KINGS CoUege LONDON . O V*:'^ ) Library / / T l C-<<> 200713547 5 KING S COLLEGE LONDON Digitized by the Internet Archive In 2015 https://archive.org/details/b21297368_0001 COLÓQUIOS DOS SIMPLES E DROGAS DA índia COLÓQUIOS DOS SIMPLES E DROGAS DA índia POR GARCIA DA ORTA EDIÇÃO PUBLICADA POR DELIBERAÇÃO DA > ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA DIRIGIDA E ANNOTADA PELO CONDE DE FICALHO Sócio effectivo da mesma academia LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1891 2 f^O 6> ADVERTÊNCIA PRELIMINAR Uma nova edição dos Colóquios dos simples e drogas E cousas medicinaes da Índia de Garcia da Orta é de ha muito um desidei^atiim para todos os que, em Portugal e fóra d'elle, se interessam pela historia da Sciencia, e também para todos os que pretendam estudar a acção e influencia dos portuguezes nas terras orientaes durante o xvi século. Os exemplares da edição de Goa tornaram-se raríssimos, e sobre isso estão crivados de innumeraveis erros typographi- cos. Raros são os que têem tido o ensejo de os consultar, e raros também os que se sentem com animo bastante para penetrar nas asperezas de um texto incorrectíssimo, pes- simamente pontuado, e de uma leitura ingrata e difficil. Exis- tem na verdade varias edições da chamada traduccão latina do botânico francez Carlos de TEscluze, mais conhecido pelo seu nome latinisado de Clusius; mas a obra de Clusius não é uma traduccão, e sim um resumo ou epitome, diverso e muito diverso do original. O mesmo se pôde dizer da cha- VI Advertência preliminar mada traducçao italiana de Annibal Briganti, e da franceza de Antonio Colin. São eífectivamente versões; mas do re- sumo de Clusius, e não do livro portuguez'. Assim, em- quanto estes epitomes corriam mundo na lingua latina, ita- liana ou franceza, sendo dia a dia consultados e citados pelos homens de sciencia, o livro de Orta na sua fórma portugueza completa, com a característica linguagem do tempo, com os seus modos peculiares de pensar e de dizer, com as suas interessantes noticias sobre a vida íntima da índia, o livro de Orta permanecia quasi ignorado. N'estas condições, a reimpressão dos Colóquios impu- nha-se como uma necessidade urgente para os estudiosos, e quasi como uma obrigação de decoro nacional. Isto sentia já ha perto de meio século a Sociedade das sciencias me- dicas de Lisboa, quando no anno de 1841 empenhava lou- vavelmente todos os seus esforços para que se fizesse aquella reimpressão. Com o fim de a levar a cabo nas melhores con- dições, a Sociedade dirigiu-se então a alguns dos homens mais notáveis na litteratura e na sciencia do nosso paiz, pedindo-lhes os seus avisos e conselhos. De dois sabemos nós que foram consultados, ambos eminentes nas letras pá- trias, posto que desigualmente, Almeida Garrett e fr. Fran- cisco de S. Luiz. Garrett abraçou com enthusiasmo a idéa da Sociedade, e na resposta ao officio, que esta lhe dirigiu em 2 de março de 1841, poz á sua disposição a grande in- fluencia de que dispunha, para que se promovesse a reim- pressão dos Colóquios. . . «es/e precioso documento portu- guei, infeliimente mais avaliado até aqui dos estrangeiros do que dos nossos próprios, que o iam perdendo, como tantos outros de que apenas alguns conservamos o nome, e bem pou- í Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, de p. SyS a p. 385. Advertência preliminar VII cos a saudade^». O erudito prelado respondeu também á Sociedade, mostrando todo o interesse que o animava pela sua empreza de fazer mais conhecida uma obra «.digna do ynaior apreço»; empreza — dizia elle — que devia dar á So- ciedade (.(grande nome e credito, mormente se ao texto se ajuntarem algumas das importantes notas, a que elle offerece largo campo e feli{ opportunidade^». Ambos davam, nas respostas á Sociedade, o seu parecer sobre as regras a observar na nova edição, parecer a que teremos de nos re- ferir mais de uma vez nas paginas seguintes. Devido sem duvida aos esforços e influencia d'estes dois illustres litteratos, o governo decidiu auxiliar a empreza da Sociedade das sciencias medicas, e uma portaria de 27 de maio de 1841, assignada por R. da Fonseca Magalhães, determinou que a reimpressão fosse feita na Imprensa Na- cional, e que a dirigisse o conselheiro João Baptista de Al- meida Garrett^. • Veja-se o officio da Sociedade, e a resposta de Garrett no livro de Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memorias biographicas, n, 606, Lisboa, 1884. 2 Minuta mss. da resposta do cardeal Saraiva, communicada pelo dr. Venâncio Deslandes. 3 Damos em seguida o texto da Portaria : «Ministério do reino — i." Repartição. — N." 1016. —L." 2." — SuaMa- gestade a Rainha, attendendo ao que lhe representou a Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, pedindo que na Imprensa Nacional se faça a reimpressão mais nitida de 1:000 exemplares, extrahidos de outro, que adquirira, dos Colóquios dos simples e drogas e cousas medicinaes da índia, impressos em Goa em i563, e escriptos pelo medico portu- guez Garcia da Orta: manda, pela secretaria d'estado dos negócios do reino, que o administrador geral da dita Imprensa Nacional faça reim- primir n'ella o sobredito escripto em numero dos mencionados 1:000 VIII Advertência preliminar Pareciam assim as cousas bem encaminhadas; mas, ignoro por que motivo, os trabaliios da nova edição nunca foram levados a cabo, e nem sei mesmo se foram encetados, pois não encontrei vestigio algum de que se começasse a impres- são. E é pena que assim succedesse, porque a edição de 1841, se se tivesse feito, seria recommendavel por mais de um titulo. Garrett não tinha talvez a instrucção especial, necessária para esclarecer scientificamente alguns pontos obscuros dos Colóquios, mas tinha mais e melhor do que isso. O seu espirito, que foi litterariamente o mais alta e finamente dotado de todos quantos produziu o nosso paiz n'este século, o seu espirito abrangia com a mesma lucidez as mais variadas e diversas questões; e elle possuia o in- timo conhecimento da lingua, o amor e o respeito ás suas antigas formas, e o impeccavel bom gosto, necessários para levar a bom termo uma obra de reconstituição litteraria. Póde-se aftbitamente affirmar, que uma edição dos Coló- quios, dirigida por Almeida Garrett, teria sido, quanto ao texto e ás notas históricas, absolutamente definitiva. Pelo exemplares, depois de praticadas as emendas, que a Sociedade se pro põe fazer-lhe, attentos os erros que na sua primeira impressão se intro- duziram; bem entendido que esta de que se trata tem de verificar-se debaixo da direcção da Sociedade supplicante, ha de ser dirigida pelo Conselheiro João Baptista de Almeida Garrett, a quem se faz a compe- tente participação, recommendando-se ao administrador geral que seja a mais perfeita que for possível, e havendo-se o pagamento da sua des- peza pelo numero de exemplares, cujo preço for igual ao custo, afora os que, segundo o estylo, ficarem para a casa. O que assim se participa ao administrador geral para sua intelligencia e execução. Paço das Ne- cessidades, em 27 de maio de i'è^i. = Rodrigo da Fonseca Magalhães.» (Archivo da Imprensa Nacional, Livro 9." de registo de Decretos e portarias, foi. 14.) Advertência preliminar IX que diz respeito ás notas scientificas e botânicas, não era possivel fazer-se em 1841 uma edição definitiva, fosse quem fosse que a dirigisse. Abandonado, ou protrahido indefinidamente aquclle plano de reimpressão, ficou o assumpto esquecido' até ao anno de 1872. N^esse anno, F. A. de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, deu á estampa em Lisboa uma edição dos Colóquios^ Varnhagen, investigador, erudito, bastante ver- sado em questões e assumptos de historia natural, possuía as qualidades necessárias para dirigir uma boa edição do antigo livro portuguez; e d'isso tinha dado provas nas no- tas á obra de Gabriel Soares, e em outros trabalhos seus. Infelizmente a edição dos Colóquios foi feita em más con- dições, rapidamente, sem os cuidados e o estudo indispen- sáveis, e em parte sem a assistência do próprio editor, como elle mesmo explica no post-editiim. D'ahi resultaram as suas numerosas lacunas e imperfeições. Em primeiro logar, aquella edição é uma pura reimpressão do texto moderni- sado, sem notas ou esclarecimento de espécie alguma, nem mesmo a simples identificação das plantas mencionadas por Orta com os seus nomes scientificos. E por infelicidade, na única nota doeste género que se encontra em todo o livro, n'aquella em que se pretende identificar o diirião com uma espécie de Anona, vae envolvido um erro botânico grossei- ro. Esse erro foi na verdade reconhecido e emendado pelo 1 Parece que Rodrigo de Lima Felner, o erudito editor das Lendas da índia, do Lyvro dos pesos da Ymdia, e de outros valiosos documen- tos da nossa historia oriental, se occupou também de uma edição dos Colóquios; mas o seu manuscripto não foi encontrado. 2 Colloquios dos simples e drogas etc, 2.* edição, Lisboa, na Im- prensa Nacional, 1872. X Advertência prelimmar próprio editor no post-edit um; mas nem por isso deixa de ser para sentir, que a única identificação botânica apontada fosse incorrecta. Em segundo logar, a própria revisão do texto é muito defeituosa, á parte mesmo qualquer discus- são acerca do plano adoptado. São frequentes as passagens em que o sentido da phrase, obscurecido pelos numerosos e graves erros typographicos, foi mal interpretado por sim- ples desleixo e falta de attenção. Bastará citar um exemplo. Orta, fallando da planta, de que exsuda a gomma-resina, conhecida pelo nome de asa-foeiida, tem na edição de Goa a seguinte phrase: «e o arbore de que se tira ou mana se chama Anjuden». Esta phrase é claríssima, e vae impressa na presente edição, apenas com uma leve correcção ortho- graphica e a introducção dos caracteres itálicos: «e o arvore de que se tira ou mana se chama anjuden. d Pois, apesar de clara, foi assim impressa na edição de Lisboa de 1872: «e a arvore de que se tira o maiiá se chama anjuden». Não ha realmente desculpa para esta confusão entre um tempo do verbo manar e o nome de uma droga; e as cinzas de Gar- cia da Orta estremeceriam no seu tumulo, se podessem sa- ber que lhe attribuiam um erro d'esta ordem, fazendo-o pro- duzir o manná e a asa-fcetida pela mesma planta. Este exemplo é sufficiente para mostrar, que a edição de 1872 de modo algum dava satisfação ao desideratum apontado, de modo algum podia servir aos que pretendessem consultar com facilidade e ao mesmo tempo com segurança a obra de Orta. Estava a questão n'este ponto, quando a Academia real das sciencias de Lisboa deliberou, que se publicasse uma nova edição sob os seus auspícios, e me encarregou d'esse trabalho, tanto na parte da publicação e revisão do texto, como na da redacção das notas, deixando-me a mais abso- Advertência preliminar xi luta liberdade pelo que dizia respeito ao plano e regras a adoptar em um e outro ponto. Sabia eu perfeitamente que esse trabalho seria árduo e longo; mas nem podia esquivar- me ao que me era determinado pela Academia, nem — devo dizel-o como franqueza — tive a tentação de o fazer. Sem me illudir sobre as dificuldades da empreza, nem sobre os requisitos que me faltavam para o seu bom desempenho, seduzia-me esta obra paciente de investigações, de pesqui- zas e de reconstituição. Puz por consequencia*mãos á obra, e o primeiro resultado do meu trabalho foi o livro que pu- bliquei no anno de i886'. N^esse livro, e pelos dados escassos que me foi possivel encontrar, procurei eu reconstruir approximadamente a bio- graphia do auctor dos Colóquios: esforcei-me também por estudar o meio em que elle viveu, e as influencias que actua- ram no seu espirito, já na Europa, nas universidades da Hespanha e na corte de Lisboa, Já no Oriente, tanto nas suas viagens como na sua longa permanência na capital da índia portug4jeza, que então era também uma verda- deira corte: tentei finalmente determinar o valor e a signi- ficação da sua obra, a qual fechava, resumindo-a, a epocha de fragmentarias e nebulosas noções da Antiguidade e da Idade-media sobre a historia natural do Oriente, e abria o periodo das investigações modernas. O meu trabalho, pu- blicado vae já para cinco annos, constitue, pois, propria- mente uma introducção á presente edição dos Colóquios, e dispensa-me de entrar de novo em questões, que ali foram tratadas tão completamente quanto eu podia e sabia. Res- ta-me apenas dar conta succintamente das regras adopta- das na reproducção do texto e na redacção das notas. I Garcia da Orta e o seu tempo, Lisboa, 1886. xn Advertência preliminar Pelo que diz respeito á primeira parte, apresentavam-se naturalmente tres systemas diversos a seguir, expostos já em 1841 pela Sociedade das sciencias medicas nos seguin- tes termos: «Reimprimir a obra tal qual se acha, erros e tudo;» «Reimprimil-a expurgada somente do que se julgasse er- ros t3'pographicos, attendendo á doutrina e orthographia d'aquella epocha-,» «Reimprimil-a reduzida á orthographia e linguagem ho- diernas.» Os dois systemas radicaes, o primeiro e o ultimo, pare- ceram-me absolutamente inadmissíveis ; e não fiz mais n'este ponto do que seguir e adoptar o parecer dos dois illustres litteratos, já citados, e consultados n'aquella epocha pela Sociedade. A modernisação da fórma seria talvez applicavel á reim- pressão de uma obra puramente scientifica, quando a nova edição tivesse unicamente o fim de facilitar a leitura, gene- ralisando e vulgarisando o conhecimento dos factos apon- tados e das doutrinas expostas. Mas taes obras não se com- punham n'aquelles bons tempos da Renascença, em que não existiam especialistas, em que todo o homem instruído es- crevia e tratava mais ou menos promiscuamente dos varia- dos assumptos que o interessavam. Os Colóquios têem este caracter da epocha; e nas pachorrentas conversas de Ruano e de Orta falla-se de tudo, de plantas e de medicina, dos reis da índia e do jogo do xadrez, da situação geographica de Babylonia e da etymologia do nome das Maldivas. Como bem sentia e dizia Garrett, «a obra de que se trata rewie d importância scientifica o interesse litterario e histórico: quero di:{er, não c somente um tratado de sciencia, é também um monumento da historia da arte e da l ingu agemy> .Y&súr uma Advertência preliminar xiii obra d'esta natureza com a nossa linguagem moderna, seria deturpal-a, prival-a de todo o encanto, de toda a singeleza, de todo o cunho da epocha em que foi escripta. Convinha pois — ainda na phrase de Garrett— que a orthographia e termos antiquados se conservassem religiosamente. O argu- mento, algumas vezes adduzido contra este modo de pro- ceder, e derivado da maior facilidade de leitura, de pouco ou de nada vale no nosso caso. Os Colóquios são hoje um livro forçosamente destinado a uma classe muitissimo re- stricta de leitores instruídos. Todos os que o lerem ou con- sultarem não hesitarão por certo diante de uma fórma or- thographica obsoleta, de uma palavra pouco corrente, de uma volta grammatical antiquada. E aquelles, que taes for- mas poderiam embaraçar, de certo se não lembrarão de o ler. Haveria, pois, em modernisar o livro, o inconveniente de lhe tirar o seu caracter de monumento da historia da arte e da linguagem, sem com isso o tornar de leitura geral, o que ellc nunca pôde ser, e nunca ha de ser. Reimprimir a edição de Goa tal qual está «erros e tudo», seria um systema ainda menos acceitavel. A este propósito dizia fr. Francisco de S. Luiz: E primeiramente entendo que é demasiadamente escrupuloso, para não di:{er imperti- nente, o methodo de imprimir ou reimprimir qualquer mss. ou impresso com todos os erros, que nelle se achão, sem ex- ceptuar aquelles que são manifestamente erros tjpographicos, ou sobre os quaes não pôde occorrer consideração alguma pela qual se devão conserj>ar. Esta opinião do erudito aca- démico pôde ser discutível pelo que diz respeito aos ma- nuscriptos; mas está fóra de toda a contestação quando se trata de uma obra impressa. Se nós possuíssemos o manu- scripto de Orta, seria opinião minha, que o deveríamos im- primir com escrupulosa fidelidade; mas o respeito, que po- XIV Advertência preliminar deriam merecer os seus erros, de modo algum merecem os de um aprendiz typographo pouco perito. O mais simples bom senso está dizendo, que se devem emendar todas as faltas commettidas na officina de João de Endem. Foi este o plano que adoptámos — emendar na presente edição, tudo quanto na de Goa nos pareceu erro de compo- sição, deixar inalterado tudo quanto se nos afigurou ser a fórma primitiva de Orta. Seguimos á risca o preceito es- tabelecido por fr. Francisco de S. Luiz: imprimir a obra com a doutrina, linguagem e orthographia do andor, e ex- purgada tamsómente dos erros que se julgarem meramente e manifestamente tjyographicos. Admittimos apenas um pe- queno numero de excepções a esta regra*, e essas mesmas já admittidas em principio pelo illustre académico citado, que foi incontestavelmente um mestre da nossa lingua. D''estas excepções, a mais importante e que mais merece ser apon- tada, é a seguinte: Na edição de Goa encontram-se em geral os artigos o^, a, e a conjuncção e, escriptos ho, ha, he. Não ha n'este ponto erro typographico*, e Orta, como todos en- tão, escrevia evidentemente d'aquelle modo. No emtanto pa- receu-nos mais conveniente supprimir os /z/í, evitando assim a confusão com alguns tempos de verbos de occorrencia fre- quente. Em outros pontos não introduzimos verdadeiras al- terações, e simplesmente adoptámos fórmas typographicas mais usadas hoje, como em que por q, confessar por còfes- sar, abundância por abudãcia, ou em outras abreviaturas, que nos pareceu melhor escrever por extenso. Também jul- gámos necessário regularisar o emprego das letras maiús- culas, extremamente caprichoso e sem regras fixas no xvi sé- culo; e adoptar os caracteres itálicos nas palavras latinas, nos nomes das drogas, e em outros casos, onde nos pare- ceu que essa adopção facilitaria a leitura e as pesquizas no Advertência preliminar xv livro. Pelo que diz respeito á pontuação fomos obrigados a tomar grandes liberdades com o texto. N'esta parte, os erros da primeira edição são tantos e taes, que, em al- gumas paginas, as virgulas e os pontos parecem distribui- dos ao acaso; ás vezes um nome próprio está cortado por dois pontos, como em Aieixos dia^: f alçam. Era evidente, que, n'este como em muitos outros casos, a pontuação se não podia respeitar, tornando-se necessário adoptarmos uma pontuação nossa, que naturalmente procurámos cingir ao sentido da phrase e ás intenções do auctor, sem que, no emtanto, nos possamos lisonjear de ter acertado sem- pre. Ainda nos resta uma ultima explicação a dar, pelo que diz respeito á variabilidade da orthographia. Pareceria, que nós, acceitando uma fórma qualquer, a deveriamos se- guir em todo o livro; e pôde causar estranheza, o encon- trar — com poucas linhas de intervallo — as formas muito e miíjto, ra^ão, ra\am e 7^e-{am, qua e ca, cinco e cinqiio, o arvore no masculino, e a arvore no feminino. Conside- rámos, porém, que esta incerteza constituia um dos cara- cteres da orthographia do tempo, que de modo algum se podia attribuir a simples imperícia do compositor, e pelo contrario devia representar o modo por que Orta escreveu, convindo por isso respeital-a. Em resumo, o nosso desejo e a nossa intenção foi a de conservar ao livro todo o caracter que o auctor lhe deu, lim- pando-o apenas dos erros, e ás vezes contrasensos, in- troduzidos durante a impressão. Claro está, que nem sempre podemos attingir o nosso fim. Garcia da Orta não escrevia bem, nem mesmo correctamente, e o seu livro foi eviden- temente redigido com bastante desleixo de fórma. Em taes condições, tornava-se extremamente difficil destrinçar os er- ros do auctor das faltas do typographo; e seguramente nos XVI Advertência prelijninar succederia mais de uma vez, o termos emendado erros com- mettidos por elle próprio, ou termos respeitado como suas algumas faltas do compositor. Seja como for, o texto, tal qual hoje sáe impresso, é de uma leitura fácil para todos os que tenham um leve habito do antigo portuguez; e — á parte uma ou outra passagem mais incorrecta, ou mais ob- scura— o sentido das phrases é em geral claro, e as inten- ções do auctor perfeitamente intelligiveis. Assentes assim as regras adoptadas na reimpressão do texto, devemos dar conta do que pretendemos conseguir pela redacção das notas. Julgámos em primeiro logar, que nos deveríamos afastar de tudo quanto se approximasse de um commentajio. Esta fórma é pouco acceitavel nos nossos dias; e é — permitta-se a expressão — oífensiva para o es- criptor e para o leitor. As idéas e as doutrinas de Garcia da Orta são bem claras; e nem elle necessita de que lh'as interpretem, nem o leitor carece de que lh'as expliquem. O commentario, alem de dispensável, seria, portanto, im- pertinente; mas os factos apontados reclamavam em mui- tos casos uma confirmação, ou uma rectificação. Orta fez um grande numero de observações pessoaes e directas, col- ligiu também um grande numero de informações de diver- sas e variadas procedências, e pôde assim consignar no seu livro muitos factos interessantes. E notavelmente verídico quando falia do que viu, e tem uma critica severa quando discute o que lhe diziam; mas, apesar d'isso, se acerta em muitos casos, engana-se em alguns. Claro está, que o leitor não tem o vagar necessário para fazer pesquizas longas e fastidiosas, com o fim único de averiguar o que deve ac- ceitar ou regeitar nas suas affirmações. Para lhe evitar este trabalho, e unicamente para isso, nós procurámos indicar nas notas o que recentemente se tem apurado de mais se- Advertência preliminar xvii guro em relação aos assumptos tratados pelo nosso antigo escriptor. Por este modo, e sem nos substituirmos ao seu juizo, pomos ao alcance do leitor um meio fácil de verificar ou completar as noticias encontradas no texto. Naturalmente, as notas referem-se pela maior parte á bo- tânica e á matéria medica do Oriente. Este era o assum- pto principal do livro; e esta era também a parte em que o presente editor podia ter uma tal ou qual competência. Identificámos sempre que nos foi possível — e foi-nos quasi sempre possível — as plantas mencionadas por Orta com o seu actual nome scientifico. Náo nos limitámos, porém, a uma simples e secca identificação, e dêmos sobre a planta, e sobre a droga que d'ella procede, algumas noticias, ne- cessárias para esclarecer as informações de Orta. Essas no- ticias são pela maior parte extrahidas de livros recentes, e alguns muito recentes. Com effeito, sem a Flora Indica de Roxburgh e os volumes publicados da Flora of British ín- dia de Hooker, sem a Matéria Indica de Whitelavv^ Ainslie e a Matéria medica of western índia do sr. D3'mock, sem os trabalhos do professor Fluckiger e de Daniel Hanbury, sem as Useful plants o f índia do coronel Drury e as Use- ful plants of the Bombay presidency do dr. Lisboa, sem outras e numerosas publicações scientificas que seria longo enumerar, muitas passagens dos Colóquios careceriam ainda hoje de confirmação ou de explicação. Eis o motivo por que eu pude dizer antes, que ahi pelas proximidades do anno de 1841 teria sido impossível fazer uma edição definitiva dos Colóquios. Este facto c todo em louvor de Garcia da Orta. Elie penetrou tão profundamente no assumpto, que os livros dos dois séculos seguintes ao seu pouco elucidaram o que deixou escrípto. E foi só no nosso século, e sobretudo na segunda metade do nosso século, que numerosas publicações XVIII Advertência preliminar scientificas vieram confirmar, explicar, ou rectificar as suas observações. Procurámos pôr em relevo nas notas essas confirmações ou rectificações, resultantes dos trabalhos dos últimos e mais modernos botânicos e pharmacologistas, O que, em ultima anal3^se, nos interessa saber, é se Orta ob- servou bem ou mal, se os factos que aponta são verdadei- ros ou falsos; e isto deduz-se sobretudo das investigações mais recentes. Dos auctores de matéria medica, contempo- râneos ou quasi contemporâneos de Orta, pouco nos occu- pámos. Tudo quanto havia a dizer sobre as obras de La- guna, de Matthioli, ou de Antonio Musa, disse-o Orta; e não havia o minimo interesse em discutir de novo as suas opiniões, geralmente menos correctas que as do próprio Orta. Mas não succedia o mesmo com todos os livros con- temporâneos. Os livros portuguezes do tempo, particular- mente os que foram escriptos no Oriente, podiam prestar- nos auxilios valiosos. E de feito, na Asia de Barros, nas Lendas de Gaspar Corrêa, no Livro de Duarte Barbosa, no Lfvro dos pesos de Antonio Nunes, no Tombo de Simão Botelho, e em outros, encontrámos muitas noticias que vie- ram expUcar ou completar de um modo interessante as que os Colóquios nos forneciam. Como disse antes, Orta não se limita a tratar os assum- ptos da sua especialidade; e, ao correr da penna, vae-nos citando os nomes de pessoas suas conhecidas, ou contando factos da historia da índia, ou narrando anecdotas curiosas. As vezes desculpa-se de «gastar hum capitulo em cousas que não são de sciencia«, ou previne desde logo o leitor de que o Colóquio «não serve de cousa alguma de física» ; mas vae sempre escrevendo o Colóquio, e estas excursões fóra do dominio da matéria medica não são a parte menos interessante do seu livro. A nossa littcratura indiana é ri- Advertência preliminar xix quissima, e ás glorias dos homens de acção, como Vasco da Gama ou Aífonso de Albuquerque, nós podemos juntar as glorias dos seus admiráveis historiadores, como João de Bar- ros ou Diogo de Couto, sem fallarmos mesmo de Luiz de Camões que tem um logar á parte. Mas esta litteratura, tão rica em geral, é singularmente pobre pelo que diz res- peito a informações sobre a vida commum e corrente. Ape- nas Gaspar Corrêa, descendo ás vezes das sublimidades da historia pura, nos dá uma ou outra noticia um pouco mais íntima. Certas paginas dos Colóquios vem de algum modo preencher esta lacuna, e deixam-nos entrever a maneira de viver e de sentir do tempo e da região. As suas visitas medi- cas a casa de uma mestiça de vida pouco edificante, ou a casa de um fidalgo doente; as suas disputas scientificas com o poderoso sultão de Cambaya, ou com o Nizam Scháh; a sua conversa com o baneane no Bazar de Diu, ou a sua contenda com o velho boticário na presença do governador, são documentos históricos mais suggestivos sob este ponto de vista do que muitos capítulos de Barros ou de Couto. Em geral, estas paginas de Orta têem em si a sua explica- ção \ mas ás vezes, n'aquellas excursões fóra da sua sciencia predilecta, elle deixa cair laconicamente algumas referencias a factos, que são ao mesmo tempo interessantes e pouco conhecidos. Tal é, por exemplo, no Colóquio da canella a referencia ás viagens dos Chins nos mares da índia e no Golpho Persico ; tal é todo ou quasi todo o Colóquio do ber, com as suas referencias interessantíssimas á historia interna do Deckan, e aos «nomes e appellidos» dos seus reis. Pare- ceu-nos, que ainda n'estes casos convinha esclarecer o texto com algumas notas geographicas ou históricas, como o ha- víamos esclarecido com as notas botânicas, embora n'este caso luctassemos com mais diííiculdades, pois saíamos do XX Advertência preliminar campo dos nossos estudos especiaes. Obedecendo sempre ao mesmo plano de pormos ao alcance do leitor as informações que lhe possam ser necessárias, ou simplesmente agradá- veis, procurámos também identificar todas as pessoas men- cionadas'. Com eífeito, quando o leitor encontra no texto uma referencia succinta a um irmão do rei de Dehli, ou a um bispo de Malaca, ou a um rei desthronado de Ternate. interessa-o encontrar nas notas, que o tal irmão se chamava Mohammed Zéman Mirza, que o bispo era D. fr. Jorge de Santa Luzia, e o rei tinha o nome gentio de Tabarija e o nome christão de D. Manuel. Taes foram, brevemente indicadas, as regras que nos guia- ram em geral na redacção das notas. Escusado será dizer, que ficámos muito áquem do que desejávamos, e do que me- recia o livro, Orta deveria ter encontrado um editor — como Marco Polo teve em Yule — que a uma erudição profunda e muito geral, reunisse o conhecimento directo e pessoal das regiões orientaes. Faltava-me erudição geral, e faltava-me aquella impressão immediata e de visu da natureza tropical e dos aspectos do Oriente, que nenhuma leitura pôde supprir. Faltava-me também — e esta foi para mim uma difliculdade grave — o conhecimento das linguas orientaes. Uma das fei- ções mais interessantes dos Colóquios, é a sua abundante nomenclatura vulgar de plantas e de drogas. Encontram-se ali nomes arábicos, nomes indianos, tanto das linguas sans- kriticas do norte, como das linguas dravidicas do sul, nomes I E procurámos igualmente identificar os livros citados. N'esta parte pouco tínhamos a acrescentar á lista já publicada (Garcia da Orta e o seu ienipo, 285 a 297); mas conseguimos encontrar noticia de mais al- guns livros; assim como devemos confessar, que um ou dois escaparam completamente ás nossas investigações. Advertência preliminar xxi / singhalezes, nomes malayos e outros. Orta dá estes nomes como os pôde apanhar de ouvido, e nas irregulares tran- scripções alphabeticas do seu tempo, quer dizer com muita incorrecção. Havia todo o interesse em reconstruir aquelles nomes, e em provar que, sob as suas alterações, eram pela maior parte verdadeiros e conhecidos*, e para isso foi neces- sário dal-os em caracteres arábicos, e uma ou outra vez em caracteres devanagricos, naturalmente com a sua transcri- pção ao lado. Tudo isto levantava para mim graves difficul- dades. A minha sciencia em arábico pouco vae alem de co- nhecer o alphabeto, ou de poder procurar uma palavra em um diccionario; em sanskrito ainda é menor;, e em tamil ou malayo, escuso dizer que é absolutamente nuUa. N estas con- dições, e apesar de todo o meu cuidado, eu devo ter com- mettido erros numerosos, sem os poder evitar. Podia na verdade evital-os, se supprimisse nas notas tudo quanto diz respeito á nomenclatura dos Colóquios, mas pareceu-me esta suppressão uma lacuna tão sensível, que preferi arris- car-me a commetter erros crassos, a deixar de pôr bem em relevo, quanto a nomenclatura de Orta é completa e — para o seu tempo — exacta. O leitor, versado n^aquellas linguas, desculpará as faltas de quem não é, nem pretende ser um orientalista. Já vão longas estas explicações, e não me compete apon- tar outras lacunas d'esta edição, que todos poderão sentir, que em parte resultariam da imperícia do editor, mas em parte resultaram também das faltas de publicações e ou- tros recursos litterarios e scientificos com que luctãmos todos os que trabalhamos em Lisboa. Ao publicar este pri- meiro volume, ao qual se seguirá brevemente o segundo, eu posso unicamente dizer, que o estudei com cuidado e com amor. As longas horas gastas em pesquizas apparentemente XXII Advertência preliminar fastidiosas, em indagações na nova e na velha bibliographia, em leituras dos nossos antigos livros portuguezes, deixam- me uma impressão de repouso e de absoluta tranquillidade de espirito; e este trabalho foi e é como um refugio, como um asylo moral, apartado e remoto, ao qual chegam já muito enfraquecidos os ruidos dos successos actuaes. Antes de terminar, eu devo agradecer de um modo ge- ral a todos os que uma ou outra vez me auxiliaram nas minhas pesquizas, e de um modo muito especial ao sr. Ve- nâncio Deslandes. O illustrado administrador geral da Im- prensa Nacional não poz unicamente ao serviço doesta obra os vastos recursos do estabelecimento que dirige; mas tam- bém o seu trabalho pessoal. Bastará dizer, que elle copiou da sua lettra todo o texto dos Colóquios, e fez pela sua mão toda a fastidiosa revisão das primeiras provas, para mostrar que — em tudo quanto se refere á reimpressão do texto — foi mais do que um auxiliar, foi o mais valioso e dedicado dos coUaboradores. Lisboa, Novembro de 1890. C COLÓQUIOS DOS SIMPLES e drogas e cousas medicinais da índia, e assi dalgumas frutas achadas nella, onde se tratam algumas cousas tocantes a me- dicina pratica, e outras cousas boas pera saber, compostos pello doutor Garcia d'Orta, íisico del-rey nosso senhor, vistos pello muyto reverendo senhor, o liçençiado Aleixo Dias Falcam, desenbargador da Casa da Supricaçam, inquisidor nestas partes. 5[ Com privilegio do Conde Viso-Re3^ Impressos em Goa por Joannes de Endem aos x dias de abril de 1 annos. I I f O CONDE Viso-Rey da índia, etc, faço saber a quantos este meu alvará virem que o doutor Garcia d'Orta me inviou dizer que elle tinha feito hum Hvro pera enpremir das mézinhas e fruitas da índia, que era muyto proveitoso, pedindome que ouvesse por bem e mandasse que, por tem- po de tres annos, nenhuma pessoa o podesse enpremir sem licença delle doutor, por quanto era em seu prejuizo, e visto por mim seu pedir e avendo respeito ao que diz: ei por bem e por este mando que pello dito tempo de tres annos, que se começarão da noteíicaçam deste em diante, nenhuma pessoa, de qualquer calidade e condiçam que seja, possa enpremir nem mandar enpremir por nenhuma via o dito livro sem licença do dito doutor, so pena de qualquer que o contrairo fizer paguar por cada vez duzentos crusa- dos, metade pera elle ou pera quem o acusar, e a outra metade pera as obras pias, e ser preso até minha mercê, e aver a mais pena que eu ouver por bem. Por tanto notifico assi ao ouvidor geral e a todas as mais justiças e oficiaes a que pertençer, e lhe mando que asi o cumpram e guar- dem e façam comprir e guardar inteiramente sem duvida, nem embarguo algum. Rui Martíz o fez. Em Goa a 5 de novembro de i562. ^ CONDE VISO-REY. AO MUYTO ILLUSTRE SENHOR MARTIM AFONSO de Sousa, do conselho real, senhor das villas de Alcuen- tre e o Tagarro, seu criado o doutor Orta lhe deseja per- petua felicidade com inmortal fama pera seus decenden- tes. He aprovada de todos a sentencia de Salustio em que encomenda aos homens que trabalhem exceder e ter primi- nencia sobre os outros animaes, que não passem a vida em silencio como fazem os brutos, que não tem mais cuidado que de comer e beber : conforme a esta sentença he o com- mum dito de todos, que não somos menos obriguados a dar rezam e conta do oçio que do negocio; e, per esta causa, dizia Gatam Censorino, que das cousas de que avia de fa- zer penitencia era de passar algum dia per esquecimento sem fazer obra alguma; e daquelle famoso pintor Apelles se conta que não pasava dia algum sem deitar linha. E certamente que os que asi passam a vida, e com tanta preguiça adormesçem as forças do corpo e da alma, e não leixam, aos que ham de vir depois, mostra alguma de seus trabalhos, como fazem os brutos animaes, não se podem chamar homens pois tem pouca deferença dos brutos, e por esta causa, illustrissimo senhor, sam eu digno de grande reprensam, porque estando nesta terra trinta annos, nunqua deitei fruto algum pera aproveitar aos mortaes com alguma escritura; porque aos que Deos dotou de tanta perfeiçam e excelência, que fizessem feitos tam heróicos por onde os ou- tros escrevessem delles, como vossa senhoria fez em estas partes e em outras, não tem neçesidade de escrever pois a fama inmortal os çellebra. Ó quem poderá, illustrissimo se- nhor, tornarse Homero ou Virgilio pera escrever vossas gran- des façanhas, pera com isto deixar fruto de mi aos vindoi- ros: mas pois que a fortuna isto me negou, e foi amoestado e reprendido desta oçiosidade, da qual também foi acusado dalguns que esta terra governaram; e porque o vosso con- selho he mandado pera mi, determinei de fazer este breve tratado; mas temia o ocioso povo e mordaces linguoas, por 5 onde o tratado tinha neçesidade de hir arrimado a quem o defendese delias, assi como fazem os esprementados agri- cultores que, querendo plantar algumas dellicadas plantas as arrimam a alguns fortes arvores pera que as defendam dos tempestuosos ventos e fortes chuivas e ásperas geadas, assi quis eu plantar esta fraca planta debaixo do emparo de vossa senhoria, com o qual será defendida de toda a mór parte do mundo, pois a vossa fortaleza he tam co- nhecida, não tam somente por todas as tres partes do mundo, mas polia outra quarta parte, que aguora os cosmógrafos acreçentam, e não tam somente sois por vossa fortaleza temido nestas partes, mas, por vossa beninidade, e outras graças, que o Senhor Deos vos dotoú, sois amado. Bem podeis, illustrissimo senhor, defendelo do envejoso povo aquelle a quem até o presente criastes, ajudastes, e favore- cestes, e finalmente lhe déstes o nome de vosso, com o qual nome será este livro temido dos envejosos e amado dos bons e curiosos da verdade; e não he muyto de em- parardes este meu tratado pois he de vosso criado, e nelle se dizem cousas que me ensinastes, e outras, que eu aprendi na vosa escola militar e cortesãa. Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muytos annos antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprasivel; pois o entendeis milhor que a materna linguoa, mas traladeo em português por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai entitulado, folgaram de o leer. Ora pois, enpareo e defendao pois a sua casa o mando pera ser emmendado. Deos pros- pere o illustre estado de vossa senhoria e, por longos annos, acreçente com honrosos titulos como desejo. DO AUTOR FALANDO COM O SEU LIVRO, e mandão ao Senhor Martim Afonso de Sousa. Seguro livro meu, daqui te parte, Que com huma causa justa me consolo De verte oferecer o inculto colo, Ao cutello mordaz, em toda parte: Esta he, que daqui mando examinarte Por hum Senhor, que de hum ao outro polo Só nelle tem mostrado o douto Apolo Ter competência igual co'o duro Marte. Ali acharás defensa verdadeira. Com força de razões, ou de ousadia. Que huma virtude a outra não derrogua^ Mas na sua fronte a palma e a oliveira Te diram que elle só, de igual valia Fez, CO 'o sanguino arnês, a branca togua. AO CONDE DO REDONDO, VISO-REY DA ÍNDIA Luiz de Camões. Aquelle único exemplo De fortaleza eroyca e de ousadia, Que mereceo, no templo Da eternidade, ter perpetuo dia, O grão filho de Thetis, que dez annos Flagello foi dos miseros Troianos; Não menos insinado Foi nas ervas e medica noticia, Que destro e costumado No soberbo exercício da milicia: Assi que as mãos que a tantos morte deram. Também a muytos vida dar puderam. E não se desprezou Aquelle fero e indómito mancebo Das artes que insinou. Para o languido corpo, o intonso Phebo: Que se o temido Heitor matar podia Também chaguas mortais curar sabia: Tais artes aprendeo Do semiviro mestre e douto velho. Onde tanto creceo Em virtude, sciencias, e conselho, Que Telepho, por elle vulnerado. Só delle pode ser despois curado. Pois ó vós, excellente E illustrissimo Conde, do ceo dado Pera fazer presente De heroes altos o tempo já passado; Em quem bem trasladada está a memoria De vossos ascendentes a honra e a gloria: Posto que o pensamento Occupado tenhais na guerra infesta, Ou do sanguinolento Taprobanico Achem, que o mar molesta, Ou do cambaico occulto imiguo nosso, Que qualquer delles treme ao nome vosso: Favorecei a antigua Sciencia que já Achiles estimou; Olhai que vos obrigua, Verdes que em vosso tempo se mostrou O fruto daquella Orta onde florecem Prantas novas, que os doutos não conhecem. Olhai que em vossos annos Produze huma Orta insigne varias ervas Nos campos lusitanos. As quaes, aquellas doutas e protervas Medea e Circe nunca conheceram. Posto que as leis da Magica excederam. E vede carreguado De annos, letras, e longua experiência. Hum velho que insinado Das guangeticas Musas na sciencia Podaliria subtil, e arte siluestre. Vence o velho Chiron de Achilles mestre. 9 O qual está pidindo Vosso favor e ajuda ao grão volume, Que agora em luz saindo Dará na Medicina um novo lume, E descobrindo irá segredos certos A todos os antiguos encubertos. Assi que não podeis Neguar (como vos pede) benina aura. Que se muyto valeis Na polvorosa guerra Indica e Maura, Ajuday, quem ajuda contra a morte, E sereis semelhante ao Greguo forte. DO LICENCIADO DIMAS BOSQUE, medico valenciano, ao leitor. Comum doutrina foy de todos os filósofos, prudente leitor, os homens, por causa e razam dos próprios homens serem naçidos, e de seu próprio naçimento terem obrigaçam de aproveitar aos outros: isto sentia o divino Platão quando dizia, não ser naçido o homem pera si só, mas também pera sua pátria e amigos; e ainda que os homens, comprindo com sua humana enclinaçam, aproveitando aos outros façam aquillo pera que naturalmente foram gerados, comtudo se lhes deve muyto, pois, não receando trabalhos, puseram suas forças em descobrir a verdade, tirando a névoa e véo, que empidem os humanos entendimentos no prefeito conheçi- mento delia, e, o que mais he pera arrecear, sugeitarse á opiniam de tantos e tam diversos pareçeres. E verdadeira- mente que se os que vivemos aos pasados devemos muyto por seus trabalhos se endereçarem a nosso proveito, não podemos negar esta obrigaçam e divida ao doutor Garcia d'Orta, cuja curiosidade e trabalhos neste livro se vê cla- ramente quanto proveito e fruto o curioso leitor, que com animo repousado e despido da mordaz emveja os quiser ler, alcançará. Forçe também a autoridade do autor, aos que este seu livro lerem, ter as cousas delle na conta e estima que ellas mereçem, pois sam de homem, que, do principio da sua edade até autorisada velhiçe, nas lettras e faculdade da mediçina gastou seu tempo com tanto trabalho e diligencia, que duvido achar na Europa quem em seu estudo lhe fizesse vantagem. Saindo ensinado nos princípios de sua faculdade das insignes Universidades de Alcalá e Salamanca trabalhou de comunicar o bem da çiençia, que nas terras alheas tinha alcançado, com sua própria pátria, lendo nos Estudos de Lisboa por alguns annos com muyta deligençia e cuidado, e exerçitandose na cura dos doentes até vir a estas partes da Asia, onde por espaço de trinta annos, curando muyta deversidade de gentes não somente II na companhia dos viso-reys e governadores desta oriental índia, mas em algumas cortes de reis mouros e gentios, comonicando com médicos e pessoas curiosas, trabalhou de saber e descobrir a verdade das medeçinas simples, que nesta terra naçem, das quais tantos emganos e fabulas não somente os antigos mas muytos dos modernos escreveram: e o que elle por tantos annos e por tam diversas partes al- cançou, quis que o curioso leitor em huma ora, neste seu breve tratado, visse e entendesse; o qual teve começado em linguoa latina, e, por ser mais familiar a matéria de que escrevia, por ser enportunado de seus amigos e familiares pera que o proveito fosse mais comonicado, detriminou escrevello na lingoa portugueza a modo de dialogo, e isto causa, algumas vezes, apartarse da matéria mediçinal e tratar de algumas cousas que esta terra tem dinas de serem sabidas. Não pos seu trabalho em estillo elegante, nem em palavras reitoricas aprazíveis ás orelhas, tratou puras ver- dades com puro estillo porque isto só á verdade basta. Teve na empresam alguns erros por faltar o principal empresor e ficar a obra em mãos de hum homem seu companheiro, que não era ainda mui destro na arte de emprimir, e pouco corrente no negocio da empresam. Receba pois o discreto leitor o fruto que desta orta de simpres e fruitas da índia o doutor Garcia d'Orta lhe offereçe pera que, satisfazendo com o animo grato a seus trabalhos, tenhamos ousadia, seus ami- gos, de o emportunar pera que em cousas maiores e de mais quilates se ocupe. Em Goa aos dous dias dabril de i563 annos. PRAESTANTISSIMO DOCTORI THOMAE Roderico, in Gonimbricensi Academia medicorum primo Dimas Bosque, medicus valentinus S. P. D. Simplicium medicamentorum originem et facultates arti- ficiose Dyoscorides Anazarboeus descripsit, sed Grcecorum more gríeca brevitate usus, plantarum historiam alioqui amplissimam, obscuram fecit, et earum virium cognitionem obscura dicendi norma difficilem reddidit. Copiose etiam Galenus, sed multa in multis desiderantur, si recte quas de ipsis scripsit, contemplemur, aut qu£e ab ipso incógnita relinquantur, aut quia earum vires index omnium rerum tempus non adhuc demonstraverat. Ara- bum relinquamus doctrinam, allucinantur enim passim in simplicibus describendis, et ita rem hanc tractantes in limine cespitant, ut vix ex eorum dictis certum aliquid coUigi pos- sit, cui et nostram fidem et eegrorum salutem committere valeamus. Multa nostra tempestate multi scripserunt, sed de iis quas in orientali índia nascuntur hactenus incógnita, nunc autem lusitanorum navigatione notissima figmenta narrant ridicula. Sunt qui ebur fossile dicant, alii verum non reperiri: cúm tanta ejus in hac regione copia sit, ut In- victissimus Lusitanorum et Indiarum Rex Sebastianus non regife domus solum summa fastigia (ut de Apoline dicebat Ovidius) tegere possit, sed amplissimam civitatem ex niti- dissimo ebore construere valeat. Alii de espodio diversa di- cunt de ipsius natura inter se disceptantes, cúm inter nos notissimum sit, et ingentem ejus quantitatem ex insulis Ma- luchiis quotidie videamus, et parem copiam in montibus nobis vicinis reperiamus, in quo cuncta qufe de ipso scri- pta sunt, lucidissime discernuntur. Omitto qucG de radice Giníe dicunt in altissimis monti- bus nasci, et a ferocissimis animalibus venenatisque ser- pentibus custodiri. Nulla enim Ginas regionis in littoribus pars reperitur, quíe hac radice non sit referta, sed dis- tantia loci et incognitíe regionis ignorantia facile viros i3 alioqui doctissimos a manifestissimis erroribus et ridicu- lis fabulis excusabit; nam simplicium historiam depingere volentes herbas nascentes intueri debent, adolescentiam earuni contemplari, et florum ornatum atque varietatem respicere, et tandem maturitatis tempus cognoscere, ut diversas ipsarum mutationes per íetates inteliectas pos- sint inter veritatis limites collocare: quod ego de te intel- lexi, doctor amplissime, cúm in florentissima Gonimbricensi Academia medicce facultatis praíceptis, te docente, operam dabam; curabas enim agrestes herbas ex silvestribus mon- tibus in domesticum hortum deduci, ut ipsas nascentes, adolescentes, floribus refertas, et tandem maturas, cognosce- res: te etiam in iis perpetuum habui príeceptorem-, et quid- quid in Apolinea facultate et morborum curatione boni na- ctus sum, tibi acceptum referam-, et cúm in hac regione doctorem Garciam ab Horto, summa mihi familiaritate conjunctum de simplicibus scribentem reperissem, ut librum tu£e comitteret inter doctos tutellíe monui, quod ipse liben- ter fecit. Sciebat enim,, prudentissimus senex, te nunc in Europa medicorum omnium esse patronum, et tuam erga doctos benignitatem non ignorabat; adde quod tuum in di- gnoscendis simplicibus, et eorum viribus et facultatibus dis- cernendis studium ac diligentiam millies narrabam. Eia igi- tur, praestantissime doctor, audeat liber tuo clipeo muni- tus, et tanti viri auctoritate fríetus inter doctos procedere, Zoilum non timens cunctas Europíe Academias peragrare, ut Indiíe fructus et simplices medicinas sincera veritate de- pictas medica recipiat juventus. Vale. Go^ primo nonis Aprilis. AD GARCIAM AB HORTO MEDICUM APUD Indos, doctoremque clarissimum, epigramma Thoma Caiado auctore. índia quos fructus, gemmas, et aromata gignat, Garcia perscribit Dortius illa brevi. Hoc opus, ó mediei, manibus versetur ubique, Quod veteres olim non valuere viri. Multa quidem vobis, per quíe medicina paratur, Occurrent, tenebris quge latuere diu. . Rarus honos, doctor, tantas aperire tenebras! Plinius es terris atque Dyoscorides. Qui, quamvis ausi magnis de rebus uterque Scribere, judicio cedet uterque tuo. Namque potens herbis, toto Podalirius orbe, Diceris, et vera laude parare decus. Forsitan et quasras, cur non sermone latino Utitur, ó lector; consulit indocili. Floret utraque nimis lingua, cúm postulat usus, Excellens medicus, philosophusque simul (i). Nota (i) Duas palavras apenas, ácerca das pessoas, cujos nomes figuram nos documentos de introduccão. O «conde viso-rey», que assignou o alvará de privilegio para a impres- são dos Colóquios, foi D. Francisco Coutinho, terceiro conde do Re- dondo, vigésimo governador da índia e oitavo com o titulo de vice-rei. i5 Depois de ter sido capitão de Arzilla, passou á índia no anno de i56i, e tomou posse do governo no mez de setembro d'esse anno. Morreu em Goa aos 19 dias do mez de fevereiro do anno de 1564 (Cf. Couto, Asia, dec. vii, liv. x; de Couto parece deduzir-se que elle foi segundo conde do Redondo, mas a Historia genealógica dá-o como terceiro). O licenceado Aleixo Dias Falcão, «desenbargador da casa da supri- caçam», que viu os Colóquios e os deixou correr, era um dos dois primeiros inquisidores que passaram á índia; o outro chamava-se Francisco Marques Botelho. Estes dois canonistas e letrados foram na armada do anno de i56o, juntamente com o primeiro arcebispo de Goa, D. Gaspar. Com elles entrou a inquisição nas terras da Asia, porque, se alguns annos antes a bulia havia sido lida no púlpito da sé de Goa, pelo bispo D. João de Albuquerque, parece que se não applicavam todas as suas disposições — todas as sustancias da santa inquisição, como in- genuamente diz Gaspar Correa. Aleixo Dias Falcão ficou muito tempo pela índia, pois do Livro vermelho da Relação de Goa consta, que elle prestou ali um juramento a 3o de abril do anno de 1572. (Cf. Couto, Asia, VII, IX, 5; Lendas da índia, iv, 294; Archivo portugue:{- oriental, fase. 5.°, parte 11, p. 842, Nova Goa, i865). De Martim Atibnso de Sousa, o amo e amigo do nosso naturalista, já dissemos o sufficiente na Vida d'este. Bastará agora notar, que de- pois de voltar da índia foi senhor de Alcoentre e de Tagarro — os titulos que lhe dá Garcia da Orta. D. Antonio Caetano de Sousa diz que elle comprou o senhorio de Alcoentre ao marquez de Villa Real, e prova- velmente o de Tagarro andava annexo a este, pois vemos o seu filho, Pedro Lopes de Sousa, herdando os dois (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo', p. 65 a 84; Historia geneal. da ca:fa real portuguesa, xii, parte 11, i io5 e 1 109). O licenceado Dimas Bosque, medico valenciano, foi para a índia — ao que parece — com o vice-rei D. Constantino de Bragança; pelo menos acompanhou-o nas suas expedições, e era o único medico na grande armada com que este vice-rei passou a Jafnapatam, na ilha de Ceylão. Pelos annos de i56o ou i56i intervinha elle officialmente nos negócios da sua profissão, pois vemos que D. Constantino decretára algumas modificações na pauta dos preços das drogas e medicamentos, depois de tomar «verdadeira informação com o licenceado Dimas Bosque». E no anno de i562 é intitulado «fisico mór» na carta de arre- matação de uma pequena ilha no rio de Goa a velha. De Dimas Bosque, dos seus trabalhos scientificos, e da sua ilha, teremos de fallar mais largamente em outras notas. (Cf. adiante o Colóquio das cousas novas; Jorn. de pharm. e de med. da índia portuguesa, n.° 7, 1862; Archivo português -oriental, fase. 5.°, parte 11, p. 5o5 e 877). O Thomce Roderico, a quem Dimas Bosque dirige a sua epistola latina, era sem duvida o bem conhecido professor, o dr. Thomaz Ro- \ 16 drigues da Veiga. Havia-se doutorado na universidade de Salamanca, onde obteve por opposição ou concurso uma cadeira de medicina; e foi depois chamado a leccionar na de Coimbra, sendo ali durante muito tempo lente de prima da faculdade de medicina. Esta identifi- cação de pessoas já vem apontada pelo erudito e minucioso Leitão Ferreira (Cf. F. Leitão Ferreira, Not. chron. da universidade de Coim- bra, p. 522, Lisboa, 1729; veja-se também Barbosa Machado, Bibliotheca lusitana). Thoma Caiado, o auctor do Epigramma, devia ser um cidadão de Goa, que por aquelles tempos gosava da fama de bom latinista. Diogo do Couto, descrevendo a entrada triumphal de D. João de Cas- tro em Goa, depois de levantado o cerco de Diu, diz o seguinte : «Posto tudo em ordem, abalou o Governador do caes em meio do Capitão e Vereadores; e chegando á porta do muro que se rompeu, achou hum cidadão, chamado Thomé Dias Cayado, que lhe fez huma falia em La- tim mui eloquente e elegante, toda em louvor da vitoria que lhe Nosso Senhor deo dos Capitães de El-Rey de Cambaya, com que toda a ín- dia ficava segura, e fora de receios, louvando-lhe sua prudência, segu- rança e presteza». Parece-me licito admittir, que este fosse o auctor do Epigramma, em vista da concordância de nome e de predicados litterarios (Cf. Couto, Asia, vi, iv, 6). Reservámos para ultimo logar o grande Luiz de Camões, de cuja pessoa e vida nada será necessário dizer, por demasiado conhecidas. Devemos, no emtanto, explicar brevemente os motivos que nos leva- ram a adoptar a lição que damos da sua Ode. Como é geralmente sabido, foi esta a primeira composição de Ca- mões que se imprimiu; e, do mesmo modo que o resto do livro, saiu mutilada por aquelle aprendiz, « que não era ainda mui destro na arte de emprimir». Se os erros de imprensa eram graves na prosa de Orta, eram muito mais graves no verso, e em versos do Camões. A Ode re- clamava pois urgentemente algumas correcções. Mas quando de novo saiu impressa (1398), não veiu simplesmente corrigida, veiu profunda- mente alterada. E esta nova forma, com ligeiríssimas modificações, tem-se reproduzido nas successivas edições até ás mais recentes. Se nós hoje tratássemos de uma nova edição do Camões, teríamos de examinar uma questão interessante, procurando saber, se as alterações são devidas ao próprio Camões, como dá a entender Manuel de Faria e Sousa. IS'este caso, e só n'este caso, conviria adoptar a lição das edições de 1598 e posteriores. Mas não se provando — o que julgo difficil provar — que as emendas são do poeta, é claro que se deve preferir a Hção de i563, a qual, alem de ser a primeira, é superior á outra em muitos pontos. Não tratamos, porém, de uma edição do Camões, e sim de uma edi- ção dos Colóquios; e portanto não tivemos de examinar miudamente 17 o valor e supposta procedência das variantes. Unicamente nos com- petia reproduzir o que está no livro de i563, emendando pura e sim- plesmente os erros, que fossem claramente typographicos. Estas emen- das são pouco importantes, e duas apenas interessam o sentido da phrase; uma é no verso: Que o temido Heitor matar podia o qual vae impresso : Que se o temido Heitor matar podia como requer o sentido, e com vantagem para o metro; a outra é no verso : Olhai que nos obrigua e claramente deve ser, como agora se imprime : Olhai que vos obrigua. As restantes emendas não merecem ser notadas. A Ode sáe pois como a encontrámos na primeira edição dos Colóquios; e como já saiu — salvas differenças orthographicas — em um interessante folheto, tira- do n'um pequeno numero de exemplares fA Ode de Lui^ de Camões ao Conde do Redondo, restituída á sua primitiva lição, Lisboa, 1884). Comquanto não seja este o logar próprio para examinar todas as variantes introduzidas na lição de iSgS e posteriores, ha uma que me- rece ser notada, porque é curiosa. Não ha interesse particular em saber por que rasao substituiram medica policia a medica noticia, nem porque chamaram a guerra sanguinosa em vez de polvorosa. Mas não succede o mesmo com o verso: Taprobanico Achem, que o mar molesta Quem emendou este verso, fosse quem fosse, teve o louvável in- tento de evitar um erro de geographia ao Camões. Taprobana era a ilha de Ceylão, Achem era em Sumatra; dizendo taprobanico Achem, o nosso poeta confundia Ceylão com Sumatra — erro grave. Foi de certo este o motivo que levou a substituir áquelle o duro verso : ^ Taprobano ou Achem, que o mar molesta. Mas quem fez esta emenda, não reparou em que o erro era natu- ral, e Camões tivera n'este ponto muitos e muito bons companheiros. i8 É certo que a Taprobana dos antigos gregos se deve identificar com a ilha de Ceylão; e é certo que o poeta fez correcta e claramente esta identificação nos Lusíadas. Não talvez na primeira estancia, onde Taprobana tanto pôde ser Ceylão como Sumatra, pois os portuguezes passaram além de ambas; mas na estancia 5i do canto x, quando diz: A nobre ilha também de Taprobana, Já pelo nome antigo tão famosa, Quanto agora soberba e soberana Pela cortiça cálida, cheirosa. e de um modo bem explicito na estancia 107: que Taprobana (Que ora he Ceilão) defronte tem de si. Tudo isto é assim ; mas, por outro lado, temos que a Taprobana foi muitas vezes identificada com a grande ilha de Sumatra. Nos últimos tempos da idade-media e no correr da renascença, houve sobre este ponto graves duvidas. Nos Colóquios encontraremos vestígios d'essas duvidas, n'esta phrase singular a propósito de Ceylão: «que alguns di- xeram ser Taprobana ou Çamatra». E a opinião de que Taprobana era Sumatra, foi corrente entre viajantes, como Nicolo di Conti; entre car- tographos, como fra Mauro; entre os mais eruditos geographos, como Sebastião Munster, Ortelius e Mercator, para citarmos unicamente os mais conhecidos. E pois explicável, que o Camões tivesse um momento esta opmião, e escrevesse taprobanico Achem, embora mais tarde se encostasse ao parecer de João de Barros, e o significasse claramente nos Lusíadas. O verso, tal qual o deixamos, não é portanto desdouro para o nosso erudito poeta, e é uma prova interessante da sua hesitação em um ponto controvertido. COLÓQUIO PRIMEIRO, EM QUE SE INTRODUZ O DOCTOR RUANO, MUITO CONHECIDO DO auctor em Salamanca e em Alcala, o qual vem á índia com hum seu cunhado, que he feitor de huma náo, e nam vem qua por mais que por saber das mézinhas da índia e de todolos outros simples que nella ha, e como chegou a Goa e ouvio nomear o autor, co- nhecendose ambos, vay pousar com elle e decraralhe sua enten- çam, e o autor lhe responde. INTERLOCUTORES ORTA, RUANO. ORTA Pois que já temos praticado na vida que fizestes depois que nos apartámos do estudo, e porque causa viestes á ín- dia, será razão que me digais se ha alguma cousa em que vos eu possa servir, porque desdagora me aperceberey pera isso. RUANO Saiba que posto que vim qua porque tenho parte nesta náo em que veo meu cunhado por feitor, bem podéra escu- sar com a sua vinda delle a minha a esta terra, mas porque tenho grande desejo de saber das drogas medicinais (as que chamão lá em Portugal de botica) e destoutras mézinhas sim- ples, que qua ha, ou fruitas todas, e da pimenta, das quais cousas queria saber os nomes em todas as linguas, assi das terras donde nascem e dos arvores ou prantas que as criao, e assi queria saber como usão delias os físicos indianos, e também queria saber dalgumas outras plantas e frutos desta terra, ainda que não sejão medicinais, e assi dalguns custu- mes desta terra, ou cousas que nella acontecerão, porque todas estas cousas ham de ser ditas na verdade, vistas per vós ou per pessoas dinas de fé. 20 Colóquio primeiro ORTA Em todas estas cousas vos servirey e vos direy a verdade, mas temo que as cousas que eu dixer nam sejão dinas de notar, porque a hum tam grande letrado, e que tanto soube no especulativo nam lhe contentão senam raras cousas. RUANO Se ellas contentárao a vossa mercê contentarão a mim, e já pode ser que elle, porque as bem sabe, não as estime, e eu, porque as não sei, telasei em muito preço como he razam: porque alguns físicos que de qua forão a Espanha, nam me souberão dar razam disto, nem satisfizerão a meu intendimento : e sabey que quanto comvosco falo, tudo ey de escrever, que pera isso tenho hum livro e nelle escritas as perguntas pelo abe. ORTA Digo senhor que pois vós quereis saber com vossa curio- sidade o pouquo e mal rezoado que qua soube, eu volo di- rey de manhãa por diante, e pois a nossa amizade he tam grande e tam antigua, o que vos diser ha de ser com protes- taçam que o que nam for bem dito, sem nenhuma adula- çam nem lisonja mo digais, e, com estas condições, prometo de vos servir e dizer o pouquo que souber, e logo vos ey de dizer as cousas que sey bem sabidas e as em que tenho duvida, com juramento de falar muyta verdade. RUANO Nisso, como vos digo, receberey muita mercê, e dormi- remos, se fordes servido, mas nam sey se poderey pollos desejos que tenho de perguntar pella manhãa (i). Nota (i) Garcia da Orta introduz nos seus Colóquios vários personagens reaes, como é sem duvida alguma o licenciado Dimas Bosque, como são provavelmente a sua creada Antónia, Paula de Andrade, o milanez Introduccão > 21 André e outros. O dr. Ruano, porém, deve ser um personagem ficticio. Dada a fórma dialogada, e sem examinar agora se a escolha d'essa forma foi feliz, Orta necessitava de um interlocutor que o interrogasse ; e não só o interrogasse, mas lhe offerecesse objecções, e lhe formulasse duvidas. D'ahi a escolha de um medico, formado como elle em Sala- manca e Alcalá, tendo toda a sciencia dos livros, e tão desejoso de a completar pelo resultado das observações feitas no Oriente, que a sua impaciência lhe tirava o somno. Ruano representa-nos, pois, Garcia da Orta, como este chegou á índia, munido de toda a erudição clássica e universitária, sabendo o que tinham escripto Dioscórides, Plinio e os auctores modernos, forte nas suas affirmações, e um tanto respeitoso ainda em frente de alguns dos seus erros : o Orta dos Colóquios representa-nos a transformação operada por perto de trinta annos de observações directas. Como eu dizia na sua Vida: «Os dois personagens são os dois caracteres reuni- dos em Garcia da Orta, as duas faces do seu espirito postas em frente uma da outra». Este modo de ver parece-me ainda hoje exacto; e não só eu não tenho noticia alguma da existência de um dr. Ruano na índia, como a leitura de todo o livro me dá a impressão de um personagem creado e inventado para as necessidades da exposição e da controvér- sia (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, p. 299 e seg., Lisboa, 1886). COLÓQUIO SEGUNDO DO ALOÉS INTERLOCUTORES ORTA, RUANO. RUANO Já me parece tempo pêra responderdes ás minhas per- guntas, e porque a ordem aproveita muito á memoria será bem começar pello a b c, e alguns nomes que falecerão alembrarmoeis. ORTA Isso que dizeis da ordem do alphabeto acho nam ser bom, e a causa he porque pôde acontecer as cousas ditas ao principio serem pouquo proveitosas ou muito notas, ou sem gosto pera serem lidas; quanto mais que sempre ouvi dizer que os peccados mais graves se havião primeiro de confes- sar aos confessores, e as milhores rezões se havião de dizer primeiro quando leião algumas lições, e que quando se ha- vião de pedir algumas cousas, as mais necessárias havião de ser as primeiras. RUANO Antes senhor (salvo milhor juizo) me parece o contrairo em muitas cousas, porque nos princípios das orações nam se hão de mover os affectos e vontades tanto como nas outras partes da oraçam, e mais porque o fim fica mais na memoria que as cousas, que primeiro se dixerão, nem os que lêem hão de dizer a doctrina muy sotil no principio, senam prometer de a dizer, pera fazer os ouvintes atentos. ORTA Ainda me nam satisfizestes ao que vos dixe, e he que se este livrinho quizerem alguns imprimir, ou por zombar de mim, ou por descobrir meus erros e minhas mal compostas razões, e lendoo alguma pessoa e nam achando no principio 24 Colóquio segimdo cousa de que goste, sem mais esperar razão, dará este livro ao quarto elemento, e dirá em mim mil pragas e vitupérios, e, o que pior he, farão contra mim invectivas-, e outros, por me não terem por digno de tanto, farão trovas e outras cousas mais baixas. RUANO As vossas cousas nam tem outro mal pera os mordaces leitores que serem verdadeiras e muitas nunqua sabidas dos físicos, que de qua forão a Espanha, quanto mais aos fí- sicos da Europa, porque já perguntey em Espanha a físicos que qua andarão, e não me deram mais razam que a que lá sabiamos todos, e destes homens alguns erão doctos, senão o tempo que andarão qua trazião mais os pensamentos em enriquecer, que em filosofar', porque, como diz o filosofo*, que ainda que filosofar he milhor em si que enriquecer, porém que ao necessitado milhor he enriquecer; e porque estes o serião, quizerão primeiro enriquecer que filosofar; e porque vos tire deste arreceo, digo que este trabalho vosso quero eu pera mim só, e pera muito poucas pessoas outras a quem o direy em Espanha (levandome Deus a salva- mento), e serão alguns condiscípulos nossos, que vos não pesará de o saberem, e alguns discípulos vossos, tam doctos, que assi vós, como eu, poderemos aprender delles, porque elles se derão pouquo á pratica e muito ás escholas, e vós e eu fizemos o contrairo, e o que me doy mais d'isto he que não tendes vós nem eu mestres ou preceitores a quem eu possa mostrar vossos trabalhos nem em Salamanca nem em Alcalá, porque todos são já mortos e desterrados longe de Espanha : e tornando ás nossas perguntas me diga do aloés os nomes em todas as linguas que sabe e como se faz, e qual é o milhor, porque o desta terra louva muito Plinio e Dioscórides**. * Aristot. Topic, libro 3 (nota do auctor). ** Plin., libr. 27, cap. 4; Diosc, libr. 3, cap. 21 (nota do auctor). Do Aloés 25 ORTA Do aloés ha poucas cousas que dizer que sejão notáveis, e porém fazervosey a vontade, e digo que o aloés ou aloa he latino e grego, e os Arábios o chamao cebar, e os Gu- zarates e Decanins areá, e os Canarins (que são os mora- dores desta fralda do mar) o chamao catecomer, e os Cas- telhanos acibar, e os Portuguezes a^evre: fazse de çumo de huma herva depois de seco, e he chamada em portuguez herva-babosa, da qual herva ay muita quantidade em Cam- baya e em Bengala e em outras muitas partes (i), mas a de Çocotora he muito mais louvada, e he mercadoria pera a Turquia, a Pérsia e Arábia, e pera toda a Europa; e por isso o chamam aloés çocotorino; e dista esta ilha ou está apartada das portas do estreito 128 léguas, por onde tanto se pôde dizer da Arábia como da Etiópia, pois nas portas do estreito huma banda he Arábia e outra Etiópia: e não he isto onde se faz cidade, como diz Laguna, senão he toda a ilha, a qual não tem cidades, senão povoações com muito gado; e não se ladrilha o chão pera colher a lagrima que cáe, porque nem he cidade nem na ilha ha tanta policia, nem se falsifica polia muita abundância que nella ha desta herva, senão polia pouca curiosidade que os negros desta terra tem em não apartar as hervas que com esta herva-ba- bosa vem misturadas, e por isso hum não parece tam bom como outro: e também não creais que he milhor o de cima que o do meio, e peor o do fundo, nem he cheo de area, si se faz com diligencia, porque todo he bom ; nem se falsi- fiqua com goma arábica e acácia (como dizem Plinio e Dioscórides), porque ha nesta terra pouca goma e acácia ou, por fallar verdade, nenhuma, segundo mandey saber per pessoas dignas de fé que isto me contarão; e já pode ser que este mesmo a:{evre se falsifique em outras terras (2). RUANO Como soubestes que o de Çocotora he melhor, porque alguns escriptores o chamão suco-cetrino? 26 Colóquio segundo ORTA Não faz o nome ao caso. RUANO Como sabeis que sabem descernir hum do outro os Pér- sios, Arábios e Turcos em Ormuz, onde o levão a vender, como dizem? ORTA Alem da fama comum o soube de hum rico mercador e bom letrado, a sua guisa, que sérvio de secretario aos go- vernadores, chamado Coje Perculim (3), ao qual como hum dia lhe perguntasse como se chamava em turco, em pérsio e arábio, me dixe que cebar se dizia em todas estas linguas e, sem lhe mais perguntar, me dixe que o melhor de todos he o de Çocotora, e que o avia em muitas outras partes da índia, donde o levavão a Ormuz e a Adem e a Gida, e dahi por terra o levavão ao Cairo, donde o levavão a Alexandria, porto do Nilo, e que facilmente conhecião os mercadores qual era o de Çocotora, e qual o de Cambaya e das outras partes, e que valia o de Çocotora quatro vezes tanto como o das outras partes. E despois disto fui ver ao Nizamoxa, que he um rey dos mais grandes do Decam, chamado o Nizamaluco (4), alem de ser letrado pello seu modo, sempre tem físicos da Pérsia e de Turquia, a quem dá grandes rendas, dos quais soube isto mais perfeitamente: e mais me dixerão que se descernia o de Çocotora, porque nelle as partes se juntavão bem humas com outras, e no outro a'{e- vre não fazião perfeita mixtão, porque o çumo era de diver- sas hervas, e que isto era cousa muyto conhecida, e que o próprio rey, seu amo, o tinha sempre trazido de Çocotora, de modo que não são duas, nem tres especias, como dizem os doctores, senão huma só, e isto entendey, senão quereis que o logar varie as especias: somente ay bom e mao, scili- cet, sofisticado, de modo que nem as hervas são diversas em bondade, porque a diversidade na bondade não faz que as partes não se misturem bem, pois são de huma mesma es- pecia, e chamarem alguns doctores siico-cetrino não he muito, Do Aloés 27 porque não olharão mais que á cor, mas a verdade he que se chama assi. RUANO Pois que diremos a Plinio e a Dioscórides* que dizem que o milhor de todos he o da índia, e dizem outros que o de Alexandria ou da Arábia? ORTA A isto vos respondo que não entendais simplesmente que o trazido da índia he o milhor, senão acrecentardes que o tragão á índia primeiro de Çocotora, porque, como já vos dixe, também levão de Cambaya e Bengala a^evre a Ormuz e a Adem, e a Judá (como nós, corrompendo o nome, a cha- mamos, porque elles a chamão Gida), e com tudo isto sem- pre o levão destoutras partes, e, como digo, o de Çocotora he milhor, e levão de todo, porque quem diabos compra, diabos vende. RUANO Logo milhor diz Mesué que ha hum trazido de Çocotora, e outro da Pérsia, e outro da Armênia, e outro da Arábia? ORTA Não diz Mesué milhor, mas diz menos mal que os outros : porque verdadeiramente o que de qua vay pera Portugal, que eu o vejo todo, he trazido de Çocotora, e quando lá os vossos doctores dixerem de Alexandria trazido, entendey que nos annos passados se levava muita quantidade de dro- gas a Ormuz e dahi a Bácora, e dahi as levavão a Adem e a Gida, e dahi, por terra, em cáfilas de camelos, o levavão ao Suez, que é cotovelo do mar, e a Alexandria, porto do Nilo, donde vão ter nas galés de Veneza pera se venderem e comunicarem a toda a Europa, e não porque em Alexan- dria ouvesse a^evre pera fazer caso delle (5). * Plin., lib. 24, cap. 4; Diosc, lib. 3, cap. 4 (nota do auctor). O cap. de Dioscórides está errado; deve ser 21,-22 na edição de Sprengel. 28 Colóquio segundo RUANO Se não ay em Alexandria a^evre, também dizeis que não ha ruibarbo: logo mal dizia aquelle escritor que não faria a huma pessoa purgar nem desopilar quanto ruibarbo ha em Alexandria ? ORTA Entendeo esse doctor quanto ruibarbo vem das outras partes a Alexandria. RUANO Àcerca dos nomes estou hum pouco duvidoso, e não de Mateo Silvatico, que o chama saber ou canthar, ou rea- nial, porque este podia errar, pois não era arábio^ mas que diremos a Serapio, que, sendoo, o chamou saber? ORTA Não o chamou senão cebar, e depois, corronpendose por tempos o nome, se chamou saber: por onde não tem culpa senão o traductor, ou os tempos, que gastão tudo^ mas no arábio está cebar. RUANO Acerca dos indios he usado? ORTA Acerca dos físicos da Pérsia, Arábia e Turquia se usa desta mézinha, porque sabem elles de cór Avicena, a que chamão elles Abolahi e a seus cinquo livros Canum, e sa- bem Rasis, a quem chamão Benzacaria, e a Halirodoam e a Mesué, posto que não he este de que usamos, e tam- bém tem todas as obras de Hypocras e Galeno, de Aris- tóteles e de Platão; posto que as não tem tão inteiras como na fonte grega (6): e os físicos gentios da índia também usão delle em purgas e lombrigas e coliros, e também quando quierem encarnar algumas chagas, e tem pera isto nas suas boticas huma mézinha chamada mocebar, feita de a^evre e mirra, á qual elles chamam bola, e desta usam muito para curar cavalos, e para matar os bichos das chagas, e por tanto nam he muito chamarse ácerca de nós o aloés ruym Do Aloés 29 cabalíno, como escreve um moderno doctor, dizendo que o mais ruym se gasta ácerca dos albeitares •, mas de meu voto he que nem pera curar bestas nem homens se gaste nem se use do aloés chamado cabalino, senão do çocotorino; de modo que o que diz Serapiam, por autoridade de Alcamzi, se deve entender, que pera albeitaria e chagas se pôde usar com menos damno do cabalino; e mais vy qua usar a um físico gentio do gran Soldão Badur, rey de Gambaya, por mé- zinha familiar e benedicta, tomando talhadas das folhas da herva-babosa cozida com sal dentro nellas, e deste cozi- mento dava a beber oito onças com que fazia quatro ou cinquo camarás, sem moléstia nem damno algum a quem o tomava. E aqui n'esta cidade de Goa tomão desta herva pisada e misturada com leite e dão a beber aos que tem chagas nos rijs ou na bexiga, ou mejão matéria por alguma outra maneira: e he cousa muito boa pera guarecer asinha, e já nós alguns tomámos desta mezinha e achámos nos bem delia. E nós também usámos do a^evre nas quebraduras das pernas das aves, cousa bem usada dos cetreros (7), e qua na índia pera madurar os fremões, por isso nam parece dizer bem Mateolo Senes, o qual diz que a herva he mais pera ver, que pera uso de física. RUANO Todas essas cousas que dizeis não carecem de razam, e porem me dizey se probastes herva-babosa, e se vos amar- ga e cheira com cheiro forte? ORTA Lendo em Antonio Musa e em outros modernos por di- zerem que o amargar falecia á herva-babosa de nossa terra, provey esta muitas vezes, e achava muyto amargosa, e quanto era mais perto da raiz amargava mais, e nas pontas de cima sem nenhuma amargura, e com hórrido cheiro em toda, de modo que o que diz Antonio Musa que o de Ço- cotora he mais amargo, he falso; porque esta herva da ín- dia já a provey, e a de Çocotora mandey provar, e todas 3o Colóquio segundo amargam muyto: a de Espanha nam provey, se vos Deus levara salvamento, tudo podeis probar. E mais vos digo que achey em o Silvatico e em o Plateario, que todalas cousas amaras, quanto mais amaras, tanto sam melhores, excepto o aloés: e Antonio Musa parece que sente o con- trairo, e a mim me parece que diz melhor o Musa, por que o sabor amargoso preserva de putrefaçam, e faz outras operações muyto boas. RUANO Tirayme de huma duvida, se as mézinhas que levam aloés se ham de tomar em jejuum, se sobre comer, e, se sobre comer, se tardará muyto o cibo sobre ellas.'' ORTA Nam me pergunteis isso pois o sabeis lá milhor todos que eu qua hum só. RUANO Todavia quero vosso parecer, e saber a pratica que usais. ORTA Galeno manda dar 6 pirolas tamanhas como grãos de comer, e desta maneira he bom tomado pera paixões da cabeça, e Plinio* diz que he muito boa mezinha, depois de bebida, pouco espaço, se tome cibo sobre ella, e ha de ser pouco e bom. Esta também é muito boa pratica e usada dos físicos mouros d'esta terra, porque, como o aloés he mézinha débil, nam obrará se depois a natureza nam for fortificada com hum pouco de comer muito nutritivo e pouco em quantidade, como dixe, porque o possa digerir, e, fortifi- cada, faça melhor evacuação. Paulo diz que se ha de tomar em jejuum, e reprende aos que a dão depois de comer, por- que diz que corrompe o comer. Cada hum destes tem por si razões e textos e todos se podem concordar bem, e porque he questão comum se o cibo se ha com a mézinha de * Galen. ad Pat., cap. 5; Plinio, libr. 27, cap. 4 (nota do auctor). Do Aloés 3i misturar ou não: e pois o sabeis melhor que eu, escu^^o he falar nisso muito. ^ RUANO Nasce mais em logares marítimos, como diz Dioscórides? ORTA Eu andei polo sartam desta índia, mais de duzentas legoas de caminho, e em todos os logares vi esta herva-babosa. RUANO Da goma delia me dizei. ORTA Nam tem goma, senam algumas vezes, polas folhas, chora alguma agua viscosa, de que se nam usa, nem faz caso. RUANO Diz Ruelio que as pirolas de Rasis, que se dão na peste, compostas por Rufo, levão aloés e mv^ra, amoníaco, temiama e vinho; e diz o Ruelio, que porque causa estes Maumetistas havião de tirar o amoníaco e temiama e vinho, e haviam de acreçentar mais açafram? ORTA Nam VOS queria ver tam affeiçoado a estes escritores modernos, que por louvar muyto aos Gregos dizem mal dos Arábios e de alguns Mouros naçidos na Espanha, e de outros da Pérsia, chamando-lhes Maumetistas bárbaros (que elles tem por pior epiteto que quantos ha no mundo), em espe- cial os Italianos; como que os Gregos, não sam os que agora chamamos Rumes, e os Turcos, a qual gente, tam crua, e cuja e mal acustumada, persegue ao presente mais a chris- tandade que outra alguma*: e por tanto vos digo que eu não nego a mézinha de Rufo ser a que elles dizem, e ser muito boa, mas digo que as pirolas de Rasis (de que usámos) são * Preferimos conservar a phrase, incorrecta e pouco clara, a tentar a sua reconstrucção. 32 Colóquio segundo rr^to boas e por muytos esperimentadas, e o açafram se pS^Píiellas por ser mu^^to cordial e abridor, e por outras virtudes muytas que tem. RUANO Parece ser que fazeis deferença entre Rumes e Turcos, e eu tive sempre que senificavam huma mesma cousa estes nomes? ORTA Posto que a questão não he medicinal vos respondo que sam muy difterentes, porque os Turcos são os da provinda de Natolia (que antes se dizia Asia-menor), e os Rumes são os de Constantinopla e do seu emperio. RUANO Gomo sabeis isto, por livro, ou por volo dizerem algumas pessoas? ORTA Muytas vezes perguntava, andando nas guerras destes reis da índia, a algum soldado branco se era Turco, e res- pondia que não, senão que era Rume; e a outros pergun- tava se erão Rumes e respondiaome que não, senão que erão Turcos: e perguntandolhe qual era a deferença que havia antre hum e outro, diziãome que eu a não podia en- tender, porque não sabia os nomes das terras, nem a lingoa mo sabia dar a entender. E achandome em casa daquelle excellente varam Martim Affonso de Sousa (a quem eu ser- via) me amostrou a Platina, onde estava lendo na vida de Sam Silvestre, onde achámos escrito que, quando Constan- tino, leixando Roma ao Papa, se foy a Constantinopla, lhe foy dado previlegio que ella se chamáse Roma, e os dessa terra se chamasem Romeos, e diz o Platina que oje se cha- mam assi (8). RUANO Muyto folgo de ouvir estas cousas, ainda que não sejam de física: mas, tornando ao aloes^ me dizei que respondere- mos a Menardo e a outros modernos, que reprendem a Me- sué e Serapiam e Avicena, porque dizem que abre as veas Do Aloés 33 e que he máo para as almoreymas ; e porque dizem estes Arábios que, misturado com mel, purga menos; e pwque afirmam ser menos nocivo ao estômago que outras mezi- nhas solutivas, porque Menardo e estoutros dizem que não tam somente nam abre as almoreymas, antes as cerra, e que ao estômago não se pôde dizer que he menos nocivo, antes lhe faz muyto bem, e não lhe causa damno algum, e que, junto com mel, he mais solutivo que as outras mézi- nhas solutivas. As primeiras cousas prováo por muitas au- ctoridades de Galeno e outros muytos, e a segunda provão, por o mel ser solutivo, dizendo que dous solutivos purgão mais que hum. ORTA Já vos dixe que nam me obrigava a vos responder a ques- tões, que sabeis melhor em Espanha, lendo muitos que es- crevam cada dia e praticando e conferindo com muitos fí- sicos letrados, que eu qua, nam sendo aconselhado com alguém, por falta que elles e eu temos de livros. E porém respondendo o primeiro, vos digo que Antonio Musa fala neste caso como homem sem paixão, porque elle não fez homenagem a algum mestre e concede ser verdade o pri- meiro, que diz Mesué, que abre as almoreymas, e que assi o êsperimentou muitas vezes; e eu também digo, que já o esperimentey muytas vezes, causaremse grandes dores com fluxo delias. Tudo isto pode fazer o aloés por sua amargura, abrindo as veas, estimulando a virtude espulsiva-, e deste modo purga o fel do animal posto na barriga e no ombrigo, como dizem Dioscórides e Serapiam*, e, ao cerrar das veas, que provão por autoridade, respondem com lacob de Par- tibus, que restringe por fóra e abre por dentro tomado-, e isto tem muitas mézinhas, que, tomadas por dentro, tem huma operaçam, e, aplicadas por fóra, tem outras, como a ce- bolla que, por dentro, mantém, e por fóra faz chaga ulce- rando; e o segundo, que he reprehendido Mesué por dizer. * Dioscorid.j ubi sup.; Serap., cap. 201 (nota do auctor). 3 34 Colóquio segundo que purga menos com mel, vos digo que, pois ambos sam solutrvos, scilicet, o md e o aloés, o mais solutivo, que he o aloés, he remetido e enfraquecido do menos solutivo, que he o mel', e ao terceiro, em que reprendem a Mesué, por- que diz que he menos nocivo ao estômago sendo conforta- tivo do estômago, isto digo que se ha de entender que con- forta o estômago por acidente, a que os físicos chamão de per acidens., scilicet, tirandolhe os máos humores do estô- mago sem nocumento algum ou, ao menos, com pouquo; e d'esta maneira se hão de entender as auctoridades alegadas por Menardo, e os outros modernos. RUANO Em todas cousas que dixestes me satisfizestes muito bem, e muyto mais no que dizeis que, assi como nas primeiras qualidades, que sam quentura, frialdade, humidade, sequura, o remiso em grado, que he menos quente, remite e enfra- quece ao mais intenso em grado, que he mais quente: assi nas segundas e terceiras qualidades, que sam purgativa ou diurética (que he fazer ourinar), o mais forte e intenso, sci- licet, que he mais purgativo, se he junto com outro menos purgativo, he enfraquecido do menos purgativo, e assi o alocs mais purgativo, misturado com o md, que he níais fraco solutivo, faz que tudo seja menos solutivo. Daqui vem que purga hum homem mais com dez grãos de escamonea sós, que com cinquo dragmas de solutivo e uma onça de cassia-Jistola, e huma dragma de ruibai^bo, onde entra mais escamonea que os doze grãos: e isto esperimentey eu já muitas vezes, e nam sey dar outra razam senam essa que me dais. E agora me dizey se sabeis se ha aloés metalUco ao redor de lerusalem? ORTA Já perguntey isto a alguns judeus que a esta terra vieram, e diziam serem moradores em lerusalem, e alguns erão fi- lhos de fisicos, e outros erão boticairos, e todos me disse- ram ser isto cousa falsa e nunqua achada em toda Pales- tina (9) ; e por aqui faço fim ao aloés, se disto sois servido. i Do Aloés 35 RUANO Antes me fizestes no passado muita mercê ; e quero vos agora perguntar huma duvida que tenho de como tomao as pirolas e as purgas liquidas nesta terra, e quanto tempo es- tão sem comer sobre ellas; e isto por ver se os avicenistas, que nesta terra curam aos reys, tem o custume que nós lá temòs em Espanha. ORTA Digo que as pirglas tomao pclla maneira que as nós to- |tA-<. ', ^vc»^ mamos, e as purgas liquidas tomao as pella maneira que as nós tomamos, scilicet, em rompendo a alva do dia, e esíão sem comer, nem beber, nem dormir cinquo horas, e se nestas nam purgão, tomao pera confortar o estômago, per regra de Avicena*, duas dragmas de almácega delidas em agoa rosada, e esfregãolhe o ventre com fél de vaca, e põelhe pannos molhados nelle sobre o umbrigo, para ci- tar a operaçam e estimular a virtude expulsiva, se ha disso necessidade alguma; e se purgar muyto bem, passadas estas cinquo horas, bebem tres onças de caldo de galinha muyto bem temperado e outra cousa nam comem, e dormem algum espaço, e bebem alguma pouca quantidade de agoa rosada, e acabado de dormir purgão muyto bem; mais porque di- zem que se fortificou a virtude e natureza com o caldo e sono e agoa rosada, e que se fora muito o comer, que se impedira em digerir o comer, e não purgara tanto. E per- guntandolhe se faziam assi a todos os que purgavam, di- ziam que esta era a pratica comum dos fisicos letrados, e para isto não alegavam texto algum. RUANO Elles tem muyta razão no que fazem e praticam, porque O fel he solutivo per fóra mordicando a virtude expulsiva, e em nam comer galinha he texto expresso de Avicena**, * Avie. 4. primi. (nota do auctor). * " Avicen. 22Ò, trata. 2., cap. 23 (nota do auctor). 36 Colóquio segwido donde diz que convém áquelle que quer tomar mézinha, que a tome muyto pella manhãa e tarde o comer, e, passadas tres horas, quatro onças de pão com vinho e pouca agoa, e seis horas despois entre no banho, e saiase delle e estê quieto, e despois lhe dem a comer aquillo que lhe convém: este he o texto tornado em lingua portugueza, ainda que as derradeiras palavras estão na tradução do Belunense: por tanto não tem esses físicos mouros esse custume sem auto- ridade, nem carece de razam sua obra, posto que Mateus de Gadi expõe esse texto doutra maneira, e applicao so- mente à ciática^ porém (salvo milhor juizo) em muytas en- fermidades se pôde applicar. E do banho, que diz o texto, fazem o? ORTA Si fazem, mas não em o mesmo dia, senão em outro dia despois, o qual banho he de preceito aos Bramenes e Ba- neanes, e a todo o Gentio, que nenhum dia comão sem lavar o corpo primeiro, e os Mouros lavamse, estando sãos, ao menos cada tres dias (lo). RUANO Porque tomaste o cabo do texto emmendado pelo Belu- nense, vos pergunto se achaste lá verdadeira essa traduçam ? ORTA Eu quis experimentar isso muytas vezes que leia o texto pola traduçam comum, tendo Aviçena na mão em arábio: nam consentião com o que eu dizia, e, como dizia pello texto emendado com as correições do Belunense, diziamme que assi estava lá (i i). E porque se faz horas de comer, nisto não falemos mais, e acabado o jantar falaremos do Ambre. Nota (i) O aloeSy como todos sabem, é o sueco concreto de diversas espécies do género Alõe da família das Liliacece. Orta conhecia sem duvida va- rias d'estas espécies; mas nem as distinguiu, nem o podia fazer, pois Do Aloés 37 a sua distincção não foi muito clara até aos últimos tempos. Segundo informações modernas do sr. W. Dymock, a droga prepara-se na índia com a espécie Alôe abyssinica, Linn.; e na ilha de Socotora, e talvez outras regiões próximas, com a espécie Alôe Perryi, Baker (Cf. The vegetable matéria medica of Western índia, p. 823, 825, 2'' edition, Bombay, i885). Pelo que diz respeito aos nomes vulgares é o nosso auctor bastante exacto : — Os conhecidos nomes, grego àXoTÍ? e latino alôe, parecem derivar do syriaco alwai, e foram provavelmente introduzidos pelos merca- dores, que em tempos antigos traziam esta droga do Oriente para a Grécia (Cf. Sprengel, Dioscórides, 11, 5o3, Lipsiae, 1829; Clusius, Exo- ticorum libri decem, p. 243, i6o5). — «Cebar» é a transcripção correcta para o nosso alphabeto do arábico do qual, junto ao artigo, ^^.-^1, aç-cebar, veio a palavra hespanhola acibar, e as antigas designações portuguezas a^ebre e a^evre (Cf. Dozy, Glossaire des mots espagnols et poríugais dérivés de 1'arabe, 35, Leide, 1869; Yanguas, Glosario, 29, Granada, 1886; Fr. João de Sousa, Vestigios, Lisboa, i83o, a p. 84, salva a etymo- logia). — «Catecomer» é uma d'estas transcripçóes approximadas e de ou- vido — como Orta as fazia muitas vezes — de um dos antigos nomes in- dianos da planta Ghrita Kumari, do sanskrito ^ÍTTTT KuvtãrT (Cf. Whitelaw Ainslie, Matéria indica, 11, 169, London, 1826; Dymock, 1. c). — «Areá» está de certo muito alterado, mas pode talvez prender- se a ehva e elia, nomes hindis e bengalis da droga, usados também em Bombaim (Cf. Dymock, 1. c). Nota (2) A droga proveniente da ilha de Socotora foi celebre desde tempos muitíssimo remotos, se acreditarmos em uma lenda persistentemente contada pelos escriptores arábicos. Maçudi, escrevendo pelo anno 332 '0^ ix^A." da Hijra (943 J. C.) repete uma noticia, dada já no século anterior pelos dois conhecidos viajantes mahometanos, dizendo que o grande Ale- xandre, por conselho do seu mestre Aristóteles, havia estabelecido n'aquella ilha uma colónia de gregos, com o fim especial de cultiva- rem a planta que produzia a famosa droga; esta colónia prosperou e abraçou mais tarde o christianismo. O geographo El-Edrisi (1154 J. C.) dá-nos a mesma versão com ligeiras variantes. Sem acceitarmos esta informação em todas as suas partes, devemos no emtanto admittil-a, como prova da existência de um antigo fundo de população grega na 38 Colóquio segundo ilha, e sobretudo da nomeada que já então tinha o aloés d'ali (Cf. Ma- çudi, Les Prairies d'or, iii, 36, trad.-de B. de Meynard et P. de Cour- teille, Paris, 18G1-1877; Géographie d^Edrisi, i, 47, trad. de A. Jaubert, Paris, i836; H. Yule, The book of ser Marco Polo, 11, 400, 2'' edition, London, 1875; Flora dos Lusíadas, 89, Lisboa, i88b). No século de Orta, o aloés da ilha de Socotora continuava a ser considerado o melhor, sendo geralmente chamado socotorino . Thomé Pires, escrevendo a El-Rei D. Manuel (i5iG), dizia: que nascia «o muito estimado na ilha de camatora» (Socotora); que a baixo d'este estava o das «nossas parteesw (Hespanha); c que o da índia era muito mau, «que nom vali nada». Parece, porém, que o nome de socotorino se dava algumas vezes ao aloés de boa qualidade, embora não viesse da ilha. No Lyvro dos pesos, diz Antonio Nunes, que se pesava em Or- muz o nazevre çacatorino de sacatora» por um certo modo, e o «aze- vre sacatorino de dio», isto é, da índia, por um modo diverso. Em todo o caso o primeiro era o mais estimado (Cf. Carta de Thomé Pires, na Gaveta de pharmacia de P. J. da Silva (1866), p. 41; Lyvro dos pesos da Imdia, 8 e 11, nos Subsídios de Felner, Lisboa, 1868). Nas suas correcções a Laguna, Orta falia com bastante conheci- mento de causa. Socotora não era cidade, nem tinha cidades; e — se- gundo referem Duarte Barbosa e Gaspar Corrêa — os habitantes da ilha, conservando uns leves vestígios de christianismo, mas sujeitos aos árabes de Fartak, foram encontrados pelos portuguezes em um estado quasi selvagem. Também a asserção de Laguna, de que se ladrilhava o chão para colher as lagrimas que caíam, não parece ser exacta. De resto, esta asserção era uma simples reminiscência de Plinio : ergo pavimentandiim iibi sata sít, censent, ut lacryma non absorbeatur (xxvn, 5). E certo, todavia, que a cultura foi antigamente bastante cui- dadosa; e o viajante Wellstead ainda viu em Socotora (i833) os restos dos muros, que em tempos remotos cercavam as plantações de Alõe (Cf Livro de Duarte Barbosa nas Not. para a hist. e geogr. das na- ções ultramarinas, 11, 263, Lisboa, 1867; Lendas, da índia por Gaspar Corrêa, i, 684, Lisboa, i858; Fliickiger e Hanbury, Pharmacographia, 618, London, 1874). Nota (3) Este Khuája Perculim foi um dos primeiros conhecimentos que Orta fez no Oriente. Chegando á índia em setembro do anno de i534, o nosso auctor encontrou-se com elle logo em dezembro, em Baçaim, quando Bahádur Schah cedeu aquellas terras a Nuno da Cunha. Do tratado de cedência se vê, que estavam presentes «coje perculim, mouro parsio, e marcos fernandes, que servião de linguoas» (Cf. Felner, Subsídios, i38; Garcia da Orta e o seu tempo, 92). Do Aloés 39 Nota (4) Sobre o Nizamaluco vcjam-se as notas ao Colóquio x e outros. Nota (5) O nosso escriptor fez n'esta passagem, e já na pagina anterior, uma certa confusão entre os dois caminhos geralmente seguidos pelos mercadores, a qual em parte emenda em um dos Colóquios seguintes. Um d'esses caminhos era o da navegação por Hormuz e Golfo Persico até Bassora, d'onde as caravanas tomavam para o norte, em direcção a Trebisonda, ou a Constantinopla; ou seguiam por Damasco aos portos do Mediterrâneo, Acra, Beyrut, Tripoli da Syria e outros, parte dos quaes Orta conhecia e menciona n'este ou nos seguintes Colóquios. O outro caminho era o da navegação pelo mar Vermelho a Suez, d'onde as mercadorias seguiam em cáfilas para o Cairo, descendo depois o Nilo até Alexandria. Os portos de escala mais frequentados n'esta ultima navegação eram Aden, fóra do estreito, e Djidda na costa da Arábia, que os nossos portuguezes chamavam geralmente Judá, e Orta chama Gida. Este era um ponto importante que Lopo Soares preten- deu tomar; e ainda no século passado, quando Niebuhr o visitou, havia ali um notável movimento commercial. A confusão de Orta deve re- sultar mais de inadvertência e da sua habitual desordem de redacção, do que de ignorância, pois ambos os caminhos eram bem conhecidos dos portuguezes (Cf. Gaspar Corrêa, Lendas, 11, 494; Niebuhr, Voj-age en Arabie, i, 217, Amsterdam, 1776; João de Barros, Asia, i, viii, i; An- tonio Galvão, Tractado dos diversos e desvairados caminhos, etc, Lis- boa, i563). Nota (6) Os Hakims, ou médicos mussulmanos, da corte de Ahmednagar, co- nheciam naturalmente as obras dos seus celebres correligionários Abu Ali Huçein ben Abdallah ben Sina, Abu Bekr ben Zakaria er-Rási e Ali ben Redhwan; e familiarmente chamavam ao primeiro Abu Ali, e ao segundo Ben Zakaria. A phrase de Orta sobre Mesué é um tanto obscura. Posto que exis- tissem dois Mesués, não é provável que os Hakims se servissem das obras do primeiro, das quaes — ao que parece — só escaparam fragmen- tos. Deviam antes possuir as de Maswijah el-Mardini, o mesmo que Orta conhecia e foi celebre cm todas as escolas da Europa. As diffe- renças, notadas por Orta, deviam pois ser simples discrepâncias entre 40 Colóquio segundo os códices arábicos e as versões ou compilações latinas. Isto é tanto mais provável, quanto a personalidade d'este Mesué de Maridin é um tanto nebulosa, e a genuinidade das obras publicadas sob o seu nome pôde levantar algumas duvidas. Quanto ao conhecimento das obras gregas que os Hakims possuíam, resultava muito naturalmente das antigas versões syriacas e arábicas d'aquellas obras, feitas sobretudo nos reinados dos khalifas Harun er-Raschid e Al-mamun (Cf. Asse- mani, Bibliotheca orientalis, iii, 5o i e 504; Ludwig C\\oví\3in\.^ Handbuch des biicherkunde fiir die alteren Medicin, 35 1, Leipzig, 1841; Garcia da Orta e o seu tempo, 241 e 333). Nota (7) Os cetreiros ou falcoeiros usavam diversos medicamentos nas que- braduras das pernas dos falcões. Fernandes Ferreira dá a fórmula de um emplastro, composto de «incenso, almecega, sangue de drago, pe- dra sanguinha e farinha de triguo», tudo isto batido com clara de ovo; e também a de uma «solda», em que o principal ingrediente era a «múmia que tem os boticários». Vemos, pela auctoridade de Orta, que o aloés entrava também na composição d'estes medicamentos ; e era natural que assim fosse, pois o consideravam excellente para «encarnar chagas» (Cf Diogo Fernandes Ferreira, Arte da caça de altaneria, 69, v., Lisboa, 16 16). Nota (8) É curioso que o livro citado por Orta (Platince de vitis pontijicum historia) seja exactamente aquelle em que Diogo do Couto procurou também a explicação do nome de Rumes. Este nome teve um destino singular. Os primeiros mussulmanos deram em geral o nome de Rúmi aos christãos, por isso que estavam principalmente em contacto com os súbditos do império romano do Oriente; e, quando mais tarde dis- tinguiram com o nome de Farangi os christãos do Occidente, conser- varam o de Rúmi aos gregos e outros byzantinosi. Vindo os turcos a occupar as províncias orientaes d'aquelle império, passou para elles o nome de Rúmi, de modo que um antigo nome dos christãos passou a designar os seus mais encarniçados inimigos. Onde Orta — e também Couto — está enganado, é em excluir do nome de Rumes os turcos da ' E continuaram a applical-o aos do Occidente, por exemplo, aos da Hespanha ; vejam-se vários casos d'esta applicaçáo cm Dozy, Recherches stir Vhisloire et la littérature de l'Es- pagne. Do Aloés 41 Anatólia ou Asia menor. Foi justamente ali, que os turcos seldjukidas estabeleceram o império de Rúm, sultanato de Rúm, ou Rúmestan, cuja capital era em Iconium, a moderna Kuniah. No tempo de Orta tudo isto pertencia á historia; os turcos ottomanos tinham substituido os turcos seldjukidas, e occupavam Constantinopla e as suas provin- das asiáticas, a cujos habitantes se dava em geral o nome de Rumes (Cf. Diogo do Couto, Asia, iv, viii, 9 ; Amari, Diplomi arabi, citado por Yule, Cathay and the way thither, 427, coll. Hakluyt, 1866; Yule, Mar- co Polo, I, 46; veja-se também H. Yule e A. Burnell, Glossary of an- glo indian colloquial words, London, 1886, na palavra Room). Nota (9) Esta passagem, em que Orta toma a liberdade de emendar Plínio, mas sem o citar, valeu-lhe nada menos de duas correcções: uma de Clusius; a outra d'aquelle anonymo arabista, commentador dos Coló- quios, que nós hoje sabemos ter sido o celeberrimo erudito José Sca- ligero (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 242). Clusius adverte fExotic, i5i), que Plinio não affirmou a existên- cia do aloés metallico ; mas unicamente disse, que alguns a menciona- vam. Effectivamente Plinio diz : Fuere qui traderent in Judcsa super Hierosolytna metallicam ejus naturam...; mas logo accrescenta: sed nulla magis Ímproba est, por onde parece confirmar a noticia (Plin., XXVII, 5). Scaligero (Exotic, 244) defende Plinio, dizendo que elle tem rasão, se o entenderem bem, pois se refere ao aloés encontrado nos cadá- veres desenterrados, e que haviam sido embalsamados com aloés e myrrha, uma practica seguida na Judéa, e mencionada, por exemplo, no evangelho de S. João (xix, 39). A defeza de Scaligero é infeliz: pri- meiro, porque não é nada claro, que Plinio se queira referir á tal sub- stancia extrahida dos cadáveres — a chamada mumia^; segundo, porque o aloés empregado n'estes casos não era, ao que parece, aquelle de que tratamos, mas uma substancia muito diversa, o lignum aloés, de que fallaremos adiante. Em todo o caso, Orta disse simplesmente, que lhe não constava existir alces metallico, e disse muito bem. ' O nosso Thomé Pires dá uma descripção curiosa d'esta celebre e nojenta droga: . 42 Colóquio segundo Nota (io) Seria interminável e pouco interessante a discussão de todas as in- dicações sobre a therapeutica do aloés, espalhadas por este Colóquio em maior ou menor desordem. Bastará notar, que as idéas de Orta, sobre o caracter estomachico do atoes; sobre a sua acção purgativa; sobre a sua influencia como agente de fluxo sanguíneo; sobre o seu uso tópico externo, se não afastavam das que corriam no seu tempo e — em parte — ainda são admittidas no nosso (Cf. para mais indica- ções, Garcia da Orta e o seu tempo, p. 3i i e 3i2). As praticas locaes de medicina hindú, a que elle se refere; por exem- plo, o uso da polpa das folhas frescas que viu empregar como «me- zinha familiar e benedicta», por um «físico gentio» (isto é, por um Vy- dia, e não por um Hakim) de Bahádur Schah, são confirmadas pelos livros modernos. Parece que os antigos hindús não conheciam a droga, tal qual hoje se prepara, mas empregavam directamente a planta; e Ainslie diz-nos, que modernamente a polpa das folhas é receitada como uma medicina refrigerante pelos médicos indianos, native pra- ctitioners (Cf. Dymoclc, Mat. ined.^ 828; Ainslie, Mat. ind.^ 11, 169). Orta accentua claramente n'este Colóquio duas feições importantes do seu livro, ás quaes já me referi em outro trabalho, e que, portanto, só apontarei de passagem. Em primeiro logar, a sua repugnância a tratar as questões puramente medicinaes. Por duas ou tres vezes de- clara, que se não obriga a responder a questões mais sabidas na Hes- panha do que na índia. O seu livro não é de medicina, é de simples e drogas; ou — como hoje diríamos — de pharmacographia. Em segundo logar, mostra bem que se não deixa levar pelo exclusi- vismo da escola hippocratica. Nem elle, que todos os dias no Oriente verificava o valor das observações feitas pelos árabes, lhes podia cha- mar «maumetistas bárbaros», como lhes chamavam na Europa os dou- tores hippocraticos da Renascença. E esta segunda feição do livro re- sulta muito naturalmente da primeira. Foi precisamente porque Orta se dedicou de um modo quasi exclusivo ao estudo da matéria medica, que elle não pôde deixar de reconhecer a superioridade dos árabes. Em medicina pouco teria a aprender com elles; mas o caso era diverso quando se tratava do conhecimento dos simples e drogas (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 804, 3o5). Nota (ii) Orta refere-se ás edições latinas de Avicenna, as quaes se fizeram primeiro pela versão dc Gerardo Cremonense, depois com as emendas Do Aloés 43 e addiçoes de André Bellunense; e esta passagem é interessante, como sendo uma das que nos dão a medida dos seus conhecimentos em lingua arábica (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 243). O nosso naturalista é especialmente pródigo de erudição em todo este Colóquio: cita Hippocrates, Aristóteles, Platão, Galeno, Dio^o- rides, Plinio, Paulo de Egina, Mattheus Platearius, Mcsué Júnior, Avi- ccnna, Serapio, Rhazés, Haly Rodoam, Mattheus Sylvaticus, Mattheus de Gradibus, Jacob de Partibus, André Laguna, Matthiolo, João Ruel- Uo, João Manardo, Antonio Musa e Platina. COLÓQUIO TERCEIRO DO AMBRE INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Do aljôfar queria saber primeiro. ORTA E eu queria antes ter muito delle, grosso e perfeito, que saber delle; e porém no capitulo de margarita falaremos nelle o que for necessário e proveitoso, e agora falaremos do ambre, porque também he mézinha que vai mais ter muito delia, que saber como se gera. RUANO Dizey a verdade de tudo e deixayvos de falar essas cer- tezas. ORTA Âmbar dizem os Arábios, e ambarum os Latinos, por o custume da variação latina e uso, e as outras nações e lingoas, quantas eu sey, todas o chamão assi, ou varião muito pouco. RUANO Que razam me dais porque ácerca de todos este nome he o mesmo? ORTA Certos nomes ha, que se não varião, ou se varião he muito pouco, e isto ácerca de todas as lingoas que eu sey, e das que perguntey, e estes nomes são, âmbar, limão, la- ranja, sabam, e outros alguns; porque o limão chamão muitos linbon, e á laranja naranja, e ao ambre âmbar, e assi a muitos dos outros. RUANO Como nasce e que cousa he ? 46 Colóquio terceiro ORTA Alguns disseram ser o sperma da balea, e outros affir- maram ser esterco de animal do mar ou escuma delle, outros dixeram que era fonte que manava do fundo do mar, e esta parecia melhor e mais conforme á verdade. Avicena e Se- rapiam dizem gerarse no mar*, assi como 'se gerao os fun- gos ou fungáo dos penedos e arvores, e que quando o mar anda tempestuoso deita de si pedras e com ellas lança á volta o amhre^ e esta opinião também he mais conforme á verdade, que outras rezadas por Avicena, porque quando ventão muyto os levantes vem muito a Çofala e ás ilhas de Comaro e de Emgoxa e a Moçambique e a toda essa costa, porque o deitao as ilhas de Maldiva de si, porque estão ao levante; e, quando ventam poentes, achase mais nas ilhas de Maldiva (i). RUANO Ainda que seja estorvar a pratica no meo, porque se chama áquella tam grande corda de ilhas, ilhas de Maldiva ? ORTA N'estas cousas dos nomes das terras e mares e regiões se enganão muitos dos nossos nas suas próprias terras, como quereis que em as lingoas estranhas saiba dar razam das etimologias dos nomes? E comtudo vos direy o que ouvi dizer, e he que não se chama Maldiva, senão Nalediva, porque nale, em malabar quer dizer quatro, e diva, ilha, que em lingoa malabar quer tanto significar como quatro ilhas, e assi se chama Nalediva, e nós, corrompendolhe o nome, chamamoslhe Maldiva. E assi chamamos Angediva a huma ilha, que está apartada de Goa 12 legoas, porque são 5 ilhas, e assi quer dizer em malabar 5 ilhas, porque auge he cinco; e estas derivações estão na fama commum, e assi eu não volas vendo por demonstrações (2). * Avice., Serapiam (nota do auctor). Do Ambre 47 RUANO Eu folguey muito com as saber, porque contentão o inten- dimcnto, por tanto onde se poderem dizer me fazei mercê mas digaes, e prosegui ao adiante no amhre. ORTA Dizem mais os mesmos Avicena e Serapiam*, que algum que é engulido por um peixe dito a:{el, que morre como o come logo, e andando nadando sobre o mar, tomão os ho- mens daquella região garfos e tiráo o fóra, e lhe tirão de dentro o ambaj^ o qual não he bom, e se algum he bom, he o que se acha chegado ao espinhaço, e este dizem ser bom e puro; e isto segundo a quantidade do tempo que no ventre ou espinhaço está. RUANO E que vos parece disso, he verisimile? ORTA Não: porque já o perguntey e nunca me disseram haverlo visto alguma pessoa. RUANO Não parece essa rasão que concluye de todo ponto, e por- tanto, pois soys letrado e nam mancebo, day outra. ORTA Digo que os animaes iracionaes, per extinto natural, bus- cam os mantimentos que lhe convém, e não os que são ve- nenosos a elles, senão quando vão misturados com comeres a elles convenientes; assi como nós enganamos os ratos com rosalgar misturado com comer que lhes bem sabe-, por- tanto não he de crer que o peixe vá buscar o tal amhre^ pois o ha de matar: e mais digo, que pois o ambre he um cordial dos principaes, deve ser o tal peixe em si venenoso, pois o ambre lhe he tanto contrairo que o mata. Estas ra- * Avice., ubi supr.; Serapiam, ubi sup. (nota do auctor). 48 Colóquio terceiro zoes, posto que não concluião como demonstrações, são pera mi persuasivas. RUANO E a mim concluyem, em quanto não vir pessoas dinas de fé que experimentaram o contrairo; e pois assi he, dizei o vosso parecer, e o que ouvistes e lestes, que he o ambre, que tanto dinheiro vai, e despois direis onde o ha, e donde he milhor, e de qual feiçam he o uso delle nestas partes. ORTA Primeiro vos direy hum grande error que tem Avenrrois, que he huma especia de cânfora que nasce nas fontes do mar e nada sobre a agoa delle, e que a milhor de todas he a que em arábio se chama ascap; e perguntei aos físicos do Nizamoxa (que vulgarmente he chamado o Nizamaluco) que ambre era aquelle, e não mo souberam dizer, porque ácerca delles não ha as obras de Avenrrois nem de Abenzoar (3), mas quanto isto seja falso e não digno de tam grande filosofo he claro: hum, por dizer* que he a canfoi^a nascida no mar, e porque a cânfora he fria e seca no terceiro gráo, e pôe o ambre quente e seco no segundo, por onde he manifesto não serem comprendidas debaxo de hum género^ e concluindo vos digo** que assi como nas terras ha partes que tem terra vermelha como almagre ou bolarmenico, e outras que a tem branca como greda, e outros cardea, assi não he inconve- niente que aja ilhas ou terras da mesma maneira do am- bre***, e isto, ou que a terra seja íiingosa ou doutra manei- ra; e que isto seja verdade se prova polia muita quantidade * Avenrrois, hoc colligit (nota do auctor). Isto é no seu tratado de medicina, vulgarmente chamado então o Colliget. ** Resolução de tudo (nota do auctor). •»* Na edição de Goa lê-se : «assi não é conveniente que a aja, ou ilhas, ou terras da mesma maneira do ambre», o que se não compre- hende ; e parece se deve reconstruir na forma que adoptámos. Do Ambre 49 que delle sae, porque já se vio pedaço tam grande como hum homem, e outro se vio de 90 palmos de comprimento e 18 de largo; e assi aíiirmaram já algumas pessoas, que acharam huma ilha de ambre, e marcandose, tornaram á terra donde partirão, e querendo tornar a buscar o ambi^e, levaram agoa e mantimentos bastantes para navegar, e nunca poderão tornar a achar a ilha; e pode ser que quis Deos que a não achassem por os castelos de vaidade, que quando a acha- ram tizerão, e polias poucas graças que a Deus derão de a haver achado; e também porque estes homens se podião salvar com pouca fazenda, e com muyta não se salvaram, e Deus, que he misericordioso, sabe qual he milhor e mais seu serviço. No anno de i555 achouse, alem do cabo de Comorim, hum pedaço que tinha perto de trinta quintaes, e cuidando quem o achou que era breu, fez delle bom ba- rato, e porém partindose por muitas pessoas, tornou a seu preço acustumado: era essa paragem, donde se achou, de- fronte das ilhas de Maldiva; e que isto seja verdade se ma- nifesta, porque vem cheo de bicos de pássaros ás vezes, e outras vezes vem com cascas de marisquo misturado, por- que se pegam ao ambre, e os pássaros se apousentão nelle ás vezes, e o mais limpo he milhor; e isto que vos digo he o mais certo que se pôde saber. RUANO Ha o em outras partes mais que na Etiópia e costa delia? ORTA Algum se acha em Timor, e poucas vezes e em pouca quantidade; e no Brasil me dizem também que se achou; e no anno de trinta se achou hum pedaço em Setúbal; mas destas cousas pequenas não se faz regra, por acontecerem poucas vezes e em pouca quantidade. RUANO Agora me dizey porque não será esperma de balea ou esterco delia? 4 5o Colóquio terceiro , ORTA Isto não traz razão, porque a balea c o azeite delia que eu vi cheira muito ruynmente, e não como o ambre; e mais em muitos cabos ha baleas e não ha ambre, assi como na costa de Espanha e de Galiza; e pella mesma razão se prova não ser escuma do mar, porque onde ouvesse mar em baixos com ventos, haveria escuma, e o que dizem que o come o peixe, já o confutey e provey ser falso antes; e isto he o que dizem os Arábios, porque os Gregos não fala- ram neste simple, somente Aécio (4). RUANO Qual he milhor pera escolher? ORTA Quanto mais se chega a branco tanto he milhor, scilicet, que seja como pardo, ou com veas de cores humas brancas e outras pardas, e que seja leve no peso; e a prova delle he, que metendo nelle hum alfenete o que deita mais olio pollo buraco he o milhor. O preto he muito ruym, e eu tive hum pedaço delle, que ouve por pouco preço, e não cheirava senão muito pouco, e misturado com almiscre para fazer con- tas, se misturava muito mal fazendo muitas gretas; e aquelle que he tão branco como ovo de ema, diz Serapio ser muito ruym: eu não o vy nem ouvi a pessoa que o visse, e se algum o vir, deve ser sofisticado com gesso. RUANO Menardo diz no letiiario de gemis, que ambre he cousa nova, a qual elle não tem em tanta estima quanto preço custa, e portanto diz no letuario di ambra, que a composi- ção do letuario he muito preciosa, da qual elle usa muitas vezes em molheres e em velhos: e porque parece crara a contradição deste doctor, scilicet, em dizer que não vai tanto quanto custa no letuario de gemis, e no di ambra dizer que he muito fermosa a composição, da qual usa muitas vezes, será bem que me digaes se he muito usada e estimada em Do Ambre 5i preço da gente desta índia e não de nós tamsomente: e pri- meiro que isto me digaes, me decraray alguns nomes, que estão em Serapiam e Avicena, porque Serapiam diz que muito delle he das terras do Zing. ORTA He O que vem das partes de Çofala, porque :{ingue ou :{angue, acerca dos Pérsios e Arábios, he cafre ou negro, e porque toda aquella costa da Etiópia he dos negros, chama lhe Serapiam, do Zingiie (5), e Avicena também faz menção do de Melinde e chamao Almendeli, e aquelle que chama Se- lachiticum, he assim dito por ser de Ceilão (6), huma das fa- mosas ilhas do mundo poseyda delrey nosso senhor, e não dista muito das de Maldiva; e não he cidade, como diz La- guna, senão ilha chea de muitas cidades; e comtudo a maior quantidade do ambre he de Çofala até Brava; e também ha algum na costa da Arábia, e a mór quantidade (como disse) he na costa da Etiópia. RUANO He muito estimado ácerca dos índios e Mouros desta terra? ORTA Ácerca dos ricos e poderosos sy, e usam muito delle no comer, per via de medicina, conforme a Avicena e segundo a quantidade, porque assi como o pedaço he maior, tanto vai mays a onça delle, que he como a pedraria. RUANO- Qual foy o maior pedaço que vistes nesta terra? ORTA Hum pedaço vi que pesava quinze arráteis (7), mas os que tratão na Etiópia me dixeram que o virão muyto maior; eu não sey a como foy vendido, mas sey certo, que se fora ter á mão do Nizamoxa, que o comprará muito bem, segundo a estima em que elles tem os grandes pedaços. E este am- bre não tam somente vai muyto ácerca dos Mouros, mas 52 Colóquio terceiro também vai muito ácerca dos Gentios-, e, o que he mais de maravilhar, he ter muito mayor vaha ácerca dos Chins, por- que o levarão lá os nossos Portuguezes, e venderão hum cate, que são vinte onças, por i5oo crusados; por onde os nossos levarão tanta quantidade, que valeo muito mais ba- rato, e cada vez valerá menos lá, segundo a cobiça dos que o lá querem levar. RUANO Gomo sabem estes Ghins que he boa mezinha, pois a com- prão tão cara? ORTA Dixeme Diogo Pereira, que he hum homem fidalgo muito conhecido nessas terras, que os Ghins tem ácerca da cria- ção do ambre aquillo tudo que nós temos, e que elles lho contarão palavra por palavra, e dizem que aproveita mu3^to pera a conversação das molheres, e que aproveita ao cora- ção, e ao cérebro e ao estômago (8) . E, deixado o cheiro do ambi-e, passemos ao amomo (9). Nota (i) Os «levantes» e «poentes», de que Orta falia, sopram alternada- mente, constituindo as rnonções do oceano Indico, as quaes se fazem sentir com uma certa regularidade nas ilhas de Cômoro, e na costa africana até Moçambique, e ainda ao sul. Das jnonções teremos de fallar em mais de uma nota (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, io5 a 109). Nota (2) As etymologias, apontadas pelo nosso Orta, não se podem acceitar sem alguns reparos e correcções, posto que contenham muitos ele- mentos verdadeiros. Dvipá, ou na forma prakrita diva, significa effectivamente ilha; e entra na constituição dos nomes de varias ilhas, por exemplo, em al- guns dos antigos nomes de Ceylão, como Sielediba, Sarandib, Seren- dib. Esta é evidentemente a origem da terminação de Maldiva. Parece mesmo, que em tempos este elemento constituiu, só por si, o nome Do Ambre 53 d'aquellas ilhas, como quem dissesse as ilhas por excellencia. D'isto temos uma indicação na menção das Maldivas pelo historiador Am- miano Marcellino. Dando conta das embaixadas do Oriente, que o im- perador Juliano recebeu em Constantinopla (362 J. C), diz elle: inde nationibus Indicis certatim cum donis optimates mittentibiis ante tem- pus, abusque Divis et Serendivis. Se as Divis eram as Maldivas, como se julga, Ammiano Marcellino, sem d'isso ter consciência, chamou-lhes simplesmente as ilhas. Por outro lado, o numeral quatro escreve-se em tamil moderno nalu, e em maláyalam moderno — a que Orta chama lingua malabar — nala. Orta, como se vê, é exacto na significação dos componentes; mas, apesar d'isso, a sua opinião é innacceitavel: primeiro, porque a fórma correcta do nome é Male-diva, e não Nale-diva; segundo, porque as ilhas não são quatro, mas centenas, e muitas centenas. O que não e fácil é substituir á sua uma etymologia segura. Pro- poz-se uma explicação engenhosa, derivando Maldiva de 7nãlã, que em sanskrito significa rosário ou grinalda, e quadrava bem aquella corda de innumeras ilhas. Ibn Batuta (i 343) chamaAhes Dhibat-el-Mahal, e liga o nome de todo o archipelago ao do principal grupo, Mahal, onde era a residência do sultão. Do mesmo modo, Pyrard de Lavai (1610) diz que a ilha principal se chama Malé, e d'ella resultou o nome ao conjuncto de todas as outras. A esta etymologia se inclina em de- finitiva o nosso Barros, dizendo que Mal é o nome próprio da maior ilha, e que Maldiva equivale a ilha de Mal. A opinião mais segura parece, porém, ser a do erudito bispo Cal- dwel, o qual deriva Maldivas da palavra Malé, que desde os tempos mais antigos designou a parte da índia meridional, que fica mais próxi- ma d'aquelle archipelago. As Maldivas seriam pois as ilhas de Malé, como o Malabar é a terra ou costa de Malé (Cf. Ammianus Marcelli- nus, XXII, 7, pag. 171 da edição Nisard; Hunter, Comp. Dict. of the non- Aryan lang. of índia and High Asia; Viagens de Ben Batuta, 11, 265, tr. de José de S.'" Antonio Moura, Lisboa, i855; Viagem de Francisco Pyrard de Lavai, i, p. 108, tr. de J. H. da Cunha Rivara, Nova Goa, i858; Barros, Asia, iii, iii, 7; veja-se também Encyclopa^dia britannica, ninth edition, e Yule e BurnelJ, Glossary, na palavra Maldives). «AngedivaM — diz Orta, — significava as cinco ilhas. Ancha é effecti- vamente o numeral cinco em maláyalam^; e ainda hoje interpretam ali a palavra Angediva pelo mesmo modo — as cinco ilhas. Sendo assim, o nome pertenceria, não propriamente áquella ilha maior, a que aportou Vasco da Gama; mas a essa ilha com os ilhéus próximos, dos quaes, • E anj, anju, anje em outros dialectos da Índia central e meridional (Hunter, Dict., 37). 54 Colóquio terceiro segundo se diz, existem hoje apenas três, sendo no emtanto possível que algum se destruísse já em tempos históricos. A etymologia é, portanto, acceitavel, não sendo, porém, a única. Al- guns dizem, que o nome vem de Adya-dvTpa, a ilha primitiva, isto é, anterior á conquista do Konkan pelo mythico Parasuráma, o sexto avatar de Vishnu. Outros suppÕem que se chamava Ajya- dvTpa, a ilha da manteiga, porque o mesmo Parasuráma ali fôra buscar a manteiga clarificada, necessária para um dos sagrados ritos hindus. E finalmente julgou-se ser a Ajã-dvipa, a ilha da deusa Ajã, um dos synonymos da conhecida deusa Maya; e esta etymologia é até certo ponto confirmada pelo facto de existir ali, antes da conquista mussulmana (i3i2), um an- tiquíssimo templo d'aquella deusa. Suppoz-se também que a ilha Aegi- diorum (AiYt^íwv Nyíot;) de Ptolomeu se poderia talvez identificar com a moderna Anchediva ou Angediva. E n'este caso, no nome empregado pelo geographo grego haveria o vestígio de algum d'aquelles antigos nomes hindus. De modo, que a interpretação moderna de cinco ilhas, poderia ser um esforço para explicar um nome antigo, de que se per- deu a significação (Cf. Yule e Burnell, Glossary^ palavra Anchediva; Gerson da Cunha, An historical and archceological account of the island of Angediva, 2 a 4, 2'' edition, Bombay, 1878; pôde ver-se o plano da ilha em Lopes Mendes, Ind. port. ir, 162 e 209, Lisboa, 1886). Seja como for, o nosso Orta não entrou em todas estas especula- ções, e disse-nos apenas a opinião corrente. As suas etymologias não são inventadas; andavam, como elle diz, na «fama commum»; encon- tram-se quasi textualmente no livro interessantíssimo do nosso com- patriota Pedro Teixeira ; e, pelo que diz respeito a Anchediva, nos li- vros de João de Barros e de Della Valle (Cf. Relaciones de Pedro Teixeira d'el origen, descendência y succession de los Reyes de Pérsia y de Hannu^, p. 96, Amberes, 1610; Barros, Asia, i,'iv, 9; Voyages de Pietro Della Valle, iv, 172, i665). Nota (3) Tanto Abu-l-Walid Mohammed ben Rosch, como Abd-el-Malck ben Zohr eram andaluzes, e não admira que os seus livros, posto que fos- sem conhecidos dos mussulmanos eruditos da Asia, não estivessem ali tanto no uso commum, como estavam os dos escriptores da Pérsia, e em geral do Oriente. Nota (4) O «ambre» de que Orta falia é o âmbar cinzento, uma concreção intestinal do cachalote (Physcter tnacrocephalus), que se extrahe do Do Amhre 55 interior d'este cetáceo, ou, depois de expellida, se encontra nas praias e também fluctuando sobre as aguas. Vogaram em relação á sua origem versões diversas; e Orta, não tendo a experiência própria para o dirigir, está evidentemente mal á vontade no assumpto; refugia-se em umas subtilezas escolásticas, en- graçadas mas pouco conclusivas, e acaba por acceitar uma versão nada provável. A opinião de Serapio e de Avicenna, que elle refuta cuida- dosamente, corria geralmente entre os árabes. No livro de Maçudi se diz também que parte do âmbar se encontrava dentro do peixe Awál, e consistia em fragmentos que este peixe tinha engulido. Pretendia-se assim conciliar a supposta origem mineral da substancia, com o facto incontestável de se encontrar no interior de um chamado peixe. De tempos antigos a origem do âmbar foi um assumpto debatido e que excitou a curiosidade. Edrisi conta, que o grande Harun-er-Raschid enviou emissários ao Yemen unicamente para se informarem da sua procedência; mas a gente da costa disse-lhes que aquella substancia era produzida por certas nascentes, situadas no fundo do mar. Não sei se esta explicação satisfez o illustrado khalifa, mas é certo que satisfaz Edrisi, o qual acrescenta: «o âmbar não é outra cousa» (Cf. Maçudi, Prairies, i, 284; Edrisi, Géogr.^ i, 64). Até pois ao tempo de Orta, a verdadeira natureza do âmbar era geralmente ignorada, ao mundo occulta, como dizia o Gamões: Outras ilhas no mar também sujeito A vós na costa de Africa arenosa; Onde sahe do cheiro mais perfeito A massa, ao mundo occulta, e preciosa. Tem-se dito repetidas vezes, que a primeira indicação um pouco mais exacta e clara sobre a procedência do âmbar é posterior a Orta, e se encontra justamente nas notas de Clusius ao seu livro. É uma longa exposição de um navegador francez, chamado Servat Marel, o qual attribue todo o âmbar aos cetáceos, e particularmente á baleia propriamente dita. Esta exposição pôde ler-se nas notas de Clusius, e, traduzida na integra, no livro de Guibourt. Todavia, é justo notar, que, séculos antes. Marco Polo dera noticias muito exactas sobre o modo por que os habitantes de Socotora harpoavam as baleias para lhes tirar o âmbar do interior; e isto servindo-se de uma phrase, que — tal qual se encontra na versão de Ramusio — mostra bem tratar-se do cachalote e não da baleia franca: dove li cavam fuori dei ventre 1'ambracanOf e d'ella testa assai botte d'olio. É certo, no emtanto, que o livro de Marco Polo não foi lido com muita attenção pelos naturalis- tas ou físicos; e que Orta não conhecia esta passagem, ou não acredi- tou nas suas informações (Cf. Exotic, 148; Guibourt, Híst. nat. des 56 Colóquio terceiro drogues simples, iv, 119, y"^ édition, Paris, 1876; Yule, Marco Polo, 11, 399; Ramusio, Delle navigaponi et viaggi, n, 57 v., Venetia, 16 13). É interessante a phrase do nosso naturalista, em que elle diz, que se encontravam bicos de pássaros, embebidos no âmbar. Esta phrase lembra uma explicação do modo por que o âmbar se formava, dada por Duarte Barbosa — e repetida, creio, por Castanheda. Diz Duarte Barbosa, que os mouros das Maldivas lhe contaram ser o âmbar «es- terco d'avesu, e que n'aquelle archipelago, «laa nas ilhas deshabita- das, ha huas aves grandes que pousaom sobre os penedos e rochas do maar, e aly estercaom aquelle ambre, honde se estaa curtindo do ar e do sol; ate que por tempestades e tormentas sobe ho mar sobre hos penedos e rochas, e ho arranca em pedaços grandes e pequenos; e asy anda no mar, ou sahe nas praias, ou ho comem alguas baleas». O mais branco é o que andou pouco tempo no mar; e o mais «preto e masado», o que foi comido pelas baleias. Segundo esta explicação, o âmbar teria uma origem análoga á do guano das ilhas Chinchas. É curioso que o facto adduzido por Orta, e que pôde parecer favorável a esta origem, demonstre exactamente uma origem diversa e a verda- deira. Os suppostos bicos de pássaros são as maxillas córneas das 5e- pias e outros Cephalopodes, alimento habitual dos cachalotes ; não sendo digeridas, ficam embebidas na massa do âmbar, se acaso não são uma das causas da sua formação (Cf. Duarte Barbosa, Livro, 348 ; Exotic. 148; Guibourt, I. c. iv, 120 e 354). Nota (5) Os antigos davam aos negros o nome de Zingis ou Zingium. D'ahi vem o nome de mar do Zendj, de que usa Maçudi em uma passagem já citada; igualmente o nome de Zanguebar, depois Zanzibar, litteral- mente terra dos negros. Este ultimo nome, hoje muito restricto, es- tendia-se mais nos tempos antigos. Segundo Barros, chamava-se Zan- guebar toda a costa africana, desde a foz do Quilmance — deve ser o Juba — até ao cabo das Correntes (Cf. Maçudi, 1. c; Barros, Asia, i, viii, 4; Yule, Marco Polo, 11, 417). Nota (6) Pôde bem ser que o âmbar «almendeli» ou de almend fosse o de Me- linde, como Orta diz; mas a palavra « Selachiticum » não vem na minha edição de Avicenna; e não sei onde Orta a encontrou, nem porque a refere a Ceylão. Avicenna falia do atnbar alseleheti; e os seus tradu- ctores não conhecem a significação da palavra; dizem: alseleheti est qucedam re^io— uma certa região, não sabem qual. Alseleheti^ privado Do Ambre 5? do artigo e da desinência do adjectivo, dá-nos a forma Selehet, que se parece um pouco com um dos antigos nomes de Geylão, Sinhala ou Sihala. Os árabes, porém, designavam habitualmente a famosa ilha por um nome diverso, o de Serendib. Na geographia de Edrisi vem uma ilha do archipelago Indiano ou Malayo, mencionada pelo nome de Se- lahat, ia»^. Se esta era a pátria do âmbar alseleheti de Avicenna, é questão que não me atrevo a resolver, apesar da identidade do nome. O que me parece inacceitavel é a identificação de Orta com a ilha de Geylão (Cf. Avicenna, lib. ii, tract. ii, cap. 63, edição de Rinio de i556; Edrisi, Géographie, i, 8o). Nota (7) Paliando do que viu, Orta é, como sempre, exacto; um fragmento de âmbar do peso de i5 arráteis é cousa vulgar. No anno de lySS vendeu a companhia das índias em França uma massa do peso de 225 arrá- teis (livres). Outra massa, do peso de 182 arráteis, pertencente á com- panhia hollandeza das índias, foi descripta e figurada por Vander fThe^. cochlearum, tab. uii e liv, citado por Guibourt). E não ha muitos an- nos, os navios baleeiros Franklin e Antarctic harpoaram um cachalote dentro do qual se encontrou uma massa, que pesava 107 arráteis, e foi vendida por 44:000 dollars. Quanto á ilha de âmbar, que nunca mais foi encontrada, é claro que ella traz em si o seu certificado de fabulosa. E os fragmentos ou massas da altura de um homem, ou do peso de 3o quintaes, são evidentes exa- gerações, de que o nosso naturalista não é completamente responsável. Sempre correram versões ampliadas sobre estes grandes pedaços de âmbar. Também o nosso compatriota Pedro Teixeira falia de uma massa de ambàr, lançada á praia na mesma costa de Zanzibar, tão grande, que se não via um camello coUocado por detraz d'ella. Pelo contrario, o pedaço de âmbar, que o rei de Melinde mandou por Vasco da Gama de presente á rainha de Portugal, tinha dimensões acceita- veis: era «do tamanho de meo covado, e grossura de um homem pola cinta» (Gf. Teixeira, Relaciones, 20; Gaspar Gorrea, Lendas, i, i32). Nota (8) O âmbar cinzento é principalmente usado em todo o Oriente como perfume; mas as suas suppostas qualidades medicinaes, aphrodisiacas e outras, a que o nosso auctor se refere, são ali conhecidas, e vem mencionadas por muitos escriptores do tempo. Não é fácil saber bem ao certo quem seria o Diogo Pereira, que deu ao nosso escriptor tão miúdas informações das cousas da China. 58 Colóquio terceiro do Amhre É possível que fosse um Diogo Pereira, enviado por Nuno da Cunha ao rajá de Calicut em umas negociações diplomáticas; e que, segundo Barros, era muito entendido nas cousas do Malabar, e fallava a lin- gua da terra tão correntemente, que não necessitava de interprete. Estas qualidades suppÕe uma longa assistência no Oriente, durante a qual elle fez talvez uma ou mais viagens á China. No assento de paz com o tt Idalxá», no anno de iSyS, vem assignado um Diogo Pereira, como vereador do senado de Goa; se era o mesmo, devia ser extre- mamente velho, e é mais natural que fosse filho ou descendente. Um ou outro deram provavelmente aquella informação ao nosso escriptor (Cf. Barros, Asia, iv, iv, i8; Arch. portugue^-oriental, fase. 5.°, parte ii, p. 908). Nota (9) Os auctores de matéria medica, citados n'este Colóquio, e não men- cionados nos anteriores, são Aécio de Amida, o que escreveu o livro vul- garmente chamado Tetrabiblos; e os conhecidos escriptores da Hespa- nha mussulmana, a que nos referimos na nota (3), e que, entre os eru- ditos europeus, tinham os nomes de Averroes e Avenzoar. \ COLÓQUIO QUARTO DO AMOMO INTERLOCUTORES ORTA, RUANO RUANO Vay tanta duvida em que cousa seja o amomiim, que alguns escritores querem que se use por elle açoro; porque Galeno lhe dá semelhante virtude, do qual açoro também ha mais duvida que cousa seja; porque dizem que o amomum entra na tiriaca, e por esta razão chora Mateolo Senense* a per- dição humana em perder o amomum, como que, sem elle, não se podesse ajudar pera curar as enfermidades dos ho- mens; e diz este escritor que também não tem por muyto certo entrar este simple na tiriaca de Andrônico, onde al- guns escritores sam delle tachados e reprehendidos, por- que, em huns cabos affirmavam entrar este amomum nella, e em outros, esquecidos do que dixeram, dizem o contrairo; e pera isto nam nos dá remédio o Mateolo, senam chorar esta perdiçam, e dizer que também não pode ser o que chamão rosa de Gericó ser também amomum; e para isto dá muyto boas razões e emenda muitos textos; o qual se vos ouvesse de contar seria nunca acabar: vós o podeis ver e assi o vereis por Laguna e por outros (i). E pois que, segundo muitos, entra na tiriaca este amomum, e nam he bom esperimentar mézinhas nam sabidas, queria mu3^to saber se ha nesta terra o amomum, e se tem os físicos mouros, que aos reis vistes curar, que he pes columbimis, porque isto he grande error, como provão os escritores nomeados. * Mateolus Senensis; Galen., Simplic, lib. 6 (nota do auctor). 6o Colóquio quarto ORTA Se nesta terra eu vira os simples que ha na vossa terra de Europa, eu vos tirára desta duvida; mas comtudo vos direy o que neste caso soube nesta índia. Porque estes modernos escritores dezião não se poder fazer a tiriaca por falta de amomum, perguntey a hum boticayro, espanhol na lingua e judeo na falsa religião, o qual dezia ser de Jerusalém, que me dixesse que era amomum^ e dixeme que era em arábio hamama, que quer dizer pé de pomba na mesma lingua; e que elle o conhecia muito bem, e porém que o nam vira nesta terra, senão na sua, e que nisto nenhuma duvida tinha. E alguns annos depois fui a visitar o Nizamoxa, e perguntey a seus físicos se tinham amomum, e dixerãome que nestas terras não o havia; mas que, antre outras mezinhas que ao rey trazião da Turquia, e Pérsia e Arábia, as quaes elle pa- gava muy bem polia necessidade que tinha delias pera fazer as composições, vinha o amomum; das quaes composições era huma o mitridato. E derãome huma mostra de amomum, que eu trouxe a Goa, mostreya aos boticairos, e cotejeya com huns debuxos dos simples de Dioscórides; e a todos nos pareceu conforme ao debuxo, e aos ditos dos* escritores, e ainda que estava seca, bem parecia feita á feiçam de pé de pomba (2). RUANO Nam me parece esse argumento razam que convença, porque assi se chamara lingoa de vacca em Avicena, o qual eu duvido ser verdade. ORTA Todos os nomes que temos declarados de Avicena estão treladados** ao pé da letra; por arábio se chama lingoa de vacca e lingoa de pássaro e lingoa de cão e capillus veneris; e assi também as enfermidades se chamão conforme ao nome, assi como elefancia se chama daul aljil, que significa * Na edição de Goa está «dos ditos». ** «Trelados» na ed. de Goa. Do Amomo 6i pé de alifante, e hydroforbia mara\ alqiielbe, que quer dizer doença de cam: por onde sabey que pé de pomba, ácerca da entençam de Avicena, he amomum, e isto he em muitos nomes sabido ácerca de Avicena, e nós os Espanhoes imita- mos nisto aos Arábios, scilicet, na lingoa (3). RU^VNO E pera que quer esse rey o amomum? ORTA Porque diz que entra no miU^idato, da qual composição elle usa muyto porque se teme da peçonha, e tem selada e fechada de sua mão esta mézinha^ porque os reys (ou por milhor dizer tiranos) desta terra jogatãolhe muyto os irmãos com peçonha. E falando eu hum dia com este rey na prova da tiriaca como se fazia, me dixe que se lhe qua viesse hum baril com hum homem que lhe fizesse a prova, lhe compraria toda a tiriaca, pesando por ella outro tanto ouro; e ao que fizesse prova daria dous mil pardáos, cujo preço he como huma coroa de Espanha: e certo, que se o diabo o não levára primeiro pera o consorcio de Mafamede, que comprira sua palavra (4). RUANO Mais barata se achára a tiriaca em Europa*, mas certo que he de maravilhar quão pouco se estima a tiriaca polia muyta quantidade que ha delia, E vistes lá outras mézi- nhas de que aja duvida entre nós, scilicet, do conhecimento delias? ORTA Si vy, scilicet, eiipatorio e mexquetera mexir (5). RUANO E certo sabeis que não ha as mézinhas que dixestes n'esta terra? ORTA Bem pôde ser que as aja, mas os boticairos da índia ga- nhão mais pello trato que polia botica; e, porque he pouco 62 Colóquio quai^to o ganho, nam vão buscar á terra firme ou ao Balaguate her- va cidreira, lingoa de vacca, fiimiis terrce, tamarisco e es- paregos, das quaes mezinhas carecemos, e eu as V}^ lá; e também vi violas semeadas em as hortas deste rey, e aqui em Goa usam por ellas de humas flores de huns arvores muito diíferentes das nossas violas; e eu não consinto que usem delias senão em mézinhas por fóra aplicadas, e o xaro- pe violado lhe mando fazer de violas em comserva, que trazem de Ormuz ou de Portugal (6). RUANO Mais curiosos são os nossos boticairos em Espanha com sua pobresa, porque cresce o amor do dinheiro, quanto elle mais cresce. Nota (i) Esta pagina, é uma d'aquellas em que o nosso auctor mostra mais claramente o seu desdém pelas complicadas e estéreis discussões de palavras e de textos, nas quaes se entretinham então os escriptores da Europa. Chega a ser irreverente para com o eruditíssimo Pietro Andrea Mattioli de Sienna, pintando-o a chorar a perdição do amomo, e a emendar textos, e a dar boas rasões para que a rosa de Gericó não fosse o amomum. Nota (2) «Vay tanta duvida em que cousa seja o amomum», diz o nosso Orta logo no começo do Colóquio. Perto de tres séculos depois, Spren- gel repetia quasi as mesmas palavras : de Amomo ingens est disceptatio. É eíTectivamente muito difficil saber o que fosse o aij.wpLov de Dioscórides o Amomum de Plinio, e o L»Lç- de Avicenna. Seria o Cissus vitiginea, como quer Sprengel? Ou outra planta, se acaso todos aquelles escri- ptores se referiram á mesma? Tudo isto parece insolúvel. O certo é que os asiáticos conhecem uma planta, ou plantas, que apresentam pelo nome de hamama; mas provavelmente nenhuma d'el- las é a antiga. EíTectivamente ao nosso Orta mostraram um certo amomo, vindo da Turquia, Pérsia ou Arábia. Annos depois, Clusius recebeu de um boticário seu amigo um amomo, procedente de Hormuz, e que elle desenhou nos Exoticorum. E já no nosso século, o dr. Royle obteve Do Amomo 63 também na índia, pelo nome de humama ou hamama, uma planta si- milhante á desenhada por Clusius. A identidcaçáo destas plantas apresenta, porém, quasi tantas diffi- culdades como a das que os antigos mencionaram. Orta não descreve a sua; e o tacto de se referir aos «debuxos» de Dioscórides não nos esclarece, pois essas hguras das edições íllustradas do seu tempo ^ eram feitas em geral sem conhecimento das plantas asiáticas. As hguras de Clusius são evidentemente copiadas do natural, mas um tanto confusas. Em todo o caso, a idéa de Sprengel, de que elle representou a For- stera magellanica, uma planta americana, trazida pelo celebre navegador Drake das suas viagens austraes, e dada por equivoco como proveniente de Hormuz, parece-nos absolutamente inacceitavel. Dymock diz que ainda hoje se vende nos bazares de Bombaim uma droga, chamada hamama, amamun, ou amuman, que exactamente corresponde aos de- senhos de Clusius, Parece ser uma Muscinea secca, e lembra na fórma algumas espécies de Sphagmim da Europa. Deve ser esta a planta de Clusius e de Royle, e provavelmente também a de Orta; mas segura- mente não é a de Dioscórides e de Plinio (Cf. Sprengel, Diosc. ii, 35 1 ; Clusius, Exotic, 199; Royle, Ant. of Hindoo medicine, 91, London, iSSy; Dymock, Mat. med., 877). Nota (3) Toda esta passagem é muito confusa. Orta parece querer dizer, que os nomes arábicos de algumas plantas conservam a signihcação intacta dos seus componentes, o que é de certo exacto em muitos casos. Os no- mes das doenças estão bastante correctos; W. Ainslie diz que os ára- bes chamam a uma fórma da elephantiasis, J~ftM ij^, dul el-j\l; e um dos nomes da raiva é wJ^' ^ marad el-kelb, a doença do cão. Se o nome do amomum em Avicenna se prende a q^^ signi- fica pomba, e não pé de pomba, é questão diversa e ura tanto duvidosa. Nota (4) Que os reis mussulmanos da índia se quizessem precaver contra as tentativas de envenenamento da família e dos irmãos, os quaes lhes «jogatavam com peçonha», era naturalíssimo; e também era natural que se servissem dos mithridatos e theriagas. Tinham como livro prin- ' Os « debuxos » de que Orta falia, podiam ser o ícones da edição de Ruellio (1549), com a qual se publicaram também as notas de Valério Cordo. 64 Colóquio quarto do Amomo cipal de medicina o de Avicenna, que trata largamente e dá a formula d'estas celebres e complicadas composições: do mithridato nobre e do commum, da theriaca magna, da alfaroch, da de Esdras e de outras (Cf. Avicenna, lib. v, summa i, tractatus i). Nota (5) O «eupatorio», a que o nosso Orta se refere, podia ser uma Achillea, ou uma Agrimonia, que, embora plantas muito diversas, foram ambas conhecidas por este nome. E a sua «mexquetera mexir» era sem du- vida a mescatramescir de Avicenna, a qual os traductores identificaram com o Dictamus ou com o Pulegium (Cf. Avicenna, lib. n, ii, 468). Todas são plantas vulgarissimas e bem conhecidas; mas o que Orta averiguou sobre ellas lá pela índia, é o que nos não diz, nem é fácil saber. Nota (6) Orta devia enganar-se algumas vezes, quando julgava encontrar na índia as plantas de Portugal; e de certo, em mais de uma occasião, to- mou por uma espécie sua conhecida, outra espécie próxima, ou mesmo uma planta simplesmente parecida na apparencia. Assim elle não viu, nem a Melissa officinalis, nem a Anchusa officinalis, espontâneas na ín- dia; mas pôde ver espécies de Asparagus, de Fumaria, de Tamarix, e mesmo as violas, cultivadas em algum logar fresco e sombrio. A Viola odorata encontra-se espontânea na índia; mas unicamente nas regiões elevadas do Himalaya, onde o nosso naturalista nunca foi. COLÓQUIO QUINTO DO ANACARDO INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Queria saber do anacardo, pois he nome grego derivado de coraçam, cuja feiçam e cor he; e o porque me maravilho he, porque nam se acha escrito desta mezinha ácerca dos Gregos antigos. ORTA Disso nam vos maravilheis, porque os Gregos modernos lhe poserão este nome por a razam que dixestes aguora; porque, pois era mezinha usada per escritores arábios, nam era razam que lhe mudaram o nome delia-, porque elles lhe chamam balador, e se doutra maneira o achardes escrito por os livros, sabey que he o vocábulo ser corruto. Os In- dos lhe chamão bybo, e nós os Portuguezes fava de mala- qua; porque a feiçam delle, no arvore onde nasce, parece fava maior que as nossas, e casi he da feiçam de humas favas que qua ha, que vieram primeiro de Malaqua. Segundo di- zem alguns, ha muita copia desta mézinha em Gananor e em Galicut, e em todos as partes da índia que eu sey, scili- cet, Gambaya e o Decam (i). RUANO Antonio de Lebrixa, no Dictionario, dixe anacardus, herva frequentada ácerca de Galeno? ORTA Verdade he que dixe isso Lebrixa, e que era muy docto e curioso, mas enganouse no nome grego; e sem mais ou- Ihar dixe que Galeno o dizia; foy descuido, e nam vos ma- 5 66 Colóquio quinto ravilheis disto, porque ás vezes dorme o bom Homero. Também Serapio alegua a Galeno*, o qual nunca vyo ana- caj-do, e mais diz que por ventura mata, o qual he contra a esperiencia do que vemos; porque se dá nestas terras dei- tado em leite e nutrido para a asma, e também usam delle contra as lombrigas, e fazem delle, quando he verde, con- serva com sal para comer (a que chamão qua achar) e ven- dese na praça como azeitonas ácerca de nós; e, quando he seco, usão delle em modo de cáustico para as alporcas: e toda a índia também usa delle para pôr sinal nos panos misturado com cal. Avicena diz** que o anacardo he fruto semelhante aos caroços do tamarinho, e o seu miolo he seme- lhante á amêndoa, em o qual não ha damno, e abaixo diz que he contado entre os venenos e que mata. Por onde falia mais craro que Serapiam, que o pÕe em duvida, e mais está crara a contradição; porque diz: em o qual não ha damno aparente, e depois diz que he contado entre os venenos e que mata. RUANO No que diz que nam ha em elle damno, entendese do damno aparente no principio, porque ao fim mata. ORTA Ainda que isso se possa salvar, comtudo não he veneno, pois o comem muitos índios qua em todo cabo, e o ser cáustico he depois de sequo (2). RUANO Em que grado o pondes, quente e sequo? ORTA Huns o põem no quarto quente e sequo, e outros na 2 parte do 3, mas nenhum d'estes me contenta, porque, em * Serapio, cap. 356 (nota do auctor). »* Avie. li. 2, cap. 41 (nota do auctor). Do Anacardo 67 verde, craro he que não he tanto quente e sequo, e cm se- quo nam parece razam fazelo tam quente e sequo como as outras especiarias, scilicet, a pimenta, que se póe no ter- ceiro gráo \ nem acho ser vermelho, senão negro lúcido, e a isto não se pôde dar outra desculpa, senam que será mais quente e sequo o ciciliano (3), e terá a cor que pareça mais ao vermelho. RUANO Muito estou nisto conforme com o que dizej^s, e mais me parece muito boa preparaçam a do leite azedo para a asma, entendendo per leite azedo, leite de que he tirada a sua man- teygua, e isto he conforme a Avicena (4). Nota (i) O «Anacardo» é o Semecarpus Anacardium, Linn. f., uma arvore da família das Anacardiacece, muito frequente na índia. Os nomes vulgares, citados por Orta, são fáceis de identificar: — «Balador» é a sua transcripção do nome arábico j >5 , belader, ou beladher (Cf. Ainslie, Mat. Ind. 11, Syi; Exotic, 249). — «Bybo», ainda se usa na índia portugueza na forma bybó; e em Bombaim na fórma bibba (Cf. Costa, Manual pratico do agricultor in- diano, n, i38, Lisboa, 1874; Dymock, Mat. med., 3o3). É um facto digno de se notar, o não ter Orta mencionado o Cajueiro (Anacardium occidentale, Linn.), uma arvore muito mais interessante do que esta, e da qual poucos annos depois fallaram Christovão da Costa e Linschoten. A explicação d'este silencio é, porém, fácil. O Cajueiro, arvore americana, foi introduzido por aquelle tempo na índia, de modo que Orta nunca o viu em Goa, onde ainda se não cultivava; e Christo- vão da Costa apenas observou alguns exemplares nas hortas de Cochim, para onde provavelmente os portuguezes o haviam trazido poucos an- nos antes do Brazil. O silencio de Orta, e a noticia de Costa, con- firmam pois a idéa geralmente admittida da origem americana do Ca- jueiro, e marcam a data da sua introducção na Asia, onde depois se tornou tão commum (Cf. Christovão da Costa, in Exotic, 273 ; Navi- gatio ac Itinerarium Johannis Hugonis Linscotani, p. 60, Hagae-comitis, 1599; De Gandolle, Orig. des plantes cultivées, i58, Paris, i883). 68 Colóquio quinto do Anacaj^do Nota (2) O uso do fructo d'esta planta para marcar os pannos é bem conhe- cido na índia, e d'ahi lhe vem o seu nome vulgar inglez : marking nut. Quanto ás suas qualidades alimentares e medicinaes, e a algumas con- tradicçóes apontadas por Orta, estas resultam de uma circumstancia que elle não observou, e Christovão da Gosta notou mais correctamente, ou pelo menos mais explicitamente. Emquanto o pedúnculo carnoso do íru- cto e a semente, são relativamente inoftensivos, as camadas do peri- carpo contêem, depois de maduras, um oleo negro, cáustico e forte- mente toxico. D'ahi a possibilidade de comer o íructo, colhido verde, e preparado em conservas; e, por outro lado, as suas appUcaçóes inter- nas em pequeníssimas doses, ou externas como cáustico, depois de ma- duro (Cf. C. da Costa, Exotic, 272; Ainslie, Mat. Ind., 11, 371 ). Notaremos de passagem, que a phrase de Orta «a que chamão qua achar» define bem claramente a origem oriental d'este nosso termo cu- linário. Achar é a palavra persiana adiár, que tem a mesma significa- ção. Nota (3) É muito curiosa esta menção do anacardo «ciciliano», ou da Sicilia. A planta indiana havia sido provavelmente introduzida ali no reinado do imperador Frederico II (1220- 1240) pelos judeus, que iniciaram n'aquella ilha algumas culturas de plantas orientaes, entre outras a do anil. O facto da existência do Anacardo na Itália, facto que devia ser pouco conhecido mas não escapou ás investigações de Orta, é-nos con- firmado por um escriptor quasi contemporâneo. O Dr. Paludano, nas suas notas ao hvro de Linschoten, falia dos fructos do Anacardo pen- dentes da arvore, e diz : quales in Sicilice ^thna monte vidi (Navigatio ac Itinerarium, 83). Nota (4) Orta cita de novo n'este Colóquio o celebre erudito hespanhol, An- tonio de Lebrija, ou de Nebrija, e nota-lhe justamente um erro. Emen- da-o, porém, com todo o respeito, devido ao que provavelmente havia sido seu mestre na universidade de Alcalá (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 25). COLÓQUIO SEXTO DO ARVORE TRISTE INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Começo, em nome de Deos, nas mézinhas e simples da índia não conhecidos nem vistos de nós. Que he este arvore que tão bem cheira des que se põe o sol até que sáe? Me dizey si se usa delle em mézinha alguma ou em comer, por- que para mim não quero cheiro mais cordial, em especial quando de súbito entro, onde está este arvore. ORTA Eu nam vi esta planta em outros cabos da índia senão em Goa, e dizem que veo a ella de Malaca, e pôde ser que pera se levar a outro cabo seja muito boa, e já daqui se levou (mas foy perto de Goa) e prendeo bem; mas como digo não a vi pello sartão donde andey. RUANO Pois dizey o nome e proveito destas flores, se he somente pera cheirar? ORTA Pera cheirar nam sirve tanto, porque aquellas flores que estão naquelle alegrete chamadas mogory cheirão melhor que frol de laranja, e os comeres que são cheirosos, ou o devem ser por mais apraziveis, que temperão em Espanha com agoa de frol de laranja, temperamos os qua com esta agoa de fules, chamada mogory; e a agoa destas que per- guntais nam a vi estilada, e já pódc ser que nam façam agoa 70 Colóquio sexto boa, por ter a virtude muito superficial, e ser a textura rara, assi como acontece nos cravos que ha em Portugal: e nós usamos destas flores somente pera tingir os comeres, como açafram, scilicet, dos pés delias, que são amarelos e tingem muito, e o seu nome he, em lingoa de Goa pari^ataco, em malayo singadi (i). RUANO O comer tingido com os pés destas flores tinge como o temperado com o açafram de Espanha? ORTA Não, porque amarga algum tanto. RUANO E o açafram desta terra, que dizem, he este? ORTA Não, que esse he humas raizes que aqui nacem, cuja vir- tude direy avante. RUANO E essas flores ditas mogory, que tanto louvastes, pode- rey vellas e agoa estilada delias? ORTA Já as vedes naquelle alegrete, e a agoa vereis ay logo, que he aquella em que pÕem as pennas pera alimpar os dentes, que tanto louvastes já (2). RUANO Sempre até agora tinha pera mim que era agoa de frol de laranja-, e a gente desta terra he muito dada a cheiro, e por isto se diz que é inclinada a Vénus. ORTA He O em tanta maneira que leixa de comer o que tem pera o gastar em cheiros, assi como sândalo que he muito comum para untar o corpo, e Ihialoc, e quem mais pôde, Do arvore triste 71 ambre e almisque e algalia; a qual he mais usada, porque o preço não he tam alto, e a causa he por os muitos gatos que ha em muitas partes da índia, e usão esta algalia em cv^J^/ta^*! dores de humor frio, untando a parte que dóe com ella; e ^ outras flores ha de que muito usão nesta região ditas champe, e tem hum cheiro muito forte, mais que lirio branco, e nam he tam suave (3). E sabei que os reys que vi, todas as noites e muita parte do dia lhes enchem o chão das cazas, onde estão, destas flores que dissemos, e das nossas rosas; e pin- tão diversas flores em cores que parecem muito bem á vista; e ali de noite recebem seus solazes*, e os presentes que lhes dam os pobres, sam destas flores e das nossas rosas; e vay em tanto o gasto destas flores que me afirmão que em Bis- naguer rendiam os cHeiros e fulas a elrey 5ooo pardaos; e, o que mais he de maravilhar, que em Ormuz** os trabalha- dores, que ganhão de comer a carretar fato, compram os cheiros para se untar de noite, e deixão de comer (4). E por- que vejais as parvoíces e fabulas desta gentilidade, dizem que esta arvore foi filha de hum homem, grande senhor, chamado Pari^ataco; e que se namorou do sol, o qual a leixou, depois de ter com ella conversação, por amores doutra; e ella se matou, e foy queimada (como nesta terra se custuma) e da cinza se gerou este arvore, as flores do qual avorrecem ao sol, que em sua presença não parecem; e parece ser que Ovidio seria destas partes, pois compunha as fabulas assi deste modo. RUANO Certo que he muito de maravilhar de dar as flores de noite e não de dia, não tomeis trabalho em me dizer a gran- dura e feiçam do arvore, pois vejo ser do tamanho de huma * Sola:^, prazer, recreação, palavra que se encontra nos dicciona- rios hespanhoes; mas foi também portugueza, veja-se Viterbo, Eluci- dário, s. V. ** Hormuz na ed. de Goa, o que é mais correcto do que Ormuz, mas tomámos a forma habitual de Orta. 72 Colóquio sexto oliveira, e ter as folhas como da amexoeira. E pois isto não he cousa medicinal, passemos avante pera vermos da as- sa fétida e anil. Nota (i) A « arvore triste » do nosso Orta, é o Nyctanthes Arbor tristis, Linn. uma pequena arvore da família das Oleacece, cultivada com frequência na índia, e espontânea em algumas das províncias centraes. Engana- ram-no pois, quando lhe disseram que vinha de Malaca. Não admira, porém, que elle desconhecesse a sua existência na índia no estado sel- vagem, pois já no nosso século o próprio Roxburgh a ignorava (Cf. Hoo- ker. Flora of British índia, iii, 6o3; Roxburgh, Flora Indica, i, 86). Esta planta attrahiu muito as attençóes n'aquelles tempos antigos : Christovão da Costa descreveu-a no seu livro; Linschoten, e o seu commentador, o dr. Paludano, acrescentaram a respeito d'ella varias indicações, dando uma figura imperfeita mas interessante ; e Clusius in- cluiu nas notas ao nosso auctor as informações que lhe dera o seu amigo Fabrício Mordente de Salerno sobre a curiosa planta, interca- lando no texto o desenho bastante exacto de um ramo florido. É certo, todavia, que todos vieram depois de Orta, e que, tanto Costa como Linschoten, pouco mais fizeram do que copial-o (Cf. C. da Costa, in Exotic, 279 ; Linschoten, Navig. ac Itinerar., 67 e 68 ; Clusius, Exotic, 225). Orta cita dois nomes vulgares da planta : — «Parizataco», que é um dos nomes sanskriticos, mencionado por Dymock na fórma Pãrajãtak, e pelo dr. Lisboa na fórma Parijatak (Cf. Dimock, 1. c; J. C. Lisboa, Usefiil plants of the Bombay presidency, 290, Bombay, 1886). — «Singadi» em malayo. Este nome não se encontra no Index de Piddington, nem em outros livros onde vem citadas muitas designa- ções vulgares. Era no emtanto o nome usado em Malaca. Pelo anno de 1682, dizia o viajante Nieuhof: «ali (em Malaca) cresce a arvore :^ingady, que os portuguezes chamam a arvore triste» (Cf. Nieuhof, Zee en Lant-Rei^en, 11, 57, citado por Yule e Burnell, Glossary, no Sup- plement, palavra Arbol triste). Ao primeiro d'estes nomes liga o nosso escriptor uma poética lenda, a qual está perfeitamente na indole de dezenas de outras lendas da complicada mythologia indiana ; e que elle —mais familiar com a clás- sica mythologia grega e latina— compara com as metamorphoses de Ovidio. Não é esta a única lenda que se prende na índia ao Nyctan- Do arvore triste 73 thes. O dr. Lisboa, na sua interessante noticia sobre as plantas sagra- das, diz-nos, que os hindus julgam esta arvore procedente do céu, d'onde Krishna a trouxe a sua mulher Satyabhãma por causa do fino perfume das suas flores; e por isso estas flores são usadas no culto prestado a todos os deuses. Quanto ao emprego do que Orta chama «os pés das flores» — os longos tubos côr de laranja das corollas — para tingir de amarello, é bem conhecido na índia, e vem mencionado por Ro^íburgh, Wight e muitos outros (Cf. Lisboa, 1. c; Wight, Illustrations of Indian Botany, 11, i58, Madras, i85i). Nota (2) O «Mogory » de Orta é o o Jasminum Sambac, Ait., chamado na ín- dia mogra ou mogri, cujas flores são muito empregadas como per- fume, e nos ornatos e coroas que as mulheres hindus collocam sobre a cabeça em dias e occasioes de festividade (Cf. Wight, 1. c). Nota (3) O «Champe» de Orta é a Michelia Champaca, Linn., da familia das Magnoliacea;. Chama-se em hindi champa, do nome sanskritico cham- paka. As suas flores extremamente cheirosas são usadas como Orta diz; também em grinaldas e ornatos pelas mulheres hindus; e são tão esti- madas, que um dos seus nomes sanskriticos Kusumãdhirãg, significa — segundo Gubernatis — o rei ou rainha das flores (Cf. Gubernatis, Mythologie des plantes, i, 154). Nota (4) Tudo quanto Orta nos diz sobre a paixão dos orientaes pelos perfu- mes e pelas flores owfulas^ é perfeitamente exacto e perfeitamente co- nhecido. Paliando da mesma cidade de Bijayanagar, a que chama Bis- naguá, diz Duarte Barbosa, que os seus habitantes andavam sempre «muyto cheirosos, untados com sândalo branquo, aloés, canfor, almis- quar e acafram, tudo muido e delido em agua rosada». O persa Abd- er-Razzak, que esteve naquella cidade como embaixador de Schah Rock ' Orta parece empregar a palavra /u/a ou fule no sentido geral de flor. Ainslie cita phool ou phul como o nome deckani da flor; deve prendcr-se ao sanskrito/'/iu//a (pronunciar/>-Au//íi; aberto, florido, blooming. 74 Colóquio sexto do arvore triste pelo anno de 1442, fallando das grandes dimensões dos bazares, diz: que os vendedores de flores (roses na versão ingleza, supponho que por flores em geral) levantavam grandes estrados em que expunham as flores á venda, onde se via sempre uma collecção de rosas frescas e perfumadas. Acrescenta, que não podiam viver sem flores, e as consi- deravam tão necessárias como a comida. Todos estes vendedores pa- gavam impostos especiaes, que em uma cidade tão rica e populosa como era então Bijayanagar deviam attingir sommas muito elevadas. Na cidade de Baçaim, já depois de nossa, o imposto dos floristas, aliás insignificante, figurava também entre as rendas do estado : «E a renda dos que vendem flores, paguão todos por ano oitenta e cinquo ffedeas, sem acrecentarem, nem demenoyrem.» (Cf. Duarte Barbosa, Livro, 3o2 ; Journey of Abd-er-Raj^ak, em Ma- jor, índia in the jift. century; Tombo do Estado da índia, i55, em Fel- ner, Subsídios.) COLÓQUIO SÉTIMO DO ALTIHT, ANJUDEN, ASSA FÉTIDA, E DOCE, E ODORATA, ANIL INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Saibamos do que se chama altiht e anjuden, assa-fetida, e doce, e odorata; pois antre ella e laserpicium põem os do- ctores alguma diferença. ORTA E eu tenho n'esses nomes mais confusão que vós, e isso foy porque nunca me souberam dizer a feiçam, nem os no- mes deste arvore donde mana esta goma; porque me dizem que huma vem do Goraçone a Ormuz, e de Ormuz á índia; e também achei qua que vem do Guzarate; e ay dizem que vem do reino Dely, terra muito fria, que pella outra banda confina com o Goraçone e com a região de Ghiruam (i), como sente Avicena*. E sem duvida esta goma he chamada altiht em arábio e outros antit a dizem: e como a qualquer arábio lhe mostraes esta goma, dos índios chamada imgii ou tmgara, por o mesmo nome a nomeão que vos disse; e o arvore de que se tira ou mana se chama anjuden, e outros o nomeam angeidan. E como esta mercadoria vem muito polia terra dentro, he trabalhoso saberse no certo a feiçam do arvore; nem he por isso muito chamala Avicena por muitos nomes, porque pôde ser que em huma terra tenha * Avie. li. 2, ca. 53 (nota do auctor). O texto é pouco claro, c deve entender-se que é o Goraçone, e não o reino Dely, que confina com a região de Ghiruam; veja-se a nota (i). 76 Colóquio sétimo hum nome, e em outra outro, scilicet, em huma altiht e em outra almharut, porque é sabido que estas terras donde vem tem as lingoas diversas. RUANO E qual foy a causa porque o trasladador trasladou assa? ORTA Eu não creo que o tradutor escreveo assa;, senão laser, e corrompendose o nome se chamou assi, porque o tempo gasta tudo. RUANO Primeiro que vejamos se assa fétida he o mesmo que la- ser ou laser piciiim, vos digo que altiht nam me parece ser nome do arvore, senam de çumo de alcaçu:{, embastecido e engrossado; e isto sentio Gerardo Cremonense no capitulo da falta do coito em Rasis, que assi o interpretou*. ORTA Gerardo Cremonense nam era bom arábio, mas era an- daluz, e a lingoa própria em que Avicena escreveo he a que se usa na Siria e Mesopotâmia, e na Pérsia ou Tartaria (donde Avicena era) e a esta lingoa chamam elles araby e a dos nossos Mouros magaraby, que quer dizer mouro do ponente, porque garby em arábio quer dizer ponente e ma quer dizer dos, e portanto não he muito errar nisto Ge- rardo; e digo que altiht não quer dizer senão o arvore da assa fétida, e muytas vezes se toma a goma por o arvore : e que isto seja verdade se vê acerca de nós, e muito mais acerca dos índios se põe a assa pera levantar o membro, e elles o tem muito em uso: logo não vem a propósito pera a deminuiçam do coito usar o tal çumo de alcaçiq; e nas Divisões** põe Rasis o altiht por mezinha pera as fes- tas de Vénus. * Gera. sobre Rasis (nota do auctor). ** Nas Divisões, isto c no Liber Divisiomm. { Do Altiht 11 RUANO E se O altiht nam he assa dulcis, que he assa dulcis? ORTA Assa dulcis nam põe doctor arábio, nem grego, nem la- tino, que seja de autoridade; e se a põe, erra; porque o alcaçu\ se chama em arábio çu\, e o çumo delle cozido e reduzido á forma de arrove, chamão os Arábios rohalçu:{, e os Castelhanos corrompendo o nome o chamão rabaçui; de modo que robalçui he um nome composto de rob, que em arábio he çumo feito basto, e al he articolo do genitivo, e quer tanto dizer como çumo basto de alcaçu:{; e assi daqui avante nam chamemos a este çumo assa dulcis (2). RUANO Bem me parece essa derivaçam; mas antes que vos per- gunte porque laserpicium he assa, quero florear como es- grimidor e saber de vós como Avicena he da terra dos Tár- taros, e como a lingoa da nossa Africa nam he tam boa como a da Siria e Arábia. ORTA Avicena he craro ser destas partes, e nam de Espanha; e os físicos da Pérsia e da Turquia, que curão aquelle rey que vos já nomeey, me dixeram que Avicena era de huma cidade chamada Bochorá, a qual cae em a provincia dita Uzbeque, que he parte da Tartaria, que nós chamamos, ou dos Moguoras, como elles chamão qua; bem que Andreas Belunensis chame áquella parte Pérsia, mas isto he largo modo tomando Pérsia, porque Pérsia he pequena regiam. E depois soube de mercadores discretos e curiosos, que muito tempo moraram em Ormuz, e pergunteylhe que ci- dade era Bochorá, e me dixeram que caya na parte de Uzbeque, e que avia nella* e nessas partes muito maná, e também isto me dixe Goge Perculim, bom letrado a sua * «Nellas» na ed. de Goa. 78 Colóquio sdijno guisa, estante em Goa. E porque dixe o sobrinho do Be- lunense ser Avicena pessoa, por suas letras, valido e fidal- guo, lhe perguntey se fora rey, e dixeme que não, senam que fora goazil, que entre elles quer dizer regedor ou gran- de (3). RUANO Pareceme ser verdade isso; porque nós, por as coronicas de Espanha, sabemos os reys que nesse tempo concorriam em Cordova e Sevilha, e nam achamos este; e comtudo eu creo bem que era pessoa poderosa onde quer que estivesse. ORTA Respondendo á outra questam digo, que he trabalhosa cousa provarse huma lingoa ser milhor que outra; e porém dizem estes físicos e outros letrados, a que chamao Mullás, que as obras de Avicena e Galeno e dos filósofos Gregos, e as do falso profeta, erão escritas em lingoa da Syria, e a estoutra lingoa da nossa Africa chamão barbara, e aos nos- sos Mouros magarabf, e assi por esta razam chamão os Mouros da Pérsia e Arábia ás nossas terras, que nós cha- mamos Algarves, Algarby, que quer dizer Mouros do po- nente, porque o nosso Algarve está ao ponente. E já me pesa porque tanto me detive nestas cousas, que nam fazem ao caso, mas a culpa he vossa (4). RUANO Eu folguo muyto de saber isso, que qua nam tendes em muyto; portanto eu tomo a culpa sobre mim: mas se laser- picium não he assa fétida^ nem he odorífera, scilicet, aquelle laserpicium que escreve Dioscórides e Plinio, nam parece ser o altiht que escreveu Avicena, nem outros Arábios. ORTA Os Arábios que deste simple fazem mençam que são Arábios, falão pouco delle, como são Rasis e Avenrrois, mas sê olhardes Serapio falando em altiht, diz tudo aquillo que dizem Galeno e Dioscórides em laserpicium. Do Altiht 79 RUANO Por muitas razões vos provarey serem diversas mézinhas, scilicet, assa fétida e laserpicium; porque laserpicium he mezinha pera a cosinha e pera curar, e assa fétida aproveita pera mézinha somente, e isto per si só e muito poucas ve- zes, e para se usar em cozinha danaria todos os comeres por ter tam horrendo cheiro. ORTA Nam vos leixarey com esse error yr ávante, porque se quereis saber minha entençam he necessário que deiteis de vós as aífeições que tendes a estes escritores novos, e fol- gueis de ouvir minhas verdades ditas sem cores rhetoricas, porque a verdade se pinta nua. RUANO Muitas vezes vos dixe que nenhuma cousa desejava mais, que tirar de mim os errores que tenho, e semeardes em meu intendimento novas sementes. ORTA Pois sabey que a cousa mais usada que ha em toda a índia e per todalas partes delia he esta assa fétida, assi pera mézinhas como pera cozinha; e guastase nestas partes grande quantidade delia, porque todolos gentios que podem alcançar a compraria, a comprao pera deitar nos comeres; e se são ricos, comem muyto delia, como são os Baneanes e todo o gentio de Gambaya, a quem imitou Pythagoras. Estes a deitão nos bredos e hortaliças que comem, esfregan- do o caldeiram com ella primeiro, e he adubo ou salsa* e condimento pera todo seu comer; e todos os outros gentios que a podem comer, a comem; e os trabalhadores que nam tem mais que comer que pam e ceboUas, nam a comem senam quando tem delia muyta necessidade; e os Mouros * Salsa, tomada a palavra no sentido hespanhol de tempero em geral. 8o Colóquio sétimo também a comem, mas he em menos quantidade, somente porque a acham medicinal. Hum mercador portuguez me gabou muyto os bredos que faziam estes Baneanes, que levam esta assa fétida, e eu os quis provar e acheyos algum tanto apraziveis a meu gosto, e porque a mim nam me sabem bem os nossos bredos, nam os achei tam saborosos como os achou o portuguez que mo dixe. Ha hum homem nestas partes honrado e discreto, ornado com carregos de elrey, que come esta assa fétida pera lhe fazer apetite de comer; pera o qual diz que o acha muito bom, e toma delle quando tem necessidade duas oytavas; e diz que tem hum pouco de amargor, mas que o amargo he apetitoso como o da azeitona, e que isto he ante de o enguolir, porque diz que depois de enguolido, fica a pessoa que o tomou muito con- tente: e quanto he á gente desta terra, todos me dizem que lhe sabe bem, e lhe cheira bem. RUANO E vós achastes máo cheiro aos bredos que provastes? ORTA A cousa que me mais mal cheira do mundo he assa fé- tida-^ e nos bredos não me cheirou mal; e não vos maravi- lheis muito disso, que a ceboUa e o alho tem muito máo cheiro, e os comeres adubados com ellas muito bom; e também vos sey dizer que os costumes dos cheiros vos fa- zem que vos sejam mais apraziveis, como de mim sey que o hetele (este que de contino trazem na boca mastigado), a todos os que o comem cheira muito bem, e a mim muito mal, não mais senão porque o nam posso comer. He qua mézinha usada per si só, contra o que dizeis que se não usa senão em compostos: nisto sois enganado, assi como se enganou Sepulveda, porém Guarinero* e muitos usão * Sepulveda, Guainero (nota do auclor). Do Altiht 8i delia per si só. Acerca dos índios he boa pera o estômago, e pera que não sae bem he pera gastar a ventosidade. Hum portuguez em Bisnaguer tinha um cavalo de muito preço, o qual deitava de si muita ventosidade, e elrey por isso lho não queria comprar: o portuguez o curou dandolhe a comer este _;';72^z^ com farinha^ elrey lho comprou mui bem depois de sáo, e lhe perguntou com que o curara, e dixe- Ihe que com ymgu; respondeulhe elrey, não te maravilhes disto, porque lhe déste a comer o comer dos deuses, como dizem os poetas néctar: respondeolhe então o portuguez, com a voz mais baixa em portuguez, que milhor lhe chamára manjar dos diabos*. RUANO De huma duvida me tiray: como o comem os Baneanes tam continuadamente, dizendo Matheus Silvatico que he veneno, e alegua a Galeno pera isso? ORTA Ja vy Galeno e os simplecistas Gregos, e nenhum diz tal cousa-, antes diz ser bom pera a peçonha e peste, e lumbri- gas e mal de rayva, que sam contrairos effectos, por onde lhe podeis ao Matheus Silvatico perdoar esse error como outros muytos. Qua o metem os Índios na cova do dente furado que dóe*, e se Plinio diz** que hum que o meteo no dente lhe deu tam grande dor que se deitou de huma janela abaixo, seria isto por estar muita cheo de humores, e mover a mezinha muito. RUANO He de muito preço nesta terra esta mézinha? * Parece que acima, onde diz «pera que não sae bem», se deve ler «pera que sae bem». ** Pli. lib. 33, cap. 23 (nota do auctor). A citação, como varias ou- tras, está errada; e Plinio diz o que o nosso auctor refere, no livr. xxii, cap. 49. Colóquio sétimo ORTA Si* (porque ácerca de nós vale pouco), e a causa he por- que delia se gasta muito, e se apercebem os homens de a ter de sobejo, porque he como mantimento. Ha muita no Mandou e Chitor e Dely; e afora isso vem de Ormuz, como mercadoria pera Pegu e Malaca e Tenassarim, e essas partes; e quando falta vai muito em estremo. RUANO Usão da raiz ou folhas delia, porque é louvada dos anti- gos a raiz e as folhas, e rama? ORTA Já vos dixe que nam vira o arvore, nem me sabião dar razam delle; mas que nenhuma gente, das que eu conheço, usão senam da goma, a qual dizem que se tira dando cu- tiladas no arvore: e isto me dixe o homem, que acima dixe, que comia esta mézinha, e mais me dixe que lhe dixeram a feiçam da folha, a qual lhe debuxaram ser como a das nossas avelaneiras; e assi lhe dixeram que, para se conservar esta goma, se guardava em coiros de boy, untados primeiro com sangue e mesturada com farinha de trigo; por onde quando lhe lá acharem cousa que pareça farelos, não tenham que he falsidade, como escrevem alguns, antes he certificaçam. E nam faleceo quem dixesse a hum baneane letrado, que porque comia esta mézinha, pois vinha mesturada com san- gue de boy: responde© que era tal a mézinha que nam se havia de guardar nella essa regra. RUANO O laserpicium antiguo tinha a cor algum tanto ruyva e translucente, e este de que usamos tem a cor túrbida e he cujo? * Esta palavra falta na edição de Goa, mas sem ella a resposta seria inintelligivel. Do Altiht 83 ORTA Haveis de saber que de duas maneiras vem ter á índia, scilicet, huma limpa e crára, e outra túrbida e cuja, a qual alimpam os Baneanes primeiro que a comam: e a limpa tem a cor como latam muito luzio, e esta vem ter ao Guzarate, e dizem os Guzarates que vem de Chitor e do Patane e Dely; e a outra goma vem do Estreito e de Ormuz; e a lúcida é de mais preço e a outra de menos; e os mercado- res onde achão a lúcida, que he sua, não comprão a outra que se gasta em gente mesquinha, em comeres e mézinhas; alguns a comem com o pão, a que chamão apas. RUANO O cheiro he todo hum? ORTA O da que aprovão qua por milhor, que he a que vem ao Guzarate, que he mais luzente, tem o cheiro mais forte; e a que vem de Ormuz nam he tam forte ; mas, a meus nari- zes, ambas cheiram muito mal, e peor que todas, a que tem por milhor, que he a luzente. E quando perguntão a alguns Baneanes qual cheira milhor, dizem que a que vem do Gu- zarate, por ter o cheiro pior e mais forte; e isto deve acon- tecer, porque o tem em o custume; que a muytas pessoas cheiram mal o estoraque liquido, e a algalia, por seu forte cheiro, e geralmente cheiram muito bem; e a mim não me cheira alguma destas gomas a porros, e algum tanto me cheira á nossa mirra. E esta foy a causa porque a dividio Avicena em fétida e cheirosa: porque diziam que a fétida cheirava a porros, o qual nam he assi; porque se consi- derarmos a maneira de falar dos antigos, acharemos não se chamar huma cousa odorifera por cheirar bem, senão por ter o cheiro forte: e assi chamão ao calamo aromá- tico, o qual, a juizo de muitos, se podia milhor chamar calamo fétido, pois a myrra também cheira mal, e o aloés pior, e o espique muito mais; porque já purguey muitas pes- soas que não queriam tomar o ruibarbo por o espigue que levava. 84 Colóquio sétimo RUANO Não me parece mal isso, mas milhor será que seja assa fétida esta de que usamos, e a cheirosa o benjuy; pois não me dais capitulo de benjuj, ORTA Se he mezinha ou simple novamente achado no nosso uso, porque lhe hemos de dar nome antiguo? RUANO Dirvoloey: porque mais razam he, que a raiz do arvore de benjuy seja boa pera temperar os comeres, e assa fétida não traz razam que seja boa; e se aos Baneanes lhe sabe bem he porque são acustumados a comer hortaliças e outros comeres não saborosos, como os come a gente da nossa Europa. E, segundo diz Antonio Musa, os que nestas partes navegam e vão buscar o benjiiy dizem, descrevendo o ar- vore, ser conforme á descriçam do arvore de laserpicium; mais dizem que os da mesma terra, constrangidos da ver- dade, chamam á tal goma laserpicium. ORTA Nam sey qual foy o espanhol tam desvergonhado, que di- xesse a Antonio Musa em Ferrara tam grande mentira, e como vos direy, falando do benjuj, o arvore delle he muito diferente do arvore que escrevem da assa fétida; e o benjuy nam se sabe avelo senão em Çamatra e em Siam, e em todas estas terras não se chama senam cojninhan e nam laserpicium; o qual benjuy não o ha na Armênia, nem em Siria, nem em Africa, nem em Cirene, pois ácerca dos mo- radores dessas terras não ha memoria delle: e a principal parte pera onde se gasta o benjuy, que vem a estas partes, he pera a Arábia, e isto digo, não negando gastarse tam- bém pera todas as outras partes-, porque também se gasta pera os reinos Dely, e do Mandou e Chitor \ porque os Gu- zarates e os Decanins, que o comprão de nós, dizem que tem saída pera essas partes; posto que, como dixe, não he muita quantidade: logo mal dixe o vosso Musa que o ha em Africa Do Altiht 85 e Armênia e Judea, e em Siria, pois de todas essas partes o vem qua buscar; e o leváo, podendo levar mercadoria de mais proveito, se lá o houvesse (5). RUANO Peçovos muito que vos nam agasteis com vos perguntar. Ruelio, homem assaz douto e digno de muito louvor, que trasladou o Dioscórides, diz, no seu livro da natureza das plantas*, que em França nasce huma raiz grossa e grande, e de fóra negra e de dentro branca, e vay a pintando nas folhas e feiçam, e diz, que, assi a raiz, como a semente, como a lagrima, cheira com grande suavidade, e, por ser muito provada mézinha, lhe poseram nomes muito sober- bos, scilicet, raq imperatoria, rai^ angélica, rai:{ do Espi- rito Santo; e diz aproveitar pera muitas cousas, sendo quente sequa no terceiro gráo; he única contra o veneno, e preserva da contagiam e apegamento de peste*, e diz que, se a tomam e trazem na boca quantidade de hum grão de co- mer, e no inverno com vinho, e no verão com agoa rosada, não sentiram peste o dia que a tomarem, deitando o veneno per orina e per suor; e assi diz valer contra as fascinações e contra muitas enfermidades que leixo de dizer, e diz ser aquelle laserpicium gallico, o que os médicos veterinários (a que chamamos alveitares) disseram; e diz que o çumo ou lagrima cheira a benjuy, e que os doctos são d'este parecer, scilicet, que he benjuy; e que este he o opus cirinaico ou çumo cirinaico, que pario Judéa e deitou em França; e assi diz que se havia de chamar ben judeo e que está corruto o vocábulo e chamam o benjuf (6). ORTA Largamente louvastes esta raiz; e porém o arvore he muito diferente do benjtiy como vereis quando nelle falarmos; * Ruel. li. stirpium (nota do auctor). Isto é no De natura stirpium li~ bri tres. 86 Colóquio sétimo porque estoutro do benjiif he grande arvore e muito dife- rente, e também o da assa fétida sei não ser tam grande, e fora razam que se he laserpicium cirinaiciini, que ficara lá algum, e que se achara algum em Judéa, maiormente que perguntey já a homens desta terra, mercadores boticairos, e nenhum me dixe aver tal simples em memoria de homens e da região-, e quanto mais que o Ruelio o louva, dizendo que tomado a jejum, apaga e abaixa todos os estimolos da carne; e de toda a assa fétida se escreve que não leixa o membro estar baixo; e mais Mateolo Senense diz que teve essa opinião, e que depois, constrangido da verdade, tem a contrairá: e portanto não sejais tam aífeiçoado aos Gregos que avorreçais aos Arábios onde bem fallarem. RUANO Assi o farey, e porque vejais que o faço assi, chamarlheey imgu e não laserpicium, e darm.eis licença vindo ao caso, pêra falar nos Genosophistas que dixestes, e nos custumes desta terra; e agora veremos que cousa he anil, porque ó acho qua no meu abe. ORTA Auil nam he simple medecinal, senam mercadoria, e per isso nam ha que falar nelle. E por vos tirar de cuidados, sabei que o aiiil he chamado assi dos Arábios e Turcos e de todas as lingoas, e somente o Guzarate, que he onde se faz, o chama gali, e porém já agora o chama nil. He herva que se semea e parece com a que nós chamamos mangiri- quam; e assi a colhem e põem a sequar per tempo, e mo- lhada a pisam com páos, e des que he bem pisada a ajun- tam e põem a enxugar per dias, e quando a enxugam ou está enxuta, parece de cor verde, e quanto mais se vay enxu- gando parece de cor azul crara, e depois escura, até que venha ser o mais fino escuro que pode ser: e quanto he mais puro e limpo da terra he milhor, e a prova mais certa he queimado com huma candea, e não hade fiquar com arêa, senão com huma farinha muito delgada; e outros o lancão em agoa, e, se nada, temse por bom; de modo que ha de Do Altiht 87 ser leve e de boa cor. E porque he muito grave cousa hum filosofo estar mais nisto, será bem que comamos, e lexemos o anil aos comratadores (7). RUANO Si: mas primeiro me direis que fruta hc aquella do ta- manho de huma noz que tam bem cheira? ORTA Nam he fruta de que se uze em mezinha, mas he boa pera temperar os comeres com azedo, fazcndoos mais ape- titosos: em madura cheira bem, e com ser madura retém em si o azedo mais apetitoso, chamamse âmbares (8), e tem huma armadura cartilaginosa, e é amarella quando madura, e quando o não he a sua cor he verde cr aro (9). Nota (i) Depois veremos de que planta ou plantas Orta falia n'este Coló- quio; mas primeiro necessitamos fixar-lhe a geographia. O seu «Coraçone» identifica-se facilmente com a província persa do Khorásán, não só pela semelhança do nome, e pela situação em que o colloca, como também porque uma explicação quasi contemporânea define este ponto de um modo explicito. Pedro Teixeira, um dos por- tuguezes d'aquelles tempos que melhor conheceram a Pérsia, diz tex- tualmente : Karason. Llaman-la cot?íimmente nuestros portogiieses, Corason, es otra provinda de las sugetas al reyno de Pérsia. . . (Rela- ciones, 38o). Este «Coraçone» tocava no «reyno Dely«, isto é na índia; e na re- gião de «Chiruam». Sobre ou a respeito de Chiruam, fez Scaligero, nas suas notas ao livro de Orta (Exotic, 244), uma confusão terrível, que- rendo identifical-o com a cidade africana de Kiruan, ou antes Caira- wán. Perdoe-nos o eruditíssimo commentador, mas o erro de geogra- phia seria demasiado grosseiro para Orta, que seguramente distin- guia a cidade da Asia da da Africa. Chiruam, ou Schirwán, jj^j^, ficava junto de Derbend, a conhecida cidade das margens occidentaes do mar Caspio; e este nome estendia-se a toda a região vizinha, ao lado do Daghestan, á qual Pedro Teixeira chama mesmo reyno de Xy- 88 Colóquio sétimo ruam (Cf. C Barbier de Meynard, Dict. géogr. de la Perse, 349, Paris, 1861; Teixeira, Relaciones, 36 1). Vê-se, pois, que o nosso Orta, como de resto outros escriptores do tempo, não chamava unicamente «Coraçone« ao Khorásán; abrangia sob esta designação, um tanto vaga, uma grande região, que ía da ín- dia até ao Cáucaso, incluindo o Beluchistan, Afghanistan, parte do Turkestan meridional, o Khorásán próprio e toda a Pérsia septentrio- nal. Pela banda do oriente e do norte, o seu Coraçone chegava até ao Amu-Daria, ou Oxus, para alem do qual ficava o (tUzbeque» — como veremos nas notas seguintes. As mercadorias d'esta região vinham á índia, ou por via de Hormuz, como o nosso escriptor aflfirma correctamente, ou pelo norte, pelos ca- minhos de Kandahar e do Cabul. Por isso elle diz muitas vezes, que se encontravam no reino de Dehli. Nota (2) A Glycyrrhii^a chama-se em arábico 51/5 ou çus, ; e o seu nome portuguez, alcaçu:^, parece vir de irg çus, ou arq çus, v^3^> que significa rai^ de çus, e se transformou por euphonia em alcaçu:^; assim como o nome hespanhol da mesma planta, oro^u^, vem do plu- ral, ^j^j^ ^^^jj^y significa ratices de çus. Rob, )j, quer effecti- vamente dizer «sumo feito basto», e robaçiq é o rob de çus, somente Orta engana-se em dizer que está corrompido o nome, e devia ser robalçu^, pois o / do artigo se funde correctamente no s solar do nome (Cf. Dozy, Glossaire, palavras Oro:fu^, Rabaju^, etc ; e Sousa, Vestígios da lingua arábica, palavra alcaçus). Mas de tudo isto não resulta de um modo bem claro que se não deva dizer assa dulcis. Nota (3) Avicenna nasceu, ou pelo menos creou-se e educou-se em Bokhára; c foi depois «goazil», isto é, wa:^ir ou vit^ir de um príncipe indepen- dente do Hamadan, e mais tarde em Ispahan. As noticias de Orta sobre a sua vida são substancialmente correctas, e não carecem de explica- ções. O que requer alguns momentos de exame é a situação ou colloca- ção de Bokhára no «Uzbeque»; tanto mais que a versão de Clusius n'este ponto não c muito fiel, e elle suscitou alguns reparos da parte de Scaligero (Exotic, \5i c 244). Do Altiht 89 Bokhára, como o resto da Transoxiana, como outras regiões da tão perturbada Asia, pertenceu successivamente a diversos senhores. Fez algum tempo parte do Khanato de Chagátai, uma das grandes divisões em que se fraccionou o enorme império de Chengíz-Khan; mas, pelos começos do século xvi, occuparam aquella cidade os tártaros Uzbeks, antigamente habitantes do Khanato de Kipchák, e que derivavam o seu nome do de um dos seus Khans, o primeiro que professou o isla- mismo, Mahommed Uzbek. Ali se conservaram depois durante todo o século, com vicissitudes de boa e má fortuna, e interrupções mais ou menos longas. Temos a este respeito uma informação muito interes- sante para o nosso caso, por ser perfeitamente contemporânea — refe- re-se ao anno de i55o. É a relação de viagem de um certo mercador persa, Hadj Mohammed, feita por este verbalmente a Ramusio, que a incluiu no seu livro. Fallando das regiões de Samarkanda, elle diz que os lescilbas do barrete verde, tartari musubnani (os Uzbeks), occupa- vam aquellas terras, e tinham grandes guerras com os Soffiani do bar- rete vermelho (os súbditos do Súfí ou Scháh da Pérsia)'. Os lescilbas possuiam varias cidades, Vuna Bochara e l'altra Samarcand. No fim do século, Pedro Teixeira exprime-se d'este modo : U^bek és grandíssima província. . . ; e enumera as suas cidades principaes, Balk, Samarcand, Damarkand e Bokara. Vê-se, pois, que o nosso Orta, escrevendo em i56o proximamente, é correcto em collocar Bokhára no «Uzbeque» (Cf. Ramusio, Delle navigationi, 11, 16 v"; Teixeira, Relaciones, 383; e para a historia completa dos Uzbeks e de Bokhára, William Erskine, Uist. 0/ Báber and Humáyim, i. 26 et seqq., London, 1854). Deve ainda notar-se, que Orta se não enganava em dizer que a «Pérsia he pequena região», se se considerar a Pérsia propriamente dita, isto é, a provincia de Fars ou Farsistán. Nota (4) Receio muito, que o nosso Orta fizesse no seu espirito uma grave confusão, posto que isto não resulte bem claramente das suas palavras. É relativamente exacto quando falia do garb, o poente, de que pro- cedeu o nosso nome do Algarve. É também exacto quando falia dos «Magaraby», os habitantes do Maghreb, ou Maghrib, que — segundo o define El-Beckri — abrangia a Africa septentrional a partir da grande ' o barrete vermelho era o famoso Ka^albásch dos persas schiitas. Foi bem conhecido dos portuguezcs; Duarte Barbosa conta como o grande Ismael adoptou esta «dcvisa»; e Af- fonso de Albuquerque, quando escreve ao poderoso scháh da Pérsia, chama-lhe : Rei das ca- rapuças Roxas. Colóquio sétimo Syrta, e a Hespanha musulmana (Cf. a versão de Abu Obeid el-Beckri por De Slane, no Journ. Asiatique, 5"^ série, vol. xii (i858), 412 et seqq.). Ainda é exacto quando falia das differenças que podiam existir en- tre o arábico puro da Arábia, Syria, Mesopotâmia e outras regiões vi- zinhas, e o arábico do Occidente, ou do Maghreb ; posto que essas dif- ferenças, pelo que diz respeito á lingua escripta e litteraria, fossem pequenas (Cf, Renan, Hist. des langues sémitiques, 409 et seqq.). Quando, porém, insiste em que as obras «de Avicenna, e Galeno, e dos filósofos gregos, e as do falso profeta erao escriptas em lingua da Syria», esta phrase deixa-me suspeitar, que elle não distinguia clara- mente duas cousas bem diversas — o syriaco e o arábico da Syria: o syriaco, lingua já quasi morta no seu tempo, em que haviam sido feitas as primeiras versões dos auctores gregos; e o arábico, usado na Syria como em outras partes, e em que foram escriptos o Qanum e o Qpran. Nota (5) Parece-me preferível grupar em uma só nota, forçosamente um pouco extensa, o que temos a dizer sobre as interessantes noticias, que Orta dá em todo o Colóquio a respeito da asa-foetida. Vejamos em primeiro logar os nomes vulgares: — «Imgu» e «Imgara» são os nomes indianos citados, que correspon- dem ao sanskritico hingu, e aos nomes modernos hing e hingra de variedades da droga. — «Altiht» nome arábico da droga; isto é, vJ1,.^^Ja, hiltit. — «Anjuden» ou «Angeidan» nome arábico da planta de que ma- nava; isto é ^jÍAçs-'!, andjudan. — «Almharut» outro nome da planta; de v^j^s:^, mahrúth, appli- cado especialmente á raiz. Como se vê, tudo isto é exacto; e, á parte variantes de orthographia, tudo isto é fácil de identificar com o que encontramos nos livros anti- gos e modernos (Cf. Avicenna, na Interpretatio do Bellunense ; Spren- gel, Dioscórides, 11, 528; Ainslie, Mat. Indica, i, 20; Pharmacographia, 284; Dymock, Mat. med., 389). Da planta sabia pouco ; nunca a viu, e tinham-lhe apenas dito, que era uma arvore pequena, tendo folhas parecidas com as da «avellaneira». Comquanto ainda hoje existam alguns pontos duvidosos, parece ave- riguado, que a droga mais fina, chamada hing, procede da Ferula al- liacea, Boiss., que habita os terrenos áridos do Khorásán; emquanto a droga inferíor e commum do commercio se extrahe da Ferula Narthex, Boiss. (Narthex Asa-foetida, Falconer), encontrada ao norte do Kach- mira por este botânico, e da Ferula Asa-foetida, Linn. ( Scorodosma foeti- Do Altiht dum, Bunge)! dos desertos arenosos a nascente e poente do Arai, das terras ao sul de Samarkanda, do território de Herat, e de outros pontos da Pérsia e Afghanistan (Cf. Phannacographia, 280; Dymock, Mat. med., 38 1 a 385). Todas estas plantas são grandes Umbellifera' herbáceas, e não são arvores, nem têem folhas de «avellaneira». Orta estava, pois, mal infor- mado n'estc ponto. Quanto ao modo de obter a gomma-resina, sabia apenas que davam «cutiladas» na arvore para a extrahir, o que é exacto. Kãmpfer, o primeiro que descreveu methodicamente o processo de ex- tracção (1687), refere-se ao modo por que na Pérsia e Afghanistan cor- tam finas secções na parte superior da raiz para provocar a saída do sueco leitoso. Muito depois (1857) H. Bellew, que assistiu á colheita da droga na região de Kandahar, falia igualmente nas incisões profundas feitas na raiz. E recentemente o sr. Dymock, a quem devemos a ultima e mais completa noticia sobre as origens da asa-foetida, confirma as indicações de Kãmpfer e de Bellew sobre este ponto^. Orta sabia igualmente que a guardavam em «coiros de boy», mistu- rando-a com farinha de trigo. H. Bellew confirma a ultima indicação, dizendo que a adulteram nos sitios de producção, lançando-lhe gesso, ou farinha, yZoMr. E Dymock diz, que a trazem para a índia em coiros, packed in a skin, descrevendo mais detidamente o que diz respeito á região de Kandahar, se\vn up in goat skins, forming small oblong bales, with the hair outside — uma espécie de odres. Como se vê, o nosso es- criptor continua a ser exacto. Onde, porém, Orta é particularmente interessante, é n'aquillo que pôde observar directamente. No nosso século, o zeloso pharmacologista Guibourt chamou a attenção para uma amostra de asa-foetida, vinda da índia, muito pura, de cheiro forte e repugnantíssimo, e da cor de miei foncé. Segundo os auctores da Pharmacographia, esta variedade da droga forma: a dark bronm, translucent, brittle mass, of extremely al- liaceous odour. E recentemente, o sr. Dymock diz, que a ella se dá o nome especial de hing, que é produzida pela Ferula alliacea e vale perto do triplo da ordinária, acrescentando, que Guibourt foi o primeiro europeu que a notou. Mas a verdade é, que ella vem claramente apontada pelo nosso escriptor. Aquella asa-foetida «limpa e crara«, ' Os géneros Narthex e Scorodosma estão incluídos no género Ferula (Bentham e Hoo- ker, Genera plantaram, i, 918). A identidade da planta de Kiimpfcr [Ferula Asa-foetida Linn.) com a de Bunge foi posta em duvida, mas é admittida por Boissicr (Flora Orientalis, II, 994)- * É interessante a noticia do portuguez Teixeira, posterior a Orta, mas muito anterior a Kãmpfer. Diz elle : coge-se la mas d'ella en Jin dei otoiio, por que enfin dei estio acochillan las plantas y comicnca a distillar. Refere-se a Duzgun no Laristan, um dos sitios clássicos da producção d'csta droga (Relaciones, 92 e 93). 92 Colóquio sétimo tendo a cor como «latam muito luzio», tendo o «cheiro mais forte», e sendo de «mais preço», era evidentemente o hing da Ferula allia- cea (Cf. Guibourt, Hist. nat. des drogues, iii, 241; Pharmacographia^ 284; Dymock, I. c, 38 1, 382). Vejamos ainda as procedências. Grande parte da droga, segundo Orta, vinha de «Ormuz» ; isto era verdade no seu tempo, e ainda é verdade no nosso, se não propriamente de Hormuz, hoje decadente, ao menos do Golfo Persico em geral : much is shipped in the Persian Gulf for Bombay (Pharmac, 285). Outra vinha ter ao Guzerate, e di- ziam os guzerates, que procedia de Chitor e do Patane (Afghanistan?) e Dely. Estas indicações, tomadas á lettra são inexactas, porque, nem no reino de Dehli, nem em Mandou ou Chitor havia asa-fostida; mas Orta quer referir-se á que entrava na índia por terra e pela fronteira do noroeste. N'este sentido a affirmação deve ser exacta, e ainda hoje alguma asa-fostida — computada no anno de 1864 em valor superior a 2:000 £ — continua a vir á índia pela via de Kandahar e desfiladeiros de Bolán até Shikarpúr, emquanto outra vem pelo Cabul a Peshawár (Cf Davies, Report on the trade of central Asia, 18 e 21). Se prescindirmos, pois, de algumas inexactidões, perfeitamente ex- plicáveis pelos escassos meios de informação de que o nosso auctor dis- punha em relação a regiões, que nunca visitou e eram pouco conheci- das, vemos que a sua noticia sobre as origens da asa-fcetida é bastante completa e sobretudo notavelmente exacta. Dos usos, bem conhecidos, da droga pouco ha a notar. A asa-foetida figura ainda hoje em todas as Pharmacopêas como um anti-spasmodico poderoso; e na índia foi também considerada aperitiva e aphrodisiaca. O que era novo para Garcia da Orta, era o seu emprego constante como condimento; e naturalmente este tempero mal cheiroso repu- gnava aos seus hábitos de europeu. Comtudo elle confessa que uns cer- tos bredos, temperados com asa-foetida, lhe não cheiraram e mesmo lhe não souberam muito mal. Passaremos também de leve sobre a interminável questão da identi- dade ou não identidade da asa-foetida com o laserpitium, recordando apenas o sufficiente para elucidar o que diz o nosso escriptor. O cele- bre ortXcptov dos gregos, o laserpitium dos latinos, era uma planta africana, que habitava particularmente na peninsula Cyrenaica. Julgaram alguns tel-a encontrado ali modernamente; mas pesquizas cuidadosamente fei- tas, sobretudo pelo sr. Julio Daveau, demonstraram, que o supposto sil- phion era simplesmente a vulgar Thapsia garganica, Linn., uma planta medicinal, mas de qualidades diversas da antiga, a qual se deve julgar extincta. Como este silphion ou laserpitium africano fosse raro já nos tempos de Plinio e de Dioscórides, empregava-se em seu logar uma droga de inferior qualidade, á qual se dava o mesmo nome, e que vinha do Oriente, da Syria, da Pérsia e da Média. Será difficil decidir com Do Altiht 93 segurança se aquelle laserpitium asiático era a asa-fcetida; mas esta opinião não parece inacceitavel, antes muito plausivel. Orta, um pouco confusamente na verdade, inclina-se a este modo de ver; e repelle,com toda a rasão, qualquer approximação entre o laserpitium e o beijoim, do qual trataremos no Colóquio respectivo. (Cf. Hérink, La vérité sur le prétendu Silphion de la Cyrénaique; Sprengel, Dioscórides, ii, 527; Guibourt, Hist. des drogues, iii, 238; Jonathan Pereira, Elements of mat. medica, vol. 11, part. 11, p. 174, 4."» edition, London, 1857). Nota (6) Confundem-se aqui duas plantas, ambas da mesma familia das Um- belliferce, e que ambas tiveram um momento de celebridade. Uma é a Imperatoria Ostruthium, Linn.i; a outra, a cuja raiz se deu o nome de ra/f angélica, e de raif do espirito santo, é a Archangelica officinalis, Hoíf. et Koch (Angelica archangelica, Linn.), que ainda figura nas Pharmacopéas, mas é pouco empregada. t Nota (7) Do Anil falia o nosso Orta brevemente e com um certo desprendi- mento, parecendo-lhe matéria mais própria de «contratadores», que de «filósofos». Indica, porém, o nome moderno na índia, «Nil», o qual vem do sanskritico nilí, que se deriva de Hlrooo réis dos nossos dias^. Por mais franco e liberal que fosse Buhrán, a paga seria um pouco forte. Ape- sar pois de o erro de imprensa ser ditticil de admittir, por a quantia es- tar escripta «quarenta» e não em cifra, devemos suppor que n'este ponto houve um dos mil enganos do compositor, ou um lapso do pró- prio Orta. O que, em todo o caso, não é admissível, é que este exa- gerasse por vaidade e jactância a quantia que lhe offereceram. Redu- zida a cifra á decima parte ainda nos dá o equivalente de i8:oooítooo de réis, e poucos médicos se pagam por esse preço. O facto de Garcia da Orta não acceitar aquelle brilhante offereci- mento explica-se, pois alem de o prenderem em Goa todos os seus hábitos e relações, esta passagern para o serviço estipendiado de um rei estranho e mussulmano lhe seria levada a mal, como um abandono de nacionalidade e quasi de religião. Nota (4) Este Colóquio, que é sem duvida alguma um dos mais curiosos de todo o livro, é também um dos mais difficeis de esclarecer. O nosso Orta, sempre confuso, excedeu-se n'esta parte, e enredou uma serie de noticias tão desordenadas quanto interessantes. Vamos ver se lhe desfiamos a meada. Diz elle, que um «poderoso Rey do reino Dely» conquistara haveria 3oo annos aquellas terras do sul. Não diz o nome do rei, mas João de Barros, que nas suas Décadas falia também do rei que conquistou o ' No meu anterior trabalho sobre Garcia da Orta, e a propósito das rendas de Bombaim, eu náo fiz por inadvertência esta comparação da antiga moeda com o seu actual valor; a qual, de resto, tem sido omittida por quasi todos os nossos modernos escriptorcs sobre cousas da Índia. Vejam-se sobre esta questão algumas das notas seguintes, particularmente as no- tas ao Colóquio do cravo. 128 Colóquio decimo Deckan, chama-lhe Xa Nosaradin. Barros, porém, deve estar enganado, pois Nasir ed-Din nunca estendeu as suas conquistas tanto para o sul. O soberano de Dehli a quem Orta se quer referir, devia ser Alá ed-Din Khiljy. O seu general Aluf Khan tomou aos Rájpúts as terras do Guze- rate — a que Orta chama Cambaya — ; e mais tarde, outro dos seus ge- neraes, um antigo escravo, chamado Melik Káfúr, correu e senhoreou todo o litoral do Concan e Canará, assim como o Deckan interior — o Ba- lagate de Orta. Como Alá ed-Din Khiljy reinou em Dehli do anno de 1296 ao de i3i6, e Orta escrevia ahi pelo de i56o, temos quasi a conta dos seus 3oo annos (Cf. Barros, Asia, 11, v, 2 ; Elphinstone, The history of índia, 6."> édition by Cowel, Sgo et seqq.; Mahomed Kasim Ferishta, History of the rise of the Mahomedan power in índia, traducção do coronel Briggs, i, 32i a 385). Segundo Orta, a terra foi tomada aos Reisbutos, aos Colles e aos Venezaras. Os «Reisbutos» não são difficeis de identificar com os conhecidos Rájpúts, nome que vem do sanskrito Rãjaputra, ou «filhos de rei». Esta grande raça, que se jactava de descender de sangue real, seguia em regra a profissão das armas; e Duarte Barbosa, um dos portugue- zes de então que melhor viram as cousas da índia, chama-lhes correcta- mente: «hos cavalleiros e defensores da terra». Posto que espalhados por quasi toda a índia, eram mais numerosos n'aquella região de no- roeste, ainda hoje marcada em algumas cartas com o nome de Rájpu- tana. Desapossados de parte das suas terras pelos mussulmanos, con- tinuavam no emtanto a ter bastante importância no tempo de Orta, como é fácil de ver a cada pagina das historias de Dehli e do Guzerate. Algumas d'estas tribus guerreiras, no momento da sua decadência, transformaram-se em bandos e quadrilhas de salteadores, como era natur*! succeder; e vários estados ou cidades lhes pagavam tributos para não serem roubados, uma espécie de black-mail, como bem diz o nosso escripior. Os portuguezes chamavam-lhes Resbutos, Reisbutos, ou com outras formas orthographicas; e o secretario, que redigiu o tra- tado entre Bahádur Schah e Nuno da Cunha, escreveu Reis buutos, voltando assim, sem d'isso ter consciência, á primitiva significação da primeira parte do nome (Cf. Duarte Barbosa, Livro, 276;Felner, Subsi- dias, 137; Elphinstone 1. c, 83, 25o, etc; Yule e Burnell, Glossary, pa- lavra Rajpoot). Os «Colles» ou Kolís pertenciam a tribus selvagens das florestas e montanhas, e eram numerosos nos Ghates occidentaes, em terras do Guzerate, do Concan e do Deckan. Esta raça tem caído, e já tinha caído no tempo de Orta, a occupações baixas e servis, sendo os da costa principalmente pescadores e barqueiros. Simão Botelho, no Tombo do Estado da índia, falia do que elles pagavam de impostos: «E a renda dos coles, que são pescadores que vão pescar ás estaqua- Do Ber 129 das do mar, e por este Rio de baçaim. . .». Parece, todavia, que alguns conservavam uma certa força, se impunham pelo terror mesmo a ci- dades ou povoações de estados poderosos, e, do mesmo modo que os Rájputs, recebiam aquelles impostos de que Orta falia. João de Barros trata largamente dos impostos que a cidade de Champanel (Champa- nír) pagava aos «Gollijs», do modo bárbaro por que Bahádur Schah tratou os seus enviados, e da vingança que d'isso tirou o «rei (?) dos GoUijs». Estes Kolis occidentaes deviam relacionar-se com outras tri- bus, Mundaris, Bhils, etc, que faliam ou fallaram linguas afastadas das do grupo sanskritico e das do grupo dravidico, provisoriamente reuni- das no grupo chamado kolarico; e eram talvez os descendentes dos antigos habitantes da Índia, os dasyus dos primeiros Aryas (Cf. Felner, Subsídios, i55; Barros, Asia, iv, v, 7; um extracto do dr. Cárter, Casíes in the Bombay presidency, no Indian antiquary, 11 (i^yS), 154; Yule e Burnell, Glossary, palavra Cooli; Cust, Modem languages of east In- dies, 79, London, 187S; Latham, Descript. Ethnology, 11,415 et seqq.). Os «Venezaras» de Orta são os Banjárás. Hesitei muito tempo quanto á verdadeira significação d'aquelle singular nome; e, conver- sando no assumpto com o erudito indianista, Gerson da Cunha, lo este quem primeiro me suggeriu a identificação. Achei depois, que já fòra feita no excellente Glossário de H. Yule e A. Burnell, tão cheio de preciosas indicações de todo o género. Os brinjarries, banjárás, ouvan- járás são uns commerciantes nómadas, de raça especial e origem um tanto problemática, que desde tempos antigos percorrem a índia com grandes manadas ou cáfilas de bois mansos, carregados de cereaes, sal e outras mercadorias. Duarte Barbosa conhecia-os, sem lhes saber ou pelo menos sem lhes citar o nome. Paliando de uma espécie de feira, que se fazia em Ghaul, diz assim : «hos mercadores que aquy vem tratar no tempo que acima digo, hos que saom do certam vem por tera, e assentaom araial com tudo ho que trazem, em hu lugar que estaa de Ghaul contra o certam hua pequena leguoa; trazem estes suas mercadorias em muy grandes re- couas de bois mansos, com suas albardas, como castelhanas, e em cima húas sacas compridas atravesadas, sobre que carregaom suas mercado- rias, e traz logo hiãu condutor que leva vinte, trinta bois diante de sy.» Aos mesmos negociantes se deve referir Gaspar Correa; mas tam- bém lhes não cita o nome : «... huma nova estrada que agora se fazia pola Serra, e corria para as terras d'Orixá e de Bencalla, que erão cáfilas de bois de carga, que cada hum levava em alforges hum bár de pimenta, e erão tantos que exgotavão toda a pimenta, porque trazião arroz de Ghoramandel. . . » Estes vanjárás foram sempre conhecidos como negociantes nómadas, e de certo não estavam fixados, nem eram senhores de terras, pelo me- nos em uma data tão recente, como seria a epocha da conquista mus- 9 Colóquio decimo sulmana. N'esta parte Orta deve estar enganado. E este engano, junto á dissimilhança que ha entre vanjárá e venerara, podia lançar alguma duvida sobre a identificação. É certo, porém, que outros viajantes, re- ferindo-se evidentemente aos vanjárás, lhes dão o mesmo nome que Orta. João Alberto de Mandeslo, que andou pela índia no anno de 1639, falia dos negociantes que percorrem o Deckan e Hindustan com cáfilas ou caravanas de nove e dez mil animaes carregados de arroz, trigo e outras mercadorias, e acompanhados sempre pelas mulheres e famihas; e diz que lhes chamam Venesars. (Duarte Barbosa, Livro, 290; Lendas, 11, SSg; Yule e Burnell, Glos- sary, palavra Brinjarry; resumo das viagens de Mandeslo, na Hist. gé- nér. des Voyages, xxxvii, 249, Paris, 1752). Nota (5) Sobre esta indicação, de o reino de Dehli confinar com o Khorásán veja-se a nota (i) ao Colóquio vii. E quanto ao clima do Panjáb e ou- tras províncias do norte da índia, é certo ser tanto ou mais rigoroso do que Orta o descreve. Nota (6) Os «Mogores» de Orta vinham commandados pelo celebre Báber, o qual descendia de raça turca chagatai pelo pae, e de raça mongol pela mãe; e fundou na índia o poderosíssimo império, vulgarmente cha- mado do Grão-Mogol, que deixou a seu filho Humáyum. Báber tomou Dehli e Agra no anno de i526; e Orta é pois exactíssimo dizendo: «ha mais de 3o annos» (Cf. Erskine, History of Báber and Humáyum, 1, 437 et seqq.). O «irmão d'el-rei Dely», que Orta conheceu pessoalmente, chama- va-se Mohammed Zéman Mirza, e era casado com Maasúma Sultan Begum, filha de Báber, sendo, portanto, cunhado e não irmão de Hu- máyum. Este personagem, bastante inquieto e turbulento, tinha entrado em varias conspirações contra o cunhado, e veiu fugido para a corte de Bahádur Scháh pelos fins do anno de i534, ou correr do seguinte. No mesmo anno de i535, o nosso Orta veiu para Diu na expedição de Martim Aftbnso de Sousa, como contámos largamente na sua vida; e ali o encontrou então no séquito de Bahádur (Cf. Erskine, n, i3 et seqq. ; Garcia da Orla e o seu tempo, 95 et seqq.). Deve notar-se, que o tal Mohammed teve muitas relações com os portuguezes, e foi mesmo favorecido por Nuno da Cunha nas suas pre- tensões ao throno de Cambaya, depois da morte violenta de Bahádur. Do Ber- i3i Gaspar Corrêa falia delle, chamando-lhe Mamedascão ; Barros dá-lhe mais correctamente o nome de Mir Mohamed Zaman; e Couto dedi- ca-lhe um capitulo quasi completo, mas em alguns pontos confuso e inexacto (Cf. Lendas, ni, 788; Barros, Asia, iv, viii, 10 e 1 1 ; Couto, Asia, V, I, i3). Nota (7) Se do «cavalleiro de uma lança» se não poderia fazer uma chronica superior á do grande Timur — como diz o nosso Orta — é certo que elle foi uma figura notabilissima na historia da índia; assim como é certo, que as noticias de Orta sobre a sua vida são em substancia verdadeiras. Scher Khan, conhecido depois de rei pelo nome de Scher Schah, era um afghan da tribu de Súr, a qual occupava o Roh, uma região mon- tanhosa para os lados de Pesháwar. Orta é, pois, exacto dizendo que elle era «patane», pois os nossos escriptores nunca empregam o nome de afghan, que parecem desconhecer, e designam sempre aquelles po- vos, de origem um pouco duvidosa e fallando uma lingua do grupo iranico, o pashtii, pelo nome equivalente de patane, ou pátan. E quando Orta diz, que elle era de umas «serras que partião com Bengala», não o diz por engano, deslocando o Roh e o Afghanistan para o centro da índia, mas quer referir-se ás terras confinantes com Bengala, onde do- minavam os afghans, que em grande numero entraram na índia quando governavam em Dehli sultões da sua raça. Barros também colloca os patanes tocando em Bengala; e Gaspar Corrêa situa muito claramente o «reyno dos Patanes», entre o reino de Dehli e o reino de Bengala. N'esta situação houve effectivamente e durante pouco tempo um es- tado afghan independente, estabelecido nas terras de Behar e Juanpúra, e governado pelo sultão Mohammed Lohani e outros. Ora Scher Khan, que já nascêra na índia, era patane de raça, mas originário d'aquellas regiões. Da historia, bem conhecida, de Scher Scháh, bastará recordar as circumstancias essenciaes, que concordam com o que diz o nosso au- ctor; isto é, que elle se apossou do reino de Bengala, e mais tarde do grande império de Dehli, sendo então, durante alguns annos (i 540-1 545) um dos maiores potentados de todo o Oriente. D'este Scher Khan faliam bastante os nossos escriptores, porque, quando elle atacou Bengala, andava por lá um troço de portuguezes, sob o commando de Martim AfTonso de Mello. Barros chama-lhe Xer- chan, e Gaspar Correa, Xercansor (de Scher Khan Súr). Tanto Barros como Couto, mencionam aquelle titulo de rei do Mundo, Xiah Olam, ou Xah Holão, a que Orta se refere, mas não encontrei esta noticia confirmada pelos escriptores modernos ou orientaes, que pude con- l32 Colóquio decimo sultar (Cf. Elphinstone, 456; Ferishta, 11, 98 a i25; Erskine, 11, iio et seqq.; Barros, Asia, iv, ix, 6 e seguintes; Gaspar Corrêa, Lendas, iii, 719 et seqq.). ^. Nota (8) A cordilheira de montanhas, que vem ao longo da costa occidental da índia, recebe em geral o nome de Ghãt, Guate ou Gate na ortho- graphia dos nossos. D'ella fallaram varias vezes os escriptores portu- guezes, e entre estes Camões : Aqui se enxerga lá do mar undoso Hum monte alto, .que corre longamente. Servindo ao Malabar de forte muro, Com que do Canará vive seguro. Da terra os naturaes lhe chamam Gate,. . . A palavra maratha ghãt significava propriamente um desfiladeiro, ou cortadura da montanha, por onde esta se podia atravessar; mas veiu a ser tomada no sentido geral de serra, como a toma Orta e a to- mou também Barros, ou como sendo o nome próprio d'aquella serra. O reparo orographico de Orta é exacto, porque o desnivellamento ou descida para o interior é relativamente pequeno, ficando por detraz dos Ghates os grandes planaltos centraes da índia. A esses planaltos davam o nome de Balagate (Orta escreve habitualmente Balagate e algumas vezes Balaguate), da palavra persiana bálá, que significa acima. O Balagate estava, pois, acima da montanha, htteralmente acima dos desfiladeiros, por onde essa montanha se podia subir (Cf. Yule e Bur- nell, Glossary, nas palavras Balaghaut e Ghaut; Barros, Asia, i, iv, 7). Nota (9) Toda esta pagina contém varias inexactidões, que é necessário apon- tar; mas antes devemos explicar a discrepância que existe entre o texto portuguez de Garcia da Orta, e a versão latina de Glusius. Na sua habitual desordem de redacção, o nosso escriptor esquece-se das suas digressões a propósito dos últimos soberanos de Dehli, Báber, Humáyum, e Scher Scháh, retrocede de trcs séculos a fallar do primeiro rei a que se referiu, e diz «este rey Delyu. Clusius não o percebeu bem — o que, seja dito em abono da verdade, lhe succedeu poucas vezes— e, enganado pela fórma grammatical, attribuiu tudo quanto se segue a Scher Schah, o que é simplesmente absurdo e historicamente inintelli- Do Ber^ i33 givel. A verdade é, que Orta quer fallar de Alá ed-Din; mas ainda com esta correcção está longe de ser exacto. Em primeiro logar dá a entender, que a separação do Deckan teve logar logo em seguida á conquista. Isto não é verdade; o Deckan, an- nexado em grande parte ao império de Dehli no reinado de Alá ed-Din, só se separou perto de cincoenta annos depois no reinado de Mahom- med Tuglak, quando Haçan Gangú (1347) fundou no sul a dynastia independente de Bahmany (Cf. Ferishta, 11, 290, etc). Em segundo logar, Orta falia da divisão do Deckan — a qual não foi, nem tão voluntária, nem tão regular quanto elle diz — como de um successo immediato á sua independência. Vae aqui envolvido um ana- chronismo ainda mais grave que o anterior. O Deckan conservou-se independente e unido perto de cento e cincoenta annos, do meiado do século XIV aos fins do xv ou princípios do xvi. Foi só então, no rei- nado do fraco Mahmud Scháh II, que os senhores mais poderosos da côrte, Yusuf Adil Khán, Nizam el-Mulk, Kasim Berid e outros se de- clararam independentes, e fundaram outras tantas dynastias, o que ve- remos melhor na nota seguinte. Apesar d'estes erros, vê-se que o nosso escriptor tinha um certo conhecimento dos successos políticos a que se refere. Assim, o que nos diz sobre a estada do «rey Daquem», isto é, de Mahmud Scháh, em Bider, sob a guarda, ou antes na custodia de Kasim Berid, é perfeita- mente exacto, como é exacta a sua noticia em relação ás formulas de respeito, que os revoltosos conservaram durante algum tempo na pre- sença do seu antigo soberano (Cf. Ferishta, 11, Sig et seqq.). Nota (10) Vamos ver se deslindamos quem foram todos estes personagens, e comecemos pelos mais conhecidos. Diz Orta: «o bisavô d'este Adelham que agora hé. . .». Este bisavô era Yusuf Adil Khán, o qual veiu para a índia na qualidade de escravo; mas alguns diziam ser filho do sultão ottomano Amurat II. No reinado de Mahommed Bahmany chegou a adquirir uma grande importância, sendo o chefe do partido dos estrangeiros, árabes, persas, turcos do norte e da Asia menor ou: «Turcos, Rumes, e Coraçones e Arábios», como Orta diz correctamente. Durante a anarchia, que se estabeleceu no reinado de Mahmud, successor de Mahommed, declarou-se indepen- dente, mandando ler a khutbah em seu nome, e tomando o titulo real de Adil Schah, que depois usaram os seus descendentes. Bijapúra era a capital dos seus estados, que se alongavam á parte do Concan onde ficava Goa. A este e aos seus successores chamaram os escriptores portuguezes Hidalcao e Sabayo — Hidalcáo pela corrupção de Adil i34 Colóquio decimo Khán", e Sabayo pelos motivos que veremos adiante. Yusuf morreu no anno de i5io, no intervallo que decorreu entre as duas tomadas de Goa por AfTonso de Albuquerque. Succedeu-lhe seu filho Ismael Adil Scháh, o qual morreu no anno de i534, data que Orta confundiu com a da morte do pae. A Ismael succedeu seu filho, Mullú, a este um irmão, chamado Ibrahim, e a Ibrahim, no anno de iSSy, seu filho Ali, o qual reinava no tempo em que Orta escrevia, e era, como se vê, bisneto de Yusuf2 (Cf. Ferishta, iii, 4 a 112; Garcia da Orta e o seu tempo, 224). Diz Orta: «E o avô d'este Nizamaluco. . . « Segundo o historiador Ferishta, o primeiro personagem importante d'esta linha foi um hindú do Deckan, um «Decanim» pois, como affirma o nosso escriptor. Quando mudou de religião, mudou também o seu antigo nome de Timapa no de Haçan Bheiry, e foi depois mais conhecido pelo seu titulo de Nizam el-Mulk. Em seguida á sua morte violenta, seu filho Ahmed declarou-se independente no seu feudo ou jagir, fundando a capital a que deu o nome de Ahmednagar, e tomando a designação real de Ahmed Nizam Scháh. Succedeu a Ahmed, no anno de i5o8 ou iSog, seu filho Buhrán Nizam Scháh, o qual foi o grande e intimo amigo de Garcia da Orta. E, por morte de Buhrán (1 553), succedeu-lhe Huçein, o qual reinava quando Orta escreveu, e era effectivamente neto do primeiro Nizam Scháh. Os portuguezes chamaram aos soberanos d'esta dynastia indistincta- mente «Nizamaluco» e «Nizamoxa», accentuando a ultima syllaba. No tratado de paz de Buhrán com D. Garcia de Noronha diz-se : «hu Niza muxaa, que dantes se chamava hu Niza maluquo.» (Cf. Ferishta, ui, 189 a 237; Garcia da Orta e o seu tempo, 227 et seqq.). Diz Orta: «O Imadmaluco, ou Madremaluco ... foi Cherquez de na- ção . . . e morreu no anno de 1546.» Está n'este ponto menos bem in- formado. Segundo Ferishta, Fath Ullah, que teve primeiro o titulo de Imad el-Mulk, era um hindú, e não um «Cherques» ou circassiano. Morreu no anno de 1484; e mesmo o seu filho, o primeiro que usou o titulo real de Imad Scháh, morreu antes da data indicada pelo nosso escriptor. A capital de Berar — o pequeno reino do Imad Scháh — era em Eiichpúra (Cf. Elphinstone, 761; Ferishta, iii, 485 a 489). Diz Orta: «O Cotai maluco que morreu no anno de 1548 ... foi Coraçone de nação». Dizem os escriptores orientaes, que Sultan Kulí era turco ou turcomano de raça, mas nascera na província de Hama- dan da Pérsia— isto é no «Coraçone», no sentido lato que Orta dá á palavra. Pertencia á familia celebre dos Kara-cuvinlu, ou do Carneiro ' Hidalcáo ou Idalcáo; o h com que habitualmente o escreviam resultava do som guttu- ral da letra ain (^^ pela qual começava o nome de Adil. ' Orta refere-se logo adiante ao mesmo personagem , escrevendo o nome Idalham, e di- zendo que era neto do antigo senhor dc Goa; mas a primeira affirmaçáo é a verdadeira. Do Ber i35 preto, e veiu para a índia fugindo ás perseguições dos Ak-cuvinlu ou do Carneiro branco. Nomeado Qutb el-MuIk pelo rei do Decican, foi um dos últimos que abandonou o partido do soberano e declarou a sua in- dependência, tomando entcão o titulo de Qutb Scháh. A capital dos seus estados era na celebrada Gólconda. Foi assassinado, sendo já muito velho, no anno de i543 (Cf. Ferishta, iii, 32i; e outra relação dada por Briggs em appendice, 1. c. SSg et seqq.). Diz finalmente Orta: «O Verido, que morreu no anno de i5io, foy Ungaro de nação, e primeiro cTiristao. . Ferishta affirma, que Kasim Berid era um escravo georgiano, vendido a Mahommed Scháh por Khuája Sahib ed-Din. A procedência, porém, d'estes escravos do Occi- dente era difficil de averiguar, e nada nos impede de acceitar a versão de Orta, tanto mais que elle assegura tel-a obtido por «certa enforma- ção». Kasim Berid foi primeiro ministro de Mahmud Scháh, e governou em Bíder, durante tempo em nome do Scháh, e depois em seu próprio nome. Quando morreu (i5o4 e não i5io), seu filho Amir tomou o ti- tulo de Berid Scháh (Cf. Ferishta, iii, 495). Quanto ao «Mohadum Coja», um dos que se rebellaram, e houve as cidades de «Visapor, e Solapor e Paranda,» devia ser um certo Khuája Jehan Deckany, também conhecido pelo titulo de Mukdum Khan, ao qual Mahmud Scháh dera as fortalezas de Purenda (ou Parenda) e Sho- lapúra, e depois figurou bastante nas intrigas e luctas d'aquella epocha (Cf. Ferishta, n, 52q). Não posso identificar com segurança o «Veriche»; as suas terras, confinando com Cambaya e com os estados de Nizam-Schah, de- viam estar situadas na bacia do Tapti, e portanto no Kándésh; mas não encontro n'este tempo e região pessoa importante de nome pare- cido. Nota (i i) Para estabelecer uma similhança de ordem nas noticias do nosso escriptor, vejamos primeiro o que nos diz das distincçÕes e titulos em geral, e depois trataremos dos nomes próprios das pessoas. Rãjã ( ^ isl I ), rãj, e d'ahi ray, ráo, significava rei em sanskrito e nas modernas linguas derivadas, isto é, «acerca dos gentios» ; e os mouros ou mussulmanos usavam também d'estas designações, restrin- gindo-as geralmente aos príncipes hindus. O mesmo succedia com a palavra naik, naique (sanskrito naika), que significava conductor ou chefe, e d'ahi «capitão», como Orta diz. Os portuguezes designavam com este nome os officiaes indígenas ao seu serviço. Encontram-se no Tombo do Estado da índia muitas inscrip- ções análogas á seguinte que damos como exemplo : «E a hum naique com seis piães. . . que todos servem o governador. . .» Parece, porém, i36 Colóquio decimo que os naiques tinham pouca auctoridade, e se podem comparar ape- nas com os sargentos ou officiaes inferiores. Não me consta que o rãjã de Bijayanagar tivesse um titulo especial — como era o de Rana em Udipúra — ou fosse chamado o Râjã por ex- cellencia. Isto devia, porém, succeder em Goa, pois nas vizinhanças não existia outro principe hindú de poder igual, nem mesmo comparável. Bijayanagar, ou Vijayanagara (a cidade da victoria), que os portu- guezes escreviam Bisnaguer, Bisnagua, Bisnaga, era a capital de um poderoso estado hindú, chamado pelos nossos reino de Narsinga, do nome de um dos seus antigos soberanos Narasinha (o homem leão). Orta aponta com rasao o grande poder d'aquelle estado «nos tempos d'agora», isto é, pelas proximidades do anno de i56o. Effectivamente ha- via augmentado muito em importância no reinado de Krishna Raya; e tanto, que pouco depois (i565) todos os soberanos mussulmanos do Deckan se ligaram contra Ram Rãjã, successor de Krishna, desbaratan- do-o na importante batalha de Talicót. O grande e rico estado hindú ficou então aniquilado, porque — como diz Orta, na sua tranquilla phi- losophia — «todas as cousas socedem ás vezes». (Cf. Elphinstone, 477; Ferishta, iii, 127, 414). Os titulos, indicados por Garcia da Orta, e usados pelos puros mus- sulmanos, foram bem conhecidos na índia, predominando n'uma certa successão, que é interessante notar. Os primeiros que ali entraram, árabes pela maior parte, contenta- ram-se com o titulo supremo puramente arábico de ^^^^ scheikh, ou Xeque na orthographia dos nossos. Significava simplesmente velho, se- nex, e veiu a designar o chefe, por uma derivação de sentido absolu- tamente igual á da nossa palavra portugueza senhor (do latim senio- rem). Depois, sob a influencia dos faustosos e apparatosos Khalifas, multiplicaram-se as designações pomposas. Sol da fé, Leão de Deus, Estrella do reino, e varias mais que adiante veremos. A onda de conquistadores e aventureiros do norte trouxe para a índia aquelle titulo, que Orta diz correctamente ser tártaro e escreve Hatn, ou maliciosamente Cam, isto é khán, ^jlsk, que em turco si- gnifica principe. O filho do grande Chengíz-Khan, Okkodai, assumiu o titulo muito superior de Cáán, Qáán, ou Kháqán. Este era, assim como os seus successores, aquelle mysterioso potentado, o Grão Cão da Taríaria, ás vezes chamado Grande Cão — fr. Odorico escreve em latim, magnus canis. Os restantes principes usavam, porém, o titulo mais modesto de khan, que depois na índia se vulgarisou muito, dan- do-se a quasi todos os generaes, e a outras pessoas importantes. Finalmente, sob os Kiljís de Dehli, empregou-se com frequência a designação de Melique, s^JU, melik, muito usada entre afghans. Do Ber i37 Significava primitivamente rei; mas distribuia-se com tanta prodigali- dade, que Orta tem toda a rasao em lhes chamar reisinhos. O titulo de scháh, íU,, na nossa orthographia antiga Xa^, era muito superior; e — com raríssimas excepções — só se dava a príncipes reinan- tes de estados independentes. Era eíTectivamente de origem persiana; mas Orta está enganado quando attribue a sua introducçSo no Deckan á influencia de Thamasp, pois se usava muito antes em Dehli, e no próprio Deckan. (Cf. Yule, Cathay, cxvii, e 128; D'Ohsson, Hist. des Mongóis, n, 11; uma nota do coronel Briggs, em Ferishta, i, 291 ; Bloch- mann, Biogr. notes of grandees of the mughul Court, no Ind. Ant. (1872), p. 259 et seqq.). Vejamos agora o que Orta nos diz dos litulos e nomes especiaes de algumas pessoas. D'entre os hindus, cita apenas o nome do seu conhecido «Chita Rao», que diz significar «rey tão forte como uma onça». Chitá é effectiva- mente o nome da onça ou leopardo de caça, o Felix jubata; e deri- va-se de chitraka, que significa pintado ou malhado. D'entre os mussulmanos, menciona vários nomes com as suas deri- vações, em grande parte exactas. «Adelham» — diz elle — significa «rey de justiça». Isto é exacto: Jjls, adil, significa justiça e justo (jiistitia, cequitas, justus, cequus em Freytag) d'onde ^^J^ J-^j ° príncipe justo. Orta é menos feliz na ex- plicação do nome de Sabayo, pelo qual também era conhecido o mesmo personagem; «saibo», isto é v_^sísi.Lo sahib, quer effectivamente dizer senhor (dominus, jninister regis em Freytag) ; mas esta não é a origem. Yusuf era natural ou, pelo menos, procedente da cidade persiana de Sawah, a cujos habitantes se dava o nome de sawi, d'onde Sabayo, como o nosso João de Barros sabia e explica mui correcta e claramente (Cf. Meynard, Dict. de la Perse, 299; Ferishta, iii, 8; Bar- ros, Asia, i:, v, 2). Orta deriva Ni^am el-Mulk de ne^a (lança em persiano), no que se engana. Nijain significa ordenamento, d'onde v^CU! ^Lki Nijani el-Mulk significa o administrador ou regulador do estado. Deriva Cotalmaluco ou Qutb el-Mulk de cota, fortaleza; quando o nome é ainda mais pomposo; n^^XUI v^^Ja3 quer dizer a estrella po- lar do estado. ' A. velha orthographia portugueza dos nomes orientaes era sonicamente muito exacta. Xá e xegue dáo-nos bem o som das palavras persiana c arábica, como Xercansor nos dá muito proximamente Scher Khan Siir. Pareceu-me, porém, que a sua adopção seria hoje inadmissível, porque a orthographia se dirige aos olhos, tanto pelo menos como aos ouvidos, e esta volta a formas já hoje desusadas introduz um elemento de incerteza na leitura. i38 Colóquio decimo É exacto na derivação de Imadmaluco, Jmad el-Mulk, ^Lôí, que de feito significa o esteio ou pilar do estado. Finalmente deriva «Verido» de «recado» ou «guarda», no que pa- rece não andar muito longe da verdade. O coronel Briggs, no Appen- dix á sua versão de Ferishta, dá a Berid, Jj , o sentido de illustre. Blochmann, porém, diz que Barid (do latim veredus) era um dos car- gos da corte, court intelligencer, o que se não afasta da interpretação de Orta (Cf. Briggs, no Appendix i a Ferishta, vol. iv, p. 56 1, d'onde principalmente extrahi as noticias precedentes; Blochmann, 1. c, p. 260) Nota (12) A noticia de Orta sobre o grande Ismael da Pérsia é fundada na verdade dos factos, posto que envolvida em muitas circumstancias in- exactas ou mal interpretadas. Assim, Ismael não se levantou contra o «Grão Turco», mas rebellou-se contra os então soberanos da Pérsia, da familia dos Ak-cuvinlu, do Carneiro branco, que eram de raça turca ou turcomana; e só mais tarde esteve em guerra com o Grão Turco, o sultão ottomano Selim I. Assim também, não era de «baixa extracção», pois descendia em linha directa nada menos que de Ali e de Fátima, a filha do Propheta; mas era um simples scheikh, filho de scheikh Haidar, o que alguns lhe lançavam em rosto. Mesmo depois de rei, continuaram a chamar-lhe o scheikh Ismael — Xequesmael es- crevem os nossos portuguezes do tempo. Também se não chamava «Çufi», porque tivesse um grande capitão d'este nome. A designação de Sophi, Sofi, ou Súfi vinha-lhe da seita mystico-pantheista, a que pertenciam os seus ascendentes, nomeadamente aquelle celebre e santo scheikh Saifú ed-Din de Ardebil, contemporâneo e conhecido do grande conquistador Timur. Ainda não é exacto, que elle fosse «contra Mafa- mede»; era pelo contrario um zeloso mussulmano, apenas adverso aos Sunnitas orthodoxos, e pertencente á crença Schiita, que venerava particularmente Fátima, Ali e os doze Imams. E as relações que Ismael e seu filho Thamasp tiveram com os reis mussulmanos do Deckan, contribuíram de certo para alargar ali esta fórma schiita do islamismo, que, entre outros, professava o Nizam Scháh, como o nosso Orta af- firma com rasão. Este, porém, engana-se quando diz, que Ismael ou Thamasp deram áquelles soberanos o titulo de Scháh, pois é certo que se usava anteriormente na índia (Cf. Teixeira, Relaciones, SSq et seqq.; artigo Sunnites and Shiites na Encycl. Britannica; Gobineau, Trois ans en Asie, 323 et seqq., Paris, iSSg; veja-se também todo o in- teressante capitulo de João de Barros, Asia, 11, x, 6). Já que falíamos de Ismael Scháh, não virá fora de propósito recor- dar brevemente as boas relações, que existiram entre o grande rei da Do Ber Pérsia e o grande governador da índia. A primeira embaixada de Ismael encontrou-se fortuitamente com Affonso de Albuquerque; vinha diri- gida ao Adil Scháh, e deu com os portuguezes já senhores de Goa. O governador, porém, recebeu o embaixador com demonstrações de ami- sade, e mandou com elle um enviado seu, Ruy Gomes, munido de prudentes instrucções, o qual, ao que parece, foi envenenado em Hor- muz e nunca chegou ao seu destino (Lendas, ii, 69 et seqq.). No anno de i5i2 voltou á índia um embaixador de Ismael, e na sua companhia mandou Affonso de Albuquerque, Miguel Ferreira, dando-lhe instruc- ções extremamente meticulosas e curiosas, e uma carta sua para o Scháh, transcripta por Gaspar Corrêa, mas de cuja authenticidade é li- cito duvidar (Lendas, 11, 358). Miguel Ferreira foi recebido pelo Scháh em Schiraz, e ficou muito tempo pela Pérsia, assistindo a festas e ca- çadas de que Gaspar Correa dá interessantes descripções (Lendas, 11, 409 a 417). Quando voltou, veiu com elle outro embaixador de Ismael Scháh, que Affonso de Albuquerque, então em Hormuz, recebeu pompo- samente (Lendas 11, 423; Barros, Asia, 11, x, 4). D'ali mesmo mandou um novo enviado ao Scháh, Fernão Gomes de Lemos, dando-lhe um regimento ou instrucções especiaes, um rico presente e uma nova carta para o Scháh. Esta carta vem transcripta também por Gaspar Corrêa; mas é evidentemente falsa, pois temos a verdadeira,, muito mais digna, e muito mais na indole e modo de dizer de Albuquerque. É assim intitulada : Carta d' Afonso dAlbiiquerque, capitão e governador da índia, ao Xeque Ismael, Rei das carapuças Roxas (Cf. Cartas de Affonso de Albuquerque, p. 387 et seqq., Lisboa, 1884). Até aqui, as relações de Affonso de Albuquerque com Ismael; mas não podem.os deixar de ao menos mencionar ainda a embaixada de Balthazar Pessoa, no governo de D. Duarte de Menezes, porque n'essa embaixada ía um dos mais verídicos, mais indagadores e mais interes- santes dos viajantes portuguezes, Antonio Tenreyro. É bem conhe- cido o seu Itinerário, e é bem sabido que elle estava em Tabriz quando morreu Ismael, e foi levantado ao throno o seu filho Thamasp. Nota (i3) Os nomes das peças do xadrez, usados na índia, encontram-se em qualquer tratado d'este jogo, por exemplo no de Forbes, e não ca- recem de elucidação. Mas devemos notar a phrase em que Orta diz: jogam «bem; mas é differente do nosso jogo.» O xadrez diz-se inventado na índia, onde se chamava Chaturanga, ou jogo das quatro angas, os quatro elementos dos exércitos: elephantes, cavallos, carros e peões. Da índia passou para a Pérsia, onde os árabes o encontraram e adopta- ram, chamando-Ihe por corrupção e alteração de alphabcto, ^ Jaiv, 140 Colóquio decimo do Ber schatrandj; e d'este caminho ficou uma curiosa indicação na expressão xaque-mate, composta do substantivo persiano scháh, e do verbo ará- bico niãt. Mas voltando ao schatrandj, este jogo usou-se na Europa durante toda a idade media, soffrendo no século xv modificações pro- fundas, que o converteram no xadrez moderno. Vê-se, pois, que Garcia da Orta, conhecendo de Portugal e Hespanha o novo )ogo, devia notar differenças no movimento das peças e outras particularidades, quando no Oriente encontrou a antiga fórma. Nota (14) Se agora considerarmos em globo as noticias dadas por Garcia da Orta n'este Colóquio, poderemos notar sem parcialidade, que são pela maior parte exactas, e muitas d'ellas especialmente suas, não dadas nem. conhecidas de outros escriptores nossos, mesmo dos mais bem in- formados, como era João de Barros. E alguns escriptores estrangeiros, como Linschoten, não fizeram mais do que copial-o. Todo o capitulo xxvn d'este auctor é o mais descarado plagiato, repetindo tudo quanto Orta disse, sem acrescentar ou emendar cousa alguma. É mesmo fácil ver, que foi moldado pela versão latina, e não pelo texto por- tuguez. De quando em quando, o plagiato pretende occultar-se sob uns artificios infantis. Orta disse do reino de Dehli «he terra muito firia, e neva e gea n'ella como na nossa». Clusius traduziu: Frigida admodum est régio, nivibus et gelu per hietnem non minus divexata, quam nostra Europa. E Linschoten diz: hyemis qualitate provinciis Belgicis haud absimilis. Esta menção dos Paizes Baixos tem evi- dentemente o fim de dar á phrase o cunho da nacionalidade do auctor ; mas só pode illudir a quem não cotejar cuidadosamente o Colóquio do Ber, a sua traducção no capitulo xxviii de Clusius, De quibusdam ín- dice regibus, e o capitulo xxvii de Linschoten Brevis descriptio ierrce post Goam . . . que elle tranquillamente diz ser tirado, ex annalibus, monumentisque ipsorum Indorum, quando é todo copiado dos Coló- quios. COLÓQUIO UNDÉCIMO DO CALAMO AROMÁTICO E DAS CACERAS INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Dizeyme agora os nomes do calamo aromático ácerca das nações que sabeis, porque poUos nomes venhamos em co- nhecimento do que he; porque os nossos doctores moder- nos tem grandes duvidas nelle e no açoro, que dizem huns que he o calamo aromático, outros dizem que a galamga he o calamo. Em tal maneira está esta meada empeçada, que tem necessidade de hum bom sergueiro pera a desempeçar; e por tanto venho a vós que, pois conheceis estes simples, que a desempeçeis. ORTA O que lá em Portugal se usa em as boticas por calamo aromático, e que na índia he mezinha mais usada, assi nos homens como nas molheres, como nos cavalos pera suas doenças, chamase em Guzarate pa:{, e o Decanim o chama bache, e em Malabar vaiabu, e em Malaio daringó, e em Pérsio heger, e em Gumcam, que he a fralda do mar, vaicam; e em Arábio cassab aldirira. RUANO Pois Serapiam, que he arábio e de auctoridade, o chama assabel diriri*. * Serapio, cap. 2o5 (nota do auctor). i_|.2 Colóquio undécimo ORTA Serapio está corruto, e Avicena está emmendado, e mais os Arábios físicos lhe chamam este nome; e o mesmo soa cassab que calamo, e aldirira dos aromáticos \ porque dirire he o mesmo que he acerca de nós aroma; isto se tira de Avicena*. E porque os Malayos souberam esta me- zinha por os Mouros, que do Coraçone foram, a chamaram corrutamente dirimguo. E esta mézinha he em Goa muito usada e em toda a índia se semêa \ e aqui em Goa nas hor- tas cresce pouco, e porém cheira, ao meu gosto, mal; quanto mais verde tanto he o cheiro mais forte e hórrido pera mim (posto que diz Ruellio o contrairo); e algumas mezinhas, quanto mais sequas tanto cheiram milhor; assi como o sândalo e a aguila. Semeam muyto no Guzarate e no Ba- laguate; e no cabo onde está semeado nam cheira até que seja tirado da terra. Trazse delia pera a fralda do mar, por- que o que nella nasce se gasta na terra, e o que vem do Balaguate se leva pera o ponente. As molheres usão muito delle pera as paixões da madre e pera as enfermidades dos nervos (i); tudo o que mais se guasta he, no tempo frio, pera os cavallos; porque por as manhãas lho dão a comer pisado e misturado com alhos e ameos, que he cominhos rústicos, e algum sal e manteiga e açucare, e chamam esta mézinha ar ata (2). RUANO Nace em outro cabo afóra na índia? e parece ser que si, porque Galeno** e Hipocras o chamao calamo yngoentario, e Plutarco calamo arábio, e Cornélio Celso calamo ale- xandrino. * Avie, li., 2, cap. 161 e 212 (nota do auctor). A citação está er- rada; o capitulo do calamo aromático em Avicenna é iCo. A significa- ção da palavra dirire deduziu Orta da leitura do capitulo 79. ** Galen., Sim. medica, lib. i (nota do auctor). Do Calamo 143 ORIA Eu perguntey a muitos Coraçones e Arábios, que tra- zem a vender cavalos a esta índia, se o havia em sua terra; e todos me dixerão que não havia outro senam o que vi- nha da índia por mercadoria-, e pergunteylhes se o conhe- cião e usavão lá delle, dixeramme que muito bem o co- nhecião lá, mas que nam era mezinha da sua terra, e nisto se afirmaram todos os mais. E os que dizem que he comum aos índios e Sirios, não dizem conforme ao que estes mercadores me dixerão, e também me dixerão os fisicos do rey do Decam. Assi que os que o chamão da índia, dizem verdade; e os que da Arábia, dizem bem, porém que viesse primeiro da índia á Arábia. E muito bem falão os que o chamão alexandrino, porque dahi vão ter aos Venezianos, e a Beirut e a Tripoh de Suria*. RUANO Pois Menardo diz que o vio em Panonia, e que era muito fresco, por onde parecia ser de perto trazido. ORTA Nós do que vemos e ouvimos damos fé; e pôde ser que se enganou elle, ou, se o vio, foy semeado em alguns al- guidares ou cestos, como se semêa o gengivre e nasce; mas a verdade he o que vos dixe, porque se leva lá por merca- doria. RUANO Isto que se administra, de que usamos, que he, raiz ou cana? ORTA He cana, porque a raiz he pequena e a semeão; e ás vezes vem mesturada a cana com a raiz; e portanto não • A phrase não tem concordância, e alem d'isso envolve um erro, pois a mercadoria não devia ir de Alexandria para Tripoli ou Beyrut. Julgo que se pôde reconstruir assim : «porque ahi vão ter os Venezia- nos, e a Beirut. . .» 144 Colóquio undécimo dizem bem os que dizem que he raiz somente, porque isto dizem pera fundar a sua openiam, que açoro he calamo aro- mático ou galamga. RUANO E porque lhe chamais aromático, pois dizeis que lhe vem do nome arábio? ORTA Digo que aromático não quer dizer cheiroso, senam droga trazida destas partes*; e mais eu nam sey calamo odorato, mas sey junco odorato; e já vedes a diíferença que vay de cana a junco, e mais vos faço saber que não he o que está dentro do calamo cousa semelhante a tea de aranha, mas antes está dentro huma substancia porosa de cor algum tanto amarella; e nisto se enganarão Avicena e Serapião, que tinham mais razam de saber isto que os Gregos. RUANO Dizem estes modernos escritores que o calamo aromático he hum açoro, porque a raiz do açoro que se nas curas administra, não he calamo ou cana, senam a raiz que ve- mos nas boticas. ORTA Nisso nam trabalheis, porque somente o calamo he o que se vende e usa e nam a raiz, e se o quereis ver, vedello aqui verde e seco. RUANO Não duvido já pois o vejo com os olhos; mas dizeyme como açoro será espadana, pois dizem huns ser preta e outros branca, e que mordica, e que he quente no terceiro gráo; e nós não lhe achamos alguma acrimonia nem quen- tura; e isto nam tam somente nas regiões frias, mas nem em as quentes; quanto mais que não pôde ser huma mezinha * Sic na edição de Goa; ignoro completamente o que o nosso es- criptor pretende dizer. Estas paginas podem-se contar entre as mais confusas de todo o livro; envolvido em uma questão insolúvel, Orta cáe em um estylo absolutamente nebuloso. Do Cal amo 145 quente e seca no terceiro, e que, plantada em outro cabo nam fique quente*, porque estas calidades seguem a especia, e nam se podem tirar de todo ponto, como se ve no açoro, por onde sem duvida tem muita razam de nam ser o açoro o que por tal se vende. ORTA Eu vos confesso que nam he acoimo a espadana; senam que, ou carecemos delle, ou não o sabem buscar nos loga- res onde dizem Galeno e Plinio e Dioscórides* que o ha, e isto porque sam os físicos pouco curiosos; e por o nam achar nam he bem que seja calamo aromático; pois Avi- cena e Serapiam fazem tres capitulos, convém saber: do calamo aromático; e do açoro; e da galamga. E os que es- crevem do calamo dizem avelo na índia, e assi he que o nam ha em outras partes; e o açoro nam dizem que o ha senam em Europa: per donde nam foy conhecido de nós, porque nam especulámos o que agora especuláram Menardo, Lyoniceno e outros; mas todos os físicos Arábios e Turcos e Coraçones e da índia nam conhecem o açoro; porque, quando eu curey ao Nizamoxa de hum tremor, tive com elles grande porfia sobre isso, e nunqua me souberam dizer o que era açoro, senam que em Turquia o havia, porque eu lhe dizia o nome em arábio, e mais o calamo he quente e seco no segundo gráo e o açoro no terceiro, por onde nam pode ser tudo hum; e se o açoro nam o achais, bus- cayo e olhay por os livros o que poreis em seu lugar. RUANO Porque nam será a raiz da galamga, acoro^ pois todos os sinais tem do açoro? ORTA Aqui a vereis de duas maneiras, de Jaoa e de China, e plantamna aqui, e as folhas nam parecem gladíolo, e são * Gale. Simplic. 6; Plin. li. 25 e 26; Diosc. li. i, cap. 17 (nota do auctor). O capitulo 17 de Dioscórides é o do calamo; o do açoro é o segundo do mesmo livro. 10 146 Colóquio undécimo muito curtas, e he feita muito como colher, como vos di- rey quando falarmos na galamga; e vola mostrarey verde e seca-, e mais a galamga tem outra compreisam, que he mais quente, e nam he apropriada ao que he o açoro e o calamo; porque estes dous sam apropriados aos nervos; e a galamga ao estômago e a resolver ventosidades; e mais estas mézinhas, convém saber a galamga e o calamo, sam mercadorias nesta terra, do principio conhecidas e usadas a levarse pera o ponente. RUANO De maneira que quereis que percamos hum simple tam notável como acero? ORTA Eu nam quero que o percamos, mas quero que nam perca a índia estoutros dous ou hum delles; e digo que, se se per- der, não tem os índios a culpa, senam os outros; pois diz Plinio que o milhor he em Ponto, e depois em Galacia, e depois em Creta*. RUANO Pois que isto dizeis, que poreis em logar de açoro pera lá usar? ORTA Ponho o calamo aromático em maior quantidade; por nam ser tam quente e seco, que he hum gráo menos; e deste modo usey em o Nizamoxa e em seu pay; vós o podeis fazer, se vos bem parecer; mas sabey que nam he açoro o que por calamo aromático usamos; e o que diz Marcello, que he canella, he tam falso que nam tem ne- cessidade de se impugnar (3). RUANO Pareceme que sera bom comer; e dizeyme que fruita he aquella que está parando aquella moça, porque ^^iVtcç. junca avdanada ou junco odor ato? * Plin. libr. 25 e 26 (nota do auctor). Do Cal amo 147 ORTA Nam he senam huma fruita, que nace na vasa debaxo da terra; e depois, com as secas, sae fóra, e deita hum tálo curto de hum dedo, com folhas humas pegadas com as outras: e sam estas folhas muito verdes da feicam das de espadana; e depois de seca a vasa, sae fóra, como as tuberas da terra; e, depois que for seca, sabem a castanhas aviladas, e quando nam he seca, nam tem bom sabor. RUANO Muito propriamente me sabe a isso, e dizeyme o seu nome? ORTA Chamase caceras (4) ; e porque não he isto em uso de física, comamos (5). Nota (1) O «Calamo aromático» de Orta é sem duvida alguma o Acorus cala- mus, Linn., da família das Aroidece, uma planta de habitação extrema- mente vasta (Asia, Africa e America), frequente na índia e hoje tam- bém na Europa. Esta identificação resulta claramente dos numerosos nomes vulgares citados pelo nosso auctor: — «Cassab aldirira»; este é effectivamente o nome empregado em geral pelos escriptores arábicos, í\jjjj| qassab adh-dherirah (Sprengel, Diosc, 11, 355). — «Bache» no Deckan. É o nome hindi e bengali, bacha, bach, o qual procede do sanskritico c\ ( vachã. — «VazM no Guzerate. É um nome empregado pelos árabes da índia, e citado por Dymock na forma waj, evidentemente uma corrupção do anterior (Dymock, Mat. med., 81 3). — «Vaicam » no Concan ; isto é, vekhand, um dos nomes usados ainda modernamente em Bombaim, segundo Dymock (1. c). — «Vazabu» no Malabar; isto é, uma das formas das linguas dravi- dicas, vassamboo em tamil, vaytnboo e vaesambu, em maláyalam, se- 148 Colóquio undécimo gundo a orthographia e a pronuncia ingleza, adoptadas por Ainslie (Cf. Mat. Ind. i, 417). — «Heger» em «pérsio». Encontramos no livro de Ainslie um nome hindustani da planta, muito similhante a este, igir, e que bem pôde ser de origem persiana. — «Daringó» e «dirimguo» malayo. Ainslie cita o nome usado em Java, deringo (1. c, 418). Como se vè, a nomenclatura de Orta é muito completa; e a sua concordância com os nomes do Acorus calamus nas diversas linguas asiáticas, taes quaes os encontramos nos livros modernos, é perfeita- mente satisfactoria. O rhizoma do Acorus calamus gosa entre os clinicos indigenas da índia de considerável reputação, sendo applicado á cura de variadas enfermidades, entre as quaes figura alguma cousa parecida com as «dores da madre» do nosso escriptor. Dymock diz-nos o seguinte: a pessary composed of Acorus, saffron, and 7nare's milk is used to promoíe delivery. Nota (2) Esta dieta com manteiga e assucar pode parecer um tanto singular para cavallos; mas está perfeitamente nos hábitos indianos. Pelo que se refere aos tempos modernos, diz-nos Yule, que a pratica de incluir a manteiga (ghi) na alimentação dos cavallos é ainda vulgar em quasi toda a índia; e, em uma epocha mais chegada á do nosso escriptor, vemos que no Ain-i-Akbari vem mencionada a ração dos cavallos, que o celebre Akbar sustentava nas suas reaes cavalhariças : 2 libras de farinha, i 1/2 ''bra de assucar, e no inverno 1/2 libra de ghi. O viajante russo, Athanasio Nikitin, que no século xv andou pelo interior da índia, menciona também entre a alimentação dos cavallos : kichiiris, fervidos com assucar e oleo, e, pela manhã, o seu shishenivo. Nem Major que annotou Nikitin, nem Yule que o citou, sabem o que fosse aquelle shis- henivo. Devia, porém, ser alguma mistura excitante, no género d'esta «Arata», em que entravam alhos, ameos^, e calamo aromático. Note-se que Orta aponta, como Nikitin, o habito de o darem de manhã; e con- corda também com o Ain-i-Akbari, mencionando a alimentação espe- cial do mverno, do «tempo frio.» (Cf Yule, Marco Polo, 11, 337; Tra- veis of Nikitin, 10, em Major, índia in thefijteenth century, London, ■1857). ' O «amcos. seria propriamente o Ammi, ou o Sison; mas Orta podia dar este nome qualquer das Umbelliferce de sementes aromáticas, que são frequentes na Índia. Do Cal amo 140 Nota (3) Não seguiremos Orta na intrincada questão em que se embrenha so- bre açoro e calamo aromático. Se o oucopov de Dioscórides é esta, ou outra espécie do mesmo género ; se o seu xa/.aaoç apwaaTwo; é também o Acorus calamus, como julgam diversos escriptores, ou uma espécie de Andropogon, como suppõe Royle ; se as plantas de que Serapio e Avicenna fazem diversos capítulos — á parte naturalmente a galanga, que é muito distincta — são idênticas ou diversas; tudo isto são ques- tões conhecidas, debatidas e bastante ociosas. Da longa e um tanto obscura discussão do nosso escriptor, resultam apenas tres aflirmaçoes definidas: primeiro que elle distinguia correctamente a galanga das outras drogas; segundo, que identificava o calamo aromático com a planta hoje chamada Acorus calamus; terceiro, que ignorava o que fosse o açoro, mas se inclinava a que não fosse uma planta indiana. A primeira é perfeitamente exacta, e em favor das ultimas ainda hoje se podem adduzir muitos argumentos. (Cf. Sprengel, Dioscórides, i, 11, 3i, u, 344, 355; Royle, Hindoo med., 82; Pharmac, 614). . O que em todo o caso é seguro, é que o calamo aromático de Avi- cenna era idêntico ao do nosso auctor. E a propósito podemos notar a curiosa emenda d'este ao celebre medico árabe. Em uma secção do rhi- zoma do Acorus calamus vê-se uma espécie de rede formada por lami- nas finas de cellulas, que deixam entre si grandes lacunas aéreas — o que, de resto, se pôde observar em outros órgãos de plantas aquáticas. Avicenna notou esta textura interior, e diz : ... cujus canna est plena re simili tela aranece (Liber 11, tract. 11, cap. 160), ao que Orta acode, chamando-lhe antes «uma substancia porosa», o que é um pouco mais exacto. Nota (4) O «Caceras» de Orta deve ser o Scirpus Kysoor, Roxb. Aquelles fi-uctos que nascem na vasa — evidentemente tubérculos — , e perten- cem a uma planta, comparada com a junca, lembram desde logo um Cyperus, ou um Scirpus. O Scirpus Kysoor, commum na zona Occiden- tal da índia, vivendo nas terras alagadiças e margens dos tanques, tem o nome vulgar de kachara ou kachera, muitíssimo similhante a ca- cera. Dymock menciona unicamente as qualidades adstringentes e me- dicinaes das suas raizes tuberosas; mas o dr. Lisboa inclue a planta en- tre as alimentares, e diz que as suas raizes são doces e feculentas, acres- centando que se vendem em Bombaim, e que não só os pobres mas todas as classes as comem : eaten by ali classes. Esta noticia, e a si- milhança dos nomes vulgares, dão-nos uma identificação satisfactoria i5o Colóquio undécimo do Calamo (Cf. Roxburgh, Flora Indica, i, 23o; Dymock, Mat. med., 847; J. C Lis- boa, Useful plants of the Bombay presidency, p. 184, Bombay, 1886). Nota (5) Orta cita de novo n'este Colóquio o escriptor Marcello, e cita-o a propósito de um singular equivoco. Não procurei verificar a citação, mas julgo que não será do antigo medico, Marcellus Empiricus, e sim do escriptor da renascença, Marcello Virgilio. Cita também Plutarco e Cor- nélio Celso, sem duvida pelo que encontrou em outros livros. Menciona de passagem Lyoniceno, isto é, Nicolau Leoniceno, o celebre advogado da velha medicina grega, e chefe da escola hippocratica. COLÓQUIO DUODÉCIMO DE DUAS MANEIRAS DE CAMPORA E DAS CARAMBOLAS INTERLOCUTORES ORTA, RUANO, SERVA RUANO Muyta razam será que fallemos na cam fora, pois he tam estimada e usada na física*, da qual não escreveo Galeno nem escritor algum grego, senão Aécio escritor moderno; e sem duvida que se deve aos Arábios muyto em algumas cousas, porque ainda que delias nam deixassem perfeita noticia, foy por estas terras serem ignotas, que delias nam podiam dar perfeita relaçam. ORTA Certo que passa assi, porque eu que estou nesta terra ha tanto tempo com muyto trabalho posso saber huma ver- dade perfeitamente, e a causa he porque os Portugueses, que navegam muita parte do mundo, onde vão nam procu- rão de saber senam como farão milhor suas mercadorias, c que levaram pera lá quando forem, e que traram da tor- naviagem; não são curiosos de saber as cousas que ha na terra, e, se as sabem, nam dizem a quem lhas traz que lhe amostre o arvore, e, se o veem, nam o compárão a outro arvore nosso, nem proguntão se dá frol ou fruto, e que tal he*. E como eu nam posso andar todas as terras, nem me dão licença os que a terra governão pera yr fóra donde residem, porque se querem servir de mim por minha velhice antes que doutrem, e não por na terra não haver físicos * Reflexão perfeitamente sentida, e que ainda hoje tem cabimento. Colóquio duodécimo muito bons letrados; e por isto não sam digno de culpa em vos dizer isto destas mezinhas com duvida e tanto a medo. RUANO Bem sei que quem nao sabe, que não duvida, e por isto não tam somente sois digno de perdam, mas sois merecedor de louvor. ORTA A camfora he de duas maneiras, huma se diz camfora de Biirneo, a qual nunca foy vista em nossas regiões, ao menos de quando eu lá estava, e não me maravilho porque esta custa tanto huma libra, quanto custa hum quintal de camfora da China, que he a que lá vae ter e he feita de pães redondos de diâmetro de huma mão atravessada, e por ser assi parece cousa composta e nam simple; e esta he a causa porque a não levão lá. RUANO Desta que não vy me dize}^ primeiro e ma mostra3^ ORTA Aqui tenho huma pouca, mas não he da milhor. Moça dá cá o bote da camfora de Burneo. SERVA Senhor eilo aqui. ORTA Pois aveis de saber que esta que vedes, que he da gran- dura de milho ou algum pouco maior he a mais somenos, porque ácerca dos Gentios e Baneanes e Mouros, que esta fazenda comprão, fazem delia quatro sortes, scilicet: cabeça, peito, pernas, pé: vai hum arrátel da cabeça a oitenta par- dáos-, e do peito a vinte, e das pefiias a doze, e do pé a quatro e cinco, quando muito; e alguns curiosos peneiram esta camfora per humas joeiras de peneirar aljofre, que sam feitas de cobre e são furadas, e a camfora que sae pollos buracos grandes, vendem por hum preço, e a que Da Carnfora e das Carambolas i53 sae por os mais pequenos por outro; porque sam estas joei- ras quatro, scilicet, de buracos grandes e pequenos, e mais pequenos e muito meudos-, e são estes Baneanes tam es- pertos mercadores que ainda que mestureis huma camfora com a outra, lhe lançam tam bem sua conta que nam ha quem os engane. Essa que aqui vedes he o rebotalho de muita e he roym, e está preta, por se fazer delia pouco caso, e por ser pouca. Ha muita desta camfoj^a em Burneo e em Bairros, e Çamatra, e Paçem, e isto são ilhas ou terras; e os nomes que escreveram donde erao, scilicet, Serapiam e Avicena, alguns delles ou todos são corrompidos*. E sabey que esta he huma mercadoria muito gastada e custumada em comer nesta terra; e a que Serapiam chamou a de Pan- çor, he de Paçem, que he em Çamatra; e a que Avicena chamou alçu\, pode ser a de Çumda, que são isto ilhas ou terras firmes confines a Malaca; e a que Serapiam diz que se traz da região de Calca, está corruto o nome, e ha de dizer de Malaca, pois a ha em Bairros, que he perto dahi**. RUANO Muito folgo de conhecer esta mézinha tam nobre e pre- ciosa, e quero saber de vós, primeiro que em outra cousa falemos, se he goma ou se he miolo, como sente Avicena e outros; e se he primeiro com magoas vermelhas e pretas e per fogo ou destilaçam se faz branca; e se a falseficam. ORTA He goma e nam miolo que cae no fundo do páo, como O dirão os que a viram tirar, e logo vereis no páo a goma, que deita por humas gretas, de maneira que vedes suar a camfora por alli. Isto vy eu muito craramente em huma * Serapio, cap. 344; Avi. li. 2, 'cap. i54 (nota do auctor); o cap. de Avicenna é o i33, e não o 154. ** São incorrectas parte d'estas identificações, por exemplo, a de Pançor com Pacem; vejam-se as notas (i) e (2). i54 Colóquio duodécimo mesa, que hum boticairo tinha; também vy isto em hum páo que apresentaram ao governador dom João de Crasto, da grossura de huma coxa ; também aqui n'esta cidade tem um mercador huma taboa de hum palmo, que todos estes páos mostrão serem do arvore da camfora. E eu não nega- rey que desta goma caya no oco do arvore alguma, como nos arvores de Portugal vimos muitas vezes; e primeiro vem muito branca sem nenhumas magoas vermelhas nem pretas; e não se estila, como dizem os escritores, ou se coze para ser branca, somente a da China se amasa, como adiante vos direy, e nisto nam tenhais duvida alguma, porque forão falsas enformaçÕes que se deram a Avicena e Serapiam; de lon- gas vias longas mentiras. E foyme dito por pessoas dignas de fé, que vay colher esta camfora hum homem, e enche delia huma cabaça, e se outro o vê primeiro com a cabaça chea, o mata, e lhe toma a cabaça, sem por isso ser casti- gado, porque dizem que a sua ventura lhe deu aquilo. RUANO Porque dizeis que os Gregos não falão nisto, vos lembro que Serapiam alega a Dioscórides, falando na camfora; e mais vos peço que vos nam esqueça de me dizer da false- ficação delia. ORTA Não vos maravilheis disso, porque em Serapio está isso acrescentado falsamente; e, acerca de como se falsifica, sa- bey que a de Burneo vem muitas vezes mesturada com algumas lascas de pedra muito delgadas, ou com huma goma (a que chamão chamdcrros) que pareçe alambres crus, ou he mesturada com farinha de hum páo; mas todas estas cousas bem se vê, a quem as quer especular; e eu nam vi outro modo de falsificar senam este; e se vem com magoas pretas ou vermelhas, dizem ser porque foy maltratada, ou se molhou; e este mal lhe tirão os Baneanes, lavandoa se- cretamente atada em hum panno, em agoa quente, com sa- bão e çumo de limões; e depois de bem lavada a põem a enxugar á sombra, e fica muito mais alva, e do peso não Da Camfora e das Carambolas i55 perde muito: eu vy fazer isso, e confiouse de mim em se- creto o Baneane, porque era muito meu amigo, RUANO Achais pollos autores feita mençam destas duas maneiras de camfora? ORTA Sy; posto que escuramente o diz Serapiam, que o mais que se traz desta cajnfora he de Hariz, e he menor que a da China; o qual se ha de entender que a mayor quantidade que se traz he do Chincheo, e he mayor que a outra de Burneo, porque nam se acha delia quantidade mayor que de huma oitava; o qual he verdade tudo; posto que o texto de Serapiam vay torcido, e os pães de Chincheo (a que nós chamamos China) são de quatro onças e mais. RUANO Do arvore me dizey. ORTA Dixeme hum homem digno de fé que o arvore era como huma nogueira, e a folha delle era branca e de feiçam de folha de salgueiro, e que nam lhe vira frol nem fruto, e que podia ser que o tivesse e que elle lho nam visse; porém eu sey que o páo he pardo e muito delle da cor da faya, e algum delle mais preto; nam he leve e poroso, como diz Avicena, mas he mociço meamente, e pode ser que o que Avicena vio fosse já velho; e dizem os mais que o arvore he espaçoso e alto e de boa copa e aprazível á vista, e lança a camfora fóra de si, que lá vedes sair ou suar, o qual eu vi em huma meza. Outro páo vi grosso como huma coxa, de que já faley, e nam se lhe parecia a camfora, porém era em o cheiro muito semelhante a ella; e vi outra taboa de hum palmo, que deitava alguma camfora e era de cor de faya. RUANO Da sombra deste arvore me dizey, se he verdade que a ella se chegão multidam de animaes pera fugir das feras rapaces. i56 Colóquio duodécimo ORTA Tudo isto he fabuloso; e posto que nessa terra. aja tigres (a que no Malayo chamáo reimòes*) nam são seguros á som- bra deste arvore, nem tal ouvi. RUANO Ha mais novidades desta camfora em hum anno que em outro? Porque me dizem que quando ha muitas trovoadas he boa a novidade, e, quando poucas, má. ORTA Nisto se enformárão mal Avicena, Serapiam e Aécio*, porque na ilha de Çamatra e ao redor delia ha sempre muitas trovoadas, por estar perto da linha onde sempre chove pouco ou muito cada dia; por onde sempre todos os annos avia de aver camfora; assi que as trovoadas não sam causa de aver camfora; nem lhe podem chamar causa, se- não per accidente, ou ocasionalmente acontecida: e a esta causa chamão os filósofos causa sem a qual não se acontece o efeito (i). RUANO Da camfora de pães, que dizeis ser da China ou do Ghin- cheo, me day razam. ORTA A camfora da China presumese ser feita de huma parte destoutra de Burneo, e todo o mais de outra camfoi^a da China, de menos preço; e amassada fazem pães delia, como vedes; e nam porque em principio tivesse magoas vermelhas ou pretas ; e isto nam o sey mais que per huma conjectura** e parecer de algumas pessoas que mo assi affirmáram; por- que esta camfora não vem de Cantam onde toda a mais da gente vay, senão vem de Chincheo, donde vão poucas pes- * O nome do tigre em malayo é arimau, por elisão rtmaii. ** «Conjuntura» na edição de Goa. Da Cam/ora e das Carambolas iSy soas. Posto que hum homem digno de fé me dixe que a multidam delia a fazia valer tam barata na China, outros me dixerão o contrairo, scilicet, que estes pães eram com- postos; porque a camfora de Burneo he mercadoria pera o Chincheo, e a gente da terra dizem que a querem pera a mesturar com outra somenos : a este dito favorecem os Baneanes de Cambaj^a, que dizem em secreto que, quando lhes falece a camfora de Burneo, mesturáo huma pouca com muita da China, e de tudo fazem camfora chamada de Burneo falsamente; e dizem mais estes Baneanes que logo se parece a camfora da China ser composta; mas a camfora de Burneo nunca se gasta. RUANO Qual he vosso parecer ácerca disto? ORTA Digo que no Chincheo ha camfora, posto que nam tam boa como de Burneo, e amassadas e ajuntadas ambas fazem boa mixtáo, por serem comprendidas debaxo de hum género; e por ser assi composta evapora e se vay pollo ar, e a de Burneo nam. RUANO Logo bem diz Menardo que he cousa nova, e que elle crê ser composta e nam simple? ORTA A mim nam me parece tanto ser composta, e, se o he, he de duas maneiras de camfora; e posto que evapore não he corrutivel muito; porque as cousas compostas sam mais aparelhadas a corruçam; porque o ruibarbo escassamente dura cá quatro mezes, que chove nesta terra; e por isso he muito não se corromper a camfora da China ficando na índia. RUANO Ha outra especia de camfora por Avenrrois dita muito differente destoutra; porque diz que nace no mar; e que he i58 Colóquio duodécimo quente sequa no segundo gráo; e, o que mais he de mara- vilhar, dizer que o ambre he especia de camfora, e que nasce no mar em fontes; pergunto se polia ventura ha cá essa camfora? ORTA Nunca ouvi dizer delia, nem a ha, porque faz sempre esta gente toda da índia tanto por esta mezinha que nam se ouvera de perder delia a memoria. Se o ambre fosse es- pecia de camfora não seria havido em tanta estima na China, que o levam lá e o vendem tam caro, como dixe falando no ambre; e mais pois o ambre é quente no segun- do, e a camfora fria no terceiro, não podem ser compren- didas debaixo de hum mesmo género; porque as calidades procedem das especias, porque nunca se vio alfaça quente nem pimenta fria, assi que nisto podeis descançar (2). RUANO Andreas Belunensis de quem não dizeis mal e louvais, diz no seu Dictionario que a agoa de camfora, segundo os Arábios, corre e mana do arvore da camfora; e que o tal arvore e agoa são quentes no terceiro gráo-, e porque co- munmente se diz a camfora fria, he necessário saber como he isto, e se vistes a tal agoa, ou vistes delia fazer men- cam? ORTA Já perguntey a muitos por esta agoa, assi íisicos como mercadores; e delia me não dixeram cousa alguma, e se a ouvera, craramente se soubera, porque no Balaguate ha agoa de canas de açucare, e vendese : assi que, nem da agoa, nem da graduaçam, tem culpa o Belunense, senam o livro do arábio com quem alegua*. * Belun. (nota do auctor). O Dictionario a que Orta se refere é a Interpretado, impressa com quasi todas as edições de Avicenna, e onde o Bellunense na palavra aqua camphorce diz effectivamente, que a aqita é cálida in íertio, emquanto a camphora é frigida. Da Camfora e das Carambolas RUANO Pois Ruelio e Mateolo Senense dizem que a da China he milhor, e dizem que a milhor de todalas camforas foy pu- rificada por hum rey bárbaro, a quem elles chamão, rey da China. ORTA Podeis dizer a Ruelio e a Mateolo Senense, que, ainda que saibam tam bem as lingoas grega e latina, nam hão tanto de encher a boca a chamar bárbaros aos que nam são de sua geraçam^ e que elle se enganou; porque a camfora de Burneo se vende por cates, e a da China por bares, e que o cate são vinte onças, e o bar são perto de 600 ar- ráteis; e que o rey da China não se pÕe a fazer camfora^ e he hum dos maiores reys que se sabe no mundo-, e pera falar nelle e nas suas terras era necessário escrever hum gram volume: e sabey que as mercadorias que delia vem são leitos de prata, e baixella ricamente lavrada, seda solta e tecida, ouro, aimisque, aljoíare, cobre, azogue, verme- lham, e o menos he porcelana, que vai ás vezes tanto, que he mais que prata duas vezes \ e ey vergonha de vos dizer quanta quantidade entrou de seda nas cidades de Goa e Cochim, hum anno destes passados. RUANO Dizey, que bem sey que direis a verdade. • ORTA Setecentos bares, e cada bar tem tres quintaes e deza- seis arráteis , e por aqui vereis a riqueza e a grossura desta terra, que em Goa, quando outra monção vem, já he gas- tada toda a seda (3). RUANO Dos nomes e compreisam delia me àAZQ.y. i6o Colóquio duodécimo ORTA Capiír e cafur dizem os Arábios e toda a outra gente; porque o f c. o p são letras muito irmãas ácerca dos Ará- bios; assi que todos a chamão de huma maneira; e se alguns escritores lhe põem outro nome, foram enganados ou estão depravados os livros. E na compreisam Rasis a pôe fria e húmida, Avicena fria e seca no terceiro gráo, e alguns escritores ou todos seguem Avicena. RUANO A muitos escritores modernos pareceo, por seu cheiro e por ser evaporable, ser de compreisam quente, e pareceme que tem razão; porque os cheiros das cousas frias nam são tam fortes, como se pôde ver no sândalo e nas rosas. ORTA Verdade me pareceo isso rnuito tempo; mas desque vy em obtalmia muito quente, e em huma queimadura posta a camfora, he como se lhe pusessem neve, logo me pareceo o contrairo; e mais a gente desta terra, assi Gentios como Mouros e donde nasce, dizem ser fria, e* o sentido do tocar e gosto sejão sentidos próprios nam se haviam de enganar tantos nella, e de ser fria e seca no terceiro gráo a ser quente. E ao argumento do cheiro he fácil a resposta, por que a camfora de si he evaporable e lança todo o que tem fóra, e a rosa e o sândalo, por serem estiticos, o retém em si, e nam o deixam sair fóra; e muitas cousas sam frias e secas, e sam inflamabiles, como a lã e os cabellos e as es- topas. RUANO Se Avicena diz que faz vigílias, como he fria, pois as cousas frias provocam sono? * Intercalando a palavra «como», torna-se talvez intelligivel a phrase. Da Cqmfor^a e das Carambolas 16 1 ORTA Faz sono e faz vigília, scilicet, o pouco delia por fóra ou dentro applicado faz sono, e o muito uso do cheiro delia, secando o cérebro, faz vigiar; e isto nam he muito de ma- ravilhar em ter efteitos contrairos nesta maneira. E coma- mos que he tempo Já. RUANO Muito bom sabor tem estes pasteis, pareceme que o causa humas talhadas azedas que estão nelles de huma certa fruta; vejamola. ORTA Antónia traz desse arvore alguma carambola, que assi se diz em malavar; e ficounos em uso os nomes malavares, por ser a primeira terra que conhecemos. ANTÓNIA Eiias aqui. RUANO Fermosas são, e sam agras doces e não muito azedas, são do tamanho de ovos pequenos de galinha e sam muito ama- relas. O que milhor parece nellas, he serem fendidas em quatro partes, que fazem quatro partes menores de circulo. ORTA Chamase em canarim e em decanim camari^, e, em ma- laio, balimba. Nam sey o uso delias em medecina, somente sey que medecinalmente as dão por dieta nas febres; com o çumo delias e outras cousas fazem hum colirio pera a névoa dos olhos, e achamse bem com elle; muitas pessoas acham nellas muito sabor, em especial as que chamamos agras doces, porque estas sam hum pouquo mais azedas; fazse delias huma conserva de açucare muito graciosa, que eu mando dar em lugar de xarope acetoso, e darvoloey a pro- var logo. Antónia traze qua huma carambola em conser- va (4). ANTÓNIA Eila aqui. II i62 Colóquio duodécimo RUANO Desse xarope acetoso ey de comer todas as manhãas, porque sabe muito bem. Nota (i) Garcia da Orta começa por notar, que os gregos e os latinos da épo- ca clássica não conheceram a cânfora, e que o primeiro a mencio- nal-a foi Aécio, «escriptor moderno-) ; e a sua opinião, sobre este ponto interessante de historia da sciencia, é confirmada pelo professor Fliicki- ger, o qual estudou com muito cuidado os documentos relativos áquella substancia (Pharmac, 459). Aécio, natural de Amida na Mesopotâmia, estudante em Alexandria, e mais tarde medico em Constantinopla, recebeu sem duvida o conheci- mento que teve da cânfora dos árabes, que já então (vi século) frequen- tavam aquellas terras. Isto é tanto mais provável, quanto o nome usado pelos últimos escriptores gregos, x-aooupá, é a simples hellenisação do arábico j^LT, kafúr, do qual vieram também os antigos nomes portu- guezes, canfor e alcanfor. Deve notar-sc, que a palavra kafúr é pelo seu lado uma adaptação arábica do nome sanskrito da substancia, karpTira. O modo por que Aécio se refere á cânfora, ordenando que lancem duas onças em um medicamento, se a houver, prova que não era então commum; e muitos outros documentos, citados pelo professor Fliicki- ger, vem igualmente demonstrar que foi durante muito tempo uma substancia preciosa, rara e cara (Pharmac, 1. c). Fliickiger é de opinião, que a cânfora conhecida n'estes primeiros tempos foi a do archipelago Malayo exclusivamente; e que a da China ficou ignorada e desaproveitada, mesmo no paiz em que é produ- zida. E um facto incontestável, que os auctores árabes faliam geral- mente da cânfora de Kansiir ou de Fansur, a qual era — como logo veremos — a do archipelago. E temos também noticia de presentes ou de tributos de cânfora, enviados da índia ou da Cochinchina aos im- peradores da China, e que foram ali recebidos com muito apreço 1. Deve no emtanto notar-se, que os chins tiveram e ainda têem a cânfora do archipelago na conta de uma coisa diversa da sua e muito superior. Podiam pois acceitar e louvar os presentes em que figurava aquella ' Um dos presentes citados na Pharmacographia, e mencionado por Maçiidi, o qual con- sistia, alem de uma formosíssima escrava, e de uma taça cheia de pérolas, em mil mefm de Ugmim aloés, e dez menn de cânfora, foi enviado, não a um imperador da China, como ali se diz por equivoco, mas a um rei da Pérsia (Cf. Maçudi, Prairies d or, u, 201). Da Camfora e das Carambolas i6'3 substancia mais preciosa, mesmo quando a outra fosse conhecida e fre- quente entre elles. A cânfora do archipelago Malayo procede de uma grande arvore, Dryobalanops aromática, Gíirtn. (Pterygium costatum, Corrêa da Serra) da família das Dipterocarpece. Orta diz bem quando affirma, que é uma arvore «alta, de boa copa, e aprazivel á vista,., pois de feito o Dryoba- lanops é a maior arvore d'aquellas regiões, e uma das mais bellas exis- tentes, tendo um tronco elevadíssimo, e uma densa e larga copa de folhagem brilhante. Sem duvida, da belleza da arvore e da frescura da sua sombra, resultou aquella lenda sobre os animaes que a ella se refugiavam seguros: faciens timbram multitudini animalium valde nu- mcroscv.. . diz a versão latina de Avicenna, que parece ser n'esta parte — como em varias outras — bastante defeituosa. Orta refere-se a essa lenda, acolhendo-a no emtanto com o seu scepticismo habitual em frente de todas as coisas que tocam no maravilhoso. A cânfora encontra-se nas fendas longitudínaes da madeira do Dryobalanops, em um estado solido e crystallino. Olha também Borneo, onde não faltam Lagrimas, no licor coalhado e enxuto Das arvores, que camphora he chamado, ' Com que da ilha o nome he celebrado dizia o Camões, com a mais feliz e mais exacta escolha de termos. E pois «gomma.), e não «miolo..; e «súa pelas gretas do páo.., segundo as afíirmações do nosso escriptor, que em toda esta parte é correctís- simo. Onde elle se mostra menos bem informado, é em desconhecer a existência da agua de cânfora. Nos mesmos troncos em que se en- contra a substancia crystallisada, chamada bornéol, encontra-se também um líquido especial, a agua de cânfora, ou oleo de cânfora, ou bor- néene, isomera com a essência de iherebeníina, mas contendo algum bornéol dissolvido i. Esta substancia, de que falia André Bcllunense, era muito conhecida e desde tempos muito antigos. Ibn Khurdádbah men- ciona-a já no ix século; e, no seguinte, Maçudi falia correntemente no camphre, e na eau de camphre das ilhas do mar de Kerdendj, as quaes se podem identificar com o archipelago Indiano ou Malayo (Cf. Crawfurd, Dict. of the Indian islands, 8i; Pharmac, 465; Maçudi, Prairies d'or, u 340). A agua ou oleo de cânfora extrahe-se com facilidade; mas para obter o. bornéol é necessário lascar pouco a pouco a madeira, em busca dos pequenos fragmentos sólidos. Para isso é forçoso abater e ' A formula do bornéol é Cio Hig O, sendo a do bornéeneC\(i H.c. 164 Colóquio duodécimo sacrificar a arvore, na duvida de encontrar a substancia, pois nem to dos os troncos a contém. D'esta incerteza, e da avidez de se apoderar de uma cousa cara e preciosa, se originaram provavelmente todas as lendas que pairam em volta da secreção da cânfora. Primeiro, aquella noticia do nosso escriptor, sobre o direito que todo o homem tinha de matar outro homem, quando o encontrava com uma cabaça cheia de cânfora, a qual, se não é verdadeira, ao menos não desdiz dos hábitos dos Dyaks de Bornéo, ou dos Battas de Sumatra, que nem uns nem outros professavam um grande respeito pela vida humana. Depois a referencia de Ibn Batuta ao sangue dos animaes, ou mesmo ao sangue humano, derramado no pé da planta como um sacrifício propiciatório, para provocar a formação da desejada substancia. Finalmente a affir- mação de Maçudi, de que a colheita era especialmente abundante em annos de beaucoiip d'orages, de secousses et de tremblements de terre. D'esta, que se encontra também na obra de Serapio e em outras, teve conhecimento o nosso Orta; mas acolhe-a com a sua costumada in- credulidade, e adverte com rasao e com graça, que, se fosse questão de trovoadas, haveria sempre muita cânfora, pois as trovoadas eram fre- quentíssimas n'aquellas terras e mares do equador (Cf. Moura, Via- gens de Ben Batuta, 11, 844; Maçudi, Prairies d'or, i, 338). O Dryobalanops é espontâneo no noroeste de Sumatra, no norte de Bornéo, e na pequena ilha próxima de Labuan. Orta cita «Burneo», e «Çamatra». Cita «Pacemw, o nome que os portuguezes davam a um porto e reino da mesma Sumatra, e que parece ser o Pasei dos ma- layos, e o Basma de Marco Polo. Cita também «Bairros», igualmente em Sumatra, e que foi o ponto clássico da exportação da cânfora. Se- gundo as eruditas investigações de sir Henry Yule — a que já me re- feri a propósito do beijoiín — Bairros, Baros, ou Barús, um pequenino porto situado na costa occidental de Sumatra, por 1° 59' 35" de latitude norte, era conhecido dos árabes pelo nome de Kansur, ou de Fansúri, ás vezes corrompido em Kaisur, e na versão de Serapio em Pançor — o f^Pcincor*' de Ortn. Foi sempre celebrada entre todas a cânfora d'ali, kafúr alqansuri, ou alfansuri de Avicenna, e de outros escriptores árabes; a qual depois, e ainda hoje — segundo Yule — passou a cha- mar-se kafur ou kapur Barús, para a distinguir de outra substancia, de que fallaremos na nota seguinte, á qual dão o nome de kapur- Chiná, e de kapur^ Japún (Cf. Crawfurd, Dict. of the Indian islands, 40 e 81; Yule, Marco Polo, 11, 268 e 285). ' O nome escrevia-se Kansúr, ou melhor Qansur com qáf, .„^^^ differindô portanto '^^ \ «./váL^i Fansúr, em um simples ponto diacritico. ' Posto que o nome árabe seja correctamente kafúr, parece, pelas citações, que o pro- nunciam muitas vezes kapúr. Orta cita as duas formas «Cafur» e «Capur«; e attribue o seu Da Camfora e das Carambolas i65 Segundo Orta, esta cânfora de Bornéo e de Sumatra não vinha á Europa, por ser muito melhor, muito mais procurada pelos orientaes, e portanto muitíssimo mais cara — logo veremos a questão dos preços. Esta noticia, que é interessante e tem sido repetidas vezes citada, con- firma-se pelo exame dos documentos do tempo. O Lyvro dos Pesos da Ymdia diz simplesmente da «Camfara» da China, que se pesava por um certo peso, pelo «Baar»; mas quando falia da de Bornéo, depois de in- dicar, que se pesava por «maticaes de xiraas« (Schirazi), accrescenta: «gastar-se á em Ormuz quamta vier.» Vê-se pois que era rara e muito procurada ; e que a pouca que viesse parar a Hormuz ficaria pela Pér- sia. Succede hoje a mesma cousa; a cânfora de Bornéo e Sumatra, ou bornéol, é conhecida nas coUecçÕes dos pharmacologistas, mas não se encontra no commercio da Europa. Em primeiro logar a sua produc- ção é limitada; e depois, alguma é consumida na própria região, nas ceremonias funerárias dos príncipes indígenas, e o resto exportado para Sião, Cochinchina, Japão, e principalmente para o porto de Cantão na China. A índia mesmo, ao mercado de Bombaim e outros, vem em pe- quena quantidade (Cf. Lyvro dos pesos, 9 e 14; Pharmac, 465 ; Dymock Alat. med., q5). Para terminar, mencionarei uma interessante confirmação do que diz o nosso escriptor, acompanhada de uma circumstancia curiosa. Se- gundo Orta, os mercadores orientaes, Baneanes e Mouros, dividiam a cânfora em quatro sortes, que da superior á mais inferior chamavam «cabeça, peito, pernas, pé.» Rumphius descreve também as qualida- des em que a classificavam : fragmentos maiores, approximadamente das dimensões da unha, a que chamavam Cabessa, que elle explica si- gnificar caput; grãos ou escamas mais pequenas, chamadas Bariga, ou venter; e a parte pulverulenta e em granulações miúdas, com o nome uso a que o f c o p sáo muito similhantes em arábico, o que lhe valeu uma correcção severa e até certo ponto justa da parte de Scaligero : ne Arabice quidem hunc Garciam legere sei. visse, neque quod literce in Arabismo sint. . . (Exotic, 245). A verdade é que o p não existe no alphabeto arábico. Yule, porém, adverte que no alphabeto malayo (arábico modificado) o som do p é representado, não peio pê dos persas ('w-') > ps'o fé dos árabes (j^) com tres pontos e)- Teria Orta noticia de alguma cousa n'este género? ' O «baar» (sanskrito bhâra, na forma arábica bahar) variava de porto para porto, e ainda no mesmo porto em relação ás mercadorias pesadas ; o de Hormuz tinha 14 arrobas e tanto, um pooco mais de 207 kilogrammas. O «matical» (miíhkal) de Schiraz pesava approximadamente 4,6 grammas, e era naturalmente empregado nas transacções em substancias preciosas. Esta simples differença no modo de pesar mostra o diverso apreço em que eram tidas as duas cânforas. Orta diz do mesmo modo, que a da China se vendia por «bares»; e a de Borneo por «cates», que sáo «vinte onças>. O «cate» da China (malayo-iavanez kãtl) equivalia a 16 taeis, um pouco mais de 21 onças, ou proximamente 612 grammas. Pesava-se pois no extremo Oriente pelo kati, e em Hormuz, mais longe dos sitios de producçáo, pelo vtithkal ; mas em todo o caso por um peso pequeno, o que era natural, attendendo á raridade da substancia. i66 Colóquio duodécimo de Pees, que significava pes. Parece porém, que nem Rumphius, nem modernamente Guibourt que transcreveu esta passagem, tiveram a no- ção clara de que as palavras eram portuguezas; e a orthographia de Rumphius mostra bem, que elle as ouviu aos Malayos e as transcreveu pelo som (Cf. Rumphius, Herbariiim Amboinense vol. vi, Auctuariwn, 66; Guibourt, Hist. des drogues, ii, 417). Nota {2) A cânfora, vulgarmente chamada da China, é uma substancia aná- loga mas diversa da que procede do Dryobalanops em Borneo e Su- matra^. E produzida por uma arvore, Cinnamomiim Camphora, Nees et Eberm. (Laurus Camphora, Linn.) da família das Laurace^v, espontâ- nea nas florestas das províncias centraes e orientaes da China, da ilha Formosa e do Japão. Segundo vimos na nota antecedente, o professor Fliickiger é de opi- nião, que esta cânfora do Cinnamomum não foi conhecida nem usada nos tempos mais antigos. Um grande numero de factos e dados histó- ricos mostram effectivamente, que a substancia a que os escriptores d'aquelles tempos se referiram era em geral o kafur fansuri, ou bor- néol. O sr. Dymock, porém, diz-nos, que os escriptores sanskriticos distinguiam duas espécies de cânfora, Karpura pakva, isto é, colida, ou preparada ao fogo, e Karpura apakva, isto é crua, ou natural; e que em geral se considera a primeira designação como applicada ao pro- ducto do Cinnamomum, emquanto a segunda se dava ao producto do Dryobalanops. Sendo assim, teríamos a substancia da China conhecida na índia desde tempos bastante remotos. Os textos dos antigos livros árabes, em geral mutilados nas versões, também nos podem deixar em duvida. Assim Scaligero, nas suas notas ao livro de Orta, diz-nos que existe uma passagem no texto arábico de Avicenna, omittida na versão de Gerardo Cremonense, e que elle (Scaligero) traduz assim: nascitur quoque in tractibus Sinarum. Avicenna teria, pois, conhecimento da cânfora da China, a qual seria talvez a que elle menciona depois da melhor ou alqansuri, e que chama al^eid, pois Zeid pôde lembrar Zay- túm, por onde, como vamos ver, se exportava principalmente a merca- doria da China. O texto de Serapio, citado pelo nosso auctor não muito exactamente, também se pôde applicar á China. Depois de fallar na cânfora de Pançor (Fansur), que é a melhor, diz elle: et dicunt qux in montibus índias et Sim sunt ex arboribus camphorce; mais longe ' A composição d'esta substancia pôde representar-se pela formula C,» H,8 O, emquanto a formula do Boniêol é C,, H,» O. Da Camfora e das Carambolas 167 acrescenta ... et pliirimum quod defertur ex ea, est Harig, et est minor Sim. Este Sim pode perfeitamente ser a China, chamada geral- mente Sin. Em alguns livros chins, referidos ao periodo da dynastia Sung (960-1280), vem mencionada a cânfora de Bornéo, como trazida de fóra, e chamada lung-nao siang ou po-lo siang (perfume de Bornéo). E no celebre Pen Ts'ao Kang Mu (livro na verdade recente, redigido no XVI século, mas compilado de noticias anteriores) na parte relativa ás arvores Mu, e na secção das arvores aromáticas Hiang Mu, faz-se uma distincção clara, entre a arvore que dá a cânfora de Bornéo, e a que dá a cânfora da China. (Cf. Pharmac, 460; Dymock, Mat. med., 665 ; Exotic, 245 ; Avicenna, II, II, cap. i33; Serapionis aggreg. de simpl. comm., 228, edição de O. Brunfels, Argentorati, i53i; Bretschneider, On the knowledge, etc. i3; e Botanicon Sinicum, 61, London, 1882). Fosse qual fosse o momento em que a secreção do Cinnamomum começou a ser explorada, sabemos que isto tinha logar em larga escala no xiii século. O grande viajante Marco Polo, atravessando pelo anno de 1292 a provincia de Fo-kien, entre a cidade de Fu-chau e o porto de Zaytún, passou por extensas florestas, em que se encontravam mui- tas das arvores que dão a cânfora. Esta substancia era então expor- tada por Zaytún, uma opulenta cidade, cujas magnificências celebra- ram o mesmo Marco Polo, Ibn Batuta e outros viajantes da idade-media, e que foi o emporium do commercio da China com o archipelago malayo, a índia, e em geral o Occidente. Este Zaytún, um nome usado pelos mercadores árabes, quiz Yule identificar com o porto de Tswan- chau; mas, pelas reflexões de Phillips e de Douglas, parece antes de- ver-se collocar mais ao sul, em Chang-chau, na grande enseada de Amoy (Cf Yule, Marco Polo, 11, 217 a 224). Segundo Orta, durante a sua estada na índia e já anteriormente, toda a cânfora do commercio occidental vinha da China, e o que é mais do mesmo porto de Zaytún. Somente, o nome tinha mudado. Quando os portuguezes no xvi século abriram de novo ao commercio os portos da China meridional, o velho nome árabe estava esquecido, e elles deram á mesma localidade o nome de Chincheo. E Orta diz- nos, que da cânfora chineza se sabia pouco, porque não vinha de Can- tão, onde toda a gente ía; mas de Chincheo, «onde vão poucas pes- soasM. Era natural que a exportação se fizesse por Zaytún ou Chincheo, pois o Cinnamomum é particularmente abundante nas florestas da pró- pria provincia de Fo-kien, e nas das províncias limitrophes de Che- kiang e de Kiang-si. Orta sabia, pois, exactamente a procedência da substancia; mas não conhecia a feição da arvore, nem o processo de extracção, porque as terras da China, para o norte de Cantão, eram pouco frequentadas pelos portuguezes. i68 Colóquio duodécimo Nas Lettres édijianies (citadas por Yule) vem descripto o modo po que na China se obtinha a cânfora dos fragmentos ou aparas da ma- deira do Cinnamoynum, submettendo-as á acção do calor, e provocando a sublimação da substancia. E são bem conhecidos os processos aná- logos, empregados na ilha Formosa e no Japão, d'onde hoje vem quasi toda a cânfora, porque a da China tem desapparecido do commercio. Sem nos demorarmos na descripção d'esses processos importa notar, que a cânfora do Cinnamomum se não encontrava á venda no estado nativo — como a do Dryobalanops — mas preparada pela acção do calor, e em massas porosas, a que Orta chamava «pães». D'esta prepa- ração tiveram conhecimento os escriptores sanskriticos, se acaso a dis- tinguiram pelo qualificativo de pakva, ou copda; e d'ella teve também uma vaga idéa o nosso auctor, admittindo que fosse uma cousa com- posta. No que, porém, se engana, é em julgar que lhe misturavam al- guma cânfora de Bornéo. Para terminar estas longas notas, devemos dizer alguma cousa so- bre os preços relativos das duas espécies de cânfora. Orta affirma, que uma libra da de Bornéo valia tanto como um quintal da da China. Admittindo que elle fallou da libra de botica, de 12 onças, teriamos a de Bornéo 170 vezes mais cara que a da China — o que pôde parecer exaggerado. No Livro de Duarte Barbosa — um pouco anterior — en- contram-se alguns preços : diz elle, que a cânfora grossa em páes valia de 70 a 80 fanões cada fara:;ola; e esta devia ser da China, tanto pelo seu preço baixo, como pela indicação de ser «em pães». Diz mais, que a cânfora de comer, e para os olhos, valia cada mitigai 3 fanões. D'este preço do mitigai (matical ou mithkal) deduz-se, que o preço da fara- ^ola era de 7:000 fanões proximamente: isto é 100 vezes mais cara que a inferior. Modernamente, Rondot, em um estudo sobre o commercio da China, publicado no anno de 1848, e citado tanto por Yule como por D. Hanbury, dá os seguintes números : Preços de diversas qualidades de cânfora por picul de i33 1/2 Ibs- China i." qualidade 20 dollars » 2." qualidade 14 Formosa 25 Japão 3o Ngai (da China 2) 25o Barús 1." qualidade 2:000 » 2." qualidade 1 :ooo ' Veja-se Pharmac, 461; c, sobre a resublimaçáo a que sujeitam na índia a cânfora bruta, Dymock, 665. ' Ngai, extrahida da Blumea balsamifera, e não conhecida nos tempos antigos. Da Camfora e das Carambolas 169 Por onde se vê, que a melhor cânfora de Barús, era 100 vezes mais cara que a melhor da China, exactamente como tres séculos antes, no tempo de Duarte Barbosa. Dados ainda mais modernos e relativos á índia, approximam-se muito sensivelmente das indicações de Orta. Diz- nos o sr. Dymock, que no mercado de Bombaim a cânfora bruta do Japão e da China vale de i5 a 16 rupias o maund^ de Surrate de 37 V2 Ibs., isto é menos de 1/2 rupia por Ib.; emquanto a boa cânfora de Bornéo pôde valer 100 rupias por Ib., ou mais de 200 vezes aquella. De tudo isto re- sulta, que, nem o nosso escriptor foi exaggerado, nem o valor relativo das duas substancias tem variado de um modo muito sensível. Nota (3) Garcia da Orta admirava muito a riqueza e civilisaçao da China, como teremos occasião de notar em mais de um Colóquio. Esta noticia sobre o commercio d'aquelle paiz com a índia é muito interessante, posto que em um ponto me pareça menos exacta. Orta inclue o «azogue» e o «vermelham« entre as mercadorias que vinham habitualmente da China, no que julgo haver um engano. É certo que na China existiam jazigos de cinabrio, e que fabricavam ali vermelhão muito fino e apreciado, parte do qual, assim como algum mercúrio, se deveria exportar; mas habitualmente succedia o contrario. Duarte Bar- bosa, sempre bem informado, diz que o a:^ougue e o vermelhão chega- vam ao mercado de Diu, vindos de Aden e da Meca, isto é, do Occi- dente. E, quando falia do movimento commercial de Malaca, não in- clue aquellas substancias entre as que os juncos trariam da China, mas pelo contrario entre as que levavam para lá de retorno. Esta é que pa- rece ser a verdade. Em tudo o mais a noticia é exacta. Os metaes preciosos abundavam na China, e d'ali vinham para a índia desde tempos antigos, particular- mente a prata. Marco Polo já menciona a importação de prata no Ma- labar, vinda do oriente, e cita os navios de Manzi (China meridional), entre os que a traziam, acrescentando que alguns d'esses navios tra- ziam também cobre como lastro. Alguma prata devia vir em obra, em «baixellas ricamente lavradas» ; e alguma viria em «leitos», que não sei bem o que fossem, pois me parece que a palavra leito não deve ter aqui a sua significação vulgar. O almíscar em pó, ou em papos, era uma das exportações clássicas da China, em cujas províncias septentrionaes abundavam os animaes ' Este peso, que os inglezes escrevem e pronunciam maund, é o mesmo que os nossos antigos portuguezes da índia escreviam mão. 170 Colóquio duodécimo que o produziam. Uma parte d'esse ahniscar chegava á índia pelo in- terior, pelo Thibet e Himalaya, principalmente ao mercado de Patna; mas outra vinha dos portos da China a Malaca, e d'ali ás cidades das costas de Coromandel ou do Malabar. Igualmente vinham da China pérolas e aljôfar, algum tanto irregula- res e desiguaes, como notou Duarte Barbosa com a minuciosidade de um bom negociante. Na curiosa miscellanea que constitue a Lem- brança das cousas da Imdea, vem cuidadosamente apontados á parte os preços do aljôfar da Chyna, por onde parece que seriam diversos dos do aljôfar das pescarias de Coromandel e Ceylão. Este aljôfar da China era pescado ao longo das costas do sul, principalmente da grande ilha de Aynam, ou Hai-nan; e Fernão Mendes Pinto nas suas aventuro- sas e celebres peregrinações teve occasião de visitar aquellas pescarias. Mais conhecida ainda como exportação da China é a porcellana, que vinha para a índia, e d'ali para Portugal, onde ficou sendo desi- gnada pelo nome impróprio de louça da índia. Alguma — segundo diz Orta — valia «mais que prata duas vezes»; e devia effectivamente ser preciosa, pois n'aquelle tempo, o da dynastia Ming, o fabrico attingiu na China a maior perfeição. Mas superior em importância a todas as outras mercadorias era en- tão a seda. Vinha da China muita «seda solta» ; e mesmo o que Duarte Barbosa chama sulia, que parece ser o casulo em bruto. E vinha tam- bém a «seda tecida», ou — como diz Duarte Barbosa— «panos de da- masquo de cores, setins, e outros panos razos, e brocadilhos». Todos estes ricos tecidos tinham na índia um largo consumo; em uma es- tação gastavam-se setecentos babares, segundo diz o nosso velho me- dico. (Cf. Duarte Barbosa, Livro, 283, 365 e 374; Yule, Marco Polo, 11, 378; Lembranças da Imdea, 3g, nos Subsídios; Fernão Mendes Pinto, Peregrin. cap. xliiii). Nota (4) Orta refere-se a uma de duas espécies vizinhas: Averrhoa Caram- bola, Linn., chamada vulgarmente carambola, e kamaranga, que deve ser o seu «Camariz»; e Averrhoa Bilimbi, Linn., chamada também ka- maranga, e por outros bilimbi, o seu «Balimba». Ambas são cultivadas com frequência na índia, e elle falia provavelmente da primeira, posto que hoje — segundo dizem — na nossa índia portugueza o bilimbeiro seja mais commum e tratado com mais esmero do que a caramboleira (Cf. Roxburgh, Flora Indica, 11, 450; Costa, Manual pratico do agr. in- diano, II, 2i3 e 214). Os fructos alongados d'estas pequenas arvores, da família das Oxa- lidecs, são visivelmente sulcados pelas suturas longitudinaes das carpel ■ Da Camfora e das Carambolas las, e por isso Orta diz, que parecem divididos nas partes menores do circulo. Esies fructos servem ainda hoje na preparação de molhos áci- dos, ou no tempero da comida, como nos «pasteis» do nosso escriptor. Também os conservam em assucar, em «graciosas conservas» ; e os applicam em bebidas refrigerantes durante a febre. Não encontro men- cionado o «colirio» do nosso medico; mas Rhede assegura que empre- gam uma d'aquellas plantas (A. Carambola) contra as affecções cutâ- neas e todas as inflamações (Cf. Drury, Use/ul plants, 58; Rhede, Hor- ius malabar icus, i, 52). COLÓQUIO DECIMO TERCEIRO DE DUAS MANEIRAS DE CARDAMOMO E C AR ANDAS INTERLOCUTORES RUANO, ORTA, SERVO RUANO Grande meada temos pêra desempeçar, e grandes nós pera desatar, como os que Alexandre cortou por escusar o trabalho de os desempeçar. E por esta causa me parece bem haver de vós hum desengano disto; porque se os podçis desatar, bem; e se nam, quebrarlosey, usando do momo mayor e menor, como em Europa se usa; nam sendo conforme a Galeno, nem a Plinio, nem a Dioscórides. ORTA Eu muy bem vos saberey dizer qual he o que chamao cardamomo major e menor, e que vejaes isto tam craro como a luz do meo dia; porque sam estas humas muito usadas mercadorias, e assi gastadas nesta terra, como leva- das pera Europa e Africa e Asia: mas se este nome car- damomo lhe foy bem posto ou não, não volo posso afirmar. RUANO Começay em boas oras, e dizey os nomes arábios e lati- nos e indianos. ORTA Avicena faz capitulo do cacolld*, e o divide em maior e menor, e ao mayor chama qiiebir e ao menor ceguer; assi * Avicen. lib. iSg (nota do auctor). Para ser correcta seria lib. ii, tract. II, cap. i58; veja-se a nota (i). 174 Colóquio decimo terceiro que hum delles se chama cacollá qiiebir, e outro cacollá ce- giier, que he tanto como se dixesse cardamomo mayor e cardamomo menor; e por estes dous nomes sam conhecidas estas duas maneiras de cardamomo dos físicos arábios e mercadores; e ambas ha na índia, e a mayor quantidade he de Calecut até Cananor, bem que em outras partes do Malavar o aja, e na Jaoa; mas não he tanta quantidade, nem tam branco da casca. E neste Malavar se chama etremillf, e em Ceilam ençal; e, acerca dos Bengalas e Guzarates e Decanins se chama, por alguns /z/V, e por outros elachi; e isto, ácerca dos Mouros, porque ácerca dos gentios destas partes acima ditas se chama doj^e; e por esta causa ha tan- tas confusões nos nomes delle escriptos per os Arábios; porque huns o chamárão pella lingoa indiana, e outros pella arábia; e ficou a cousa tam embaraçada, que deu a muitos occasiam de errar. RUANO Pois Serapiam chama a hum cacollá e a outro hilbane*. ORTA Está corruta a letra, e hade dizer cacollá e hil, e se lhe quisermos acrescentar bane, antes diremos ba?'a, que quer dizer grande em decanim; assi que cacollá, como dizem todos os Arábios, ou caculle, como diz Avicena, ou elachi, querem dizer o que chamamos cardamomo. RUANO E em latim como lhe chamaremos, ou em grego? ORTA Os Gr egos, nem os Latinos antigos, nam conheceram car- damomo; como quereis que vos diga o nome? E por tanto podeis crer que Galeno nam escreveo delle; e isto alem da esperiencia e o capitulo do cardamomo, he dizelo Avenrrois; * Serapio, cap. 64 (nota do auctor). Do Cardamomo e.das C ar andas 175 porque diz Galeno que nam he o cardamomo tam quente como masturço*; mas que he mais aromático e mais sabo- roso, e tem alguma cousa de amargor; e pois todas estas cousas nam llie convém, nem tem sabor de masturço, nem amarga, sinal he que nam conheceo este que chamamos cardamomo. RUANO E pois Plinio e Dioscórides nam escreveram delle**? ORTA Dioscórides diz que o milhor se traz de Comagena e da Armênia e do Bósforo; e que também se traz da índia e da Arábia; e pois diz que se traz destas partes, acima ditas, e o que cá chamamos cardajnomo não o ha lá, pois he mer- cadoria que pêra lá se leva; assi que se lá ha o que diz Galeno e Diocorides, e não he este da índia, bem se segue que são duas cousas e não huma só. E se queremos dizer que he o que chamão Avicena e Serapiam cordumeni, nisto não contendo, porque este nam he o que Avicena e Sera- piam chamáram cacullá ou hil; quanto mais que Dioscóri- des, em as condições que delle pÕe, diz que seja máo de quebrar e encerrado na casulha, e agro e hum pouco amar- go, e que tente com o cheiro, e fira a cabeça, as quais cousas todas sam ao revez deste chamado cardamomo; por- que não he máo de quebrar, nem tenta com o cheiro a ca- beça, nem he amargo, senam tem hum sabor agudo, nam tanto como a pimenta ou cravo; e porém he mais aprazí- vel, e na boca traz agoa. RUANO Pois porque lhe chamarão cardamomo, pois dizeis nam ser o dos Gregos? * Avenrrois, 5, Colligit; Galenus, 7, Simp. medica, (nota do au- ctor). ** Pli. lib. 12, cap. i3; Diosc. li. i, cap. 5 (nota do auctor). 176 Colóquio decimo terceiro ORTA Porque, como diz Terêncio*, Davo contorbou todas as cousas-, e este Davo foy Geraldo Gremonense trasladador, que, por nam conhecer este simple, por a muyta distancia destas terras, e não haver navegaçam, nem commercio pera ellas, poslhe o nome que milhor lhe pareceo; e fôra milhor deixar o nome em arábio, pois era mezinha não co- nhecida; e não foy só o erro que deste modo teve este Ge- raldo. RUANO O de Plinio parece ser o desta terra? ORTA Plinio põe quatro especias; scilicet, muito verde e grosso, e o milhor ha de ser contumaz ao esfregar; e o outro que resplandeça de cor ruiva de ouro; e o outro, mais pequeno e mais negro, hade ser de desvairadas cores, e que se que- bre bem: ora vedes aqui o cardamomo que tem a casca em que está, branca, e elle he preto, e facilmente se quebra. E provay, que não he amargo, nem o ha preto por fóra, e muito menos o ha verde, ou vario de cor, como podeis ver neste. Moço, pede a huma negra cardamomo, e trazeo cá; porque estas negras usam muito delle por o máo cheiro da boca e pera masticatorio, e pera desfleimar e alimpar a ca- beça. SERVO Eilo aqui. RUANO Bem diíferente cousa he esta; quanto mais que diz Valé- rio Gordo**, que o mayor he quasi como boUota e o menor quasi como avelã; e destes nenhum dos grandes he mayor que hum pinham com casca; e elle, nos Dioscórides que * Terêncio (nota do auctor). Veja-se a nota (5). ** «Valério Probo», na edição de Goa, mas por erro evidente. O no- me d'este conhecido commentador de Dioscórides foi um dos que mais alterações soífreram na impressão; veja-se a nota (5). Do Cardamomo e das Car andas 177 fez debuxar, pinta o assi; e diz que estes grãos estão meti- dos nas outras cabeças grandes \ portanto me dizey se he assi. ORTA Elie se semêa como os nossos legumes; e o mais alto he como um covado de medir; e nelle estão dependuradas estas casulhas; e nesta casulha que vedes abrir, estão de dez até vinte grãos pequenos. RUANO Venha Ruelio e Laguna, pois são mais novos escritores, e digão o que sintem deste simple; porque diz Ruelio que he huma frutice ou mata semelhante ao amomo, como o nome o diz, e abaxo diz que se colhe como o amomo na Arábia. ORTA Por aqui podeis ver que não he o cardamomo ; porque o que cá da índia vay, pêra essas partes o levao, scilicet, pera o ponente; e nestas terras cá não ha o amomo, por- que de lá do ponente o mandão trazer os reys pera mézi- nha, do que eu sam testemunha de vista. E que o carda- momo ou cacollá não ajão nessas terras do ponente se prova por ser mercadoria pera lá; e he sabido de todolos merca- dores. RUANO Também traz per auctoridade de Theofrasto, que he vezinho ao nardo e ao casto. ORTA Isto achamos ser alheo da verdade, porque o nardo e o casto ha os no Mandou e no Chitor ; e o cacollá ha o no Ma- lavar, e já pôde ser que o aja onde ha o narda e o casto, mas nam ha tanto como o ha no Malavar. RUANO E também diz que as sementes sam brancas, e que em- polam com grande esquentamento a boca? 12 178 Colóquio decimo terceiro ORTA Isto he falso do cacollá, pois a casca he branca e as se- mentes são pretas; e, tomado na boca traz tanta agoa, que parece nam ser quente; donde tomaram occasiam os índios a dizer que era frio de compreisam, RUANO Pois o Laguna, que trasladou o Dioscórides em castelhano, diz que nas boticas se mostrão tres especias de cardamomo, scilicet, mayor e menor, e outra que he a nigela, e que todas são muito aromáticas e mordaces ao gosto; e que o cardamomo major parece âo feiíugreco ou alfoluas, e que he mais negro e mais pequeno; e o cardamomo menor cor- responde na figura ao mayor, porque he esquinado e nam tem tanto corpo, e declina mais a cor pardilha; e o terceiro he a nigela citrina, que he differente na cor preta somente ; de modo que concluy que a primeira especia he jnalagiieta ou grãos do paraiso; e que este he o cardamomo de que escreve Dioscórides. E diz mais o mesmo Laguna que hum mercador lhas mostrou em Veneza todas tres especias o anno de 48, e depois diz mil males dos Arábios e que con- fundem tudo. ORTA O que dizeis de Laguna he craro ser falso, poUo que já disse e adiante direy; porque o Dioscórides não vio o car- damomo com casca; pois diz que a malagueta o he; não, a malagueta conheceo Dioscórides donde era*; e o mayor, que diz ter a cor pardilha, nam diz bem ; e mais a nigela nam ha nesta região, nem tem as obras do cardainomo. E o merca- dor que lhe mostrou as tres especias de cardamomo, que disse que trazia a Veneza da Armênia, não dixe verdade se era verdadeiro cardamomo; e se era o verdadeiro, traziaas da índia, scilicet, levadas ^della a Alexandria ou outro porto. * A phrase é muito confusa; e Orta depois de refutar Laguna parece admittir a sua opinião de que Dioscórides conheceu a malagueta, opi- nião de lodo o ponto insustentável. Veja-se a nota (1). Do Cardamomo c das Carandas 179 RUANO Logo, per vossas razões, me parece que dizeis que o car- damomo dos Gregos não he este que cliamáo cardamomo os Arábios^ e tem muyta razam Menardo e outros escrito- res novos de dizer que o cardamomo dos Arábios que he mézinlia nova; e que nam se deve usar delia, pois Galeno e Dioscórides, príncipes da medecina, não a usaram (i). ORTA O primeiro vos confessey já, scilicet, que o cardamomo que os Gregos escreveram, não he o cacollá que escreve- ram os Arábios; mas o segundo vos nego em dizerdes que nam se hade usar delle, porque cada dia ha enfermidades novas, assi como o morbo napolitano (a que chamamos sarna de Gastella), e Deus he tam misericordioso que em cada terra nos deu mézinhas pera saramos; porque elle que dá a enfermidade dá a mezinha pera ella; senam, como diz Temistio, o nosso saber he a mais pequena parte do que ignoramos*. E porque nam sabemos as mézinhas com que curamos todas, trazemos o ruibarbo da Ghina, donde tra- zemos o páo ou raives pera curar a sarna de Gastella, e a cana Jistola trazemos da índia, e o mamid da Pérsia, e guaiacam das índias occidentaes. E também quiz Deos que buscássemos e inquerissemos sempre mézinhas; e pois isto assi he, porque os amadores dos Gregos quando achão as mézinhas esperimentadas nas terras onde nascem, e nas terras onde as usaram Avicena, e Abenzoar, e Rasis, e Isa- que, e outros a quem nam se pôde negar serem letrados, em tanta maneira as vituperão, que vituperáo os autores. RUANO Bem dizeis: mas como usarey do vosso cardamomo cu- rando segundo Galeno, pois o não conheceo? * Temistio (nota do auctor). Veja-se a nota (5). i8o Colóquio decimo terceiro ORTA Digo que em as receitas dos Gregos e dos Latinos anti- gos, que nam seguirão os Arábios, por cardamomo usay do de Galeno^ e se o nam conheceis, não deis a culpa aos outros, pois nam a tem: e nas composições ou curas dos Arábios e Latinos modernos usay do cardamomo mayor^ que he este grande que vedes, e do menor, que he estou- tro. RUANO Outra guerra se nos apareliia, estes (nam) são ambos de huma feiçam, e (que) não diferem mais que de grande a pe- queno, e todolos vossos imitadores dos Arábios (namj cha- mam a este pequeno cardamomo maj^or, e estoutro grande nunca o virão em Europa; e por o menor usam de huma semente, a que chamam grana paradisi, e os Hespanhoes malagueta*. Pareceme que desfazeis toda a física e todo o modo de curar; portanto tende mão em vós, e dizeime donde vos veo este error. ORTA Eu volo direy, e vós o vereis craro \ porque muitas vezes perguntey em Portugal, e cá na índia a pessoas que foram de Portugal á Malagueta, se avia na Malagueta este cacolld a que chamamos cardamomo, e dixcramme que nam; e cá nestes terras perguntey se avia malagueta e nunca a achey. Comecei entonces a cuidar em mim, como Avicena, tanto sabedor, avia de dividir o cardamomo mayor e menor, e que o mayor se avia de achar na índia, e o outro na Ma- lagueta, quatro mil legoas delia; e também vy que Avicena chama á malagueta conba^bague; e parece muita razam ser ella, pois que diz que a trazem das partes de Çofala, e a Ma- lagueta he continua a ella. E já pôde ser que em Çofala ou nas terras convisinhas a aja, e nam o sabemos, porque he * Toda esta passagem é inintelligivel, e contem talvez a mais as pa- lavras incluídas entre parenthesis; alem disso envolve um erro, sobre a identificação do granum paradisi com o cardamomo menor. Do Cardamomo e das Car andas i8i gente barbara, e não acustumada a conversar com os ho- mens: pois como quereis que escreva dous capitules Avi- cena de huma cousa? E andando eu nestes cuidados em Cocbim, veo a mim hum judeo, mercador da Turquia, e di- xeme que trazia em huma lembrança de mézinhas que avia de comprar, cacollá qnebir; e como entendi que cacollá si- gnificava cardamomo, e quebir grande, perguntey a muitos, se avia cardamomo em outras terras, e de que feiçam era, e nam me davam razam disso; e por derradeiro achey que em Ceilam o avia, e que era muito mais grande e nam tam aromático; e isto me dixe hum feitor de elrey que ahi resi- dira, e que se levava a Ormuz e Arábia por mercadoria, em que se ganhava bem. E no mesmo tempo mandey a Ceilam hum meu navio, e me trouxerao huma amostra delle; e porque nam creais a huma só testemunha, ainda que seja Catam, curando eu no Balagate hum grande se- nhor, por nome Hamjam, irmão de hum rey do Balagate, que se chama Verido, de industria despensei em uma re- ceita cardamomo mayor e cardamomo menor, em lingoa arábica, e apresentaramme, pera fazer a composição, estas duas mézinhas; isto avia de abastar, quanto mais que, a olho vedes que ambos são de huma feiçam, e hum grande e outro mais pequeno. RUANO Logo a Portugal vai o menor destes, e o maior destes nam vi: qual vos parece milhor pera usar? ORTA Digo que ambos he bem que se levem a Portugal, e dahi se gasta pera toda a Europa; e porém o mais aromático e milhor he este mais pequeno, e podese chamar mayor em virtude e menor em cantidade: isto digo salvo milhor juizo. RUANO Eu estou espantado de mim, como vendo estas duas cabe- ças de sementes, nam dixe logo, este he cardamomo major e este he menor, c daqui adiante assi usarey e praticarey; e l82 Colóquio decimo terceiro do conbaihague ou malagueta, somente onde o achardes pensando nas mézinhas dos Arábios (2). ORTA Nenhuma cousa sei, que logo o nam diga aos boticairos e físicos, e a todos; e isto bem sei que nam he bom pêra mim, porque dizem depois que elies acharam estas cousas, c le- váo a gloria de meus trabalhos, e eu nam o digo, senam por aproveitar a todos. E Deus he testemunha disto, que me aconteceo. Foy hum visorey nesta índia, muito curioso de saber, e posto que nam sabia latim, em toscano entendia Plinio, e desejava de saber a certeza de algum simple, e encomendavame que lho.dixesse, quando o achasse; ao qual eu levei este cardamomo major a mostrar, e o menor, c mostrandolos ambos, lhe dixe que hum se dizia cardamo- mo major e outro menor, o qual elle, olhando e provando, afirmou que aquilo lhe parecia verdade, e porém que elle tinha fé em hum boticairo velho, que o queria mandar cha- mar. RUANO Esse boticairo era docto, e sabia latim, e grego, ou ará- bio? ORTA Não, senam era hum homem velho e de muito tempo na índia, e sabia bem a pratica da botica, e em latim, e grego e arábio sabia do modo que o sabem em Espanha os que nunca o ouviram falar nem ler; e comtudo isto era muito bom homem, e porque hia fazer a Cambaya as drogas da botica, que pera Portugal mandava o veador da fazenda, dezia, que nenhum boticairo sabia no reino nem cá senão elle cousa destas drogas; e elle nunca soube tanto que lhe fizesse perda. Perguntou o visorey áquelle boticairo se era hum daquelles cardamomo mayor e outro cardamomo me- nor, e dixe que nam; senam que o mais pequeno era car- damomo, e o outro que nam o era major nem menor; e como lhe eu dixe que o provasse e acharia ambos de hum sabor, c hum era grande e outro pequeno, e elle nam dava Do Cardamomo e das Car andas i83 estas duas especias nesta terra, sendo nella tam espermen- tado, que era razam serem aquellas duas mezinhas huma cardamojno major e outra cardamomo menor. A isto dava cUe grandes brados em bom romance de Portugal de pre- sumitiir, que volo concedo, mas que o seja assi, que volo nego: argumentovos de menta e polipodio. E eu lhe dizia, porque nam será este cardamomo, pois não dais outro na terra? E elle dezia: Porque? Como ha Deos de querer que o que eu não soube em tantos annos, saibais vós tam asi- nha? E eu a isto lhe replicava que muitas cousas sabíamos oje, as quaes ontem ignorávamos; e que muitas vezes, aos menores, como a mim, se revelavam as cousas que aos mayo- res, como elle, nam revelavam; e com todas estas lisonjas nunca o pude fazer confessar, senam acodia de pcrsumiiiir. RUANO E pudieis ter o riso entonces? ORTA Si podia, mas com grande trabalho; porque, diante de tal pessoa, sermia reputado a liviandade; e porém um letrado jurista, que em hum canto estava assentado, reya* por mim e por elle, e oje em dia riy disso, quando lhe lembra. RUANO Nam sabia esse visorey o que vós sabieis? ORTA Si; e mais me conhecia de Portugal; e elrey quando pera esta terra veo elle lhe dixe que não era necessário tra- zer físico comsigo; e assi o fez, e se finou em minhas mãos; mas pudia mais a porfia do boticairo, que todas estas coi- sas (3). * «Reya», uma fórma hespanhola, como muitas outras de que usa o nosso auctor. i84 Colóquio decimo terceiro RUANO Folgare}^ de conhecer este boticairo. ORTA Já morreo, e Deos lhe perdoe, porque tirado de algumas cousas era muyto bom homem; e nelle não falemos mais, porque isto foy mais dito pera o festejardes e vos alegrar, que pera o encomendar á memoria. RUANO Digovos que Andreas Belunensis, bem entendido no ará- bio, diz que caciillc he cardamomo mayor, e alçai ou halcil ou cajrbiia e eilbua he cardamomo menor. ORTA Todos estes nomes estão depravados acerca dos livros arábios e de alguma gente e o que acima dixe he a verda- de; e nam digo isto porque elle não sabia muito, mas, por nam vir a esta terra, nam pôde haver as verdadeiras en- formações. RUANO Usase muito em física da gente da terra? ORTA Muito, porque no betei mesturado se mastiga pera fazer bom cheiro; e com elle dizem que se tira a freima da cabeça e do estômago; e assi o tomam em xaropes e tomaram crronia em dizer que era frio; e nam he muito, pois assi o afirmam na pimenta. RUANO E os físicos indianos tomam a raiz pera as febres? porque diz Mateus Silvatico que si, e que nacem em humas trombu- sidades de huns arvores: ha pella ventura cá também alguns arvores donde nacem? ORTA Nam tem raiz, que ao caso faça, pera tomarem em fe- bres; porque nam nace, senam semeandose na terra que Do Cardamomo e das Carandas i85 primeiro seja queimada, e não ha outro: e o que diz Ma- teus Silvatico he muito falso; e pois nam alega com outro algum, com elle se fique a mentira. RUANO Como se gasta em Europa tanta pimenta e tam pouca malagueta, sabendo milhor a malagueta, principalmente no peixe ? ORTA Já tive essa pratica com Alemães e Francezes mercado- res; e dixeramme que a jnalagueta nam adubava os come- res em cozido, nem sufria cozimento, somente em cousa crua, ou que fosse já cozida; e que porque isto era pouco, por isso se gasta menos delia. E leixemos isto, e comamos o peixe que temos cozido pera comer, porque também leva cardamomo. RUANO Bem he: mas que fruita he esta azeda que parece maçan- zinhas pequenas verdes? ORTA Chamamse carandas, ha as na terra firme e no Bala- guate: são arvores do tamanho de medronheiro, e a folha assi, e a frol he muita e cheira a madresilva; quando são maduras he muito saborosa fruita, sam pretas e sabem a uvas, e já ouve homem que fez delias vinho, e foi rezoado mosto; e poderá ser que se fora muito fôra bom vinho ao diante. Agora he esta fruita verde, e de grossura de huma avelã com casca, he mayor no Balaguate quando he madura, e entonces deita huma viscosidade, como leite; e algumas pessoas lhe deitam sal, quando he madura pera comer, e sabem bem: estas verdes são salgadas, e esta provisam ha nesta terra, que fazem as fruitas salgadas pera incitar o apetite no tempo que as nam ha; e também as lançam em vinagre e azeite, a que chamam achar; e assi vem cá da Pérsia e Arábia ameixas verdes e maçans e talos de videira e de silva, alcaparras e o fruito delias. E pois estes índios buscam tantas maneiras á gulla, comei (4). i86 Colóquio decimo terceiro RUANO Assi o farei, e já provey esta fruita e sabemc a maçans verdes (5). Nota (i) «Grande meada temos pera desempeçar e grandes nós pera desatar,» diz logo no começo o nosso Orta. Nulla res est fartasse in re phanna- ceutica magis litigiata quani Cardamomi notitia, dizia também o an- tigo pharmacologista Geoffroy. A meada, porém,não é muito difficil de desempeçar, pelo menos na parte que este Colóquio tem de realmente interessante. Devemos em primeiro logar ter em vista, que Orta se refere a uma única espécie, Elettaria Cardamomum, Maton (Alpinia Cardamomum, Roxb.), uma grande planta herbácea e perenne da familia das Scita- minea\ Conhecia, porém, duas variedades d'esta espécie, das quaes nos occuparemos na nota seguinte. Vejamos agora os nomes vulgares, citados pelo nosso escriptor: — «Cacollá quebir» e «Cacollá seguer» entre os escritores arábicos, significando respectivamente «Cardamomo mayor e Cardamomo me- nor». Estes são os dois nomes bem conhecidos jL^ ililJ qaqalah kebar, e jLjLo iisLi qaqalah segher, pelos quaes esta droga vem ge- ralmente designada nos livros dos árabes (Cf. Ainslie, Mat. ind., i, 52, 54). — «Hil» entre os mouros, isto é, os mussulmanos, de diversas partes da índia. Com a mesma orthographia hil o cita Dymock como sendo usado por alguns escriptores arábicos modernos (Mat. med., 786). — «Elachi» entre os mesmos mouros; isto é iláchi, nome vulgar ben- gali, ou elchi, nome ainda usado em Bombaim (Dymock, 1. c). — «Ençal» em Ceylão. Ainslie cila o mesmo nome singhalez ensal (Mat. ind., i, 52). — Etremilly no Malabar. Posto que deva estar muito alterado, parece ligar-se com o nome vulgar elettari, citado por Rhede, e que foi ado- ptado para a designação scientifica do género (Hortiis malab., xi (1692) T.4e5). ^ — «Dore» é nome que não encontrei, e apenas se parece vagamente com a terminação de uma das designações vulgares em Bombaim, vel- dode (Dymock, 1. c). Passa depois o nosso escriptor a enumerar todas as difficuldades que encontrou, quando quiz approximar a planta sua conhecida das descripções de Dioscórides, Plinio, Galeno e outros auctores clássicos. Vc-se que elle fez cuidadosamente este exame. Cita as próprias expres- Do Cardamomo e das Carandas 187 soes de Dioscórides, «máo de quebrar, encerrado na casulha, agro e um pouco amargo» — ^'jcepauCTTov, asauitò; . . . -j-cuaci ^ptau xal úiroirwpov. Tran- screve quasi textualmente a passagem de Plinio, onde este distingue no cardamomiim quatro variedades: viridissimimi ac pingue, acutis angu- lis, continnax fricanti, qiiod maxime laudatiir: proximum e rufo candi- cans: tertium brevius atque nigrius. Pejus tanien varium et facile tritu. E d'esta conscienciosa confrontação conclue, que aquellas substancias não são a que elle conhece, ou pelo menos não é possivel affirmar que o sejam. A mesma conclusão chegaram todos os modernos auctores de matéria medica, J. Pereira como Fllickiger e Hanbury, os quaes reco- nhecem, que o xa5^au.w(j(.ov de Dioscórides, e o cardamomum de Plinio, se não podem identificar satisfactoriamente com as substancias moder- namente designadas pelo mesmo nome (Cf. Dioscórides, i, 5, pag. 14, edição Sprengel; Plin. xii, 19; Pereira, Mat. med., 11, i, 258; Phar- mac, 583). Orta admitte, porém, que os antigos escriptores arábicos conheciam esta droga. EfFectivamente, Avicenna dedica nem menos de quatro ca- pitulos a substancias que deviam ser análogas e alguma d'ellas identi- tica a esta. Os capitulos tèem nas velhas versões latinas os seguintes titulos, que de certo estão muito alterados : sacolla, que se distingue em grande e pequeno; cordumeni; cobt^bague ou chayrbua; e eylbua ou chayrbua. Algumas d'estas drogas eram de origem asiática, e podiam ser a própria Elettaria, pois temos motivos para suppor que os árabes a conheciam já então. Maçudi, no x século, enumera as substancias que vinham do império do Maharadja, isto é, do archipelago e da índia: cânfora, aloés, cravo, sândalo, areca, nóz moscada, cardamomo (iJi La3 \ ) e cubebas. Mais tarde Édrisi dá uma lista das mercadorias, que os na- vios da China traziam a Aden, entre as quaes figura o cardamomo'^; e em outra passagem refere-se á sua existência em Ccylão, onde se comprava barato um certo vinho doce, cozido com cardamomo fresco. Vé-se, pois, que os árabes tinham noticia de uma droga asiática, a qual pelo nome e pela região d'onde vinha parece ser a Elettaria (Cf. Avi- cenna, II, II, cap. i58, 159, 2o3, e 282, edição de Rinio (i556); Maçudi, Prairies, i, 341; Édrisi, Géographie, i, 5i, 73). Succedia, porém, que além das drogas asiáticas, Avicenna mencio- nava outras de procedência africana, e isto lançou o nosso escriptor em uma certa perplexidade, e induziu-o em vários erroç. Encontrou-se em antigos tempos, nos mercados, um cardamomo de grandes dimensões, procedente da Abyssinia, exportado pelos portos africanos do mar Vermelho, e chamado pelos Gallas korarima. Para a ' Esta substancia podia ser a Elettaria, trazida da índia pelos navios da China; mas po- dia também ser algum Amomum, dos vários que existem na própria China. i88 Colóquio decimo terceiro planta que o produz, e que não está ainda bem conhecida, propoz J. Pereira o nome provisório de Ainomum korarima. Não é fácil deci- dir com segurança se esta droga era o chayrbua de Avicenna ; mas parece ter sido o cardamomum majus de Matthiolo, de Valério Cordo e de outros escriptores da Renascença — aquelle que Valério Cordo fez «debuxar», e que Orta estranhava tivesse tão grandes dimensões i. Encontrou-se também no commercio outra droga, chamada mele- geta (malagueta na fórma \)Qrl\x^\Jieza)^ gramnn-paradisi, e algumas ve- zes cardamomum majus. Procedia geographicamente da costa Occiden- tal da Africa, e botanicamente do Amomum Gramim-paradisi, Afz., e de outras espécies próximas. Teve tanta nomeada, que uma parte da costa africana, do cabo Mesurado ao cabo das Palmas, se chamou Costa da Malagueta ou simplesmente a Malagueta — como lhe chama o nosso Orta. Nos tempos d'este havia sobre aquella droga noções ex- tremamente incompletas e nebulosas, e o que elle encontrava nos li- vros de matéria medica só lhe podia augmentar a confusão. Toda a passagem que cita do eruditissimo Laguna, é extremamente incorrecta; e nem é admissível que Dioscórides conhecesse a malagueta, nem fá- cil saber se Avicenna fallou d'ella, ou de alguma droga de Sofala, que, em todo o caso, ficava bem distante da costa de Libéria. Para avaliar bem como as cousas deviam estar enredadas então, basta ver como ainda é confuso o que diz Whitelaw Ainslie em 1826. Onde Orta po- deria ter encontrado algumas noções -mais claras, seria nos escriptos dos seus compatriotas, no Esmeraldo de Duarte Pacheco, ou na re- lação de Diogo Gomes; mas ambos estavam — e um ainda está — inéditos. Também as podia encontrar na Asia de João de Barros; mas, é notável que, sendo a primeira edição de i552, Orta parece não co- nhecer este livro que tanto o devia interessar (Cf Dioscórides do dr. Andres de Lagima, p. i5, na edição de Valencia, \ 6q5; Ainslie, Mat. ind., I, 55; Barros, Asia, i, 11, 2; Memoria sobre a Malagueta, nas Mem. da Ac. Real das Sc. de Lisboa, nova serie, vol. vi, parte i). Resumindo temos, que tres drogas, de tres afastadas procedências geographicas, e de tres distinctas origens botânicas, comquanto todas tres fornecidas por plantas da familia das Scitaminea', tiveram no com- mercio, nas pharmacias e nos livros o nome de cardamomum majus: — primeiro a variedade maior da Elettaria Cardamomum, proce- dente da ilha de Ceylão. — segundo a droga chamada korarima, produzida pela espécie ainda duvidosa Amomum Korarima, e procedente da Abyssinia e outras ter- ras da Africa oriental. ' Segundo Dymock este cardamomum majiis 011 hil-bawa reappareceu recentemente (i885) nos bazares de Bombaim. Diz-se proceder das terras de Tumbé, d'onde é levado ao mercado de Báso na Abyssinia meridional, e d'ali por Massaua á índia (Mat. med., 883). Do Cardamomo e das Carandas 189 — terceiro a droga chamada malagueta, produzida pelo Amomuni Granutn-paradisi e outras espécies, e procedente da Africa occidental. Orta conhecia de visu unicamente a primeira, e por isso elle não sabia distinguir as outras, e por isso elle «andava naquelles cuidados» de saber .como um cardamomo maior se havia de encontrar na índia, e o outro a quatro mil léguas d'ali «na Malagueta» — isto é, na costa da Malagueta. A sua exposição, perfeitamente lúcida no que diz respeito á planta da índia e de Ceylão, é necessariamente confusa quando falia das plantas da Africa, de que que ninguém lhe sabia dar rasão. Accres- ciam a isto noções de geographia africana um tanto vagas, que o leva- vam a dizer que Sofala é «continua á Malagueta». Nota (2) Vimos na nota antecedente, como os escriptores arábicos, Maçudi e Edrisi, enumeram o cardamomo entre as drogas vindas da índia ou terras próximas; mas o primeiro a marcar exactamente a sua proce- dência do Malabar, parece ter sido Duarte Barbosa, como já advertiram Fliickiger e Hanbury : íhe first wriíer who dejinitely and correctly states the country qf cardamom, appears to be the portugiiese navigator Bar- bosa (Pharmac., 583). Barbosa indica effectivamente aquella substancia entre as produc- ções da costa do Malabar, nomeadamente dos reinos de Cananor e de Gochim (Livro, 341, etc). E exactamente a região apontada pelo nosso escriptor para a sua variedade menor, que era sobretudo abundante de «Cananor até Calicut.» E ali continua a encontrar-se nas florestas e montanhas de Mysore, Travancore e outras. A planta existe espontâ- nea e é também cultivada, como parece succedia já no tempo de Orta, pois este diz, que se «semea como os nossos legumes». O processo de cultura é simples ; em algumas partes os indianos queimam os arbus- tos e rebentos das florestas húmidas, poupando as grandes arvores, e depois semeam o cardatnomo, que cresce melhor na sombra e começa a dar fructo passados alguns annos. Evidentemente o nosso escriptor tinha noticia d'este processo cultural, pois afiirma que a planta «não nace senão semeando-se na terra que primeiro seija queimada» (Cf. os processos de cultura na Pharmac., 584). Este cardamomo do Malabar procedia da fórma menor c typica do Elettaria Cardamomum, Maton. Na ilha de Ceylão encontrava-se uma fórma maior, que foi considerada uma espécie distincta, sob o nome de Elettaria major; mas hoje se toma por uma simples variedade (Elet- taria Cardamomum var. fj). A distincção entre as duas foi correcta- mente feita pelo nosso escriptor, o qual affirma, que a droga de Ceylão é maior e menos aromática, o que é perfeitamente exacto. E esta dis- igo Colóquio decimo terceiro tincção que elle fez, depois de andar muito tempo em «cuidados», de- pois de conversar em Cochim com um judeu da Turquia, depois de mandar aviar receitas na capital do Berid Schah, esta distincção consti- tue o verdadeiro interesse do Colóquio. Restavam muitos pontos a esclarecer, muitos cardamomos de procedência duvidosa, e que moder- namente Guibourt, J. Pereira ou D. Hanbury estudaram mais ou me- nos completamente; mas aquelle ponto ficou assente de um modo definitivo. Logo no começo do Colóquio, Orta indica a èxistencia do carda- 11107710 em «Jaoa». A indicação é exacta, mas a planta era diversa; a droga de Java procede do A77i077iu7ii 77iaxi7nu7n, Roxb., e comquanto conhecida e usada ali não parece ter sido exportada. D'este carda- tnomo temos uma antiga noticia dada por Fr. Odorico de Pordenone, pelos annos de i320 a i33o, o qual diz que na ilha de Java se en- contravam varias especiarias e entre ellas melegeta;. Este nome, que propriamente se devia dar á droga da Africa occidental, era o mais conhecido na Itália; e o honesto franciscano applicou-o muito natu- ralmente a uma substancia, que era simplesmente análoga, mas lhe pa- receu idêntica á que elle conhecia da sua terra (Cf. Pharmac, 389; Yule, Cathay, 88). Nota (3) Na Vida de Garcia da Orta disse eu já quem me parecia ser este personagem. Orta diz-nos: primeiro, que era vice-rei, e morreu na ín- dia, sendo elle seu assistente : segundo, que não sabia latim, mas en- tendia bem italiano, e era «curioso de saber». O primeiro vice-rei, que morreu na índia, estando lá Garcia da Orta (1540), foi D. Garcia de Noronha. Mas, nem elle devia ser muito dado a investigações de historia natural, nem o nosso medico devia ter então a auctoridade scientifica e pessoal, que se revela em toda a anecdota. O segundo vice-rei, que âli morreu, foi D. João de Castro. Este, po- rém, era muito illustrado e sabia bem latim. Suppoz-se mesmo que elle havia escripto primitivamente n'aquella lingua o seu JtÍ7ie7-ariu77i maris rubri, vertendo-o depois em portuguez. Fica portanto excluído, ainda que por motivos bem diversos do primeiro (Cf. Roteiro, etc, pelo dr. Antonio Nunes de Carvalho, p. x, Paris, i833). Ficamos pois reduzidos a D. Pedro Mascarenhas, a quem a historia parece applicar-se sem difficuldade. D. Pedro Mascarenhas, sem ser homem de muitas letras, era intelligente e culto; e devia saber bem italiano, pois estivera durante annos embaixador em Roma. É mesmo natural, que d'ali trouxesse entre os seus livros o Plinio traduzido por Landino, e de que já então havia varias edições. Morreu em Goa a 23 Do Cardamomo e das Car andas 191 de Junho de i555, depois de uma doença curta, mas que lhe deu tempo para fazer todas as suas disposições; e deve ser este o que se «finou nas mãos» de Garcia da Orta; e, portanto, o que assistiu á curiosa discus- são do nossO' medico com o velho boticário. Quanto a este, não será fácil acertar com o seu nome, posto que vários documentos nos con- servassem os de alguns boticários do tempo (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 197; Couto, Asia, vii, i, 12). Nota (4) Os «Carandasu de Orta são os fructos da Çarissa Carandas, Linn., um arbusto da familia das Apoçynacea', frequente n'aquellas regiões desde o Panjáb até Ceylao e Malaca. Os fructos — uma drupa vermelha e ultimamente preta — são ainda hoje geralmente apreciados na hidia para tortas, e conservas em vinagre e sal, ou de achar — pikles dos in- glezes (Cf Drury, Useful plants of índia, 116). Nota (5) Orta menciona n'este Colóquio alguns escriptores de botânica e ma- téria medica, a que se não referira nos anteriores. Em primeiro logar Theophrasto, mas reportando-se unicamente a uma citação do medico francez Ruellio, ou João de la Ruelle. Depois e brevemente «Isaque», que sem duvida é um Isaac Judaeus, cujas obras foram publicadas em Londres no anno de i5i5, e successivamente em outras edições. Final- mente Valério Cordo, referindo-se especialmente aos «Dioscórides que fez debuxar»; e que devem ser o icones xylographico, publicado com a versão de Dioscórides de Ruellio do anno de 1549, e com as An- notationes in Pedacii Dioscoridi do mesmo Valério Cordo — livro que não vi e unicamente cito pela indicação de Choulant. Transcreve uma sentença de «Temistio»; provavelmente Themistio, o amigo de Juliano o Apóstata, e conhecido commentador de Aristóte- les. Por ultimo, menciona um dos personagens da Andria de Terêncio, Davus, creado de Simo, enredador e intrigante, o prototypo do Scapin de Molière; e compara-o, um pouco injustamente, com o zeloso tra- ductor dos antigos livros arábicos de medicina. I COLÓQUIO DECIMO QUARTO DA CÁSSIA PISTOLA INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Da canafistola he muito necessário saber; pois aos vos- sos Arábios devemos tam boa cousa pera purgar, e tanto sem trabalho, nem damno do paciente, que bem creo eu e tenho por certo, que os Gregos que delia nam escreve- ram, que a louvaram muito, se a espermentaram. ORTA Pouca necessidade temos de falar em mezinha tam co- nhecida e espermentada; e onde nam ha mais contradiçam que o nome, que lhe foi mal posto por Geraldo Cremonense, que, como já vos dixe muitas vezes, milhor fora leixallo assi como estava no arábio ; pois elles só foram inventores desta mézinha; e não vieram* a dizer tanto mal Nicolao Leoni- ceno e Menardo e outros muitos modernos dos físicos Ará- bios; como que a culpa de seos treladadores fosse sua; que, se o pera que aproveita fosse dito falsamente terião razam, mas pois faláo verdade, dignos sam de louvor e nam de vitupério, RUANO Não reprende muitas cousas destas Avicena aos outros escritores, que o seguem indistintamente, sem fazer diffe- rença alguma em os nomes que significão muitas cousas; e pois assim he, dizeilhe o nome em as lingoas onde ha o arvore. • «Vieram» por viriam; também acima «louvaram» e «espermenta- ram» estão pelo condicional. i3 194 Colóquio decimo quarto ORTA Em todas estas partes o ha, mas he milhor nas partes mais chegadas ao norte; e os Arábios lhe chamao hiarxam- ber, e he nome de quatro sillabas; este he o mais comum nome ácerca delles; posto que Avicena diga clnay^saindar , está corruto o nome: os Malavares o chamão comdaca; os Canarins, que he o gentio desta terra de Goa, bava simga; os Decanins c Bramenes bapa simgua; os Guzarates e Deca- nins mouros gramalla. O arvore delia chamão nesta terra canarim bahó: este arvore he do tamanho de hum pereiro; as folhas são como de pexigueiro, algum tanto mais estrei- tas e assi verdes: deita este arvore as flores amarellas, como as da giesta, cheira propriamente como cravos verdes, e como caem as flores, nacem no páo da canafistola a modo de candeas, como nacem em os castinheiros*; he a cana muito verde no arvore, antes que seja madura, e não he verme- lha como diz Laguna; he de cinquo palmos de comprimento ate dous palmos a mais curta. Ha, como dixe, em todas estas terras e no Cairo; porém, como dixe, a milhor he de Cam- ba3^a, e de mais dura; e pode ser que a aja em Malaca e em Çofala; mas a pouca curiosidade da gente faz que nam pareça (i). KUANO He arvore transplantada ou silvestre? ORTA Eu não a vi senão montez em toda esta terra; e foyme dito que, nas chamadas índias occidentaes, era primeiro montez, e deitava a cana oca e grande; e que a pozeram de semente em a ilha de Santo Domingo, no mosteiro de * Na edição de Goa a phrase é inintelligivel, e só julgo poder-se pontuar d'este modo. Ainda assim é pouco clara; o auctor parece referir-se aos caixos novos, ou ao fructo pendente, que se desenvolve quando «caem as flores»; mas este mal se pôde comparar com os amentilhos dos castanheiros, que o povo ainda hoje chama candeia ou candeio. Da Cássia Jistola 195 Sam Francisco de la Vega ; e que creceo e deu a canajis- tola muito boa e chea de miolo e de semente; e desta ma- neira plantou cada hum na sua herdade arvores, até que veo a ser tanta que mantém toda Castella. Mas eu tenho por mais bemaventurados os Portuguezes, pois, sem semear, tem tanta cantidade, que em Cambaya dão hum candil, que são 522 arrates, por 36o reaes, que he um pardáo*: e, louvado seja Deos, que tanto bem nos faz cada dia (2). RUANO De que compreisao a fazem os Indianos? ORTA A elles nam dou muita fé nas graduações, mas dizem ser fria; e Avicena diz ser temperada, nas calidades autivas de quente e frio, e que he húmida: Serapiam a faz temperada: Mesue diz que declina hum pouco a quente, e isto deve ser por sua doçura : Antonio Musa a põe quente e húmida, no primeiro ou na primeira parte do segundo: tudo se pôde sustentar; pois o físico julga por os sentidos exteriores. RUANO Usam delia em física os índios? ORTA . Sy, pera purgar, e fazem delia bocados raspando a cana como nós fazemos. RUANO E OS grãos são purgativos também? ORTA Não, senam deitamnos por hi fóra; e eu me maravilho muito de Menardo dizer que os grãos são purgativos, sendo * O pardáo de ouro valia effectivamente 36o reaes; e o candil (ma- ralha khandi) variava nas proximidades de 5oo arráteis de porto para porto. Dava-se o mesmo nome a uma medida de capacidade. 196 Colóquio decimo quarto cousa que tem mais arte de apertar que de relaxar; e sc elle se enganou, foy dando algum mesturado com alguma medulla; e como as sementes acharam a cousa aparelhada, baixarão muito; porque estas mezinhas lubrificativas nam tiram mais que as matérias que encontram; e por esta causa, acontece que purgam com huma onça de canafistola ás vezes mais que com trinta grãos de escamonea; e também pôde ser que a imaginaçam da purga o faria purgar mais a esse que purgou Menardo. RUANO E pera provocar menstruo usão delia, ou pera fazer o parto fácil, ou pera deitar a secundina? ORTA Pera nenhuma cousa destas usam delia. RUANO Não pergunto isso sem mistério; porque os nossos usam dos pós das cascas em cozimento de artcmisa, ou em hum ovo, com quatro onças de mel; e isto diz Sepulveda que foi achado por esperiencia. ORTA Esse Sepulveda não he evangelista; e quanto mais que, por razam do cozimento de artemisa, podia provocar o menstruo, e não polia tal casca; nem he conforme á ra- zam, por ser muito fria e seca; e se deitou a secundina nam he muito, porque sem mézinha deita a natureza as cousas que a virtude retentiva desempára e solta de si. RUANO Pois que direis a Avicena, que a manda dar pera facili- tar o parto? ORTA Todos os mais duvidaram ser esta a entençam de Avi- cena; e por isso puseram por regra que quando se diz cás- sia em mézinhas purgativas, se entende cássia fsíola, e em Da Cássia Jistola todos os outros cabos que se fala em cássia se entende cássia lignea. E agora veo Andreas Belunensis, e diz que a verdadeira letra diz cogombro seco, e não canajistola; por onde ficam fóra da reprensam os que mal usam da cana- jistola; digam esses imitadores dos Gregos o que quize- rem (3). RUANO Em Portugal me dixeram que as camarás erao muito frequentadas* na índia; porque as vacas comiáo canajistola, e por isso as carnes eram solutivas: dizeime se he isto assi ou não. ORTA Também em Portugal me dixe hum homem que cá fora governador, e outro que era cá visorey, que nam que- ria tomar a canajistola pela mesma causa; e hum físico seu, posto que cá avia andado, se hia com elle nisso; e eu lhe faley nisso a verdade, dizendolhe que nam era assi como em Portugal cuidavao; porque os arvores são muito altos, e as vaccas não podem lá alcançar; e mais os arvores não são tantos que as vacas se possam delles manter, porque as vacas são nesta terra sem conto; e a causa he porque o gentio as cria e nam as come; e mais a canajistola he dura na casca, quando he verde, e não será pera as vacas tam gostosa, como a herva verde, que muito tempo do anno ha cá: e mais já perguntey por isso, e achey que a não comião; e riramse de mim aquelles a quem o perguntey, e porque em esta terra ha muita e nas partes acima ditas, nisto nam falemos mais. Nota (i) A «Cássia fistola», ou «Canafistola» de Orta é a Ccissia Fistula, hinn. (Cathar tocar pus Fistula, Pers.), uma arvore da família das Legumino- * «Frequentadas» por frequentes — forma bastante habitual no nosso escriptor. 198 Colóquio decimo quarto sce, espontânea na índia, e frequente também em outras regiões quen- tes do globo, onde foi introduzida. A polpa das suas longas vagens é medicinalmente bem conhecida, e figura em todas as pharmacopéas. O reparo de Orta, sobre o emprego do nome de cássia Jistula, pelo qual Gerardo Cremonense traduziu a designação arábica de Avicenna, é justo, pois os nomes de cássia ou casia, acompanhados ás vezes do mesmo qualificativo de jistula, se haviam antes applicado a uma cousa diversissima, ás cascas e pequenos troncos do Cinnamomum, como melhor veremos no Colóquio da canella. A confusão, que d'esta nova applicação resultava, levou alguns escriptores do xvi e xvii séculos a darem a esta droga de que falíamos agora o nome de cássia solutiva, para a distinguirem da outra cássia (Cf. Pharmac, igi). Os nomes vulgares de Orta identificam-se todos ou quasi todos com facilidade : — «Hiarxamber», nome arábico. É a transcripção de j^J^ J^~^' khiar schamber, o qual se deriva do persiano, e parece que da pala- vra chambar, que significa collar, pois o longo fructo tem alguma simi- Ihança com um collar (Cf. Ainslie, Mat. ind., 1, 60; Dymock, Mat. med., 258). — «Condaca» entre os Malabares; isto parece ser o nome tamil, que Ainslie dá na fórma konnekãi, e Dymock na fórma konraik-kai (Ains- lie, 1. c; Dymock, 1. c). — «Gramalla» entre os Guzerates e Deckanis mussulmanos, isto é, gurmala ou garmala, o nome ainda hoje vulgar em Bombaim (Dy- mock, 1. c). — «Bava simgua», entre deckanis e brahmanes, ou «bava simga» en- tre os canarins. A primeira parte d'este nome vem citada por J. Murray e por J. C. Lisboa, na fórma bawa, como sendo a designação deckani ainda usada. Dymock cita o mesmo nome na fórma bhava^ (Dymock, 1. c; Lisboa, Useful Plants of Bornbay presid., 63; Murray, The Plants and drugs of Sind, i3o, Bombay, 1881). Nota (2) No tempo de Orta já uma grande parte da cássia jistula das phar- macias vinha da America por via de Hespanha. Nicolau Monardes dá- nos a mesma noticia. «Antes — diz elle — vinha por Alexandria do ' Estes nomes encontram-se também em Riimphius (Herb. Amb., n, 84); mas evidente- mente copiados dos Colóquios, e mesmo com um erro de imprensa, que Orta emenda na er- ra/a. Como a emenda foi feita por Clusius, torna-se evidente, que Rumphius quando cita Orta, o cita pela edição portugueza, e não pela versão ou resumo latino. Da Cássia Jistola 199 Egypto e por Veneza, d'onde se distribuía por todo o orbe ; mas agora, desde que começou a ser trazida de S. Domingos e de S. João a esta cidade de Sevilha, d'aqui se manda para toda a parte». As minuciosas circumstancias da sua introducçSo na America, indicadas pelo nosso escriptor, são evidentemente tiradas de Oviedo, cujo livro elle conhe- cia, e cita em um dos Colóquios seguintes. Effectivamente Oviedo men- ciona a primeira arvore que se creou na ilha Espafíola ou de S. Do- mingos (Haiti) e foi semeada na cerca do convento de S. Francisco da cidade da Vega. Somente as cousas não se passaram exactamente como Orta diz, e não se semeou a cannajistula «montez» ou espontânea. Havia effectivamente na America muita cannajistula espontânea, pro- duzida por espécies de Cássia, próximas mas distinctas da Cássia fis- tula; e os fructos d'estas espécies eram ali aproveitados e deviam vir á Europa entre os outros. Mas, segundo se deprehende das phrases de Oviedo, na cerca do convento semeou-se a verdadeira Cássia fistula asiática, de semente vinda de fóra, e da propagação d'esta provinha, annos depois, tod^ ou pelo menos a maior parte da droga do com- mercio (Cf. Nicolau Monardes, em Clusius, Exotic, 333; Oviedo, em Ramusio, iii, 1 14. Cito pelas versões, não tendo á mão os livros hespa- nhoes de Monardes e de Oviedo). Nota (3) A cannafistula, isto é, a polpa do fructo — que Orta chama «cana» — era principalmente usada na Índia, como um purgante leve. Mas Orta não é exacto, quando affirma que nunca empregavam a planta com ou- tros fins medicinaes. No livro de Dymock se diz, que a casca do fructo ou vagem, com açafrão, assucar e agua rosada, se applica ali em casos de partos difficeis e demorados; de modo que o velho Sepulveda não merecia a reprehensão que Orta lhe dá. Este tem uma phrase extremamente curiosa e notável quando diz: ... e também pode ser que a imaginaçam da purga o faria purgar mais a esse que purgou Menardo — aliás Manardo. Admitte assim, e com toda a clareza, um caso de suggestão. COLÓQUIO DECIMO QUINTO DA CANELA, K DA CÁSSIA LIGNEA E DO CINAMOMO, QUE TUDO HE HUMA COUSA INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Nenhuma especeria se pôde comer com gosto, senam ca- nela: verdade hc que os Alemães e Framenguos vejo co- mer pimenta; e aqui estas vossas negras vejo comQ.v cravo; mas os Espanhoes nam comem destas especerias, senam canela. E veome isto á memoria, porque os comeres chei- ravam muito a ella, e nam a vy; e perguntey á cozinheira se a levavam ao cozer, e disseme que nam, senam que muitos comeres hiao temperados com agua de canela. E por quanto, em logar da que chamamos cássia lignea, põem canela muitas vezes, será bom que falemos nella agora. ORTA Antes canela he o que chamamos cássia lignea, e tudo he huma cousa; senão os escritores antigos viram estas dro- gas tam de longe trazidas, que nam puderam haver perfeita noticia delias; e porque erão de muito preço quando fale- ciam, fingiram mil fabulas que Plinio e Heródoto traz; que elle conta por verdadeiras, e são mais fabulosas que podem ser; e por isso não falo aqui nellas, porque todos sabem já a verdade, e que não se merece falar nellas. E porque o preço era grande, e a cobiça dos homens mayor, falsefícavam es- tas drogas; e porque o falso nunca pôde ser semelhante em todo ao verdadeiro, chamavão a huma canela hum nome, e a outra, que era mais roym ou falsificada, lhe punham outro nome, sendo ás vezes ambas de huma mesma espe- cia. 202 Colóquio decimo quinto RUANO Dizeime o que nisto sabeis, porque ao cabo eu direi as du- vidas que tiver, que não quero ficar com escrúpulo. E assi me direis os nomes nas linguas todas, scilicet, nas terras onde nace a canela, e no arábio e pérsio; porque, por estes no- mes possamos vir em conhecimento da cássia lignea, e do cinamomo; ainda que eu até ao presente tenho, com outros que o escreveram, que nam ha verdadeiro cinamomo ou ver- dadeira cássia, ou ao menos o cinamomo. ORTA Eu vos satisfarey a tudo. A cássia não a conheceram os Gregos, nem os Arábios ; e isto polia grande distancia e pouco trato que com estas regiões tinham; e os que a levavão a Or- muz e á Arábia vender erao Chins, como adiante vos direy; e dahi de Ormuz a levavão a Alepo (cidade principal e ca- beça da Suria); e os que dahi a levavão aos Gregos dizião que a havia na sua terra ou na Etiópia; e que se tomava com muitas superstições, scilicet, que o sacerdote partia o que ficava em partes pera o diabo, a quem adoravão, e pera o rey, e pera os sacerdotes. RUANO Como? Nam ha cássia ou cinamomo na Etiópia e na Ará- bia? ORTA E mais me maravilho de vós nam saberdes isto; porque a Etiópia he sabida de nós que a navegamos, e muita parte andárão os nossos nella por terra; e nella nam ha canela, nem cinamomo, nem cássia lignea; e os mesmos Arábios a vem cá comprar pera a levar; e o tempo que lhe de cá nam vay, vai lá muito cara. RUANO He verdade nesta canela que dizeis; mas a verdadeira cássia e o verdadeiro cinamomo tem o elles, e levam estou- tro, ou nam o conhecem por ser gente rude muito. Da Canda 203 ORTA Conheço físicos, muito bons letrados, Arábios e Turcos e Coraçones, e todos chamam a esta canela grossa, de que usão, cássia lignea. RUANO E de nam nacer na Etiópia que razão me daes? ORTA Digo que ambas as Etiopias são dos Portuguezes muito sabidas; porque a costa de Guyné, que he a Etiópia abaxo do Egypto, he sabida poUos nossos, nam tam somente na fralda do mar, mas dentro no sartam; e, como já vos dixe, da ilha de Sam Tomé até Çofala e Mozambique veo hum clérigo por terra, e dahi veo a esta cidade de Goa, e eu o conheci muito bem (0. E do Cabo de Boa Esperança até Moçambique e Melinde vieram muitas pessoas que se per- derão em náos, e nunqua viram canela: assi que ambas as Etiopias, debaixo do Egypto como de cima do Egipto, que he a que está perto de nós, sabemos nam haver nellas ca- nela. RUANO Será isso porque nam são muito curiosos de saber? ORTA Nam são todos assi; porque os da ilha de Sam Lourenço, que são gente barbarissima, amostrárão aos homens, que lá vão a tratar, humas frutas como avelãas no tamanho, sem cabeça; e porque cheiravão a cravo lhas vierão a mostrar (2); pois se estes acharam lá cinamomo ou cássia li- gitea, também lha mostraram; pois parece mézinha tão odo- rifera. E porque a redondeza nunca foy tam sabida como ao presente, em especial dos Portuguezes, não créais que faltassem tam celebradas mezinhas, porque assi as prantas como as frutas nunca forão tantas como agora são; porque as enxertias fazem diversidade nas frutas, e porque o trans- plantar de huma terra a outra faz também diversidade; logo per amor de mim que nam tenhais que falecem cássia 204 Colóquio decimo quinto nem cinamomo, senam que polia muita cantidade que ha du- vidamos sello*. Isto presuposto, direy os nomes. RUANO Dizey, que a fim protesto de dizer de meu direito, como dizem os causidicos. ORTA Chamam os Arábios á cássia lignea, salihacha; e os Pér- sios assi a chamão; e os índios e os que não sabem física por os livros arábios, lhe chamam o nome que chamam á ca- nela; porque todos nesta terra não fazem diíferença nos no- mes da canela e da cássia lignea, como lhe nós chamamos. E na verdade nenhuma pessoa vio cássia lignea diíFerente da canela, nem físico nem boticairo a vio em algum tempo, nem a ha; e se quiserdes ver donde veio este error, chamarem á canela cinamomo, e á cássia estoutro nome, dirvoloey. RUANO Muito folgaria de o saber. ORTA Os Chins navegarão esta terra muito tempo ha; e como a gente d'ella era barbara e sem nenhum saber, tomavam delles as leis e custumes, e navegações em navios de alto bordo, em tanta maneira, que, se vos não enfadásseis, vos contaria disso muitas cousas, que direitamente nam fazem ao caso, posto que folgueis de o saber, RUANO Antes me fareis nisso muita mercê; pois o tempo temos por nós. ORTA Pois sabey que erão tantos os navios da China que na- vegavão, que contão os de Ormuz que achão em seus li- * Orta parece admittir n'esta passagem a variabilidade da espécie; e com um pequenino esforço de imaginação poderiamos contal-o entre os precursores de Darwin. Da Canela vros, que em huma maré entrarão na ilha de Jeru (que agora se chama Ormuz) quatro centos juncos; e também dizem que se perderam nos baxos de Chilam mais de 200 juncos; e isto está, por memoria, nas terras que coníinão com os baxos. Juncos são uns navios compridos que tem a popa e a proa de huma feiçam. E em Calecut tinhão uma feito- ria, como fortaleza, que oje em dia permanece, e se chama China cota, que quer dizer fortale:{a dos Chins (3). E em Co- chim leixarão huma pedra por marquo, e em memoria que ali chegarão os Chins; e quando elrey de Calecut (que tem por ditado Çamorim ou Emperador) cercou a Cochim, porque estavam em elle dous Portuguezes, que alli ficarão no des- cobrimento da índia, e lhos não deram, estru3^o Cochim, e levou dally aquela pedra, em logar de trofeo, o qual lhe tem custado bem caro. E nesta pedra se coroava em Re- pelim, tomando a coroa por elrey de Repelim, que na ca- beça lha punha, e lhe fazia homenagem; e em este Repelim ficou aquella pedra por mandado do Çamorim. Este Repe- lim está apartado quatro legoas de Cochim, onde ficou a pedra até ao anno de i536, que Martim Afonso de Sousa, nam menos envencivel que afortunado capitam, sendo Capi- tão mór do mar, destruyo Repelim e queymouo e saqueou, fugindo elrey com muita gente ; e matou outros muitos que nam fogiram, do que eu sam testemunha de vista; e levou a pedra a Cochim, e a mandou a elrey, o qual fez com ella muita festa, e fez mercê a quem lha levou; e a Martim Afonso de Sousa ficou em muita obrigaçam por isso, e por duas vezes deitar a elrey de Calecut fóra de suas terras, e por lhe mandar o sombreiro que tomou com os paros* em Beadalla (que eram cincoenta e sete) onde lhe matou quinze mil homens, não levando comsiguo mais de trezentos,- e ay lhe tomou seis centas peças de artilheria e mais de mil es- * Barcos mais habitualmente designados pelos nossos escriptores na forma pardo, do maLíyalam pãru. Nas referencias ás regiões de Ma- laca e archipelago parece antes dever derivar-se a palavra paráo da javaneza prahu, modernamente escripta pelos viajantes prow e prau. 2o6 Colóquio decimo quinto pinguardas. E porque as cousas deste tão gram capitam sam muitas, vos não diguo mais. E estas que vos diguo nam he poUo louvar; porque de si he tanto louvado como todos os de nossos tempos; senão conto isto, porque faz ao caso do que digo dos Chins (4). RUANO Mais quero saber isto que toda a canela, e, portanto, vindo ao caso, sempre me dizei alguma istoria dessas. ORTA Estes mercadores traziam de sua terra ouro e seda, por- celana e almiscre, e cobre, aljofre e pedra ume, e outras muitas cousas; das quaes vendiam em Malaca algumas, e delia traziam sândalo, e no:{, e maça, cravo, lignaloe; e de- pois no caminho vendiam muitas cousas destas, scilicet, em Ceilam e no Malavar; e de Ceilam traziam muito boa canela, que lhe custava muito pouco dinheiro; e os marinheiros, sem dinheiro nenhum, traziam dos matos do Malavar canela brava e roin, e também a traziam já de Jaoa, e faziam escalla neste Malavar áo. pimenta e cardamomo, e outras droguas; e levavam tudo a Ormuz ou á costa da Arábia, onde o vi- nham comprar mercadores; e o levavam a Alexandria, e Alepo, e a Damasco. E perguntados estes Chins, que cousa era aquella canela que tal cheiro e sabor tinha, diziam as fabulas que Heródoto conta, e outras muito maiores, por vender milhor sua fazenda; e como viram a canela de Cei- lam ser muito deferente da de Jaoa e do Malavar, puseram- Ihe dous nomes, nam sendo mais que hum só páo ou casca delle; senão que, assi como huma fruta he milhor em hu- mas terras que em outras, assi a canela de Ceilam he milhor que todas as outras, sendo tudo canela; e a Portugal nam se leva outra canela senam a de Ceilam. E os de Ormuz, porque esta casca traziam a vender os da China, lhe cha- maram darchini, que em pérsio quer dizer jpao da China; e assi a vendiam em Alexandria, e nas partes que acima dixe, mudandolhe o nome por o vender milhor aos Gregos, e chamaramlhe cinamomo, que quer dizer páo cheiroso, como Da Canela 207 amomo trazido da China; e á ruim canela que he a de Mala- var e a de Jaoa, puseramlhe outro nome, que he o que tem na Jaoa, scilicet, caismanis, que em lingoa malaia quer dizer páo doçe. De modo que a que era huma especia puseramlhe dous nomes, scilicet, á boa dayxhini, que he páo da China, e cinamomo, que he amomo da China; e á outra caismanis, que he páo doçe. RUANO Darchini nam he nome arábio; pois o escreveo Avicena* e Rasis, e todos os Arábios? ORTA Não, senam pérsio; que muytos nomes pÕe Avicena no Canom**, que diz serem pérsios. E porque o nome em arábio da canela he quer fá, e posto que este nome diga Andreas Belunensis que he nome da canela grosa, eu comuniquei isto com Arábios, e me dixeram que quer/d e querfé em arábio era a canela de qualquer maneira que fosse; e os Gregos, corruto o nome da cássia, que era caismanis, lhe chamaram cássia. E todos os nomes que os escritores Ará- bios escreveram sam estes; e os que doutra maneira estam escritos, sam corrutos, como darsihaham e outros, E pois esta he a verdade, requeiro da parte de Deos aos boticai- ros que não lancem, por cássia lignea, canela ruim, senam muyto fina canela, pois delia ha tanta abundância, e escu- saram de dobrar o peso da cássia lignea por cinamomo. RUANO Isso que dizeis dò peso da cássia lignea, que ha de ser dobrado, em lugar de citiamomo.^ nam carece de autoridade; pois o dizem Dioscórides e todos os outros. * Lib. 2, cap. 128 (nota do auctor). ** Isto é, no Qamin, o livro de Avicenna, v^^JJ! ^ ^ylji]^ al- qanun fil tebb. 208 Colóquio decimo quinto ORTA A mim, como a testemunha de vista mais baixo que todos os médicos, se ha de dar mais fé que a esses padres da me- decina, que per falsa enformaçam escreverão. De modo que a que chamao os Gregos e Latinos cinamojno, chamam os Arábios quirfé ou quirfá, e os Pérsios darchini, e os de Ceilam (onde a ha) cuurdo, e os Malaios caismão, e o Malavar cameá. E se achardes que Serapio espoe e decrara darchini, que he arvore da China, tende pera vós que a deri- vaçam he falsa, e que foy acrecentada pello trasladador, e a minha he verdadeira (5). RUANO Se bem sam alembrado, dixestes que a cássia lignea se chamava primeiro caismanis, que quer dizer páo doce; e se isto assi he, a canela ha de ser páo amargoso, como entre- preta Menardo do verbo greguo, que senifica que ao me- nos seja corrosiva. ORTA Esse verbo, enterpretado por Menardo, quer dizer que punja com hum mordimento suave e cheiroso, e mais diz que amargura he fóra das cousas aroçiaticas, senam que he chegado a ellas bom cheiro e sabor agudo. E alem disto diguo eu, respondendo a este Menardo, que a gente desta terra nam tem mais que tres sabores, scilicet, doce, e azedo e amarguo, e ao que lhe sabe bem, como não he amargue, lhe chamam doce; de modo que á cousa que sabe bem lhe chamam doce, e assi lhe puserão o nome páo doce. RUANO Hum moderno escritor diz que esta nossa cássia lignea não he dos antiguos; porque diz que he preta e sem cheiro; e que se alguma cássia ha, que he chamada por Dioscórides a pseudo cássia, que quer dizer canela falsa. ORTA Bem pudia ser que falseficasem a canela antiguamente; mas aguora nam ha rezam pera fazer tal cousa, por a muyta abundância que delia ha; e comtudo diguo que huma das Dã Canela 209 drogas que se corrompe nesta terra mais he a canela; e mais se for levada muyto tempo por mar. E portanto nam ey por enconveniente que na boa canela mesturem alguma da má e danada, e sem cheiro, e que não seja vermelha: e tanto danada pode ser que não seja canela, assi como homem morto não he homem. E qua na índia achamos muita desta; ou porque não se curou bem, ou porque foy colhida sem tempo, ou porque seja corrompida; porque sabey que esta terra, ao menos a fralda do mar, he muito sogeita a putre- façam, como achamos por esperiencia cada dia, que a canela nunqua dura mais de hum anno sem se danar. Assi que cássia lignea, e cinamomo e canela tudo he hum; postoque nunqua foy sabido dos Gregos, e mal sabido dos Arábios. RUANO Estes físicos letrados Pérsios e Arábios, que curam a esse rey vosso amiguo, que tomavam em lugar da cássia? ORTA Canela grossa do Malavar, e eu aporfiava com elles que não lançassem senam canela fina; e elles sem nenhuma rezam estavam em sua pertinácia; e o rey os convencia, e era de minha parte. E certo que, tornando a fallar na cássia, não posso entender estes modernos escritores; porque huns tem que não ha verdadeira cássia ligiiea, e o Menardo diz que si, scilicet, a que vendem nas boticas, chamandoa canela e he cássia: e porém diz este mesmo Menardo que nam ha verdadeiro cinamomo; e Valério Cordo diz que não ousára dizer tal cousa, scilicet, que carecemos do verdadeiro cina- momo, senão que temos algumas especias delle. Laguna diz, alegando Galeno, que a cássia lignea se converte em cinamomo; porém que a elle lhe parece milhor dizer que o cinamomo se converte em cássia lignea; porque huma es- pecia não se pode tornar em outra mais perfeita por tem- pos, antes em outra menos perfeita. Concertaime lá estes escritores; e porém eu diguo que huma especia nunqua se pode mudar em outra; mas que a boa canela se pode por '4 210 Colóquio decimo quinto tempos fazer má, e chamaremlhe cássia lignea; mas não porque a cássia lignea e o cinamomo sejam varias especias, senam são nacidas em diversas terras de huma mesma es- pecia. Depois Amato Lusitano teve que avia todas as es- pecias, e a este imitou Mateolo Senense, com outros alguns; e per derradeiro diz Laguna, que quem for á caza da índia de Lixboa, achará todas as especias do cinamomo; mas fallando a verdade comvosquo, eu nunqua pude ver mais que duas maneiras ou tres delle, que são de huma mesma especia, scilicet, a canela de Jaoa e a de Ceilam, e a do Malavar; e quando Laguna diz que quem for á casa da índia de Lixboa achará todas as especias do cinamomo, diguo eu que se entende que achará cinamomo bom e cor- rompido, e achará outro melhor, e outro muito melhor, mas não as cinquo especias distintas, que elle diz. RUANO Pois sabey que diz mais que, em tempo dos emperadores romanos, quem pudia achar hum páo de verdadeiro cinamo- mo fazia grandes tesouros delle-, que nam nos maravilhemos nós de o não podermos aver; e diz que ao tempo do papa Paulo foy achado um pedaço, que estava guardado do tempo do emperador Arcadio_, o que foy ha 1400 annos, de que foy feita grande festa. ORTA A tudo vos responderey. Diguo que se sabe mais em hum dia agora pellos Portuguezes, do que se sabia em 100 annos pellos Romanos; e que o páo que lhe a elle foy dado em peça seria trazido de Lisboa, que nam se corrompeo; e o que acharam do emperador Arcádio seria guardado assi polia vontade de Deos, ou pode ser que foy isto fingido. RUANO O páo da canela cheira a oregam, como diz Ruelio? ORTA Não cheira o páo senão assi como cheira a casca, e assi tem o sabor delia; mas nam cheira com cheiro tam forte e Da Canela 2 I I intenso, nem ha oregãos em toda a ilha de Ceilam, nem no Malavar, nem eu os vi na Índia, senão trazidos de Ormuz. RUANO Alguns dizem que temos cinamomo, mas não aquele muito louvado a que chamavam mossditico; e dizem que o cinamomo quanto he melhor, tanto dura mais; outros dizem que dura trinta annos; e que dura mais feyto em pó. E que respondeis a isto? ORTA Ao primeiro vos responderey quando vos dixer onde ha a canela; e ao derradeiro vos diguo que esta droga, de que tratamos, dura muyto pouco sem se corromper. E ao que dizeis que, polverisada e feita em troçisquos, dura mais, não tendes nisso muyta rezão, que mais se conserva no seu propryo pão; e nas casas onde comem pó de canela lançado per cima dos comeres, não guardam este pó de hum dia pera outro, porque se corrompe qua na índia. E quanto he á corteza, que he a canela, em humas terras dura mais que em outras, conservandoa bem; onde não ha humidade dura mais annos. E nas outras terras os físicos se confor- maram com ellas, e com a esperiencia; e assi o saberam bem: de modo que nam sey se dura trinta annos. E a outra cajiela, que achárão do tempo do emperador Arcádio, já vos respondi que queria ver e crer. RUANO Outra rezão dá Antonio Musa, trazida per autoridade de Teofrasto, que o cinamomo antiguo tinha muytos nós, e que esta canela não os tem. ORTA Teofrasto não diz bem, nem era homem desta terra pera saber como he o arvore. E como se tyra a corteza bem, di- reyvos donde vereis craramente a verdade. RUANO Dizey, que ao cabo virey com as duvidas que tiver. 212 Colóquio decimo quinto ORTA Os arvores sam do tamanho de oliveiras, e alguns mais pequenos; e os ramos destes arvores sam muytos, e não tortos, senão algum pouco dereitos; as flores sam brancas, e o fruito preto e redondo, mayor que murtinhos, porque será como avelaas; e a canela he a segunda corteza do arvore; porque tem duas cortezas, como o sovereiro, que tem cortiça e casca; assi a canela a tem; ainda que as cortezas nam sam tam destintas nem tão grossas, como as do sovereiro. E primeiro tiram esta corteza de fóra, e alim- pam a outra; e deitãona no cham, feita em fórma quadran- guUar; e deitada no cham, ella por si se enrolla em forma redonda, que parece corteza de hum páo, mas nam porque o seja; porque os páos delia sam da grossura da coxa de hum homem; e a mais grossa desta canela he como hum dedo. E também se faz vermelha, e tem aquesta cor que vedes, poUo sol que a queima; e a cor he como de pouca cinza mesturada com vinho vermelho, que fica como vinho cinzento, dominando pouquo a cor da cinza e muyto a do vinho. Os arvores nam sam tam pequenos, como dizem Dioscórides e Plinio*, e sam muytos; e o preço he muito pouquo na canela em Geilam, mas de trinta annos a esta parte nam a pôde comprar ninguém senão o feitor de elrey. E esta corteza, que este anno se tira, deixando estar o ar- vore dá outra dahi a tres annos. E os arvores sam muitos, e a folha he como de loureiro; e os arvores que dam canela ruim no Malavar e em Goa são mu3'to mais pequenos que os de Geilam; e todos são monteses e crecem e nacem per si. A raiz deyta aguoa que cheira a cajifora, e temse por fria; e elrey veda que se não tirem as raizes, por nam ser estruiçam dos arvores. * Lib. I, cap. 12; lib. 2, cap. 19 (nota do auctor). A citação de Dios- córides é exacta, tratando o cap. 12 da cássia, e o i3 do cinnamomo. A referencia a Plinio é errada ; a passagem encontra-se no livro xii, 42, ed. Nisard, cap. 19 das antigas edições. Da Canela RUANO He branca, e vermelha e preta esta canela? ORTA A que nam he bem curada fica branca ou parda; e a muito seca fica preta-, e a bem curada fica vermelha, como antes dixe; e a raiz he casi sem sabor, e cheira a cânfora; e o fruto não he aprazível ao guosto; e as flores também se estilam, mas não cheiram tam bem como a aguoa estiilada da canela; postoque Laguna digua que das flores somente se estilla, mas a verdade he que se estilla a melhor das cer- tezas antes que se sequem. He muyto gentil mezinha pera o estomaguo, e pera tirar a dor da coliqua, que he procedente de causa fria ; porque tira a dor, de emproviso, como eu mui- tas vezes vi. Faz o rosto vermelho, e de boa cor; tira o máo cheiro da boca: certamente que pera Portugal he muyto boa mercadoria, se a levassem em cantidade que abas- tasse; porque, alem de ser muyto medecinal, he saborosa e boa pera temperarem os comeres, como qua fazem na índia. RUANO Ha em outro cabo esta boa, senão em Ceilam? ORTA Não que eu ouvisse dizer. RUANO Pois Francisquo de Tâmara, no livro que fez dos Custu- mes, diz que ha no estreito do mar ruivo cinamomo e loin^ei- ros que os cobre a aguoa, quando cresce a maré. E também dizem os que escrevem das índias Occidentaes, dos nossos Castelhanos, que em muitas partes destas índias a ha, em especial em huma terra que chamão Zumaco; e também di- zem, falando na China, que ha lá muita canela e especieria; a isto me respondei tudo. ORTA Ao que diz Francisquo de Tâmara lhe podeis responder que traladou o que os outros falsamente escreveram; que 214 Colóquio decimo quinto os Portuguezes, que esse mar ruivo navegam, nunqua tal cousa viram, navegando todos os annos. E os outros coro- nistas que dizem que as ha nas índias, também não dizem a verdade-, porque dizem que a fruita he como bolotas de sôvaro; e que traz huns capelos pegados nella; e a fruita da canela de Ceilão e do Malavar he como azeitonas pe- quenas ou muyto grossas. E já fora bem que alguma desta canela viera a Espanha; por onde pode ser que será outra arvore que dá esta fruita e a casca, e seram deferentes am- bas as arvores, como he deferente a pereira de engoxa da ou- tra pereira. E ao que diz da China, bem sabido he ser falso, pois de Malaqua levão pera a China drogas, e sabem não aver lá a tal drogua (6). RUA^JO Do fruto da canela que se faz? ORTA Fazem azeite, como nós fazemos o das oliveiras, parece como sevo em pães, ou como sabam francez; não cheira bem nem mal, senão, quando se esquenta, cheira alguma cousa a canela, aproveita pera esquentar o estamaguo e ner- vos (7). RUANO A canela de Ceilão he toda muito fina? ORTA Não, senão alguma he muito roim, que se não arredon- dou bem, e era muyto grossa por não ser daquelle anno-, e, como he de mais tempo, não he boa: isto entendei na de Ceilam, porque a do Malavar e das outras terras toda he muyto roim, e vai o quintal da canela de Ceilam dez cruzados, e a do Malavar vai hum bar, que sam quatro quintaes, hum cruzado-, e levam os Malavares a vender esta canela a Cambaya e a Chaul e Dabul ; pera dahy a levarem ao Balaguate. RUANO Dizeime dos nomes das especias que traz Plinio, pera ver se se podem reduzir a algumas partes da índia. Da Canela ' 2i5 ORTA Serão reduzidos, como podermos; porque a verdade he o que dixe, e os nomes levalosemos a ella. E diguo que Zegir pode ser que se chamasse assi toda a terra dos Chin- gualas, que sam os de Ceilam; porque os Pérsios e Arábios chiamam os negros Zangues; e toda a gente de Ceilam e do Malavar lie desta cor; e também aquelles baixos que estam entre a costa e a ilha de Ceilam se chamam de Chi- lam, onde podemos derivar o nome de Zegir. RUANO E cinamomo musilitico, tanto louvado, donde se diz? ORTA Da ilha de Ceilam, que he ilha montuosa, que está con- trairá ao monte Cor}^ que he o cabo do Comorim; e onde achardes em Dioscórides que cheira a ariida nam lhe deis fé; e Plinio diz que trazem esta canela ao porto dos Gena- labitas que se chama o Ceilam: vedes como craramente quer dizer no porto dos Chingualas, que he Ceilam; porque diz que por direito caminho vem do promontório de Cory, porto das Genalabitas dito Ocila; se estas derivações vos nam con- tentarem, nam vos saberey dar outras melhores (8). RUANO Estas derradeiras me parecem milhor; mas os que dizem que he a folha da canela como do Ijrio espadanai, dizem bem? ORTA Não, porque a folha da canela parece a laranjeira ou a louro; scilicet, a feiçam he de laranjeira, e a cor he de louro. RUANO O olyo fazse da canela também? ORTA Já vos dixe que se fazia somente do fruto da arvore da canela; e que se fazia, como nós fazemos o das oliveiras, e esta he a verdade. 2l6 Colóquio decimo quinto RUANO Acho em receitas de hum doutor de autoridade, toma ci- namomo allipitino: he por ventura alguma parte da ilha de Ceilam, ou donde he? ORTA Si*, ay em Alepo, cidade principal da Suria, canela na- çida, assi como ha em Espanha, senão levamna de Or- muz e de Gida a Alepo; e vendem lá isto, e trazem cavallos a Ormuz, e muitos géneros de sedas e brocados; e porque aquella canela era boa e nova, ficou aquelle nome á boa ca- nela; e não porque a ay aja. RUANO Eu sam satisfeito; e diguo que me parece bem que tenha- mos verdadeiro cinamomo e verdadeira cássia lignea; e nam que nos falte; e que toda seja huma, e que, quando achar cássia lignea nas receitas, ou cinamomo, sempre porey ci- namomo o milhor que achar, pois todo he hum, e as cousas que os doutores escrevem pera que aproveita hum as dam a outro; e se Deos me levar a Espanha, eu tirarey desta errónea a muitos físicos e boticairos; e direy áquelle famoso doutor Thomas Rodrigues, que aquella eshortaçam que faz Mateolo aos físicos de elrey de Portugal, que tirem isto a limpo, que vós lhe presentais, e pondes debaixo de sua cor- reiçam; porque elle vos mandou isto pedir antes. E agora me dizei o que sabeis da iHia de Ceilam, pois he tão cele- brada. ORTA Tem a ilha de Ceilam de comprimento 8o legoas ou mais, e de largura trinta legoas: he frutífera, está de grãos de 6 até 9; he a mais frutífera e milhor ilha do mundo. Alguns dixeram ser Trapobana ou Çamatra: tem defronte na costa hum promontório, que chamam o cabo de Comorim. He muito povoada, postoque montuosa por muitas partes: á * Parece-me que se deve ler: «Não ha . . . assi como não ha em Espanha ...» Da Canela •217 gente delia chamam Chingalas: he de elre}^ nosso senhor e os reys delia sam sujeitos a elle. He certo que esta ilha he a mais nobre do mundo; e era toda de um rey, e foy morto por seus netos, e partiram entre si esta ilha. E quando os Portuguezes vieram a esta terra, fizeram consulta de cor- tarem e esterilizarem muitos arvores, assim como sam no:{es e cravo e pimenta. Ha nesta ilha todo género de pedraria, tirando diamans. Ha muito aljofrc, como diremos adiante; tem ouro e prata, e nam querem tirallo os reys, senam tello por tisouro: dizem que se ajuntam alguma vez, pera o tirar secretamente. Os matos sam com todas as aves do mundo, e muytos pavões e galinhas, e pombas muitas, e de muitas maneiras; cervos e veados, e porcos em muyta cantidade: ha muitas frutas nella das desta terra e laranjeiras, e tudo isto he montesinho; e as laranjas he a milhor fruta que ha no mundo em sabor e doçura; damse nella todas as frutas nossas, como uvas e figuos. Certo que das laranjas só se podia fazer muito boa pratica; porque he a milhor fruta que ha no mundo. Tem linho e ferro; e entre os negros qua dizem os índios ser o paraizo terreal; e fabulam que huma serra, que ahi ha muyto alta, que chamam o pico de Adam, e dizem que está ally a pégada de Adam, e outras fabullas muyto mayores, que por tais volas conto, e taes sam. Ha muitas palmeiras e os alifantes são os milhores que ha no mundo, e de muito entendimento (9), e dizem que os outros que lhe tem obediência (10). Nota (i) Se havia ou não canella no interior da Africa, é questão que procura- remos averiguar em uma das notas seguintes. Por emquanto diremos simplesmente, que nos não é conhecido este clérigo, o qual — como ingenuamente diz o nosso escriptor — foi de S. Thomé a Moçambique por terra. O facto — tomando a phrase no seu verdadeiro sentido — não é por modo algum improvável, pois são bem conhecidas as tenta- tivas, que desde o tempo do infante D. Henrique até ao de D. João III, 2l8 Colóquio decimo quinto e posteriormente, os portuguezes fizeram para penetrar no interior da Africa. Ruy de Sousa, Balthazar de Castro, Gonçalo da Silveira, Re- bello de Aragão, e vários mais, uns pelo oriente, outros pelo occidente, penetraram nas terras do interior; e algum outro iria de costa a costa, mas sem deixar memoria da sua viagem. A affirmação de Orta é muito positiva, dizendo que tinha conhecido em Goa o tal clérigo. E, porém, vaga, e nem mesmo é fácil saber d'onde este partiu, pois não é muito provável que partisse da costa Occidental n'aquella região do equador, em frente de S. Thomé. Nota (2) Orta refere -se á Ravensara aromática, Sonn., uma arvore de Mada- gáscar da familia das Lauracece, a cujo fructo os francezes chamaram noix d'épice de Madagáscar. Sonnerat descrê veu-a e figurou-a nos fins do século passado; e Cêré, director do Jardim botânico na ilha de França, já antes (1779) tinha dado sobre esta planta uma noticia, di- zendo : Le Ravensara est un arbre à épicerie de Madagáscar, dont la feuille et le fruit tiennent des quatre épices fines, que nous connaissons. No catalogo das plantas úteis das Colónias francezas, diz-se que os seus fructos têem une forte odeur de girofie — o cheiro «a cravo» do nosso Orta. Sonnerat diz também, que os naturaes a conheciam perfeita- mente, e se serviam das folhas para adubarem o arroz; era pois natu- ral que a trouxessem a vender aos portuguezes, que frequentavam os portos de Madagáscar ou ilha de S. Lourenço. Orta não foi o único escriptor portuguez, que fallou na Ravensara. Barros, dando conta da viagem de Diogo Lopes de Sequeira, que foi procurar cravo á ilha de Madagáscar, onde — como era natural — o não encontrou, acrescenta: que os naturaes da terra «vieram a enten- der em humas certas arvores, que dam hum fructo como baga de louro, que tem o mesmo sabor do cravo, e começaram de o trazer aos portos de mar a ver se lhes davam por isso alguma cousa». E depois diz, que mais tarde veiu a Portugal uma «mostra» d'aquelle fructo. (Cf. Sonnerat, Voyage aux Indes orientales et à la Chine, 11, 58, e 226, PI. 127, Paris, 1782; Lanessan, Les plantes utiles des colonies /rançai- ses, 532, Paris, 1886; Baillon, Adansonia, ix, 299; Barros, Asia, 11, iv, 3), Nota (3) A noticia de Garcia da Orta sobre as viagens dos juncos chins até ao Golfo Persico é particularmente interessante, porque este facto de- via ser pouco conhecido no seu tempo, posto que esteja hoje perfeita- mente demonstrado. Da Canela 219 O antigo escriptor persa Hamza de Ispahan — citado por Ten- "ent — diz-nos, que no v século o Euphrates era navegável até Hira. E Maçudi, fallando também das variações que se têem dado no curso d'aqueUe rio, informa-nos de que elle seguia, muito antes do seu tempo, o antigo canal el-Atif, passando em Hirah, e vindo lançar-se no mar da Abyssinia (Golfo Persico), que então cobria as terras de en-Nedjef, onde : arrivaient les bátiments de la Chine et de Vinde à destination des rois de Hirah. O termo d'aquella navegação foi, porém, retrogradando, e passou a ser em Obolla, depois próximo da moderna Basra, ou Bas- sora, mais tarde em Siraf na costa da Pérsia (segundo Abu Zeyd), e por ultimo em Hormuz (Cf. Tennent, Ceylon, i, 565, 5."' edition (1860); Maçudi, Prairies d'or, i, 21 5; Yule, Cathay, lxxviii). Estas informações dos escriptores arábicos são em parte confirma- das por documentos chins, citados e commentados modernamente pelo sr. F. Hirth. Um porto ou cidade, chamado pelos chins T'iao-chih, co- nhecido por elles desde, pelo menos, o primeiro século da nossa era, parece dever situar-se na Mesopotâmia, justamente nas proximidades da antiga Hira, e da moderna Kufa. É verdade, que os primeiros do- cumentos o mencionam, não como o terminus da navegação; mas, pelo contrario, como o das viagens por terra. Os chins viriam então pela Asia central, através do paiz de An-hsi (Parthia), até T'iao-chih, e ali ehi- barcavam com destino ao mar Vermelho, por onde principalmente se punham em contacto com o Ta-ts'in, ou parte oriental do Império Ro- mano. Outras passagens, porém, referem-se ás relações directas, que mais tarde a China teve com o T'ien-chu (índia) e com o Ta-ts'in ou Fu-lin (as províncias orientaes do Império). Se estas relações directas eram, como parece, marítimas, é natural que os chins viessem deman- dar o porto de T'iao-chih seu conhecido. O antigo sinologo De Guignes dá-nos mesmo uma indicação muito mais clara, que no emtanto não encontro confirmada por Hirth. Segundo De Guignes, consta dos an- naes da dynastia Thang (vii e viu séculos), que os juncos chins par- tiam de Kuang-cheu (Cantão), e, depois de tocarem em Ceylão, cos- teavam o Malabar até a um porto chamado Tiyu (Diu?). D'ali seguiam ainda ao longo da costa, e chegavam a um segundo Tiyu, próximo do grande rio Milan ou Sinteu (o Indus, ou Sindu, chamado pelos árabes Mehran). Navegavam depois para um ponto, onde havia um pharol (os estreitos de Hormuz?), indo finalmente a Siraf e á embocadura do Euphrates (Cf. F. Hirth, China and the Roman Orient, Sy, 42, 147, etc. Leipsic e Munich, i885. De Guignes, Mem. de l'Acad. des Inscripiions et Belles letres, xxxii (1768), pag. 367). Mais tarde, as navegações dos chins encurtaram-se, á medida prova- velmente que os navios mais leves dos árabes se foram multiplicando. Edrisi, que escreveu perto de dois séculos depois de Maçudi, dá conta das relações commerciaes de Aden com a China, mas não diz em que 220 Colóquio decimo quinto navios se fazia a navegação; e, fallando de Soar, na costa de Oman, usa da seguinte plirase: il s'y faisait des expeditions poin- la Chine, por onde parece, que se fazia em navios árabes. Em todo o caso, quando Marco Polo, e depois Ibn Batuta visitaram a costa do Malabar, era ali, em Couláo e Calicut, o termo habitual da navegação dos jun- cos. Ibn Batuta fixa mesmo aquelle termo expressamente, dizendo de Hili (junto ao monte Dely), e a ucuja cidade chegão navios da China». Depois, como é bem conhecido, quando os portuguezes chegaram á índia, os juncos chins já nem mesmo vinham ao Malabar, e em geral não passavam de Malaca (Cf. Edrisi, Géographie, i, 5i, i52; Yule, Marco Polo, ii, 195 ; Viagens de Ben Batuta, 11, 246). Vê-se pois, que o facto apontado por Orta é absolutamente exacto, e ao mesmo tempo que esse facto tinha cessado alguns séculos antes d'elle escrever, devendo estar já um pouco apagada a sua memoria. Em que o nosso escriptor se enganou, foi em julgar que os juncos en- travam na ilha de Jeru, isto é Jerun, ou Gerun. Os juncos frequenta- vam o velho porto de Hormuz na terra firme, que parece ter sido im- portante desde tempos muito antigos, pois se tem identificado com a cidade de Armuza de Ptolomeo, e com aquelle sitio chamado Harmozia, locus ipse Hannopa vocatur, em que descansou e se refez a armada de Nearcho, segundo conta Arriano. Este foi e era n'aquelles tempos o porto commercial, e só se transferiu para a ilha de Jerun depois do anno de i3o2, seguindo a versão de Teixeira, a qual parece mais ac- ceitavel que a de João de Barros, e concorda com o que diz Abulfeda. Quando Marco Polo ali passou (1293 proximamente) a cidade ainda estava na terra firme; mas quando ali foi fr. Odorico (i32i) já a encon- trou estabelecida na ilha. N'esta epocha as viagens dos juncos tinham cessado; e quando antes ali iam, Jerun era uma pequena ilha deserta e salgada, transformando-se depois em uma cidade tão rica, que os orientaes diziam: se o mundo fosse um annel, Hormuz seria a pedra n'elle cravada. Esta transferencia de nome e de importância de um ponto da terra firme para uma ilha, é que o nosso Orta desconhecia, ou se esqueceu de mencionar; e que outros escriptorcs do tempo, por exemplo Camões, indicaram com exactidão : Mas vê a ilha Gerum, como descobre O que fazem do tempo os intervallos. Que da cidade Armuza, que alli esteve, Ella o nome depois e a gloria teve. (Cf. Arriani Indica, 573, edição de Nicolaus Blancardus; Teixeira, Relacion de los reys de Harmuj, 11; Yule, Marco Polo, i, ii3; Lus., canto x,est. io3). Da Canela ^ 221 Ao mesmo tempo, que Orta nos dá noticia dos numerosos — talvez demasiado numerosos — juncos, que entravam na ilha de Jerun, falla- nos dos que se perderam nos «baxos de Chilam». Estes baixos ficavam entre a ilha de Ceylao e a costa de Coromandel; e as suas rochas grandes, regulares, aflorando ao lume da agua, parecendo artificial- mente coUocadas, receberam o nome de ponte de Adão, Adam's bridge dos inglezes. Por ali diziam os Hindus, que o seu Rama havia passado para conquistar a ilha; e por ali, segundo os mahometanos, tinha sido o caminho de Adão. Pareceria, pois, por esta noticia de Orta, que os juncos seguiam aquella derrota, no que pôde haver alguma duvida. Os nossos navios portuguezes, fustas, galeotas e outros, passavam ás vezes pelos canaes dos baixos; mas alguns maiores com certa difficul- dade. Gaspar Corrêa diz, por exemplo : «esta armada passou os baixos de Chilão com o galeão e caravellas descarregadas, ao que lhe deu muyto aviamento Diogo Rabello, que andava por capitão da pescaria» (de pérolas). A antiga navegação dos árabes fazia-se também por ali, como claramente dizem Soleyman e Ibn Wahab no ix século; e por ali continuou no tempo dos portuguezes, como se vê do seguinte trecho de Duarte Barbosa: «por honde (pelos baixos) passaom ca- minho de Charamandel todolos zambucos do Malabar, e cadano se perdem muytos n'estes baixos, por ho canal ser muy estreito». Todas estas embarcações de pequena lotação tomavam, ou a passagem entre a ilha de Manaar e a de Ceylão, ou o canal de Paumben, entre a ilha de Rameseram e a costa da índia. Sir Emerson Tennent, porém, p5e em duvida que os grandes jun- cos seguissem aquelle caminho, e admitte que elles rodeavam Ceylão e ft-equentavam o porto, hoje conhecido pelo nome de Ponta de Calles. Os antigos juncos eram effectivamente enormes, trazendo grandes car- gas, e guarnições, que chegavam a ser — segundo Ibn Batuta — de mil pessoas. Era pois natural, que nem passassem, nem tentassem passar habitualmente pelos canaes dos baixos. A noticia de Orta não deve, pois, referir-se á navegação habitual, mas a um ou a mais factos iso- lados, de que faliam outros escriptores. João de Barros diz : «No tempo que os Chijs conquistaram aquellas partes por razão da especiaria, entre o transito d'esta Ilha (Ceylão) e a terra firme, com hum tempo a que elles chamão vara, que he o que faz a maravilha do seu Scylla e Charybdes, em hum dia perderam oitenta vellas, donde aquelle lugar se chama Chilão . . . que ácerca d'elles quer dizer os pe- rigos ou perdição dos Chijs». E fr, Gaspar da Cruz allude ao mesmo ou a outro naufrágio : «. . .e nos baixos de Chilão, que correm da ilha de Ceilam pera a costa de Cheromandel se afirma pelos da terra, que se perdeo húa muy grossa armada dos Chinas, que vinha sobre a índia, a qual se per- deu porque os Chinas eram novos em aquella navegação». 222 Colóquio decimo quinto Deixando de parte a etymologia da palavra Chiláo, que não parece exacta, estes factos de naufrágios nos baixos devem ser verdadeiros, ainda quando não fosse por ali o caminho habitual da navegação. (Cf. Tennent, Ceylon, i, SSy et seqq. ; Lendas, in, 56o ; Duarte Barbosa, Livro, 352; Barros, Asia, iii, ii, i; fr. Gaspar da Cruz, Tractado da China, ig, 2." edição, Lisboa, 1829.) Estas referencias ás expedições militares dos chins ao sul da índia, levam-nos a fallar da Chinacota de Calicut, e da origem que Orta lhe attribue. A mesma noticia se encontra nas Lendas, e d'ali se vê que o recinto da Chinacota era grande, pois n'ella se aposentou Pedralvares Cabral com toda a sua gente que desembarcou. Este e outros edifícios referem os nossos escriptores com insistência ao dominio dos chins na índia. Alem das indicações, dadas por Barros e fr. Gaspar da Cruz nas passagens citadas, Gaspar Corrêa falia de uma grande armada de chins e «lequeos», que quatrocentos annos antes da nossa chegada correu aquella costa, estabelecendo-se ali muitos d'aquelles estrangeiros. E, entre outros, Diogo do Couto falia explicitamente na estada dos chins na índia meridional, e nas leis e costumes que ali introduziram. A ques- tão é intrincada, porque é difficil admittir, que não existisse um funda- mento real para estas affirmaçóes concordes, e por outro lado esse fundamento se não encontra — ao menos, que eu saiba. Pôde ter contribuído para introduzir aquella idéa no espirito dos nossos escriptores, o dominio que os chins tiveram na ilha de Ceylão, onde mandaram uma armada depois do anno de 1405, e d'onde recebe- ram tributo até ao anno de 1459. Este facto estava fresco na memoria de todos quando os nossos chegaram á índia, e pôde bem ser que os juncos perdidos nos baixos fossem d'esses que se enviavam a Ceylão. Quanto á índia, é certo que Yule menciona alguns estados situados n'esta região, e nomeadamente um que identifica com a costa de Maa- bar, ou de Coromandel, como vindo incluídos em uma lista de paizes tributários á China, em tempos do imperador Kublai (1286); mas é ne- cessário ter em vista a arrogância dos documentos chins, que dão a si- gnificação de actos de vassallagem a uma embaixada, ou ás vezes a sim- ples relações commerciaes. Dominio efíectivo na índia parece não ter havido. Havia, porém, colónias commerciaes, ricas e prosperas; e a essas colónias, aos mercadores chins, estabelecidos em Coulão e outros pon- tos do Malabar e de Coromandel, allude Ibn Batuta e vários viajantes da Idade-media. E perfeitamente admissivel, que essas colónias tivessem feitorias, edifícios religiosos, e mesmo recintos fortificados; e é admis- sivel que a Chinacota tivesse esta origem. Em outros casos, porém, os nossos escriptores tiveram um equivoco manifesto, e attribuiram aos chins edifícios, que haviam sido levantados por algumas seitas religiosas da índia. Já na Vida de Garcia da Orta eu tive occasião de notar esta confusão entre chins e buddhistas; e vi Da Canela 223 depois no Indian Antiqiiary um artigo — de que então não tinha conhe- cimento— e em que duas grandes auctoridades orientaes, Yule e Cald- well, apontavam uma contusão análoga entre chinas e jainas. (Lendas, i, 69, 186; Couto, Asia, v, i, i; Tennent, Ceylon, i, 622; Cathay, lxxvi; Marco Polo, n, 821; Garcia da Orta e o seu tempo, 259; Ind. Ant. iv, (1875), 9.) No decurso do Colóquio, Orta dá uma longa lista das mercado- rias, que os juncos deviam trazer, já da sua própria terra, já das compras, feitas pelo caminho: ouro, seda, porcellana, almíscar, co- bre, aljofre, pedra hume, sândalo, noz e maça, cravo, madeira de aloés, canella boa e ruim, pimenta e cardamomo. Alguns séculos antes, Edrisi dera igualmente uma lista das mercadorias, que da China vinham a Aden, entre as quaes é fácil reconhecer que muitas não procediam propriamente da China, e sim dos pontos intermediários. Comquanto as listas diffiram, ha entre ellas concordâncias muito interessantes, e Edrisi aponta algumas das mercadorias citadas por Orta : porcellana? (vaisselles de terre na traducção), sedas? (étoffes riches et veloutéesj, noz e maça (muscade, macisj, almíscar, madeira de aloés, cravo, canella, pimenta e cardamomo (Cf. Edrisi, Géographie, i, 5i). Nota (4) Para não alongar demasiado estas notas, não repetirei o que disse já na Vida de Garcia da Orla, sobre a famosa pedra de Repelim, sobre a tomada d'aquella chamada ilha, e sobre o combate naval de Beadalá. A pedra devia ser simplesmente um lingam; e os sucessos militares são bem conhecidos pelas relações dos nossos chronistas (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 128 a 182; Gaspar Corrêa, Lendas, iii, 717, 766, 828; Barros, Asia, iv, vii, 19, e viii, i3; Couto, Asia, v, 11, 4). Nota (5) Como se vê, Orta cita um grande numero de nomes vulgares da ca- nella, cuja exactidão é necessário averiguar: — Dois nomes gregos, adoptados pelos latinos e em muitas linguas modernas, designaram duas substancias distinctas, mas, ao que parece, análogas, xaaía ou xaoata, e xtvvay.(')[^.ov também escripto xtvva(j.ov. Estes dois nomes são geralmente derivados das duas palavras hebraicas, que se sup- pÕe terem designado as mesmas substancias, H^^líjp e "|lD3p- A pri- meira d'estas palavras liga Sprengel a uma raiz hebraica, que significa cortar, abscindere — e a sua opinião é geralmente seguida, de preferencia 224 Colóquio decimo quinto á de Orta, que vê na palavra cássia, a corrupção do malayo cais. O se- gundo seria — no parecer do mesmo Sprengel,— a alteração de um nome asiático 1 da substancia, cacyn-yxama, que significa pau doce, dulce lignum. O nosso Orta procura, porém, outra origem da palavra cÍ7ia- momo, julgando ser o Cin ou Sin-amomo, isto é o Amomo da China. Esta etymologia excitou as iras de Scaligero, o qual exclama: nihil jocularius, ineptius, síultiiis, potuit dici. No emtanto o erudito Goo- ley, depois de examinar todas as origens propostas para a palavra, considera esta a única racional; e para ella se inclina igualmente Ne es von Esenbeck. A opinião de Orta não era pois tão inepta e ridicula como dizia Scaligero, e tem por si as melhores auctoridades (Cf. Renan, Hist. des langues sémitiques, 206; Sprengel, Dioscórides, 11, 849, 35o; Exoticorum, 246; W. Desborough Cooley, On the régio Cinnamomifera of the ancients, no J. R. G. S. vol. xix, pars i (1849), P'''g- ^^9; Nees voa Esenbeck, Disputaiio de Cinnamomo, trabalho que não pude ver e só conheço pelas citações). — «Salihacha» — diz Orta — chamam os árabes á cássia lignea. É um nome conhecido, mas cuja transcripção correcta deve ser salikhah isr;.^ (Cf. Sprengel, 1. c; W. Ainslie, Mat. ind., i, 58). — «Darchini» é nome «pérsio» e não «arábio». Escreve-se na fórma arábica j '-^ darsini, ou na fórma e alphabeto persiano darchini; e é effectivamente de origem persiana, como se vê bem da primeira parte dar, (cf. sanskrito dãru, que significa arvore e ma- deira). Todos o interpretam do mesmo modo que Orta, querendo di- zer pau da China (Cf. Pictet, Orig. Jndo-europ., i, 210; Ainslie, Alat. ind., I, 72; Pharmac, 468). — «Querfá», ou «Querfé» nome arábico da canella em geral. É um dos mais frequentes entre os Árabes, y qerfah, e significa casca (cór- tex em Freytag). Chamam á canella, qerfah ed-darsini, a casca do pau da China, ou simplesmente qerfah, a casca por excellencia (Cf. Dy- mock, Mat. med., 667). — «Caismanis» e «Caismão» é o nome malayo, e significa pau doce. Os nomes malayo e javanez são effectivamente kayu-tnanis ou kai- manis, e têem a significação que Orta lhes attribue. É claro que este deve ser o cacyn-nama e o dulce lignum de Sprengel; mas não é igualmente claro que seja a origem da palavra cinnamomo (Cf. Craw- furd, Dict. of the Indian Islands, 100; Ainslie, 1. c). — «Cuurdo» é o nome usado em Ceylão. Coronde, kurunda, ku- rundú, e ainda outras fórmas singhalezas, se encontram nos livros mo- ' Singhalez, segundo Royle fAní. ofhindoo med., 84) ; mas nem o encontro citado entre os nomes usados em Ceyláo, nem uma origem singhaleza parece acceitavel pelas rasóes adiante expostas. Da Canela 225 demos. Applicam-se em geral á casca de que tratamos, distinguindo-se depois a melhor pelo nome de rassu-coronde, e as inferiores por di- versos e numerosos qualificativos (Cf. Ainslie 1. c; Piddington, Index, 5i; Guibourt, Drogues Simples, ii, 4o5). — «Cameá» no Malabar. Este nome está de certo muito alterado; mas deve prender-se ao tamil kárrmvá, que Rhede dá na forma mais simples karua ou cama (Cf. Ainslie 1. c). Se prescindirmos das variantes orthographicas, fáceis de explicar na transcripção de nomes estranhos e de difficil pronuncia, vemos que a nomenclatura de Orta é exacta, e notavelmente completa. Devemos dizer que Diogo do Couto, sem ser da especialidade, se mostra muito sabedor d'estes nomes da canella; e aponta o nome co- 7'undo em Ceylão, caroa no Malabar, carfa entre os arábicos, darsin ou pau da China entre os persianos, e caio inanis, ou pau doce entre os Malayos, dando outras indicações interessantes. Mas n'esie, como em outros pontos, é para mim duvidoso, se as informações de Couto são propriamente suas, ou se elle as extrahiu dos Colóquios, sem comtudo os citar. Algumas concordâncias curiosas me levam a crer, que Diogo do Couto se aproveitou mais de uma vez do livro do seu compatriota, mas lhe não fez a honra de o mencionar (Cf. Couto, Asia, v, i, 7). Nota (6j Orta conhecia a canella de diversas procedências. Em primeiro lo gar a de Ceylão, que era no seu tempo a principal região productora d'aquella substancia, e d'onde ainda vem o cinnamomum ou córtex cin- namomi mais fino. E a casca do Cinnamomum ^eylanictnn, Breyne, uma arvore da familia das Lauracew, da qual existem na ilha de Ceylão distinctas variedades, tidas por alguns na conta de espécies particulares, e fornecendo cascas de diversas qualidades e valores. Orta dá uma descripção bastante exacta da arvore; mas cáe em um erro grosseiro e imperdoável em tão consciencioso observador, quando suppõe que tiravam a «corteza» e passados tres annos dava outra^. Este en- gano — que teve também Gaspar Corrêa — resultou de alguma vaga reminiscência do que se passava em Portugal com os soverciros; e Orta suppoz, que a canella se reproduzia, como se reproduz a cortiça. Isto, porém, não succede nem pode succeder, porque a canella, principal- mente constituída pela parte liberiana da casca, se não torna a formar; e a sua extracção determina mesmo a morte do ramo. Duarte Barbosa, sem ser da especialidade, dá um quináo em Garcia da Orta, dizendo ' Apezar de ter notado acertadamente que a canella era a segunda casca. i5 226 Colóquio decimo quinto correctamente: «el-Rey ha manda cortar em ramos delguados, e man- dando-lhc tirar a casqua . . .». É effectivamente assim que se procede ; as arvores são podadas, e são descascados depois os ramos que se cor- taram (Cf. Gaspar Corrêa, Lendas, i, 652; Duarte Barbosa, Livro, 35o; Pharmcic, 470). Orta conhecia igualmente a canella mais grossa e ordinária do Ma- labar, a qual procede talvez de mais de uma espécie, mas principal- mente do Cinnamomum iners, Reinw., uma arvore frequente nas flo- restas de Travancore, Mysore, e de outras partes da Lídia. Conhecia também a canella de Java, que se julga proceder do Cin- namominn Bw^manni, Blume. Mas ignorava a existência da canella na China, e aífirmou errada- mente que a não havia ali. Temos todos os motivos para acreditar — como veremos em uma das notas seguintes — , que a primeira canella conhecida foi a da China, e sabemos que hoje vem das províncias me- ridionaes d'aquelle paiz toda a canella mais especialmente conhecida no commercio pelo nome de cássia lignea. Procede, segundo parece, da espécie Cinnamomum Cássia, Blume, que habita aquellas terras, assim como parte da Indo-China (Sobre esta questão complicada das procedências botânicas da canella e cássia lignea pôde ver-se Meissner in D. C. Prodromus, vol. xv, sect. i. p. 10 et seqq. ; Fliickiger e Han- bury, Pharmac, 466, 475 ; e também a traducção franceza d'este ultimo livro pelo dr. Lanessan nas notas finaes). Em resumo, a insistência com que Orta, já no titulo e depois em todo o Colóquio, affirma que canella, cinamomo e cássia lignea é uma e a mesma cousa, tem uma certa rasão de ser. Distinguiram-se e ainda hoje se distinguem no commercio, o córtex cinnamomi e o córtex cas- sioí-lignece, como substancias e mercadorias diversas pela sua proce- dência e pelo seu preço; mas no fundo são substancias muito simi- Ihantes, e pertencendo a espécies do mesmo género. É isto, e só isto, o que Orta pretende dizer, porque a distincçao scientifica das espécies se não sabia fazer no seu tempo; e elle só podia notar, como notou, que a arvore do Malabar era um tanto diversa da de Ceylão. Pelo que diz respeito ás canellas de outras regiões, é claro que a canella aquática do mar Vermelho era uma pura phantasia, resultando de antigas noticias a que nos referiremos nas notas seguintes. A ca- nella da America, de «Zumaco» ou de Quito, foi muito celebrada, mencionada por Garcilaso de la Vega, Oviedo e Monardes, e ainda hoje se encontra no commercio com o nome de ishpingo. Mas era for- necida por uma planta diversa do Cinnamomum, comquanto da mesma família, uma grande arvore, Nectandra cinnamomoides, Meissner, que por emquanto está imperfeitamente estudada. Da Canela 227 Nota (7) Este oleo, extrahido do fructo do Cinnamomum, era bem conhecido dos portuguezes; e Gaspar Corrêa também falia d'elle dizendo: «da baga se tira hum azeite, que se faz duro como sabão branco, cousa muy forte de quente». Segundo Orta, tinha usos medicinaes: «para es- quentar o estômago e nervos». Nao o vejo mencionado modernamente; mas o coronel Drury diz, que as sementes do C. iners são ás vezes empregadas na medicina hindu (Cf. Gaspar Correa, Lendas, i, 652; Drury, Useful plants of índia, i38). Alem do oleo da baga, Orta menciona «a agoa de Canella»; e a que «a rayz deita, que cheira a camfora». Refere-se ao producto hoje chamado Oleutn cinnamovii radieis, tendo um cheiro entre cinna- momo e cânfora; e um gosto canforaceo pronunciado. Foi descripto por Kãmpfer (171 2), e "vem mencionado por Fllickiger e Hanbury, os quaes se referem ao nosso auctor {Pharmac, 474). Nota (8) Sem entrar largamente na complicada historia antiga da canella, é no emtanto necessário recordar alguns factos, que esclareçam as duvi- das e affirmações de Garcia da Orta. Os antigos conheciam duas substancias, que reputavam distinctas, mas análogas — a cássia e o cinnamomo. Passagens de Galeno, repeti- das vezes citadas, provam que a boa cássia differia pouquissimo do cinnamomo; e devemos admittir que elles designavam por aquelles no- mes, o mesmo que hoje designamos, isto é, cascas ou pequenos tron- cos de Laiiracece, de melhor ou peior qualidade. Ambas as substancias, e particularmente o cinnamomo, eram tidas em grande estima; e o erudito dr. Vincent, que tão cuidadosamente estudou o commcrcio dos antigos, dá a esta especiaria o primeiro logar n'aquelle commercio. Nos livros sagrados dos Hebreus é mencionada repetidas vezes; desde o Êxodo (xxx, 23, 24) em que Deus, fallundo a Moysés, lhe manda tomar uma certa porção de cinnamomo e de cássia; até ao livro de Ezekiel (xvii, 22) em que se falia dos mercadores de Sheba, ou Saba, que tra- ziam a Tyro aquelles imiversis primis aromatibiis; sem notarmos va- rias menções nos Psalmos, Reis e outros. Era igualmente conhecida dos mais antigos escriptores gregos. Heródoto diz-nos, que os seus com- patriotas haviam aprendido o seu nome com os phenicios — o que deve ser exacto — ; e conta-nos, como se encontrava nos ninhos dos pássaros, os quaes a traziam das terras, d'onde Bacho era natural; e como al- gumas serpentes aladas guardavam esta preciosa substancia. Theo- 228 Colóquio decimo quinto phrasto falia também d'essas serpentes venenosas, mas, com o seu ha- bitual critério, adverte logo: isto é uma fabula íu.jOo;). D'estas fa- bulas, «o mais fabulosas que podem ser« tinha conhecimento o nosso Orla; mas nem lhes dá credito, nem mesmo as quer mencionar. Quanto á pátria, tanto Heródoto, como Theophrasto, indicam a Arábia; mas as próprias fabulas que contam, mostram bem que os seus conheci- mentos a este respeito eram incertos, e elles suspeitavam que viesse de mais longe. Na Arábia se localisou effectivamentt a pátria do cinna- momo; e Arriano, quando conta como a frota de Nearcho entrou os estreitos de Hormuz e avistou as costas de Oman, accrescenta, que d'ali tiravam os Assyrios o cinnamomo e outros aromas (Cf. Heródoto, iii, 1 1 1; Theophr. Hist.plant. ix, 5, 7, pag. 146, 147, edição Wimmer (1866) ; Arr. Indica, 5ji). Mais tarde, Plinio, sem nos dar as razões em que se funda, desloca as plantas da Arábia para a Africa; diz: nascitur in ALthiopia Troglo- dytis conmibio preinixta; e marca mesmo o ponto da costa, Mossy- liciis^, por onde se fazia o seu commercio. Condemnando as fabulas de Heródoto, Plinio cáe em indicações igualmente singulares, sobre os sacrifícios que se faziam ao deus Assabinus, e sobre a parte que se entregava ao sol. Garcia da Orta refere-se a esta passagem, quando falia da parte que pertencia «ó diabo» (o deus Assabinus); e é mesmo evidente, que elle conhecia a relação de Heródoto, unicamente pelo que d'ella transcreveu Plinio. Mas, voltando á pátria do cinnamotiw, vê-se, que depois de Plinio ficou geralmente collocada na Africa. Ptolomeu si- tua também a régio cinnaviifera no alto Nilo, próximo das suas lagoas (Cf. Plin., Hist. nat.^ vi, 84, xii, 41, 42, 43; Ptolom., Geogr., iv, 8). Nas cartas da idade media, que em geral não foram mais do que compilações de antigas noticias, conservam-se vestígios das duas situa- ções. Em um Mappamundi do xii século, annexo a uns commentarios sobre o Apocalypse, vem na Arábia este distico: et cinnamomum ibi est. E na famosa carta do Museu Borgia do xiv século, vem do mesmo modo o cynamomiim indicado na Arábia; emquanto na Africa oriental, a Phe- nix arde no ninho sobre um fogo de aromas: se in igne aromático com- burilur. Por este modo se foram conservando antigas indicações, que, ampliadas e alteradas, levavam a affirmações tão estranhas, como aquella de Francisco Tâmara — citada por Garcia da Orta — , o qual collocava cinnamomos e loureiros no mar Vermelho, cobertos pela maré, em uma situação em que só poderiam viver mangues (Cf. San- tarém, Essai sur la Cosmographie, 11, 118, e iii, 286). ' Ezekiel também falia de Mosel, Dioscórides de p.oVjXov e vários outros. Garcia da Orta liga o nome de «miisilitico. á ilha de Ceylão; mas sem motivo plausível. Aquelle porto ficava na cosia africana, entre Bab el-Maudeb e Guardafui, próximo talvez a Bender Ghasira e Bender Ghor das cartas modernas. • Da Canela 229 Modernamente (1849), um escriptor eruditíssimo, Desborough Coo- ley, levantou de novo a idéa da antiga existência do cinnamomo na Africa, apoiando-se sobre um grande numero de referencias de es- criptores gregos e latinos, e sobre uma discussão muito engenhosa dos textos. As conclusões a que chegou podem resumir-se nas seguin- tes: Que o primeiro conhecimento do cinnamomo foi derivado da China; e que a substancia, nos tempos mais remotos, chegava á Judéa e á Phe- nicia por terra, atravez da Pérsia ; Que mais tarde, os negociantes da Arábia, aquelles mercadores de Sheba de que falia Ezekiel, levaram a Tyro e outros mercados oc- cidentaes o producto das suas possessões africanas; e que então o cinnatnomo da Africa oriental supplantou o do extremo oriente; Que depois os gregos se substituíram aos árabes, e foram elles pró- prios aos portos africanos buscar as famosas cascas, cuja procedência já então conheciam ; Que finalmente, declinando o Império Romano, e augmentando o commercio da Pérsia com o Oriente sob os Sassanides, afBuiu aos mer- cados o cinnatnomo asiático, principalmente da índia; e que a deca- dência e extincção do trafico na especiaria africana se pôde approxima- damente collocar nos fins do vi século. (Cf. W. D. Cooley, On the Régio Cinnamomifera of the ancients, no J. R. G. S. vol. XIX (1849), P. i, p. 166). A principal objecção a fazer a esta apreciação dos factos é ainda hoje a mesma que lhe fazia Garcia da Orta — isto c, que a arvore do cinnaynomo não existe na Africa. Se acreditássemos nas indicações dos antigos escriptores, deveríamos procural-a na extremidade oriental da terra dos Somalis; ou, querendo alargar a região segundo as idéas de Ptolomeu, n'aquella terra, e na terra dos Gallas, chegando ao Nilo su- perior ahi pelas alturas de Gondokoro. Era de certo um atrevimento da parte de Garcia da Orta dizer, que esta região da Africa era bem conhecida no seu tempo. Mas hoje não succede o mesmo; tem sido visitada por diversos viajantes, e nenhum menciona ali a arvore da ca- nella, nem mesmo uma Lauracea qualquer'. Em questões d'esta or- dem, os dados históricos têem grande importância; mas, em ultima analyse, dominam os argumentos botânicos; e o que sabemos da dis- tribuição geographica das Laiiracecu torna pouco provável, que uma planta do género Cinnamomum exista, ou existisse em tempos históri- cos na Africa oriental. Vê-se, pois, que o argumento de Garcia da Orta, pouco fundamentado no seu tempo, se conserva no emtanto de pé, ao cabo de tres séculos, e á luz das modernas explorações. ' Exceptuando uma indicação de Bruce, que carece completamente de confirmação. 23o Colóquio decimo quinto Se o cinnamomo não vinha da Africa, d'onde vinha ? Parece que tam- bém não vinha de Ceylao. Em um exame detido, minucioso, completo, de todos os escriptores gregos, latinos e arábicos antigos, que fallaram de Ceylão, sir Emerson Tennent notou, o que já em parte tinham notado com surprezaVincent, d'Herbe]ot, sir William Ouseley, isto é, que em ne- nhum d'elles ha uma única referencia ao cinnamomo da ilha. É só em tem- pos relativamente modernos, que Kazwini (1275), e depois Montecor- vino, Ibn Batuta e outros o mencionam. E mesmo n'aquelle primeiro tempo parece ser pouco conhecido. Marco Polo não o cita, citando o do Malabar e o da China. Ibn Batuta descreve um estado de cousas, que mostra um commercio nascente. De modo que a famosa ilha, a terra clás- sica da canella Com que Ceylão é rica, illustre e bella, teve as suas florestas desaproveitadas até proximamente dois séculos antes da chegada dos portuguezes (Cf. Tennent, Ceylon, i, 600 et seqq.; Yule, Marco Polo, 11, 47, 297, 379). Posta assim de lado a canella de Ceylão — pelo que diz respeito aos tempos antigos — devemos voltar-nos para a índia, e principalmente para a China. Em uma das notas precedentes, vimos existirem provas de que desde o principio da nossa era os chins vinham por terra, e talvez também por mar, até ao Euphrates. Mas não se segue, que as suas relações com o Occidente começassem então. As trocas, não só de substancias materiaes e de mercadorias, mas as trocas de idéas e de noções scientificas, levam-nos pelo contrario a acreditar em um contacto muito mais antigo. O erudito J. Edkins de Peking, entre ou- tros, admitte, que o commercio pelo oceano Indico pôde talvez ter logar desde os tempos nebulosos do imperador Hwangti e seus suc- cessores immediatos, quasi contemporâneo do rei Uruk da Chaldéa, c vivendo mais de vinte séculos A. C. Sem procurarmos, se as relações da China com o Occidente resultavam então de viagens terrestres atra- vez do An-hsi, como nos primeiros séculos da nossa era; se a navega- ção partiria dos portos occidentaes da Indo-China, onde as mercadorias viessem da China, aproveitando os grandes valles que parallekmente rasgam aquella península de norte a sul; ou se a navegação partiria dos próprios portos da China meridional; sem indagarmos também, que parte caberia n'essa navegação aos juncos chins, e que parte se deva attribuir áquellas naus de Ur na Chaldéa, de cuja existência (2:000 an- nos A. C.) sir Henry Rawlinson encontrou noticia; admittindo que todas estas questões são insolúveis, podemos no emtanto acceitar o facto das relações commerciaes, qualquer que fosse o caminho seguido. Por outro lado, temos a prova de que a canella ou cássia era co- nhecida na China n'esses remotíssimos tempos. Sob o nome de kwei. Da Canela 23l vem mencionada no Shen-nung Pen Ts'ao king, ou Matéria medica do imperador Shen-nung, o qual reinava 2:700 annos A. C. E os no- mes occidentaes inclinam-nos também para aquella origem: em pri- meiro logar darchini, ou pau da China, que é uma designação muito antiga, pois vem citada no Amara Cocha na fórma darasini, e nos es- criptos do arménio Moses de Choréne, na fórma dare^enic; em segundo logar, a antiquissima fórma hebraica ou phenicia d'ondeveiu cmMamomo. Quer o derivemos de cacyn natna, ou de qualquer outra fórma malaya, como fazem Sprengel e outros, quer o derivemos de cin ou sin-amo- mum, como fazem Garcia da Orta e Cooley, aquelle nome indica-nos uma procedência do extremo Oriente. Tanto, pois, quanto podemos averiguar questões, destinadas a ficarem incertas e nebulosas, a ori- gem chineza da antiga canella parece-nos plausível (Cf. Edkins, An- cient navig. in the Indian ocean, no J. R. A. S., vol. xviii ( 1 886), 7 ; Rawlin- son, Anc. Monarchies, i, 16; D. Cooley 1. c). Qualquer que fosse o caminho por onde traziam a especiaria, ella vinha ter aos portos da Chaldéa, aos da Arábia meridional ou Sabéa, aos da Ethiopia. D'ali, pelo mar Vermelho, chegava aos povos do Me- diterrâneo, e esses povos, os gregos entre outros, tomaram os paizes por onde vinha, como sendo os paizes d'onde vinha. Esta parece ser a verdade, e esta c exactamente a argumentação de Garcia da Orta. Elie ignorava dois factos capitães: primeiro, que a canella se creava na China: segundo, que a canella de Ceylão não fòra conhecida nos tem- pos mais antigos. Isto induziu-o naturalmente em alguns erros; mas, de um modo geral, os seu raciocínios são correctos, e perfeitamente acceitaveis em face do que hoje se sabe sobre a questão. Nota (9) Orta deve ter visitado a ilha de Ceylão, pelo menos duas vezes. N'este mesmo Colóquio nos diz que assistiu á tomada de Repelim; e pouco depois d'aquella victoria, Martim Affonso de Sousa foi de Cochim a Ceylão, desembarcou em Colombo, e seguiu d'ali para Cota no interior da ilha. Orta, que estivera em Repelim, e fazia então parte do séquito pessoal do Capitão Mór, acompanhou-o sem duvida n'esta viagem, que teve logar nos princípios do anno de 1537. No anno seguinte, a i5 de Fevereiro, deu-se a batalha de Beadala, de que Orta falia também n'este Colóquio; e que provavelmente presenceou, posto que o não diga de um modo explicito. O porto de Beadala, marcado hoje nas cartas in- glezas Vedaulay (propriamente Vêdãlay) estava situado na lingua de terra que se estende da costa da índia em direcção a Ceylão, e limita pelo norte o golfo de Manaar. D'ali mesmo, Martim Affonso atravessou a Ceylão, ao longo dos baixos, e foi de novo a Colombo, e de Co- 232 Colóquio decimo quinto lombo a Cota visitar segunda vez o Rei; é provável que Orta fosse n'esta viagem, como fòra na primeira. Annos depois esteve também na ilha das Vacas, na bahia de Palk, muito perto de Ceyláo; mas d'essa expedição fallaremos mais tarde (Cf. Barros, Asia, iv, vii, 22; e iv, viii, 14; Couto, Asia, v, I, 6; e V, 11, 3). Parte das noticias, que nos dá, resultavam, portanto, de impressões pessoaes; mas outra e a maior parte resultaria das informações que sempre tomava, pois a sua demora na formosa e famosa ilha foi muito curta, e pouco tempo lhe deu para observar. Em todo o caso, as suas noticias são em geral exactas. Das pedras preciosas de Ceylao teremos de fallar em outras notas; mas do ferro podemos dizer desde já, que existia na ilha, e que os singhalezes conheciam de tempos antigos o modo de tratar o minério e de lavrar o metal. Não e igualmente exacto, que ali houvesse oiro e prata; estes metaes apenas se encontravam occa- sionalmente e em pequeníssimas quantidades. E se os objectos de oiro eram frequentes nos pagodes, nos palácios dos reis, ou nas casas dos xicos singhalezes, isto resultava de importação. A vegetação da ilha era e é riquíssima, como todos sabem. Encon- travam-se ali «muitas palmeiras 1», dos géneros Cocos, Areca, Borassus, Caryota e outros; também «muitas frutas», já das puramente tropicaes, já das que também se criam nas regiões temperadas, como as laranjas. D'estas, que Orta diz serem a «milhor fruta que ha no mundo»; e das quaes «se podia fazer huma muyto boa pratica», fallaram sempre os viajantes com grande louvor. Varthema tinha dito quasi as mesmas palavras: aranci dolci, li inigliori cJie siano al mondo. Pelos matos creavam-se todos os animaes de que Orta falia : «muytos pavões», que ainda recentemente eram frequentíssimos na parte oriental da ilha: «galinhas bravas», a espécie Galliis Lafayeti: «pombas muy- tas e de muytas maneiras», dos géneros Treron, Turtiir, Carpophaga e outros: «cervos e veados», dos géneros Rusa e Axis: «porcos em muyta cantidade», o Sus indicus ou uma espécie próxima. Havia tam- bém elephantes nas florestas, e pérolas nas aguas dos golfos; mas de elephantes e de pérolas teremos de fallar mais largamente em outras notas (Compare-se em geral esta noticia de Orta, com o que dizem Barros, Couto, João Ribeiro na Fatalidade histórica, e sobretudo Ten- nent no seu livro clássico, Ceylonj. ' Esta phrase de Orta «lia muitas palmeiras», vem citada por Yule e Burnell (Glossary, V. Palmyra). e applicada especialmente ao Borassus flabelliformis. Por esta vez, os eruditos auctores não tiveram rasáo. A palavra portugueza palmeira designou sempre espécies di- versas da familia das Pahnx; djeu se em Portugal ao Phixnix dacíilifera, como na índia se dava ao Cocos micífera. chamando-se palmar a reunião d'aquellas arvores. Orta abrangia, pois, sob aquelle nome formas diversas, bastante similhanles entre si para que se reconhe- cesse a sua afinidade, e se lhes desse uma designação commum. Da Canela 233 O que Orta nos diz brevemente do Pico de Adão, e da pegada do primeiro homem, é perfeitamente conhecido de todos os nossos es- criptores do tempo, e de muitos outros, anteriores e posteriores; e Couto dedicou a esta questão um capitulo completo e muito interes- sante. Camões também dizia : Olha em Ceilão, que o monte se alevanta Tanto, que as nuvens passa, ou a vista engana; Os naturaes o tem por cousa santa, Pela pedra, onde está a pegada humana. A pegada, ou sri-pada, encontra-se no mais alto da montanha, e é uma depressão na rocha, de dimensões muito superiores ás de um pé humano, mas reproduzindo grosseiramente a sua fórma. Para os buddhistas foi ali impressa pelo seu Gautama Buddha; para os bra- hmanes por Síva; para os mahometanos por Adão; e para os portu- guezes da índia por S. Thomé, ainda que outros se inclinavam para o eunuco da rainha Cândace. De modo que todos os povos e todas as religiões a veneravam. A tradição mahometana, cuja origem se pôde talvez encontrar entre os christãos gnósticos, não situava propriamente em Ceyláo o paraizo — como diz Orta — ; mas unicamente o logar em que Adão fez penitencia depois da expulsão, e antes de se encon- trar outra vez com Eva (Pôde ver-se o que dizem os nossos escripto- res, nomeadamente Couto, Asia, v, vi, 2; e também, Tennent, Ceylon, II, 182; Yule, Marco Polo, 11, 3o2; Gerson da Cunha, Memoir on the tooth-relic of Ceylon, Bombay, 1875). E n'este Colóquio que Orta tem a phrase singular, que já citámos a pag. 18: ... «que alguns dixeram ser Trapobana ou Çamatraw. Nin- guém disse que Ceylão fora Sumatra, mas uma e outra ilha se identi- ficaram com a antiga Taprobana; o que, de resto, Orta explica mais cla- ramente em outro Colóquio. Nota (loj Pela primeira vez, Orta cita n'este Colóquio o seu compatriota João Rodrigues, ou Amatus Lusitanus. Os commentarios d'este a Dioscóri- des haviam sido impressos em Veneza (i553) e de novo (i557), alem de outras edições. Podia, pois, tel-os na índia, como tinha mais livros publicados por aquelles tempos; mas cita-o tão brevemente, que pa- rece conhecel-o mal, e talvez apenas por alguma referencia de outro escriptor. Cita também Francisco Tâmara, professor em Cadix, mencionando o seu livro, Juan Boliemo de las costumbres de todas las gentes, publi- cado em Antuérpia no anno de i556. 234 Colóquio decimo quinto da canela O Thomaz Rodrigues, de quem falia, era o famoso professor de medicina, ao qual — como antes vimos — foi dirigida a epistola latina de Dimas Bosque. Parece que Thomaz Rodrigues, picado pela «exhor- taçam» do celebre Matthioli aos médicos portuguezes, havia escripto antes a Garcia da Orta sobre o assumpto; e este desempenhava-se da obrigação que lhe fôra imposta, publicando o resultado das suas obser- vações na índia. COLÓQUIO DECIMO SEXTO DO COQUO CHAMADO, SCILICET, DO COQUO COMUM E DO DAS MALDIVAS INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Do arvore dos coqiios, chamado assim dos Portuguezes, me dizei; que sempre ouvi dizer, que era hum arvore que dava muitas cousas nessecarias á vida humana. ORTA Dá tantas e nessecarias, que não sey arvore que dê a sesta parte; e pois assi he, bem he que saybaes do que nós cha- mamos palmeira; mas os Gregos antiguos delle não escre- veram cousa alguma que eu visse, e os Arábios escreve- ram pouco; e isto será bem pera contardes em Castella, sem embarguo de ser sabido isto muito por os que vam, por ser cousa nota. E, vindo aos nomes, diguo que se chama wzaro, e o fruto narel; e este nome narel he comum a todos, porque o usam os Persas e os Arábios; e Avicena lhe chama jauiialindi, que quer dizer noi da índia; e Serapio* e Rasis chamam ao arvore jai^alnare, que quer dizer arvore que dá coqiios; e os Malabares chamam ao arvore tengamaram, e o fruito, quando he maduro, se diz tenga; e em malaio cha- mam ao arvore tricam, e o coco nihor; e nós, os Portugue- zes, por ter aquelles tres buracos, lhe pusemos o nome coquo; porque parece rosto de bugio ou de outro animal. He ar- vore muito grande de comprimento, e tem a folha no mais alto, como as folhas da nossa palmeira ou das canas, as fo- lhas da nossa palmeira são mais meudas; e a frol he como * Avicena, lib. 2, 5o6; Serapio, cap. 228 (nota do auctor). 236 Colóquio decimo sexto a do castanheiro; o páo he muito esponjoso; e quer lu- gares areosos perto do mar, porque fóra no sartáo nam se dam. Semeam os mesmos coquos e deles naçeni pal- meiras pequenas, as quais traspõem; e, em poucos anos, dam fruito, se as tratam bem, e lhe lanção aguoa e cinza, ou esterco no inverno, e agoa, como dixe, no verão. Fazemse grandes e fermosas as que estão perto das cazas moradas, que parece que a gente lhe faz bem; isto pôde ser por causa da çugidade, e também se querem beni entulhadas. RUANO Gomeçay a dizer os proveitos desta arvore. ORTA A madeira, posto que não he muyto boa, aproveita, por ser alta, para muytas cousas ; e nas ilhas de Maldiva fazem hum navio que, assi elle como a pregadura, e as véllas e cor- doalha, he feyto de palmeira; dos ramos (a que chamamos olla em Malabar) cobrem as casas e navios. Fazem duas ma- neiras de palmeiras, humas pera fruta, e outras pera darem cura, que he vinho mosto; e quando he cozido, chamamlhe orraqua; e estas de çiiva, se as querem para isso, cortam- Ihe huns cabos, e atamlhes alli as vasilhas, donde tiram a çura; e sobem a tirála acima, atadas aos pés humas pé as, ou fazendo algumas falças no arvore; desta çura estilam ao modo de agoa ardente; e deitam hum vinho como agoa ardente; e queimam hum pano molhado nella, como faz agoa ardente; a esta fina chamam fula, que quer dizer frol; e á outra que fica chamam orraqua, mesturando nella estoutra alguma pouca cantidade; e da çura, até que se estile, fazem vinagre, pondoa ao sói porque se azede; e fica, as vezes, muyto forte. E depois que se tira esta vasi- lha da çura, se dá muyta, tiram outra de que fazem açucare, embastecido ao sói ou a fogo, a que chama jagi^a; e o milhor de todos he o das ilhas de Maldiva, e este não he tão preto como o das outras terras. O fruito, quando he novo, tem em si huma casca muito tenra, a qual sabe a alcachofa Do Coqiio 207 molhada no sal, ou sem ellc; tem dentro meolo muito lan- guido c doce, e agoa também muito doce e suave; e com sua doçura não faz fastio; a qual agoa dura muito tempo, e se faz do sutil das cortezas do meolo; de modo que fica o que nós chamamos coqito, e os Malabares teiiga; e dentro nelle alguma agoa, não tam doce como a primeira, porque ás vezes se azeda algum tanto. Este coqiio, quando he verde, chamão os Malabares elcvi, e aqui em Goa lanha; tem este coquo duas cascas grandes ate que cheguem ao meolo; e o meolo, quando he maduro, pera se comer, he bem que se raspe a casca de cima; porque assi o diz Avicena e Sera- piam. A primeira das cascas he muito lanuginosa e desta se faz cairo, que assi he chamado dos Malabares e de nós: delle se faz a cordoalha, emxarçia de todalas nãos; serve muyto nesta terra, porque he mu3'^to gentil cordoálha, por- que nam se apodrece na agoa salgada: e por esta causa he boa esta lã destes cocos de que fazem o cairo; porque todos os navios sam calafetados com elle, de maneira que serve de linho e de estopa e de esparto. E por esta causa he boa mercadoria pera Portugal, senão fizesse tanto volume, esta he a causa porque se gasta tanto delle; porque sem- pre falece, com aver na índia tantas palmeiras, e darem a elrey de parias tanto cairo das ilhas de Maldiva, e certo que no calafetar dos navios acertam muyto; porque incha este cairo metido na agoa salgada. RUANO Boa cousa he esta arvore ; pois tanto dá de si, porque tam- bém diz Laguna que fazem delia tapizes ou esteiras pintadas. ORTA Não teve razão, nem boa enformação diso. E a outra casca serve de vasos pera beber a gente mezquinha; e tam- bém queimada serve de carvão muyto bom pera os ourives. RUANO E nam he bom pera beberem os paralíticos, como diz Se- pulveda? 238 Colóquio dccmo sexto ORTA Sempre ouvi yso dizer sendo moço; mas em doutor de autoridade não o achei yso escripto; por onde creo ser fen- gido, e mais porque nesta terra nam o tem asi. E desta fruita não se louva pera os nervos, senão o oleo que he tam se- parado da corteza, tam fóra de sua naturaleza. RUANO A fruta já a provey muitas vezes. ORTA Todavia vos digo que, quanto he mais novo o que cha- mamos coquoy he a agoa mais saborosa ; e a corteza do meio, porque a derradeira não he ainda formada, que he a que cobre o meolo quando he dura, e depois o coquo sabe a amêndoas verdes; e este comem algumas pessoas com a jagra que acima disse, ou com açucare. E se não fosse a multidão desta fruita seria em mais preço extimada, como he no Balagate. E deste coqiio pisado, e tirado o leite, fazem* (que assi parece) e cozem arroz com elle, e he como arroz de leite de cabras. Fazem comeres das aves e carnes (a que chamam caril); e também secam estes coquos, e, desque elles despedem a casca, ficam secos em pedaços, e chamamlhes copra, e os levam a Ormuz e ao Balagate, e ás terras que tem pouca fruta desta e nam lhe abasta pera se secar, ou onde carecem delia. E fruita saborosa, e usada como cas- tanha sequa da nossa terra; porque sabe melhor que os coquos que levam a Lixboa. RUANO E como se faz o azeite? ORTA Desta mesma copra se faz em alagar; e fazse em muyta cantidade ; e he muyto craro que parece agoa ; alumia muyto » Deve faltar aqui alguma palavra; o sentido é claramente, que do coco pisado fazem uma espécie de leite. Do Coqiio bem-, e gastase muito, por ser muy delgado; comeo a geme da terra com arroz, e dizem ter bom sabor. RUANO Assi diz Avicena e Serapio que he milhor que a man- teiga, e que nam moliíica o estamago como ella. ORTA Duas maneiras ha de azeite; hum he feito de coqiios fres- cos, e o outro da que chamamos copra, que he os coqiios sequos; e este que se faz dos coques frescos he feito pisando o coqiio e deitando-lhe agoa quente; e tiram a corpulência, que no fundo reside, e per cima a espremem, e o oleo nada sobre agoa; e esta he huma mezinha purgativa, que purga lubrificando ou fazendo brando; a muitos a damos qua pera evacuar as tripas e o estômago somente; e purga muyto bem, sem nenhum perigo, nem damno. E muytos a mestu- ram com expresam de tamarinhos; e por esperiencia achei ser muito boa. E se Avicena entende deste olco, que he bom nutrimento, diz verdade; mas nam a diz em dizer que nam molifica o estamago, em dizer que nam he lúbrico ou corrediço. E o outro que se faz da copra he muyto boa mé- zinha pera os nervos; e muyto proveito achamos nelle pera o espasmo, ou dores de junturas antiguas, scilicet, metendo o paciente em huma almadia pequena, mais que de compri- mento de homem, ou em huma gamella grande; e nelle quente deixao dormir e estar o paciente, e milagrosamente aproveita. RUANO Dizem que mata as lombrigas o oleo, e que o coqiio co- mido também as faz sair, e isto dizem Avicena e Serapiam. ORTA Não tenho por esperiencia o olyo matar as lombrigas, nem parece muyto conforme á rezam; e de as o çoquo cau- sar e gerar, he comum openiao dos índios, e vêse cada dia ao olho. 2^0 Colóquio decimo sexto RUANO Alegiia Serapio a Mansarunge (que diz ser o Mesue an- tiguo) que estanca as camarás o coquo. ORTA Não he emconveniente que estanque o ventre comido; c o olyo que relaxe o ventre; porque o oleo he fundado nas partes do ar, e o coquo nas da terra. RUANO Diz Laguna que alguns tiveram o oleo mel*, de que tracta Dioscórides no primeiro livro, seja hum dulcíssimo azeite, que mana desta palma: dizey o que sentis disto. ORTA Digo que esta palmeira não deita ol^^o por outra parte se- nam o que he feito per expresam do coquo, por onde crede que se enguanarao nisso. RUANO Queria saber do coquo que levam a Portugal, que dizem das Maldivas, que he contra a peçonha, se se contem am- bos debaixo de huma mesma especia; porque eu vi em Por- tugal o casco sem medulla alguma, e deziam muytos bens delle; e da medulla, que eu não vi, deziam muyto maiores louvores. ORTA Eu vos responderey a isso ; mas primeiro vos quero dizer de hum saboroso comer desta palmeira, ainda que não he muyto proveitoso; e he o olho da palmeira ou âmago, e fo- lhas ajuntadas as mais delgadas (a que chamamos palmi- tos) e sabe milhor que os nossos palmitos, e algum tanto sabe a castanhas das brancas e muyto tenras, ante que caiam do ouriço; e todavia sabe milhor que isto, o palmito. E porém quem come hum palmito come huma pahiieira, * Ou elceomel (EXatoj^iXiro;), cuja natureza é duvidosa; mas que segu- ramente se não extrahia do coqueiro. Do Coqiio 241 porque loguo sequa; e quanto a palmeira he mais velha, tanto he milhor o palmito (i). E tornando ao coqiio das ilhas Mal- divas, he muyto louvado da gente das mesmas ilhas e dos Malabares, que conversam as ditas ilhas. RUANO E destoutros reis que curais, e da gente das suas terras he estimado este coqiio? ORrA Não, nem ouvi falar lá nelle; por onde lhe não dou tanto credito; e, porque não se oífreceo caso onde curasse com elle alguma pessoa, somente ouvi dizer a mu^^tas pessoas, dinas de fé, ser muyto bom pera a peçonha; e averemse achado muyto bem com elle pera muytas emfermidades, assi como pera cólica, e paralesia, gota coral, e muytas emfermidades de nervos: e á cólica me diziam que aproveitava fazendo sair e arrevesar; ás outras enfermidades me dixeram que preservava delias, bebendo aguoa deitada no mesmo coqiio, deitando nelle hum pouco de miolo, e que andasse nelle muy- tos dias. RUANO Muyto negligente fostes em não o esprementar. ORTA Deixeio de fazer, por não se offreçer caso pera iso; e no da peçonha, que he o principal, não o usey porque ha outras milhores mezinhas, asi como sam pedra be:[ar, triaga, páo da cobra, de que ao diante falarey, páo de Malaca de con- tra erva, esmeraldas, terra segillata; e porque com estas me achei bem, não quis esprementar estoutros. E seyvos di- zer que muytos homens bebem por estes coqiios, e dizem que se achão muyto bem; mas não sey se o faz a emagina- çam: e por esta razam não quis afirmar ser bom nem máo, nem voe direy cousa alguma ser boa, senão sendo testemu- nha de vista ou* pesoas dinas de fé. * Parece que se devem intercalar as palavras: «sabendo-o por«. 242 Colóquio decimo sexlo RUANO Dixeramme que a rainha, nossa senhora, mandava todo- los anos por este coquo, e lho levam de cá; e por tanto não me negueis ser pera a peçonha bóm; porque pôde ser que o esprementem lá alguns bons físicos. ORTA Quando mo elles dixerem crerloey, e afírmáloey; mas agora nam, pois o não vi; e como o vir desdizermeey, e nam averey vergonha disso. RUANO Pois eu o Gj de levar pera Portugal, se o achar, e for lá a salvamento; portanto mostraimo ou dizeime a feiçam delle. ORTA A casca deste coquo he preta, e mais luzidia que a dos ou- tros coquos; he de figura oval, por a maior parte, e não re- donda como a dos outros; o miolo de dentro he muito duro, e he branco, declinando um pouco a amarello, e, no fim do amaguo, com gretas e muyto poroso; nam tem sabor al- gum excesivo; tomam deste miolo até dez grãos de triguo de peso, em vinho ou agoa rosada, segundo a necessidade he. RUANO He da especia deste outro coquo, porque parece não o ser; por quanto os coquos que delia comemos sam muyto maio- res e de outra figura? ORTA Não faz isso ao caso; porque os coquos das ilhas das Mal- divas sam muyto grandes; e eu tive já hum, que cabiam nelle sete quartilhos. E também ha nestas ilhas dos coquos de contra peçonha ou veneno, alguns pequenos e redondos; portanto a vossa razam não conclue. RUANO Pois dizei vosso parecer, e o que sabeis disso. Do Coqiio ORTA A fama comum he, que estas ilhas eram terra firme; e por serem baixas se alagaram, c ficáram alli essas palmeiras; e que de muyto envelhecidas se fizeram tam grandes coqiios e tam duros enterrados na terra, que he agora coberta com o mar. Náo tem folhas nem tronco, por onde se posa com- prender se he da mesma especia ou não; parescem serem de diversas especias os coquos, por terem diversos efeitos e obras: quando souber o contrairo disto, vos escreverei a Portugal o que qua achei nisto, se me Deos der dias de vida; porque espero de o saber bem, quando for ao Mala- bar, Deos querendo. Despois soube que os coquos vem pega- dos dous em hum, como arcos de besta; e despois os despe- gam; e, ás vezes, vem despegados alguns. Deitaos o mar na praia: o coquo não he tam duro como este que vemos, nem tam pouco he tam mole como os coquos das palmeiras, que comemos. RUANO Pois diz hum doutor moderno muytas cousas dos louvo- res da palmeira usual destes coquos; e em todas as mais acerta, senão onde diz que o vinho se fazia da expersam do coquo; isto diguo, segundo vos ouvi; porque me dixestes que da lagrima se fazia cozendoa, ou estilandoa, como fazemos a agoa ardente: dizeime se diz a verdade? ORTA Nisso do vinho erra; e também erra na maneira que diz do fazer do mel, e em algumas outras cousas que não fa- zem ao caso. E concluindo no coquo das ilhas, diguo que tiram o âmago dos coquos, e o põem a secar da maneira que secam os outros de que fazem a copra, e fica tam duro como ve- des; pois a cor já a vedes que parece como queijo de ove- lhas muyto bom; e mais me dixe este Português, que sabe muyto das ilhas, que nunqua pessoa alguma vio o arvore que dá estes coquos, senão que o mar os deita de si ; e que he pena de morte apanhálo alguma pessoa quando o achar na praia, senão leválo a elrey, e isto dá ao coquo das ilhas 244 Colóquio decimo sexto mais autoridade (2). E deixemos isto, e falemos no casto, pois he mais usado na íisica. Nota (1) O zeloso investigador da botânica do Malabar, Rhede van Drakens- tein, dizia, enumerando os auctores que antes d'elle se occuparam do coqueiro: et in primis prce aliis Garcias ab Horto . . . Collocava assim o nosso escriptor na cabeça do rol (Hortus malabaricus, i, tav. 8). Esta palmeira — Cocos nucifera, Linn. — e os seus numerosos pro- ductos são bastante bem conhecidos para que se torne inútil uma nota muito extensa. O coqueiro, extremamente commum ao longo da costa meridional da India^ Canará, Malabar, Coromandel, e nas ilhas próximas, Maldivas, Lacadivas e outras, alarga-se pouco para o interior, para o «sartão», como bem notou o nosso escriptor. E também parece ser verdade que prospera melhor na vizinhança das povoações, das «casas moradas». Os singhalezes dizem, que não pode viver, onde não ouve a voz do homem. Os nomes vulgares, mencionados por Orta, são quasi todos bem co- nhecidos e de /fácil identificação : — «Narel» commum entre «Pérsios e Arábios». Este nome foi e é um dos mais usados em todo o Oriente, nas formas naril, naral, nariyal, nargil, melhor nardjil. Maçudi falia repetidas vezes no coco, J^jLJ!, en-nardjil, dando-lhe também o nome de ^ ! J ! , e^-:^andj. As primeiras formas devem derivar do nome sanskritico d'aquelle fructo. Hl l^cflM, nãrika;la. — «Jausialindi», isto é, el-jan^-el-Hindi, a noj da índia, é uma desi- gnação vulgar na Pérsia, e entre os árabes. — «Tenga», ou tanghã, ou taynga ou tenna são os nomes vulgares do fructo nas linguas do sul, como o tamil e o maláyalam, sendo a ar- vore chamada tenga-maram, ou tenna-maram. — «Nihor», o nome malayo do coco, vem citado por Ainslie na forma 7iyor, e por Crawfurd na fórma nur. De resto, em muitas localidades, o fructo tem nomes diversos segundo o seu estado de desenvolvimento; assim em Goa, o coco verde cha- ma-se coco lanho, ou lanha, como Orta diz (Cf. Dymock, Mat. med., 800; Ainslie, Mat. ind., i, 78; Piddington, Index, 22; Crawfurd, Dict. of the Indian Islands, 114; Maçudi, Prairies, i, 338; e para a compli- v:ada nomenclatura do coco e coqueiro nas terras de Goa, Lopes Men- des, A índia port., i, 172 etc; e Costa, Manual do agricultor indiano, no i.° voL). Do Coqiio 246 Os usos das diversas partes do coqueiro como materiaes de construc- ção, a que se refere o nosso escriptor, são bem conhecidos na índia : o da madeira em vigamentos e postes; o das folhas ou ola («ramos» de Orta) em tectos e coberturas; e o do cairo, extrahido do invólucro fibroso do fructo, em cordas, calafetagens, etc. O cairo, que ainda hoje se exporta em quantidades consideráveis para a Europa, onde é em- pregado no fabrico de diversos objectos, era então principalmente apreciado como matéria prima dos cabos, usados na navegação — fa- zia «muito gentil cordoalha» como diz o nosso auctor. João de Barros também louva os cabos de cairo em umas phrases graciosamente por- tuguezas. As causas de as amarras de cairo serem as melhores e mais duradouras, diz elle : «he porque enverdece com a agua salgada; e faz-se tão correento nélla, que parece feito de coiro, encolhendo e estendendo á vontade do mar: de maneira, que hum cabra d'estes bem grosso, quando a náo com a fúria da tempestade, estando sobre ancora, porta muito per elle, fica tão delgado, que parece não poder salvar hum barco; e no outro saluço, que a náo faz arfando, torna a ficar em sua grossura.» (Cf. Barros, Asia, iii, ui, 7; Drury, Useful plants of índia, 146.) Com o cairo calafetavam também e cosiam os barcos; e estes barcos cosidos e não pregados eram uma das curiosidades dos mares orientaes, da qual fallaram todos os viajantes, desde o auctor do Périplo, até Marco Polo, Monte Corvino, e aquelle excellente fr. Jordão, que ex- plica muito bem o caso em muito mau latim : et de cortice istius fructus (Nuces de índia) fiunt corda; cum quibus suuntur navigii in partibus illis. As mais celebradas d'estas embarcações eram as construidas nas Mal- > divas, a terra clássica dos coqueiros e do cairo, onde — como diz Orta — barco, pregadura, vellas, cordoalha, tudo era feito d'aquella palmeira. Chamavam-lhes gundras, segundo diz Gaspar Corrêa, que dá a seu res- peito uma noticia interessante: «... gundras, que são huns barcos das Ilhas de Maldiva, onde se faz o fio de cairo de que se fazem as amarras e enxárcias de toda a navegação da índia, afora outro muito serviço da terra. Gundras são feitas da madeira das palmeiras juntas e pegadas com tornos de páo, sem nenhum prego, e as vélas são esteiras feitas de folha secca das pal- meiras.» (Cf. Gaspar Corrêa, Lendas, i, 841; Mirabilia, em Recuei! de Voya- ges, publié par la Soe. de Géogr., iv, 48, Paris, 1839; Yule, Marco Polo, i, 1 1 1 e 1 19.) Das substancias alimentares fornecidas pelo coqueiro dá Orta uma enumeração muito completa, fallando do palmito, que é o «olho ou âmago da palmeira»; da agua e do miolo do coco, que é «muito lan- guido e doce»; do azeite, feito do miolo fresco, ou do miolo secco, chamado copra. Enumera também detidamente todos os productos da 246 Colóquio decimo sexto palmeira lavrada á sitra, isto é, para fornecer a seiva: o liquido fer- mentado ou swa; os espíritos distillados da sura, o mais fino chamado fula ou flor, o mais ordinário chamado orraca; o vinagre; e final- mente o assucar, ou jagra. Tudo isto são productos muito conheci- dos, e que não carecem de explicação (Cf. Drury, 1. c ; Lopes Men- des, 1. c; Costa, 1. c). Nas propriedades medicinaes do oleo, Orta distingue o oleo dos co- cos frescos do oleo de copra, louvando muito o primeiro como uma excellente ^mézinha purgativa», que elle receitava varias vezes. Não propriamente o oleo, mas o sueco espremido da amêndoa pisada ou raspada — o que se apqroxima da preparação indicada — tem sido reco- mendado como fortificante, aperiente, e em certos casos activamente purgativo. Quanto ao oleo de copra, que era bom para «dores de jun- turas antigas», podemos notar que ainda o applicam no Concan do mesmo modo, em contusões e infiammações rheumaticas (Cf. Phar- inacopana of índia, 247; Dymock, Mat. med., 800). A cultura dos coqueiros^ nas terras portuguezas da índia era impor- tante já nos tempos de Orta. Folheando o tão interessante e tão valioso livro de Simão Botelho, vemos que o coqueiro dava logar a uma explo- ração activa, da qual, pelo systema das arrematações ou exclusivos, re- sultavam algumas rendas para o estado. Em Goa as orracas andavam arrendadas; e Simão Botelho explica que erão de tres sortes: «cura que he asy como se tira, orraqua que he cura cosida húa vez, xaráo^ que he cosida duas vezes e he mais forte do que a orraqua, por ser confeytada.» Pelas condições do arrendamento só podia vender orraca o ren- deiro, ou quem com elle se concertasse; e este pagava ao estado pelo exclusivo uma quantia, que variava de 3 :20o a 3 :60o pardáus annuaes proximamente. Nas pequenas ilhas de Divar e outras, próximas da de Goa, também as «buticas de orraqua e çura», isto é, as tavernas, entra- vam. n'um arrendamento. Igualmente estava arrendado o exclusivo da venda em quasi todas as aldeias das terras de Baçaim; e ahi encontra- mos uma espécie de imposto industrial: «as pessoas que tem foguÕes em suas casas pera fazerem çura preta, paguão por cada ffoguão catorze fedeas por ano». Estes fogões devião ser apparelhos grosseiros de distillação, similhan- tes ou mesmo idênticos ao que ainda se emprega na índia, e chamão ' E subsidiarimente de outras palmeiras; o Borassus, por exemplo, fornecia suras t or- racas análogas ás do Cocos. ' A palavra xaráo vinha sem duvida do arábico scharáb, que significou primitivamente qualquer bebida ; e da mesma palavra arábica procederam na península, o Iiespanhol xarave, e o portuguez xarope. Orraca era o arábico arak, propriamente transpiração, e d'ahi a exsuda- çâo ou seiva de palmeira. Çura ou sura é o sanskritico Sura, com a mesma accepçáo. Do Coqiio 247 ali :fontró. Também se cobravam direitos dos bandarys (Bhandãri em marathi), os membros de uma casta especial, que se empregava no cul- tivo e exploração dos palmares; e a este tributo ou imposto pessoal dava-se o nome de direito de bandrastal. Finalmente, os moinhos de azeite, em que se moía gergelim e outras substancias, mas principal- mente tneolo de coco, também andavam arrendados, ou pagavam im- postos especiaes. De tudo isto resulta, que os palmares constituíam uma das princi- cipaes riquezas da população rural, e ao mesmo tempo uma impor- tante matéria collectavel (Cf. Tombo do estado da índia, nos Subsidias de Felner; Lopes Mendes, índia port., i, 189; Gerson da Cunha, Words and places in and aboiíí Bombay, no Ind. ant., vol. ni, 294). Reservámos para ultimo logar o exame de uma questão secundaria, mas curiosa — a origem da palavra coco, coquo, ou quoquo, que de todos os modos se encontra escripta. Orta diz, que por o fructo ter aquelles tres buracos, os portuguezes lhe pozeram o nome de «coquo porque parece rosto de bugio ou de ou- tro animal». Linschoten dá a mesma noticia, ou que a encontrasse no livro de Orta, ou que a ouvisse em Goa. Barros escreve: «os nossos lhe chamaram coco, nome imposto pelas mulheres a qualquer cousa com que querem fazer medo ás creanças, o qual nome assi lhe ficou, que ninguém lhe sabe outro, sendo o seu próprio, como lhe os Ma- labares chamam, Tenga, e os Canariis, Narle». Do livro clássico de Barros passou esta derivação para os Lexicons da lingua, para o Vo- cabulário do padre D. Raphael Bluteau, e para alguns diccionarios mo- dernos, como o de Moraes. Paliando dos coqueiros da America, Oviedo diz também (cito pela versão de Ramusio) : «chamam aquelle fructo coco, porque se parece com a figura de um bugio» (gatto maimone na versão italiana). E o mesmo repetem os diccionarios hespanhoes, o famoso Thesoro de la lenscua Castellana de D. Sebastian Covarrubias, e o Diccionario de la Real Academia Espannla, onde se citam vários exemplos da applicação da palavra coco, no sentido de figura espantosa y fèa. Paliando dos coqueiros da Africa, o portuguez Duarte Lopes — na re- lação de Pigafetta — diz : que ha diversas palmeiras no reino do Congo, e entre ellas a noz da índia, chamada Coccos, porque dentro do fructo ha uma cabeça parecida com a de um bugio fdette Coccos, perche hanno dentro una testa che somiglia ad una Simia); e explica que na Hespanha existe o costume, quando querem assustar as creanças, de dizer a pala- vra Coccola. De todas estas citações — e omitto varias — se vS, que entre portu- guezes e hespanhoes houve unanimidade em adoptar para a palavra coco a mesma etymologia que dá o nosso auctor; e no emtanto, quando a queremos estudar de perto, suscitam-se algumas difficuldades. 248 Colóquio decimo sexto Comecemos por examinar outras origens possiveis. Diz-nos Yule (no Glossary), que C. W. Goodwin encontrou no antigo egypcio uma palavra, kuku, designando o fructo de uma palmeira elevada, o qual continha agua no interior. E recorda também que Theophrasto dá o nome de xjy.aí a uma palmeira da Ethiopia, a qual Sprengel quiz iden- tificar com o Cocos^. A coincidência de nomes é notável, mas não deve passar de uma coincidência. Como bem adverte Yule, é custoso admittir que um nome desapparecesse durante longos séculos, sem deixar vestígio da sua existência, para reapparecer subitamente na bôca dos portuguezes no fim do xv. Alem do que, é extremamente dif- ficil saber o que fosse o kuku. Rumphius teve noticia da etymologia corrente entre portuguezes, mas não está disposto a acceital-a, e julga encontrar outra melhor. Diz elle, que os árabes chamaram aquelle fructo gau^o^-Indi, isto é, nof da índia, e os turcos cock-Indi, com a mesma significação. Este nome de cock passaria — na sua opinião — para os mouros africanos (em hol- landez Africaansche mooren, que Burmanno traduziu mal para. yEthiopes africani), e d'estes para os hespanhoes e portuguezes, sendo a origem da palavra coquo. Francamente, é diflficil imaginar como um nome turco se podesse generalisar no norte da Africa, onde não ha coqueiros, até che- gar aos povos da península ; e demais não temos outra noticia do tal nome turco, não sendo possível saber onde Rumphius o foi desencantar. O sábio geographo Ritter suppoz, que este nome fosse uma designa- ção usada pelos habitantes das ilhas dos Ladrones, adoptada e genera- lisada depois pelos companheiros de Magalhães; mas isto é clara- mente um erro, pois nós vamos ver a palavra coco, empregada pelos portuguezes alguns annos antes da viagem de Magalhães. Postas de lado estas etymologias, vejamos que valor pôde ter a de Orta, Barros e outros. Em primeiro logar será necessário demonstrar, que o nome de coco não foi usado antes das viagens portuguezas e hespanholas. Isto, quanto eu pude averiguar, parece ser assim. Um dos primeiros viajantes do Oc- cidente ás terras orientaes, Cosmas (545 J. C), chama aquelle fructo ápi'£XXia, por vap^eWaa, O que é uma simples hellenisaçáo do sanskritico narikela, ou do persiano nargil, como já advertiram Gildemeister e Yule. Séculos depois, o celebre Marco Polo, e pelo mesmo tempo fr. João de Monte Corvino (i292),dão-lhe o nome de no^ da índia, que era a traduc- ção do nome arábico, quadrava bem á fórma e aspecto do fructo, e foi de todos o mais usado pelos viajantes. Fr. Jordão (i328) conhece o nome ' Os caracteres attribuidos por Theophrasto á xÚhixí de modo algum concordam com o coqueiro, pois diz que não tem um só tronco, mas muitos (Cf. Hist. Piauí. 11, 6, p. 29, ed. WimmerJ. Do Coqiio 249 oriental, e liga-o ao nome mais vulgar: arbor quwdam quce Nargil voca- tur . . . hi fructus sunt quos nos vocamus Nuces de índia. O mesmo faz poucos annos depois fr. João de Marignolli, o qual latinisa completa- mente a palavra Nargil, e chega mesmo a declinal-a, fallando das fibras ttargillorum. Nicolo di Conti (1444) escreve como todos os anteriores nu- ces indicce; e Jeronymo di S.'» Stephano, escrevendo mesmo á chegada dos portuguezes ( 1499), continua a usar da expressão nocid'India. Em re- sumo, vemos que nenhum viajante da idade media emprega a palavra cocOf nem outra qualquer parecida com esta no som ou na forma ; e vemos que os nomes orientaes^ jau j-el-Hindi, nargil, tenga, nyor, não têem a mais leve similhança com coco. Julgo pois, que a adopção no Oriente da pala- vra coco ou coquo para o fructo, e naturalmente coqueiro para a arvore, é puramente portugueza, qualquer que seja a origem da palavra. Vejamos agora o que dizem os primeiros portuguezes que viram os coqueiros. Estes devem ter sido Vasco da Gama e os seus companhei- ros ^ Ao chegar a Moçambique, escreve o auctor do Roteiro o seguinte : «As palmeiras desta terra dam huum frutu tam grande como mel- lões, e o miolo de dentro é o que comem, e sabe como junca avella- nada.» Esta phrase é de uma significação claríssima. Os viajantes encontram uma arvore que reconhecem ser uma palmeira, e isto era fácil estando familiarisados com a palmeira das tâmaras e outras da Africa; mas re- conhecem ser uma palmeira nova para elles. Notam as dimensões des- usadas do seu fructo, o gosto do miolo, e não lhe dão nome. Eviden- temente não o sabiam. Seguem d'ali na sua derrota bem conhecida, vão a Calicut, sáem de lá, e na costa da índia, junto á ilha de Anche- diva, tomam uma nau de mouros. Dentro da nau, diz o auctor do Ro- teiro, havia: «mantimentos e armas, e o mantimento era coquos, e quatro talhas de huuns queijos d'açuquar de palma.» Esta phrase — ao contrario da primeira — é de difificilima explicação. O nome de coquo vem aqui com toda a naturalidade, como uma pala- vra conhecidíssima, de uso corrente. Não me parece natural, que a gente da armada, na curta demora em Melinde e Calicut, se habituasse a ver o fructo, notasse que elle se parecia com o rosto de um bugio, se lembrasse dos cocos com que as mulheres em Portugal mettiam medo ás creanças, e começasse a dar-lhe correntemente aquelle nome. Ha evidentemente aqui uma difficuldade. ' Segundo as opiniões mais seguidas e seguras, o coqueiro náo existia entSo na costa de Guiné, onde nos annos seguintes foi introduzido pelos portuguezes; e a phrase áo Roteiro citada nas linhas seguintes, é favorável a este modo de ver, pois se ali existisse, de certo ha- veria nas guarnições quem o conhecesse. Na costa oriental também náo era espontâneo, mas havia sido introduzido pelos árabes muito antes de ali chegarem os portuguezes. 25o Colóquio decimo sexto Alem d'isso, a palavra coco, no sentido de figura espantosa y fêa, de papão de creanças, só se encontra empregada por escriptores hespa- nhoes e portuguezes muito posteriores, como Quevedo, Hurtado de Mendoza, fr. Luiz de Sousa, ou fr. Amador Arrais; e não achei noticia de que tivesse aquella significação na península, no xv século. Ha na verdade, a velha palavra hespanhola coca, d'onde cocote, que significava cabeça — segundo o Dicc. de la Real Academia Espafiola — , e esta pôde em rigor ser a origem da designação dada mais tarde ao fructo. A etymologia de Orta tem, pois, a seu favor, por um lado a opinião unanime dos escriptores portuguezes e hespanhoes, alguns dos quaes, como Barros e Oviedo, escreviam pouco depois da sua adopção; e por outro o facto de que o emprego do nome data das viagens dos nossos. E certo todavia, que apesar d'isso levanta um certo numero de duvi- das. Afora esta etymologia corrente, haveria ainda uma mais ou menos ac- ceitavel. Seria a derivação do latim cocciis, grego xoV/.oç, palavra que pro- priamente se applica a uma cousa distincta, mas se poderia tomar no sen- tido de grão ou noz de maiores ou qienores dimensões i; mas também não parece natural, que os rudes companheiros de Vasco da Gama se lembrassem d'esta clássica origem. E forçoso confessar, que a questão permanece muito obscura; e não é fácil encontrar uma solução de todo o ponto satisfactoria. Nota (2) Vários escriptores nossos faliam d'este coco das Maldivas, ou coco do mar, tendo-o sempre por uma producção marinha. Camões diz o seguinte : Nas ilhas de Maldiva nasce a planta, No profundo das aguas soberana. Cujo pomo contra o veneno urgente E tido por antídoto excellente. João de Barros dá-lhe a mesma origem : «em algumas partes debaixo da agua salgada nasce outro género delias (arvores), as quaes dão hum pomo maior do que o coco». E muitos annos depois, Rumphius, que era um naturalista perito e investigador, insiste na mesma idéa: hujus miri miraciilí natura^ quod princeps est omnium marinarum rerum . . . ' N'este caso o nome tomaria dois c c; e os botânicos, numerosos no principio do nosso século, que escreveram Coccos nuci/era, lembraram se evidentemente d'esta origem. Do Coqiío 25l Reprehende mesmo Garcia da Orta, por este não acceitar francamente a origem submarina d'aquclle fructo (Cf. Lusíadas, x, i36; Barros, Asia, 111, ui, 7; Rumphius, Herb. Amb., vi, 210 a 217). O íructo não nascia, porém, debaixo da agua, pertencia a uma grande palmeira, Lodoicea Seychellarum, de habitação muitissimo restricta, pois se encontra espontânea apenas na ilha Praslin, e mais algumas do pequeno archipelago das Seychelles (Cf. Hooker, Botanical magazine, tab. 2734). As Seychelles, ficando fora do caminho habitual da navegação pelo canal de Moçambique, permaneceram muito tempo desconhecidas ou mal conhecidas. Os portuguezes tiveram, no emtanto, noticia d'aquellas ilhas, a que chamaram as Sete irmãs, ou os Sete irmãos, assim como dos recifes madreporicos, que lhes demoram a sueste, e ainda conservam nas cartas o nome portuguez de Saia de malha^. Mas as ilhas ficaram desha- bitadas, e raro visitadas até ao meado do século passado. Era, portanto, desconhecida a Lodoicea Seychellarum ; mas não succedia o mesmo aos seus fructos. Estes, caindo no mar, fluctuavam á mercê das correntes e dos ventos; e, impellidos por essas correntes, ajudadas em parte do anno pela monsão de S. W., eram levados principalmente na direcção das Maldivas, em cujas praias se encontravam com certa frequência — d'ahi o nome de coco das Maldivas. Outros, porém, passavam mais ao sul, e não raro — segundo Rumphius — iam dar as praias meridionaes de Sumatra, Java, e outras ilhas d'aquella corda vulcânica, que se es- tende até Timor. Das grandes dimensões e forma singular d'estes cocos, e do facto correctamente apontado por Orta, e verdadeiro no seu tempo : «que nunqua pessoa alguma vio a arvore que dá estes coquos, senão que o mar os deita de si», se originaram naturalmente todas as lendas relativas á sua origem marinha. Os malayos, que lhes chamavam calapa laut, ou boa pausengi, diziam: que, nos grandes abysmos do mar do sul, laut kidol, se encontrava uma única arvore, o pausengi, a qual dava estes cocos, e cuja copa emergia fóra das aguas. N'essa copa fazia o seu ninho o Geruda, aquella enorme ave, que arrebatava nas garras elephantes, rhinoccrontes, e outros gran- des animaes ; e quando alguns barcos para ali se dirigiam, nunca mais po- diam sair do abysmo, onde as guarnições eram fatalmente devoradas pe- los Gerudas. Vemos assim aquella grande extensão dos mares do sul povoada de lendas assustadoras, tal qual o Atlântico ou Mar tenebroso da idade media. Rumphius, que escrevia em Amboyna, e já conhecia a ' Nas cartas ainda inéditas de Vaz Dourado CiSyi) estão marcadas numerosas ilhas a nordeste de Madagáscar: as do Almirante, de Mascarenhas, do Corpo Santo, os Sete Ir- mãos, os Tres Irmãos, etc. ; parecendo que a maior dos Sete Irniáos deve corresponder á ilha de Mahé das Seychelles. Tive occasião de consultar o exemplar que se encontra no Ar- chivo da Torre do Tombo, assim como o que hoje pertence á livraria particular de el-rei. 202 Colóquio decimo sexto Austrália, diz, que tal abysmo não existe no mar, mas que no emtanto as plantas podiam talvez ser submarinas; e, em face de outras difficul- dades, resigna-se a não profundar muito a questão : Relinquamus ita- que incertam istam arborem in matris naturce abscondito grémio . . . Francisco Pyrard de Lavai, que naufragou nas Maldivas, e ali per- maneceu muito tempo (uns quarenta annos depois de Orta), dá a mesma noticia que este. Diz que os naturaes chamavam ao coco Taitarcarrc, e acrescenta . . . «e julgam que é produzido por algumas arvores, que ha no fundo do mar». Mas em outra passagem dá uma indicação mais che- gada á verdade, a qual se pôde talvez referir a algum vago conheci- mento das Seychelles, que possuissem os navegadores das Maldivas. A passagem é interessante, e merece ser citada um pouco mais larga- mente ; diz assim : «Algum tempo depois, el-rei (o das Maldivas) enviou por duas vezes um piloto mui experimentado ao descobrimento de certa ilha chamada Polluoys, que para elles é ainda quasi incógnita, e só dizem que anti- gamente uma sua barca ahi aportou casualmente, como em suas histo- rias se contém, mas foram forçados a sair d'ella por causa dos grandes tormentos, que lhe fizeram os diabos ... a ilha é fértil em toda a sorte de fructos, e são mesmo de opinião que aquelles grandes côcos medi- cinaes, que tão caros são, se dão n'aquella ilha; posto que alguns pen- sem que vem do fundo do mar.» E bem possivel, que esta vaga tradição tivesse por fundamento uma viagem ás Seychelles, viagem que se não repetiu, porque — como diz Pyrard — quando buscavam a ilha «de propósito ainda a não tem po- dido achar; e quando a ella tem aportado é por acaso». A parte esta curta e vaga noticia, todos tinham o coco por uma producção do mar, não só no tempo de Orta, mas mesmo muitos an- nos depois (Cf. Viagens de Pyrard de Lavai, i, 192 e 248; Rumphius, I.C.). Sobre os effeitos do «antidoto excellente» é o nosso medico eviden- temente muito sceptico; faz notar com rasão, que as lendas e myste- rios davam «ao coquo das ilhas mais auctoridade» ; diz que as curas se podiam talvez attribuir á «emaginação» ; e termina com um certo des- prezo: «e deixemos isto e fallemos no cosio, pois hé mais usado na fí- sica». Rumphius, que acreditava piamente nos effeitos do coco, não lhe perdoa a sua indifferença: Garpam porro miror, ipsurn harum nucum non majorem habuisse experientiam. É que de feito o coco era então muito procurado e muito louvado; e o mesmo Rumphius conta que um almirante hollandez, Wolferio Hermano — o que no anno de 1602 com- mandou uma acção nos mares de Bantam contra a esquadra portugueza de André Furtado de Mendonça — possuia um d'estes cocos, pelo qual o imperador Rodolpho II oífereceu quatro mil florins. Aquelle coco era então o único que existia na Hollanda. Em Portugal eram mais frequen- Do Coquo 253 tes. Clusius viu em Lisboa (i563) mais de um; e encontrou também o miolo secco á venda, mas por um alto preço : Vidimus ciim Ulysipone, tiim aliis locis, vascula ex hoc Cocco de Maldiva confecta, oblongiora plerum- que iis quce ex vulgari cocco parantur, magisqtie nigra et nítida. Qui- nimo ipsam medullam nucis siccatam Ulysipone venalem reperire licet, cujus facultates mirifice extollunt . . . ob quam causam ingens ejus pre- tium. Mais notável do que todos estes vasos, era um, que foi tomado pelos inglezes em uma não, aprezada no anno de 1592, do qual o seu amigo Jacobus Garetus (James Garet) lhe mandou o desenho, e que vem figurado no Exoíicorum. Está montado em prata, de trabalho evi- dentemente oriental, e representa uma ave, tendo as garras fortes, e a cabeça de dragão com grandes dentes á mostra. Será uma representa- ção do Geruda, e resultaria na imaginação do artista que o cinzelou d'aquella lenda, que ligava o Geruda ao boa pausengi? (Cf. Rumphius, 1. c. ; Exoticorum, 192 ; Flora dos Lusíadas, 86 ; Yule e Burnell, Glossary, palavra Coco de mer). COLÓQUIO DECIMO SÉTIMO DO GOSTO E DA COLÉRICA PASSIO INTERLOCUTORES RUANO, ORTA, SERVA, PAGEM, DOM GERONIMO E PACIENTE RUANO Muyto estimado foy o costo antigoamente, e aguora também tem seu louvor;, portanto reçeberey grande mercê em me abrirdes o caminho da verdade em esta mézinlia, não tendo afeiçam nem odio a algumas pesoas de qualquer calidade que sejam. ORTA Eu não tenho odio senão aos errores; nem tenho amor senão á verdade; e com este preposito vos diguo, que eu pera mim nam tenho duvida alguma em esta mezinha. RUANO Pois todos a temos; porque Galeno com todos os Gregos, e Plinio com todos os Latinos antiguos, e todos os Arábios* põem muytas maneiras do coslo; e ainda que os boticairos me dizem que o ha em Espanha, e os Italianos em suas terras, e asi todas as nações, mas que não vem a nós senão esta indica, c que das outras, se carecemos, he per descuido e avaricia. ORTA Eu pera mim tenho não aver outra; e desta vos direy os nomes, e a feiçam, e o uso pera que se usa. * Galenus, lib. 7, Simplicium; Plinius, lib. 12, cap. 12; Avicena, lib. 2, cap. i65 (nota do auctor). 256 Colóquio deci?720 sétimo RUANO Dizei, com protestação de vir com meu contraponto, quando fôr necessário. ORTA Diguo que costo em arábio se chama cost ou cast; e em guzarate se chama uplot; e em malaio, pera onde he grande mercadoria e se guasta muyto, se chama pucho; disevos o nome em arábio porque por este he chamado dos Latinos e Gregos ; e o do Guzarate porque he a terra mais chegada onde naçe; e disevos o nome malayo, porque a maior can- tidade se gasta pera lá, scilicet, pera levar á China (i). RUANO E não nace o costo indico no Guzarate? ORTA Nace na terra sogeita muitas vezes ao Guzarate, scilicet, confins entre Bengala e o Dely e Cambaya, isto he, terra do Mandou e Chitor; e day vem muytas carretas carregadas d'este iiploí e de espiqiie e de tincar, e de outras muytas mer- cadorias, as quaes vem ter á cidade principal do reino, dita Amadabar, que está no sertam, e também vem ter á cidade de Cambayete (cotovello do mar da enseada); e dali se provê a mór parte da Asia das nomeadas mercadorias, e toda a Europa, e alguma parte da Africa (2). RUANO Como se podem criar tantos arvores, pois a raiz he o costo que gastamos? ORTA o mais pouco he raiz; porquanto todo o mais he o páo, nam vai mays o páo que a raiz; o arvore em que nasce o comparam alguns que o viram ao sabugo; tem flores e cheira bem; e a feiçam delle he ser branco per dentro, e a casca parda; e algum delle tem a cor de buxo e a casca amarella. Onde está, dá grande fragancia e cheiro, que a alguns se lhe mette poUos narizes, e lhes faz dor de cabeça Do Costo com sua fortidam; o sabor delle não he amarguo, nem tam pouco doce-, posto que alguma cousa amargua, quando he velho; porque, quando he novo, tem o sabor agudo como as outras especiarias-, desfaz-se muito em pó, e cheira mais pouquo, e amargua; e esta he a verdade. Deste guastam em muitas mezinhas os físicos Indianos; este levao a Ormuz os mercadores; donde se provê todo o Coraçone e a Pérsia. Também dahi se leva a Adem, donde se provê a Arábia e Turquia, e nam he mu3^to ser este costo falsificado lá, se- gundo levam pouca cantidade a Portugal; por onde he de crer que, ou he falso o que usam nas partes distantes de Portugal, ou põem outra cousa por elle. RUANO Serapio lhe chama chosí*. ORTA Está a letra corruta, e em alguns livros se acha escrito cast e costiís; e os Arábios, com que faley, huns lhes cha- mam cast, outros costo, e outros costi; e nisto nam tenhaes duvida. RUANO Todos põem tres especias; scilicet, arábio, este dizem ser branco e leve e aromático; outro dizem ser indico, negro e leve e amarguo; e outro dizem que he da terra da Siria, de cor de páo de buxo; o cheiro he estitico. Também** costo doce e costo amarguo; posto que eu não vi costo doce, nam pode deixar de o aver, pois doutores de tanta autoridade escrevem delle. ORTA Perguntei a muytos mercadores da Arábia e Pérsia e da Turquia, que me dixesem onde se gastava este costo que vay da índia, amostrandolho com a mão, elles responderam * Serapio, cap. 3i8 (nota do auctor). ** Deve faltar aqui a palavra «dizem», ou outra semelhante. 17 258 Colóquio decimo sétimo todos que na Turquia se gastava a mór parte, e na Suria; e os Arábios c Pérsios me dixeram que também o levavam pera sua terra por mercadoria em que se ganhava dinheiro. Pergunteilhe, se avia outro algum em sua terra, todos me dixeram que nam. Perguntei aos físicos do Nizamaluco, e dixeramme que nunqua viram outro costo, senam este da índia; e destes físicos hum delles foy físico do Xatamaz*, e andou muyto tempo curando no Cairo e em Costantinopla; pois todos estes rezam tinham de conhecer o costo. RUANO E o que dizeis do costo doce e amargoso? ORTA Bem sabeis que as cousas, quando se vam podreçendo, que amargam muyto; e a cor, que no principio era branca, se faz, quando se corrompe, preta; e no meio deste tempo se faz amarela; e porque este costo vem ter de longes terras a nós, ha muyto pouquo delle que não este começado a corromper. E o que já se vay corrompendo e não he branco, chamão-lhe amargo, e ao outro, que está bom, doce. E porque os mercadores, que este costo levam a vender, eram de diversas partes, tomaram ocasiam de dizer, que hum avia na Arábia e outro na índia e outro na Siria, vindo todo este da índia, e tendo lá seu nacimento. RUANO Laguna, escritor deligente, diz que sam dinos de reprensam os boticairos que, por avaricia ou pouco cuidado, nam trasem o costo de Veneza, donde vem da Alexandria, e gastam em seu logar huma mezinha, que nam se paresçe mais com o costo, que o marmelo com abobra; e outros usam de rai- zes de menta romana, a que chamam costo falso; e muytos herbolarios vi em Espanha que me dixerão avelo lá visto; * Isto é, de Thamasp scháh, o successor de Ismael. Do Costo e hum me mostrou huma frutice de altura de cinquo palmos, e indo lendo pelo livro, achávamos que lhe convinhão os sinaes escritos no livro. ORTA Digo que Laguna diz bem, se levarem o costo de Veneza, que haja vindo da índia, nam falsificado nem podre; e pera mais seguridade e certeza seria milhor que o levassem de Lixboa, onde vai melhor e mais fielmente feito; porque eu o mandei a elrei em cantidade, o anno que fiz as drogas; e se vay pouco de qua, he porque nam tem lá requesta, nem o pedem tanto. E ao que dizeis do herbolario, que em Es- panha vos mostrou a frutice do costo, nem vós, nem o her- bolario, nem o autor do livro, vistes em algum tempo o ar- vore do costo; e por isso vos enganáveis todos; porque, com perdão de todos, hum cego, que era o Pandetario*, guiava ao herbolario e a vós: isto vos digo, porque o arvore do costo he tamanho como hum azimbro ou medronheiro gran- de, ou sabugueiro. E a frutice, como tinha o páo? era mole, ou delgado ou groso; despedia bem a casca ou não? RUANO Mole, e despedia bem a casca. • ORTA Pois estoutro he contrairo, que he páo duro, e não tem casca separada (3). RUANO Nam se podia perder este çosío doce pollos muytos tem- pos e distancia dos lugares? ORTA Não: porque as terras são agora mais descubertas e mais sabidas; senam que agora se descobrem mais os erros pa- * Mattheus Sylvaticus, o auctor do Liber pandectarum, já citado an- tes no Colóquio do aloés. Colóquio decimo sétimo sados, e enganos de gente, que, por venderem milhor suas mercadorias, pÔem nomes diversos, e dizem ser de longes terras. E abastenos, pera não aver outro costo senão este, que os Chins, gente tam descreta e tam sabida, usam desta mézinha e a gastam tanto. RUANO Aleguaes com gente muyto barbara e fera, pois sam os Seitas Asianos? ORTA Sam os Chins homens muy sutis em comprar e vender, e em officios macanicos; e em letras não dam vantagem a íilguns outros, porque tem leis escritas, conformes ao direito comum, e outras muito justas; como se pode ver bem por hum livro que ha delias nesta índia-, e huma destas leis, que me dixerão, he, que não pode o homem casar com molher que conheceo, sendo casada com outro marido*, quanto mais que os homens que vão á China veem lá praticar muyta jus- tiça e usar delia; damse lá gráos e muytas onrras aos letra- dos, e elles sam os que governão o rei e a terra. Nas pin- turas que fazem vem pintadas cátedras, e homens que estão lendo, e ouvintes que estão ouvindo ; quanto mais que, pera vos convencer seu gram saber, abasta que a arte de emprimir sempre foy lá usada, e nam ha em memoria de homens, ácerca delles, quem a enventou. RUANO Isso he verdade, porque quem enventou esta arte foy em Ungria, ou nessas partes mais setentrionaes, as quaes dizem que confinam com a China (4). ^ SERVA Um moço está alli, que traz um recado. ORTA Venha. • Do Costo 261 PAGEM Dom Geronimo lhe manda pedir que queira hir visitar seu irmão, e ha de ser logo, ainda que nam sejam oras de visita- ção, por ser perigo na tardança ; e que lhe fará muyta mercê em o fazer. ORTA Que doença he, e quanto ha que está doente? PAGEM He morxi, e ha duas horas que adoeçeo. ORTA Eu vou após vós. RUANO He esta enfermidade a que mata muyto asinha, e que pou- cos escapam delia? Dizeime como se chama ácerqua de nós, e delles, e os signaes, e a cura que nella usaes. ORTA Acerqua de nós he colérica passio; e os Indianos lhe cha- mão morxi; e nós corruptamente lhe chamamos mordexi; e os Arábios lhe chamao hachai:{a, posto que currupta- mente se lea em Rasis saida. Cá he mais aguda que em nossas terras, porque comummente mata em vinte e quatro oras; e eu já vi pessoa que não durou mais que dez oras, e os que mais duram sam quatro dias; e, porque não ha regra sem exçeisam, vi um homem com muyta costancia de vertude, que viveo vinte dias, sempre arrevesando colora curginosa*, e emfim morreo. Vamos ver este enfermo; e por os signaes vereis vós, como testemunha de vista, que cousa he. RUANO Vamos. * A significação d'esta palavra é para mim muito duvidosa, e é pos- sível que esteja alterada por algum erro typographico. 262 Colóquio decimo sétimo ORTA O pulso tem muyto sumerso, que poucas vezes se sente; muyto frio, com algum suor também frio; queixase de grande incêndio e calmosa sede; os olhos sam muyto sumidos; nam podem dormir; arrevesam, e saem muyto, até que a vertude he tam fraca que nam pôde expelir cousa alguma; tem caimbra nas pernas. Subi, após mim, que eu vos ensinarei o caminho. Muyta saúde dê Deos em esta casa. Quanto ha que este mal veio? ENFERMO Pôde haver duas oras que me tomou este sair e revesar, com grande agastamento; não arreveso senão agoa, sem ne- nhum amargoso, nem azedo sabor. ORTA Tivestes alguma caimbra nas pernas? ENFERMO Per tres ou quatro vezes me tomou, e com fortes esfre- gaçÕes com isto se me tirou, molhando as mãos em azeite de coquo quente; e porém tornou a vir, e fizlhe o mesmo, e tornouse. ORTA Que comestes oje? ENFERMO Comi pexe de muytas maneiras, e arroz de leite, e alguns pepinos; e asi o que arreveso cheira a pepinos. ORTA Isto não padece tardança; emtanto ponham fogareiros e esquentemlhe o corpo; e esfreguemlhe o corpo com panos ásperos; e agoa nenhuma beba, em nenhuma maneira delia; se fordes constrangido a darlhe a beber alguma pouca, será onde ajam apagado algum ouro fervendo; cautirizemlhe os pés com ferros quentes; e darlheam a beber hum vomitivo; e lançarlheam hum cristel lavativo; o qual tudo vou ordenar á botica ; e untalloam com olios quentes pola nuca e espinhaço Do Costo 263 todo; e asi lhe untaram as pernas. E como revesar com este vomitivo, e fizer camará com o cristel, vãome dar conta do que pasa, e dirmeam se arrevesa ainda muyto, ou se sae muyto, ou se se esquentou já, ou se tem ainda caimbra, ou se lhe parece o pulso mais, e está mais descoberto ; porque con- forme a isto he necesario que obremos, porque nesta infir- midade nam ha de aver descuido no medico, nem nos servi- dores do enfermo. DOM GERONIMO Tudo se fará muyto depressa; eis aqui o boticairo. ORTA Façamlhe muyto asinha hum vomitivo de agoa cozida com cevada e cominhos e açucare; porque os acho muito bons pêra esta paixão; o cristel será de cozimento de cevada e farelos e olio rosado, e mel rosado, coado; e os olios pera se untar seram de castoreo e de ruda; porque tem respeito ao veneno, tudo misturado. E ácerqua do comer da casa es- tilem huma galinha gorda, tirandolhe primeiro a gordura que tem; e deitemlhe dentro humas talhadas de marmelos, e se os não acharem frescos sejam de conserva, lavados primeiro com vinho branco, e lançemlhe huma pouca de agoa de ca- nella e rosada, e coral e ouro; e posto que o doutor, que presente está, saiba milhor isto que todos, pera o que se deve fazer, elle me dá a mão a isso, como homem espre- mentado nesta terra. E porque elle está presente, diguo que milhor fora perdiz ou de Ormuz ou da terra, ou guallo, ou galinha de mato; mas em quanto se isso não acha, podem fazer o que disse. RUANO Em todo cabo podeis falar, porque ha muyto tempo que nos conhecemos. ORTA Deos dê muita saúde nesta casa, e não esqueça levarme recado do que passa. RUANO Espantado estou daquesta enfermidade; porque vi muitos doentes de peste, e nam tem a vertude tam derubada, nem 264 Colóquio decimo sétimo dura tam pouquo polia mór parte. E porque dixe, que comera pepinos, me lembra, que os doutores dizem de al- guns comeres, que, se se corrompem, sam convertidos em natureza de veneno; e estes, se bem me lembra, sam me- lões, cogombros, e pepinos, e pexegos, e albocorques-, por tanto nam he muyto virlhe aquella enfermidade, depois de comer pepinos. E vi mais este paciente ter o hanelito muito frequente. ORTA Sabeis em quanta maneira se acontece isto, que vi hum fidalgo, muito virtuoso, que avia trinta oras que padecia esta enfermidade, e me dizia: já nam saio, nem arreveso, nem tenho caimbra na perna, senam que não posso tomar fôlego, e isto me mata. Oulhay em que estado estava pros- trada a vertude, que nam podia deitar o fôlego. RUANO A que homens toma mais esta enfermidade? E em que tempos do anno vem mais? ORTA Aos homens que muyto comem, e aos que comem máos comeres; como aconteçeo aqui a hum cónego mancebo, que de comer pepinos morreo; e aos que sam dados muyto á conversação das molheres; e acontece mais em junho e ju- lho (que he o inverno nesta terra); e porque se causa do comer lhe chamam os índios morxi, que quer dizer, segundo elles, enfermidade causada de muyto comer. RUANO Como curam os físicos da terra esta enfermidade? ORTA Damlhe a beber agoa de espresam de arroz com pimenta e cominhos (a que chamão canje*); cautirizamlhe os pés, como « Como se vê, a palavra canJe ou canja ainda então não tinha foros de portugueza. Do Cosío 265 mandei fazer áquelle fidalgo-, e mais lançamlhe pimenta longa nos olhos pera esprementar a virtude; e pera a caimbra arrocham com percinta a cabeça, e braços e pernas, mui for- temente até os giolhos, e dos giolhos até os pés; e damlhe a comer o seu hetre. E todas estas cousas nam carecem de rasam senam que sam feitas toscamente. RUANO E vós os Portuguezes que lhe pondes, ou que lhe fazeis? ORTA Damoslhe a comer perdizes e galinhas estiladas, ou çumo delias: também lhe damos toradas de vinho com canella; postoque estas cousas quentes eu nam uso muyto nos come- res, senam postas pela parte de fóra, scilicet, untando o estô- mago com olio de almecega e nardino quentes; trabalho com muyta presa de limpar o estômago com mezinhas lavativas somente, e com cristeis; vam mistos segundo que a natureza mais se vay inclinando. RUANO Nam se ha de ajudar essa natureza, que he cega, e con- strangida de humor venenoso. ORTA Todavia porque esse humor, que he venenoso, não enfe- cione o outro, he bem que se deite fóra cedo; e he bem evacuarse; depois com olios de almecega e pós de canella, confortando o estômago, e a virtude retentiva com algumas ventosas; mas ha de ser isto vacuandose primeiro a mór parte do humor (5). RUANO Tendes alguma mézinha particular esprementada? ORTA Algumas; scilicet, triaga bebida, ou deitada em vinho, ou agoa rosada, ou de canella, segundo a neçesidade o requere; o páo de cobra, de que adiante diremos; o unicórnio espre- 266 Colóquio decimo sétimo mentado; e opáo de contra erva de Malaca, com que se acham bem os feridos de frecha com peçonha; porém a mézinha que mais aproveita, e com que melhor me achei, he tres grãos de pedra be:{ar (a que chamam pa:[ar os Pérsios), que daqui ao diante falarei, que em tanta maneira aproveita, que casi mila- grosamente dilata as forças do coração. Já ouve muj^tos do- entes, que, dandolhe a beber esta pedra, me dizião, nam sabendo o que lhe dera, como desque comeram aquella mé- zinha lhe parecia que lhe viera novas forças e lhe tornara a alma ao corpo; e em o bispo de Malaca (6) me achei muyto bem, dandolhe esta pedra be^ar e a ti^iaga, depois de va- cuada muyta parte da matéria, deitáralhe muyta triaga em cristeis, acrescentandolhe a cantidade. RUANO Nunca vi deitar nessas enfermidades triaga em cristeis? ORTA He conforme á rezam deitalos nas enfermidades veneno- sas, como a mim me aconteceo, curando a hum védor da fazenda de elrey, nosso senhor, de humas camarás vene- nosas, o qual não querião consentir os meus companheiros físicos; e porém vendo que se achou bem, folgarão com isso, e o usaram em mu3^tas pessoas depois. RUANO Ha algumas enfermidades na índia como esta, que der- rubem a virtude tanto como esta? E a estas que mezinhas lhe pondes por fóra? ORTA Muitos homens morrem com a virtude derubada, ou por- que tiveram camarás ou pollo muyto uso das molheres; e a estes (chamão os físicos indianos jiiordexi seco, scilicet, á en- fermidade d'elles) façolhes fomentaçam por fóra, com vinho de cozimento de cominhos, e sobre elles lanço olio nardino e de almecega, e os comeres quero que cheguem a quente, mais sustancialmente que em calidade; e não quero que se- Do Costo 267 Jam gemas de ovos, porque sam soversiveis e curruptiveis; ; e porque da pedra be^ar ei de falar ao diante, não mais. E, tornando ao costo, digo que Matcolo Senense alega alguns que tem que a j^ai^ angélica he especia do costo, mas que elle nem o dana nem o aprova; e que usam mais conforme á re- zam os que usam delia em logar do costo que os que usam da menta romana; e eu diguo que ella não he costo, e pôde ser milhor mezinha. Nota (i) Julgou-se durante muito tempo, que a droga chamada costus fosse a raiz de uma espécie do género Costus da família das Scitaminece; e o nome dado ao género resultou mesmo d'aquella persuasão. Sabe-se hoje, que pertence a uma planta absolutamente distincta e muito afastada, da familia das Compositce, a Saussurea Lappa, Clarke (Auklandia Costus, Falconer; Aplotaxis Lappa, Decaisne), a qual se encontra, como logo veremos, nas regiões elevadas e centraes da Asia. Os nomes vulgares, mencionados por Orta, são ainda hoje bem co- nhecidos : — «Cost» ou «Cast» em «Arábio». Isto é, k.»? , que vem transcripto nos livros inglezes kust; mas devia soar cast, melhor qast. D'este nome deve vir, como Orta diz, o latino costus e o grego ;4íaro?; mas é necessário advertir, que o arábico qast já vinha do sanskritico kustha (Cf. Dymock, Mat. med., 449; Ainslie Mat. ind., 11, i65, salva a identi- ficação botânica). — «Uplot» no Guzerate. Este nome vem mencionado por Dymock, na fórma ouplate, como sendo ainda usado em Bombaim (Cf. Dymock, 1. c). — «Pucho» em malayo. O dr. Royle, comparando o costo do norte da índia, com uma raiz conhecida nos mercados de Calcuttá pelo nome de puchuk, reconheceu serem cousas idênticas, e acrescenta : this iden- tity was long ago ascertained by Garcias ab Horto. Dymock também cita o mesmo nome, na fórma patchak, como usado em Bengala (Cf. Royle, Ant. of Hindoo med., 88; Dymock, 1. c). Nota (2) Podia-se dizer com uma certa approximaçao, e sem grande erro geographico, que as terras de «Mandou» e de «Chitor» ficavam en- tre os reinos de Guzerate e Dehli e Bengala; e também era verdade. 268 Colóquio decimo sétimo que aquellas terras haviam sido tomadas, perdidas, e retomadas pelos exércitos do Guzerate, justamente alguns annos antes. Os portuguezes chamaram terras ou reino de «Mandou» ao reino mussulmano de Malwá. Mandú era propriamente o nome de uma ci- dade fortificada, situada na vertente meridional das serras de Vindya, e que foi muito tempo capital d'aquelle estado. Do mesmo modo cha- maram reino de Chitor ao principado rajpút de Mewár ou Udipúra, quando o nome pertencia especialmente a uma famosa fortaleza d'este estado. Tanto Barros como Gaspar Corrêa faliam largamente d'estas terras, quando tratam das guerras do sultão Badur; mas sem fixarem bem as suas posições respectivas. Orta estava enganado, quando julgava que o costo vinha d'ali, vinha simplesmente por ali, mas procedia de muito mais longe. O conhecido viajante francez, Victor Jacquemont, encontrou (i83i) a planta que produz o costo ilos valles do Kachmira, e vertentes do Himalaya, em altitudes consideráveis. Na mesma região a observou o dr. Falconer, alguns annos depois, verificando bem que d'ella procedia a droga do commercio. Colhe -se ali a raiz da Saussurea em grandes quantidades, e uma parte d'esta raiz aromática é empregada pelos negociantes para conservar e preservar da traça os celebres e preciosos chailes, fabrica- dos n'aquella região. Alguma segue por terra para a China, via Thibet; outra parte é levada a Calcuttá, d'onde se exporta principalmente para a China; e finalmente alguma vem aos portos do occidente, sobretudo a Bombaym (Cf. Falconer, nas Trans. Linn. Soe, xix, 23; Dymock, 1. c). No tempo de Orta, Bombaym não existia como porto commercial, sendo apenas uma ilha meia deserta, de que elle era foreiro, e as merca- dorias a£fluiam'ás cidades do norte, á cidade interior de <). Não encontrei propriamente noticia d'aquelle impedimento diri- mente do matrimonio, que Orta menciona com louvor; mas é certo 272 Colóquio decimo sétimo que a lei, pela qual estas cousas se regulavam, era na China muito mi- nuciosa. O padre Du Halde enumera longamente muitos casos de nul- lidade, observados nos casamentos chins. (Cf. Du Halde, Description de la Chine, 11, i23 e 249, Paris, lySS; Firmin Didot, Essai sur la Typographie, p. 565 e 918; Garcia de Re- zende, Miscellania, na Chron. de D. João II, i63 v.", Lisboa, 1622; Yule, Marco Polo, i, i32, e na primeira edição 11, 478; fr. Gaspar da Cruz, Tratado da China, 24.) Nota (5) Garcia da Orta descreve um caso de cholera de forma grave, do cholera asiático ou cholera morbus propriamente dito. Conhecia o cho- lera europeu, que havia sido estudado pelos antigos médicos, Hippocra- tes, Aretêo, Celso e outros, e a que chama colérica passio; conhecia a analogia d'esta enfermidade com aquella que observava na índia; mas conhecia também a maior gravidade da ultima, dizendo : «ca he mais aguda que em nossas terras». As temerosas epidemias que devastaram a índia no anno de 181 7 e seguintes, chamaram especialmente a attenção para esta doença, e le- varam quasi a crer que fosse nova, ou pelo menos que se apresentasse então com uma gravidade antes desconhecida. Parece, porém, ter exis- tido na índia, tanto na fórma sporadica como na fórma epidemica, desde tempos muito antigos; e se alguma dúvida se levantou a este res- peito, essa duvida deve unicamente resultar dos nomes variados, dados á doença, e das descripções imperfeitas dos seus symptomas. Diz-se que já se encontram referencias ao cholera nos escriptos do lendário medico hindu, Susrúta, ou pelo menos em versões tamilicas de fragmentos, que lhe são attribuidos. E o investigador Whitelaw Ainslie dá-nos variados nomes da doença em quasi todas as linguas falladas na índia : ennêrum vandie em tamil; dãnk-lugnã em deckani; chirdie-rogum em sanskrito; vãntie em tellingu; nirtiripa em maláyalam. Isto parece denunciar um conhecimento muito geral, e provavelmente muito antigo, d'aqviella enfermidade, conhecimento espalhado por todas as regiões da índia (Cf. W. Ainslie, Mat. ind., 11, 53 1). Deixando, porém, este campo escorregadio dos remotos períodos hin- dus, dos quaes parece haver poucas noticias, ou pelo menos poucas noti- cias seguras, vejamos o que diz respeito ao tempo dos portuguezes. Na Vida de João de Empoli, aquelle florentino que andou na companhia e na armada dos Albuquerques, diz-se que, estando elle nos portos da China, a guarnição dos navios em que ía foi atacada por uma grave doença, da qual rapidamente morreram 70 homens, e entre elles o próprio João de Empoli; a doença era uma péssima malatia di f russo, por onde parece que seria o cholera. Quando Martim Affonso de Mello Do Costo 273 naufragou na costa de Arracán, se refugiou em uns ilhéos onde a agua era má, e a sua gente foi obrigada a comer umas sementes de leguminosas que encontrou, appareceram na guarnição «humas desinterias . . . que he hum mal que em vinte e quatro horas mata», tendo os atacados «sede grandíssima, os olhos mui sumidos, grandes vómitos». Estes e outros exemplos seriam sufficientes para mostrar como o cholera exis- tia então no Oriente, e tomava facilmente uma fórma epidemica grave (Cf. Archivo storico Italiano, 3o, citado por Yule e Burnell; Couto, Asia, IV, IV, 10). Mas a noticia mais interessante, é sem duvida a que nos dá Gaspar Corrêa ácerca da epidemia do anno de i543. Comquanto as suas Len- das andem em todas as mãos, a noticia completa tão bem o que diz Garcia da Orta, que a transcrevemos na integra, apesar de longa. E ainda mais somos levados a fazel-o pelo facto de vir incorrectissima- menie citada em livros de medicina de auctoridade. O moderno Dict. Encycl. des Sciences médicales de Dcchambre diz o seguinte (vol. xvi, p. 749) : Uacadémie des Sciences d-e Lisbonne a publié sous le nom de Lendas da índia des dociiments dus a Gaspar Corrêa dans lesquels le Dr. Gaskain a retrouvé ce passage dii d Christoval d' Acosta ... E na transcripção encontra-se a seguinte phrase: // est fréquent d'observer dans rinde á Morschy une épidéniie épouvantable et violente ... É forçoso confessar, que tudo isto é o mais completo documento de leviandade, que será possível encontrar em um livro serio. As Len- das da índia transformadas em uma collecção de documentos já não é mau; mas um d'esses documentos attribuido a Christovão da Costa, é a perfeição no erro. Não fallaremos n'aquelle Morschy, que significava um logar ou região ! Deixemos o Diccionario, e vejamos o que disse Gaspar Corrêa: «N'este inverno* ouve em Goa huma dôr mortal, que os da terra cha- mão moryxy, muy geral a toda calidade de pessoa, de minino muy pe- queno de mama até velho de oitenta annos, e nas alimárias e aues de criação da casa, que a toda cousa vivente era muy geral, machos e fê- meas; a qual dôr dava na criatura sem nenhuma causa a que se pudesse reputar, porque assy vinha aos sãos como aos doentes, aos gordos como aos magros, que em nenhuma cousa deste mundo tinha resguardo. A qual dôr daua no estamago, causada de frialdade segundo affirmauão alguns mestres; mas depois se afiirmou que lhe nom achauao de que tal dôr se causasse. Era a dôr tão forte, e de tanto mal, que logo se con- uertia nas sustancias de forte peçonha, a saber: d'arrauesar, e beber muyta agoa, com deseqamento do estamago, e cambra que lh'encolhia ' Isto é no verão do anno de i543, no período das chuvas e dos ventos de travessia, que lá chamavam inverno. i8 274 Colóquio decimo sétimo os neruos das curuas, e nas palmas dos pés, com taes dores que de todo o enfermo ficava passado de morte, e os olhos quebrados, e as unhas das mãos e dos pés pretas e encolheitas. A qual doença os nossos fisi- quos nunca acharão cura; e durava o enfermo um só dia, e quando muyto huma noyte, de tal sorte que de cem doentes nom escapauão dez, e estes que escapauão erão alguns por lhe acodirem muy em breve com meizinhas de pouqua sustancia, que sabião os da terra. Foy tanta a mortindade n'este inverno que todo o dia dobrauão sinos, e enterrauao mortos de doze e quinze e vinte cada dia; em tanta maneira que man- dou o Governador que se nom tangessem sinos nas igrejas, por nom fazer pasmo á gente. E por esta ser huma doença tão espantosa, mor- rendo hum homem no esprital d'esta doença de moryxy o Governador mandou ajuntar todolos mestres, e o mandou abrir, e em todo o corpo de dentro lhe nom acharão mal nenhum, somente o bucho encolheito, e tamanino como huma muela de gallinha, e assy enverrugado como coiro metido no fogo. Ao que disserão os mestres que o mal d'esta doença daua no bucho, e o encolhia, e fazia logo mortal. E porque hauia grande apressão no enterramento dos mortos, que os crelgos da sé nom podiam tanto soprir, então o bispo dom Affonsoi d'Albuquer- que repartio freguezias pola cidade, e fez freguezias Santa Maria do Rosario, e Santa Maria da Luz; sobre que tiveráo muytos debates, porque os crelgos da sé nom quizerão consentir que as freguezias le- vassem os dizimos de seus freguezes» (Lendas, iv, 288). Vê-se bem claramente d'esta pagina, que na capital da índia por- tugueza se deu no anno de i543 uma d'estas explosões epidemicas de cholera, que se pôde comparar em gravidade com todas as dos sé- culos posteriores e mesmo do nosso. Garcia da Orta devia estar então em Goa, observou a epidemia, foi talvez dos mestres que se juntaram para assistir á autopsia do cholerico; mas de nada d'isto falia no Coló- quio. Como, na sua longa clinica, elle tratou numerosos casos de cho- lera, já sporadica, já epidemica, quiz de certo fundir os resultados da sua experiência na descripção de um caso único, sem especificar a epo- cha ou circumstancias em que o observou. O exame d'esta parte do Colóquio, sob o ponto de vista medico, a confrontação dos symptomas descriptos com os mencionados nos livros da actualidade, a discussão do methodo de tratamento, poderiam ser o objecto de uma memoria especial muito interessante; mas sairiam completamente do plano d'estas notas, e entrariam no domínio do com- mentario, que cuidadosamente temos evitado'-^. De resto, a exposição de Garcia da Orta é por si só bastante clara e interessante. ' Um lapso de Gaspar Corrêa, o bispo chamava-se D. João. ' Veja-se Garcia da Orta e o seu tempo, pag. 3i3 a 32o, onde demos algumas indicações, muito»incompletas e imperfeitas. Do Cosío 275 Ha, porém, um ponto a elucidar em breves palavras — o que se refere aos nomes orientaes da doença. Gaspar Correa chama-lhe tnoryxy. Orta diz, que os indianos lhe davam o nome de morxi, e os portu- guezes corruptamente o de mordexi; e mais adiante affirma que morxi significa «enfermidade causada de muito comer». Diogo do Couto dá morxis como a boa fórma correcta, e mordexim como a al- teração da palavra usada pelos nossos. Esta alteração não me pa- rece provável; de morxi os portuguezes deviam fazer morxim, por uma modificação, que foi regular e constante, do i terminal agudo, mas não havia rasão para introduzirem a syllaba de de mordexim. Devemos procurar esta syllaba na origem indiana. Yule e Burnell, em um excellente artigo do seu Glossary, no qual aproveitaram os trabalhos do dr. Macpherson e de Macnamara, dizem que o nome do cholera em guzerati parece ser mõrchi ou mõrachJ, e este é evi- dentemente e quasi sem alteração o moryxy de Corrêa, e o morxi de Orta; dizem também que em marathi e concani se chama modachT, modshJ, ou modwaslií, que se deriva do verbo tnodnen, significando abater-se, deprimir-se, pelo coUapso especial dos últimos momentos do cholera, aquillo a que o nosso medico chamava «vertude derrubada». Os portuguezes ouviram de certo os dois nomes, e fizeram uma certa combinação de que saiu o nome constantemente usado mordexim. Durante mais de dois séculos esta palavra foi empregada pelos portu- guezes — e por todos os europeus que viajaram na índia — para desi- gnar o cholera: umas vezes escripta mordicin pelos italianos, como Car- letti; outras escriptas mordisin pelos francezes, como Pyrard; algumas mordexi pelos que usavam a lingua latina, como Boncio. Depois, os fran- cezes lembraram-se de lhe dar uma significação, e combinando o som da palavra com os horrores da morte, chamaram á doença, mort de chien. Nas Lettres édifiantes para o anno de 1 702 vem a seguinte phrase, que marca o momento de adopção do novo nome : «cette grande indigestion qu'on appelle aux Indes mordechin, et que qiielques ims de nos Français ont appellée mort-de-chien». Apesar de ridiculo, este nome foi adoptado, não só em obras francezas, como também nos livros escriptos em ou- tras linguas, e houve mesmo um inglez que traduziu á letra : « the ex- traordinary diseases of this country are the Cholik, and what they call the Dog's Disease ...» Nem sempre, porém, se identificava correctamente a mort-de-chien com o cholera. Sonnerat, por exemplo, que descreve as duas graves epi- demias de cholera, que reinaram em Pondichéry alguns annos antes do de 1782 em que elle escreveu, chama-lhe Jliix aigii, e diz logo adiante: «les indigestions appellées dans 1'Inde mort-de-chien son frequentes». Parece não ter a noção clara de que o seu Jlux aigu e a mort-de-chien eram a mesma cousa. Mais tarde, a identificação fez-se, e Johnson diz em 181 3: u Mort-de-chien is nothing more than the highest degree 0/ 276 Colóquio decimo sétimo do Costo Cholera Morbus». No nosso século os antigos nomes mordexim e vwrt- de-chien caíram em desuso, sendo geralmente substituídos pelo de cho- lera. O morxi, segundo diz Orta, chamava-se em arábico hachai^a, nome que na versão de Rasis se encontrava incorrectamente saída. Diogo do Couto escreve sachai^a, mas n'esta e n'outras passagens suspeito que apenas segue o nosso Orta. Este termo arábico ainda é conhecido na forma hai^^ah, e é commummente usado em hindustani para designar o cholera; mas encontra-se nas antigas relações mussulmanas de succes- sos da índia, applicado a epidemias, que nem sempre talvez fossem de cholera; por onde parece que primitivamente significaria em geral uma doença grave e contagiosa. (Cf. Couto, 1. c; Yule e Burnell, Glossary, palavra Mort-de-chien, donde principalmente extrahi as citações; e também Sonnerat, Voya- ges, I, III a 1 15.) Nota (6) Este bispo de Malaca devia ser o primeiro d'aquella diocese, D. fr. Jorge de Santa Luzia. O bispado de Nossa Senhora da Assumpção da ci- dade de Malaca foi creado pelo papa Paulo IV, juntamente com o de Santa Cruz de Cochim, e na occasião em que o bispado de Goa foi ele- vado a arcebispado, a pedido dos tutores de D. Sebastião. Os dois novos bispos, fr. Jorge de Santa Luzia de Malaca, e fr. Jorge Themudo de Co- chim foram na armada do anno de iSSg, commandada por Pero Vaz de Siqueira. O bispo de Malaca ía na nau Algaravia — Figueiredo Fal- cão chama-lhe Assumpção— da qual era capitão Francisco de Sousa. N'esta mesma armada passou á índia um dos seus mais conhecidos his- toriadores, Diogo do Couto. E provável que o bispo tivesse um ataque de cholera logo á chegada a Goa, do qual o curou Garcia da Orta, dando-lhe pedra bet^ar e triaga. É licito attribuir maior acção ao opio da theriaca do que á pedra be^oar; mas, fosse como fosse, o bispo escapou (Cf Couto, Asia, vii, viii, 2). COLÓQUIO DECIMO OCTAVO DA GRISOGOLA E GROGO INDIAGO, QUE HE AÇAFRÃO DA índia, E das GURGAS INTERLOCUTORES RUANO, ORTA, SERVA RUANO Encomendaramme e ensinaramme em Portugal que le- vase de qua tincal; e porque se chama crisocola, será bem que façamos delle aqui mençam, e que o leve de qua. ORTA Si; mas he das drogas defesas, e por pouquo perdereis o muyto. RUANO Não o quero levar, senam quero saber onde o ha e o nome delle. ORTA Chamase bórax e crisocola, e tincar em arábio, e os Gu- zarates asi o chamam: não se usa na física indiana senão muyto pouco, e pera sarna e cirurgia: nem nós a usamos muyto, senão entra no unguento cetrino, e nos outros afei- tes das molheres; e pera os dentes e sarna. E he mercado- ria que se gasta em todas as partes, pera o ouro e os ou- tros metaes serem bem feitos e conglutinados; e esta, que vay de qua, he minério em huma serra que está apartada da cidade de Cambayete cem léguas nossas-, e trazem a ven- der ahi e a Amadabar*, e vem das bandas de Chitor e Man- dou, em muyta cantidade delle*, porque em todas as terras se gasta muyto (i). * «Madabar» na ed. de Goa; mas por erro evidente. Veja-se o Coló- quio anterior. 278 Colóquio decimo ociavo RUANO Pois nisto nam ha mais que falar, falemos no que cha- mais acafram da terra. ' ^ ORTA Essa mezinha he pera falar nella, porque a usam India- nos médicos; e he mézinha e mercadoria que se leva muyta pera Arábia e Pérsia; e nesta cidade ha pouco delia, e no Malavar muyto, scilicet, em Cananor e Calecut. Chamão os Canarins a esta raiz alad; e os Malavares também lhe cha- mão asi, mais propriamente manjale\ e os Malayos cunhet; os Pérsios dar^ard, que quer dizer páo amarello; e os Ará- bios hahei: os quaes todos, e cada um per si, dizem que não o ha na Pérsia, nem na Arábia, nem na Turquia este açafrão, senão o que vay da índia. RUANO Parece rezam, pois esta he mézinha e tem nome arábio, que esteja por algum Arábio autor escrita? ORTA Rezão tendes, mas não ouso afirmar as cousas sem pri- meiro as ver bem; e porém eu tenho pera mim por certo que Avicena escreve deste acafram da terra no capitulo 200*, chamandolhe caliduniiim ou caletfum; e fala nisto Avicena como homem que o nam sabe bem; e alega as sentenças doutros, como de cousa que não avia em sua regiam; e não he muito enconveniente o nome arábio agora ser corrompido; porque parece que os Arábios lhe chamavam como os índios, aled, e lhe corromperão o nome chamandolhe caleífum; e mais me faz cuidar isto ser verdade ver, o capitulo de feçe de curcuma** ou curcumani, que também se conforma com elle; e por tanto vede ambos, e achareis ser verdade o « Avicena, lib. 2, cap. 200 (nota do auctor); veja-se a nota (2). *» «De feçe», isto é de fcex, ou das fe:;es de curcuma; veja-se a nota (2). Da Crisocola 279 que digo; porque Avicena, quando duvidava de huma cousa, fazia delia dous capítulos. RUANO Não me parece rezam isso; porque diz que he meimiram, que sabemos ser çilidonia. ORTA Não tenho isto por muyto certo; porque nestes dous ca- pítulos faz esta mezinha amarella, e diz aproveitar muyto aos olhos; e porque estas cousas convém á çilidonia, dixe- rão ser esta mézinha çilidonia; mas muyto maior rezão será qualquer destes simples conteúdos nestes capítulos ser aça- fram da terra. RUANO Pera que o usam nestas terras? ORTA Pera tingir e adubar os comeres; asi aqui como na Arábia e na Pérsia; inda que lá aja o nosso açafram, usam deste por mais barato; e qua usam do açafram também em fí- sica, mais que pera tudo, pera os olhos e pêra a sarna, mis- turado com çumo de laranja e azeite de coquo. E pois nestes capítulos o louva Avicena pera estes efeitos, este deve ser, que asi he usado; e Avicena falou com duvida nisto, porque por ser cousa fora de sua terra o não sabia bem; e por isso vos fique ser mézinha boa pera levar pera Portugal (2). SERVA As curcas que de Cochim vieram, quer vossa mercê que lhas façam em caril com galinha, ou que as lance no car- neiro? ORTA Em ambas as cousas as podes lançar; e entanto traze hum pouco de açafram da terra, verde. RUANO E que cousa he curcas do Malavar? 28o Colóquio decimo octavo ORTA São huns grãos brancos, mayores que avellans, com casca e não tam redondas; sam brancas, e sabem como tubaras da terra cosidas; e ha as no Malavar, onde lhe chamão chi- viqiiilengas, que quer dizer j^nJiames pequenos: também me convidou com ellas em Çurrate, cidade de Cambaya, Coje Çofar, natural de Apulha, feyto mouro ; e dixeme que as avia no Cairo mu3'tas, e que também lá se chamavão curcas; e em Cambaia, donde isso era, me dixe que se chamavão car- pata; semeãose no Malavar, onde as eu vi primeiro, e naçem em ramos. E pois não he cousa de física, pasemos avante, sem mais falar nella; e se vos souberem bem, levalaseis pera o caminho quando fordes (3). SERVA Vedes aqui o açafram verde e o seco; scilicet, a raiz. RUANO Primeiro quero que me digaes se escreveu algum escritor deste simple, ao menos Arábio. ORTA Não me aííirmo muyto aver capitulo desta mezinha; senam falando por huma congeitura, acho que escreveo delia o Se- rapio, e chamalhe abelculcut; e está corrompida a letra, e ha de dizer hab alcidcid, que quer dizer curcas, ou per ven- tura nós lhe corrompemos o nome em lhe chamarmos cur- cas. Isto digo porque hah quer dizer em arábio semente grande, e al he articulo de genetivo; e também me movia dizer isto, porque o Serapio diz que o muyto uso delias faz colérica passio, e que acresenta a semente; e todas estas cousas dizem os mesmos Malavares, por onde me parece que tudo he hum. Também Rasis* falia destas curcas, e chamalhe quilquU, por ventura corrompidamente. E oulhay a raiz do açafram verde e sequa. * Rasis, 3, ad Almansorem (nota do auctor). Dã Crisocola 281 RUANO Por dentro he bem amarella \ e por fóra parece como gen- givre; e a folha he como da cana do milho; he maior, e o ramo he feito de folhas*; e a raiz nam queima, nem amarga muyto quando he verde; e se queima, com a muyta hu- midade não se sente. ORTA Provay a seca: esta raiz queima, mas não tanto como o gengivre; por onde me parece que não será mal tomada por dentro, e asi não ponho duvida em ser curcuma. RUANO A mercê que de vós quero he que cuideis bem nisto, e saibais dos físicos cada dia o que sabem delia, e torneis a ver os capitules: e eu também os verei oje, pera amanhã tornarmos a falar niso, E isto he bom, porque o que oje nam sabemos, amanhã saberemos. ORTA Quanto mais ólho os capítulos, tanto mais me parece ser verdade o que digo; porque alguns dizem que curcumani ç. meimiram he ruiva de tingir; e ambas as raizes se parecem huma com outra. » Esta expressão, um tanto singular na fórma, pôde todavia appli- car-se ás folhas envaginadas de uma Scitaminea, ou de uma Musacea; e prova que Orta examinou com attenção aquelles falsos caules, formados de peciolos sobrepostos. Nota (i) O «bórax», ou «crisocolla», ou «tincal» de Orta, era uma substancia bem conhecida, um borato de soda natural, que teve importância no commercio; mas hoje é geralmente substituido pelo que se prepara com o acido bórico, extrahido das lagoni da Toscana. O nome de chrysocolla vinha-lhe do seu emprego como fundente nos trabalhos de ourivesaria; e o de tincal, aliás muito conhecido, é 282 Colóquio decimo octavo uma ligeira alteração do persiano — Orta diz arábico — jLio, tinkar, que deve vir do sanskrito tankana. Em muitos livros antigos e relativamente modernos, como nos tra- tados de Mineralogia de Dufrénoy, de Delafosse e outros, se lê a affir- mação vaga de que esta substancia vinha da índia; mas não encontrei confirmação segura de tal noticia, e muito menos de que fosse «miné- rio em huma serra . . . apartada de Cambayete cem léguas nossas». Pa- rece que se extrahia principalmente de alguns lagos do Thibet, e d'ali, pelos desfiladeiros do Himalaya, a traziam aos portos occidentaes da índia. Vinha, portanto, pela índia, e não da índia. Orta, suppondo-a procedente das montanhas de Mandú e de Chitor, teve o mesmo engano, que já no Colóquio anterior tivera a propósito do casto. É conhecido o uso industrial d'esta substancia no trabalho dos me- taes; e o seu emprego na medicina indiana foi também mencionado por Ainslie, se não propriamente na «sarna», pelo menos em aífecções aphtosas e cutâneas (Cf. Ainslie, Mat. ind., i, 45). Pelo que diz Orta se vê, que era «droga defesa», isto é, cujo commer- cio estava vedado aos particulares. Já, nas notas ao Colóquio anterior, vimos como o costo e o incenso eram drogas defesas no trato com a China, e a propósito da pimenta teremos occasião de fallar mais larga- mente d'estas prohibições. Nota (2) O «croco indiaco» de Orta é o rhizoma da Curcuma longa, Linn., uma planta da familia das Scitaminece, cuhivada com frequência na ín- dia e outras terras da Asia. Esta droga é chamada pelos inglezes tur- meric, o que parece ser a corrupção de um nome da antiga pharmacia, terra merita; mas é mais geralmente designada pelo nome de curcuma, do persiano kurkum. Vejamos agora os nomes vulgares do nosso escriptor: — «Alad'> entre canarins e malabares. Este é o conhecido nome hindi e bengali, halad (Dymock, Mat. med., 764). — «Manjale» entre malabares. O nome tamil manjai (Dymock, 1. c). — «Cunhet» entre malayos. Varias formas d'este nome se usam nas diversas partes do archipelago, por exemplo, cunjet, entre as gentes de Macassar (Rumphius, Herb. amb., v, i65). — «Habet» entre árabes. É um nome que não encontrei, quer esteja muito alterado, quer escapasse ás minhas investigações. — «Darzard» entre os persas, significando «pau amarello». A explica- ção é exacta; dar significa pau ou madeira, e fari amarello. No nome hoje mais usado da droga, ^ard-chubah, entra o mesmo adjectivo (Dy- mock, 1. c). Da Cri soco la 283 — Alem de citar estes nomes orientaes, Orta designa a droga pelo de croco indiaco e açafrão da terraK Apesar de o rhizoma da Cur- cuma ser uma cousa absolutamente diversa dos stigmas do Crocus, que propriamente constituem o açafrão, houve sempre uma certa tendên- cia a approximar as duas substancias, pelo facto de servirem para tem- perar a comida e de a tingirem fortemente de amarello. É assim, que um dos nomes do açafrão, kurkum, veiu a designar mais especialmente a cur- cuma. Ibn Baithar explica claramente esta deslocação de nome. Fallando do rhizoma da curcuma, diz assim : . . . «os habitantes de Basra chamam a esta raiz al-kurkum, e al- kurkum é o açafrão; e chamam-lhe açafrão, porque tinge de amarello como faz o açafrão (Ibn Baithar, versão de Sontheimer, citado por Yule e Burnell, Glossary, palavra saffron). O commentario do nosso Orta aos capítulos de Avicenna é muito con- fuso, porque a questão é muitíssimo obscura. O capitulo, que elle chama: «de feçe de curcuma ou curcumani», é o cap. i65, e começa por estas palavras: Crocoma quid est? Dicitur quod est fa^x olei de croco ... O resto do capitulo, aliás curtíssimo, nenhum esclarecimento dá. E por aquellas palavras, o medico árabe parece referir-se aos resí- duos de algum preparado do Crocus, e não á Curcuma. O outro capitulo citado (199 e não 200, como Orta diz) intitula-se: De Caucho i. Chelidonio maiori. Em notas marginaes vem os nomes mencionados por Orta, Chalidunium e Chaledfium. O texto de Avicenna diz assim na versão : Chaucum quid est? Dixerunt quidam, quod est Vene. Et ipsa quidem dicitur Memiran. Et dixerunt alii, qua.' de ea est parva est Memiran, et quce est magna, est Alvardachale, vel Alvardachule, vel Alxardahune. Como se vê, a trapalhada não pode ser mais completa, e difficil será encontrar a explicação d'este enygma. Na exposição do Bel- lunense temos a seguinte informação : vence citrina' apud Árabes sunt curcuma, apud alios vero sunt radices memiran. Da primeira parte pôde deduzir-se, que Avicenna quiz fallar da curcuma, como suppoz Orta; mas na segunda apparece-nos de novo o memiran. D'este, diz o mesmo Bellunense : Memiran est radix nodosa, non multum grossa, citrini colo- ris sicut curcuma . . . et aportatur ex índia . . . et usitatur in passionibus oculi. Como se as cousas não estivessem ainda bastante enredadas, vie- ram os commentadores, e disseram que o memiran dos árabes era o xcXt^ovtov dos gregos, e que este era a vulgar celidonia maior (Che- lidonium majus, Linn.). Orta conhecia esta identificação, e — com toda a rasão — a pôe em duvida, e se mostra pouco disposto a acceital-a. Mas, apesar de conhecer muitas drogas da índia, não conhecia todas, e não conseguiu desfiar completamente a meada. ' Isto é, d'aquella terra. Esta express.áo portugueza da terra, geralmente mal interpre- tada pelos traductores, e que significa o que é próprio da região, em opposição ao que vem de fora, é equivalente ao qualificativo arábico beladi. 284 Colóquio decimo octavo O que parece provável, é que Avicenna e outros árabes conhecessem muito imperfeitamente varias drogas, consistindo em raizes ou rhizo- mas mais ou menos grossos, mais ou menos amarellos na fractura, tra- zidos em geral da índia, e alguns considerados efficazes no tratamento das doenças de olhos. É claro, porém, que não distinguiam bem essas drogas entre si; e é hoje extremamente difficil procurar o que fosse o alvardachale ou o alvardachule. O que se pôde apurar como provável, é que, sob o nome de Vence, de Memiran e outros, elles se deviam prin- cipalmente referir a tres drogas: os rhizomas da Curcuma longa, Linn., de que antes falíamos; os do Coptis Teeta, Wallich, uma planta da familia das Ranunculaceíe, espontânea nas montanhas de Michmi, a leste do Assam, e que ainda hoje se encontram nos bazares da índia, são considerados um medicamento importante nas doenças dos olhos, e são designados pelo nome de mahmira; os do Thalictrum foliosum, D. C, da mesma familia, que procedem das vertentes do Himalaya, têem nos bazares do Panjáb o nome de niomiri, e são muitas vezes confundidos com os da planta precedente. A primeira droga, a Curcuma, era bem conhecida de Orta ; mas as outras duas vinham de mais longe, deviam ser raras nos bazares, so- bretudo nos bazares da costa, e não admira que escapassem ás suas investigações. Por isso elle se achava um pouco desarmado em frente da intrincada e barbara nomenclatura de Avicenna. É certo, no em- tanto, que se não sabia bem o que fosse o memiran, não estava nada disposto a admittir que fosse a celidonia, e n'isso tinha toda a ra- são (Cf. Avicenna, lib. :, tract. ii, cap. i65, 199 e 486; Andreee Bellun. Arabic. nom. interpreiratio, palavras vence e memiran ; Yule e Burnell, Glossary, palavra mamiran; Pliarmacographia, 3; Pharmacopceia of Índia, 4 e 5). O uso da curcuma para «tingir e adubar os comeres» é vulgarissimo em todo o Oriente, sendo um dos ingredientes essenciaes do caril. E considerada também cordial e estomachica; applicada ao tratamento das doenças cutâneas, e, segundo o nosso padre Loureiro, ao de va- riadíssimas enfermidades (Cf. Drury, Useful plants, 169; Ainslie, Mat. ind., I, 454; Loureiro, Flora Cochinchinensis, i, 9). Nota (3) As «Curcas» do nosso escriptor não são muito fáceis de identificar^. Apesar de elle dizer que «nacem em ramos», creio que deve fallar de ' No meu trabalho sobre Garcia da Orta (p. 216) identifiquei-as sem bastante reflexão com a Curcuma angiislifolia, o que é evidentemente um erro. Da Cri socoí a 285 órgãos subterrâneos; e por isso faz a referencia aos «ynhames», e ao gosto de «tubaras da terra». Parece pois que seriam uma espécie de Colocasia, e provavelmente a Colocasia indica (Arum indicum de Lou- reiro e de Roxburgh). Esta espécie tem uma raiz fibrosa, e numerosos tubérculos pendentes, por onde elle poderia dizer «nacem em ramos«. Alem d'isso os tubérculos são comestiveis, e entram ás vezes na con- stituição do caril, como Orta diz das ctircas (Cf. Roxburgh, Fl. indica, III, 498). Parte dos nomes vulgares, que Orta cita, pertencem no emtanto à espécie mais conhecida, Colocasia antiquorum, Schott. — O primeiro é o de ciircas, o qual, segundo Orta diz, era também usado no Cairo, onde a planta era bem conhecida. Prospero Alpino, que, no século de Orta (1580-1584), viu a Colocasia antiquorum culti- vada no Egypto, diz que lhe chamavam cuícas; e o botânico francez, Delile, dá o mesmo nome nas formas qolkas e koulkas (pronunciar kul- kas). O sr. Dymock menciona um nome arábico moderno, kalkás. De cuícas para curcas vae uma leve e fácil alteração (Cf. De CandoUe, Orig. des plantes cultivées, 59; Dymock, Mat. med., 818), — «Chiviquilengas» lhe chamavam no Malabar. Esta designação, ape- sar de muito alterada, é claramente o nome tamil da Colocasia antiquo- rum, que Dymock dá na fórma shema kalengu, e Drury na fórma shema kilangu (Cf. Dymock, 1. c, 817; Drury, Useful plants; 154). — Não encontrei o nome de «carpata», usado em Cambaya, segundo Orta. Em resumo, a curtíssima descripçao do nosso auctor indicaria de preferencia a Colocasia indica, emquanto os nomes vulgares se podem melhor referir á Colocasia antiquorum. É, porém, admissível que os seus informadores applicassem á primeira espécie alguns nomes da segunda, que era muito mais conhecida. É interessante virmos encontrar Coge Çofar, o grande inimigo dos portuguezes, o instigador e a alma dos cercos de Diu, mandando pre- sentes de curcas a Garcia da Orta, e ensinando-lhe como se chamavam no Cairo. Orta dá-o como natural «da Pulha», e n'isto se conforma com outros escriptores nossos; Couto, que o diz natural de Otranto; e Barros, que, especificando mais, affirma que elle nascera em Brinde ou Brindisi, e era filho de um albanez e de uma italiana. Este mestiço, homem de «ardiz e invenções», c um perfeito exemplar do aventureiro levantino d'aquelles tempos. Captivo em rapaz pelos tur- cos, cujas galés corriam e infestavam então as costas da Apúlia, fez-se mahometano, e andou depois mettido nas armadas dos mamelukos, dos turcos e dos rumes, como homem de guerra ou homem de finança — umas vezes «capitão de uma galé», segundo refere Couto; outras «tisou- reiro» da armada, segundo assegura Gaspar Corrêa. Vemol-o embar- cado já na armada, que pelo anno de 1 5 16 o chamado Soldao de Baby- 286 Colóquio decimo octavo da Crisocola lonia, — o ultimo soberano mameluko do Egypto — mandou contra os portuguezes da índia. Muitos annos depois, no de iSSy, quando a grande armada de rumes foi atacar Diu, Coge Çofar, já então estabelecido na índia, e que preparara o ataque por terra, veiu logo a bordo combinar as operações com Soliman Pachá, como conta uma testemunha ocu- lar: «... vetine un chiamato il Cosa Zaffer, il quale é da Otranto, ma renegato, et fatto turcho, et era patrone di una galea quando il Signore Turcho mando 1'altra armata . . . » E finalmente, no segundo cerco, Coge Çofar foi o instigador, o agente diplomático, e quasi o general em chefe das forças mussulmanas, que se congregaram contra os portuguezes. Dirigiu todas as operações do cerco, até que, no dia 24 de junho de 1546, dia de S. João Baptista e de Corpus Christi, «que se acertou este anno todo em hum dia», estando a observar a fortaleza, com a cabeça de fóra de um muro, «passou per hy hum pilouro perdido, que lh'a le- vou com a mão direita, sobre que a tinha acostada». E assim morreu no seu posto um dos homens, que mais habilmente e com mais persis- tência combateram a influencia dos nossos nas terras do Oriente. (Cf. Barros, Asia, iii, i, 3; Couto, Asia, iv, iii, 6; Gaspar Corrêa, Lendas, III, 38o, IV, 479; Viaggio di Alessandria nelle Indie, pag. 149, que faz parte de uma collecção: Viaggi fatti da Vinetia alia Tana, etc. im- pressa em Veneza, i545. Esta curiosa relação de um prisioneiro italiano, que ía nas galés turcas, vem também na collecção de Ramusio, com o titulo: Viaggio scritto per um comiio venetiano.) Nos intervallos, porém, d'estes rompimentos de guerra, o intelligente e dissimulado italiano dava-se por muito amigo dos portuguezes ; e pres- tou mesmo importantes serviços a Nuno da Cunha, quando foi da morte de Bahádur Schab, ajudando-o a pacificar a cidade de Diu. Talvez de haver sido «tisoureiro», e sobretudo pelo valimento do rei do Guze- rate, havia-se tornado extremamente rico; e habitava umas vezes Diu e outras Surrate, onde levava a vida de um grande senhor oriental. Ali o conheceu o nosso Orta, e ali recebeu d'elle o presente das cur- cas. Orta chama-lhe Coge Çofar, e Coge Çofar ou Coge Sofar lhe chama também Barros, e a maior parte dos escriptores portuguezes. Gaspar Corrêa escreve Coje Çafar, ao que parece com melhor orthographia. O veneziano, que citámos, escreve o nome Cosa Zaffer, e julgo que mais correctamente seria Khuádja TzafTar, .ils jo^Uà.. COLÓQUIO DECIMO NONO DAS CUBEBAS INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Das cubebas falemos; postoquc, como diz Sepulveda, poucas vezes usamos delias per si, senam em composições. ORTA Nam he asi nesta índia; antes sam muyto usadas dos Mouros deitadas em vinho pêra ajudar a Vénus em suas vodas; e na terra donde as ha, que he a Jaoa, as acustumão muito pera a frialdade do estômago; podeis crer que as tem por muy grão mezinha. RUANO Muyto me maravilho diso, porque as cousas de que mais temos abundância estimamos em mais pouco. ORTA Não he esa regra em todo certa, porque no Malavar ha muyta cantidade de pimenta, que farta a todo mundo; e gasta tanta o Malavar só, como toda Europa. RUANO Dizey como se chama. ORTA Os Arábios citbebe e quabeb, e isto em escritores; e asi de todos quabebechini ;* e em Jaoa, donde as trazem, se • Pode talvez ler-se «de todos qua bebechini» ; mas tendo Orta dado primeiro a forma quabeb, parece-me mais provável a leitura que adoptá- mos; veja-se a nota (i). 288 Colóquio decimo nono chamão cumucos, ou em singular cumuc; e toda a outra indiana gente, ecepto a que fala malayo, lhe chama cubab- chini. RUANO Não tam somente as ha em Malaqua senão na China ^ pois tem o apelido da China. ORTA Não as ha na China, senão levãonas da Çunda e da Jaoa pêra lá. Como já vos dixe, os Chins navegavão este mar indico, e trazião as mercadorias que no caminho acha- vão, e por onde hião-, e os de Goa e Calecut, e os Guzarates e Arábios ouvirão que lhe chamavão cumuc, e corrupta- mente lhe chamaram cubabchini, porque a trazião os Chins. E esta he a verdade, e a origem deste nome. RUANO Dizei a feiçam do arvore, pois já dixestes o naçimento', e asi direis se as ha mais que de huma maneira só; porque ao diante provarei averem muytas especias. ORTA O arvore he como maçeira no tamanho, e as folhas sobem acima trepando, como nos arvores da pimenta; ou, porque milhor me entendaes, trepam pelo arvore como a éra: e nam he este arvore como murta, nem tem a folha dessa feiçam, senam he como a folha da pimenta; e sam mais estreitas as folhas do arvore das cubebas: nacem como cachos, nam pe- gados os grãos em hum cacho, como uvas; mas dependem de hum pé cada hum; e sam na própria sua regiam tam estimadas estas cubebas, que as cozem lá primeiro que dahi as leixem levar: e isto porque, semeandose nas outras terras, nam naçam nellas; e pôde ser que por isto se apodreçam na Europa e qua na índia. E isto soube eu de Portuguezes, dignos de fé, que me dixerão, e aviam residido muito tempo nas ilhas de Jaoa. Das Cubebas 289 RUANO Pode ser que seja outro género de pimenta? ORTA Nam o he; porque, em a Çunda, a principal mercadoria que de lá vem he a pimenta; e nam defere da do Malavar casi nada; e este arvore é deferente, e o fruto; e na mesma Çunda, postoque a levam á China, he em muyto pouca cantidade, scilicet, pera mezinha; e não pera comer, como a pimenta de que se carregam vinte náos ao menos pera a China: por onde não ha duvida em não ser pimenta. E dam estes arvores flores, que cheirão bem. RUANO Traz Mateus Silv atiço por autoridade de Serapião*, que o que chamam os Mauritanos cubebas he ácerca de Dios- córides mirins silvestris, e que a descrição de Galeno ácerca das cubebas he do Dioscórides de mirto agreste. E porque nam fala nenhum delles nas cubebas nam se ha de presumir que o deixasem de escrever, senão Galeno trata das cubebas no carpessio, e Dioscórides no capitulo de mirto agreste. ORTA Não vos pareça que Galeno e Dioscórides escreverão tudo; que muytas cousas deixarão de escrever, que não vieram á sua noticia; e Serapio, e os outros Arábios, fa- larão de ouvida nas mézinhas da índia, e como vião que aproveitava pera alguma cousa alguma mézinha escrita pellos Gregos, logo diziam esta he mézinha de que usam os índios, e que os Gregos chamão por tal nome. E ajudaos a ser enganados não saber a lingoa grega muyto bem; e por esta rezam errou o Serapio no que dise, e a este emitou o Pandetario. E a causa que dam he muyto fraca, scilicet, porque de outra maneira ficavam faltos Galeno e Diosco- * Mateus Silvaticus, cap. 288 (nota do auctor). 19 290 Colóquio decimo nono rides; como que os mesmos nam leixaram muytas cousas de escrever, como diz Avenrrois no 5 do Coliget. Mas que nam seja mirto agreste, cubebas, he claro; porque o mirtus silvestris he o que chamao ruscus; e os que não falam tam bem latim lhe chamão bruscus; que he huma frutiçe conhe- cida, cuja raiz entra no xarope de raizes: e deste parecer he também Ruelio, diligente escritor novo; e mais este mirtus agrestis não cheira cousa alguma *e as cubebas cheiram muyto bem, sam aromáticas; e as cubebas não tem dentro grãos, e o mirto agreste os tem e he mais doce, e as cu- bebas tem sabor agudo. E que carpessio não seja cubebas, também o provarei. E disto nam se segue mas inconveniente que Galeno leixar de escrever das cubebas: e não he incon- veniente, porque as cubebas se criam em ilhas muito dis- tantes donde elle habitava. RUANO Day as razões disso; porque Ruelio tam douto, e os Frades italianos que fizeram hum livro de botica, tam curiosos, tam bons boticairos, não tem carpessio ser outra cousa senão as cubebas de Serapio e de Avicena; porque nas composi- ções, onde Galeno pÕe carpessio, põem Serapio e Avicena cubebas, logo de sua entençam he que tudo he hum? ORTA Não vos disse eu já que Serapio errara nisto, e que não he muyto, pois era homem; e quis irse por a rezão arriba dita, scilicet, que Galeno e Dioscórides aviam de escrever tudo, e não leixar por escrever cousa alguma; pois agora vos digo que nam me maravilho muyto de Avicena errar também. E posto que Avicena e Serapio conheceram esta mezinha, não entenderam bem a Galeno nem Dioscórides. Diz Ruelio que he milhor carpessio o do Ponto, e que em Siria ha muyto: e pera isto alega Autuario. Dizei-me, pello amor que ha entre nós, quem deu em Ponto, ou Esclavonia, e na Siria cubebas! pois desta índia as levam pera lá, por ser mercadoria em que muito ganhão. Gastão boa cantidade Das Ciibebas 2()I delia os Turcos e Arábios, e pera Portugal vay muyta pouca cousa delias; e a causa he, porque os Mahometistas fazem com as cubebas a festa á rainha Vénus; e bem pôde ser que o carpessío tenha as mesmas forças que tem as cubebas. RUANO Pois que, será carpessio o mirto silvestre de Dioscórides? ORTA Nem he hum nem outro; porque Galeno diz, em o livro Antidotorum, que sam humas festucas*, e pois sabeis que cubebas e jiiirto agreste sam frutos tam notos, como ha de ser tudo hum; porque vos afirmo que não vem da Jaoa senão este fruto, sem festucas; nem sam muytas especias, senam huma só; nem he arvore sativa, senam silvestre; e não averia eu por inconveniente que, se a plantasem, nascesse em as terras das mesmas calidades. RUANO Dizem os Frades que virão cubebas de muytas maneiras; e que .estas sam humas sem sabor e outras amaras; e que elles tem outras na sua botica muyto melhores. ORTA Digo que sem sabor e amaras seram já as corrompidas; e as outras seram de mais pouco tempo colhidas e milhor conservadas. E se muyto aporfiardes dizendo que ha outra especia, vos digo que pôde ser, mas eu não o vi até este dia de oje de outra especia, nem vi quem a visse (i). RUANO Pois não falta quem diga, que cubebas sam semente de vitiçe. * A palavra, que segundo creio nunca teve os foros de portugueza, é tomada na sua accepção latina corrente. 292 Colóquio decimo noíio ORTA Outra nova duvida he essa; diram isso porque huma es- pecia da semente de vitiçe tem sabor de pimenta, estas ciíhebas tem casi o mesmo sabor; mas isto he falso, porque a vitex he agrnts castus, e asi se interpreta; as cubebas sam amigas de Vénus, e o agnus castus inabilita a Vénus; e asi as suas forças e estimulos enfraquece. E o que diz Antonio Musa que carecemos das cubebas, e Serapiam, milhor será dizer que elles se enganáram em lhe dar o signal de carpessio, e do mii^to agreste. E também tem o Pandetario que Galeno chama as cubebas, cauli; e he falso, porque isto he huma especia de dauco, scilicet, dauco sil- pestre (2). Nota (i) As cubebas são o fructo do Piper Cubeba, Linn. f. (Cubeba officina- lis, Miq.), um arbusto scandente e lenhoso, cujo porte é acertadamente notado pelo nosso escriptor: «trepam pelo arvore como era». Do mesmo modo notou o pequenino pé do fructo, que á primeira vista o distin- gue da pimenta: «dependem de um pé cada hum». O Piper Cubeba é espontâneo em Java, Sumatra e sul de Bornéo, sendo hoje cultivado na ilha de Java, e nas terras de Lampong, na parte meridional da de Sumatra. Orta menciona unicamente Java, pois a Sunda ou Çunda — de que falia — era a parte occidental d'aquella ilha, tida pelos nossos primeiros navegadores na conta de uma ilha se- parada. Os nomes vulgares que cita são bem conhecidos : — «Gubebe», «quabeb», «quabebechini», «cubabchíni», são as suas formas do conhecido nome arábico íj LT, kababah, e do nome hindus- tani ^^^^-^ v 'L^, kabab chini, cuja primeira parte é a simplificação do arábico. Que a segunda parte do nome, chini, procedesse de haver sido introduzida esta droga no commercio do Oriente pelos chins, é o que se afigura muito plausivel ; mas que a primeira parte, kabab, ou kaba- bah fosse uma corrupção do nome javanez parece-nos pouco provável (Cf. Ainslie, Mat. ind., i, 97; Dymock, Mat. med., 724). — «Cumucos» ou «cumuc» é effectivamente o nome javanez, que en- contramos modernamente escripto cumac e kumukus (Cf. Dymock, 1. c; Crawfurd, Dict., 117). Das Ciibebas Não ha rasão alguma para suppor que os antigos escriptores gregos ou latinos conhecessem esta drogai; mas parece ter sido introduzida no commercio pelos árabes, e foi repetidas vezes mencionada pelos seus escriptores — por Maçudi em uma enumeração, já citada, das espe- ciarias que vinham das longínquas ilhas do Oriente; e por Edrisi, já citado também, entre as mercadorias trazidas a Aden. A confusão entre as cubebas e o xapToiaiov dos gregos, que irritava o nosso escriptor a ponto de elle exclamar: Dizei-me pelo amor que ha entre nós, quem deu na Esclavonia ou na Syria cubebas?! essa con- fusão parece ter sido feita pelos escriptores arábicos. D'estes passou para os commentadores da Idade media e Renascimento, e para a lin- guagem ordinária das boticas ou apothecas, em que as cubebas se chama- ram muitas vezes fructus carpesiorum, ou como em uma lista de drogas, publicada em Ulm no anno de 1 596, fructus carpesiorum vel cubebarum. A outra confusão, entre as cubebas e o myrtus agrestis de Dioscó- rides— o qual era effectivamente uma espécie de Ruscus — também é da responsabilidade de Serapio; e, segundo diz Sprengel, foi primeiro combatida por Nicoláo Leoniceno. Um e outro erro rectifica o nosso es- criptor, assim como rectifica os erros relativos ao Vitex, e a uma Um- bellifera (Cf. Pharmac, 527; Sprengel, Diosc, 11, 634). Segundo Orta, empregavam as cubebas no Oriente para «ajudar a Vénus», e para «a frialdade do estômago» ; e Ainslie diz-nos, que mo- dernamente as consideram estomachicas, carminativas e estimulantes, o que confirma aquellas indicações. Na Europa, durante a Idade media, não foram simplesmente julgadas medicinaes, mas eram usadas regular- mente como condimento, e pagas por um alto preço, o que de resto suc- cedia então com todas as especiarias. Depois a importação diminuiu con- sideravelmente, e quasi se extinguiu; até que no nosso século voltou a adquirir importância, pela sua applicação no tratamento da gonor- rhíEa (Cf. Pharmac, 1. c; Ainslie, Alat. ind., i, 98). Nota (2) Orta menciona n'este Colóquio pela primeira vez os «frades ytalia- nos», mas refere-se a elles de novo nos seguintes com certa frequência, e parece que teria na índia o seu livro. Eram estes frades, os minoritas fra Bartholomeo e fra Angelo Palia. Effectivamente Bartholoma^us Ur- bevetanus e Angelus Palia Juvenatiensis publicaram no anno de i543 ' A identificação, que se pretendeu fazer do ww.y.y.'j-i de Theophrasto com as cubebas ou kumukus niaiayo, assenta unicamente sobre uma similiiança de nome, e não lem fundamento real. 294 Colóquio decimo nono das Cubebas em Veneza uns commentarios a Mesué Júnior; e n'esse livro — que não vi — se encontram as passagens citadas, na parte i, distinct. i, cap. 36, como se deprehende do que diz Clusius na traducção ou resumo latino dos Colóquios de Orta (Exotic, 184). Sprengel, que faz menção d'este livro, não o tem em grande conta; e o nosso Orla, apesar de chamar aos seus auctores «curiosos» e «bons boticairos», quasi nunca o cita, que não seja para lhe notar algum erro. Parece que estes pobres frades tiveram uma contenda scientifica com o erudito Matthioli, o qual lhes respondeu dura mas sabiamente, como era seu costume: acriter sed docte, ut solitus erat (Cf. Sprengel, Hist. rei herbarice, i, 332, Amstelodami, 1807). COLÓQUIO VIGÉSIMO DA DATURA E DOS DORIÕES INTERLOCUTORES SERVA, ORTA, PAULA DE ANDRADE, RUANO SERVA A minha senhora deu datiira a beber huma negra da casa-, e tomoulhe as chaves, e as joyas que tinha ao pescoço, as que tinha na caixa, e fogio com outro negro; mercê me fará em a ir socorrer. ORTA Como sabeis isso? SERVA Porque já tomaram a negra no Passo-Seco e acháramlhe ametade das joyas, e ella confesa que deu outra metade a seu amigo, que vai por Agaçaim; pôde ser que seja também já tomado. ORTA Vamos vela, que he huma molher solteira mestiça (i); e folgareis de a ver, porque a quem dam esta mezinha não falam cousa a preposito; e sempre riem, e sam muito libe- raes, porque quantas joyas lhe tomais, vos deixam tomar, e todo o negocio hc rir e falar muito pouco, e nam a pre- posito: e a maneira que qua ha de roubar he deitandolhe esta mezinha no comer; porque os faz estar com este aci- dente vinte e quatro oras. Deos vos salve, senhora. PAULA DE ANDRADE Im, im, im. ORTA Nam aveis de responder alguma cousa, mas que he isso? Im, im, im. PAULA DE ANDRiVDE 296 Colóquio vigésimo ORTA Esfreguemlhe as pernas muyto rijo pera baixo, e atemlhas com huns cairos e os braços; e lançemlhe hum cristel, que lhe agora escreverei, e hum vomitivo; e, desque isso tomar, pôde ser que lhe mande lançar algumas ventosas; e daqui a duas oras, se nam se achar milhor, mandalaei sangrar da vea do artelho, ainda que nisto tenho alguma duvida por ser a matéria venenosa. RUANO Eu a esta curaria, como quem está frenética, ou pera frenética de sangue. ORTA O que qua eu uzo he fazerlhe grandes vómitos, pera evacuar o que comeo, juntamente com o que está no estô- mago; e de verter*, e vacuar com cristeis fortes, e ligaturas, e ventosas, e ás vezes sangria no artelho; e com isto me acho bem, e nenhum me perigou, e todos saráram antes de vinte quatro oras. E a gente desta terra não tem isto por cousa perigosa, nem se tem por ruindade fazerse, senão quando se faz com máo fim: muytos o fazem por zombar de alguma pesoa. E eu vi dous homens, o mais moço delles era de 5o annos, a quem os filhos do Nizamoxa o deram, pera zombar delles, e hum era caçador, e outro era mestre de fazer frechas e arcos, e ambos curei, e ambos foram sãos, sem despois lhe sentir eu dano algum no cérebro ou meolo. RUANO Déstelo já a algum voso negro ou negra? ORTA Nam, porque nam me conformei com minha conçiencia a fazelo. * Na edição de Goa está «de virtir», e o sentido é para mim muito duvidoso. Da Datiira 297 RUANO Mandaime buscar essa erva. ORTA No campo vola amostrarei, como cavalgarmos; por agora sabei que he huma erva alta, e as folhas da feiçam de branca ursina; e as folhas nam sam tam grandes, e sam agudas no cabo, fazendo ponta a modo de lança; e ao redor da folha faz outras pontas da mesma maneira; e he a folha posta em hum tallo grosso, e tem muytos nervos semeados pelo meo; a frol, que naçe pellos ramos, he como rosma- ninho na cor; e he a mais redonda, e não tam feita como cubo: desta frol usam mais, ou da semente que nella se encerra; o sabor das folhas dos tallos he casi ensipido, com mu3^ta umidade, e he hum pouco amargozo: parece que cheira como rabam, digo como folha delle e ainda nam tam forte; por onde eu creria que he fumosa esta erva, com alguma venonisidade*. Moça, leva esta receita ao boticairo, que faça isto muyto depressa; e vós outras tende cuydado de me yr dar conta do que passa, e vamos comer (2). RUANO Falando com hum homem, que foy muyto tempo a Ma- laca, me dixe que a milhor fruta que avia no mundo era huma que chamavam doriôes, e lembrovos que tenhamos alguma pratica sobre isso. ORTA Eu não a provei, e dos homens que a provaram e as outras frutas nossas, ouvi que sabem bem, e outros dizem o contrairo, scilicet, que nam sabem tam bem como serejas, ou melões pera o gosto; antes me dizem que no principio * Toda a descripção da planta, ao lado de traços muito bem obser- vados, contém palavras de difficil explicação ; como a herva ser fumosa, ou a flor não ser feita como um cubo. 298 Colóquio vigésimo vos cheiram a cebolas podres, e desque os vindes a gostar, vos sabem muito bem, em tanta maneira, que dizem que hum mercador veio a Malaca, e que trazia huma náo car- regada de mercadorias, e que vendeo a náo e ellas pera comer, em dorióes somente. Isto contáram asi, não sei se he verdade, se mentira; mas em Malaca ha muy boas frutas, como uvas e mangas, e as não estimao tanto como dorióes. E pera que nam gastemos o tempo muito nisto, vos direi como he o dorião em breves palavras; pois nam he cousa de física, mais que dizerem os Malaios que he bom pera a festa de Vénus. RUANO Gabaramme esta fruta tanto que me foi neceçario falarvos nella. ORTA He o dorião hum pomo do tamanho de hum melam, e tem huma casca per fóra muyto grosa, e cercada de bicos pequeninos, a modo do que aqui em Goa chamamos jáca, do que ao diante vos farei mençam; he verde per fóra este pomo, e tem apartamentos de dentro, a modo de camarás, e em cada camará tem frutas separadas, na cor e no sabor como manjar branco; e porém não languido, nem que se pegue muyto ás mãos, como o mesmo manjar branco; mas o sabor he muyto gabado de todos, tirando alguns que dizem o que acima dixe; e estas frutas sam do tamanho de hum ovo de galinha pequeno (as que estão no repartimento); algumas ha que não sam brancas, mas como amarelo craro. A frol delle he branca, e tira pouco a amarela; a folha he de comprimento de meo palmo, aguda e saida, e he verde craro per fóra, e verde escuro per dentro; e tem dentro hum caroço como de pexego, e he redondo*. E hum fidalgo desta terra me dise que lhe lembrára ler em Plinio, escrito * Evidentemente o caroço náo estava dentro da folha. É forçoso confessar, que tudo isto não é um modelo de estylo descriptivo. Da Datiira 299 em toscano, nobiles doriones; depois lhe roguey que me buscase isto pera o ver no latim, até o presente me diz que o nam acha. Se eu disto souber alguma cousa eu o escreverei (3). Nota (i) Paula de Andrade era «mestiça», provavelmente luso-indiana; e era uma mulher solteira, isto é, levando uma vida livre e solta, que tal foi, por aquelles tempos, a significação habitual da palavra solteira. As ri- quezas accumuladas em Goa, e a reunião ali de muitos mercadores de diversas regiões, e de muitos portuguezes ociosos, haviam creado uma classe numerosa de solteiras, algumas d'ellas elegantes, possuindo jóias valiosas, e rodeadas de escravas. Gaspar Corrêa, referindo-se a um pe- riodo bastante anterior, diz-nos já o seguinte: «Erão todas as mulheres solteiras muyto ricas . . . e seu cabedal erão pannos branqos e de seda, e o mais era ouro em cadeas e manilhas; porque havia mulher que hia á igreja e levava tres e quatro escravas carregadas d'ouro». O seu luxo chegou a ser tal, que o honesto e rigido vice-rei, D. Pedro Mascarenhas, tentou atalhal-o, prohibindo, que «nenhuma mulher publica andasse em palanquim, se não descoberta'). Vê-se, pois, que o nosso escriptor introduz nos seus diálogos uma figura typica da vida de Goa. Importa pouco saber se Paula de Andrade existiu, ou se Orta a inventou para as necessidades da sua exposição; o que convém notar, é que o caso, se não é verdadeiro, é perfeitamente verosímil. A negra, isto é, a escrava — porque a palavra negra se não applicava unicamente ás africanas — foge depois do roubo para a terra firme, e é apanhada no Passo Secco. Este Passo, assim chamado porque nas marés baixas a ria tinha ali pouca agua, ficava na extremidade orien- tal da ilha de Goa, no fim da estrada de Santa Luzia, logo adiante da ermida de S. Braz. Havia ali uma fortaleza, confiada a um capitão e um condestabre, tendo ás suas ordens cinco naiques e quarenta piães, que sem duvida detiveram a negra. O amigo da negra, a quem ella confiara parte do roubo — ainda um traço perfeitamente natural — foge por Agaçaim. O Passo de Aga- çaim ficava no sul, entre a ilha e as terras de Salcete; e não havia ali guarda, por o rio ser «muito larguo e ruim desembarcação». Havia uni- camente uma barca e um «tenadar». (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, igi ; Linschoten, Navig., na carta de Goa ; Tombo do Estado da índia, 78 e 74). Soo Colóquio vigésimo Nota (2) Esta «datura» é a Datura alba, Nees von Es., ou antes a forma de corollas roxas (da «cor do rosmaninho»), chamada D. fastuosa, e que não differe especificamente da primeira. Orta descreve-a correctamente, comparando as suas folhas com as da «branca ursina» (Acanthus), e no- tando a inserção da flor, qne de feito se afasta um pouco das disposi- ções mais habituaes. Varias espécies de Datura possuem propriedades toxicas enérgicas^ ; mas, em doses convenientes, são applicadas pelos médicos hindus e mus- sulmanos no tratamento de varias doenças. O extractum daturce e a tin- ctura daturce, preparados com as sementes da D. alba; e o emplastrum e cataplasma daturce, preparados com as suas folhas, figuram mesmo na Phannacopoeia of índia, o que prova que foram officialmente ad- optados (Phartnac. of índia, lyS, índia Office, 1868). Mas o mais curioso e característico uso da datura, é aquelle uso cri- minoso, a que Orta se refere, que todos na índia conheciam e conhe- cem, e do qual fallaram Linschoten, Christovão da Costa, Pyrard de Lavai e outros escriptores contemporâneos ou quasi contemporâneos de Garcia da Orta. Os envenenamentos variavam em gravidade, desde os que tinham por fim causar a morte, até aos que unicamente constituíam uma «zom- baria», ou graça, como no caso contado por Orta, e passado com os fi- lhos do Nizam Schah^. Deve-se dizer, que a graça era pesada, e bem pró- pria de príncipes orientaes. Mais habitualmente, porém, a datura foi empregada para obter a insensibilidade ou inconsciência temporária com um fim mais ou menos condemnavel. Tanto Linschoten, como Pyrard de Lavai, se referem ao facto de as mulheres pouco escrupulosas de Goa recorrerem ao uso d'esta planta para adormecerem a vigilância dos ma- ridos ou dos protectores; e nos casos de roubo, como no de Paula de Andrade, parece ter sido de uso frequentíssimo. Em tempos posteriores a Orta continuou esta pratica, da qual fal- iam Wight, Murray e muitos outros. Nos nossos dias a Datura foi ainda empregada regularmente por uma classe de Thugs; e um dos auctores do Glossary, A. Coke Burnell, recorda o facto de ter julgado e conde- mnado muitos d'aquelles criminosos. Parece que o dr. Norman Chevers deu uma interessante noticia sobre aquelles dhaturias (os envenenado- ' O alcalóide da Datura, a daturina, foi considerado como idêntico á atropina, e tendo portanto a formula d H., Az 0«. Parece, porém, ser muito menos enérgico. ' Por isso a herva teve entre os portuguezes de Goa o nome de burladora, como recorda Cliristováo da Costa. Da Datiira res profissionaes com a daturaj, no seu trabalho Medicai jurisprudence of Bengal; mas não pude consultar este trabalho, e nem mesmo posso encontrar nas minhas notas onde o vi citado. Os envenenamentos com a datura deviam, pois, ser frequentes em Goa, e Orta, escrevendo a historia da sua clinica no Oriente, não podia deixar de mencionar este accidente usual. Nota (3) O ndorião» é o fructo do Durio pbeíhinus, Linn., uma grande arvore pertencente á familia das Malvacece, tomada esta no seu sentido mais lato. Orta nunca viu a planta, e nem mesmo pôde provar o fructo, que n'aquelles tempos de viagens demoradas não chegava em bom estado á índia. Effectivamente o Durio pbethinus habita só nas terras mais chegadas ao equador, varias ilhas do archipelago Malayo, peninsula de Malaca, e parte meridional da Indo-China. Pelas informações que lhe deram, consegue no emtanto descrever o fructo com uma certa exactidão, ainda que um pouco confusamente. E também exacto, men- cionando as encontradas opiniões, correntes sobre o sabor do celebre fructo; desde a opinião dos que o collocavam abaixo das fructas euro- pêas, e lhe notavam um cheiro repugnante a cebolas podres, até ao caso do mercador que vendeu nau e fazendas só para comer duriões. Parece com effeito, que uma certa iniciação é necessária para apreciar devidamente os duriÕes. Wallace conta, que ás primeiras tentativas em Malaca, o mau cheiro lhe causava uma repugnância extrema; mas de- pois, em Bornéo, se tornou um grande admirador do fructo ; e termina dizendo : «comer Duriões é uma sensação nova, e vale a pena ir ao Oriente para a experimentaru (Cf. Crawfurd, Dict. of the Indian Islands, 125; A. Russel Wallace, The Malay Archipelago, 74, London, i883). COLÓQUIO VIGÉSIMO PRIMEIRO DO EBUR OU MARFIM, E DO ELEFANTE; E HE COLÓQUIO que não faz pera física, senão pera pasatempo. INTERLOCUTORES RUANO, ORTA, SERVA, ANDRÉ MILANÊS RUANO Pois que os ossos dos elefantes vem em uso de medecina, será bem que falemos delles, e do elefante. ORTA Do elefante ha muito escrito; mas tem em si tanto que falar, e de que se maravilhar, que não se deve ter por sobejo falar nelle. E começando do marfim, vos digo que nenhum osso de elefante he pera o uso da física, nem da policia*, somente os dentes; e nam vos engane o que se es- creve do espodio, dizendo que he ossos queimados de elefante, porque ao diante vos farei certo nam o ser, se Deos nos conceder tempo pera isso e pera as outras cousas ; e he noto isto, porque dos elefantes que qua morrem não lhe aproveita a gente os ossos, e aproveitalhe a carne pera comer e os dentes pera a policia. RUANO E alguns tem cornos? ORTA Nam, porque estes que vemos todos sam dentes ou pe- daços delles, e cada elefante nam tem mais que dous dentes; e as unhas nam se aproveitam, ainda que Paulo Egineta afirme que si. E o elefante não lhe falece mais que fallar, * A palavra «policia» é empregada no sentido de industria, ou de fabrico do que hoje chamaríamos objectos de arte; veja-se a nota (4). 3o4 Colóquio vigésimo primeit^o pera ser animal racional; e (posto que sejam isto cousas nam pera física) mas em Gochim está hum estromento tirado de como falou duas palavras (i); e nam tendo que comer lhe disse o seu mestre (a quem chamam no Malavar naire e os Decanins piluane) que nam tinha a caldeira boa pera lhe cozer o arroz, e que levase a caldeira ao almoxarife; e que elle lha mandava consertar; ao qual o elefante foy com a caldeira na tromba; e o almoxarife disse ao naire que le- vasse ao caldereiro, e elle a concertou no fundo somente, onde estava danada, e o elefante a levou a caza, e cozendo nella o arroz, saya delia agua por nam estar bem soldada. Entonçes lha deu o naire, e o elefante a tornou a levar ao caldereiro, o qual a tomou e concertou; e de industria a leixou pior que estava primeiro, dandolhe algumas martel- ladas; e o elefante a levou ao mar, e a meteo na agoa, e olhou se deitava agoa pelo fundo ; e como vio que a deitava, a tornou a levar ao caldereiro, dando á porta muitos urros, como quem se aqueixava; e o caldereiro lha concertou, e soldou muito bem; e o elefante a foy provar ao mar, e achou muito boa; entonçes a levou a caza, e lhe fizeram de comer com ella. Vede se averia homem que mais siso tivese: isto pasou asi, e oje neste dia ha testemunhas que o viram, e outras maiores que por comuas leixo de dizer (2). RUANO Gomo se chama o elefante em arábio e indiano? ORTA Em arábio se chama Jil, e o dente cenaljil, que quer dizer dente de elefante; em guzarate e em decanim ati; e em malavar ane; e em canarim açete; e em lingoa dos cafres da Etiópia ytembo; e em nenhuma se chama baro, como diz Simão Genoes, porque falar estorias de longe he bom pera mentir. E em nenhuma cousa de física o gastam os Indianos; somente os físicos Arábios e Turcos, que curam por Avicena, o gastam no que nós o gastamos. Do Ebur ou May^Jim 3o5 RUANO E pois em cousas de policia se gasta nessa terra tanta cantidade quanta vem de Çofala, porque me dizem que também vem de Portugal pera qua em mercadorias que elrey manda? ORTA Aveis de saber que da Etiópia, scilicet, de Çofala até Melinde vem cada anno á índia seis mil quintaes, afóra o que vem de Portugal, que he muito pouco a respeito destou- tro; e afóra isto ha elefantes no Malavar, ainda que poucos, e nam os domam; ha em Ceilam muitos e mui doutrináveis, e sam os mais estimados que ha na índia; ha os em Orixá, em muyta cantidade, e em Bengala e no Patane; e na banda do Decam, do Cotamaluquo que confina com Bengala, ha muitos; e ha os em Pegú, e em Martavam e Siam mi- Ihores ; e dizem que o rey de Siam tem um elefante branco, e que se chama per onrra rei do elefante branco; se isto he verdade eu nam o sey (3). RUANO Inda me nam satisfizestes minha duvida, que he onde se gasta tanto dente de elefante. ORTA O marfim na China se gasta algum, e já agora se vay gastando mais; o de Ceilão se gasta em cousas muyto po'- Hdas, que se fazem na terra, de cofres e pentes e outras muytas cousas; e o de Pegú e o de Ceilão pela mesma maneira; e todos os seis mil quintais^ que vem de Çofala, se gastam em Cambaia, tirando algum pouco que vai pera a China, como já dise. Isto se gasta cada anno, e tanto monta vir muito como pouco (4). RUANO Em que o gastam, se o vós nam dixeseis, nam o creria. 20 3o6 Colóquio rio\>simo primeiro ORTA Aveis de saber que o demónio pôs certa superstição em as molheres e filhas dos Baneanes, que sam os que vivem segundo o custumc pitagórico, e he que, quando morre alguni parente, quebram as molheres todas as manilhas que tem nos braços, as quaes são vinte ao menos; e logo fazem outras novas, como tiram o dó; e estas manilhas sam de marfim todas, postoque algumas sam de tartaruga; e isto ordenou o demónio porque se gastase tanto marfim, que vem da Etiópia cada anno; e sempre se gastará, em quanto esta superstiçam durar; e vai este marfim segundo a gran- dura dos dentes, porque os dentes meudos valem pouco, c o dos grandes muyto, peso por peso; e também se fazem outras cousas da policia de marfim; mas he isto em pouca cantidade. RUANO Maravilhado estou desa superstição; porém me disei se tornam a naçer os dentes aos elefantes, ou se lhe caem; porque também nam sei como hay tanto elefante no mundo. ORTA Tendes muyta rezam niso, porque os elefantes vivem muyto; mas nenhum delles tem mais de dous dentes, nem os mudam, senão ha muyta cantidade delles; e, o que mais he, que as fêmeas nam tem dentes, e algumas os tem de palmo, nam mais. Nesa Etiópia matam os cafres os elefantes pera lhe comer a carne crua, e nos venderem os dentes; e isto he com armadilhas de arvores, e de outras muytas maneiras, que he de presumir que ha mais elefantes em a Etiópia do que ha vacas em Europa. RUANO De que doença morrem os elefantes, e de que servem nestas terras? ORTA EUes sam muito melancólicos, e am muyto medo, mais de noyte que de dia; e quando dormem de noite, pareçe Do Ebiir ou Marfyn que veem cousas temerosas, e soltamse; por onde a maneira de curar isto, he que dormem os seus naires em cima delles; sempre lhe estão falando porque nam durmam. Tem camarás muytas, muytas vezes, outras vezes tem ciúmes muyto for- tes, que caem em muy grande fúria, e quebram as cadeas, e fazem muyto mal por onde pasam; isto curam os naires, levandoos ao campo, dizendolhes mil injurias, e reprenden- doos de seu pouco siso; e asi pera isto e pera outras cousas tem mézinhas particulares de qua da terra. E quanto he o serviço delles, alem de trabalho de acarretar e mudar a arte- Iharia de huma banda pera outra, servem os reis na pe- leja; e ha rey que tem mil elefantes, e outros menos, e outros mais; vam á guerra armados, em. especial na testa e peito, como cavallos encubertados ; póemlhes as campai- nhas das ilhargas pendentes; e pÕemlhe nos dentes armas engastadas, da feiçam de ferros de arados; e pÕemlhe cas- tellos emçima em que vam os naires que os regem, onde le- vam ganchos e bisarmas, e alguns aguora, de pouco pera qua, levam meos berços e panellas de pólvora. Eu os vi já pelejar, e o mal que lhe vi fazer não he outra cousa senam pôr a gente em desordem, e fazela fugir ás vezes; dizemme que muytas vezes fogem, e que fazem mais desbaratos nos seus que nos contrairos; isto eu não no vi (5j. RUANO Ha outra maneira alguma de pelejar delles? ORTA Si; mais isto he hum por hum com os seus naires, que os ensinam adestrandoos em çima delles; e he muy crua batalha, onde se ferem com os dentes, esgrimindo hum, emparandose o outro com seus dentes. Feremse mui brava- mente, e muitas vezes se vem a daremse tam grandes golpes, hum a outro, com as testas, que cae hum delles morto no cham; e hum portuguez digno de fé me contou que vira morrer hum muy poderoso elefante de hum encontro que outro lhe deu. Também pelejam, embebedandoos; e fogem. 3o8 Colóquio vigésimo primeiro e tomão ás vezes hum homem na tromba e fazemno em pe- daços, o qual eu vi já algumas vezes. RUANO Diz Plinio que o sangue delle aproveita para muytas cousas, e o fígado e a raspadura do marfim, isto he asi? ORTA Bem pôde isso ser verdade, mas qua não se usa. RUANO Dizem que o elefante dorme com a elefanta, como homem com molher, contrario dos outros cadrupedes. ORTA O contrario diso he verdade, porque tem ajuntamento como os outros cadrupedes; nem diferem a mais, somente que o macho se põe em huma barrançeira mais alta, e a fêmea está mais baixa; isto me contaram Portuguezes dignos de fé. Eu vi já elefantes, mas não os vi ajuntar com elefantas em auto de gerar, somente conto isto que ouvi. RUANO Também diz Plinio que a alma dos elefantes tira as ser- pentes dos seus lugares*. ORTA Não sey parte diso, porque não o vi qua, nem ouvi. RUANO Também diz Plinio que o elefante, quando come o ve- neno, busca o azambujo pera se curar**. * Elephantorum anima serpentes extrahit; o nosso auctor traduziu mal a palavra anima. ** Li. 280, cap. 80 (nota do auctor). É um evidente erro typogra- phico; a phrase de Plinio: ... occurrit oleastro huic veneno suo, vem no lib. VIII, 41, ou cap. 27 das mais antigas edições. Do Ebiir ou Marfim 309 ORTA « Não o pi qiia, e por isso não pude saber isso, nem ouvi que os ouvesse na Etiópia, onde os ha. RUANO Também escreve Plinio que os melhores elefantes e mais belicosos ha na Trapobana que na índia. ORTA Se Trapobana quer dizer Çeilam, como alguns estimaram, os milhores sam de todos e os mais domáveis; e se quer dizer Çamatra**, também os ha, mas nam sam tam bons como os de Çeilam. E muytas vezes cuidam os homens que huma cousa vem de huma terra, e vem de mais longe \ asi como muy- tos cuidaram que o melhor lacre vinha de Çamatra, e por isso até oje lhe chamam locsiimutri, e este bom lacre nam o ha, senam vem de Pegú ; e asi pôde ser dos elefantes de Çama- tra. RUANO Sam capazes da lingoa da sua regiam, como diz o mesmo Plinio? ORTA Nam tam somente da sua, senam da alhea, se lha ensinam; e os trazidos de Çeilam pera o Guzarate e o Decanim fa- cilmente lhe fazem entender a lingoa os seus mestres; e al- guns levaram a Portugal, que lhe .fizerão entender portu- guez; e asi o entendem alguns na índia que vos amostrarei; e sam cubiçosos de gloria, que se lhe dizem que sam de elrei * Na edição de Goa falta a palavra «Orta»; e isto torna-se claro, porque se seguem as duas perguntas de Ruano. Faltam também as qua- tro palavras, que intercalei em itálico, ou outras quaesquer com um sen- tido análogo. Orta responde naturalmente, que não poude verificar na índia o que Plinio disse da Africa; e accrescenta, que lhe não consta haver a^ambujos na Ethiopia, onde ha elephantes. ** Orta volta a fallar da identificação da Taprobana com Suma- tra, ou com Geylão; veja-se o que disse a pag. 18 e a pag. 233. 3io Colóquio vigésimo primeiro de Portugal, folgam muito, e tem vergonha do mal que fa- zem; sam agradecidos do bem que lhe fizeram; sam vinga- tivos das injurias que lhe fazem ; que já aconteçeo em Co- chim, ' porque a hum elefante deitou hum homem humas cascas de coquo, e lho quebrou na cabeça, guardou o bom elefante a casca do coquo na boca, e tendoa guardada em huma queixada, vendo o homem que lhe avia feito a inju- ria, lhe arremesou a casca do coquo com a tromba; e depois, veo em uso e rifam (como dizem os Castelhanos) dizerem os homens, ainda trago a casca do coquo na queixada, por dizerem ainda me alembra a injuria que me fizeram: e por aquesto podeis ver que tem memoria os elefantes. RUANO Também diz Plinio mu3Atas cousas alem destas, scilicet, que tem guerra com o renoçerote sobre o pasto, ORTA Estes renoçerotes ha em Cambaia, onde parte com Ben- gala, e no Patane, e chamamlhes ganda: não sam tam bons no amansar como os elefantes, e per esta rezam nunqua pude saber isto bem sabido; porém traz rezam que dous animaes tam grandes e feros se queiram mal naturalmente; e quando escrever do licio farei memoria deste animal, onde direi o que mais souber (6). E também diz Plinio, que com çumo de cevada posto na cabeça se lhe tira a dor que tem; mas a cevada nam a ha em Etiópia, onde vem a mór canti- dade, e dos outros cabos ha somente em Bengala, e em Cam- baia alguma pouca cantidade; por onde nam sei como se isto pôde esprementar, mas sei que aos mansos lhe poderia fazer proveito. RUANO Como se amansam e ensinao? ORTA Os novos com açoutes, e com vergonhosas palavras e fome, e boas obras e beneficios que lhe fazem, e bom tra- Do Ehur ou Marfim 3ii tamento: os grandes me dixeram que em Pcgú, pêra os amansar, os metem em humas cazas grandes, de muitas portas pequenas; e dahi os ferem os que cstam nas portas com azagayas e zargunchos, e logo se metem dentro, e quando se querem vingar de hum lhe sae o outro, isto lhe fazem até que esteem muy cansados e feridos, e mortos de fome muito; e entonçes lhe dizem, depois de muito feridos, que o que lhe fizeram foy feito porque nam cuydem que sam alguém; e que se lancem no cham, e que lhe faram bene- ficios de amigo; deitase o elefante no cham, e alli o lava o mestre; e elle, desque he lavado e untado com azeite, lhe dam de comer e cada ora lhe vem perguntar o que quer, e como está, e asi, com estes castigos e afagos, depois vayse fazendo manso e domestico (7). Estas cousas do elefante vos quis dizer, porque sam as mais certas, porque muytas outras conta Plinio; mas quero dizer o menos, e mais certo; porque pera a física isto sobeja que vos dixe. SERVA Está ahi miçer André milanês, o lapidairo. ORTA Dilhe que suba. ANDRÉ MILANÊS Beijo as mãos de vossa mercê. ORTA E nós as vossas. ANDRÉ Quereis vender a vossa esmeralda grande ou a pequena, porque ambas vos farei comprar; porque a mais pequena he mais fina. ORTA Tudo venderei, e volas darei ambas pera que as mostreis ao comprador somente; e isto confiarei de vossa fé, que as não amostreis mais que ao comprador, e ao seu conselheiro, tornandomas á mão logo, se as não comprar. E comtudo me 3l2 Colóquio vigésimo primeií^o dizei se o tempo que estivestes em Pegú vistes caçar elefan- tes e domar elefantes? ANDRÉ Duas vezes: huma foy indo elrey e todo o reyno á caça, e seriam 200:000 pessoas o mais^ e cercavão a caça, scilicet, fazendolhe cercos, e como foram pequenos os cercos, porque cada vez se faziam mais pequenos, tomaram grande multi- dão de veados e porcos e tigres, muytos vivos, e outros mortos a feridas. ORTA Deste modo vi fazer caça ao Nizamoxa, e tomar huma grande multidam. ANDRÉ Entonçes tiverão cercados 4:000- elefantes, scilicet, fê- meas e machos e pequeninos; e leixouos yr todos, e lica- ramlhe 200, entre grandes e pequenos, por nam despovoar o monte; e isto eu vi, e os domaram, scilicet, os duzentos cercados de grosas traves, e cada vez eram mais pequenos os çercos, e mais fortes, até não aver mais largura, que quanto hum elefante podia caber; e ali por* aquelas aber- turas das traves muyto pequenas tomavam cordas grossas de rotas (que sam feitas de hamas varas que se muyto bran- dem) e lhas lançavam aos pés, e outras nos dentes, que os faziam estar sem se bulir pera huma parte nem outra, e de- pois os cingiram com duas cordas pera cavalgarem nelles, e ferindoos bravamente, e elles chorando lagrimas que lhe eu vi, cavalgou em cada hum seu mestre; e metendo os pés polias çintas lhe dizia que soubessem que se nam tinham siso que os feririam sempre, e os matariam de fome, e como consentissem na verdade, os untariam com azeite e lhes da- riam de comer, e foram os lavar; tirando os fóra, a cada hum * Na edição de Goa está «alimpou», que de modo algum podia ter sentido; na errata manda substituir «ajuntou», que também não se per- cebe, e deve ser um erro. Com as palavras «ali por» a phrase torna-se mais clara; veja-se adiante a nota (8). Do Ehiir ou Marfim 3i3 meteram entre dous mansos que os aconselháse, e deste modo foram todos domados. ORTA Eu já ouvi esta maneira de domar; mas de caçar nam cuidei que em Pegú e Çeilam aviam tantos; e agora me dizei outra alguma maneira de caçar, se sabeis. ANDRÉ Tinha elrey fama de hum elefante muyto grande, que an- dava no mato, e mandou lá elefantas muyto mansas e domes- ticas, e amestradas, dizendolhes que nam quizesem ter ajun- tamento com os elefantes, senam prometcndolhe primeiro que consentiriam como chegassem ás suas moradas: isto lhe davam por signaes a entender. E os elefantes, como as fê- meas lá foram, se vieram pera ellas; e tratando com ellas amores, vieram após ellas, e pascendo poUo campo até os meterem dentro em Pegú (que he grande cidade) e dalli se meteram em parte onde os cerraram; e leixaram por diante yr o outro, e as elefantas lhe tiraram, e ficou aquelle só da maneira dita, e foy domado pela maneira que açima dise (8). RUANO Yso está muy bem; porém diz Plinio* que com o bulir dos dentes, e tascar os porcos, os elefantes tornam atrás e sam espantados? ORTA Já soube o contrairo diso; porque nas estrabarias dos elefantes ha porcos, e nam fazem caso delles: no mato da terra do Malavar ha muytos porcos, donde ha alguns elefan- tes, e não se diz que delles ajam medo. Verdade he, eu sei isto, o que diz Plinio, que avoreçem os ratos muyto, porque onde dormem os elefantes, se ha ali ratos, dormem os elefan- tes com a tromba encolheita, porque lhe não morda ou pique nella; e polia mesma rezam avoreçem as formigas. E v. m. * Livro 8, cap. 9 (nota do auctor). 3i4 Colóquio vigésimo primeiro tenha cuidado de me vender as minhas esmeraldas, e va- mos comer. E não me tenhaes por leve por falar tanto nisto, que Mateolo Senense, homem douto, falou muyto do ele- fante, e não tantas verdades como eu contei. Nota (i) Desde tempos muito antigos, pelo menos desde os tempos de Megas- thenes, todos, os que observaram os elephantes, encareceram e louva- ram a sua sagacidade. Plinio chegou a attribuir-lhes sentimentos de probidade, de prudência e de justiça, qualidades raras mesmo no ho- mem : immo vero (quce etiam in homine rara) probitas, prudentia, cequi- tas. D'aqui a dar-lhes o uso da palavra não ía mais que um passo. De resto, a noticia sobre o elephante que fallou não é da lavra do nosso escriptor e da sua exclusiva responsabilidade. Damião de Goes refere também como cousa muy certa, que estando Diogo Pereira, homem no- bre e digno de fé, na cidade de Bisanaga (Bijayanagar), viu ali um ele- phante escrever com a ponta da tromba; e, perguntando-se-lhe depois o que comera, respondeu em voz clara: arro^ e bethelem (betle). (Cf. Plinio, VIII, I ; Damião de Goes, Chron. do felic. Rey D. Emanuel, 275, Lisboa, 1619.) Nota (2) A historia do elephante e do caldeireiro devia ser corrente na ín- dia, e contou-a também fr. João dos Santos com ligeiras variantes e um pouco simplificada. O mesmo fr. João dos Santos conta outras his- torias do elephante chamado Perico, e Damião de Goes algumas do elephante Martinho, que são mais ou menos análogas a esta, e á do elephante e da casca de coco, referida pelo nosso escriptor nas pagi- nas seguintes (Cf. fr. João dos Santos, Ethiopia oriental, part. i, livr. iii, cap. i5, Évora, 1608). Nota (3) Os nomes vulgares, que Orta cita, são pela maior parte fáceis de identificar: — «Em arábio se chama Jil, e o dente cenalfil. . .» Effectivamente o nome arábico é ^,fil; e o dente chama-se J^, sen ou cen, d'onde cen-al-Jil. Do Ebur ou Marjim 3i5 — «Em malavar ane ...»; este é o nome mais vulgar nas línguas dravidicas da índia meridional, áne, ária, ánei, em tamil, maláyalam e outras. — «Atiu é, com uma simples e ligeira modificação orthographicu, o nome escripto por Hunter, hàtí, hátti, háthi, e empregado por muitas tribus do leste e do centro da índia. — «Ytembo», na Africa; não encontrei este nome na rica nomen- clatura africana, em que o elephante se chama indhlovú, n'^amba, ^ou, jòuy li-tou, n,jovo e de outros modos; mas é bem possível que ytembo fosse ou seja ainda conhecido sem eu o saber. Em todo o caso a palavra tem um certo fácies africano. Orta dá a distribuição geographica dos elephantes, de um modo que para o seu tempo devia ser muito exacto, posto que as cousas te- nham mudado consideravelmente de então para cá. Tanto na Asia, como na Africa, os elephantes téem pouco a pouco recuado diante do homem; e regiões ha, onde eram numerosos no começo do nosso século, e hoje se não encontra um só. Em primeiro logar, refere-se ao grande numero de elephantes que então havia na Africa, dizendo-nos, que da parte da costa entre Sofala e Melinde se exportavam annualmente para a índia seis mil quintaes de marfim, uma exportação a que já se referira antes d'elle Marco Polo^ e se referiram depois d'elle fr. João dos Santos e muitos outros. Se at- tendermos á enorme mortandade d'aquelles animaes, que se tem feito nos séculos seguintes e particularmente no nosso, não parecerá exa- gerada a sua phrase, de que deviam ser ali mais numerosos do que «vacas em Europa», uma phrase que — seja dito de passagem — pa- rece occorrer naturalmente aos nossos escriptores; fr. Gaspar de S. Ber- nardino diz do mesmo modo: . . . «os quaes affirmam serem mais que as Vacas em Europa» fltin. da índia por terra até este reino de Portu- gal, 3j v., 1611). Em relação á índia, diz-nos Orta, que os elephantes se encontravam no Malabar, Orissa, Bengala, Patane, e parte oriental dos estados do «Gotamaluquo», isto é, do reino de Golconda. Deve advertir-se que Patane não significa n'esta passagem o Afghanistan, mas as terras de Behar, no valle médio do Ganges, como já notámos no Colóquio de- cimo. Vè-se, que elle indica quasi todo o planalto, que descáe dos Gha- tes occidentaes para a costa do golpho de Bengala e valle do Ganges, onde então deviam existir grandes florestas e largos tractos de terrenos incultos e de jungles, pelos quaes vagueariam numerosas manadas de elephantes, que em tempos mais modernos têem desapparecido ou di- minuido consideravelmente. Aponta a abundância em Ceylão de elephantes «muy doutrináveis» ; no que está perfeitamente de accordo com o que disse Plinio, sobre a intelligencia do elephante da Taprobana; e com o que repetiu nos 3i6 Colóquio vigésimo prijiieiro nossos dias sir Emerson Tennent, sobre a facilidade com que se aman- sam e aproveitam os d'aquella ilha, tanto na própria ilha, como na índia, para onde são levados em grande numero*. Nota também, mais adiante, a existência de elephantes em Sumatra, no que prova quanto andava bem informado, pois Sumatra é o único ponto do archipelago Malayo onde elles se encontravam, pelo menos em abundância^ (Cf, Crawfurd, Dict., i35). Falla-nos por ultimo nos elephantes de Pegu, Martabão e Sião; no que continua a ser exacto, pois todas aquellas terras da Indo-China eram, no seu tempo, uma das regiões do globo em que existia maior numero d'estes grandes pachydermes, tanto no estado selvagem como domesticados. A propósito de Sião, menciona naturalmente o famoso elephante branco, cuja existência os portuguezes conheciam, e que ha- viam mesmo verificado muitos annos antes. Segundo conta Gaspar Cor- rêa, quando Simão de Miranda foi a Sião, no anno de i5ii, o rei man- dou-lhe mostrar as cousas notáveis da cidade, « . . . e hum alifante branco que tinha, porque era por todas as partes nomeado por senhor do ali- fante branco, que outro nom havia» (Lendas, ii, 263). Como se vê, não escapa á enumeração do nosso escriptor terra al- guma em que se criassem então aquelles notáveis animaes. Nota (4) Esta noticia de Orta sobre a grande quantidade de marfim que se trabalhava em Cambaya, é confirmada e explicada por Duarte Barbosa nas seguintes phrases, pelas quaes se vê bem o que era a «policia» de Orta : «Nesta cidade se gasta grande soma de marfim, em obras que nela fazem muyto sotis e marchetadas, e outras obras de torno, como saom manilhas, cabos dadaguas, e em tresados, jogos demxadrex, e tavolas, porque ha hy muy deliquados torneiros que fazem tudo; e muytos ley- tos de marfim, de torno, de muy sotis obras, e contas de muytas ma- neiras ...» (D. Barbosa, Livro, 286). ' No fim do Colóquio da Canella, Orta tinha dito : que todos os elephantes das outras re- giões guardavam respeito e obediência aos de Ceyláo. Isto era uma velha crença, que, ape- sar de não ter fundamento, foi muitas veze? repetida, nomeadamente pelo viajante francez Tavernier. ' Disse-se também, mas com alguma duvida, que os havia igualmente em Borneo, só em parte da ilha e em pequena quantidade- Os elephantes de Ceyláo e de Sumatra apresentam varias differenças osteologicas do da índia (Elephas indicus, Cuv.); e são considerados por alguns naturalistas como uma espécie particular, Elephas sumalranus. Do Ebiir ou Marjim Nota (5) É bem conhecido de todos, o facto de se terem empregado regular- mente na guerra os elephantes, não só os asiáticos, que ainda hoje se domesticam facilmente, como também os africanos, que desde tempos muito antigos deixaram de ser domados; e este assumpto tem sido tra- tado variadas vezes, e foi mesmo o objecto de um livro especial (Ar- mandi, Hist. militaire des elephantsj. Paliando da índia, lembram-nos logo os elephantes de Poro, e o ter- ror que a sua vista causou aos cavallcs dos soldados de Alexandre na batalha do Hitaspis. Eram duzentos, collocados na frente das tropas in- dianas, de cem em cem pés; e, no mais acceso da refrega, os soldados de Poro acolhiam-se junto d'elles, ad elephantos tanquam ad amicos mu- ros confugiunt; de modo que a batalha tomava um aspecto singular, e diverso do de todas as outras, eratque ha^c pugna nulli priorum cer- tamine similis. Depois de Poro, e até ao tempo de Orta, os elephantes continuaram a entrar regularmente na composição dos exércitos asiá- ticos; e na grande batalha de Panipát (i526), as forças de Dehli conta- vam — segundo Gaspar Corrêa — «oitocentos alifantes», numero que não é exagerado, e o próprio commandante das tropas mongoes, Bá- ber, calculava em proximamente mil. (Cf. Arriani de exp. Alex. Magni, 33g et seqq. versão de N. Blan- cardo; Lendas, iir, SyS; Erskine, Hist. of Báber, i, 434). Orta não nos dá, portanto, novidade alguma em relação ao emprego militar dos elephantes; mas dá-nos uma indicação muito interessante so- bre a sua adaptação, então recente, á nova arte da guerra, «aguora de pouco pera qua levao mêos berços e panellas de pólvora». Era a com- binação da pólvora e da ariilheria com o elephante. Nos combates com os portuguezes, os elephantes não figuraram muito a miúdo, porque esses combates se localisaram geralmente nas terras do litoral, ataques e defezas de praças, em que mal podiam ser empregados. Comtudo, em algumas occasiões, os nossos soldados en- contraram-se face a face com elles; e parece que ao principio com certo receio. Na tomada de Malaca, andavam pela rua dez elephantes: . . .«es- tavão muitos mouros e El Rey com os alifantes, que remeterão com os nossos com grandes bramidos por fazer espanto, de que os nossos ouve- rão temor e nom forão adiante». Tornou-se necessário, que Fernão Go- mes de Lemos, Vasco Fernandes Coutinho e D. João de Lima dessem o exemplo, atacando-os ás lançadas pelas trombas, para que os soldados cobrassem animo (Lendas, 11, 240). O nosso Orta, porém, diz que os viu pelejar; mas não diz onde. Tal- vez em alguma guerra interior, entre príncipes mussulmanos e hindus, a que elle acompanhasse o seu amigo Buhrán Nizam Schah. Em todo 3i8 Colóquio ingesimo pri77ieiro o caso descreve acertadamente a sua acção, dizendo que os não viu fa- zer mais do que lançar a confusão nas fileiras do inimigo. Refere-se tam- bém ao perigo que havia na sua debandada, quando, feridos e ater- rados, fugiam, e contribuíam para a derrota do próprio exercito. Isto é evidentemente uma reminiscência das suas leituras. Arriano conta, que assim se terminou a batalha do Hitaspis; e Plinio dá a mesma no- ticia de um modo geral: vulneratique et territi retro semper cedunt, haud minore partium suarum pernicie. É sem duvida a estas noticias clássicas, que o nosso escriptor se reporta; mas, com os seus escrúpu- los habituaes, acrescenta: «isto eu não no vi» (Cf. Arriano, 1. c; Phnio, VIU, lO). Nota (6) Quando Orta, no Colóquio trigésimo primeiro, volta a fallar da ganda, ou rhinoceronte, dá a noticia, aliás bem conhecida por outras fontes, de que el-rei D. Manuel mandou um d'estes animaes de presente ao papa. Como o presente da ganda se liga com o de um elephante, mandado ao mesmo papa Leão X, procuraremos n'este logar, como e quando foi a remessa dos dois grandes e então quasi desconhecidos pachydermes. Alguns dos nossos escriptores, menos bem informados, dizem que D. Manuel mandou juntamente . . .«hum Elefante e huma Abada, que forão os primeyros que em a cidade de Roma se viram do Oriente». A noticia não é absolutamente exacta, porque os dois animaes foram separados. Primeiro foi o elephante, e a sua chegada a Roma tomou as propor- ções de um grande acontecimento — foi um successo, como hoje se diria. Nos tempos áureos da antiga Roma haviam-se visto no Circo muitos elephantes; e Plinio conta, que só no triumpho de L. Metello figuraram 140, tomados aos carthaginezes. Depois d'isso vieram muitas vezes ao Circo, onde se fizeram cruéis hecatombes d'aquelles grandes e pacíficos animaes. Não sei, se entre todos os elephantes trazidos a Roma, se não encontraria um único asiático — uma opinião, a que nos referiremos adiante. E natural que algum ali viesse; mas é certo que a maior parte, ou quasi totalidade, devia vir da Africa, onde os elephantes eram en- tão numerosíssimos, e se encontravam muito mais ao norte do que hojei. Fosse como fosse, já nos últimos tempos do Império se viram menos na Europa; e depois, durante a Idade-media, tornaram-se rarís- simos. Podemos apenas apontar um ou outro; como foi aquelle que o ' Segundo Sir Emerson Tenncnt, os elephantes trazidos por Pyrrlio á Itália eram asiáti- cos; mas posteriormente quasi todos os que vieram a Roma deviam ser africanos. Do Ebiir ou Marjim 3i9 grande khalifa Harun-er-Raschid mandou a Carlos Magno no anno de 802; e o que S. Luiz, rei de França, enviou a Henrique III de Ingla- terra no anno de i255. Como se vè d'estes exemplos, o presente de D. Manuel era digno do faustoso rei que o mandava, e do faustoso pon- tífice que o recebia (Cf. Benedictina lusitana, 11, 385; Plinio, viu, 6; An- nales Francorum, A. D. 810; Tennent, Ceylon, 11, 295). O elephante fazia parte do riquíssimo presente, levado por Tristão da Cunha na conhecida embaixada do anno de i5i4, no qual entra- vam outros animaes: um Cavallo «pérsio» mandado a D. Manuel pelo rei de Hormuz ; e uma onça de caça, ou chitá. Todos os historia- dores do felicíssimo rei, como Damião de Goes e Jeronymo Osorio, des- crevem miudamente a entrada em Roma da embaixada; mas as relações mais interessantes e vivas são sem duvida alguma as que se encontram na carta do dr. João de Faria, e na de Nicolau de Faria, estribeiro pe- queno d'El-Rei, o qual levava especialmente a seu cargo os animaes. Este conta todos os trabalhos que passou para desembarcar o elephante, e para o levar depois até Roma. A curiosidade de o ver era intensa. As estradas estavam apinhadas de gente. Uma noite, vieram dez ou doze condes e duques, com tochas, examinar o monstruoso e desconhecido animal. Em outra occasião, o povo chegou a destelhar a estrebaria, onde o tinham alojado, para o contemplar á vontade. Pelos caminhos viam-se «senhores e bispos e molheres em mulas», que vinham ao seu encontro; e já próximo de Roma vieram «as irmans do papa com muy- tas molheres fremosas». Quando se tratou de apparelhar e ataviar o elephante para a entrada solemne, o apertão era tal, que o papa teve de mandar a sua guarda suissa para fazer a policia: «a guarda dos soí- ços toda». Afinal conseguiram vestir o elephante; Nicolau de Faria fi- cou satisfeito com o seu aspecto, e escreve a D. Manuel: «hia tanto fre- moso, sendo muyto fêo, que hera cousa gentil de ver». Na pomposa passagem de Tristão da Cunha pelas ruas de Roma, o nfremoso» animal atrahia todas as attenções; e quando chegou onde estava o papa portou-se admiravelmente; fez as suas reverencias, e, tomando agua perfumada em uma dorna que ali estava, borrifou o pon- tífice e o sagrado collegio dos cardeaes. Depois voltou-se para o povo, e aspergiu-o com menos respeito e mais agua : in plebem dcinde con- versus, eam aqiia, quasi ludum exhibere vellet, immodice perjudit, diz- nos Jeronymo Osorio, no seu impeccavel latim. Nicolau de Faria ficou radiante; o elephante encheu-lhe as medidas, excedeu-as mesmo: ... «fez cousas maravilhosas, e muyto milhores do que cuidei, nem do que esperava», escrevia elle nos dias seguintes a D. Manuel. Leão X tam- bém estava contentíssimo: . . . «mais risonhoso que hum minino.» Como fosse necessário apagar as glorias da antiga Roma, procura- ram averiguar se todos os elephantes, que ali vieram nos remotos tem- pos da Republica e dos Cesares, procediam da Africa, e parece que 320 Colóquio vigésimo primeiro chegaram a esse convencimento : tomou-se «conclusam perante o papa que nunca vêo nenhum da índia senam este», escrevia a D. Manuel um dos secretários da embaixada, o Dr. João de Faria. O mesmo João de Faria resumia assim as suas impressões sobre a vinda do elephante : . . . «e certo foy grande consideração de vosa alteza mandalo a Roma, por- que triunfou da índia aquelle dia em Roma, e nom era obediência mas triunfo de vosa alteza que entrou em Roma». (Cf. Damião de Goes, Chronica, 233 v. ; H. Osorio, De Rebus Ema- nuelis, 346, Olysippone, iSyi; Carta do Dr. João de Faria de 18 de março de i5i4, e carta de Nicolau de Faria da mesma data, no Corpo dipl.port., I, 234 a 242, Lisboa, 1862.) O rhinoceronte veiu mais tarde e foi menos feliz. No anno de i5i3 — Garcia da Orta diz i5i2 — Affbnso de Albuquerque mandou Diogo Fernandes de Béja ao rei do Guzerate, que então era MuzafFar Scháh, pedir-lhe permissão para construir uma fortaleza em Diu, o constante ■ desejo dos portuguezes. Muzaffar, menos imprudente que o seu succes- sor Bahádur, recusou; mas, para não romper com o impetuoso governa- dor, envolveu a recusa em muitos protestos de amisade, e em paga do rico presente que recebera enviou também um presente, no qual en- trava o rhinoceronte. Este animal não era raro nas províncias centraes e septentrionaes da índia; mas não tinha sido visto até então pelos portuguezes de Goa. Gaspar Corrêa descreve-o com muita exactidão : «... era alimária mansa, baixa de corpo hum pouco comprido, os coi- ros, pés e mãos d'alifante, a cabeça como de porquo comprida, e os olhos juntos do focinho, e sobre as ventas tinha hum corno, grosso e curto, e delgado na ponta; comia herva, palha, arroz cosido». Por esta . gandai ou rhinoceronte ser um animal estranho e raro, AfTonso de •Albuquerque determinou mandal-o a D. Manuel, sabendo quanto este estimava todas as curiosidades orientaes. Chegou a salvamento a Lisboa, onde ficou na ménagerie de D. Ma- nuel até ao anno de iSiy. N'esse anno o rei quiz ver uma lucta entre o rhinoceronte e um elephante que então tinha. Lembrava-se dos es- pectáculos da velha Roma, ou do que lhe contavam os portuguezes de torna viagem acerca dos hábitos dos grandes monarchas orientaes; e queria também verificar a antiga e persistente lenda sobre o odio, que se suppunha existir entre os dois grandes herbivoros. No mez de fe- vereiro do anno de iSiy, em um pateo que então havia diante da casa da contratação da índia, pozeram os animaes em face um do outro. O rhinoceronte acommetteu o elephante; mas este, que ainda era novo, ' Ganda lhe chamaram os portuguezes, do nome indiano gainda, genda, ganda. O nome de abada ou bada, dado ao mesmo animal e ainda conservado na designação commercial á&s pontas de abada, é de origem pouco clara. Do Ebur ou Marfim 321 possuiu-se de tal medo, que arrombou as grades de ferro de uma ja- nella baixa, e fugiu até á sua estrebaria habitual, dando urros e brami- dos, e deixando o rhinoceronte senhor do campo. Pouco depois, D. Ma- nuel mandou este ultimo a Leão X. No mez de outubro do anno de iSiy embarcaram-no em uma nau, commandada por João de Pina, com des- tino aos portos da Itália. A nau tocou em Marselha, onde então se achava Francisco I — parece que o rhinoceronte estava destinado a ser visto pelos homens mais salientes do século xvi. Effectivamente foi desembar- cado a pedido do rei; e, embarcando de novo, a nau seguiu a sua der- rota, indo perder-se nas costas da Itália. A grande baixella e todo o riquíssimo presente, destinado a Leão X, foi ao fundo; e o rhinoceronte afogou-se, mas veiu dar á praia. Tiraram-lhe então a pelle, que enche- ram de palha e levaram ao papa; e assim terminou o rhinoceronte do rei de Cambaya a sua accidentada existência. (Cf. Gaspar Correa, Lendas, ii, SyS; Damião de Goes, Chron., 276 e 277.) Nota (7) Este modo de amansar os elephantes captivos — logo veremos o modo de os capturar — é ainda hoje seguido nos seus traços geraes. Sir Emerson Tennent, no seu livro sobre Ceyláo já tantas vezes ci- tado, descreve os processos seguidos n'aquella ilha; e, do mesmo modo que Orta, falia da successão de mau e bom tratamento com que con- seguem domar os mais rebeldes. Emquanto o elephante procura atacar com a tromba, os homens que o rodeiam ferem-no com o hendii, que é um longo pau, terminado por uma ponta de ferro aguçada, tendo ao lado outra ponta recurvada á maneira de um croque — os «zargunchos» de Orta. Logo, porém, que elle começa a ceder, passam a affagal-o, cantando-lhe cantigas doces, entremeadas de exclamações amigáveis: Oh! meu pae! Oh! meu filho! Oh! minha mãe! segundo o sexo e idade do animal. Circumstancia curiosa, esta pratica de cantar aos ele- phantes é antiquíssima, e já foi mencionada por Arriano, que provavel- mente copiou a noticia de Megasthenes : Indi circumstantes tympanorum ac cymbalorum pulsu cantiique eos exhilarant ac demulcent. É, como se vê, a mesma mistura de «castigos» e de «afagos», de que falia o nosso escriptor (Cf. Tennent, Ceylon, 11, 383 ; Arriani Indica, p. 536). O que Orta nos disse antes sobre as doenças dos elephantes, tam- bém é interessante e exacto. Aquelles grandes pachydermes são su- jeitos a variadas e graves enfermidades, e ha na índia, e em geral no Oriente, uma numerosa classe de médicos ou alveitares de elephantes, usando de uma matéria medica especial. Sir Emerson Tennent diz, que, nos primeiros tempos de captiveiro, elles morrem muitas vezes de desa- lento, de desgosto, ou, na intraduzivel expressão ingleza, broken heart; 322 Colóquio vigésimo primeiro e isto lembra a phrase de Orta de que são «rmuito melancólicos». Quanto aos «ciúmes», que os fazem cair em «muy grande fúria», é este um estado perfeitamente conhecido, em que o elephante se torna, o que no Oriente chamam viust. O elephante viust, o que lhe succede sobretudo na epocha do cio, passa da extrema docilidade a ser um ani- mal perigosissimo. No livro de Mason sobre o Burmá se podem ler al- gumas anecdotas curiosas acerca dos encontros pouco agradáveis com elephantes n'aquelle estado. Ali se diz, que o melhor modo de trata- mento consiste em os largar algum tempo na floresta : a better plan when practicable, is to turn the animal loose in the forest, near yvater, whence, if a female elephant is tethered near hivi, he will never wan- der far, and may soon be reclaimed. Esta noticia moderna coincide de uma maneira notável com a indicação de Orta de que os seus Nai- res os levavam «ao campo», quando os viam assim excitados. (Cf. Tennent, Ceylon, ii, 386; Mason, Burma its people and pro- ductions, I, 449, enlarged by W. Theobald, Hertford, 1882.) Nota (8) O modo de capturar os elephantes, na índia e outras terras orien- taes onde abundam ou abundavam, não tem variado essencialmente desde os tempos mais remotos de que temos noticia. Ha muitos pontos de similhança entre as grandes caçadas, de que trata o nosso Garcia Orta e depois d'elle vários escriptores mais modernos, e aquellas que minuciosamente descreveu Megasthenes na sua Indica^. Segundo a versão de Arriano, que pouco differe da de Strabão, os indianos escolhiam um terreno plano, nas proximidades das florestas frequentadas pelos elephantes, e abriam ali uma larga valia, que encer- rava um grande espaço, deixando apenas como passagem para o inte- rior uma ponte estreita. A terra, retirada da valia, reforçava-a com uma espécie de vallado alto, em que elles praticavam escavações onde fica- vam vigiando. Feito isto, collocavam dentro do recinto algumas fêmeas mansas; e, chegando a noite, as manadas de elephantes bravos, que ali as sentiam, procuravam a entrada, e vinham ter á ponte, coberta e dissimulada com terra e palha. Apenas entravam, os caçadores cor- riam a retirar a ponte, e a dar aviso ás aldeias próximas. Esperavam en- tão alguns dias, para que a manada captiva se enfraquecesse com a fome ' O livro de Megasthenes perdeu-se, mas foi tantas vezes citado e extractado por Arriano, por Strabão, por iKliano e por outros, que é possível reconstruil-o em parte. Esta recensão dos fragmentos da Indica foi feita pelo dr. Schwanbeck; e eu cito pela versão de Mac Crin- dle, publicada no Indian Antiquary, vol. vi, (1877), p. 1 12 e seguintes. Do Ehiir ou Marfim 323 e a sede, e entravam depois no recinto, montados nos seus elephantes mansos, os mais fortes e adí^strados, com a ajuda dos quaes conseguiam ligar os prisioneiros. Seguia-se o processo de os domar, em que inter- vinham os cantos e toques de timbales, a que nos referimos na nota anterior. Do mesmo modo que nos processos mais modernos, o tim era en- curralar a manada brava em um recinto fechado. Recorria-se, porém, a um artificio diverso das grandes batidas, talvez porque os elephantes fossem então mais abundantes e menos suspeitosos, e também porque a população devia ser muito menos densa. Posteriormente adoptaram-se os dois methodos, mencionados pelo nosso escriptor. Por um d'esses methodos, podem capturar-se os ele- phantes machos isolados, empregando as fêmeas mansas; mas as cousas não se passam exactamente como conta micer André Milanez, ou antes Garcia da Orta. As fêmeas, chamadas kumkis, não vão sósinhas á flo- resta, vão montadas pelos seus mahuts; e são estes que ligam o elephante macho adulto, ou gundali, quando elle está entretido, e entalado entre duas ou melhor tres fêmeas. Em toda a operação, que é perigosa e exige uma grande coragem e uma grande dextreza, os caçadores são ajuda- dos pelas kumkis com muita inteliigencia ; mas vae longe d'essa in- telligcncia áquelle processo de seducção consciente e encommendada, que descreve o nosso escriptor. Este, ou antes os seus informadores, juntaram um pouco de phantasia ao modo por que as cousas se deviam realmente passar. Em todo o caso, aquelle methodo de caça foi seguido em varias regiões orientaes. No tim do século passado (1790), Corse descreveu-o como regularmente praticado na região de Tipura, situada a leste do Ganges, e, portanto, já nos confins da Indo-China, e não muito longe d'aquellas terras de Pegu, d'onde vinha o lapidario italiano. E um século antes (1681), Knox diz que era também usado em Ceylão. O nosso João Ribeiro dá igualmente a dcscripção de um modo de captu- rar os elephantes na ilha de Ceylão, em que intervinham as fêmeas chamadas ali aliás; mas em que o papel principal era representado por um elephante macho domestico, o famoso Ortelá. O outro methodo, descripto por Orta, consistia erfi fazer grandes batidas, pelas quaes as manadas eram obrigadas a entrar em recintos, fechados por estacarias fortes, capturando-se assim machos e fêmeas de todas as idades. É este um methodo muito conhecido, e vem minu- ciosamente descripto por Corse, para o periodo e região acima citados. O recinto, chamado keddah^ no Bengala, consta de tres grandes es- paços circulares, unidos por corredores. Na extremidade ha um cor- « Keddah, ou khedã; de khednâ, caçar ou perseguir. 324 Colóquio vigésimo prirneiro do Ebur ou Marfim redor ultimo, que vae estreitando a ponto de o elephante se não po- der voltar quando ali entra. E os homens, collocados pela parte de fora dos troncos e traves fortes, que limitam aquella espécie de funil, conseguem então laçal-o e ligal-o. É evidentemente esta operação que o nosso escriptor pretendeu descrever, posto que as suas phrases sejam um tanto confusas, alem de estarem deturpadas pelos erros ty- pographicos. Tanto Tennent, como Corse, descrevem as cordas com que os elephantes são atados, e que, como bem se pôde imaginar, de- vem ser fortíssimas. O material varia, havendo cordas de cairo, ou- tras de couro de veado entrançado, e devendo havel-as também das «rotas» de que Orta falia, sobretudo nas terras de Burma e de Pegu, onde são frequentíssimas as espécies de Calainus, chamadas rotangs ou rattans. Notaremos de passagem, que as grandes batidas aos elephantes, hoje usadas também em Ceylão, não se faziam antigamente n'aquella ilha. Parece, que a introducção ou generalisação ali d'este methodo de caçar é devido aos portuguezes; e o recinto, chamado na índia keddah, recebe ali o nome de korahl, ou corral, que é evidentemente a pala- vra portugueza curral. Em resumo, vemos que as affirmaçoes do nosso escriptor, á parte pequenas exagerações em uma ou outra circumstancia, são confor- mes com tudo quanto nos dizem outros escriptores. É ainda de notar, que Orta não nos falia de caçadas feitas nas regiões occidentaes da índia, e pelo contrario nos diz explicitamente, que não domavam os elephantes do Malabar. Vè-se, pois, que já no seu tempo estes não deviam ser muito numerosos. Quando quer descrever as gran- des batidas, introduz no Colóquio um novo personagem, um italiano, negociante em pedras preciosas. Este micer André, real ou inventado, traz-Ihe noticias de longe, das terras situadas para alem do Ganges, nas quaes os elephantes eram e continuaram a ser abundantíssimos. Pôde parecer e é talvez exagerado aquelle numero de 4:000 elephan- tes, cercados por 200:000 pessoas. É certo, porém, que o delta do Ira- vaddi, e todo o seu valle com as montanhas vizinhas, se podem contar entre as regiões onde os grandes pachydcrmes foram mais numerosos; e que, por outro lado, os reis de Pegu e outros reinos próximos gover- navam províncias densamente povoadas, e dispunham arbitraria e des- poticamente do tempo e dos serviços dos seus súbditos. (Cf. os fragmentos de Sirabão e de Arriano, no Ind. Antiquary, vi, 239; John Corse, An account of íhe method of catching wild elephants at Tipura, nas Asialical researches, ni, 229; Mason, Burma, i, 447; Knox, Hist. relation of Ceylon, i, cap. vi, p. 21, 1681; Tennent, Cey- lon, II, 335 a 377; Yule e Burnel, Glossary, palavras elephant, keddah, corral; Ribeiro, Fatalidade histórica, nas Not. para a hist. das nações ultramarinas, v, 49, Lisboa, i836.) COLÓQUIO VIGÉSIMO SEGUNDO DO FAUFEL E DOS FIGOS DA ÍNDIA INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Do que chamam em Portugal avelam da índia falemos, pois me dixestes no beire* que he muyto usada ácerca de todos; porque nós pouco usamos delia; antes falando a ver- dade comvosco nunca a vi, porque em lugar delia pômos sândalo vermelho. ORTA He qua mantimento comum pêra comer, mesturado com O betre; e nas terras onde nam ha betre também se usa por masticatorio com cravo. Ao que dizeis que lá em seu lugar deitam sândalo vermelho, não me parece bem, pois em seu lugar deitam huma mézinha, que muytas vezes se falsifica, e deitam hum páo vermelho por ella lá, porque como o sândalo vermelho carece de cheiro, e nam o ha em Timor donde vem o outro, como vos direi falando nelle, he muyto máo de desçernir entre hum páo e outro; e mais vai esta areca menos, e não se corrompe. E a rezam porque se nam leva a Portugal de qua, he porque não a pedem os boticai- ros, que nem elles nem os físicos sam tam curiosos que a peçam, mas era rezam que lha lançassem em casa, como carne de touro. E pois a vistes já, querovos dizer os nomes nas terras onde nasce: ^cerqua dos Aidhios faufel , postoque * Orta suppõe ter inserido o Colóquio do betre no seu logar alpha- betico; mas deixou de o fazer, e dá-o no íim do livro. Pelos motivos, que veremos ao diante, conservâmos-lhe a mesma situação. 326 Colóquio vigésimo segundo Avicena* lhe chame corruptamente filfel, e asi lhe chamam em Dofar e Xael, terras da Arábia, scilicet, faufel, e ha nestas terras da Arábia muyto boa, postoque he pouca; e no Malavar lhe chamam pac; e os Naires (que sam os ca- valeiros) areca, he donde os Portuguezes tomarão o nome, por ser terra primeiro conhecida de nós, e ha y muyta can- tidade; e os Guzarates e os Decanins a chamam çupari; e estes tem muyto pouca, somente na fralda do mar, e he muyto boa essa que ha em Ghaul, porque he mercadoria pera Ormuz; e milhor he a de Mombaim, terra e ylha de que elrei nosso senhor me fez mercê, aforada emfatiota. E em todas as terras de Baçaim he também muyto boa; e levase dahi pera o Decam; e a de Cochim também, scilicet, huma preta e pequena que chamam chacani, muito dura depois de sequa; e em Malaca ha areca pouca, mas abasta á terra, chamase pinam; e em Çeilam ha mayor cantidade delia, que farta a huma parte do Decam, scilicet, a terra do Co- tamaluco e a Bisnaga: e de Çeilam a levam a Ormuz e a Cambaia, e ás ylhas de Maldivas; e em Çeilam lhe chamam poa^. RUANO Diz Serapio que as terras da Arábia carecem desta areca. ORTA Verdade diz por a maior parte, porque a Arábia he grande, e nam a ha mais que em Xael e em Dofar, portos do mar; porque esta arvore ama o mar, e longe delle nam se cria; porque se se criasse, nam a leixariam de plantar; porque os Mouros e Gentios nenhum dia passam sem a comer; e os Mouros e Moalis (que sam os que seguem a ley contra Ma- famede) guardam dez dias de huma sua festa ou jejum; quando diz que cercados em humà fortaleza morreram os filhos do Ali, genro do Mafamede; em dez dias que elles * Avicena, lib. 2, cap. 262 (nota do auctor). Do Faufd 327 foráo cercados, dormem no chão e não comem hetre, e nestes dias mastigam cardamomo e areca, tanto em uso tem o mastigar pera purgar o estamago e cérebro. RUANO Já me dixestes com que mesturam o betre; porém dizeime agora como entram as mezinhas, se pera ajudar, se pera re- tificar. ORTA O betre he quente, como vos dixe, e a areca he fria e temperam*; e a cal he mu3^to mais quente, postoque elles nam usam pera o betre desta nossa cal de pedra, senão de huma feita de cascas de ostras, que não he tam forte. Com esta areca se mesturam estas mezinhas que vistes, porque he fria e seca, e muyto mais seca quando não he seca ao sol; e lançamlhe o cate, que he huma mézinha de que ao diante vos farei mençam; porque, asi ella como o cate sam boas mézinhas pera apertar as gingivas, fortificar os dentes, e confortar o estamago; e pera a emotoica, e pera vomito e camarás. Também o arvore donde se colhe he direito e muito esponjoso, e as folhas delle são como as da nossa palmeira; he este fruto semelhante á ;/o{ noscada, e não he tam grande, e muyto duro per dentro, e tem veas brancas e vermelhas; he do tamanho das nozes pequenas redondas com que os moços jogam; nam he perfeitamente redondo, porque faz o asento de huma banda de modo que se pôde ter; mais isto nam acontece cm todos os géneros de areca, porque vos nam enganeis. Cobrese este fruto com huma corteza muito lanuginosa, e amarela por fóra, que parece muito ao fruto das tâmaras quando está maduro, e antes que seja seco; e quando esta areca he verde he estupefativa e embebeda, porque os que a comem se sentem bêbedos, e comemna por nam sentir a dor grande que tem. * Isto é, «temperada». 328 Colóquio vigésimo segundo RUANO Como a comem estas gentes indicas, ou como fazem as mesturas ? ORTA O comum faz a areca em pedaços meudos, com humas tesouras grosas que tem pera iso, e asi a mastigam, jun- tamente com o cate, e logo tomam as folhas do beire, ti- randolhe primeiro os nervos com a unha do dedo polegar, que pera iso tem feita em ponta delgada; e isto lhe fazem por ser mais tenro; e asi mastigam tudo juntamente, e o primeiro que fazem, botam fóra o que primeiro mastigao, se tem muyto betre, e tomao outras folhas, e fazem outros masticatorios, e lanção hum cospinho, que parece sangue; e asi purgão a cabeça e o estamago e confortão as gengi- vas e dentes; e sempre andam mastiguando este betre até que se enfadam; e as molheres mais que os homens. E os senhores fazem da areca humas pirollas pequenas, e com ellas misturam cate e canifora e pó de linaloes e algum am- bre; e desta feiçam he a areca dos senhores. Diz Serapio* que no sabor se sente quentura com alguma amaridão : pro- vei esta, e he como hum páo estética, sem sabor ou casi. Serapio nam conheceo esta areca, e se a conheceo não a provou. RUANO O Silvatico diz que a vio, e que a trazia mesturada na canella de Calecut, e que veo ay por acerto. ORTA Podia ser que os Mouros de Calecut a levasem pera o Estreito; e porém pois hia com a canella mesturada, nam era senam de Çeilam; e a de Calecut, como dixe, he muita delia preta, a que chamão checani; e a de Ceilam he branca, se a viram, bem se podia conhecer. * Serapio, ca. 845 (nota do auctor). Do Faiifel 329 RUANO V Sabeis que aproveita pera alguma cousa, alem das já ditas? ORTA Eu mando estillar esta agoa, e em secreto uso delia pera curar as camarás coléricas, e achome bem (i). RUANO Isto pouco me aproveita ; pois em Espanha nam a ha verde, pera se estilar; e portanto comamos, que já he tempo. ORTA Seja asi, e lavay as mãos. RUANO De huma cousa me maravilho, que sempre comemos dos figos á mesa, e sempre me sabem bem; e nam tamsomente a my que venho do mar, mas a vós e a quantos ha nesta mesa; por onde me parece muyto boa fruta, pois não em- fastia. E será bem que, falando e comendo, saybamos como se chama em todas as lingoas, e quantas maneiras ha delles, e pera que sam nocivos, e o que vos parece; porque bem sei que não escreve delles Dioscórides, nem Galeno, nem Paulo, nem os Arábios. ORTA Iso nam he asi, falando com vosso perdam, porque Avi- cena e Serapiam e Rasis escrevem delles, asi escreveram outros que eu nam vi. RUANO Muyto me contais; não me dareis nesses Arábios capitulo em que nos figuos falle, dizeimo porque folgarei de ouvir. ORTA Eu trabalhei de o saber, e soubeo; e os figos na lingoa canarim e decanim e guzarate e bengala se chama quelli, e os Malavares lhe chamam paiam, e o Malayo picam; porque em todas estas terras os ha, e vos ponho o nome nesas 33o Colóquio vigésimo segundo lingoas, e também os ha em outras muytas. O Arábio lhe chama musa ou amusa; fazem delles capitulo Avicena e Serapiam, e chamamlhe pollo mesmo nome; e Rasis também lhe chama pelo mesmo nome; também ha estes figuos em Guiné, chamamlhe bananas. RUANO Que diz cada hum destes escritores dos figos, e que dizem a gente da terra pera que he bom, e a quem faz mal? ORTA Diz Avicena* que o nutrimento deste figuo he pouquo, e que acreçenta collora e freima, e que aproveita pera adustão do peito e do pulmão, e que agrava o estamago; e que he bom tomar, depois que o comem os coléricos, oximel com sementes, e os freimaticos mel; e que acreçenta a semente, e aproveita aos rins e provoca a orina. Rasis diz** que faz dano ao estamago, e tira o apetite e a secura, que faz brando o ventre, e que tira a espridam da garganta, Serapio diz***, alegando a outros, que musa he quente e húmida no fim do primeiro gráo; e que aproveita pera o ardor do peito e do pulmão; e quem muyto usa delia padece pesa- dume no estamago; e que acreçenta a criança na madre; e que aproveita aos rins, e provoca a orina, excita a delei- taçam carnal, e que grava**** no estamago: isto diz da sen- tença dos outros escritores, por onde está bem craro todos estes homens conheceram os figos. E se isto nam abasta, perguntai a qualquer Arábio, e dirvos ha como se chama * Liv. 2, cap. 492 (nota do auctor). ** Cap. 3, ad Almansorem (nota do auctor). *** Serapio, cap. 84 (nota do auctor). **»* «Grava», no sentido de pesa. Do Faufel amusa, e outros musaj: ha os em o Cairo e Damasco e Jerusalém (2). RUANO "Muyto folgo de vos ouvir isso. ORTA Pois aveis mais de saber que hum frade de Sam Fran- cisco, que esteve em Jerusalém, e escreve dos mistérios da Terra Santa, gaba mu3^to esta fruta; e diz que se chamou musa porque he fruto dino das Musas ou de ellas o co- merem; e diz que nesta fruta pecou Adam (3); que as folhas sam muyto grandes mais que de huma braça, e dous palmos e meo de largo: tem um nervo por o meo groso e verde, e lança por onde ha de deitar o fruto primeiro humas flores emburilhadas roxas, á feiçam de hum ovo, e do compri- mento de huma mão, e o fruto que deita he hum ramo de figos, que tem cento, e ás vezes duzentos figos. RUANO Eu nam sey se he o arvore do paraíso terreal, e tenho nisto o que tem os sagrados doutores. E não posso leixar de confessar ser muito boa fruta; e queria saber se ha alguma cousa pera que aproveitem, alem das cousas que escrevem estes Arábios; e onde sam os milhores, e quantas maneiras se comem. ORTA Em Martavam e Pegú dizem que sam muito bons, porque em Bengala onde ha muytos veo esa casta, e prantaramna por ser milhor, e chamamlhe agora y?^os martabanis: e os que mais cheiram e pera mim de milhor gosto, sam ceno- rins, que sam huns figuos lisos e muyto amarelos e com- pridos : os chincapalôes sam do Malavar, e bons, e sam huns figos verdes e compridos e de muito bom sabor: os de Çofala já os provei, sam muyto gabados, eu os achei de bom sabor; mas como eu era novo, que vinha de Portugal, tudo me sabia bem; e por iso nam sam bom juiz; chamamlhe os Cafres minga, e também os ha na costa do Abexim e no 332 Colóquio vigésimo segundo Cabo Verde. Como já dixe ha no Malavar, e em Baçaim, e em outras partes figos grosos do comprimento de hum palmo; sabem muyto bem asados, e deitados em vinho com canella per cima, e sabem a marmellos asados e muyto milhor. RUANO Eu os provei já tres ou quatro vezes, e souberamme muito milhor. ORTA Também se cortão estes polo meo, e fregem os em açucare até que estejam bem torrados, e com canella por cima sabem muyto bem. RUANO Também os provei aqui os dias de peixe; e sabiamme muyto bem, e não sabia o que era. ORTA Levam os pera Portugal por matalotagem; e comem os com açucare, e pera o mar he bom comer. Os físicos desta terra dizem que sam muyto bons; e dam os em dieta, pera as febres, e pera outras enfermidades. Bem sei que todas estas cousas que vos dixe sam cousas de pouca sustancia, senam digovolas porque, quando fordes a Es- panha, não digam que não sabeis dar conta das cousas desta terra; e não porque isto seja neçessario pera a física. RUANO Faz Ruelio hum capitulo dos figos da índia, allegando a Estrabo e Teofrasto, e pÕe delles algumas especias; e em outro cabo também falia das arvores perigrinas, e va3ane parecendo que conheceram estes homens os fíguos da índia. ORTA Eu ly isso do mesmo autor; e se açerta em huma cousa erra em muytas (como quem diz huma no cravo e quatro na ferradura) (4); e porém a derradeira especia que põe, a Do Faufd 333 que mais se posa acomodar esta arvore destes figos, he por- que diz que naçe de si mesma: esta he verdadeira, porque esta arvore não se pranta mais de huma vez-, e dá hum ramo que tem ás vezes 200 figos, e alguns mais e outros menos; e logo day avante naçe ao pé outra arvore dos mesmos ramos ou do tronco-, porque o tronco he hum ajuntamento de cortezas*, e os figuos nascem no olho da figueira ape- gados ao páo. RUANO O fruto que em Itália chamam musa he porventura este figuo? ORTA Eu como não fuy a Itália não o sey bem sabido; porém soube aqui de alguns Venezianos, aqui moradores, que essa fruta ha em Veneza; e he como amexas; e pôde ser que aja em Espanha essa especia de amexas, porque dizem que he muyto doce. RUANO Escreve Mateolo Senense de hum género de palmeira da índia, e a discriçam nam he conforme a esta figueira que chamais, e isto diz no capitulo das palmas: mas quem lha mandou escrita do Egypto não lha mandou bem, e por isso não falo nella. ORTA Bem sey que figos ha na Nova Espanha, e em o Peru, e nós os temos no Brasil, e no Cuncam, indo de Chaul a Goa (scilicet em Garapatam)**; e em alguns cabos de Por- tugal os ha plantados, como na quinta de Dom Francisco de Gastelo Branco {5) \ e, por estas causas, não era bem di- zervos cousas tam notas a todos. * A mesma acertada observação já Orta fez em um dos Colóquios precedentes, a propósito de uma Scitaminea. ** Vindo de Chaul para Goa ao longo da costa encontrava-se effe- ctivamente o pequeno logar de Carapatao, do qual falia Barros, e que era bem conhecido. 334 Colóquio vigésimo segundo RUANO Estas cousas dos figos eu nam as preguntei em Espanha, e vós dizeisme tantas cousas de siso e boas, que he neçe- sario perguntarvos tudo; e nesta que vós dizeis nam ser de muyta estima me dixeste o nome dos autores, que nestes figos falam, e me apontastes onde; cousa foi essa que eu estimei em muyto. Nota (i) O «faufel» é a Areca catechu, Linn., uma elegante palmeira de pá- tria mal detinida, mas cultivada com frequência nas regiões quentes da Asia. A sua semente, de que Orta dá uma descripção bastante exacta, é geralmente conhecida pelo nome de no^ de areca, impropriamente pelo de »of de betei, e por vários outros. Esta semente forma parte essencial de um masticatorio muitíssimo usado no Oriente, e do qual fallaremos detidamente a propósito do betre ou Piper Betle. Os nomes vulgares de Orta são exactos e de fácil identificação : — «Faufel acerqua dos Arábios»; este é o nome arábico mais geral, , fiifal, ou, na fórma persiana, pupal (Dymock, Mat. med., 802; Ainslie, Mat. ind., n, 2Ó8). — «Çupari» entre guzerates e deckanis; é o nome commum nas lín- guas indianas de derivação sanskritica, hindi, bengali e outras, supari (Dymock, 1. c; Ainslie, 1. c). — «Pac» no Malabar; que vem a ser o nome tamil da semente, dado por Dymock na fórma pakku, e por Ainslie na fórma paak. O nome da arequeira é ali paak-maram. — «Areca» no mesmo Malabar, mas entre a classe elevada, ou Naires, de quem os portuguezes o tomaram. Este nome, que veiu a tornar-se o mais geral, deve derivar-se da designação da semente em maláya- lam, adakka, adoptada e alterada pelos nossos, e por elles transmit- tida a outras línguas. O sr. De CandoUe cita um nome telingu, arek; mas sem mencionar auctoridade; e que provavelmente é moderno e já influenciado na fórma pelos portuguezes (Cf. Yule e Burnell, Glossary, palavra Areca; De CandoUe, Orig. des plantes cultivées, 344). — «Chacani» no mesmo Malabar, a uma semente mais preta e mais pequena e dura que a de outras terras. Isto não é propriamente um nome da areca, nem o de uma variedade; é simplesmente o de um modo particular de preparação : consiste na areca colhida em verde e fervida depois, chamada areca vermelha, ou chikni supari (Cf. Dymock, 1. c). Do Faufd 335 — «Poaz» em Ceylao. No h^dex de Piddington vem um nome sin- ghalez similhante, puwak (Index, 7). — «Pinam» em Malaca. Este c o nome vulgar mais conhecido em to- das as terras e ilhas orientaes, onde é fallada a lingua malaya; e que Rumphius, Crawfurd e muitos outros citam nas formas pinanga, pi- nang, penang. A arequeira é ainda vulgar ao longo da costa da índia, do Guzerate a Cochim, incluindo as terras de Baçaim, e aquella boa ilha de «Mom- baim» de Orta, da qual teremos de fallar em mais algumas notas. E Ceylão continua a ser uma região productora e exportadora de areca. Nos annos de 1870 e 1871 — últimos de que tive noticia, — exportou aquella ilha, principalmente para a índia, yio^ de areca no valor de 63:ooo libras esterlinas em cada anno. Das informações de Orta sobre a distribuição geographica da arequeira, a mais interessante é sem du- vida a que diz respeito á sua cultura nas terras da Arábia, facto menos geralmente conhecido. Xael ou Xaer era então uma povoação de certa importância, com um porto mau e difficil, mas onde apesar d'isso se fa- zia um commercio activo, e d'onde se exportavam os melhores cavallos para a índia— segundo diz Duarte Barbosa. Estava situada na costa do Hadramaut, entre Aden e o cabo de Fartaque, Ras Fartak; e tinha para o interior alguns campos férteis, onde cultivavam «trigo, tâmaras, uvas», e — segundo agora vemos — arequeiras. Dofar ficava para leste, na região mais árida de Mahra, para alem do cabo de Fartaque ; e era o porto clássico da exportação do incenso, que também saía por Xaer, e por Soer na costa de Oman, que é necessário não confundir com Xaer. Era naturalíssimo que os árabes, em relações directas com a costa da índia, introduzissem nas suas culturas uma planta, da qual usavam com tanta frequência quasi como os hindus, tanto os orthodoxos ou sunnitas, como os schiitas, a que Orta chama Moalis (Cf. Duarte Bar- bosa, Livro, 264 e 265; Barros, Asia, i, ix, i, e iii, vii, 9). O principal uso da areca é no mastícatorio, vulgar em todas as ter- ras do Oriente, e do qual fallaremos em outro Colóquio; mas era tam- bém considerada aphrodisiaca e adstringente, e não admira que Orta a empregasse na sua clinica, e «em secreto» (porquê em segredo?) usasse d'ella «pera curar as camarás coléricas». Dos usos da areca, e do modo por que se prepara a chikni supari, e o extracto chamado su- pari che phul, se pode encontrar uma noticia interessante no livro de Dymock e mais extensamente no de Drury (Mat. med., 802, Use/ul plants of índia, 48). Nota (2) Os «figos» do nosso Orta são as hoje vulgarissimas bananas, o fru- cto das numerosas variedades da Musa sapientum, R. Br. (incluindo a 336 Colóquio vigésimo segundo M. paradisíaca, Linn., e a M sapientuvi, Linn., que parece não serem especificamente distinctas). Era uma planta commum na índia, e em geral na Asia, tendo naturalmente nomes variados nas diversas re- giões : — «Quelli» na lingua «canarim» e outras. Encontramos em um livro portuguez moderno, o nome concani, escripto pelo mesmo modo quêlli; e vários escriptores nos dão as formas kely, kela, kala, kayla, kail, usadas em diversas linguagens indianas de derivação sanskritica. Devem todas ser modificações e simplificações do sanskritico ^t^T^, kadalT {Cí. Costa, Manual do agric. indiano, ii, 209; Rhede, Hort. mal. I, cap. 6; Dymock, Mat. med., 777; Ainslie, Mat. ind., i, 3 16; Drury, Useful plants, Soo). — «Palam» entre malabares. É talvez uma parte do nome, que Ains- lie escreve pullum, ou mais provavelmente a conhecida designação no sul de bala ou vala, mencionada por Rhede e outros. — «Picam» em malayo; é o conhecido nome nas terras do archipe- lago Indiano, /'/í^aM^ (Cf. Rumphius, Herb. amb., v, l^5). — «Musa» e «amusa» entre os árabes. Este foi e é o nome arábico mais commum, mau^, e J^!, al-mau^, derivado, segundo parece, do sanskritico mocha. Usado na Syria, no Egypto e outras regiões da bacia mediterrânica, foi um dos primeiros conhecidos na Europa, sendo mais tarde adoptado para a designação scientifica do género. — «Bananas» em Guiné. Orta dá assim succintamente e sem expli- cações uma origem africana ao nome, que hoje é de todos o mais vul- gar. É possível que tenha rasão; a palavra não é seguramente asiática, e também não parece ser americana. Em primeiro logar, é necessário advertir, que Orta não emprega a designação de Guiné no sentido res- tricto que hoje lhe damos; mas no sentido antigo mais lato de terra dos negros em geral, ao longo da costa Occidental da Africa. A bana- neira não é oriunda d'estas regiões. Os botânicos, que mais se têem occupado da origem das plantas cultivadas, como Roberto Brown e De Candolle, inclinam-se para a procedência asiática da bananeira de fructos alimentícios, e admittem a sua introducção na Africa. Não se trata, porém, de uma introducção recente e pela costa occidental; mas de uma introducção antiquíssima pelo oriente. Edrisi já menciona cinco variedades da planta, cultivadas nas ilhas de Zaledj, em face das cos- tas do Zendj; e é provável que fossem cultivadas igualmente na pró- pria costa do Zendj, isto é, na costa oriental da Africa. Dada a facilidade da cultura e a abundância do producto, é fácil admittir que a planta se propagasse entre as populações negras da Africa equatorial, onde hoje é abundantíssima, e chegasse até ao Congo e regiões occidentaes — a Guiné de Orta. N'este trajecto podia muito bem receber dos negros o nome de banana, cuja significação nos é desconhecida, mas que tem Do Faufd 337 bastante o cunho de um vocábulo africano. Alguns annos depois de Orta, Duarte Lopes refere-se ás que viu no Congo, do seguinte modo: altri frutti sono, che nomtnano Banana, z quali crediamo essere le Mtise d'Egitto e di Soria. A ultima parte da phrase pôde ser uma intercala- ção do erudito italiano Pigafetta, que escreveu a relação verbal do via- jante portuguez; mas a primeira, que chamam Bananas, é claramente de Duarte L.opes, e parece bem indicar um nome local africano. Annos antes, o piloto portugue^, cuja interessante relação Ramusio nos con- servou, refere-se á introducção da planta na ilha de S. Thomé nos se- guintes termos : vi hanno cominciato a piantar quella herba che diventa in un'anno cosi grande che par arbore: e fa quelli raspi a modo di fichi, che in Alessandria di Egitto come ho inteso chiamano Muse, in detta isole le demandono Abellana. Falia evidentemente de uma introducção directa, recente, e feita pelos portuguezes, de plantas trazidas talvez da índia; e vê-se que então (1540) não conheciam em S. Thomé o nome de banana, que pelo contrario era vulgar (liyS) no interior do Congo. Tudo isto parece favorável á origem africana da palavra, e corrobora a opinião de Orta (Cf. R. Brown, em Tuckey, Narr. of an exp. to the Zaire, 470, London, 1818; De Candolle, Origine, 242; Edrisi, i, Sg; Pi- gafetta, Relatione dei Reame di Congo, 41, Roma, i5gi; Ramusio, i, 118). Qualquer que fosse a pátria da espécie Musa sapientum, é certo que foi cultivada na índia e outras regiões orientaes desde tempos extremamente remotos, dando ali logar á formação de um numero considerável de variedades, mais ou menos apreciadas. Orta enu- mera algumas, a que se referem também outros escriptores do tempo, como Linschoten e vários mais. Nota (3) Não seria fácil averiguar bem ao certo quem fosse este frade de S. Francisco, e não haveria muito interesse em o fazer, pois entre os numerosissimos franciscanos que visitaram a Terra Santa, muitos re- petiram sem duvida as asserções a que Orta se refere. Esta tradição, que ligava a bananeira ao Paraiso terrestre, era cor- rente entre os christãos orientaes, e também entre os mussulmanos. Aquelle incansável compilador de todas as tradições e de todas as anecdotas arábicas, Maçudi, enumera as trinta fructas que Adão levou comsigo do Paraiso: dez com casca; dez com caroço; dez sem casca nem caroço. Entre as primeiras dez inclue a banana, al-mausf. Os christãos, pela sua parte, viam na bananeira aquella arvore, de cujas folhas Adão e Eva se cobriram depois do peccado, quando attentaram em que estavam nus: cwnque cognovissent se esse nudos, consuerunt fo- 22 s 338 Colóquio vigésimo segundo lia ficus, etfecerunt sibi perijo}7iata. Fr. João de Marignolli', depois das suas viagens no Oriente, referindo-se a esta passagem do Génesis, diz que tomaram folhas do ficus seu viusarum. E, voltando ao mesmo as- sumpto a propósito de Ceylão, repete: et de istis foliis ficus (musce, quas Íncola; ficus vocant) Adam et Eva fecerunt sibi perijomata ad cooperiendum turpitudinein suam. As grandes dimensões das folhas das bananeiras suscitavam naturalmente a idéa de que poderiam servir para improvisar um vestuário, n'aquella súbita revelação do pudor. Na Eu- ropa continuava no emtanto a tradição, que seguia á letra o texto da Vulgata; e, entre outros, o nosso fr. Izidoro de Barreira, no seu curioso Tractado da significação das plantas, admitte que aquella folha do Pa- raíso fosse a da figueira, e dá-lhe a accepção de penitencia. D'estas duas tradições parallelas resultou sem duvida a persistência com que os christãos do Oriente chamaram figo á banana, e que de certo se não pôde explicar pela similhança dos dois fructos. Identificou-se também a banana com o fructo da arvore, que estava ao meio do Paraiso, aquelle que Eva julgou, bonum . . . ad vescendum, et pulchrum oculis, aspectuque delectabile. No interessante Itinerário de Terra Sanda de fr. Pantaleão de Aveiro 2, encontra-se indicado essa opinião como corrente nas terras orientaes. Paliando de algumas plan- tas, que viu na ilha de Chypre, diz assim : «... e muita cantidade de musas, a que naquellas partes, e em todas as mais orientaes onde as ha, chamão por outro nome Pomum Para- disi . . . Dizem e aflirmão os orientaes e palestinos ser aquella a arvore da qual comeo o nosso Padre Adão no Parayzo terreal, sendo-lhe ve- dada pelo Senhor Deos, movido de sua suavidade e fermosura e creo eu serem as bananas do nosso S. Thomé.» Julgava-se encontrar a marca da origem divina, na cruz que se via em uma secção transversal do fructo; e á qual se refere também o nosso fr. Pantaleão. Séculos antes, fr. João de Marignolli dizia o mesmo, com mais intimativa: et istud vidimus com oculis nostris, quod ubicumque inciditur per transversum, in utraque parte incisurce videtur imago ho- minis crucifixi. O padre Vincenzo Maria é menos affirmativo, refugia- se em um compromisso, e explica, que na fructa da índia se via unicamente a cruz, mas na fructa da Phenicia se podia distinguir a imagem do cru- cificado; e que, por isso, os christãos quebravam as bananas, sem nunca ' Este fr. João era minorita; mas não pôde ser o franciscano a quem Orta se refere, pois as suas recordações orientaes estavam então inéditas no manuscripto do Chronicon Bohe- morum, e seguramente não ciiegaram ao conhecimento do nosso escriptor. ' Também este não pode ser o franciscano citado, pois elle fez a peregrinação no anno de i563, e publicou o livro annos depois. Do Faufel 339 as cortarem. Assim a folha da bananeira identificava-se por um lado com a folha da figueira, emquanto a banana se identificava por outro com a maçã. Fr. Pantaleão diz que lhe chamavam pomiim paradisi; e em outros livros do tempo, como no de Aldrovando, vem aquelle nome poma paradisea applicado ao fructo da maceira. N'aquellas interpretações criticas, que julgam ver nas palavras do Gé- nesis sobre o primeiro peccado, uma allusão á attracção natural e mu- tua dos dois sexos, a significação phallica é geralmente attribuida á serpente. Agrippa de Colónia — citado por Gubernatis — dil-o muito claro: Hunc serpentem non aliud arbitramur, quam sensibilem carna- lemque affectum, imo quem recte dixerimus, ipsum carnalis concupis- centice genitale viri membrum, membrum reptile, membrmn serpens . . . quod Evam tentavit atque decoepit. Circumstancia curiosa, houve quem no Oriente deslocasse esta significação, da serpente para o pró- prio fructo do lignum vitw, que julgavam ser a banana. O honesto e grave Rumphius diz o seguinte : quum fructus refert membrum virile, cujus adspectu Eva in effrenam illam cupiditatem instigata fuit. Em resumo, vê-se que a opinião do franciscano citado por Orta, quem quer que elle fosse, não era uma opinião individual, e pelo con- trario a expressão da crença corrente e vulgar em todas as terras do Oriente. (Cf. Génesis, iii; Maçudi, Prairies, i, 61 ; Yule, Cathay, 352 e 36o; Fr. Izidoro de Barreira, Tract. da sign. das plantas, 237, Lisboa, 1622; Fr. Pantaleão d'Aveiro, Itin. de Terra Santa, cap. x, pag. 32 v., Lisboa, 1596; Gubernatis, Mythologie des plantes, i, 2 a 28; Rumphius, Herb. Amb., v, 127.) Nota (4) Foi sempre uma questão debatida e que excitou um certo interesse, o saber se os antigos escriptores conheceram a bananeira. Theophrasto, fallando das arvores da índia, tem a seguinte passagem : «Ha outra arvore, grande, tendo um fructo de incrível grandeza e suavidade, do qual se alimentam os sábios da índia que andam nus. Ha outra, tendo as folhas de forma oblonga, similhantes ás pennas das aves (aTfouôõjv ir-ípoTç 2l>.oiov), e do tamanho de dous covados. Ha ainda ou- tra, cujo fructo é longo, não recto mas torcido (y.apTròí . . . x«i oux eOOuí àXXà (Ty.oXt'.ç), e de gosto doce; este, porém, produz desynterias, pelo que Ale.xandre prohibiu que os seus soldados o comessem.» É claro, que Theophrasto falia n'esta passagem de tres arvores; mas a primeira duvida é, se as tres são realmente distinctas, ou se elle, mal e imperfeitamente informado, distribuiu os caracteres de uma só pelas tres, misturando-lhe outros que lhe não pertenciam. Dos caracteres, uns quadram á bananeira e outros não. O fructo não é de incrível 340 Colóquio vigésimo segundo grandeza, se o considerarmos correctamente como sendo a banana; mas é de incrível grandeza se tomaram como fructo o caixo de bana- nas. As folhas grandes existem na planta, ainda que as da musa te- nham muito mais de dois covados. E aquelle fructo doce, longo e cur- vado, parece ser exactamente a banana; mas, por outro lado, esta fornece uma alimentação sadia, e não é provável que Alexandre a prohibisse aos seus soldados, emquanto outras fructas da índia estariam n'este caso. Em resumo, parece haver aqui uma certa mescla de plantas; mas temos a impressão de que as phrases de Theophrasto assentam sobre algumas noticias incompletas da bananeira, trazidas da índia pelos gregos do exercito. Plinio tem um paragrapho, mil vezes citado e debatido, mas que será necessário citar mais uma vez. Diz assim: Major alia: pomo et suavitate prcecellentior, quo snpientes Indorum vivunt. Folium alas avium imitatur, longitudine trium cubitorum, latitudine duum. Fructum cortice mitiit, admirabilem succi dulcedine, ut uno quaternos satiet. Arbori nomen palce, pomo arience. Plurima est in Sydracis, expeditio- num Alexandri termino. Est et alia similis huic, dulcior por)io, sed in- teraneorum valetudini infesta. Edixerat Alexander, ne quis agminis sui id pomo attingeret. E evidente que Plinio leu Theophrasto, e em parte o traduziu. Junta-lhe, porém, algumas noticias suas, como o nome da arvore, Pala, e o nome do fructo, Ariena; e reúne em uma só as duas primeiras arvores do botânico grego. A Pala tem sido geralmente identificada com a bala ou vala do Malabar, isto é, com a bananeira. O grande investigador das antiguidades indianas, Lassen, como o grande geographo Ritter, concordaram n'aquella identificação. É certo, no emtanto, que ella levanta algumas difficuldades. Modernamente Yule advogou uma identificação diversa, e suppoz que a Pala fosse a ja- queira, fundando-se em alguns dos caracteres citados, como no fructum cortice mittit, e no uno quaternos satiet. Apesar da engenhosa discus- são de Yule, ainda nos resta a opinião de que os dois antigos escripto- res tiveram alguma noticia da bananeira. A questão era, porém, complicada, e não admira que o erudito me- dico francez, Jean de La Ruelle (Ruellio) desse «huma no cravo e quatro na ferradura», como lhe diz maliciosamente o nosso Orta. (Cf. Theophrasto, Hist. plantarum, iv, 4, pag. 64 da edição Wimmer; Plinio, XII, 1 2 ; Yule e Burnell, Glossary, palavra Jack.J Nota (5) As bananeiras eram frequentes na Nova Hespanha, no Peru e no Brazil, ou em geral nas regiões quentes da America. Não vem para aqui a questão de saber, se eram indigenas ali, ou se haviam sido in- Do Faufel 341 troduzidas pelos hespanhoes e portuguezes, questão em que a auctori- dade de Humboldt está por um lado, e as de R. Brown e de De Candolle por outro; basta notar, que no tempo de Orta se cultivavam já em grande abundância (Cf. De Candolle, Orig. des plantes cultivées, 242). Também se cultivavam em Portugal, ou que a sua introducçáo fosse recente, e posterior ás viagens á índia, ou mais antiga, e de plan- tas trazidas da Syria e Egypto, como succedeu na Itália. Qualquer que fosse o momento em que se introduziram, encontravam-se em varias localidades; mas davam-se mal, e produziam fructos muito imperfeitos, como ainda succede. Clusius viu-as nas hortas e quintaes de Lisboa; mas em geral sem fructo : Ulysipone, ubi aliquot plantas vidi, minimè tamen fructiferas . . . (Exotic, 23o). Orta refere-se a um periodo, anterior de trinta annos ou um pouco mais a este de que falia Clusius, pois seguramente falia do que viu, antes de partir para a índia no anno de i534, alludindo especialmente ás plantas cultivadas na quinta de D. Francisco de Castellobranco. Este fidalgo devia ser um D. Francisco de Castellobranco, senhor da casa de Villa Nova de Portimão, e que foi nomeado camareiro mór d'El-Rei D. João III, pelos fins do anno de 1527. Era filho do primeiro conde de Villa Nova, mas, segundo se deprehende do que diz a His- toria genealógica, não teve o titulo, que depois passou a seu irmão, casado com a sua filha D. Branca de Vilhena. Alem da casa de Villa Nova, tinha também o morgado da Povoa; e o meu amigo visconde de Castilho informa-me de que elle edificou a ermida da Piedade na sua quinta da Povoa. Devia, portanto, ser esta a sua vivenda favorita, e é provável que ali cultivasse as bananeiras de que Orta falia (Cf. Hist. gen., XI, 3i I e 474). COLÓQUIO VIGÉSIMO TERCEIRO DO FOLIO INDO OU FOLHA DA ÍNDIA INTERLOCUTORES RUANO, ORTA, SERVA RUANO Sam muyto bem alembrado que me dixestes, falando no betre*, que não era folio indo; e foy isto cousa pera my de muyto preço; porque os físicos, que muito presumem sa- ber dos que destas partes foram, o dizem ser; e o que mais he, os modernos escritores e o Laguna lhe chamão em suas escrituras tembul, e dizem que asi lhe chamSo os Maurita- nos. Ora pois me prometestes dizer que cousa era o folio indo, e provar ser cousa diversa, e a ordem o pede, dizeimo. ORTA De serem cousas diversas he craro, como vos dixe, pois Avicena faz dous capítulos, scilicet, o de folio indo que he 259, e do tambiil que he 707 **; nisto não ha que falar, porque o de folio indo chamase cadegi indi, e o de betre, tambid. E betre Ja vos dixe como chamavam os índios, e o folio indo lhe chamão os índios tamalapatra, e os Gregos e Latinos cor- rompidamente lhe chamaram ynalabatrnm***. E cadegi indi em arábio quer dizer folha da índia; e Avicena foy traduto da própria maneira que está no arábio, e lingoa de vaca, e lingoa de pássaro, e melajn da índia, asi está no arábio, sci- licet, esses nomes que igualmente significam o mesmo: asi * Veja-se a nota á pag. 325. ** O cap. do tembiil em Avicenna é 709. *** Dioscórides, Liv. i, cap. 11; Plinio; Galenus, Simplicium medi- camentorum (nota do auctor). 344 Colóquio vigésimo terceiro folio indo não se chama folio per excelência, somente por- que está asi folio indo; e se o quereis ver logo volo amos- trarei. Moça trazô cá aquellas folhas, que trouxe da botica na algibeira. SERVA Eilas aqui. ORTA Que VOS parece? RUANO Pareçeme folhas de laranjeira, senam que sam mais agu- das: a cor he verde escura, tem pelo meio hum nervo e dous outros que o acompanham até á ponta, que he signal pera ser bem conhecida quando outra vez a vir. ORTA Cheirai: o cheiro he muito suave, e nam he tam forte como o do espiquenardo , nem como o da maçan; cheira tam bem como cravo, nem he tam agudo cheiro como canella. RUANO Dizeime a feiçam do arvore, que nam parecem estas fo- lhas cousa que está sobre a agoa, como as que chamam len- tilhas de agoa, como decraram todos a Dioscórides; porque Dioscórides diz á maneira de lentilha. ORTA A Dioscórides e a Plinio foi dada falsa enformaçam, por- que estas folhas naçem em huma arvore grande, longe donde ha alagoas, e nam dentro das alagoas; o arvore que dá este fo- lio* indo em outros cabos o ha também; e asi o ha em Cam- baia, e os buticairos (a que chamam gandis) que vendem mezinhas, como lhe perguntardes per tamalapatra, logo vos entenderam; porque he lingoa da terra e o chamam asi. * Orta escreve umas vezes «folio indo», e outras «folium indu»; re- duzimos tudo á mesma fórma. Do Folio Indo RUANO Logo enganados vivíamos nesta mezinha, como em outras muytas até agora-, na terra do Preste Joam diz hum frade de San Francisco, que fez Modus faciendi, que o ha; e que ás suas mãos veo ter este folio indo, e que vinha intitulado folhas do arvore da canella: e que nam lhe parecia folhas na- çidas em agoa, senam em arvore, que em seu defeito* (pois o não ha) he bem que ponham o espique ou maça. ORTA Bem podiam ser folhas de canella aquellas, e não hc muito deferente folio indo delia; senam que a de canella he mais estreita e menos aguda, e nam tem aquelles nervos que tem o folio indo; mas nem canella nem folio indo ha nas terras do Preste Joam; nem tal ouvi dizer, perguntando a quantos lá andaram; e quanto he ao que poram em seu logar, dirvoloey ao cabo. RUANO Dioscórides diz que alguns, pollo cheiro, dixeram ser folha do arvore do espiquenardo, por a semelhança do cheiro; e que como o colhem, o passam com um fio; enfiadas as folhas as tem e as guardam pera as vender; e que as lagoas sequas, onde se isto dá, sam queimadas, porque senam sam quei- madas não naçe mais isto nellas; e que o milhor he mais novo e inteiro; e que de branco vaise sendo preto; e que com o cheiro fira a cabeça, que muyto tempo permaneça neste cheiro; e que imite ao nardo, e nam tenha gosto de sal. ORTA O cheiro bem vedes que nam he tam forte como o do nardo, que he mais suave; e o nardo nam he arvore; e a ma- neira de colher não he asi, senão colhem as folhas, c delias fazem fardos, e os levam a vender. E pois nam nasçem nas alagoas, não he rezam que se queimem pera nasçer outro; * «Defeito» por falta, como o francez défaut. 346 Colóquio vigésimo tejxeiro e todas as terras que se am de semear queimam-se ; mas não todas as outras, e as que não se queimão nam leixa por isso de naçer erva nellas. A cor he verde craro; e as cou- sas que se guardam não ficam tam craras, chegamse mais a preto que a verde escuro; e nam tem cheiro de salva al- gum delles, e he verdade que o inteiro he milhor, porque tem a virtude mais conservada, nem o cheiro fere a cabeça tanto como os outros cheiros; e postoque Autuario diga que os Mouros lhe chamam tembul, também se enganou como outros. RUANO Plinio diz* que o ha em Siria em folhas retortas, donde sae o olio pera o unguento; e que em Egipto ha mais abun- dância delle; e que o mais louvado vem da índia; e que se gera sobre agoa; e que cheira mais que o açafram; e que o mais sabe a salva e cheira, e o somenos na bondade he mais craro e milhor, que he semelhante ao nardo; e que deitado em vinho excede todos os cheiros; e que o preço delle foy cousa milagrosa, scilicet, até trezentas livras e do olio até 60 livras**. Isto diz Plinio, ao qual responda e satis- faça. ORTA Avelo em Siria e em Egipto nam o sey; mas tive amizade com físicos do Cairo e de Damasco, scilicet, de Alepo, e todos me dixeram que o não havia na Siria, nem em Egipto; nem cheira tanto como açafram, nem como o nardo, nem he cousa do nardo, porque o nardo vem de duzentas legoas donde he este seco, posto que lá o pôde aver; e mais nardo he cousa que se semea, e este he arvore agreste e grande. E das outras cousas da eleiçam delle já respondi confutando a Dioscórides ; e que o cheiro no vinho fervido no folio indo preceda todos os cheiros, seria iso em seu tempo; porque * Plinio, lib. 12, cap. 26 (nota do auctor). ** Na edição de Goa está 600, mas deve ler-se 60; veja-se a nota (i). Do Folio Indo 347 não avia entonçes beijoim de boninas, nem âmbar, nem almis- cre, nem calambuco, como agora ha; porque as cousas da policia vam em crecimento, e pódc ser que as de vertude não tanto; por onde nunca mais creais que se perderam cousas de cheiro ; e asi como cinamomo, em que aprofiaveis os dias passados, porque o mundo he mais descoberto, e a gente tem a condiçam que dise. RUANO Galeno, nem Rasis, não dizem cousa de novo, somente ter a vertude do espique. Avicena* diz que he chegado a esta mesma virtude, e que as folhas sam as de saisifrão, e que nasce em agoa e terra çenosa, sem ter raiz, á maneira de lentilha de agoa, onde alguns cuidaram que era asi como folha de golfam; e que o seu olio tem a vertude do laser- piciiim, e do olio de açafram, e que he mais forte. ORTA Todo mais diso he provado ser falso em Dioscórides e Plinio, por onde não he necessário mais responder; porque Avicena e Serapio e Rasis não souberam mais nesta mézi- nha alem dos Gregos, somente saberem que malabatrum ácerca dos Gregos era folio indo, e trasladaram o que di- xeram os Gregos, somente acresentando algumas cousas em dizer o pera que aproveitava; e todos dizem que apro- veita pera provocar a orina, e pera o cheiro mão da boca, e que conserva os panos, e defendeos da traça; e per derra- deiro dizem que aproveita pera todas as cousas, como o es- piqiienardo. RUANO Estes escritores modernos huns confessam que o não co- nhecem, nem o viram, e estes, a meu juizo, falam milhor; outros dizem que viram em seu lugar deitar folhas do ar- vore do a^avo, outros da canella; porque o autor que fez * Avicenna, 661, Serapio (nota do auctor). Tudo quanto Orta re- pete vem no capitulo 259, correctamente citado na pagina anterior. 348 Colóquio vigésimo terceiro Liiminare majus diz que hum mercador lhe vendera folhas de cravo, e dixe que aquillo era folio indo, o outro francis- cano que acima dixe, diz que lhe derao por elle folhas de canelh. Antonio Musa diz que o vio em Veneza, e que lhe amostraram o folio indo da Siria, e o folio indo da índia, e porém que elle os nam conheceo: decrarayme isto, e que poremos em seu lugar lá em Espanha, faleçendonos o folio indo, como nos falece. ORTA O que dixe que vira folhas de cravo me parece que nam dixe bem, porque donde naçe o cravo até onde naçe o folio indo he viagem de dous annos de caminho; e o que dixe das folhas de canella, pudia ser que yriam lá mestu- radas com a canella: e quanto he ao que poram em seu lugar, eu queria que levassem de qua tanto folio indo que bastase* toda a Europa. E facilmente se podia levar de qua; mas já que o nam levam, usem folhas de canella em seu lugar; e nam as achando da canella sequa ou do espi- quenardo, maça não ponham em seu lugar, porque nam he tam semelhante a elle como as outras mézinhas, Avicena manda pôr em seu lugar também thalisafar, segundo emenda André Belunensis; mas eu nam conheço esta mé- zinha, nem me parece semelhante ao folio indo; e deste parecer he Mateolo Senense, contra hum moderno escritor. * Deve ler-se, «que bastase a toda»; ou antes talvez que «abastase toda». Nota (i) A droga, chamada por Orta «folio indo», ou «folha da índia», é ainda conhecida e usada n'aquella região, e consiste nas folhas seccas de uma ou mais espécies do género Cinnamomiwi. Estas folhas, oblongo-Ian- ceoladas, percorridas da base ao ápice por tres nervuras bem appa- rentes, foram tão exactamente descriptas pelo nosso auctor, que ne- nhuma duvida pôde restar sobre a sua identificação, independentemente mesmo dos nomes vulgares, a que logo nos referiremos. Do Folio Indo 349 Diz -nos Dymock, que aquellas folhas se encontram ainda hoje nas lojas de todos os droguistas da índia; são consideradas um medica- mento estimulante, carminativo, diurético, diaphoretico, etc; e são vulgarmente designadas pelo nome de tajpát ou tejpát. Julga-se em geral que o tejpát procede da espécie Cinnamomum Tamala, Nees ab Es., ainda que parte se atribue também ao C. nitidum, Hooker e Blume, e a outras espécies. Todas estas plantas são arvores de dimensões re- gulares, como bem advertiu Orta; e não vivem em lagoas ou logares pantanosos, mas pelo contrario nas florestas das regiões montanhosas. O C. Tamala, por exemplo, é particularmente abundante nas serras de Khasya, e nas regiões vizinhas de Silhet e Nepaul (Cf. Dymock, Mat. med., 670; Guibourt, Hist. des drogues, 11, 418; Pharmacographia, 480; Pharmac. of índia, 196). Orta cita apenas dois nomes vulgares, ambos bem conhecidos como tendo sido applicados á mesma droga, e que, portanto, confirmam a identificação resultante das suas notas descriptivas : — «Tamalapatra» entre os indios. Este nome significa folha de ta- mala, pois páttra quer dizer folha em sanskrito. O nome de tamala foi dado antigamente na índia a uma ou a mais espécies de Cinnamomum; e em uma lista de nomes vulgares, publicada pelo celebre indianista sir William Jones nos fins do século passado, encontramos ainda Tama'la como o nome do Laurus (hoje Cinnamomum). Depois, ao que parece, aquella designação caiu em desuso, e foi substituída pela de tejpát, sim- plificação de tej-pattra, que se diz significav folha pungente (Cf. Asiati' cal researches, vol. iv (1799), p. 235; Dymock, 1. c). — «Cadegi indi» em arábio. Deve ler-se çadegi indi, e é o conhecido nome arábico ^.3Lw, sadadj, seguido do qualificativo ^Jjj», hindi. O folio indo de Orta é, portanto, e sem a menor duvida, o sadadj hindi dos árabes, e o tamala pattra dos antigos indianos; e esta droga era, segundo todas as probabilidades, o u.aXa6á6pov de Dioscórides, e o maio- bathron de Plinio. Em primeiro logar, o nome grego é uma derivação simples e fácil de tamala pattra; e em segundo, vè-se que Dioscórides tem um conhecimento bastante exacto da droga. Cita as suas proprieda- des medicinaes, análogas ás que os orientaes lhe attribuem; e aponta o emprego das folhas para preservar a roupa da traça, um habito ainda conservado na índia. O erudito e zeloso commentador de Dioscórides, Sprengel, admitte esta identificação; e reconhece quanto as investiga- ções do nosso Orta esclareceram aquelle ponto duvidoso : obscuro huic loco lucem pritnus aitulit Garcias, dum Cássia' esse folium perhiberet . É claro ao mesmo tempo, que Dioscórides tinha as mais incomple- tas e erradas noticias sobre a planta de que a droga procedia. Suppóe ser uma planta aquática; diz-nos que as suas folhas se encontravam fluctuando sobre as aguas; e dá-nos outras informações igualmente 35o Colóquio vigésimo terceiro desviadas da verdade. Orta, com a sua experiência pessoal, não tem difficuldade em rectificar estes enganos, que eram naturalissimos. Dios- córides podia ver as folhas no mercado de Alexandria; mas segura- mente não encontrava quem lhe descrevesse as arvores, que habitavam nas remotas regiões da índia central, então pouco menos de desconhe- cidas. A noticia de Plinio é ainda mais incorrecta que a de Dioscórides. Dá-nos aquella curiosa e interessante informação sobre os preços da droga, textualmente citada pelo nosso escriptor : in preíio quidem pro- dígio simile est a X. singulis ad X. ccc pervenire libras: oleum ati- tem ipsum in libras, X. lx. Mas depois repete o que o auctor grego diz erradamente sobre o habitat aquático da planta; e quando nos falia do oleo que se extrahia da folha, e do seu subtilissimo perfume — a tamala pattra é quasi inodora — leva-nos a crer, que confundia sob um nome mal applicado drogas diversas, e que hoje é difRcil saber quaes fossem. E igualmente inexacto sobre a procedência do vialoba- thron, citando a Syria, o Egypto, e apenas vagamente a índia. No emtanto, um contemporâneo de Dioscórides e de Plinio, mas tendo mais immediato conhecimento do Oriente do que elles, o auctor do Périplo, dá, sob uma forma fabulosa e singular, uma indicação muito chegada á verdade, pelo que diz respeito ás regiões d'onde vinha o malabathrum. Diz que uns certos povos de diminuta estatura, os Sesa- dce, habitando nas fronteiras de uma grande região, que parece ser a China, usavam celebrar uma festa nos confins das suas terras. Traziam comsigo cargas de folhas e ramos, que depois, quando se retiravam, ficavam espalhadas pelo chão. Vinham então os outros povos da vizi- nhança, recolhiam aquelles ramos, e grupavam as folhas pelas suas grandezas em tres sortes: hadrosphcerum, mesospha'rum e microsphce- rum malabathrum. Estas eram as tres qualidades de malabathrum, que aquelles povos traziam a vender á índia. Se despirmos a historia das suas circumstancias fabulosas, fica-nos a indicação de que a droga vi- nha das regiões intermédias entre a índia e a China; e é justamente por ahi, Nepaul, e vertentes próximas do Himalaya, que varias espécies de Cinnamomum, por exemplo o C. Tamala, se encontram ainda hoje. E bem possível que algumas tribus da montanha, das que constituem a complicada eihnographia da grande cordilheira asiática, se occupas- sem especialmente na colheita das folhas de tamala, e vendessem a droga aos mercadores indianos, os quaes a traziam aos portos do Ma- labar, frequentados pelos antigos navegadores do mar Vermelho. A noticia do Périplo, embora envolvida em circumstancias de phantasia, é pois claramente favorável á identificação do malabathrum dos antigos com a tamala pattra da índia. (Cf. Dioscórides, i, ii, vol. i, p. 21 e vol. 11, p. 348, ed. Sprengel- Plinio, xii, 59, e xxiii, 48; Muller, Geogr. Gr. Minores, i, 3o3.) ' Do Folio Indo 35i Al em de, corrigir os erros de Dioscórides e de Plinio, em grande parte ainda seguidos por Avicenna e outros árabes, Garcia da Orta teve de deslindar uma confusão de origem mais moderna. Em seguida ás viagens portuguezas, ou talvez mesmo antes, houve quem julgasse que o tembul era idêntico á tamalapatra. Este erro era naturalíssimo. Os viajantes sabiam que havia na índia uma droga ou substancia, tida em grande conta, e chamada por excellencia a folha, ou a folha da índia. Quando ao chegarem ali, encontraram uma fo- lha em uso constante, ofíerecida ceremoniosamente aos hospedes, e occupando um logar saliente nos hábitos typicos da região, elles to- maram essa folha, que era o betle, tembul, ou pan (a folha do Pi- per Betle), como sendo a celebre folha da índia. Todos se engana- ram, mesmo os mais minuciosos e os mais exactos; Duarte Barbosa também suppõe que o betele é a folha da índia. A confusão persis- tiu muito tempo. Ramusio, no fim do Sommario de regni città, dá a figura da foglia detta Betelle; mas é curioso que a sua figura se não parece nem de longe com a folha do Piper, e é pelo contrario uma representação bastante exacta da folha do Cinnamominn. Das rela- ções dos viajantes, a confusão passou para as obras de matéria me- dica, a de Laguna e outras. Quando Garcia da Orta foi para a ín- dia e viu o tembul, caiu no mesmo erro. Depois — como conta em outro Colóquio — o seu amigo Nizam Scháh explicou-lhe que eram cousas muito differentes, e elle fez então a distincçao correcta entre as duas folhas, que são absolutamente diversas. Conheceu depois perfeita- mente o betre ou tembul, a cujo uso nunca se pôde habituar; e co- nheceu também a tamalapatra, que encontrava em todas as boticas in- dianas, d'onde — como nos diz — trazia alguns exemplares na algibeira. É singular, que este Colóquio^ em que a distincção foi feita tão explicita e claramente, escapasse ás investigações do eruditíssimo dr. Vincent, o qual ainda no nosso século tomava o tamalapatra e o tembul como sendo a mesma cousa. (Cf. Ramusio, Delle navig., i, SSj v.; Yule, Cathay, cxly; Yule e Burnell, Glossary, palavra Malabathrum.) O tejpát continua a ser usado na matéria medica indiana; mas deixou ha muito de figurar na europêa. No tempo de Orta, porém, vi- nha em quantidades consideráveis para o Occidente, posto que elle diz que podia vir muito mais. Vinha principalmente a Veneza, onde Antonio Musa o viu, e onde o viu também o dr. Paludano: pluri- mum transfertur, prcecipue Venetias. No fim do século xvii ainda Po- met dizia, ^ 'avoue en avoir bien vu et bien vendu . . . por onde se vê, que continuava a ser uma droga procurada (Cf. Linschoten, Navig., 84; Pomet, Hist. des drogues, i, 160, 2*"'« édition). Nas substancias que se podiam empregar como succedaneos do «fo- lio indo" é Orta correcto, arredando completamente a folha do cravo 352 Colóquio vigcsimo terceiro do Folio Indo e a maça, que effectivamente são cousas absolutamente diversas; e admittindo que se podesse usar da folha da canela, que na realidade é muito análoga. Por ultimo declara não conhecer o «thalisafar», que — segundo Avicenna — se podia substituir ao «folio indo». Este «thali- safar» ou talisfar é de diíficil identificação; mas d'elle teremos ainda de fallar em mais de uma nota. Nota (2) Orta cita n'este Colóquio um frade franciscano «que fez Modus fa- ciendi»^ e um escriptor «que fez Luminar e majus». Estes livros, men- cionados assim brevemente e sem nome de auctor, são difficeis de en- contrar; e devo dizer que, apesar das minhas pesquizas, em que fui auxiliado por pessoas muito competentes, me é impossivel dar qual- quer indicação sobre o Luminare majus. O Modus faciendi julgo ser o Modum faciendi in medicina, escripto por fr. Bernardino de Laredo, leigo minorita da província dos Anjos, e que, antes de entrar em religião, havia sido medico. Ha, porém, uma difficuldade. Tanto fr. Lucas Wadding, nos Scriptores ordinis minorum, p. 56, como Nicolau Antonio na Bibliotheca Hispana, p. 170, citam apenas uma edição de Alcalá de Henares do anno de 1617 (Compluti, 16 17). É claro que o nosso Orta não viu nem podia ver tal edição. Fr. Bernardino de Laredo viveu, no emtanto, muito antes de Orta, e deve ter escripto nos primeiros annos do século xvi. Nicolau Antonio, que o dá como hespanhol e natural de Sevilha, cita na sua Bibliotheca His- pana nova o manuscripto da Bibliotheca lusitana de Jorge Cardoso 1, o qual suppunha que fr. Bernardino fosse portuguez, e affirma que fôra medico de D. João II de Portugal: medicines doctor et Joannis II Portugallice regis 7nedicus, uti legimus in schedis mss. Georgii Cardosi, qui ipse lusitanum existimabat, inde forsan quod in Lusitaniam vixis- set. Sendo isto assim, é bem possivel que Orta conhecesse a obra; ou que existisse uma edição anterior á de 161 7, e que os bibliographos não conheceram; ou que elle visse em Portugal alguma copia manu- scripta. E claro que todas as duvidas se desvaneceriam, consultando a obra e procurando lá a affirmaçao citada por Orta; mas não me foi possi- vel encontrar nas bibliothecas de Lisboa o Modum faciendi. ' Estas notas manuscriptas perderam-se, mas foram vistas e consultadas por vários eru- ditos do século passado. No meu exemplar da primeira edição de Nicolau Antonio, anno- tado, creio eu, por meu bisavô, Antonio de Mello, ou pelo seu amigo o bispo Cenáculo, vem uma nota manuscripta marginal, onde não só se aponta o que disse Jorge Cardoso de fr. Bernardino de Laredo, mas se marca o sitio e a pagina do mss. (tom. i.", foi. 44), indica- ção que se não encontra na passagem citada da 2.* edição de Nicolau Antonio. É claro, pois, que o annotador, quem quer que fosse, havia visto o manuscripto. COLÓQUIO VIGÉSIMO QUARTO DE DUAS manp:iras de galanga INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Galanga he huma mézinha muyto necessária; e postoque eu pêra my tenho que os Gregos a não conheceram, ao menos debaixo d'este nome, he muyto necessária em todas as boticas: falemos nella hum pouco. ORTA O nome he em arábio calvegiam, e ainda que acheis por todollos Mauritanos escrito chamligiam ou galungem, como Serapio* lido corrutamente escreve, nam lhe deis fé; porque todos os Arábios lhe chamão asi. E esta que chamamos galanga he de duas maneiras, scilicet, huma pequena, muyto cheirosa, trazida da China a estas terras, e daqui pera Portugal e pêra outros cabos do ponente: a esta cha- máo na China lavandou. E ha outra mais grande, achada na Jaoa, chamada acerca delles lancua\; esta he grande, e não tam cheirosa nem tam aromática como a primeira*, e porém ambas chamamos nós outros os de qua da índia lanciia:{. A primeira pequena he huma frutiçe ou mata de dous palmos em comprimento; tem folhas como murta; dizem os Chins que naçe sem ser prantada ; e a maior que naçe na Jaoa he da altura de çinquo palmos; faz as raizes grandes, e tem nós como cana, e também a outra da China tem asi; e esta da Java tem folhas à feiçam de huma grande lança, e floreçe com flor branca; deita sementes, mas nam * Serapio, cap. 332 (nota do auctor). 23 354 Colóquio vigésimo quarto se semea com ellas, ainda que nesta terra he semeada nas ortas em pouca cantidade, scilicet, aquillo que se gasta na terra em saladas e em mezinhas da gente indiana, princi- palmente da que vem da Jaoa, que sam as parteiras (a que chamáo datas) e tem cá officio de físicos*. Semease das raí- zes delia mesma, como o gengivre, e nam doutra maneira**; ainda que acheis escrito o contrairo não o creais; porque nem Avicena, nem Serapiam, nem outros Arábios tiveram delia noticia somente confusa; e porque era de duas ma- neiras, postoque a primeira da China he mais louvada, nam falaram nisto como homens que sabiam disto bem, senam (como se soe dizer) ás apalpadellas; e já pode ser que esta seja a causa porque Avicena escreve delia dous capítulos, scilicet, hum 821 debaixo do nome de calitngiam; e outro 196 debaixo do nome de caserhendar ; e qual destas seja a da China, de que mais usamos, ou qual seja a de Java de que menos usamos, não o sey, porque elles nam escrevem senam duvidando; e porque falam desta maneira, asaz será pera vós conhecerdes ambas de vista, asi sequas como verdes; porque eu volas amostrarey oje. RUANO O Belunense, no seu Dicionairo, diz que Avicena escreve de ambas, e que nam he mais de huma; e a causa he porque nas cousas duvidosas faz 2 capítulos; porque o que se deixou de escrever em hum, se escreva em outro. ORTA Antes faz isso onde acha duvida; e a mi me parece que vyo estas duas maneiras de galanga, e por isso fez 2 capi- * Esta noticia, de que as parteiras javanezas vinham para a índia exercer o seu officio, é interessante, e só a encontrei no nosso escri- ptor. ** Propagava-se pelos rhizomas, e isto explica a phrase de Orta: setneava-se mas não com as sementes. /)a Galanga 355 tulos; e.pois somos certos da mezinha, não façamos tanto caso dos nomes. RUANO Pois Dioscórides não fala neste simple, nem os Gregos, posto que o alega o Pandetario, e os Arábios escrevem pouco e duvidoso, como dizeis, será rezam que siguamos os modernos, no que bem falarem. Antonio Musa curioso e bem entendido, diz que a Lioniçeno lhe pareçeo que esta, que nas boticas chamamos galanga, he açoro, porque o que usamos por açoro, que he huma raiz de espadana, não o parece ser, por ser raiz sem cheiro, nem sabor quente e agudo (condições que sam neçesarias pera o açoro que nós falsamente chamamos espadana): e diz que o mesmo lhe parece a elle, considerando a galanga com seu cheiro e sabor. ORTA Já vos dixe, falando no calamo aromático, que o açoro não era calamo aromático, e asi vereis as razões em que me fundei; e mais o açoro he amargoso em sabor, e o calamo aromático he agudo em sabor; e mais o açoro he raiz de cor branca, e o calamo aromático he mais ama- rello. Agora vos diguo que a galviga he muito menos pera se dizer delia que he o açoro; porque a galanga he mais quente e com mais suave cheiro; e as cousas pera que aproveita a galanga, tiradas dos Arábios que escrevem delias, nam sam aquellas pera que aproveita o açoro; porque as da galanga sam pera o estamago, e pera o mau cheiro da boca, as do acero sam pera o cérebro e pera os nervos; e lembrame que, curando o Nizamoxa de hum tremor, nunqua os físicos fizeram menção da galanga; nem Antonio Musa teve isso, senam porque nam conheceo o naçimento da galanga. RUANO Pois os Frades italianos, que escreveram, dizem que mais verdadeiramente a galanga que usamos he raiz de esqui- nanto. 356 Colóquio vigésimo quarto ORTA Isto quanto seja alheo de razam o podeis bem ver; porque o esquinanto naçe em grande soma na Arábia, scilicet, em Mascate e Galaiate*, e a China e Jaoa** são muito longe des- tas partes; e mais o esquinanto tem raiz muito mais pe- quena. RUANO Menardo, e os Frades que escreveram sobre Mesue, dizem que o calamo aromático he açoro; e o que chamamos açoro não o he: por amor de mim que me digais se achandovos em Espanha se usarieis do açoro que chamamos, pois o ha lá; e se o não avieis de usar, que porieis em seu lugar? ORTA Se me eu acháse em Galacia que ha verdadeiro açoro, e se o prováse e lhe acháse as condições que delle escrevem os autores, usálohia; mas se o eu visse tal como o que cha- mamos em Portugal espadana, não usaria delle, e poria em seu lugar calamo aromático, e não já galanga; isto sem du- vida nenhuma; porque mais me inclino ao calajno servir por açoro, que a galanga; e tenho mais rezam, como já vos dixe ; e mais nesta terra usam delle pera as enfermidades dos ner- vos, e não de galanga (i). RUANO Tomarei vosso conselho, levandome Deos a Espanha. * «Caliate» na ed. de Goa. *» A orthographia de Orta em todo este Colóquio é Jaua, que po- deria ler-se Java; mas em outras passagens escreve Jaoa, e esta era a pronuncia habitual por aquelles tempos. Nota (i) Este Colóquio é scientificamente interessante, porque Garcia da Orta estabelece n'elle pela primeira vez a distincção entre as duas espécies Da Galanga 357 de galanga que se encontravam no commercio. E um dos mais zelo- sos e eruditos pharmacologistas modernos, Daniel Hanbury, reconhece esse interesse nas seguintes palavras: Garcia d'Orta ... is, I think, the first writer to point out (i563) that there are two sorts of galan- gal — the one, as he says, of smaller sije and more potent virtues brought from China, the other a thicker and less aromatic rhi:^ome produced in Java. This distinction is perfectly correct (Science pa- pers, 373). A primeira, ou a da China (Radix Galanga' minoris), é o rhizoma da Alpinia officinaruin, Hance, Posto que a droga fosse conhecida de tempos antigos, a planta só foi botanicamente descripta no anno de 1870, em uma communicação feita á Sociedade Linneana de Londres pelo dr. Hance, que havia examinado specimens colhidos no norte de Hai-nan. Inútil será dizer, que Orta andava mal informado, quando at- tribuia áquella Scitaminea «folhas como murta». Pelo contrario, quando falia do rhizoma, que viu, é correcto dizendo, que tem «nós como cana», e é mais pequeno e aromático do que o da espécie seguinte. A galanga maior, ou de Java (Radix Galanga; majoris), é produzida pela espécie Alpinia Galanga, Wild. [Maranta Galanga, Linn.). São exactas as indicações de Orta, sobre as suas «folhas á feiçam de uma grande lança», e sobre as flores de côr branca. E são exactas, porque elle n'este caso não curava por informações, mas havia visto a planta, semeada — como diz — nas hortas de Goa. A galanga menor ainda figura no commercio da Europa, posto que o seu uso medicinal esteja quasi abandonado, sendo apenas empre- gada como um condimento stimulante, principalmente na Rússia. Na índia, encontram-se nos mercados as duas espécies, vindo esta menor da China, e a maior de Java ou do sul e leste da mesma índia, onde hoje se cultiva. (Cf. J. of the Linn. Soe, xiii (1873), 6; Pharmac, 58o; D. Hanbury, Science papers, 370; Dymock, Mat. med., 774; uma boa descripção da A. Galanga, em Roxburgh, Fl. Ind., i, 59; e Rumphius, Herb. Amb., v, 143.). Vejamos agora os nomes vulgares, indicados por Orta: — «Calvegiam» entre os árabes. O nome arábico d'esta droga é ^Ls-\J*:k, que se deve ler khulandjan, mas nas transcripções medie- vaes incorrectas podia dar logar a todas as formas mencionadas pelo nosso escriptór. D*ymock aponta um nome sanslvrito kulinjana, sup- pondo-o corrompido do arábico; mas Fliickiger cita o nome chin kau-liang kiang, d'onde pôde derivar tanto o sanskritico, como o ará- bico. É claro, que de todos estes nomes, passando pelo galungen da versão de Serapio, deve vir a palavra galanga (Cf. Dymock, 1. c; Ainslie, Mat. ind., i, 140; Exotic, 25 1, Pharmac, 58o). 358 Colóquio jngesimo quarto da Galanga — «Lauandou» na China, naturalmente á forma menor que d'ali vinha. No livro de Ainslie, encontramos o mesmo nome louandon, mas sem indicação da auctoridade em que se funda (Cf. Ainslie, 1. c). — «Lancuaz» em Java. Esta designação é bem conhecida, e vem ci- tada por Ainslie e Rumphius nas formas lancqiias e lanquas. Os malayos chamam também lanquas á galanga menor da China, distinguindo-a pela designação de lanquas -kitsjil (Ainslie, 1. c; Rumphius, 1. cl. Avicenna fallou d'esta droga, o que era natural, pois foi bem co- nhecida dos árabes, e vem já mencionada por Ibn Khurdádbah no IX século; assim como vem repetidas vezes citada pelos últimos aucto- res gregos, como Nicolau Myrepso e Auctuario. É certo, porém, que os seus dois capítulos, 196 e 821, são muito curtos, muito confusos, e de modo nenhum indicam que elle distinguisse nem clara, nem mesmo approximadamente as duas espécies de galanga. Na ultima parte do Colóquio, Orta volta ainda ás confusões feitas pelos auctores antigos e seus contemporâneos entre açoro, calamo aro- mático e galanga, discussão a que já nos referimos a propósito do calamo, e que não tem interesse especial. COLÓQUIO VIGÉSIMO QUINTO DO CRAVO INTERLOCUTORES RUANO, ORTA RUANO Do gariojilo falemos; pois he pera essas partes donde vem a galanga. ORTA Esqueçeovos de falarmos nelle na letra c; porque o bom latim he cariojilo, e o máo latim he gariojilo, segundo po- deis ver em estes modernos que escrevem. RUANO Não tenho que ver com isso, porque asi o aprendi toda minha vida. ORTA E se vos mostrar em Plinio chamarlhe asi, que direis*? RUANO Que confesso ser mais latino, mas o uso me desculpa. ORTA Os vossos Gregos nam falaram neste gariojilo, somente Paulo Egineta, que diz que he folha de no:^; porque o ga- riojilo asi se decrara que tem folha de iioi**; mas este nam * Nas duas edições de Plinio, que tenho á mão, isto é, na de Sigis- mundus Galenius de 1549, e na de Littré de 1848, está escripto ^íirio- phyllon e garyophyllon; mas pôde talvez em alguma edição anterior encontrar-se caryophjllon. ** Suppondo a palavra derivada de xápuov e de ipuXXov; mas ainda assim o sentido não seria exactamente o que Orta indica; veja-se a nota (i). 36o Colóquio vigésimo quinto parece que o conheceo. E asi o diz Serapio que nas defini- ções gregas não se acha este nome; e depois alega a Galeno e a Paulo, que diz que o terladou ao pé da letra; e eu em Dioscórides nam o achei. RUANO Pois ainda vos darei partes donde o Galeno falia nelle. ORTA Em livros que sam próprios de Galeno não o achareis. RUANO No segundo livro de Dinamedis faz mençam de gariojilo, e no terceiro também; e mais muytos Arábios» dizem que Galeno o diz; e por ventura estes terladaram alguns livros de Galeno, de que nós carecemos polo tempo os perder. ORTA Esses livros que dizeis, em que fala Galeno no cariofilo, não sam ávidos por de Galeno; assaz he pera my que Ruelio, tam diligente escriptor e tam lido, diz que o nam achou em Galeno**. RUANO Pois esse que dizeis cita a Paulo, e a Aeçio, e a Plinio***, e diz que ha na índia hum gram semelhante ao ádi pimenta, senão que he grande e mais comprido, e que este se chama cariojilo. ORTA Eu nam vos nego falarem eses homens nelle, mas nego- vos falar Galeno nelle; e mais vos digo que esta mézinha foy achada muyto tarde, primeiro pera mézinha e cheiro, e depois pera cozinha. E gastase em tanta maneira, que * Avicena e Serapio (nota do auctor). ** O livro de «Dinamedis», ou Je Dynamidiis, é effectivamente con- tado entre os apocryphos de Galeno. **» Plinio, livro 12, cap. 7 (nota do auctor). Do Cravo de mil partes a huma se gasta em mézinha, e o resto em cosinha-, portanto vos quero dizer o nome delle em arábio e na terra onde o ha. RUANO Tudo me haveis de dizer muyto craramente. ORTA O nome latino he cariqftlum, e outros lhe chamam ga- riojilum (como vos dixe já); o Arábio, o Pérsio, o Turco, e a mór parte dos Indianos lhe chamam calafur; e em Ma- luco, donde somente o ha, e em todas esas terras lhe cha- mam chanque; e os nomes postos no Pandetario, scilicet, armufd, não ha tal nome; e o nome que está em arábio escrito carrumfd foy vicio do escriptor Arábio, ou a curru- çam dos tempos (ij. E pois somos certos da cousa e ninguém descrepa delia, nam nos matemos poUos nomes. Naçe a ar- vore deste cravo em Maluco, e sam humas ylhas sogeitas a elrey de Portugal, e tomadas per guerra justa muyto tempo ha. Estas sam as ylhas da contenda entre elrey de Portugal e o de Castella, sobre que tanto se preitiou, e vós como afei- çoado a vosso rey, pesarvosha da justiça e da pose que temos tam justa. RUANO Tenho tam pouco de elrey de Castella e do de Portugal, que posso dizer por mim: tantos moinhos tenho qua como lá. E falando comvosco a verdade, mais devo a elrey de Portugal, pois esta náo em que vim he a maior parte deste meu cunhado que a feitoriza; e estes proveitos tenho de elrey de Portugal, que do de Castella nunqua tive algum, nem espero de o ter. ORTA Aveis de saber que Maluquo está dentro na conquista de elrey de Portugal, e mais duzentas legoas ávante, como se tem achado pelos eclipses; senam entrou o demónio em hum Portuguez*, e porque elrey não lhe fez huma mercê injusta * Magalhães (nota do auctor). 362 Colóquio vigésimo quinto que lhe pedia, se foy lançar em Gastella e fez armar na- vios, e elle descobrio per hum estreito nam sabido como pude- sem vir ao Maluco; e indo lá, morreo elle e a mór parte da gente que com elle hia; e não poderam tornar poUo caminho por onde vieram. E outro bacharel Faleiro, que com elle hia, endoudeceo de ver que contra seu rey hia; e nam indo ao descobrimento morreo*. E )á outras vezes vieram Caste- lhanos a Maluco, e nam puderão tornar; e os que se defen- deram dos Portuguezes morrerão muytos delles; e a outros, que se entregarão, lhes foy dada liberdade e embarcações e merçes, pera se yrem a Gastella; tanta he a clemência de elrey nosso senhor com os christãos vencidos (2). E hum rey de huma ilha chamada Tarnate, vindo os Castelhanos a elle que os ajudasse, lhes dixe que o cravo era dado por Deos aos Portuguezes, pois cada cravo tinha cinquo quinas de elrey de Portugal; pôde ser que este dixe isto por pre- misam e vontade de Deos, ainda que era infiel : asi profetisou Balam e a sua asna, sendo animal irracional, falo isto debaxo da correiçam da Santa Madre Igreja. E depois este rey se fez cristão, e fez doaçam a elre}/^ de Portugal de seu reino, e eu o conheci em Goa (3). E tornando ao cravo, digo que so- mente o ha nestas ilhas de Maluco, que sam 5, e dahi se re- parte por todalas partes do mundo. E se vos dixeram que em Ceilam avia arvores do cravo, dizeilhe que si; mas que não dam fruto ahi, nem em outra parte alguma, senão em Ma- luco. E sam os arvores da altura e feiçam de louro; fazem os arvores copa em cima, e dam muyta frol que se faz em cravo; e naçe como murta, e a frol he primeiro alva, e depois verde, e depois vermelha e dura, que he o cravo. E dizemme pe- soas que o viram, dinas de fé, que quando está este cravo verde nos arvores, dam o mais excelente cheiro do mundo os arvores; e des que colhem este cravo, o sequam, e fica da cor que o vedes agora. Naçem em gomos, como os mur- * Faleiro não foi na viagem, como parece resultar da primeira parte da phrase; veja-se a nota (2). Do Cravo 363 tinhos, como já vos dixe; e dizem alguns que se llie chove, que se mete por dentro, e não he asi, somente nam vem á perfeiçam os cachos; e colhemnos, porque os ramos que fazem copa grande, deitamlhe cordas para colher cravo; e isto he causa que os arvores sejam açoutados e fustigados, e não dam pera o anno tam boa novidade; e secam estes cravos per dous ou tres dias, e asi os vendem e guardam pera os levar a Malaca e a outras partes; e aquelle cravo que fica no arvore por colher se faz mais groso, e folgam com elle na Jaoa; e nós com o outro epe chamamos de cabeça. E mais haveis de saber, que ao redor do arvore do cravo nam se dá erva alguma, porque o cravo leva todo o çumo da terra. RUANO E o que os Castelhanos chamão fuste, e os Portuguezes bastam donde he? ORTA Sam os páos donde estes cravos pendem, como as flores pendem dos páos meudos; e o cravo grande que vos dixe, he o que chamamos jnadf^e do cravo, e não porque o seja; não he macho, como dizem Avicena e Serapiam, que tudo he hum; mas hum he mais velho que outro, porque o que chamamos madre do cravo nam he do mesmo anno senam do anno pasado; isto me dixeram pesoas que o sabiam, que foy hum feitor desse Maluco, que o tal cravo he fruito muito ma- duro que cay em baixo. RUANO Fazem alguns benefícios a estes arvores do cravo, ou plantamnos, ou alimpamnos do mato ou podamnos? ORTA Nam mais que alimpar o cham, onde am de colher o cravo; e as arvores naçem sem ser semeadas, nem enxeridas*; e não naçem muyto perto do mar, senão hum tiro de falcão * Parece que no sentido de mettidas na terra, ou plantadas de es- taca. 364 Colóquio vigésimo quinto do mar ao menos, bem que está em ylhas cercadas do mar, e que não se quer muyto perto do mar, nem tam pouco muyto longe. Sam estas ylhas, donde naçe o cravo, cinquo, como dixe, e humas das principaes se chama Geloulo; e por iso chamaram ao cravo em Espanha cravo girofe, por- que he de Geloulo*; e também lhe chamamos cravo, porque he feito á feiçam de prego. E dizem alguns que quando he boa novidade, he mais a cantidade de cravo que de folhas, e a folha não cheira tanto como o cravo, e o páo não cheira senão quando he seco alguma cousa. Estes arvores naçem do cravo que cae ao pé, como as castanhas em nossa terra, mas não he necesairo, porque sempre a terra dá esse cravo, e nunca lhe falece chuiva com que se crie e dê fruto, por ser perto da linha. Naçem estes arvores do cravo, e criamse, e fortificamse em oyto annos, segundo diz a gente da terra, e asi dizem que duram cem annos. E nam vos digam al- gumas pessoas que se colhem os cravos á mão, porque he falço, que nam se colhem senam muyto per força, como vos dixe; e colhemse de meado de setembro até janeiro e fevereiro. RUANO Usa a gente desta terra do c?'avo em comer ou em me- zinhas ? ORTA Segundo tenho por emformaçam, nam faziam caso destas arvores os Malucos até que os Chins vieram a esta terra com suas náos, e levaram dahi á sua terra este cravo, e á índia e á Pérsia e Arábia; isto tem elles por memoria an- tigoa entre si. E conservase o cravo muyto bem com agoa do mar deitada nelle, e doutra maneira se faz podre. RUANO Pois a gente de Maluco dizeis que nam usa do cravo, a outra gente da índia usa muyto delle. E os Portuguezes que cá moram? * Perdoe-nos o nosso Orta, mas não é por isso; veja-se a nota (i). Do Cravo 365 ORTA Quando o cravo he verde fazem os que moram em Ma- luco conserva de vinagre e sal (a que chamam achar), e fazem os verdes em conserva de açucare; e já os comi e sam bons; e da conserva de vinagre usa a gente de Malaca que os pode aver, e fazem as molheres Portuguezas que lá moram agua estilada dos cravos verdes, e he muyto chei- rosa e muyto cordeal; e seria boa pera levar ao reino; e muytos físicos Indianos fazem huns suadoiros com cravo e 7io:{, e ?7iaça e pimenta longua e preta, fazendo disto os suadoiros; e dizem que, com isto, se tira a sarna castelhana. Eu a vi também* a físicos Portuguezes, e não me pareceo muito boa física. Algumas pessoas põem qua o cravo pisado na testa, e dizem que se acham bem com elle pera a dor da cabeça, e que se lhe tira; e nam he muito se a dor he de causa fria. As molheres prezamse muyto de mastigar cravo, pera lhe cheirar bem a boca, e nam tam somente as India- nas, mas as Portuguezas. RUANO Serapiam alegua a Galeno, que diz que he folha de no\: por ventura a arvore do cravo e da no:{ he tudo huma? ORTA Deferentes sam as terras muyto, porque huma he Banda e outra Maluco; e o cravo he mercadoria pera Banda, e o arvore da no:{ tem as folhas redondas, e pareçe pereira, e o do craj>o parece louro. RUANO Diz Avicena** e outros alguns, que o arvore he como sambacus, e que he mais negro? ORTA Nem he como sambacus (erva que chamamos jazmim), nem como sambuciis, a que chamamos sabugueiro, senam » Deve faltar aqui o verbo «usar», ou outro de igual sentido. ** Liv. 2, cap. 3i8 (nota do auctor). 366 Colóquio vigésimo quinto hc como loureiro: bem vedes a deferença que ha de hum a outro. RUANO Diz ser trazido de humas ilhas da índia, e que a gomma delle, ou resina, he semelhante a trementina em virtude. ORTA No que diz que he trazido de humas ylhas da índia, diz verdade; mas o que dixe da goma, não ha tal goma em Maluco: falei com muytos homens que moráram lá, e todos me dixeram que nunca virão tal goma. Eu não vos negarey que todas as arvores deitam goma ou resina, em especial se lhe derem cutiladas; mas até o presente nam se espre- merítou; nem, com seu perdão, falaram verdade os que escreverão da Nova Espanha, que dixeram que a goma do cravo era almecega; porque os arvores sam de diversas maneiras, não aviam de dar goma de huma maneira, e que fose de huma compreisão. As folhas do cravo não vem á índia, senão casualmente, por tanto não escrevo delias. O cheiro do cravo sei dizer que he o mais suave e o milho r do mundo, em especial de longe. Eu esprementei isto vindo de Cochim a Goa, e com vento pola proa; e remávamos de noite com a calmaria, e estava huma náo surta mais de huma legoa de nós, e o cheiro foy tam grande e tam suave que nos veo, que cuidava eu que ao longo da costa avia matas das flores, que em nossa terra chamamos cravos; e perguntando, me dixeram que era a náo que viera de Ma- luco; entonçes cahi no caso, e achei ser verdade; e depois mo dixeram homens de Maluco, que quando o cravo he seco lhe dá grande cheiro longe donde está (4). RUANO Lendo Serapio e Avicena*, acho muitos nomes que de- vem ser corrompidos, scilicet, os nomes dos autores; folga- ria muyto me dixestes disto o que sabeis. * Serapio, 319; Avicena, Lib. 2, cap. 3 18 (nota do auctor). Do Cravo 3()7 ORTA Não sey senão humas cousas mu3'to geraes; a Rasis chamam elles Beniacaria* , e a Mesue Mcjixus**. RUANO Alegua Serapio não se ha de ler senão com aspiraçam Haclim, e este me parece que deve ser Alf. ORTA Não he senão Hachim, que quer dizer filosofo***; e por- que, entre elles, averá algum que se chama por excelência filosofo, pôde ser que seja este o que elles alegam. RUANO A erva que chamamos cvlWos ha em Maluco, ou cá na índia? ORTA Em Maluquo não a ha; e porém da China veo a estas par- tes****; e não cheira também como o de Portugal; e deve a causa disto ser terem elles a virtude muyto supriíicial; e por esta terra ser quente, resolvese asinha a vertude delles. E nisto não falemos mais, pois sabeis milhor destes cravos que eu; e vos direi que na ilha de Sam Lourenço, em huma certa parte delia, ha huma fructa muito redonda, maior que avelan com casca, e cheira muyto a cravo; mas nam o he, nem aduba como cravo*****. * Sobre o nome dado a Rasis, veja-se a nota a pag. Sg. »* O nome de Mesué escrevia-se áj j-vL», Masuijah, que muito mal pronunciado podia soar «Menxus». *** Hakim, significava propriamente sábio, ou philosopho, e era o titulo geral dos médicos mussulmanos no Oriente. »*«» Loureiro na Flora cochinchinensis cita o Dianthus caryophyl- lus como usualmente cultivado na China. *»»*« A Ravensara aromática, veja-se a nota a pag. 218, 368 Colóquio vigésimo quinto Nota (i) É extremamente duvidoso, que o garyophyllon de Plinio, do qual este auctor diz apenas ser um grão similhante á pimenta, maior e mais frágil, fosse o cravo. È só alguns séculos depois, que nós encontramos uma referencia clara áquella especiaria no livro de Cosmas, o qual diz que a havia na ilha de Ceylão, para onde a traziam de muito mais longe. Posteriormente a Cosmas, Paulo de Egina referiu-se também ao cravo de uma maneira explicita, e que não pode deixar duvidas, como deixa a curta indicação de Plinio. Isto pelo que diz respeito ao conhecimento da especiaria na Europa, porque em relação a índia e á China ha noti- cias de que foi ali usada muito antes (Cf. Plin., xn, i5; Fliickiger e Han- bury, Pharmac, 25o; Dymock, Mat. med., 328). A especiaria, que os portuguezes chamaram e chamam cravo, con- siste na flor completa de uma bella arvore da familia das Myrtacece, o Caryophyllus aromaticiis, Linn. (Eugenia caryophyllata, Thunberg), a qual nos tempos de Orta se cultivava unicamente nas Molucas; mas depois foi levada para outras partes da Asia, e mesmo para algumas ilhas da costa africana, como Pemba e Zanzibar. — O nome que alguns escriptores gregos applicaram a esta especia- ria, xap'jo(puW,ov, deriva-se geralmente da fórma que as pétalas tomam no botão, assimilhando-se a uma pequena noz (y.áfuov). Tem-se, po- rém, advertido que a orthographia grega é incerta — o que não esca- pou a Orta — e o nome se encontra também escripto ^apoup-cpouX, -j^apo- cpaXa, e ainda de outros modos. Esta incerteza pôde indicar que o nome não fosse propriamente grego; mas antes a hellenisação pelo som de alguma designação oriental. Da mesma designação asiática procede sem duvida o nome arábico Jju , qaranfal, que se encon- tra transcripto por diversos escriptores, karanfal, karun/el, ou karum- pfel. Esta ultima fórma não é admittida pelo nosso escriptor, que, sem rasáo, adopta uma muito mais viciada, «calafur». Na opinião de Dymock, todos estes nomes se devem prender ao ta- mil, kirámbu, e ao malayo karámpu; pois foi por intermédio d'aquelles povos, que a especiaria penetrou na índia e chegou depois ao conhe- cimento dos árabes e dos gregos. E quasi inútil advertir, que as fórmas modernas, girofle, girofe, ga- rofano, vem directa e claramente do nome grego, e não do da ilha de Geloulo, ou Djilolo, como erradamente diz o nosso escriptor (Cf. Lang- kavel, Botanik der spãteren Griechen, ig, citado na Pharmac, 25o; Exotic, 248; Dymock, Mat. med., 328; Rumphius, Herb. Amb., 11, 3). — «Chanque», o nome usado nas Molucas, é bem conhecido. Rum- phius dá-o na fórma tsjancke, e Crawfurd na fórma cãngkek. Segundo este escriptor, a palavra não é malaya, mas antes a corrupção do nome Do Cravo 369 chinez tkeng-hia. A derivação parece-me um pouco forçada, tanto mais que o nome chinez seria mais correctamente íeng-siang, litteralmente prego perfume, pois os chins repararam — como os portuguezes — na fórma de prego, ou cravo, que tem o botão (Cf. Rumphius, 1. c; Graw- furd, Dict., 101). Nota (2) O cravo encontrava-se apenas nas cinco ilhas, propriamente chama- das Molucas, ou — como diziam os portuguezes — ilhas de Maluco 1. Se- gundo as enumera João de Barros, eram: Ternate (Tarnáti), Tidore fTidori), Moutel (Mártir), Maquien (Makian), e Bacham (Batchian). Muitos annos antes de Barros, Duarte Barbosa, que devia ir morrer bem perto d'ellas, menciona as mesmas cinco. E Camões, que pelas exigências do verso não podia ser tão completo, dá-nos pelo menos os nomes das duas mais conhecidas, notando o seu vulcão activo: Vê Tidore e Ternate, co'o fervente Cume, que lança as flammas ondeadas: As arvores verás do cravo ardente, Co'o sangue portuguez inda compradas. Estas cinco ilhas ficavam no rumo norte sul, ao longo e muito próximas da costa occidental da grande ilha de «Geloulo», Gilolo ou Djilolo, á qual Barros chama Batechina de Moro, e é mais geral- mente designada hoje nas cartas pelo nome de Halmahéra. Mas Barros adverte, que, apezar da proximidade, não havia cravo em Gilolo ; o que é confirmado por Pigafetta, .que nos diz existirem ali apenas poucas arvores e de má qualidade. Vê-se, pois, que o nosso Orta andava er- rado, indicando «Geloulo» como uma das cinco ilhas do cravo (Cf. Barros, Asia, iii, v, 5; Duarte Barbosa, Livro, 3ji ; Liis. x, i32). A historia dos portuguezes nas Molucas é bem conhecida; e, á parte excepções honrosissimas, como foi o governo de Antonio Galvão e de alguns outros, não é das mais agradáveis a recordar. Em poucas par- tes as dissensões e desmandos de toda a natureza dos nossos conquis- tadores foram tanto para lamentar, como n'aquellas pequenas ilhas, perdidas no fundo dos mares orientaes. O cravo era uma das mais ' O nome collectivo de Maluco não parece ser malayo, mas era sem duvida usado á che- gada dos portuguezes áquelles mares. Como nas ilhas havia vários reis independentes, pelo menos em Ternate e Tidore, tem-se lembrado que os navegadores árabes lhos chamassem /7Aas dos reis, dja^iral al-muliik, e que os portuguezes adoptassem pelo som a ultima parte do nome, dizendo Maluco, depois convertido em Molucas (Cf. Yule e Burnell, Glossary, pala- vra Moluccas). 24 370 Colóquio vigésimo quinto procuradas e caras especiarias do tempo, e era natural que os portu- guezes tratassem de descobrir as terras onde nascia, a fim de o obte- rem em primeira mão. Em seguida á conquista de Malaca, Afíbnso de Albuquerque, despachando enviados ás diversas partes d'aquelle ex- tremo Oriente, que acabava de abrir ao nosso commercio e ao nosso domínio, mandou também Antonio de Abreu com uma pequena ar- mada ao descobrimento de Banda e de Maluco. Antonio de Abreu não chegou lá; mas o capitão de um dos seus navios, Francisco Serrão, foi ás ilhas do cravo, por onde ficou até á sua morte, succedida annos depois. Mais tarde foi ali mandado D. Tristão de Menezes; e no anno de i522, a 24 do mez de junho, Antonio de Brito lançou a primeira pedra da fortaleza de S. João na ilha de Ternate. Inaugurava-se assim a epocha da conquista, que nos custou muito trabalho e muitas vidas, porque o cravo foi sempre comprado com sangue portiigue:^ — como dizia o Camões. Antes, porém, de Antonio de Brito edificar a fortaleza de Ternate, havia-se dado um successo importantíssimo, cuja historia nos levaria muito longe, mas que não podemos deixar de recordar brevemente, para esclarecer as referencias que a elle faz o nosso escriptor. Parece que Francisco Serrão escrevera de Maluco ao seu amigo e antigo companheiro de armas, Fernando de Magalhães, encarecendo- Ihe a riqueza e grandeza d'aquellas terras; e a conquista das ilhas do cravo foi um dos motivos principaes e confessados da famosa viagem de circumnavegação. Magalhães — como diz Orta — «descobrio por hum estreito não sabido como pudessem vir ao Maluco»; atravessou o tal estreito, a que deixou o seu nome; cruzou todo o Pacifico; e veio morrer em uma ilhota do archipelago depois chamado das Philippinas. Não chegou, portanto, ás ilhas do cravo; mas chegou lá a sua gente, que no dia 8 de novembro do anno de i52i, tres horas antes do sol nascer — como diz o minucioso Antonio Pigafetta — entrava no porto de Tidore. Não vem para aqui a descripção d'esta viagem, celebre entre as mais celebres e perfeitamente conhecida, e muito menos a apreciação do acto de Magalhães; mas devemos notar que aquelle acto deixou no animo de todos os portuguezes um sentimento de irritação profunda, ao qual não é estranho o nosso Garcia da Orta. «Entrou o demónio em hum portuguez, e porque elrei não lhe fez huma mercê injusta que lhe pedia se foy lançar em Castella ...» taes são as palavras em que elle se refere ao seu culpado, mas em todo o caso illustre e infeliz com- patriota. E não é simplesmente contra Fernando de Magalhães que mos- tra resentimento, é contra todos os portuguezes que o auxiliaram na sua empreza, recordando com um certo prazer, que o «bacharel Faleiro» endoudeceu. Este Faleiro era um personagem extraordinário, a quem os portuguezes se mostraram sempre pouco favoráveis, talvez pelo sim- Do Cravo 371 pies facto de ter servido Castella. Barros chama-lhe «Astrólogo judiciá- rio» ; e Herrera allude a este juizo que d'elle faziam os seus compatrio- tas, dizendo-nos : que mostraba ser gran Astrónomo y Cosmógrafo, dei qual afinnaban los Portugueses que tenia un demónio familiar, y que de Astrologia no sabia nada. Fosse astrónomo ou astrólogo, era um homem violento e desconfiado, mas não está provado que fosse hum louco. A causa de elle á ultima hora não embarcar, foi a sua rivalidade e desavença com Magalhães, dando-se como motivo official o seu es- tado de saúde : mando el Rey, que pues Ruy Falero no se hallaba con entera salud se quedasse hasta otro viage. É certo, porém, que se fallou então na sua loucura, e o agente de Portugal em Sevilha, Sebastião Alvares, escrevia na sua correspondência official, que o cosmographo portuguez Ruy Faleiro havia perdido a rasão. Como se vê, a noticia de Orta é fundada em factos, que então corriam como verdadeiros e foram admittidos também por João de Barros. Da viagem de Magalhães se levantaram as longas negociações geo- graphico-diplomaticas entre Portugal e Hespanha, a que Orta se refere : «estas são as ylhas da contenda entre elrey de Portugal e o de Castella». O apparecimento dos navios hespanhoes nos mares do Oriente veiu suscitar difficuldades praticas á famosa divisão do mundo entre Por- tugal e Hespanha, determinada pela bulia do papa Alexandre VI de 4 de maio de 1493, e confirmada no tratado de Tordesillas de 7 de junho de 1494. N'este tratado estabelecia-se como linha divisória um meridiano : o linea derecha de polo a polo, convien a saber dei polo ar- tico al polo antartico. Este meridiano, nas nossas partes occidentaes, de- via marcar-se a trecientas y setenta legoas de lasyslas dei Cabo Verde hacia la parte dei Poniente, por grados o por otra manera como mejor y mas presto se pueda dar. Tudo quanto se navegasse e descobrisse a leste d'esta linha pertencia a Portugal; o que ficava para oeste era do dominio da Hespanha. Quando os nossos portuguezes alongaram tanto as suas viagens para o Oriente, que chegaram ás Molucas, alguns tiveram a desconfiança de que estavam já na metade do mundo per- tencente á Hespanha; e parece que Francisco Serrão escreveu n'esse sentido a Fernando de Magalhães. Este, pelo menos, propunha-se a demonstral-o, mesmo antes da sua partida. Tal não era, porém, a opi- nião em Portugal; e logo depois da volta da nau Victoria — a que che- gou a Tidore, como antes dissemos — D. João III fez valer os seus di- reitos junto de Carlos V; accordando-se então em que cada um dos soberanos nomearia tres letrados, tres astrólogos e tres pilotos, os quaes teriam uma conferencia na raia, para decidirem «cujo é o dito Maluco, e em cuja demarcação cáe». Os commissarios dos dois paizes, reunidos respectivamente em Elvas e Badajoz, e que se encontraram a primeira vez no Caia, tinham uma questão espinhosa a resolver. Em primeiro logar, a linha de partida 372 Colóquio vigésimo quinto estava mal definida, e não havia accordo, nem sobre a situação exacta das ilhas de Cabo Verde, nem sobre qual d'ellas se devia tomar como origem de contagem, querendo uns que fosse a do Sal, e outros que fosse a de Santo Antão, nem sobre o modo de contar as trezentas e se- tenta léguas marcadas pelo tratado de Tordesillas, nem mesmo sobre quantas léguas havia no grau. Os commissarios, como diz Antonio de Herrera na sua interessante noticia da conferencia, começaram logo a mirar globos, cartas, x relaciones; mas as cartas eram imperfeitíssimas, e, comparando umas com outras, chegavam a encontrar differenças de setenta léguas. Tratava-se sobretudo de uma determinação de longitu- des, o que era um ponto espinhoso para a cosmographia de então. As latitudes observavam-se com uma exactidão relativamente satisfactoria ; mas sobre as longitudes, ou altura de leste oeste, ou graus de longura, como então lhes chamavam, havia as maiores duvidas, e este foi um dos problemas que mais preoccupou os navegadores d'aquelles tempos. O Duque de Bragança, que parece haver sido perito nas questões de cosmographia, dirigiu uma espécie de memoria a D. João III sobre estas negociações, que então interessavam todos em Portugal. N'essa memoria, o Duque pondera: que a demarcação se não podia fazer pe- las cartas, porque estas tem falcidade de mil maneiras; que a estima é igualmente fallivel, e como nisto da longura nom se possa dar nenhuma regra certa por estimativa; e opina, que se deve insistir nas cousas de demonstração, que nom tem contradicção. Estas cousas de demonstração eram por arte do Ceo, e dos Eclipsis e conjuncção, que nom se podem negar. Aqui temos pois os eclypses, de que nos falia Garcia da Orta. E certo no emtanto que esses mesmos se podiam negar, ou pela imper- feição das observações, ou pelos erros dos almanachs então publica- dos. Na própria viagem de Magalhães, Andrés de S. Martin fez varias observações astronómicas, como foi a da conjuncção da Lua e de Jú- piter, observada no Rio de Janeiro, e a de um cclypse do Sol, obser- vado depois em 17 de abril de i52o; e todas o levaram a resultados inadmissíveis : . . . de lo qual injirieron aver error en la equacion de los movimientos en las tablas, porque es impossible ser tanta la longitud. O nosso João de Barros dá a traducção das próprias palavras de An- drés de S. Martin, tiradas de uns apontamentos que lhe vieram á mão, e que mostram a perplexidade do piloto e cosmographo hespanhol: . . . infiro haver erro nas taboas, que certo não sei a que o attribua. Não se atrevia a julgar que fossem erros de imprensa nos Almanaches de Joannes de Monte Régio, e muito menos erros de calculo do pró- prio Monte Régio. De todas estas duvidas nos resultados das observa- ções, da imperfeição das cartas, cheias de falcidades, da incerteza dos cálculos de estimativa, e também do pouco desejo que havia de ceder, tanto de um como de outro lado, resultou que a conferencia se dissol- veu sem chegar a um accordo. Do Cravo Ao mesmo tempo que a conferencia se dissolvia na Europa, as cou- sas complicavam-se em Maluco. A nau Trinidad, que se separara da nau Victoria, e tentara voltar pelo estreito, arribou de novo áquellas ilhas do cravo, e os portuguezes aprisionaram os restos da guarnição, destroçada e dizimada pela fome e pela doença, levando para Cochim os sobreviventes, e repatriando-os ao cabo de perto de dois annos. K este acto, assim como outros idênticos, succedidos nos annos seguin- tes, que o nosso Orta louva como uma grande generosidade: «tanta he a clemência de el-rey nosso senhor com os christãos vencidos». No anno de i525 saiu uma armada hespanhola da Coruna, ostensivamente enviada ás ilhas de la especeria, e commandada pelo commendador fr. Garcia de Loaysa. Parte da armada perdeu-se pelo caminho, e o seu commandante morreu ; mas chegou ás Molucas a nau Santa Maria de la Victoria, sob as ordens de Martin Iniguez de Carquizano, e succede- ram-se nos annos de iSi6 a 1529 todas as contendas e hostilidades en- tre portuguezes e hespanhoes, contadas largamente, de um lado por Antonio de Herrera, do outro por João de Barros e mais chronistas portuguezes. Na impossibilidade de determinar um meridiano, e na impossibili- dade por outro lado de continuar as hostilidades em Maluco, estando os dois paizes em paz na Europa, foi necessário chegar a um compro- misso. No dia 22 de abril do anno de 1529 celebrou-se em Saragoça um contrato, que se encontra transcripto na Asia de Diogo do Couto. N'esse contrato o Imperador Carlos V vendia a D. João III todos os seus direitos a Maluco, pela quantia de 35o:ooo cruzados de ouro e prata, que valessem SjS maravedis cada um. A questão do meridiano e da longitude das Molucas ficava de pé, e para se resolver posteriormente; nunca se resolveu, ou pelo menos quando se resolveu, já as Molucas não pertenciam nem a Portugal, nem a Hespanha. Taes eram, o mais succintamente contadas que me foi possível, as contendas entre os soberanos da península a que Orta se refere. (Cf. Arana, Vida e viagens de Fernão de Magalhães, p. 54, etc, versão portugueza, Lisboa, i88i; Pigafetta, em Ram. i, 365; Herrera, Hist.gen. de las índias occidentales, i, SSy, 11, i54 a i63, i85, 234, 253, etc; Barros, Asia, III, v, 5, 6, 7, 8, 9, 10, etc; Notas de J. d'Andrade Corvo ao Roteiro de Lisboa a Goa, de D. João de Castro, 86 a 106, i5i, etc, Lisboa, 1882; Couto, Asia, IV, II, I.) Nota (3) Este rei chamava-se Tabarija, e foi deposto arbitraria e violenta- mente por Tristão de Athayde, que levantou em seu logar um rapasito, chamado Aeiro, mandando Tabarija preso para Goa, com a mãe e as principaes pessoas da côrte. Nuno da Cunha achou-o innocente, dei- Colóquio vigésimo quinto xando-o todavia ficar em Goa, mas em liberdade, e com um certo tra- tamento de príncipe. Tabarija fez-se christão, e deram-lhe o nome de D. Manuel. Era mais um, n'aquella collecçáo de reis christaos que ti- vemos em Goa — o de Tanor, o das Maldivas, este de Ternate e não sei se ainda outros. Annos depois, quando Jordão de Freitas foi por capitão da fortaleza de Maluco, levou comsigo o rei D. Manuel. Mas o pobre selvagem não chegou a ver o vulcão fumegante da sua terra natal. Ficou em Malaca, onde adoeceu e morreu, tendo primeiro feito testamento em favor de D. João III. Como elle veiu para Goa pelo anno de i535, e saiu d'ali com Jordão de Freitas no de 1544 ou i545, morrendo em Malaca a 3o de junho d'este ultimo anno, Orta pôde perfeitamente conhecel-o em Goa (Cf. Gaspar Corrêa, Lendas, 111, 682 ; Barros, Asia, ni, v, 6, e iv, vi, 24; Couto, Asia, V, X, 10). Nota (4) O cravo, como dissemos já, é a flor ainda nova do Caryophyllus aromaticus, uma bellissima arvore, ou como dizia Rumphius com enthu- siasmo: pulcherrima, elegantissimay ac pretiosissima omniiim mihi no- iarum arboriim. Esta arvore pertence á familia das Myrtacece, e Orta reparou na sua similhança com o representante d'aquella familia que melhor conhecia, insistindo por duas vezes em que a flor «nace como murta», ou «em gomos como os murtinhos». Do Caryophyllus procediam tres especiarias distinctas, e de diverso valor : — o cravo propriamente dito, que é a flor colhida ainda em botão, no momento em que passa da côr branca esverdeada á côr vermelha; e esta era a especiaria mais cara e procurada, por ser a mais cheirosa e pungente. — o pedúnculo ou pequenino pé da flor, menos perfumado, de preço muito menor, e chamado bastão, fuste, stipites ou festucce caryophylli. — o fructo já formado, chamado madre do cravo, ou anthophylli, e também mais barato que o cravo propriamente dito. De todas tres falia o nosso escriptor correctamente, e com muito conhecimento de causa. O mais que nos diz sobre o tratamento da arvore, e sobre a colheita e conservação do botão, é bem conhecido e não carece de explicações (Cf. Barros, Asia, iii, v, 5; Couto, Asia, iv, VII, 9; Crawfurd, Dict., palavra Cloves; Rumphius, Herb. Amb., 11, i; Pharmac, 249). Como o cravo foi uma das especiarias mais importantes no nosso trato com o Oriente, pode ser interessante uma noticia breve ácerca das phases por que passou o seu commercio. 374 Do Crat'0 Não sabemos, nem em que período, nem por que modo o cravo co- meçou a ser usado no Oriente, na qualidade de perfume, condimento ou medicamento. Parece, porém, que já o empregavam na China nos tempos da dynastia Han (266-220 A. C), dando-lhe então o nome de ki shéh siang, que mais tarde se mudou no de teng siang. E parece também, que se encontra mencionado em antiquíssimos escriptos sans- kriticos, attribuidos a Charaka, nos quaes se lhe dá o nome de lã- vanga, nome ainda conhecido e usado em parte da índia. Não ha, todavia, motivo para suppor, que n'estes antigos tempos aquella especiaria fosse conhecida nas nossas terras do occidente, an- tes vimos que o garyophyllon de Plínio difficílmente se poderia iden- tificar com o cravo, e que só muito mais tarde, depois do v século» este começa a ser mencionado claramente. No decurso da idade media foi trazido de um modo mais ou menos regular e constante á Europa, mas ao que parece em pequenas quantidades; acha-se citado nas tarifas de varias cidades commerciaes do Mediterrâneo, como é a de Marselha do anno de 1228, e a de Barcelona do de 1252; e no livro de Pegolotti, que se pôde referir ao de 1340, falla-se das especiarias vendidas em Constantinopla, entre as quaes figura o cravo e também o bastão — fusti di gherofani. Todo este cravo devia vir das Molucas, única região onde se culti- vou a arvore e se colheu a flor até períodos relativamente muito re- centes. D'aquellas ilhas o trariam em barcos malayos, ou em juncos da China e navios de Java, a alguns portos próximos; e d'esses portos próximos a outros mais distantes, perdendo-se naturalmente no cami- nho a noção exacta da sua primitiva procedência. Pelo menos essa pro- cedência ficou geralmente e por muito tempo ignorada. Cosmas In- dicopleustes diz: que o encontrou nos mercados de Ceylão, mas o informaram de que vinha de mais longe. Séculos depois, Ibn Khur- dáubah dá-o como procedendo de Java. Quatro séculos mais tarde, Marco Polo repete a mesma notícia; e já no xv século, Nicolo di Conti affirma que o traziam de Banda. Isto significa simplesmente, que o tra- ziam das Molucas a Banda, de Banda a Java, e de Java a Ceylão; e que os viajantes nas suas averiguações se iam approximando pouco a pouco do ponto de partida, sem comtudo chegarem a alcançar noticia das Molucas. Nos portos de Ceylão, e nos da índia, como Coulão, Calicut e ou- tros, os árabes carregavam o cravo, juntamente com outras mercado- rias, trazendo-o pelas viagens ordinárias, já varias vezes mencionadas n'estas notas, até ao fundo do Golfo Persico por um lado, ou até ao fundo do mar Vermelho por outro. D'ali seguia por terra a Constanti- nopla, a Acra, a Tripoli ou a Alexandria; e, d'esies portos, os nave- gadores do Mediterrâneo, principalmente genovezes e venezianos, iam conduzil-o ás suas cidades italianas, ou ás do littoral da França e da 376 Colóquio pigesmw quinto Hespanha. Esta especiaria, a mais oriental como procedência, fazia as- sim uma viagem que era quasi a semi-circumferencia do globo, em- barcada e desembarcada dezenas de vezes, vendida e revendida, pas- sando dos juncos chins aos navios dos árabes, d'estes ás caravanas que atravessavam lentamente as intermináveis planícies da Mesopotâmia e os infindos areiaes da Syria, d'estas ás embarcações mediterrâni- cas que navegavam por conta dos ricos mercadores de Veneza, ou da grande casa commercial dos Bardi de Florença, ou do poderoso ne- gociante francez Jaques Coeur, ou de vários outros de menor nomeada- Em vista d'estas demoradas e perigosas viagens, comprehende-se fa- cilmente por que altos preços seria vendido na Europa, sobretudo le- vando em conta a procura das especiarias, aquelle valor dado a estas substancias aromáticas e ardentes, o qual em parte resultava da sua ori- gem exótica e um tanto mysteriosa. Etfectivamente o preço do cravo era altíssimo. No livro de despezas caseiras da Condessa de Leicester, do anno de 1265, vem notada a libra de cravo como custando de dez a doze shellings. E nas contas da execução do testamento de Joanna de Evreux, rainha de França, no anno de 1372, vem avaliada a libra (de 16 onças) de giro/le em uma libra do tempo. Esta libra tinha, pelos preços do marco de prata, um valor intrínseco de um pouco mais de 9 francos da moderna moeda franceza. Mas ó valor effectivo da moeda, isto é, a relação dos metaes preciosos com as mercadorias e com as necessida- des da vida, foi na ultima parte da idade media seis vezes maior do que actualmente. A libra corresponderia, portanto, a 56 francos actuaes conta redonda, ou sejam loííoSo réis', que tanto custavam 16 onças de cravo. Para bem fixar desde já a significação d'este preço, notemos que nas Molucas — como melhor veremos adiante — um bahar de cravo, isto é, 18 arrobas e 19 arráteis, devia custar o máximo por aquelles sé- culos 2vv" i6o réis, ou o equivalente a 12ÍÍ5960 réis de hoje. O mesmo peso, posto em Londres ou Paris, computado o arrátel em loíífiooo réis, custa- va 5:y5o^ooo réis^. Como se vê, a oscillação era enorme, e só se pôde explicar pelas difficuldades, demoras e perigos na viagem a que antes nos referimos, e pelos grandes ganhos de numerosos intermediários. Segundo se deduz de alguns documentos citados nas paginas seguin- tes, não ha motivo para suppor, que o preço do cravo baixasse consi- ' Veja-se Leber, Essai stir 1'apréciaUon de la fortune privée au moyeti age, 22 e 95. O preço do 10 a 12 shellings em Inglaterra vem citado por Fliickigere Hanbury (Pharmac, e é extrahido de Manners and household expenses in Englaitd. Supponiio que se querem referir ao shelling actual, e mesmo assim, tomando o preço mais baixo, 10 shellings, ainda é superior ao de França no século seguinte, sendo de 2^200 réis, equivalente a i34í>20o de hoje. Se se referissem ao shelling do tempo, seria muito mais elevado. ' Em números redondos, tomando o preço da livre em 10^000 réis, e náo fazendo a re- dacção da livre ao arrátel portuguez. Do Cravo 377 deravelmente durante o xv século, e até ao começo do xvi. Podemos, pois, admiitir, que, no momento em que Vasco da Gama dobrou o cabo da Boa Esperança e navegou para Calicut, um certo peso de cravo, o bahar, valia nas Molucas 12 mil e tantos réis, digamos iSíT^ooo réis; e que esse mesmo peso em casa de um mercieiro ou droguista de Londres ou de Paris, valia proximamente 6:000^^000 de réis. Este simples facto mostra bem qual era a importância commercial do novo caminho des- coberto pelos portuguezes. Quando Vasco da Gama chegou a Calicut, forneceram-lhe especia- rias para o carregamento das suas naus, e entre ellas cravo. Era pés- simo; muito cheio de bastão, como diz Gaspar Corrêa: «o cravo todo era páo». O capitão mór dissimulou, e acceitou-o, com o que os mouros e os gentios ficaram persuadidos de que os nossos pouco entendiam do negocio, e eram gentes «bestiaes». No emtanto, os portuguezes du- rante a sua curta demora no grande porto do Malabar, reuniram algu- mas informações commerciaes interessantes. Souberam, por exemplo, que todo o cravo vinha de «Melequa» (Malaca); isto era um erro, si- milhante ao que dois séculos antes commettêra Marco Polo, somente em logar de Java apparece-nos agora Malaca, que posteriormente a Marco Polo se havia tornado um dos portos mais importantes d'aquelles mares, e por onde vinha effectivamente o cravo das Molucas. Souberam também, que o bachar (bahar) de cravo valia em Malaca 9 cruzados; e, como informação comparativa, o auctor do Roteiro accrescenta, que valia em Alexandria o quintal de cravo 20 cruzados. Em Malaca esta- vam em uso dous bares, mas aquelle que servia no peso do cravo, cha- mado bar de Dachem grande, tinha 14 arrobas e 10 arráteis; e este peso, como acabamos de ver, valia 9 cruzados, ou sejam 19ÍÍ440 réis em valor intrínseco da nossa moeda, que em valor ou poder effectivo seria seis vezes superior'. Deduzindo do valor do bahar o do quintBl, para obtermos números comparáveis, chegamos proximamente aos se- guintes resultados: — um quintal de cravo valia em Malaca S^6oo réis, ou em poder ef- fectivo da moeda o equivalente a 33./í)6oo réis. — o mesmo peso valia em Alexandria 43;;^200 réis, ou o equivalente a 7.5^^200 réis. — como termo de comparação recordaremos, que devia valer em Paris o equivalente a 1:280^000 réis, admittindo que o preço não havia baixado sensivelmente no xv século. ' Tomando o valor do cruzado de D. Affonso Va D. Manuel em 2^) i6o réis (Aragão, Dcscr. das moedas, 11, 237). O valor ejfeclivo da moeda, comparado com o actual, conservava no começo do xvi século as relações de 6 para i, que tivera durante parte da idade media (Le- ber. 1. c). 378 Colóquio vigésimo quinto Damos estas informações do Roteiro, sem insistir sobre a sua exacti- dão. E parece-nos provável, que o preço de Alexandria fosse um pouco inferior á verdade. Pelo contrario, o preço de Malaca deve ser proxi- mamente exacto, e é confirmado até certo ponto pelas informações de Duarte Barbosa, citadas adiante. O Roteiro não falia do preço do cravo nas Molucas, porque nem da existência d'aquellas ilhas os portuguezes tiveram noticia na sua primeira viagem. E esse preço, que nós vamos agora procurar. As informações de Duarte Barbosa são n'este caso preciosas, porque são, como sempre, lúcidas e completas, e alem d'isso se referem a um periodo especialmente interessante, o que vae do anno de 1 5 10 ao de i5i6 proximamente, em que o seu Livro foi escripto. N'esse momento, os portuguezes estavam já de posse do commercio de parte da índia, mas não intervinham ainda muito directamente no das Molucas, onde, por consequência, se deviam conservar antigos preços e antigos hábi- tos. Duarte Barbosa diz-nos, que o bahar de cravo valia nas Molucas de um a dois ducados, conforme o numero de compradores que ali af- fluiam; valia em Malaca de dez a quatorze ducados, segundo o numero de encommendas; e valia em Calicut de quinhentos a seiscentos f anões, e sendo bem limpo até setecentos. O ducado de Duarte Barbosa, se acaso elle escreveu esta palavra, pôde considerar-se equivalente ao crujado^. O preço nas Molucas era, portanto, em valor intrínseco da nossa moeda, de 2^160 a 4^320 réis; e, em valor ou poder effectivo, de 12^^960 a 25í!t>g20. Em Malaca era de 21ÍÍÍ600 a 30^/^240 réis, ou, em valor effectivo, de i29;j!í)6ooa i8iíZ>44oréis2. Duarte Barbosa dá-nos os preços de Calicut em fanóes, e diz-nos que o fanáo valia um real de prata. Tomando o valor intrínseco do real em 80 réis, que teve no reinado anterior de D. João II, teremos o preço do bahar em Calicut de 40^000 réis, 48^^000, ou 56^000 réis, ou, em valor effectivo, de 240^000, 288^5^000 e 336^ooo réis. Adoptámos o valor do fanão dado pelo próprio Duarte Barbosa ; ' Digo se acaso escreveu esta palavra, porque a parte do Livro onde se encontra a infor- mação falta no manuscripto portuguez, publicado pela Academia, e só se conhece pela ver- são de Ramusio, sendo bem possível que o traductor adoptasse a palavra ducado, mais fami- liar aos ouvidos italianos. O ducado de ouro de Veneza, ou Zecchin, valia, no valor actual do oiro, 1 1 francos e 82 centésimos (Cibrario, Pol. econ. dei med. evo, iii. 228), bem próximo do valor do cru\ado, 2^)160 réis (Aragão, Descr. das Moedas, n, 237). Alem d'isso, parece que os próprios ducados corriam na índia, sob o non^e de vene-{ianos, pelo valor dos cruzados. Diz Antonio Nunes : •£ venezianos, soltanis e abrahemos valem 7 tamgas, que são 420 réis. E cruzados d ouro de purtugal da ley nova valem 420 reis, que são 7 tamgas» (Lyvro dos Pesos 32). ' Note-se que um dos preços de Duarte Barbosa de 10 ducados, ou cruzados, concorda com o do Roteiro, de 9 cruzados, havendo apenas um pequeno augmento, alias natural. Do Cravo mas devemos advertir que é muito baixo. No negocio da pimenta consi- deravam-se 19 fanões equivalentes a um cruzado, o que desde logo o eleva a mais de 1 10 réis; e ainda teve valores mais altos'. Estes números relativos a Calicut devem, pois, considerar-se abaixo dos verdadeiros. Note-se também, que o babar das Molucas era muito superior ao de Ma- laca e de Calicut, o que contribuia para que os lucros na conducção do cravo fossem superiores aos que deduziríamos da simples inspecção dos números não rectificados. Mas não pára aqui. Os reis e chefes das Mo- lucas eram quasi selvagens, com todas as phantasias e appetites de creanças e de selvagens; e os tratantes — tomo a palavra no bom sen- tido— de Java e de Malaca especulavam com essas phantasias. Não compravam o cravo a dinheiro; recebiam-n'o a troco de outras merca- dorias. Levavam cobre, azougue, pannos de Cambaya, porcelanas, si- nos de metal de Java «tamanhos como grandes alguidares, dependu- ram-nos pelas bordas ... e aly dão com qualquer cousa para os fazerem soar. ..» — os famosos gongs de Java. Os chefes das Molucas davam tudo por estas curiosidades : . . . « por um bacio de porcelana que seja grande daom vinte e trinta quintaes d'ele» (cravo), por «um sino daom vinte baares de cravo». E Duarte Barbosa termina, dizendo: «asy que de Malaca pêra aquy ha muyto groso ganho». Tal era a situação, quando no primeiro quartel do século os portu- guezes começaram a negociar regularmente com as Molucas — n'aquel- las ilhas preços quasi nominaes, na índia já bastante elevados, e na Eu- ropa um valor ainda exorbitante da especiaria. Nos primeiros tempos, os nossos portuguezes seguiram as praticas estabelecidas. Segundo diz Gaspar Corrêa, D. Tristão de Menezes dava «hum panno azul de cambaya, que valia hum cruzado, por hum bar de cravo, que erão quatro quintaes, que saya a cem reis o quintal de cravo» 2. Depois, como fosse necessário assegurar o fornecimento da especiaria, assentaram uma espécie de contrato com os reis das Mo- lucas, marcando um preço fixo ao cravo. Este preço era pago em pan- nos e tecidos, as roupas dei Rey noso senhor, que vinham da índia, de Cambaya ou de Coromandel, e eram avaliadas antes de serem entre- gues. Por cada bahar de cravo davam «roupas» no valor de 3 pardáos, ou no equivalente de 3 :00o caixas. Estes tres pardáos representavam ' Todo o systema monetário da índia, já portuguez, já islamita ou indiano, é muito com- plicado, e comquanto estudado em trabalhos valiosos, como é a Descrrpção das moedas, de Aragão tomo m, o Lyvro dos Pesos de Antonio Nunes e tabeliãs de Goes, ou as Contrib. to the study of Indo-portuguese numismaties de Gerson da Cunha, está longe de ser perfeita- tamente claro. * Perdão, saía a menos, porque o bahar tinha quatro quintaes e meio e mais alguma cousa. 38o Colóquio vigésimo quinto approximadamente ^,^626 réisi, que deveremos multiplicar por seis ou por quatro para obtermos o poder effectivo da moeda, o qual por estes annos de que vamos fallando já devia ir em decrescimento. Compa- rem-se estes preços com os de Calicut, note-se que o bahar das Mo- lucas tinha um quintal mais que o d'aquelle porto, advirta-se que na avaluação das roupas dei Rey noso senhor deviam ir envolvidas diffe- renças vantajosas, e ficará bem claro que o negocio do cravo dava lu- cros enormes — miiyto groso ganho, como dizia Duarte Barbosa. O negocio era monopólio do estado, ou do rei — como então se di- zia; mas a cobiça de tomar parte n'elle, clara ou clandestinamente, tornou-se intensíssima. E é certo, que d'essa cobiça nasceram quasi todas as dissenções, intrigas, violências e assassinatos, que ensanguen- taram e deshonraram o nosso dominio nas Molucas. A cobiça chegou a tal ponto, deu logar a tantas fraudes, que não foi possível manter o monopólio. Os moradores «por se não poderem suster sem tratarem» fizeram muitos requerimentos, a que os Governadores tiveram de ceder. No tempo de Nuno da Cunha estabeleceu-se um novo systema, um tanto complicado, mas que, conforme o explicam Simão Botelho no Tombo do Estado da índia, e Antonio Nunes no Lyvro dos Pesos, pa- rece ter consistido no seguinte. O governador ou capitão das Molucas, os seus officiaes e os moradores negociavam livremente no cravo, com- prando-o na terra pelo menor preço por que o podiam obter, e embar- cando-o depois. Somente, ao embarcar, quando estava «debaixo da verga», cediam ao estado um terço do cravo pelo preço antigamente estipulado de tres pardáos por bahar. Quando o cravo vinha nas naus do estado, pagavam alem d'isso de frete ou chuquel até Malaca 3o por cento dos dois terços que lhes pertenciam^. De modo, diz Antonio Nunes, que de «cada dez bares que se embarcão, de terços e chuqueis á dita rezam acima vem a Sua Alteza 5 73 bares, e fica á parte 4 -/s bares». De Ma- laca para a índia pagava-se novo frete, que era variável, mas orçava por tres cruzados por bahar de Malaca. Por este modo, entregue a ' Nada mais dilUcil do que fixar o valor do pardáo, que variava consideravelmente. To- mámos o valor intrínseco do cruzado em 2^)160 reis, e notando que esse cruzado equivalia a 7 tangas, e o pardáo de 3oo réis (o que se usava cm Maluco) equivalia a 5 tangas, deduzimos este valor do pardáo de proximamente i J}>542 réis. Sir H. Yule, guiando se por outras compa- rações, chega a estabelecer que o real do principio do século xvi era um pouco mais de cinco vezes superior ao actual ; o pardáo de 3oo réis teria pois um valor superior aiíí>5oo réis, o que exactamente concorda com o nosso resultado (Cf. Antonio Nunes, Lyvro dos pesos; Yule e Burnell, Glossary no Suppl. palavra Pardáo). A caixa era uma moeda iníima, de cobre, furada pelo meio para se enfiar em cordéis, e que os nossos escriptores dizem vir de Java, mas era provavelmente de origem chineza. ' Simão Botelho náo diz exactamente isto, mas a relação de Antonio Nunes é mais clara e deve ser verdadeira. Do Cravo 38i compra aos particulares, obtinham-se carregações completas, o que antes era difficil, porque muito saía clandestinamente. O lucro do es- tado consistia nos chuqueis, e em obter o terço de todo o cravo por um preço infimo. Simão Botelho, que era um zeloso administrador da fazenda publica, approvava o systema: «em que o dito nuno da cunha ffez muito serviço a sua Alteza». Todos os annos ía uma nau ás Molu- cas levar munições, roupas de Cambaya e Bengala com que se paga- vam os terços do cravo, e outras cousas necessárias; na voha trazia o cravo. Para occorrer ao pagamento dos ordenados, soldo de duzentos homens pouco mais ou menos, custo dos terços do cravo a 3 pardáos por bahar e outras despezas miúdas, a nau devia levar em fazendas o valor de 8:000 pardáos, e mais algumas moedas de bilhão, ou ba^^aru- cos. Estes 8:000 pardáos representam-nos mais de 12:000^75000 réis em valor intrínseco, e, suppondo que o poder effectivo se conservava por aquelles tempos na rasão de 4 : i, appro.ximadgmente 48:000^5^000 réis da nossa moeda. Indo esta somma, Simão Botelho entendia que as cousas estavam bem reguladas. Vinham os terços por inteiro, e havia abundância de cravo; quando, porém, se mandava menor somma, ven- dia-se nas Molucas uma parte dos terços, e depois era necessário com- prar cravo na índia para completar a carga das naus do Reino, «em que sua Alteza recebe muyta perda». Em um dos mais interessantes capitules das suas Décadas, Diogo do Couto, tratando das cousas das Molucas, calcula o cravo saído d'aquellas ilhas, uns annos por outros, em 6:000 bahares, sujos de bastão, que de- viam dar uns 4:000 bahares limpos. Se admittissemos, que todo elle saía nas condições antes expostas, deveria ficar nas mãos do governo por- tuguez, em terços e chuqueis, um pouco mais da metade, digamos me- tade, ou sejam uns 9:000 quintaes, calculando o bahar das Molucas em quatro quintaes e meio, o que está abaixo da verdade. Suppondo, que todo esse cravo era comprado a 3 pardáos o bahar, o que também não é exacto, porque o dos chuqueis se não pagava, teríamos que o custo dos 9:000 quintaes andaria por 9:252ÍÇ'ooo réis proximamente, ou sejam 37:000^5000 de réis ao poder effectivo da moeda de 4 : i e em conta redonda. Tal seria, pouco mais ou menos, e antes menos do que mais, a somma empregada na compra do cravo. Vejamos agora o que esse cravo podia valer na Europa. Os preços no XIV século, antes citados, eram proximamente de lo^ooo réis por arrátel; e temos dito, que esse preço não devia ter baixado considera- velmente no século seguinte e primeira metade do xvi. Eis a rasão em que nos fundávamos. Em um edito de Francisco I, datado de 20 de abril do anno de 1542, vem fixados os preços correntes de diversas mercadorias, para por elles regular o pagamento de alguns impostos. Ali encontramos o preço do cravo, que — segundo as correcções indica- das por Leber — seria o seguinte: a libra de 16 onças de cravo custava 38-2 Colóquio pigesimo quinto 3 libras, no valor intrínseco de 1 1 francos, e no valor representativo de 44 francos, ou sejam '/^g20 réis. Isto daria para o quintal de cravo o valor approximado de i:oooíftooo de réis'. E chegaríamos assim a con- cluir, que os 9:000 quíntaes, comprados nas Molucas por 3o e tantos contos de réis, davam na Europa grooo.-oooífooo de réis. Esta conclusão é evidentemente falsa, e o negocio do cravo nunca representou no commercio de Portugal uma quantia igual ou mesmo próxima áquella. Necessitariamos introduzir no nosso calculo varias correcções para nos approximarmos um pouco da verdade. Em pri- meiro logar os 4:000 bahares — admittindo como certo o numero de Diogo do Couto — não passavam todos pela mão dos portuguezes; e apesar das rigorosas prohibições, os malaios e javanezes fizeram sem- pre algum commercio clandestino com as Molucas, e d'ali trouxeram em todos os tempos bastante cravo. Depois d'isso, o cravo, embarcado nos navios portuguezes, não vinha todo para a Europa; vendia-se parte em Calicut, consumia-se na índia e outras terras do Oriente, e necessaria- mente se realisavam n'esta parte menores lucros. Por ultimo, é claro que os preços, marcados no edito de Francisco I, eram preços de venda a retalho nas villas e cidades interiores da França, e muitissimo diversos dos que podia obter o governo de Portugal. Este vendia por grosso na Gasa da índia de Lisboa, ou nas feitorias de Flandres e outras^. De tudo isto resultavam consideráveis diminuições n'aquella elevadíssima somma de 9:000 contos a que chegámos a principio, e que eviden- temente está muito distante e muito acima da verdade. Mas emquanto importavam essas diminuições, é o que nos não atrevemos a calcular, nem mesmo grosseiramente, pois nos faltam os dados para o fazer. A única cousa, que nos parece licito afifirmar em vista dos factos apon- tados, é que, feitas largamente todas as deducçóes, cerceando os lucros no trato do cravo por todos os motivos antes expostos, levando em conta as despezas elevadas das lentas viagens do tempo, tendo em at- tenção as perdas de naus e de cargas nos sinistros frequentes, ainda assim as enormes differenças de preço davam margem para grossos ganhos. E se o cravo não teve nunca, na historia commercial da índia portugueza do xvi século, a importância capital que teve a pimenta, teve pelo menos um dos primeiros logares, e talvez logo o segundo depois d'aquella especiaria. ' Daria i:oi3J>76o réis; mas a livre franceza era maior do que o arrátel, e feita a reduc- ção teríamos para o valor do quintal portuguez uma quantia próxima a um conto, e mesmo inferior. ' Apezar dos meus esforços, não me foi possivel encontrar noticia das contas d'esta8 fei- torias, e comtudo estou convencido de que devem e.\istir em algum dos nossos Archivos. Do Craj>o 383 Antes de terminar esta curta noticia sobre o que foi o commercio do cravo nas mãos dos portuguezes, devemos chamar a altençao para um elemento de incerteza, que tira parte do valor a alguns dos cál- culos que fizemos. Tomámos a relação entre o valor intrinseco e o poder effectivo da moeda, que foi de 6 : i nos fins da idade media, e passou depois a 4 : i, 3 : i e 2 : i no correr do século xvi, e admittimos arbitrariamente, que essa relação se dava no Oriente como se dava na Europa. Isto, para mim, está longe de se achar provado. Aquella re- lação foi deduzida por Leber, por Cibrario e por outros escriptores, do estudo paciente de muitos factos económicos, peculiares á Europa. Esses factos, ou parte d'elles, variavam singularmente nas terras orien- taes. As condições da vida, a distribuição do trabalho, a abundância dos metaes preciosos, o valor relativo da prata e do oiro, toda a orga- nisação social e económica, ditleriam profundamente do que se dava no nosso Occidente. Applicar ao Oriente a regra económica, deduzida do estudo dos factos observados na Europa, foi claramente um processo de raciocínio, arbitrário e fallivel. Mas esse processo era-nos imposto pela nossa ignorância; não tínhamos noticia de trabalho algum, em que se estudassem estas questões na sua applicação ás regiões orientaes, e evidentemente não tínhamos nem meios nem competência para as es- tudar directamente. Unicamente, pois, podíamos fazer o que fizemos — admittir empiricamente uma relação, que nos servia para tornar alguns números mais facilmente comparáveis, e deixar consignada esta nossa duvida. (Cf. Pharmac, 25 1; Yule, Cathay, 3o5; Dymock, Alat. med., 828; Yule, Marco Polo, it, 254; Major, índia, 17; Lendas, 1, 102,11, 711; Roteiro, III e ii5; Duarte Barbosa, Livro, 872 e 383; Subsídios, no Lyvro dos pesos, 40, e no Tombo, 112; Couto, Asia, iv, vi, 9; etc.) A historia posterior do commercio do cravo interessa-nos menos directamente, e pode resumir-se em breves palavras. No começo do xvn século, Portugal, então unido á Hespanha, perdeu o dominio das Molucas, que passaram para a posse dos hollandezes. Estes substituí- ram ao antigo monopólio um monopólio diverso e mais apertado. Em- quanto os portuguezes haviam concentrado na sua mão o commercio do cravo, deixando a cultura e colheita á gente da terra, os hollandezes fizeram-se cultivadores. Desenvolveram as plantações, que já encontra- ram estabelecidas em Amboyna e ilhas próximas, e mandaram expedi- ções ás Molucas propriamente ditas, para ali destruírem as arvores do cravo. O resultado d'este systema não foi muito feliz; a exportação de Amboyna e outras ilhas decresceu nos séculos seguintes, e tanto, que na ultima metade do nosso o monopólio da cultura pelo estado foi abandonado. Por outro lado, alguns pés de Caryophylliis haviam sido introduzi- dos na ilha franceza da Reunião, e nas ilhas africanas de Pemba e Zan- 384 Colóquio vigésimo quinto do Cravo zibar, onde a cultura se desenvolveu bastante; mas onde não tem pros perado muito nos últimos annos. Hoje o cravo do commercio vem principalmente d'estas tres regiões : Amboyna, por via de Java; ilha da Reunião; costa africana de leste por via de Bombaym. Mas a sua importância tem diminuído muito, e já não é a famosa e procurada especiaria de outros tempos. (Cf. Rumphius, 1. c. ; Crawfurd, 1. c; Pharmac, 1. c; Wallace, The malay archipelago, 3o5.) índice* Privilegio para a impressão dos Colóquios 3 Dedicatória do auctor a Martini Affonso de Sousa 4 Soneto do auctor a Martim AfFonso de Sousa G Ode de Luiz de Camões ao conde de Redondo, Viso-rey da índia 7 Prologo do liçenciado Dimas Bosque 10 Carta do liçenciado Dimas Bosque, ao doutor Thomaz Rodrigues, lente da Universidade de Coimbra 12 Epigramma de Thomé Caiado a Garcia da Orta 14 Colóquio primeiro — Introducção kj Colóquio segundo — Do Aloés 23 Colóquio terceiro — Do Ambre 45 Colóquio quarto — Do Amomo 59 Colóquio quinto — Do Anacardo 65 Colóquio sexto — Do Arvore triste 69 Colóquio sétimo — Do Altith, Anjuden, Assa fétida e Anil yS Colóquio octavo — Do Bangue gS Colóquio nono — Do Benjuy io3 Colóquio DECIMO — Do Ber, e dos Brindóes, dos nomes e apellidos dos reys d'estas terras 117 Colóquio undécimo — Do Calamo aromático, e das Caceras 141 Colóquio duodécimo — ^De duas maneiras da Camfora, e das Ca- rambolas i5i Colóquio decimo terceiro — Do Cardamomo, e das Carandas. ... 173 Colóquio decimo quarto — Da Cássia fistola 194 Colóquio decimo quinto — Da Canella, e da Cássia lignea, e do Ci- namomo 201 Colóquio decimo sexto — Do Coquo commum, e do das Maldivas 235 Colóquio decimo sétimo — Do Costo, e da Colérica Passio 255 Colóquio decimo octavo — Da Crísocola, do Croco Indiaco, e das Curcas 277 Colóquio decimo nono — Das Cubebas 287 Colóquio vigésimo — Da Datura, e dos Doriões 295 Colóquio vigésimo primeiro — Do Ebur ou Marfim, e do Elephante 3o3 Colóquio vigésimo segundo — Do Faufel, e dos Figos da Índia... . 325 Colóquio vigésimo terceiro — Do Folio indo 343 Colóquio vigésimo quarto — Da Galanga 353 Colóquio vigésimo quinto — Do Cravo 359 * Os índices alphabeticos serão publicados com o segundo volume. I I I ^. ( ) LieRAKV