFa cofta , no meímo dia , em que cheguei a
elJa, ouvindo os Roncadores, e vendo o íeu tainanho,
tanto me moverão a rifo, como a ira. He pofíiveL^
que fendo vós huns peixinhos tao pequenos , haveis,
de fer as roncas do mar } Se com huma linha de co-^
zer, e hum alfenete torcido vos pôde pefcar hum
aleijado , porque haveis de roncar tanto ? Mas por
iíío melmo roncais. Dizeime, o Eípadarte porque
nao ronca ? Porque ordinariamente quem tem mui-
ta elpada tem pouca lingua. IftonaÓ he regra geral;.
mas he regra geral , Que Deos naó quer roncadores ^
° ° eq.uô
160
^ielra ahhreviado.
€ que tem particular cuidndo de abater , e humilhar
-^os que fiiuito roncao. S. Pedro, a quem muito be.n
conhecerão .'oíios antepaílados, tinha taÔ boaeipa-
oa , que eiie fo avançou contra hum exercito inteiro
cie ÍOidauos Romanos^ e íe Chrifio lha nao manda-
da meter na b.imha , eu vos prometto , que havia de
cortar mais orelhas, que a de Malco. Com tudo ,
que jiie iuccedeo naquella meíma noite? Tmha ron-
cauo e barbateado Pedro , que fe todos fraqueaf-
^em , fo e he havia de fer coriftnnte até morrer, Te
íoi.enecehario: e foy tanto pelo contrario , que íb.'
elíe mqueou mais que todos , e baítoii a voz de hu-
ma mMiiíerzmha para o fazer tremer, e neí^ar. An-
tes diíioja ímha fraqueado na mefma hora"; emoue
prometteo tanto deíi. Diíielhe Chrifto no Horto ,
<3ue vigiaíPe, e vindo dahi a pouco a ver íe o fazia
achou-o dormmdo com tal deícuido, que nao fó o
Marc. 14. ^"«/^«'^^^o fono , feuno também doquetmha brazo-
.7. nado ' Sic mn potuifii una hora. ^igtlare mecim}
Vosjiredro, fois o valente , que havíeis de morrer
por mim , e naô podeftes huma hora vigiar comigo?
louco ha tanto roncar, e agora tanto dormir ? Mas
ahim fuccedeo. O muito roncar antes da occanaó
he íínal de dormir nella. Pois que vos parece, irmãos
Koncadores ? Se iílo fuccedeo ao mavor pefcador ,
que pode acontecer ao menor peixe? Áledivos, e lo-
go vereis quaò pouco fundamento tendes de brazo-
nar, nem roncar.
Num. 357. y(i7 Se as Baleas roncarão, tinha mais defculpa a
ília arrogância na fua grandeza. Mas ainda nas mef-
nias Baleas naõ feria eíla arrogância fegura. O que
he a Balea entre os peixes , era o gigante Golias en-
tre os homens. Se o rio Jordão, e o mar de Tibe-
riades
161
Difcurfo LXXIl
íiadesremcommunicaçnõ com o Oceano, como de-
^em ter, pois delle manaó todos , bem deveis de ía-
jer , que elle gigante era a ronca dos Filifteos. Q,ia-
•-enta dias contínuos eíleve armado no campo dcíafí-
mdo a todos os arrayacs de lírael , fem haver quem
Ce lhe atrevelFe : e no cabo , que fim teve. toda aquel-
la arrogância? Bailou hum paítorzinho com hum
:aj.ido, e huma funda para dar com elle em terra.
Ds arrogantes , e íoberbos tomaõfe com Deos , e
quem le tomn com Deos, fempre fica debaixo. AíTim
que, amigos Roncadores , o verdadeiro confeiho he
ca 11 ar.
768 Neíla viagem, de que fiz menção, e em to- Num. 358-
das as que paíTei a íinha Equinocial , vi debaixo delia
o que muitas vezes tinha viílo, e notado nos homens,-
e ineadmirou que íe houveíFe eílendido efta ronha,.
e pegado também aos peixes. Pegadores íe chama-
vao eíles, de que agora fallo , e com grande proprie-
dade , porque íendo pequenos , nao fó fe chegaõ a
outros mayores , mas de tal forte fe lhe pegaô aos
cortados , que já mais os defafferraõ. De alguns anij
mães de menos força, ejnduftria fe conta , que vao
feguindo de longe aos leoens na caça parafe fuftenta-
rem do que a elles fobeja. O mefmo fazem eíies Pe-
gadores , taÓ feguros ao perto, como aquelles ao
longe; porque o peixe grande nao pôde dobrar a ca-
beça , nem voltar a boca fobre os que traz ás coitas ,
e aíFim lhe íuftenta o pezo, e mais a fome. Eíle mo-
do de vida mais aíluto, que generoío, fe acaío fepaf-
fou , e pegou de hum elemento a outro, fem duvi-
da, que o aprenderão os peixes do alto, depois jque os
noflos Portuguezes o navegarão ; porque nao parte
Vifo-Rey , ou Governador para as Conquiílas, que
Xòm.. ÍI. L nao
Vieira
hreviado '
nao va rodeado de pegadores , os quaes fe arrimaõ a
ellesj^para que cá lhe matem a fome, deque Já nao
tinnaô remédio. Os menos ignorantes defenganados
da experiência defpegaóre, e buícaó ávida por ou-
tra via ; mas os que fe deixao eílar pegados á mercê,
e fortuna dos mayores vemliie a lucceder no fim o
que aos Pegadores do mar.
Num.jíp. js^ Kodea a nao o Tubarão nas calmarias da Li-
nha com os feus Pegadores ás cortas , taô cirzidos
comapeMe, que mais parecem remendos, ou man-
Cíias naturaes, que oshofpedes, ou companheiros.
Lançaoíhe hum anzol de cadea com a ração de qua-
tro foldados, arremeílafe furiofamente áVreza, en-
gole tudo de hum bocado, eíica prezo. Corremeya
companhia a alallo acima , bale fortemente o convez
com os uitimos arrancos, em íim morre o Tubarão,
e morrem, com eJie os Pegadores. Pareccme que ef-
tou ouvindo a S. Mattheus, femTer Apoílolo pefca-
dor, defcrevendo iílo mefmo na terra. Morto He-
rodes, dizoEoangeliíta, appareceoo Anjo ajofeph
no bgypto , e diílelhe , que já fe podia tornar para a
patjia ; porque eraõ mortos todos aquelles , que que-
Matth. 2. ''^^9 tJi'aí' a vida ao Minino : Defunãi fimt enim
xo. qm quarebant animam pueri. Os que queriaõ tirar a
Vida a Ghriíl:oMinino,eraó Herodes,e todos os feus,
toda a fua famiiia, todos os feus adherentes, todos os
que feguiao , e pendiaô da fua fortuna. Pois he pof-
íivel, que todos q^qs. morreílem juntamente com
Herodes.í^ Sim. Porque em morrendo o Tubarão ,
morrem também com elíe os Pegadores : Defunão
Herode, defuncíi ftint qiii quarebmit animam pueri.
Eis aqui, peixezinhos ignorantes, emiferaveis, quaó
errado, e engnnofo he eíle modo de vida, que ef-
colheílcs. 770 Con-
nfctirfo LXX
7-0 Conriderai,pegadoresvivos5Comoni-orreraÓKum. 3^1.
os outros, que le pegarão áquelie peixe gr;inde , e
porque? O Tubarão morreo, porque comeo , e el.es
ir.orrero pelo que naÒ comerão. Pôde haver mayor
ignorância, que morrer pela fome, ebocaa.heya?
Que morra o Tubarão, porquecomeo, matou-o a lua
pula, mas que morra o Pegador pelo que nao comeo^,
he amayordeígraça, que fe pôde imagmm" ! Nao
cuidei , que também nos peixes havia peccaclo origi-
nal Nós os homens fomos taÔ delgraçados , que
outrem comeo , e nós o pag^.mos. Todii a noí.a mor-
te teve principio na golodice de Adão , e Heva , e
que hajamos de morrer pelo que outrem comeo,
2rande deigraca ! Mas nós íavamonos oeíla delgra-
ça com huma pouca de agua , e vós naô vos podeis la-
var da vona ignorância com quanta agua tem o mar.
-T^i Deos também tem os feus pegadores. Muni Num. 3^^.
á^'ík^s era David , que dizia : Mthi atitem adlmrere
Deo bonum eft. Peguemfe os outros aos grandes daPf- 7'- ^.
terra, que eu fó me quero pegar a Deos. E poíto que
defte modo fó fe podem pegar os homens , e vos,
meus peixezinhos, nao, ao menos devereis imirar aos
outros animaes do ar , e da terra , que quando fe c^he-
gaÓ aos grandes , e íe amparao do feu poder , nao le
pegaó de tal forte , que morrão juntamente com el-
les. Lá diz a Efcritura daquella famofn arvore , em
que era figniíicado o grande Nabucodonoíor , que
todas as aves do CeodefcanfavaÓ fobre léus ramos,e
todos os animaes da terra fe recolhiaô a fua lombra ,
huns, e outros fefuftentavaõ de (eus fructos; mas
também diz, que tanto que foy cortada eíla^arvore,
as aves voarão , e os outros animaes fugirão. Cne-
gaivos embora aos grandes ; mas naó de tal maneira
L2 P^^ga-
1 6 4 Vieira ahbreviado
pegados, que vos mateis por elles, nem morrais com
elles.
"""' ^ "- yji Com os Voadores tenho também huma pa-
lavra, enaõhe pequena a queixa. Dizeime, Voado-
res, naó vosfez Deos para peixes , pois porque vos
meteis a fer aves ? O mar feio Deos para vós , e o ar
para ellas: contentai vos com o mar, e com nadar, e
naoqueirais voar, pois fois peixes. Se acafo vosnao
conheceis, olhai para as voílas efpinhas, e para as
voíTâs efcamas , e conhecereis , que naó fois ave , fe-
nnó peixe, e ainda entre os peixes naó dos melhores.
Dirmeheis, Voador, que vos deo Deos ma) ores bar-
batanas , que aos outros do voílo tamanho. Pois
porque tiveftes mayores barbatanas, por ilfo haveis
de fazer das barbatanas azas.^ Mas ainda mal , por-
que'tantas vezes vos defengana o voíFo caftigo! Qljí-
zeíles fer melhor queos outros peixes, e por iífo lois
íiiais mofino que todos. Aos outros peixes do alto
mata-os o anzol , ou a fifgii , a vós fcm fifga , nem an-
zol matavos a voíía prefumpçaó, e o voííb capri^
cho. yay hum navio navegando , e o marinheiro
dormindo ,e o Voador toca na vella , ou na corda , e
cahe palpitando. Aos outros peixes mata-os a fo-
me, e engana-os a ifca, ao Voador mata- o a vaidade
de voar , é a fua ifca he o vento. Qiianto melhor lhe
'fora mergulhar por baixo da quilha, e viver, que
Voar por cima das entenas , e cahir morto! Grande
ambição he, que fendo o mar taó immenfo , lhe naÓ
'baile a hum peixe taó pequeno todo o mar, e queira
outro elemento mais largo. Mas vede , peixes , o caf-
tigo da ambição. O Voador feio Dt os peixe, qqWq
quiz fer ave , e permitte o mefmo Deos, que tenha
OS perigos de ave , e mais os de peixe. Todas as vel-
4 ias;
ifcurfo LXmiI. \(>s
las para ellc faô redes, como peixe, e todas as cor-
das laços , como ave. Vê , Voador , como correo pe-
la pofta o teu caíligo. Pouco ha nadavas vivo no mar
com as barbatana^s, e agora jazes em hum convez
amortalhado nas azas. Naô contente com fer peixe,
quizeíle fer ave , e já naÒ es ave , nem peixe , nem
voar poderás já, nem nadar. A natureza deo-te a agua,
tu nao quizeíte íenaÕ o ar , e eu já te vejo poílo ao
foo^o Peixes , contentefe cada hum com o leu ele-
mento. Se o Voador naõ quizera paíTar do legundo
ao terceiro , nao viera a parar no quarto. Bem legu-
ro eítava elle do fogo , quando nadava na agua ; mas
porque quiz íer borboleta das ondas, vieraoíelhe a
queimar as azas. Se o mar tomara exemplo nos nos, Num. 5^3;
depois que ícaro íe afogou no Danúbio , naó haveria
tantos ícaros no Oceano.
77 > Masjáqueeftamos nas covas domar, antes Num. 565,
que fayamos delias , temos lá o irmaô Polvo , contra
o qual tem fuás queixas, e grandes naô menos que
S. Bafilio , e Santo Ambrofio. O Polvo com aquelle
feu capello na cabeça parece hum Monge , com
aquelies feus rayos eílendidos parece huma eílrella,
com aquelle naõ ter oíío , nem efpinha parece a mef-
ma brandura, a mefma manfidaÕ. E debaixo deíla
apparencia taô modefta , ou defta hypocrefia taô fan-
ta teftimunhaó conteíkmente os dous grandes Dou-
tores da Igreja Latina , e Grega , que o dito Poh^o he
o mayor traydor do mar. Coníiíle eíla trayçaó do
Polvo primeiramente em fe veftir, ou pintar das mef-
mas cores de todas aquellas cores , a que eílá pega-
do. As cores, que no cameleaõ faÕ gala, no polvo íaõ
malicia : as figuras, que em Protheo fao fabula , no
polvo faô verdade, e artificio. Se eftános limos, faz-
Tom. II. L3 Te
ié6 Vieira ahbreviado
íe verde , fe eftá na are.rfazfe branco , fe eílá no Io-
do , fazíe pardo , fe eilá em alguma pedra , como
mais oramariamente coftuma eílar, fazfe da cor da
nieíma pedra. E daqui que fuccede? Succede, que o
outro peixe innocente da trayçaÒ vay paliando deía-
cautelado e o falteador , que eftá de embofcada
dentro do feu próprio engano , lançalhe os braços de
repente , e falo pnzioneiro. Fizera mais Judas ? NaÓ
hzera mais ; porque nem fez tanto. Judas abraçou a
^íirilto, mas outros o prenderão : o Polvo he o que
abraça, e mais o que prende. Judas comos braços
tez o íinal e o Polvo dos próprios braços faz as cor-
das. Judas he verdade , que f oy traidor , mas com lan-
ternas diante : traçou a traição ás efcuras , mas exe-
cutou-a^iiuito ás claras. O Polvo efcurecendofe a fi
tira aviíla aos outros, e a primeira traição , e roubo
que taz, h e a luz, para que naÓ diílinga as cores.
A e,peixe aleivofo, e vil , qual he a tua maldade, pois
Judas em tua comparação já he menos traidor.
Num. 3^7. 774 ^h que exceíFotaóaíFrontorOjetaó indigno
de hum elemento taõ puro, taõ claro , e taó cryftal-
Imo, como o da agua, efpelho natural naÓ íò da ter-
ra, íenao do meímo Ceol E que neíle mefmo ele-
mento fecrie, feconferve, eíe exercite com tanto
damno^do bem publico hum monílro taÓ diílimula-
do , tao fingido , taõ aftuto , taó enganofo , e taó co-
nhecidamente traidor I Vejo, peixes , que pelo co-
nhecimento, que tendes das terras, em que batem os
voílos mares , me eftais reípondendo , e convindo ,
que também nellas ha falíidades , enganos , fingimen-
tos, embuíles, ciladas, e muito mayores, e mais per-
mcioías traiçoens. E fobre o meímo fujeito , que de-
íendeis, também podereis applicar aos femelhantes
outra
Dlfciirfo LKXIV . 1^7
outra propriedade muito própria ; mas pois vos a
callais , eu também a callo ; com grande contuíao po- ,
rém vos confeíTo tudo , e muito mais do que dizeis,
pois o na6 podo negar. Mas ponde os olhos em An-
tónio voíTo Pregador, e vereis nelle o mais puro
exemplar da candura , da íinceridade , e da verdade ,
onde nunca houve dolo, fingimento, ou engano.
DISCURSO LXXIV.
Tirado de bmifermao da terceira quarta feira da
Quarefma pregado im Capella Real,
PER.TEN DENTES.
775 C Eg^^-^do ^ experiência , e queixa commua , Pat^ x.
< OoufejacomrazaÕ, oufemella, acho eu^^- ''
Que os pertendentes das Cortes em feus requerimen-
tos TaÓ como os nolFos Argonautas , e primeiros
defcubridores da índia ; fenaÓ que rtavegaõ ao revez,
e fazem a viagem ás aveças. Os noíTos defcubrido-
res primeiro paíTaraÔ o cabo de Naõ, e depois o ca-
bo de Boa Efperança : os pertendentes pelo contra-
rio começaó pelo cabo de Boa Efperança , e aca-
baõ pelo deNaó. ^^ ^ j- • kt
776 Terrivel palavra he hum ;/6?if?.Nao tem direi- N""'- 5°.
to, nem aveço: por qualquer lado que o tomeis, fem-
pre íoa , e diz o mefmo. Lede-o do principio para o
..fim , ou dò fim para o principio , fempie he non.
Qiiando a vnra de Movfés fe converteo naquella fer-
pcnte taó feroz , que fugia delia , porque o naô mor-
deife , d:fi'elhe Dcos, que n tomafie ao revez , e logo
perdco a figura , a ferocidade , e a peçonha. O mn,
^ L4 "^o
1^8 Vieira ahhreviado
naó he affiro: por qualquer parte, que o tomeis, fem-
pre he ferpente, lempre morde, fempre fere, íémpre
eva o veneno comfigo. Mata a efperança, queheo
ultimo remédio , que deixou a natureza à todos os
nialeí. Nao ha corredivo , que o modere , nem ar-
te, que o abrande, nem lifonja, que o adoce Por
ma,s que confeiteis hum naó, fempre amarga - Dor
ma>s que o enfeiteis, fempre he feyo : por mai's que
o doureis, fempre he ferro. Em nenhuma folfa o po-
deis por que nao feja mal foante , afpero , e duro.
Quereis faber qual hea dureza de hum naô? A mais
dura coufa , que tem a vida, he chegar a pedir , e de-
pois de chegar a pedir , ouvir hum naõ : vede o que
lera? A língua Hebraica , que he a que fallou AdaÕ
e a que mais naturalmente figniíica , e declara a eflen-
cia das coufas, ch^ma ao negar o que fepede, enver-
,. Reg. ^. gonli" a face. Affimldiffe Bethfabee a SalamaÓ ■ Pe-
ti. tmonem unam precor a tè , ne confundas faciem
meam. Tragovos, íenhor, huma petição , naô me Z
vergonheis a face. E porque fe chama envergonhar
a face negar o que fe pede .? Porque dizer naÓ a
quem pede, he darlhe huma bofetada coro a lingua.
i ao dura tao afpera, taô injuriofa palavra he hum
nao : para a neceffidade dura , para a honra aíFronto-
la^ para o merecimento infoíFriveí. E fe hum naÓ he
tao duro para quem o ouve , creyo eu , que naó he
menor a fua dureza para quem o diz , e tanto mais
quanto mais generofo for o coração , e mais fobera-
Num. ,t. no o animo, que o houver de pronunciar. Os Reys,
e Príncipes foberanos naõ podem deixar de ouvir pe-
tiçoens, e fer importunados de requerimentos, a que
nao devem deferir. E porque dizer naÓ a pertenden-
tes he coufa taó dura para elles, como para. o mef-
Num. jíi.
Difairfo LXXIV . i^9
mo Príncipe, íera matéria mui própria defte lugnr, e
deíle Euangelho pôr hoje em queílaÓ, e averiguar
du.scoufas" Primeira: Se he conveniente , e decea-
te a hum R.ey dizer naÔ ? Segunda : Qual he o modo,
com que o deve dizer no calo , que convenha t
777 Dos Imperadores, queprecederao ao Impe- Num., 5,
rio de Trajano, diz o feu Panegyrifta PJinio , que de-
feiavaô muito fer rogados , e que todos lhe pediG-
fem , íó pelo gofto que tinhao de dizer nao : Pfío-
res Príncipes à fingidis rogarigefltehant mntam
praftandi animo , quam negandt U^s Gomo^eftes^,
queelle chamava Príncipes, verdadeiramente erao
tyrannos , e mais monftros da natureza humana , que
homens , excluido fem controverfia , eíle efcandalo
da razaÓ , e da humanidade , e começando a noíia
queftaÓ pelas razoens prováveis de duvidar, parece
que naó he conveniente, nem decente a raageftade,
e authoridade de hum Rey , que pronuncie de pala-
vra , ou firme com a penna hum naó. Ou o Key diz
naó , porque naÓ quer , ou porque nao pode v le por-
que naó quer , oíFende o amor : fe porque nao pode,
deíacredita a grandeza. Efe as petiçoens , e os re-
querimentos faó taes , que fe naÓ devem conceder_^,
entendaÓ os pertendentes o naÕ; mas nao o ouçao:!
feja difcurfo feu, e naó rcpofta , ou refoiuçao Real.
Mais decente negativa he para o governo, e menos
defubertadefconfolaçaó para os que requerem , que
elles tomem por fi o defengano. Deíengane-os^a di-
lação , deíengane-os o tempo: e fede dia nao cu 1-
daó, nem de noite fonhaó mais , que no feu delpa-
cho, os mefmos dias, e noites lhe di^aó oqueíe
lhe naó diz , epor ellas laibaó o que nao querem en-
tender. Suftentemfe na fuadperança , pofto que falr
NuiB. 4^
170 Vieira ahhreviado
fa, e fique feinpre inteiro ao Príncipe o pundonor
de que nao negou. Se por efte modo fe eftendem os
requernr.entos , e fe entretém , e multiplicaô os que
vem requerer , iíío mefmo he hum certo gene o de
grandeza , e authoridade haver muitos pertendentes
fliJ aT\^ ^'"^^^"^ '' C^^f^s dos que na6
íao Mageílade. Ja^que pertendem fem merecimen^
dks^dfcríi^n'"^'' ^' rua ambição, efirvalhesa
eiíes de caíbgo , e aos mais de exemplo.
77^ Contra o fofiílico deílas razoens (que ver-
dadeiramente tem muito de vaidade ) parece que faó
maisfohdas as do didame contrario. Taó viTíie na
mentira o fim , como honrado na verdade o naó A
verdade ( que por iílo fe pinta defpida ) naÔ fabe'en.
cubnr, nem fingir, nem enfeitar, nem corar, e mui-
to menos enganar: e a primeira virtude do throno,
onrHfí. -^i^^^^^V^^^^^S^'?'' he a verdade. Todo
oartihcio hecoufa mecânica, enaó nobre, quanto
mais real. O Sol abranda a cera, e endureceTbar-
ro , porque obra conforme a defpofiçaó dos fu jeitos-
mas em todos , ecom todos defcubertamente; por if-
10 o cajor he mfeparavel da luz. Importa diftincruir
obaftaodocetro. OseílratagemasnaÔfaÓpara odef-
pacho : íejao embora para a campanha , mas naÓ pa-
ra a Uorte : para os inimigos , e naÓ para os vaíFalJos.
^aibao os pertendentes fe podem efperar , ou naÔ,
para que no fim nao defefperem. Qiiem diz , que he
arte denao defgoílar, naò diz, nem cuida bem Me-
iiior he dar hum defgofto que muitos. Queixemíe de
que os naofatisfízeraô, mas naÔ pofiaô dizer juíla-
menre , que os enganarão. Se he dura palavra hum
nao, mais duras faó as boas palavras, que fufpen-
dem,
m
Difciirío' LTKIV. 171
3em , e eticobrcrn o mefmo naò , até que o deícobre
3eífcito. Qiíem kz o naó taó breve, nao quiz que
^""'y^T^Pcáio Filippe de Macedónia á RepublicnNun,.M.
de Athenas o deixaíFe paíTar com exercito pelas luas
terras , o que o Senado lhe naó quiz conceder ;e por-
que o eílvio dos Athenienfcs ( que ainda hoje le cha-
ma eftvlo Lacónico ) era refumir tudo , o que/e ha-
via de'dizer, ás palavras mais breves , tomarão hum
srande pergaminho, (que era opapel daqueile tem-
lo) e efcreveraô neiíe hum naó com tamonhas le-
trás, que o enchia todo, e cerrado , e íeliacio , eíta
foy a ?epofta , que deraó aos Embaixadores ^e filip-
pe He muito celebre nas hiílorias Gregas efte bre-
ve , e grandiíTimo naÓ ; mas na noíla Athenas ainda
os ha mayores. Tantas petiçoens , tantas remiífoens,
tantas provifoens , tantas patentes , tantas certi-
doens, tantas juftifícaçoens, tantas folhas corridas ,
tantas viítas , tantas infoímaçoens pedidas muitas
vezes á Afia , e á America , tantas confultas , tantas
interlocutórias, tantas replicas , tantas outr^iscere-
monias , e myílerios por efcrito , a que íe nao labe o
numero , nem o nome , e ao cabo de quatro , de leis,
e de dez annos ou o defpacho , ou o que fignihca o
defpacho em meya refma de papel, he hum nao. Nao
fora melhor elle defengano ao principio ? L as dei-
pezas deite injufto entretenimento , que le devem
reftituir nefta vida , ou fe haÓ de pagar na outra , por .
cuja conta correm ? Já que naÓ haveis de tazer ao
pertendente a mercê , que pede , porque lha mo ta-
reis ao menos do que ha de gaftar inutnmente na
pertençao ? Ao outro, que aprefentava o feu memo-
rial, dilfe ElRey DJoaó o II. na primeira audiência,
' que
Num. p6.
172 Vieira ahhreviado
Forque me beijais logo a maõ ? Porque me fez V.
,tcoíf "T' ''"'^'"heiro, que trazia paragaftar
Fft..T,^ ^"'^ ^ 'T° ^ '^^'^^ P^^a minha cala.
tftns íao as mercês do defengano , .e os defpachos do
mo d,to a feu tempo Naõ o dizer fera mavor Tl
Im ,;,.?''*"■ r"'',°'''¥^' e decência; masdizelJo
em muitos cafoshe obrigação, econfciencia.
nnpft?;< ^'Í^PUtada aflim problematicamente a noíTa
queftao,dehumas, e outras razoens de duvidar le
conclue com certeza , que o naõ, fem fer coufa algu!
ma he como as outras coufas defte mundo, queío-
?eS„'"' ''•'"'• ^/^"^'"'"^'S fuasutilidade , e
feus inconvenientes. Para naií cahir, ou tropeçar nef-
tes , que a cada paíFo fe ofFerecem , ou atrâveíTaÔ
em t.inta muitidaõ de requerimentos , o pnmei o
cuidado, ou cautela do prudente Prindpe de "e e?
evitar, quanto for poffivel , as occafioens de dizer
..aa Mas como fe podem evitar, ou atalliareftas oc-
ren,?.T/% °' pertendentes , e as pertenfoens, os
requerentes, eos requerimentos tantos.? Digo, que
fazendo com deftreza , e conftancia , que (t\À m"!
nos , e muito menos, e ufando para iflo dos meyos
que agora apontarei. ^ '
781 Oprimeiro meyohe, que os validos, ou pri-
vados, por mais, untos que eftejaô ápeffbaReal e
Veiros'". n'"7 '^"^ ^^'^'\ "' 8^=»?'' ''^J^° «« P""
nieiros^ a que fe nao conceda o que pertenderem.
A razão ou confequencia he manifefta. Porque fe
05 que eftaó de fora , virem que os que eftaó de den-
Num „ co^,;„ r'°. '^'""!:°'„"'° alcançaÕ oque pertendem,
""■"■« como fe atreverão elles a pertender .? Diráó porém
os
NilHl. 1)7,
m
Diícurjo L^XIV. 175
os melnios vnlídos , ou alguém por elles , que na6 p^
rece, ne,n he juilu-a , nem ainda bom exemplo e
credito do meímo t<.ey , que aos que fei-vem , e tia-
bnlhaô junto i fua pdlba , e fuftentaô o pezo da
■Monarchia , devendo fer os primeiros , e ina.s remu^
nerados fiquem (em mercê, e íem premio li he
íouca mercl , e pouco premio o fer validos Aos^^^^n,,.. .0.
licios aue looraó a Qraça do Príncipe , battalhe a
Síc; rmefii graç?. kr ilFo vemos os cheyos deN.;"^. -•
cnca taõcheyos: e todas as outras (e lhe poileni fj„„, ,„,.
negar confiadamente , e elles prezaremfe nuuto dei-
fasnes^açoens. i
782 Os Filofofos diftinguem dous géneros úc^^^,,^-u
nes-içoens , humas fe chamao puras negaçoens , e ou-
tras, a que deraÔ nome de privaçoens. A pura^nega-
çaÔ nerra o ndlo , e mais a aptidaÓ : a pnyaçao íup-
poem a aptidaÓ , e nega o ado. O íilencio he negação
de fallar , mas com grande diíFercnça^no homem , e
na eftatua : na eftatua he pura negação ; porque a el-
tatua nuó falia , nem he apta para falUr , fenao rne-
Ota Porém no homem he privação; porque amda qiie
o homem nuÔ falle, he apto , ecapaz de hllar. Da-
qui fe íegue , que aílim como o íllencio na elíatua he
incapacidade , e no homem virtude , aíTim o que fe
nega ao indigno, he pura negação, a qual o íittionta^
eòque fe nega ao digno, he privação, que o honra,
e acredita, e tanto mais , quanto for mais djgno. .
Taes faó as negaçoens , que os Priacipes fizerem , e
devem fazer aos feus validos. Sao privaçoens , com
<]ue naó íó fe acredita a fi , fenaô também a elles >
porque o mayor credito do valido he que a fua pri-
vança feja privação. Por iíío os validos coni mais^
aobre, e heróica etimoloRia íe chamaó privados , &
' q^uaa=-
JàA
•174
quando elles folgarem de o fer, ou o Príncipe fizer
que o fejao , ainda que naõ folguem , as pn.açoens
dos priv^Hios faraõ mais toleráveis as negacoens dos
>que o noô íaô. E defenganado. os de mai/com eíe
exemplo , nem eiles fe atreverão a pedir o que fe lhe
de^^e negar nera o Príncipe fera forçado a nesar o
que líie pedirem, ficando livre por eíle meyo de mui-
tas , e mojeftas occafioens , em que contra o decoro
eagrado^daMageíladefeja obrigado a dizer naó^^
Num. 103. 783 O iegundo meyo, ou mdLíílria de prevenir
e atalhar o naõ, e as occaíioens de o dizer he que o
Frmcipe em todos os feus defpachos , e refolu4cns
eja mteiro , jaílo , e re61o , e conhecido pJr tal
iJeíiajuftiça e inteireza, (que por outra parte he a
íua pnnieira obrigação} fe Teguiráo douseiíeitos no-
táveis. O primeiro que ninguém fe atreverá a pedir
fenao o que for jufto : o fegundo , que pedindo to-
. dosfromente o juílo, a todos concederá o Princioe
G que pedirem , e nunca dirá naõ
Nua:.xo4. 784 O mais juílo, rec^o, intciro , e conftante ho-
meoT, que houve entre os Romanos, foy Marco Por-
Cio CataÓ Equeconfeguio com eíla inteireza, e
conílancia de íua juíliça infiexivei? Confeguio,como
refere 1 iinio , que ninguém no feu Co^nfulado fe
atreyeo a lhe pedir coufa, quenaõ foílejuíla. Aífim
Jno diíle com admiração a eloquência de Tullio: O te
J-ehcem^ Mar ce Porei ^ à quo rem improbam petere
ne?m audet\ Tú fera a reverencia do governo , e tal
a felicidade do Rey , que em todas fuás refoluçoens,
euelpachosobíervar confiantemente juíliça Aiuí-
íiça, como definem os Theologos, e Juriílas, naõhe
outra coufa , que huma perpetua, e conílante von-
tade de dar a cada Imm o que merece. Se eíla von-
tade
Difcurfo LXXIV . 175
tade ( que ordinariamente he taô mudável nos sffe-
áos humanos) for conftante , e perpetua no Prmci-
pe todos ie deníenganaráó , que naô hao de aican-
çar'delle, fenaÔ o que for devido a feus ferviços , e
proporcionado a feus merecimentos : e por meyo dGC'
fe defencrano confeguirá a felicidade de que nm-
guem le atreverá a lhe pedir , íenaÕ oque for jofío :
O te felicem, à quo rem improbampetere nemo audet\
Felice ; porque naÔ fe atrevendo ninguém a pedir ,
fenaô o juílo , íerao muito menos as petiçoens , e re-
querimentos. Felice 5 porque naÓ pedindo nmguem,
fenaõ oque lhe he devido, haverá com que íatista-,
2er a todos. Felice ; porque fendo as petiçoens , e re-
querimentos juíliíicados , fempre o Prmcjpe conce^
dera o que fe lhe pedir, e nunca dirá naÓ. Nao he
melhor, e mais decente , e mais breve, e mais utii ,
que o naô o digaó a fi mefmos aquelles , que haviao
de pedir , do que dizerlho a eiies o Príncipe depois
de pedirem ? Pois iíFo he o que fuccederá , íe nin-
guém íe atrever a pedir , fenaó oque merecer.
785 Seja o Príncipe jufto , e taó conftantementeNum. 105.,
juílo , que por nenhum outro motivo , nem reípeito
de a ninguém , fenaó o que merecer , e lhe for devi-
do, e logo os vaífallos fe naô atreveráó a pertender a^^
femrazoens , e exorbitâncias , que vemos , e fe ben'-"
zeráo de pedir, como de tentação: Non petam^ «à^ifai.y. ix-
non tentabo Domhiunt. ...
78Ó Oh fe os Reys tantas vezes , e tao mjurioís-|^^j^. ^oé.
mente tentados ao nienos nao Confentiflem na ten-
tação! Nao digo, que caíliguemfeveramente algu-
mas petiçoens , polto que imitariaô niílo a Salamaô,
o qual por huma petiçiiózinha ( que aífim lhe' cha-
mou a interceíTora : Petitiomm parvuiam ) mandou-
cortar
pr. ti:
270.
17Í Vieira ahhreviado
cortara cabeça a Adonias. E verdadeiramente ha t>e-.
ííçoens, cjue bem interpretadas faÕ libellos infama-
torios dos meímos Principes , em cujas mãos íe me-
tem. Porque fe íaó doloías, como Qr-:^ eíia de Ado-
m^^ , fuppoem que ho nefcios : fe faÕ exorbitantes,
íuppoem que faó pródigos: fe faÔ contra os Cano-'
nes Apoftohcos, ( como faÔ muitas ) fupDoem que
naoíaÔCatholicos: e de qualquer modo , que peçao,
<) quenaóiíejuílo, fuppoem que faÓ injuílos. Mas
imantes de fazeran as petiçoens luppozerem , e fe
derenganarem , que nenhuma coufa hao de confe-
guir , íenao o que ditar a inteira , e reda juftiça
ei.es íe comporão com a fua ambição , e tomaráô por
partido onaó pedir: Non peiam. Notai onde eftá o
A^í»// , evede quanto mais conveniente he para o vaf-
íalío, e maisexpediente para o governo, e mais de-
cente para o Re^ o naõ antes do Petam , que depois
da petição, He mais conveniente para o vafl^aJlo
porque melhor lhe eftá , que deíenganado tome por
ii meímoonaõ, e o ponha antes das fuás petiçoens,
que ouvido depois delias. He mais expediente para
o governo, porque ceílando o tumulto, e inunda-
ção dp$ requerimentos, que verdadeiramente o ofo-
,ga<),teraÔ mais fácil expediçapos negócios. Eíinal-
mentehe mais decente, e decorofo paraoRey , por-
que nenhum , que vier bufcar o premio , ou o remé-
dio aos pés da Mageílade , fe apartara delles defcon-
tente. Virao afer por efta via todas as petiçoens da
noira Corte , como as que íe deípachaõ na do Ceo.
David dizia a Deos : Intret poftulatiomea in con-
fpeãu tuo. Entre, Senhor , a minha petição ao VDÍfo
conípeélo. Nas Cortes da terra deíéja opertenden-
í^^que fpya a fua petição, na do Ceo defejn,.queen-..
tre;
Dífcurfo LXXIV . 177
tre ; porque huma vez , que a petição foy tal , que
podeíTe entrar , infallivelmente íahe deípachada.
Aílim fera cá também , fe ninguém pedir, fenao o
que for juílo ; porque o Rcy juílo á petição juita
nunca pode dizer naó.
787 Mas que fiirá o Rey para adquirir eíle cre-Num. 107:
dito , e reputação univerfal de juílo , e por meyo del-
ia evitir as petlçoens , e requerimentos injuítos , fem
os qu-ies fique livre dos inconvenientes , e diiTal3ores
donaò? Digo que fó o poderá confeguir applican-
do o nao também a íi , e primeiro a fi , que aos fub-
ditos. He grande documento do noíib texto, e di-
gno de íe reparar muito neiie. A'on eftimum dare
mbis^ diz o Senhor, que o dar naó he íeu : e o naõ
primeiro cabe íobre eile , que fobre os dous , a quem
negou o que pertendiao. Primeiro fobre o metim , e
depois fobre o vobis. Aílim ha de fazer o Rey , que
quer fer jufto , e ter opinião de tal. Cuidaô os Reys,
que o dar he feu ; e o Rey dos Reys diz , que naó he
feu o dar : No7i ejt meum dare. Pois Chrifto em quan-
to Deos, e em quanto homem naõ hé fenhor de tu-
do ? Sim íie. Logo pode-o dar a quem quizer , e co-
mo quizer? Diftingo: com juíliça fim, íemjuíliça
naó. Santo Ambrofio : Non eji meum , quijufthiam
fervo , nongratiam : Eu dou por juftiça , e naÕ por
graça : por juftiça he meu o dar , por graça , como
vós quereis , naó he meu : Ncn eji vieum dare vobis.
788 Nenhuma coufa anda m.ais mal entendida 5Nutn. loS,
e peyor praticada nas Cortes , que a diftinçao entre
a juftiça , e a graça. Donde íe íegue, que apenas ha
mercê das que fe chamr.ó graça , que nsó feja injufti-
ça, e contenha muitas injuftiças. Naô nego, que os
Revs podem fazer graças, eque o fazeilas he muito
Tom. II. M pro-
I7§ Vieira ahhreviado
próprio da benifícencia , e maí^niíicencia Real ; mas
líTo ha de fer depois de fatisfeitas as obrigaçoens da
juíliçp. O que perde naô fó o governo , mascas conf-
ciencias, e almas dos Príncipes, he cuidarem, que
podem tudo, porque podem tudo. Se affimlhodi-
zem, he lifonja, e fe o crem, he engano. O Rev pode
tudo o que he iuilo : para o que for injuílo , nenhum
poder tem. Efta he a verdadeira, e mayor iifonja, que
íe pode dizer aos Reys; porque he fazellos podero-
íbs como Deos. Deos he onmiporente : e poderá
Deos fazer huma injuílíça? De nenhum modo. Pois
aííim devem entender os Reys , que íaõ poderofos.
E fe os fubditos íe perfuadirem , que o Rey aíljm o
-entende, e aílim o obferva, nem etles defenganados
pedirão , íenao o que for jufto, nem oRev importu-
nado terá occafioens de dizer naó.
Kum. 109. 789 O terceiro meyo de fe cortarem as occaficés
de dizer naó, he a obfervancia inviolável das leys.
Se as leys fe confervarem em todo o feu vigor fem
difpenfaçaõ, fem privilegio, fem excepção da pef-
foa, onaódiloha a ley , e naõ o Rey. As leys de
Deos prohibitivas todas começaõ por naõ : Nc-noc-
cicies-. Non moschaberls'. Non furaberis'. Nonfal-
fiim tefiimonium dices. Houve algum homem até
hoje, por atrevido, e infolente qiieíeja, queíizef-
fe petição a Deos para matar, para adulterar, para
fartar, para levantar falfo teftimunho ? Nenhum.
Porque eíías leys faõ invioláveis, e indifpenfaveis.
Pojs o meímo fuccederá ao Principe , feconfervar,
e mantiver as fuás inviolável , eindifpenfavelmente.
E por efte oiodo taó decorofo , e íaô fácil fe livrará
de mui-tas occafioens de dizer naó, porque já o tem
dito a ley.
790 Pro-
Difairfo LXXÍF. 179
■ 790 Pronunciou Deos depois do primeiro pec-Num
cado a lev univeríal da morte , á qual quiz que ficaf-
fe íujeito Adaó , e todo o género humano : e no mer-
mo ponto , em que íqz a ley , fez também , que íoHe
inviolável. A ley da morte parece inviolável de lua
mefma natureza , mas naquelie tempo podiaíe vio-
lar facilmente ; porque comendo AdaÕ , c qualquer
outro homem do frudo da arvore ^h vida , ficava
iíento de morrer. E que fez Deos ? Ne forte fumai Gcncf. j
etiam de ligno vit^e , & comedat , & viyatm ater- ^ ^■
iium\ Porque naõ aconteça , que Adão aíhm como
quebrou a primeira ley , comendo da arvore da fci-
encia , quebre também a fegunda comendo da arvo-
re da vida , e fique immoríal : CoUocavit ante Para--
difum Cberuhim , f flammeum gladíum od cuftodí-
endani viam ligm vita: Poz á porta do Paraifo hum
Cherubiin com huma efpada de fogo, para que íera
exvepçaó defendeíTe a entrada a todos j e fe algum
intentdíTe eximirfe da ley de morrer , morreíFe pri-
meiro. Eíla foy a ordem cerrada do Gherubím, e
efte-o rigor indifpenfavel da ley , da qual nao qui?.
Deos , que foíle privilegiado nem feuprOprio Fiiho.
O privilegio chamafe em direito VuUmsdegis , fej
rida da ley ; e o poder, e a efpada do legislador naó
ha de fer para ferir as leys , fenaô para ferin, ii^atar,
e queimar a quem intentar quebrallas , queporiílo
a eípada do Cherubim era eípada , e de fogo. Bem
podéra Deos cortar , ou fecar a arvore da vida, com
que fe elcufavaõ todos aquelles apparatos de hor-
ror ; quiz porém , que a arvore ncaííe em pé , e a ley
le guardaiie com tudo invioiavelmente , para que
entendeíTemi os legisladores , que ainda que elies pof-
iaõ difpenfar nas ieys , e o modo da difpenfa^aô fe-
M 2 ja fa-
no.
p^
■i
I S o Vieira ahhrevíado
ja fácil , nem por iíFo o hao de permittir. Mas , Se-
nhor , a arvore da vida eílá carregada de frudos
huns nafcem , outros cahem , e todos fe perdem , po-
dendofe aproveitar com tanta utilidade. Uh mal-
ditas utilidades ! Eíle he o engano, que perde aos
Pnncípes. Difpenfaôíe as leys por utilidades, (que
ordinariamente faõ dos particulares , e nao fuás ) e
abreíe a porta á ruina univerfal , que fó fe pode evi-
tar com a obíervancia inviolável das leys.Percaófe os
frudos da arvore da vida, que faó a mais preciofa
coufa , que Deos creou : percaõfe as mefmas vidas
ensô íe recupere aimmortalidade : morra , efepul-
tefe o mundo todo ; mas a \q^ naó fe quebre , nem íe
diípenfe.
^ 791 E que fe feguio deíle rigor indifpeníavel da
ley? Seguiofe aquelle defengano univerfal, que
pregou David : Quis efi homo , quivivit , d^ non vi-
debít mortem ? Que homem ha , que viva , e naõ ha-
ja de morrer ? Edefenganados huma vez os homens
de que a ley era inviolável , fendo a morte a coufa
mais aborrecida , e a vida a mais amada , ninguém
houve já mais , que fe atreveíTe , nem lhe vieífe ao
penfamento intentar fer difpeníado para naó mor-
rer. Guardem fe as leys taõ fevera , e inviolavelmen-
te , que fe defenganem todos , que fe nao haó de dií-
peníar , e com o naõ , que ellas dizem , fe livrarão os
Príncipes de o dizer.
>íiiní. 1:3. 792 Eu nao nego, que em matéria de conceder,
e negar pode haver mayor razaô em huns , que em
outros ;^ mas a confequencia de concedeíles a outro ,
logo naó me haveis de negar a mim , he argumento,
que fenaó folta com mayor razaÔ.
Num. 114. 793 Perluadafe o Príncipe , que o que fe conce-
de
Num. III,
K 88.4.
DifairfoLXXIV. i§i
de a hum , porque o pede , também íe deve conceder
aos outros, ainda que o naó peçaó. Entenda, que as
difpenfaçoens, e privilégios naÓ fó faó fendas da
lev, mas feridas mortaes, e que a ley morta nao po-
de dar vida á Republica : coníldere , que as leys íao
os muros delia, e que fe hoje feabrio huma brecha,
por onde poíTa entrar hum íó homem , a manha íera
ta6 larga , que entre hum exercito inteiro. Olhe pa- -
ra as leys politicas, para as ordenanças militares, e
para tantas pragmáticas económicas, que fendo iní-
tituidas para remédio , vieraÔ por efta caufa a íer dil-
credito. E leja a ultima , e a única refoluçaô do Prín-
cipe jufto tratar as fuás leys , como fuás, fuftentan-
do-as , e mantendo-as em íeu vjgor inviolável , e in-
difpenfavelmente ; porque o que a ley nega a todos
fem injuria, depois que fe concede a hum, ( ainda que
feia com razaÔ ) naÔ fe pode negar a outro fem ag-
gravo. E he melhor, mais facil , e mais decente, que
as mefmas leysdigaó o naó confervandofe, do que
Guebrailas o Principe pelo naó dizer. .,-,.,
794 O quarto, e ultimo meyo, ou induftria de Nm
evitar o naó heanticipar os provimentos , e naó ter
lugares vagos ; porque tanto que o lugar eftá provi-
do, ceíTaó as pertençoens. Admirável he a diligen-
cia, e cuidado, que a natureza põem em impedir o
vácuo. E que em todo o univerfo naó haja lugar va-
zio. A eíle fim vemos fubir a agua , deícer o ar , mo-
verfe a terra, romperemfe os marmores,ertallarem os
bronzes, e correrem todas as creaturas com ímpeto
contra fuás próprias inclinaçoens. Daqui nafcem os
frequentes terremotos, e os extraordinários, ehor-
j-endos , que naó poucas vezes derrubarão , e deftrui-
raó Cidades inteiras. O mefmo que faz a natureza
Tora. II. M3 por
iij.
Num. 1 1 7
f' >■'
Vieira ahhreviado
por impedir o vácuo, faz a ambiçaó pelooccupar
b havendo lugares vagos, de todas as partes concor
rein tumuJtuanainente a elles os pertendentes nac
por impedir, ( que íó íe impedem huns a outros ) ma^
por occupar o vácuo , e tanto com mayor , e mais vio-
lento ímpeto , quanto a natureza acode ao bem com-
mum do univerfo , e a ambição ao particular de ca-
da hum. hquaes fejaó os terremotos , e perturba-
çoens da Republica , que daqui felevantaô, baíta
que^o digao as batalhas interiores de Roma no con-
curío dos Confulados. No governo xMonarchico he
muito^facil atalhar todos eftes inconvenientes , anti-
cipando o vácuo de tudo aquillo , que fe pode per-
tender, ou pedir , com prevenir vigilantemente , que
nao haja lugares vagos; eaííim o deve fazer todo o
prudente Príncipe.
795 A mayor, e mais difficultóía occafiaÕ , que
tem havido nefte género , foy o provimento da fuc-
ceífao de David. Queria David, e fabia , que era
conveniente ao bem do Reyno, que o feu fucceíTor
toílebalamao, equeaíTira o tinha Deos decretado.
Contra lítoeftava ferSalamaÓ illegitimo, e menor,
e Adonias feu competidor naó fó legitimo , mas dê
todos os filhos de David , que entaõ viviaó , o primo-
WTr ^^.^^'^o ^^1 aífiftido do fequito commum do
nccleiíiaítico , e popular , e de grande parte da mili-
cia. hra chegado o negocio a termos, que em hum
banquete , que naquelle dia tinha dado Adonias a to-
dos os Príncipes , e fenhores da fua parcialidade, já
le lhe íaziao os brindes á faude d'ElRey. Teve no-
ticia difto naquella mefma hora David ; e que refo-
luçao tomaria ? Selefe, diz, a minha mula, (que
mo os cavallos, de que entaó ufavaô os Reys ) mon-
te nel-
-4^
Difcurfo LXXIV. 1 8 5
te nella Salamaó , e ungido pelo Profeta Nathan
fava por Jerufalem com trombetas , e atabales dian-
te, edigaõ todos: VivaElRey. Aílim Ic executou
no mefmo ponto. Ouviole no banquete com allom-
bro o fom das trombetas, foubefe o que paíTava ,
retiraófe cheyos de medo os convidados, e todos no
meí mo dia beijarão a mao a Salamaõ. Mas que razaõ
deo de fi David , e do que tinha mandado ? Como
refpondeo ao direito, e pertençaô de Adonias? E
como enfeitou , ou adoçou o naõ de o naó ter no-
meado aelle? Nenhuma coufa lhe diíTe, nem teve
neceflidade de lha dizer , porque vendo Adonias o
Jugar provido, compozíe com a fua fortuna, foy
beijar a maô a Salamaó , e nem a elle , nem a feu pay
replicou huma fó palavra. Tanto importa o prom-
pto provimento dos lugares para pôr filencio á am-
bição dos pertendentes , e também ao naõ dos Prin-
796 A praxe defta politica exercitou gloriola- Num. ns.
mente no noíío Reyno ElRey D Joaó o II. digno de
fer chamado D. Joaó o do bom memorial , aííim co-
mo D. Joaó ol. fe chamou o de boa memoria. Ti-
nha efte prudentiífimo Rey hum memorial fecreto,
no qual trazia apontados todos os que fe avantaja-.
va6 em feu ferviço , ou foíFem Miniftros do Eílado^
ou dajuftiça, ou da Fazenda, ou da Guerra: e fegun-
do o merecimento de cada hum lhe tinha deftinado
os lugares , e os prémios , aíHm como foíTem vagan-
do. Era provérbio dos Hebreos , de que também
ufou Chrifto : Ubicumquefuerit corpus.illic congre-i^^^^-^i-^f-
gahuntur i^ aqiiiU. Onde houver corpo morto ,
Jogo alli correráó as águias. Falia das águias vultu-
rinas, quefaó aves dle rapina , as quaes tem agudif-
M 4 fíraa,
rii^«iàÉÍ^iÍáÍ«
184 Vieira ahbreviado
fima vifta, e fubtiliflimo olfato, e em vendo, ou chei-
rando corpo morto , logo correm a empolgar , e ce-
varfe nelle. Aífim fuccede com a ambiçaó dos per-
tendentes a todos aquelles , por cuja morte va^a
omcio , comenda, vara , cadeira, mitra , governo, ou
outro emolumento útil, e pingue, em que empre-
gar ( nao digo as unhas ) as maôs. Mas que fazia nef-
tes cafos quotidianos o Rey do bom memorial ? Co-
mo nelle tinha já deftinadas as pcfloas , a quem havia
de 1-azer o provimento , refpondia , que já o lugar ,
otlicio , ou beneficio eftava provido , e as águias,
que corriaó famintas aos defpojos do morto , enco-
Jhiâo as azas, embainhavaõ as unhas , e ainda que
queriaõ graínar, tapavaõ o bico.
Num. 11^. 797 He o que aconteceo hoje aos noíTos dous
pertendentes, No mefmo caminho , em que fe fez a
petição, acabava Chrifto de dizer, que hia ajeruía-
lem a morrer. JoaÔ era a águia , e Diogo feu irmaõ,
e como lhe cheirou a corpo morte, também quize-
rao empolgar , e aproveitarfe da occafiao; mas ainda
que os lugares , que pediaô, ti veílem fido do morto,
e elle fora como os outros mortos, que morrem , e
nao refufcitao , a razaô, com que Chrifto lhes tapou
a boca , foy com dizer , que aquelles lugares Já efta-
vao deftinados, e dados a outrem : Non vobis^Jed
quihus paratum eji à Patre meo.
7.9B Temos apontado osmeyos , com que anti-
cipadamente fe podem atalhar, ou diminuir asocca-
íioens de íe dizer, nem ouvir efte taó duro adverbio.
MiS porque fe podem ofFerecer com tudo algumas,
em que íeja forçofo negar , vejamos agora o modo ,
ou modos, com que nos taes caíos com menos fenti-
mento dos vaflallos, e menor mortificação doPrin-
cipe,
Num. izi.
' i L
Difcurfo LXXIF- 1S5
cipe fehadedizero naô. ElRey, que eítá no Ceo ,
diire a hum feu confidente , que tinha vinte e quatro
modos de negar : teve efta noticia hum Enibaixa-
dor, que havia tempos requeria certo dePpacho e
com a confiança de criado antigo , que tmha fido de
Sua Mageftade , começou humn nova mftancia com
eftas palavras : Cá ouço, que V. f^^f'^'''^^:
te e quatro modos de negar: Senhor, fe V. Magefta-
de tem vinteequatro modos denegar, eu tenho vin-
te e cinco de pedir. Quaes foirem eftes vmte e qua-
tro modos de negar , eu o naô íei , nem me oc.wrem;
mas como faó, e podem fer mais «s^^odos de pedir,
neceííario fera contra a importunidade dos perten- -
dentes repulfallos talvez com hum nao mais , ou me-
nos defenganado fegundo o que pedir a miséria
790 Primeiramente me parece , que lao merece-Num. i,
dores de hum naÔ muito claro , e muito feco certo
género de alvitreiros, que inventando , e otterecen-
do novos arbítrios , e induftrias de accrelcentar o
erário , ou fazenda Real , juntamente dizem ( e
aqui bate o ponto ) que elles haÔ de fer também os
executores, e para iffo pedem meyos, ejurifdiçoens.
Nafceo cizânia , diz Chrifto , entre a feara de hum
pay de familias , o que vendo os criados , vierao lo-
eo mui zelofos encarecendo aqueila perda da fazen-
da de íeu amo , e ofFerecendofe a ir mondar a feara,
e arrancar a cizânia : Fis , imus , & colUgimus eat Math.
Quereis , fenhor , que a vamos colher ? Colher ,dif- ^s.
feraô, e naÔ arrancar , porque eftes zelos, eoftere-
cimentos íempre íe encaminhaó á colheita. Reípon-
deo o pay de familias fem lhes agradecer o cuidacio:
e que refpondeo? Ait illis\ Non, DuTelhe: Nao. Aí- Math
fim fe ha de refponder com hum ^naò muito ieco , e ^9,
muito
!?•
í ?.
!|)|
1 8 6 Vieira abbreviado
........xtir.isrsiz*; . „„„„.
C3d" ^enir^ ' ?, , -' '^"^ '^°f='" '"''''^ eminentes em
i-Joa género, Uibao aos inayores iusares e N-nh^A
os pn,,e.ros prcniios Mas tirafe porlxce^^ô^^^^^^^^^
ftb.r aeftes lugares na5 baíb a eminência dos ta!
de an'',ilT''?'r''f ''."^"^''^' '«f»'f'> certo Jraa
de qualidade, baftando fó eíFa qualidade feni outrn
n erec.mento, nem talento para pertender.eakn-
çar ou alcançar fem pertender os mefmos lugares
Efe oseftrangoros fe adniiraô, e paímaô de v^T
que os homens, que elles , e o mundo venera Zl
hutn dos nofTos pertendentes do Euangelho ( e feia
Sant ago que veyo aPortugal ) viera hoje, e emlu
B ín In^f^n' ' 1"^P^'^i''' pertendera a dequalquè
Bifpado do Reyno , haviaólhe de refponder , que „«
u '"^yPI^vof. que fe lhe podia fazer, eradarlh?
hum Bifpado ultramarino : e logo lhe nomeariaá f^ ~
Lr TeTor" '^ ""^'i^Pr P"^'"-- corda pÍ^ »
cana. Sejofueconquiftador de trinta e três Reynos
Capitão General , também lhe haviaó deoppor aue
fnhaíidocnadodeMoyfés: ejpfeph, oq^uT|'t^eve
mayor
'vkk.
Difcurfo L^^W. 187
mayor induftria , que todos os homens, parn adqui-
rir fazenda a feu Rey , e mayor fidelidade para a
confervar , fe quizeíTe fer Veador da Fozenda , vede
fe lho confentiriaÓ as ovelhas , que tinha guardado
íeu pay ? NaÒ fallo em Bartholo , fe lhe vieíie ao
penlbmento a regência da Juftiça, ou a Navarro a da
Coníciencia ; porque o fegundo tendo enfinado em .
Portugal com afiombro de todas as Univeríldades
O que aprendeo na de Coimbra , foy a tomar por 1 o
nao, e ir morrer em terras eítranhas, porque íe lhe
naõ diíTeíTe na noíTa : Non e(i in loco mjiro conjuetu-
dinis. A cenfura defte , que íe chama coftume, he
que naÔ he coftume , fenaò abuíb contrario a nature-
za , á razaô , á virtude , e prejudicial á Republica : e
que os Principes , que fe efcufaÔ com efte modo de
naó , clle nao ío os naô efcuía , mas accuía , e con-
demna mais , fazendo-os odiofos aos vaíiallos , ao
mundo, e ao mefmo Deos, o qual por iflofez a to-
dos os homens filhos do meímo pay, edameímamay.
801 Excluido pois efte abufo particular da noíiaNum. txy,
terra, o modo, que em todas , e todos approvaó, exDS
melhores politicos enfinaó , como mais decente , he,
que nas occafioens denegar, para abrandar a dure-
za do naó , depois de mandar confuitar as matérias ,
fe efcufe o íabioPrincipe com os feus Concelhos. He
neceíTario porém advertir nefte meyo , que deve ler
applicado com tal moderação , e cautela , que por
enfeitar o naô naô íe afee a authoridade do Rey ,
nem o credito dos Concelhos, nem as mefmas ra-
zoens da efcuía. Havendo pois o Principe de fe ef-
cuíar, ou efcudar com os feus Concelhos , diga , que
mandou confiderar a matéria , e que íe conformou
com elles , e naô diga mais.
1 8 8 Vieira abbreviado •
DISCURSO LXXV.
eirado de bum fermaÕ da terceira Dominga do Ad-
vento , pregado na Capella RcaL
PERTENCOENS.
Part. í. 802
Num. 105.
Uma coufa, que eu defejara muito ao
Iift.ST.~- ^^'"? ^^ Portugal, conta o Eunnge-
f.lem 'rv "" ' "^""^ ^^ V" ^^'^ "^ Republica de Jcru-
laiem. Uiz , que os do governo daquella grande Ci-
dade mandarão huma embaixada aos deíertosde Tu-
dea , na qual oftereciaó ao Bautifta a mayor dianJda-
de , que nunca houve no mundo , querendo-o reco-
SrcaVohe^^^^P"'* MeiTias O ql.e reparo muito
nelte cafo he, que em vez de o Bautifta vir do deíer-
fovH. r '^. ' pertender a dignidade, a dignidade
toy da Corte ao deferto a pertender o Bautiífa E if-
Keyno. He força , que haja pertençoens , e perten-
dentes, mas eftes naó ha6 de íer as peíFo. , fenaó os
offiaos. E porque? Porque naô pôde haver r?e^
mais bem governada , nem mais bem fervida Repu-
t>lica , que onde os officios forem os pertendentes e
os homens os pertendidos. Aííim foy hoje o Bautif-
ta o pertendido , e o Meífiado o pertendente
Num. 107. 803 Oh que venturofo feria o noííb Reyno , fe
N«.. les.^"",^" "^^^°^"^'^e ^ft^ nova, e admirável politica I
i^m todo o Reyno bem governado naÕ devem os
homens pertender os officios , fenaÔ os officios per-
tender os homens. As razoens deita politica doCeo
pouco entendida, e menos praticada na terra faó
muitas.
I '
.'«.y^
•■ítt
Éi
Difcurfo LXXF. 189
xiitas. Eu para mayorbrevidnde, e clareza a redii-
5,rei nefte difcurfo a três principaes com nome. cie
:onv€nÍ£ncias. Primeira; pgrque andarão mr.is aii-
thorizados os officios. Segunda ; porque efiara mais
defembaraçada a Corte. Terceira; porque viviiao
mais defcanfados os beneméritos. .
. 804 Q.jantoá primeira conveniência de que os Num. lo^,
officios , miando nao forem pertendidos , então .erao
mais authorizados , naõ faltará quem cuide , ou diga
o contrario: e parece que com bons tundamentos.
NaÓhesrande authoridade, e credito do ouro en-
tre os outros metaes , que todos o ^^^.^f ^P'^^^"'
rem , e facão tantos extremos por elle ? Nao foy
grande authoridade da formoíura, que pela de Hele.
na contendeílem com tanto empenho , e fe deííem
tantas batalhas a Grécia , e Troya ? Logo ^^ ^efma
maneira fera grande authoridade , e credito dos offi-
cios , que concorraÓ muitos a ospertender, eque
a ambicaÓ , e emulação dos oppofitores^ fe empenhe
com tJdas as forças em os coníeguir. h quanto ma-
vores forem as negociaçoens , as diligencias , as con-
troverfias , as valias , e ainda as adulaçoens , e os ío-
bornos dos que os pertendem alcançar , tantro mais
creícerá a eílimaçao , e authoridade dos meimos otti-,
cios affim pertendidos. Pelo contrario fe elles to-
rem os que haÓ de pertender , naô teraô eílimaçao ,
nem fequito, e ficaráÓ folitarios , e quando menos
mal providos. Já Tert^lliano ponderou gravemente
a quantas indignidades fefujeitaô, e abateiB os que
pertendem fubir ás dignidades: ele os officios íeh-
zerem pertendentes , pelo mefmo cafo fe íarao indi^
gnos, eperderáo o nome da honra, e dignidade, que
he o que os acredita , e authoriza. ^ '
^ ' 807 Ora
mÊ^màÊÊím
190 Vieira, ahhrerviado -
Nam.no. 807 Ora aiites que desfaça a apparencia deftas,
objecçoens, quero-as coiwencer com a evidencia de
hum exemplo, que todos trazemos diante dos olhos,
e nmguem o pode negar. O officio , os Embajxado-
res , e os que hoje os mandarão , e o mefmo Bautif-
ta tudo era ecclefiaftico , íeja pois também ecclefi-
aítico o exemplo. Pergunto : Qtiando efteve mais au-
tnonz^do na igreja o officio , e dignidade Epifcopal?
Qtiando os Santos ( de que he infinito o numero ) íe
iiaoatreviaõ a ò pertender , mas pertendidos clles,
buícados, eacclamados íe metiao pelos bofques,
e íeeícondiaõ nas covas, temendo, efugmdodetao
alta dignidade } Ou agora quando tantos Frequentaô
os palácios dos Reys , e os tribunaes, e caías dos
miniílros, fazendo oppofrçaiõ com a cara defcuber-
ta ás Mitras, e oílentando letras, antiguidades, e
cargos da Religião , e talvez os procedimentos, e as
meímas virtudes, para que as cabeças cheas deíles
peníamentos fejaó coroadas com í^qul-lla íagrada in-
fígnia? Torno a perguntar: Qiiando efteve o officio,
e dignidade Epifcopal rnaisauthorizada: agora quan-
do tantos a pertendem , ou quando ella era a perten-
étwiQ,} Agora que a procura defcubertamente a am-
bição, ou quando a recufava a raodcdia , e fugia del-
ia a confciencia ? Os mefmosfagrados Cânones ref-
pondem á minha pergunta , e que dizem ? Oiiaratur
cogendus, quirogatus recedat , ir invitatus fupat.
Notai a palavra Oii^ratur ^ bufquefe. Equemha
de íer bufcado .? O Bifpado , e o officio ? Naó , fenaó
o homem digno delle. EeíTe homem digno, que qua-
hdades ha de ter } Grande cafa } Grande nobreza }
Grande appellido ? Grandes cargos antecedentes }
Naõ diz iíto o Canon. Pois que ^và. Queíeja tal, que
o ha-
l
lÉi
Difcurfo iXXF. i5>i
ohajaô de obrigar por força a ^.ceirar: Oi4£ratur co^
ícemlus , e que rogado com a igreja fe retire , e con-
f idado com a dignidade fuja delia : Qiit rogatus re-
8oó Equanto ao concurfo dos pertendentes, eNutr-iu-
competidores, quando os homens laô os que p-rtcn-
dem os officios , e naó elles aos homens , tao tora el-
tá eíla multidão de accrefcentar a authoridade ao ot-
íicio , que antes fe defacredita a fi , e a elle , e íe nao
di^aô os mefmos pertendentes, porque pettendem o
oleio ? Ou pela honra , ou pelo mtereUe : íe pela
honra, mal a podem dar ao officio os que fe perten-
dem honrar com eile : e fe pelo intereíie , bem íe ve ,
que naÔ querem o officio para o fervir, fenaopara íe
íerviremdelle: e onde íicará o oíiicio mais autnorr-
zado : onde ler vir , ou onde for fervido ? Feio con^
trario , quando o officio he o pertendente do homem,
fendo o homem fempre o mais digno , na meíma di-
gnidade do homem pertendido le coníervâ^aautho-
ridade do oíiicio pertendente , e na exclufao dos in-
dignos fempre excluídos fica fempre a authondade
fegura de íearrifcar, ou perder. • • j
807 Seguiafe agora a fegunda conveniência aef^,^n,. j,^^
que por efte modo eftariaó mais defembaraçadas as
Cortes, ponto de pouco goílo , e utilidade para os
que neíle embaraço tem a fua lavoura , e íem cav«r
nem femear, a fua colheita. Mas porque eftetumuU
to, econfufao nas portas , e efcadas dos miniítros,
enas mefmas ruas he taó frequente, que igualmen-
te tropeção nellas os pés , e os olhos, para naó gaitar
o pouco tempo , que nos reíla , em matéria taõ íabi-
da , e taõ vifta , deixada a conveniência delia á confi-
deracaô dos que me ouvem , paíTçmos como mais im-
por-:^
1 5^ 2 Vieira ahbreviado
Nuir 117 ^^Q^^^o^^',^ "^^"^^ advertida á terceira.
7. ^c8 A terceira conveniência defte trocado mo-
do de pertender iie , que viviráô mais defcaníados os
beneméritos. ProcuraráÔ fomente merecer , eftando
muito certos, que ainda que vivaô retirados da Cor-
te , e muito ionge dos olhos do Principe , iá os iraÓ
bu.car , e pertender as dignidades, como ao Bautif-
ta no feu deíerto. Confideraime ( diz S. Bafilio ) a
iJeos no Ceo, e a David no campo, e notai quão
differentes íaô no mefmo tempo os cuidados do fu-
prenioMonarcha, e do humilde pdlorinho. David
1u ^fl^^^^^J^^'^ o rebanho , e Deos fazendo confe-
hos fobre D^viá : David levando as ovelhas aopaf-
to, eDeosprcparandoJheothrono. Ainda eu con-
liuero mais deícanfado a David , do que a eíoquen-
cia de Baíiho o reprefenta. Qiiando elle fugindo de
baul fe acohieo á Corte d'EiRey Achiz, e para vi-
ver íefíngio doudo, vahaíe para efta diííimuiacaó
das artes, em que fe exercitara quando pnílor, ehu-
ma era tocar o tamboril, e a frauta. Aílim o exprime
o texto Grego. Confideraime pois ao paííorzinho
como Tityro á fombra da faya tocando a lua frauta ,
e Deos , que ihQ conhecia o talento, decretandoJhe a
coRoa. Pode haver mayor cuidado no Ceo, emayor
defcanfo na terra ? Pois efte he o que gofaó no feu
retiro os beneméritos.
Num. 118. 809 Paliemos do campo ao mar , e ponhamonos
nas prayas , e ribeira do Tiberiadcs. Por ventura em
toda a fua vida, quando Pedro ouvia dizer, que em
Jeruíalem reíidia o Summo Pontífice, ou folfe Si-
mon, GuMathias, ou Joazaro , ouEieazaro, ou
Anano, ou Caifaz , que fao os que fuccederaòem
leu tempo, veyolhe algum dia ao penfamento, ou
âcor-
Difcurfo LXXF. 1^5
acordado, ou fonhando, que poderia elle fubir áquel-
ía fuprema dignidade ? He certo , que nunca a Tua
Darca navegou com taõ proípero vento, emaré , que
ral coufa JÍie pallaífe pela imaginação. E com tudo
áefde a fua eternidade otinlia Deos deíliníido para
outra, e mais univeríal tiara, naõ deper.dente dos
Cefares Romanos , ou dos íeus Tenentes na Syria , e
najudea, que eraô os que punhas") huns , e deípu-
nhaó outros, mas eftabelecida em fi , e em feus fuc-
ceíFores pela eleição immutavel da providencia di-
vina.
• 810 Se naó bafíaô os exemplos humanos para Num. ut^
nos perfuadir efta honrada, e defcaníada induftria ,
ponhamos os olhos em todas ns outras creaturas , a.
que a natureza naõ deo razão, nem fentido, e vere-
mos como todas as que tem valor , e preftimo , oc-
cupadas íóem crefcer , e íe fazer a fi mefmas, fem
elks pèrfendei^em , nem bufcarem a outrem , todos
as buícaô^,epertendem aellas. Qiie fazia a oliveira,
a figueira, e a vide, fenaõ earregarfe de frudos ,
quando toda a republica verde das arvores , e plantas
lhe foy ofFerecer o governo , e o império ? Naô o
quizeraÓ aceitar , porque fe contentarão com o me-
recer. Deixefe crefcer o pinheiro , e fubir até ás nu-
vens na Noroega,que lá o iráo tirar para maílro gran-
de , e levar a bandeira no tope. Crefça também o ce-
dro gigante do Líbano , e faiba , que quando daquel-
le monte for paíTado ao de Sion , naô he para o fo-
bredourar o ouro do templo , mas para elle com ma-
yor dignidade cobrir , e reveílir o mefmo ouro.
Bem mal cuidava o marfim na fua fortuna , quando
fe via endurecer nos dentes do elefante , e dalli foy
levado para throno de Salamaó. Que defcuidados
-; Tom. II. N cref-
15^4 Vieira abbreviado
creícem os rubinsem CeilaÔ , e em Coilocondâ os
diamantes , e lá os mandão conquiftar com armadas
os Reys para refplendor, e ornato de fuás coroas.
Empreguem Jogo o feu cuidado os grandes fujeitos
em aperfeiçoar os talentos, e dotes, quenelies depo-
litou a natureza , ou a graça , e fe por retirados , e
efcondidos cuidarem , que perdem o tempo, e eftL-
maçaó , lembremfe, que fepultadas as pérolas no fun-
do do mar , e a prata no centro da terra , nem ás pé-
rolas falta quem pelas defafogar afogue a refpiraçaó,
nem á prata quem pela defenterrar enterre a vida.
Num. it j. C)s que fe acharem com eípiritos guerreiros , exerci-
tem a architedura militar, e a formatura dos exérci-
tos na paz , e dem fós por íós comíigo as batalhas fe-
cas, para que depois as poífaó tingir no fangue dos
inimigos. O politico façafe verfado em toda a liçaó
das hiftorias , e aprenda mais na pratica dos exem-.
pios, que na efpeculaçaõ do difcurfo a refoluçaã
dos cafos futuros, e a experiência dos paíTados. O
inclinado ás letras procure com o eíludo univerfal
as noticias de todas as fciencias , e naò cuide , que fó
com a memoria de poucos textos das Jeys lhe podem
dar as demandas , e trapaças o falfo , e mal merecido
nome de letrado: em fim por humilde, e rafteira
que feja a inclinação , ou fortuna de cada hum, faça-
íe no feu eftado infígne , lembrandofe que os anti-
gos Romanos do arado eraó efcolhidos para o baí-
tao, e do triunfo tornavaÔ outra vez ao arado.
6i> .. .
I
DIS-
Dijcurfo LlLXVl. 19$
DISCURSO LXXVL
tirado de humfermm da terceira quarta feira da
Quarejma pregado na Capella Real,
PERTENCENTES CONSOLADOS.
811 T^Ous lugares, edous pertendentes, ^''^l^W'
X-/ memorial , e huma interceíTora , hum • '^'
Príncipe, ehum defpacho faó a reprefentaçaÕ poli-
tica , e a hiítoria chrifta defte Euangelho. Nos luga-
res temos as mercês , nos pertendentes as ambiçoens,
na interceíTora as vaiias , no memorial os requeri-
mentos , no Príncipe o poder, e a juftiça , no defpa-
cho o defengano , e o exemplo. Eíle ultimo ha de íer
a vey a , que hoje havemos de fangrar. Qiieira Deos,
que a acertemos , que he muito funda. A enfermida-
de mais geral , de que adoecem as Cortes , e a dor ,
ou o achaque,de que todos comummente fe queixao,
hedemaldefpachados. Em alguns fe queixa o me-
recimento , em outros a neceíTidade , em muitos a
própria eftimaçaó, e em todos ocoílume. O bene-
mérito chamalhe femrazaó , o neceffitado diz , que
he crueldade , o prefumido toma-o por aggravo , e o
mais modefto dalhe nome dedefgraça, e pouca ven-
tura. Eque naóhouveíTe atégora no púlpito quem
tomafle poralTumpto aconfolaçaó defta queixa, o
alivio defta melancolia ,0 antidoto defte veneno , e
a cura defta enfermidade? Muitosdos enfermos bem
haviaó mifter hum hofpital. Mas á obrigação defta
cadeira ( que he de Medicina das almas ) fó lhe toca
difputar a doença , £ receitar o remédio. E fe efte for
N 2 prova-
provado, e pouco cu ftofo , fera facil de aDplicar
Ora eu movido da obrigação, e da piedade /e pare-
cendome efta matéria huma das mais importantes
para todas as Cortes do mundo , e a mais neceírarià
para a.noííano tempo preíente , determino pregar
hoje a confolaçsô dos ma] deípachados. Nem com a
ambição dos Zebedeos hei de condemnar os perten-
dentes, nem com a negociação' da may hei de arguir
©s interceílores , nem com a reíoluçaô de Chrillo hei
de abonar os Príncipes, e os Miniftros : fó com o de-
lengano do requerimento : Nefcitis qutd petatis\
pertendo coníoiar efficazmente a todos os que fe
queixaô dos feus deípachos , ou fe íentem dos
aiheyos. Coníoiar hum mal deípachado he o aílum-
imt ptodofermaó.
PP ^^^ Havendo pois de coníoiar hoje os mal deG-
pachados, aquella gente muita, e naó vulgar, de
&; i ^"^"^ ^^ P^^^ ^^2er : Non eft qui confoletur eam , pa-
J7^ ' ' ra que procedamos diftintamente , e fallemos ló cora
quem devemos fallar, heneceílario excluir primei-
Ij ' ro deíla honrada liíla os que importunamente, e
|! fem razaõ fe querem meter nella. E quem faó eftes ?
i !' Sao aquelles , que íendo hoje tanto mais do que eraõ,
e tendo tanto mais do que tinhaõ , e eílando tanto
«pais levantados do que eílavaô , ainda íe queixaô , e
íe chamaô mal defpachados.
8i^ Adaô antes de Deos o formar , naÕ era na-
da .-formado era humaeílatua de barro lançada na-
•q^uqW^ chaó : bafejou-o Deos, pozfe AdaÕ em pés,
começou a fer homem , e foy com taõ extraordinária
fortuna , que tinha ( diz o texto ) elle fó três preíi-
dencias. A preíidencia da terra fobre todos os ani-
-inaes, apreíideuciadoar, fobre tcdssasaves, a pre,-
•-^ • i ' íiden-
Dijcurfo LXXVI. i97
fidencia ao mar lobre todos os peixes. Efiava bem
defpachado AdaÓ ? Parece, que naÓ podia fer mais,
nem melhor. Com tudo nem elle, nem fua mulhej
ficarão contentes , ainda pertendiaó. E que ^JS^^o
mais, que fer como Deos : Eritts Jicut Dn. Hata.Gener.j.j.
ambição deíubir? Ha tal defatino de creícer ? /m^
tehontem nada , hontem barro , hoje homem , a ma-
nha Deos? Nao fe lembrará AdaÓ do que era hon-
tem , e muito mais do que era antehontem ? Quem
hontem era barro, naô íe contentará com íer hoje
homem, e o primeiro homem ? Qtiem antehontem
era nada, naô fe contentará com íer hoje tuao , e siian-
dar tudo ? NaÓ. Porque já entaó era Adão , como ho-
je 1^6 muitos de feus hlhos , que íahem como elle ao
barro, e ao nada,de que foraÓ creados. Mai creaaos,e
maoscriados;por iflodefcontentes, e ingratos, quan-
do deverão eílar mui contentes , e mui agraueciaos.
E a razaÓ deíla femrazaÓ he; porque dos (entidos
perderão a viíla , e das potencias a memoria , nem
oihao para o que faÕ , nem fe lembraó do que forao.
814 Mas do que éreis , e do que fois , paílemos
ao que tinheis, e ao que tendes. Enthronizado Jolepn
no Qoverno , e Império do Egypto , foube ElRey
Faraó , que tinha pay , e irmaÓs na terra de Canaan,
e mandou-os logo chamar , para que vieiFem íer com-
panheiros da fortuna de feu irmaó. O recado foy no-
tável , e dizia aífim : Properate, nec dímittattsquid-
qtiam de fupelleãili vejlra , quia omnes opes Egyptt
iefira ertint: Vinde logo , e naÔ deixeis coufa algu-
ma das voins alfayas , porque todas as riquezas do
EeyptohaÓde fer voíFas. Elle porque naÔ entendo^
Antes, porque todas as riquezas do Egypto haviao
de fer fuás , naõ era neceííario , que írouxeílem cou-
Tom. II. N3 ia ai-
I ^ S Vieira abhre-oiado
fah.aodasc.ban.s, e telhados de colmo na nv?ro,t
morarem palácios dourados debaixo das nvrL Z
e obeiífcos do Eg).pto. Pois tragaõ°s íSk- S
fuás mantas , os feus peliotes de pano da L^^^r t'r '
teiras . tiagao as fuás efcudeílas de pao e ov fenc
tarros de cort.ça , para que quando fe^^r^^ cotías
S"a ftT'' ^'"^P'fd«. «P-ta rodar pd
meias , a feda , e ouro das galas , as pérolas e o^
diamantes das joyas , os criados , os cavalos as c.r
roças , conheçaõ quanto vai de tempo a tempo ede
aratrconb:ír%-~^
A^Jní ríçafd^rmtiírc-;^^
quanto ferv.r.a p.ra o agradecimento, e para a n "o^
deft.a e amda para fazer laftro á mefnía ftfrtuna '
nhel/ , '""''".'J^^^feis, eoquelois.oqueti-
rt o'ndeJ' '""'^"^ ' '^^' ' ^on^binaçao dos^uga-
res.ondeeíhveis, eondeeftais. No fe-^undo livro
So tTirr-f- ^•'^í^° -8'ft-^- - nferces ;:
rtnVr J'^° " "''^"' ' e dizaffim o reèifto •
duxfuper omnem populJn : Eu ( diz Deos ) ti d a
S s de t:T "^ Pf T" '. «"'^^ g-rda v/a ove!
iíias de feu pay , e o fiz Càp.taÔ, e Governador lo-
bre
DifcnrfoLXXVI- 19
brc todo o meu povo. Naó fó diz Deos o lugar , on-
de o poz , fcn^õ também o lugar , donde o tirou : o
onde , e mais o donde. Pois, Senhor meu , que tao
grandiofo fois, fe quereis , que fiquem regiíiadas cm
vollbs livros as mercês, que fizeítes a David , por-
que mandais , que fe regiftem tam.bcm nelíes o cxcr-
cicio , de que vivia , e o lugar humilde , de que o ie-
vantaftes? Para que á viíla defte lugar conheça me-
lhor David a grande mercê , que lhe ten!)o feito. ,
Qiiando fe vir com o baftao na maõ , Icmbrefe que
na meíma maó trazia o cajado. Se algum dia (que
tudo íe pode temer dos homens } lhe parecerem pe-
quenas a David as mercês, que lhe fiz, lembrarfeha
do lugar, que tinha antes , e do que tem agora : lenv
braríeha donde o tirei, e onde o puz , e logo lhe pa-
recerão grandes. Eftesondes, e eftes dondcs naõ fe
coílumaô regiftar nos livros das mercês. Sena bem,
que ao menos fe regiftaífem nas memorias dos que as
recebem. ]á que tiveíles tanta eílrella , pondelhe
huma eftrellinhaá margem. Lembreíe odeíconren-
te com David onde eítava , e onde eílá : lembreíe
com os irmãos de Jofeph do que tinha , e do que tem:
lembrefe com Adaó do que era , e do que he , e logo
verá qual deve fer o queixoío , fe o defpacho , ou o
defpachado.
816 Naô deípachou Chriílo hoje os noíkís per-
tendentes ; mas eu noto , que nenhum delles fe quei-
xou. Pedirão as duas fupremas cadeiras do Reyno,t
pedirão que Chrifto os defpachaíTe logo , com três
letras: Dtc : Dic , utjedeant hiduo filii mel E^foraõ
rcfpondidos logo com outras tresj Non\ Non cfi
meu?n dare vobis, E fendo efte nao taõ claro , taó
feco, taó defcnfeitado . queixoufe por veatura a in-
N4 tercef-
!Í
2o o V lara aubr
t^rceíTora ? QueixaraÕfe os pertendentesT Nem hu-
ma palavra d.lieraô. E porque ? Porque eraô T^nã
que fab.a tomar as medidas á fua fortina. Compara:
rao o que tmhaô fido com o que eraõ, e o qT/erac
com o que pertendiaô íer. Na 'comparação doaueti-
nnao fido com o que eraõ, viaõ a melhoria do feu
eftado : na comparação do que eraõ com o que per-
tendiao fer , reconheciaõ o exceffo da fua ambicaõ.
b elhs duas comparaçoens lhes taparão a boca° de
mane.ra , que naÕ teve por onde brotar a queixa!
S^. H'"r''T'T^° ^ ^r^"" ' ^ '•«■rendando as redes
eltejamos contentes, e nos atrevamos a pertenderos
dous iugares fupremos ? Mais razaó teií logo nolTo
ned?r Pm"'^""' 'l'"]"^ tevenoffamãy, e nósde
pedii Elle negou como ,u(to , nós pedimos como
demafiados, enefcos: Nefcitis quidpetath.
fem r.„rw "'J' °' q^eixofos , e deCcontentes
iem caufa ( e que por ventura fao a caufa de haver
t.ntos defcontentes ) ouçaó agora os beneméritos
mal defpachados a muita razaõ , que tem de fe confo-
fnrr. ^ ^ ';"''"2tl''°' ^°'"'' '°S° moftrarei , he a mais
forte de todas Mas /em recorrera motivos da fé, fe
eu íora hum dos beneméritos, em mim mefmo, eno
meu propno merecimento achara tao grandes ra-
^oens de me coníolar , que fem outra mercê , nem
defpacho me dera por .nui contente, e fatisfeito.
iJilcorrei hum pouco comigo.
8i8 Ou mereceis os prémios, que vosfaltaõ, e
com que vos fnltaõ , ou naÕ : fe os naÕ mereceis, naÕ
tendes de que vos queixar: fe os mereceis, muito me-
W)s. Ainda nao fabieis, que naÕ ha virtude, nem
mere-
:íuí;Mí
Difcurfo XXXFÍ.
2oI
merecimento fem premio? Aííim como o vicio !ie
B caftiso , aflim :. virtude he o premio de fi ir.c.ma.
Umafor premio das acçoens heróicas he razella .
Com melhores palavras o diíTe Séneca , V^r^^^^f'^-
lava em melhor lingua : (haJ confc^uar ^n<p.s ,^J^
me perguntas , que as de confeguir ,pelo que hzefte
outorte, ou geiíeroíamente ,
refpondote
que te-
lo feito : Rerum honeftarimpretium tn tpjts ejt . U
premio das aeçocns honradas , eibs o tem em íi , e o
levaÔ logo comfigo , nem tarda , nem efpera requeri-
mentos rnem depende de outrem: íaô fatisfacao aefi
meí mas. No dia, em que as íizeíles , vos íatisnzeftes.
819 Eícfóra de vós meímoeíperaveis outro pre-
mio , contentaivos com o da opiniaÔ , e da honra, be
voíTos fervicos faô mal premiados , baílevos faber,
que nò bem conhecidos. Eíle premio mental aíTen-
tado no juizo das gentes ninguém volo pôde tirar,
nem diminuir. Qiie importa, que fubais mal coníul-
tado dos Miniftros, fe eílais bem julgado da íama.^
Oue importa, que fahiíkis efcufado do tribunal , fe o
tribunal fica accufado? PaíTai pela chancellana eíTe
delpacho, deixai-o por brazaô a voíTos .defcenden-
tes , e fereis duas vezes gloriofo. Só vos dou licença,
que vos arrependais de ter pertendido. Pouco tez,
ou baixamente avalia fuás acçoens quem cuida , que
lhas podiaó pagar os homens. r -
820 Se ferviftes a pátria , que vos foy ing^*^^^ »
YÓsfizeftesoquedevieis, ella oquecoíluma. Mas
que paga mayor para hum coração honrado, que ter
feito o que devia .? Quando fizeftes o que devíeis,
entaÕ vospagaftes. Ouvi ao Meftre divino, que tu-
do nos enfina. Dizia Chrifto a feus foldados, a quem
ene ar-
Luc. 17.
20 2 Vieira ahbreviado
iize, , que o,s íervos inuteis^otavel fei te. c. 1 (í
^ar e ui/ei , que l,e fervo imid) ? Sim. N neuem p-,
tendeo me ior eífe fpYrr^ .-...^ „ "■ ^Mnguem ea-
N.,nf,ii.,<-i! rL f '^'-^f,°' que o venerave Beda
INao h,l,a Chrifto da utilidade, que recebe n S^nh^
íenaôdautdidade, que naô recebeoíervo O írvô
nao recebe utilidade do Ceu ferviço , poròue he ol i
ra.aomu,tocomo Tua: 0««./^.W,iS- ^
W/J-. O que devíamos fazer, ilfo fizemos Quem feV
o que devin , devia o que fek , e ninguém ei>erT t
gn de pagar o que deve. Sefèrvi, f?pereiei^ fe tra-"
quem fe defempenhou de tamanhas dividas nafíh!
ie^cí^H''""^^^ PfSn. Alguns ha taõdeAanec dos
quecuidao , que hzeraÕ maisdoque deviaõ Fn^a
naoíe. Quem mais he, e mais pode, mais dev^^O
Soi,easeftrellas fervem fem ceifar efémílcom
grande utihdade; mas eíTa toda he do un?ve fo "e
nada fua. Prezaivos lá de filhos do Sol e ti5 ninf
três como as eftrellas, e abateivos a mèndíg:;'!,^
r* o*» *
tíii Eu naõ pertendo com ifto efcufar ni n,,^
vos nçcufais. Porque vós fois beneme o nTô ?)"
loíidade a fer generofos , e liberaes. Que daff 0.1
que podem dar a quem deo por elles o ftngue ? Mas
por-
^LlÉfili^-^;
ÉÊ
Difairfo LXXVI. 203
jorque ainda com o pouco , que podem v f-ltao no
lirradecimento , quero eu que vos naó falte a conlo-
acaó. Se voílos feitos foraò Romanos, con(o]aivos
-om Cataó , que naô teve eftatua no Capitólio. Yi-
ihaó os eílrangeiros a Roma , viao as^ eíbtiias da-
quelles varoens famofos , e perguntavao pe.a de Ca-
taó Eíb pergunta erá a mayor cíhtua ck todas, aos
outros pozihes eftatua o Senado, a CataÔ o mundo^.
Deixai perguntar ao mundo , e admirarfe de vos nao
ver premiado. Eíía pergunta , e elia admiração he o
mayor, e melhor de todos os prémios. O que vos
deo a virtude , naó volo pôde tirar a inveja : o que
vosdeo afama, nao volo pode tirar a ingratidão.
Deixai os fer ingratos, para que vós fejais mais glo-
riofo. Hum grande merecimento fobre huma gran-
de ingratidão Hca muito maisíubido. Senaó^houvef-
íem ingratidoens, como haveria finezas? Naõ deis lo-
go queixas ao defagradecimento , daiihe graças.
822 Dirmeheis, que vedes difterentemeiUe pre-
miados os que fizeraõ menos , ou naô fízerao nada.
Dor verdadeiramente grande ! Já diíFe huma Rainha in 7ita
de Caftella , que os feus ferviao como vaflallos , os J<-^^"- ^
noiTos como filhos. E naÔ pode deixar de fer grande
efcandalo do amor , e grande monftruoíidade da na-
tureza , que foflem huns os filhos , e fejaõ outros os
herdeiros. Mas efia mefmainjuftiça vos deve fervif
de coníolaçaó. Se o mundo , e o tempo fora taó juf-
to, quediftribuira os prémios pela medjda do me-
recimento , então tinheís muita razaó de quei-
xa ; porque vos faltava o teftimunho da virtude,
para que os mefmos prémios, foraô inítituidos ;.
mas quando as mercês naõ faõ prova de íer homem ,
fenaõ de ter homem , e quando naõ fignificaõ valor,.
feuao>
! m ;!'
■ffin, II
204 'Vieira abhreviado
í»m° ni- ' P°"" '."•'"'■''^ '"« í"^^ ^ quem fe naõ f
""eM ex me ,fortímamex ali!s
J2l Finalmente iè os homens vos faô ingntos
nao íejais vos ingrato a Deos. Se os ReysTos nof
dao o que poden, , contenta.vos coni que vos d
Deos o que naô podem dar os Reys âs Re"s no
m6 nn t'm Q^^^ ^ compõem a verdadeira honra
nío podem. Se Deos vos fez eftas mercês f^,.<; r.„ '
CO caio das outras , que nenhuma varo'quel-Cfta"
meniia hL.h P ""'°' P'^'^^^' ^ morrerão nas
melmas batalhas, e naó fequeixaó. Os que morre-
\m:VIT/',''%^ P"^''"^ deraóT^ida "por
ficou tor,oíí/ '^"■- ^^'''"^'" P'^'' ""^'-^^ d^ Deos
dea,achado°s; ^"'''0,' «mo fe queixará de mal
c^s, que vos nao fez , beijai a maó da volfi efnaHa
que vos fez digno delias. Olhe o Revpa„ vós como
SoílT P"P"r f^^'°^' ^'«'onai^-os deque fe
car a vM. r ft'^"' '"""° P"^ '^'^ ° ^^"8»^ , e arrif-
O (oftmnento. EntaÓ batalhaftes com os inimigos
«gora he tempo de vos vencer a vós. Se o foidudo íê
vê
«■li
Difcurfo LXXVIy 20 5
vê defpido , folgue de defcobrir as feridas , e de en-
lergonhar com eilas a pátria , por quem as recebeo.
Se depois de tantas cavailarias fe vê a pe) tenha eíia
pela mais illuítre carroça de léus triunfos, b le em
fim fe vê morrer á fome , deixefe morrer , e vmguele.
Perdeloha quem o na6 fuftenta , e perdera outros
nvjitoscom eífe defengano. Naõ filtnrá quem diga
por elle : Quanti mercenarii ahimãant pantbiis ,ego luc. i 5. ití
autembkfamepereol Eeíleãngrato, e eícandalofo
epitáfio fera para fua memoria muito mayor , e mais
honrada commenda de quantas podem dar os que
as daõ em huma , e muitas vidas.
8^4 Eftes faõ os motivos glonofos, com que eu
naÓ fò me confolara, mas ainda me defvanecera , íe
fora hum dos mais beneméritos. Mas ( P^^q!»^ ^'^^Mauh i,:
07?2nes capinnt ver bum iftud ) vamos a razão divma ^ ^^ ■
do Euangel ho , com que fe naô podem deixar de con-
folar , e conformar todos os que tem fé , e ainda os
que a nao tem. Oiivime ao principio como homens^
e depois como Chriftaõs. Nefcitisquidpetatu'. Nao
fabeis o que pedis. Nenhum homem iia neíte mun-
do, í faltando do-Ceo abaixo) que faiba o que ctefeja^
nem o que pede. Fundemos eíla verdade na experi-
ência , para que as confequencias deila fejaó de ma-
yor, e mais fegura confolaçaõ. E porque a petição
doEuangelhofoy dehumamây, e dous filhos, po^
nhamos também o exemplo em dous filhos, e huma
mãv. .
825 A mais encarecida , a mais empenhada , e a
mais importuna , e impaciente petição , que fez mu-
Ihernefte mundo, foy a de Rachel a feu maridoja*;.
cob: Datnihiliberoí^alioquinfnoriar : Jacob, daiineGenef. ja;
fithos, fenaó hei de morrer, Refpondeolhe Jacob^que u
, os
m\\:
2o 6 Vieira abbreviado
os fillios íó Deos^os ái.^Çó elle os pode dar. E con
ler eíta razão tao certa, e taÓ experimentada, na<
fe conformava com eik Rachel. Iníhva : Z)./.«;^/7/
beros. Dizialhe , que advertiífe , como eftava na pri
inavera de íeus annos, eque ainda Jhe reftavaõ mui-
tos, em que podia ter naturalmente o que tanto de-
nr2''i ri '^' "^f'"^^ efperança a inquietava mais :
Oamthtliberos Amiíiava-a com o exemplo de fua
avo bara , que depois de ta6 comprida ellerilidade
houvera a Ifaac feu pay. Mas Rachel fempre mais im-
paciente : ^^ ,,;/;&/ //^^^.^j.. Ajuntava Jacob a eílas
razoens as da liíonja, mais poderoías muitas vezes
com a traqueza , e prefumpçaõ daquelle fexo : dizia-
Jíie , que olhaíFe para fi , e fe confolaíle com a roía .
a qualíendo a belleza dos prados, e a Rainha dns flo-
res, he Hor, que naó dá frudo. Masnemalifonja
nem a razão nem o exemplo , nem a efperança baf-
tava a ihe moderar as anciãs , nem as vozes : Da mi-
hl hberos : Da mihi liberos. Eíla era a petição , efle
o aperto, eftas as inftancias. Mas qual foy o deípa-
cho,e o fucceíTo.? Gafo verdadeiramente admirável!
O defpacho foy affim como Rachel pedia , e o íuc-
ceíío em tudo contrario ao que pedia. O que pedia
Rachel, naofoera filho, fenaõ filhos: Da mihi li^
beros h aíFim lho concedeo Deos ; porque a fez mav
tíe joíeph, e de Benjamim. Mas o fucceíTo foy em
tudo contrario ao que pedia ; porque parindo feliz-
mente o primeiro filho , morreo de parto , e no mef-
mo parto do fegundo. Lembraivos agora dos ter-
mos , com que Rachel pedia os filhos : Da mihi libe--
ros.altoqum moriar : Daime filhos, ( dizia ) fe naô
iiei de morrer. E quando cuidava, que havia de mor-
rer, le nao tiveíTe filhos, porque teve fíiiios, eno mef-
Hf- ■ I
Difiurfo LXXVI. 20 j
10 ponto, em que os teve , morreo. Cuidava, que
,edia a vida , e pedia a morte : cuidava , que pedia a
legria fua , e de Tua caía , e pedia a trifteza , o luto ,
^ orfandade delia, e os que lhe haviao de trocar a mef-
na cafa cm fepultura. TaÔ errados faoos penfamen-
os , e delejos humanos : e taó certo he , que no que
)edimos com mayores anciãs, naó fabemos o que pe-
inxios: Ne fcitis'quídpetatis. v , rr u
82Ó Confirmado o defengano da may dos Zebe-
jeos com o exemplo defta mãy , confirmemos o de
feus dous filhos com o exemplo de outros dous ,
polto que filhos de diflferentes pays. Sabida he ahil-
toria de SaníaÓ , e fabida a do Pródigo , ambos famo-
íos por íeus excefl^os. Deixados pois os princípios,'
e prosrefibs de huma , e outra tragedia, ponhamo-
nos ao fim de ambas , e vejamos o eftado de extrema
miferia , a que os pafi^os de cada hum os levarão por
taódiverfos caminhos. Vedesaquelle homem robuí-
to , e agigantado , que com afpedlio ferozmente trif-
te , tofquiados os cabellos , cavados os olhos , e cor-
rendo fangue , atado dentro em hum cárcere a duas
fortes cadeyas , anda moendo em huma atafona ? Pois
aquelle heSanfaó. Vedesaquelle mancebo macilen-
to, e penfativo, que roto, e quafí defpido com hu-
ma corneta pendente do hombro, arrimado fobre
hum cajado eftá guardando hum rebanho vil do ga-
do mais afcorofo? Pois aquelle he o Pródigo.
Quem haverá , que le naó admire de huma tal volta
de fortuna em dous lujeitostao notáveis, hum tao
valente, outro taó altivo! Hepoffivel , que niíto pa-*
raraõ as façanhas, e vidorias de Sanfaó? He poffi-í
vel, quenifto pararão as riquezas, e bizarrias do
Pródigo ? Nifto pararão , ou para melhor dizer , nao
parar*
r"
Judie, 1 4.
1.
luc, 15.
12.
208 Vieira ahhreviado '
pararão fó niílo ; porque o Pródigo perecendo i fo-
ií)e no meyo do montado, naÓ tinha licença para fe
^ftentar das bolotas, com que apafcentava o \^^ ga.
do e Sanfao tirado em publico para ludribio do po-
vo foy tratado com taes efcarneos, e indecenci^s
que decorrido, e aíFrontado com fuás próprias maós
fe íiiou a v,da. Mas qual feria a cauía deíles fuccef!
los, ededuss mudanças taô eftranhas? Agora nar^
vos peço admiração, fenaopaímo. Amb.s títasmu-
danças de fortuna nao tiverao outra caufa, que o
l?ojii defpacho de duas peíiçoens, em que Saníâô, e
o t^rodigo fe empenharam Pedio Sanfiô a Teus pavs
que lhe deílem por ;mulher huma Filiílea • Onam
quajo, ut accípmth míbhíxorem. ConcederaÓihe os
pays o que pedia : e eíh Fililleafoy a caufa das i^uer-
ras , que SanfaÕ teve com os Fiiiíteos, e dos enga^
nos , e traiçoens de Dalila , e da íua prifao , e do feu
cativeiro, e da fua cegueira, e das fuás aíFrontas , e
cio fim laíhmoío, e trágico do feu valor. Da mefma
maneira pedio o Pródigo a feu pay ih^ déífe em vi-
da a herança , que lhe havia de caber por fua morre •
Va mthtportwnenifuhllanúa.qua me conthmt
Concedeolhe o pay o que pedia , e efta heranoa con-
iumída em larguezas , ^>e vícios da mocidade foy
cauta da fua pobreza ^ der fua vileza , da fua miferian
da íua í-ome, da fuafervidao, da (uadeshonra, que'
ío tiverao de defconto o pezar, e arrependimento.
iorne agora Rachel , e perguntemos áquella may,
e a eííes dous filhos, fe pediriaó depois de tao pefa-
úji^\,^^ contrarias experiências o aue antes delias pe-
dirão. Pediria Rachel íilhos, fe fôubeífe , que o ter
Whos lhe havia de culbr a vida ? Pediria SanfaÔ a
Fiiiltea , fe foubeííe , queeila havia deíer a caufa de.
fua
ii
Difcurfo LXXVL 209
fua aífronta , de lua morte , e de perder os olhos ,
com que a vira ? Pediria o Pródigo a herança anti-
cipada , fe foubera , que com ella havia de comprar
a miíeria, a fervidaô, a deshonra? Ciaro eíhí que naõ.
Pois fe agora nnó haviaÕ de pedir nada do que pedi-
rão , fenaô antes o contrnrio ; porque o pedirão en-
tão ? Já fabeis a rerpoíla. Pediraóno , porque naò ía-
biaõ o que pediaõ : pediraÕno , porque ninguém fa-
beoquepede: e pediraôno , porque foraô aquella
mãy 5 eaquelles dousíiíhos, como a may ,eos dous
filhos do noílo Euangeiho : Nefchis quíãpetatis.
827 Suppofto eíle principio certo, e infallivel,
que ninguém fabe o que pede , tirem agora a confe-
quencia os que fe tem por mal defpachados. Se vós
foubeíleis , que vos eftava bem o que pediíles , cn-
taõ tinheis razaÕ de eftar contente, fe vo lo conce-
derão, ou defcontente, fe vo lo negarão. Mas quando
ignorais igualmente , fe vos eftava bem , ou n'isl o
que pertendieis , porque vos defconfolais ? Se me
defconfolo, porque cuido, que me podia eftar bem ;
porque me naõconfoloconfiderando , que me podia
eftar mal , e mais quando nas coufas defte mundo o
mal he o nlais certo. Confolaivos com a defgraça de
Rache!, confolaivos com a tragedia de Sanfao ,
confolaivos com o arrependimento do Pródigo. E fe
eftes exemplos vos movem menos por ferem de lon-
ge , confolaivos com os de mais perto , e com os que
viftes, e vedes com vofíbs olhos. Quantos viftes, que
cuidavao , que eftava o feu remédio , onde acharão a
fua perdição? Qiiant os viftes , que cuidavaõ ,que ef-
tava a fua honra, donde tirarão o feu defcredito ?
Quantos viftes, que cuidavaõ, que eftava o feu au-
gmento, onde experimentarão a lua ruína ? Quantos
Tom. II. O final-
f^
^BF
2 1 o Vieira abhreviado
finalmente viíles, que os efperava a morte , onde
elles eíperavaó os mayores intereífes , e felicidades
da vida? Alcançarão o que pedirão, aceitarão mui-
ovid mat ^? ^«"^5"f<^s O parabém do defpacho ; mas o deípa-
*' 5 /? "^° ^^^ parabém : Pwnam pro mmiere pojcis y
diífe o Sol a Faetonte , quando lhe pedio o gover-
no do feu carro : Olha filho , que cuidas, que pedes
mercê , e pedes caftigo. O audor he fabulofo , mas
a fentença verdadeira. E fe naó perguníai-o aos nof-
fosPaetontes , aos do Oriente na Afia , aos do Meyo
dia na Africa, aos do Occidente na America. O mef-
ino carro, que pedirão, foy o feu precipício, e o
inefmo excefib dos rayos o feu incêndio. Se lhes buf-
cardes os ofios fulminados, ( como fe bufcaraó os de
Faetonte ) hus achareis nas ondas, outros nas areyas,
outros nos hofpitaes , outros nos cárceres, e nos def-
terros , e poucos nas mefmas terras , que perderão ,,
que fora mais honrada fepultura. Eftes faó os vofibs
bem defpachados. Qtiantos partirão , Jevavaô apoz
fi as invejas : quando tornarão , ou naô tornarão ,
trouxeraó as lagrimas. E fe elles fe enganarão com
o feu defejo , e com a íua fortuna , porque naõ fou-
berao o que pedirão ; vos que também o naô fabeis,
porque vos haveis de enganar.? Deíenganaivos com
o feu engano, e confofaivos com o, feu erro, pois
nem elles , nem vós fabeis o que pedis : Neíciús qtád.
petatis^ ' ^
DIS-
DiJcurfoLXXVIL 211
DISCURSO LXXVII.
Tirado de hum fermao de SaÔ Pedro Noiafco , e^n
. que o Anãor louva a SaÔ. Pedro , porque deo
tudo para remir cativos , e pedio ejmola
para lhes dar mais.
PEDIR.
828 XT Aô ha coufa que tanto repugnem osP-^-^^^
^ homens como o pedir. He tal eíta re-
pugnância , que nem o fangue a modera , nem o
amor a facilita , nem ainda a mefma ambição, que
he mais, a vence. Deixar he grandeza , pedir heíu-
jeiçaô : deixar he defprezar , pedir he tazeríe deí-
prezado : deixar he abrir as mãos próprias , pedir he
beijar as aíheyas: deixar he comprarfe, porque quem
deixa, livraíe: pedir hevenderfe, porque quem pede,
cativafe: deixar finalmente he acçaõ de quem tem,Nurr.^é9.
pedir he acçaÔ de quem naó tem. E tanto vay de pe-
dir a deixar , quanto vay de naÓ ter a ter. C^jem da o
que tem , dá a fazenda : quem pede para dar , da o
faneiie , e o fangue mais honrado , e mais feníitivo,
que he o que íahe ás faces. Quem dá o que tem , po-
de dar o que vai pouco j mas quem dá o que peue ,
nao pode dar, fenaô o que cufta muito ; porque ne-
nhuma coufa cufta tanto , como o pedir.
829 A palavra mais dura de pronunciar , e que
para fahir da boca huma vez fe engole, e affoga mui-
tas he Peço : Molejium verhum ejt , onerojum , &
dimi[Jo vultu dicendum Rogo , diz Séneca , eacref-
centa , que até aos deoíes nao pedinaÔ os homens,
O i 1^
IH^
212
Vieira abbreviado
>am 14.
Kum. 3 I.
fe o naó fizeífem em fecreto O ce^rtr^u^ u
8,0 o mi? Pi-eÇomais caro , e md cuftofo. '
firn^^ ^"'°'' "'°'1° «íe pedir he agradecer Af
ficTnT^°,'"ST '■•^ P^'^ '"8^«'da6 perde o benefi.
men^f^l-' ''"'" "^gfa^íecido fó pelo agradeci-
daviXas e Den, H ' h "^ P"' "osenilnar a pedir
"«vaj,raças,eueos da huma graça Doroutn P^loc
porque o mefmo agradecer para com Deos heS'
he°.ríSaTf°eír"'^^^' °" ^^^^- P^^^'^-
DISCURSO LXXVIII.
Tirado de hum fermaS das novenas de S. Francifco
Xavier,
PEREGRINARAM.
^^ ^ í^ ^^' P^]« "lundo naõ he a mefma coufa pa-
V-^ ra todos, diz Séneca. Se o homem for ía^
bio
Part, 8.
coJ. 4zp,
Difcurfo IXXFÍÍÍ. 215-
,io , hc peregrinação , fe for nefcio, he deíterro : Sa- sencc_ de
mns peregrinatur.finltm extilat. He peregrinação, -m. lor-
é for íabio ; porque terá muito que aprender do que
'ir, e experimentar, e íerd para elie a nreíma pere^-
^rinacaÔ eíludo. Pelo contrario , fe for nelcio , nao
'irará^outro frudo das terras , que andar , fenao eí.ar
•orada pátria , eifto propriamente he aeíleiro. A
jeo^rafía do mundo melhor íe aprende^iiia no me^
no mundo, que pintada no mappa. AíTim o .iseiaa
DS dous mayores , e mais famofos Medres de numa,
e outra Filofoíiaj Platão, eAriíloteles.
DISCURSO LXXIX.
Tirado de hum fermaÔ de^ nojja Senhora do O.
P R E S E N C, A.
83
Prefenca parfi fer D^efença ha de ter ai- Part. 4:
^ ^guma coufa de ai/fencia: O objeálo daNum. í^;
vifta para fe poder ver ha de fer preféiite j masfeeí-
tá peffaxio , e unido d mefma potencia , he como íe^
eíliveráaufente: h.rdeeílar apartado dos olhos pa-;
ra fe poder ver. Affim a preféhça para íer-iTreíença
na6 'ha de pàíTar a fér inti'ma , nem ha de eítar t^^al-;
mente unida , fenao de algum modo diílante. ^He a
queixa de Narcifo com verdadeira razão em hilto-
riafabulofa: Oíwdcupw ,mecmieji\ tmpemmeMo-
pia fecit : O que deíejo, tenho- o em mim , e porque o
tenho em mim , careço do que tenho. Pois que reme-
dio? Votum in amante novnm\ O remédio helnim-
defejo novo , qual nUnca defejou quem amaíle.h que"
defeio he edeR Vellémquodamommahejje'. Délejar
Tom. II. O 3 que
»nuH
•,*f^
214 Vieira abbreviado
q^ue o que amo, reacfente, e fe aparte de mim.
Parr. 7. 833 A prefcnça íem vífta he mayor pena , que a'
Num. Mo-auíencia ; porque o naõ ver eílando prefente, ou nad
vereftando aufente, ainda que feja a mefma priva-
ção, nau he a mefma dor. Eílar aufente, enaõ ver
he padecer a aufencia na aufencia ; mas nao ver ef-
tando prcfente he padecer a aufencia na prefença.
E fe jfto nas palavras he contradição, que violência
fera na vontade }
DISCURSO LXXX.
1'irado cie humjermao de nojja Senhora da Con-
ceição,
P R I M A Z I A.
Nui,^;^ ^34 X? Eni dizia íia muitos annos hum dos mayo-
uw, X4I ^ jj ^^^ Oradores de Hefpanha : Ninguém po-
de pôí-o pé , fenaó fohre pegada alheya. Boa fatil-
íaeaõ para adefculpa, mas muito defconfolada par,a
odefejo. Deíla mefma fe valeo Terêncio, aquelíe
taõ celebrado Cómico., o qual pedia perdão ao thea-
tro Romano de lhe reprefentar o que já tinha ouvi-
do , e allegava em feu abono , que o mefmo tinhao
íeito os yeihos , e aílim o faziaô os modernos.
Nullum efijam diBum^quodnon àiãimjitpriíis.
Qiiareaquum e/i ms cognojcere , c^ ignofcere,
Quodveteresfaâíítarunty (tcfactunt fwvi.
E íe iílo fe ufava na cabeça do mundo ha mais de mil
annos , que fera hoje entre nós, onde naó he tao fa-
di inventar novos argumentos, como novos trajos .?*
Nam. Í4Z. 835 Eu poréi^j naó me acabo de fujeitar a efte di-
damej
Tespra,. íd
Eun.
Dif curf o IXXXJ. 215
aaiT^e; porque ainda que os antigos beberaÓ primei-
ro nas fontes , nem por iíFo as eígotarao : Mu/tum
eKerunt qui ante nos fnerunt , fed nonperegerunt
diz Séneca: Muito ftzeraÕ os que vierao antes de ,.
nós , mas naÓ perfizeraÓ. Entre o fazer , e o perhizer
ha Jrandes intervallos • Multtm atitem rejiat ope^
ris, multiwique rejlabit. Aíllm como ellcs nccreí-
centaraó fobre o que tinhaÓ dito os mars antigos ,
ailim nós podemos accrefcentar , e deícobrir de no-
vo o que elles naÓ acharaó , como tambcm fobre
v.ós os que depois vierem. lHo efcreveo animoía-
mente o mayor eípirito dos Eíloicos.
DISCURSO LXXXI.
Tirado dehtmjermaoda terceira Dominga do Ad-
vento , em qtie o AuBor moftra haver jmzo de ca-
da hum para comfigo , johre aquella pergunta ,
que os Embaixadores fizerao ao Bauttjta :
Propheta es tu ?
P a o F E T A S.
8^6 rp EnhaÓ os Reys Profetas ao lado e elles tç- ^j^.^^
X raô feguras as fuás glorias. Chritto Pe-
nhor noíTo nafceo entre dous animnes , morreo entre
dousladroens, etransfiguroufe entre dous Profetas.
Entre dous animaes efteve pobre , entre dous la-
dfoens efteve crucificado , e entre dous Profetas eí-
teve gloriofo. Ora já que importa tanto ao Reynô
o ter Profetas, examinemos o Propheta es tu, e veja.
mos por onde íe haÔ d^ conhecer os verdadeiras Fro-
ibtas: PrimeirameRte advirto , -que os Profetas naoN«ra.<,&,
O4 ^^
Num. 59,
21; 6 Wicírcí ahhreviado ^^
íehao de conhecer , nem avaliar pelo numero. Ain-
ttía c}ue.íejaÔ maisas que dizem liuma coufa , neir
pqrjíío íe hao de ter por Profetas. Os quatrocentoí
•n-ofetas contados erao mais, que Micheas , e Mi-
cheaspezadoera mais que os quatrocentos.
Num. 100. «37 SuppoílopDÍs,queos.Pro.feiasfenaôha6de
eonhecer peio numero ; por onde íe hao de conhe-
cer ? Por três coufas : pelos olhos-, pelo coração ,- e
pelos íucceiros. .Conhecemfê os verdadeiros Profe-
tas pelos olhos , porque o ver he o fundamento do
proktizar. Os Profetas na EfcriturachamaÓíe.^/-
dentes\ Os que vem. Só os que vem',íliÕ Profetas. Áf-
lím como a mais nobre profecia fobrenaturai con-
íiíie na vifaÕ , aíFim a mais certa profecia natural
conhfte na viíla: fó quem vio, pode profetizar natu-
raimeíite com certeza. E a razão he muito ciara. A
profecia humana coníiíle no verdadeiro difcurfo • b
diícurfo verdadeiro nao íe pode fazer íem todas as
noticias, e todas as noticias íó as pode ter quem
vio com os olhos. Nenhuma coufa houve mais aíTen-
tada na antiguidade , que fer inhabitavel a Zona tór-
rida; e asrazoens, com que os Filofofos o prova vao,
erao ao parecer taô evidentes , que ninguém havia,
• í .v.^ que^oinegaíle. Deícobrirao finalmente os pilotos, e
^-^^^ marinheiros Portuguezes as coílas de Africa , e da
America , e fouberaõ mais,, e fílolofaraô melhor fo-
\y^Q \\^^m fó dia de viíta , que todos os fabios, eFilq-
fofosdo mundo em cinco mil annos de erpecuiaçaò.
Os diíeurfos de quem .naõ, vio, íao diiairfos,:^s^4Í-
'òcam^sdequem vio, íao profecias. ':^* '^. -'"♦
Nuui. ]oi. ^38 Outro linal da profecia he o coração ; poc-
que conforme cada hum tem o coríiçaô , a ííim profe-
tiza, (Js autigo^ quando qUgriaópi-ognQfticat: ofa-
* ' • • í tUfO,
X
■ DifciirfôZXXXl. 217
tooVracnticavaó osanimaes, conrultavaóihe a,s,..en>-
tranhas , e conforme o que viaó nellas , aílim pror
rnoíticavao. Naô coníultavaõ a cabeça , que he p at-
fento do entendimento , íenao as entranhas , que he
o lugar do amor; porque naÔ prognoílicaya meinor
quem melhor o entende , fenao quem maisama,^ b
efte coílume era geral em toda a Europa antes da vin-
da de Chriílo , e os Portuguczes tmhaõ huma gran-
de fin2ularidade nelle entre os outros gentios. Os
outros confultavaó as entranhas dos animaes, os i or-
tuguezesconfultavaóasentranhas dos homens. AiUni
o diz Strabo no livro 3. Ltifitanis vetus mos erat ^^suab.ub.j;
intefimls hominum exta profpicere , atque nu/e omtj
m , & divtnationes captare ; Era coílume dos anti-
sp^Portuguezes ( diz Strabo) coníultar as entranhas
dos homens , que facr-iftcavaÕ , e delias conjedurar ,
e adivinhar os futuros. AfuperaiçaÕ era falia , mas a
íUlegoria^ era muito verdadeira. Naó ha lume de pro-
fecia (¥*^ is certo no mundo , que coníultar as entra-
nhas dos homens.. E de que, homens.? Detqdos? í^aô;
Dosíacriíkados.; A&eqtJ^anhas.do^ íaciífiçaclos eraf
as que confultavaõ os antigos : primeiro. fazsiaõ o fa-
ciificio, entaô confultavaõ as entranhas. ;Se qpereis
profetizar os futuros, coníultai as,en,tT.at]t^a3,4os.ho.-
.mens facriácados: coníuíteAiíe asentran^has^^os, qpe ,^ ^^^^
fe; facrificaraó , e dos que fe facrificaõ,- e o<f^eQUes ?;.
diílerem , iílb íe tenha por|);Qfecia. Porém cpníultjM:
as entranhas de querir naó fe ífocri íjcopi^ nem .íe facr^-
fica , nem fe ha de facriíicar, hen.ao^cj^er^rpro(eqia^
verdadeiras : h^^^^^^o^f&^i^fS^^^^
.t^ar o futura, c^y-.',- /,'^ -ro-'* v.rre ttyo,, inií^omol^úí j
8^9 O ultím.ò fínal de conhecer os Profetas fao Num. loi,
PS fucceíTos. No DeuteroQomio prométteo Deos a
feu
2 1 S Vieira ahhreviado
fèú pòvb , í^ue lhe daria Profetas, e o final , que Ihg
deo pára os conhecer , foy fó eíle : Hoc vobisjigjmm:
Sltiod Propheta pr^dixerit , é^ non evenerit , boc
Donmmsnmi efi Igcuíhs. Quando duvidares de al-
gum fe he Profeta, òuna6,obfervareis efta regra • Sè
o qué élle diíler antes , fucceder depois , tende-o por
verdadeiro Pròí^ta; mas fe oquê elle diíTer, naõ ííjc-
ceder, tende ò por Profeta falfo. NaÕ pode haver Çv
nal nem mais fácil, nem mais certo. Sabeis aquém
haveis de ter por 'Profetas ? Sabeis dequaes haveis
í^e cuidar , que acertarão com os futuros ? Aquelíes,
ae quem tiveres experiência , que tudo, ou quafi tu-
?>?i ^ Tc^ diíferaô antes , veyo a fucceder depois.
i!ite difame feguio Faraó còm Jofeph , Nabucodo^
hofor cohi Daniel, e todos os Principes prudentes
com feus confelheiros. MasaíFim como ha Profetas
de antes, aííim ha Profetas de depois. Ha muitos
inui prezados de Profetas , que depois de acontece-
rem os mãos fucceílosentaô profetizao pelo arrepen^
láimento ò que fora melhor ter profetizado antes
|»elo difcurfo. Efte foy hum dos tormentos da pai-
xaó de Chrifto. AtaraÓ a Chriílo hum pano pelos
^íhos.^ davaõlhe comas maõs facrilegas jia fagrada
dabeça , e di^iad por eícarneo , que profetiza ífe quera
Matth. %(^'^^ í3eí-a : Prophetiza mbis CJjviJle , qttis eji , qtii te
«í8. fevcugiit. Profeti^at depois de levar na cabeça he
profecia de quem tem os olhos tapados: he efcar-
fieo da paixão de Chrifto. Naó haveis de profetizar
^quem Vos dièa, fena6 quem vos pode dar ; porque he
ineFhor i^eparar os golpes , qufecuralios : e feofuc-
ceíTo moftrar , que a profecia foy certa , aquém â dií^
Ter , tende-o por Profeta : Tfopheta es tu.
%© Já fiabeis , que havemôS ^ íazer ^a -meí niâ
pergun-
m
Dijcurjo LX^XI. 219,
pergunta na noíla terra: Propheta es tu} Qííííí dí-i^^n^ 91.
eis de te ipfo ? Vós , que tantas coufas dizeis de vos ,
fois também Profeta ? Propheta , & plufquam Fro-
pbeta. Osvoflos diícurfos faò vaticínios , as volias
propofi^oens fao revelaçoens , os voíTos didames lao
profecias , os voílos futuros naó tem contingência:
o que fuccede depois , he tudo o que diíTeftes antes:
tendes intelligencias na fecretaria do Efpirito San-
to : naó fe decreta lá couía., que fe na6 regiftc pri-
meiro comvofco. Bafta iílo ? Ainda tendes mais. be
fe traraÓ matérias de eftado , íois hum Profeta Da-
niel : fe íe trataó matérias de guerra , fois hum Pro-
feta Ilaias : fe fe trataô matérias de mar , fois hum
Profeta Jonas : fe íe trataò matérias eccleíiaílieas,
fois hum Profeta Ezechiel : fe fazeis advertências aos
Reys, fois hum Profeta Nathan: fe chorais as calami-
dades do povo , íois hum Profeta Jeremias : fe pedis
foccorros ao Geo , fois hum Profeta Barueh : efe ten-
des algum intereíle, como tendes muitos, fois hum
Profeta Balaô. Muitas graças fejaó dadas a Dej)s ^
que nos deo tantos Profetas na nofla idade. Naô de
balde eftaó prognoilicadas tantas felicidades ao nof-
fo Reyno! Naó poderá elle deixar de fer muito glo-
riofo ,' tendo dentro em fi tantos, e taes Profetas,
DIS*
t? T^íiV.
Parf , I ,
coJ. í.
«ol. 14,
220 Vieira áhbrevkdò%
Kl-
DISCURSO LXXXII.
Uipeíla-Real contra os ejiylos dos Prégcidores.
P R E' G A DORES.
^4í T? Se qufzeííe Deos, que eíle tao iJluílre , c
J^ taò numèrofo auditório fahille hoje t-i6
tíe^enganado da pTégaça6, como vem enganado com
oi-^regadorí Ouçamos o Euangelho, eoucamoJo to-
^10 Que-íodo iie do cafo , que me ievou , e tmuxe de^
^-nriito , que rahii> o Frégíidor Euanoelico a femear'
a palavfã divina: Sémen efiverhufjfiíei O trigo -
Que íemeóuò Pregador Èuanaeíico, diz Ghnfto?-'
que he a pnkvrtr de Deos. Os efpinhosv as pedrps.-B^
caminho , eá terra boa y-em que o trigo cahio , TaÕ òs'
díveríoscôrácoens dos homens. Os efpínhos ^'oé
coraçoens embaraçados com cuidados vcdm'Hqiie-
z^s , com delidas , e neíles afogaíe a palavra dèí^etts.
As .pedras fao os coraçoens duros, e óbílinados', e
neíles fecafe a palavra ãt Deos , e fe nafce, naõ cria
raízes. Os caminhos faô os coraçoens inquietos, e
perturbados com a pallagem , e tropel das coufas do
mu^^ido, humas,queva6, outras,que vem, outras,que
arraveílao , e todas paífaô , e neíks he pizada a pala-
vra de Deos, porque ou a deílittendem , ou a defpre-
zao. Finalmente a terra boa ího os coraçoens bons,
ou os homens de bom coraçK") , e neíles prende, e
íructjfíca a palavra divina com tanta fecundidade, e
abundância , que fe colhe cento por hum : Et fru~
ecit centuplum.
842 Eíle
.■"■■■^-1 I.
DiJcurfoLXXXn. 221
842 Eíte grande frudifícar da palavra de Deos
he o em que reparo hoje : e he huma duvida , ou ad-
miração , que me traz fufpenío , e confufo depois
que lubo ao púlpito. Se a palavra de Deos he taó eíii-
caz, e taó poderofa , como vemos taó pouco fructo
da palavra de Deos ? Diz Chrillo , que a palavra de
Deos frutifica cento por hum : e Já eu me contenta-
ra com que fruaiticafle hum por cento. Se com cada
cem fermoens fe convertera, e emendara hum ho--
mem , já o mundo fora fanio. Eíle argumento de fé
fundado na authoridade de Chrifto fe aperta amda
mais na experiência comparando os tempos paíTados
com osprefentcs.. Lede as hiílorias Ecclefmílicas, e
achallasheis todas cheyas de admiráveis eífeitos da
pregação da palavra de Deos. Tantos peccadores
convertidos , tanta mudança de vida , tanta reforma-
ção de coílumes , os grandes defprezando as rique- '
zas , e vaidades do mundo , os Reys renunciando os
cetros, e as coroas, as mocidades, e as gentilezas
metendoíe pelos defertos , e pelas covas : e hoje ? Na-
da dífto. Nunca na Igreja de Deos houve tantas pré-
gaçoens, nem tantos Pregadores como hoje. Pois íe
tanto fe fêmea a palavra de Deos, como he taó pou-
co o fru6to? Naõ ha hum homem , que em hum fer-
maó entre em fi , e fe refolva : naó ha hum moço ,
que fe arrependa : naó ha hum velho , que^íe deíen-
gane: que he ifto .? Aífim como Deos naó he hoje
menos omnipotente, aíTim a fua palavra naó he ho-
je menos poderofa do que dantes era. Pois fe a pala-
vra de Deos he taó poderofa , íe a palavra de Deos
tem hoje tantos Pregadores ; porque naó vemos hoje
nenhum fruòlio da palavra de Deos ? Eila taó gran-
de, e taó importante duvida fera a matéria do fer-
ina^
Ili
2 2 2 Vieira ahhreviado
inaô. Qiiero começar prégandome a mim. A mim fe-
ra, e também a vós : a mim para aprender a pre-
gar, a vos para que aprendais a ouvir.
843 Fazer pouco fru^ro a palavra de Deos no
mundo pode proceder de hum de três princípios
ou da parte do Pregador, ou da parte do ouvinte, ou
da parte de Deos. Para huma alma fc converter por
meyo defhum fermao ha de haver três concuríos •
ha de concorrer o Pregador com a doutrina períua-
dmdo , ha de concorrer o ouvinte com o entendi-
mento percebendo , ha de concorrer Deos com a
graça allumiando. Para hum homem fe ver a íi mef-
mo fao neceíFarias três couías , oJhos, efpelho, e
Juz. 6e tem eípelho , e he cego , nao fe pode ver por
talta de olhos : íe tem efpeiho , e olhos , e he de noi-
te, nao fe pode ver por falta de Juz Logo ha miíler
Juz , ha mifter efpelho , e ha miíler olhos. Qiie cou-
a he a converfiô de huma alma , fenaô entrar hum
Jiomem dentro em /i , e veríe a íi mefmo ? Para efta
viílafaõ neceílaríos olhos, he neceííliria luz, e he
neceíTario efpelho. O Pregador concorre com o eí-
peího , que he a doutrina : Deos concorre com a luz,
que he a graça : o homem concorre com os olhos,
que he o conhecimento. Ora íuppoílo que a conver-
íao á'^^ almas por meyo da pregação depende á^Çí^^
três concuríos, de Deos, do Pregador, e do ouvin-
te; por qual delles havemos de entender, que falta .í*
ror parte do ouvinte, ou por parte do Pregador, ou
por parte de Deos } Primeiramente por parte' de
Deosnaõ falta, nem pòdefaitar. Eíla propoíiçao he
de fe definida no Concilio Tridentino, e no noílo
Luangelho a temos. Do trigo , que deitou á terra o
ienieador, huma parte fe logrou , e três fe perderão.
E por-
L
DifcurfoLXXXII. 225
B porque le perderão elbs trcs ? A primeira perdeo-
fe, porque a afogarão os efpinhos : a fegunda , por-
que a fejarao as pedras: a terceira , porque a piza-
raoos homens, e a comerão as aves. Il^tohe o que
dizChriílo; mas notai o que nao diz. Naôdiz,que
parte alguma daquelie trigo fe perdeíle por caufa do
Sol, ou da chuva. Acauía. porque orduianamentefe
perdem as íementeiras , he pela deíigualdade , e pe-
la intemperança dos tempos , ou porque fa!ta , 011
fobeja a chuva , ou porque falta, ou fobeja o Sol.
Pois porque naõ introduz Chrifto na parábola do
Euangelho algum trigo, que fe perdeíle por caufa
do Sol , ou da^chuva ? Porque o Sol , e a chuva fao
as influencias da parte do Ceo, e deixar de fruòlificar
a femente da palavra de Deos nunca he por f^alta do
Ceo, fempre he por culpa noífa. Deixará de frutifi-
car a fementeira ou pelo embaraço dos efpinhos, ou
pela dureza das pedras , ou pelos defcaminhos dos
caminhos; mas por falta das influencias do Ceo, iíTa
nunca he , nempòde fer. Sempre Deos eflrá prompto
de fua parte com o Sol para aquentar, e com a chu-
va para regar , com o Sol para allumiar , e com a chu-
va para amollecer, fe os noíTos coraçoens quizerem:
Qtíí folem fíium oriri facit ftiper bmos , ir maios , Mauh. ji
irpliiit fuperjuflos^ & injujios. Se Deos dá o feu ^^
Sol , e a íua chuva aos bons , e aos mãos , aos mãos
que fe quizerem fazer bons , como a negará ? Efte
ponto he taó claro , que nao ha para que nos deter-
mos em mais prova. Qiúd debui f acere vin£ mea^iiz
íi^nonfeci^. diífe o mefmoDeos por Ifaias. Sendo
pois certo,que a palavra divina nao deixa de frudliíi-
car por parte de Deos , feguefe, que ou he por falta
do Pregador , ou por falta dos ouvintes. Por qual
lai, 5 44
224 Vieira ahhreviado
fera ? Os Pregadores deitaô a culpa aos ouvintes
mas naô he affim. Se fora por parte dos ouvintes , nai
íizera a palavra de Deos muito grande frudo; ma
nao fazer nenhum frudo, e nenhum eíFeito naÔ h(
por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou fa(
niaos , ou faô bons : fe fao bons, hz nelles gra^ndí
frudlo a palavra de Deos : fe faó maõs, ainda que nac
façj neiies frudo, faz eíFeito. No Eunngelho o te-
mos. O trigo , que cahio nos efpinhos , nafceo , maj
afíogaraóno: Siviul exorta fpin£ fuffocavertmt il-
lud. O trigo, que cahio nas pedras, nafceo também,
masfecoufe: Et naUim ariút. O trigo, que cahio
na terra boa, naíceo, e frudifícou com grande mul-
tiplicação: Et natumfecitfrucítimcentíipium. De
maneira que o trigo, que cahio na boa terra, naíceo,
e frudifícou : o trigo, que cahio na má terra, naõ fru^
ébfícou , mas nafceo ; porque a palavra de Deos he
tao fecunda, que nos bons faz muito frudo, ehetaô
efficaz, que nos mãos ainda que naó faça frudo, faz
efi-eito: lançada nos efpinhos naõ frudificou , mas
nafceo até nos efpinhos : lançada nas pedras naó fru-
diíicou , mas nafceo até nas pedras. Ospeyores ou-
vintes , que ha na Igreja de Deos, íaõ as pedras, e os
efpinhos. E porque .í^ Os efpinhos por agudos, as pe-
dras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos,
e ouvintes de vontades endurecidas faõ os peyores
que ha. Os ouvintes de entendimentos agudos faó
mãos ouvintes, porque vem fó a ouvir fubtilezas, a
efperar galantarias , a avaliar penfamentos , e ás ve-
zes também a picar a quem os naõ pica : Alitid ceei-
dit inter fpinas : o trigo naõ picou os efpinhos , aii-
jtes os erpinhos o picarão a elle : o mefmo fuccede cá.
Cuidais, que o fermaõ vos picou a vòs^ e naõ he af-
íim,
my»
DifcurfoLXXXII. 225
im , vós íois o que picais o fermao. Por ifto fao máos
Duvintes os de entendimentos agudos,mas os de von-
tades endurecidas ainda Ía6 peyores ; porque hum
intendimento agudo pódeíe ferir pelos melnios nos,
s vencerfe huma agudeza com outra ir.ayor ; mas
contra vontades endurecidas nenhuma coufa apro-
^reita a agudeza , antes damna mais ; porque quanta
as íetaslaó mais agudas, tanto mais fs.cihiiente íe
defpontaô na pedra. Oh Deos nos iivre de vontades
endurecidas, que ainda faô peyores , que as pedras.
A vara de Movfés abrandou as pedras, e nao pode
abrandar huma vontade endurecida : Percuíiens
virga bis filicem , & egreffa funt aquái iargifjmi£. ^^^,^^
Inuuratum ejl cor Pharaonis. E com os ouvintes de 33.
entendimentos agudos, e os ouvintes de vontades '^^"'"- ^°-
endurecidas ferem os mais rebeldes, he tanta a for-
ça da divina palavra , que a pezar da agudeza nafce
nos elpinhos, e a pezar da dureza nafce nas pedras.
Poderamos arguir ao lavrador do Euangeiho de
nao cortar os efpinhos , e de naô arrancar as pedras
antes de femear ; mas de induftria deixou no cam-
po as pedras , e os efpinhos , para que fe yiíTe a força
do que femeava. He tanta a forçada divina palavra,
que fem cortar , nem defpontar efpinhos , nafce en-
tre efpinhos. He tanta a força da divina palavra, que
fem arrancar , nem abrandar pedras, nafce nas pedras.
Coraçoens embaraçados como efpinhos , coraçoens
fecos, e duros como pedras, ouvi a palavra de
Deos, e tende confiança : tomai exemplo neílas
melmas pedras , e neíTes efpinhos. Eíies efpinhos,
e eífas pedras agora refiftem ao femeador do Ceo ,
mas virá tempo, em que eíTas mefmas pedras o accla-
mem , e eíTes meímos efpinhos o coroem. Quando
Tom. II. P o fe-
il!
p
""fp
226 l^ieira abbreviado
Matth. 17 O femeador do Ceo deixou o campo fahindo defte
«L" saíTaf ^^^'"^^^^ ' ^^ P^^^^"^^ ^? quebrarão para íhe fazerem ac-
íunc ib'z9.c!amaçoens, e osefpinhos fe tecerão pára Ihefaze-
Coroa.mdcrem coroa. E fe a palavra de Deos até dos efpinhos,
íuèmníTú- ^ ^^^ pedras triunfa : fe a palavra de Deos até nas pe-
pcr capnc dras , até nos elpinhos nafce , naó triunfar dos alve-
«i"s- drios hoje a palavra de Deos , nem nafcer nos cora-
eoens naõ he por culpa, nem por indifpofiçaõ dos
ouvintes.
844 Suppoftas eftas duas demonftraçoens , fup-
poílo que o frudo , e eííeito da palav ra de Deos naô
íica nem por parte de Deos, nem por parte dos ou-
vintes , feguefe por coníequencia clara , que fica por
parte do Pregador. E aífim he. Sabeis, Chriílaôs,por-
que naô faz fruâío a palavra de Deo^ ? Por culpa dos
Pregadores. Sabeis, Pregadores, porque naó faz fru-
do a palavra de Deos ? Por culpa noífa.
845' Mas como em hum Pregador ha tantas qua-
lidades, e em huma prégaçaô tantas leys , e os Pre-
gadores podem fer culpados em todas , em qual con-
íiílirá efta culpa .? No Pregador podemfe confiderar
cinco circunílancias : a peíToa , a ciência , a matéria,
o eftylo, a voz. A peíTba, que he, a ciência, que tem,
a matéria, que trata , o eftylo, que fegue, a voz, com
que falia. Todas eftas circunftancias temos no Euan-
gelho. Vamolas examinando huma por huma , e buf-
cando efta caufa.
846 Será por ventura o nao fazer frudo hoje a
palavra de Deos pela circunftancia da peíToa } Se-
rá , ^porque antigamente os Pregadores eraó fantos ,
eraó varoens Apoftolicos , e exemplares, e hoje os
Pregadores íaô eu , e outros como eu. Boa razaó he
«fta. A diíiini^aõ do Pregador he a vida, e o exem-
plo.
*
7
Difairfo LXXXIL 22
pio. PoriíTo Chrifto no Euangeího naÔ o compa-
rou ao femeador , fenaò ao que íèmea. Reparaj. Na6
diz Chrifto : Sahio a femear o feineador, fenaõ lahio
a femear, o que fêmea; Ecce exiit, qtit feminat, femi-
nare. Entre o femeador, e oque ferr^er, ha muita dif-
ferença: huma couía hc o foldado, e outra coufa=0
que peleja : huma coufa he o Governador , e outra o
que governa. Di mefma maneira huma coufa he o
femeador, e outra o que íemea: huma coufa he o Pre-
gador , e outra o que prega. O femeador , e o Prega-
dor he nome, oque (emea , e o que prega he acção,
e as acçoens faõ as que dao o fer ao Pregador. Ter
nom.e de Pregador, ou íer Pregador de nom.e nao
importa nada: as acçoens, ávida, o exemplo , as
obras faó as que convertem o mundo. O melhor
conceito, que o Pregador leva ao púlpito, qual cui-
dais que he? He oconceito, que de íua vida tem
os ouvintes. Antigamente convertiaíe o mundo , ho-
je porque fe naó converte ninguém ? Porque hoje ■-
prcgaófe palavras , e penfamentos: antigamente pré-
gavaofe palavras, cobras. Palavras fem obras faò
tiro fem bula , atroaõ , m.as naõ ferem. A funda de
David derrubou ao Gigante ; mas naÔ o derrubou
com o eftalo, fenao com a pedra: Infixtis eft lápis i.Reg.i<í.
in fronte ejí/s. As vozes da arpa de David lançavao4p.
fora os demónios do corpo de Sauí ;^ mas nao eraô
vozes pronunciadas com a boca , eraÕ vozes forma-
das com a maõ : Davui tolhhat citharam , èrperm-- ^ ^^^ ^^^
tiebatmanu lua. Por iílo Chrifto comparou oPré-zj.
gador ao femeador. O pregar , que he í^llar , fazfe
com a boca : o pregar , que he íem.ear, fazfe com a
maõ. Para fallar ao vento b.^ft:a6 palavras, para fal- .
lar ao coracaõ faõ neceíTarias obras. Diz o Euange-
P 2 iho,
228 Vieira abbreviado
. Jho,que a palavra de Deos fru6liíicou cento por hum.
Que quer iílo dizer ? Quer dizer, que de huma pa-
lavra nafcerao cem palavras? Naó. Querdizer, que
de poucas palavras nafcerao muitas obras. Pois pa-
lavras , que frudlificaó obras, vede , fe podem fer fó
palavras ? Quiz Deos converter o mundo , e que fez?
Mandou ao mundo feu Filho feito homem. Notai. O
Filho de Deos, em quanto Deos,he palavra de Deos,
nao he obra de Deos : Genitum^ nonfacium. O Fi-
lho de Deos, em quanto Deos , e homem, he palavra
joan.j. 14. de Deos, e obra ds Deos juntamente : Verbum caro
faâíum ejl. De maneira , que até de fua palavra á^^-
acompanhada de obras naó fiou Deos a convsrfao
dos homens. Na união da palavra de Deos com a ma-
yor obra de Deos confíílio a efficacia da falvaça5 do
mundo. Verbo divino he a palavra divina; mas im-
porta pouco , que as noíias palavras íejao divinas , fe
forem defacompanhadas de obras. A razaô diílo he;
porque as palavras ouvemfe , as obras vemfe : as pa-
lavras entraô pelos ouvidos , as obras entraó pelos
olhos, e a noíTa alma rendefe muito mais pelos
olhos , que pelos ouvidos. No Ceo ninguém ha, que
naÕ ame a Deos , nem poíFa deixar de o amar. Na
terra ha tao poucos , que o amem , todos o ofFendem.
^ Deos naô he o mefmo , e tao digno de fer amado nq
Ceo, como na terra? Pois como no Ceo obriga, e ne-
ceífita a todos a o amarem , e na terra naó ? A razaó
he; porque Deos no Ceo he Deos vifto, Deos na
terra he Deos ouvido. No Çeo entra o conhecimen-
Joan. I. 3. to de Deos á alma pelos olhos: Videbinitts euniji-
^' cuti e/l : na terra entralhe o conhecimento de Deos
Rom 10 P^'^^ ouvidos : Fides ex auditu , e o que entra pelos
36. ouvidos crêíe, o que entra pelos oihos neceflíta.
Yiraõ
éH
DifcurfoLXXXII. 229
ta. Viraò os ouvintes em nòs o que nos ouvem a
nós, e o abalo , e os efteitos do íermaô feriao mui-
to outros.
847 Vai hum Pregador pregando a paixão , che-
ga ao Pretório de Piiatos , conta como a Chrifto o fi-
zeraóRey de zombaria, diz ^ que tomarão huma pur-
pura , elhapozeraô aos hombros : ouve aquilío .0
auditório muito attento. Diz y que tecerão huma co-
roa de efpinhos , e que lha pregarão na cabeça ,: ou-
vem todos com a mefma attençao. Diz mais, que
lhe ataraô as maôs , e lhe meterão nellas huma cana
por cetro: continua o mefmo filencio, e a meíma
íuípenfaó nos ouvintes. Correfe nefie psílb huma
cortina, apparece a imagem do Ecceòomo: eis todos
proftrados por terra, eis todos a bater nos peitos , eis
as lagrimas , eis os gritos , eis os ahiridos , eis as bo-
fetadas , que he iílo ? Que appareceo de novo neíla
Igreja } Tudo, o que defcubrio aquelia cortina , tinha
ja dito o Pregador. Já tinha dito daquella purpura ,
jd tinha dito daquella coroa , e daqueiies efpinhos ,
já tinha dito daquelle cetro , e daquella cana. Pois fe
ifto entaó nad fez abalo nenhum , como faz agora
tanto ? Porque entaô era Ecce homo ouvido , e ago-
ra hc Ecce bomo \iíko. A relação do Pregador entra-
va pelos ouvidos , a reprefentaçao daquella figura
entra pelos olhos. Sabem, Padres Pregadores. porque
fizem pouco abalo os noílbs fermoens ? Porque naó
pregamos aos olhos , pregamos fó aos ouvidos. Por-
que convertia o Bautiíia tantos peccadores ? Porque
aíTim como as fuás palavras prégavaõ aos ouvidos , o
feu exemplo pregava aosoihcs.^ As palavras do Bnu- ^
tifta prégavaò penitencia : Agite pceniientímn : Ho- M^-ch 3.1,
mens fazei penitencia , e o exemplo clamava : Ecce
Tom. 11.
P
homOt
230
Vieira ahhr
homo: Eis;aqui eftá o homem , que he o retrato da pe-
nitencia , e da afpereza. As palavras do Bautiíla pié-
gavaô jejum, e reprehendiao os regalos , edeaiafias
da gula , e o exemplo clamava : Ecce homo , Eis aoui
eílá o homem , que fe fuílenta de gafanhotos, e mel
íyh'eílre. As palavras do Bautiíla prégavaocompofi-
çaó , e modeítia , e condemnavaõ a ícberba , e a vai-
dade das galas, e o exemplo clamava : Ecce homo \
Eis aqui eítá o homem vefíido de peiks de camelo
com as cerdas, e cilicio á raiz dac^rne. As palavras
do Bautiíb prégavaó defpegos , e retiros do mundo,
e fugir das occafioens , e dos homens, e o exemplo
cbmava: Ecce ^í?wí?:Eís aqui o homem, que deixou as
Cortes,e as Cidades,e vive em hum deíerto, e em hu-
ma cova. Se os ouvintes ouvem huma coufa , e vem
Gcnef. 3o.^^'^^3) ^omo fe hao de converter? Jacob punha as va-
39 Fafruni-ras manchadas diante das ovelhas, quando conce-
oveslmuel^^'"^^' e daqui procedia , que os cordeiros nafciaõ
rentur vir- manchados. Se quando os ouvintes percebem osnof-
feTem^rir '"^^ ^^"^^^^^^ ' ^^"^ díaotc dos olhos as noífas man-
aS. ""''^^^^j como haõ de conceber virtudes ? Se a minha
vida he apologia contra a minha doutrina : íe as mi-
nhas palavras vaó já refutadas nas minhas obras: íe
huma coufa he o femeador , e outra o que fêmea , co-
mo fe ha de f^izer frudo ?
048 Muito boa j e muito forte razão era eíla de
naó fazer frudlo a palavra de Deos; mas tem contra
Si o exemplo, e experiência de Jonas. Jonas fugiti-
vo de Deos, defobediente, contumaz, e ainda de-
pois de engulido, evomitiKlo iracundo, impacien-
te , pouco caritativo , pouco miíbricordiofo , e mais
zeloíb, e amigo da própria eílimaçao, queda honra
dç Deos ; e íalvaçaõ das almas , defejofo de ver íub-
veft>
Jonar i,
3' 4.
:r
Bifcurfo LXX
vertida a Niiiive, e de a ver íubverter com feusolhos,
havendo nclla tantos mil innoceiítes : com tudo eiíe
mefmo iiomem com hum fermaÕ converteo o mayor
Rev , a mavor Corte . e o mayór Reyno do mundo ,
e nlô de liornens fieis , fenaô de gentios idolatras.
Outra he logo a cauD , que bufcamos. (^ual ler.. .
849 Serd por venturl o eftyio , que !u>je te ufa
nos púlpitos ? Hara eftyio taóempeçado , hum efi^
loà difficuitolb , hum eftyio taó aftedado , hum el-
tvio tiõ encontrado a toda a arte, e a toda a natuic-
;° BoVr" z"" he também efta. O eftyio ha de fer
muito fácil, e muito natural PorriloChrn'io com-
parou o pregar ao íeniear : Exat , qtajcmnat ,,c-
mnare Comparou Chrifto oprégr.r ao enlear; por-
í é o femear L huma arte , que tem ma.s de nature-
za que de arte. Nas outras artes tudo he arte , na
MJfica tudo íe faz por compiifcna Architeclura tu-
do fe faz por regra , na Arithmetica tudo fe taz por
conta , na Geometria tudo fe faz por medida. O U-
mearnaõ heaffim. Hehuma artefera arte, caya on-
de cahir Vede como femeava o nolio lavraaor uo
Euantrelho Cahia o trigo nos efpmhos , e nalcia :
jnJ cecidit inter jpinas , ir fimul exorta fpna
Cahia o trigo nas pedrss , c nafcia : Abua uctdit ,u-
perpetram, 6^ natum. Cahia o tr.go na terra boa ,
e naícia : Aliudccddh in terram honam , & natum.
Hiaotrigocahindo.ehianafcendo ,^^„^. „„
8,-0 Affim ha de fer o pregar. Hao de cahjr as
couías, e haÕdenafcer: taõ naturaes, que vaoca-
hindo : taô próprias , que venhao nafcenao. Qiie dií-
fcrente he o eftvlo violento, e tyrannico , que hoje
fe u(a > Ver vir bs triftes palfos da Efcntura como
quem vem ao martyrio : huns vem acarretados, ou-
Vieira ahhreviado
232
Íemlnr^.T^'''"'' """■''^ vem'eftiradôs^ outro,
naõ vem H/r'.U ''■^' vem defpedaçados , k audo
nao vem. Ha tal tyrannia? EntaÕ nomeyo difto- Que
vantar, efta nocahir : Cectdit. Notai huma allesTorl^
propr.a da noíTa lingua. O trigo do eSo aTn d
que cah,o quatro vezes , íódetresnafceo p/r ofer
n^ao v,r naícendo ha de ter três modos decah r Ha
de cahir com queda, ha de cahir com cadencia ha
dencia para as palavras , o cafo para a difpoíicaõ A
^idas, eemfeu lugar, haõ de ter queda: a cadencia
)t P""" '^ r ''""' ' P°'1"^ "^õ hiõ de ler efcabr^
def!ff.4 T ^'° ' P°"5"^ ''=" ''^ ^«^ t«3 nntural , e taó
antigo Pregador , que houve no mundo, foy o Ceo •
oCeo he Pregador, deve de ter fermoens, e deve de
er palavras. Sim tem , diz o meímo David : tem pa-
ZTr Vf^ '^^/moens, e mais muito bem ouvidos.
^^^J»nt loqueU , mquefermones, quorum mn au-
dmntur vocês eorum. E quaes.faô eftes lermoens, e
eft;s palavras do Ceo .' As palavras íaõ as eftrellas
e o c r '? if ' ,^,o"^pofiça6 , a ordem , a armonia '
1 r.5 '^^"^^•/,ede como diz o eftylo de prégaj
do Ceo cora o eftyio, que Chriíto eníinou na terraj
1 Hum"
pf. 18
DiJciirfoLXX^II- 255
Hum , e outro he femear : a terra femeada de trigo ,
o Ceo femeado de eftrellas. O pregar ha de ler como
quem fêmea , e nao como quem ladrilha , ou azuleja:
ordenado, mas como as eftrellas: Síe/I^ manemesuk. ji
/>/ ordíiiefuo. Todas as eftrellas eftaÒ por fua ordem^ ^°-
mas he ordem , que faz influencia : nao he ordem,
que faca lavor. NaÓ fez Deos o Ceo em xadrez de
eftrellas , como os Pregadores fazem o fermao em xa-
drez de palavras. Sede huma parte eftá brcnco, da
outra ha de eftar negro : fe de huma parte efta dia ,
da outra ha de eftar noite : fe de huma parte dizem
luz , da outra haÓ de dizer fombra : fe de huma par-
te dizem deícco, da outra haó de dizer fubio. Baí-
ta que naõ havemos de ver em hum íermaó duas pala-
vras em paz ? Todas haõ de eftar fempre em frontei-
ra com o feu contrario ? Aprendamos do Ceo o ef-
ty lo da difpofiçaó , e também o das palavras. Como
haó de feras palavras? Como as eftrellas. As eftrel-
las í ao muito diftindas, e muito claras. Aífimhade
fer o eftylo da pregação , muito diftindo, e muito
claro. Enem por iílo temais, que pareça o eftylo bai-
xo: as eftrellas faõ muito diftindas, e muito claras,
e altiíTimas. O eftvlo pode fer muito claro ,e muito
alto : tao claro , que o entendaô os^ que naõ fabem ,
e tao alto , que tenhaó muito , que entender nelie os
que fabem. O ruftico acha documentos nas eftrellas
para a fua lavoura , e o mareante para a fua navega-
ção, e o Mathematico para as fuás obfervaçoens, e
paraos feus juizos. De maneira, que o ruftico, eo
mareante, que nao fabem ler, nem efcrever, enten-
dem as eftrellas , e o Mathematico, que tem lido
quantos efcreveraõ, nao alcança a entender quan-
to nellas ha. Tal pôde fer o fermaô : eftrellas , que
todos
éÊÊ
234, ' Vieira ahhreviado
todos as vem , e muito poucos as medem. Sim Padre.
Porém eíie eílylo de prégnr nao he pregar culto!
Mas foííe! EftedelVenturado eílvlo, que hoieíeuía,
os que o querem honrar, chama^liie culto, os que o
condemnaó, chamaoihe efcuro ; mas ainda lhe fazem
muita honra. O eílylo culto naõ he efcuro , he ne-
gro, e negro bucal , e muito cerrado. Hepoííivel,
que íomos Portuguezes, e havemos de ouvir hum
Pregador em Portuguez, e naõ havemos deentender
o que dfz } Affim como ha Lexicon para o Grego , e
Calepino para o Latim , aílim he neccílarÍQ haver
hum vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara
para os nomes próprios; porque es cultos tem def-
bautizados os Santos, ecada Áuthor, queaííegao, he
hum^enigma. Affim o diífe o Cetro penitente : affim
o dííle o Euangelifta Apelíes: aííim o diíle a Águia
de Africa , o Favo de Claraval , a Purpura de Belém,
a Boca de ouro. Ha tal modo de allegar ! O Cetro pe-
nitente dizem que he David, como fe todos os ce-
tros naõ foraó penitencia. OEuangeliíla Apelies ,
que he S. Lucas, o Favo de Claraval S. Bernardo,
a Águia de Africa Santo Agoítinho, a Purpurada
Belém S. Jeronymo, a Boca de ouro S. Chryfoílo-
ino, Equem quitaria ao outro cuidar, que a Purpura
de Belém heHerodes, que a Águia de Africa he Ci-
pião j e que a Boca de ouro he Midas ? Se houveííe
hum advogfído, queaiiegaííe aílim a Bartholo , e
Baldo , havíeis de fiar delie o volFo pleito ? Se hou-
veíFe hum homem, que aííím fallaíle na converíaçaõ,
nan.o havíeis de ter por nefcio ? Pois o que na con-
verfaçao feria necedade , como ha de íérdifcriçaó
no púlpito.?*
852 Boa me parecia também eíla razaó \ mas co-
mo
DifcurfoLXXXII. 235
mo os cGitos pdo polido, e dludado fe defendem
com o grande N.izuinzcno, com Ambrofio , com
Chrvío!ogo,comLenÓ, epeloeícuio, e duro com
Clemente Alexandrino , com Tertulliano, com ba-
filio de Seleucia , com Zeno Veroneníe , e outros ,
na6 podemos negar a reverencia a tan^anhos Auí 10-
res, poílo que defejaramos nos que fe prezao ue be-
berdeíles nos , a íua profundidade. Qual lera logo
a cauía de noílaqueixa?
8^^ Será pela matéria, ou matérias, q^ie tomao
os Preí^íidores ? Uíafe hoje o modo , que chamao ue
anoruibr o Euangelho , em que íomaõ muitas maté-
rias , levanta6 muitos aílumptos , e quem levanta-
muita caça , e nao fegue nenhuma , naô he muito ,
que {e recolha com as mãos vazias. Boa razão he tam-
bém eíta O fermaô ha de ter hum íó aíTumpto , e hu-
ma íó matéria. Por iífo Chrlfto diííe , que o lavra-
dor do Euangelho nao femeara muitos géneros de
fementes , íenaõ huma íó : Exiit , q!JÍ fcmmat , Je-
mbiarefemem Semeou huma femente íó , e nao mui-
tas ; porque o fermaó ha de ter huma íó matéria , e
naõ muitas matérias. Se o lavrador íemeara primei-
ro trigo , e fobre o trigo femeara cente^/o , e fobre o
centeyo femeara milho groílo, e miúdo, e íobre o
milho femeara cevada, que havia de niícer ? Huma
mata brava , huma confufaô verde. Eis aqui o que
acontece aos fermoens defte género. Como íemeao
tanta variedade , naõ podem colher couía certa.
Quem fêmea mifturas, mal pode colher trigo. Se hu-
ma nao fizeíTe hum bordo para o Norte, outro para
o Sul , outro para Leíle , outro para Oeíle , como
poderia fazer viagem ? Por iíTo nos púlpitos fe traba-
lha tanto , e fe navega taó pouco. Hum aíTumpto
vat
2^6 Vieira ahhreviado
vai para hum vento , outro aíTumpto vai para outro
vento, que fe ha de colher, fcnaô vento ? OBiutilla
convertm muitos em Judea^ mas quantas materi.s
Matth.3.3. tomava? Huma fó matéria: Parate uiam Domini'
A preparação para o Reyno de Chrifto. Jo„as con^
Jon . . íf'^''''.?'^^"^^^^^^^v mas quantos aílumptos tomou?
J°"- 5- 4. Hum fo aíTumpto : Adhuc quadraginta dies & Ni-
mvefubverteti.r: A fubverfaó da Cidade. De manei-
ra , que Jonas em quarenta dias pregou hum íó aíTum-
pto , e nós queremos pregar quarenta aílbmptosem
numa hora? PcriíTonaô pregamos nenhum O fer-
mao ha de íer de huma fó cor, ha de ter hum fó ob-
jecto , hum fó aífumpto , huma fó matéria.
854 Ha de tomar o Pregador huma fó matéria
ha de diffiniiia , para que fe conheça , ha de di vjdilla'
para que fediílinga , ha deprovalia com a Efcritura!
na de declaralia com a razaõ , ha de confírmaila com
o exemplo, ha de amplificai ia com as cauías, com os
eíteitos 5 com as circunftancias , com as conveniên-
cias, que fe-haô de feguir, com os inconvenientes
que fe devem evitar. Ha de refponder ás duvidas'
ha de fatisfazer ás difficuJdades, ha de impugnar, e
refutar com toda a força da eloquência os argumen-
tos contrários , e depois diílo ha de colher, ha de
apertar , ha de concluir , ha de perfuadir , ha de aca-
bar. Ifto he fermao , ifto he pregar , e o que naõ he
líto, hefallar de mais alto. Naô nego, nem quero di-
. 2er , que o íeriraõ ní.õ haja de ter variedade de dif-
curfos; mas eífes hao de nafcer todos da mefma ma-
téria , e continuar , e acabar nella. Qiiereis ver tudo
ifto com os olhos ? Ora vede. Huma arvore tem raí-
zes, tem troncos , tem ramos , tem folhas, tem va-
ras, tem flores, tem frudos. AíFim ha de fer o fer-
j
')
DifcurfoLXXXU. 25
7
maÓ : ha de ter raizes fortes , e folidas , porque ha de
ler fundado no Euangelho : ha de ter hum tronco ,
porque ha de ter hum íó aHumpto , e tratar huma fo
matéria. Defte tronco haÓ de nafcer diverfos ramos,
queíaõ diverfos difcurfos, mas nafcidos da meíma
matéria , e continuados nella : eftes ramos nao hao de
feríecos, fenao cubertos de folhas , porque os d lí-
curfos haÔ de fer veftidos , e ornados de palavras. Ha
de ter efta arvore varas , ^ae faó a reprehenfao dos
vícios , ha de ter flores , que l^.as fentenças e por
remate de tudo ha de ter frudos, que he o trudo, e o
fim, a que fe ha de ordenar o fermao. De maneira,
que ha de haver frudos, e ha de haver flores , ha ae
haver varas , ha de haver tolhas , ha de haver ramos;
mas tudo nafcido , e fundado em hum ló tronco, que
he huma fó matéria. Se tudo faÓ troncos^, nao he ler-
maÓ, he madeira : fe tudo faÓ ramos , nao he fermaj?,
fao maravalhas : fe tudo faÓ folhas , naÓ he Jermao ,
faó verfas : fe tudo faÓ varas , naô he fermao , he tei-
xe • fe tudo faô flores, naõ he fermaÔ, he ramalhete :
ferem tudo frudos , naÓ pode fer ; porque nao ha
frudosfem arvore. Aflim que nefta arvore, a que po-
demos chamar arvore da vida , ha de haver o provei-
tofo do frudo , o formoío das flores , o rigorofo das
varas , o veftido das folhas , o eftendido dos ramos ;
mas tudo ifto nafcido, e formado de hum fo tronco,
e eíFe nao levantado no ar, fenao fundado nas raízes
do Euangelho : Seminare femen. Eis aqui como hao
de fer os fermoens: eis aqui como nao fao, Eallim
naô he muito , que fe naÓ faça frudo com elles.
855 Tudo o que tenho dito poderá demonltrar
largamente naô fó com os preceitos dos Ariílot eles,
dosTullios, dos Quintilianos, mas com a practica
obfer-
' »^- ^^ '"'
^^
2 3 8 F/^/r^ ahbreviado
fjTrt'' fo Principe dos Oradores Euangelicos S.
João Chry foílomo , de S. Boíilio Magno , l Bernar-
do , b. Cypriano . e com .s famoíiíTimas oracoens de
^.GregonoNazianzeno, Meílre de ambas as Ipre-
wf ^?f ^ "o'^^' "'"^'^^^ ^'^^^^^s. comovem
SantoAgoibnhoS. Gregório, e muitos outros íe
achao osEuangelhos apoíHiíados com nome de fer-
inôens , e homiiins , huma couía he expor , e outra
pregnr , huma enfmar , e outra perfuadir. E defta m\^
tima hequeeu fallo, com a qual tanto frudo fizeraÓ
no mundo ôanto António de Pádua , e S. Vicente
Eerrer. Mas nem por iíFo entendo, que feja ainda eí-
ta a verdadeira cauia 5 que bufco.
856 Será por ventura a f^ilta de ciência , que ha
em muu-os Pregadores ? Muitos Pregadores iia , que
VI vem^do que naô coiheraô , e femeao o que naÓ tra-
baHiao. Depois da fentença de Adaõ a terra naÓ
coítuma darfruílo, fenaõ a quem come o íeu paó
com o íuor do íeu roíío. Boa razaô parece também
f/r 4 ^'^r ,^' ^^ ^e P''égar o feu^e naÔ o ai heyo.Por
ío diz Chnílo, que femeou o lavrador do Euapae-
Jiio o tngo íeu : Sémen fuum : Semeou o feu . e naó o
aioeyo; porque o aJheyo , e o furtado naôhe bom
pnraíemear, amda que o furto feia de ciência. Có-
rneo Heva o pomo da ciência , e queixavp.me eu an-
tignmente defta noíTa m.ly , já que comeo o pomo ,
porque lhe nao guardou as pevides. NaÕ feria bem
que chegaíie a nos a arvore , já que nos chegarão os
encargos delia ? Pois porque o náo Ç^z aílim Eleva ?
i:'orqu€ o pomo era furtado ., e o aiheyo he bom para
comer,' mas naÓ he bom para femear : he bom para
comer , porque dizem que he íaborofo : naÔ he boiri
para femear, porque naõ nafce. Algutm terá expe-
rimen-
Patioclo
armas cem ai ar-^
DifciirfoLXXXII. 259
rimentado , que o alheyo naõ nafce em cafa ; maò ef-
teia certo , que fe nafce , naõ ha de deitar raízes , e o
que naotem raizes, naõ pode dar fruao. Eis aqui
porque muitos Pregadores naõ fazem frua© ; porque
pregão o alheyo , e naõ o feu : Sémen jutim. O pre-
gar he entrar em batalha com os vicios, e armas ^^^^^ ^
alheyas, ainda que lejaõ as de Achilles , a nmguem ^j^^j,^,^ ^^
deraõ vidoria. Quando David fahio a campo com o vencido, c
Gigante, ofFereceolhe Saul as fuás armas , mas elle'«°^í°-
naõ as quiz aceitar. Com armas alheyas ninguém po-
de vencer , ainda que feja Daf id. As armas de bauí
fó fervem a Saul, e as de David a David : e mais
aproveita hum cajado , e hiuna funda própria , que a
efpada , e a lança alheya. Pregador, que peleja com
as armas alheyas , naÕ hajais medo , que derrube Ov-
gante. .
857 Fez Chrifto aos Apoftolos pefcadores de ho- p,,,.^^ ^^^
mens, que fov ordenallos de Pregadores ; equefa-fíen piíca-
ziaÕos Apoílólos? Diz o texto, que eftavaÒ Refi ;';;;;^°'^'-
cientesretiafua\ Refazendo as redes fuás: eraõ aSjvi.nh. 4.
redes dos Apoílolos , e naõ eraõ alheyas. Notai : Re- ^u
tiafiia : naõ diz , que eraõ fuás , porque as cornpra-
raó , fenaõque eraõ fuás, porque as faziaô : naõ eraõ
íuas , porque lhe cuftaraô o feu dinheiro , fenaõ por-
que lhe cuítavaõ o feu trabalho. Defta maneira eraó
as redes fuás , e porque defta maneira eraõ íuas , por
iífo eraõ redes de pefcadores, que haviaõ de pefçar
homens. Com redes alheyas , ou feitas por maó
alheya podemfe peícar peixes ; homens naõ fe podem
pefcar. Arazaó diílo he ; porque neíla pelca de en-
tendimentos fó quem fabe fazer a rede, fabe fazer
o lanço. Como íe faz huma rede .? Do fio, edonó
fe compõem a malha : quem naõ enfia , nem ata , co*
'i» , ^-
240 Vieira abhreviado
íno ha de fazer rede? EquemnaÓfabeenílnar, nem
1 star , como ha de pefcar homens ? A rede tem
chumbada , que vai ao í^ndo , e tem cortiça , que na-
da em cima da agua. A pregação tem humas couías
de mais pezo, e de mais fundo , e tem outras mais
fuperhciaes e ma .s leves : e governar o leve , e o pe-
^ado fo o fabe fazer quem faz a rede. Na boca de
quem naofaz a pregação, até o chumbo he cortiça
As razoens nao haôde íer enxertadas, haó de fernaf-
cidas. O pregar naó he recitar. As razoens próprias
finícem do entendimento: as alheyas vaô pegadas á
niemoria, e os homens naofe convencem pela memo-
na , íenao pelo entendimento. Veyo o Efpirito San-
to fobre os Apoítolos, e quando as Jinguas defciaô
c^o Ceo , cuiaava eu , que le lhes haviaÔ de pôr na
boca; mas ellasforaõfe pôr na cabeça. Pois porque
na cabeça , e nao na boca , que he o lugar da lingua ?
1 orque o que ha de dizer o Pregador, naÓ lhe ha de
íamr fo da boca ; halhe de lahir pela boca , mas da
cabeça. O que fahe fó da boca , pára nos ouvidos ■ o
que nafce do juízo, penetra , e convence o entendi-
mento.
858 Com tudo eu nao rne firmo de todo nefl-a ra.
zao ; porque do grande Bautifta (abemos , que pre-
gou o que tinha pregado ífaias, como notou S. Lu-
cas , e naõ com outro nome fe naô de íermoens : Pr^-
dtcans baptifmuni pmiitenti^ jn remiffionem pecca-
torum , Jkiit fcriptum eji in libro fermonum Ifata
Propketa, Deixo o que tomou Santo Ambrofio de
S. Bafiho , S. Profpero , e Beda de Santo Agoftinho,
Iheohlato, e Euthymio de S Joaó Chryfoftomo.
859 Será finalmente a caufa , que tanto ha buíca-
mos; a voz, com que hoje failaó os Pregadores } An-
tiga-
■i
Difcurfo LXXXÍÍ. 241
tigamcnte ptcgavíió bradando, hoje prégao conver-
fando. Antigamente a primeira parte do Pregador
sra boa voz, e bom peito. E verdadeiramente como
o mundo fe governa tonto pelos fentidos, podem ás
vezes mais os brados , que a razão. Boa era também
efta ; mas naô a podemos provar com o femeador ,
porque jd dilTemos , que naó era oíRcio de boca. Po-
rém o que nos negou o Euángelho no femeador me-
tafórico, nosdeo no femeador verdadeiro , que he
Chriílo. Tanto que Chrifto acabou a paraboia , diz
o Euangelho , que começou o Senhor a bradar: FI^clvlz. 8. «.
dicens clamabat. Bradou o Senhor , e naô arrazoou
fobre a paraboia ; porque era tal o auditório , que
íiou mais dos brados, que da razaõ.
860 Perguntarão ao Bautifta , quem era. Ref-
pondeo elle : Ego vox clamantis in deferto : Fiu fou joan. u
huma voz , que anda bradando nefte deíerto. Defla '5*
maneira fe defínio o Bautiíta. A definição do Prega-
dor, cuidava eu, que era : Voz, que arrazoa, enaô:
Voz, que brada. Pois porque fe definio o Bautifta pe-
lo bradar , e naó pelo arrazoar: naô pek razaô , fenaõ
pelos brados ? Porque ha muita gente neíle mundo,
com quem podem mais os brados, que a razaõ, e
taeseraõ aquelles,aquem oBautifta pregava. Vede- o
claramente em Chrifto. Depois que Pilatos exami-
nou as accufaçoens , que contra eíle fe davaô , lavou
as macs , e diíTe : Ego niillam caufam ijtvejiio in ho- ^^^ ^^^
mine iJlo\ Eu nenhuma caufa acho nefte homem. 14»
Nefte tempo todo o povo , e os Efcribas bradavaó
de fora , que foíTe crucificado : At illi magis clama- ^,{3^^. 17*
bant : Crucifígatiir . De maneira , que Chrifto tinha 13.
por fi a razaô , e tinha contra fi os brados. El qual po-
de mais ? PodéraÔ mais os brados , que a razaô. A
Tom. II. Q^ razão
!■
^42 Vieira abhreviado
razaó nao valeo para o livrar, os brados bailarão pa-
ra o pôr na cruz. E como os brados no mundo po-
dem tanto , bem he que bradem alguma vez os Pre-
gadores , bem he que gritem. Por illb Ifaias chamou
líai.éo 8. aos Pregadores nuvens: (hú funt ijli , qui ut nubes
voJant ? A nuvem tem relâmpago , tem trovão , e
tem rayo. Relâmpago para os olhos , trovaô para os
ouvidos , rayo para o coração : com o relâmpago alu-
mia , com o trovão aíTombra , com o rayo mata. Mas
o rayo fere a hum, o relâmpago a muitos, otrovaôa
todos. AíTim ha de fer a voz do Pregador , hum tro-
vaô do Ceo , que aíTombre , e faça tremer o mundo,
86i Mas que diremos á oração de Moyíés ? Co7í-
Deut. 32. crefcat ut pluvia doãrina mea : fiuat ut ros elo-
quiummeiím. Defça a minha doutrina como chuva
do Ceo , e a minha voz , e as minhas palavras como
orvalho, que fediílilla brandamente, e fem ruido.
Que diremos ao exemplo ordinário de Chriíto , ta5
ifai. 42. X. celebrado por Ifaias ? Non clamabit , neque audietur
vox ejusforis : Naó clamará , naõ bradará , mas fal-
Iara com huma voz taõ moderada , que íe nao poíla
ouvir fora. E naÕ ha duvida , que o praticar familiar-
mente, e o fallar mais ao ouvido, que aos ouvidos,
naó fó concilia mayor attençaõ , mas naturalmente,
e fem força fe infmua , entra , penetra , e fe mete na
alma.
8Ó2 Em conclufaõ , que a caufa de nao fazerem
hoje fru6to os Pregadores com a palavra de Deos
nem he a circunftancia da peflba : Qui feminat , nem
a do eílylo : Seininare , nem a da matéria : Sémen,
nem a da ciência : Suum , nem a da voz: Clamabat.
Moyfés tinha fraca voz, Amos tinha grofleiro eíly-
lo, Salamaó multiplicava, e variava os aíFumptos,
BaJaÓ
Exod. 4.
10.
«Éi
Difiurfo IXXXÍI. 243^
Balaô naó tinha exemplo de vida, o fcu animal naô
tinha ciência , e com tudo todos eltes fallando , per-
luadiaó , e convenciaó. Pois fe nenhuma deitas ra-
zoens, que difcorremos , nem todas cilas juntas iao a
cauía principal, nem baftante do poucofrudlo , que
hoje faz a palavra de Deos ; qual diremos finalmen-
te, que he a verdadeira caufa ?
863 As paíavr3S,que tomei por them3,o dizem :
Sémen ejl verhiim Dei. Sabeis ( Chriílaós) a caufa,
porque fe faz hoje taô pouco frudo com tantas pré-
gGçoens ? He porque as palavras dos Pregadores fao
palavras, mas naõ fao palavras de Deos. Fallo do
que ordinariamente íe ouve. A palavra de Deos (^co-
mo dizia ) he tao poderofa , e tao efficaz , que naó fó
na boa terra faz frudo , mas até nas pedras , e nos eí-
pinhos nafce. Mas fe as palavras dos Pregadores naó
fao palavras de Deos , que muito , que naõ tenhaó a
efficacia , e Os effeitos de palavra de Deos ? Ventumoi^^ 8. 7.
Jeminabimt , ir turbmem colligent , diz o Efpirito
Santo. Quem fêmea ventos , colhe tempeftades. Se
os Pregadores femeaô vento , fe o que fe prega he
vaidade , fe naõ fe prega a palavra de Deos, como naó
ha a Igreja de Deos de correr tormenta em vez de
colher fru 61o?
864 Mas dirmeheis; Padre, os Pregadores de ho-
je naó prégaõ do Euangelho ? Naó prégaó das íagra-
das Efcrituras ? Pois como naõ prégaõ a palavra de
Deos.í^ Eífeheomal. Prégaõ as palavras de Deos ;
mas naõ prégaõ a palavra de Deos : Qtti habet fer- ^^^^^
monem metim , loquatur fennonem meum vere ^ áx^Q ^{^
Deos por Jeremias. As palavras de Deos pregadas
no fentido,em que Deos as diífe, fao palavra de Deos^,
mas pregadas no featido , que nós queremos, naõ
QjL Iao
ím, zj.
244 Vieira ahbreviado
faô palavra de Deos , antes pode fer palavra do de
momo. Tentou o demónio a Chriílo , aquefízeíTí
Matth,4 4.das pedras paõ. Reípondeolhe o Senhor : Non info
lo pane vtvit homo , fcdin omni verbo , quod procedi i
de ore Dei, Efta íentença era tirada do cap. 8. de
JJeííteronomw. Vendo o demónio , que o Senhor fí
defendia da tentação com a Eícritura , leva-o ao tenv
pio , e allegando o lugar do Pfalmo 90. dizlhe deás
?f. 50. 1 1. maneira : Mitte te deorfum \fcriptum eft enim , quia
AngeUs fms Deus mandavit de te , ut ciijiodiant te
m omnibus viis tuis : Deitate dahi abaixo , porque
promettido eflá nas fagradas Eícrituras , que os An-
jos te tomarão nos braços , para que te naó faças mal.
De forte, que Chrifto defendeofe do diabo com a
Efcritura , e o diabo tentou a Chrifto com a Efcritu-
ra. Todas as Eícrituras íaó palavra de Deos ; pois fe
Chrifto toma a Eícritura para fe defender do diabo ,
como toma o diabo a Efcritura para tentar a Chrifto?
A razaó he ; porque Chrifto tomava as palavras da
Eícritura em feu verdadeiro fentido , e o diabo to-
mava as palavras da Efcritura em fentido alheyo, e
torcido : eas mefmas palavras, que tomadas em- ver-
dadeiro fentido íliõ palavras de Deos , tomadas em
fentido alheyo íaó armas do diabo : as mefmas pa-
lavras^, que tomadas no íentido , em que Deos as dif-
fe,^fa6 defeza, tomadas no fentido, em que Deos as
naòdiíTe, faõ tentação. Eisaqui a tentação, com que
e/ita6 quiz o diabo derrubar a Chrifto , e com que
hoje lhe faz a meíma guerra do pinnaculo do templo.
O pinnaculo do templo he o púlpito; porque he o lu-
gar mais alto delle.O diabo tentou a Chrifto no defer-
to, tentou o no monte, tentou o no templo: no de-
íerto tentou-o com a gula , no monte tentou-o com
aam^
Difciirjo LXXXIl. 245
a ambição , no templo tentou-o com as Efcrituras
mal interpretadas: e eíla he a tentação , de que mais
padece hoje a igreja , eque em muitijs parles tem
derrubado delia, íe naô a Chriílo, a fua fé.
8Ó5. Dizeime, Pregadores, ( aqiielles, com quem
eu tallo, indignos verdadeiramente de tao fagrado
nome) dizeime: EíTes aílumptos inúteis , que tantas
vezes levantais , eíFasemprezas ao voílo parecer agu-
das , que profcguis, achaíles-as alguma vez nos Pro-
fetas do teftamento veího , ou nos Apoftolos , e
Euangeliílas do teílamento novo , ou no Author de
ambos os teftamentos , Ciiriílo ? He certo que naõ.
Porque deíde a primeira palavra do Genefis até á
ultima do Apocaiypíe naõ ha tal coufa em todas as
Efcrituras. Pois íe nas Ef:rituras naõ ha o que di-
zeis , e o que pregais , como cuidais , q ue pregais a
palavra deDeos? Mais: Nefles lugares, neíTes tex-
tos , que allegais para prova do que dizeis , he eíle o
fentido , em que Deos os diíTe ? He eíTe o fentido, era
que os entendem os Padres da Igreja ? He eíFe o fen-
tido da mefma Grammatica das palavras ? Naó por
certo. Porque muitas vezes as tomais peio que toao,
e naô peio que figniFicaó, e talvez nem peio que
toaó; pois fe naó. he eíle o fentido das palavras de
Deos, fegueíe que naô faó palavras de Deos. Efe
naó faõ palavras de Deos ; que nos queixamos de que
nao façaó fruclo as prégnçoens.í^ Bafta que havemos
de trazer as palavras de Deos a que digao o que nós
queremos, e naó havemos de querer dizer o queel-
las dizem ! E então ver cabecear o auditório a efras
couías , quando deviamos de dar com a cabeça pelas
paredes de as ou vir! Verdadeiramente naóíeideque
ma-s meefpante, fedos noííos conceitos, íe dos vof-
Tom. II. a? ^^s
leira abbr
fos applaufos ? Oh que bem levantou o Pregador !
Aíljm he ; mas que levantou ? Hum falío teílimunho
ao texto , outro falío teftimunho ao Santo , outro ao
entendimento , e ao íentido de ambos. Entaô que Ce
converta o mundo com falíbs teílimunhos da palavra
Coi. 7z. ^^ D^<^s ! Qiie muito logo , que as noíTas imagina-
çoens^, as noíTas vaidades, e as noíTas fabulas naó
tenhaõ a efficacia da palavra de Deos!
866 Miferaveis de nós , e miferaveis dos noííos
tempos ; pois nelles fe veyo a cumprir a profecia de
a. Tim.43. S, Paulo \ Erit tempus , cum fanam doâirinam non
fnjiinebunt\ Virá tempo, diz S.Paulo, em que os
homens naó foíFreráô a doutrina fã: Sedadfuadefi-
der ia coacervabuntjibi magijlros prurientes auri-
bus; Mas para feu appetite teráô grande numero de
Pregadores feitos a montão , e fem efcolha , os quaes
nnô façaó mais, que adularlhes as orelhas : Averita-
te quidem auditum avertent , ad fabulas aiitejn con-
vertentur : Fecharão os ouvidos á verdade , e abri-
ioshaõ ás fabulas. Fabula tem duas fignificaçoens :
quer dizer fingimento , e quer dizer comedia , e tu-
do íaõ muitas prégaçoens deíle tempo. Saó fingi-
mento, porque faôíubtilezas, epenfamentos aéreos
fem fundamento de verdade : íao comedia , porqu©
os ouvintes vem á pregação , como á comedia , e ha
Pregadores , que vem ao púlpito como comediantes.
Huraa das felicidades , que fe contava entre as do
tempo prefente , era acabaremfe as comedias em Por-
tugal; mas naó foy aíllm. Naó fe acabarão, muda-
raôíe : paílaraófe do theatro ao púlpito. Naô cui-
deis , que encareço em chamar comedias a muitas
prégaçoens das que hoje fe ufaó, Tomara ter aqui as
comedias de Plauto , de Terêncio , de Séneca , e ve-
ríeis
DifcurfoL^^Xll. 247
ricis, lenao nchaveis nellas muitos defenganos da vi-
da , e vaidade do mundo , muitos pontos de doutri-
na moral muito mais verdadeiros, e muito m;i!S ío-
lidos, do que hoje íe ouvem nos púlpitos. Gr-ànúo
mileria por certo , que fe achem m.ayores documen-
tos para a vida nos verfos de hum Poeta prof^mo ,^e
gentio , que nas prégoçoens de hum orador Chnftaó,
e muitas vezes, (obre Chi iftaó , Religiofo !
\^67 Pouco diíTe S. Pauio em ihes chamar come-
dia ; porque muitos fermoens ha , que naõ fao come-
dia, lâo íarça. Sobe talvez ao púlpito hum Pregador
dos que profeílbõ fer mortos ao mundo , vcílido , ou
amortalhado em hum habito de penitencia , (que to-
dos , mais , ou menos afperos , íiió de penitencia , e
todos , defdeo dia que osprofeílamos, mortalhas) a
viíh he de horror, o nome de reverencia, a matéria
de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar, e
a expedaçaô de filencio : e quando eíle fe rompeo ,
que he o que fe ouve ? Se neíle auditório eíliveiíe
hum eftrangeiro , que nos naó conheceíle , e viíie eu-
trar eíle homiem afallar em publico naquelles trajos,
eem tal lugar, cuidaria, que havia de ouvir huma
trombeta do Ceo , que cada palavra fua havia de íer
humrayo para os coraçoens , que havia de pregar
com o zelo , e com o fervor de hum Eiias , que com
a voz, com o geíto, e com as acçoens havia de fazer
em pó , e em cinza os vicios. Ifto havia descuidar o
eftrangeiro. E nós , que he o que vemos? Vemos ía-
hir da boca daquelle homem aíFim naquelles trajos
huma voz muito aíFeélada , e muito polida , e logo
começar com muito defgarro, a que ? A motivar deí-
vellos^ a acreditar empenhos , a requintar finezas', a
lifongear precipicios, a brilhar auroras , a derreter
0^4 cryí-
248 Vieira abhreviado
cryílaes, a defmayar jaíinins, a toucar primaveras,
e OLicras mil indignidades deftas. NaÔ he ifto farça a
iriais digna de rifo, fe naõ fora tanto para chorar ? Na
comedia o Reyveíle como Rey, e falia como Rey,
olacíiyoveftecomo Jacayo, e falia como lacayo, o
f uftico vefte como ruílico , e filia como ruftico ; mas
hum Pregador veílir como Religiofo , e faliar co-
mo : naõ o quero dizer por reverencia do lugar. Já
que o púlpito hetheatro, e o fermaô comedia, fe
quer naó faremos bem a figura ? Naô diraó as pala-
vras com o veíHdo , e com o oíficio ? Affim pregava
S. Paulo , aííim prégavaô aquelles Patriarcas , que fe
veftiraô, e nos veíUraõ deíles hábitos ? Naõ louva-
mos, e naõ admiramos o leu pregar? Naõ nos preza-
mos de feiís filhos ? Pois porque os naó imitamos ?
Porque naô pregamos, como elíes prégavaô ? Nefte
mefmo púlpito pregou S. Franciíco Xavier, neííe
mefmo púlpito pregou S. Francifco deBorja, e eu
que tenho o mefmo habito ; porque naõ pregarei a
lua doutrina, jáqu^me faltaofeu efpirito?
868 Dírmeheis o que a mim me dizem , e oque
já tenhj) experimentado : que íe pregamos aífim ,
zombaõ de nós os ouvintes , e naÕ goftaó de ouvir.
Oh boa razaó para hum íervo de Jeíu Chriílo í
Zombem , e naõ goílem embora, e façamos nósnof-
fo oíFicio. Que Medico ha , que repare no goílo do
enfermo, quando trata de lhe darfaude.í^ Sarem , e
naô goílem: falvemfe, e amarguelhes, que para iílo
Coi. 8a. fomos Médicos das almas. Em fim para que os Pre-
gadores laibaô como haô de pregar , e os ouvintes
aquém haô de ouvir, acabo com hum exemplo do
noílb Reyno, equaíi dos noílbs tempos. Prégavaô
em Coimbra dous famoíos Pregadores , ambos bem
conhe-
«■Mi
DifcurfoLXXXn. 249
conhecidos por wus efcritos : nao os nomeyo , por-
que os hei de defigualar. Altercouíe entre alguns
Doutores da Univeríidade, qual dos dous toíie ma-
vor Pregador ? E como naô ha juizo Tem inchnaçao ,
íuins diziaó , efíe : outros, aquelle. Mi^s hutii Lente,
que entre os mais tinha inayor authondade , concluio
defta maneira : Entre dous fujeitos taÔ grandes nao
me atrevo a interpor juizo : íó direi huma diferen-
ça , que fempre experimento. Quando ouço hum,
iayo do fermaô muito contente do Pregador : quan-
do ouço outro, fayo muito defconteníe de mim. Com
iílo tenho acabado. Algum dia vos enganaftes tanto
comigo , que íahieis do fermaÔ muito contentes do
Predador : agora quizera eu deíenganarvos tanto ,
que^^lahiíTeis muito defcontentes de vós.f^emeadores
do Euangelho, eis aqui o que devemos pertender nos
noíTos íermoens , naõ que os homens fayaô contentes
de nós , íenaô que fayaô muito deícontentes de li:
naóque lhes pareçaô bem os noíFos conceitos ; mas
que lhes parecaõ mal os íeus coftumes , as fuás vidas,
os feus paflatempos , as fuás ambiçoens , e em fim to«
dofi os feus peccados. Com tanto que fe defconten-
tem de fi , defcontentemfe embora de nós : Si hoim-
nibus placerem , Chrijii Jervus mn elJem , dizia o
mayor de todos os Pregadores , S. Paulo : Se eu con-
tentara aos homens, naô feria fervo de Deos. Oh
contentemos a Deos , e acabemos de naô fazer cafo
dos homens!
DIS«
2 5 o Vieira ahhreviado
DISCURSO LXXXÍII.
Tirado de hum Jermao da terceira Dominga poíl
Epiphani2m , pregado na Sede Lisboa hbre eftas
palavras : Si vis, potes. Mattii. 8.
aU E R E R , E PODER.
Part. 6. g^Q
Nusn. zjg. ^
Qiierer , e opoder, fe divididos fao nada,
juntos , e unidos fao tudo. O querer fem
o poder he fraco , o poder (cm o querer he ociofo , e
defte rnodo divididos faô nada. Pelo contrario o
querer com o poder he efficaz , o poder com o querer
headivo, e defte modo juntos, e unidos íaõ. tudo.
Aíííin confiderava o querer , e o poder de Ghriílo ,
certo do Teu poder , e duvidoíb do leu querer , hum
homem pobre , e enfermo , o qual na hiftoria do pre-
fente Euangelho proftrado a íeus divinos pés lhe pe-
dio, que oremediaíle, dizendo, que fe quizelle po*
^'''^^•' -dia '.Si vis, potes. ^ ^ f
Num. Z60. ^70 Oh que grande ventura he requerer diante
dehum Principe, que quer, epóde/ Afiim feria tam-
bém a mayor de todas as defgraças efperar o remédio
de algum taó pouco poderofo, que naó poíía, e de
tao má vontade, que nao queira. A Augullo Cefar
difle Marco Tullio prudente , e elegantemente, que
a nature-^a , e a fortuna lhe tinhao dado, huma a ma-
yor , e outra a melhor coufa, que podiaô , para fazer
bem a muitos : Nec fortuna tua maius quam ut pof-
fts , nec natura tua melius (juani ut velis , confèr-
vare quamplurimos : A mayor coufa , que pode dar
afortuna a hum Principe, he o poder, e a melhor,
que
Difcurfo LXXXIII. 2 5 1
que lhe pode dar a natureza, he o^ querer para po-
der, e querer fazer bem a todos.
871 Mas como o poder, e querer fó naquelleNum.xíi.
fupremo Senhor , que pode qunnto quer , laó iguaes,
e pelo contrario no homem o poder he pouco , e li-
mitado , e o querer fempre iníaciavel , e íem limite ,
como fe poderá na contrariedade deíh difcordia
achar algum meyo de uniaõ ? Reconheço a difiicul-
dade ; mas por iiYo íerá ella todo o emprego do meu
difcurfo : Si vis , potes : fobre eftas duas palavras
confideradas variamente por todos os modos , com
que íe podem combinar , veremos como fe ha de ajuf-
tar o querer com o poder , e o poder com o querer.
He huma das mais importantes matérias, que fe de-
ve enfinar ao mundo , e de que depende toda a felici-
dade humana.
872 Se bufcarmos com verdadeira confideraçaoNum. z6z.
a caufa de todas as ruinas, e males do mundo, acha-
remos , que naô ÍÒ a principal , fenaõ a total , e a yni-
ca he nao acabarem os homens de concordar o feu
querer com o feu poder : Si vis , potes. A raiz^ defte
veneno mortal nalcida naó fó na terra , fenao tam-
bém no Ceo he a inclinação natural, com que toda
a creatura dotada de vontade livre naó fó appetece
fempre fer mais do que he , fenaô também querer
mais do que pode. Qtje quiz o Anjo no Ceo, eque
quiz o homem no Paraifo ? Ambos quizeraó fer co-
mo Deos. Menos me admiro das fuás vontades , que
dos feus entendimentos Vem cá Lúcifer , vem cá
Adaõ : tu Anjo , e o mais fabio de todos os Anjosj
tu homem , e o mais fabio de todos os homens ^na5
entendeis , e conheceis com evidencia , que naõ po-
deis fer como Deos ? Pois como appeteceis o que
nao
252 Vieira abbreviado
naõ podeis ? Porque tal he a cegueira de hum enten-
dimento ambicioío , e a ambição de huma vontade
livre. Ha de querer mais do que pôde, ainda que co-
nheça , que he impoíFivel. O poder , ou poderes do
homem eraÕ fobre todos os peixes do miir, fobre to-
das as aves do ar , e fobre todos os animaes da terra :
o poder, e poderes do Anjo eraó íbbre a terra , fobre
o mar , fobre o ar , fobre o fogo , e nao lo fobre to-
dos os eí^mentos , mis também fobre todos os cor-
pos celeíles , e íbbre todos os aPcros, e léus movi-
mentos. E porque ainda havia no mundo outro po-
der mayor , poUo que eíle foífe o de Deos , nem o
Anjo , nem o homem fe contentarão com poder o
quepodiaS. Eque fe leguiodaqui ? Aruina univer-
fal do mundo, a ruina da terceira parte dos Anjos, e
a ruina de todos os homens.
Num. Zé 3. ^75 M^s deixados os Anjos , que naó fao capazes
de emenda , fa "liemos com os homens , que fe podem
emendar^ fe quizerem. Começando pelos mayores
corpos políticos , que fao os Reynos , qual he a cau-
fa de tantos fe terem perdido , de que a penas íe con-
ferva a memoria , e outros fe verem taô arruinados,
e enfraquecidos, fenic) o appetite defordenado , e
cego de quererem os Reys mais do que podem .? Da-
qui íe feguem as guerras , e a ambição de novas , c
temerárias emprezas , como as de Membroth : daqui
as fabricas de cdiíicios magnifícos, e infanos, como
a torre de Babel : daqui a prodigalidade deexceífi-
vas mercês, amontoando em hum o que fetira a to-
dos, como asde Aflueroem Aman: daqui as feftas,
e jogos públicos com os apparatos mais monílruo-
íbs, que extraordinários , fem outro fim , que afalfa
oítentaçaô , e vaidade , do que naó ha, nem he. E
^'-'•' quando
l
m
Dijcurfo LXXXIB- 2 5 5
quando as defpezas de tudo ifto deverão íahir do que
fobejaíFe nos erários, e thefouros Reaes , que lera
onde fe vem tiradas , e efprimidas todas do fangue ,
do íuor , das lagrimas dos vaflailos carregados , econ-
fumidos com tributos fobre tributos , chorando os
naturaes, para que fe alegrem os eftranhos, e anti-
cipandofe as exéquias á pátria , por onde felhe deve-
ra procurar a faude?
874 SalamaÓ foy oRey , que em todo o íeu rey-
nado ufou da mais alta , e íegura paz de quantos hou-
ve dentro , e fora de Ifrael; mas foy tal a guerra , que
elle fez á fua mefma Corte , e Reyno com os prodi-
gioíos efpedaculos de grandeza , e mageítade , cuja
fama trazia a Jerufalem todas as naçoens do mundo,
que o mefmo Salamaó foy o que deílruio o que
tanto enobreceo, e exaltou : e naô por outra razão,
ou defeito , fenaó porque fendo mais poderofo , que
todos , fe naó contentou com o que podia. A prata no
feu tempo, diz a fagrada Efcritura , que era tanta
em Jeruíalem, como as pedras da rua , e nefte mefmo
tempo eraó tantos, taó multiplicados , e taó exceífi-
vos os tributos, com que o gloriofo , e miferavel po-
vo fuftentava a fama de fer chamado feu hum tal
Rey, que naó podendo fupportar hum pezo taó into-
lerável , com que em toda a vida os opprimio, e nem
na morte os aliviou, a primeira coufa , que pedirão
a /eu fuccelTor Roboaó, foy a íufpenfaõ, e remédio
deílas oppreíloens. Mas como o filho, que fenaô
contentava com menos que poder ainda mais , que
feu pay , naó déífe ouvidos a huma taó juftificada
queixa , rebellados os mefmos vaflailos lhe negarão
a obediência , e de doze Tribus , de que conftava o
Reino, perdeo em hum dia os dez , 05 quaes nem nos
dias
2 54 Vieira ahbreviado
dias de RoboaÓ , nem nos de todos feusdefcendentes
le unirão, ou íujeitaraÓ já mais d meíma Coroa.
hom/ncf ^^ ""^^^ "''."''^ 'P^''^''^ ^^^ quererem os
l.oiiiens fempre mais do que podem , nem na fobera-
nni dos que podem tudo íe farta ; que fera dahi abai-
.^ xo ÚQiái^ os mayores entre os grandes até os mini-
nos entre os pequenos? Ooffical pode viver como
olticiai^ e quer viver como efcudeiro : o efcudeiro
pode viver como efcudeiro, e quer viver como fí-
tíaigo : o hdalgo pode viver como fidalgo , e quer
viver como titulo : o titu lo pode viver cSmo titíiio.
e quer viver como Principe. E que fe fegue deíle
tao defordenado querer ? O menos he , que por que-
rerem^o que na6 podem , venhaô a naò poder o que
podiao. Qiianto fobe violentamente o querer para
cima, tanto defce fem querer o poder nara baixo.Ou-
VI o que agora direi como provérbio Quem quer
mais do que Jhe convém, perde o que quer , e o que
Num.iíj. ^y6 No teftamento velho ElReyBalthafar, por-
que qu iz mais do que podia , Liventus efi ininus \ha-
Dan 5. ^•J. bcns E doude veyo eíle menos, fenao daquelle mais?
Kejpexífhs ad amplius , (^ eccefaâíum eji mimiy ,
Agg..i...diz o Profeta Aggco. No teílamento novo o filho
•frodigo, porque no gaftnr, e alardear quiz o que
nao podia , nem pedia o efiiado de filho , veyo a pe^
Y^^-^5' uir por mifericordia a fortuna de criado : Facmc/l'
ctit unum demercenariistuis. Qiiantos vieraó a íer-
vir , porque quizeraó fer mais fervidos , ou fervidos
de mais do quepodiaó manter? Se apenas podeis fuf-
tentar hum cavallo com hum mochila, porque ha-
veis de ter huma carroça com oito lacayos? Elum he
aíteiçoado á caça , e quando os caens andao luzidios,
e ana-
i
Difcurjo rKXXIII. 2 5 5
janaflidos , veriheheis os criados pallidos, e mortos
i fome. O outro he prezado , ou picado de pinturas,
í quando elle com falfo teftimunho ridículo chama
los feus quadros originaes de Ticiano , os pagens , e
DS lacayos fao verdadeiramente copias de Lazaro.
Que direi do que para fahir hum dia aos touros , e
DÍlentar cincoenta lacayos veílidos de tela , empe-
nhou o morgado, e as commendas por muitos annos?
As fortes feriaó quaes quiz a ventura , mas a peyor,
e mais certa foy a da pobre cafa.Elle poderia ter hum
dia de Pafchoa , mas ella ha de jejuar dez annos de
Q^iarefma. Eis aqui o que vem a naó poder os que
querem mais do que podem. Com eífa mal confide-
rada vaidade que he o que adquiriiles , ou o que per-
deftes ? Perdeftes a felicidade de nao pedir , perdef-
tes a liberdade de naó dever, perdeftes o deícanfo
de naó pagar ; e o que adquiriiles com o que tinheis,
e com o que naó tinheis, forao as invejas dos ami-
gos, as murmuraçoensdosíjzudos, as perfeguiçoens
dosacredores, e a defgraça, e máo conceito dos mef-
inos Principes , aquém quizefteslifonjear, efervir ;
porque como vos ha de fiar a fua fazenda quem aí-
ílm vê , que efperdiçais a voíFa ?
877 Mas ifto paífe embora , porque he damno
particular. O máohe, que para reftaurar eftes def-
manchos , que fempre fe devem , e nunca fe pagaó ,
quem os eftá continuamente pagando porvarios mo-
dos, he o commum. O official de penna , a cujos raí-
gos mede o' regimento as regras , e conta as letras,
fe ellequer gaftarfem conta, e fem medida , que ha
de fazer ? Troca as fuás pennas com as dos gavioens^
e minhotos , e naõ ha ave de rapina , que tanto leve
nas unhas. O letrado, ou julgador, cuja authorida-
de
li' ,,
2^6 Vieira ahhreviado
de confiava antigamente de huma mula mal penfnda
Gom íua guaídrapa preta , fe hoje fora de cafa ha de
fuftentar a liteira, e dentro as alfayas,qiie lhe rcfpon-
dem , nao bailando os ordenados para a terceira par-
te do anno, quem hadefupprir a deípeza das outras
duas partes , fenaõ as partes, e a juíliça ? O que en-'
tré fumos de nobreza, e fidalguia vive á mercê da
fuajierdade , a qual quando as novidades nao men-
tiaÕ , ló dava para farja no veraô, e baeta no inver-
no, agora que já ás lans fe naõ fabe o nome, de que
fe ha de veitir fendo o gallo da fua aldeã , fenaõ das
pennas dos que podem menos ? O mercante , que to-
mou os aífentos , ou contratos reaes de publico , e fe
contratou de fecreto com os zeladores da flizenda
do mefmo Rey , de que modo fe ha de foldar, quan-
do fe vê quebrado, fenaõ com o foldo, e fardas dos
miferaveis foidados, tornando a comprar os já com-
prados miniflros, para que lhe fubaó os preços , e
ajufle as quebras?
878 Infinita coufa feria fe houveíTemos de dif-
correr por todos os eílados aílim da paz como da
guerra , com que a fazem cruel á Republica os mef-
nios, que tinhaõ obrigação de a defender. Com ra-
zão difíe Séneca , que a riqueza fe faz de muitas po-
brezas: Divitia ex paupertatibus fiunt ; porque pa-
ra enriquecer hum homem fe empobrecem outros, e
para fe levantar, ou reíufcitar huma cafa fe arrui-
nao , e fepultaó muitas. Os empenhos do morgado
tirallos ha o governo , o cativeiro das commendas re-
millohaõ as penfoens j e fe a limitação dos ordena-
dos naõ abrange a tanto , eflendeliahaó lem limite os
delbrdenados. O que naõ pode pagar a gineta, pa-
galíoha a companhia: o que naõ pode pagar o baílaõ,
pagai-
raf, pagalloha o Brafil, pagalloha a Africa , pagallo-
ía a índia. E para que poucos , que querem mais ao
lue podem íejaó fiageilos , aíFolaçao , e rayos aas
Juatro partes do mundo, íe lhe dará licença por el-
-rito , para que polFaó quanto quizerem.
' 879 Lembrame a eíle propofito hum apophthegma
loquelle famofo legislador dos Gregos Sólon : i-^u-
Kus erit in tyrajmidem , dimtantim migrat m cor-
ma. Quer dizer a primeira parte, que do luxo naf-
:era a tyrnnnia , pçíUma filha de máo pay. E íegun-
Joos gemidos doi tyrannizados, cujas íeráôeftas ty-
-annias , fenao dos que eu vou fallando ? Todos que-
dem mais do que podem , nenhum fe contenta com o
leceíTario, todos alpiraô ao íbperíiuo, e iílo he o que
fe chama luxo. Luxo na peíToa , luxo no veílido , iu-
ío na mefa , luxo na caía , luxo no eílrado , luxo nos
filhos, luxo nos criados, e criadas, e onde naõ baí-
ta o próprio , claro eílá, que ou por arte , ou j3or vio-
lência fe ha de roubar o alheyo , que eftas faõ mais,
DU menos defcubertas as tyrannias : Liixus erit hi
tyrannidem. E porque naó pareça difficultofo^, ou
impróprio, que de huma caufa taò branda ,^e tao ae-
leitavcl , como o luxo, nafça hum eíFeito taó duro , e
tao cruel , como a tyrannia , declara a primema par-
te da fua fentença Sólon com a comparação da fe-
gunda , que verdadeiramente he fubtiliíTima : Dum
fanum migrat in cor nua. O paílo,com que fe regala,
e fe engroíTa o touro , naó he o feno brando , e para
elle ta5 faborofo , que o come de dia , e o torna a re-
comerde noite? Pois eíle feno na teílâ do niefmo
bruto he o que fe conv^crte naquellas duas pontas
durns , fortes , e agudas, que íaó o inítrumento , e as
c Tom. II. K armas
;li9!i;
2^S Vieira abbreviado
armas de toda a íua fereza. Lançayo no corro , e ve-
reis como a todos remete , a to.los atropelia , a huns
bora para o ar , a outros piza , a outros fere , ou mj-
ta j e o que melhor livrou da fua fúria , foy deixando-
Jhe a capa oas mefmas pontas. Se o luxo he o feno,
quonto mais fe come delle , e fe gofta , e fe rumia ,
tanto mayores íerao as tyrannias, e mais feros os él-
tragos: Dum fienum mígrat in comua. Boa mate-'
ria íe me oíFerecia agora para faiiar das durezas tao
cruéis, e das agudezas taõ fubtis , e das armaçoens-
tao bem armadas deftas armas da tyrannia. Mas o di-
to bafrará , para que fe entenda a verdade do funda-
mento , que puz , ou fuppuz , como primeira pedra
defte tao importante difcurfo. Eque a caufa, e raiz
detodososdamnos particulares, e públicos, que pa-
decem as famílias, as Communidades , e os Reynos,
e com que fe eftá indo a pique o mundo , he nao
acabar o appetite , a ambição , e a cegueira humana
de tomar as medidas ao que pode , e ajuftar o leu que-
rer ao feu poder : Si vis , pot£S.
Nuin. Z68. <^^o Para reduzirmos á pratica efte tao neceíTario
ajuílamento , a prim.eira diligencia , que ha de fazer
todo o homem prudente de íi para conifigo , e fem
paixaô , nem amor próprio , he medir o feu poder :
Luc.i 4.18. ^v/j ex vohis volens turrim adi fie are , non priys je^
dens comptitat fumptus , qtíi necèjfarii funt ^Jiba-
heat adperficiendum ?
Num. 17 j . 881 Feito aíli m o exame do poder, e feito, como
dizia , fem paixão , nem amor próprio, para fer bem
feito , feguefe a el-eiçaô do querer , em que coníille
todo o acerto, e pode haver m.uitos erros. Ou eu
poíFo q.uerer fomente o que poílb , ou querer mais
do que poíTo; ou querer menos do que polFo. E co*
«10
Dijcurfo LXXXIII. 259
mo neítes três modos de ajuílar o querer com o po-
der, ou igualando, ou excedendo, ou diminuindo
fe pode alterar muito a devida proporção, vejanos
pelamelma ordem qual ít-ra a mais acertada, e por
iíFo mefmo a mais conveniente.
882 Qiianto á primeira de querer íómente o que Num. ^74.
polio , he tao excellente , e adequada cila proporção,
que por hum modo admirável parece fe iguala o que-
rer, e poder humano com a vontade, e omnipotência
divina. Qiial he aexcellencia, e íoberania da vontade,
e omnipotência divina.? He que Deos pode quanio
quer. Pois íe Deos pckic quanto quer , e eu quero íb
quanto poílo, eíle he o caio, como diz Séneca em ou-
tro , no qual pode o homem competir na felicidade
com Deos. Porque fe Deos pôde quanto quer.eu tam-
bém polToquanto quero, porque fó quero quí^iuo pof-
fo. Aííimonotoucom-fubtil, e bem fundada adver-
tência o douto , e engenhofo Auòcor da arte da von-
tade. He verdodc, que Deos pode fazer mais do que
quer; mas também o homem pode querer mais do que
pode: e a proporção do querer com o poder tanto
confirte em Deos em fe medir o poder divino com a
vontade divina , como no homem em íe medir a vori-
tadí:hjmana com o poder humano. Daqui fe fcgue)
qos muito poderofos , e os que pouco podem., todos
íao igunes neíla felicidade , em que fe fazem tar íe-
melnantes a Deos. Porque fe huns , e outros fe con-
formao , e contentao com o que podem. , nem o mui-
to de huns he mais , nem o pouco de outros he menos;
porque todos dentro da medida do feu poder tem tu-
do quanto querem. Oh que ditoío,e bem ordenado vi-
v.ria univerfalmente o mundo, fe todos penetraf-
fem o mtefioF deite ftgredo , e naÔ traípaíliàíkm o
R2 feu
2 6 o Vieira ahbreviaão
feti querer além das rayas do íeu poder ! %
Num. 27J. 883 Advirtaõ porém aqui principalmente os po-
derofos , que o que dizemos do poder , fó fe entende
do que licita , e jultamente fe pôde. O iilicito , e in-
juílo nunca fe pode fazer, ainda que fe faça. Mas
he tal a joòlancia dos poderofos, e mais daquelles,
que cuidaó , que podem tudo , que tem por afronta
do íeu poder cuidarfe , que tem limite o que podem.
Aílim como o Juiz naõ pode exceder as leys do Rey,
aílim o Rey naõ pôde exceder as da razaó, e juíliça.
A EIRey Creonte diífe Medea : Sijudicas , cognofce:
ftregnas ^jube\ Se obras como Juiz toma conheci-
mento da caufa , mas íe obras como Rey mandão
que quizeres. A íegunda parte defte aforifmo he ti-
rada dos archivos naô íó da tyrannia , mas do atheif-
mo : e naõ fó a feguem os Reys, fensó também os
Juizes. Pilatos era Juiz com vezes de Rey, porque
era em Judea Locotenente doCefar : e vede o fober-
biiTimo conceito , que tinha dos feus poderes. Co-
mo Chrifto Senhor noíFo accufado pelos Judeos naõ
refpondeííe a huma pergunta, que lhe fizia Pilatos,
joan. 19. diííelhe aífim : Mihi non loqueris } A mim me naó
*°' refpondes ? Nefcis quiapoteftatem habeo crucifigere
te^ à^potejiatem habeo dimittere te } Naõ fabes que
tenho poder para te crucificar, e que tenho poder pa-
ra te livrar } Naõ , Pilatos: naó fabe iílo Chriílo. EíTe
homem, q teíis em pé diante de ti , he o mais fabio de
todos os homens, e juntamente Deos : e nem como
homem , nem como Deos fabe o que dizes ; porque
dizes o que naõ he , nem pode fer. Se eífe homem he
reo , naõ tens poder para o livrar , e fe he innocente,
Jiaõ tens poder para o crucificar. E porque? Porque
fe he reo, naõ o podes abíolver da culpa , e fe naó
tem
DífcurfoLXXXIII. 2^r
tem culpa , nao lhe podes condemnar a innocencia.
Mas quantos innocentes vemos conJemnados , e
quantos culpados abíolutos , tudo pela falia , e arro-
gante oílenracaõ dos que cuidaô , que podem tudo !
- 884 Ora eu vos quero conceder o que nao ten-Num. t?^.
dcs, e fuppondo com.volco, que verdadeiramente
podeis , ouvi agora o que ignorais, e por ventura
nunca ouviíles. Cuidais que o poder todo confiíle
em naohaver coufa alguma, a que fe naõ eílenda o
voílo poder; e he eng>no manueíto. O poder todo
conílfteem poder algumas coufas, e nao poder ou-
tras : coníiíle em poder o licito , c juílo , e em^nao
poderoillicito, einjuílo: e fó quem pode, e nao po-
de defta maneira, he todo podei ofo.Naô he para- :
doxo meu , fenaõ verdade de fé divinamente Qxpli-
cada por Santo Agoftinho: Qj/nm mídtanonpoteji
Deus , ér omnipotens eft ? Immoonvdipotens efi, qum
ijla mnpoteft. E a razaó he , porque o Jer todo po~
derofò coníifte em poder humas coufas , e naõ poder
outras : em poder todas as que faó 1 idías , e Juftas , e
naõ poder nem huma fó das que faõ illicicss, e in-
juftfls.
88^ Qlie dirdo agora a iftoos todo poderofos do Num. 17».
mundo ? Se quereis {'^x omnipotentes , podei íomen
teojufto , e licito, enaòqneirais poder o iiiicito, e
injufto. Se aíTim o fizerdes , lereis omnipotentes co-
mo Deos , e fe nao , feraó os voílbs poderes como os
do diabo , que pode, e faz muitas coufas^ique Deos
nao pode. Suppoílo pois , que ^ó i<^ pode o que lici-
ta , e juílamente fe pode, quem neíla forma ajuílar
o feu querer com o feu poder, poderá quanto qui-
zer, porque ló quererá quanto pode, E para que
acabeis de ver quanto tem de divina elia proporção
Tom. II. a 3 ^^
262 Vieira ahbreviado
do querer njuílado com o poder, notai por íim , que
Deos íó pode fazer o que pode querer : de forte ,
que rd póJe obrar a fua omnipotência o que pode
querer a íua vontade. E íe eíhis faõ as medidas do
poder, e querer immenfo, poder fó o que quer; por-
que íenaô contentará a iimitaçaohumanacom que-
rer íò o que pode? Querei fó o que podeis, e Tereis
omnipoteutes. Prorjus om?iipotens efl , qui facit
quidquid vult : Verdadeiramente lie omnipotente
C conclue Agoftinho ) quem pode quanto quer ; com
tal condição porém , que fó queira o bem feito , e naó
queira o mal feito ; porque neíle querer, e naõ que-
rer coníifte a verdadeira omnipotência.
Num.zy?. ^86 Atéquitemos víílo a grande conveniencig,
e excellencia mais que humana da primeira propor-
ção do querer com o poder , que he querer cada hum
íómente o que poder A fegunda he dos que exce-
dem efta medida, e querem mais do que podem,
com os quaes agora fallaremos. E que lhe direi eu ?
Digo geralmente fenhores, (porque os fenhores fa6
os que mais ordinartamente Te naó querem medir ,
ainda que feja comfigo meímos ) que para defenga-
nodeíledefejo, e emenda defta vaidade baftava fò
a coníideraçaó do erro , que lhe haõ de achar no h'm,
c fora melhor atalhar no princàpio. Coníiderai, que
querendo mais do que podeis, naõ fó deítruis o vof-
ío poder , fenao também o vollb querer. Porque íe
eu quero mais do que poíio , claro eílá, que hei de
perder o que poílo, e naó hei de confeguir o que
Num. 28 r. quero. Pondevos junto ao boíque chamado de
Efraim , e alli vereis pendurado de hum carvalho pe*
los cabellos , e traípaífado pelo peito com três lanças
o mais galhardo n^áncebo , que para inveja da for-
'^ mofu-
I
Difcin^fo LXXXIII. 2^5
mofura creou a natureza. Tal foy o trogico fim de
Abfdlao , o qual traidor a Deos , ao pny , á patna , e
aíi mefmo , lendo terceiro íilho de David ihequiz
tirar a coroa da cabeça , e pola na íua , como naó de-
vera, nem podia. Pondevos nos campos de Bíibylo-
nia, e vereis com horror andar fobre quatro pés,
pafcendo feno , e bebendo do rio com os brutos hum
homem convertido na mefma figura, o qual pouco
antes adorado no throno Red íe chamava Nabuco-
donoíor. Era o mais poderoío Monarcha do mundo;
mas porque quizfer, e poder mais do que podia, o
fez Deoscurfar naquella efcola fete annos para elle
aprender , e nos enfin^r o que podem vir a fer os
que querem mais do que podem. >
887 Olhem os homens para as outrss creaturasNuin..i«4.
fcm ufode razaõ, enao queimo fer ingratos^ efo-
berbos contra Deos, quando todas ellas, grandes, e
pequenas , o louvaó, e lhe dao graças peio que delle
receberão. Se o rato naó quer fer ieaõ , nem o par-
dal quer fer águia , nem a formiga quer fer elefante,
nem a ra quer fer balea ; porque fe nao contentará
o homem com a medida do que Deos lhe quiz dar ?
Eque leria, fe nem. os leoens , nem as águias , nem os
eici^intes , nem as baleas-fe contentafiem com a fua
grandeza , e huns fe quizeflem comer aos outros pa-
ra poder mais, e fer mayores? lílo he o que querem,
e fs«cm continuamente os homens , e por iílo os al-
tos cahem, os grandes rebentão, e todos fe perdem.
Os inftrumentos , que creou a natureza , ou fabricou
a arte para ferviço do homem , todos tem certos
tcrmosdeproporçaô,dentrodosquaesfe podem con-
fervar , e fora dos quaes nao podem. Com a carga de-
mariadacaheojumenio, rebentão canh.6 , evai-fe
1\ 4 o na-
ÍNuin
31.8 8,.
2^4 Vieira abbreviado:^'\
o navio a pique , por iílo fe vem tantas quedas , tan-
•tos defaílres, e tantos naufrágios no mundo. Se a
carga íor proporcionada ao calibre da peça , ao bo-
jo do navio, e á força, ou fraqueza do animal , no
marlaríeha viagem , na terra faríeha caminho , e na
.Xerra, e no mar tudo andará concertado. Mas tudo
le defcojicerta , e fe perde , porque em tudo quer a
ambição humana exceder a esfera, c proporção do
poder. r r 3
Num. 187. 888 Só quem quer menos do que pode , he fem-
pre poderofo , porque quem quiz quanto podia , en-
cheoamedida do feu poder, e naó pckie paílar da-
ni; porém quem quer menos do que pode, fempre
pode mais do que quer.
889 Daqui fe fcgue , que o rico , que quer írtaís
do que pode , he pobre ; e o pobre , que quer menos
do que pode , he rico : o rico , que quer maisdoque
pode , he pobre ; porque lhe falta o mais, que quer ;
e o pobre,quequer menos do que pôde, he rico; por-
que lhe íobeja o maisi, quepóde. Aílim no lo enfmou
a mefma natureza , meílra de noíFas acçoens , quan-
do nos provéo dos inftrumentos, medindo os com eir
ias. Porque difpoz a natureza ,'que a mao foíJè ihíí-
yor que o coração, e o coração hum , e as m.aos duas?
Iorque o coração he o iníliHimento do querer, e as
maõs do poder: no cdraçao eftá a deliberí^çaó da von.-
tilde , e ms maõs a execução das obras ; e ordenou ,
que a rnaò foííe mayor , qúe o corsçaõ', e o coração
iium,easma6sduas, para que fempre podeífemos
mais do que quizeíTemos , e nunca queiramos tanto,
quanto podemos. Oh íe os homens entendeííemos ef-
ta política natural , e domcftica , e nos perfuadiíle- .
mos a elia , quão defcanfada feria eíla vida, que nós
-^'^^ ^ pelo
Dijcurfo XXXXíy. 26^
pelo deigoveriio da noíTa vontade, e pelos exceíFos
das nolTas vontades fazemos taó caníada, e traba-
Ihofa !
D I S C U Pv S O LXXXIV.
Tirado de hum fermaó de S.Jojeph , pregado no dia
dos annos dElRey D. Joaó IF,
R E G R E À C, A M.
890
Omnr hum dia de monte , tomar huma Part. 7.
hora de recreação no meyo dos mayores^"'"- H^.
cuidados , também he parte de Rev : Duciin monta-
napars regni eft ^ dille dsfcretamente S. Jeronymo.
Defcanfar para caníar mais antes he ambição de
trabalho, que defeiodedeícanfo. Qiiandoas poten-
cias da ahna eílaõ tao fatigadas , juíto he , que íe dê
algum alivio aos fentidos do corpo. M<is reparo nas
palavras do Santo : Pars regm eji \ /e dilíera S. Jero-
nymo , que os .moderados paílatempos faõ privilé-
gios das iMageílades : fediííera, que faó gages do
poder fupremo, que iuô divertimentos licita , e ho-
neftamente foberanos , bem eílava ; masdizer, que --
faó qualidades de Rey , è parte de reynar : P/?r.rr^-
gni eft ? Sim. Porque o principal attributo de reynar
he attender ao cuidado do Reyno , e também he par-
te de attender aos cuidados defcuidarfe por huma ho-
ra delles. Poradigirir o negocio he neceílario deí-
afogar o animo: parte he kgo de cuidado o diver-
tirfe , quando o recrear os fentidos vem a ier habili-
tar as potencias. O demafiado cuidado em.baraça a
refoluçaõ , e o moderado deícanfo reíolve-o o cui-
dado. ^ ^^ j^j3_^
2 66 Vieira abbreviado^\
í> I S G U R S o LXXXV.
Tirado de dons f ermo em da quinta Dominfra da
Huarefma pregados na C^peíla Real, enaCa-
thedralde Lisboa,
R E L I G I A M.
Joan. 8.
4í.
gou contra os Efcnbas , e Farileos. E porque íaó as
meímas , parece , que naô lie razão fe nos preguem a
nos. Ghriílo n^ftas palavras queixavafe dosjudeos,
porque o naõ criaó : Quare mm creditisfnihi ^ E naó
leria grande impropriedade , e ainda aííronta da nof.
ia fe , íe em hum auditório taõ catliolico fízeííe eu a
meíma queixa, eaffirmaíTe, ou íuppozeílede nós,
que lendo Clinílaos^ naÕ cremos aGbfiílo ? Eík foy
o meu piNmeiro reparo , e me pareceo Conforme a eU
Je, que as palavras do Euangelho , que propiíz , fó
as rp.indava referir a igreja como hiílorh dò tempo
paílado , e naõ como doutrina necèílâria aos tempos,
e coftumes prefentes.
Num.i5<, %2^ Dei hum paíFo mais avante com a coníí-
deraçaò , e comecei a duvidar diílo mefmo. Olhei
para a té, que fe ufa : olhei para a vida, e obras, que
correípondem á meíma fé : olhei para os pequenos ,
e muito mais para os grandes: olhei para os leigos , e
também para os Ecclefiaílicos, cachei , eme perfua-
dl com grande confufaò minha, que tao neceílaria
ne hoje cila pregação, como foy no tempo de Ghril*
to. £
l
Difcurfo XXXXF. 267
to. E porque ? O dia he de verdades : hei de dizer o
porque muito claramente. Forque fe os Eícribas , e
Fanjeos n^o criaõ a CKriílo, lambem os Chrirtaõs,
eCatholicos naó cremos a Chriílo. Iramonos mui-
to, e dizemos grandes injurias contra os Judeos da-
quelle tempo, e nós fomos como elles. Contra elles
pregou Chriílo, contra nós prega o Euangelho. E
fe Chriílo falia ra daquelle íacrano , aííim como en-
tão diíFe aos Judeos : Q^uare nos crediiis mihi , afíim
havíamos de ouvir , que nos dizia a nós: Chriílaós ,
porque me naõ credes ? Se íbis , e vos chamais Chrif-
taôs , porque naó credes a Chriílo ?
893 Pareceme , fenhores, que vos vejo inquie- Nam.zíío;
tos , e ainda indignados contra mim por eíia propof-
ta , e que cada hum dentro de fi naó fó me eftá ar-
guindo, e condemnando, mas cuida, que me temi
convencido. Nós ( dizeis todos ) por graça de Deos
fomos Chriílaos, e o Chriílo, em que creinos , e por
cuja fé daremos a vida , he o meímo Chriílo , qae os
Judeos hoje negarão. Elles cruciíicaraono , nós ado-c
ramolo : elles na ót crerão , que era, verdadeiro Mcí-
íias , nós cremos , que he verdadeiro Deos, e verda-
deirojiomem , que inc^irnou , que naíceo, que mor-
reo, que refufcitou, que lalvou , e remio o rnundo.
Logo grande injuria he a que faz á noífa fé , e á nof-
fa chriílandade quem diz, que fomos como os Ju-
deos em naó crer a Chriílo. E que feria , fe eu diílef-
fe, que nella parte ainda fomos pavores ?
894 Entendei bem o que diz o texto de Chriílo, Num. zír.
e logo vereis como a voíla inílancia nem desfaz a
minha propoíla , nem he argumento contra elia. Di-
zeis , que fois Chriílaós ? Aííim he. Dizeis , que cre-
des muito verdadeiramente em Chriílo ? Também o
con-
lUÍ
ê
2 ~'6S Vieira ahhreviado ^
concedo. Mas Chrifto naó fe queixa denaò crerem
nclle: querx.iíe de o naò crerem a elíe. Notai aspa-
iavras. ^^oá\z\ Qtummn cr edi tis in me} Porque
mo credes em min) l O que diz he : Qiicire mn cre-
ams^miht} Porque me nnÔ credes a mim? Huma
coufa he crer em.Chriíto , que he o que vós provais,
e eu vos concedo: outra coufa he crer a Chriíio, que
ne o que naô podeis provar , e em que eu vos hei de
convencer. De ambos eíles termos ufou o meAno-
fonn.u.i.feenhor muiias vezes. Aos diícipulos : Creditis in
joan. w. Denni^^ ^ .^ .^,^ credite. A Martha : Qui credit in
jo.n.4 M.^;^^ ) etianifimortuiís fuerit , vivet. Por outra oarre
joao. .o. a Samaruana : MiiUer , crede miht , eaos mefmisju-
deos: St nnhi non -uultis credere , operibus credite:
De maneira , que ha crer em Chrifto , e crer a Chrif--
tov?e huma crença he muito difíerente da outra.
CreremChriílo he crer oqii&eiiehe:. crer a.ChriP
to he crer o que elJediz: crerem.Chriílo he crer
nelle: crer a Ghriílo he creílò a elie. Os Judeos
nem^criaô.em Ghriílo, nerá criao' a Chriíto. Nao
criao em Chrifro ; porque na6 criaô a fua divindade,
e nao criao a Chriílo ; porque nao criao a fua verda-
de. K neíhi fegunda parte he , que a iiolla fé, ou a
noíHi incredulidade fe parece com a \\.r^ , e ainda a ex-
cede mais feyamente; O Judeo nao crê em Chrifto ,
ner,T] crê a Chriílo : e que naõ creya a Chrifto quem
riaí).;crêem Chrifto he proceder cohcrentemente. Pe-
jo contrario nós cremos em Chrifto, e nao cremos
a Chrifto , e nao crer a Chrifto quem crê em Chrif-
to , nao crer a fua verdade quem crê na fua divin-'
dade he huma contradição taóaJheyade todo o en-
tendimento , qije fò fe pcSde preíumir de quemte-
nha perdido o ufo da raz.iò j e por líFo o mefmo Se-
nhor,
m
DifcurfoLXXXV. 269
nhor nos pergunta por ella : Qjiare ?
895 Todos os que aqui eílamos por mercê ^e^^um.Vp?.
Deos , fomos homens , e fomos Chriílaõs : em quan-
to Chriílaós fomos obrigados a ter fé ^ e em quanto
homens íomos obrigados a dar a razão. E fe eu te-
nho razaó para crer o queChrifto diz, que razão
poílb ter para naó fazer o que Chriílo dizj Se tenho
razaô para dar a vida pela fé, que razaõ poíTo ter
para naó concordar a fé com a vida ? Que diz Chrif-
toaosjudeos? Si ver it atem dico iwbis j ouare non
credhis 7nihi} Se vos digo a verdade , porque me
naó credes? Qiie diz Chrifto aosChriílaòs] Se cre-
des a verdade , que vos digo , porque a nao obrais ?
Osjudeos erraoem naÓ concordar a fua Jé coma
fua efperança : os Chriftaôs erraó em naô concor-
dar a fua vida com a fua fé : e qual he mayor erro ,
e mayor cegueira ? Naõ ha duvida , que a dos Chrif-
taós/ Porque ? Porque a fé he das coufas que naó fe '
vem : Argumentutníion apparentitim ; e o naó crer
pode ter alguma defculpa nos olhos : porém crer
huma couía , e obrar a contraria nenhuma defcul-
pa pode ter , nem apparencia de razaó ainda falfa.
Aqui nos aperta a nós mais, queaosjudeos aquel-
\^ Quare, Òl^are} Porque razaó? Day-acá.
896 Dito he antigo, e como verdadeiro , e difere- Num. 500;
to muito celebrado , que na Chriílandade naÔ havia
de haver mais , que duas prifoens , a dos cárceres do
fanto Officio , e a da cafa dos Orates. Porque hum
homem , qualquer que feja , ou tem fé , ou naó tem
fé: fe naó tem fé, he hereje , e pertence aos cárce-
res do fanto Officio : fe tem fé , e crê que ha Deos ,
Çeoj e Inferno, e com, tudo vive , como fe o naó
crera , he rematadamente doudo , e pertence á cafa
dos
Joan, 8.
48.
2 70 Vieira ahhreviado
dos Orates. OsJudeosdonoíTo Eiiangelho de huma
e outra cenfura , e de huma , e outra pena fe moftra'
rao bem merecedores, Qiiamo á fé, e ^o crecútis
nao ío negarão a fe de Ghriílo : Non creditis mthii
mas a íua infidelidade accreíc-entaraó blasfémias:
i\onne bene dtctmm fios , quta Samaritanus ejl tu ,
& djemomum uabes ? De forte, que no mefmo a(fto
da í-e, e no meímo cadafalfo fe peia infidelidade
mereciao a regueira , pela blasfémia mereciaó a mor-
daça. E quanto ao juizo , e ao ufo da razaÓ : Quare,
i-l V^^'^""^ T^ tom^r^^ô pedras para atirlTem a
Joan. j,. Chriíto : Jmerunt ergo lapides , ta jacerent m
eum. JNo fagrado do templo nem as pedras eraó
tao miúdas , nem taô foltas , que ss podeíiem tomar
aiíirííoalhelogo, quejá ns traziaõ comfigo. Vede
femerectaõ fer levados á caía dos Orates , pois naó
erao doudos , fe naõ doudos de pedras.
897 PaíTemos agora de Jeruíalem á Chriftanda-
de For venturn he melhor o noílo uío da razaó , que
o feu^//^r^ ? He melhor a noífa fé, que o feu Iwn
credms't Naó crer he ter o entendimento ce^o , e
obíunado: crer huma coufa , e obrar outra he to-
talmente nao ter entendimento : íe nao temos en-
tendimento, naó fomos homens: íe nao temos fé, nao
fomos Chriílaós. Qiíe fomos logo ? Terrivcl coníe-
quencia huma , e outra! Se naó fomos homens, quan-
d^o muito íbmos animaes : fe naÔ íbmos Chriííaõs , e
Catholicos , quando menos fomos hereges. Nao me
atrevera a dizer tanto, fenaÕ tivera experimentado
ambas eílas confequencias , e viUo ambas com os
olhos. Nefta ultima viagem : ( fejame licita a narra*
çnodocafo, que por raro, e próprio do intento he
bem notável.) Neíta ultima viagem minh^ , que k^y
das
Num. 501.
Difciirfo LXXXV . 271
das Ilhas a Lisboa , em que aquella traveíia no Inver*
no he huma das mais trabalhofas , o navio era de he*
regos, e hereges o Piloto, e marinheiros : ospalía-
geiros éramos alguns Reiigiofos de dilierentes Reli-
gioens , e grande quantidade daquelles muficos ínfu-
lanos , que com os noííus rouxinoes , e pintacilgos
vem cá a fazer o coro de quatro vozes , canários , e
melros.
898 As tempeílades foraõ mais , que ordinárias , Num 501.
mas osefte!tos,que neilas notei, verdadeiramente ad-
miráveis. Os Reiigiofos todos eftavamos occupados
em or;:Çoens , e ladainhas , em fazer votos ao Ceo , e
exorciímos ás ondas , em iançar reliquias ao mar , e
fobre tudo em aélos de contrição , confeífandonos
como para morrer huma , e m.uitís vezes. Os mari-
nheiros , como hereges , com as machadinhas ao pé
dos martros comiaó, e bebiiÓ alegremente mais que
nunca , e zomba vaó das noífas , que elles chamavaõ
ceremonias. Os pallarinhos no mefmo tempo com o
fonido , que o vento fazia nas enxárcias, como fe
aquellas cordas foraó de inílrumentos muíicos , deí-
faziaõíe em cantar. Oh valhame Deos ! Se o traba-
lho , e o temer naô ievaífe toda a attençaó , quem fe
naõ admiraria neíte piíTodeeíFeitos tao vários, e tao
encontrados , fendo a caufa a mefraa ? Todos no mef-
mo navio , todos na mefma tempeílade, todos no
mefmo perigo , e huns a cintar , outros a zombar, ou-
tros a orar, e chorar? Sim. Os paíTarinhos canta-
vao , porque naó tinhaô entendimento, os hereges
zombavaõ , porque naó tinhaõ fé , e nós , que tinha-
nios fé , e entendimento, bradávamos ao Ceo, batia-
mos nos peiíos , chorávamos noífos peccados.
899 lílo he o que eu vi , e paíTei , e iílo mefmo Num. 503:2
o que
272
ira úbbreviado
pf. 103-
26.
o que nós naõ vemos, eílando no mefmo , e em peyor,
e mayor, e mais perigofo eftado. A traveíTa heda
terra para o Ceo , e da vida mortal para n eternidade,
o mar he q£íq mundo , os navegantes fomos todos, o
navio o corpo de cada hum , taô fraco , e de taó pou-
ca refiílencia por todos os coitados, ea tempefíade:
e as ondas muito mayores: AJcendunt ufque ad coe-
los, irdefcendimt ufque adahyj]os\ SaÔ tao grandes,
ou taô immenfas as ondas, diz David, que humas
íobem até o Ceo , e outras defcem aos abylmos. Illo,
que nos Poetas he hyperboJe, no Profeta he verdade
pura, e certa fem encarecimento. Se quando a on-
da vos afoga , eílais em graça, poemvos no Ceo :
Afcendunt ujqiie ad coehs : íe quando vos foçobra ,
e tolhe arefpiraçao, eftais em peccado, metevos
no inferno : Defcendunt ufque ad abyffos. E que no
meyo de hum perigo mais que horrivej , e tremendo,
em que o menos , que fe perde , he a vida , huns naõ
temao, e cantem , outros zombem , e nao façao cafo,
e fejaÔ tao poucos os que fecompunjaó, e tratem
da falvaçao? Sim outra vez. Porque os menos faõ os
que tem entendimento : os de mais nem tem fé, nem
entendimento.
Num. J04. 900 Orajá que todos imos embarcados qo mef-
mo navio , perguntefe cada hum a fi mefmo, a qual
deílas partes pertence. Sou dos que cantão , fou dos
que zombao, ou íou dos que chorão } Sou dos Chrií-
taõs, e Catholicos, ou fou dos hereges } Sou dos ho-
mens com ufo da razão, ou dos irracionaes.^^ Qiie as
avefinhas naõ reconheçao o perigo da vida , naó al-
cança mais o feu inftinto : que os hereges naõ temao
a eílreiteza da conta , eíla he a cegueira da fua iníi-
deiidade ; mas que hum homem Chriílaó no meyo
deftes
m\
^
il
Difcw^fo LXXXV . 27^
deftes dous perigos com a morte, e a conta diante
dos olhos, nefte meímo tempo efteja cantando íiq
fom dos ventos , e zombando ao balanço das ondíis!
Chriftaô , aonde cftá a tua fé ? Homem, aonde eftá o
teu entendimento ? Se tens uíb de razaõ, dá cá a ra-
zão: Quare , quare ?
901 He taõ difficultoía , e tao impoíTivel efta ra-
zão, que nenhum homem ha , nem houve, nem ha-
verá, que por mais voltas , que dê 20 entendimento,
a poíía dar , naô digo verdadeira , e folida , mas nem
ainda falfa , e apparente. Se coníultardes os bons , e
osjuftos, que caminhão pela eftrada real da verda-
de, e da virtude , todos haô de dizer, e dizem conf-
tantemente, que a vida fe ha de concordar com a fé:
e fe fizerdes a mcfma pergunta aos mãos , e aos pef-
íimos , que feguem os caminhos do erro , e os prece-
picios da infidelidade, até eftes, fenaó refponde- .
rem , que a vida le ha de conformar com a fé , ao me-
nos haó de dizer, que a fé fe ha de corformar com a
vida. Ouvi agora huma notável ponderação , e tao
certa, como admirável. Sendo a féhumafó fé, aífim
como Deos he hum íò Deos : Unus Deus , ttnafides^ Epiief.4. 5;
qual he o fundamento, ou motivos porque os ho-
mens fe dividirão em tantas feitas ? Naó ha duvida ,
que fe lhe cavarmos ao pé , e lhe bufcatmos as raí-
zes, acharemos, que todas íe femearaó nos vícios, e
delles brotarão, e nafceraõ.
902 Primeiro fe depravarão as vontades, ede-Num. 40Ê.
pois íe perverterão os entendimentos. Epicuro era
deliciofo^ Mafoma era torpe, Luthero, e Calvino
erao relaxados da fua profilíao , e depois depravados
em tudo. Vinde cá, mãos homens, íede embora mãos,
eviciofes, vivei embora, ou na má hora ávoífavon- ,
Tom. II. S tade,
m
174 - V leiraaõi
tade , largai a rédea a voíTos appetites ; mas naó fa-
çais , nem inventeis novas feitas. Epicuro íeja quaô
deliciofo quizer , mas naÔ negue a Deos o attributo
da juíliça , para que os homens tenhaõ por bemaven-
turança as delicias. Mafoma feja taÔ torpe , e taô
abominável, como foy ; mas naô faça também torpe
o Ceo, para que os homens efperem na bemaventu-
rança as torpezas. Luthero , e Calvino vivaó taó vi-
eiofa, e depravadamente, como viverão; mas naô en-
finem , que o Tangue de Chrifto nos ha de falvar fem
Cooperação noíía , para que os homens creaô , que
pode haver falvaçaõ , e bemaventurança fem obras.
Pois fe eíles homens podiaó fartar a bruteza dos feus
appetites fem aggravo , nem mudança da fé ; porque
a mudarão taô cegamente, e formarão feitas taô bar-
baras, e taô novas?
Num, 507. P03 Aqui vereis como naô ha entendimento taô
depravado , e taô cego , nem erro taõ irracional , e
taô atrevido , que ditaíle , ou admittifle já «lais , que
a vida naô havia de concordar com a fé. Avidajdi*
ziaô todos, neceflariamente ha de concordar coma
fé ; nós naô queremos mudar a vida , fenaô continuar
em noífos vicios, que faremos logo ? Naô temos ou-
tro meyo, fenaô trocar os mefmos extremos , e mu-
dar á fé ; porque defta maneira , já que a vida naõ
concorda com a fé, ao menos a fé concordará com
ávida. Naô queremos fazer vida nova.-* Pois faça-
mos fé ílova : e aíFim o fizeraô. Aífim o fez na genti-
lidade Epicuro , aflim o fez no paganifmo Mafoma ,
affim o fizeraô na Chriílandade Luthero, e Calvino,
€ fe tornarmos aoadro da fédosjudeos, aífim o ti-
Híhaôellesjá feito muito antes de todos.
2um. 511 ^04 Acabamos de dizer*, qu€ os Judeos também
fegui-
ii
Difiurfo LXXXV. 275
fegiiiraó, ou nnticiparaó os paíTos dos gentios, cios
pagãos, e dos hereges em trocar, e mudar a fé par»
a concordar com a vida. Agora laibamos/eosChnl-
taõs procedem mais coherentemente. e coníorme a
Tazaõ , e fe refpondem melhor áquelle Qíit^re. Os
outros mudaÔ a fé , os ChriftaÕs iiaó a mudao : a ^e
dos outros mudada he falfa, a fé dosChnftaos con-
fervada he verdadeira ; mas fe olharmos para as vi-
das , as dos outros concordaô com a fua ré , as de
muitos Chriílaos naó concordaô cora a fua. Quaes
vivem logo, e procedem mais coherentemente, e
mais conformes com a razão? Nao ha duvida, ( mife-
ria , e vergonha grande ! ) que mais contorrae á ra-
zão procede o gentio, mais conforme á razão o pa-
gão , mais coní-orme á razaô o herege , e mais confor-
me á razaô o Judeo , que faô todas as quatro efpecies
da infiddídade. E porque ? Porque todos eOes fe-
guem com a vida o que crem com a f é , e o mao
Chriílaõ com a fé crê huma coufa , e cora ávida fe-
-gue outra.
905 Cbriílaos ( os que naô obramos o que deve- Nuhi. 5 14.
mos ) a quem feguimos : Ufquequo claiulicatts in ^^ ^^
duas partes^. Será bem que tenhamos hum pé em ^;^ '^'
Romii adorando a Chriílo , outro em Conftantino-
pla guardando o Alcorão ? Hum em Roma beijando
o pé a S. Pedro , outro em Jerufalem beijando a maô
a Herodes ? Hum em Roma rezaado a Santa Maria
Mayor , outro em Chipre ofFerecendo facrifícios á
deofa Vénus ? Hum em Roma vifitando as fete Igre-
jas, outro em Londres, ou Am fterdao profanando
os altares , e perdendo a reverencia ás ifinagersfagra-
das ? Ifto faz o Tureo , o Judeo , o gentio , o here-
ge , e cada hum conform^e a fua fé : e íendo a noíTa
S a taô
Num.
5M
27^ Vieira ahhreviado "^
taõ contraria, fera bem , que em nós Chriílaos, e Ca-
tholicos íe ache o mefmo ? Se naÕ concordar a vida
com a fé, he hum diclame taÔ bárbaro, e taÕ irra-
cional, que naÕcabç no entendimento de Luthero
que nao cabe no entendimento de Epicuro , que naó
cabe no entendimento de Mafoma : e como cabe no
noílo entendimento? Pôr a bemventurança nas de-
licias, como Epicuro, he fer gentio, palie: pôr a
bemaventurança nas torpezas, como Mafoma, he fer
i urco, feja : efperar a bemaventurança íem obras,
como Luthero , e Cal vino , he fer hereje , vá na má
hora. Mas fer ChriftaÓ na fé , e a vida fer de Epicu-
ro : fer GhriílaÔ na fé , e a vida fer de Mafoma : fer
Chriftao , e Gatholico na fé , e a vida fer de Luthe-
ro^, e de Calvmo , em que entendimento pode caber
tao rematada loucura ? Ha quem reíponda , ha quem
de razão , ha quem diga o qiiare ?
. 90Ó Eu em toda a Efcritura fagrada fó acho hum
homem , que fatisfizeífeá minha pergunta, e refpon-
ceíTe a propofito. E que homem fera efte ? Chrif-
taó ? NaÒ Judeo ? Naõ. Gentio ? Nao. Turco ? NaÕ.
Hereje ? Naõ. Pois que caUa de homem fera , ou po-
de fer o que fó refpondeo a propoíito ao noíFo q^a-
re? Hum Atheo. Todos elfoutros ou fieis, ou in-
fiéis conhecem a Deos; fó o Atheo o naó conhece ,
e íó eíle pôde dar a verdadeira razaõ do que per-
guntamos. ElKey Faraó tinha cativo o povo de If-
rael npEgypto, e com o mais duro, e intolerável
cativeiro , que fe pôde imaginar. Naõ lhe pagava o
trabalho, antes lho accrefcentava cada dia, para que
naõ tiveíTem hora de defcanío : punhalhe por mi-
niftros, que fuperintendefiem ás obras, em que íer
viaô, os de condição, afpera, e cruel para que mais os
oppri»
I
l
ii
Difciirfo LXXXV . 277
òpprimiílem : nao lhes dava de comer, com que íuf-
tcntar a miíeravel vida , e até os filhos lhes matnvá
cautelofamente, fem que os podeíFcn^ cfconder, nem
livrar : em fim o íummo da lyrannia. Neíle eftado de
tanto aperto, em que le nao ouvia mais que clanuj-
res ao Ceo , chegou Moy fés ao Egy pto , e notificou
a Faraó da parte de Deos , que déllé liberdade ao íeu
povo para lhe ir fijcrificar no deíerto : H^c íiicit Do- Exod. 5. i-:
7HÍ1WS Deus lirael : Dimhte popuhmi meum , m fch i-
crificet núhi in deferto. E que vos parece , que ref-
ponderia Faraó ? Oiiis cfl Dominus^ tit audiam vo-
rí-Wé-y/yj? Que Deos, e que ^enho^heeí^e, para que
o eu obede»,'a ? Nejcio Dumlniim ^ C^ Ifraelmn di-
núttanr. Nao conheço tal Deos, nem tal Senhor, nem
hei dediir tal liberdade ao povo. Oh bárbaro/ Oh
rebelde ! Oh infolente , e brutal tyranno !
907 lllo he o que eíiaó dizendo todos ; mas eu NutK. jif.
nao digo allim. Digo , que refpondeo Faraó muito
coherente , e difcretamente. Como bárbaro fim ; mas
como bárbaro bem entendido : como defobediente
lím ; mas como defobediente racional. Naõ conheço
a Deos , e naÔ hei de libertar o feu povo ? Ruim fé ;
mas boa coníequencia. Na fé fallou como bruto , na
confcquencia refpondeo como homem. NaÔ obede-
cer a Deos , e dar por razaÕ, nao o conheço , bem íe
fegue. Mas conhecer a Deos , e naÕ querer fazer o
que manda Deos, he confequencia , e razão , que nao
cabe em nenhum entendimento. Oh quantos Faraós
mais bárbaros, oh quantos Atheos mais irracionaes
ha na Chriílandade ! Opprimir os povos , cativar os
jivres , gemei eii os pobres , ttiunfarem os podero-
íos, naõ fe dar de comer a quem trabalha , nao fe pa,-
gar a quem ferve , tiraremfe as vidas aos innocentes,
Tom. II. S3 evi-
l!"í!!!'
278 Vieira ahbreviado %
e viverem os qire as tiraô, naó íó do feii fuor , fenao
do feii fangue , e dar por ra-^ao de tudo iílo : Nefcio
Dominiwi : Nao conheço a Deos , he obrar mal , mas
fallar coherentemente. Porém opprimir, cativar,
deílruir, roubar , aíTolar , aíFiontar, matar, tyranni-
zar , e lobre iíto dizer conheço a Deos , fobre lílo di-
zer íou Chriílao , fobre ifto dizer tenho fé, naó ha
juízo humano , nem entendimento racional , em que
caiba tal couía. E fenaó dai cá a razaó , Quare ^
quare ?
Kum. 513. 908 Affim como nao ha coufa mais coherente ,
nem confequencia mais pofta em razaô, que feguir
hum homem com a vida aquiilo , que adora, e crc
çom a fé , aííim naó ha , nem pode haver didame
mais irracional , e mais contrario a toda a razaõ, que
crer huma coufa com a fé , e íeguir outra com a vi-
• da. Moílre agora cada hum de nós a fua fé , e feja ti-
da por verdadeira fé a que moftrar que o he. A de-
monftraçaô da fé , que he interior , e inviíivel, pare-
ce difficuitofa, e impoífivel , e naó he fenaõ muito
fácil. A fé he cega , mas aííim como o cego me naó
vê a mi^m, e eu o vejo a elle, aífim a fé naó vê, mas vê-
fe : naó vê , porque naó vê os feus objedos , mas vê-
fe^ porque fe vê nos feus efFeitos. Os feus eíFeitos
faó as obras conformes a ella : pelas obras fe vê ma-
nifeftamente, e fem obras como fe pôde ver }
909 Diz Santiago , que a fé íem obras he inorta :
Fides Jine operibiis mortua ejl in femet ipfa. Aííim
como o corpo fem alma he morto, aíTim a fé fem
obras he morta. Com tudo ainda que hum homem,
nao faça , nem tenha obra alguma boa, dirá : Eu creyo
tudo o que crê a fanta Madre Igreja : logo a minha fé
he a meíma, que a do mayor Santo .? Aííim he. A mef-
ma.
Nuin. 515.
Num. jij.
Jacob. X.
17. 18.
DifcurJoL%XXV. 279
ma , mas morta : Mortua infemet ipfa. No Santo he
viva, porque he com obras, e em \òs, porque care-
ce de obnís, he morta.
010 Olhe agora cada hum para as luas mãos , e Num.sjt.
veíá qual he a lua té. Eu taparei os ouvidos ao que
fediz,elódireioquerevêcomosoihos, e feapon-
ta com o dedo. Como eílamos na Corte, onde das
cafas dos pequenos naÕ íe faz cafo, nem tem nome
de cafas , buíquemoseíla fé em alguma caía granue,
e dos grandes, Deosmeguie. -;.-'-
911 Oefcidodefti portada em hum quartel tejn Num. jjj»
as quinas , em outro as lizes , em outro águias , ieoes,
ecaftellos, fem duvida efte deve ler o palácio, em
que mora a fé Chrifta , Catholica , c Ghriítianiíiima.
Entremos, e vamos examinando o que virmos parte
por parte. Prmieiro , que tudo , vejo cavallos , litei-
ras e coches : vejo criados de diverfos calibres, huns
com libré, outros fem ella : vejo galas, vejo joyas ,
V€Jo baixellas : as paredes vejo-as cobertas dè ncos
tapizes : das janelas vejo ao perto jardins , e ao lon-
ge quintas , em fim vejo todo o palácio , e também o
oratório, m.s mo vejo a fé. E porque naÓ apparece
a fé neíla cafa ? Eu o direi ao dono delia. Se os vol-
fos cavallos comem á cufta do lavrador , e os íreyos,
que maftigaô , as ferraduras , que pizao, e as rodas ,
e coche , que arraftao , faô dos pobres ofíiciaes , que
andao arraílados fem poder cobrar hum real ; como
fehadeverafé na voíTa cavalheriça? Seoquevef-
tem os lacavos , e os pagens , e os foccorros do ou-
tro exercito' mafculino , e feminino depende das me-
fadas do mercador, que vos aííifte , e no principio
do anno lhe pagais com eíperanças , e no fim com de-
lefperaçoens a riíco de quebrar , como fe ha de ver
afé navoírafamiliaH S4 912 Se
28o Vieira abbreviado
Num. 554. 912 Se as galas , as joyas, e as baixellas ou no
Key no , ou fora delle foraô adquiridas com tanta in-
juíliça, e crueldade, que o ouro, ea prata derreti-
<ios, e as fedas,fe fe eípremeraõjhaviaó de verter fan-
gue ^ como fe ha de ver a fé neífa falfa riqueza ? Se
as voíTas paredes eílaô veílidas de preciofas tapeça-
rias, e os mj/eraveis, a quem defpiftes para as velti^ a
ellas , eftao nus , e morrendo de frio ; como le ha de
ver a fe nem pintada nas voíTas paredes? Se a ori-
mavera ella rindo nos jardins, e nas quintas, eas
fontes eítao nos olhos da triíle viuva , eorfaós a
quem nem por obrigação , nem por eímola íatisfa-
zeis , ou agradeceis o que feus pays vos ferviraô •
como fe ha de ver a fé neífas flores , e alamedas ? Se
as pedras da mefma cafa , em que viveis, defde os te-
Ihados ate os alicerfes eílaô chovendo o fuor dos jor-
naleiros, a quem nao fazeis feria , e fe queriaó ir buf-
çar a vida a outra parte,os prendieis, eobriíraveis oor
vofla ca^faT ^^^ ^' "^^ '^' ' ^^' "^'" ^'"''^'' "^^^^^ "^
Num.s35. 915 Maspaííemos dopulpito ao confeífionario.
.^e o Conf eííor , quando com toda efta carga vos pon^
des a íeus pes , puxa pelo çuare do noíTo texto , e vos
pergunta a razaõ, porque naõ reftituis devendo tan-
to j a repoíla , e a Theologia , que trazeis muito ef-
tudada , he, que íem embargo das dividas deveis fuf-
tentar a voífa cafa com a decência , que pede o voífo
eítado , e que as rendas naó daô para tanto. Bem E
os pays, de quem herdaíles eííb mefmo eftado, eeraÕ
tao honrados como vós, naõ fuílentavaô a honra , e
a decência delk com menos pompa , com menos
cnados, com menos librés, com menos galas , cora
menos regalos ? Mais. E o que gaftais por outra via,
naô
r)/>/r>LXXXV. 28i
naó com a decência , fenaó com as indecencias da ca-
fa, edapeíToa? (hiare^ Que reípondeis a iílo? A
mayor galantaria he , que ao outro dia depois da con-
liiraó, e deita efcufa ouve o mefmo Confeíror íem
íigillo, que aquella noite perdeftes dous mil cruza-
dos, eque pela manha os mandaíles emdobroens,
aquém os ganhou ; porque he contra a pontualidade
da fidalguia nao pagar logo o dinheiro do jogo. Af-
fim jogais com os homens, e aflim com Deos, e eí-
ta he a volTa fé.
914 Dirmeha porém em contrario a noíTa Cor- Num.5j(f;
te, que fe em algumas cafas particulares eítá a fé
taõ morta , e taõ corrupta , que nas cafas de Deos
eftá mais viva , e mais inteira , que em nenhuma par-
te do mundo. Aífim fe vê , e demoílra em todos os
templos de Lisboa , a qual muito á boca cheya po-
de dizer ao mefmo mundo : Ego ojiendamtihi ex -^^^^^^-^
operibíís fidern meam. Eu tenho vifto a mayor parte 1^.
da Chriftandade da Europa , e em nenhuma, entran-
do também neíla conta a mefma Roma , eílá o cul-
to divino exterior taõ fubido de ponto , e cada dia
mais. Seria laftima grande ver aqui desfazer, e ar-
ruinar nos mefmos templos as fabricas antigas de
tanta formoíura , e preço , fe depois fenaó viffem as
jmefmas ruinas gloriofamente refufcitadas com tan-
to mayores riquezas da matéria , e tanto mayores
primores da arte. Em nenhuma parte do mundo he
tanta a cubica de adquirir, como em Lisboa a ambi-
ção de gaitar por Deos. Que Igreja há neíta m.ulti-
daô de tantas em hum dia de feita , que fe naõ pare-
ça com (a que vio defcer do Ceo S. Joaõ : Tamquam Apocal.iii,
Jpoiífam ornatam virofuo ? O ouro , e os brocados, *••
de que fe veitem as paredes , íaó o objedo vulgar
dâ
2S2 Vieira ahbreviado
da vifta : a armonia dos coros fufpeníao , e eleva-
ção dos ouvidos: o âmbar, eoalmircar, easoutras
eipecies aromáticas , que vaporaó nas caçoulas , até
peias ruas recendem muito ao ionge , e convocaô
peio olfato o concurfo. He ifto terra , ou Ceo ? Ceo
ne, mas com muita miílura de terra. Porque no
rpeyo deíle culto celeftial exterior , e fenfivel o def-
fazem , e contradizem também fenfivelmente naÔ fó
as muitas offenfas , que fora dos templos fe commet-
tem , mas ns publicas irreverências , com que dentro
nelles fe perde o reípeito á fé ', e ao mefmo Deos.
Qiieres que te diga, Lisboa minha, fem lifonja huma
verdade muito fincera , e que té defcubra hum enga-
no , dequea tua piedade muito fe gloria ? Eíla tua
fe taô liberal , taô rica, taõ enfeitiçada , e taõ cheí-
rofa nao he fé viva. Pois que he? He fé morta, mas
embalfamada.
Num.5ií;. 915 Sou tao amigo, ereverenciador da razno,
que até as fombras delia ouço de boa vontade. Po-
dem inílar os Chriflaos , que naõ guardao a ley de
Chriífo, eargumentar porfi neftafórma : He verda-
de , que os infiéis de todo o género , e ainda os mef-
mos Atheos parece , que procedem mais coherente-
mente^, e mais conforme árazaô; porque elles con-
cordaô a fua fé com a fua vida , e nós nao concorda-
mos a nomi vida com a noíla fé ; mas neíla mefma
difrerença ha outra muito mayor , e melhor, que faz
pela noílli parte. E qual he } He que nelíes a fé he
niá, e a vida também má; porém em nós, ainda que a
vida feja má, a fé he boa : logo ao menos em ame-
tade dos procedimentos faô melhores os noílos , quô
os íeus? Alíim parece, mas naò heaílim. Porque.?
Porque aonde a vida he má, naò pode a fé fer boa.
Texto
■■■
»Ê^
Dijcurfo LXKXY . 285
Texto expreíTo de S. Joaó : Qfíí dicitfe nojfe Deiini, jcaa. ^. 4.
^ mandata ejiis non ciijlodít^ mendax ejt , & in hoc
"jerítas non eJt : Qiiem diz, que conhece íi Deos , e
naô guarda íeus mandamentos,mente. E porque men-
te, fe o que crê he verdade?
916 Admirável , e fubtiliíEmamente fe explicou Num. 510,
o mefmo S. Joaó : Mendax ejl , é^' in hoc veritas non
efl : Mente , e a verdade naõ eítá nelle. No taUaío
a verdade eftá nos myfterios , que crê , mas naó eílá
no que crê os myílerios. Notai. Huma couía he a
verdade da fé em fi , a qual propriamente fe chama
fé , outra he a verdade da fé em nós , a qual propria-
mente íe chama crença. A fé em fi fempre he ver-
dadeira , a crença em nós pôde fer verdadeira , e po-
de íer falfa : fe concorda com a vida , he verdadeira,
porque obramos conforme cremos : fenaÔ concorda
com a vida, he falfa, e mentirofa, porque cremos hu-
ma coufa , e obramos outra. Por iíFo o que naõ guar-
da os mandamentos , ainda que crea , e coníelfe tu-
do o que enfma a fé , mente , e nao eftá nelle a ver-
dade: (Jui mandata ejus non cujlodh mendax eflj
^ in hoc veritas non efl. Sc oChriftaó , e Catholico
cuida , que a íua fé he melhor, que a dos infiéis, fo-
mente porque crê o que enfma o Credo, enganafe,
e mentefe a fi mefmo. Naó bafta fó crer no Credo ,
heneceífario crer nos Mandamentos. A noíTa fé pá- Part. j;
ra no Credo , nao pafla aos Mandamentos. Se Deos ^"'"- ^^
nos diz , que he hum , creyo : fe nos diz , que faó três
peífoas , creyo : fe nos diz , que he Creador do Ceo ,'
e da terra, creyo: fenos diz, que fe fez homem ,quej
nosremio, e que ha de vir a julgar vivos, e mortos,!
creyo. Mas fe diz, que naó jureis, que naó mateis ,
que naõ adultereis, que naõ furteis, naó cremos.
T
iiiii
Patt. II
AdTic. I,
16.
284 Vieira ahhreviado
Efta he a noíTa fé, eíla a voíTa Chrift.ndade. Somos
Cathohcos do Credo , e hereges dos Mandamentos.
Na:n.- J^^ ^^'^ ^^^^ > ^ boa fé , torno a dizer, lie menti-
-• 5^3. ra. E porque outra vez ? Porque o que profeíFa a fé,
nega o a vida: o que diz o fom das palavras, nega-o a
diíTonanciadasobras. Vede como concorda S Pau-
!^^''''?^' ••-íf ' Vi"""' 'i^ayoresTheoIogos da efco-
tem negam : Com as vozes confeíTaÔ a fé de Deos e
, com as obras ncgaõ ao mefmo Deos , e a mefma fé ,'
que confeíko. Dizeime: He boa a fé dos Chriílaos
que a negao em Argel ? Pois fabei , que para fer re-
iiegadosnao he neceíTario ir lá cativos. Ouvi aS
Salviano Bifpo de Marfelha , que eftá defronte do
nieímo Argel : Cbrtfliani ftne operibus bonis nthil
Míperjideifupercihimiufiirpare dehent Notefe
muito ofideifnperciliiim. Por huma parte naÓ fó
vazios de obras boas , fenao cheyos , e carregados de
obras mas : e por outra com as íobrancelhas^levanta-
das, mujto prezados , e prefumidos de ChriftaÕs ,
lií arpando , e roubando o nome , que lhes naõ he de-
. Vido. l or huma parte com a voz , e com os penfa-
mentos blafonando , que navegao na barca de Pedro
e por outra com ambos os braços remando nas galés
deMafoma He boa fé eíla? He melhor, que a dos
nieímos Turcos? NaÔ faltará quem replique, Qá\-
Píl^^a^/'!!' ^ '^^'^ omeímo exemplo. Porque os
Cnriítaos forçados , que remaó nas galés de Mafo-
ma debaixo das bandeiras Turquefcas, nem poriílb
perdem a fé de Chrifto. -i ' F "
Nam 5M. piS Agradeço a agudeza da replica ; mas vamos
navegando pelo Mediterrâneo acima. Aporta a mef-
ma gale ao porto de Chipre, falta Mulei Hamet no
meyo
m
\
D/>/r>LXXXV. 285
meyodacoxia,derembainha a cimitarra, edizalíim:
Comeíla a todo oChriftaõ, que nnó adorar, aquel-
Ja imagem de Vénus, hei de cortar a cabeça. E que
(uccederá nefte caio ? O Chriftaõ , que naõ quiz ado-
rar, perdeo a cabeça, e Hcou maityr, o que adorou,
coníervou a vida , e ficou renegado. Agora pergun-
to : E íe aquelle Chriílao , que por força , e contra
fua vontade adorou a Vénus em huma eftatua de
mármore, he renegado , que diremos daquelles , que
naó por força , fenao muito por fua vontade , e por
feu gofto adoraõ a mefma Vénus, naó em huma eíla-
tua de mármore , fenaó em outras, que naó faô de
pedra? Se aquelle, que dantes era Chriílao, e de-
pois negou a fé , he renegado : o que no meí mo tem-
po confelfa a fé , e a nega , que fera ? Deíles he que
falia S. Paulo : Confitentur fe no[/e Deum^faâíis au-
tem negant; No mefmo tempo confeíTaÔ a Deos , e
no mefmo tempo o negaó : e fé juntamente confef-
fada , e negada , que fé he ? Peyor que a do Turco;
porque o Turco naó nega o que coníeíla ; o Chrif-
taõ nega o que confeíía com manifeíla contradição.
Aííim o definio com authoridade Pontifical S. Gre-
gório Papa: ty/y?//^?// operibus tenet ^fimoribusíion
contradícit. Confeílar a fé coni^taó manitefta con-
tradição naó fó he crer em Deos com fé falfa; mas
he crer em Deos á falfa fé , com fé mentirofa , com
fé renegada , com fé traidora. E ninguém fe admire
de eu chamar a efta fé dos que fe chamaõ Chriíla6s,
peyor que a do Turco ; porque o meímo S. Paulo ef-
tranhando muito menores defeitos de boas obras ,
naó duvidou dizer , que fó pela omiífaó delias era
peyor o Chriílao, que o infiel : Et ejt infideli de- jj^^^-í'-
t^rior.
919 E
2 8 6 Vieira ahhreviado
Part. t. 919 E porque nos nao lifonjeemos com a fé de
Num. ^M.Chf lítaos , e Gatholicos , que nos diftingue dosgen-
tios , e dos hereges , quero acabar eíhs verdades
com huma verdade, em que naô cuidamos os Portu-
guezes , e nos devera dar a todos grande cuidado
ÍMamonos muito em que cremos firmemente em
Chnílo como fieis Gatholicos? Pois eu vos digo da
parte do meímo Chriílo, e vos defengano, quefe
faltarmos á íegunda parte da fé , também nos faltará
a primeira : e que fe naÔ crermos a Chrifto , eílamos
muito arnfcados a nao crer em Chrifto. Inglaterra
Hollanda , Dinamarca , Suécia , e tantas outras Pro-
víncias, e naçoens da Europa , ou totalmente per-
didas , ou inficionadas da herella , também foraô Ca-
thohcas como nós , também ílorecerao na fé, tam-
bém deraô muitos , e grandes Santos á Igreja. Epor^
que cuidais , que apoílatáraó da mcfmalgreja , e da
verdadeira fé , que fó ella enfina ? Diga-o a fua dou-
trina, eos ícus Meftres. Luthero, e Calvino, eos ou-
tros, queelles levarão apoz feuserros.tambem criaõ
em Chriílo ; mas porque nao crerão a Chriílo , já naó
crêm nelle. ImpugnaÔ , e negaô o Euangelho , por-
íjuenao crerão ao Euangelho. Deraófe íbltamente
aos vícios , e peccados ; e porque os nao quizeraõ
iconfeíTar, negarão o Sacramento da Confiíraõ, hirga-
rao a rédea á torpeza , e fenfualidade ; e porque naõ
<]uizeraõ guardar continência , negarão a caílidade ,
entregaraõfe dsdemafias, e intemperanças da gula;
e porque naõ quizeraõ fer íobrios , negarão o jejum,
e a penitencia, feguiraô em tudo a largueza, e li-
berdade da vida ; e porque naõ quizeraõ obrar bem,
negarão o valor , e nec^ílidade das bnas obras. Em
fim deixada a ley de Deos como fieis , e a da razaõ
como
Difcurfo LXXXV . 287
:omo homens , Hzerao outra , que elles chainaõ re-
ligião , na qual ió fe crê o interelle , e le obedece ao
appetire. Vede que fé fe podia coníervar entte cof-
tumes de brutos? Gonfervaraõ o Bauíifmo, é noiTie
de Chriílaós ; mas verdadeiramente faó Atheos ; e
porque naõ crerão a Chriílo, paílaraô a naô crer em
Chrifto. Eftas faó as diípofiçoens, por onde íe intro-
duzio , e fe ateou em tantos Reynos a pefte da here-
fia : e praza a Deos , que do Setentriaõ naó paíTe
também ao Occidente ! Ainda cá naó chegou , mas
á eftá em caminho , e fegundo os vicios lhe tem
aberto as eítradas , naó fera difficultofa a paflagem.
DISCURSO LXXXVI.
Tirado dehíimjermaô deS. Pedro Nolafco pregado
Jobre as palavras : Ecce nos reliquimus omnia , &
fecuti fumus te : quid ergo erit nobis ? E dasob-
jeçoens , que contrajimefmo põem o AuSior no
fermao da protecção de S. Francifco Xavier y
a quem devem imitar os Monarchas.
''!''»'
920
RELIGIOSOS.
EStas duas claululas de S. Pedro: deixar , e Part. ±: ^
feguir , faõ os dous poios da virtude , íaó ^"'"' ^°^*
o corpo, e a alma da fantidade, faó as duaspartes, de
que fe compõem toda a perfeição Euangelica. A pri-
meira deixar tudo : Ecce nos reliquimus omnia, A fe-
gunda feguir a Chrifto : Et fecuti fumus te. Se lan-
çarmos com advertência os olhos por todo o mundo,
acharemos nelle quatro differenças de homens, em
que eíte deixar , e feguir do Euangelho eftá varia-
mente
2 8 S Vieira ahhreviadó
r-i
mente complicado. Ha huns , que nem deixao , nem
feguem: ha outros, que deixao, masnaô feguem :
outros, que feguem, mas naô deixao : outros, que
deixaó,e juntamente feguem. Naó deixar, nem fe-
guirhemiíeria: deixar, e naófeguir he fraqueza:
íeguir, e naó deixar he deíengano: deixar, e íe-
guir he perfeição. Em nenhum deftes quatro predi-
camentos entraó os homens do mundo, ainda que fe-
jaó Chriftaôs ; porque nenhum delles profeííh dei-
xar, efeguir. A fua profíflaô he obedecer aos pre-
ceitos , mas naô feguir os confelhos de Chrifto. Os
que fomente profelfaõ deixar , e feguir, fomos todos
os que temos nome de Reiigiofos. E para que cada
hum conheça em que predicamento deites eílá , e a
qual pertence, fe ao damiferia, fe ao da fraqueza,
fe ao do defengano , fe ao da perfeição , fera bem ,
que declaremos eftes nomes, e que definamos eftas
differenças , e que faibamos quem faô eftes mifera-
veis, quem fao eíl es fracos, quem faõ eíles defenga-
nados , e quem faõ eftes perfeitos , e fantos.
Num. xoy 92 1 Os miferavcis , que naô deixao , nem feguem,
faô os que fe metem a Religiolos , como a qualquer
outroofficio, para viver. Fica no mundo hum moço
fem pay , mal herdado da fortuna , e menos da natu-
reza, fem valor para feguir as armas, fem engenho
para curíar as letras , fem talento , nem induftria pa-
ra grangear a vida por outro exercicio honefto ; que
faz } Entrafe em huma Religião das menos aufteras,
vefte , come , canta , converfa , naô o penhoraô pela
decima , nem o prendem para a fronteira , naô tem
coiíía, que lhe dê cuidado, nem elleotoma : emfím
he hum Reiigioío de muito boa vida , naô porque a
faz, nus porque a leva. Eíletal nem deixa , nem fe-
gue.
vW
Difcurfo LXXXVL 285»
gue. Naó deixa, porque naó tinha que deixar: naó
fegue, porque naó veyo feguir a ChriUo, veyo
viver,
022 Os fracos , que deixao , e nao feguem , lao
os que traz á Religião o nojo , o defar , a defgraça ,
e naó a vocação. Succedelhe a hum homem nobre ^
e briofo lahir mal de hum defafio , fnzeremlhe huma
aíFronta , que naó pode vingar , negarlhe ElRey o
defpacho , e o agrado , naó levar a beca , ou a cadei-
ra, ou o pofto militar , a que fe oppoz, ou levarihe o
competidor o caíamento,em que tinha empenhado o
tempo , o credito , e o amor : enfadado da vida , e in-
dignado da fortuna entrega a fua cafa a hum irmaó
fegundo^ metefe em huma Religião de repente ;
mas leva comfigo o mundo á Religião , porque olha
para elle com dor , e naó com arrependimento. Efte
deixa, mas naó fegue. Deixa porque deixou o patri-
mónio , e a fazenda : naó íegue , porque mais o trou-
xe , e tem na Religião a afronta , que recebeo no
mundo , que o zelo , ou defejo de leguir , e fervir a
Chrifto.
923 Os defenganados, que feguem, mas naó dei-
xao , íaó os mal pagos dos homens , que o verdadei-
ro defengano traz a Deos. Viíles o foldado vetera-
no , que feitas muitas proezas na guerra fe acha ao
cabo da vida carregado de annos, de ferviços , e de
feridas íem premio : e defenganado de quaõ ingra-
to , e mao íenhor he o mundo, querendo íervira
quem melhor lhe pague, e meter algum tempo entre
ávida, e a morte, troca o collete pelo fayal, otali
pelo cordaó, e a gola pelo capello em huma Religião
penitente , e naó tendo outro inimigo mais que a íi
meimo, contra elle peleja, a elle vence, edelle tri-
Tom. II. T unfa.
^
Foi. 481,
2^0. ^Víeira abbreviado ■.
linfa. Efte he o que naó deixa , mas fegue. Naõ dei-
xa 5 porque naô tinha que deixar mais que os p^ipeis ,
que queimou , que íempre foraÕ cinza : e fegue , por-
que já naó conhece outra caixa , nem outra bandei-
ra , íenao a voz de Chriílo , e a fua Cruz.
924 Finalmente os perfeitos, e fantos, que dei-
xaõ , e juntamente íeguem , faô os que chamados , e
fubidos pela graça divina ao cume mais alto da per-
feição euangeiica , imitaô gloriofamente a S. Pedro,
e aos outros Apoftolos , os quacs tudo, o que ti-
nhaó, e tudo, o que podiaó ter,deixaraó, e renuncia*-
rap por Chriílo, e em tudo, oque obrarão, e enfina^
raó, íizeraó, e padecerão ,íeguira6, e imitarão a
Chriílo. EporiíFo S. Pedro em nome de todos , e
todos por boca de S. Pedro dizem hoje com tanta
confiança, como verdade: Ecce nos reli quimus
omnia , (Ip^fecutifumus te.
925 Ser religiofo, e fanto aííim como para a
innocencia da menor idade he o meyo mais próprio,
e natural , aífim para a idade proveja dos Reys, e
malicia do mundo , que elles governào , naÔ fó pare-
ce o menos eíiicaz , íenaó ainda o mais contrario. Ar-
íenio foy Meílre do Imperador Arcádio , e Caííio-
doro d'ElRey Theodorico, ambos porém antes de
ferem o primeiro Anacoreta , e o fegundo Monge.
E fe S. Raymundo de Penhaforte fendo Religioíb,
acompanhou a ElRey D.Jayme a Malhorca defen-
ganado do pouco, que valiao com elle ícus bons
confelhos , negandolhe embarcação a fez de feu pró-
prio manto , e navegou fobre ella a Catalunha obe-
decendo o mar , e os ventos a quem naõ pode fujei-
tar hum Rey Chriílaõ dominado de feus appetites.
92Ó As virtudes religiofas faó muito diverfas
das
i
Ét
Dijcurfo LXXXYI. 291
das reaes , e o que he em hum Religiofo a mayor vir-
tude, íeriaem hum Rey o mayor vicio. Ve-íe clero
na obediência , que lendo no Religioío o fundarr en-
to, e elTencia da fua profiiTao , no Rey , ^omo uiz o
Rev Profeta, feria o mayor de todos os del?Ctos
dcixaríe dominar, e obedecer a algum , quando de-
ve mandar a todos: Sh??eí no7iJiiennt domuiait,
ttmc iimuactilaíus ero : &- emuJidahor à dehão má-
ximo. Do Religiofo pódefe eíperar , que faça bmn
hum homem ; mas fazendo hum homem bom , pode
fizer hum Rey mao; porque a bondade, que faz bom
a hum, he particular, e a do Rey ha de Ter univer-
fal para todos.' Os" mcftres íaÓ os eípelhos dãquelles,
a quem enfinao , e como feráo neftes efpelhos os re-
flexos reacs, moftrando á purpura o fayal , á opa a
cogula , e o capello á coroa ? A tórma , que fc ha de ^
introduzir , faz femelhante a íi a matéria : e como fe-
ria D. Afonfo Henriques taó grande Rey, fe nnó foíle
Egas Moniz , em tudo o mais leigo , taô grande ayo ?
C^ie efpiritos foberanos , e reaes pode influir hum
profeílor de tao differente eftado , ainda que feja de
gr^inde efpitito? Enfinará o Rey a orar, e quando
íaya grande rezador , para encaminhar o feu Rey no
lerá cego David , que fez o Pfaiterio, dizia, que
nas fuás Matinas meditava em Deos : In matutinis pí". 6u 7.
ineditabor inte. iVlas os pontos da meditação nas
nieímas Matinas eraõ nrrancir da terra todos os
niaos : /// matutino interficieham oiJtnes peccatores pí. 101. s.
terr£. Inclinaíloha como virtuoío, aque prefira os
virtuofos , e com ifto , íem querer , o meterá nos en-
ganos Tantos da hypocreíia , agradandolhe mais hum
hypocrita mal veílido, que hum CapitaÔ bem arma-
do. O cavallo Troyano fov recebido em prociífuo
T 2 dentro
25^2 Vieira ahbreviado
dentro dos muros como voto dos Gregos á deofa
Pailas, e debaixo defta eípecie de religião ievava
dentro o incêndio, com que ardeo 1 roya. Como ar-
bitro da coníciencia fajjoha muito eícrupulofo ,
mas por iíTo irrefoJuto, perdendo em coníultas o
tempo , que fe havia de empregar nas execuçoens/,
como bem eftranhou Tácito no Imperador Valente ;
ComeUib. ///////•// cunaatíone agendi têmpora confultando
^' '' confumpfit. E ifto acontece aonde falta a refoluçao,
qoebufcandofe o impoíTivel demeyos, que naó ti-
nhaó inconveniente, tudo fe teme, e nenhuma coufa
fe faz.
927 Deixo os damnos, naó do habito rei igio-
fo^, fenaÔ dos hábitos , que fe podem pegar ao Rey;
taõalheyos da obrigação, como da Mageílade. Pe-
lo defejo da paz a defattençaó das armas , e da guer-
ra , pelo efcrupulo da vangloria o eíquecimentoda
fama, pelo amor, e nome da piedade o perdão na
tolerância dos delidos, em fim pelo penfamento úni-
co do Ceo perder a terra , e fer como o Mathemati-
co de Séneca , que naó vendo onde punha os pés ,
porque levava os olhos nas eftrellas , cahio na cova.
Taes eftatuas faõ,como dizêos politicos, ( t eftatuas
fomente) as que fe podem fabrica», e íahir das offici-
nas clauílraes , e no cabo de muita lima , ou fundição
quando a Republica ha mifter hum grande Rey,
acharfeha quando muito com hum beato.
DIS-
YW'
Difiurfo LXXXVII. 29 5
DISCURSO LXXXVII.
Tirado de hum ferniaÕ de S. Jofcpb pregado na
Capella Real.
R E S O L U C, A M.
8?.8
iíTo fa?.em
COníidcrar antes de reíblver , iíio fa?.em . p.m. 7.
ou devem fazer todos ; mas depois de re- ^'"«^- 53^-
folver , devefe confiderar ainda ; porque as matérias
de grande importância haófe de coníiderar antes, e
mais depois. Antes de reíblver hafe de coníiderar o
calo: depois de reíblver, hafe de coníiderar a reío-
luçaó. Eíla diíferença acho entre a Filoíoíia natural,
e a moral , e a politica , que a Filofoíia natural pede
hum conhecimento antes da deliberação : Nthtlvo-
lituin , quin pracognitum. A Filofofía moral , e a po-
litica pede hum conhecimento antes , e outro de-
pois: hum conhecimento antes, que guie a vonta-
de a tomar a refoluçaô, e outro conhecimento de-
pois, que examine a refoluçaô depois de tomada.
Antes de fe fazerem as coufas haíe de temer o queN«m. 19?
dirávõ-. depois de feitas hafe de examinar o que di-
zem. Huma coufaheoacerto,outraoapplauío. A -
boa opinião , de que tanto depende o bom governo,
naó le forma do que he , íenaó do que fe cu ida , e tan-
to fe devem obíervar as obras próprias , como ref-
peitaros penfamentcs, e linguas alheyas. A provi-
dencia , com que Deos permitte a murmuração , he
porque talvez de tao má raiz fe colhe o fruílo da
emenda. E fe eu de murmurado me poílb fazer ap-
plaudido ; porque me naô informarei do que íe diz ?
Tom. II. T3 DIS-
25?4 Vieira ahhreviaão
B I S C U R S O LXXXVIII.
Tirado, domefmofermaãde S. Jofeph..
RE Y.
Part;. 7.
9^9
Num* 5 3 5
Num. 5 3^
EM nenhuma coufa femofíra mais o fer de-
. Rey , q;ae. em ter querer. A liberdade da
vontade humana , como dizem os Theologos , con-
iifte em huma indiferença, que fe chama, quero,
ou na.6 quero. Tal ha de ler a vontade Real: livre, e
naô fujeita. O Príncipe nem ha de ter a fua vonta^
de íujeitaa outrem, nem ha de eftar fujeito á fua
vontade. Se tem a fua vontade fujeita aoutrera, naó
he Rey dosfeus: fe eftá fujeito á fua vontade, naó
«e Rey de fí. Pois para reynar fobre fi , e lobre os
feus ha de ter a vontade em huma indiferença taô li-
vre , e taô fenhora , que feja feu o querer , e feu o naõ
querer.
.930 ^ E porque razaõ importa tanto, que o Prín-
cipe nao feja íujeito a vontade alheya ? Por duas ra-
zoens , huma da parte do Rey , outra da parte do
Reyno. Da parte do Rey j porque naõ he Rey , he
íubdito , da parte do Reyno j porque naó he Reyno,
heconfufaô.
93 r Com grandes exemplos deíles fe tem infa^
mado o mundo em todas as idades, e fem pedirmos
aos feculos paíFados as memorias de Galba , nem de
Tibério, os noííbs olhos faó boas teílimunhas. Nós.
o vimos, e x\Qs o vemos. Pergunto: Portuguezes, vós,.
qpQ:VJÍles oquepadeceíles, vós, que vedes o que-
golais,,
Dijcurfo LXXXVIIL29 5-
^ofais, donde veyo tanta diífcrença em tao paucos
mnos? AdifFerença naó a pondero , porque a Mm
)S olhos. A caufa , porque a vem, hc fò o que per-
gunto. Sabeis porque ? Porque entaó tinhamcs
lum Rey fujeito a huma vontade alheya , hoje te-
nos hum Rey fenhor das vontades aiheyas, e mais
k fua : entaó tinhamos hum Rey cativo, hoje te-
noshum Rey livre: entaõ tinhamos hum Rey obe*
iiente , hoje temos hum Rey obedecido : entaõ fi-
lhamos hum Rey fenhoreado, hoje temos hum Rey
"enhor.
DISCURSO LXXXIX.
Tirado de hum fermao de Santo Agojlinho elogiado
pelo Aiiãor por confejjar 7íos feiís livros os Jeus
peccados , e por fe retratar ndles de feus erros,
E de outro fermao de Santa Catharina , que
Denceo , e convenceo a cincoenta bilofofos.
SÁBIOS.
Part. 3.
932 A Mayor acçaõ de Deos fazerfe homem , Num. 155-
t\. e a mayor fineza deita acçaõ nao con-
Iftio tanto em tomar a noíla natureza , quantoemphiiip.i. 7*
:omar a noíTa femelhança : Jn Jímilitudinem homi-
numfaêíus , <ÍT habitu inventus ut homo. Naô to-
nou Deos a natureza humana como a tinha dado a
A.daó , fena5 como a achou depois delle , e cahida de
feu primeiro eftado, e fujeita a tantas, e tao peza-
ias miferias. Sujeitoufe a nafcer , a morrer , e a vi-
^'er, ( que naÕ he menos) a trabalhar, a canfar, a
T4 fuar,
T
#
2^6 Vieira ahbreviado
fuar, adorcs,atriftezas, a lagrimas, a íer perfegui-
do, a fer aíírontado, a íer crucificado. Mas com fe
fujeitar a todo dle abifmo de miíerias, e baixezas,
(^porque como diz S. Paulo : Debuit per omiúafra-
tribus Jimilari ^) exceptuaraoíe com tudo duas , de
que foy totalmente ifenta , e privilegiada a huma-.
nidadedeChrifto. Equaesforao? Opeccado, ea
ignorância. Porque he taô feya coufâ o peccado , e a
ignorância taó isuiecente , que ainda no cafo , que
fofle poííivel , de nenhum modo era tolerável , que
em huma humanidade unida a Deos houveíTe pecca-
do , ou ignorância. Sendo pois tal fealdade a do pec-
cado, e tal indecencia a da ignorância, fó quem com-
prehender quaó feya coufa be o peccado , e quaô in-
decente a ignorância, poderá avaliar, como merece,
eftas duas acçoens deAgoílinho.
933 ^s Santos, como conhecem agra veza, e
malicia do peccado , e quanto maisfeyos faó os de-
feitos da vontade, que os do entendimento, mais
íe pejaõ de fer máos , que de fer mal entendidos , e
antes querem parecer ignorantes , que peccadoies.
Por iíTo David como fanto confeíTando os peccados
por deliòlos, allega as ignorâncias por defculpas:
Delicia juventittis mea , ^ ignorâncias meãs 7ie
inemifieris Domine. A razaõ defta diíFerença he ,
porque a ignorância oppoemfeá fciencia, e o pec-
Num. i!^6. cado á virtude : e quem he verdadeiramente íanto,
muito mais eftima a virtude, do que fe preza da
fciencia. E como he próprio da fantidade eílimar
mais o conceito da virtude , que o da fciencia , e fo-
frer antes contra íi a opinião da ignorância , que a
do peccado , he o commum conceito, eeftimaçaó
dos homens ter por menos injuria o peccado , que
a ignorância. ^34 Con-
Num. 195.
Píalin. 14.
7.
■■•
Difcurfo LKXXIX. 297
934 Condemna Chrjfto ?.s injurios, com que osNum.igs.
homens fe afrontaó de palavra , aííinalando tnmbem
o caíligo , que cada lumia merece , e como íobera-
no Legislador manda aíTim : Oiii dixerit frati'i Juo Matth.j;
raça , réus erit concilio : qui atitem dixerit fa- "•
tiie^reus erit gehena ignis \ O homeni , que cha-
mar a outro raça tenha pena arbitraria ; porém o
que lhe chamar/}^í?/e, feja queimado em huma for-
nalha. A palavra /^í«í? todos Hibem , que fignifica
neício , e ignorante: a outra que he Arábica, quer
dizer impio , ou mais propriamente blasfemo. Qiieni
haverá pois, que naõ julgue, ou ao menos lhe naõ
venha ao penfamento , que neíles dous cafos tao di-
verfosfenaô mede bem a pena com a culpa ? O fer
nefcio, e ignorante he hum defeito natural : o fer
impio, e blasfemo he peccado graviííimo : como
logo fe di pena arbitraria ao que chama impio , e
ao que chama ignorant; pena de fogo ? Porque ain-
da que o fer impio pira com Deos he mayor pecca-
do , o fer ignorante para com os homens he mayor
injuria. A injuria , ou contumelia medefe nefte cafo
pelo fentimento , e afronta, que o homem recebe,
e nenhum ha, que naô finta, e fe afronte mais de
fer motejado de ignorante , que fer notado de mdo.
935 Aífim como he natural a todo o homem en-Num. 175.
cobrir o feu peccado , aífim he natural a todo ofa-
bioíuftentar, e naõ íe defdizer do feu erro, e tan-
to mais , quanto for mais fabio. O mais íabio efpi-
rito , que Deos creou > foy Lúcifer ; e he cafo ver-
dadeiramente eftupendo , que huma creatura dota-
da de taó fublime entendimento , e allumiada de taa
alta fabedoria cahiífe em hum erro taó craílo , taó
manifeílo , e taõ nefcio , como cuidar , que podia
ler
Ifaí.
14,14
Parr. 7.
ív'uin. 10 1
25^8 Vieira ahhreroiado
fer reinelliantê 5 Deos, e dizer , que o havia de fer-
^tmihs ero Altiffímo, Mas ainda eíh naÔ lie a mayor
admiFaçno. O que mais admira, e hz pafmar he, que
nem no Ceo,onde errou, fe quiz deícer de taõ errado
peníamento;, nem no inferno , ondeoeftá pagando,
lequerdeídizer, ou arrepender delle. No Ceo entre
o peccado, e condemnaçao de Lúcifer he fenten-
\l ™i'^ a ^^^^^^^^'^^^ á piedade divina , que lhe deo
Ueos baílante eípaço para fe converter : e no infer-
no he também Theologia certa, que ainda tem li-
berdade para o fazer , fe quizer. Pois como he pof-
lu'^1, quecoubeífe, e caiba em hum entendimento
tno fai^io querer antes cáhirdo Ceo, e arder no in-
|5rno , que dêídizerfe do que huma vez diífe , e per-
iíítir no mefmo erro por toda a eternidade ? Se Lu-
arcr foubera menos,elJe reconhecera o feu erro; mas
agrande fcsencia , que tanto o inchou para errar ef-
la mefma o obítinou para fenaô defdizer. De forte
que he tal contumácia a do muito faber, huma vez
que íe chega a ufar mal delle , que antes quererá
hum fabio prefumido cahir do Ceo , que deícerfe da
fua opmiaõ, e antes arder no inferno, que deídi-
2.^x{q do que já tem dito. De tal maneira obra Deos
com a fua , e íummá fabedoria , que parece fe emen-
da com a experiência. Arruinoufelhe o primeiro edi-
fício , porque o fundou em hum homem de barro;
para que fe lhe naÔ arruine o fegundo, funda-oem'
luim homem de pedra. Retratafe do que tem feito
Deos, que naõ pode errar, e os homens eílaõ tao
namorados de feus erros , que antes os vereis obíli-
íiados, que arrependidos. Dirnó que hetimbre.efte
de eníendimcntos Angélicos , porque nenhum Anjo
firrou , que fe retratalle. Eu digo, que naõ hc íenaõ
con-
■M
Difciirfo
25)9
contumácia de entendimentos diabólicos, porque p^-. 3.
nenhum Anjo errou , que nao folie demónio. Se fora ^^i"'- » /j
verdadeira aquella irriaginaçaõ de Ongencs , o qual
teve para íi , que as nollas almas erno Anjos, qwean^
davaô penando dentro nos noílbs corpos , e pagan-
do algumas culpas, que tinhaó commettido , de mui-
tos homens fabios , que errarão , e nunca fe quize-
raô retratar, dilleraeu, queeraó os Anjos fequazes
de Lúcifer.
936 Tal foy o mefino Origenes, tal Tertúlia- Num. i^^.
no, tal Apollinar, e outros famoíiífimos Doutores
£m todo género de erudição divina, e humana, os
jquaes tendo fido infignes Meftres da Igreja , e ainda
hoje allegados, por fe naô quererem retratar de al-
guns erros , em que como homens cahiraô, corn per-
petua dor da mefma Igreja foraõ anathematizados,
e apartados delia , podendofe dizer com verdade de
pada hum , o que Félix imputava a S. Paulo : Mui- ^ct 10.14.-
t<e te liter^ ad infaniam convertimt. Mas fendo ef-
jtes , e outros iníignes varoens taô fortes domadores
de outras paixoens humanas , chegados ao ponto de
fe haver de retratar do que tinhaô enfinado , aqui
fraqueou todo o feu valor , aqui perdeo o paflo to-
da a fua fabedoria , e aqui fe cegarão , e efcurecerao
de tal forte aquelles grandes entendimentos, que an-
tes quizeraõ perder a união da Igreja , e com ella o
único fundamento da própria falvaçao, que defdi-
zerfe do que tinhaó dito; porque a retra&açaõ do
que fe efcreveO) e fahio a publico em homens de opi-
nião hemuito mais difficil. Prefentado ChrÍíloantê^^ui„^ j^s^
Pilatos ouvio elleas accufaçoens, examinou as teíti^-
munhas, reconheceo o ódio, e inveja dos inimigos,^
epronuncionao Senhor por innocente. Inítandopo-
réiiB
JOau 19
II.
300 Vieira abbreviado
rém os accufadores : Si hunc dimittis , non es amtcus
Ca j ar is : omnis enim^ qtii J e Regem facit ^ contradi-
cit Cafari: Que fe abíblvia nqueile reo , incorria em
crime de lefa Mageftade contra o Cefar , pois era
contra a foberaDJa do Império coníentir dentro nel-
le hum homem , que fe chamava Key. Pode tanto
com Pilatos o temor deíle requerimento , e o reípei-
to do nome , e amizade do Gelar , que condemnou
em Chriílo a innocencia , e crucificou com Chrifto
a juíliça. Crucificado em fim o Senhor , mandou fi-
xar na Cruz, como era coílume, a caufa porque pa-
decia , efcrita com aqucllas palavras : Jefu Nazare-
no Fvcy dos Judeos ; das quaes novamente efcanda-^
iizados os accufadores tornarão a replicar, que as
n^íandaífe emendar , e q em lugar de Rey dos Judeos
diííelle, por fe fazer Rey dosjudeos. Porém Pilatos
joan. \j. refpondeo '. Qjod fcripfi , fcripfi : O que e fere vi ,
efcrevi : e de nenhum modo o podéraõ perfuadir a
que mudaíTe o que tinha efcrito. O grande reparo ,
que tem eíta refpoíla , todos o eftaõ vendo. Muito
mais oíFendia Pilatos ao Cefar em dar a Chriílo o
titulo de Rey, que em lhe naÓ dará morte, e muito
mais fe condenava em lhe dar a morte, que fe oli-
vraífe delia. Pois fe Pilatos naó repara em fe con-
demnar a íi , e a Chrifto por refpeito de Cefar , por-
que naõ lhe tira o titulo de Rey por refpeito do mef-
mo Cefar ? Porque aííim o tinha já efcrito , e publi-
cado: Qtiod fcripfi^ j cr ipft. Oquehum homem de
íciencia, ou prefumpçao huma vez efcreveo , e pu-
blicou , naô o torna a retratar por nenhum refpeito.
Condemnar a mefma innocencia falloha , fe naô for
redlo , por hum refpeito humano ; mas rifcar o que
huma vez efcreveo, eeílá publico em íeu nome, naó
o fará
3-^.
•■•
Dijcurfo L^XXIX. 501
o fará hum lábio prefumido por nenhum refpeito
defte mundo, nem ninda do outro
937 Eila he intolerável cegueira do entendimen- Num. i79*
to, mtoleravel abufo da razaó , e intolerável injuria
da j uftiça , e da verdade , que aquillo, que fe n^õ de-
via eícrever , fe haja de fuftentar , fó porque fe ef-
creveo , e que o fer eícrito huma vez , feja coníe-
quencia de eftar efcrito fempre : Quod fcripji ^ /cri-
p/i. Masefta íentença como fe fora de melhor Au-
áor, he a commummente de todos, os que efcre-
vem , e publicaô feus efcritos. Querem que os feus
livros feiaô, como o livro de predeftinaçaó,emqueo
que ertá eícrito , naô pode fer rifcado : querem que
os feus caraderes fejao coroo os dos facramentos,
que huma vez imprelfos naõ fe podem apagar : que-
rem em fim, que o feu efcrever feja prefcrcver: Quod
Jcrtpjl^fcrip/í.
938 Quantos Julgadores ha , que ou no voto , ou Num. loo.
na tençaõ , ou na fentença reputaó por diícredito o
retratarfe, e feguindo o didtame, ou feita de Pila-
tos tem por timbre o dizer : Qtwdfcripji ^fcrtpfi. E
também pode fer , que haja algum , o qual fem repa-
rar em que le condemna, naô fe retratando ou pe-
la inveja de que outro votou melhor, ou pela fober-
ba de naó confeíTar, que errou , naô tema acompa-
nhar a Lúcifer no caftigo , como o imita na^ contu-
mácia. O retratarfe naÕ he argumento de naô faber;
mas de faber, que muitas vezes pôde acertar o me-
nos douto no que o mais letrado naô advertio. Qiie
comparação tinha na fciencia Jetro com Moyfés ? E
com tudo conheceo Moyfés , que o diéVame de Jetro
era mais acertado , e logo retratou o feu , e leguio o
alheyo.
939 Naô.
\
<€Z^
502
Vieira abbreviado
Num. 101. 939 Nao ha ciência tao jubilada , que naô poíFa
deixar de ver o que vê outra de menos afinos , e de
nienof authoridade. O verdadeiro íaber he defaber
conhecer a verdade , ainda que feja fiiha de outros
olhos, ou de outro entendiiiíento, e nao íe cegar
com o próprio , como fe cegou Lúcifer.
Num. 180 94^ A rnz^io deíle engano deo cxcellentemente
Saíiro Ambrofio : Unumqucmquc falhint fua J cri-
pta , i^ authorempratereiínt : atque titfiiii etiam
deformes dekcíant parentes y (te etíam fcriptor es in-
decores qmqfz fermones palpant : A todos os A u do-
res , diz Ambrofio , eng maò os feus efcritos , e ain-
da que tenhaó erros , fó elles os nao vem. E a razaõ
defta cegueira he , porque fao partos do feu enten-
dimento. E aíFim cotno os filhos, pofto que fejaõ
feyos, agradao a feus pays , e lhe parecem formofos,
aílim os efcritos de cada hum, por imperfeitos, erra-
dos , e mal compoílos que fejaÔ, naturalmente W-
fongeaõ a íeus Au6lores , e lhe parecem bem ; por-
que fe parecem com elles. Lá diííe Elifaz , o mais fa-
bio dos três amigos de Job , que ajufriça de Deos , e
^ perfpicacia dos olhos divinos he tao pura , que até
Job 4. 18. "OS feus Anjos achou imperfeição : In Angelis fuis
Tepcrlt pravitatem. E nao eftá o encarecimento cm
dizer, que achou imperfeição nos Anjos, fendo An-
jos , fenaõ em que achou imperfeição nos Anjos fen-
do feus : /;/ Angelis fuis. Se os olhos de Deos foílcin
como os dos homens, ainda que os Anjos o naô fo-
rao , bailava que foíTem feus , para que lhe parecef-
fem Anjos.
Num. 181. ' 941 A águia , como diz Ariftoteles, e fe íabe
vulgarmente , depois que lhe nnfcem os filhos, e lhe
dá a primeira creaçao indiílindlamente , tira-osdo
ninho
Difcurfo XXXXIX. 5 o 5
ninho, íafpetKie-os nas unhas, e exnmina-os hum
por hum aos rayos do Sol : íe oíiuiô de tito cm filo
para o Sol fem peftnnenr , reconhece-os , e confer-
va os como tilhos proprios;'mas fe íechaô , ou a!aí-
tao os ollios, e naõ foffrem toda a luz, repudin-os , e
lança os de fi, como adulterinos. Pergunto : No exa-
me, e prova, que faz de feus filhos a águia, quaes fíciJO
mais examinados, e mais qual i ficados, os olhos da mãy,
ou os olhos dos filhos ? Naó ha duvida , que os olhos
da mãy ; porque os olhos dos filhos 'naõ fe cegarão
com o Sol , os olhos da may naõ íe cegarão com os
filhos. Naó fe cegarem os filhos com o Sol , ifib he
ferem águias; mas naô fe cegar a águia com os filhos,
iífo he fer may fem amor de máy. Naõ ha amor , Num. i8z:
que mais facilmente perdoe , e mais benignamente ^
interprete , e diífimule defeitos , que o amor de pay.
Grandes defeitos foraõ os do filho Pródigo , e taó
grandes, que elle mefmo reconhecia , que era indi-
gno de Ter chamado filho de tal pay : Patey\ nonfmn^y^c. if.
digniis "úocarifilhis tutis ; mas o pay nem por iífo ^í.
o defconheceo de filho , óu o lançou de ^\ , antes o
abraçou apertadiffimamente, e o íeu primeiro cui-
dado foy cubrillo , e vcíHllo , e enfeitallo com as me-
lhores, e mais viílofas galas: Lho proferte Jiolam
primam. Ifto he o que fazem todos os Efcritores fe-
veriífimos com os defeitos alheyos , e benigniílimos
com os próprios, como pays em fim. David, fendo Num. 183.
taô enormes os erros de feu filho Abíaiaó , e elle taõ
incapaz de perdaõ , oudefculpa, lá lhe buícou , e
achou na idade hum motivo, com que oefcufar, e
i alvar : Servate mihi ptierum Abfalom, Pois fejoab 1.%^^^ i?.
lhe naõ perdoou , e todo o Reyno entaõ , e hoje to- 5.
do o mundo o condemna , como lhe perdoa íó Da-
vid,
Ijj^
'iqiili'
Num.jíi.
304 Vieira ahhreviado
vid > e o quer fal var ? Porque era pay , diz Santo Am-
brofio. E efta he a única , e verdadeira razaó. Naó
ha opinião taÔ errada , naó ha propofiçaó taõ teme-
rária , e taõ Ímpia como Abfalaó , que feus Auclo-
res , como pays y naó queiraó falvar , efcufar , e de-
fender; porque ainda que partos /taó monftruoíos,
faó partos do próprio entendimento.
942 Quem naô he dócil, fenhores , naó pode fer
douto : antes a meíma docilidade he hum fynonymo
da fciencia. A fciencia nenhuma outra coufa he, que
o conhecimento claro de muitas verdades, humas
em fi , que faó os princípios, e outras, que delias fe
feguem , que faõ as conclufoens.E aquelles, que naó
tem docilidade ( como faó os tenazes do propriojui-
zo , e ferrados á fua opinião) ainda que a verdade fe
lhe reprefente , naÓ faÕ capazes de a receber. Por if-
fo eftes taes cadavez fabem menos, e todas as vezes
que a opinião paíTa a erro , períeveraõ nelle. No er-
ro fecreto, em que fenaó perde a honra , facilmen-
te fe íujeita a própria opinião á verdade ; mas no
publico , e ceníurado , em que a honra fe perde, ou
ella defende o erro , ou o erro a defende a ella con-
tra a mefma verdade conhecida.
943 Conhecer hum fabio a fua ignorância , ou
Nuns.35<f.o feu erro he muito fácil : naõ fora fabio , fe o naó
conhecera. Porém chegara o confeífar, e confeíTal-
lo publicamente he o ponto mais árduo, e difficul-
tofo , a que fe pode reduzir o brio humano , e tan-
to mais , quanto mayor for o nome , a opinião , e o
gráo, que tiver de douto. Ponderou Nicodemos a
doutrina de Ghrifto juntamente com a grandeza de
íeus milagres . e veyo â conhecer , que fó ella era a
verdadeira , e toda a outra falia ; Schnus quia à
Deo
Num.iSs».
Joan
s.i.
DifairfoLXXXIX. 505
Deo venijli magifter : Jtemo enim pote/l h<£c Jigna
f acere ^ qu£ tiifocts. Deliberafe a ir bufcar o di-
vino Mellre , e lançaríe a íeus pés, psra que o eníl-
ne: mas como? Erat homo ex P bar ifkis ^ Nicoãe-
niusiiomine: hic venit adjefiun noâíe'. Defpio a to-
ga, ou a beca, e disfarçado , edefconhecidofoy buf-
car ao Senhor de noite. Vede como o nrgue S. Joaô
Chryfoíloíiio : Scimus , inquit , quia à Deo x-é-?;//^ chryíoft.
//" magijler. Oj/id ergo noBu venis , (^ clanciihim ' *'*
adetim , qut divina docet y qui à Deo venit r Oiiid
non aperte profiteris} Se conheceis , que Chriílo
he Meftre vindo do Ceo , íe conheceis, que a íua
doutrina he divina , eo vindes buícar, para que vos
enfine; porque vindes de noite, e ás efcondidas,
porque naó confeílais iilb mefmo clara , e publica-
mente? Porque Nicodemosera hum Meílre de gran-
diííima reputação em Ifrae). Aífim o declara o tex-
to Gi-ego : Tu es magifter ille Í7i Ifrael. E poílo,
que elie já reconhecia os feus erros , iíTo era em íe-
gredo , e das portas do feu entendimento para den-
tro ; porém que elFes mefmos erros, e ignorâncias,
de que já eftava convencido , os houveífe de con-
feílar publicamente, de nenhum modo fez, ou fe
atreveo a fazer tal coufa Nicodemos , porque lho
naó confentia a reputação , e o credito , e por iííb
vinha de noite. De noite reconhecia , que era mor-
cego , de dia queria oftentarfe águia. Oh fe os livros
failaraó, quantas ignorâncias haviao de dizer , que
confuitaõ com elles de noite os que de dia fe publi-
C3Õ grandes letrados! Qiianto he mais cuílofo á pre- Pa-r. n.
fumpçan abater as fobrancelhas, que queimar f s pef- Níum.44o.
tanas ! Mas naó he fó a capa da noite, a que diíTiniuI-
Parr. j.
la eílcs defeitos. Quantas vezes reconhece oquindojv^fJn,;
Tom. II.
35:
na
o
T
i^ .
V Vi
Part, II.
Num. 5 3
na confcieíicÍLi o mefrao , que na cadeiríí o defende â
vozes ? Pouco íabe queíTi naõ conhece a força do ar-
gumento , e a fraqueza da foluçao. Huma coufa he
'refpGnder , outra fallar no cabo. Mas fendo inuy fre-
quentes as contriçoens deíles peccados iá no fecreto
da coníciencia , chegar conr» eiles a publica confiíTaò
quem tem opinião de fabio he milagre íb da graça
de íanía Cathorina, Eíla publica conOíiaó foy o
niayor triunfo da victoria de Catharina , mayor con-
tra Democritos , e Diógenes fem eípada, que fe fo-
raoScipioeas armados. As batalhas mais invencíveis
f 10 as do entendimento ; porque onde as feridas naõ
tiraÕ fangue, nem a fraqueza íe vê pela cor, nenhum
fabio fe confeíía vencido. Diz S. Paulo que a fcien-
i.Cor. 8.1. cia incha : Scientia inflat. E naõ fó he difficil íem
graça muito fingular fciencia fem inchaçaõ,mas fem-
pre a inchação he mayor que a fciencia. A mayor
fciencia , e o mayor entendimento , que Deos creou
entre os homens, e Anjos, foy o de Lúcifer; mas ain-
da foy mayor a fua inchação , e foberba : Similis ero
ifai.14. ^^- jiltijpmo,QontX2i efta rebelião fe deo no Ceo aquella
grande batalha de entendimetos: Faâíum ejipralkím
h^oc.ii.j.magnum in cmlo. Sahio vencedor Miguel, ficou ven-
cido Lúcifer; mas de que modo vencido ? Com tal
inchação, e íoberba do feu íaber, e taÕ namorado
do meímo entendimento , que o cegou , que antes
quiz cahirdoCeo, que defcer da fua opinião. Ha
mais dp íeis mil annos , que arde no Inferno Lúcifer,
e ha de arder por toda a eternidade fó por naÕ admit-
tir hum inílante, em que confeíTe que errou.
DIS
Difcurfo XC. 507
D 1 S C U R S o XC.
Tirado de hum fermao da primeira Dominga da
Quarefma pregado em Ror/ia.
944
SACERDOTES.
Ermittio Chrifto Senhor ncíFo fer tenta- Part. 7.
do do demónio hoje , naõ para fc honrar N^^m-jotf.
com a vidloria, ( que era pequeno triunfo ) m?s para
nos enfinnr a vencer com feu exempio. 1'enrado no
deferto com o paó , e com a fome para' exemplo á
abftinencia do Monge : tentado no monte com as
promellasde todo o mundo para exemplo á cubica
do leigo : e tc^ntado na Cidade íanta com o lugar
mais alto do templo para exemplo á ambição do Ec-
clefiaftico. Eíla ultima tentação por fer tao própria
do lugar, e taóaccommodada ao auditório íerá ho-
je o argumento de todo o meu difcurfo. Veremos
nelle hum corcezaõ de Roma, fegundo as três partes
do thema , três vezes , e por três modos tentado.
Tentado quando vem pertender á Cidade fanta :
Jijjumpjít etim diabclus infanõlam civitatem : ten-
tado quando confegue o lugar, ou dignidade da igre-
ja , que pcrtendia : Statittt eum fuper pimíacnhnn
templi : e tentado com o mefmo lugar depois de
coníeguido , quando o diabo o inítiga a que fe pre-
cipite : Aíitte te deorfiim.
945 Para hum fujeito fer fublimado ao lugar ^'"^' 5°^'
mais alto da Igreja , que qualidades fao as que fe re-
querem ? Requerfe, aindaque menos , a nobreza do
naícimento, requerfe o exemplo da vida,requer-
V2 fe
508 Vieira ahhreviado
íe o exercício das virtudes, requerfc o efpirito mui-
to provado , e requeremíe finalmente as letras naó
íb fabidas mas praticadas.
946 Todas eftas qualidades entaô concorrido juntas
Num. jcs.em Chriíto, ejá reconhiecidos pelo nieímo demónio.
A nobreza do nafcimento: Si Filitis Dei eji^ o exem-
plo da vida : DuÓlus ejl à fpiritti in dejertum^ o
exercício das virtudes : Cumjejmiajfet quadragiiita
diebus , <Í3^ quadragÍ7ita noóitbus ^ o eípirito prova-
do: Ut tentaretur à diabolo , as letras naõ fó fabi-
das , mas praticadas: Scriptum ejl enÍ77i'. Noninfo-
lo pane vivit homo , fed in omnt verbo , quod proce-
dit de oreDei.EquQ fobre todas eftas qualidades jun-
tas , fobre toda efta capacidade de merecimentos
ainda íeja tentação fubir ás alturas do templo I Oh
mundo! Oh cabeça do mundo! E que tentação feria,
fe o Eccleíiaftico tentaíTe a fubida naõ com efpirito
provado, mas reprovado, naõ com o exemplo, mas
com o eícandalo , naÕ com virtudes , mas com ví-
cios, naõ com letras, mas com ignorâncias? Naõ
fAÍlo na qualidade do nafcimento , porque depois que
Chriílo tirou a Pedro , e a André da barca para a ca-
deira, ainda que naó reprovou a grandeza dosappel-
lidos , moftrou , que fe era decente para o lujeito ,
naõ era neceíTaria para o offieio.
947 Em três partes ( como dizia ) dividio o de-
mónio a fua tentação: vir, fubir, cahír. Vir á Cida-
Num. 309. dQ fanta : AJJúmpJit eiim in [miâíam civitatem , fu-
bir ao pinnaculo do templo : Et ftatuit eum fiiper
pimiacííliim templi , cahir, e arrojarfe ao precipício :
Mitte te deorfum. Si/^amos o tentador pelos mefmos
palFos.
Nam. 3 10. 948 A primeira parte da tentação, fenhores meus,
• he
a
Dijairfo XC. 5 05^
he vir o pertendente á Cidade fanta. Pois vir á Ci-
dade ílinta, e pertcnder liuma Igreja tnmbcm fanta
pode íer tenfaçaÕ do demónio? Sim. Porque quan-
do a eleição he de Deos, e mo tentação do demónio,
quando Deos quer , que o Ecclefiaftico tenha Igreja,
e eípofa , naô he elle o que ha de ir á Cidade íanta ,
a Cidade fanta he a que ha de ir a eíle. No capitulo
penúltimo do Apocaiypfe conta S.Joaô o que vio,
e diz aíTim : Fuii civitatem fcmâíamjerujakm def- Apoc. n:
cendentem de coslo à Deo , par atam ficut fponfam '•
ornatúfn^virojuo: Vi deícer do Ceo a Cidade íanta
mandada por Deos , e ornada como efpoía para fe
receber com o efpofo. Notável vifaÕ ! Os homens
fao os que vaô á Cidade , e naó a Cidade aos homens:
o eípofo he o que pertende a efpofa , e naô a eípofa
o efpofo. Pois porque vio S. Joaó tudo ás aveflas ?
Porque o vio ás direitas. Vinha a Igreja do Ceo , vi-
nha de Deos : Defcendentem de ccelo à Deo , e quan-
do a Igreja , e a efpofa vem pelo Ceo , e por Deos ,
naô he o homem o que vay á Cidade fanta , a Cida-
de fanta he aquém vem ao homem. Naó he o eípofo
o que vay bufcar a efpofa , a efpofa he a que ovem
bufcar a elle : Skut fpofifam ornatam viro fuo. E
quando ifto nao he aíTim , lenaó ás aveíT^s , que fera?
Nao he eleição de Deos , he tentação do diabo : Af-
fumpftt eum diabolus infcinõiam civitatem.
949 Quanto melhor providas feriaó as Igrejas , Num. j ti.
quanto mais defcanfados viviriaõ osquefoílem di
gnos delias , e quanto menos occaGaõ íe daria ás ten-
taçoens do demónio na Cidade fanta , fe as efpofas
foifem bufcar aos eípofos , como Rebeca a Ifaac , e
naó os efpofos ás efpofas como Jacob a Rachel ! Em nu^. 5,4.
quanto o efpofo pertendeo , e requereo dentro da
Tom. II. V 3 Cida-
Num. 3 1
3. 1 0 Vieira ahhreviai
Cidade ranía,na5 foy ouvido;miiS quando cílava "íóx^
delía^entao foy bufcado.Naó íois vós o que haveis de
bofcar, haô vos de bufcar a vós, e em tal forma, que
á ígrej:! fe dê os parabéns de vos huver acbcdo, q
qsie íejj neceíiària força , e violência, para que acei*
teis o defpoíarvos com elía. Aílim le delpofou a
Igreja de Mdaò coili Ambrofio , aííim a de Magde-
burg com Norberto , aíFuti a de Cracóvia com Elta*
níslao , aíFim a univeríai com Gregório. Huns efcon-
dia^ófe , outros fugiaô , e outros refiíliâô , e repugiia*
Vaô , e por iíFo mereciao , que Deos por força , e com
jíiiíagres os fubiíTii á mayor altura do templo , e o»
toliocaííe neiía. Mas quando efteslugares íe perten*
dem, efe vem buícar^ ainda que feja á Cidade fari*
ta , quem duvida ^ que pódeíer, como hoje foy, ten-
tação do diabo ? AffUmpJit eutn diabolus in fanâian
tivitatem.
950 Atéqui o vir , que he coufa canfada : paíTe-
mos ao fubir, que ainda que feja cofta arriba, he mais
■fuávê, e fubamos quatito he poííivel. Chegados o
tentador, e o tentado á Cidade fanta , naó p;trou o
dêrfionio até o pôr no pinnacuío do templo : Et fta*-
ttãt eutn fuptr pinnaculinn tempU .^\Xi nenhuma Cor-
te do mundo tem lugar o extremo deita tentação^
fenaô na Corte da Cidade fanta , onde eílamos. Em
todas as outras Cortes podem os Cortezaós afpirar
a fubir, mas naó ao pinnacuío. Podem aípirar á gran-
deza , mfjs naó á Mageftnde: ao titulo, mâs naô á
Coroa. O fidalgo particular pode afpirar a Conde j
o Conde a Marquez, o Marquez a Duque. E aqui
pára o defejo , porque o fer Rey eíld fora da esfera
da ambição. Nefta Corte naó he aílim. Da fotana
ipodeis fubir á murça , da raurça ao mantelcte , do
man-
m
Difcurfo^C. ^11
mnntelete á mitra, da mitra á purpura , e da purpura
á tiara. Subir ás dignidades pôde íer bom , e pode í^'"'"' 3^»-
fer mao ; mas o que fempre he mao , e nunca pode
fer bom , fenaô peílimo, he íazer de hiíma dignidade
degrao para outra , e querer íempre lubir fem jd mais
parar. Naõ fe fobe hoje ás dignidades , íobeíe por
ellas. Hnviaô de fer fim , e faô meyo : haviaÕ de íer
termo, e fao degrao. E tal modo , ou tal fúria de
ambição naô he humana, he diabólica, he luciferma.
Aílim íbbe fempre a foberba do demónio , e aílim fo-
be , e cftá fubmdo fem aquietar, nem parar já mais
á foberba dos que elle tenta , ou dos que fem ("cr ten-
tados o feguem, A foberba , e ambição de lubir mm*
ca eílá mais , que fobre hum pé. 1 em hum pé no lu-
gar, que poíTue , e o outro já vay peio ar para o lu*
gar, que pertende. ífto he íubir fempre. Qiiem fo-
be, quando firma hum pé num degrao, já levanta o
outro para o pôr no que fe íegue. AíFím fobe , e vay
* íubirtdo íempre ( por mais alto que feja o lugar , a
que tem fubindo) quem for tocado defta tentação.
951 Fercuhimfectt fibl Reoc Saiomon : reclina- czm. 3, ^,
ioruimaurenm^ afienfum purpureum: Fez Salamaó lo-
hum leito para fi , cujo reclinatorio era de ouro , e
a fubida de purpura. Com licença da íabedoria dcNum. jip.
Salaniiô eu naõ fizera o leito por efta troça : fize-
ra o reclinatorio de purpura , e a fubida de ouro.
Pura reclinar , e defcaníar a cabeça o curo , amda
que feja muito íuílroío,he muito duro, e muito frio.
Para os degráos era muito decente , e muito antho-
rizado o ouro; porque nao ha modo de fubir mais
magcíloío, que metendo o ouro debaixo dos pés,
epi//.mdo-o.PeIo contrario a purpura era mais accó-
rnodada para o re^clinatorio , porque he branda , e
V 4 con-
312 Vieira ahhreviádo
conferva o calor. Mas a purpura para os degráos :
Ajceniiim purpLireum ? Sim; porque fazia Salainao o
feu leito, naõ como era bem que í-oíle , fenaó como
via , que havia de fer. Via que das purpuras fe ha-
viaÕ de fazer os degráos para o reciinatorio ; porque
he tal a tentação de fubir , que nem nas purpuras fe
pára , nem nas purpuras fe deícanfa : Afcenfum pur-
pureum.
952 Eílou vendo porém, que me dizem os meus
Nnm jiG.Portuguezes: Ainda que temos o exemplo deS. Da-
mafo , e de Jí)aa XXií. os nolTos penfamcntos naõ
fobem ao pinnacuio,nem a taõ alta fuppoíiçaó. Com
huma Igreja das que vagaõ na nolfa terra , nos con-
tentamos, iíío he o que fó pertendemos na Cidade
fanta. Mas também ahi pode entrar com igual peri-
go a tentação do demónio. Eu naô fou muito curial
delias tentaçoens , e aífim fallarei por boca de quem
tinha grande experiência , e pratica delias. O Car-
deal Bellarmino paflando por hum lago deites ar-
redores vio hum moço , que eftava pefcando rans ,
e^a ifca , com que lhes armava , era a pelle de outra
rã já morta. Lançava o anzol com aquella pelíe da
morta , e aííim pefcava as vivas. Eis aqui , diz Bel-
larmino , como pefca o diabo aos Eccleíiaílicos.
Morreo o Cónego , o Prior , o Abbade : e que faz
o diabo } Toma a pelle do defunto , que he a mur-
ça , ou a fobrepeíiiz , e eílola , mete-a no leu anzol,
que he a tentação , e vemfe de Portugal a pefcar a
Roma. Quem cuidaífe tal coufa ! Que o diabo fe vi-
nha a fazer pefcador na borca deS. Pedro ! E que fa-
zem as rans , que ellaõ efperando no lago, e atroan-
do os ouvidos de todos } Tanto que chega a nova ,
tanto que vem a peik da morta , todas a ella com
tan-
Difí
ifciirfo XC.
5M
tant.i boca aberta: e fe alguma fe adianta ás demais,
todas a abocanhaíl:; , e a mordella. Eu nao o vi , mas
alfim o ouço. Niíto faó peyores as rans , que os pei-
xes. Os peixes mordem , e callaô : as rans atronõ ,
e naõ ha quem íe ouça, nem valha com ellas. Que
cada luim pertcnda para fi, humano he; mas he gran-
de deshumanidade , que homens da meíma pátria,
da meíma nação , e do mefmo langue íe mordaô,
femalíratem, e fe afrontem por introduzira íl , e
aíFaílar os outros. O dote da íubtileza no Ceo faz,
que o higir , que occupa hum , nao impida a paíla- M"™-J"«
gem ao outro : e cá o eftudo, e emprego de todas
as íubtilezas he impedir aos outros para lhe occu-
paro lugar. Em fim bem, ou mal occupado, que fe
íègue depois diíTo ? A terceira parte da tentação , e
a mais perigoía de todas.
953 Depois de vir, e íubir feguefe o cahir :Num.3iz;
Mate te deorfum, Confeguio o pertendente o feu
delpacho, expedio as fuás bulias , voltou contente
para a pátria, veie coUocado, ou collado na Igre-
ja com fuperioridade , e authoridade delia , e aqui
eftá o fim de toda a tentação , que he o precipício :
Míite te deorfinn.^^z precipício pode fer,como or-
dinariamente he , ou para a parte da primeira ten^
taçao, ou para a parte da terceira , com que ficará
cahindo em todas três. Na primeira tentação ten-
tou o demónio a Chriílo com pao : Dic at lapides-
ijli panes fiant : na terceira tentou-o çom tudo:
Híec omnia tibi dabo. Em ambas pode cahir facil-
mente o tentado , ou por fome , ou por cubica. Tra-
tavafe aqui em Roma de mandar a Portugal contra
Viriato , e erao pertendentes do poílo Sulpicio Gal-
ha , e Aurélio Cotta : e como os votos dos Padres
conf-
ji4 Vieira abreviado
çonícriptos fe dividifiem no Senado , huns por parte
do primeiro , outros do fegundo , diz Valério Máxi-
mo , que Scipiaó excluio ;a ambos, e deo a razão
exceíleote per eftas púâvr^s \Neuter mitu placet ,
qiaa aitermhtl hahet , alter í nibil ejljatis : NaÓ
convém , que fe imwá^ a Portugal nem hum , nem
outro ; porque hum nenhuma coufa tem , a outro
nenhuma couía lhe baíh. Aos que nada tem, ten-
ta-os o diabo com op3Ó: aos que nada lhe baila, ten-
ta-os Gom tudo : e íendo taô perigofa tentação a da
neceííidade com a da cubica , eíies íaó os dous pre-
cipícios , em que pode, e coftuma cahir quem vay
Num.ji3.,je Roma com defpacho. Os que de cá vao com fo-
me , tenta-os o diabo com paô , e muito mais aper-
tadamente do que a Chriíio; porque a Chriao ten-
tou o o demónio com paõ , que fe havia de fazer :
Dic tit panes fiam \ mas a eítes tenta-os com paô
feito. Deos livre a todo o faminto de que o diabo
o tente com paÔ feito, e preparado. A Heva ten-
tou-a o diabo com a fruta madura, e fazonada : a
Efau tentou o com as lentilhas coíinhadas, e tem-
peradas. Equefuccedeo a ambos.í' Ambos cahiraô
fem reíiftencia. Ser tentado com o comer , que fe
ha de fazer , ainda que haja fome, naõ he tao í?,rande
tentação. Se o pomo eíiivera em flor , e as lentilhas
em herva, nem Heva , nem Efaií fe haviaó de ten-
tar, quanto mais cahir. Porém tentar com o paô , e
feito: tentar com o paô, que outros íizeraó, e vós o
tendes recolhido no voíFo celeiro com obrigação de J
o repartir nos pobres , grande temaçaõ! U Eccleliaf-
tico he dirpenfeiro do paô , e naó fenhor j mas he
grande tentação dodifpenfeiro, que podendofe fa -
zer fenhor , fe naó faça , e podendo coiner o pao, <*
naô
xc
njciirfo At. ■ 315
rtíió coma. Nctl-a parte Ía6 mais venturof^ss as ove-
lhas do cnmpo , que as de Chriílo : porque o pao daí?
ovelhas do campo nâ6 o Í3Óde comer u poílor , e ó
dás ovelhiis de Chliílo fim. E quando o pao do ga-
do he de tal qualidnde , que o pode comer o paílof ,
nqiíi eíhi a tentação. O filho Pródigo depois dedef-Niim. 314.
b-iratar todo o património para remediar a fua ne-
ceíTidade , pozfe a paftor , e o mantimento do íeu ga-
do era tal , que também o paílor o podia comer. Foy
porém taõ honrado , e taô pontual eíle moço , ( co-
mo filho de bons pays que era ) que até daquelle
mantimento ruílico, e groíTeírò, quê íe lhe dava pa-
ra o feu gado , nem huma bolota tomava para fi.
Mas qual era a íua tentação ? Cupiebat explere ven^
trem de filiqtiis , quas porei manducahant \ toda â
fua tentação , e todo o feu appetite era comer, e en-
cherfe daquelJe mefmo mantimento , que íe lhe da-
va para o íeu gido. E fe ifto fazia â fome do filho
Pródigo , que fará a do Padre avarento } Paílor com
fome ha de comer o paõ do gado , qualquer que feja:
e mais os que de cá va6 com fome de tantos- annos.
Os Pregadores zom.baó do diabo tentar a Chriíld
com paó de pedras , e naÕ repàraõ em que eítava ó
tentado com fome de quarenta diâS Para fome d é
muitos dias nao ha pao çiuro, quanto maisp^ara fGK
me de tantos annos. N?ís grandes fom.es, como a de
Jeru falem , e Samaria /chegarão as mays a comer os
próprios filhos. Haveis de comer o pao das ovelhas,
e haveis de fazer das mefmas ovelhas paÔ : Qui de- ^.^ _
'voraitt piebetn meam , ut ctbmnpams. '
954 O fundamento , que tenho para aííim o te-^uj^ ^^^^
mer , e cuidar, he, que quando ouço Éillar nos voííos
provimentos , ou promoçoens , fó íe eítimaÓ os def-
pachos,
ji6 Vieira ahhreviado
pachos , e fe avaliaô os lugares pe!o que rendem. A
hum graó Príncipe deíla Itaiia pedio hum Eccleíijf-
tico íeu vaílallo , que ihe fizelle mercê de certa Igre-
ja. E quanto rende eíTa Igreja ? perguntou o Prínci-
pe. Sereniífimo , refpondeo o pertendente , rende oi-
tocentos até mílefcudos. Bem eftá , naô he muito
o rendimento. E quantos freguezes tem.?* tornou o
Principie a perguntar. Ecomo o pertendente díííeíTe,
que nnÕ fabia , o deípacho com ultima , e fevera re-
foiuçaõ foy eíle : Evos fabeis a conta aos efcudos,
que haveis de comer , e naô fabeis o numero das al-
mas , que haveis de curar } Pois naó fois digno de
ter Igreja , nem de a pertender diante de mim , ide
embora. Oh fe todos os que fazem femelhantes pro-
vimentos, fízeííem eíle exame , e fe ao menos o fízef-
fem os que os pertendem , e faô providos ! Por ilFo
guardaõ os efcudos, e nao guardaó as ovelhas : mer-
cenários, e naó paftores , ou tuíquíadores, que he
peyor. Eftas faô as contas , que fazem, fem fe fazer
conta da que hao de dar a Deos , quando a pedir , do
preço do íeu fangue. Mas aquelles , que fó fegover-
naõpelo ardor habendi ^ iraõ arder onde elJe os le-
va. Aqui irá parar a alegria dos bons deípachos,
e os faifos parabéns dos que os recebem , taó faifos,
como os dos que os daõ.
DIS'
n
Difcurfo XCI. 5 1 7
DISCURSO XCI.
Tirado de hum fermao do Efpojo da May de DeoT
S. Jofepb , pregado na Capeila Real no dia dos
annos d'ElRey D.JoaÔ IV. de gloriofa me-
morta , no qual o Au6íor na paixão de
huns ciúmes forma a ide a de hum
Principe perfeito.
SEGREDO.
955
1| ,T Aterias , ern que pode fer perigofa ap^.^ ^;
Jixl falta do fegredo , nao haó de fahir do Num. 519,
peito do Principe, nem para o mayor valido , nemN"™-5^'<^-
para o mayor confidente , nem para o mayor ami-
go.
^$6 He certo, que perguntou S.Joaô a Chrif-Niia,.j4j.^
to , quem era o traidor , que o havia de entregar :
he certo , que Chrifto lhe reípondeo : he certo , que
dormio reclinado em leu peito S.Joaó ; mas naõ he
certo , quando adormeceo. Pergunto : Em que pon-
to adormeceo S.Joaõ ? Dizem alguns Doutores, que
adormeceo tanto que acabou de perguntar; de ma-
neira , que quando Chriílo refpondeo , já Saõ João
eftava dormindo FundaÓ efte parecer no texto ; por-
que diz abfolutamente , que nenhum dos que efta-
vaô á mefa , foube o que Chriílo diíTe a Judas , quan-
do logo foy executar o mefmo fegredo : Hoc autem^^^'^^'
nemo fcivit difcumbentium. Se nenhum : logo nem
S.Joaô. E fe Saô Joaõ, a quem fe dilFe, o naõ ouvio:
logo já eftava dormindo. Pois que myfterio teve ef-
te fono lubito , que em tal occafiao naó podia fer
aca-
m
1 8 Vieira ahhreviado
acafo? Porque adormeceo Sno João á reípofta de
Chriílo Senhor nolFo naquella occafiao confrangi-
do a faltar a huma de duas : ou ao refpeito de aniigo,
ou á obrigação de Rey : íe naõ digo a Joaõ, o que
me pergunta , falto aos reípeitos de amigo : fe def-
cubro hum fegredo de tanta importância, falto ás
obrigaçoens de Rey ; pois que remédio para naõ fal-
tar ao amor , nem ao fegredo ?
957 Oremediofoy ordenar Chrifto, que SJoaó
iclormeceíTe, tanto que perguntou, paro que naó po-
ú^[\ii ouvir o mefmo , que lhe reípondia. E defta
maneira ficou o fenhor latisfazendo juntamente ás
^brigaçoens de Rey , e aos refpeitos de amigo : aos
refpejtos de amigo, porque reípondeo ao que SJoaó
ihe perguntara, e ás obrigaçoensde Rey, porque naõ
eommunicou o que convinha encubriríe. De forte
que na boca de Chriílo , e nos ouvidos de S. Joaõ ef-
teve o fegredo juntamente encuberto, erevel.ido:
revelado na boca de Chriílo , como íegredo de ami-
go : encuberto nos ouvidos de JoaÕ como fegredo
de Rey. Tanto devem os Príncipes recatar algum
íegredo ainda dos mayores privados, qual era Joaõ.
E íe naõ , conííderemfeos inconvenientes, que do
contrario íe ftguiaõ. Se o Senhor defcobria o fegre-
do a Joaõ , Joaõ havia-o de dizer & Pedro , que para
iífo o perguntava : lejoaõo dizia a Pedro, Pedjo
havia de matar ajudas , que a elTe fim o queria conhe-
cer : fe Pedro matava ajudas, naõ fe executava a
venda , e morte de Chrifto: e naõ morrendo Chrifto,
ficava impedido o remédio do mundo , o género hu-
mano Tem redempçao , e o império do meímo Chrif-
to fruftrado. Pia mnyotes inconvenientes? De ma-
neira , que de fe confervar aqueiie fegredo, que naó
pare-
MHft
m
Bifcurfo XCl, 3i5>
pnrecia nula , depenJeo a coníbrvoçao do Império
de Chriílo. Naõ importa menos hum íegredo^ que
hum Império.
958 Tanto que Chrifto efpiroii , rafgoufe o véo^^''^- H7-
do templo em llnal de que também afynagoga efpi-
rava , e ^c acúbiva a Monarchia Hcbrea. AíFim o di-
zem todos os Doutores ; mns cu : cpiico. O final fem-
pre ha de ter proporção com o que fignjíica , e mui-
ta, íe he natural, pois que proporção tinha rafgarfe o
véo do templo com le haver de acabar o império da
fynagoga ? Grande proporção , diz S Leaó Papa :
Sacrinn illud , myjltcumque fecrettim ^ qiiod jolus
JLimmus Pontifex juffus fuerat intrare , referatum
ejl. Aquelle véo do templo era a cortina , que cobria
o Sanda Sandlrorum , onde eílavao efcondidos os fe-
gredos, e myilerios daquelia ley , vedados a todos,
e ró ao fummo Sacerdote permittidos ; e por iíío ti-
nha grande proporção raígarfe o véo do templo pa-
ra figniíícar , que fe^acabava a fynagoga; porque naò
ha mais próprio final de fe acabar hum Império, hu-
ma Monarchia , que romperemfe as cortinas dos feus
myfterios , e rafgaremfe os véos de feus fegredos.
Os Reynos , e as Monarchias fufientaófe majs do
myíleriofo , q do verdadeiro : e fe fe manifeílaó feus '
myfterios, mal os defendem as fuás verdades. A opi-
nião he a vida dos Impérios , o fegredo he a alrna da
opinião. A prevenção fabida ameaça a huma fó par-
te , fecreta ameaça a todas. Os intentos ignorados
fufpendem a attençaõ do inimigo , manifeftos faó
a guia mais fegura dos íeus acertos. Reyno, cujas re-
foluçoens primeiro forem publicas, que executa-
das , oh que perigofa conjedura tem de fua confer-
vaçaól
959 Que
32o Vieira ahhreviado
, 9S9 Qye bem entendia efta politica ElRey Da-
vid! Levantoufe Abfaiao com o Reyno, começou a
fazer grandes ievas de gente, grandes exércitos' con-
tra David: e David que faria contra Abíaiaô? Cha-
mou Chufay hum grande Teu Coníelheiro, diíTelhe,
que fe paífaíTe á conHdencia de Abíalaõ , e que co-
mo foífe admitrido aos coníeihos , \\\q revelaíFe por
z. Rtg.15. ^^^^ occultas tudo o que lá paíFaíTe : Onwe ver bum ,
35. quodcumqtie audieris de domo Regis, ifulicabis. iílo
fez David , e nao fez mais. Pois, David , fe vem con-
tra^vós taó numerofos exércitos de Abíalaó , porque
nao fazeis também exercito ? E já que vos defcui-
dais deftas prevençoens, a queíim mandais lá Chu-
fay ? Que ha de fazer hum homem contra Abfaiao ?
Obrou David como foldado taó experimentado , e
como Rey tao politico. Q^ierendofe oppor ao po-
der de Abíalaõ, tratou fobre tudo de lhe meter hum
confidente feu no confelho ; porque entendeo , que
mayor guerra fazia a Abfaiao com hum homem, que
lhe rompeífe os feus fegredos , que com muitos mil
homens , que lhe rompeflem os feus exércitos. Hum
exercito roto pódefe refazer; mas hum fegredo roto,
naõ fe pode remediar. Hum exercito roto , pódeíe
refazer com loldiidos : hum fegredo roto , naó íe po-
de foldar com exércitos.
960 Qualquer grande poder fem fegredo he fra-
Num. 549 queza , e a mefma fraqueza com fegredo he gran-
de poder. Em quanto Sanfao encubrio o fegredo de
íeuscabellos, deílruio exércitos inteiros, como uef-
cobrio o fegredo a Dalila, cortaranlhe os cabcllos
os Filiíleos, e podéraõ atar aqucllas vak-ntes maõs
de que tantas vezes foraõ vencidos. Oh grande
Kum. J4S. exemplo do poder do fegredo ! De maneira , que fe-
te ca-
Diíairío XCII,
te cabellos com fepredo faziaõ tremer exércitos ar-
mndos , e eílc meíir.o poder , que fazia tremer exér-
citos armados , íem íegredo buílou hum golpe de
huma thefoura para os desbaratar. Por iílo David
contra Abfalaõ tratou de lhe conquiílar os íegrs-
dos , e nau de lhe vencer os exércitos.
DISCURSO XCÍI.
Tirado de hum fermao da fanta Cruz pregado nã
feftã dos Jòldados ejiando na Bahia a Armada
Real com muita da nobreza de ambas as Coroas^
em o qual o Auâlor no wyfteriofo noyne de Nicode-
mos 5 que quer dizer Victor Populi , def cobre três
qualidades , que deve ter hum foldado , para fer
'valcrofo : nobreza de Jangiie , familiaridade com
Deos j e docilidade no juizo : nobreza de Jangue
para o valor : familiaridade com Deos para o
faijor do Ceo , e docilidade 720 juizo para o con-
felho.
SOLDADOS.
962
Icodemos, diz a Gloíía ordinária , querpa^r. s.
dizer ViBor populi : O vencedor do^uK^-i^j.
povo. Grande titulo ! E fe bem repararmos nss qua-
lidades , com que o deícreve o Euangeliíla , grandes
partes tinha Nicodemos para vencedor. Primeira-
mente era nao íó nobre , mas da primeira nobreza :
Princeps Judaorum : e fer iliuílre quem vay á guer-
ra , he levar ametade da vidloria ganhada. Naô fabe
vencer quem naô fabe dar o Tangue , e mal o pode
dar quem o nao tem. Qiiando David f«hio ao defa-
Tom. II. X íio
mm
ili!
3 2 2 Vieira
fio com o Gigante , voltou o rofto ElRey Saul para
Abner Teu Capitão General , e perguntouihe : Ex
qua ftirpe ejl bic aãolefcens ? De que geração era
fiquei le moço ? Pers^untoulhe pela geração , dizern
osRabbinos, que refere Abulenfe, porque taõ brio-
los alentos , etao animofa reíoluçaõ em hum paftcr,
pareceolhe ao Key , que naÕ podia nafcer , fenaõ de
mais altas raízes. Vio-o atreverfe a huma empreza
íaóarduajvio-o arrojarfe intrepidamente a hum peri-
go taó manifeílo , e para julgar fe fahiria vencedor,
quizfe informar, íe era honrado. Tinhalhe dito Da-
vid, (apertemos mais o ponto} tinhalhe dito David,
que defpedaçava urfos , e delqueixava leoens : e naô
fe aquieta com tudo iílo Saui , perguntalhe pela ge-
ração : Ex qua ftirpe eft bic adoJeJcefis ? Porque era
melhor fiador de haver de levar ao cabo taò grande
empreza o fangue , que tiveíle herdado dos pays,
que o que derramava das feras.
Part, 7. 963 Já David tinha dito a Saul , que partira urfos,
Num. 507. Q defqueixára leoens : e fobre tudo iílo perguntalhe
ainda o Rey pela geração ; porque era melhor fiador
da vi(5loria o fangue nobre , que tinha , que o fangue
bruto, que derramara. Os homens de inferior condi-
ção , ainda que fejaó valerofos, peíejaõ fós : o nobre
fempre peleja acompanhado ; poique peleja com elle
a lembrança de feus mayores , que he a melhor com-
panhia. Em Aícanio pelejava Eneas, e Heitor : em
Pirrho pelejava Achilles, e Peleo : nos Decios, nos
Fabios, nos Scipioens pelejavao os fjmofos progeni-
tores de feus appellidos : e com taÓanimofos lados
quem naô ha de fer valente.^ Com os ofibs do gran-
de Afonfo de Albuquerque dizia ElRey D. Joaõ o
lií. que tinha fegura a Índia. Efe eílava fegura a ín-
dia
^
ifcurfo XCII. 525
dia com os oúbs mortos de hum Capitão , quão íe-
guro eílará Portugal com o Tangue vivo de tantos ?
Tanto aproveita o fungue para os aninmfos procedi-
mentos , quenaóeílá o valor nos braços, eílá nas
veyas.
964 Naó quero dizer com iíto , que feja neceíTa- ^^^J;^;^^,
rio delcender dos Godos para fer valente, que iíloíe-'
ria contradizer a razão , e negar a experiência^ A ef-
pada , que faz a guerra , e dá as vitorias , naõ he ía-
brica do ouro , íenaó do ferro , nao do metal mais
refplandecente, e ifluilre, fenaô do mais duro, e forte.
Para fer taó valeroíb como Alexandre nao he iicceí-
íarioferíiíhodc Filippe de Macedónia. O teílamen-
to , ou morgado de Marte nao exclue a rudeza dos
nomes , nem a vulgaridade dos appeilidos. Bnila ler
Gonçalo , e fer Fernandes para fer graô Capitão.
Honrada coufa he , que a valentia venha por heran-
ça , e por continuação de m.uitas idades, mas tal vez
pode vir de tíío longe , que chegue já mui canfada.
Quantos do arado íubiraõ ao triunfo , e do triunío
tornarão outra vez laureados ao arado ? As lentilhas
deraó a Roma osLentulos , e as favas os Fabios. O
campo para elles era a campanha , e a agricultura ,
diz Plínio , a arte , e exercício militar ; porque na or-
dem^com que difpunhaô as plantas, aprendiao a orde-
n?r, e governar os exércitos: Sive tlli eadem cura nin.Wh. 9,
femina tracíabant , qua hella : eademque ãiligen-^^^' ?•
tia arva difponebant , qua cajlra, Paílor tinha faio
o terror dos mefmos Romanos o noíFo Portuguez Vi-
riato , e tanto que trocou o cajado com o baihiô ,_dos
feus Toldados fóube fazer leoens, e dos Teus inimigos
ovelhas. AíTin» que naó faõ totalmente neceífarios
os altos nafcimentos para ter valeroíos procedimen-
X2 tos.
3 24 Vieira abhreviado
Num. i^s.^^'^*^; ^^'^^ O ^]ue íó quero dizer he, que na nobreza
eftá o valor livais certo, e móis feguro. Oqueniõhe
nobre , pode íer valeroío , o nobre tem obngaçaô de
o íer : e vay muito do que poíFo por liberdade, ao
que devo por natureza. As águias mo gQVãó pombns,
e íe algtama vez a natureza produziíle hum tal monf-
tro, a pomba Te animaria a íer águia por naô dege-
nerar dos que a gerarão. Naõ ha eípora para a ouía-
dia , nem freyo para o temor, com>o a memoria do
próprio naícimento, fe hedegeneroías raizes.
965. EílavatemerofoS.Joreph, etemerofocom
razaô, porque era matéria de honra : appareceolhe
hum Anjo , e diílelhe : Jojepbfilí David noli time-
re\ Jofeph filho de David nao temas. A defcenden-
cia de David podia eílar taó efcurecida na rtiemoria
de Jofepji , quanto vay do cetro real aos inftrumen-
tos mecânicos, que elíe manejava; mas quando o
Anjo o exhorta a que naõ tema , iembralhe , que he
da geraçaófJe David ; porque, como diz o douto Pa-
lácio , com nenhuma outra confideraçaõ mais efficaz-
mente lhe podia tirar o temor , que com a memoria
de que era defcendente de hum homem , que nunca
pan, 7. íbube temer. Como ha de ter medo no coração
Ku:i:. soy.quem tem a David nns veyas } O meímo Chrifto Re-
demptor noíTo quando houve de tirar a capa para
entrar naquelía ultima batalha, em que venceo a
morre, e o inferno, diz o Euangelifta S João , que
Part. 6. íe lembrou primeiro de quem era, e donde vinha :
Num 1^8. Sciens quia à Deo exivit , ér ad Dcmn vadit , pofiit
vejiimenta fita. Lembrou fe da geração altiílima, de
que procedia, lembroufe de que era filho do Monar-
ca univerfal de todo o creado , e como entrou com
eíta lembrança na batalha, ainda que o amor da vida
lhe
Dijcurfo XCII. 325
lhe fez feus proteílos no Horto, por fim pelejou ani^
moíamente, e poíto que com tanto Tangue, triun-
fou , e venceo. . ., X.
966 A legunda boa qualidade , e muiito melhor N«'^- ^99^
que a paííada'^ he a que iogo le íegue : Et 'venit ad
Jejum noâie : Qtie veyo Nicodemos a tratar com Je-
ludenoire. Os dias fellos Deos para nós, e as noites
para fi : os dias para as occupaçoens do corpo, e as
noites para os retiros da alma : os dias para o exte-
rior, e vifivel , e por úXo claros , as noites para o in-
terior , e invifivel , e por iíío eícuras : aíEm repartia
Nicodemos o tempo. Os dias dava- os ás obrigaçoens
doofíicio como peíFoa publica, e para íatistazer ás
meímas obrigaçoens com acerto , e bom íuceeílo
gaftava as noites com Deos. Oh fe a noíía milícia , e
os cabos mayores , e menores delia feguiirem efte
exemplo em parte das noites , que coníiadamente
me atreveria eu a lhe prometter, que para o felice,
e defejado fim de tantas prevençoens , e apparatos
bellicos naô faitaria Deos em lhe dar hum bom dia 1
9Ó7 Nenhum General teve nefte mundo mayor, Num. 50».
nem melhor dia, quejoíué Governador das arm^sde
Ifrael na conquifta dos Cananeos. Deo batalha aos
Madianitas, rotos já , e fugitivos , quando o Sol pre-
cipitava a fe efconder no Occafo : e para que pódeíTe
profeguir , e acabar a vidoria , como íe o Sol fora
foldido feu , mandoulhe Jofué , que paraíle , e parou,
ou fez alto o Sol. Diz a Híítoria fagrada , que nem
antes, nem depois houve tao grande dia : iVb»//^ /Vjcíue 10.
a7itea , 7íec poftea tani longa dies : grande nn dura- ^4.
çaó , grande na victoria , grande no império do Ge-
neral, e mais que grande na obediência do meímo
Deos á voz de hum homem : Obediente Deo voei
Tom. 11. X3 ho7ni-
leira aooreviaao^
hominis. Mas porque deo Deos a Jofué hum tal dia?
Porque o tal Jofué dava n Deos as nokes. Antes de
dar principio a toda aquella conquiíta nos arrebaldes
da Cidade de Jericó , (ahio Jofuv^ de noite ao campo
a orar, como coíiumava, quando íubitamentevio di-
ante de íi liBiiT vulto armado de armas brancas com a
efpada deíembainhada na maó : Nofter es , anacher-
fartoriim ? Sois nojTo, ou dos contrários ? pergun-
tou fem o perturbar a viíao : e S. Miguel , que era o
armado, reípondeo : Eu fou o Príncipe dos exércitos
de Deos , que em leu nome vos venho aíliítir, e aju-
dar , para que em tudo , o que emprcnderdes , fejais
vencedor. Que muito logo , que Deos déíle hum dia
taô grande, e tantos outros dias a quem aíllm os par-
tia com Deos ? Mayor vifao foy a do noílo primeiro
Afonfo na noite daquelle dia , em que amanheceo
Key, pois vio , eouvio ao Senhor dos Anjos, que
de íua boca lhe deo o titulo , e lhe aííegurou o Rey-
no. Mas que fazia entaó ovaierofo, e devoto Prín-
cipe? Vigiava, e orava na fua tenda, e na Hiíloria
íivgrada de Gedeaô, como em efpelho, feeftava ven-
do a íi , e lendo a fua mefma viòloria.
Num. 301, 968 Qlic diraô aqui muitos Capitaens com no-
me de Chriílaos , ou íejaõdos menores, ou também
( que pode fer) dos niayores ? Qije dias podem ef-
perar de Deos , fe daõ as noites ao diabo ? Gaílar
as noites com Dalila , e de dia íer Sanlaõ , ainda que
íeja levar a vid:oria pelos cabellos , lo por milagre
Num. 303. íerá poíFivel. Nno nos fiemos em armadas , nem em
• exércitos, ainda que as armadas foíiem de cinco mil
nnos, e os exércitos de cinco mdlioens de Toldados,
como o deXerxes, todo eííe apparato nada impor-
taria , como naô importou entaõ paru fegurar a em-
preza.
«ím^pm
Dtfcurfo XC Jí . 327
prezí3. Deos he o que áá. , e tira as viòlorias^ e íb as
podem efpeiar com contiança os que peia emenda
dos peccados , e obíervancia de íua ley o tiverem
propicio.
9Ó9 Ainda tinha outra boa parte Nicodemos ^ ^^^^^
que tantas íaò necelFarias para o nome de vencedor.
Et dixit íllí : Rahbi : o fim, para que vinha buícar a
Chrifto, era para o coníultar , e ouvir como meílre.
Meílre era também Nicodemos : Tu magtfter es in
Ifrael : e nefia reflexão de fendo mefíre vir bufcar
outro meftre confiítia o fer bem fundado , e naojao
o nome , que tinha. O mayor perigo , e perdição da
guerra he cuidarem os Doutores defta arte , que fa-
bem tudo. Os lábios em qualquer faculdade mais
fabem ouvindo, que diícorrendo, e mais acompa-
nhados, que fcs. Melíores afttmanínr qui foli non
omniaprafimimt , diz o grande politico CaíFiodo-
ro : Q-ie fempre foraó eítimados por melhores os
que de fi fó naõ prefumem tudo. Já fe a prefum-
pçaó do faber fe ajunta á íoberania do poder , com.o
em Nicodemos , que era meílre , e Príncipe , neíles
dous refvaladeiros eftá certo o precipício , e a rui-
na. Para confeguir eíFeitos grandes , e para levar ao
cabo em prezas difficultoías mais feguro he huma
ignorância bem aconfelhada , que huma fciencia
preíumida. A primeira vidoria para alcançar outras
muitas he fujeitar o juizo próprio quem* nao he fu-
jeito ao mando alheyo. Perguntado Alexandre Ma-
gno com que induílria , ou com que meyos em taô
breve tempo fe fizera fenhor do mundo, diz Eíto-
beo, que refpondera eílas palavras : ConfiUis , elo-
quentia , ér arte imperatoria \ Com os confeihos ,
com a eloquência ^ e arte de governar exércitos. No
X4 ulti-
^m.
Q
ò
-- ^^'^eviú
n
Vieira
ultimo lugar poz a arte, e no primeiro o confelho;
porque o coníelho he a arte daj- artes , e a alfiia , e
intelligencia do que ella eníina. A arte prefcreve
preceitos em commum , o coQceího conlldera as cir-
cuiifiancias particulares : a arte eníina o que íehade
fazer, o coníelho delibera quando,como,e por quem.
Vegeíiio dirpoz os fitios, e batalhas de longe, o con-
felhejro tem diante dos olhos o exercitoinimigo ,
e o próprio , os Capitaens , os Toldados , o numero ,
a naçaõ, as armas , e até a occaíiao do terreno , do
Sol , e do vento , que fe nao vem, fenaÓ de perto.
970 Os Levitas, que quizerao imitar as faça-
nhas dos Machabeos , porque pelejarão fem confe-
lho , perderão em hum dia o que elles com pruden-
te , e bem acon Telhado valor tinhaõ ganhado em
muitos. Se algum Capitão podéra eTcuíar o coníe-
iho , era o génio de Alexandre, formado pela natu-
reza para conquiftar , e vencer. Mas nem a fua arte,
nem a íua fortuna o lifonjeou de maneira, que nao
antepuzeífe o confelho a ambas. O que deíigualou
o poder , pode o fupprir a arte : o que errou a meTma
arte , pode-o emendar a fortuna , mas o que fe inten-
tou fem confelho, ainda que o favoreça o cafo , nun-
ca he vidoria. A que alcançou de fi meTmo Alexan-
dre , eíTa ihe deo todas as outras ; porque fe Tujeitou
a perguntar quem fabia fujeitar o mundo , e haven-
do de dever de algum modo as fuás vidlorias, naô as
quiz dever ao feu braço , fenaõ ao feu confelho.
Kum, 305. 971 Ouçamos ao homem mais íabio, o qual fó
logrou perpetua paz, porque entcndeo melhor que
todos a guerra. No capitulo 20. dos Provérbios dá
Salamao hum documento militar notável. Diz que
as guerras íe haõ de governar com os lemes : Guber-
nacU'
Bijcurfo XCIL 3 29
naculis traòianda fiiiU helía,^ Se failara das guet ras,
c baralhas navaes , pouca difHculdaue tinha eíle pro-
vcrbio; porque naõ ha duvida , que nas \ iòlorias do
mar grande pdrte cabe ao leme. Mas failando de
todas\is guerras abfolutamente , que proporção tem
as armadas com os exércitos, os navios com os efqua •
droens, e osxombates do mar com as batalhas da
terra, c da campanha ? No fundo do original Hebreo
lançou Saiamaô a ancora , e eícondeo o fentido def-
te íeu provérbio. Onde a noíla Vulgata diz ingu-
bernaculis , lê o Hebreo in conftliii : e chama Sala-
maó aos confeihos lemes da guerra , para que enten-
da a politica militar dos exércitos , que tanto cafo
haò de fazer os Generaes do confelho , como os Pi-
lotos do leme. Se na Capitania, onde vay a bandeira,
e o farol, faltou o leme , derrotoufe a armada : e fe
o General defcuidado , ou prefumido defprezar o
confelho, de-fe também por derrotado , e perdido.
Aífim como para navegar, e fazer viagem a nao he
neceílario que vá fcmpre o leme na maõ já a huma,
já a outra parte , accommodandofe as velias^ ao ven-
to , aíTim na guerra, em que os accidentes faó taó vá-
rios , nenhuma coufa fe deve intentar , nem feguir,
fenaõ com maduro confelho. Mas que feria , ou que
fuccederia , fe o confelho naó fe ouviflé, ou ouvi-
do fe naõ tomaíTe ? Sem confultar as eftreilas , fe po-
de prognoíticar facilmente. A nao , que naó dá pelo
leme, e toma por davante, muy arrifcada vay a en-
calhar em hum baixo, ou a fe romper em hum recife.
Livrenos Deos de que naó feja taõ fatal o nome ,
como he próprio.
DIS-
li
3 5 o Vieira abbreviado
D I S C_,U R S o XCIII.
Tirado de humfermaÕda quarta Dominga da Oua*
refma, pregado 71a Capella Real 7ia occajtaô,
em que o Auctor tendo feito a primeira retira-
í. da da Corte para o Maranhão^ dijpunha a fe~
yy^gunda , que tainhem teve effetto,
• '. .'./ '-,■
SOLEDADE.
97^' "^T Ao foge huma fó vez quem foge de
Part. 3. . -J^^ coração. Já o EuangeiiíU S.JoaÕ ti-
.Num.241.nha dito, que o Senhor, e Salvador dos homens fu-
gira dos mefmos homens huma vez, e agora nos diz,
que fugio outra-.Fugit iterum. Quando Herodes quiz
matar a Chriílo, para que naô foíFe Rey, fugio para
o Egypto, agora, que o querem fazer Rey, foge pa-
ra o monte : In montem. Os amigos , e os inimigos
todos por feu modo perfeguem , e quem conhece,
que o amor de huns , e o odio de outros tudo he per-
feguiçaó, foge de todos. Naô fó fugio o Senhor hoje
das turbas, que o feguiaó, mas também dos meímos
difcipulos , que o acompanhava© , e por iíFo fugio
ió \ Ipfe Jolus \ Oh fe o mundo conhecera quanto
fe tira de hum retiro, e quanto colhe quem fe aco-
lhe: Fugit\ A fobremefa pois do famofo banquete
de hoje, qual cuidamos que feria ? Foy o exemplo,
com que o Senhor fugio dos mefmos , que lhe que-
riaô dar o que elle naó queria , nem havia miíter : e
a doutrina nTió de palavra, mas de obra, com que fe
foy meter fó comfígo na foledade de hum monte :
Fugit in 7?iontem ipje folus. Deixar o povoado pelo
defer-
■■•
Difcurfo X£II..
) >
deferto , trocar as Cidades pelos montes , fugir do
trato, e frequência diis gentes para viver com Deoc,
e conifigo , grande ponto de doutrina em Chrifío , e
grande reíoluçaó de prudência em quem o imitar.
973 Bem fei que dizem os defenfores das CorNum. 144.
tes, ou os enfeitiçados delias, que também fe pode
fer Ermitão em México , como refpondeo em nollbs
dias hum varaô de mui celebrado efpirito a quem
fe queria retirar daquella grande Cidade , e lhe pe-
dia confelho. Mas nem todos os confelhos fervem
para todos oscafos, como nem todas aí? receitas pa-
ra todoi os enfermos. Bem íei , que dizem , ( e por
modo deaftíonta ) que o fugir he iraqueza ; como fe
quem foge , fe quizera acreditar de valente , e como
lenaôfora valor quebrar as cadeas, de que tantos fe
naó defataó. Gataó com Cefar , e Pompeo á viíla
dizia : vSei de quem devo fugir , mas naÕ fei para on-
de. Equem fabe , e tem para onde , porque íe enver-
gonhará de que \\\'^ chamem fraco , quando foge com
Catão? Dizem, que a natureza fez ao homem ani-
mal íociavei , e que trocar a fociedade , e communi-
cação dos homens pela íolidao dos deíertos he que-
rer accufar, ou emendar a natureza, ecomoarrepen-
derfe de fer racional. Mas quem fe ri de femelhan-
tes ditos com provar o racional pelo rifivel , fe exi'
me defta calumnia , e naó tem por crime emendar a
natureza , quando ella eílá tao corrupta.
974 Í3izem , como diífe Ariftotcles , que quem
go,ít 1 de eftár fó , ou he Deos , ou fera : yltit Deus ,
aut beftia. Mas fe elle alcançara , que em Deos ha
três peífoas > nao havia de íuppor, que Deos eílava
fó : e íe foubera , que quem fe aparta dos homens, he
para mais fe chegar a Deos, também o naÕ havia de
pôr
3 5 2 Vieira ahhreroiado
pôr no predicamento das feras, antes, como gentio >
no numero dos deofes. Dizem finalmente , que dei-
xar a Corte, o ierviço dos Príncipes, ea benevolên-
cia , e graça dos rimigos he filta de juizo , e rema-
tada loucura. Aílim o digo, porque aíiim lho ouvi
dizer.
Nurr. Z45. 975 Mns a eftn cenfura , que mais pertence aos
Médicos, que aosTheologos, reíponderá Hippocra-
tes. Demócrito aquelie famofo Filolbfo , que de tu-
do fe ria , e ízz chorar a Alexandre Magno por di-
zer, que havia mais mundos, canfado de zombar
dos defpropofitos deíle , que taõ mal conhecemos ,
deixou a pátria, e todo o povoado , e foyíe meterem
hum deferto. Correo logo fama , que Demócrito
endoudecera , e compadecidos os feus naturaes , que
eraó os Abderitas, mandarão rogar por huma em-
baixada a Hippocrates , que pelo amor , que tinha , e
honra , que fazia ás fciencias , fe dignaíle de querer
ir curar hum fujeito taó notável , e taô benemérito
delias. E que vos parece , que refponderia Hippocra-
tes ? Refpondeo , como refere Laércio , que íe a en-
fermidade foífe outra , elle iria logo curar a Demó-
crito ; porém que retirarfe das gentes, eiríe viver
nos defertos, o que elles reputavao por doudice,
mais era para invejar, que para curar; porque nunca
Demócrito eíli vera mais fifu^o , nem tivera o juizo
mais <a6 , que quando fugia dos homens : Haocre in
eomagis^ qiiod fufpictat ^ qtiam quoà fanet \ i)^ il-
ludfchema vita effe fartam , tcSíamque aniviaja»
nitatem: milloque modo melius Jtbí conftdi contra
pe/Jilentem hoininum atiram , quam rccipiendo fe in
tuta folittidinumloca.
Num.24í. ^y(^ Xíto he o que faziaó; e iílo o que eníinavao
os
n
DipirfoXCIII. 5 55
os Filofofos ( já que começaínus por elies : ) e a ra-
ou razoens , que para iíío tiveraô , dá em va-
zão ,
rios lugares Seíieca
mais ventiiroro íe os imitara.
Elcreve a Teu amigo , e difcipulo Lucilio , o qual lhe
tinha perguntado de que fe havia de guardar para
viver quieta , e felizmente : e o primeiro documen-
to , que lhe dá, he , que fuja da multidão , e frequên-
cia de gente: Oiiidtihi vitaiidiimmaxime ^^^ft'^- stvxc.
mem-y quiris ? Turbam. Oh quanto refumio o gran- Epift 7.'
de Fiiofofo em huma ío palavra! E a razaô he , diz r'-^-^-
elle ; porque o trato , e converfaçaó dos homens he
huma efpecie de contagio , com que fem querer ,
nem fentir nos pegamos huns a outros cada hum a
íua doença : e aíTim como nos mayores lugares fe
accende mais a peíle, affim nas Cidades mais popu-
lofas he mayor o perigo : Inimica eft miiltorum
conver fatio : nemo non aliqiiod nobis "citium , aut
commodat , aut tmprimit , aut nefcieiítibus aliinit,
Itc ' . .-
lim como no tempo da peite deixao os quep(
as Cidades , e fe retiraô aos campos , allim he pru-
dente cautela em qualquer tempo , pois todo he de
pefte, fugir para os defertos. Mas íigamos ao nof-
lo Filofofo , e a bandeira da faude , que eile nos le-
vantou : Sanablnuir ., Jimodo feparemur à catu.
977 Prova Séneca o feu documento , e ailega a^um. 247,
Lucilio hum exemplo nao alheyo, fenaó domeftico,
e experimentado em íi mefmo : Ego certe confiteor
imbeWcilttatem meam : nunquam mores ^ qtios extu^
li , refero. Aliquid ex eo , quod covjpofui , turbattir\
aliquidex his ^ qua fugavi, redlit : ConfeíTote (diz
o Eítoico ) a minha fraqueza ; nunca fahi a tratar
com
4 Vieira abhreviado
com os homens, que naô tornaíle peyor do que fuy.
Sempre Te rae deícompoz alguma das paixoens , que
já tinha compoílo , e fempre tornei a trazer comigo
i3igum dos vícios, que já tinha deílerrado. Cuida-
rás por ventura , que te hei de dizer , que torno mais
avarento , maisambicioío, mais incontinente ? Pois
íabe, ( o que naõ imaginas ) que também torno mais
cruel , e mais deshumano , íò porque eílive entre ho-
mens : Immo vero ^ crudeltor ^ ^ inhumanior ,
quoniam inter homines fui. Naó fe podéra mais al-
tamente encarecer o perigo de tratar com homens!
Se diílera , que nos pegavaô outros achaques , mi fe-
ria he de íecuío taô enfermo ; mas pegarem os ho-
mens deshumanidade ? A humanidade naô he a ef-
íencia de homem ? As feras com o trato do homem
naô íe humanao? Affim he , ou aílim era ; mas tem
degenerado tanto a natureza humana do feu próprio
fer, que em lugar de fe tirar humanidade do trato
com os homens, o que fe bebe deftas fontes , he def-
humanidade. Éreis humano antes de tratar com el-
\t^ 5 depois que os írataíles , íem o fentír , nem f.ber
como 5 achaisvos deshumíino: Et inhumanior ^ qiio-
fiiam inter honújies fui. Já íe na 6 cont então os ho-
mens com fazer deshumanidades , mas chegio afa-
zer deshu manos , que he muito peyor. Fazer deshu-
manidades he fer cruel , fazer deshumanos he naô
fer homem ; antes fer o contrario de homem. Se vif-
femos que o Sol , devendo allumiar, efcurecia , e que
o fogo, devendo aquentar, esfriava, e que hum homem
em lugar de gerar homens gerava tigres , e ferpen-
tes, naó íeria huma horrenda monfíruofidader Pois
iifo he o que fazem os homens : naô íó tem dcshuma-
nado a fua, iiws deshumanaô a humanidade daquel-
m
ifcurfo XCIÍÍ . 3 3 5
les , que os trataó. Vede fc hc prudência fugir dos
homens quem quizerconíervar o íer de homem.
• 978 A íegunda razaô , que da Séneca para iílo , Nl^m. 148.
he ferem muitos aquelles, de que fe deve fugir. Nas
facçoens , ou parcialidades he muito iiatural leguir o
partido dos mais: Facile tranfttiir ad p lures. E co-
mo a multidão dos homens toda propende para os
vicios, que virtude haverá taô forte , que poíTa re-
fiílir ao ímpeto , e torrente de tantos ? Socrati , Ca-
toni , à" Lélio excutere mentem fuam dijflmilis mui-
titudo potuijfct : adeo nemo noflrúm , qui maxime
concinnamiis ingenium^ ferre impetum vitiorum tam
magno cornitatn venieiítium poteji. Até Sócrates,
atéCataõ, até Lélio, que entre Gregos , e Roma-
nos foraõ os Atlantes da virtude, fe nao poderiao
fuílentar firmes contra o pezo , e bateria dos vicios,
acompanhados de taô numerofo exercito. E fe eíles,
perdidas as cores da própria vida , e coftumes , fe re-
veíliriaô das contrarias , pofto que tao diíFemelhan-
tes; quanto mais os que conhecemos a fraqueza da
noíía imperfeição, e fó temoso eíludo de a enfeitar?
979 Forçados pois da violência , do exemplo
comm.um , e qcaíi .necelTitados entre os homens a fer
como elles , que remédio pode haver em partido ta5
defigual , fenao fugir ? Aííim o refolve o mefmo Sé-
neca com hum argumento muito do feu engenho:
Necefje efl , ant imiteris , aiit oderis. Utrumqtie
atitem vitandum efl : ne velfimilts malisfias , qui a
multi funt : neve inimicus multis , quia diffimiles
funt. Sendo eíla a condição dos que enchem o mun-
do , e por ventura também a dos que o iPiardao ; que
pode fazer hum homem entre taes homens ? Ou os
ha de imitar fendo taes^ou os ha de aborrecer,porque
faó
leira ahhrevu
h.^ taes j e na duvida de os imitar , ou aborrecer nem
a imitação > nem o ódio lhe pode eíiar bem ; porque
para imitados faó máos , e para inimigos í ao mui-
tos : Velfimilis ma lis , vel inimicus miiitis. Logo o
que convém he fugir , e queira Deos que baile.
Num.z4c,'. . ^^° ^ terceira razaõ , e que no mefmo Séneca
'tinha grande lugsr , e o pode ter em outros ,decla-
senecai.i. ^^ ^^'^ ^^"^ ^^^ qucixa da fua primeira vida : Onniem
cp.z. operam de dl , tit me multitiuimi edu cerem , ^ ali-
(jíiam dote^n ^totabilem f acerem: Trabalhei, diz,
com todas as minhas forças por me íeparar do nume-
ro dos muitos , e por fazer alguma obra notável , a
qual me fervilFe de dote para credito , e eílimaçaó do
mundo. E que tirei deíle meu trabalho } Qtnd aliud
quam telis me oppojtii , cr malevolemia , quod mor-
derei oftendi: O que tirei foy provocar contra mim ,
e expor o peito ás lanças , e dar matéria á maievo-
Jencia, em que enipregaíTe os dentes, e tiveíTe que
morder. E porque } Dá a razaó, apontando a com o
dedo : Vides tu ijios qui eloquentiam laudant , qui
opes feqmmtur , qui grati£ adulantur , quipoteii-
fiam extollunt } Omnes aut fiint hoftes , out ( quod
in aqiio eft ) effepoffimt'. Vês tu eíles , que louvao a
eloquência , que íeguem a cubica , que adulaÕ a gra-
ça , que adoraó a potencia ? Pois íabe que todos ou
íao inimigos, ou o podem fer , que vai o meímo :
Oiiam magnus mirantium , ta^n magjjus invíden-
titim. populus eft : Qiisõ grande he o povo dos que
te admiraõ , taó grande he o numero dos que te in-
vejaõ. A admiração eílará por algum tempo fufpen-
fa , e muda, com coítuma j mas a inveja reconcen-
trfida rebentará com mais força como de mina , e o
que foraõ applauíos , fcraõ eítragos.
981 An-
Difcurjo XCIII, 5j7
981 Antes nos tenhao inveja , que compaixão,
fentença foy nafcida na gentilidade , que depois fez
chriílã S. Gregório Nazianzeno , mas no mefmo Na-
zianzeno moílrou a experiência , que antes íe deve
eleger o eftado da compaixão , que o da inveja ; por-
que a de feus emulos o perfeguio de tal modo ( ou
taô fem modo)que obrigado a fe lançar ao mar, como
Jonas , a mefma inveja lhe veyo a ter compaixão. Em
quanto e!la naõ chega a fe defpicar aíTim , nao def-
canfa. Por iíTo Séneca conclue, que arrependido do
primeiro inftituto da íua vida , e de fe ter moíkado
ao mundo tomara por ultimo confeiho recolherfe
comfígo dentro em íi mefmo , e cultivar a própria al-
ma com taes exercidos , que elle fó os podelle fen-
tir , e nenhum homem os podelfe ver : Qj^in potius
qu£ro aliquidufti bonum , qtiod fentiam ^ non qmd
ojlendam. ^ ^ Num. 25©
982* Eftas foraõ asrazoens, porque fe retiiavaó
aos defertos , e fugiaó da communicaçao dos homens
aquelles grandes Filofofos: hum dos quaes pergunta-
do , que fruclo tinha colhido de todos feus eftudos,
reípondeo : Saber viver íó comigo. Affim o refere
Eliobeo, e o qualificou o mefmo Séneca dizendo:
Frirnitm argiimenitím bene compofita mentis exijli-
tno , pojje confijlere , ér fecmn íjiorari : O primeiro
argumento naó de fe ter alienado o juizo , como ao
principio fe dizia , mas de eftar muito em íeu lugar ,
e bem comporto, he fabsr hum homem morar com-
íigo : Seciim morari. Mas paífemos da Filofoíia á
chriíiandade, e dos documentos darazaófemfé aos
da fe , e razão , que faô os dos Santos.
983 Arfenio , aquelle infigne varão em todos os Num-tsi»
eílados , pedido pelo Imperador Theodofio , c no-
Tom. II. Y meado
meado pelo Papa S. Dimafo para Meílre de Arcá-
dio , já dsiclarado íuccelíor do íniperio , era taó eili-
modo do meímo Imperador, que entrando huma vez
a ouvir dar liçaÔ a feu íilho , e vendo que Aríenio
eílava em pé, e Arcádio aííentado, reprehendeo a
ambos dsquella, que ellesnnó tinhao por indecencia,
e mandou , que didli por diante Arfenioenfinalíe af-
feníado, e Arcádio ouvifle em pé, e com a cabeça
deícuberta. Com efte credito , e favor de hum taó
grande Monarcha, e com o applaufo de todo o i'a-
ço , e Corte , que por reverencia , ou lifonja fempre
feguem , ou moftraô feguir o aíFeólo dos Principes,
vivia com tudo inquieto , e deícontente Aríenio naó
íe fiando nem do que era, nem do que lhe promet-
tia aquella fortuna. Duvidofo pois da refoluçaô, que
devia tomar , naó pedio confelho aos amigos de ma-
yor authoridade, e mais fieis, nem menos íe quiz
aconfelhar comfigo , mas recorrendo a Deos , que fó
he o norte íeguro nas bonanças , ou tempeftades de
hum mar taô incerto , ouvio huma voz do Ceo, que
lhe dizia : Arfeni^fugehomines^ efalvus eris\ Ar-
íenio , foge dos homens, e falvartehas. Com efte
avifo , que naó era neceílario fer em voz para íe en-
tender, fem pedir iicença ao Imperador ( porque ía-
bia, que iha naÓ havia de dar) fe embarcou occulta-
mente Arfenio de Conftantinopla para oEgypto, e
metendofe pelo mais interior do deíerto , alli efco-
Iheo para perpetua morada huma cova , na qual por-
que fe foube enterrar em vida , tanto verificou o Orá-
culo do Ceo em fe falvar, como o tinha obedecido
em fugir dos homens : Fuge homines , ^ jalvus eris.
Num, 153. 984 Viviaó no mefmo deíerto naõ juntos , mas
apartados, cada hum na íua cova, ou choupana, ou-
tros
Dljcurfo ^CIII. 5 59
tros Anacoretas , e com eíles failava algumas vezes
Aríenio, ouvindo os como a Mellres da difciplina
monacha! , e vida eremitica. E como hum dos nmis
anciãos lhe perguntaíFe, qual fora o motivo daquella
íua retirada taõ eílranha, a repoíla, que deo, foy ef-
ta : No7i poffe fe cum Deo fim ul^ (í^ cum homiiríbus
vive7'e : Qiie o motivo , que tivera para fugir do
mundo , for.j ter experimentado no meímo mundo ,
que viver juntamente com os homens, e mais com
Deos naô he poílivel. E declarando a razão defta
impoíiibilidade, dizia que era ; porque as vontades
dos homens raramente íe ajuftaô com a vontade de
Deos, e porque fendo a vontade de Deos huma íó,
e íempre a mefma , as dos homens pelo contrario faõ
tantas , taõ diverfas , e taÕ encontradas , quantos fao
os mefmos homens, e feus intereíFes , eappetiíesje
porque ainda no mefmo homem naô dura muito a
mefma vontade por fer inconftante , e varia. Aííim
provava , e concluia a íua razaõ Arfenio , e defta de*
monftraçaõ infallivel fe tira huma de três conclu-
íoens igualmente certas, ou que os que cuidiiôque
vivem com Deos, e com os homens , fe enganaõ, ou
que os que vivem com os homens, naõ vivem com
Deos , ou que quem quizer viver com Deos, ha de
deixar os homens.
985 Se o mefmo Deos naõ concorda as vontades Num. 254.
dos homens com a fua , como poderá hum homem ,
por mais que faça , ou fc desfaça , concordar as von-
tades dos homens com a de Deos ? De David diíFe
Deos, que tinha achado hum homem conforme íeu
coração , o qual faria todas as fuás vontades : Jnvc7n
Díivid virufn fecundum cor meiím , quifactet oiiuies ^l]' '^'
volii?itates meãs, E com fer efte homem íií)gular
Y2 entre
Num. 1Í3
3 40 Vieira abbrroiado'.
entre todos os homens , e eíle Rey a excepção de
todos os Reys, quando eile mandou tirar a vida a
Unas , quando o fez portador de íua própria morte
em huma carta aleivoía , e quando no primeiro adto
deíla tragedia lhe mandou roubar a mulher de cala,
fem íe lembrar , que o mefmo Urias o eílava íervin-
do Wà campanha com tanto valor , e lealdade , have-
ria algum adulador tao íabio , ou taó fem pejo , que
podeííe concordar eílas vontades com a de Deos ?
Mal podiãõ logo caber íemelhantes concordatas em
hum animo taõ amigo da verdade , taõ rc£to , taô in-
teiro 5 e taõ conílante, como o de Arfenio. As expe-
riências , a que eile fe referia , eraò as de Roma, e
Conílantinopla, as duas mayores Cortes do mundo,
das quaes coftumava dizer , que os três mais fortes
inimigos , que nellas lhe faziaó guerra , hum fe cha-
mava ver, outro ouvir, outro fallar, e que de todos
eftes o livrara o deíerto,ondefe naõ vê, nem ouve,
nem falia: Quifedet infolitudine ^ quiefcit ^ (^ à
tribus belUs eripitur ^ id ejl ^ auditus^ locutionisj
é^ vifiís. E em hum mundo, onde fe vem tantas cou-
fas, que fe naó podem ver, e fe ouvem as que fenao
podem ouvir, e fefallaõ, e faõ falladas as que fe
naõ podem dizer , como pode viver hum homem ,
que naó for cego, furdo, nem mudo, íenaõ fugindo
dos homens: Fuge homines ?
986 S. Jeronymo como quem tao experimenta-
do tinha a quietação do deferto , e as perturbaçoens
do povoado, egallado a vida alternadamente já em
Roma , e nas Cidades da Grécia, já nos deíertosda
Thebaida , e da Paleílina , efcrevendo a Ruftico di-
zia : Mihi oppidum carcer eft , folitudo paradijus:
Para mim o povoado he cárcere , e o deferto paraifo.
Livrar-
-^
Difcurfo XCÍÍI. 341
Livrarfe pois de tal cárcere , de tal Babylonia , e de
tal cativeiro , eíla he a primeira prerogativa dos que
fe deliberao a deixar o povoado , e fugir com Chrif-
to ao monte : Fiigit in mo7item. Diz o Euangeiifta , Num. z6u\
quefugio o Senhor para o monte, enaô diz qual fot-
fe o monte , para que fugio. Mas até o fugir para
monte fem nome he circunftancia, que acredita o
higir. Fugio como quem bufcava o retiro, e naõ a
fama : fugio como quem queria , que naô foubellem
delle, nem onde eftava. AíFim fepultou DeosaMoy-
íésj fem fe faber já mais aonde, e aíFim fe deve enter-
rar, e eíconder quem toma o deferto por íepultu-
ra. E porque o nome de fepultura naó faça horror
aos vivos , nem os ecos do deíerto aos que nao fa-
bem viver fós, paliemos ao monte Sinai.
987 Coufa notável, e muito digna de reparar Num. 1^4
he , que havendo Deos de efcrever , e dar ley aos ho-
mens , eícolheíTe paraiflo hum monte no meyo de
hum deferto, qual foy o monte Sinai nos defertos
da Arábia. As leys naó fe íizeraõ para os montes,
nem para os defertos , fenaô para os povoados , e pa-
ra as Cidades. Da Cidade de Jerufalem diíFe o Pro-
feta , que havia da fahir a ley : De Sion exibit lex^ ^ ifaí. 2,. y>
'verbum Domini de jerufalem. As partes, de que fe
compunha a mefma ley , todas fe ordenao a povo, a
Cidade, a congregação de homens. Porque na par-
te moral o fegundo preceito da primeira taboa , e os
fete da fegunda todos eftaó fundados na juíliça , e
caridade do próximo fem lefaó , nem oífenfa do
trato humano : a parte ceremonial , que pertencia ao
culto divino, expiaçoens, e facrificios , também ti-
4iha todo o feu exercício naó fora , fenaó dentro da
Cidade ; porque o templo era hum fó, e na Cidade
, Tom. II. Yd ^^
342 V leira ai}t>reviú
de feru falem , e a elle havia de concorrer todo o po-
vo três vezes no anno: finalmente a parte civil, e
forenfe no niefmonomeeílá dizendo Cidade, Com-
munidade , Republica , Tnbunaes .Juizes, Partes.
Pois íe as leys fe fizeraÔ para os povos , porque ns dá
Deos no defpovoado? Se para as Cidades, e Repu-
blicas , porque as dá em hum monte, e no meyo de
hum deíerto? Porque fó nos montes, e nos defer-
tos, diz PhiloHtbreo, eftaô os homens capazes de
receber em fuás almas , como convém , os preceitos,
Nuin.zí5.e didames da íabedoria divina : Qiiod adf acras le-
ges recípiendas animus purificatus reqtiiritur elu-
tis maculís , qu^ harent ex mifcellani£ turba in ci-
'vitatibus degentis contagio , id vero non ejl pojjlbi-
le a li ter , quam in dejerto efficere. Para receber , e
perceber a fantidade , e efpirito das leys divinas he
neceílario , que os ânimos eftejaõ puros , e fem mif-
tura, nem mancha dos aíFedlos, e cuidados terrenos,
queos defcompoem, ealteraõ: eefta pureza, tran-
quillidade, e ferenidade de animo naó a pode haver
entre a perturbação, e tumulto dos povos, eiabyrin-
to das Cidades , fenao no retiro dos montes , e na
quietação , e íilencio dos defertos. As leys de Deos
fao as regras da vida , os efpelhos da alma , e as ba-
lanças da confciencia ., e no meyo dos embaraços,
encontros, e batalhas continuas do povoado as re-
gras perdem a redlidao , os efpelhos a pureza , as ba-
lanças a igualdade, e tudo fe defcompoem, e per-
turba , com que naõ he poííivel ( diz Philo ) que nem
o que Deos manda, fe perceba , nem o que mal fe per-
cebe , fe guarde. É fe nao vede-o nas taboas da mef-
nia ley. Em quanto elliveraóno monte,coníervaraÕ-
fe inteiras , tanto que Moyfés chegou com ellas ao
r povo
Difairfo XCIII. 545
novo, I020 íe quebrarão. E depois de quebradas, que
remédio houve para fe reformarem ? NaÕ houve ou-
tro remédio, fenaÔ tornar Moyícs a Deos, e ao mon-
te • porque íó com Deos em hum monte le guardao
as fuás leys, fem fe quebrnrem, e fó com Deos em hu
monte fe reformao depois de quebradas, hm hm ,
quando Deos deo a mefma ley, fendo iey univeríal
para todos , em todos os preceitos delia íempre fai-
lou com hum fó : Nonoccuks ,non m(Fcbabens',nonv^od.to.
furtum fácies: para que cntendeílemos, queíoos ^
que vivejn fós as venerao, fó os que vivem íos , as
obíervaó, íóos que vivem fós, colhem frutlo delias.
Eeíles faó os que feguindo o nafcimento das meí-
mas leys, do povoado fe retirao para o deíerto , e das
Cidades para o monte : In montem.
988 Bem podéra o Senhor efcolher outro lugar 5^^^, ,g^.
no povoado , e ainda outro monte ( como o de Sion
no meyo de Jerufalem ) para aíTentar nelle a fua ef-
cola ; mas elegeo efte taõ diílante da meíma Cidade,
e taô apartado do mundo , para nos enfmar com o
primeiro exemplo, que a efcoladafabedoria doCeo
he a vida foíitaria , e do deferto. AíTim o diz Sac Pe-
dro Damião, aquelle, que pelo deferto trocou a Ro-
ma, e pelo fayal a purpura : Solitária vita ccshjtís
doãrinafcLola efl , & divinarum artium difciplt-
na : illic enim Deus eft totum , quod difcitur -.Ávi-
da foíitaria he a efcola da doutrina do Ceo , e as ?,r-
tes, que nella fe profeífaó, todas faó divinas, porque
tudo o que alli fe aprende, he Deos : Illic emm Deus
ejt totum , quod difcitur. Oh quem levantara huma
deftas cadeiras fem emulação, nem oppofíçao em
todas as Univerfidadesjdo mundo! Aqui fe graduarão
os iá nomeados Antonios , e Arfenios , aqui os Pau-
•^ Y 4 los,
344 Vieira cíbhreviaão
ios,os HilarioenSjOs Pacomios,e todos aquelies dou-
tifiímos idiotas iauresdos na etcrnidnde , que ou de
ignorantes Je íizerâó íabios \ ou de íabios ignorantes
por Chrifto,
Nnm:.é7 ?^^ Os livros, por quc eftudavaó fem efpecula-
'çaõ , e mais com o efquecimento , que com a memo-
ria jfaÕ aquelles tao approvados por S. Bernardo
e tao alheyos de toda a inveja , como de toda a cen-
fura. Eícrevia S. Bern.irdo a hum deíejofo de íaber
a quem elíe defejava fazer mais íabio, e diz aíTim :
Experto crede ^ aliquid ampUus inventes in fylvis
^uani in libris: Credeme como a experimentado '
que mais haveis de aprender nos boíques, que nos
livros. Que arvore ha em hum boíque ou mais al-
ta , ou mais humilde , que naó crefça fenipre para o
,è ^eo ? E fe tanto anheiaõ ao Ceo as que tem raizes
na terra; que devem fazer as que naó tem raizes?
As do povoado, e cultivadas dependem da induííria
dos homens, as do deferto, e fem cultura depen-
dem fó do Ceo , e de Deos , e nem por iífo creícem,
ou duraõ menos. As que defpe o Inverno , enfinaó a
efperar pelo Vera5, e as que vefte, e enriquece o Ve-
-raõ , a naô fiar da prefen te fortuna, porque lhe ha de
ÍLicceder o Inverno. As que fe dobrão ao vento , en-
íinaõ a coníervaçaõ própria , e as que antes querem
quebrar , que torcer , a redidaõ , e a conftancia. Em
-fim cada arvore he hum livro , cada folha huma li-
ção, cada flor hum deíengano, e cadafruòlo três fru-
d:os: os verdes ainda naó faò, os maduros duraó pou-
co , e os paliados já foraõ. Efta he a efcola muda do
deferto , em que S. Bernardo eíludou no feu valle : e
eíia a que Chrifto aíFentou no mefmo monte , onde
Num. ié^.diíTe a voz do Ceo : Ipfu?n audite. Grande razaõ te-
' ^ ve
I
I
ijcurjo J^C 111. 345
ve o Euangehlhi axi caiar o nome próprio do monte,
para onde o Senhor hoje fe retirou, e por ilfo tendo já
declarado, que era deferto , fe contentou com lhe
chamar monte : In montem.
990 RetiroLiíe o Senhor , ou fugio para o mon- Num.i;©
te , e retlrouíe elle ío : Ipfejolus. Nefta palavra ef- ,
taó recopilados , ou feamente pintados todos os hor-
rores, e medos da foledade. E quantos deíles medro-
fos cobrindo o mefmo medo com apparenciasde dif-
cretos eílaraó ailegando com Salamaó, e dizendo
com elle: V^e foli\ Aydofó? Sentença % eíla da-^^^j^ ^^^
GuelleRey rapientiffimo : e fem lhe perguntarmos
a razaó , elle a deo logo : Qtiia cum ceciderit, non ^
habet jublevantem fe. Ay do ló ; porque quando ca-
hir , naô terá quem o levante. Mas naó he necella- '
rio fer Salamaõ para refutar eíle inconveniente. Se o
fó naó terá quem o levante, também naõ terá quem
o derrube. E mayor felicidade he carecer do perigo ..
de quem me derrube , que haver miíler o foccorro de
quem me levante. Quanto mais , que os que podem,
e coílumaó derrubar , íao os muitos , e os grandes:
eoscahidos, a quem eíles derrubaô , mais facilmen-
te acharão huma liíbnja , que lhes ponha o pé em ci-
ma , que huma amizade conílante , e valerofa, q^ue fe
atreva a lhes dar a maô. Mas fe lhes faltar a maõ dos
homens , uaô lhe faltará a de Deos : Cnm cecidertt , pf. jí. t^t
non collidetur^quia Dominus lupponit majiumjjiam^
diíTe melhor, que Salamaó, feu pay David. Salamaó
doefe do lo , porque fe cahir , naô terá quem o le-
vante : e David dalhe o parabém , porque fe cahir ,
Deos lhe porá a maõ debaixo, para que nada lhe fa-
ça mal. Aquelle fó acharfeha fó , porque lhe falta-
ráó os homens ; mas eíle íó nunca eílará fó , porque
' fem-
Nura.iyí.
3 46 Vieira ahhreviado
fempre terá comfigo, e por fi a Deos. Aquelle fó
poderá cahir, ainda que o nao derrubem : eíte fó
por mais que o queiraô derrubar , nunca poderá ca-
hir , porque quem cahe fobre as maõs de Deos , a
mefma queda o levanta.
991 Daquifefegue, quena foledade tomada por
Deos o fó nunca eftá fó. O fó na foledade nunca ef-
tá fó, porque Deos eftá com elle, e eile com Deos.
Por iíTo dizia S. Bernardo : Nunquam minus folus ,
guamjolus'. Nunca eftou menos fó , que quando ef-
tou fó ; porque quando naó eftou ló , eftou com os
homens, e quando eftou fó , eftou com Deos. E he
demonftraçaó evidente, que quem eftá com Deos,
eftá menos íó, que quem eftá com os homens ; por-
que a companhia dos homens, ainda que fejaõ mui-
tos, he limitada , e a companhia de Deos, ainda que
feja hum fó , he immenfa.
Num; tjt. 99^ ^^ ^^ acabaflem de entender os homens
'quanto perdem de íi , e de tudo em naÓ íaberem ef-
tar fós com Deos , e comfigo ! Em quanto Adaó ef-
reve íó , confervoufe no Paraifo , na graça de Deos,
e na Monarchia do mundo : depois que efteve acom-
panhado, perdeo o Paraifo, perdeo a graça , perdeo
o Império , perdeofe a íi , perdeonos a nós , perdeo
tudo. E porque nao pareça que ponho a feUcidade
Num. 27j.ja folidao em revelaçoens interiores , occultas aos
fentidos humanos , outras vifoens tem os íolitarios
manifeftas , e que todas vem , fendo elles porém mais
ditofos que todos, porque as vem de longe, e em lu-
gar íeguro. Nefta mefma occafiaô , em que Chrifto
Senhor noíTo fe retirou ao monte , os difcipulos, que
fe tinhaó embarcado , padecerão huma terrivcl tem-
peftade, na qualjádefconíiados de remédio, faltou
pou-
•
Difcurfo XCW. 3 4 7
pouco que o mar os naõ comelFe : e no mefaio tem-
po nota o Euangeliíla , que o Senhor efcava fó cm
terra: Et ipfs Joltis Í7i terra. O meímo faccede aM3tc.í.47.
quem vive l'ó no feu deferto. Os outros, que andao
no mar deíle mundo , lutao com os ventos , e com as
ondas : huns fe perdem , e Te aff^ogao , outros fe íal-
vaõ mal a nado, e todos correm fortuna : e fó o f ó
vêtudoifto de longe, porque eftá em terra '.Etipfe
falas interra. Arde o mundo em. guerras , huns ven-
cem, outros fao vencidos, combatemfe Cidades, con-
quilbõfe Reinos , morrem os homens a milhares , e
fó o fó , fe lá lhe chegao os ecos , tudo iílo ouve fem
fem temor, porque a fua paz he fegura : Etipjefo-
lusin terra. Voltafe o mefmo mundo em perpetua
roda , a huns derruba , a outros levanta , huns cret-
cem até ás nuvens , outros defcem até aos abyfmos ,
e fó o fó, que eftá fora da jurifdiçaõ da fortun a,nem
áprofpera tem inveja, nem da advería tem medo,^^^
porque fó o feu eílado he incapaz de mudança : Et
ipfefolus in terra: Alli fe quebrao as azas á vaida-
de , alli fe dá em terra com a foberba , alli fe atalhaó
os paííos á cubica , alli fe cortaõ as maós á vjngan-
ça, alli cahe em fi a injuftiça, ea fem razaó, alli
morre, e fe deshz eícumando a ira , e todos os ou-
tros monftros da intemperança poderofa , e fem fre-
yo ou fe mataõ , ou fe affugentaõ , ou fe domaó.
DIS*
"/"-;
teira abbreviaão
DISCURSO XCIV.
eirado da prefação , que o Aiiãor fez aos panegy-
ricos dos três jonhos , que myfteriofamentefonhou
S. Francifco Xavier.
Pa-t 8.
fui. 6.
993
S O N H O.
Sonobebuma morte breve; por onde Sé-
neca Hibiamente chamou á morte mor-
te longa para a diíHnguir do fono. Se o íbno he
imagem da morte, os fonhos de que feraó imagem ?
O Tono he imagem da morte , os fonhos faó imagem
da vida. Cada hum fonha como vive: Eamaxime
Joffmiamus, qua agimus^ aut aâíuri fimius , aut vo-
lumus. Os fonhos íaô huma pintura muda, em que
a imaginação a portas fechadas, e ás efcuras retrata
a vida, e a alma de cada hum com as cores das luas
acçoens , dos feus propoíitos , e dos feus defejos. Fa-
raó, como providente Principe, fonhava com a fo-
me , e com a fartura do povo : o feu copeiro mor, e
o outro miniftro da meia real (que naò tem nome,
nem officio nas noíTas Cortes ) hum fonhava com a
taça, outro com as iguarias: o foldado Madianita
fonhava com a efpada deGedeaõ : Nabucodonofor
fonhava com Impérios , e Monarchias , cada hum eni
fim fonhava de noite com o que exercitava de dia.
Galeno, para conhecer os humores do enfermo,
manda obfervar os fonhos, e também íe podem ob-
íervar para conhecer os aíFeélos , que faõ os humo-
res da alma. O melancólico fonha coufas triftes , e
trágicas , o fanguinho fonha felicidades y e feílas , o
. :[: cole-
Difctirfo
^^^ÍF.
549
colérico kvÃWà guerras , e batnlhas, o íleumatico
crcyo, que naô fonha, porque nàb vive. Até no ef- -
tado da innocencm reconheceo Santo Agoítinho ,
qae havia íonhos ; mi.s logo advertio , que eraô fe-
nieihantes á vida : Tamf elida ercmt fomnia dormt-
entiuni , quam -oh a vigilantium : Eraó tao fel ices os
íonhos . quando dormiaó, como era felice a vida ,
quando vigiuvaó. Porque o dormir heconiequencia
do viver , e o fonhar do modo, com que fe vive.
994 A razão deíla Filofofía he , porque os fo-
nhos íaó Híhosdos cuidados, como muitos cuidados
filhos dos (bnhos: De his enim (conclue oEílagirita)
maxlme cogitatlones , imaginai tones que obveniunt. —
Et qui inJtrucH virtutibus funt , meliora fomnta
vident , quod etiam vigilantes meliora animadver- ,
tunt. Quando Nabucodonofor íonhou toda ahiílo-
ria famoía , e íucceflos daquella prodigiofa eílatua ,
antes de Daniel declarar o myfterio , começou a con-
tar o foniio deíla maneira: Tu y Rex ^ cogitar eccepif- ^^^^ ^,,^^
ti inftratotuo; Vós Rey começaíles a cuidar no
voflb'leito. Tende maó Daniel : ElRey naô vos per-
gunta o que fazia, quando eílava acordado, per-
guntavos o que fonhou quando dormia. AíTim he ,
diz Diiniel ; mas eu quero, e devo contar ocafo def-
de fua primeira origem, e a origem do íonho de Na-
buco forao os feus cuidados: T//, Rex , cogitarecos-
pifti. Cuidava no que íeria, e poriflo fonhou o que,
havia de fer. Cuidou defperto , e íonhou dormindo,^
e naô fonhou outra coufa, íenaô aquella mefma, que.
tinha cuidado; porque aquillo, emquecadahum cui-
da, e lhe dá mayor cuidado , quando vigia , iíFo he
o em que fonha, quando dorme. Se Nabuco fe lem-
brara do que cuidava , elle fe lembraria também do;
que
Match.
IO.
550 Vieira ahhreviado
que fonhou ; mas o eíquecimento, que lhe roubou á
memoria do cuidado, Q^^t \\\q ievou também a lem-
brança do fonho pela grande connexao, que tem os
fonhos, e os cuidados. Em fím íonhou em Reynos,
eMonarchias futuras, porque os Reynos, as Mo-
narchias, e os futuros era a matéria , (digna verda-
deiramente de hum Rey ) em que elle eftava cuidan-
do : Tu , Rex , cogitare cc3pijli , quidfuttirum eíJet
pojt h£c. -^
995 He verdade, que o fonho de Nabuco, teve
muit^o de profecia ; mas os cuidados íaócomo as cor-
das da cithara, que mandou tocar Samuel, quando
quíz profetizar. Ainda para os íonhos divinos fao
difpoííçao natural os cuidados. Sonhou o Rey com
os feus cuidados , porque adormeceo ao fom de feus
penfamentos. Sonho divino fov aquelie, em que o
Anjo revelou a S. Joíeph o fegredo da Incarnação
do Verbo nas entranhas de fua Kfpoía Equando te-
ve efte fonho Jofeph ? Qiiando eílava cuidando na
mefma matéria: H^c autem eo cogitante , ecce Jn<re^
lus Domini apparuit infomms et. Mas íe Jofeph*ef-
tava dormindo: Infomnis, como eílava juntamente
cuidando : H£c autem eo cogitante } Porque dormia
Jofeph; mas naó dormia o feu cuidado. Sonhava de
noite com o que cuidava de dia. Entre o cuidado
e o fonho de Jofeph fó havia eíla diíFerença , que o
cuidado era cuidado de Jofeph defperto, o fonho,
era cuidado de Jofeph dormindo. Por iílb Jofeph , e
Nabuco íonharao, e tiveraõ revelação do que lhes
dava cuidado, nao antes , nem depo'is, fenaó quan-
do cuidavao: 7"//, Rex, cogitare cwpijii: Hac autem
eo cogitante.
DIS-
Hfcurfo HCV. 3 5 1
DISCURSO XGV.
T^ ir a do de hum fermao de Santo António^ tcnâofe
publicado as Cortes para o dia feginnte , nú qual
tomou o Auâíor por thenia : Vos eílis fal terrie.
Matth. 5.
TRIBUTOS.
996
S primeiríis Cortes forao de boas venta p^^^ ^^
1. Jk-des , ertas fegundas podem fer de bons Num. 143.'
entendimentos. Nas primeiras tratouíe de remediar
o Reyno : neftas tratafe de remediar os remédios.
Para íe curar huma enfermidade vê-fe em que pec- Num. 144,
ca a enfermidade: para fe curarem os remédios ve-
jaíe cm que peccaraó os remédios. Os remédios, co-
mo diz a queixa publica, peccaraõ na violência, mui-
tos arbitnos , mas violentos muito. Pois moderefe
a violência com a fuav idade, íicaráoos remédios re-
mediados. Foraõ inefficazes os tributos por violen-
tos , fejaõ fuaves , e feraÕ effedtivos. Vos ejiis Jal
terr£\ Duas propriedades tem o fal , diz aqui Santo
Hilário: conferva , e mais tempera : he oantidotoda
corrupção, e lifonja dogoílo: he o prefervativo dos
prefervativos, e o fabor dos fabores : Sal incorru-
ptionem corporibus , quibtis fuerit afperfus , /w-
pertit , cÍT^ ad omnem Jenftim condítifaporis aptiffl-
mus eJl.TaQs como iíío devem fer os remédios, com
que fe haõ de confervar as Refpublicas. Confervati-
vos fim , mas defabridos na6. Obrar a coníervaçaõ,
e faborear , ou ao menos naó cífender o gofto he o
primor dos remédios. Naõ tem bons eíieitos o fal ,
quan-
í
p
Sencf
II.
332 Vieira ahhrcviado
quando aquillo , que fe íalga , fica fentido. De tal
maneira fe ha de coníeguir a confervaçaó , que fe ef-
cufe, quanto forpoíTivel, o fentimento. Tirou Deos
huma cofta a Adaó para a fabrica deHeva ; mas co-
mo a tirou ? Imnújít Deus j opor em Í7i Adam , diz o
texto fagrado : Fez Deos adormecer a Adaó , e aílim
dormindo lhe tirou a cofta.
997 Pois porque razaõ dormindo, e nao acorda-
Nunj.145. doPDiíTe-o advertidamente o noífo PortuguezOleaf-
tro , e he peníamento taó tirado da cofta de Adaõ ,
como das entranhas dos Portuguezes : O/lejtdit ,
qnam difficile Jit ab homine auferre , qiiod et iam in
ejiis cedit utUitatem : qiiamohrem opus ejl ab eo
Jurripere , quodipfe conceder e negiigit. A cofta, de
que fe havia de forsnar Heva, tirou-a Deos de Adão
dormindo , e nao acordado , para moftrar quaó dif-?
ficultofaraente fe tira aos homens, e com quanta fua-
vidade fe deve tirar ainda o que he para feu pro-
veito. Da creaçao , e fabrica de Heva dependia nao
menos , que a coníervaçaô , e propagação do género
humano ; mas repugnao tanto os homens a deixar
arrancar de íi aquillo , que fe lhe tem convertido em
carne , e fangue , ainda que feja para bem da fua ca-
fa , e de feus filhos, que por iílb traçou Deos tirar
a cofta a Adaó , naô acordado , fenaô dormindo :
adormeceolhe os fentidos para lhe efcufar o fenti-
mento. Com tanta fuavidade como ifto íe ha de tirar
aos homens o que he necefiario para a fua conferva-
çaó. Se he neceftario para a confervaçaó da pátria,
tirefe a carne , tirefeo íangue , tiremfe os oObs, que
aftim he razaó que feja ; mas tirefe com tal modo,
com tal induftria , com talluavidnde, que os homes
naõ o fintaó , nem quafi o vejaó. Deos tirou a cofta a
Adaó,
m
ycwifo XCV. 5 5 3
Adão , mas elie naó o vio , nem o íentio ; e fe o Ibu-
he, foy por revelação. Afiini aconteceo aos bem go-
vernados vairallos^do imperador Theodorico , dos
quacs por grande gloria íiia d\z\i\ cWc: Senl ími/s an-
õicis iilatioiíes^ vos addita tributa nejcitís : Eu lei
que ha tributos; porque vejo as minhas rendas acref-
centadas : vós mo fabeis, le os ha; porque naó íentis
as voílas diminuídas. Razão he, que por todas as vii^s
le acuda d coníervaçaô , mas como fomos compoftos
de carne , e ínngue , obre de tal m.aneira o racionai ,
que tenha fempre reípeito ao feníiíivo. Taó afperos
podem fer os remédios , que feja menos feya a mor-
te, que a faudc. Que me importa a mim íarar do re-
médio , le hei de morrer do tormento ?
5^98 Divina doutrina nos deixou Chriílo deílaNum. i4<f.
moderação na fujeita matéria dos tributos. Mandou
Chriftoa S.Pedro, que pagalie o tributo a Cerar,e
diíFelhe, que toíTe pefcar, e que na boca do primei-
ro peixe acharia huip.a moeda de prata, com que pa-
galie. Se Deos naõ faz milagres {tm neceíTidade,
porque o fez Chrifto nefta occafiaó fendo ao parecer
fuperíluo } Poderá o Senhor dizer a Pedro, que foííe
pefcar , e que do preço do que pefcaíle, pagaria o
tributo. Pois porque difpoem , que fe pague o tribu-
to nao do preço , fenao da moeda , que fe achar na
boca do peixe? Quiz o Senhor , que pagaíle S.Pedro
o tributo , e mais que lhe íicaíTe em cafa o fruto de
feu trabalho , que illo he o fuave m.odo de pagar tri-
butos. Pague Pedro o tributo íim , mas feja com tal
fuavidade, e com tsô pouco difpendio feu , que ía-
tisFazendo as obrigaçoens de tributário , naô perca
os intereífes de pefcador. Coma o feu peixe , comb
ii'antes comia, e mais pague o tributo , que dVntes
Tom. II. Z naô
Mash.iy
í6.
2'^
) ;
nao píigava.Por iíío tira a moeda naódo preço, fenao
da boca do peixe : /Iperto ore ejiis ^ invenies jl ate-
rem. Aperto ore : notay. Da boca do peixe íe tirou
O dinheiro do tributo; porque he bem, que para o
tributo fe tire da boca. Mas eíla diíFerença ha entre
os tributos fuaves, e os violentos: que os fuaves ti-
raôíe da boca do peixe ; os violentos á:i boca do pef-
cador. Haôfe de tirar os tributos com tal traça, com
tal induílria , com tal invenção : Inventes Jl aterem^
que pareça o dinheiro achada , e nao perdido , dado
por mercê da ventura , e nao tirado á força da vio-
lência. Aííim o fez com Adaó , e aífim o fez Ghriílo
com S.Pedro ; e para que naô diga alguém , que fao
milagres a nós impoíTiveis , aíTim o fez Theodorico
com feus vaíTallos. A boa induílria he fupplemento
da omnipotência , e o que faz Deos por todo pode-
rofo, fazem os homens por muito induftriofos.
^^^ Sim. Mas que induílria poderá haver, para
que os tributos fe naô íintaó , para que fejao fuaves,
Num. 14S. e fáceis de levar } Que iaduílria ? Vos eftis fal ter-
r£. Nota aqui Saò João Chryfoílomo a generali-
dade, com quefallou Chriílo aos difcipulos. Nao
lhes chamou fal de huma cafa , ou de huma famí-
lia, ou de huma Cidade, oudehuma naçaõ , íenaó
íal de todo o mundo , fem exceptuar a ninguém :
Vos eflis Jal terra , no7i pro ima gente , fedpro uni-
verfo mundo , commenta o fanto Padre. Queremos,
lenhores , que o fal , qualquer que for , naõ feja defa-
brido ? Q»^íeremos , que os meyos da confervaçao
pareçao íuaves.^ Non pro una gente , feã pro uni-
verfo mundo. Nao fejao os remédios particulares, fe-
jao iiniverfaes : naó carreguem os tributos fomente
fobre huns , carreguem fobre todos. Naó fe trate de
-fal-
Difcurfo XCF.
falgar fò hiini género de gente : Non pro una gente :
repartnfe, e aicnnce o íal a terra: Vos eftisfal terra.
looo O mayorjugo de hum Reyno , a niais
pezada carga de' huma Republica fao os immo-
dcrados tributos. Se queremos , que fejaó ieves ,
fe queremos , que fejno fuaves , repartaóíe por to-
dos. Niio ha tributo mais pezado , que o da mor-
te, e com tudo todos o pagaô , e ninguém le quei-
xa ; porque he tributo de todos. Se huns homens
morrerão, e outros naÕ , quem levara em paciência
eíh rigorofa penfaõ da mortalidade? Mas a ineíma,
razaó, que a eílende, a flicilita; e porque naó ha pri-
vilegiados , naó ha queixofos. Imitem as reíoluçoens
politicas o governo íiatural doCreador : Otiifolem
fíium oriri facit fuper bonos , ir maios , (irpàdiju-
per jnftos y <i^ injí/JJos. Se amanhece o Sol, a todos
aquenta , e íe chove o Ceo, a todos molha. Se toda a
luz cahira a huma parte, e toda a tempeílade a outra,
quem o fofréra ? JNlas naÕ fei , que injuíla condição
he a defte elemento groíTeiro, em que vivemos, que
as meímas igualdades do Ceo em chegando á terra
logo fe deílguaíaô. Chove o Ceo com aquella igual-
dade diílributiva , que vemos ; mas em a agua che-
gando á terra , os montes ficao enxutos , e os vailes
afogandofe : os montes eícoaõ o pezo da agua de íi,
e toda a força da corrente òq^cq a alagar os vaiíes :
e queira Deos, que naõ íeja theatro de recreação
para os que eftaô oihando do alto vér n^.à^.r as ca-
banas dos pafrores fobre os dilúvios de fu^is ruinas.
Ora guardemonos de algum diluvio univerfai , que
quando Deo^ iguala defigualdades , até os mais altos
montes íicaó debaixo da agua. O que importa he ,
que os montes Te igualem com os vaiíes, pois os pion-
Zi' tes
Num. 150.
\\i'
3 5^ Vieira abbrevíado
tes íaô a quem principalmente ameaçao osrayos : e
repartaíe por toJos o pezo , para que íiqueleve a
todos, Os meíinos animnes de carga,íe lha deltuõ to-
da a huma parte, cahem com elia : e a muitos navios
meteo nas maós dos piratas a carga , naô por muita,
mas por deícoinpaírada. Se fe repartir o pezo com
igualdade dejuíliça, todos o levaráô com igurdda-
ÚQá^ animo : Nulius enim gravanter obtulit , qitod
cum ^^íjuitateperfolvitítr\?ovq\xQ ninguém toma pe-
zatiamente o pezo , que fe diíiribuio com igualdade,
diííe o politico CaíTiodoro.
DISCURSO XCVI.
Tirado de hum fermao da quarta Dominga depois
da Pafchoa.
T R I S T E Z A.
Part. 7.
Kum. 3 8 tf.
looi Ç E houveíTe huma arte, ou remédio uni-
\3 verfal , que totalmente nos livraíTe de
triílezas, e que em nenhum caio houveiremos , ou
podeíTemos eftar triíles , naô feria muito para ^Kq^q-
jar , e para todos a quererem aprender ? Pois ifto he
o que hoje pertendo enfínar com a divina graça. De-
termino enfinar hoje a todo o homem em qualquer
fortuna huma arte muito certa , muito útil , muito
agradável , e muito breve, que he a arte de na6 ef-
tar triíle.
Num. 387. loo- A enfermidade mais univerfal, que pade-
ce ncíle mundo a fraqueza humana , e naõ fó a mais
contraria á Auide dos corpos , fenao tambeír» a mais
perigofa para a falvaçaó das almas, qual cuidais que
fera ?
Difcurfo XCFÍ. 357
fera ? He a trifteza. Primeiramente he enfermidade
univerfal de todos os homens , c univerfal igualmen-
te de todas as terras ; porque nenhuma ha taó fadia ,
e de ares tao benignos , e puros , que eíleja ifenta
defí-e contagio , e nenhum homem ha taô bem acom-
plexionadode todosos humores, que quaíi habitu-
almente naó eíleja fujeito aos triítes accidentes de
melancolia. O primeiro , e infallivel prognoftico ,
e também univerfal defta doença , quando ainda nao
fabemos dearticular vozes, he entrarm.os neíle mun-
do todos chorando. Entramos todos chorando, diz
Salamaõ, ( metendofe também elle na conta) porque
aíTim confeíTamos elta miíeria natural ^ e começa-
mos nos primeiros paíTos da vida a pagar efte tributo
á triíleza , a que havemos de eftar íujeitos em toda
ella. A trifteza ( fe buícarmos a razão defte tribu-
to ) naó he filha da natureza , fenao da culpa. Do
primeiro peccado do género humano nafceo hum
taô negro , e feifíimo monftro : e como todos fomos
filhos de Adaõ, todos herdamos délle efte triíte pa-
trimónio. Nenhum filho daquelle pay foy tao pri-
vilegiado da natureza , nem tao mimofo da fortuna,
nem tao lifonjeado da vida , nem taô efquecido da
morte , que antes delia naô padeceíTè muitas trifte-
zas , que lhe fizeíTem defagradaveis eflas mefmas fe-
licidades.
1003 Efte mundo,emque vivemosjtodo hevalle
de lagrimas , nome , com que o bautizou David ain-
da para depois de Chrifto : In valle lacrymarum inn. s ji
loco, quempofuit. Em todo efte valle ninguém pode
melhorar , ou altear de lugar, ainda que o ponha on-
de quizer : In locOy quem pofuit : e ninguém fe pode
iíentar detriftezas, porque todo o mundo he valle , e
í Tom. II. Z3 todo
m
r
3 5 8 Yieira ahhrcviaão
todo o valle he de lagrimas: Invalle lacrymarum. Só
eíle valle he valíe lem montes : e poíio , que alguns
quizeraõ levantar montes neíte valle , e parece , que
o Gonfeguiraô , todos eííes montes por altos, e altif-
íimos que fejao , naõ eícapaõ do diluvio da trifteza.
Os Reys, os Príncipes , os Monarchas, os Impera-
dores , os Papas , por mais que o feu eftado os tenha
levantado tanto fobre os outros homens, nem por
iíFo deixaõ de chegaria os nublados, e chuveiros
contínuos das triílezas. He verdade, queastriftezas
dos Príncipes andaô fobredouradas com os reíplan-
dojes dos cetros , e das coroas ; mas por iíTo meímo
faõ mayores , e mais pezadas : porque faó mais inter
riores. As triílezas, que correm pelos olhos, naôfao
as mais triíles : as que fe afogaô no coração , e as que
o afogaó , eíTas faÔ as mais íenílveis, e penetrantes^
Aquelles mefmos refplandores , que cá fe admirao
por fóra , faô os relâmpagos das grandes tempefta-?
des, que lá íeoccuítao, edevorao por dentro. Aflim
que a triíleza,he |hum mal , e enfermidade univer-
fal, de que ninguém efcapa.
Num.3S^. 1004 He também, como dizia, a doença mais con-
traria á faude dos corpos, porque mais , ou menos
aguda fempre he mortal. Naõ o hei de provar com
aforifmos de Hippocrates, ou Galeno, mas com tex-
tos expreíTos todos do Efpirito Santo. No cap.. 17.
dos Provérbios diz o Efpirito Santo por boca de Sa-
Prov, 17. lamao, que a trifteza féca os oíFos : SpirittístriJIís
exficcat offa. Se diíTera , que murcha , e féca a cor, a
pelle , as veyas , a carne , muito dizia ; mas os oíTos ,
que faó as partes mais interiores , mais folidas, mais
duras , mais fortes, com que fe fuftenta eíla fabrica
do edifício humano ? Aílim o diz a fabedoria daquelr
i
Dijcurfo XGVi: 5/5^
I-és olhos, que penetrao dentro em nós o que nos
naõ podemos ver. De forte que he a trifteza hum
giiíano negro , ( á difFcren(^a dos brancos , que roem
o bronze ) o qual nos eílá fempre comendo , e car-?
comendo por dentro , e bebendo, e íecando o hu- t
mido daquellas taizes , em que íe fuítenta o calor "^
da vida, atéqueelle fe apaga, eella morre.
1005 Mas efte até que quanto tardará ? NaoNum, j^o.
muito tempo , nem com paíFos vagarofos ; porque
aquelle Cavalleiro do Apocalypfe , que montado fe-
bre hum cavallo pallido tinha por nome Morte , ef-
poreado da triíleza corre a toda apreíFa. O mefmo
Efpirito Santo o diz no cap. 38. do Ecclefiaílico :
A' triftitiafeftinat mors. Para huns homens parece, Ecdef. 38.
que vem a morte a pé , para outros a cavallo , para ^^•
huns andando, para outros correndo ; porque huns
morrem de vagar, outros depreíTa ; mas a Parca , que
fempre antes de tempo corta os fios á vida , he a trif-
teza. Acereis a hum deíles , quando ainda fe conta no
numero dos vivos , defcoi^ado , pallido , macilento ,
mirrado, as faces fumidas , os olhos encovados, as
fobrancelhas cabidas , a cabeça derrubada para ater--
ra , e a eílatura toda do corpo encurvada , acanhada,
diminaida. E fe elle fe deixaíTe ver dentro da cafa ,
ou íepultura , onde vive como encantado , velohieis
fugindo da gente , e efcondendofe á luz , fechando
asportas aos amigos , e as janellas ao Sol , com tédio,
e faftio uni verfaí a tudo, o que viílo, ouvido, ou ima-
ginado pôde dar goílo. E eftes efpeltos tao deshuma-
nos cujos fao, e de que procedem ? Sem duvida da
melancolia venenoía , e occulta , que a paíTos apref-
fados leva o triíle á morte: Â' triftla fejliyiat mors. .
1006 Para prova deíla funeíla verdade bailava Num. 39X
Z 4 hum
3 ^° Vieira ahbreviadó
hum fó , e fobeja /aõ os dous textos referidos do Ef-
pirito Santo ; mas fobre elles accrefcentou a mefma
labedoria o terceiro taó admirável, e encarecido,
que fe naõ fora da boca divina, podéra parecer incri-
íccief. xj/.vel : Omnis plaga triftitia cordis eji : A trilleza do
^7- coração naó he huma íó chaga , ou huma ío ferida,
fenaô todas. Sendo chaga , e ferida do coração baf-
taria ferhuma ló para íer morra! ; mas como no co-
ração depofitou a natureza todo o thefouro da vida,
alílm no mefmo coração deícarregou a triíleza toda
a aljava das fuás fetas. Dalli fahem todos os elpiri-
tos vitaes,que fe repartem pelos membros do corpo,
e dalli, fe o coração he triíte , todos os venenos mor-
taes , que o laítimaô , e ferem. Ferem a cabeça , e
perturbando o cérebro lhe confundem o juizo: fe-
rem os ouvidos,e lhe fazem diíTonantea armonia das
vozes : ferem o gofto , e lhe tornaô amargofa a do-
çura dosíabores: ferem os olhos, e Iheefcurecem
a viíla: ferem a lingua, e lhe emudecem a falia: íe-
rem os braços , e os quebrantaó: ferem as maõs, e os
pés , e os entropecem : e ferindo hum por hum to-
dos os membros do corpo,nenhum ha, que naó adoe-
ça daquelle mal , que mayor moleftia lhe pode cau-
íar, e mayor pena. Confideraime hum cadáver vivo,
morto, e iníeníivel para o gofto, vivo, efenliti-
vo para a dor , e ferido , e laftimado , chagado , e laf-
timofo, cercado por todas as partes de penas, de mo-
leftias , de afíliçoens , de anguftias, imaginando to-
do o mal , e naó admittindo penfamento de bera,
aborrecido de tudo , e muito mais de 11 mefmo , fem
alivio, fem coníolaçaô, lem remédio, efemefpe-
rança de o ter, nem animo ainda para o defcjar : ifto
he hum trifte de coração. Os outros venenos em che-
gando
Dlfciirfo XCVI. }6i
gando ao coração mataó; mas efte como nafcc , ele
cria no meímo coração, vay mais de vagar em matar,
mas naó pode tardar muito. . , .. r 3 v,m ,oV
1C07 Fofie embora taõ contraria a vida, efaude^^^^Mí^v
dos corpos a enfermidade da triíleza , mas o peyor
mal defte mal he fer igualmente perigofa , e nociva
á falvacaó das almas. Neíle fentido íe haÕ de enten-
der humas palavras do grande Doutor da Igreja b.
Bafilio, asquaes parece, que dizem mais: Nímta
triíiitia author peccati ejfe folet , cum mxror mm-
tem fubmergat , & confilii inópia verttgmem ajf^-
rav. A grande trifteza , diz S. Bafilio , coftunja íer a
authora , e caufa dos peccados ; porque efta tortiili-
roa, eefcuriffima paixaó affoga àalma, e allirn como
os que padecem vertigens na cabeça, cahem, aíiim el-
la por falta de juizo, e confelho faz , que cayao os
homens no peccado. j vt , v
1008 Tal he o eftado de hum trifte , quando a Num. 5^^
forçada fua mefma melancolia o mete no profun-
do , e efcuriíTimo abyfmo da defconfolaçao. Alhm
como ao Egypcio naó lhe valia contra as íuas tre-
vas nem a luz do Sol , nem a do fogo , aíTim naó lhe
bafta a hum trifte nem o lume da fé, nem o lume da
razaó para vencer as fuás , que fó lhe faó palpáveis.
E aíFim como o Egypcio com aquella cadeya tem fer-
ro mais dura porém que o mefmo ferro , eftava ata-
do de pés, e ma6s,aírim o triíle,prezo fem grilhoens,
nem algemas á cadeya de fua própria trifteza , ( con-
tandolhe fempre os fuzis , a que naó acha numero >
nem tem pés para tugir , nem mãos para reíiftir as
tentaçoens do demónio; e por iíFo eflá fempre ex-
porto , e quafi rendido ao peccado. Diííe, quafi ren-
dido , e dilfô muito menos do que devera j porque fe
o de*
r
Num, 3 c) 5,
5 62 Vieira ahhrcviadd
o demónio he o que tenta , e vence , a força , ou fra-
queza , que ihe dá a vidoria , he a da triíieza. Ouça-
mos a mais eloquente voz da igreja Cathoiica , e fe-
che nosodiícuroChryfoílomocom chave de ouro:
Omni diabólica aãione potentior ad nocendtdm efl.
fímrorisfpiritus-^ d^mon enim quofcumquefere fu-.
perat ,per mmrorem fiiperat.Eumfi anferas^ nemoà.
d^fmmeUdi potertt. E porque efte teílimunho taõ:
notável naõ p^ireça íingular , o mefmo diz S. Bernar-
do, affirmando, que entre todos es eípiritos mali-
gnos o peíhmo , e mais nocivo de todos he a trifteza:.
Certe triftitia facularis miniiim malorum fpirituu
eji pefflmus. De forte que o demónio faiudado da
triíieza naÕ he hum fó demónio, íenaôdous, e a trif-
teza peyor , e mais diabólica , que o mefmo demó-
nio. E f e me perguntardes como concorre a trifteza
zacom o demónio para o peccado , pofto que.bcm.
creyo, que o terá cada hum experimentado em fi, eu
odireifacihnente.
1009 He muita natural aos triftes defejar o ali-
vio, e procurar o remédio á fua trifleza : e quando
a trifte alma chega a eítes pontos , então entra a ten-
tação, e o demónio, e os alívios, e remédios, que lhe
offerece, fao taes como ú\q. Se a trifteza he por am-
bição , e defejo de íer mais, perfuadclhe, que naõ fa-
Genef.j. çg cafo da ley de Deos como Adâo , e Eícva , que pof
ferem como Deos a quebrarão. Se a trifteza he por
pobreza , perluadelhe que furte, como a Achan íol-
dado illuftre , mas pobre , que furtou facrilegamen-
tea purpura, e regra de ouro nos defpojos de Jeri-
có. Se a trifteza he por amor , perfuadelhe a que ven-
1 Rçer , ^^ ^^^ ^OYçi , e violência o que naõ pode por vonta-
• '2' '^' de, coiiio Amnon a Thamar, fem reparar na dobrada
infa-
Jofuc 7.
.Reçi. II.
IJ-
infâmia ern ambos , e igualmente fua. Se a triíle/a 'le
por appcttite do fuperfluo , como a d'iilRey Achab,
perfuadclhe , que ao domínio univerfiil da coroa nc-
crefcente a vinha de Nabuth,ecom teílimunho falíb ^
jurado, fenao houver outracauía.Sea triíleza hepor
afronta , perfuadelhe a que a vingue ainda que fcja
por traição, como Abfalaó, que contra as obrigações
do fangue , e leys da hofpitalidade matou aleivofa-
mente a Amnon. Se atriíleza he por inveja, perlua-
delhe, que derrube o invejado, poftoque innocente,
e benemérito, como Aman valido d'EiRey Aíluero Efth.<?.
ao íideIi(íimo Mardocheo.
. 1010 Se atriíleza he porfaudades, perfuadelhe j^^,j^^^^^g^.
a que dos retratos do aufente faça Ídolos , como de-
raõ principio á idolatria de-todo o mundo as fauda-^^^ ^^
des de Belo. Se a triíleza he por falta de fiihos, e fuc-
ceíEió, como a da outra Thamar mais antiga,períua-
delhe , que fe lhos naõ ha de dar Sela feu efpofo , os Gen.38.
buíque em quem lhos pode dâr, como ella fez em Ju-
da , poílo que adultera , e inceíluofamente. Se a tríf^
teza he por ódio , como a de Saul a David , perfua- j.Reg. 18,
delhe, que ingrato ás cordas da fua harpa, como
ferro da própria lança o pregue a huma parede. Se a
triíleza he por falta de faude , perfuadelhe que tro-
que as receitas da medicina pelos feitiços da arte
magica, como depois dejeroboam fízeraô todos os
Reys de Ifrael , aos quaes, e ao mefmo Reyno fepul- ^■^*^2" '*
tou Deos vivos, e efres faó osoílos já então fecos, e' ,
myrrados, que vio Ezechiel ha mais dedousmiUn- ^" ' ^''*
nos. Iníinita matéria fora , fe houvéramos de difcor-
rer por todos os peccados , com que o 'demónio aju-
diido da triíleza mata as almas. A Caim triíle por fe
vêr menos favorecido perfuadiolhe o demónio ,- quecen. 4;
. . mata-
1f^
Acúi.iS.
Nuiii. 3P7
Mum. 398
3 64. Vieira ahhreviado
mataíTe a feu irmaõ, e matou o. A Achitofel trifte,
porque Abíalaó naõ feguira o feu voto, perfuadio-
líie , que íe mataíPe a fi mefmo , e matou fe. Ajudas
triíle pelo que tinha feito contra feu Meítre, perfua-
diolhe, que íeenforcaííe; mas antes que lhe impe-
diíle a refpiraçao o aperto do laço , a mefma triíle-
za , quê nao cabia dentro, lhe fez eílalar o coração,
e por ilfo rebentou pelo meyo : Crepuit medius,
loi I Eftes faó os eíFeitos da trifteza, (doença, de
que ninguém efcapancfta vida, e muito mais os mais
entendidos) e efte , que ultimamente declarei , he o
modo, com que a mefma trifteza naô fó chega a ma-
tar os corpos, fenaõ também as almas. Refta agora
nefte fegundo difcurfo menos melancólico tratar
do remédio deftapefte do género humano, e eníinar,
como prometti ^ a arte de nunca eftar trifte.
1012 Nas breves palavras , que propuz, temos
huma , e outra coufa , ifto he , a trifteza , e mais o
remédio. A trifteza : ()ina hac locutus fum vobisj
triftttia imphvít cor vejirum, O remédio: Nemo ex
mbis interrogat me y quovadis'. Porque vos d i He,
que me aufento , encheo a trifteza os voíTos cora-
çoens , e nenhum de vós me pergunta para onde vou.
•Neftas duas palavras: ^/0T;^^/>,(accommodando as
a nós ) nefta pergunta tao breve , e nefta única máxi-
ma, ou preceito confifte toda a arte, que prometti,
de nunca eftar trifte. Homem trifte , fe a trifteza te
naõ tirou ainda o ufo da razaõ , perguntate a ti mef-
mo para onde vás: Quovadist Eefta confideraçaó
em qualquer cafo , ou eftado da vida , por trifte que
feja, naô fó te fervirá deconfolaçaõ, de alivio, ede
remédio, mas te livrará para fempre de toda a trif-
teza.
1013 Ifto
^ciirjo XCVI.
1013 lílí) he o que digo. E iílo fuppoílo , laiba- Num. 39?;
mos ligo r a para onde imos todos, e_ cadii hum de
nós ? :>endo couía muito íabida , poílo que em parte
a vemos, e em parte naõ, o Eípirico Santo no la
mandou advertir por boca deSaiamaõ no cap. 1 2. do
Ecclcfiaíies: Revertatur palvis in terram fuain^uz\i:{,\x:
mnieevat^ é^ Jpiritus redeat adDeum^ qiá dedif^'
ílliim. Nefta vida andaô unidas no homem aquellas
duas? p:irtes , que depois fe haó de dividir , e tornar
cadaiiumaparadonde veyo, a terra para aterra, a
ahna para o Ceo.
1014 Pergunte agora ohomem aleu corpo: Cor- Num. 400.
po meu , para onde vás ? Qiio vadis ? Pergunte o
homem á íua ahna : Alma minha , para onde vás ?
Ouo vadis ? E como o corpo com a evidencia dos
oihoshadererpoader,qiJevay para a fepuitura , e a.
aima com a certeza da fé ha de confeíTar , .que vay
para o Ceo, á luz delle conhecimento taó claro , e
taõ forte nao haverá nuvem de triíleza taô eípeíIV, e
tao efcura , que totalmente fe nao desfaça , e defva-
neça. Naô diífemos pouco ha no primeiro difcurfo,
que a triíleza naò fó atormenta , e mata o corpo , fe-
naó também a alma ? Pois eíle he o antidoto invencí-
vel, que o corpo, e anima tem contra aquelle vene-
no duas vezes mortal, e efta a arte facil, e breve, com
que ohomem fe livrará infallivelmente de toda a
triíleza fó com perguntar ao mefmo corpo , e á mef-
ma alma para onde vavõ : Qtio vadis^
1015 E começando pelo corpo, feo homem IheNum.^ei,:
perguntar para onde vay : Quo vadis'? eelle refpon-
der, que vay para a íepuhura ; que hom,em haverá
tao cego , que havendo de cahir o meímo corpo na-
,quella cova , naô caya eiie em fi , e naó caya na razaó.
Nmíi.404.q^ís tesn para nao eílar triíle? Oh quantas lagrimas
íe chorão , e quantas lamentaçoens fe ouvem , por-.
que naó ha quem ponha os olhos nefie caminho ine-
vitável, eíe pergunte: Qiio vadis} Ahurjscomepor
dentro a trifteza , porque íe vem pobres : a outros
roe a inveja , porque põem , ou lhe leva os olhos a
abundância dos ricos, e fe huns, e outros tiveravojui-
zoj^e fe perguntarão para onde vaô, taó pouco ha-
viaô de chorar huns o que lhes falta , como eílimar
outros o que lhes fobeja.
Num.407. l^^^ ^e bem coníiderarmosascaufas, ( que lhe
naô quero chamar razoens ) porque os queixofos da
fua fortuna vivem triftes , 'e fe lhe faz triíte a vida ,
acharemos , que principalmente iaÔ naÔ poderem
gofar osdousmais faborofos frudos dasmefmasri-
quezas. O comer, e o veílir faô duas coufas, fem as
quaes fe naô pode viver , em que tem grande batalha
no homem a moderação do neceílario, e a intempe-
rança do fuperíiuo.
Kum. 411. ^°^7 Ao que pode entriílecer o corpo por fe ver
'menos nobremente trajado , que diremos ? Que fe
lembre bem do Qíío vadis : e íeja pela boca de Job :
Niidus egreljtis jum de útero matris me a , cb" nudtis
revertar illuc. Mas naó vamos bufcar eíle defenga-
no á terra de Hus.
101^8 Adoecerão na noíTa terra ou hum mance-
bo taô prezando da gentileza como Abfalaó, ou humi
dama de taô celebrada formofura como Rachel , e
taó requeílada por ella como Helena : e chegados
ambos á ultima defconfiança da vida , na primeira
claufula do teíla mento depois da protefunçaó da fé ,
diz cada hum , que feu corpo feja íepultado no hobi-
to de S. Francifco. líto , que pelo coílume fe naô ef-
tranha,
Nura^4ii.
Difcurfo XCFi . 5 ^7
tranha, verdadeiramente he digno Je grande admira-
ção. Naó éreis vós ( hum , e outra) 06 que tanto vos
prL.*zaveis das galas, os que g lítaveis as telas, os que
inventáveis os bordados, os que empregáveis em nu-
ma joya quanto tinhèis, e talvez oque naõ tinheis?
Pois como agora vos mandais veílir com tanta diífe-
rença , e vos contentais com hum habito de burel,
e eiie reinendado? Porque agora imos para a fepul-
tura Agora dizeíii , e dizem o que cuidavao ; por-
que dantes nao fabiao para onde hiao. (Jh miíeria !
Oh cegueira .' Oh engano da vida , e ignorância hu-
mana i Cuidamos , que íó imos para a fepultura
quando em hombros alheyos fomos Jevados a elia , e
nao acabamos de entender , que úQÍ^áQ a hora , em
que nafcemos, começamos eíle mefmo caminho. Se
a hum recém nafcido , quando fahe do ventre da
mãy , lhe perguntaíTemos : Qiio vadis ? Minino , que
agora entraftes no mundo, para onde ides? he fem
duvida , que fe qWq tiveílè já ufo da razaõ , e falia pa-
ra refponder, refponderia com as palavras de Job :
De útero ad tumulum\ Defde a hora de meu nafci-job. lo:
mento vou caminhando para a fepultura, e eftasfai- '^•
xas fao a minha primeira mortalha. Deíenganemo-
nos os mortaes , que todo eíle , que cham.amos cur-
fo da vida , nao he outra coufa , fenaó o enterro de
cada hum: por final , que quanto mais pompa , mais
cruzes.
1019 Pois fe eftas haõ de fer as galas da ultima Num. 433:
jornada da vida, porque naÔ nos contentaremos, que
fejaó menos vans as de toda ella ? Gloriacfe tanto
das galas os perdidos por efta vaidade, que até o mef-
mo Chriílo fallando das de Salamaõ, lhe chamou a
lua gloria : Nec Salomon in omni gloria Jua. E eíla Matth. í;
gloria v?i
r"
Ff. 4S. 18
i. Cor. tf.
10.
"Num. 414
3 ^8 Vieira abhreviado
gloria ha de defcer com elles á fepultur?. ? Nao: Quo-
inam cimi inter ierit^ nonfumet omnia , nec defcenãet
ciini eo gloria ejus. Pois porque nos ha de levar tan-
to apoz íi o que cá ha de ficar , e naô nos accommo-
daremos defde logo ao que fó haverrios de levar
comnofco ? Aquelle grande Sokiao do Egypto, o fa-
irvofo Saladino , eílando para morrer , mandou levar
■por todo o íeu exercito a mortalha , em que havia de
ícr íepuJtado, na ponta de huma lança com hum pre-
gão, que dizia: De tudo quanto sdquirio Saladino ,
-ifto he o que íó ha de levar defte mundo. Ditoíbs os
íbldados, qae entaÕ fe refolveílem a defpir a cota , e
militar debaixo daquella bandeira ! O Imperador
Carlos V. anticipando o racfino deíengano , trazia
fempre comíigo a fua mortalha. Por iíFo tomou aquel*
la valente reíoluçao, mayorque todas fuás vistorias,
:de íeíepultar em Jufte, e acabar ávida antes da mor-
te. Melhor o fazem ainda os que todos os dias
<]yando fe veílem , de tal modo fe compõem do pé
í5té á cabeça com o efpelho da fepultura diante dos
olhos , como fe o veftido fora a mortalha , com que
haó de fer levados a ella. Eíle he o trajo dos defer-
tos, e cíauftros religiofos, em que todos os que
profeíTamos fervir a Deos , o mefmo habito , que vef-
timos, he amortalha , em que havemos de fer fepul-
íados. O mundo errado julga eíle trajo por trifte ;
mas nós em confiança delle nunca triíles, e fempre
contentes: Qjioji trifles^ femper autem gaudeiites,
1020 Se a coníideraçao da fepultura , e a noíFa
' pergunta Oíwvadis he laó eííicaz para perfuadir feni
triíleza a forço fa pobreza dns roupas, para afazer
tolerável na mais fenfivel da mefa naohe m.enor a fua
eííicacia. Qiieixafe da íua fortuna o pobre, porque
fendo
Difcurfo XCFJ. 5/^
fendo tao liberal com os ricos , com clle feja taó ava-
ra, que apenas para comer lhe conceda com o fuor
de feu roíto hum pedaço de paô. Eu antes depaílar
ao noííb remédio, naó íó quero reparar no paó, fe-
naõ no mefmo pedaço , que o faz queixoío , e triíle.
Perto de cem annos havia , que o primeiro Ermitão
S. Paulo vivia em huma cova , quando nella o viíltou
o grande António , a quem nós para íjgnifícar a fua
mefma grandeza chamamos Antaò. Depois de fe
faudarem fòs , chegou hum corvo com hum paó no
bico, eopozentreos dous. Admirouíe ohofpede,
e o habitador da cova lhe diífe: Has de faber, irmaó
António, que de muitos annos a eíla parte, depois
que me foraó desfalecendo as primeiras forças, por
efte corvo me manda Deos todos os dias meyo pa6 ,
e agora, porque fomos dous, dobrou o Senhor a ração
a feus fervos , e por iíTb nos mandou o pao inteiro.
Quem nao pafmará , que eílejantar para os dous ma-
yores homens, que Deos tinha no mundo, foíTe man-
dado da fua meia ? He poífível , que a providencia ,
a grandeza , a magnificência de Deos a Paulo fuílen-
ta cada dia com meyo mo , e a Paulo , e António
com hum pac ! E he poífivel , que hum homem com
fé naÕeflimc, e fe glorie muito de que ás duas ame^
tades de paó de Paulo, e António le ajunte também
o pedaço do feu , fendo elle em tal companhia ©ter-
ceiro convidado de Deos ! Nao ha duvida , que fe
es Chriílao, nunca a tua ambição, e cubica podia
aípirar a mayor fortuna , que efta , a que te tem le-
vantado a tua própria pobreza igualandote nao aos
Príncipes das cento e defifete Provindas no banque-
te de A lluero , mas aos dous mayores amjgos , e fa-
vorecidos , que tem no mundo o fupremo Senhor de
Tom. il. Aa todo
m
3 7° V tcira aoí
todo eíle. Vê agora quão enganoía he a tua triíleza,
e tu quaô enganadamente queixofo áã tua fortuna.
Num. 415. 102 1 Mas porque naÕ cuides, que te quero coni- 1
folar por outro caminho, refpondeme : í-^ara onde
vás: Qj^iouadis} Vás para a repuitura? Sim : e to-
dos os mais ricos , e abundantes do mundo para on-
de vao ? Para a fepultura também. Dá pois muitas
graças á eílreiteza da tua meia , e ao teu pouco paÓ ;
porque fendo certo , que todos haõ de chegar á íe*
pultura fem nenhum remédio , íó tu por comeres me-
nos, chegarás á fepultura mais tarde, e fó tu por co-
meres menos , feras nella menos comido. A natureza
fez o comer para o viver , e a gula fez o comer muito
para o viver pouco. De certos homens da cr» íladaquel* \
ies, de quem dizia Sócrates, que naõ comiaõpara
viver, masíóviviaô para comer, conta a fagradaEí-
critura , queexhortandoíe de commum confentimen'
to diziaÕ : Comedamiis ^ é?" bibamus ^ eras ejiim mo-^
riemiir. Comamos , e bebamos, porque á mnnha ha-
vemos de m.orrer. A confequencia era taÔ bárbara,
e brutal, como quem a inferia. Mas que fundamento
tinhaõ eíles homens , ou eíles brutos para prognoíli-
car, que ao outro dia haviaÕ de morrer? Omefmo
que elles diziaó : Comedamus , é^' bibamus. Das de-
inaíias da lua gula inferiaó a brevidade da fua vi-
da. O dia dos banquetes era a vefpera do dia da
morte. A gula havia de cantar as vefperas hoje , e a
morte as havia de chorar á manha : Cr as enim mo^
riemur. Naó allego Hippocrates , nem Galenos , que
aíFiin deíinem eíla brevidade; porque naÕ íaõ necef-
farios osaforifmosda íua arte, onde temos osdanof-
fa experiência. Das intemperanças do comer, por
mais que o tempere agula, nafcem as cruezas, das
' ' CKue-
Ifai. zi.
13-
ii
Difciirfo XCVl. 371
cruezas aconfufaô, e difcordia dos humores , dos
humores diícorJes, e defcompoftos ss doenças, e
das doenças a morte. Suppoíi:o pois que todos ha-
vemos de morrer, e todos imos para a fepultura , o
mayor favor, que Deos pode conceder n hum mortal,
he que morra , e chegue iá mais tarde. E eíle he o
primeiro privilegio dos pobres, aquém a providen-
cia divina quanto nega de abundância , e regalo ,
tanto accreícenta de vida.
1022 Ouçaó os abundantes, e regahndos o queNum.4itf.
fobre ifto enílna a verdade daquelle Senhor, que o
he da vida , e da morte : Onwis potentatus vita bre- Ecdef. 10.
vís. Porque os ricos, e poderofos daõ muita mate-*^*
ria á gula, os pobres, ainda que queiraó, nao podem.
Santo Agoftinho dava graças a Deos por lhe haver
eníinado , que ufaíle dos alimentos , como das medi-
cinas : Hoc me dociiifti , ut qtiemaãmodum aã ínedi- Auguft.
camenta , Jic aã alimenta fimpt urus accederem. De ^^^^^^^^^-^
forte que aquillo , fem que naô podemos viver , he o
mefmo, que nos mata, tomado íem medida. Ecomo
o alimento tomado fem medida he o veneno da vi-
da , e com medida o medicamento delia , eftá he a
defgraça naô conhecida dos ricos , e a ventura tam-
bém mal entendida dos pobres. A vida , e a via de
huns , e outros igualmente caminha para o mefmo
termo, que he a fepultura; mas os paíTos naô íaô
iguaes. Porque como a abundância , e gula dos ricos
he o feu veneno , e a eílreiteza , e abftinencia dos po-
bres o feu medicamento, os ricos chegao á íepultu-
ra, como S. Joaó á de Chriílo , primeiro , e mais de-
preda , e os pobres, como S.Pedro , mais de vagar , e
mais tarde.
1023 E depois de chegados huns^ e outros á fe- Num. 417.
Aa2 pui-
572 Vieira abbreviado
pultura , tem também dentro nella alguma difFeren-
ça ? Sim , e muito grande , que he o íegundo privi-
legio dos pobres. A gula aííim como ceva as aves,
para que as comaó os homens, aííim ceva os homens,
pnra que os comaô os bichos. Miíeravel condição da
noíía carne , comer para fer comida! Por iíTo diz hum
provérbio dos Hebreos : Qiá multiplicat carnes y
multiplicat vermes. Os corpos dos ricos cheyos, e
anafados faÕ o banquete dos bichos , os dos pob;es
fecos , e poílos nos oílbs faõ o feu jejum. Qiie bem
le vio ifto naquelJe, em que o pobre Lazaro , e o rico
Avarento foraô á fepultura / O rico em fepulcro de
mármores banqueteando efplendídamente os bichos,
como elle coftumava comíigo : e o pobre , que nem
as migalhas , que lhe cahiaô da mefa , tinha para fe
fuftentar, fepultado na terra nua; mas naó tendo a
mefma terra que comer nelle.
Nnm.418. 1024 Os regalos exquifitos trazidos de taó lon-
ge com tantos perigos, comprados com tanto preço,
guifados com tantos artifícios íaó para o ventre do
homem : e eííe ventre aílim regalado, aíEm mimoíb,
e aílim cuftofo para quem he ? Para o comerem os
bichos. Eíle he o paradeiro das íuperfluidades dos
ricos. Coníidere pois o rico , e o pobre para onde
vay : ^0 vadis ? Para que o rico modere a fua abun-
dância , e o pobre fe componha com a fua modera-
ção. E porque o pobre , e o rico ( e o rico mais apref-
fadamente, que o pobre") todos imos parar alli , la-
mentemíe os ricos da fua riqueza , e das fuás galas ,
e regalos : fejao os pobres os contentes , e elles os trif-
I. Timot. tes. Hãh entes alimenta , i^ q tá bus tegamur , his
^' ^' Cmitenti ftimus : Com que tenhamos o que baile pa-
Nam.410.ra íuílentar , e cobrir o corpo, teremos também o
a que
■M
■V^TfT
Difciirjo XCVI. 5 75
que baila para eílar contentes , eícreve o Apoíloio a
Timothco. E S. Jeronymo commentnndo efte texto,
e contrapondo a largueza , e abundância dos ricos á
eílreiteza, e moderação dos pobres no mefmo veí-
tir, e comer, fiioíofa nílim elegantemente: Grondis
extiltatin , ctim parvo contentus fiieris , mimdum
habere fuh pedibus , é^ propter qii£ diviti£ compa-
rantur , vUibiis mtitare cihis , ér crajjiore túnica
compenfare : Naõ cuidem as galas, e gulas dos ricos,
diz o Doutor Máximo , que carecem os pobres do
que elles gofao ; porque tudo o que elles alardeao
com largueza no feu muito, lograô conipenfado oSv
pobres , e abbreviado no feu pouco : os ricos , e vaõs ^^
nas galas , elles no veftido groileiro : os ricos , e vaós
nos regalos , elles no mantimento vil. E que fe fegue
daqui? Seguefe, que o contentamento, e alegria,
que a riqueza , e vaidade pertende , fó a pobreza íi-
zuda o alcança , e muito mnyor : Grandis exultatiOy
ctim pa7'vo contentus fueris , mundum habere fuh
pedibus. Deixo de ponderar eftas ultimas palavras;
íó digo , que para quem caminha para a fepulíura le-
var o mundo debaixo dos pés , mais he triunfo , que
enterro , pofto que mal banqueteado, e mal veílido.
1025 Já perguntámos ao corpo : Qjw vadis ? Num. 41?
para onde hia ? e nos refpondeo por boca doEfpiri-
to Santo , que para a fepultura. Agora faremos á al-
ma a mefma pergunta , e refponderá por boca do
mefmc Oráculo divino, como também vim.os, que
vai para o Cco. Pois aílim como o corpo achou re-
médio da fua triíleza no feu Quo vadis \ aííirn , e
muito m.elhor achará a alma o remédio das fuás no
feu , quanto vai do Ceo á terra.
Tom. II.
Aa3
DIS-
3 74 Vieira abhreviado
DISCURSO
XCVII.
l^iraão àe hmn fermao da terceira quarta feira da
Quarefnía pregado na Capei la Real fohre as pa-
lavras do Euangelho : Dic , ut fcdeant hi duo íi-
lii mei , unus ad dexterain tuain , & unus ad finif-
Math 20.
tram m regno tuo.
VALIDOS.
Part. 3. 1026 ~|~^Sta foy a petição da may dos Zcbe-
^•»"^' ÍI5- .Jj^deos a Chriílo , tantas vescs ouvida
nefte Real auditório , como variamente ponderada
defte íagrado lugar. Mas porque o fobernno Senhor
refpondeo aos filhos, para que o entendeíle a may;
eu determino hoje reíponder á may , para que me
entendaõ os filhos , e os que naó faõ filhos também.
Com huma fó hei de fallar; mas para todos hei de di-
?er. Começando pois a fallar com a may dos Zebc-
deos y o que lhe digo , ( ou diílera ) he deíla manei-
ra.
Nona. 116. 1027 Viílo , fcnhora , eíle voíTo mernorial, ( o
qual coníidero , antes que fe prefentaíle a Chrifto )
poílo que eu naÓ tenha authoridade para o emen-
dar, nem ainda coníiança para o arguir , a muita de-
voção , que profeíío com voílbs íiiiios , e o grande
refpeito , que por ellcs , e por volla venerável peflba
vos he devido, excita, perfuade, e ainda obriga o
meu zelo a que repare , e advirta por vos fervir
o que neíta petição me faz duvida. E para que feja
com diílinçaó, clareza, e brevidade , examinando
huma por huma todas as palavras delia , direi fobre
cada
m
DiJciirfoXCVII. 3 75
cada huma o que eu noto, mas nao condcmno , pof-
to que outros o póJem eO: ranhar.
1028 A primeira coiifa pois , em que a minha Num. 117.
confideraçao repara ncfle mem.orial , he a primeira
palavra delle : Dic : Dizei. Naó heefte o ellylo por
onde começao , nem devem começar as petiçoens.
As petiçoens comcçao por Diz,e wàò por Dizei. Mas
como vós , balomé , fois mííy do valido , parece-.me
que o valimento vos ditou a petição. Os outros
nas fuás petiçoens comcçao : Diz fulano : os validos
nao dizem : Diz , dizem : Dizei. Tal eílylo de pedir
nao he pedir, heeníinar, ou mandar. OPrincipe,
que afum defpacha , nao concede , obedece : mõ dá
a mercê , dá a lição Chrifto he Meílre , e Senhor :
Fos "cocãtis me Magifter ^ Cr Domine : e nem co-joan. ij.
mo Senhor deve ler mandado, nem como Meftre en- 'J-
ílnado.
1029 Se o quepedis, que diga : Dic ^ he que osNum.n».
voíTos filhos tenhao os dous lugares do lado , como
quereis , que vos defpache Chriílo logo y e em huma
palavra ? 1 aõ leve negocio he a eleição de hum pri-
meiro iMiniíiro , e muito mais a de dous Miniílros,
ambos primeiros , que por huma íimples petição fem
mais conTulta, nem confelho fe haja de conceder?
Se o pedira todo o Reyno, ainda havia muito que du-
vidar ; porque nao cuidaíTem os vaílallos , que jun-
tos , nem divididos podiao ter acção , ou iírpulíb nas
rcfoluçoens íoberanas. Q^ianto mais, que femelhan-
tes lugares npo fe daõ a quem os defeja , e os pede ;
antes quando osdefejaõ, então começao a os defme-
recer, e quando íe atrevem aos pedir, então os def-
merecem de todo. O pedir , e o deípedir em tses ca-
ibs huo de fer correlativos. Oh quanto melhor tive-
Aa4 raô
Num. 114
Num. 115
Pf.43-^.
Nnm, li;?
37^ Vieira abbreviado
rao negociado os voííos cious pertendentes, fequan-
do Chriíto os eílremava dos outros parn lhes fiar os
cafos de-mayor importância , elles fe retiraíTem com
modeília , e com difcreta reíiílencia fecfcufaíiem !
Qijando Moyfés fe eícufou de primeiro Miniílro de
Deos íobre o Egypto , então o levantou Deos ao feu
lado , e lhe delegou o Teu poder , e mais o feu nome :
Conftitui te Deum Pharaonis. Paliemos á fegunda
palavra.
1030 TJt Jedeant. Que feaíTentem. Também efte
termo naõ he curial, antes muito impróprio, e ainda
indecente. Que íejao, Salomé, voílbs filhos muito aí-
fentadoSjiíFo procurai vós;mas que eftejaó aíFentados
he implicação do q pedis. Pedis o lado, e dizeis, que
feaíTentem? Naófabeis, que em palácio aílim como
naô ha mais que hum fó docel, ha também huma ío
cadeira } Na5 fabeis que os grandes alli, íe canfaó de
eílarem pé5ró defcanfao de joelhos, arrimados quan-
do muito a huma credencia daquelles idolatrados al-
tares? Bailava para iílo fer Chrifto L\ey, quanto mais
fendo Rey, e Deos juntamente: Tti esipje Rex meus,
é^ Deus meus. O throno de Deos no templo he o
Propiciatório , donde ouve , e refponde : e poílo que
nem vós, nem voíFos filhos entra líeis naquelle (agra-
do, porque he vedado a todos, bemjdeveis de ter ou-
vido, que ao lado direito do Propiciatório eílá hum
Cherubim , e ao lado efquerdo outro, mas ambos em
pé. Logo fe quereis , que osvoílosdous filhos fucce-
daÕ no lugar deíles Gherubins, e que occupem hum,
e outro lado do throno de Chrifto , como pedis, que
fe aíFentem : Ut fedeant ? Os Gherubins eftaô em pé,
e os filhos do Zcbedeo haó de eftar aííentados ?
105 1 Hi, A palavra he muito breve , mas naó di-
gna
MM
DifairfoXCVIL 577,
gnade menor reparo. Vós Jizies: Hr. Eíles. iMjueai
naodirá: Qiícm 1 a 6 eíles ? Muito hc de crer íc ern-
baraçaráó logo com as redes, e corci a barca ; mas eu
tao longe eílou de encalhar neíle baixo, (poíto queQ
feja ) que antes o exercício de peícadores .me [.niece .
o melhor noviciado, que eíles Apoliolos podiaó ter
para a proriílaó de primeiíos Miniliros. Qiie he hu-
ma barca, íenaô huma Republica pequena? Eque
he huma Monarchia , fenaó huma barca grande ? Nas
experiências de huma íe aprende a pratica da outra.
Saber deitar o leme a hum , e a outro bordo , e cerrai-
lo de paíicada , quando convém : faber vogor, quan-
do fe ha de ir adíante , e feyar, quando íe ha de dar
volta , e fufpender , ou fincar o remo , quando íe ha
de ter íirme: laber eíperar as marés , e conhecer as
conjunçoens, e obfervar o cariz do Ceo : íaber tem-
perar as velias conforme os ventos, largar a efcota ^
ou carregar a bolina , ferrar o pnno na tempeíhde , e
na bonança iíFar até os topes. Tao politica como iílo
he a arte do pefcador na mareaçaô , e mais ainda nas
induílriasda peíca. Saber tecer a malha , eleguraro
nó : íaber pezar o chumbo , e a cortiça : faber cercar
o mar para prover , e fuílentar a terra •. faber eftorvar
o anzol , para que o peixe o naó corte, e encubrillo,
para que o nao veja : faber largar a íédela , ou tella
em tezo : faber aproveitar a ifca , e eíperdiçar o en-
godo. Só hurn defeito reconheço no pefcador para
os lugares do lado , que he o exercício de puxar pa-
ra fi. E eíte he, íenhora , o que naõ ío fe argue , mas
íe prova do meímo, que voíFos íillios pertendem , e
vós pedis.
1032 D//0. Ainda eíle Dí/o tem mayor diíTonan- ^^^^ ^ ^^
cia. Pertendeis o valimento doKey, e quereis que
os
7 8 Vieira abbreviado
os validos fejao dous : Dno ? Se convém , que os Reys
tenhaÔ valido, ou naó, he problema , que ainda nao
eílá decidido entre os políticos. Mas dous validos
ninguém hn, que tal diííeíre, nem imaginaíle. Se os
voíTos filhos tiveraó lido as hiílorias (agradas, e pro-
fanas áMQ o principio do mundo até hoje , naõ lhe
havia de paííar tal coufa pelo penfamento. Creou
Deos a Adão no fcxto dia do mundo, para que no go-
verno delle foíie fua iinagem , e logo no dia feguinte
fe diz, que dcícanfou Deos ^ porque os íupremos
Principes he bein , que tenhaó huma cauía fegunda ,
que os rcprefente , e fobre quem deícanfem. Mas
eíle homem ( que lefuppoem íerem tudo o primeiro
homem ) ha de fer hum , e naõ dous Por iílo fez
Deos hum Adaõ , e naó dous Adoens. Entre os Chal-
deos foy priuieiro Miniílro de Nabucodonofor Da-
niel; mas íò Daniel: entre os Egypcios Jofeph de
Faraó , mas íó Jofeph : entre os Gregos Hefeftiaô de
Alexandre , mas fó Hefeíliao: entre os Perfis Aman,
e Mardocheo de AíFuero , mas nao juntos, fenaõ em
di verfos tempos , e fempre hum íó. Se algum exem-
plo houve de dous juntamente , foy para ruina do
Rey, e perdição da coroa. Nenhum Rey teve a feu
lado mayor, e melhor Minillro, que Abfilao, quan-
do começou a reynar; porque teve a Achitofel, cujos
conf^lhos por teftimunho da mefma Efcritura (agra-
da erao como oráculos de Deos. E porque David
quiz tirar a coroa a Abíalaó, como a Rey intruío , e
rebelado , que fez? A traça, de que ufou , como tao
prudente, foy meterlhe do outro lailo outro Minii-
tro , que foy Chulay : e aífim íuccedeo. Encontra-
raôíe os dous Miniílios nos pareceres, feguio Abía-
laó o de Chufay , e naó o de Achitofel : e fendo que
com
MB
Bifcurfo XCVII. 3
com efte fe confervani fem duvidn , como diz o mef-
mo texto, porque teve dous, íe perdeo.
1033 A razão naturai defte inconveniente he, Num. 134.
porque onde ha dous entendimentos , duas vontades,
duas naturezas , e duas peíloas difiei entes , nao pode
liaver uniaô. A uniaô hypoftatica em Chriílo ( que
foy o mayor milagre da íabedoria , e omnipotência
divina) unio duos naturezas, dous entendimentos, e
duas vontades. Mas notay , que ncíle meímo com-
poftocom íer milagrofo as peíloas nao faó duas, fe-
naõ huma ío. Em huma peíiba por milagre podem
eítar unidas duas naturezas , dous entendimentos , e
duas vontades j mas em duas peílV>as diíterentcs ( co-
mo dous homens : Díw ) he milagre , que nem Deos
fez já mais , nem fará. Na Santiífima Trindade ha
também uniaô deíle género por outro modo ainda
mais admirável. As peílbas faÔ trcs realmente diílin-
das, e todas entendem o meímo , e querem o mef-
mo. Mas ainda que as peíioas lac três , as naturezas^
os entendimentos, e as vontades naòfaotres, fenao
huma fó natureza , hum fó entendimento , e huma fó
vontade. Vede agora, fe em dous homens, em que as
naturezas, os entendimentos, as vontades , e as pef-
foaa íaó diverfaF , e em taõ diverías matérias , como
faó as que concorrem numa Monarchia , poderá ha-
ver uniàô , nem concórdia ?
1034 F/7// 7?m. Em dizer , que fãô voííbs filhos, ^"'"' '^7-.
eílou vendo, Salomé, que defprezais todo eíte meu
difcurfo, imaginando como mulher, e may , que to-
dos os inconvenientes, e temores de difcordia fe fe-
guraõ com ferem irmãos, poílo que fejaô dous. Sao
irmãos, e irmãos inteiros , filhos do mefmo pay, e
da mefma may, fegura eftá logo , eeílará fempre nel-
les
o
leira abbr
Jes a uniad , e concórdia. Ah fenhora , que mal fa-
beis , quaf) fraca íigniíicaçao he a deííe erpeciofo no-
me, que entre os homens fe chama irínnndade? Baf-
ta fer fundado ein carne, e fangue para nao ter fub-
fiftencia , nem firmeza. DitFerenre poder he oda am-
bição, da cubica , da emuiaçaô, da inveja , e de to-
das as outras neíles da uniaò, e fociedade humana,
com que os mais fagrados vínculos da natureza fe
profanaô, e rompem. E como a má Temente deftes
vícios nafce, e fe dá melhor entre iguaes , por ilFo
entre os que nafceraó dos mefmos pays , he mais na-
tural a difcordia. Da mefma fonte naícem os rios do
Paraifo , e nenhum faz companhia com outro, cada
hum fegue differente carreira , naó fó divididos, mas
oppoílos. E fe ifto fe acha na fineza da agua , que
fera no calor do fangue ? Diga- o o de Abel derrama-
do por Caim , e o de Remo por Rómulo. Se dous
irmaôs fundadores daqueila portenlofa Cidade, que
hoje naõ cabe no mundo , naÕ couberao juntos na
mefina Cidade : fe dous irmãos primogénitos da na-
tureza para propagação do género humano naó cou-
berao em toda a terra , onde naÕ havia outros; co--
mo caberão os voíFosdous, e como eílarao confor-
mes em hum gavinete , onde cada memorial , cada
confulta , e cada requerimento he huma maça da
difcordiaí' Agora fao amigos, agora conformes, ago-
Num. i38,j,^ verdadeiramente irmãos, e fó defejaó íer compa-
nheiros; masaílim como agora fe unem para fubir,
aíFim fe dividiráo depois para fe derrubar. Qiiantos
fe uníraõ para a batalha , que depois fe matáraó fo-
bre os defpojos } A ambição , que agora os une , ef-
fa mefma os ha de apartar depois, e de hum lado
contra outro lado , como de dous montes oppoílos,
fe
o
_ ufcurfo
fe haó de combater , e fazer a guerra.
1035 Se vós foubereis , que coufa he hum Rey- ^^^^^ ^^^^
no, e o pezo delie , e mais quando carrega íobre caa-
ias íegundas, eu vos prometto , que vos benzereis
de tal penfamento , quanto mais defeiallo para os fi-
lhos , a quem tanto bem quereis. Qiiie Flercules he
Joaõ, ou que Atlante Jacobo para tomarem fobre
feus hombros huma Monarchia ? Em que Cortes fe
creáraó , que terras viraó , que hiílorias ieraó , que
negócios manejarão ? ide a Jerufalem , entrai, íe^^^^^^^^
vo lo permittirem as guardas , ou no palácio profa-
no deFIerodes, ou no fagrado deCaifaz , e naquel-
le tropel , e concurfo de pertendentes esfaimados
(que todos procuraõ comer, e todos fe cornem^)
vereis, fe entre tanto tumulto pode haver quietação,
entre tanta perturbação focego , entre tanta varie-
dade firmeza , entre tanta mentira verdade . entre
tanta negociação juftiça, entre tanto refpeito intej-
reza , eíitre tanta inveja paz , entre tanta adulação,
e adoração modeília , temperança , nem ainda fé.
Vede fobre tudo , fe tanta í^áç: de ambição , e cubi-
ca infaciavel pode ter fatísfaçao, que a farte, ou mo-
dere : e fe a podem dar voííbs filhos a tantos, que
pertendem, e batalhão fobre a mefma coufa , que ou
fe deve negar a todos, ou concederfe a hum fó "^ Da-
qui fe fcguem os defcontentamentos, as queixas, as
murmuraçoens do governo, as arrogâncias dos gran-
des, as lagrimas, e lamentaçoens dos pequenos, as
diíFenfoens, as parcialidades, os ódios, lendo o al-
vo de todas eílas lettas avenenadas os que aííifiem
mais chegados ao throno do fupremo poder , os que
refpondem em feu nome , os que declaraõ íeus orá-
culos, os que diílribuem feus decretos. E fe iílo [he
o que
■^
382 Vieira ãí
o que fe experimenta , e padece naõ em BabyJonia ,
ou Ninive, fenaó em Jeruíalem : nem no Império
dos Aílyrios , Perfas , Gregos , ou Romanos , íenao
em huma Republica taõ arruinada hoje, e taõ limi-
tada como a dejudea ^ que fera no Reyno univerfal
de Chriíto : In Rcj^no tuo ?
Num. 148. 103Ó Tm. Dizeis, íem advertir, ou faber o que
que fe lhe fujeitaráõ , e o viráô a adorar os do Ori-
ente, eosdo Occidente, os do Setentriaô, e os do
Meyo dia : o Profeta Daniel , que todas as gentes ,
todos os povos, todas as línguas o confeífaráo, e que
ícvi obedecido , e fervido de todos osReys , e Mo-
narchas do mundo. Eíla he a grandeza do Reyno. E
que capacidade, que talentos vos parece, que faône-
ceíFarios para mover com proporção , e íullentar os
duus poios de huma machina taó immenía ? Bailará
o voíTo João , e o voíToJacobo , que nunca tomarão
o compaífoiía mao, nem viraó carta para conhecer
£is regioens, e as gentes, para perceber, e entender
as linguas, para comprehender os negócios de efta-
do , c de tantos eftados , para refponder ás embaixa-
das , para aceitar as obediências , para capitular as
condiçoen^, para eílabeíecer as páreas , para ajuftar
os tratamentos, em fim para concordar as vontades,
e compor os intereíTes de todos os Reys , e Príncipes
do univerfo ? O certo he , que ou nao conheceis vof-
fos filhos , ou naÓ tomaíles bem as medidas aos pof-
tos , aonde os quereis levantar.
1037 Jofeph, e Daniel , dous fujeitos de tama-
nha esfera , toda ella empregarão cada hum em hum
íó
Dljcurfo XCYII. 3S5
fòReyno: Jofeph no do Egypto , D/íiiiel nodcBa-
bylonia.E que proporção tem huma Babylonia, mm
cem Babylonias, humEgypto, nem n»il Fgypícs
com o Keyno , e Monarchia de Chi iPlo ? Deníro em
caía temos ainda mayor exemplo. Moyícs squelle
homem , que no nome trazia a divindode , e na mno
a omnipotência, quantas vezes fe queixou a Dcos de
naÕ poder com o pezo de hum íb povo, e povo da
lua ley , da íua naçaõ, e da fua lingua ? Áceitoulhs
Deos a elcuía , íubítituiolhe o lugar, mas com quem,
e com quantos ? Naõ com menos , que com íetenta
anciãos do mefíno povo , efcolhidos dos mayores , e
melhores de todo elle. Se para o pezo de hum Rey-
no , que ainda entaô o naó era , foraó neceílarias íe-
tenta columnas taô fortes; como quereis vós, que
fobre duas taõ fracas fe íullente aquelle immenío
ediíicio, que ha de recolher dentro em íi tudo quan-
to rodeaõ, e cobrem as abobadas do firmamento.
1038 Dirmeheis , que no Reyno de Chriílo por j^^^
feu : In Regno ttio ^ naõ haverá taníos perigos, e "^^'^^^A
diíiiculdades, como nos outros, quanto vai de tai
Rey aos outros Reys. No que toca á peííba , juíii-
ça , e bondade do Rey , tendes razaô. A mayor ú^^-
graça dos privados dos Reys do mundo , e o mayor
precipicio das meímas privanças he ferem qW^^ nao
fo Mmiftros do feu governo, fenaõ de íuas paixões,
aduladores de {^m appetites , e cúmplices de feus ví-
cios. Aífim defprezaó, e perdem a graça de Deos
por naó arrifcar a dos Reys, ou por mais fe infinuar,
e coníervar nelia. Chegado AbrahaÓ a Egypto ,
acompanhado de Sara mulher fua , mas com nome
deirmá, as novas, que logo ievaraô ao Rey os do
feu lado , naó foraó , que era chegado á Corte hum
ho-
Part.'4-
Kuai. i6o
Part. 14.
Num. 1451
PaT. 7.
Kum. 144'
Part. ?.
Kum. 149
3 S 4 Vieira ahhrcviãdo'
^lOmem fanto , fenao hutna mulher dotada doquellas
prííndas, que eílimao , e .idolatrao os que nao íao
lantos. Se ElPvey Herodes quer a Herodias , ou EI-
Rey David a Betíabé, os privados faõ os que faci-
íitao os adultérios , e os que por íl , e por outros ap-
provao os homicidios. Se alguma vez na antecame-
•ra de David ( onde elle o naõ ouvi lie ) íe tocou no
íeu peccado, o que os palacianos diícorriao, era defta
maneira :Que o amor de Betílibé fora hum galanteyo
de Príncipe íoldado, que o cafarfe com ella fora húa
honrada reftituiçaÔ de lua fama, que o matar a Urias
foraiium coníelho neceíLirio, prudente , e generoío:
generoío ; porque o fez morrer nobremente na guer-
ra: prudente; porque pareceo acafo o que foy in-
duílria : e neceíiario; porque o modo mais feguro
de fepultar o aggravo he meter debaixo da terra o
affsravado. Tao levemente fe fallava em hum cafo
1 1 ri'
mais, que efcandalofOjatroz, chatnando ao adultério
galanteyo, ao homicídio neceííidade, e á nleivoíia,
prudência. CompunhaÔfe poemas á foberba , pane-
gyricos á cubica , hymnos á ambição. Eis aqui quem
faõ os aduladores , gente , que mente com a verdade,
e afronta com a cortezia. lílo haviaó de efcrever os
políticos no feu íivro do duelio, que mais afronta hu-
ma mifura de hum adulador , que huma bofetada de
hum inimigo. Por iíTo Chrifto , que nas bofetadas
fe moílroutao fofrido, quando ouvio as adulaçoens,
parece , queperdeoa paciência.
1039 Se o Rey he avarento , como Roboa6,^ou
vaô como Aífuero, elles faó os que aconfelhaÔ os
tributos, elles os que louvao as prodigajidades, e
celebraó as ollentaçoens. Em fim elles fao os adora-
dores da eílatua dcNabuco , e os que fervem de lan-
çar
Difciirfo XCFJÍ. 385
çar lenha, e aílbprar ns fornalhas de Babylonia, ou
procurando ,^ ou nao fazendo eícrupuío de que nel*
jas fe abrazeui os innocentes. lílo nao haverá no rei-
nado de Chriílo , porque ái parte do Rey tudo fera
igualdade, juíliça , modeília, temperança. Nein os
que aíliílirem a íeu lado , fe atreverão a abuíar , ou
exceder do poder , que lhes for commettido , que fó
fera o judo , e neceílario. Nao i'e vingará Aman com
a niao real dos aggravos de Mardocheo, nem as in-
vejas de Doeg coin a lança dcSauí, nem es ódios
de Joab com a diílimulaçaõ de David. Mas ainda
que da porte do Rey eílarao os que eíliverem ao
lado de Chriílo feguros deíles perigos , da parte
dos íubditos, e das ieys nao deixaráõ de ter grandes
difficuldades , que vencer, e grandes repugnancias,
que contrafcar.
1040 Eftá profetizado , que no Reynado de^um. ijo.
Chriílo tudo fera novo ; Ecce novafacio omnia^ e^r°^-^í-
novidades, ainda que fejGÔ úteis, bem vedes quaÕ^'
diíiicultoíns íiiõ de introduzir. Se fe ha de fundir de
novo o inundo, he força , que fe desfaça, e derreta
primeiro , e iíio nao pode fer fem fogo o mais violen-
to de todos os elementos. Eílá profetizado, ( eaíJim
o pubiixzou em noíTos dias o Precurfor do mefmo
Chriílo ) que os valles fe enchercáo , e os montes , e
outeiros feraõ abatidos, enaÕ alguns, fenao todos:
Omnis valiis implcbitur , é^ omnis moiis ^ ^ collis l„c
httwiliabitur. E abater os grandes , e levantar os pe-
quenos em tanta deíigualdade de nafciniento, e de
fojtunas, e fazer, que pequenos, e grandes todos fe-
jao iguaes , quem íerá taó valente, e animofo, que
tome fobre íi cila conquiíla ? Se os cavadores da vi-
nha naõ foffreraó , que os igualaííera , fem Iheiira-
' Tom. 11. Bb rena
3. y.
r
3 S ^ Vieira abhreviado
rem nada do que lhe deviaó ; quem reduzirá a eíla
moderação a arrogância, a íoberba , e a inchação dos
grandes do mundo , que cuidaó , que tudo lhe he de-
vido , e a ninguém daó o que fe lhe deve ?
1041 Eftá profetizado, que no mefmoreynado
o lobo morará com o cordeiro, e queoleaó, como o
ifai. II. 6. ^^Y -> comerá palha : Habitabit lúpus cum agno , ^
7. leoqtiafibos comedet paleas. Mas quem poderá con*
ter a voracidade do lobo a queobíerveeílaabíHnen-
cia 5 e a ferocidade , je gida real do leaõ a que fe fuf-
tente como o boy da eira , e naô da montaria , e do
boíque ? A ley naó pode fer mais jufta , nem mais be-
nigna ; porque allaz indulgência , e favor fe faz ao
leão , que paíFea , e naô trabalha , em que coma igual-
mente á cufta do boy o que elle puchando pelo ara-
do , pela grade , pelo carro , e pela trilha , começou,
e acabou com tanto trabalho. Mas como eíle mao
foroeftá taô introduzido pelo coftume, e taó cano-
nizado pelo tempo ; que zelo , que força , e que re-
foluçaó haverá de Miniftros taõ intrépidos , e conf-
tantes , que contra taô poderofos contrários a prati-
que, a eíbbeleça, e a defenda? Aífimque, fenhora,
deixando o muito, que ainda podéra dizer, e refu-
ndindo o que tenho dito, nem ao credito do Rey,
nem ao bem do Keyno, nem avós, nem avoflos fi-
lhos convém, que os lugares , que para elles pedis,
íq\\\q concedaô, e ainda que lhos dellem fem os pe-
idir, os aceitem. Pelo que fe opezo de todas eÔas
razoens tem comvolco alguma authoridade, o meu
confclho , e parecer he , que vós mefma vos defpa-
cheis com ornais breve, mais fácil , e mais leguro
dcfpacho j que he naô dçfejar , nem pertender, nem
pedir,
DIS-
Difcurfo XCVIII. 587
DISCURSO XCVÍÍÍ.
Tirado de hum fermaÕ de S. João Euangelifta pre-
gado fia Cape II a Real na fejia do Frincipe D,
Theodo/ío,
Validos.
1042 /^"^Uidava eu , que fó dos que feguem aopart. y.
\^^ mundo,havia venturoíbSj edeígraçados. ^^^- J7©.
Também na fantidade ha fortuna. S.Joaõ Bautiíla
foy defgraçado com Reys. S. João Euangeliíla foy
venturolocom Príncipes.
^ 1043 A primeira boa parte, que eu reconheço Num. 37^;
em S. João para valido , he fer Euangeliíla. Os vali-
dos haô de íer Euangeliftas. O officio dos Euangelif-
tas he dizer verdade , e es validos haó de ter o dizer
verdade por oííicio. Alguns homens tem havido
Euangeliíbs , muitos homens tem havido validos;
inas valido, e Euangelifta juntamente fó S.Joaõo
foy. A razão, ou femrazaó diílo he; porque os que
laõ validos , naó querem fer Euangeliftas: e os que
faó Eugngeliftas, naó chegao a fer validos. Só em S.
Joaõ fe ajuntarão eftas duas propriedades , das quaes
íe compõem a mayor prcrogativa fua. Sabeis qual
he a maisíingular prerogativa do Euangelifta ama-
do ? He fer amado fendo Euangelifta. Ordinaria-
mente nas Cortes dos Príncipes os que contrafazem
a verdade faô os que grangeaõ o amor. Na Corte de
Chriftonaõ he aftim : os que tem por profilfaõ fer
verdadeiros, faô os que tem por premio íer amados.
O que importa, Senhor, he , que feja fempre aíhm,
Bb 2 Os
Vidra abbreviado
Os amados fejaó fó os Eiiangeliílas : e quem naó for
Euan^eíiíia nao fcja amacio.
Num 577. 1044 Equalhe a razaõ porque os Eiiangeliílas
devem fer os amados ? A razaõ he evidente ; porque
o mayor merecimento pnra fer amado he amar, e a
mayor prova do amar he failar verdade. Perguntou
D Uiia a Saníaõ por três vezes em que parte tinha
vinculada fua fortuleza , e que remédio podia haver
para íer vencido. RefpondeoSaníaõ a primeira vez,
que fe o ataííem fortemente com nervos : a fegun-
da vez, que fe o ataíTem com cordas: a terceira vez,
^ que íe o ataííem cp-Hi os cabellos ; mas de todas as
três vezes ronipeò elle com facilidade as ataduras. E
que faria Dalila vendofe affim enganada } Queixoufe
muito de Sanfao : diíle que fabia de certo , que a naó
amava, e fezlbe eíle argumento : Qtiomodo dicis ,
qiioci amas me ? Per três vices mentitus es mihi :
Judie. \6. Como dizes tu , Saníao , q.ue me amas , fe me men-
tiíle três vezes.'' Bem tirada confequencia : mentif-
teme , logo naó me amas. A confequencia he clara ;
porque amar he entregar o coração , mentir he enco-
brillo: bem fe fegue logo, que quem naõ falia verda-
de , naõ ama ; porque como ha de entregar o coração
quem o encobre ? De maneira , que da verdade de
cada hum pode julgar o Príncipe o feu amor; com. j|
advertência po.''ém , quenaÕ deve efperar como Da-
lila pela terceira mentira : Fer três vices mentitus
es mihi. Pela primeira falíidadc, em que o vaflallo
for achado, ha de cahir logo da graça do Príncipe, e
cahir para fempre. Parece demaíiado rigor; porque
a graça de Deos naõ fe perde por qualquer mentira:
bem pode hum homem naÕ failar verdade, e mais fí-
íçar em graça de Deos. Com tudo no Príncipe naõ he
bem
?5
Difcurfo XCVlll. 38^
bem que feja alTim. Porque ? Porque para Deos, que
conhece os coraçoens , bem pode haver mentiras ve-
niaes ; mas para quem os naó conhece , todas he bem
que fejaõ mortaes, e que por todas íe perca a graça.
A graça coníiíle no amor : quem naô hUa verdade ,
naõ ama : logo onde fe prova o defamor, bem he que
le perca a graça. Percafe a graça onde fe provar o
defamor , que he a mentira : ganheíe a graça, onde
fe f^rovar o amor , que he a verdade : e andem juntos
como em Saóloíió o titulo de Euangeliíta com ode
amado.
1044 Naó íou amigo de deixar.duvidas na lí^í-». _^
nha doutrina. Todos me eftaô pondo contra eíla hu- "^* ^ ^
ma grande inftancia. S. Matthcus , S. Marcos , S.Lu-
cas também foraô Euangeliftas^com tudo naó alcan-
çaraópriviIegiodeamados:logoS.Joííó naó foy ama-
do por fer Euangelifta : e fe foy amado por Euange-
Jiíla , qual he a mayorrazaõ? A mayor razaõ he eíia;
porque SJoaó Euangelifta, como notou SJeronymo,
diíle no feu Euangelho muitas coufas , que os outros
Eu.ingeliftas deixarão de dizer : e dizer as verdades,
queos outros dizem , naÓ he acção, que mereça fln-
gular amor ; mas dizer as verdades , que os outros
deixaõ de dizer, quem ifto faz, merece fer f«ngular-
mente amado. As verdades, que diíTeSaó Mattheus,
diífe-as Saõ Marcos, diíle-asSaÕ Lucas : as verda-
des, que diííe S. Marcos , diífe as S. Lucas, diílc-as
S. Mattheus : as verdades, que diíie S.Lucns , dií-
le-as Saó Mattheus , diífe-as Snô Marcos. Mns mui-
tas verdades, que diíle S. Joaô, naó as dih'e S. Mat-
theus , nem S. Marcos, nem S. Lucas : elle fó asdif-
íe. E quem fabe dizer as verdades , que todos os OjU,-
tros cnllaó , elle íó merece fer mais amado, que ,^^
Tom. IL Bb3 dos.
i I
/
f íl
õ V teii
dos. Naó ha de íer o amado quem cslia a5 verdades,
que os outros dizem , fenao quem diz as verdades,
que os outros caliaô. AíTim o fez Snõ Joaô, e por if-
ío foy o íingularmente amâáo : D ifcípuhim , ç/tíem
diíigehat. -; ' ■
Num. j7i?. íôd^ A fegunda qualidade de valido, que teve
S. Joaõ , eâqúe admiro muito neíle grande Santo ,
he ler hum vaiido, que ficou aílim: Sjc eiim volo ma-.
ner€.VA>à\\td, meu vèf huma das grandes excelJen-
cias do Eúangeliíia , fer hum valido, que ficou aílim.
Ser valido , e ficar logo de outra maneira, iílb acon-
tece a todos ; mas fer valido , e ficar aíTim como
d'antes he íingularidáde de S. Joaó.
1046 Huma das circunftancias , em que reparo
muito na creaçao do mundo, heíormar Deos a Heva
Num. jso.do lado de Adaõ : naó a podéra formar da cabeça
para que fora entendida ? Naó a podéra- formar das
ínaõs , para que fora executiva ? Ká6 a podéra for-
mar dos pés , para que fora diligente ? Pois porque
a forma do lado ? Porque o lado de Adaõ era a par-
te mais accommodada para o que Deos pertendia.
D^os de huma pequena parte de Adaõ queria fazer
fubitamente huma Heva , que fofié taô grande como
elie. Pois por iílo a formou do lado , e naó doutra
parte ; porque he propriedade dos lados crefcer mui-
to em pouco tempo. Ainda agora coita , e já Heva ?
Ainda agora huma parte taô pequena do lado de
Adaó , e já taó grande como o mefmo todo, de que
era parte ? Sim ; por(|ue a coft^ era parte do lado de
Adaó. Adaó era Principe univerfal de todo o crea-
do : e riaó ha coufa , que mais creíça , nem mais de-
preífa , que òs lados dos Principes. Vejafe em Jofeph
c^m ElRey Faraó : vejafe em Aman com ElRey Af-
luero,
Díjcurfo Ji.^LA^ 111. 5 5) I
fiíero : vejafvjem Daniel com ElRey Durio. ií ç\\.)q.
IcnJo taô nntural o crefccr nos lados dos Principes^
que S João, que era o lado do mjyorPrincipedo nuin-
do, nao traíaile de accrcíccnt.nTienlo, e fedeixaíle
ficar sffim : Sic eunimlo inanerel Grande exceilenr
cia do Euangeliíla !ií>b sr
1047 líCS cou fas ha nefte mundo , que íçmprçNum. jsr.
crefcem , e nunca ficao aílim : huma faz a natureza \
outra faz a graça , outra faz a fortuna. A natureza
as palmas : a graça os Santos : a fortuna os validos.
Eíla he a eftatura das palmas alentadas pela natureza:
efta he a eflatura dos Santos infpirados pela .graça : e
eíla he a eftatura dos validos aíloprados pela fortuna.
Eílatura, que por mais creícida , e por niais .remonta-
da até ás nuvens que a vejamos , íempre crefce mais,
emais. E fe naô lembrai vos dos três , cjue agora di-
zia. Oeo Jacob por benção a Jofeph , que crefceíFe
fempre : Filitis accrefcens jojeph ^fílius ãccrefcef!f.^<^^^<^^^ ^t^
E onde íe cumprio efta bençaó ? Na privança , e va- '^^
limento de Faraó. Aman , grão privado de AíTueròi
até o dia, em que acabou, crefceo; e porque nao teve
mais para onde crefcer , acabou. Pareceo deígraca ,
e foy natureza , qae aílim acontece á palma , ou cref-
cer, ou acabar. Daniel na privança de Dário tendo
fubido a Ter hum dos três íupremos Principes de tò--
da 3 Monarchia , ainda o P^ey queria que crefceíFe
mais , e que foíTe elJe fó íobre todos. Porro Rex co- oanie). 4.
gitahat coiifthuere eumfíiper omne Rpgniim.
1048 i^ao fei que influencias tem o lado do Prinh
cipe , que em todo eíle elemento, em que vivemos ,
nao ha parte taó fértil 5 e taó fecunda, como aquel-
Jes dous pés de terra : tudo alli fe dá , tudo aUi mer
dra , tudo alli crefce. Crefcem os parentes, os arai-
Bb4 gos,
Num. 38
ao.
'Joaíi.13,
592 Vieira abhreviado
gos , os criados : crefcem as honras , os poílos , os ti-
tulos : crefce a cafa , a fazenda , o regalo : crefce o
poder , o domínio , o refpeiío , a adoração , e fobre
tudo crefce a eftatura dos meímos adorados. Hon^
tem pygmeos, hoje homens , á manha gigantes, o
outro dia coloíTos. Peza-me defta ultima compara-
ção; porque quando lhe acrefcentei a grandeza, lhe
tirei a alma. Naó aílim o mayor valido do mayor
Principe S. Joaô : Sic eum valo manere.
1049 A terceira qualidade admirável , que ref-
^'piandece no Euangeliíla, foy fer hum valido, que
fez do fegredo ignorância. Hum dos argumentos de
feu valimento , que S, Joaô allega nefte Euangelho,
foy perguntar a Chriíio : Quis ejl qtã tradet tet
Qiiem era o traidor , que o havia de entregar? Ref-
pondeolbe o Senhor, que era Judas : e aecreícenta o
Euangelifta : Hoc autem nemo Jcivit àifcumben-
thim\ Que ifto ninguém o íoube dos que eftavaó á
mefa : logo naó o foube o mefmojoaó , que era hum
dos queeílavaó aella? He eonfequencia de Santo
Agortinho. Pois fe Chrifto o diíTe a S. Joaô, como
jie poíTivel , que S. João o naõ foubelfe t Claro eftá
que o foube : pois fe o foube Saõ Joaõ , como diz ,
que o nao foube t Hoc autem nemo fcivit. A razaõ
he eíla ; porque o que Chrifto diíFe a Saõ Joaô , dif-
felho em íegredo , e S. Joaô o que íabe em fegredo,
naõ o fabe. Nos outros homens ofaber em fegredo
he faber^ em Saó Joaô o íaber em íegredo he igno-
rar : Nemo fcivit. Nenhum fegredo he fegredo per-
feito , fenaô o que paíTa a fer ignorância ; porque o
fegredo , que fe fabe , pódefe dizer ; o que fe igno-
ra, naô fe pode manifeftar. Efta he a ca ufa de os ho-
mens commummente naó faberem guardar fegredos;
por-
DifairfoXCVlII. 5^5
porque encommendaó o ilegredo á memoria , fendo
queohaviaodeencommendar ao efquecimento. O
fegredo encommendiído á memoria corre perigo:
o legredo encommendado ao efquecimento^ eftá fe-
guro. A razaô he ; porque o fegredo encommenda-
do á memoria he cautela , e o que íe guarda com
cautela , podefe perder : o fegredo encommendado
ao efquecimento he ignorância , e o que fe ignora
totalmente , naó fe pode manifeíhr : logo o perfei-
to fegredo he fó o que chega a fer ignorância, tltal
era o de Saó Joaó : Hoc autem nemo fcivit dijcum'
bentium.
1049 Ainda naóeftá encarecido o fino do fegre-^^j^,. jsj.
dodeS.Joaô. Foy taóefcrupulofo valido em maté-
rias de fegredo, que nem quiz dizer os fegredos,que
lhe difleraó, nem quiz dizer , que Ihediíreraójegre-
dos. Que os perguntara, fim, que lhos diíieraõ, naõ.
Naõ dizer hum homem o fegredo, que fabe , he
muito ; mas naó dizer , que íabe o fegredo, he mui-
to mais. Porque ? Porque naõ dizer o fegredo, que
fabe , he guardar fegredo ás coufas \ mas naõ dizer ,
que fabe o fegredo , he guardar fegredo ao fegredo.
S. Joaó guardou fegredo ás couías, porque naó dií-
fe, quem era o traidor , e guardou íegredo ao fegre-
do , porque naõ diíTe , que lhe defcobriraô quem erji.
Que muito logo , que fendo taô íecretario S. Joaó ,
foífe taõ valido! Difcipulumy quem diligebat Jejus.
1050 A quarta, e ultima boa parte, que admi-Num. ^%6\
ro em Saójoaó , he fer valido , que quiz a graça por
amor da graça. Logo me explicarei mais No Sacra-
mento da Euchariftia deixou Chriílo as fontes de
íua graça; mas he muito de reparar , que naó quiz
Chrifto , que íicafle aili a fubílancia do paõ. Fundo
ore-
ieira áhbrevíaão '
o reparo. Menos milagres erao neceíTarios para eílar
ò corpo de Chriíto , e a íubibncia de puó juntasneii-
te , que para^eíhir o corpo de Chriílo fem a fuhftanr
C!a de pao. Pois fe com menos milagres íe podia fa-
zer cabalmente o myílerio, Dvos, que fempre acur-
<ta milagres , porque naó quiz, que ncaíle a fub-
Irancia do paò no Sacramento ? Eu nao vos direi ai
verdadeira razão, mas dirvoshei huma moralidade
muito verdadeira. Todos os Sacramentos faõ inílru-
mentos da gv^^q-à , e eílede mais gr^íça que todos : e
nuo quiz Ghrifto , que a graça íe dêíFe junta com o
paô, nem que o pao andaííe junto com a graçs. O
, : iTiayorabuíb, e o mayor rifco , qiietem á graçados
Principes , he andarem o pao , e a graça juntos. Se no
iíkar federa o paô a moyos, ainda que naó fora con^
íagrado, muitas communhoens íè haviao de fazer
por amor do pno , que fenaõ fazem por amor da gra-
ça. Querer a graça por amor da graça he devoção,
querer a graça por amor do pao he fome. Por iíTo ha
tantos famintos , ou tantos esfiiimados da graça. To-
dos querem fer cheyos' de graça ; mas naõ de graça
vazia : Gratia Dei in me vácua nmfult^ dizia S.
r Cor. 14. Paulo eoi bem mais honrado fentido.
IG5 1 A graça ha de fer para vós encheres as obri-
gaçoens da graça , e nao para a graça vos encher a
vós, ou vós vos encheres com elia.Entaoferia a gra-
ça menos cuílofa a quem a dá , e mais bem avaliada
em quem a logra. Por iílb Chriílo nao quiz, que o
pao andaíTe junto com a graça. Mas porque os omni-
potentes do mundo naõ fa?:em efta feparaçaõ , como
poderão fem grande milagre, chegou a graça a tranf-
íu bilra nciarle tanto no pao , que ninguém bufca jd a
graça por amor da graça , fenaó a graça por amor do
pao,
!■■
Di/cwfoXCVlII. 3.9
paó , e pela medida do paõ , oi) pelo psõ fem medi-
da fe avalia a graça. Porque tem hoje mais paõ, que
todos, quem 'honrem naÕ tinha hum paÕ ? Porque
eílá mais na graça, que todos. Oh qiiQ groíleria taÓ
grande! Masque bem acudio Ch ri lio a è(iQ incon-
veniente. No mefmo Sacramento ninda que noô eíiá
paõ quanto á íubílancia , eíld pac quanto sos acci-
dentes; porém a graça naó fe mede com o pnõ. Muitas
vezes quem ccmmunga huma hoítia muito grande,
leva pouca graça , e quem communga huma partícu-
la muito pequena , leva m.uita graça : para que cn-
tendaó' os homens , que a graça naô íe deve medir
com o paõ.
10^2 Oh que bem governado andaria o mundo
fe viílemos pobres de paó os que vemos ricos da-
graça ! Qiiem ccnquiftu a graça pela graça , conten-
taíe com o coração. Vejafc no noílb pAiangeiifta.
Conquiílou a graça de Chriílo, e veyofe a rematar
a conquifta em que ? Em lhe render Chriílo o cora-^''^'' ^^7-
çaô : Recíibnitjiipra pcãus ejus. Muito eílimou S.
Joaó o coração do feu Principe ; mas eílimou-o, por-
que fe lhe rendeo , e naõ porque lhe rendia. O cora?-
çao do Principe haíe de ellimar pelo readimenro,
e naõ pelas rendas : hafe de eftimar nelle o rendido ,
e naó o rendofo. Só Saô JoaÕ foube eílimar a graça
do Principe, como fe ha de eíHmar : a graça por
amor da graça, e nada mais. E como em S.Jocõha*-
via tantas qualidades de amante, e taõ grandes par- Num. 391.
tes de valido , que muito que o amaíle tanto o Prin-
cipe da gloria Chriílo ! Dtfcipulum^ qnemdiligebat^
quirecubuit ftipra peclus Domini.
DÍS-
3 ^ ^ Vieira abbreviado
DISCURSO XCIX.
Th^ado de hú fermaÕ do Santijjl-no Sacramento pré^
gaãoetn Santa Engracia á Nobreza de Portugal
no tempo ^etn que e/íe Reyjjo tinha guerra com Caf-
tella , fendo ?nayor a que fazia ao mefmo Reyno
a difcordia^ que nejja occajlao havia entre os Fi-
dalgos,
UNIAM.
Part. T.
bluiU. II I.
1051 A S obras da natureza , e as da arte to-
•^'^^das fe confervaó , e permanecem
na Uniaõ , e todas [\^ deíuniao fe desfazem , fe deí-
truem , e fe acabaò. Eíta machina taô bem compof-
ta do mundo com fer obra do braço omnipotente ,
que he o que a fuílenta , e a conferva , fcnaó a per-
petua , e a confiante uniaô de fuás partes ? Naó ve-
mos o cuidado vigilantiíTiraOjCom que a natureza an-
da fempre em vella fobreeíle ponto principal de fua
confervaçao, violentandoíè a íi mefma, (fe he necef-
fario ) e fazendo fubir os corpos pezados , e defcer
os leves fó para impedir os damnos daquella def-
uniaô , a que os Filofofos chamaõ vácuo ? Seis mil
annos ha que dura o univerfo fem fe (entir , nem ver
nelle o menor final de defuniaõ , e por iílb dura tan-
to : e quando finalmente chegar feu fim , a falta, ou
a rotura defl;a uniaó fera o ultimo paroxiímo, de que
ha de morrer o mundo. EíTe foy o penfamento do
graõ Principe da Igreja S. Pedro , o qual chamou ao
fim do mundo defuniaõ do univerfo : e para dizer,
que
MH
07
:urfo JLVI2L. -^y
qué todas ns coufas íe haõ de acabar , diíTe que todas „
fe hio de delunir ; Cu>n igítnr bícc omnia dtjjblven- , /, '
dcj/vit. Toda a vida ( ainda das coufas, que naó tetri'
vida ) naó he mais que huina uniaô. Huma uniaõ de
pedras he edifício : huma união de taboas he navio :
huma uniaó de homens he exercito , e fem eíla uniaò
tudo perde o nome, e mais o íer. O ediíicio feoi
uniaõ he ruína : o-navio íenuniiaó he naufrágio :
o exercito fem uniaô he defpojo. Até o homem (cu-
ja vida coníifte na união da alma, e corpo) com unia6
he homem , fem uniaó he cadáver. A mayor obra dá
fabedoria , e da omnipotência divina, ^^'^^ ^^y o
compofto ineííavei de Chriílo , coníiília eín duas
unioens : huma uniaô entre o corpo, e a ahna, e
outra uniaô entre a humanidade , e o Verbo. Qiian-
do perdeo a primeira uniaó , deixou de fer homem ,
fe perdera a fegunda, deixara de fer Deos. Oh Deos!
Oh homens! que fó a voíla uniaÔ vos ha de confer-
var , e fó a voíía defuniaó vos pôde perder.
1054 Perdeofe a noífaeílatua de Nabuco, ( queNum. 112,
bem lhe podemos chamar nolTa , pois nos fervimos
tantofdelia ) vejamos quem a perdeo. Eílava eila em
pé , robuíla , ufana , e foberba, promettendofe du-
ração eterna na riqueza, naformofura, e na dureza
dos metaes , de que era corapoíla : arranca fe huma
pedra do monte , tocalhe nos pés de repente , e no
mefmo ponto cahio a efi:atua,defappareceraõ os me-
taes , e naó ficarão delia , e delles mais que o lugar,
e as cinzas. Notável cafo; mas mais notável o tiro I
Sei eu, que a pedra de David foy direita a cabeça
do Gigante. Pois fe a pedra do Gigante tirou á cabe-
ça , a da eftatua porque tira aos pés t Nao vos lem-.
bra, que nos pés da çítatua eítava a defuniaó entre
o bai-
j9^ Vieira abbreviado
barro , e o feri-o ? Pois por iíTo o tiro fe encaminhou
aos pés, e naó a outra parte, porque aonde havia a
defuniao, alíi èílava certa a ruína. Nos corpos in-
teiros, e unidos, como era o Gigante , o melhor ti-
ro he a cabeça; mas em corpos, ondeha deíuniaó,
como era o da eílatua , o mais feguro tiro he ao def-
unido, ainda que fejaô os pés.
Num. iij. 1055 Eadverti, que naó faó neceílbrias muitas
defunioens para huma total ruina. Unido eílava o
ouro , unida eftava a prata , unido eílava o bronze , e
ainda o mefmo ferro em parte eílava unido ; mas baf-
tou huma fó defuniao para dar com tudo em terra.
Faça cada hum muito efcrupulo da fua defuniao,
porque pode fer, que delia dependa ou a ruina , ou
a confervaçaÔ da eílatua. Cuida a providencia poli-
tica , que os Keynos fe confervaó com ferro , e com
bronze, e fobre tudo com ouro, e com prata, e he
engano. O que fuílenta , e conferva os Reynos , he a
uniaó. Muito ferro, e muito bronze, muito ouro,
e muita prata tinha a eílatua , mas porque lhe faltou
a união , nao lhe ferviraó de mais todos eiTes metnes
bellicos , e ricos, que de accrefcentar mayor pezo pa-
ra a cabida. Ainda naõ tenho dito a mayor admira-
ção. O ouro, e a cabeça figni fica v ao o Império dos
AÍTyrios : a prata , o peito , e os braços íigniíicavaõ o
Império dos Perfas : o bronze da cintura até o joelho
íignificava o Império dos Gregos : o ferro do joelho
até os pés íignificava o Impcrio dos Romanos, e
bailou huma fó defuniao para derrubar, e desfazer
quatro Impérios dos mais valentes , dos mais pode-
rofos, dos mais fabios , e dos miis bem governados
homens do mundo. Se quatro Impérios com huma
fó defuniao fe arruinaó , e acabao ^ hum Reyno , e
naó
Difciirfo XC JX . ^99
nao muito grande, dividido em muitas defuiiioens,
que fe pode temer delie ?
1056 Ainda falta, que ponderar, ehe a coroa de Num. 114:
tudo. A pedra , que fez aquelle tiro fatal , com que
de hum golpe obrou tamanho eftrago ,4^6 ma(5 , e
queimpulfo foy oque a atirou? Oh cafoeítu pendo, e
inaudito ! Abjcijus eft lopisfníe jnanibus. Ninguém D^n. x. 4j:
poz a maó na pedra , ella por íi fe defpegou , cahio ,
e rodou do monte, e desfez o que desfez. Aqui ve-
reis quaó fácil he a ruina, e quaó aparelhada eílá
onde ha defuniaó. Para derrubar hum Reyno , e mui-
tos ReynoSjOnde ha defuniaó, naõ faô neceílarias ba-
tarias, naó faõ neceílbrios canhoens, naõ íaó necef-
farios trabucos, naó faÔ neceílarias balas , nem pai*
vora ; baila huma pedra : Lápis.
1057 Para derrubar hum Reyno, e muitos Rey-*
nos, onde falta uniaó, naó fao neceííarios exércitos,
naó faô neceílarias campanhas , naó faô neceífarias
batalhas , naó íaó necelfarios cavallos , naô faó necef-
farios homens, nem hum homem , nem hum braço,
nem huma maó : Sine manihtis . Nós temos muito
boas maõs , e o fabem muito bem noíTos competido-
•"'" ; mas fe naó tivermos uniaó , nem elles haverão
res
miíier maós para nós , nem anos nos haó de valer
as noíFas.
1058 Imperando Galerio Maximiano em Roma, pg^t. „^
e conhecendo por muitas experiências, que huma Num. 45.
Monarchia taó vaíla naó podia fer governada por
hum fó homem , ( o que já tinha anteviílo o melmo
Júlio Cefar leu fundador, quando lhe definio certos
Jimites ) determinou dividilla em duas partes , e duas
cabeças , como com eíFeito a dividio em dous Impe-
radores, e dous Impérios , hum chamado Occiden-
tal,
Num. 4^.
40 o Vieira abbrcoiado
tal, de que continuou a íer cabeça Roma , outro cha-
mado Oíicntai , de que começou a íer cabeça Conf-
tantinopla : e foraô os dous novos imperadores , do
Occidente Severo , e do Oriente Maximino.
1059 Por eíla occaíiaó a Águia infignia dss ban-
deiras Romanas , que até entaô tinha huma fó cabe-
ça , começou a apparecer com duas , como hoje a ve-
mos, poíío que he mais fácil copiar o pintado, que
reílaurar o verdadeiro. Ecomo a divifaõ em todas
as eommunidades de homens , e de coroas he indicio
fiital de deciinaçaó, eruina, aíTim ofoy no Império,
e Águia Romana adivifaô daqueUas duas cabeças.
1060 Já o Profeta Daniel o tinha moftrado na mef-
ma divifaô naó das cabeças da Águia , íenao dos pés
da eílatua. Na eílatua de Nabucodonofor formada
das quatro Monarchias, ou Impérios , que fucceífiva-
ínente haviaõ de ílorecer no mundo , a cabeça de ou-
ro fignificava o Império dos AíTyrios , o peito de pra-
ta o Império dos Perfas , o ventre de brônzeo Im-
pério dos Gregos , e o reílo de ferro até os pés o Im-
pério dos Romanos. E porque bailou, que tocaífe
os mefmos pés huma pedra arrancada do monte fem
mãos, para que cahiíTe toda a eílatua , eo mefmo Im-
pério Romano , e as outras Monarchias, que nelle
por fuccèílao fe continuavaó, fícaíFem convertidas
em pó? Porque naquelles dous pés divididos entre
íi , e cada pé dividido em cinco dedos , e cada dedo
dividido em ferro , e barro . teve o leu ultimo com-
plemento a divifaõ do Império Romano. Eaífim co-
mo nas duas cabeças da Águia , em que começou a
divifaô do mefmo Império, começou a fua declina-
ção, aíFim na diviíaõ dos dous pés da eílatua , em
que teve o ultimo compleniento a lua divifaô , teve
tam-
Difcíirfo C. 401
também o ultimo íim a fua mina. De forte que a ro-
da da fortuna do Império Roínano na divifao das
duas cabeças da 'guia com.eçou a voitar, e na divi-
fao dos dous pés da ellatua acabou a volta.
DISCURSO C.
Tirado de hum fermaÓ de S. Gonçalo.
VELHICE.
io6r A S cans , '^['le no facerdocio faó os ef-
XA. maltes da coroa , e na prelazia o orna-
mento da dignidade, nao poucas vezes defmentem o
que as mefmas cans íignificao. Saó como í5S neves, de
que lempre ertá cuberto o monte Etna , debaixo das
quaes fe ocultaõ volcoens , e incêndios : faõ como as
que o divino Meftre chamou íepulturas c^y-àázs: Se-
pulchra dealhata : brancas por fora , e corrupção por
dentro. As verdadeiras cans , diz o Eípirito Santo j
íao o juizo fizudo , e nao conlifte a velhice na cor
dos cabellos , fenaõ na pureza da vida : Cani atitem
Jimt fenfus hominis , é^' ^tasfeneâíutis vita imma-
€ulata. Os melhores cabellos, e a peyor cabeça, que
nunca houve , foy a de Abfalaó : os cabellos vendiaõ-
fe a pezodeouro, e a CiVbeça nenhum pezo tinha.
Mais lhe tomara eu o chumbo na tefta, que o ouro na
gadelha. Também ha cabellos , que parecem de ou-
ro , e faó de prata íobredourada , e ifto he o peyopf
que tem as cans , poderemíe tingir. Nao aílim os ca^
bellos negros , que nao admittem outra cor. Por ilFo
a paftora das Éclogas de Salamaõ o que louvou nos
cabellos de íeu paílor , foy ferem da cor do corvo :
Tom. II. Ce ,oi^^t,íComa
Patr. j.
Num. té7.
Matth, Z3.
i7>
Sap. 4. 8.^
i
o 2 Vieira ahhreviado
iKant. T I. Conjíe ejus Jicut eleita palmar um , nigra qtiafi cor-
vus.
1062 As arvores, que naõ mudao a folha, taõ ver-
des faô de poucos annos, como de muitos; mas quan-
to com mayor indecencia fc devem eílranhar nos ve-
lhos as verduras , tanto he digna de mayor venera-
Num.48p çaô nos moços a madureza. As batalhas da razaó
com os annos he huma guerra , em que refiílem mais
os poucos , que os muitos. Deixaremfe vencer da ra-
zão os muitos annos naó he muito; mas deixaremfe
vencer, e convencer os poucos grande poder da ra-
•KT.,«, .«« zaÔI Seeuiremfe aos annos os defenganos hefazero
tempo o que raz o tempo ; mas anticiparemíe os de-
fenganos aos annos he fazer a razaõ o que o tempo
havia de fazer.
1063 Qiieixavafe Marco Tullio , que lendo os
homens racionaes , podéíTe mais com elles o decurfo
do tempo , que o difcurfo da razaó. QiiQ naó baítaf-
lem noventa annos para dar íizo a Heli , e que baftaf-
fem defoito annos para fazer íizudo a Samuel ? O
que grande viáloria da razaõ contra a femrazaô do
tempo! Huma velhice enganada he a mayor femra-
zaô do tempo : huma mocidade defengnnada he a
j.Reg. 3t mayor vi6boria da razaó. Qiie naÓ corte os cabellos
Sara depois de pentear defenganos , e que os cabei-
los de Abíalaô na idade de ouro íintaó os rigores do
ferro ! Q<_ie enxugue a Magdalena as lagrimas dos
pés de Chrifto com os cabellos, mas que os naõ cor-
te , e que haja outra Maria , que ponha aos pés de
Chriílo os cabellos cortados com os olhos enxutos!
Qi)e Jacob na primavera dos annos enterre a fua Ra-
chel he inconítancia da vida ; mas que Rachel na
primavera da vida fe fepuite aíi mefmo : grande va-
lor da razaó! 1064 A
Difciirfo C. 403
1064 A velhice he o horizonte da vida, e da mor- nu«:. isj.
te, o horizonte, onde fe ajunta a terra com o Ceo , e
o tempo com a eternidade , que refoliiçaf) pode ha-
ver mais bem aconíelhada , e mais digna da madure-
za de humas cans , que dedicar á contemplação da
mefma eternidade aquelJes poucos dias , e incertos,
que pode durar a vida ? Notou judiciofamente Séne-
ca , que de todos os outros géneros de morte, fendo
tantos, e taô vários, pode haver eíperança de eícapar,
fó a morte, que traz comfigo, ou apoz de fi a velhice,
he morte fem efperança.Mata a doença, mata o incên-
dio , mata o naufrágio, mata a efpada , mata a feta
ou defcuberta , ou atraiçoada ; mas de todos eftes
géneros de morte muitos efcaparaô , fó da morte da
velhice ninguém efcapou : Jlia genera mortis fpei
Vííjtafunt , nihil habet quod jperet quem feneci us
ducit ad tnortem. E fendo taô defefperada eíta efpe-
rança , mais dignas faó para mim de admiração as
noífas velhices , pois nos naô defenganamos com el-
las. Quanto mais temos vivido neftemuipdo, tanto
mais amamos o mefmo mundo, e a mefma vida , e
quanto mais faó osannos, que conta mos, tanto mais
faó as raizes , com que eííamos pegados á terra.
F I N I S. L A U S D E O.
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