& nte E S=>— 176 | 3 a ; md E é ds Pés AS raro! HISTORIA ATURAL ILLUSTRADA COMPILAÇÃO FEITA SOBRE OS MAIS AUCTORISADOS TRABALHOS ZOOLOGICOS POR FULIO DE MATTOS PRIMEIRO VOLUME PORTO LIVRARIA UNIVERSAL DE MAGALHÃES & MONIZ — EDITORES 12— Largo dos Loyos — 14 dao e o —o e DO e ne Qua FPREFACIO Les sciences ne peuvent être ni bien cultivées ni bien senties, lorsqu'elles sont concentrées en- tre les mains d'un petit nombre... Ceux qui aiment et admirent les sciences, doi- vent soubaiter que leurs éléments soient à la por- tée de tous. W. HERSCHEL, Ao lado da publicação destinada a expôr as mais minuciosas obser- vações do sabio ou as mais subtis especulações do pensador, existe actualmente em todos os paizes o livro que, acceitando sómente o que está discutido e demonstrado, propaga a sciencia dando-lhe a forma mais accessivel ao geral dos espiritos. E o livro, assim comprehendido e exe- cutado, corresponde a uma justa e inilludivel necessidade moderna; desde que o fim de todas as lucubrações é, directa ou indirectamente, o aper- feiçoamento do homem, a sciencia não pode, como nas sociedades anti- gas, constituir já hoje o privilegio de uma classe ou o monopolio de um pequeno grupo. N'este ponto de vista nos collocamos, emprehendendo a publicação de uma Historia NATURAL. O nosso intuito não é fornecer ao mundo scientifico. descobertas originaes ou discussões sobre pontos controverti- dos; levamos sómente em vista collocar no mercado litterario portuguez uma racional compilação de quanto sobre o assumpto teem escripto sa- bios como Brehm, Buffon, Figuier, Milne Edwards e tantos outros. Que o publico interessado nos progressos constantes da historia natural possua um livro que lhe refira conscienciosamente o estado actual da sciencia mesta ordem de trabalhos; que elle encontre n'uma só obra de facil acquisição, reunidas e methodicamente condensadas todas as noções pra- ticas e especulativas sobre os animaes que, por utilidade immediata e 6 PREFACIO directa, mais lhe importa conhecer; que os amantes da litteratura, fi- nalmente, encontrem uma justa satisfação das suas tendencias na descri- pção exacta e correcta da natureza viva, tão variada sempre e tão fer- til de encantos, tal é o fim que nos propomos servir. O exito assombroso que as obras d'esta natureza teem conseguido na Allemanha, na Inglaterra e na França, provando incontestavelmente que ellas antistaem uma profunda. aspiração do publico, garante a legi- timidade do nosso emprehendimento. A sua opportunidade parece-nos egualmente provada. A renovação por que está passando actualmente o espirito publico portuguez, impor- tando o justo descredito do livro inutil, da novella sentimentalista, do drama de phantasia sem intuito social, emfim de todos os productos ar- tisticos vasados nos moldes do romantismo, que hontem se admiravam e hoje se combatem como elementos dissolventes, prejudiciaes, implica 0 dever de substituir essa litteratura morta, exanime, por uma litteratura viva, util, instructiva. Importa servir a corrente da mentalidade moder- na, fornecendo ao publico a leitura productiva, o livro que ensina, a obra que edifica e melhora o espirito. N'este sentido pois, a publicação que vamos encetar, representa ainda a satisfação duma necessidade urgente pelo meio mais apropriado: o ensino das coisas naturaes. É pela clara comprehensão do que nos cerca, pela apreciação scientifica da natureza que a nossa intelligencia se prepara para receber facilmente a disciplina salutar d'uma philosophia abstracta; -é pelo exame das coisas naturaes que chegamos a crear os maiores interesses especulativos; é pelo estudo emfim da historia natural que conhecemos o logar exacto que na creação nos compete, evitando por tal conhecimento as illusões psychologicas que fazem do homem um ser excepcional e incomprehensivel na origem, nas funcções superiores, na finalidade. Sob o ponto de vista pratico, a utilidade gi obra parece-nos incon- testavel, porque à historia natural estão reservados problemas do mais alto interesse para o commercio e para as industrias. Determinar o fim a que devemos apropriar as differentes especies d'animaes; precisar den- tro de que limites podemos tornal-os collaboradores das nossas empre- zas industriaes; indicar os recursos que d'elles podemos tirar, mesmo quando mortos, pela exploração fabril das suas lãs ou das suas pennas, etc., são outros tantos problemas, que interessam grandemente ao in- dustrial e ao commerciante. Os trabalhos que nos serviram de modelo à concepção d'esta obra de caracter essencialmente descriptivo, são sobretudo os dos vulgarisa- dores que nomeamos. Como elles, prescindimos de expôr e discutir al- gumas hypotheses actualmente controvertidas nos dominios da philoso- phia natural, As concepções theoricas e puramente abstractas trazidas à PREFACIO 7 lica por Darwin, seguidas e divulgadas por Wallace e s sem duvida, destinadas talvez, como pensam muitos, vamente o campo inteiro das sciencias naturaes, per- la hoje aos dominios da hypothese e da discussão. s aqui; outra, muito diferente do que é, teria de desta obra se quizessemos tental-o. Sómente, como “da escóla transformista resaltam principios e theses já acquisições indiscutiveis da sciencia, faremos d'elles a ra é devida como a doutrinas positivas e demonstradas. ad + 7 , +» CEANIRBDA OS Va) ao Kb 8 ra TRONA e e sa - ro dE Sad PP US, 4 do Ts O E be 4 Ei = x n É . OS MAMIFEROS CONSIDERAÇÕES GERAES «-» les plus utiles pour notre nourriture, pour nos travaux, pour les soins de notre industrie. L. FrauIeR. Antes de encetarmos o estudo particular de cada um dos animaes que compõem o vasto grupo dos mamiferos, crêmos indispensavel esta- belecer, seguindo o exemplo dos escriptores mais auctorisados, um certo numero de considerações geraes que permittam ao leitor distinguir fa- cilmente na longa serie zoologica os exemplares d'este grupo. Expôr os caracteres differenciaes e as qualidades communs de uma dada classe, qualquer que seja a classificação de que se trate, é o primeiro dever de quem vulgarisa, porque corresponde precisamente à. primeira neces- sidade de quem estuda: conhecer nos seus lineamentos geraes o assum- pto que particular e minuciosamente se estudará mais tarde. Para maior commodidade do estudo exporemos, à maneira de Brehm, separadamente ou por secções, os pontos de vista estaticos e dynami- cos que offerecem elementos de differenciação ou melhor caracterisam a grande classe. 10 HISTORIA NATURAL ESQUELETO Os mamiferos, como todos os vertebrados 4, possuem um esque- leto interno formado de partes duras: ossos e cartilagens. É da grandeza, do numero, do agrupamento d'estas partes que depende, quasi exclusi- vamente, a configuração exterior do animal; as proporções gigantescas do elephante ou do camello e o tamanho diminuto do morcego, o garbo do cavallo ou do leão e a deselegancia do urso, da hyena, a attitude ras- tejante da toupeira e a posição erecta do homem, tudo se subordina à forma e disposição relativa das partes duras. O esqueleto pode considerar-se nos mamiferos, dividido em cinco secções: a cabeça, a columna vertebral, a caixa thoracica, a bacia e os membros. A cabeça, que protege os orgãos superiores da intelligencia e é a séde anatomica dos sentidos especiaes, divide-se em duas porções: O craneo e a face. Os ossos que constituem pelo seu agrupamento estas regiões são os mesmos e offerecem as mesmas relações em todos os ma- miferos. Descrevel-os-hemos ao estudar a osteologia humana. A columna vertebral, que se estende desde a parte posterior da cabeça até aos membros abdominaes ou ao extremo da cauda, divide-se, quando completa, em cinco grandes regiões: a cervical, a dorsal, a lom- bar, a sagrada e a caudal. A extensão d'estas regiões é muito variavel. À região cervical, por exemplo, muito extensa na girafa, é excessiva- mente curta na toupeira; este facto depende, segundo Brehm, não do numero de vertebras que formam a região e que é de sete para todos os mamiferos, mas da maior ou menor distancia que as separa. À região dorsal, egualmente variavel, é formada por um numero de vertebras que oscilla entre dez e vinte e tres. As vertebras que formam a região lom- bar variam entre duas e nove, numeros que são tambem os limites de oscillação para as vertebras sagradas. Para as vertebras caudaes os nu- meros extremos são mais distanciados; ha mamiferos que teem apenas quatro d'estes ossos, outros, quarenta e seis. A caixa thoracica é formada pelas costellas, ossos extensos e curvos que se articulam com a columna vertebral. Mais ou menos evidentes ou rudimentares, estes ossos existem em todos os mamiferos. No homem 1 O grande grupo dos veRTEBRADOS, caracterisando-se essencialmente pela exis- tencia de ossos chamados vertebras, abrange cinco classes: mamiferos, aves, reptis, batrachios e peixes. MAMIFEROS EM GERAL 11 e nos typos especificos que mais se lhe assemelham, articulam-se elles anteriormente com um osso chamado esterno; se essa articulação é im- mediata e directa, chamam-se as costellas verdadeiras, se ella se faz por intermedio de massas cartilagineas teem então o nome de falsas. A bacia, região do esqueleto destinada a conter os orgãos de gera- ção, é uma facha ou cinto osseo que na especie humana occupa a parte inferior do tronco e onde os ossos dos membros abdominaes se articulam. O papel physiologico que ella representa e a disposição anatomica dos ossos que a formam, serão estudados quando fallarmos do homem. De todas as partes do esqueleto são os membros as que maiores va- riações oferecem. Geralmente são em numero de quatro, dois anteriores ou superiores e dois posteriores ou inferiores; no entanto mamiferos ha em que os posteriores não existem ou existem apenas rudimentares, como nos cetaceos. Nos membros anteriores, a raiz ou porção escapular e a mão ou parte terminal variam consideravelmente. Assim em alguns mamiferos a clavicula é muito desenvolvida, ao passo que falta comple- tamente em outros. Os dedos existem ora distinctos e separados, como na mão do homem, ora rudimentares como na pata do cão, ou ainda sol- dados como no casco do cavallo; o numero d'elles oscilla entre um e cinco. Com relação ao desenvolvimento, as variações dos outros ossos dos membros são egualmente notaveis. MUSCULOS Os musculos, constituindo o que vulgarmente se chama a carne dos animaes, são orgãos destinados principalmente a mover os ossos aos quaes se inserem ou prendem, quer directamente pelas suas fibras quer por intermedio de tendões ou de fachas resistentes chamadas aponevroses. O modo de inserção varia segundo a direcção ou extensão do movimento e a força a empregar. A estructura ou conformação do esqueleto e o ge- nero de vida do animal determinam o numero e o desenvolvimento dos musculos. Assim, musculos que n'uns animaes faltam ou existem atro- phiados são m'outros extremamente desenvolvidos: os musculos do peito, por exemplo, muito volumosos e fortes nos mamiferos trepadores e voa- dores, existem atrophiados e reduzidos nos animaes que não carecem de empregar senão uma força diminuta na flexão do braço; os musculos da coxa, extremamente vigorosos nos corredores, são rudimentares na balea,; os musculos da cauda, desenvolvidos no macaco que se serve deste or- gão como de um membro, não o são na maioria dos solipides; os muscu- los da face, consideravelmente volumosos nos carniceiros que executam 12 HISTORIA NATURAL fortes e rapidos movimentos de mastigação, são notavelmente menos de- senvolvidos n'outras classes como nos ornithorincos. Os musculos não teem como funcção unica mover as alavancas os- seas, posto que seja este o seu principal destino; muitos ha subtrahidos ao imperio da vontade e tendo por fim promover o movimento das par- tes molles do organismo; taes são os que produzem as contracções pe- riodicas do estomago, dos intestinos, das arterias, os movimentos da epi- derme, etc. Distinctos uns dos outros pela sua estructura anatomica tanto como pela sua finalidade physiologica, costumam dividir-se em duas ca- thegorias: voluntarios ou estriados e involuntarios ou lisos; sómente o coração parece não conter-se n'esta classificação, porque sendo involun- tario é todavia, apparentemente ao menos, * um musculo estriado. MOVIMENTOS Posto que muito menos activos e extensos do que em outros gene- ros, nas aves por exemplo, os movimentos dos mamiferos são todavia importantes e variados. Marcha. — Sendo a estação vertical privativa do homem, só elle mar- cha sobre duas extremidades. Ácerca das apparentes excepções a este principio, escreve Brehm: «Os kangurus que se servem apenas das duas patas posteriores, não marcham, saltam; e os gerbos que collocam uma das patas posteriores deante da outra, estão longe de sustentar-se de pé.» 2 Todos os demais quadrupedes terrestres marcham sobre quatro extremidades, lançando duas a cada movimento de progressão, geral- mente uma anterior e uma posterior do lado opposto; exceptuam-se o elephante, o hyppopotamo, o camello, a girafa e alguns antilopes, que na marcha se fixam sobre duas extremidades do mesmo lado. Salto. —O salto pode realisar-se de dois modos differentes: ou o ani- mal, deixando inertes os membros anteriores, se fixa sobre os posterio- res que colloca em flexão para distender bruscamente no momento da progressão, ou se sustenta sobre as quatro extremidades encurvadas, que estende simultancamente no acto de se deslocar. O primeiro destes pro- cessos é peculiar aos mamiferos que saltam habitualmente; o segundo pertence aos que saltam só quando attacam o inimigo ou vencem um 1 Dizemos apparentemente ao menos, porque a fibra cardiaca não tem uma dis- posição precisamente analoga 4 da fibra estriada no musculo voluntario. 2 Brehm, Merveilles de la Nature, pg. 1x. MAMIFEROS EM GERAL 13 obstaculo accidental. A força de projeção do salto é muito variavel nos mamiferos; assim o esquilo é capaz de vencer uma altura de vinte metros, ao passo que o bodequim dos Alpes não attinge mais do que tres metros ; estas differenças estão subordinadas ao vigor muscular e ao pezo do animal. Acção de trepar. — Varia consideravelmente nas diferentes especies de mamiferos. Uns trepam auxiliando-se simplesmente dos membros, como os macacos do velho continente; outros, como os macacos da Ame- rica, recorrem ainda à cauda que enrolam nos ramos das arvores e da qual se servem como de corda em tensão; outros, como os ursos e as martas servem-se das unhas que fixam no cortex dos troncos; finalmente alguns mamiferos, como o homem, só podem trepar abraçando o corpo vertical que devem percorrer com um grande dispendio de forças. Brehm cita ainda um outro processo de trepar, commum aos cynocephalos, con- sistindo em uma verdadeira marcha ascendente ao longo das rochas, das montanhas ou dos troncos obliquos; é muito difficil explicar este processo que se não distingue na apparencia da simples subida por um plano ligeiramente inclinado. Vôo. — Muito menos extenso e poderoso do que nas aves, o voar dos mamiferos devêra chamar-se antes volitar ou voejar. A forma mais rudi- mentar d'este movimento é-nos offerecida pelos marsupiaes voadores, que no momento de saltarem a grandes alturas se servem de uma mem- brana estendida entre os membros, como de pára-quedas; é certo porém que a simples agitação d'esta membrana não bastaria a eleval-os da terra ou mesmo a sustel-os no ar. Só o morcego tem a possibilidade, exce- pcional nos mamiferos, de percorrer o espaço pelos simples movimentos da membrana aliforme que se estende entre os membros e os dedos ex- tremamente alongados. O que Brehm escreve a este proposito, é digno de reproduzir-se: «Dir-se-hia, ao vel-os, que o seu vôo é dos mais faceis; voltam-se tão rapida e tão bruscamente que é necessario ser bom caça- dor para atirar-lhes no ar; ondulam, sobem e descem com rapidez. E no entanto, não é isto propriamente um vôo; elles não conseguem mais do que voltar-se pezadamente, não fazem mais do que arrastar-se pelo ar. O menor sopro de vento põe obstaculo ao vôo do morcego e a tempes- tade impede-o completamente, o que, de resto, se comprehende facil- mente. A membrana aliforme representa uma superficie atravez a qual o ar não passa como atravez a aza das aves. Para erguer-se o animal le- vanta um pouco a aza, mas o pezo sollicita-o e tende a fazel-o descer; baixando a aza, eleva-se, mas levantando-a, desce; por isso não faz mais que voejar.» ! ! Brehm, Obr. cit., pg. x. 14 HISTORIA NATURAL Natação. — (Com raras excepções, os mamiferos teem a proprie- dade de nadar ou de poderem ao menos sustentar-se por algum tem- po á superficie d'agua. Muitos mesmo, entre elles alguns marsupiaes e desdentados, vivem na agua; os que porém, merecem justamente o nome de aquaticos são os 'cetaceos. A respiração destes mamiferos, a que alguns naturalistas chamam peixes com mamas ou peixes sem quelras, faz-se no ar; para isso elles abandonam de espaço a espaço o seu meio habitual lançando parte do corpo na atmosphera donde retiram os ele- mentos gazosos indispensaveis às combustões organicas. A maior ou menor difficuldade da natação depende essencialmen- te da estructura anatomica dos membros na sua parte terminal. O casco é improprio para a natação, especialmente quando indiviso. À mão é menos imperfeita sem que possa todavia conceder-se-lhe os fóros de orgão adequado à natação. Os melhores nadadores são indiscutivelmente os animaes cujas patas teem entre os dedos uma membrana elastica que os liga sem os soldar. A pata torna-se n'estas condições um verdadeiro remo, porque a membrana uma vez distendida pela separação dos dedos, offerece uma larga superficie de resistencia às camadas liquidas. Nos ce- taceos os membros posteriores são substituidos por uma cauda deu membranosa e resistente fazendo as funcções de barbatana. Como justamente observa Brehm, e é facil de prevêr, estas diffe- renças na estructura anatomica importam differeriças correlativas no modo de executar 0 acto. Assim é que os animaes de patas, como o cão ou O cavallo, por exemplo, nadam como que fazendo marcha violenta com pre- dominio dos movimentos verticaes dos membros; os que possuem entre os dedos a membrana natatoria, agitam-se na agua à maneira dos patos approximando e separando alternativamente os membros no sentido hori- sontal; aquelles emfim que, como os cetaceos, se servem de barbatanas, executam a natação por movimentos de lateralidade desses orgãos, des- lisando com assombrosa rapidez nas massas d'agua. APPARELHO E FUNCÇÃO DIGESTIVA O apparelho digestivo, mau grado as differenças importantes que apresenta de ordem para ordem, pode todavia considerar-se fundamen- talmente o mesmo: um tubo membranoso aberto nas duas extremidades e destinado a receber na sua cavidade os alimentos a que a funeção di- gestiva por actos physicos e chimicos fará experimentar uma elaboração especial. A bocca, abertura anterior do tubo digestivo destinada a receber os MAMIFEROS EM GERAL 15 alimentos, é uma cavidade onde reside o orgão de gustação ou lingua. Pode ser ou deixar de ser guarnecida de dentes, orgãos que executam o acto mechanico da mastigação. Alguns mamiferos, como o tamanduá, são inteiramente desprovidos d'estes orgãos; outros ao contrario, como os golphinhos, possuem mais de duzentos. Os dentes dividem-se em incisi- vos, caninos e molares; os incisivos dividem os alimentos, os caninos: di- laceram-os e os molares trituram-os. Os dentes pela sua conformação indicam d'um modo claro o genero de alimentação de um mamifero qualquer, o que a seu turno revela a disposição e forma das visceras mais importantes; por isso o celebre naturalista Cuvier pretendia que por um dente seria em muitos casos capaz de reconstruir completamente o animal a que tal orgão pertenceu. Á bocca segue immediatamente nos e um tubo de calibre uniforme que na sua porção de origem se chama pharynge e na parte terminal mais visinha do estomago tem o nome de esophago. O acto pelo qual os alimentos passam, por esta região, da bocca para o estomago, é o que se chama deglutição. O estomago que suecede ao esophago, 6 uma bolsa membranosa di- latavel, de paredes mais ou menos finas e resistentes onde os alimentos se demoram para experimentar a digestão gastrica. Nos animaes que ruminam, isto é que não podem digerir os alimentos sem os fazerem passar, depois de ingeridos, novamente á bocca para sofrerem uma se- gunda mastigação, o estomago offerece particularidades de estructura que adiante descreveremos.. Ao estomago segue o intestino, tabê cylindrico mais ou menos lon- go dentro de cuja cavidade a digestão enterica se executa. A extensão d'este orgão varia d'um modo consideravel de mamifero a mamifero, su- bordinando-se ao genero de alimentação do animal; curto nos carnivoros, é pelo contrario extremamente longo nos herbivoros de que chega a ter vinte e sete vezes o comprimento. O intestino termina-se por um ourifi- cio chamado anus por onde os residuos digestivos são expulsos. Aos orgãos que nomeamos juntam-se outros denominados annexos “do systema digestivo e que são: as glandulas salivares, o figado, o pam- creas e 0 baço encarregados principalmente, como vamos vêr, de produ- zir os liquidos especiaes indispensaveis à commutação digestiva dos ali- mentos. . A digestão, trabalho complexo no Mi concorrem todos os orgãos do apparelho descripto, principia na bocca pela mastigação que divide os alimentos e pela involução d'estes na saliva, liquido segregado por glan- dulas especiaes. A saliva humedecendo os alimentos facilita a deglutição, e este é o seu papel physico; além d'isso, por um principio especial que contém chamado piyalina goza da propriedade de attacar os alimentos 16 HISTORIA NATURAL feculentos transformando-os em glycose, e este é o seu destino chimico e physiologico. Depois da digestão oral vem a digestão no estomago, consistindo es- sencialmente na acção commutativa de ordem chimica que sobre os ali- mentos exerce um liquido especial, chamado succo gastrico, segregado por glandulas do mesmo nome que forram as paredes internas do esto- mago. O succo gastrico attacando chimicamente, por um principio espe- cial chamado -pepsina, os alimentos azotados, como a carne ou branco do ovo, transforma-os em albuminose ou peptonas. Assim dissolvido e transformado o bolo alimentício passa a experi- mentar a digestão enterica ou intestinal. Os agentes d'esta nova elabo- ração, são 0 succo enterico segregado por glandulas do mesmo nome que forram o interior da mucosa intestinal, a bile, produzida no figado e o succo pancreatico elaborado na glandula do mesmo nome. A acção do succo enterico sobre os alimentos consiste em continuar no intestino a transformação, principiada na bocca, das feculas em glycose, emulsionar os corpos gordurosos e dissolver as substancias azotadas. A acção da bile, um pouco discutida ainda hoje, parece consistir em emulsionar ou redu- zir a divisões extremas as gorduras e ainda, segundo Claude Bernard, em activar, misturada com o succo pancreatico, a digestão das substan- cias albuminoides principiada no estomago. Como os liquidos preceden- tes, o succo pancreatico divide as gorduras, transforma a fecula em gly- cose e continua a dissolução das substancias azotadas que no estomago O succo gastrico principiára. A sua acção limita-se pois a continuar a dos agentes digestivos que primeiro do que elle attacam os alimentos. As funcções do baço são ainda hoje hypotheticas. As substancias alimentares que escaparam à acção dos liquidos di- gestivos accumulam-se na região terminal do intestino d'onde, como re- siduos, são expulsas; é o que se chama defecação. APPARELHO E FUNCÇÃO CIRGULATORIA Compõe-se o apparelho circulatorio em todos os mamiferos, de uma parte central chamada o coração e de uma parte peripherica dividida em: arterias, veias e capillares. Costumam-se nomear ainda como parte d'este apparelho, os lymphaticos, posto que o liquido m'elles contido não seja 0 mesmo que nos outros vasos. O coração é o orgão destinado à propulsão do sangue; divide-se em duas porções: direita e esquerda, subdividindo-se cada uma em qua- tro cavidades, duas chamadas auriculas e duas que teem o nome de ven- MAMIFEROS EM GERAL : 17 triculos. Estas cavidades são separadas por valvulas ou pregas membra- nosas tendo o nome de tricuspide a do lado direito e de mitral a do lado esquerdo; estas valvulas fecham ourifícios de communicação entre as auriculas e os ventriculos, impedindo que o sangue, uma vez depositado em qualquer das cavidades ventriculares, passe por movimento de re- fluxo às auriculares correspondentes. O coração é interiormente forrado por uma membrana chamada endocardio e externamente por uma outra da mesma natureza com o nome de pericardio. As arterias são vasos contracteis que distribuem por acção centrifu- ga O sangue a todos os pontos do organismo. Às suas paredes formam-se de tres tunicas sobrepostas que são: a tunica externa de natureza elasti- ca, a media de natureza muscular e a interna elastica, dilatavel e resis- tente. | As veias são canaes destinados a conduzir ao coração por movimento centripeto o sangue que serviu à nutrição dos orgãos. Nascem dos capil- lares por meio de radiculas que se reunem em troncos successivamente mais volumosos. As veias são formadas, como as arterias,de tres tunicas ; destas porém, a media apresenta um numero muito menor de fibras mus- culares. Por este facto as veias gozam d'uma elasticidade inferior relati- vamente ás arterias, o que explica o motivo porque depois d'um corte estes vasos se conservam abertos jorrando sangue, ao passo que aquel- les se fecham immediatamente. — Os capillares são vasos extremamente finos, estabelecendo commu- nicação entre as arterias e as veias. A exiguidade d'estes vasos fez com que se tenham comparado a cabellos; o seu calibre porém, é muito me- nor, pois que o diametro dos mais grossos não excede nunca um centi- millimetro. | “Os lymphaticos, tambem chamados chyliferos, são vasos contendo um liquido especial resultante da digestão, o chylo ou lympha, que por intermedio de dois troncos chamados canal thoracico e grande veia lym- phatica é lançado no sangue. O movimento que agita a lympha é o mesmo que impulsiona o sangue. O sangue impellido para os vasos pela contracção intermitente do coração, vis a tergo, alimenta em todos os pontos do organismo as tro- cas nutritivas indispensaveis à vida. Descreveremos, fallando do homem, este importante phengmeno da circulação que em todos os mamiferos se executa sensivelmente do mesmo modo. 18 HISTORIA NATURAL APPARELHO E FUNCÇÃO RESPIRATORIA Nos mamiferos a cavidade thoracica que contem os pulmões, or- gãos respiratorios, é separada da cavidade abdominal onde se alojam os orgãos digestivos, por um largo musculo chamado diaphragma. Os pulmões communicam com a larynge ou orgão da voz por um tubo de- nominado trachea que se divide em dois ramos destinados aos dois pul- mões. À larynge é uma só n'esta especie. A funcção respiratoria consiste essencialmente n'uma troca de gazes à superficie pulmonar. O acido carbonico do sangue venoso é expellido e o oxigenio, ou gaz vivificante, introduzido-na torrente circulatoria. APPARELHO GENITAL Nas femeas dos mamiferos os orgãos genitaes internos consistem essencialmente em dois ovarios, duas trompas e um ou dois uteros. Os ovarios, cujas formas são variaveis, conteem os ovulos que fecundados darão origem a novos animaes da mesma especie. As trompas são tubos que communicam com a cavidade do utero e conduzem o ovulo ou ovu- los à fecundação. N'alguns mamiferos o utero é duplo e n'outros é bifido. Às mamas, que segregam o leite indispensavel à alimentação dos filhos durante os primeiros periodos da vida, são êm numero variavel e subordinado à quantidade maxima de filhos que cada femea pode dar à luz nºum só parto. A posição destes orgãos varía tambem; umas vezes são peitoraes, outras vezes abdominaes ou ainda inguinaes. Desenvol- vem-se durante a gestação e principiam a funccionar antes do parto. : No macho os orgãos internos de geração que mais importa conhe- cer, são os testiculos onde se forma um liquido, o esperma, destinado à fecundação do ovulo. A destruição artificial d'estes orgãos nos animaes domesticos, importa para elles a perda de grande numero de caracte- res que os distinguem exteriormente da femea; as formas, onde: natu- ralmente deve predominar a linha recta, tornam-se curvilineas, arredon- dadas como as da femea; os musculos que são duros e fortes tornam-se flaccidos; a voz perde a tonalidade-grave e a coragem propria do macho desapparece inteiramente. MAMIFEROS EM GERAL 19 APPARELHOS SENSORIAES - Os sentidos são em geral extremamente desenvolvidos nos mamife- “ros, O que não impede que, em alguns, um ou outro d'estes orgãos da vida de relação seja rudimentar ou nullo. Assim na toupeira os olhos en- contram-se atrophiados e nos cetaceos falta o apparelho de olfação, por- que m'elles o nariz é exclusivamente consagrado à funcção respiratoria. “O appárelho auditivo é relativamente muito perfeito e offerece uma extrema complexidade. “O apparelho da visão é duplo. A funcção que executa, menos ex- “tensa do que em outras especies, nas aves por exemplo, é todavia im- portante e sufficiente às necessidades e aos habitos mais sedentarios dos mamiferos. O gosto é em geral desenvolvido e o seu orgão, largamente ener- “vado, varia de animal para animal na forma, na estructura e nos movi- mentos. Assim a lingua umas vezes é fina, lisa e immovel, outras vezes longa, grossa, gozando do movimento em todas as direcções, outras ve- zes ainda franjada nos bordos e coberta de papillas. “ Oolfato é nos mamiferos mais desenvolvido que em qualquer outro grupo zoologico. Adquire em alguns, nas lebres e nos cães, por exem- plo, uma intensidade assombrosa. - Otacto, espalhado por quasi toda a superficie epidermica e mucosa, é geralmente desenvolvido n'esta especie. Os pellos porém, e sobretudo as placas escamosas e corneas que cobrem a pelle d'alguns dos repre- sentantes d'este grupo, são obstaculos à sensibilidade tactil. - Descreveremos estes apparelhos na parte consagrada à anatomia hu- mana. | SYSTEMA NERVOSO - Divide-se em duas grandes secções physiologicamente distinctas pela sua finalidade, posto que relacionadas: o grande sympathico, que preside à vida vegetativa ou inferior e o systema cerebro-espinhal que preside às funcções especulativas e à vida superior de relação. É nos mamiferos que esta ultima secção se apresenta mais desen- volvida, o que lhes permitte levar sobre todos os outros grupos animaes uma singular vantagem no ponto de vista da intelligencia e do senti- mento. A opinião vulgar que retira a este grupo como a todos os outros o poder intellectual e emotivo para tornal-o propriedade exclusiva d'uma * 20 HISTORIA NATURAL só especie, o homem, é perfeitamente gratuita e insustentavel. Reflexo de uma doutrina morta que faz da terra o centro do mundo e do homem o centro e o dominador de todas as coisas, esta opinião é inteiramente desmentida pelos factos. Deante d'elles e uma vez eleminadas todas as preoccupações, é impossivel deixar de reconhecer nos mamiferos, espe- cialmente n'aquelles que pela complexidade da sua estructura anatomica mais se aproximam da nossa especie, um grao por vezes elevado de to- das as faculdades psycologicas. Nem tudo n'elles é instincto, como vul- garmente se aílirma. O desenvolvimento intellectual a que os conduzimos não raro pela domesticidade, os actos complicados a que os obrigamos pelo ensino demorado e paciente, a comprehensão integral e a execução fiel das ordens que lhes damos, a memoria das pessoas e dos logares, os sentimentos de sympathia ou odio que sabem manter, a noção de pro- priedade e de justiça a que alguns se elevam, a abnegação individual de que são capazes, tudo prova a falsidade da opinião que lhes nega a ca- pacidade psychica, tudo demonstra que elles se ligam à especie humana por laços e relações bem mais intimas do que geralmente se suppõe. Na descripção particular de cada especie teremos occasião de voltar a este ponto importante, onde ha erros a corrigir e affirmações falsas a combater. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Do mesmo modo que ha regiões na terra sufficientemente caracteri- sadas pela existencia de certas plantas que as habitam, que em nenhuma outra parte se encontram e constituem o que se chama flora d'um paiz, assim tambem as ha que se distinguem pela existencia habitual de cer- tos animaes que lhes formam a fauna. Chama-se circulo de dispersão d'um animal ou d'uma planta a aria geographica dentro da qual a sua especie habitualmente se encontra. O maior ou menor numero e extensão d'estes circulos botanicos e zoologi- cos permitte dividir para cada especie o globo em zonas, ou regiões dis- tinctas. j Se exceptuarmos os mamiferos aquaticos que podem encontrar-se em todos os pontos da vastissima extensão dos mares, diremos com se- gurança que o circulo de dispersão para os individuos d'este grupo em re- lação aos de outros grupos de vertebrados, é extremamente limitado e res- tricto. Estas regiões ou zonas são tres: a polar arctica, a temperada e a tropical; cada uma é ainda dividida em outras zonas de menor extensão, caracterisadas pelo notavel e constante predominio de especies determi- MAMIFEROS EM GERAL 21 nadas. A riqueza zoologica de cada uma das tres zonas principaes que nomeamos, está longe de ser a mesma; varia no sentido crescente se- “gundo a ordem por que as deixamos expostas. - Tendo de indicar para cada um dos generos, das especies e varieda- des que formos estudando, a sua distribuição geographica, dispensamo- nos de expol-a n'este logar, o que certamente se tornaria monotono e de “uma utilidade muito contestavel. DISTRIBUIÇÃO GEOLOGICA A divisão dos animaes no globo não foi sempre analoga à dos nos- sos dias; além d'isso, muitas especies que hoje não existem, viveram nos K periodos antehistoricos, como o demonstram os esqueletos descobertos nas explorações paleontologicas. Por isso não deve confundir-se a distri- buição geographica que se faz por zonas ou regiões e se refere à actua- lidade com a geologica que tem logar por epochas e diz respeito aos pe- riodos prehistoricos. Os mamiferos pertencem na fauna paleontologica aos ultimos periodos ou epochas geologicas. Segundo-Brehm as especies fos- seis que d'elles conhecemos são: vinte de simeanos, vinte de cheiropte- ros, duzentas de carniceiros, trinta de marsupiaes, cem de roedores, qua- renta de desdentados, cento e cincoenta de multiungulados, sete de solipedes, cento e vinte de ruminantes, sete de pinnipedos e cincoenta de cetaceos. AR COSTUMES E REGIMEN O genero de vida de cada mamifero, como de todos os animaes, subordina-se naturalmente a duas ordens de factores: as suas Abtidõas physiologicas, factor interno, e o meio em que vivem, factor externo. — Logar habitado. — Os mamiferos podem habitar a agua, o ar ou a terra. Este ultimo logar é todavia aquelle em que a maioria d'estes ani- maes se encontram; é tambem ahi que vamos achar as especies mais bem dotadas sob o ponto de vista da elegancia e da correcção artistica das formas. Os mamiferos aquaticos, como a phoca, são disformes e de assombrosas proporções; os que vivem no ar, ou antes ahi se podem manter mais ou menos dificilmente pelo vôo, como o morcego, são tam- bem mal conformados, d'uma apparencia repugnante; só na terra se en- contram os exemplares e typos de nobreza, como o cavallo, o veado, o leão, o touro, algumas raças de cães, etc. 22 HISTORIA NATURAL Influencia do meio. —É absolutamente incontestavel a influencia que sobre o animal exerce o meio que elle habita ou o grupo das condições cosmicas que o cercam. Esta influencia não se limita a modificar as gran- des linhas geraes de organisação, dando a aza ao que vive no ar, a bar- batana ao que habitãá a agua, a mão ou a pata armada ao trepador, etc.; vae mais longe, exercendo-se em mil acções secundarias, que no animal se traduzem por cambiantes anatomicas e physiologicas de uma apreciação por vezes difficil. Nos mamiferos a côr do pello é uma d'essas cambiantes, cuja importancia, realmente grande, passou muito tempo desapercebida. A côr d'estes animaes, sendo geralmente a do meio em que vivem ou an- tes do logar que habitam, a terra, as arvores, os rochedos, permitte-lhes no attaque approximarem-se da preza sem serem descobertos e na defen- siva escaparem aos seus naturaes inimigos que os não distinguem do solo ou da vegetação visinha. Mamiferos ha que mudam mesmo durante o anno de pello, segundo a estação que attravessam; assim a rapoza do norte, branca como a neve durante o inverno, torna-se no estio da côr parda- centa dos rochedos. A côr varia ainda segundo o animal se expõe du- rante o dia ou a noite; assim o cinzento pertence aos animaes nocturnos e as outras côres aos diurnos. Sociabilidade. — A sociabilidade pertence sem contestação à maioria dos mamiferos. Os sentimentos de sympathia reunindo naturalmente os individuos de uma mesma especie e a necessidade de se reforçarem no attaque ou na defeza contra os inimigos, taes são os factores capitaes das associações dos mamiferos, por vezes dignas de observação e minu- cioso estudo. E não se creia que são simples ajuntamentos provisorios, as uniões que entre si estabelecem; são, pelo contrario, verdadeiras socie- dades em que a divisão do trabalho ou differenciação de funcções principia a esboçar-se como nas primeiras e mais imperfeitas sociedades humanas. A differenciação de funcções sociaes implica necessariamente uma direcção e um plano. É o que nos grupos dos mamiferos se vê instincti- vamente comprehendido na adopção d'um chefe ou director da commu- nidade a quem compete dispôr os combates, organisar as defezas, pre- venir as luctas, n'uma palavra, garantir a existencia dos subordinados. O criterio que preside à selecção d'esse chefe, varia de especie a especie; umas vezes é a força muscular provada por victorias successivas nos mais cruentos combates, outras vezes a sagacidade, a prudencia, a dedica- ção. Nestes agregados sociaes rudimentares desponta o altruísmo, ou sentimento sympathico que conduz à dedicação do mais forte pelo mais fraco, traduzida principalmente no sacrifício espontaneo do chefe pela communidade, e os elementos emocionaes e instinctivos da solidariedade que leva à união tanto mais intima e absoluta quanto maior é o perigo de todos e de cada um. Sobre este ponto tão curioso pelo lado descriptivo, MAMIFEROS EM GERAL 23 “como importante pelo ensinamento que encerra para a questão da origem dos sentimentos sociaes, escreveu Espinas, sob o titulo Sociedades ani- maes, um livro justamente recommendavel. O que deixamos dito não exclue nos mamiferos o isolamento como “estado normal; muitos ha que vivem constantemente separados e em lu- cta permanente com todos os outros. Vida diurna e nocturna.—Nem todos os mamiferos aproveitam o dia para as manifestações activas da existencia e a noite para o repouso. Ha-os que invertem esta ordem, reservando o dia para o somno e a noite para a expansão das forças; outros ainda sem periodos fixos de repouso ou de actividade, servem-se indistinctamente de qualquer hora para a manifestação ou para a reparação das energias funccionaes. A maioria dos mamiferos pertence à classe dos diwrnos, isto é, dos que se agitam nos conflictos da vida emquanto o sol nos ilumina, para repousarem durante a noite. Na cathegoria dos nocturnos que se servem da noite para a vigilia e do dia para o somno, como na dos crepuscula- res que sahem do repouso à hora em que a luz do sol principia a desap- parecer, entra um numero menor de individuos. Á classe dos que não “teem periodo certo de vigilia ou de somno pertencem os mamiferos aqua- “ticos. Regimen. — Sob este ponto de vista todos os mamiferos se dividem em herbivoros, carnivoros e omnivoros, segundo teem uma alimentação exclusivamente vegetal, exclusivamente animal ou combinam os dois ge- neros, como faz o homem. A estas differenças de regimen andam ligadas diferenças consideraveis na conformação do tubo digestivo, bem como na maneira de procurar os alimentos. Os carniceiros vivendo da caça dada aos outros animaes, mamiferos, aves, peixes, moluscos, etc., são dotados de longos dentes caninos e muitos de garras extensas e agudas; não necessitando as carnes de uma digestão tão demorada como a dos ve- getaes, o intestino destes individuos é sensivelmente menor que o dos herbivoros. Estes, ao contrario, teem largos e vigorosos molares, não possuem garras e o seu intestino é de um extraordinario comprimento. O homem que é omnivoro, não possue bem accusado nenhum dos cara- cteres dos grupos anteriores: nem tem os molares vigorosos do herbi- voro nem os caninos agudos e extensos do canivoro; o seu intestino nem é tão curto como o dos carniceiros nem tão longo como o dos herbivo- ros; finalmente os seus orgãos de prehensão são differentes dos de to- das as outras especies. Pela domesticidade consegue-se que alguns carnivoros, o gato e o cão principalmente, se habituem a uma alimentação mixta como a do homem; estes habitos mantidos atravez de gerações inteiras e succes- sivas vão promovendo lentamente n'estas especies a perda dos cara- 24 HISTORIA NATURAL cteres que no estado natural ou selvagem os distinguem d'outras espe- cies. Alguns carnivoros, como as hyenas, ás carnes palpitantes da presa preferem os tecidos do cadaver em decomposição. Este facto imprime à sua organisação disposições especiaes que mais tarde estudaremos. Hhybernação. — Consiste n'um somno que dura um inverno inteiro é durante o qual o mamifero se não alimenta. Este facto curioso e na ap- parencia incomprehensivel, explica-se todavia facilmente. Ao approximar do inverno, o animal hybernante procura um retiro onde se esconde, en- rola o corpo e cae, segundo a phrase consagrada, n'uma lethargia pro- funda, em que as funcções organicas diminuem consideravelmente de in- tensidade. A circulação é lenta, quasi imperceptivel, a respiração super- ficial e espaçada, os movimentos voluntarios, nullos. As funeções assim retardadas implicam para o animal um dispendio minimo para occorrer ao qual basta sómente a gordura, verdadeira reserva e unica receita or- ganica durante o somno. À nutrição, muito pouco intensa, faz-se pois por autophagia, gastando o animal os seus proprios tecidos. Só na approxi- mação da primavera termina este estado de morte apparente; então o animal, cedendo ás sollicitações sexuaes, principia uma vida activa, preoccupada, verdadeiro renascimento. A alimentação principia n'esta epocha à custa de provisões accumuladas no estio anterior. Reproducção. —Na vida dos mamiferos ha sempre a periodos fixos do anno, diferentes para cada especie, uma epocha durante a qual as necessidades sexuaes vivamente despertadas impellem o animal a um grande movimento, a uma excitação que não raro contrasta com Os seus habitos sedentarios e monotonos. N'esta quadra, a mais curiosa da vida dos mamiferos, exuberancia- de actividade e modificações profundas de caracter transformam singularmente o animal. O instincto genésico desperta n'elle sentimentos e emoções de que não dá, durante outras epochas do anno, uma prova unica; ao mesmo tempo qualidades que normalmente o caracterisam, apagam-se ou mesmo desapparecem dum modo completo. O amor, a extremada sollicitude pela femea a que habi- tualmente se conserva estranho, o ciume que o torna perigoso para Os animaes da mesma especie, taes são os sentimentos peculiares ao macho durante esta epocha. Os instinctos da maternidade, uma notavel preoc- cupação de encontrar e dispor o logar apropriado à parturição e, depois d'esta, a sollicitude proverbial pelos filhos, caracterisam a femea durante o mesmo periodo. As modificações no que podemos chamar o caracter dos animaes, são profundas durante o cio ou exaltação genésica; os mais timidos tornam-se de uma assombrosa coragem e os ferozes, pelo contra- rio, apresentam-se como que suavisados. As relações entre os dois sexos não se fazem d'um modo per- feitamente casual e arbitrario, antes se subordinam ao que os mo- MAMIFEROS EM GERAL 25 dernos zoologos chamam a selecção sexual, dependente, segundo Darwin, da «lucta entre individuos d'um sexo, geralmente machos, para se assegurarem da posse do outro sexo.» ! A este proposito diz Hoeckel: «Em quasi todas as especies de animaes, o numero de individuos dos dois sexos é mais ou menos desigual, havendo um excedente ora de ma- chos, ora de femeas; na estação do cio ha ordinariamente lucta entre os rivaes para a posse do outro sexo. Sabe-se com que ardor, com que en- carniçamento o combate se trava, particularmente entre os animaes d'or- dem superior, os mamiferos e as aves.» ? À consequencia final d'estas luctas é o desprezo da femea pelos vencidos e a sua dedicação pelos vencedores. O numero de filhos dados à luz n'um só parto varia entre vinte e quatro, cifra maxima, e dous ou um, como acontece na especie humana e nas especies superiores. É geralmente sabido que os animaes de pe- quenas dimensões são extraordinariamente mais prolificos que os de ele- vada estatura. O periodo de gestação varia tambem entre nove mezes e tres semanas, e a elle é proporcional o tempo dedicado pela mãe ao en- sino e educação dos filhos. A dedicação e sollicitude pelos novos animaes é sempre muito maior da parte das femeas. Ao passo que o macho se abandona inteiramente, passada a quadra dos amores, aos antigos habitos de vida, a mãe preoc- cupada e absorvida nos cuidados da prole esquece todo o egoismo dos anteriores costumes. Aleitar os filhos, conserval-os lavados, confortaveis, defendel-os contra toda a ordem de perigos à custa da propria vida, en- sinal-os a ensaiar forças, a procurar o vigor que não podem dispensar no futuro conflicto da vida, tal é a preoccupação constante da mãe e o objecto exclusivo de toda a sua actividade. Os mamiferos não nascem todos egualmente desenvolvidos. Os mar- supiaes recemnascidos são quasi informes e só terminam a sua evolução depois d'uma segunda gestação dentro de uma bolsa ventral onde a mãe os depõe; os carniceiros nascem quasi geralmente cegos e assim vivem as duas primeiras semanas da vida; só os que se destinam a uma existencia extremamente agitada nascem perfeitos sem todavia poderem durante muito tempo dispensar o appoio materno. Crescimento. —Extremamente variavel de especie a especie, pode dizer-se que o tempo de crescimento nos mamiferos é, em egualdade de circumstancias, proporcional às dimensões que elles teem de attingir. Ao passo que os animaes pequenos nascem quasi com o tamanho em que 1 Darwin, Origine des Esptces, pg. 9. 2 Heckel, Histoire de la Création naturelle, pg. 236. 26 HISTORIA NATURAL ficarão, nos animaes de grande talhe, como o homem, o elephante, o urso, etc., ha uma differença enorme entre o tamanho com que nascem e o tamanho que attingirão depois de adultos. O genero de alimentação e os climas exercem sobre este phenomeno uma notavel influencia; os bons alimentos e os climas quentes impulsionam o crescimento, como os seus contrarios o retardam. A vida dos mamiferos, como em geral a de todos os animaes, divide-se em tres periodos: a infancia, a juventude e a velhice. Durante o primeiro periodo ha crescimento constante e desenvolvimento de to- dos os orgãos por predominio das funcções assimiladoras sobre as des- assimiladoras; no segundo periodo ha estadio pelo equilibrio d'aquelles phenomenos; no terceiro ha decrescimento e decadencia por desequili- brio no sentido da maior desassimilação. Estes tres periodos podem mais praticamente reconhecer-se pelos seguintes caracteres: na infancia os or- gãos sexuaes não estão suflicientemente desenvolvidos e o animal não pode ainda reproduzir-se; na idade adulta a reproducção existe pelo integral desenvolvimento dos orgãos correspondentes; na velhice, a vitalidade se- xual extinguiu-se e o animal não pode já exercer as funcções genésicas. Viagens. -— Não ha mamiferos propriamente emigradores como as aves; ha-os no entanto que algumas vezes emprehendem longas viagens em busca de condições de existencia superiores áquellas em que vivem. Assim dos lemmingos, por exemplo, escreve Figuier: «Em epochas irre- gulares, os lemmingos reunem-se em numero prodigioso e dirigem-se para o sul em columnas cerradas. Parece que um poder invencivel os attrahe para um ponto determinado, tal é a certeza da sua marcha. A balla não vae mais direita ao alvo... Tem-se discutido muito sobre a causa que leva estes roedores a emprehender taes emigrações. Tem-se dito que elles presentem os invernos rigorosos e viajam para subtrair-se à sua influencia. A hypothese mais provavel porém, é que estas desloca- ções se devam a um excedente da população animal que determina uma grande falta nas subsistencias.» ! O mesmo pode dizer-se dos antilopes da Africa do Sul, do onagro selvagem, das phocas, dos bufalos da Ame- rica do Norte, etc. DESTINO, USOS E PRODUCTOS O destino dos mamiferos não lhes pertence; a felicidade ou a des- ventura, tantas vezes cruel e pungitiva d'estes animaes, a vida facil ou 1! L. Figuier, Las Mammiftres, pg. 426 e 497, MAMIFEROS EM GERAL 27 as durezas e privações, a grandeza ou a miseria dos seus dias, tudo de- pende do homem que o subordina e dispõe d'elle. Se alguns, rarissimos, conseguem viver na total emancipação da natureza, a maxima parte d'elles directa ou indirectamente existem sob o dominio permanente ou accidental da nossa especie que lhes dá o destino e prescreve o fim de toda a sua vida. E n'estas prescripções que desegualdade, que falta de justiça! Desde a caça com todos os seus horrores até ao captiveiro da domesticidade com todas as suas vicissitudes, a vida dos animaes é uma dependencia forçada da vida do homem, o destino d'elles um effeito das necessidades, dos caprichos ou dos arbitrios da nossa especie. Nos animaes domesticos evidenceiam-se admiravelmente estes accidentes fortuitos e casuaes. Ao passo que o cavallo, um animal utilissimo, vive geralmente sob as imposições dos trabalhos mais duros e mais penosos, um pequeno cão de regaço, absolutamente incapaz de prestar um serviço, é estimado, subtraido cautelosamente a todos os desconfortos, ainda os mais ligeiros, cercado de todos: os prazeres d'uma existencia luxuosa e facil. Á propor- ção que o alimento d'um boi, duramente conquistado pelo labor d'um dia, é muitas vezes insufficiente e máu, é, pelo contrario, copioso e inex- cedivel o alimento d'um cavallo de corridas, infinitamente menos presti- moso. O jumento, sem duvida o mais bello typo do trabalho paciente e - productivo, é tratado com aspereza, com odio muitas vezes, mal alimen- tado, mal limpo; como se não fossem titulo bastante à nossa piedade as tarefas que nos executa humildemente, impomos-lhe ainda o chicote, o desprezo e nos extremos da vida o desamparo ou a expulsão. O urso, O leopardo, o leão, a panthera, largamente explorados pelos domesticado- res que se enchem de dinheiro, expondo-os, são narcotisados durante uma vida inteira, batidos a ferro e quando o garbo e a elegancia lhes decae ao chegar da velhice, mortos a tiro ou queimados. Ao mesmo tempo porém, um inutil saguí que se possue por simples ostentação, é tratado com esmero, envolvido nos mil requintes da superfluidade e da grandeza, assistido pela medecina nas suas doenças, circumdado d'olhos amigos e lacrimosos na hora do passamento. Outros, talvez os que mais soffrem, vivem bem uma parte da sua existencia, geralmente a menos util, para passarem mal os ultimos periodos d'ella, os de mais trabalhos e hostis imposições. É o que não raro acontece ao cavallo que, perten- cendo ao rico na edade da elegancia e do aprumo, passa na velhice ás mãos d'um possuidor pobre que o alimenta mal, que o obriga a carre- gar pezos superiores às suas forças em decadencia e lhe exige pelo ta- gante o cumprimento de serviços anniquiladores. Ácerca d'estes, escreve Scheitlin: «Das honras descem à lama; depois de terem vivido no super- fluo, morrem de fome.» Outros ainda, são as victimas inconscientes dos prejuizos humanos, como o morcego que onde apparece é perseguido 28 HISTORIA NATURAL com ardor e morto irremissivelmente. Não são conhecidos os beneficios que nos prestam; lembramo-nos d'elles sómente para os vêrmos à luz d'um preconceito irracional e para os atormentarmos desapiedadamente. Alguma coisa de analogo ao que acontece nas sociedades humanas em relação aos destinos individuaes, se passa indubitavelmente na vida de todos os mamiferos. A nossa intervenção sobre elles marca-se pela injustiça e pelo egoismo. A natureza é mais equitativa: impõe a todos, é certo, as agruras de uma desesperada e intransigente lucta pela vida, mas em compensação dá inalteravelmente a victoria ao mais forte ou ao mais astuto; vence o mais bem dotado. E esta escolha sempre justa, sempre subordinada ao mesmo principio, para a qual não ha queixumes, é o que se chama a selecção natural. Perante ella não existem os previ- legios artificialmente creados pelo sentimento ou pelo capricho; existe sómente a supremacia dos dotes. Por isso, em quanto que ella é sempre um promotor do aperfeiçoamento das especies, deixando subsistir e re- produzir-se apenas o melhor e o mais completo dos luctadores, a selec- ção artificial que nós fazemos muitas vezes sem intuito e sem criterio, garante a existencia de variedades inuteis e prejudiciaes que estão rou- bando injustamente o alimento e as attenções que só merecem os que trabalham e se esforçam por cumprir um serviço qualquer. A utilidade que para o homem resulta do emprego dos mamiferos, é perfeitamente incontestavel. Podemos dizer que nenhuma classe de ani- maes, nos presta maiores e mais relevantes serviços; são, como lhes chama A. Comte, os nossos imprescindiveis collaboradores. Transportam- nos, como o cavallo, o camello e o elephante, a todas as distancias; car- regam as nossas mercadorias e os materiaes de construcção das nossas habitações; arroteiam, como o boi, os nossos campos; servem-nos, como o gato, para a destruição das especies damninhas que nos roubam o ali- mento e nos perturbam a tranquillidade domestica; auxiliam-nos, como cão, na caça d'outras especies que deverão constituir os melhores pra- tos da nossa mesa; emfim, serviço impagavel, defendem as nossas pro- priedades e as nossas pessoas. Lenz tem ácerca do cão que dá a caça ao javali e ao urso, esta passagem transcripta por Brehm no seu livro: «k que recompensa recebe elle em troca de tanta bravura posta ao nosso serviço? Nenhuma, ou quando muito um simples olhar de satisfação. E quando à tarde, fatigados do exercicio da jornada, nos abandonamos ao repouso, quando os olhos se nos fecham e a alma se adormece, quando estamos desarmados e indefesos, poderá um malfeitor aproveitar o en- sejo para invadir as nossas terras? Não, porque no pateo da casa vela um mastim fiel e valente que acommetterá o primeiro desconhecido suspeito que entra.» MAMIFEROS EM GERAL 29 Depois de nos terem servido pelos seus esforços e dedicação, os mamiferos servem-nos ainda pelos seus productos. Dão-nos o leite e a carne que nos alimenta, as pelles de que fazemos os nossos agasalhos, o marfim para os objectos d'arte, os cornos para utensilios de uso diario, os perfumes emfim. Por isso diremos com Figuier: «a classe dos mami- feros fornece-nos os animaes mais uteis para a nossa nutrição, para Os nossos trabalhos, para os cuidados da nossa industria» !; e com Brehm: «sem os mamiferos a vida do homem seria impossivel, pelo menos tal qual é.» 2 CLASSIFICAÇÃO k "A grande classe dos mamiferos, cujos caracteres geraes acabamos de estabelecer, tem sido desde Linneu até nós dividida e subdividida de modos muito differentes segundo o ponto de vista especial adoptado por cada naturalista. Comprehende-se com effeito, que a diversidade dos ca- racteres escolhidos como base de arranjo methodico deve decidir da clas- sificação preferida. Egualmente se percebe sem difficuldade que os pro- gressos constantes da zoologia, importando uma comprehensão cada vez mais clara das qualidades fundamentaes e accessorias dos individuos, devem dar às classificações modernas uma vantagem decisiva sobre as antigas. Aqui, como em todas as sciencias, a classificação, resultado do estudo comparativo entre os objectos que se investigam, reflecte inva- riavelmente o nosso estado de atrazo ou de adiantamento; como em todas as sciencias, o trabalho taxonomico marcará na zoologia a todos os mo- mentos com a maior segurança, a elevação ou deficiencia dos nossos co- nhecimentos sobre os animaes. Cada epocha que surge trazendo à scien- cia novas conquistas, traz ás classificações que ella adopta, modificações e emendas; é assim que na disposição taxonomica dos mamiferos, Cu- vier corrige Linneu, e Blainville, mais proximo de nós e mais adiantado do que Cuvier, altera e aperfeiçoa a classificação d'este ultimo. Não faremos aqui uma exposição historica do assumpto; nem teria ella vantagem real para o leitor, nem seria muito apropriada à indole e ao intuito d'esta obra. Contentamo-nos pois com apresentar a classifica- ção geralmente seguida pelos naturalistas modernos, que é a de Cuvier modificada por Blainville. Segundo este illustre zoologista o grande grupo dos mamiferos pode 1 L. Figuier, Les Mammiftres, pg. 1. 2 Brehm. Ob. cit., pg. xxr. 30 HISTORIA NATURAL ser dividido primeiro em tres grandes sub-grupos: os ornithodelphos, os didelphos e os monodelphos. O primeiro d'estes grandes sub-grupos dis- tingue-se principalmente por dois caracteres importantes: os orgãos ge- nito-urinarios abrem-se na porção terminal do intestino formando como nas aves uma cloaca, e as suas claviculas são soldadas entre si e com o esterno, constituindo uma só peça analoga à forquilha das aves. O se- gundo sub-grupo, didelphos, caracterisa-se pela existencia de um sacco ou bolsa abdominal sustentada pelos ossos marsupiaes e em que a femea guarda os filhos por muito tempo ainda depois do parto. O terceiro sub- grupo, monodelphos, distingue-se dos outros pela existencia da placenta, orgão extremamente vascular que representa um papel capital na func- ção nutritiva do feto durante a vida intra-uterina; os monodelphos são, além d'isto, mamiferos em tudo superiores, nos orgãos de geração como nos da intelligencia. Estes sub-grupos dividem-se a seu turno em novas cathegorias ou ORDENS, Que são: os ornithorincos, os echidneos, os marsupiaes tanto her- bivoros como carnivoros, Os cetaceos, os amphibios, os pachidermes, os ru- minantes, os desdentados, os carniceiros, Os roedoçes, os insectivoros, OS cheiropteros e os primatos, abrangendo quadrumanos e bimanos +. Por sua vez, cada ordem se subdivide ainda em familias, estas em generos e estes em especies, que iremos estudando separadamente e a proposito de cada grupo principal. Na exposição em que vamos entrar de cada sub-classe e de cada or- dem, poderiamos seguir, como faz Figuier, a marcha ascendente, cami- nhando, como parece natural, dos mamiferos menos perfeitos para os que o são mais. Crêmos porém que ao nosso intuito convém de preferencia o caminho inverso, porque assim passamos do que nos é conhecido e todos os dias vêmos, o homem, o cavallo, o boi, etc., para o que é ge- ralmente ignorado, como o ornithorinco paradoxal ou o kanguru gigante. N'um ponto de vista exclusivamente scientifico ou philosophico, conviria adoptar o caminho que leva desde os seres mais degradados ou rudi- mentares até ao mais completo e acabado, o homem; no ponto de vista da vulgarisação é evidentemente a marcha inversa que nos compete se- guir. Na clave eschematica seguinte, encontra resumidamente o leitor a classificação que perfilhamos, e portanto a ordem que seguiremos na ex- posição dos assumptos: 1 Linneu que primeiro empregou o termo de prrmaros abrangia tambem n'esta, classe os cheiropteros. Não o fazemos, porque os caracteres que assemelham estes ultimos animaes aos macacos e ao homem são bem menos salientes que aquelles que os separam, como veremos, matina bot" Mabedagies + A Ordens sema Pest pri: | BIMANOS E | apita PRIMATOS E Bert "MONODELPHOS | ara QUADRUMANOS. id À mca CHEIROPTEROS " PLACENTARIOS e ; INSECTIVOROS ROEDORES CARNICEIROS DIDELPHOS DESDENTADOS as RUMINANTES MARSUPIAES RADEIDERNHS | os e AMPHIBIOS Acta do ,edsua CETACEOS q via qa Miran HERBIVOROS | | ORNITHODELPHOS MARSUPIAES | E. TIS qua 744 RT DRT: Pá “ Cf CARNIVOROS as air ã “| MONOTRENOS + ORNITHORINCOS | | zemipxros ; DS € spácios que “ettas comportam. Isso faremos com mais : pequenos quadros supplementares, » pd separadamente ao estudo de Cada ordem. hs y i xá y b : 3 3 24 ' t é e PEA á NIRO sigo! prurido asda ispstiaimreus ssa Ban aufisnyais ES So Ena RREO [7 o RETOS RP fo : a » j “ . K e Eça TRT Imp .Ch, Chardon ane Fr % Del O Homem E À MULHER o Ea ai eira e E —o Es O é50 o— PRIMATOS Esta ordem natural, creada por Linneu, comprehende, segundo a phrase de Heeckel, os altos dignatarios do reino animal. Ahi tem o seu logar o homem ao lado dos simianos, dos quaes o não affastam cara- cteres morphologicos sufficientes para distinguir, como se faz nas classi- ficações de Blumenhach e de Cuvier, duas ordens: os bimanos e os qua- drumanos. Para uma tal distincção ainda hoje muito acceite, tem-se invo- cado em todos os tempos duas razões principaes: que no homem, unico representante dos bimanos, existe, ao contrario “do que se dá nos qua- drumanos, uma diferença entre a conformação dos pés e das mãos que à nossa especie permitte oppôr, sómente nos membros superiores, o dedo pollegar aos outros dedos; que só no homem existe a linguagem e ain- da, segundo muitos, a religiosidade. A primeira d'estas distincções tor- nou-se inacceitavel depois que o naturalista Huxley demonstrou existirem tribus humanas que podem oppôr o grosso dedo do pé aos outros do mesmo modo que nós oppômos o pollegar da mão aos quatro dedos res- tantes. Os barqueiros chinezes remam, diz Heeckel, e os operarios de Bengala tecem com esta mão posterior; egualmente os negros na ascen- são às arvores servem-se dos pés para abraçar os troncos, do mesmo modo que os quadrumanos. Além d'isto, nos macacos antropomorphos existem entre a mão e o pé differenças muito analogas às que se dão no homem. Não é portanto admissivel estabelecer sob este ponto de vista, como sob quaesquer outros de natureza anatomica, uma distincção entre o homem e o simiano, bastante a justificar na classificação a existencia de duas ordens. «Qualquer que seja, escreve Huxley, o systema de orgãos que se-considere, o estudo comparativo das suas modificações na serie simiana conduz à conclusão de que as differenças anatomicas que separam oçho- mem do gorilha e do chimpanzé são menores que as mesmas differenças entre o gorilha e os macacos inferiores.» ! 1! Huxley, De la place de "homme dans la nature, 3 34 HISTORIA NATURAL Os outros caracteres não teem egualmente um valor distinctivo ca- paz de justificar a creação de duas ordens separadas. A linguagem, qual- quer que seja o seu valor, indiscutivelmente grande, é todavia uma sim- ples consequencia do maior desenvolvimento intellectual do homem, uma, acquisição e não uma qualidade innata. A linguagem não existe nos pri- meiros mezes da infancia, não existe nos surdos, não existe em alguns casos pathologicos que interessam as funcções cerebraes, como a aphasia, o idiotismo e a demencia além de um certo grao; e comtudo nem a creança, nem o surdo, nem o aphasico, nem o idiota, nem o demente. deixam, no ponto de vista zoologico, de ser homens. Da religiosidade pode dizer-se o mesmo; não é attributo essencial, mao grado as affirma- ções em contrario d'algumas escólas philosophicas. Prova-nos o testemu- nho insuspeito de muitos viajantes naturalistas que o sentimento religioso é absolutamente nullo em algumas tribus selvagens; -é-0 egualmente para todos aquelles que seguem uma philosophia d'onde a idéa theologica de Deus foi proscripta. Se ha homens sem linguagem e homens sem emo- ções religiosas, como considerar taes attributos bases para uma distinc- ção entre o homem e os outros primatos? Como podem considerar-se fundamento à creação de ordens zoologicas caracteres variaveis e de ne- nhum modo essenciaes? Decididamente é indispensavel na historia natu- ral que nos subordinemos aos caracteres morphologicos; e estes, como claramente o demonstram as mais recentes e minuciosas investigações, não dão ao naturalista o direito de sustentar a opinião de Cuvier que, sob o nome de bimanos, distinguia os homens dos imo congéneres, como uma ordem se distingue de outra ordem. aid E não se pense que affirmar, como fazemos, a innanidade de uma doutrina que separa a nossa especie dos simianos, equivale a admittir como provada a theoria transformista ou genealogica. Não é preciso tanto; nós consignamos um facto positivo de semelhança morphologica, sem nos preoccuparmos, porque d'isso nos impede a natureza d'esta obra, com a explicação d'elle. Affirmando a evidente semelhança do homem mais degradado com o simiano mais perfeito, não affirmamos uma genea- logia hypothetica, não sahimos do campo rigoroso do facto. Postas estas explicações, comprehende-se que a nossa divisão de bi- manos e quadrumanos não corresponde, como no arranjo taxonomico de Cuvier, a duas ordens, mas simplesmente a duas vastas familias de um só e mesmo grupo ordinal. r MAMIFEROS EM ESPECIAL 35 Esp Pra. E: BIMANOS— O HOMEM E ça Do SM IVETE RR | ça | | de vontade, de raciocinio, de tudo quanto no seu conjuncto 9 que chamamos vida, tal é a caracteristica fundamental do orga- ismo humano que de todos os outros se distingue sómente pela perfei- da sua mechanica, em verdade complicada e subtilissima. É esta a mais geral e simultaneamente a mais justa, como iremos provando, e formar-se dos organismos vivos. “omo toda a machina o corpo humano, tem uma estatica e uma dy- a; quer dizer, podemos estudal-o como conjuncto de orgãos em ; domininio da anatomia, ou em funcção, dominio da physiologia. “ Poderiamos aqui, como se faz nos livros especiaes, expôr separada- p Ee ma destas grandes secções do estudo natural do homem. beporém ' 0 tedio ea falta de interesse que naturalmente pro - parel s cujos usos e destinos se não conhecem, preferimos, seguindo o exemplo. dos illustres e inimitaveis ilgnrisadores inglezes, Huxley e Ea, combinar a estatica e a dynamica, collocando ao lado da É omia de cada no a sua indo physiológia. fpalyn $i Ep aos Seo PÃO GERAL DA VIDA E ESTRUCTURA DO CORPO HUMANO É Bares Er) o rr Quando com um fim scientifico submettemos ao nosso exame um ani- “mal em jejum, constatamos invariavelmente um certo numero de modifi- cações que n'elle se realisam e das quaes partimos para formar uma no- “ção elementar da vida. D'essas modificações as mais notaveis e que mais -* facilmente se apreciam, são: a diminuição gradual e constante de pezo, - verificada pela balança, o abaixamento de temperatura, revelado pelo thermometro e a perda de forças musculares que o dynamometro accusa. Mas todas estas modificações significam uma decadencia, traduzem — Jum dispendio. Se o animal peza menos, se o calor diminuiu, se as for- ” Sas o abandonaram, é evidente que elle perdeu substancia e energia, é EE & 36 HISTORIA NATURAL manifesto que realisou uma despeza para equilibrar a qual não creou uma receita correspondente. Quaes são as fontes d'essa despeza, quaes são os recursos que a supprem e quaes são finalmente as consequencias que immediata ou re- motamente d'ella derivam para o individuo? O dispendio de materia e de força que d'um modo continuo é inin- terrupto se realisa nos organismos, é o que em physiologia se denomina desassimilação ; os seus factores e as suas fontes permanentes são: todos os actos realisados e toda a substancia organica regeitada sobre o mundo exterior. Calôr que se irradia constantemente para as coisas que nos cer- cam, esforços musculares ou nervosos a cada momento effectuados, sub- stancia propria que sob a fórma de urina, de esperma, de vapor d'agua, de suor ou de saliva destacamos de nós para lançar ao meio ambiente, taes são as causas da desassimilação, as fontes derivativas da despeza organica. Mas se uma despeza se realisa, é evidente que uns certos recursos existem para fazer-lhe face. No animal em jejum, esses recursos são os proprios tecidos, o organismo mesmo. O animal gasta a sua substancia, como acontece durante a hybernação, dispende à custa de si proprio, da materia de que é formado; e é por isso que o seu pezo diminue de um modo gradual e constante. Ao mesmo tempo e à proporção que a reserva organica dos tecidos vae faltando, a materia da combustão diminue; e é por isso que a temperatura abaixa progressivamente. Mas onde o combus- tivel rarta, onde a materia se esgota, esgota-se a força que é uma pro- priedade d'ella; e é por isso tambem que a energia muscular se extin- gue. As consequencias d'esta despeza progressiva são faceis de prevêr e faceis de verificar experimentalmente. Do mesmo modo que na machina de vapor os effeitos uteis, à medida que a materia de combustão se gasta sem se renovar, vão diminuindo até à extincção completa de trabalho, assim no organismo os grandes actos vitaes irão lentamente perdendo intensidade até uma completa annulação que se denomina morte. E com effeito durante o jejum, a decadencia progressiva dos actos organicos é manifesta. A circulação do sangue é cada vez menos energica; prova-o a pulsação das arterias successivamente menos apreciavel. A respiração torna-se mais espaçada, menos viva, menos profunda; prova-o a distan- cia de tempo que separa cada inspiração ou cada expiração da que se lhe segue. As secreções diminuem; demonstra-o a mais grosseira analyse quantitativa dos productos excrementicios. Os movimentos limitam-se à proporção que a fadiga ou o cansaço vão augmentando; é isto visivel na apathia que invariavelmente precede a inanição completa ou ainda no lethargo do periodo hybernal. E se o jejum persiste, se a despeza con- MAMIFEROS EM ESPECIAL 37 tinua além de certos limites, a morte é o termo inevitavel, como o de- monstram centos de experiencias e como o prova a observação de al- guns alienados que systematicamente renunciam à alimentação. Para que este resultado funesto se não realise, temos um só meio a pôr em pratica: crear ao individuo uma receita correspondente à despeza realisada. Só introduzindo em substancia alimentar, qualquer que seja a sua fórma, tanto como em calor, em pezo e em força se dispende, só fa- zendo face à materia que se gasta pela materia que se ingere, pode crear- se um justo equilibrio organico de receita e despeza fóra do qual a vida “é impossivel. Pela desassimilação regeitamos sobre o mundo exterior substancia organica; é indispensavel que, em compensação, d'esse mundo - liremos materia organisavel, que d'elle extraiamos substancia que se Ê torne nossa, que por assimilação se transforme em tecidos, em orgãos do mosso proprio corpo. Assim, equilibrio entre a receita e a despeza or- E ganica, correspondencia entre a desassimilação e a assimilação, tal é a E . . . . . ER — primeira e mais fundamental idéa que podemos formar da vida. E dize- mos a mais fundamental, porque em nenhum organismo vivo, desde o ul- timo vegetal ao primeiro dos animaes, deixa de realisar-se a dupla cor- - rente de assimilação e desassimilação, em nenhum deixa de dar-se o equilibrio entre a despeza que exigem os actos organicos e a receita creada pelos alimentos. Todos os productos inutilisados, toda a substan- cia que se perde, todas as energias que se dispersam, são compensadas pela substancia que se apropria, pela materia que tornamos nossa. Por isso diz Huxley: «Se podessemos collocar um homem sobre o prato de uma balança vertical, veriamos descer este prato a cada refeição, vel-o- hiamos subir nos intervallos e affastar-se por distancias eguaes de uma posição media que nunca poderia conservar-se por mais de alguns minu- tos.» + “Ao lado d'estes actos, os mais rudimentares e mais simples, está um outro, commum como os anteriores a todo o organismo, a reproducção, pelo qual todo o ser vivo dá origem a um novo ser da mesma natureza ou da mesma especie. “Ao conjuncto d'estas manifestações vitaes, conservadoras e prolifi- cas, por se realisarem mais ou menos perfeitamente em todos os seres organisados, desde o homem até à mais degradada planta, chamaram os physiologistas: funcções de conservação ou de vida vegetativa. Nos organismos superiores porém, novos actos veem sobrepor-se a estes que acabamos de referir; taes são os movimentos musculares, a deslocação no espaço, a percepção sensorial, o instincto e a sensação. E ! Huxley, Leçons de Physiologie élêmentaire, pg. D. 38 HISTORIA NATURAL porque são privativos da escala zoologica, chamam os physiologistas a estes actos: funcções animaes ou de relação. No homem concorrem ainda a razão e a linguagem, funcções que lhe pertencem dum modo exclusivo, que o constituem em especie distincta e que na sciencia teem o nome de especulativas. O seguinte eschema resume as divisões que acabamos de mencio- nar : ESCHEMA PHYSIOLOGICO DIGESTÃO ; CIRCULAÇÃO DE CONSERVAÇÃO prsrrração excrementicias SECREÇÕES recrementicias excremento-recrementicias ; DE PROLIFERAÇÃO REPRODUCÇÃO FUNCÇÕES E ACTOS ( h motricidade DE RELAÇÃO sensibilidade percepção sensorial DE VIDA ANIMAL ec raciocinio obcidda emotividade ESPECULATIVO | contido | linguagem Mas para que todas as manifestações vitaes se realisem é indispen- savel uma organisação apropriada, do mesmo modo que para a execução de um trabalho mechanico qualquer é necessaria a coordenação systema- tica de peças. O corpo humano é essa organisação, tão complicada no seu conjuncto e tão delicada nos seus elementos, como complexos e sub- tis são os actos porque a sua vitalidade se revela. É assim que às grandes manifestações complexas da vida, que em physiologia se denominam fwuncções, correspondem anatomicamente no corpo os apparelhos; aos actos que pelo seu conjuncto harmonico for- mam a funcção, correspondem os orgãos; as propriedades emfim, de que os actos são a synthese dynamica, revelam a actividade dos tecidos. Exemplifiquemos. No homem existe um acto vital consistindo no giro per- petuo e continuo do sangue dentro de um systema fechado de vasos; é isto o que se chama a funcção circulatoria, à qual corresponde o appa- relho vascular. Mas esta funcção, extremamente complicada, divide-se em actos distinctos concorrendo todos a um mesmo resultado: a circulação cardiaca, a circulação arterial, a capillar e finalmente a venosa. A cada . MAMIFEROS EM ESPECIAL 39 destes actos corresponde. um orgão: o coração, a arteria, o capil- E" a veia. Estes actos porém dependem a seu turno de teria aos tecidos dos orgãos nomeados; a contractilidade muscular 0; a elasticidade e contractilidade das arterias, a permeabilida- lares, a distensibilidade das veias. Se estas rodagem não não poderiam realisar-se os actos, implicando a ausencia d'es- avel ausencia das funcções. a idéa mais geral que podemos formar da differenciação ana- estatica da organisação, correspondente a uma differenciação amica ou physiologica. É o que condensamos no quadro se- DIFFERENCIAÇÃO ORGANICA in PHYSIOLOGICA : ANATOMICA dg l e al a. E + e o 1. /APPARBLHOS. 1. ORGÃOS. IH. TECIDOS. nge gba analyse da organisação, não nos riintendo com 0 re- ) simples dos sentidos mas armando-nos de instrumentos amplifica- res, alguma coisa encontramos no corpo de mais elementar e mais es- cial, moosliala; de que vamos prequar nos: A CELLULA qa: esta: cellula é o elemento anatomico por excellencia, a unidade organica, -como justamente lhe chamam os hystologistas. Neihmm organismo existe “que não seja fundamentalmente um complexo de cellulas, porque todos “08 tecidos d'ellas derivam e dºellas se formam. Para além d'estes seres * microscopicos nada se conhece anatomicamente; physiologicamente a cel- “ Jula é tambem uma unidade e um elemento, porque com ella despontam as primeiras manifestações da vida. Pode sem receio aflirmar-se que à * «descoberta d'estes infinitamente pequenos da organisação viva, deve a “Physiologia os seus mais largos progressos. «A cellula, diz Kiiss, é para eo 0 que o atomo df para o chimico, o que a linha é para o 40 HISTORIA NATURAL Dividindo as propriedades da cellula em physicas e vitaes, ire- mos resumidamente examinando umas e outras, principiando por aquel- las. Dimensões e fórma. —Se exceptuarmos uma unica, o ovulo, que é visivel a olho desarmado, podemos dizer que as dimensões das cellulas são microscopicas. O seu diametro com efeito, varia entre 4/00 a 3/10 do millimetro. À sua forma primitiva é sempre espherica; por virtude de pressões porém, esta fórma varia infinitamente. A cellula completa é formada por uma membrana limitante chamada o involucro amorpho e por um con- teúdo granuloso de materia transparente no seio da qual se acha uma pe- quena vesicula, 0 nucleo, que a seu turno comprehende uma nova vesi- cula denominada mucléolo. Quando qualquer d'estas partes deixa de exis- tir a cellula toma de preferencia o nome de globulo. Cór.—Em geral a cellula é incolor; no entanto algumas ha que affectam côres intensas, como as do sangue que são rubras e todas as pig- mentadas em que as granulações opacas affectam as côres escuras. Elasticidade. — Kiiss dá idéa d'esta notavel propriedade das cellulas nas palavras seguintes: «Um globulo achatado pela acção de uma força physica até o ponto de se tornar discoide, pode, desde que se acha em liberdade, retomar exactamente a sua forma primitiva. Muitos vêmos nós que para atravessarem uma abertura estreita, se alongam em cylindro, voltando à fórma exactamente espherica, uma vez passado o ourificio. Todos estes phenomenos se observam perfeitamente nos globulos do san- gue em circulação (no mesenterio ou na membrana digital de um rã por exemplo.)» * Composição chimica. —A composição chimica das cellulas é extrema- mente complexa. Entram n'esta composição: a agua, a albumina, a gor- dura, saes de potassio e de enxofre, o phosphoro, o calcio, os saes de ferro, a magnezia e ainda outras substancias de origem mineral. A vida da celula. — Todas as propriedades que acabamos de passar em revista são de natureza exclusivamente physica e chimica. Importa, penetrando nos dominios physiologicos, determinar as suas propriedades vitaes, respondendo a estas interrogações inevitaveis: em que consiste a vida da cellula? como nasce? como morre? À vida cellular pode definir-se de um modo resumido mas ao mesmo tempo rigoroso: uma resposta permanente aos estimulos naturaes. E com effeito, todas as propriedades por que a cellula se nos manifesta, não são realmente mais do que a reacção n'ella despertada pelo estimulo dos 1 Kiiss et Duval, Obr. cit., pg. 7. MAMIFEROS EM ESPECIAL 4 agentes naturaes: a luz, o calôr, a electricidade, a innervação, a acção dos compostos chimicos, etc. Es go O segredo de todas as transformações da cellula, a causa de todas as Ea suas modalidades vitaes, é sempre um estimulo externo ou interno, phy- - sico ou chimico, permanente ou transitorio que no elemento anatomico a uma reacção qualquer. É assim que a vitalidade do ovulo se ta ao contacto do espermatozoide, que a cellula epithelial do es- actua sob o influxo do succo gastrico, que as cellulas glandula- | parotida funccionam em presença do alimento, que o-globulo san- 9 se deforma e colore em conflicto com o oxigenio do ar, que as ulas epidermicas se pigmentam sob a acção da luz e se donde ci Desde que os estimulos cessam, as manifestações de vida am tambem. “Como nascem as cellulas? A esta pergunta respondem actualmente S theorias differentes. Uma sustenta que toda a cellula provem dire- mente d'outra cellula, do mesmo modo que um organismo provem ron, quando só o conteúdo da cellula primitiva se destaca para a “vida autonomica, quer por fissiparidade, quando o involucro e o conteú- “do tomam parte simultaneamente na segmentação. Uma outra theoria, de- fendida brilhantemente em França por muitos hystologistas, dos quaes “Robin é o principal, sem contestar as affirmações da anterior, admitte “que no seio de um liquido denominado blastema (sangue e lympha, por “ exemplo) pode tambem espontaneamente nascer o elemento cellular. Não se confunda porém esta theoria com a da geração espontanea ou hetero- — genia, que faz apparecer a vida sem antecedentes organicos como sim- “ples emergencia do mundo mineral; na theoria de Robin a cellula nasce nos blastemas que são o producto de cellulas anteriores, de sorte que em rigor a cellula provem ainda da cellula, mas muitas vezes d'um modo “mediato e indirecto. A esta theoria chamam alguns a geração espontanea “Como vive a cellula? Como revela o elemento anatomico o seu poder “dynamico? À cellula manifesta a vida ou a serie das suas propriedades phy- siologicas pela mudança de forma, pela contracção, pelo poder electivo — que exerce sobre os elementos chimicos dos liquidos organicos, pelas - suas virtudes electro-motoras, emfim pela tenacidade com que, em con- “flicto com substancias diversissimas, ella mantem a integridade primitiva “da sua composição chimica. Como morre a cellula? Em hystologia à morte da cellula ligam-se - dois sentidos diferentes: segundo um, a morte significa a perda com- — pleta de todas as propriedades dynamicas ou physiologicas; segundo ou- an Dm Gonça DR] 42 HISTORIA NATURAL tro, exprime simplesmente a perda da individualidade, a transformação da cellula em tecido. Segundo o primeiro sentido a cellula pode, é certo, subsistir na organisação, mas simplesmente como corpo estranho, como substancia inerte que apenas revela propriedades de ordem physica; é o que se realisa todas as vezes que a cellula se infiltra de gordura. Na se- gunda accepção, talvez menos legitima, o que chamamos morte não é realmente mais do que a metamorphose do elemento anatomico com per- sistencia das suas propriedades physiologicas no ser novo a que dá ori- gem. Se em, muitos casos esta metamorphose implica na verdade para a cellula uma perda de propriedades vitaes, em outros tal perda não exis- te; assim é que no tecido muscular, as cellulas que o constituem se re- presentam ainda pela propriedade vital da contractilidade, e na fibra nervosa os elementos que lhe deram origem se fazem lembrados pelas suas propriedades vitaes caracteristicas. No que deixamos dito, vae de certo modo incluida a genése dos te- cidos que derivam das cellulas quando estas, perdendo a sua individua- lidade, se transformam, ou seja pela liquefação, o que origina os tecidos circulantes (sangue, lympha), ou seja pela soldadura topo a topo, o que dá logar a fibras e placas (tecido muscular, nervoso). Ora como dos tecidos se formam os orgãos e d'estes os apparelhos que no seu conjuncto constituem a organisação, esta apparece-nos, hys- tologicamente considerada, como uma sociedade, uma vasta federação de cellulas coordenadas e dirigidas por um systema superior, o systema nervoso, verdadeiro governo central que subordina todos os elementos agremiados para manter entre elles o equilibrio e a ordem sem todavia lhes destruir a natural autonomia ou independencia. Todas as cellulas derivam de uma só preexistente, o ovulo, por segmentação de cujo conteúdo ou vittelio todo o organismo humano se constitue. Determinar o modo especial d'esta genése, é um trabalho es- pecialissimo de hystologia que não cabe nos limites d'esta obra. Suppondo o organismo constituido inteiramente pela differenciação anatomica dos orgãos e apparelhos, damos no eschema que segue um resumo d'estas partes, semelhantemente ao que acima fizemos para os actos e funcções que ellas executam : MANIFEROS EM ESPECIAL - 4 hi , k R 4 ESCHEMA ANATÔMICO Pta GUS á . E E [ bocca Ee pad Err ELE | estomago à — DIGESTIVOS intestinos psd ciRCULATORIOS rentes capillares [Ee contração e ao di “| sesprmarorios q trachea E dronchios Ee ad divididos segundo os pr gicos dos seus pro- 14 no “ductos. , 11 & 3 . — NERVOS SENSITIVOS E MOTORES R “DE VIDA | GRANDE SYMPHATICO E MEDULLA ESPINHAL CEREBELLO CO O AREA a Palas que * ORGÃOS DA VOZ E DA LOQUELLA ha t o, : « bo " ESPECULATIVA CEREBRO £ ontando « o quadro anatomico que acabamos de expôr com o co acima inserido, deduzirá O leitor facilmente a ordem que na exposição das doutrinas que se referem à historia natu- 44 “HISTORIA NATURAL FUNCÇÕES DE CONSERVAÇÃO CAPITULO 1 DIGESTÃO Como dissemos, as perdas incessantes que os orgãos experimentam em consequencia do seu funccionalismo, são periodicamente reparadas pelos alimentos. A digestão tem exactamente por fim transformar em li- quidos assimilaveis, esses materiaes nutritivos que vamos buscar ao mundo externo. No interior do nosso corpo existe uma cavidade, em que o trabalho digestivo se executa. Um longo tubo que se estende desde a bocca até ao anus constitue nos animaes superiores, como tambem dissemos já, o apparelho digestivo. O alimento uma vez introduzido n'este tubo, expe- rimenta durante o seu trajecto uma longa serie de modificações que lhe imprimem liquidos diversos dissolvendo-o e tornando-o apto a ser absor- vido e a entrar na corrente circulatoria, cuja missão é leval-o a todos os tecidos. | Antes de estudar o machinismo da digestão, faremos o estudo esta- tico dos orgãos por que esta importante funcção se executa, seguindo n'este ponto as claras e resumidas descripções de Gustave le Bon. ANATOMIA O tubo digestivo ou canal alimentar comprehende, como sabemos, a bocca, a pharynge, o esophago, o estomago e o intestino. Este longo ap- parelho é formado de tres tunicas consecutivas: uma mucosa ? que o forra interiormente, uma fibrosa collocada por cima da antecedente e uma muscular que cobre as duas primeiras. Do tubo alimentar os dois orgãos 1 O nome de mucosas é dado às membranas que forram a superficie interna de todos os nossos orgãos e são o equivalente da pelle que cobre a superficie do corpo. ml cg : MAMIFEROS EM ESPECIAL 45 e “inferiores, estomago e intestino, são cobertos além d'isso por uma mem- “ brana que se chama 0 obidionado Re E boca a a cavidade que forma a parte superior do canal alimen- la pelle e do outro pela mucosa. Os seus musculos inserem-se por as suas extremidades à pelle com a qual manteem intimas adhe- . Sob a mucosa encontra-se um grande numero de glandulas con- lo para a secreção salivar. Os labios servem para a prehensão mentos e para a articulação das palavras. abobada palatina, parede superior da bocca, é constituida por uma icie ossea coberta egualmente por uma tunica mucosa. Adiante e “lados é limitada pelos dentes e continua-se atraz por um prolonga- nto musculo-membranoso, chamado veo do palatino. Os ossos que for- a abobada palatina são extremamente finos e facilmente perfura- Us dás» seis de cada lado da linha media. Estes musculos: prendem-se pr uma das suas extremidades à lamina fibrosa que se insere ao bordo posterior da abobada palatina; pela outra extremidade prendem-se aos Ossos eo craneo ou à pharynge. Cobre-os a mucosa palatina em toda a “O bordo posterior do veo do palatino é livre e apresenta ao meio uma pequena saliencia chamada wvula. Aos lados termina por dois pro- “ Jongamentos, os pillares do veo do palatino, dos quaes um se dirige para “as paredes lateraes da lingua e o outro para a pharynge. Entre estes pil- “lares, a cada um dos lados do fundo da bocca, encontra-se uma glandula * denominada amygdala ou tonsilla, da grossura de uma amendoa regular e destinada segundo geralmente se pensa, à secreção de um liquido que facilita a passagem dos alimentos no acto da deglutição. O veo do palatino serve para fechar o ourifício posterior das fossas nasaes durante a deglutição e a articulação das palavras de modo a im- * pedir a passagem do ar e dos alimentos para a cavidade nasal. Durante - a sucção, o véo abaixa-se sobre a base da lingua e fecha completamente “a cavidade da bocca atraz, até que ella sê encha de liquido. a A lingua forma a parede inferior da bocca. Entram na sua consti- tuição seis musculos envolvidos por uma membrana mucosa, fina do lado inferior, espessa na face superior onde a cobrem grande numero de emi- mencias ou papillas. É à face profunda d'esta mucosa que se inserem por 46 HISTORIA NATURAL uma das suas extremidades os musculos linguaes; pela outra extremi- dade estes musculos inserem-se ao maxillar inferior e a outros orgãos. Como facilmente se prevê, a funcção d'estes musculos é a de mover a lin- gua em todas as direcções. Este orgão recebe uma arteria importante [o extremamente dividida a lingual e nervos que são ramificações numero- sas do Aypoglosso, do glosso-pharyngio e do lingual. No interior da cavidade boccal, guarnecendo o bordo das maxillas onde se implantam, encontram-se os dentes, orgãos destinados à masti- gação dos alimentos. Os dentes compõem-se de tres partes: a coróa, que é a parte visi- vel, a raiz, que se encontra escondida nas cavidades das maxillas ou al- veolos, e o collo, porção estrangulada que separa as anteriores. A materia que forma os dentes chama-se marfim; entram na com-: posição desta substancia o phosphato e o carbonato de cal. Na corôa o dente é coberto por uma camada fina chamada esmalte, cuja composição é analoga à do marfim mas menos rica em materias mineraes. Na raiz o marfim é envolvido por uma membrana, o periosseo alvéolo-dentario, rico em vasos e nervos. No interior dos dentes existe uma cavidade contendo materia pulposa, chamada bolbo dentario que recebe ramifica- ções nervosas e vasculares por um ourificio existente na vertice da raiz. As arterias que os dentes recebem são ramos da maxillar inferior, e os nervos são divisões do trigemeo. Os dentes dividem-se em incisivos, caninos e mollares. Os incisivos que occupam a parte anterior da maxilla, são oito, quatro superiores e quatro inferiores. Os caninos, collocados ao lado dos incisivos são qua- tro, dois em cima e dois em baixo. Os mollares que se encontram por traz dos caninos, são vinte, dez para cada maxilla. Os primeiros dentes, geralmente os incisivos, apparecem dos seis aos oito mezes de idade; aos dois ou tres annos está completa a primeira dentição, constando: apenas de vinte dentes. Aos sete annos, termo medio, estes dentes cha- mados do leite ou de muda cahem, sendo substituidos por outros definiti- vos ou permanentes. A substituição principia em sentido inverso ao da apparição primitiva; são os mollares os primeiros que se desenvolvem e os incisivos os ultimos. Só perto dos vinte annos apparecem os quatro grandes mollares chamados dentes do siso; é então que a dentição se torna completa. | Á bocca segue a pharynge, tubo de treze a quatorze centimetros de extensão. Fixa-o à cabeça úm prolongamento fibroso e separa-o da calumna vertebral um tecido cellular pouco consistente. Pelo lado ante- rior a pharynge está em relação com a parte posterior das fossas nasaes, a larynge e o veo do palatino. A pharynge é, como todos os orgãos an- teriormente descriptos, formada por trez camadas, a mucosa, a fibrosa MAMIFEROS EM ESPECIAL 47 — e a muscular. Esta ultima compõe-se de dez musculos, cinco de cada ce lado da linha media; o seu destino é produzirem o ahsitaniento da pha- * rymge no acto da deglutição e retrairem o seu diametro comprimindo - assim 0 bolo alimentar. À pharynge serve para dar passagem aos alimen- a destinam ao estomago. ago estende-se desde a pharynge, que elle continúa, até ao tem cerca de vinte e cinco centimetros de Ron ento e dous ) hago principia ao dp da sexta cd E para termi- el da undecima dorsal. No ia encontra- -Se anteriormente ago está em relação, adiante, com a trachea e pegue membrana que lve os pulmões, atraz com a arteria aorta, vaso de maximo calibre ce directamente do coração. O esophango, como os outros orgãos s, compõe-se ainda de tres tunicas concentricas. a o prolongamento do esophago. Na cavidade abdominal, o estomago à collocado abaixo do figado, acima da porção transversal do intes- D grosso e atraz das falsas costellas de que o separa o musculo dia- - O volume varia com o estado do esvaziamento ou repleção; o tical de oito a nove. O AR superior do estomago, aquelle que o faz “communicar com o esophago, chama-se cordia; o inferior que estabe- Jece passagem para o intestino, denomina-se pyloro. Este ultimo ourificio a umdado por um annel muscular que, contraindo-se, impede a pas- " sagem dos alimentos para o intestino emquanto dura a digestão esto- - macal. As tunicas mucosa, fibrosa e muscular a que nos temos referido, E entram na constituição do estomago; às tres tunicas porém, acresce uma " membrana, 0 peritoneo. A camada muscular é formada de planos sobrepostos, de fibras lon- * gitudinaes, circulares e obliquas. A camada fibrosa dá inserção aos mus- - culos. À mucosa forra a superficie interna do orgão e contem na sua * espessura um numero consideravel de pequenas glandulas destinadas à - secreção do succo gastrico. O rebordo convexo e inferior do estomago em relação com o intes- tino, chama-se a grande curvatura; o rebordo superior, representado - por uma linha de “concavidade voltada para cima e que vae do cardia ao yloro, chama-se a pequena curvatura. Chama-se grossa tuberosidade a parte mais saliente da grande curvatura, e pequena tuberosidade a sa- liencia da pequena curvatura. | | 48 HISTORIA NATURAL O estomago recebe diversas ramificações da aorta e nervos prove- nientes do pneumogastrico e do grande sympathico. Quando o estomago está cheio, a sua grande curvatura está em re- lação com uma glandula chamada baço, cuja altura é de quatro centime- tros e de doze o comprimento. O baço está ligado por uma prega do peritoneo ao diaphragma e por este separado das falsas costellas. As funcções d'este orgão são ainda hoje extremamente obscuras; de ver- dadeiramente positivo sabe-se só que elle augmenta de volume ps da ingestão das bebidas e dos alimentos. Ao estomago succede um tubo de sete a oito metros de extensão, o tubo intestinal, que se divide em intestino grosso e intestino delgado. O intestino delgado estende-se desde o estomago até ao intestino grosso, dirigindo-se alternativamente para a direita e para a esquerda. A parte superior que segue immediatamente ao estomago, denomina-se duodeno. | O intestino delgado acha-se fixo à columna vertebral por meio de uma prega do peritonco, chamada mesenterio, e separado das paredes abdominaes por meio de uma especie de avental constituido ainda pelo peritoneo e denominado o grande epiplon. Na superficie interna do in- testino encontra-se um grande numero de pequenas saliencias com o nome de villosidades intestinges, recebendo cada uma ramos arteriaes, venosos e Iymphaticos e servindo para a absorpção. Por baixo da mucosa do intes- tino encontram-se ainda pequenas glandulas em grande quantidade e por cima numerosas pregas conhecidas pelo nome de valvulas conmiventes € destinadas a retardar o bolo alimenticio na sua marcha ao longo do tubo intestinal. Os vasos arteriaes que irrigam esta porção do tubo digestivo, são ramificações da arteria mesenterica. Ao intestino delgado segue immediatamente o intestino grosso, que termina no anus. Subindo primeiro verticalmente até à altura do figado, o intestino grosso dirige-se segundo uma linha transversal até ao nivel do baço para descer depois flexuosamente até à parte inferior do osso sagrado. A porção ultima deste tubo denomina-se recto. As relações to-. pographicas do recto são as seguintes: Atraz defronta com o sacro, adiante com a bexiga no homem, com a vagina e o utero na mulher. Na sua extremidade inferior é guarnecido de anneis musculares constricto- res chamados esphincteres anaes, cujo fim é impedir a sahida das fezes. Na origem do intestino grosso encontra-se uma especie de fundo de sacco que recebeu dos anatomicos o nome de céco, porção esta onde vem abrir-se o intestino delgado e onde existe uma valvula, a ileocecal, des- tinada a impedir os alimentos e os liquidos segregados de refluirem para o intestino delgado. O peritoneo serve para envolver as visceras contidas na cavidade MAMIFEROS EM ESPECIAL 49 abdominal mantendo invariaveis as relações de umas com outras por Ro que se denominam ligamentos peritoneaes. PE e O au nro saio E | 1 se annexos do tubo digestivo, como já dissemos, as glan- S, O figado, o pancreas e o baço, orgão cujo destino, como mos, é ainda obscuro e hypothetico. da um dos lados da mandibula inferior encontram-se tres or- “glandulas secretoras da saliva: parotidas, sub-mazillares e sub- primeiras são as mais volumosas; estão collocadas aos lados da re o bordo posterior da maxilla inferior d'um lado, o canal audi- a apophyse mastoidea, saliencia ossea que fica por traz da orelha, ro. As parotidas estendem-se desde a arcada zygomatica, porção sea que liga o craneo às orbitas, até ao angulo da masxilla inferior. O d de Sténon por onde passa o liquido segregado por esta glandula, » na mucosa da bocca ao nivel do collo do segundo grande molar BRs: “inferior por diante da carotida, arteria que conduz o sangue a Ra (à) canal excretor d'estas glandulas, canal de Warton, abre- im As duas Di idiouaçios acham-se Meibcadnd sob a parte ant “rior da lingua a cada um dos lados da face posterior da mandibula infe- rior. Os cinco ou seis canaes excretores d'estas glandulas abrem-se aos Jados do freio lingual em pontos diversos da mucosa da bocca. O figado é uma glandula que serve para a secreção da bile e ainda, * segundo C. Bernard, para a formação de assucar. Está colocada esta vis- cera, a mais volumosa de todas, ao lado direito do abdomen por baixo - do diaphragma ao qual se fixa por uma prega peritoneal, o ligamento suspensor do figado, e por cima do estomago. O figado está topographi- — camente em relação: adiante com a vesicula biliar e a parede abdominal, atraz com a columna vertebral, a arteria aorta e a veia cava, um dos — grossos vasos que dos capillares conduz o sangue centripetamente ao co- ração, ao lado direito com as costellas e ao esquerdo com o estomago de que cobre uma parte. A face inferior do figado recebe a arteria he- patica e o tronco da veia das portas, canal sanguineo formado por todos - OS vasos que nascem à superficie do intestino. - O tecido do figado é formado de um numero indefinido de pequenas granulações do tamanho de um grão de milho, chamadas lobulos ; cada uma “destas pequenas granulações compõe-se de numerosas cellulas entre as “quaes se ramificam as raizes da veia das portas e da arteria hepatica e 50 HISTORIA NATURAL das quaes partem as radiculas das veias hepaticas e dos canaes biliares. Estes, nascidos todos dos innumeraveis lobulos do figado, veem reunir-se n'um só canal, o canal hepatico, cuja continuação chamada canal cholé- doco, conduz a bile a um pequeno reservatorio collocado na face infe- rior do figado, a vesicula biliar. O pamcreas tem uma estructura analoga à das glandulas salivares e é destinado à secreção do succo pancreatico. Está collocado na cavidade abdominal por diante da columna vertebral, por traz do estomago e entre as curvaturas do duodeno. Os multiplos canaes d'esta glandula reunem-se todos n'um só, canal pancreatico, que se abre no intestino delgado junto ao canal cholédoco. A collocação do baço entre os orgãos annexos do apparelho diges- tivo, póde parecer contestavel; por isso nos appressamos em dizer que este orgão não figura aqui com o mesmo titulo que qualquer dos outros, mas simplesmente porque, mao grado a obscuridade que cerca o estudo dos seus destinos, a opinião auctorisada do physiologista Schiff lhe attri- bue um papel activo na funcção digestiva, como adiante veremos. . O baço acha-se collocado por baixo do diaphragma e à esquerda do estomago. É constituido por um estroma fibroso e elastico que o divide n'um grande numero de pequenas cavidades communicantes recebendo uma vasta rede de malhas vasculares. No trajecto das divisões arteriaes existe um grande numero de pequenas vesiculas, as celulas do baço, que conteem globulos analogos aos globulos brancos do sangue e são atravessadas por uma rede de capillares finissimos. Em virtude da elas- ticidade extrema do seu tecido o baço é susceptivel de distender-se fa- cilmente voltando logo depois ao seu primitivo estado. É isto o que ex- plica as variações frequentes do volume d'este orgão. Antes de estudarmos o modo por que a digestão se effectua me- diante o exercicio dos orgãos que acabamos de descrever, é indispensa- vel que examinemos a fome e a sêde como causas que promovem a in- gestão dos alimentos e ainda a natureza chimica d'estes. E! Par e e é MAMIFEROS EM ESPECIAL 51 BITRiNA é SMA DIOS sra! “FOME E SÉDE' + Siadn Lie a) 0, como dissemos, suppridas ou equilibradas pela alimentação. prém o arbitrio da vontade e muito menos um raciocinio syste- pente elaborado que nos conduz a procurar os materiaes nutriti- is ensaveis à reparação do organismo; é simplesmente a sensibili- estando-se sob a fórma de uma impressão especial que deno- Ds Á medida que no sangue rarêa o material de reparação, ome, momento: a momento mais intensa, estimula a nossa actividade entido de extrair do mundo exterior o equivalente do consumo or- , de suffocar dentro de nós o grito de uma necessidade urgente nico meio possivel: a introducção de alimentos. “A razão e a vontade não fariam o que o simples instincto admira- “velmente consegue por um processo obscuro, mas sempre productivo. A imtensidade e a frequencia com que se experimenta a necessidade “da alimentação depende essencialmente do exercicio dos orgãos, da acti- “ vidade por elles dispendida. As necessidades alimentares de um homem “que trabalha um dia inteiro dispendendo a força dos seus musculos ou a “energia do seu cerebro, não são as de um ocioso ou d'um sedentario “que poupa os seus orgãos reclamando d'elles um minimo de esforço. A " creança que tem uma vida essencialmente activa, carece de uma alimen- tação mais amiudada e mais copiosa do que o velho cujos actos se re- duzem e restringem dentro de uma esphera infinitamente menos va- riada e menos energica. O convalescente de uma larga doença, tendo de reparar perdas organicas consideraveis, carece tambem de uma alimen- tação mais frequente e abundante que a do homem com saude, o qual dia a dia equilibra o consumo dos seus orgãos pela receita proporcional de materia ingerida. E o que se dá em nós, repete-se egualmente em toda a escala animal. A ave, por exemplo, cuja vida é infinitamente mais activa que a dos reptis, suporta muito menos do que estes o prolonga- mento do jejum. A fome no seu primeiro periodo denomina-se appetite, sensação que não é ainda um soffrimento. Pouco e pouco porém, esta sensação, este obscuro desejo organico não satisfeito, implica para nós um soffrimento, uma serie de contracções violentas do estomago, um mal estar indefinido * que pode levar, caso mais geral, ao abatimento e à prostração comple- 52 HISTORIA NATURAL tos ou ainda, como nos temperamentos nervosos, ao delirio furioso, à loucura chamada famelica. A necessidade uma vez chegada a este estado, estimula o homem por forma a fazer-lhe desconhecer tudo o que não seja a propria conservação. Os quadros atterradores das epochas das gran- des fomes, mostrando-nos o canibalismo monstruoso das mães devorando os filhos ou dos homens tirando à sorte o nome do que servirá para ali- mento dos outros, demonstra o poder incomparavel d'esta sensação que nos faz egoistas, que nos animalisa até à perda completa de todos os sentimentos generosos e à annullação momentanea de todos os caracte- res lentamente adquiridos pela civilisação mais alta, Discutiu-se por muito tempo entre os physiologistas se a sensação da fome é local, tendo, como parece, a sua séde no estomago ou se é geral, traduzindo uma necessidade de todo o organismo. À primeira d'es- tas opiniões é perfeitamente insustentavel hoje; experiencias consistindo na extirpação completa do estomago nos animaes, não seguida da ausen- cia da fome, demonstram que esta sensação se não filia no orgão a que vul- garmente a referimos. Algumas doenças destruindo uma grande parte do tecido do estomago sem por modo nenhum implicarem uma diminuição na intensidade da fome, vieram corroborar o mesmo resultado. A des- truição completa dos nervos pneumogastricos que fazem communicar o estomago e o cerebro, não destroe tambem a sensação da fome. Assim esta sensação é realmente geral, expressão de uma necessidade de todo o organismo. II Parallelamente à fome existe em nós a sensação tambem indefinivel da séde, que annuncia a necessidade de reparar as perdas liquidas do sangue. Á proporção que a quantidade d'agua contida nºeste tecido circulante vae faltando, as secreções diminuem e as mucosas seccam. A primeira que manifesta este phenomeno, talvez por excesso de sensibilidade, é a mucosa pharyngea, à qual referimos ordinariamente a sêde. Esta sensa- ção porém, é geral como a da fome; prova-o o facto de que a sêde pode extinguir-se sem fazer passar liquido algum pela mucosa pharyngea. «Os naufragos privados d'agua dôce, escreve Gustave le Bon, conseguem mi- tigar a sêde e prolongar a vida mergulhando-se no mar repetidas vezes MAMIFEROS EM ESPECIAL 53 “ao dia. » 4 Egual resultado teem obtido os experimentadores pela injecção nf d'agua nas veias. Quando a sêde não é muito intensa podemos fazel-a a! ne algum tempo pela simples immersão das mãos n'uma ge ade e a frequencia da sêde são proporcionaes às perdas isadas. O augmento das secreções, o calôr, os exercicios vio- e fazem transpirar, a ingestão de alimentos espongiosos que ab- 1 08 liquidos nutritivos, as hemorrhagias, as dijecções liquidas, as uações consideraveis de urina, como se dão nos diabeticos, são outras “causas da intensidade e frequencia crescentes da sêde. “dôr promovida pela sêde é mais violenta e mais insuportavel que fome; resistimos por mais tempo à falta dos alimentos solidos que bebidas. Quatro a cinco dias de abstenção de liquidos é geralmente te para produzir a morte. erminaremos estas considerações pela transcripção das seguintes ras de Gustave le Bon: «Expressões da necessidade sentida pelos gastos pela propria actividade, de se renovarem incessantemente | pena de extincção funccional, a fome e a sêde são os aguilhões po- “que a natureza collocou dentro de nós para que as mais indis- MMALARDE, d ALIMENTOS BRR! ot “Chamam-se assim, ia Schiff, «todas as substancias destinadas Re compensar as perdas do organismo e a dar ao sangue, em que os seus elementos são lançados por absorpção, as qualidades necessarias para “contra a composição normal aos tecidos empobrecidos.» * Os alimentos, facil é prevêl-o attendendo ao fim que visam, devem “conter na sua composição todos os elementos que entram na estructura “dos: nossos orgãos. Por isso elles proveem de todos os tres reinos da na- “tureza, mineral, vegetal e animal. Segundo uma antiga divisão, primeiro apresentada por Liebig e de- em quasi constantemente róprogunida por muito tempo em todos os li- — vros de physiologia, todos os alimentos poderiam entrar n'uma destas “Calhegorias: plasticos, como a carne muscular e a albumina, destinados , Ru : mn 1 Gustave le Bon, La Vie, pg. 05. Cu 2 Ibid. pg. 75. “3 Maurice Schiff, Leçons sur la Physiologie de la Digestion, pg. 58: 54 HISTORIA NATURAL à formação de tecidos, ou respiratorios, como a gordura e a fecula, tendo: por fim manter, pelo seu contacto com o oxigenio, o calôr animal. Esta divisão está hoje quasi abandonada, porque se reconheceu que os alimentos chamados plasticos, combinando-se com o oxigenio introdu- zido pela respiração, concorrem, como todos os outros, para a produeção de calôr, e que os respiratorios entram, como por exeimpto a dee na constituição dos nossos tecidos. Hoje os physiologistas preferem classificar os alimentos sob o ponto de vista da sua composição chimica, distribuindo-os por estes grupos: materias orgânicas azotadas e não azotadas e materias mineraes. Materias organicas azotadas, tambem conhecidas pelo nome de al- buminoides, são todas aquellas em que existe uma grande proporção de azote, como acontece nos musculos, no ovo, no leite etc. Materias orga- nicas não azotadas, são aquellas em cuja composição não figura aquelle elemento chimico, como acontece nas gorduras, nas gomas, nos assuca- res; estas substancias compoem-se exclusivamente de carbone, oxigenio e hydrogenio. Materias mineraes são todas as que proveem do mundo inorganico, como a agua, o chlorureto de sodio, o phosphato de cal, ete. Sob o ponto de vista da natureza dos alimentos ingeridos, dividimos todos os animaes em herbivoros, carnivoros e omnivoros. O homem per- tence a esta ultima cathegoria, porque se alimenta simultaneamente de materias azotadas e não azotadas. É aqui o logar proprio para dizer que “em rigor a divisão dos animaes em tres cathegorias sob o ponto de vista do regimen, não é de tal forma exacta nem implica um exclusivismo tal dessas cathegorias que não possa fazer-se passar um animal de uma para outra. A este proposito diz Gustave le Bon: «O ser que se nutre exclu- sivamente de vegetaes e aquelle cuja alimentação é habitualmente ani- mal, assimilam os mesmos principios. Poderiamos perfeitamente alimen- tar um herbivoro com carnes e um carnivoro com vegetaes, tendo só- mente o cuidado de modificar a quantidade dos alimentos a distribuir, por isso que a planta contem, sob o mesmo volume, um menor numero de principios nutritivos do que a substancia animal.» * O problema scientifico da alimentação consiste essencialmente no seguintes Estabelecidas pela analyse chimica dos productos excrementi- cios, a natureza e quantidade dos principios organicos e inorganicos eli- minados durante o trabalho de um dia, crear uma receita alimentar na qual estejam quantitativa e qualitativamente representados esses princi- 1 Gustave le Bon, Obr. cit. pg. 17. MAMIFEROS EM: ESPECIAL 55 n menos, porque isso importaria uma reparação insufliciente de | 3 porque em tal caso dariamos aos orgãos digestivos um | 9 inutil, exigiriamos d'estes orgãos, como vulgarmente a erdas Ena s por um individuo duránta um dia, sendo S do trabalho maior ou menor que elle executa, nada de “póde dizer em geral a este proposito. No entanto os physio- minima e maxima do trabalho executado por um homem ) se vê no eauinio birra PUSÍIIA: o ; y CARBONE R - LIQUIDOS . 2a 26gr 2504 380 gr. 500 a 1000 gr. MRE is AZOTE CARBONE LIQUIDOS |. a o estado de ociosidade. | 12 gr. 250 gr. 500 gr. a; ai | um trabalho ordinario.. ED mr ad ms :B0D Ed um unha activo .... 26! py; 380 » 1000 » as sa 600 gr. DS prum css. Para 750 » RR Eos ce csas di 1000 » Bebidas fermentadas......... 2000,» 56 HISTORIA NATURAL O valôr da alimentação no ponto de vista do trabalho que cada individuo tem de executar, é perfeitamente indiscutivel. Em 1841 quan- do se tratava da construcção da linha ferrea de Paris a Roen, observou- se que o trabalho de dois operarios inglezes correspondia ao de tres fran- cezes. Investigada a causa d'esta differença, notou-se que o operario pro- veniente da Inglaterra consumia fortes porções de carne, ao passo que o operario francez se alimentava quasi exclusivamente de legumes; sub- mettido este ultimo ao regimen do primeiro a desegualdade do trabalho desappareceu completamente. Esta experiencia muitas vezes repetida depois, conduziu sempre ao mesmo resultado. Mas não é sómente sobre a somma de trabalho mechanico que a alimentação exerce uma poderosa influencia; exerce-a ainda sobre o ca- racter, as aptidões intellectuaes e os sentimentos. Os modos differentes por que cada um encara e resolve a mesma difficuldade, a maneira de sentir, a hesitação ou as resoluções subitas e energicas diante dos grandes perigos, a subserviencia ou a integridade de caracter, a lucidez ou o enfra- quecimento da intelligencia, tudo isto está dependente de causas multi- plas entre as quaes figura sem contestação o regimen alimentar. Os des- alentos que muitas vezes se experimentam durante o jejum ao lembrar a idéa d'um obstaculo que é preciso vencer, desapparecem completa- mente e substituem-se mesmo por uma grande coragem depois da ali- mentação. O cerebro que n'um dado momento se sente incapaz de per- ceber uma leitura, de redigir um pensamento, de encontrar uma desejada relação de idéas, pode pela simples ingestão de uma certa quantidade de alcool ou de café encontrar facillimo o que antes se lhe affigurava im- possivel. À depressão moral do caracter que conduz a acceitar a escra- vidão como estado normal ou a austeridade do homem livre que reage contra todas as imposições feitas à sua autonomia, podem -ser egualmente uma consequencia do genero de alimentação. Por isso diz Geoffroy Saint- Hilaire: «Vêde a Irlanda e vêde a India! Poderia a Inglaterra dominar pacificamente um povo em miseria, se a batata, sua quasi exclusiva ali- mentação, não concorresse a prolongar-lhe as agonias? E para além dos mares, cento e quarenta milhões de Hindus obedeceriam a alguns milhões de inglezes se a alimentação de uns e outros fosse a mesma? Os Bra- manes, como outr'ora Pythagoras, quizeram suavisar os costumes; e con- seguiram-o, innervando os homens.» * 1 Citado por G. le Bon, Loc. cit. pg. 127. MAMIFEROS EM ESPECIAL 57 alo esta A SS Pega RE fã PHYSIOLOGIA estão tem por fim fazer experimentar aos alimentos modifica- es que os tornem proprios a serem absorvidos e assimilados. A tancia alimentar, desde que se encontra n'estas ultimas condições, Lo nome de nutrimento. Costumam dividir-se os actos que pelo seu conjuncto formam a fun- pestiva, em mechanicos e chimicos; e é d'uso estudarem-se sepa- adamente. Nós preferimos seguir a marcha que consiste em expôr es- es actos pela ordem mesma por que naturalmente elles se vão reali- Digestão oral - A digestão principia na bocca, onde os alimentos são mechanica- | e ampniCados pela mastigação e physico-Chimicamente pela saliva. — que os liquidos nutritivos attacam muito mais facilmente o alimento re- " duzido a parcellas minimas do que em grossos fragmentos; indispensa- “vel algumas vezes, porque está provado que ha substancias que não “ experimentam a mais ligeira modificação dos suecos digestivos se pré- “viamente as não dividem e trituram os dentes, como acontece aos fei- jões que, não mastigados, são expellidos em completa integridade phy- A saliva exerce um duplo papel: physico, embebendo os alimentos “e tornando mais facil a passagem d'elles para o estomago, chimico, transformando-os no sentido de favorecer a sua assimilação. - A saliva proveniente das diversas glandulas que acima nomeamos, - não é a mesma. À que deriva das parotidas é mais abundante em agua “que a segregada pelas glandulas sub-maxillares ou sub-linguaes, em ex- tremo viscosa. A saliva chimicamente considerada, é um liquido de reacção alca- lina, formado de agua tendo em dissolução substancias mineraes, como carbonatos, chloruretos, phosphatos, sulfocyanureto de potassio, etc., e uma substancia organica, a ptyclina, materia activa à qual deve as suas mais caracteristicas propriedades. A ptyalina é um corpo coagulavel como a albumina e que tem a 58 HISTORIA NATURAL propriedade de converter a fecula em glycose. Nenhuns outros corpos, nem as substancias azotadas nem-as gorduras, são atacados pela saliva. Digestão estomacal Preparada pela acção mechanica dos dentes e pela acção physico- chimica da saliva, a substancia alimentar passa, por um acto chamado deglutição, à cavidade do estomago onde as suas transformações chimi- cas se continuam. Ahi o bôlo alimentar é attacado por um liquido, o succo gastrico, que só principia a ser segregado no momento mesmo em que o alimento cae no estomago. O succo gastrico é um liquido incolôr, de reacção ligeiramente aci- da, formado de agua, de saes mineraes, de uma substancia organica par- ticular, a pepsina, e de um acido, cuja natureza não está ainda positiva- mente definida. A pepsina, principio activo do succo gastrico, é uma substancia azotada, soluvel na agua, insoluvel no alcool e que levada a uma tempe- ratura superior a 70 graus ou inferior a 0, perde completamente todas as suas propriedades digestivas. Deve notar-se que sem a addição de um acido, o sueco gastrico é incapaz de attacar os alimentos. A acção do succo gastrico exerce-se exclusivamente sobre o assucar que transforma em glycose e sobre as substancias albuminoides que dissolve e converte em albuminose ou peptona, substancia coagulavel analoga à albumina. O sueco gastrico que tem uma acção energica sobre os tecidos animaes, não se exerce sobre as paredes do estomago, porque a isso obsta a ca- mada de epithelio que forra este orgão e sobre a qual este liquido di- gestivo é sem acção. Durante a demora dos alimentos no estomago, a saliva que com elles passou a esta cavidade, ahi continúa ininterruptamente a sua acção sacarificante. Digestão intestinal Os alimentos dissolvidos e chimicamente transformados pela acção do succo gastrico, passam, depois de uma demora de algumas horas no estomago, ao tubo intestinal onde as suas commutações devem conti- nuar-se pela acção da bile, do sueco pancreatico e do succo enterico. Acção da bile.—A bile é um liquido de reacção alcalina, viscoso, amargo, de um cheiro especial e de côr verde no cadaver. Chimicamente MAMIFEROS EM ESPECIAL 59 | | considerado, compõe-se de agua tendo em dissolução saes mineraes, de — uma notayel proporção de chlorato de soda, de materia corante, PERA E ak e uma substancia gorda chamada cholesterina. lhor serem absorvidas pelos vasos chyliferos. Parece tambem de- de experiencias de Longet que a bile impede a putrefacção das s alimentares. Claude Bernard pensa ainda que a secreção do — Acção do succo pancreatico. —O sueco pancreatico é um liquido de pacção alcalina, incolôr, viscoso, facilmente coagulavel pela acção do e dos acidos energicos. Na composição chimica d'este liquido entra qndo. em dissolução saes inorganicos e um principio cp pus o sueco mantra; como a bile, ailsinão as ara como à É O aboaforma as feculas em aycose e, como o sueco gastrico, li- * quefaz as substancias azotadas. Como se vê, o seu papel é o de continuar “as acções chimicas dos liquidos digestivos que antes delle attacaram o “bôlo alimentar. + deção do succo enterico. 20 succo enterico ou intestinal é um liquido "* composto de agua, de saes inorganicos em dissolução, de albumina, de pancreatina e outros principios azotados. A acção d'este sueco é muito — amaloga à do succo pancreatico: transforma o amido em assucar, emul- " siona as gorduras, dissolve as materias azotadas e acaba de transformar — O assucar em glycose. Os alimentos de que alguma parte resistiu á acção dos liquidos digestivos que anteriormente mencionamos, vem acabar sob — o iníluxo do succo intestinal as transformações chimicas essenciaes para - a absorpção. “O papel que, segundo Schiff, na digestão incumbe ao baço seria. 0 de intervir na formação do sueco pancreatico. Este notavel physiologista observou com efeito, que depois da extirpação do baço ou ainda poste- riormente a lesões morbidas ou experimentaes d'este orgão, o producto de secreção do pancreas se encontra absolutamente incapaz de exercer 60 HISTORIA NATURAL acção alguma sobre as materias albuminoides. O modo particular por que uma tal intervenção se effectua é que se conserva ainda hoje problema- tica, não obstante as numerosas investigações dirigidas neste sentido pelos mais eminentes experimentadores. As substancias alimentares que por insufliciencia dos suecos digesti- vos se não tornaram absorviveis, accumulam-se no intestino grosso, donde, sob a forma de fezes, são lançadas para fóra do organismo. ABSORPÇÃO DOS PRODUCTOS DIGESTIVOS As substancias alimentares, uma vez digeridas ou tornadas nutri- mentos, constituem uma massa chamada chylo, que deve ser absorvida pelos vasos acima descriptos como contidos nas villosidades intestinaes. Estes vasos são: chyliferos e veias. Estes ultimos conduzem o chylo à veia das portas que o distribue no figado do qual sae para a veia cava inferior. D'ahi dirige-se centripetamente para o coração. O chylo que é absorvido pelos vasos chyliferos ou lymphaticos é tambem destinado ao coração, mas por caminho differente; primeiro é lançado no canal thora- cico, tubo vascular flexuoso que sobe ao longo do rachis ou columna ver- tebral, e por elle despejado na veia sub-clavia esquerda. D'esta veia passa o chylo á veia cava superior que o conduz ao coração. A absorpção não se faz exclusivamente no intestino delgado; mas é sem duvida n'este orgão que ella é mais activa e mais importante. A ab- sorpção pelo estomago tem sido posta em duvida e a que se faz pelo intestino grosso é pouco energica, ainda que notavel. A transformação do chylo em sangue, com o qual tem a maior ana- logia sob o ponto de vista chimico, é extremamente xapida e desconhe- cida a sua natureza intima. VASOS SANGUINEOS (Disposição geral) MNT PUT Sin AM í “eslaaq Soniesor Re nani cr 2, golo mao MAMIFEROS EM ESPECIAL 61 CAPITULO HW CIRCULAÇÃO Os alimentos transformados pela acção digestiva e absorvidos pelas veias e chyliferos, destinam-se, como sabemos, a supprir as perdas dos tecidos organicos. Estes porém, não podem ir procurar directamente ao intestino os elementos reparadores; é o sangue que lh'os leva atravez “dos vasos por um movimento propulsivo que se chama circulação. Antes de expormos a maneira especial por que esta funcção se rea- lisa, estudaremos o sangue e os orgãos que este liquido attravessa no seu giro ininterrupto. 5 SANGUE E SEUS DESTINOS As perdas incessantes do organismo reclamam uma reparação egual- mente incessante, e egualmente contínua, permanente, perpétua. Ora à primeira vista parece que a reparação é periodica, por isso que só por intervallos de tempo apreciaveis ingerimos os alimentos, que são os prin- cipios renovadores e a receita destinada a compensar a despeza do cor- po. Não é assim porém. O sangue constitue uma verdadeira reserva ali- mentar d'onde todos os tecidos vão extrair de um modo ininterrupto e constante os elementos da sua imprescindível reparação. Só periodica- mente nos alimentamos, é certo, porque a sensação da fome só se faz sentir quando no sangue rarêam os materiaes nutritivos; no entanto a renovação dos tecidos é contínua porque no liquido sanguineo, verdadeiro alimento circulante, estão contidos como em reserva todos os principios chimicos de que um organismo carece. À fome mesmo e a sêde não são realmente mais do que um grito de dôr soltado pelos tecidos quando os irriga um sangue empobrecido, deficiente, que não é o seu meio habi- tual. O sangue é realmente, como lhe chamou o eminente physiologista Claude Bernard, o meio interno, é um verdadeiro tecido liquido, ou tal- vez antes o esbôço de todos os tecidos, porque n'elle se encontram os elementos que, uma vez assimilados, formarão toda a estructura dos nossos orgãos, por complexa que ella seja. Composição do sangue. — Anatomicamente considerado, o sangue com- 62 HISTORIA NATURAL põe-se de uma parte solida, os globulos, e de uma parte liquida na qual a primeira está suspensa. Os globulos do sangue são brancos e ru- bros. Os globulos brancos, chamados tambem leucocytos são mais volumo- sos que os rubros e menos numergsos ! do que elles; a sua forma é a espherica. Segundo a opinião mais modernamente professada, os globu- los brancos serviriam para formar os rubros, sendo simplesmente uma primitiva phase da evolução destes ultimos. O numero de globulos bran- cos varia consideravelmente segundo os estados de jejum ou de repleção alimentar. No primeiro caso o seu numero diminue consideravelmente; no segundo augmenta de um modo notavel, merecendo até este exce- dente um nome especial: lewucocytose physiologica. Este ultimo qualifica- tivo emprega-se para distinguir o facto normal de uma hyperformação pathologica de globulos brancos, que acompanha certas doenças do figado, do baço e dos ganglios iinphatiós! Os globulos rubros, tambem conhecidos pelo nome de hematias, constituem a porção mais consideravel da massa solida do sangue. A forma dos globulos rubros é a de uma lente biconcava; são pequenos discos microscopicos, excavados nas suas duas faces. Physiologicamente considerados, estes globulos tornam-se notaveis pela sua extrema elas- ticidade e pelo poder de mudarem de côr sob a influencia dos gazes; 0 acido carbonico dá-lhes a côr escura que se nota no sangue extraido das veias e o oxigenio torna-os intensamente vermelhos, rutilantes, o que explica o aspecto do sangue jorrado das arterias. A côr do sangue é devida a uma substancia crystalisavel, rica em ferro e tendo uma grande affinidade pelo oxigenio; esta substancia tem sido successiva- mente chamada hematosina, hematocrystalina e hemoglobulina. Ao conjuneto das partes solidas do sangue dá-se o nome de cruor é à parte liquida o de plasma. O que atraz dissemos fallando da cellula, dispensa-nos de insistir sobre a physiologia dos globulos rubro e branco. Chimicamente considerado, o sangue offerece uma composição ex- tremamente complexa. Kiiss faz notar o facto realmente curioso de que os saes que entram na composição da parte liquida do sangue são muito differentes dos que fazem parte integrante do globulo, o que todavia não implica, como poderia parecer, o estabelecimento de reacções chimicas reciprocas; os saes da parte liquida são saes de soda e os da parte so- lida, saes de potassa. Além da agua e dos saes inorganicos entram na t A proporção dos globulos do Gireo é, termo medio, de um branco para tre- zentos rubros, 24 1ts d E ; é anita Crema ões Di a a RM E PET MAMIFEROS EM ESPECIAL 63 constituição chimica do sangue : substancias albuminoides, como a fibrina e caseina, materias sacarinas ou ghycosicas e ainda. corpos gordos, como a oleina e a margarina. Estas substancias são as que entram na composi- ção de todo o alimento completo, e aquellas a que pela analyse chimica reduzimos todos os tecidos do corpo humano. Temperatura.— O sangue é de todos os liquidos da nossa economia o que tem uma temperatura mais elevada. Esta temperatura variavel de especie para especie, é de 37 graus no homem. Verêmos, ao fallar da respiração, a origem d'esta temperatura e o motivo por que, mao grado a irradiação, ella se conserva sensivelmente constante nas condições physiologicas ou normaes. — Gazes do sangue. —Além do oxigenio e do acido carbonico existe no sangue o azote, formando o conjuncto destes gazes metade do volume do sangue. Não se creia porém que estes corpos gazozos entrem na com- posição sanguinea nas mesmas proporções em que entram na do ar atmos- pherico. N'este o azote entra como tres quartos do volume total, o oxi- genio como um quarto e o do acido carbonico existem apenas ligeiros traços. No sangue as proporções são muito differentes: o acido carbonico entra ahi como dous terços, o oxigenio como quasi um e o azote como uma, decima parte apenas. Coagulação do sangue. — Dá-se este nome ao phenomeno da solidifi- cação do sangue em uma pasta ou massa gelatinosa, como vêmos desde que elle é extraido dos vasos. À coagulação é exclusivamente devida à fibrina do sangue que, solidificando, constitue uma rede de malhas densas na qual aprisiona os elementos sanguineos, especialmente os globulos. A parte liquida escapa-se atravez d'estas malhas, formando o que se chama sóro e a parte solida fica sobrenadando com o nome de coagulo. Kiiss observa justamente que não deve confundir-se o sôro com o plasma nem o coagulo com o cruor. O sôro é o plasma sem fibrina, a qual se solidificou; o coagulo é o cruor mais a fibrina que o prende nas suas malhas. A coagulação está dependente da temperatura, da addição de subs- tancias soluveis no sangue e do contacto deste com corpos animados ou inertes. As altas temperaturas favorecem a coagulação, que o frio re- tarda. A dissolução de substancias salinas, taes como o sulfato de soda ou o chlorureto de sodio, impede egualmente a coagulação. O contacto com substancias inertes activa ou promove a coagulação, como se prova introduzindo numa veia um fio metalico que ao retirar-se vem coberto de um coagulo, não obstante o resto da massa sanguinea se encontrar no estado normal de liquefação; o contacto com corpos animados obsta à coagulação, o que nos explica o motivo por que o sangue em communi- cação com o epithelio dos vasos não coagula, quando mesmo o submette- 64 HISTORIA NATURAL mos a altas temperaturas ou impedimos a sua circulação ligando uma, veia em dois pontos. ANATOMIA O apparelho circulatorio compõe-se de uma parte central, o coração, e de uma parte peripherica, comprehendendo arterias, capillares e veias. Coração O coração é um musculo composto de duas partes reunidas uma á outra, anatomicamente analogas, mas physiologicamente distinctas: me- tade direita ou coração direito e metade esquerda ou coração esquerdo. A primeira d'estas partes do orgão recebe centripetamente de todo o or- ganismo por intermedio das veias o sangue que vem carregado de acido carbonico e que se destina aos pulmões; a segunda parte, coração es- querdo, envia centrifugamente aos tecidos por intermedio das arterias 0 sangue vivificado pela oxigenação respiratoria. O coração está collocado na cavidade thoracica ao meio do peito, por cima do diaphragma, entre os pulmões, por diante da aorta, do eso- phago, da columna vertebral e por traz das costellas. É exteriormente involvido por uma membrana chamada pericardio, que está fixada pela base ao diaphragma e reunida aos grossos vasos; isto explica porque o coração se mantem sempre no mesmo logar, não obstante os movimen- tos energicos e contínuos que executa. A forma do coração é a de um cone cujo vertice se encontra ao nivel do mamillo esquerdo, isto é à al- tura da quinta costella. Cada uma das metades do coração contem duas cavidades: uma su- perior, chamada auricula e outra inferior conhecida pelo nome de ven- “triculo. Entre a auricula e o ventriculo encontra-se uma communicação, O ourificio awriculo-ventricular, fechado por uma valvula que do lado direito se chama tricuspide e do lado esquerdo mitral. Estas valvulas que per- mittem a passagem do sangue das auriculas para os ventriculos, são con- formadas de modo a impedirem o refluxo do sangue d'estas ultimas cavi- dades para as primeiras. As valvulas são verdadeiros veos membranosos inseridos no contorno dos ourificios auriculo-ventriculares; a base d'estas membranas, que teem a forma de um funil, é coberta de pequenos cordões tendinosos que vão inserir-se a columnas musculares existentes nas pa- MAMIFEROS EM ESPECIAL 65 redes internas dos ventriculos e cujo fim é impedirem que a valvula se volte para a aurícula no momento em que o ventriculo se fecha. Os ourificios de communicação entre os ventriculos e as arterias são egualmente fechados por valvulas, as sigmoideas ou semi-lunares. Estas valvulas dando passagem ao sangue dos ventriculos para os vasos arte- riaes, impedem todavia o refluxo delle em sentido opposto. O coração é constituido por fibras musculares analogas às dos mus- culos voluntarios, as quaes se inserem nos anneis fibrosos dos ourificios ventriculares. As paredes do ventriculo esquerdo são notavelmente mais espessas que as do ventriculo direito e as auriculas sempre menos es- pessas tambem do que os ventriculos. A razão d'este facto está, como veremos, na somma de esforço ou de trabalho mechanico produzido por cada uma das cavidades. O coração recebe para sua nutrição propria as arterias coronarias ou cardiacas e é innervado por divisões ou filetes do pneumogastrico e do grande sympathico. O coração é interiormente for- rado por uma membrana chamada endocardio. Physiologicamente o coração tem sido considerado 0 primum vivens et ultimum moriens da organisação, porque em realidade a sua primeira contracção é o signal primitivo da vida, o seu ultimo esforço o indicio da morte que chega. Arterias São vasos contracteis destinados a conduzir o sangue a todas as partes do corpo. Como vimos, as suas paredes resultam da juxtaposição de tres tunicas: a externa, de tecido connectivo, a media, de tecido muscular, e a interna, fina, de cellulas elasticas e epitheliaes. As arterias recebem para a sua nutrição vasos de pequenas dimensões conhecidos pela denominação latina de vasa vasorum. Recebem egualmente um nu- mero consideravel de filetes nervosos, ramos do grande sympathico des- tinados a presidir à contracção muscular da tunica media e por isso cha- mados vaso-motores. As communicações muito frequentes das arterias umas com outras receberam o nome de anastomoses. Á medida que as arterias se affastam do coração o numero das anastomoses vae augmen- tando e o calibre dos vasos diminuindo. Todas as arterias do corpo humano nascem de dois troncos: a arte- ria aorta, nascida do ventriculo esquerdo e a pulmonar, que tem origem no direito. 66 HISTORIA NATURAL Veias São vasos destinados a conduzir o sangue de todas as partes d corpo ao coração. a A direcção das veias segue geralmente a das arterias; na cabeça e no tronco ha uma veia para cada arteria e nos membros para cada um d'estes vasos, dois d'aquelles. A estructura das veias é a mesma das ar- terias; sómente a tunica media é menos rica em fibras musculares e 0 numero dos nervos vaso-motores que recebem, é menor. A pouca con- tractilidade e elasticidade das veias explica porque ellas se deixam facil- mente distender e porque, depois de um corte, as suas paredes se en- costam de modo a não deixar passar o sangue. As veias conteem no seu interior pequenas valvulas muito approximadas que permittem a marcha do sangue da peripheria para o coração, mas impedem a sua marcha no sentido opposto, que é o da gravidade. ! Quando se abre um cadaver, as veias encontram-se cheias de san- gue e as arterias completamente vasias; este facto depende de que o coração no seu ultimo movimento muscular lançou todo o sangue para as veias d'onde não pode refluir, porque a isso se oppõe a interposição das valvulas. Copillares Os capillares são vasos de um pequenissimo calibre, intermediarios às velas e arterias com as quaes communicam. As paredes d'estes vasos não teem a estructura complexa das paredes arteriaes e venosas: são formadas simplesmente por um tecido laminoso, representante da parede interna das veias e arterias. Os capillares são numerosissimos em todas as partes do corpo, o que explica porque todo o golpe, por insignifi- cante que seja, promove a apparição de sangue. É atravez das paredes d'estes vasos que se effectuam as trocas nu- tritivas entre o sangue e os tecidos. t A descoberta d'estas valvulas, que foi sem contestação um dos factos scien- tificos precursores do descobrimento da circulação do sangue, tem sido attribuida em França a Fabricio de Acquapendente, professor de Harvey nos princípios do seculo xvi. Alguns medicos portuguezes reclamam todavia a gloria da descoberta para nós. MAMIFEROS EM ESPECIAL 67 - Os chyliferos e lIymphaticos, não porque conduzam sangue, mas por- movimento do seu conteúdo é resultado da impulsão cardiaca, ido descriptos por alguns auctores ao lado das arterias, das veias illares. O que ácerca d'aquelles vasos dissemos, tratando da ), dispensa-nos de lhe consagrarmos aqui uma minuciosa descri- MANET sá PHYSIOLOGIA 1 ro ininterrompido do sangue do coração para os orgãos e dos a O coração, constitue o que se chama a funcção circulatoria. um papel activo e imprescindivel: o coração, como centro pro- Os vasos, como canaes que coadjuvam a força inicial destinada sangue a todos os tecidos. vindo um caminho analogo ao que rn tratando da diges- remos os phenomenos circulatorios pela ordem mesma di que ente elles se realisam, Circulação cardiaca lo nome de diastoles, não se executam simultaneamente em todas idades do coração. Os movimentos d'este orgão principiam pela das auriculas, que dura um decimo de segundo e durante a riculos estão dilatados ou em diastole. ndo assim comecemos o nosso estudo pela systole auricular. “cavid - superiores ou auriculares do coração, achando-se re- etas de. sangue. que sobre ellas por movimento centripeto lançam as veias, contraem-se energicamente. Esta contracção ou systole das auri- culas tendendo a esvazial-as, poderia indiflerentemente fazer refluir o 68 HISTORIA NATURAL que tendem naturalmente a fazel-o sahir pelo ponto de menor resisten- cia; ora, ao passo que do lado das veias a resistencia oferecida ao re- fluxo é grande, porque estes vasos estão cheios de sangue, do lado do ourificio auriculo-ventricular essa resistencia é nulla não só porque o ventriculo está vazio, senão tambem porque as valvulas auriculo-ventri- culares são anatomicamente dispostas de modo a ceder ao simples pezo do sangue contido nas cavidades superiores. O sangue é pois lançado em ja- cto das auriculas para os ventriculos. Estes, uma vez cheios de sangue, contraem-se mais demorada e mais energicamente ainda do que as auricu- las. Em face d'esta contracção, reproduz-se o problema mechanico ante- rior: por onde sahirá o sangue, comprimido de todos os lados? Ha dois. unicos caminhos para a corrente sanguinea: o das auriculas e o das ar- terias; a corrente seguirá o que menor resistencia offerece. Ora, as val- vulas auriculo-ventriculares por virtude da sua conformação anatomica, oppoem-se tenazmente, como já dissemos, ao refluxo do sangue para as cavidades superiores do coração; pelo contrario as valvulas sigmoideas. que fecham o ourifício de communicação entre o coração e as arterias, abrem com extrema facilidade na direcção d'estes vasos; O sangue sa- hirá pois centrifugamente do coração para as arterias. A passagem de uma onda sanguinea desde as auriculas até às arte-. rias constitue o que se chama uma revolução cardiaca. N'esta revolução porém não existe simplesmente trabalho ou actividade; ha tambem re- pousos que vamos examinar. Depois de uma primeira systole auricular ha para as cavidades superiores um intervallo de descanço de um de- cimo de segundo; depois da systole dos ventriculos que é mais demo- rada, ha egualmente uma diastole ou periodo de descanço muscular pro- porcional, durando quatro decimos de segundo. Existe pois um momento em que o repouso dos ventriculos coincide com o das auriculas e em que portanto o coração inteiro está em descanço muscular. Calculando o tempo de uma revolução cardiaca em um segundo, o repouso do or- gão dura cinco decimos d'esta unidade. Assim o tempo de repouso do coração é sensivelmente egual ao. tempo de acção. Um trabalho continuado não poderia sustentar-se por muito tempo; as alternativas de exercicio e de descanço são uma garantia . de vida e de normalidade funccional. O numero de contracções cardiacas realisadas n'um certo espaço de tempo, varia infinitamente segundo condições de edade, sexo, estatura individual, exercicio ou repouso, diminuição ou augmento da pressão atmospherica, condições digestivas e estado nervoso. Com effeito, na creança em que o trabalho de assimilação é consi- deravel, o numero de contracções cardiacas é muito grande; um facto analogo se repete na mulher. Na edade adulta, na velhice e no sexo mas- MAMIFEROS EM ESPECIAL 69 os de elevada estatura o numero de pulsações é sempre menor do que s sujeitos medianos ou baixos, o que facilmente se explica notando que er um menor circuito, chegando assim mais rapidamente ao ponto tida. O exercicio, implicando uma derivação sanguinea mais ou violenta para todos os orgãos, bem como um exagero nas trocas as de todos os tecidos, produz inevitavelmente um excesso de ade circulatoria e, como consequencia, um numero de contracções às superior ao que tem logar durante o repouso. A diminuição essão atmospherica importa um resultado identico. As condições di- ras importam muito tambem à velocidade da corrente circulatoria. Sa- “que depois de uma refeição abundante o sangue circula com uma in- ade muito superior áquella que se realisa durante o jejum ou de- de uma ligeira ingestão de alimentos. A influencia do estado nervoso, egualdade de circunstancias, é tambem incontestavel. Todos pabiem “sob a influencia de preocupações mentaes, durante o trabalho cerebral ais ainda por virtude das emoções, a actividade circulatoria se torna S intensa. A espontaneidade com que usualmente referimos os senti- DS ao coração, não tem outro fundamento; é porque no orgão cen- da circulação se reflectem todas as impressões moraes, é porque tal traduz fielmente pelo maior ou menor numero e a maior ou menor idade das suas pulsações as nossas phases motivas ou o nosso es- ) nervoso, que a elle referimos na linguagem vulgar o sentimento. -Se, batendo contra a parede thoracica ao nivel da quinta costella la, e todo o orgão se abaixa executando um movimento de torsão - Os phenomenos que acabamos de expôr não se realisam silencio- E: ente. Pelo contrario, se encostarmos o ouvido à parede thoracica de : um animal escutamos sons conhecidos em physiologia pelo nome de rui- — dos cardiacos. Um que ouvimos e que se convencionou chamar o primeiro — ruido é surdo e prolongado; depois vem um outro, o segundo ruido, — curto e secco ao qual succede um silencio. O ruido prolongado e surdo, — O ruido curto e secco e o silencio reproduzem-se novamente e assim “sempre, d'um modo successivo e constante. À que se devem estes ruidos? O primeiro ruido, que tem o seu á “maximo de intensidade no bordo superior da quinta costela, um pouco “abaixo e fóra do mamilo esquerdo, isto é ao nivel da ponta do coração, — foi por muito tempo attribuido ao choque d'esta parte contra o thorax, 70 HISTORIA NATURAL Reconheceu-se porém que esta explicação é falsa, porque o ruido conti- nua a ouvir-se perfeitamente caracterisado quando ao animal se extirpa a porção do peito que cobre o coração. Hoje o primeiro ruido attribue- se ao jogo das valvulas auriculo-ventriculares que se fecha bruscamente no momento em que as cavidades inferiores do coração se contraem. Quanto ao segundo ruido, esse é incontestavelmente o effeito do encer- ramento subito das valvulas semi-lunares ou sigmoideas no momento em que a contracção do ventriculo cessa e o sangue se encontra dentro das arterias. Prova-o o facto de que obstando experimentalmente ao jogo das valvulas dos ourificios ventriculo-arteriaes, o segundo ruido desapparece. Circulação arterial À circulação do sangue dentro das arterias é o effeito de dois facto- res concorrentes: a contracção cardiaca, vis a tergo, e a elasticidade dos vasos efferentes. O papel do primeiro destes factores é evidente; o sangue não circularia se a isso o não obrigasse uma força inicial sempre repetida. O que a elasticidade das arterias produz no movimento da circu- lação, é tambem claro; se estes vasos fossem tubos inertes, a força pro- pulsiva do coração gastar-se-hia rapidamente nos attritos, vindo assim a onda sanguinea a morrer a uma pequena distancia do centro circulatorio. Se isto não acontece é porque as arterias dilatadas pela entrada do san- gue, tendem em virtude da sua elasticidade a voltar ao primitivo cali- bre, como que espremendo o sangue e impellindo-o assim no sentido mesmo da força inicial, que é o sentido ou direcção centrifuga. Quando o sangue entra n'uma arteria, as paredes d'este vaso elevam- se, o que é facil de verificar pelo choque que recebe o nosso dedo col- locado sobre elles. A este choque dá-se o nome de pulso. Como é facil de crêr, o pulso pode apreciar-se em todas as arterias; se usualmente preferimos a radial collocada no ante-braço, é pela simples razão de que é um vaso muito superficial e em relação com o plano resistente de um osso. De vantagens topographicas analogas gozam as arterias temporaes colocadas aos lados da fronte, de que nos servimos tambem nas explora- ções medicas de alguns amputados. Á pressão ou força que faz levantar as paredes das arterias, dá-se o nome de tensão sanguinea; este pheno- meno avalia-se pelas qualidades do pulso, MAMIFEROS EM ESPECIAL 74 Circulação capilar s O sangue passa immediatamente aos capillares, atravez les se realisam as trocas de materiaes que constituem a "estes pequenos vasos a circulação é muito lenta; pode nºelles microscopio a marcha dos globulos. A razão da pouca velo- Per Ciencia nos capilares, éa exiguidade verdadeira- jo cabem dous globulos rubros a par. Comprefisinto-de pois que “encontra fortes resistencias a vencer, o que diminue a intensi- Pagos gastos dos tecidos, passa dos capillares às veias, canaes vem reconduzil-o ao coração d'onde partiu. A força que o faz pro- mi destes vasos é ainda a vis à tergo, consideravelmente di- la de intensidade; por isso a marcha do sangue nas veias é real- em extremo. Mas além da lentidão com que caminha o e, um outro facto nos desperta a attenção: a ausencia de pulso + mão grado a elasticidade dos vasos afferentes. Este phenomeno NT 'e naturalmente perguntar porque, cedendo à força de gravidade, não pane em vez de subir. Não acontece isto, porque as val. Ro. a o sangue que as sravesto; e uma vez annulada esta força o sangue ; encontra-se exclusivamente sob a acção do impulso inicial que o faz pro- - gredir. É o que normalmente se realisa; em alguns casos porém, quando — a força cardiaca é pequena e a força de gravidade auxiliada pela posição “do corpo, ha realmente um quasi estacionamento de sangue nas veias “com dilatação simultanea d'estes vasos. É o que tem logar nos individuos 12 HISTORIA NATURAL fracos e obrigados a manter por muito tempo, como os typographos, a posição vertical; n'estes casos a corrente sanguinea retarda-se por tal modo que nas veias apparecem dilatações pathologicas conhecidas pelo nome de varizes. É preciso em casos taes auxiliar artificialmente a cir- culação. No que acabamos de dizer inclue-se naturalmente o facto de que nas veias a tensão sanguinea é muito inferior à das arterias. De resto, é muito facil reconhecer experimentalmente o phenomeno, abrindo por um golpe estas duas ordens de vasos. O sangue sae das arterias em jactos intermittentes e extensos; das veias sae, pelo contrario, cahindo sob a acção da gravidade. Inflwencia do systema nervoso na circulação O systema nervoso além da acção evidente e decisiva que exerce sobre o orgão central da circulação e à qual nos referimos já, tem ainda um largo podêr sobre a circulação peripherica ou vascular; são os ner- vos vaso-motores os agentes d'esse podêr. Demonstrou C. Bernard com efeito, que a excitação d'estes nervos ou do sympathico d'onde. deri- vam, produz a sua constrição ou diminuição de calibre e que, pelo con- trario, a paralysia ou corte directo d'elles ou do seu centro originario, implica a dilatação ou augmento de calibre dos vasos. Reconhecido isto experimentalmente e descobertas pela anatomia as relações do grande sympathico com o cerebro, ficamos de posse de um meio para explicar factos muito tempo considerados mysteriosos: a pallidez ou vermelhidão da face segundo as emoções do odio, do pudor, da colera, etc. Grande e pequena circulação Agora que nos é conhecido o modo por que o sangue se move nos diversos districtos do apparelho circulatorio sigamos a marcha completa de um globulo desde a sua partida de um ponto dado até à sua volta ao mesmo ponto, expondo o que entre os physiologistas se chama a grande e a pequena circulação. Imaginemos que o globulo está dentro do ven- triculo esquerdo. Pela contracção d'esta cavidade, o globulo é lançado na arteria aorta, das ramificações d'esta nos capilares, destes emfim nas veias cavas que o despejam na auricula direita. Este percurso é o que ÁRTERIAS E VEIAS PRINCIPAES 1, rim. — C., coração. — O. d., auricula direita. — V. d., ventriculo direito. — O. g., auricula es- querda, — V. c. s., veia cava superior. — V. c. i., veia cava inferior. — C. t., canal thoracico. — A. o., aorta. — A. p., arteria pulmonar. — Br. e., tronco brachio-cephalico. — S. e. t., arteria subclavia. — U. p., carotida primitiva. — V. j. e., veia jugular externa. — Y. j. à., veia jugular interna. -— I. p., arteria illiaca primitiva. À, e., illiaca externa, — 1, i., illiaca interna. f “tda sia 6: stiontb. et sis o p Sep dba EN. LEO is SONS EO «sta na Ea 18447 y 1] * SE ass E» F EVA E E H EUA REGA 2 Er A 144 ” Y k; Fa a f 1 Arts] EM * - Ea á Ed - e . y ed dy 4 h ; p! á E MAMIFEROS EM ESPECIAL 3 se chama a grande circulação. Mas o globulo entrado na auricula direita é lançado pela contracção desta cavidade no ventriculo do mesmo lado e d'este, tambem por uma contracção, para a arteria pulmonar que o leva aos capillares dos pulmões, d'onde se dirige pelas veias para a au- ricula esquerda. Este segundo percurso tem o nome de pequena circu- lação. Uma vez dentro da auricula esquerda o globulo passa pela con- tracção d'esta ao ventriculo esquerdo, para repetir a marcha descripta. Os nomes de pequena e de grande circulação, referem-se evidentemente à extensão da marcha realisada pelo sangue. A linha curva descripta pelo sangue marchando do coração esquerdo para o direito é evidentemente maior que a traçada entre o direito e o esquerdo. No primeiro caso, grande circulação, o sangue passa por quasi todo o organismo tendo de attravessar os capillares geraes; no segundo, pequena circulação, apenas attravessa os capillares dos pulmões. É este facto que nos explica a maior espessura das paredes musculares do ventriculo esquerdo. Esta parte do coração realisa, porque tem de impellir o sangue a uma grande distancia, maiores esforços que as outras partes; e segundo uma lei de physiologia geral, o desenvolvimento de um orgão é directamente pro- porcional ao trabalho que elle executa. CAPITULO HI RESPIRAÇÃO Como vimos no capitulo anterior, o sangue na sua passagem pelos capillares fornece atravez das paredes destes vasos os elementos nu- tritivos aos tecidos, recebendo d'estes os materiaes gastos do exercicio organico. D'esta forma o sangue que chega às redes dos capillares ge- raes e ao contacto do parenchima dos orgãos no estado de sangue arte- rial, vivificante e intensamente vermelho pela combinação dos seus glo- bulos com o oxigenio, é lançado nas veias como sangue venoso, impro- prio para a nutrição e escuro porque trocou o seu oxigenio pelo acido carbonico da desassimilação dos tecidos. Para que este sangue readquira as suas propriedades vivificantes, para que de novo se encontre em con- dições de exercer o seu papel de meio interno e de reserva alimentar, é indispensavel que elle se renove expulsando de si os materiaes gastos 74 HISTÓRIA NATURAL e adquirindo outros. É por meio das secreções exerementicias é por meio da respiração que este resultado se consegue; as secreções eliminam os liquidos inuteis e a respiração regeita o acido carbonico que substi- tue pelo oxigenio do ar. , Das secreções occupar-nos-hemos adiante; por agora exporentodil E) funcção respiratoria, seguindo marcha identica à dos capitulos anteriores. ANATOMIA: O apparelho indispensavel à realisação do funccionalismo respirato- rio, comprehende a larynge, a trachea-arteria, os bronchios e os pulmões. A larynge é um tubo musculo-cartilagineo cujo ourificio de abertura se encontra na parte posterior da bocca. O seu fim é levar àos pulmões o ar introduzido pela bocca e pelas narinas, bem como o de produzir sons. Por agora basta-nos esta idéa vaga; quando fallarmos da linguagem teremos occasião de expôr uma descripção anatomica mais completa. | A trachea-arteria é um tubo rigido, de doze centimetros de compri- mento e dois de diametro, que immediatamente succede à larynge; ter- mina á altura do espaço que separa a quinta vertebra cervical da ter- ceira dorsal. A trachea-arteria está em relação : adiante, com o tronco brachio- cephalico, grossa arteria directamente nascida da aorta, atraz, com O “esophago e aos lados com os nervos pneumogastricos, a carotida primi- tiva e a origem da aorta. A trachea bifurca-se e no ponto de divisão defronta com a arteria pulmonar tambem ramificada; por baixo encon- tram-se as auriculas do coração. A trachea é constituida por uma serie de anneis cartilagineos incompletos, em forma de €, de abertura posterior e separados por tecido fibroso e fibras musculares transversaes. Estes am- neis teem por fim manter a trachea sempre aberta. A face interna deste orgão é forrada por uma membrana mucosa coberta de celhas vibrateis e servindo provavelmente para a retenção de corpos estranhos que pos- sam introduzir-se nas vias respiratorias. Os ramos terminaes da bifurcação da trachea, denominam-se bron- chios; a sua estructura é identica à do tubo originário e o seu compri- mento é de quatro a cinco centimetros. Os bronchios penetram nos pul- mões perdendo os seus anneis cartilagineos e ramificando-se ahi indefini- damente. O bronchio direito está em relação anteriormente com a veia cava e o esquerdo, mais volumoso e mais longo que o direito relaciona-se adiante e em cima com a origem da aorta e atraz com o esophago. Os pulmões são orgãos extremamente elasticos, em numero de dois, MAMIFEROS EM ESPECIAL 75 situados na cavidade thoracica aos lados do coração. A face externa dos pulmões está encostada ás costellas; a face interna, concava, envolve o coração e grossos vasos. Os pulmões teem uma base voltada para o dia- phragma e um vertice que chega ao nivel da clavicula. Constituem o te- cido pulmonar numerosas cavidades polyedricas, separadas por elemen- tos connectivos, recebendo cada uma d'ellas ramos bronchicos, venosos, arteriaes e nervosos; estas cavidades denominam-se lobulos. As partes terminaes dos ramusculos bronchicos que se dividem no interior de cada lobulo, chamam-se vesiculas pulmonares; em torno dellas formam os vasos uma rede capillar excessivamente ténue, atravez de cujas paredes se realisam as trocas gazosas da respiração. Os dois pulmões são envol- vidos por duas tunicas denominadas plewras, as quaes são independen- tes e deixam entre si um espaço cavitario chamado mediastino. d E+s hou] “Antes de passarmos a expôr o modo por que a funeção respiratoria se executa, estudemos o ar atmospherico, esse pabulum vitor, segundo a phrase dos antigos, essa mistura gazosa donde sahem e para onde revertem os elementos chimicos da respiração. O AR O ar é um oceano gazoso fóra de cujo seio a vida dos animaes ter- restres se torna absolutamente impossivel. Em torno do nosso planeta o ar constitue uma camada, como que um involucro transparente, de oi- tenta leguas de espessura, segundo as mais recentes investigações. À sua densidade não é a mesma em toda a espessura; decresce continua- mente a partir do nivel do mar, de modo que a cinco mil metros de altura a sua rarefação é tal que a respiração se torna difficillima. Nas ascensões aerostaticas e nas subidas às altas montanhas tem-se notado sempre, o phenomeno curioso de uma intensa dispnea, ou difficuldade de respirar, acompanhada de vertigens, de aeceleração do pulso, de nau- “Seas, de arrefecimento, de hemorrhagias nasaes, etc. A este gaia clinico dão os tranidoxês o nome de mal das irontaniias: Considerado pelos antigos como um dos elementos naturaes, 0 ar é comtudo, como a analyse chimica demonstrou, uma mistura de gazes em cuja formação concorrem o oxigenio, o azote e o acido carbonico. Não quer isto dizer que accidentalmente não possam encontrar-se no ar ou- tros gazes, mas só que à sua composição normal e constante é esta em todos os pontos da atmosphera. 6 HISTORIA NATURAL A proporção do oxigenio no ar atmospherico oscilla entre vinte é vinte e um por cento. É a este gaz que o ar deve as suas propriedades vitalisantes, porque só elle pode manter as combustões que são como veremos a origem do calôr animal e só à custa d'elle se entretem a respiração; ao oxigenio deve o ar a denominação antiga e justa de pabulum vitor. Quando a atmosphera se electrisa, o oxigenio reveste uma forma particular conhecida pelo nome de ozone; n'estas condições especiaes o oxigenio adquire cheiro e as suas propriedades tornam-se conside- ravelmente mais energicas. Ao ozone que existe sempre no ar dos cam- pos attribuem alguns auctores a salubridade natural destes logares. Pen- sou-se tambem que o extremo podêr oxidante do oxigenio seria sufficiente para matar os. miasmas; (Gustave le Bon encontra na ausencia d'este gaz durante as epidemias, uma prova em abono de uma tal opinião.. O azote é um gaz inerte, não gozando na respiração talvez mais do que o papel de moderar as propriedades activas do oxigenio, Prova a experiencia que um animal introduzido em uma atmosphera de azote morre quasi instantaneamente. O azote forma quatro quintas partes da | atmosphera. O acido carbonico existe no ar em proporções minimas. A vida ani- mal é incompatível com a respiração dentro de uma atmosphera exclusi- vamente formada d'este gaz; as manifestações dynamicas do organismo | extinguem-se em taes condições, como se extingue a ignição de um corpo qualquer. Accidentalmente existem no ar outros gazes, algumas vezes toxicos, como o oxido de carbone, o ammoniaco, o hydrogeneo sulfurado, etc., bem como poeiras ou corpusculos fluctuantes, cujo estudo para o nosso fim tem pouco interesse. Além dos gazes a que nos referimos e dos solidos em suspensão na atmosphera, existe ahi ainda normalmente o vapor d'agua, cuja quan- tidade varia extremamente segundo as estações e a vegetação dos ter- renos. Ao homem e aos animaes superiores, o vapor d'agua é indispen- savel na vida; se elle não existisse, uma dessecação organica teria lo- gar e com ella a morte inevitavel. PHYSIOLOGIA Sob a designação de physiologia respiratoria, comprehendem-se duas ordens de factos diversos, ainda que uns e outros concorrentes a um mesmo fim: os actos mechanicos e physicos realisados nos orgãos cuja =” MAMIFEROS EM ESPECIAL TY ps “assim podemos exprimir-nos. Eitidárenios os dois gru- momenos separadamente. Ma se observa um individuo que respira, o primeiro facto que pelo qual medimos mesmo a intensidade da funcção, é o do ) e elevação consecutivos e intercadentes da caixa thoracica, stes actos por potencias musculares. O pulmão encostado, ssemos, às costellas, segue estes movimentos. Quando a parede 1 se levanta, o que se chama inspiração, a cavidade do peito e o pulmão dilata-se simultaneamente; ora esta dilatação pul- mplica a formação de um certo vacuo e, como consequencia, a le de introduzir no orgão uma certa 'iniiticado de ar que ibre a pressão atmospherica. Quando, pelo contrario, a parede tho- » abaixa, o que se chama expiração, o peito comprime-se, o pul- diminue simultaneamente de volume e uma certa quantidade de ar e à ser inevitavelmente expellido sobre a atmosphera. É a esta al- nativa perpetua de movimentos que em physiologia se dá o nome de 10 respiratorio, o qual produz a ventilação dos pulmões. * Vejamos agora mais minuciosamente o que se passa durante os dois ; de inspiração e expiração. iração. —Comparando a caixa thoracica e o apparelho respira- dois cones concentricos, de base inferior, podemos dizer que a jo tem por fim alongar o cone respiratorio affastando a base do augmentar as suas outras dimensões pelo affastamento das pa- es do thorax e pela deslocação da base do cone ou do mus- ema. Para bem comprehendermos este augmento de todos os 9s da caixa thoracica, é indispensavel examinar, ainda que rapi- e, à sua anatomia tanto na parte que se refere aos orgãos passi- prio Abe é o osso anterior do peito que dá articulação às dandalé as 6 Degoidginos convexo para fóra. As costellas são arcos osseos obli- movimentos o ponto fixo de cada uma é a extremidade pátéitor! “ou o cost-vertebral A columna ou rachis, que adiante descrevere- 78 HISTORIA NATURAL mos, é formada por uma serie de ossos denominados vertebras, ligados entre si por cartilagens e ligamentos. Durante os actos respiratorios o demos consideral-a immovel, Myologicamente considerado, o thorax comprehende os musculos ele- vadores das costellas, os musculos que separam estes orgãos, ou inter- costaes e finalmente o diaphragma. A acção dos primeiros determina-se com extrema facilidade, como nota Kiiss, pela simples inspecção anato- mica da direcção das suas fibras. O jogo do ultimo, do diaphragma, é egualmente facil de determinar. Não acontece o mesmo com relação aos intercostaes, cuja acção é ainda hoje hypothetica., No acto da inspiração, quando as costellas se levantam, a extremi- dade anterior d'estes orgãos dirige-se para diante, arrastando o esterno que se affasta do rachis; simultaneamente a convexidade externa dos mes- mos ossos dirige-se para fóra; este duplo movimento implica o augmento dos diametros antero-posterior e lateraes da caixa thoracica. O diame- tro vertical augmenta tambem à custa de uma deslocação do diaphragma que se abaixa avolumando a cavidade thoracica e diminuindo a abdomi- nal, Kiiss compara o jogo d'este musculo ao de um embolo girando no tubo de uma bomba, que divide em duas partes: todas as vezes que o embolo se desloca o diametro vertical de uma das partes do tubo cresce ou decresce à custa do diametro correspondente da outra parte. Pelo que acabamos de dizer, vê-se que a inspiração se faz pela des- locação das costellas e do diaphragma. Esta deslocação porém, não se faz precisamente do mesmo modo em todos os individuos; varia com a idade e o sexo. Umas vezes a deslocação predominante e mais aprecia- vel é a das costellas superiores, outras vezes das inferiores e outras ainda do diaphragma. D'aqui tres typos respiratorios admittidos pelos physiologistas: o costo-superior, o costo-inferior e o abdominal. Cada um de nós pode voluntariamente realisar qualquer destes typos. O costo- inferior é proprio do homem, o costo-superior da mulher e o abdominal da creança. Expiração,-—O movimento expiratorio, mais extenso que o pri- meiro, realisa-se por um machinismo diferente do que acabamos de exa- minar, O machinismo da expiração não exige como o inspiratorio, a in- tervenção de nenhuma potencia muscular. O involucro dos alveolos pulmonares é constituido de tecido elastico; por este motivo o pulmão tem uma forma natural e primitiva à qual tende incessantemente a voltar, como acontece nas arterias. Essa forma natural, examinada no pulmão de um ser vivo, é a de uma esponja re- trahida contra 'a columna vertebral, Sendo assim, comprehende-se sem MAMIFEROS EM ESPECIAL 79 “esforço que o acto inspiratorio é, como lhe chama Kiiss, uma violencia Teita à conformação natural dos pulmões. Desde que esta violencia cessa, desde que o esforço muscular da inspiração termina, o pulmão em vir- tude da sua elasticidade tende a realisar sa forma primitiva contrahin- “fazendo o vazio da pleura, arrastando-a comsigo e por virtude ações desta membrana com a caixa thoracica, arrastando esta CUOO Os factos que acabamos de examinar não se realisam em silencio, melhantemente ao que se dá com os actos mechanicos da circulação, Ro respiração acompanham-se de sons designados, como aquelles, pelo de uia. Os caracteres de timbre, de successão, de altura, de e destes ruidos varia, é facil prevêl-o, segundo mil condições erer ntes es; as doenças do apparelho respiratorio são uma d'ellas, a mais notavel No homem são o ouvido applicado contra a caixa thoracica per- “ [o 2] 2 E e w | parte superior onde o epithelio falta e onde o nervo olfa- ibue. A sensibilidade olfativa está muito provavelmente de- O rtrncia que noutros Fa reveste; no emtanto indi- 4 em que elle se eleva a um grao extremo. Corre nos livros de ja como facto certo que em Praga existiu pelos fins do seculo religioso que não só reconhecia as pessoas pelo olfato senão que IV. VISTA vista uma. exposição completa, tão grande é a complexidade d'esta func- e. O) nosso intuito é Outro; limitar-nos-hemos a fornecer no- if me PAM O Para fazer idéa das proporções minimas das particulas emittidas pelos cor- pos odorantes, basta lembrar que um grão de almiscar collocado n'uma sala constan- temente ii por correntes d'ar que ell aromatisa, só ao fim de muitos am- 124 HISTORIA NATURAL Descripção geral do olho O olho ou globo occular está collocado n'uma cavidade ossea que occupa a parte superior da face e se chama orbita. A posição do olho dentro d'esta cavidade é mantida posteriormente pelas connexões com o nervo optico e com os musculos que o cercam e anteriormente pela palpebra. É além d'isso supportado atraz e aos lados por grande quan- tidade de gordura. O globo occular é constituido por tres membranas e por differentes meios transparentes. Caminhando do exterior para o in- terior essas membranas são: a esclerotica, de natureza fibrosa, transpa- rente na sua parte anterior onde tem o nome de cornea; uma membrana musculo-vascular, a choroidea, continuada anteriormente com a iris; fi- nalmente uma membrana nervosa, expansão terminal do nervo optico, a retina. Os meios transparentes são de diante para traz: o humor aquoso, comprehendido entre a cornea e o cristallino; o cristallino, de forma analoga à das lentes; emfim, o humor vitreo. O globo occular tem a forma de um espheroide irregular; a linha que passa pelo seu centro e pelo da cornea, é designada pelo nome de eixo do olho e os pontos em que ella corta a superficie do globo pelo de pólos do globo occular. O plano que divide o globo do olho em dois hemispherios, um anterior e outro posterior, chama-se 0 equador do olho e os planos conduzidos pelo eixo, meridianos. Apparelho de protecção e partes accessorias do globo ocewlar Os apparelhos protectores do olho, são: a orbita e as palpebras. A orbita é uma especie de pyramide cujas paredes são constituídas por finas placas osseas. É perfurada posteriormente para dar passagem ao nervo optico. As palpebras são véus membranosos constituídos por um musculo importante, o orbicular das palpebras, e por uma fina camada de pelle ligada ás partes subjacentes por tecido cellular. Os bordos livres das palpebras conteem uma pequena lamina cartilaginea mantendo em dispo- sição vertical glandulas sebaceas denominadas glandulas de Meibomio, cujo producto lubrifica os bordos das palpebras. Pode-se considerar como dependencia destas glandulas um pequeno corpo glanduloso chamado coruncula lacrymal, situado entre as palpebras no angulo interno do olho e formado por dez glandulas sebaceas que se abrem ao exterior por MAMIFEROS EM ESPECIAL 125 H unas independentes. A face interna das palpebras é forrada por uma “ mucosa chamada conjunctiva que se dobra sobre a esclerotica, formando A o fundo de sacco palpebral, e a cobre até ao bordo da cornea. A con- Do junctiva é extremamente vascularisada; d'aqui a facilidade extrema das * suas congestões e inflammações, graves quando se prolongam, porque * podem causar a perda do sentido. A conjunctiva e a cornea são constantemente lubrificadas por um li- * quido que segregam as glandulas conjunctivas e a lacrymal. As primeiras, glandulas conjunctivaes, em numero muito variavel, uadas na espessura da conjunctiva. A glandula lacrymal está na depressão da parte externa e superior da orbita, onde é “em posição por uma prega da aponevrose orbitaria. E uma glan- “forma de cacho, de uma estructura muito semelhante à das s salivares; os seus canaes excretores, em numero de cinco a em-se na parte externa do fundo de sacco occulo-palpebral su- pouco mais ou menos a dois millimetros uns dos outros. Às lagri- roducto de secreção desta glandula, são lançadas nos canaes la- s, que partem de duas pequenas aberturas, os pontos lacrymaes, tamente visiveis no bordo do angulo interno de cada palpebra. Os s lacrymaes reunem-se em um só, continuado com o sacco lacrymal, fibrosa de quinze millimetros de extensão sobre quatro de largura, to por uma mucosa e situado acima do canal nasal em que se ter- E Hormente é cavado na parede interna da orbita e inferiormente na E osade sura, da parede interna das fossas nasaes. e As lagrimas em condições normaes, segregadas constantemente pela af glandula lacrymal, lubrificam a apérticio da conjunctiva e derivam pelos Ji; canaes lacrymaes para a cavidade do-nariz. Quando porém, a secreção é " demasiadamente abundante, não encontrando sahida rapida por estes - camaes, as lagrimas accumulam-se então no bordo livre das palpebras, in Aonde cahem sobre as faces. A influencia do systema nervoso sobre esta : ad é conhecida por todos. e, aiii Estructura — Esclerotica e cornea.—A esclerotica forma, como acabamos de dizer, o involucro externo do globo, parte que na linguagem vulgar se chama 126 HISTORIA NATURAL o branco do olho. É um espheroide que adiante se continua com a cor- nea. À esclerotica e a cornea formam ao olho um involucro perfurado apenas na passagem dos nervos e vasos. A esclerotica é uma membrana de natureza fibrosa, composta de fibras cellulares e elasticas. Não se lhe conhecem nervos. Adiante é coberta por uma membrana mucosa, rica em vasos, a conjunctiva. À cornea é formada por tres camadas: uma, constituida de Reco pavimentoso, continuação do epithelio da conjunctiva; outra, formada ex- clusivamente de tecido fibroso; a terceira emfim, uma lamina cana forrada de epithelio. Choroidea, corpo ciliar e iris.— O segundo involucro dos meios do olho é a choroidea que se applica contra a esclerotica e se continua adiante com o corpo ciliar e'a iris. É uma membrana vascular de côr escura, constituida por quatro camadas: a mais externa, camada pigmen- tar externa, em relação com a esclerotica, composta de fibras cellulares e elasticas, misturadas com cellulas pigmentares; a segunda, camada vas- cular, composta de grossos vasos introduzidos no meio de um tecido elas- tico; a terceira, camada chorio-capillar, formada por uma rede fina de capillares; a quarta emfim, comada pigmentar interna, constituida por uma fina pellicula elastica tendo, sobre a face em relação com a retina, uma camada epithelial composta de cellulas ricas em pigmento. Atraz, a cho- roidea termina por um fino annel elastico que cérca o nervo optico; adiante, continua com o corpo ciliar que se forma de duas partes, uma interna, o musculo ciliar, outra externa, os processos ciliares. O musculo ciliar, tambem chamado musculo tensór da choroidea, é um annel composto de fibras dispostas em direcção differente; as mais externas, parallelas à esclerotica, perdem-se na espessura da camada vascular da choroidea e as mais internas são circulares. Este musculo serve para fazer variar a curvatura do cristallino. Os processos ciliwres são pregas da choroidea, situadas em numero de setenta, termo medio, na face interna do musculo ciliar. Estas pregas pela sua reunião em torho do cristallino formam o que se chama a serem ciliar. à A choroidea termina adiante pela iris, que nasce no ponto de e ção da esclerotica com a cornea. É um amnel cuja parte central, consti- tue o ourifiício chamado pupilla. Da pigmentação da iris depende a côr dos olhos. A iris compõe-se de tecido cellular e de fibras musculares. D'entre estas, umas, circulares concentricas, cercam a sua pequena cir- cumferencia em volta da qual formam um pequeno annel constrictor; ou- tras, formadas de fibras radiadas vão do bordo ciliar ao bordo pupillar de modo a constituir um musculo dilatador. Por isso, segundo a natureza dos excitantes contraem-se ora as fibras radiadas ora as circulares, pro- MAMIFEROS EM ESPECIAL. 127 ndo-se assim uma constricção ou alargamento da pupila. É de obser- ão vulgar que sob a influencia da luz a pupilla diminue, como na obs- idade se. dilata. Vervo optico e retina. —A retina é uma delgada membrana quasi te, collocada entre o corpo vitreo e a choroidea com a qual yr contacto pouco intimo. É uma expansão terminal do nervo forra o interior do olho. É formada de elementos nervosos e | intimamente combinadas, formando camadas juxtapostas. A erficial d'estas camadas é formada por elementos nervosos em fibras alongadas, conhecidos em virtude da sua forma pelo nome etes ou cones que, segundo a opinião geral dos physiologistas, lituem o verdadeiro orgão da percepção luminosa. rã “Meios transparentes do olho.— Os meios transparentes do olho são: cornea, a esclerotica, o humor aquoso, o cristallino e o corpo vitreo. DOrnea e a esclerotica foram já descriptas. “humor aquoso enche o que se chama camara anterior do olho, “é uma cavidade comprehendida entre a cornea e a iris. É um liquido sparente, na quantidade de sete a oito gottas; é formado na parte interna da cornea e é renovado todas as vezes que por uma pica- | do olho se evacua. o sm ino é um corpo tambem transparente, em forma de lente vexa, situado entre a iris e o corpo vitreo no qual está como que | antado. É contido em uma tunica, a capsula do cristallino, transpa- “rentee elastica. O cristalino é formado por uma reunião de fibras prisma- as alongadas, verdadeiros tubos repletos de um liquido viscoso. ” O corpo vitreo é uma substancia semi-liquida que enche toda a ca- ade do globo occular desde a face posterior do cristalino até á re- nvolve-o uma tunica fina chamada membrana Ayaloide. Na parte nteric “esta membrana desdobra-se: um dos desdobramentos passa por te “do cristalino, outro por traz. Este ultimo tem o nome de zona de un; solda-se aos processos ciliares cujas pregas segue, emquanto que ; O anterior, se solda à capsula do cristallino. A zona de Zinn re- em ipi ao cristallino o Mo E de ligamento suspensôr. (O) Mechanismo da visão “sob o ponto de vista da visão, o olho tem sido considerado por to- O snrinicionictas como perfeitamente semelhante a uma camara. es- “cura photographica, contendo, em vez de ar, agua. «As paredes desta ca- 128 — HISTORIA NATURAL mara escura, diz le Bon, são formadas pela esclerotica; as lentes do ob- jectivo pela cornea e o cristallino; o diaphragma collocado entre as len- tes, pela iris; o papel ou tinta negra de que se cobre o interior do ap- parelho, é substituido aqui pela choroidea; emfim o vidro despolido so- bre que vem fixar-se a imagem dos objectos, é no olho a retina.» 4 As differentes partes que acabamos de ennumerar, representam no olho o mesmo papel que na camara escura. No olho, a cornea, o humor aquoso, o cristallino e o humor vitreo, servem para imprimir na retina a imagem reduzida dos corpos. O diaphragma serve no olho, como na camara escura, para regular a quantidade de luz que entra e proporcio- nal-a à sensibilidade da retina, que aqui desempenha o papel de uma placa photographica; além d'isso elle elimina os raios que passam nos bordos das lentes, corrigindo por esta forma o que em physica se deno- mina aberração de esphericidade 2. Na photographia para cada objectivo, ha uma serie de diaphragmas de abertura variavel; no olho ha um só, a iris. Como porém sob a influencia dos musculos, a abertura desta pode variar consideravelmente, o diaphragma occular exerce por si só o pa- pel de muitos. O olho sem adaptação a distancias differentes seria um apparelho extremamente incompleto. As lentes encontrando-se a uma distancia inva- riavel da retina, todas as vezes que o objecto se approximasse ou dis- tanciasse do olho, a sua imagem approximar-se-hia ou affastar-se-hia egualmente da retina, perdendo assim a nitidez indispensavel, porque em taes circunstancias os differentes pontos do objecto em vez de se representarem n'um logar unico e determinado da retina, formariam pe- quenos circulos chamados na physica circulos de diffusão que se cobririam uns aos outros. Obsta a este inconveniente fundamental a possibilidade que temos de fazer variar a curvatura do cristallino pela acção do mus- culo ciliar. A adaptação do olho a differentes distancias resulta pois das mudanças de forma do cristallino que augmentando ou diminuindo de espessura segundo se trata da visão para perto ou para longe, encurta ou alonga proporcionalmente o seu fóco. Dá-se o nome de força de accomodação ao poder que obriga o cris- tallino a mudar a sua curvatura de maneira a reunir sobre a retina os raios luminosos de objectos approximados. A distancia que separa o ponto mais distanciado que pode attingir uma visão distincta, do mais proximo, 1 Obr. cit., pg. 617. 2 Neste ponto suppõe-se da parte do leitor o conhecimento dos principios e leis mais geraes da optica geometrica. Se assim não fosse, teriamos de alongar este estudo do machinismo da visão, que não deve, em rigor, ser mais do que um resumo do que ha conhecido e provado sobre esta percepção sensorial, MAMIFEROS EM ESPECIAL “+ ) que se denomina percurso de accomodação. Na visão a grandes dis- ícias o musculo ciliar está em repouso, na visão dos objectos proxi- encontra-se em exercicio. n facto curioso constatado desde muito é que, vendo nós as ima- s “direitas, ellas se desenham todavia invertidas na retina como o va a marcha dos raios luminosos no interior do olho e como clara- te se vê examinando a imagem formada na retina de um animal re- emente morto. Como acontece pois que sendo as imagens na retina las, ellas se percebem direitas? Ainda hoje se discute a explica- Jhenomeno. luz incidindo na retina produz sobre ella vibrações moleculares e + nervo optico transmitte ao cerebro, destinado a transformal-as por ão metabolica propria em percepções. Nem todas as partes porém da ina gozam de grao egual de impressionabilidade para a luz. De toda iperficie d'esta membrana, quinze centimetros quadrados pouco mais só uma parte de um millimetro de extensão, a mancha ama- dm io hitidamente perceber os objectos. As partes circumvisinhas desta, teem uma sensibilidade extrema- e obtusa; os objectos não são vistos por ellas senão de um modo nfuso. Está n'isto a razão dos movimentos que imprimimos ao globo occular pela acção dos musculos; é indispensavel, quando se trata de vê “objectos volumosos, collocar o olho de modo que todos os pontos do ecto venham cahir sobre a mancha amarella. - Nem todos os elementos nervosos de que se compõe a retina teem ual sensibilidade para a luz. Parece mesmo que só os bastonetes e os | es de ser por ella pa e Ee: nos elementos nervosos da retina partes distinctas, impressiona- RR cod pela acção de uma certa côr e indiferentes para as outras. y tudo pa a mesma tinta. Ha pintores que, mao grado todas as criticas; - persistem em pintar os seus quadros com côres muito diferentes das na- * luraes; esta teimozia em artistas habeis, não póde explicar-se senão ad- mittindo que elles perderam a possibilidade de apreciar certas côres, “porque uns determinados elementos da retina a que uma tal apreciação “estava afecta, deixaram de funccionar normalmente. Um outro facto “ainda que facilmente se explica pela opinião exposta, é o da fadiga que - produz a visão do branco; o branco sendo o complexo de todas as cô- 9 | 130 HISTORIA NATURAL res, quando o fixamos, pômos em actividade todos os elementos da re- tina. Ha na retina um ponto correspondente à entrada do nervo optico, quasi absolutamente insensivel à acção das côres e da luz. É o que se chama ponto cego; toda a imagem que se colloca em relação com este ponto deixa de ser percebida. Uma experiencia muito simples demonstra este facto: se olharmos para dois objectos, um branco, por exemplo, e o outro vermelho, collocados sobre um mesmo plano com uma distancia determinada entre elles, fixando um com um só olho, o outro continua ainda a ser visto; mas se fizermos mover este ultimo de modo que a sua imagem percorra todo o fundo da retina, haverá um momento em que elle desapparece para nós, e que é precisamente quando a imagem se desenha no ponto cego. Outra experiencia ainda: Fechemos o olho di- reito e olhemos fixamente com o esquerdo, a trinta centimetros de dis- . tancia, a cruz abaixo impressa. Vêl-a-hemos e ao mesmo tempo a man- cha negra collocada ao lado. Se porém approximarmos lentamente de nós a pagina, fixando sempre a cruz, haverá um momento em que a | - imagem da mancha corresponde precisamente ao ponto cego, e então ella deixará de ser vista. Passado este momento a imagem da circumfe- rencia, continuando a mover o livro, desloca-se e reapparece à vista, Se substituirmos na experiencia precedente a mancha circular negra por um ponto luminoso, vêl-o-hemos desapparecer tambem mas não de um modo completo, o que prova não ser a insensibilidade do ponto cego, abso- luta. As impressões de luz e côr provocadas na retina não cessam imme- diatamente depois que os estimulos deixam de actuar; pelo contrario per- sistem ainda por um certo tempo, tanto mais longo quanto mais intensa foi a impressão recebida. É por isso que os histologistas affirmam que depois de muitas horas seguidas de trabalho ao microscopio, por muito tempo ainda, depois de terem cessado o estudo, continuam a vêr de um modo perfeitamente nitido as imagens das suas preparações. Em virtude da continuidade de impressões luminosas, quando estas se separam ape- MAMIFEROS EM ESPECIAL 131 “por distancias diminutas, não podem distinguir-se e existem para nós se foram uma só. ido explica porque um corpo incandescente gi- q no espaço nos produz a sensação de uma linha lumi- nenúa: E do , Eniólina, como todos os elementos organicos, é susceptivel de fa- a, tanto mais notavel quanto mais violento foi o exercicio que lhe nos. É isto que nos explica o motivo por que uma dada sensação xtremamente forte no primeiro momento em que é recebida, perde de com immensa rapidez se se continua. A fascinação intensa à em nós por um foco luminoso que se fita directamente, desap- co modo quasi instantaneo, realisando-se então uma como | lo sensibilidade que nos so adaptar a uma sensação que “O olho não é, como por muito tempo se julgou, um apparelho de a perfeito; pelo contrario são numerosas as suas incorreções. Con- erado simplesmente no ponto de vista de um orgão que nos é util, » nos basta para os usos diarios da vida, o olho conquistou a reputa- de um maravilhoso apparelho. Este ponto de vista porém, é falsissimo; ndo elle, não ha orgão na economia que não seja primoroso, com- , perfeito, pela razão de que o emprego ou uso funccional que delle 1oS, NOS satisfaz. Isto é uma illusão, um modo de vêr errado, pro- D de uma educação viciosa e anti-scientifica. É facil proval-o aos es- sem preconceitos. O que é com effeito, uma funcção? O resultado novimento de um orgão, o seu exercicio. O que é o uso ou fim de à orgão? A coisa util a que adaptamos a sua funcção. Ora, sendo assim, funcção depende fatalmente da estructura e constituição anatomica do “orgão e os seus usos egualmente dependem de um modo fatal do seu func- — “cionalismo. Por este modo todo o orgão serve para uns certos usos, é 0 mais adequado a elles, é insubstituivel, podendo todavia ser impottaitio- - simo. Julgar um orgão perfeito porque elle satisfaz a um fim, é esquecer — que esse fim é determinado irrevogavelmente pela propria maturárá do “orgão, é cahir no erro grosseiro dos optimistas que julgam cada coisa “natural a melhor de todas, porque não conhecem outras que a substituam. “Um homem que se serve ERA suas proprias forças para conduzir um carro, “não está por isso auctorisado a affirmar que o musculo é o melhor mo- * 132 HISTORIA NATURAL tor, ou um motor perfeito; a descoberta da força propulsiva do vapôr d'agua ou da electricidade faz resvalar a sua convicção para o ridiculo, - Porque nos servimos de um certo orgão ou apparelho para um certo fim que elle preenche, não estamos de modo algum no direito de affirmar que elle é completo, que é bom, que é perfeito. E no entanto tem sido este sempre o erro de quantos, desde tempos remotos, andam tecendo encomios à organisação do mundo, dando às suas mesquinhas illusões o nome de theorias. Não é este o ponto de vista scientifico, certamente. Para julgar da perfeição ou imperfeição de um orgão, confrontemol-o, não com Os seus usos, mas com apparelhos e orgãos da mesma natureza a que a nossa arte ou a nossa imaginação possam elevar-se; comparemos o olho aos apparelhos d'optica, o ouvido aos apparelhos de acustica. Então os defeitos tornar-se-hão evidentes, e a falsa idéa de um preten- dido maravilhoso, dissipar-se-ha como fumo. Considerando a questão relativamente ao apparelho visual, podemos dizer que não ha um unico defeito dos que a physica aponta nos instru- mentos d'optica, que o olho não tenha. Aberração de esphericidade e de refrangibilidade, irregularidade de superficies, falta de transparencia nos meios refringentes, sensibilidade obtusa em grande parte da retina, tudo isto são imperfeições do orgão da vista. Helmholtz chega a dizer que se um occulista nos apresentasse um instrumento tão cheio de imperfei- ções, ficariamos auctorisados não só a recusar-lhe a obra senão tam- bem a acompanhar a recusa de palavras asperas. Sendo o orgão assim imperfeito, não admira que o sejam egualmente as suas*funcções. Das imperfeições funccionaes podemos fazer dois grupos: umas physicas, outras psycologicas. As primeiras comprehendem as limita- ções da visão, procedentes da imperfeição do olho como simples ins- trumento optico; as segundas referem-se ás falsas apreciações intel- lectuaes a que nos conduz o olho como instrumento physiologico da percepção sensorial. Ás primeiras pertencem a impossibilidade de vêr para além de certos limites, aliás restrictos, bem como a dificuldade de fixar os corpos muito diminutos. Ás segundas pertencem todos os erros psychicos de apreciação, vulgarmente conhecidos pelo nome de ilusões d'optica. Citemos d'este ultimo grupo algumas. Para não fatigar a attenção do leitor limitar-nos-hemos a reproduzir duas, mencionadas nos livros de Delbocuf A PSYCOLOGIA COMO SGIENCIA NATURAL € no de Bernstein já citado. São extremamente curiosas. Uma das mais communs é a que primeiro apresentou o physiologista MAMIFEROS EM ESPECIAL 133 | | uma figura que tem o seu nome. Consiste esta illusão em per- no convergentes, linhas paralelas cortadas por outras tambem ts da NX NA A e k NN ND NIX Re NEM NX : Re en IN A! A! B' ia ” ê Na ar Pa as linhas À e B, perfeitamente ARES pare- 1 todavia convergentes no sentido da margem interna d'esta pagina. a segunda fue as linhas A”, A” e B', tambem parallelas não parecem 134 HISTORIA NATURAL sél-o; as linhas A! e A” parecem convergir entre si n'um sentido op- posto ao da convergencia de A” e B/. Ao lado d'estas illusões podemos collocar as que se referem ao mo- vimento, às côres e à grandeza dos objectos. Quando por muito tempo fixamos um objecto que se move em sentido circular, ainda depois que cessamos de fixal-o parece-nos que tudo gira em torno de nós. Quando nos demoramos seguindo com a vista uma queda d'agua e tentamos depois fixar os rochedos que ficam por traz, parece-nos que estes se movem n'um sentido ascencional. O facto é de- vido provavelmente aos movimentos rapidos que o globo occular fica por muito tempo ainda executando depois que cessou o movimento que elle seguia. As illusões visuaes em relação a côres são extremamente vulgares. Bernstein a este proposito cita experiencias comprovativas, muito sim- ples. «Tomemos, escreve este auctor, um papel verde e collemos sobre elle um pequeno quadrado de papel branco; lancemos depois por cima de tudo isto uma folha de papel de sêda fino, branco e bastante trans- parente de modo que a folha inferior possa ser vista atravez. O pequeno quadrado parecerá então manifestamente colorido de vermelho, emquanto que o resto da superficie parecerá branca. Quando se mostra esta pre- paração a um individuo desprevenido e que não sabe portanto o que está por baixo da folha branca de sêda, elle julgará que o quadrado é realmente vermelho e não reconhecerá a tinta verde do fundo. Nas mes- mas condições, um quadrado branco sobre um fundo vermelho parecerá verde, um quadrado branco sobre um fundo azul parecerá amarello e reciprocamente.» ! Os factos d'esta natureza, explica-os Bernstein assim: «Explicam-se pelo erro que commettemos sobre o que se chama branco. Consideramos como branco o corpo que reflecte todos os raios coloridos na mesma relação em que estes raios se acham contidos na luz solar. Habituamo-nos porém a pequenas modificações n'esta relação e conside- ramos tambem estas pequenas cambiantes como sendo branco. É o que acontece no caso referido acima; tomamos por branca uma superficie co- rada coberta de papel branco. Resulta d'aqui que não tomamos o branco do pequeno quadrado por branco verdadeiro mas por um branco modi- ficado pela côr contrastante.» 2 Na avaliação da grandeza dos objectos, os erros que commettemos são vulgares e numerosos. Um, conhecido de todos, é o que consiste em 1 Bernstein, Obr. cit., pg. 138. 2 Ibid., pg. 199. MAMIFEROS EM ESPECIAL 135 “ altribuir à lua proporções tão insignificantes que nos levam a comparal-a a objectos do nosso uso commum. ENA as sit: distro isto | V. OUVIDO 4 mta TARDE Bag ae o. xpiiPOR esto sentido percebemos o som e avaliamos as suas qualidades [ , de timbre, intensidade, duração e altura. lhantemente ao que acabamos de fazer para os outros orgãos ão sensorial, estudaremos em separado as partes anatomica e ica do ouvido. Descripção geral do ouvido - composto de trez partes: o ouvido externo, que comprehende o hão e o canal auditivo; 0 ouvido medio ou caixa do tympano; e fi- x ente o ouvido interno ou labyrintho. “O pavilhão é uma lamina cartilaginea de forma muito irregular, co- “de pelle e musculos chamados auriculares inteiramente atrophia- dos e inuteis no homem, mas desenvolvidos e fortes em alguns animaes. O canal auditivo externo é cartilagineo à entrada e osseo dentro. coberto de pelle e contem glandulas secretoras do cerumen, materia o isistente que retem os corpos exteriores na sua passagem para 0 ou- o medic — A membrana do tympano, formada de tecido conjunctivo de fibras circulares e radiadas, encontra-se na terminação do canal auditivo ex- terno, À membrana do tympano acha-se distendida como a pelle de um ; “tambor sobre uma especie de quadro osseo que faz corpo com o tempo- Pal: forrada internamente por uma mucosa, reduzida a uma camada de - epithelio pavimentoso. O ouvido medio ou caixa do tympano é uma cavidade aberta no ro- - chedo entre o canal auditivo externo d'onde recebe as ondas sonoras € “O labyrintho para o qual as transmitte. Com o canal auditivo externo — communica por um ourificio apenas, tapado pela membrana do tympano; “com o labyrintho communica por duas aberturas chamadas janella oval e — jamella redonda, fechadas tambem por duas finas membranas. Attravessa “O ouvido medio em toda a sua extensão uma corrente de pequenos os- sos articulados entre si por ligamentos e conhecidos pelo nome de mar- 136 HISTORIA NATURAL tello, bigorna, osso lenticular e estribo. Estes nomes são dados tendo em attenção a forma dos pequenos ossos e são rigorosos. Esta corrente fixa-se do lado externo à membrana do tympano pelo martello e do lado interno pelo estribo à membrana que fecha a janella oval. A estes pequenos os- sos inserem-se musculos destinados a pôl-os em movimento. Quando pela acção de taes musculos os ossos são trazidos para a parte interna, a membrana do tympano é arrastada com elles; em virtude porém da sua elasticidade, ella volta rapidamente à posição primitiva desde que a contracção dos musculos cessa. O ouvido médio prolonga-se anterior- mente até à cavidade superior das fossas nasaes pela trompa de Eusta- chio e posteriormente pelas cellulas mastoideas até à espessura da porção inferior do osso temporal. As cellulas mastoideas são pequenas cavidades destinadas, segundo crêem os anatomicos, a tornar maior a exigua cavidade do tympano. A trompa de Eustachio é um tubo que se estende desde o ouvido interno até à pharynge, onde tem um largo ourificio por traz da abertura anterior das fossas nasaes. Este tubo estabelece uma communicação per- manente entre o ar da caixa do tympano e o ar exterior, por maneira que a pressão supportada pelas duas faces da membrana é sempre egual, condição favoravel, como em physica se prova, ás suas vibrações. O ouvido interno ou labyrintho, assim chamado pela extrema com- plexidade da sua estructura, é constituido por trez partes: uma média, o vestibulo, que segue à caixa do tympano; uma anterior, o caracol; uma posterior emfim, os canaes semi-circulares. Todas estas partes são forradas por uma membrana denominada labyrintho membranoso onde O nervo acustico se ramifica. : O vestibulo é uma cavidade ovoide aberta no rochedo. Está collocado por um lado entre a caixa do tympano e o canal auditivo interno, por outro lado entre o caracol e os canaes semi-circulares que se abrem nas suas paredes. Os canaes semi-circulares são em numero de trez e abrem-se por um ourifício no vestibulo. O caracol, assim chamado pela sua semelhança com a casca d'este animal, é constituido pelo enrolamento de um cone vasado sobre um mas- siço. Forma uma saliencia collocada anteriormente ao vestibulo entre a caixa do tympano e o canal auditivo interno. O interior do caracol é di- vidido em dois canaes por um septo formado por uma parte ossea e ou- tra cartilaginea. Um d'estes canaes, chamado rampa tympanica contém apenas liquido; o outro, rampa vestibular acha-se dividido em trez ca- naes por duas membranas. Os dois superiores conteem egualmente li- quido só; o outro, inferior, contem o orgão de Corti de que fallaremos adiante, MAMIFEROS EM ESPECIAL 137 “Como atraz dissemos, o ouvido externo é forrado por uma mem- na, 0 labyrintho membranoso. Esta membrana fina recebe, como tam- RR msantos, o nervo acustico, e molda-se exactamente sobre o laby- O 08SC0. Esta membrana é formada pelo conjuncto de pequenas mem- : em volta d'estas, encontra-se um liquido que as separa das pa- des osseas e nas cavidades que ellas circunscrevem acha-se um outro que espalha as expansões do nervo acustico. Á massa fluida dá-se tomia o nome de liquido de Cotugno. Nºeste BRR encontram-se de carbonato de cal. Bigão de Corti é um conjuncto de cellulas, de fibrillas, de placas los. Apresenta à sua superficie cêrca de trez mil artáias, regu- é dispostas ao lado umas das outras e communicando com as ter- “do nervo acustico. Segundo Helmholtz ellas teriam por funcção pôr os sons. Cada uma d'estas arcadas é com effeito, um corpo elas- ue à maneira das cordas de um instrumento não vibra espontanea- ie, mas apenas quando o ar lhe imprime uma vibração correspon- * ao som que ella pode produzir. ) nervo acustico que preside à audição penetra no ouvido pelo a “auditivo interno, canal osseo que se estende desde a face poste- or do rochedo até ao vestibulo e à base do caracol. Ao entrar n'este anal o nervo acustico divide-se em dois ramos: um anterior ou cochleano, ermina em uma especie de turbilhão formado por uma lamina enro- | em espiral; o outro, posterior ou vestibular, que se distribue em os differentes do labyrintho membranoso. ts Mechanismo da audição aê ) o canal auditivo communicam-se à membrana do pino: Pira movimentos desta transmittem-se pela corrente dos pequenos ossos É à membrana quo fecha a janella oval e por esta ao liquido « contido no relacionadas com as ramificações ão nervo acustico; estas cordas vibram “Cada uma a unisono de um som determinado e as suas vibrações, com- municando-se às divisões do nervo acustico, são por este levadas até ao cerebro onde tem logar o phenomeno da percepção. Pode tambem acon- tecer, caso menos geral, que as vibrações communicadas ao liquido do la- byiintho pela membrana do tympano e pela corrente dos pequenos ossos, “tenham seguido um outro caminho. É facil comprehendel-o desde que nos “Jembremos de que o liquido pode ser posto em movimento pelos ossos 138 HISTORIA NATURAL que o cercam. É este o caso que se realisa quando percebemos os sons de um relogio collocado entre os dentes, ou ainda quando ouvimos com a cabeça mergulhada em agua. Ha É esta a idéa geral e synthetica do machinismo da audição. Basil a tornar completa importa examinar isoladamente a funcção de cada uma, das partes constitutivas do ouvido, como vamos fazer. rs O ouvido externo representa o papel de uma corneta acustica; é um simples collector de sons. As suas pregas servem, segundo a opinião mais geralmente acceite, para que as ondas sonoras sejam sempre per- pendiculares ao pavilhão, o que muito importa para que a condensação d'ellas seja a mais perfeita e a nitidez dos sons a mais completa. Se: enchermos com cêra ou outra substancia analoga todas as anfractuosida- des do pavilhão, ouvimos os sons menos clara e distinctamente; a plani- ficação da orelha obtida por este processo implica uma percepção menos nitida dos sons, porque as ondas que os produzem não incidem sobre ella na direcção exacta do canal auditivo. As ondas sonoras que entram: no canal auditivo externo teem por seu intermedio duas vias de com-: municação para o interior: uma é a columna d'ar contida m'este canal; a outra é a parede osteo-cartilaginea que a forma. As ondas sonoras que entram directamente no canal auditivo externo dirigem-se sem perda de intensidade e de um modo immediato para a membrana do tympano;' isto explica porque n'este caso os sons são mais fortemente sentidos. | A membrana do tympano em virtude da sua elasticidade e do grao de tensão em que está mantida, transmitte de um modo rigoroso por in- termedio da corrente dos ossos do ouvido, todas as vibrações que re- cebe à membrana da janella oval. De resto a tensão da membrana do tympano varia segundo a acção dos musculos inseridos nos ossos do ou- vido, nomeadamente do martello, produzindo uma tal variação accommo- dações diversas da membrana ás alturas e intensidades differentes dos sons. Para comprehendel-o basta recordar o principio physico de que quanto mais distendida é uma membrana menor é a amplitude das suas vibrações e maior é o seu numero. À pressão egual das duas faces da membrana do tympano é, como deixamos prevêr, condição favoravel à transmissão das ondas sonoras; é por isso que quando a trompa de Eus- tachio por qualquer motivo se fecha, implicando este facto, como sabemos já, uma variação da pressão do ar exterior, os sons são dificil e obscu- ramente percebidos. Suppondo as ondas sonoras transmittidas pela corrente dos ossos á MAMIFEROS EM ESPECIAL 139 brana da janella oval, examinemos agora o papel que representa o ido interno ou labyrintho. Da janella oval as ondas sonoras são trans- as ao liquido contido nas rampas do labyrintho e por intermedio e à membrana da janella redonda. Então o labyrintho pelas suas trez fibras decompõe a multiplicidade d'essas ondas, porque, como vimos, 1 que cada uma das fibras aprecie apenas um certo e dates “som. Isto nos explica o motivo porque no meio da multidão iramente enorme dos sons de uma orchestra, o nosso ouvido da um d'elles sem os confundir e sem deixar de notar a mais discordancia entre elles. Do mesmo modo que quando lançamos a a um lago e o agitamos, a vista não confunde as ondas então Ydas no seio do liquido, o ouvido tambem não confunde antes descri- igorosamente todas as ondas sonoras que no seio do ar produzem brações de numerosos instrumentos. Assim o labyrintho membra- lecompõe as ondas complexas em ondas simples do mesmo modo azem os apparelhos em physica denominados resonadores. Pelo que precede vê-se ser extremamente provavel que o que nós s o som seja um complexo de sensações cerebraes e não uma parece inculcal-o a linguagem vulgar. nervo. acustico, como o nervo optico, fatiga-se e perde pela in- le e duração demasiada dos sons, a possibilidade de aprecial-os. | cansaço, uma paralysia do ouvido, como a ha da vista. Além. D, da mesma maneira que uma luz muito viva, longe de favorecer a “a perturba, fascinando, assim um som demasiado intenso é per- | como um ruido confuso e insupportavel. ) nervo acustico, como o nervo optico, possue tambem a proprie- “de reter impressões, de as conservar para além do momento em je são recebidas. Do mesmo modo que as imagens longo tempo fixa- , podem persistir na vista ainda depois que d'ellas nos affastamos, tam “as impressões auditivas muito prolongadas ficam vibrando ouvid: “depois mesmo que cessaram de actuar as suas causas produ- o» ras É por isso que o ruido de um carro em que fizemos uma longa dg ct nos fica RR e rmento resoando no ouvido por muitas ho-: VI. SENTIDO MUSCULAR Quando no principio deste capitulo fallamos do tacto, dissemos que por este sentido se aprecia até certo ponto o pezo dos corpos. A res- 140 HISTORIA NATURAL tricção por nós imposta, justifica-se plenamente como vamos vêr. Collo- quemos uma das mãos sobre um plano resistente e lancemos por cima della o pezo de um kilogramma, por exemplo. A pressão exercida por este pezo sobre a mão, obrigando-a a um contacto mais intimo com o plano de supporte, determina em nós uma certa sensação. Mas se ao ki- logramma addicionarmos agora o pequeno pezo de uma ou duas onças, a sensação que experimentamos não varia, apesar de ter varido o pezo total recebido pelo orgão. Para que cheguemos a apreciar uma mudança qualquer na intensidade da sensação primitiva, é necessario que o pezo acrescentado seja grande. É pois indubitavel que o tacto não é sentido proprio para a apreciação dos pezos, porque não dá conta da existen- cia d'elles ao cerebro senão depois que excedem certos limites. É mesmo de notar que se nas condições que acabamos de referir, ao pezo inicial junctarmos um outro muito consideravel, não é propriamente uma sen- sação de pezo o que experimentamos então, mas antes de dôr. Não é isto o que acontece se em vez de apoiarmos a mão que sus- tenta o pezo sobre um plano, a conservarmos livre, exercendo no levan- tamento de corpos a nossa força muscular. Se conservarmos estendido o braço e com elle o pezo figurado na experiencia precedente, a menor ad- dição que se lhe faça será sentida e apreciada, porque se traduz por um acrescimo de esforço, verdadeira unidade de medida. A um braço que se | mantem em contracção mais ou menos violenta para sustentar um certo pezo, qualquer outro que se lhe juncte, embora pequeno, será desde logo justamente apreciado. E se o pezo addicional fôr, como figuramos na ex- periencia precedente, excessivo, sentiremos não, como n'aquelle caso, uma sensação de dór, mas uma sensação de impotencia. Apreciamos os pezos pelos esforços dispendidos em os subtrair à acção da gravidade ou, O que vale o mesmo, em os sustentar. Dizemos que Oo corpo a, peza mais do que o corpo b por exemplo, quando para sustentar 0 primeiro precisamos de fazer um esforço maior do que para sustentar o segundo. É a este sentido especial de apreciação de pezo, muito diferente do tacto, como acabamos de vêr, que os modernos physiologistas chamam sentido muscular. Para sermos inteiramente rigorosos devêramos mesmo attribuir a este sentido e não ao tacto a apreciação dos volumes e das formas. Com effeito, julgamos do volume pela continuidade mais ou menos demorada da resistencia que a superficie de um corpo offerece à palpação. E como se avalia uma tal resistencia senão pelo esforço gasto a combatel-a? Da avaliação das formas pode repetir-se o mesmo. Por isso diz Bain: «Pode-se reconhecer em certas combinações, além do tacto, um sentido muscular delicado. Ha mesmo sensações que são commumente comprehendidas sob MAMIFEROS EM ESPECIAL 141 nação de tacto e que nada teem que vêr com a pelle, como o o pezo, o volume, a forma; a grande precisão com que Rm unicamente das sensações musculares.» * song UNCÇÕES ESPECULATIVAS CAPITULO 1 O SYSTEMA NERVOSO es que até A temos descripto encontram-se sob a depen- “e systema especial que é como que o director e regulador “ellas, o laço que as une estabelecendo o grande facto da soli- ica e physiologica. Este systema caracterisa os seres supe- zoologica, porque exprime o mais alto grao conhecido ção Epatimal. A sua complexidade, crescente sempre desde os e uniforme, até ao homem em que se apresenta dividido O iimeimont: distinctas é dynamicamente especialisadas, a de superioridade ascendente, uma viva demonstração da ma solidariedade desconhecida dos animaes inferiores e das plan- “mais, não sendo o seu fim unico presidir a alheias funcções, mas as suas proprias e das mais elevadas, o raciocinio, a emotividade, olição, este systema é no animal um fôro de nobreza que, segundo scóla evolucionista, levou centenas de milhares de seculos a conquis- nd A. Bai, Les Sens et U Intelligence, pg. 310, in aid de Pta us | |] 142 HISTORIA NATURAL tar no conflicto da vida, pela acção de duas forças incomparaveis, a ada- ptação e a hereditariedade. Dar uma idéa synthetica da mechanica d'este systema, tornou-se fa- cil desde que o grande physiologista Luys demonstrou que desde os mais simples até aos mais complicados, todos os actos nervosos completos se podiam reduzir ao typo do reflexo. Expliquemos. O acto reflexo suppõe como condição organica impres- cindivel, a existencia de tres elementos ou orgãos anatomicos: um cor- dão centripeto encarregado de receber e propagar uma impressão, nervo sensivel, um centro receptor simples ou complexo, que recebe e trans- forma a impressão peripherica, celula ow ganglio, e um cordão centri- fugo, nervo motor, destinado a levar de novo à peripheria a impressão originaria transmutada agora em movimento ou impulsão. Os factos dyna- micos correspondentes às divisões anatomicas estabelecidas, são: um movimento molecular do nervo afferente, impressão sensivel, transforma- ção especifica d'esta impressão, força metabolica central e movimento molecular efferente, emanação impulsiva. Tudo na vida nervosa se reduz a isto: transformação mechanica de energias. E assim como se pode di- zer que na vida vegetativa ou de conservação individual e especifica, todas as funcções se limitam a transformar materia que entra no seio do organismo sob a forma inerte e mineral para ahi apparecer depois ou d'ahi sahir sob o aspecto e a estructura de um tecido, de um elemento vivo ou que viveu, do mesmo modo e com egual rigor se affirma que na vida superior, na vida nervosa todos os actos definitivamente analy- sados se reduzem a transformar uma energia, a variar 0 fim de um movi- mento, o resultado de uma força. O mundo externo é para a vida nutri- tiva e reproductiva o vasto reservatorio de materiaes transformaveis, a origem nunca exhausta do combustivel que a machina reclama; a sensi- bilidade é tambem a perpetua fonte dos materiaes dynamicos, o veio donde ininterruptamente derivam os elementos que se hão-de transmutar, das forças cuja applicação e cujo effeito apparecerão sob a forma de impulsão motora, o facto que melhor caracterisa a animalidade superior e a. pa ção complivadisaima que se chama vida. É por isto que os physiologistas teem comparado o systema nervoso no seu conjuncto, a um vasto apparelho telegraphico com os seus orgãos enregistradores que, no caso organico, são os centros nervosos, e Os seus rheophoros ou conductores centripetos e centrifugos, semelhantes na funcção physica aos nervos afferentes ou sensiveis e aos nervos effe- rentes ou motores. No ponto de vista da mechanica geral o confronto é perfeitamente justo. A sensação é com effeito uma noticia, um aviso que os centros recebem, que: elaboram e fundados sobre o qual elles emit- tem uma ordem. MAMIFEROS EM ESPECIAL 143 No estudo anatomico e physiologico a que vamos proceder, temos pois de estudar nervos e centros nervosos, primeiro de um modo geral e depois especialmente.em cada um dos dois grandes systemas, sympa- thico e cerebro-espinhal, que no homem e nos vertebrados superiores, existem e representam papeis distinctos. Anatomo-physiologia do systema nervoso em geral — Nesta parte estudaremos separadamente os elementos anatomicos “do systema nervoso, a sua vida e os seus estimulantes especiaes. - As cellulas nervosas teem todas as propriedades que descrevemos falando da cellula em geral. Quanto à forma, ellas são em geral estrella- das ou providas de prolongamentos; se teem um só, são unipolares, se teem dois, dirigidos em um mesmo sentido ou em sentidos diferentes, chamam-se bipolares e ainda, se o numero de prolongamentos é maior, como é o caso mais geral, recebem o nome de multipolares. Estes pro- longamentos quando attingem uma certa extensão constituem as fibras As fibras nervosas são tubos alongados compostos de um involucro fino, a bainha de Schwann, e de uma materia n'elle contida, a substancia “medular ou myelina no interior da qual se estende um fino cordão co- nhecido pelo nome de cylinder-axis. Fibras nervosas ha a que falta a substancia medullar. A bainha de Schwann parece representar como a myelina um simples papel de orgão protector; e sendo assim, a parte -mais importante da fibra nervosa é o cylinder-axis. Além d'estas fibras, outras existem, principalmente no grande sympathico, achatadas, amor- Pphas ou pouco distinctamente fibrillares e munidas de nucleos muito ap- parentes: são as fibras de Remak, de tal maneira incaracteristicas que alguns physiologistas as teem considerado como tecido conjunctivo. “As fibras nervosás, sendo microscopicas, para formarem os nervos apreciaveis a olho desarmado, reunem-se, grupam-se, cercando-se do te- cido comnnectivo; d'este modo os tubos e feixes primitivos encontram-se “envolvidos por uma substancia homogenea, o perinervo, que em relação -a ellas representa um papel semelhante ao que uma membrana chamada “auyolema desempenha a respeito dos feixes estriados dos musculos vo- Juntarios. Os feixes secundarios, formados pela reunião dos primitivos “são egualmente cercados por uma bainha de tecido conjunctivo pouco denso, o nevrilema. Este nevrilema além de capillares sanguineos recebe tambem nervos aos quaes se tem dado o nome de nervi nervorum, por-' que elles representam realmente em relação aos grossos nervos ou tron- 144 HISTORIA NATURAL cos o mesmo papel que os arteriolos e veinulas chamados vasa vasorum representam em relação aos grossos troncos vasculares. As fibrillas nervosas destacadas da cellula correspondente, teem ter- minações diversas: umas vezes, caso mais geral, vão perder-se na sub- stancia das cellulas visinhas, outras vezes as suas terminações teem um caracter especial, como nas placas motoras e nos corpusculos tactis, mo- dos de terminação particular dos nervos no tecido muscular e na pelle. Assim, como observa Kiiss, as fibras nervosas não são realmente mais do que commissuras, connexões, pontes lançadas de um globulo nervoso a um elemento de outra especie ou mais simplesmente ainda de um glo- bulo a outro globulo. Globulos e fibras nervosas constituem um todo solidario, porque toda a excitação que n'um se realisa vae invariavelmente reflectir-se no outro. Este todo anatomico que é simultaneamente um todo physiologico, como ser vivo, nutre-se, reproduz-se e executa além d'isso funeções es- peciaes, privativas, como elemento estructuralmente differenciado de to- dos os outros. A nutrição do systema nervoso dispende uma quantidade de mate- riaes alimentares superior à de todos os outros. A alimentação de um cantoneiro, não é sufficiente quantitativa nem qualitativamente para um individuo que trabalha redigindo ou estudando. Na secreção urinaria os productos da desassimilação nervosa, demonstra a analyse serem consi- deraveis todas as vezes que ao cerebro se impõe um trabalho energico. Em relação com as exigencias nutritivas e o vasto dispendio de substan- cia e de energia do systema nervoso, está a distribuição n'este systema dos vasos sanguineos. O systema nervoso é relativamente um dos mais irrigados. Os actos de nutrição implicam para os nervos um desenvolvimento de forças. A electricidade é uma d'ellas. A experiencia tem demonstrado a existencia de correntes que constantemente percorrem os nervos, como se a parte central d'estes orgãos fosse negativa e à sua parte peripherica ou bainha, positiva. Estas correntes que existem e se demonstram facil- mente durante o estado de repouso physiologico dos nervos, torna-se quasi inapreciavel, tal é a sua diminuição, quando estes orgãos funcceio- nam; servindo de conductores às impressões sensiveis. Ora estando ple- namente demonstrado pelas experiencias de Schiff e Herzen que ao func- cionalismo do nervo corresponde uma elevação da temperatura, teem alguns physiologistas emittido a opinião de que a electricidade, durante. o trabalho nervoso, se transforma em calôr. Esta opinião tem em seu favôr o grande principio physico da equivalencia das forças, segundo o E qual nada se cria ou perde, mas tudo se transforma. MAMIFEROS EM ESPECIAL 145 “O funccionalismo especial do systema nervoso consiste nos actos re- flexos de que fallamos já e sobre que é inutil insistir. Sob que genero de causas se produz o reflexo? Quaes são os exci- tantes d'esta acção nervosa? Costumam dividir-se em trez classes todos os agentes capazes de despertar uma activa manifestação nervosa: phy- sicos, chimicos e physiologicos. Aos primeiros pertencem o calôr, a ele- ctricidade, o choque directo; aos segundos, os compostos energicos “actuando sobre a intimidade mesma do tecido nervoso, como os acidos; a terceira cathegoria comprehende os centros nervosos que, sendo capa- zes de reter e conservar por muito tempo uma excitação emanada da peripheria, são capazes tambem de n'um momento dado a deixarem des- envolver ou passar de um estado latente a um estado de força viva, solicitando assim a actividade do nervo. De resto, a excitabilidade do systema nervoso ou capacidade de res- ponder aos estimulos varia segundo circumstancias muito diferentes; augmenta pela acção do calôr, pela nutrição, pelo exercicio, pela acção de alguns agentes therapeuticos e diminue com o frio, com a ausencia de irrigação sanguinea, com o repouso, com a acção de umas certas sub- stancias pharmacologicas, antagonicas das primeiras. Isto pelo que respeita ao systema peripherico, nervos e cellulas que os constituem. Quanto aos centros nervosos, são elles caracterisados pela existencia de um numero indefinido de cellulas, o que complica extraor- dinariamente os actos reflexos no momento em que a impressão as attra- vessa antes de passar aos cordões efferentes ou centrifugos. Com efeito, a impressão em vez de passar rapidamente do cordão centripeto ou nervo sensivel ao nervo motor, como acontece no caso mais simples que podemos figurar, tendo de percorrer um grande numero de cellulas elle demora-se na passagem de umas para outras por maneira que se torna perfeitamente apreciavel o tempo decorrido entre a impressão inicial e o movimento ultimo. - Os centros nervosos são: o grande sympathico, a medulla espinhal. e o cerebro. Estudal-os-nemos successivamente pela ordem referida. GRANDE SYMPATHIGO . O grande sympathico denominado tambem systema ganglionar ou systema nervoso da vida organica, compõe-se de pequenas massas ner- vosas distinctas mas ligadas entre si por cordões medullares e nervos 10 146 HISTORIA NATURAL que se amastomosam com os do systema cerebro-espinhal ou se distri- buem nos orgãos visinhos. Estas massas ou pequenos centros teem o nome de ganglios. A disposição dos centros ganglionares é caracteristica: estas peque- nas massas acham-se distribuidas na cabeça, no pescoço, no thorax e no abdomen e por forma que no tronco ellas constituem ligando-se umas às outras, duas correntes symetricamente dispostas por diante da columna vertebral aos lados da linha media do corpo. Alguns ganglios ha porém, asymetricos ou que saem fóra das correntes mencionadas, como são al- guns dos que se distribuem nas visinhanças do coração, do estomago, dos pulmões, e ainda dos intestinos e paredes dos vasos sanguineos. Os nervos que derivam do systema ganglionar vão em parte, repe- timol-o, unir-se aos da medulla e do cerebro, estabelecendo-se assim uma connexão intima entre a vida nutritiva e as funcções de relação. A sensibilidade do systema ganglionar não se desperta sob a influen- cia de quaesquer estimulos; podem-se chocar directamente ou mesmo cortar os ganglios ou os nervos que d'elles dirivam sem occasionar dôr ou produzir contracções musculares. Os excitantes d'este systema são, como em outro logar dissemos, as alterações sanguineas, resultado ou da falta de materiaes nutritivos ou da addição de substancias estranhas à composição normal da crase. MEDULLA ESPINHAL Este centro nervoso é representado por um eixo cylindrico contido na columna vertebral ou canal rachidiano, desde o começo anatomico do encephalo até à primeira vertebra lombar. Os physiologistas preten- dem que a medulla sobe superiormente até às partes mais centraes do cerebro. Entre a substancia propria da medulla e as paredes osseas do ca- nal rachidiano, que ella não enche completamente, medeiam um liquido de composição especial denominado liquido cephalo-rachidiano e trez membranas protectoras de natureza differente e que são de fóra para dentro, a dura-mater, a arachnoidea e a pia-mater. O liquido cephalo-rachidiano, assim chamado por cercar tanto a me- dulla como o encephalo, suppõe-se segregado pela pia-mater. O papel physiologico que desempenha é dos mais importantes. Quando uma quan- tidade demasiada de sangue chega ao enchephalo, o liquido cephalo-ra- | | 4 q | MAMIFEROS EM ESPECIAL 147 chidiano desce para a columna vertebral; quando pelo contrario, por um motivo qualquer, o sangue diminue no centro superior aflluindo em maior quantidade à medula, tende a formar-se na cavidade craneana um vacuo e então o liquido sobe para o cerebro deslocando-se do centro medullar. Esta perpetua oscillação de massa liquida do craneo para o rachis e do rachis para o craneo, permitte conservar uniforme a pressão “em torno do systema nervoso que estas cavidades conteem. - As membranas protectoras da medulla, que o são tambem do cere- bro, não teem todas a mesma natureza. A dura-mater é fibrosa e extremamente resistente. Na espessura d'esta membrana existem canaes chamados seios venosos em cujo interior se lançam os vasos que recebem sangue do encephalo. Esta membrana “acha-se intimamente fixada aos ossos do craneo e do rachis. A arachnoidea, collocada entre a dura-mater e a pia-mater, é de natureza serosa e forma, como todas as membranas deste genero, um “sacco sem abertura composto de dois fasciculos intimamente applicados um ao outro. É excessivamente delicada e translucida. Um dos seus fas- ciculos adhere intimamente à superficie da dura-mater. Aos nervos ce- “phalicos e medullares no momento em que elles attravessam a dura-mater, “forma a arachnoidea uma bainha. Não se encontram vasos n'esta mem- “brana. “A pia-mater é no cerebro de natureza cellulo-vascular; é a mais interna e acha-se em contacto directo com as massas nervosas. Acompa- nha os nervos em toda a extensão do seu percurso constituindo-lhes uma bainha que já conhecemos sob o nome de nevrilema. Ao contrario da arachnoidea, é extremamente vascularisada. Muitos anatomicos conside- ram até esta membrana como um verdadeiro conjuncto de vasos reuni- dos entre si por tecido cellular. Na medulla porém, esta membrana tor- na-se fibrosa. Estructura Secções transversaes realisadas na medulla espinhal demonstram que ella é formada de substancia cinzenta na sua parte central e de sub- stancia branca na peripheria. A substancia branca é composta de fibras e a substancia cinzenta de cellulas reunidas por intermedio de materia granulosa. Pela analyse microscopica reconhece-se que as cellulas nervosas existem collocadas “ou dispostas sobre uma especie de reticulo formado de tecido conjun- * : 148 HISTORIA NATURAL ctivo, comparavel às malhas de uma esponja. As mesmas secções hori- sontaes demonstram a existencia no centro da medulla de um ourificio, o canal central, de um diametro de dois a trez centimillimetros, bem como provam que a medulla se forma de dois semi-cylindros. A substan- cia cinzenta de cada um d'elles, tem a forma de um crescente de con- cavidade externa; das extremidades d'este crescente a de diante recebeu o nome de corno anterior e a de traz o de corno posterior. Os cornos anteriores recebem as raizes motoras dos nervos rachidianos e as pos- teriores as raizes sensitivas. A substancia cinzenta é constituida pela reunião de cellulas dispos- tas em duas correntes que se estendem desde a extremidade inferior da medulla até aos thalamos opticos do cerebro. D'estas cellulas as anterio- res presidem ao movimento e são consideravelmente maiores que as pos- teriores que presidem à sensibilidade. As fibras nervosas que pela sua reunião constituem os cordões me- dullares anteriores, posteriores e lateraes, nascem a todas as alturas da medulla das cellulas da sua substancia cinzenta. ENCEPHALO O encephalo é uma vasta massa nervosa de forma ovoide que enche o interior do craneo. Esta massa é constituida por um conjuncto de or- gãos conhecidos pelos nomes de cerebro, cerebello, isthmo do encephalo e bolbo rachidiano. As dimensões e o pezo do encephalo variam extraordinariamente de raça para raça, de sexo para sexo, mesmo de individuo para individuo, Segundo o exercicio que cada um lhe dá e ainda geralmente de idade para idade, havendo crescimento, aífirma Broca, até aos quarenta annos e decrescimento depois. A face superior do encephalo offerece pregas numerosas chamadas circumvoluções que augmentam ou multiplicam a sua superficie; isto equivale a dizer que dentro do espaço craneano a superficie encephalica ahi contida é tanto maior quanto mais numerosas são as circumvoluções. É nos intervallos ou intersticios d'estas que circula o liquido cephalo- | rachidiano. Secções verticaes do encephalo provam que este é formado por substancia branca coberta de substancia cinzenta. A primeira é composta de fibras nervosas reunidas por substancia granulosa. A segunda, a sub- MAMIFEROS EM ESPECIAL 149 stancia cinzenta, de uma espessura minima, é constituida de cellulas ner- vosas dispostas regularmente ao longo das fibras brancas. Estas cellulas são reunidas entre si por materia finamente granulosa sobre cuja natu- reza os hystologistas ainda hoje discutem. Segundo os calculos do emi- nente nevrologista Luys, o numero de cellulas encephalicas é, termo me- dio, de setenta por millimetro quadrado. = Y ginga 4: Cerebro É a parte ou orgão mais volumoso do encephalo. Tem a forma ovoide e compõe-se de duas regiões denominadas hemispherios e entre si reu- nidas por orgãos medianos. A situação topographica do cerebro é na parte anterior e superior da cavidade craneana; por uma abertura da ca- beça ou seja feita verticalmente ao longo do frontal ou seja parallelamente ao horisonte executada sobre a porção convexa superior do craneo, o pri- meiro orgão que se descobre é o cerebro. A face superior d'este orgão apresenta as circumvoluções de que “acabamos de fallar e um corte medio correspondente à divisão dos he- mispherios. j A face inferior, tambem chamada base do cerebro, offerece sobre a linha media depressões e saliencias, que são, de diante para traz: a ex- tremidade anterior da grande cizura mediana, que separa os hemisphe- rios; a extremidade anterior do corpo calloso; a raiz cinzenta dos ner- vos opticos; o chiasma dos nervos opticos; o tuber cinereo e a glandula pituitaria; os tuberculos mamillares; o espaço interpeduncular; o borda- lete do corpo calloso; finalmente a grande fenda cerebral de Bichat. Sobre as partes lateraes da face inferior do cerebro veem-se os lo- bulos anteriores e posteriores separados por uma fenda denominada ci- zura de Sylvio. Sobre esta mesma face encontram-se as origens appa- rentes de muitos nervos. No interior do cerebro existem trez cavidades importantes: uma, collocada na linha media, ventriculo medio ou terceiro ventriculo; duas outras, ventriculos lateraes, collocadas à direita e esquerda da linha me- dia, acima do nivel da precedente. Um septo mediano chamado trigono cerebral ou abobada de trez pilares, separa o terceiro ventriculo dos ven- triculos lateraes. Na espessura d'este septo encontra-se ainda uma pe- quena cavidade conhecida pelo nome de quinto ventriculo. Na extremidade posterior dos trez ventriculos existe uma pequena 150 HISTORIA NATURAL saliencia denominada glandula pineal pela sua forma analoga à de uma pinha e em que Descartes por uma d'essas incomparaveis singularidades metaphysicas, fazia residir a alma humana. Os ventriculos do cerebro são cobertos por uma especie de abobada de substancia branca chamada corpo calloso, formada por fibras que reu- nem os hemispherios cerebraes. De cada lado do septo vertical chamado septo lucido, que separa os ventriculos lateraes, encontra-se um nucleo de substancia nervosa formada de grossas cellulas, o corpo estriado, € por traz deste aos lados do ventriculo medio uma grossa massa formada de cellulas de menores dimensões, o thalamo optico, que preside ás per- cepções sensoriaes e se compõe de cinco nucleos de substancia cinzenta chamados centros olfativo, optico, medio, mediano e acustico. Cerebello O cerebello é a porção do encephalo situada na parte posterior e inferior do craneo. Está collocado sob o cerebro com o qual se continua por prolongamentos de substancia nervosa denominados pedunculos cere- bullosos superiores, acima do bolbo rachidiano com que se continua pe- los chamados pedunculos cerebullosos inferiores e atraz da protuberancia annular a que se une pelos pedunculos cerebullosos medios. À face superior do cerebello acha-se separada do cerebro por uma parte chamada fouce; a face inferior apresenta uma cizura profunda sobre a linha media. O cerebello é rasgado por numerosos sulcos e composto como o cerebro de substancia branca coberta de substancia cinzenta. A substancia branca ao introduzir-se na substancia cinzenta forma nume- rosas ramificações folliaceas a cujo conjuncto se tem dado o nome = da vore da vida. No centro de cada metade do cerebello encontrá-se um monticulo ou cumulação de substancia cinzenta, o corpo rhomboidal. D'este pequeno centro partem os pedunculos que ligam o cerebello ao cerebro e à me- dulla. Estes pedunculos vão perder-se passando ao estado de fibrillas na substancia cinzenta do eixo cerebro-espinhal que occupa o lado opposto áquelle que lhes deu origem. | MAMIFEROS EM ESPECIAL 151 Orgãos de união do cerebro, cerebello e medula espinhal A porção intermedia ao cerebro, ao bolbo rachidiano e à medulla, chama-se isthmo do encephalo ou medulla alongada e comprehende as partes designadas pelos nomes de protuberancia anmular, pedunculos cerebraes, tuberculos quadrigemeos e pedunculos cerebullosos. - Como acima deixamos dito, o cerebello acha-se ligado ao cerebro e o medulla espinhal por trez pares de pedunculos: os superiores que vão ao corpo estriado; os medios que se dirigem para a protuberancia an- nular que elles ajudam a constituir; emfim os inferiores que descem para o bolbo rachidiano a que se unem. Entre os pedunculos superiores e a glandula pineal encontram-se pequenos tuberculos chamados quadrige- meos, que constituem a origem dos nervos opticos e representam os equi- valentes da substancia gelatinosa da medulla espinhal. O bolbo rachidiano é a extremidade superior dilatada da medulla que se encontra sob o bordo inferior da protuberancia. O bolbo repousa sobre uma gotteira cavada no osso occipital e vae da protuberancia an- nular ao ponto de encruzamento dos feixes anteriores da medulla. A face - anterior do bolbo apresenta de cada um dos lados da linha media uma dilatação chamada pyramide anterior, fóra da qual se encontra uma outra denominada oliva. Sobre a face posterior vêem-se de cada lado da linha " media as pyramides posteriores e um sulco medio, o calamo escriptorio. “Sobre as faces lateraes existem tambem saliencias, as pyramides lateraes ou corpos restiformes. Nas suas porções inferiores as pyramides entre- * cruzam-se com as do lado opposto à excepção dos feixes mais externos. “A protuberancia annular ou ponte de Varole é um annel semi-circu- lar de fibras nervosas collocado acima do bolbo sob os pedunculos cere- braes e anteriormente ao cerebelo. É formada de fibras brancas superfi- “Ciaes que parecem a expansão dos pedunculos cerebullosos medios. En- tre as diversas camadas de fibras estratificadas que compõem a protube- rancia annular encontram-se numerosas cellulas. | Do bordo anterior da protuberancia ao thalamo optico vão feixes de “fibras brancas formando dois cordões chamados pedunculos cerebraes. . Entre a protuberancia annular e o cerebello encontra-se uma cavi- dade em forma de losango, chamada quarto ventriculo, cujo pavimento é formado pelo bolbo e a protuberancia. É à irritação d'esta região que. se deve, como n'outro logar dissemos, um excedente na formação do as- sucar do figado. 152 HISTORIA NATURAL OS NERVOS São fios conductores ligando todos os pontos do organismo ao eixo ce- rebro-espinhal. Os nervos dividem-se geralmente em sensíveis e motores; a estructura de uns e outros parece ser a mesma, mas as funcções va- riam porque em quanto a supressão d'uns implica anesthesia a dos outros produz as paralysias. Muitos auctores contemporaneos, attenta a egual estructura de to- dos os nervos, dão-lhes uma só propriedade commum a nevrilidade, ou propriedade de transmittir por camadas movimentos moleculares; se- gundo este modo de vêr a sensibilidade ou motricidade dependeriam não dos nervos mas das cellulas centraes a que cada um se dirige, ou ainda dos orgãos a que cada um se distribue. Tal nervo é sensivel, porque se dirige a uma tunica mucosa, por exemplo; tal outro é sensivel, porque se distribue n'um musculo. Os nervos tem-se ainda dividido em espinhaes e craneanos, segundo o seu ponto de partida, ou o ponto de emergencia das suas raizes ori- ginarias. Os primeiros são em numero de trinta e um pares e os segun- dos de doze pares. Os nervos que proveem da medulla espinhal, nascem por duas series de filamentos dispostos sobre as partes anterior e pos- terior deste eixo. É à reunião d'estes filamentos que se dá o nome de: raizes dos nervos, as quaes podem ser anteriores ou motoras e posterio- res ou sensiveis. Quando estas raizes se reunem sob um mesmo involucro,: formam-se os troncos nervosos; então os filetes sensitivos e motores que entram na sua constituição apenas se separam ao chegarem aos orgãos a que se destinam. Antes de reunir-se à raiz motora para formar o tronco nervoso, cada raiz sensitiva attravessa um ganglio de pequenas proporções situado nos ourificios de conjugação das vertebras, ganglio que é, como todos, constituido por um involucro fibroso contendo cellulas; estas são aqui de avultadas proporções. A materia fibrosa que serve de involucro con- tinua-se com o nevrilema e envia prolongamentos aos espaços existente entre as cellulas. Cada cellula dos glanglios é attravessada por um tubo nervoso que antes de n'ella penetrar se reduz ao seu filamento central. As cellulas dos ganglios algumas vezes, como acontece no grande sympathico, em vez de receberem um só tubo recebem muitos, offerecendo assim nume- rosos prolongamentos. MAMIFEROS EM ESPECIAL 153 Muitos nervos, especialmente os emanados do canal rachidiano, for- mam, anastomosando-se entre si, uma especie de rede nervosa conhe- cida pelo nome de plexo. N'estas anastomoses porém, observemol-o, não ha união e continuidade de tecido como acontece nos vasos, mas apenas encostamento dos tubos nervosos uns aos outros. Nas cavidades abdomi- nal e thoracica. os plexos cercam inteiramente as arterias que lhes ser- vem de supporte. “Entre os nervos sensitivos e motores existem differenças notaveis de dimensões; os primeiros são mais volumosos que os segundos. É as- sim que o nervo acustico é, por exemplo, muito mais volumoso elle só do que o nervo facial que anima todos os musculos superficiaes da face e do pescoço. Estas differenças dependem de que o numero de tubos nervosos contidos nos nervos sensitivos é muito mais consideravel que o dos tubos constituintes do nervo motor, como perfeitamente o de- monstra a analyse hystologica. Ao contrario do que acontece nas arterias, os nervos são rectilineos em todo o seu percurso; por longo que elle seja, não apresentam uma só inflexão. Por isto é facil comprehender que os nervos chegam ao seu destino fazendo um caminho muito mais curto e rapido que o das arte- rias satellites. Os nervos nascidos do encephalo sahem do craneo pelos ourifícios que na base d'esta cavidade se encontram. É agora o logar de estabelecer a diferença que existe entre as rai- zes reaes e as apparentes dos nervos. As apparentes são aquelles pontos donde uma simples dissecção anatomica parece mostrar-nos que elles derivam; as reaes são os verdadeiros pontos de origem, que só por uma analyse hystologica minuciosa podemos descobrir. - Parece provado que as raizes encephalicas são apenas apparentes e que todos os nervos emanam realmente das cellulas de substancia cin- zenta medullar que se introduz e prolonga até ao centro do cerebro. E, sendo assim, a distincção entre nervos craneanos e rachidianos ou es- pinhaes perde indiscutivelmente todo o seu valor; é uma simples divisão de commodidade e nada mais. Além dos nervos nascidos do eixo cerebro-espinhal, outros existem, os que se originam no grande sympathico. Estes nervos dirigem-se, como já sabemos, aos orgãos esplanchicos ou visceras subtraidas ao imperio das determinações voluntarias. cv 154 HISTORIA NATURAL DISTRIBUIÇÃO DOS NERVOS E FUNCÇÕES QUE EXECUTAM O estudo a que vamos proceder, será resumido. A distribuição ana- tomica só por si para ser completa e minuciosa esgotaria volumes; pelo seu lado o exame das funcções, se nos não limitassemos a indicações ra- pidas, implicaria uma extraordinaria extensão. 1. Nervos craneanos São, como dissemos, em numero de doze pares e teem as suas ori- gens apparentes no encephalo, sendo as origens reaes de todas elles, dissemol-o já, na substancia cinzenta da medulla. A origem apparente dos nervos craneanos faz-se na base do cere- bro, atravessando no seu trajecto, os que são sensitivos, um ganglio. Primeiro par, nervo olfativo.— Sae do craneo pela lamina crivada do ethmoide e distribue-se na parte superior da mucosa das fossas na- saes. Quando este nervo se destroe, o animal perde o olfato. É pois O nervo especial da olfação. Segundo par, nervo optico. —Sae do craneo pelo buraco optico, attra- vessa a esclerotica e a choroidea e pela sua expansão terminal forma no fundo do olho a retina. Pelo que d'esta dissemos no logar competente, facil é prevêr que o nervo optico preside à visão. A destruição d'elle importa a cegueira e a sua irritação, qualquer que seja o processo por que se faça, produz, não dôr, mas sensações luminosas. Terceiro par, nervo occulo-motor comum. -—Sae do craneo por uma fenda do esphenoide e distribue-se ao musculo levantador da palpebra superior e a todos os musculos motores do olho, excepto ao recto in- terno e grande obliquo. Quando este nervo se destroe n'um animal a palpebra superior desce e o globo occular experimenta um desvio para fóra, porque, em caso tal, só o recto externo se contrae. Quarto par, nervo pathetico-— A sua sahida do craneo faz-se como a do anterior pela fenda esphenoidal. Distribue-se ao musculo grande obliquo do olho, que serve para produzir os movimentos do globo oceu- lar de dentro para fóra. Quando este nervo se corta ou, por condições MAMIFEROS EM ESPECIAL 155 morbidas, se paralysa, sobrevem para o individuo a impossibilidade de executar a rotação do olho em torno do seu diametro antero-posterior quando a cabeça se inclina. Quinto par, nervo trigemeo.— É motor e sensivel; nasce por meio de duas raizes, uma sensitiva e outra motora. À primeira, a raiz sensi- tiva, ao nivel do vertice do rochedo apresenta um ganglio chamado gan- glio de Gasser, sob o qual passa a raiz motora sem com elle se confun- dir. D'este ganglio nascem trez ramos: o nervo ophtalmico, o nervo ma- gillar superior e o nervo maxilla inferior. O trigemeo innerva a pelle, os musculos superficiaes da face e as mucosas da bocca e das fossas na- saes; sensibilisa todas estas partes e preside ao movimento dos muscu- los da mandibula inferior. A prova d'isto é que a paralysia ou corte d'este nervo na sua porção ganglionar importa a insensibilidade de todas as partes por elle innervadas. Não são estas porém, as unicas consequen- cias da destruição do trigemeo; ha mais —ha perturbações profundissi- mas de nutrição das partes innervadas e das suas secreções. O corte dado na porção não ganglionar, ou na raiz motora, implica simplesmente a paralysia do movimento nas partes a que se distribue e que são, como foi dito, os musculos motores da maxila. Examinemos agora o papel que desempenham os ramos derivados do ganglio de Gasser. O nervo ophtalmico, primeiro ramo, penetra na orbita pela fenda es- phenoidal e divide-se a seu turno em trez ramos: nasal, frontal e lacry- mal que sensibilisam a pelle da fronte, da palpebra superior, a conjun- ctiva, a mucosa pituitaria, a glandula lacrymal e o lobulo do nariz. O nervo ophtalmico contribue para formar o ganglio do mesmo nome, si- tuado no trajecto do nervo optico. Este ganglio apresenta trez ramos aíf- ferentes: um motor derivado do occulo-motor commum, um sensitivo, vindo do nasal e um vegetativo, proveniente do grande sympathico. “O nervo maxillar superior, segundo ramo do ganglio de Gasser sae do craneo pelo buraco chamado grande redondo e, uma vez chegado ao pavimento da orbita, penetra no canal infra-orbitario d'onde vae depois pelo ourifício externo d'este canal para o osso malar. Distribue-se na pelle, nos musculos e mucosa do labio superior, nas gengivas e nos den- tes do maxillar superior. Tem como ramos terminaes os nervos sub-orbi- tarios é como collateraes os nervos dentarios anteriores e posteriores des- tinados ás raizes dos dentes superiores e o ramo orbitario que vae anas- tomosar-se com o lacrymal. O nervo maxilar inferior, terceiro ramo do ganglio de Gasser, com- põe-se de uma porção sensitiva e de uma parte motora. Este nervo sae dó craneo pelo ourifício chamado oval; delle derivam numerosos nervos “que se destinam aos dentes inferiores, à mucosa da parte anterior da 156 HISTORIA NATURAL lingua, à mucosa e à pelle do labio inferior, da mandibula e da região temporal, que sensibilisa, e aos musculos mastigadores a que dá movi- mento. Sexto par, occulo-motor externo.—Sae do craneo pela fenda esphe- noidal e dirige-se ao musculo recto externo do olho, que mobilisa. A prova de que é esta a sua funcção, está em que a secção d'este nervo implica estrabismo interno; em tal caso, só o recto interno actua sobre o globo occular que pela sua contracção é desviado para o lado interno da orbita. Setimo par, nervo facial.—É um nervo motor que se distribue a to- dos os musculos do pescoço e da face, exceptuando os mastigadores. À sua origem é no bolbo. Depois de sahir d'este ponto, passa ao canal au- ditivo interno; attravessando este canal passa depois à glandula parotida e divide-se sobre a face externa do massetér, um musculo mastigador, em dois ramos d'onde partem numerosos ramusculos que innervam os mus- culos do pescoço e da face. Na sua passagem pelo ouvido, este nervo for- nece alguns ramos, entre elles os nervos petrosos, 0 filete do musculo do estribo e a corda do tympano. BRA O nervo facial dá movimento áquelles musculos da face a que o tri- gemeo dá sensibilidade. Quando o facial se corta a parte da face a que elle se distribue fica privada inteiramente de expressão, porque os mus- “culos correspondentes não podem mais contrair-se voluntariamente; a emotividade não consegue então traduzir-se na face, reduzida depois da experiencia a um todo immovel de cadaver. Oitavo par, nervo acustico. — Nasce ao nivel do bolbo, penetra parallelamente ao facial no canal auditivo interno e no fundo d'este divide-se em numerosos ramos que se distribuem no ouvido. Preside à audição. Quando se irrita, este nervo dá sensações auditivas, do mesmo modo que por acção mechanica o nervo optico dá sensações vi- suaes. Nono par, nervo glosso-pharyngeo.—É um nervo mixto. Sae do cra- neo pelo chamado buraco lacero posterior e distribue-se ao terço poste- rior da mucosa lingual a que dá sensibilidade tactil e gustativa. Durante o seu trajecto envia ramos à pharynge, às amygdalas e à caixa do tym- pano. Quando o glosso-pharyngeo se corta, ficam insensíveis todas as partes a que se distribue; quando elle se irrita à sahida do craneo ob- servam-se contracções nos musculos constrictores da pharynge. Decimo par, nervo pneumogastrico ow vago.—É tambem mixto. Dis- tribue-se à pharynge, à larynge, ao coração, aos pulmões, ao esophago, ao estomago, ao figado e ao plexo solar. Existem sob a dependencia deste musculo as visceras mais importantes da economia, precisamente aquellas sem cujo funccionalismo a vida seria impossivel. Sae do craneo MAMIFEROS EM ESPECIAL 157 pelo buraco lacero posterior, dirige-se verticalmente para baixo sobre as partes anterior e lateral do pescoço por fóra da carotida, depois desce para o thorax e colloca-se ao lado do esophago que acompanha até ao abdomen onde se ramifica; o do lado direito perde-se na parede poste- rior do estomago e plexo solar emquanto o esquerdo vae à parte ante- rior do estomago e ao figado. Ao longo do esophago os seus dois ramos dão ramusculos que se anastomosam entre si e cercam este canal. O pneumogastrico anastomosa-se com o facial, o espinhal, o glosso-pharyn- geo, o grande hypoglosso e o grande sympathico. Na sua origem o pneumogastrico é sensivel; porém numerosas anas- tomoses dos nervos motores, fazem d'elle um nervo mixto. A experiencia prova que a excitação energica do pneumogastrico por uma corrente electrica, suspende os movimentos do coração; se a corrente é fraca, os movimentos, pelo contrario, aceleram-se. “A influencia d'este nervo sobre a digestão, não é menos evidente; o seu corte implica difficuldade notavel da penetração do bôlo alimentício no esophago, paralysia da tunica muscular do estomago e alcalinidade do succo gastrico. - Sobre o apparelho de phonação exerce uma influencia consideravel; quando os seus ramos laryngeos se destroem, determina-se a paralysia dos musculos da larynge e uma aphonia absoluta se realisa. A sensibilidade extrema de que goza a mucosa respiratoria é devida ao pneumogastrico. Em virtude de uma tal sensibilidade, a menor par- cella d'alimento ou corpo qualquer que entra na glote, determina um attaque de tosse que se prolonga até à expulsão delle. Quando o pneu- mogastrico se corta, os corpos estranhos podem perfeitamente penetrar na glote sem que a tosse seja provocada e sem que portanto uma força qualquer procure eliminal-os. — Undecimo par, nervo espinhal. ow accessorio de Willis. —É um nervo motor que sae do craneo pelo buraco lacero posterior e se distribue nos musculos da pharynge, da larynge e a dois ainda do. pescoço, a que dá movimento. Depois de ter sahido do craneo, divide-se em dois ramos: um interno, que se lança no pneumogastrico, desce ao longo d'este nervo e destaca-se delle para constituir os nervos pharyngeos e laryngeos, ou- tro externo que passa sob a parotida e se distribue a dois musculos, o esterno-mastoideo e o trapezio, que nas respirações penosas são inspi- radores. — Duodecimo par, nervo hypoglosso.—R' nervo motor. Innerva todos os musculos da lingua, dando-lhes movimento. Ao nivel do angulo da maxilla, divide-se em dois ramos: um descendente que vae até a parte media do pescoço onde se liga ao plexo cervical, outro que se dirige à lingua. Sec- cionando este nervo perde-se a possibilidade de mover a lingua e, por- 158 HISTORIA NATURAL tanto, a de ingerir, sem que todavia na sua integridade funccional sen- sivel e tactil este orgão seja influenciado. 2. Nervos rachidianos São como dissemos em numero de trinta e um pares. Nascem das cellulas de substancia cinzenta da medulla espinhal e teem duas raizes, uma anterior ou motora, outra posterior ou sensivel. Da reunião destas raizes resultam troncos que se dividem em ramos compostos de fibras sensitivas e motoras; estas fibras só se separam chegando à profundeza dos orgãos. Estes ramos são: ramos rachidiamos posteriores, destinados à pelle e aos musculos do pescoço e da nuca; ramos rachidianos anteriores, que se distribuem nas partes anteriores e lateraes do tronco e nos musculos dos membros; ramos rachidianos ganglionares, que vão anastomosar-se com os ganglios do grande sympathico. Para não estudar isoladamente cada um dos pares rachidianos, o que não tem uma utilidade proporcional à extensão descriptiva, limitar-nos- hemos a um rapido exame dos plexos formados ao longo da medulla ns reunião dos nervos. Plexo cervical. —R' constituido à custa dos ramos anteriores dos qua- tro primeiros nervos cervicaes e encontra-se situado adiante das apo- physes transversas das vertebras do pescoço. D'este plexo derivam quinze ramos dos quaes uns se dirigem à pelle e outros aos musculos da região. Plexo brachial.—É formado pela reunião dos ramos anteriores dos quatro ultimos nervos cervicaes e primeiro dorsal. Fornece doze ramos collateraes destinados aos musculos da axilla e seis ramos terminaes que innervam a pelle e os musculos dos membros superiores. Plexo lombar.—R constituido pelo cruzamento dos cinco pares ante- riores dos nervos lombares e situados aos lados das vertebras d'este nome. Fornece quatro ramos collateraes, destinados aos musculos cuta- neos da região abdominal inferior, à pelle das bolsas testiculares e à pelle da coxa, e trez ramos terminaes que vão em parte anastomosar-se com os do pléxó sagrado e em parte innervam os musculos e a pelle da num anterior e interna da coxa, perna e pé. Plexo sagrado. —A reunião do nervo sacro-lombar e dos ramos s ante- riores dos quatro primeiros nervos sagrados, constituem este plexo. Tem a forma de um triangulo cuja base voltada para dentro corresponderia á e e “A UP MAMIFEROS EM ESPECIAL 159 extensão do sacro e cujo vertice estaria em relação com a chanfradura sciatica. Dá ramos collateraes que se dirigem aos musculos do perineo e das nadegas, bem como aos tegumentos destas regiões, e um ramo terminal, o mais volumoso do corpo, que se distribue aos musculos da região posterior da coxa, da perna e do pé. PAGUE 1 CAPITULO 1 RE | RACIOCINIO “ À cada uma das regiões descriptas do systema nervoso, correspon- dem funcções physiologicas especiaes. Ao cerebro pertence a da intelli- " gencia, de que a mais elevada expressão é o raciocinio, attributo que E tos não sendo exclusivo do homem, como falsamente pretendem alguns, re- presenta no entanto um papel dominante, da maxima perfeição n'este ser. o A intelligencia é o poder cerebral que temos de conhecer phenome- "nos e relações. - Justificar esta definição equivale a desfazer muitas illusões e precon- ceitos radicados por um ensino falso; é o que vamos tentar. Poder cerebral, dissemos; é a primeira idéa que importa evidenciar, porque a contestam tenazmente, ainda que sem fundamento scientifico, algumas escólas philosophicas, conhecidas pelo nome generico de idea- lismo. Quando, dada uma funcção, uma actividade qualquer, tentamos sa- ber d'onde ella deriva, de que orgão ou apparelho organico é a repre- sentação dynamica, o processo scientifico invariavelmente empregado con- “siste em inquirir das relações existentes entre essa funcção e uma certa parte da economia a que vagamente a attribuimos. Assim, por exemplo, desejando saber d'onde provem a voz, vamos pela experiencia investigar que genero de relações existem entre esta manifestação da nossa activi- dade e a larynge, orgão a que na linguagem vulgar se attribue; reco- nhecendo que a abolição da larynge implica a da voz, que as doenças desse orgão se refletem em modalidades diversas das notas que emitti- 160 HISTORIA NATURAL mos, observando que toda a causa que impede o exercicio mechanico de tal orgão, impede simultaneamente a palavra e o grito, dizemos e affir- mamos com segurança: a voz é uma funcção da larynge. Se quizermos saber de que orgão especial são funcções os movimentos de inspiração e expiração, investigaremos por um processo analogo das relações positi- vas que entre a respiração e os pulmões existem. Em relação à intelli- gencia não ha motivo para que se proceda d'outro modo. A linguagem vulgar que exprime o consenso do geral dos homens, attribue a intelli- gencia ao cerebro; assim se diz ter wm bom cerebro em vez de ter wm gramde talento, gastar o cerebro em vez de trabalhar intellectualmente, preguiça cerebral em logar de inactividade de inteligencia, etc. Egual mente relacionamos o trabalho mental às dores cephalicas que d'elle de- rivam, quando excessivo, e temos a phrase sentir um estalo na cabeça para designar o phenomeno de intelligencia que repentinamente nos leva a encontrar a solução appetecida de um problema complicado. Tomando estas referencias como ponto de partida, investiguemos scientificamente pela observação e pela experiencia se ha motivo para conserval-as, se ellas teem uma justificação positiva. Ora a observação e a experiencia conspiram em demonstrar que realmente o orgão da intelligencia é o ce- rebro ou ainda, o que vale o mesmo por phrase diversa, que a intelli- gencia desde os seus actos mais rudimentares até aos mais complexos é uma funcção cerebral. Sem cerebro não ha intelligencia; com um cerebro doente não ha intelligencia sã; com uma excitação cerebral produzida pelo alcool, pelo chá, pelo caffé, ha uma maior lucidez intellectual, uma mais rapida associação de idéas; com a destruição parcial do cerebro, ou ella seja natural como nos traumatismos accidentaes, ou artificial como nas experiencias, provoca-se a abolição em parte da intelligencia; o ex- cesso do trabalho intellectual dá-nos as cephalalgias, variaveis segundo a natureza e a demora d'aquelle trabalho; lesões de certos pontos cir- cumscriptos do cerebro produzem alterações intellectuaes, como acontece quando por excitação se alteram os thalamos opticos e se vêem sobrevir hallucinações; com massa cerebral inferior a certos limites de volume e pezo, ha deficiencia intellectual, como nos idiotas e imbecis; entre certas qualidades estructuraes do cerebro, como é o numero maior ou menor de circumvoluções, e o poder, a energia intellectual existe relação directa de proporcionalidade; egual relação existe entre o poder da intelligencia e qualidades ou condições chimicas do cerebro, como a quantidade de phos- phoro existente na sua massa. Tudo isto são motivos, causas bastantes, justificações sufficientissimas para que sem a menor hesitação attribuamos ao cerebro a intelligencia. Não é necessario collocar um espirito por traz do orgão, para explicar a funcção. O cerebro pensa, como o musculo se contrae, como a glandula segrega, como o estomago digere, como o nervo MAMIFEROS EM ESPECIAL 161 transmitte impressões. Sahir d'esta affirmação é trocar as conclusões po- sitivas da sciencia que demonstra, pelas chimeras de um philosophismo que devanea. O que acabamos de dizer para a intelligencia, pode repe- tir-se egualmente para o sentimento e para a vontade. E sendo assim, digamol-o desde já, a psycologia que se occupa destas manifestações su- periores da vida humana, não é uma sciencia independente, mas um ramo da physiologia; importa reconhecer que aquella denominação corresponde precisamente à de physiologia cerebral. Os psycologistas de todos os tempos, considerando os phenomenos de um modo inteiramente abstracto, teem multiplicado sob o nome de faculdades, que elles consideram distinctas e irreductiveis, os modos de manifestação intellectual. Os estudos mais modernos de Spencer, de Bain, de Luys e outros, demonstram a falsidade deste ponto de vista e a ur- gencia de reduzir todas as pseudo-faculdades da sciencia classica a sim- ples transformação de impressões actuaes ou passadas que no cerebro se reteem não por uma faculdade especial de memoria mas por uma propriedade geral e caracteristica do systema nervoso, a retentivi- dade. | Assim a percepção externa ou sensorial que nos conduz ao conheci- mento do mundo physico e de que os psycologistas teem feito uma fa- culdade irreductivel, não é na realidade mais do que um juizo esponta- neo implicado na impressão de resistencia. A percepção interna que nos revela os factos intimos e nos obriga a affirmar a existencia do Ew, tam- bem não é mais do que um juizo espontaneo implicado na impressão de dór ou prazer sentidos. A razão ou percepção de relações, não é uma fa- culdade especial, nem mesmo um caso da attenção, considerada esta como funcção irreductivel, mas sómente o conhecimento de um contraste ou de uma analogia, resultado de impressões da mesma ordem ou de or- dem differente que simultaneamente se recebem. Do mesmo modo a ima- ginação creadora por muito tempo considerada uma faculdade superior do entendimento, é apenas uma juxtaposição mental de impressões pas- sadas e revivescentes em um todo ideal a que nada de perfeitamente semelhante corresponde no exterior, mas que ahi tem os seus analogos. Abstrair é perceber impressões isoladas dos objectos; generalisar é reu- nir impressões semelhantes que por abstracção se perceberam separa- damente. Recordar, que na psycologia classica se cria manifestação da reminiscencia, faculdade autonoma, coadjuctora e complementar da me- moria, é apenas sentir como revivescentes impressões passadas. O mesmo diremos da vontade e dos mais elevados sentimentos, cujas origens ire- «mos encontrar nas impressões organicas. Assim, impressões sentidas e juizos ou relacionações entre ellas es- tabelecidos, eis a que o entendimento humano se reduz. Sob este ponto “ 162 HISTORIA NATURAL de vista não ha distincção entre o homem e os outros animaes superiores, mas semelhança. Conhecer phenomenos e relações, dissemos ao determinar a finalidade do entendimento. Ninguem o contestará; até mesmo no que levamos dito se percebe sem difliculdade que é este o fim e o exercicio da intelligen- cia. Exerce-se o poder intellectual percebendo um facto ou determinando uma relação qualquer de analogia ou differença. Como este ultimo phenomeno é o mais complicado, aquelle que me- lhor caracterisa o homem, dediquemos-lhe em especial algumas palavras. Perceber uma relação, pode ser um facto muito simples ou muito complexo. Quando pela impressão de resistencia percebemos que alguma coisa distincta de nós existe e aflirmamos a materia, a relação estabele- cida é simples e os juizos que a affirmam — eu ouço, eu vejo, eu palpo — são primitivos, espontaneos. Quando porém determinamos a relação se- gundo a qual os corpos se attrahem, lei de gravitação, ou as relações por que se combinam, lei das proporções definidas, realisamos um facto intel- lectual muito complicado, um raciocinio, e o juizo aque chegamos é de- rivado, reductivel, reflexo. Os juizos espontaneos, os primitivos, forma-os incontestavelmente o animal, como nós os formamos; os segundos, os re- flexos, são, pelo menos os mais complexos, privativos do homem e ex- plicam a perfectibilidade indefinida da nossa especie, o progresso con-. stante da nossa mentalidade, a creação e perfeição das sciencias, das industrias, das artes, de todas as grandes manifestações sociaes ue: no seu esajincto se denbrnitininá a civilisação. fregd O raciocinio que conduz aos juizos reflexos, pode seguir duas mar- chas differentes. Ou partimos da observação dó factos particulares exa- minando as condições em que se produzem, para inferir que nas mesmas condições factos semelhantes se realisarão de egual modo, e então o ra- ciocinio é inductivo; ou partindo, pelo contrario, de uma relação geral conhecida, d'ella extraimos uma relação particular ignorada, e o racio- cinio é deductivo. No primeiro caso, fundados na experiencia, descobri- mos as grandes leis geraes que dominam a materia; no segundo, pelo simples auxilio das leis intellectuaes exhaurimos todas as conclusões par- ticulares contidas n'um principio geral. O raciocinio deductivo. emprega-se de um modo preponderante na mathematica e nas sciencias menos com- plexas aonde o calculo é usado como o instrumento mais util e mais pro- ductivo da investigação; o raciocinio inductivo pertence principalmente ás sciencias complicadas, áquellas cujos phenomenos pela sua variabili- dade se não submettem aos processos rigorosos e inflexiveis da sciencia dos numeros. fados = MAMIFEROS EM ESPECIAL 163 CAPITULO TI aapilisia “ EMOTIVIDADE Quand il faut agir sur les hommes, combien Vé- motion a plus de force qu'un raisonnement glaçé! : LETOURNEAU. SEDE 4) : ditados str. “Ao lado do homem contemplativo, do que raciocina, está o homem “emocional, o que sente. As impressões que em nós determinam os factos “e as coisas, não conduzem sómente a formar idéas, a descobrir relações; “antes d'isso dão-nos prazer ou dôr, inspiram-nos sympathia ou repulsão. “Ao pé das necessidades intellectuaes que nos impulsionam para a verdade, “estão as necessidades sensiveis que nos instigam, mais violentamente “decerto, a procurar o que reputamos bello, agradavel ou à affastarmo-nos “do que parece desagradavel, feio, repulsivo. Assim sob a denominação “generica de emotividade estão comprehendidos todos os sentimentos desde o amôr até ao odio, desde o egoismo até à abnegação. — São numerosas, indefinidas mesmo, e de natureza diversissima, as “emoções que podem agitar o coração do homem. É todavia certo que em todas a analyse psycologica descobre, como observa Letourneau: «primeiro, uma forte impressão afpectiva, dôr ou prazer, como base, depois uma se- “ie de phenomenos psychicos ou cerebraes, que pertencem aos dominios “da memoria ou da imaginação, e acima de tudo o desejo.» ! É realmente “assim: na essencia a emoção, seja qual fôr a sua proveniencia, seja qual “fôr o grao a que se eleve, é sempre uma dôr ou um prazer moral sobre “que a intelligencia se exerce e que nos sollicita a desejar, a appetecer “alguma coisa que não possuimos e que se nos affigura um bem, uma “parcella de felicidade, a satisfação emfim de uma imperiosa necessidade “que nos agita. i Não tendo de modo algum a pretenção de classificar as pao e “muito menos de as descrever, o que constitue um dominio especialissimo da psycologia, procuraremos sómente examinar num ponto de vista phy- “siologico, as relações que ligam aquelles factos à vida organica cujas “funcções descrevemos. Sobre este ponto interessante que o leitor nos - permitta transladar para aqui uma pagina do brilhante escriptor que aca- 1 Letourneau, Physiologie des Passions, pg. 128. * 164 HISTORIA NATURAL bamos de citar. «Todas as emoções se reduzem physiologicamente, diz Letourneau, a uma perturbação nas relações que existem entre os centros nervosos, séde da emoção moral, e os nervos periphericos. | «Em consequencia desta emoção, ou uma excitação anomala se trans- mitte às redes nervosas, d'onde contracções musculares resultam, por exemplo—choques violentos do coração, ou as diversas secreções se exa- geram, ou ainda se suspende mais ou menos completamente a relação entre o systema peripherico e os centros, o que equivale a uma secção dos ramos nervosos e provoca perturbações funccionaes analogas ás que o physiologista estuda nas suas experiencias.» A este proposito Letour- neau cita as palavras seguintes de G. Sée: «Supponhamos que o ence- phalo se encontra fatigado pelo trabalho intellectual, por incessantes preo- cupações, por estados emotivos, supponhamos que a innervação da me- dula se esgota por abusos sexuaes; n'estes casos, os centros cerebro-ra- chidianos perdem a sua acção a ponto de experimentarem uma especie de paralysia. Os centros encontram-se então por assim dizer separados dos nervos periphericos que, a partir d'esse momento se acham priva- dos dos seus fócos nutritivos e se degradam, senão na estructura, pelo me- nos nas funcções. Que esta degradação attinja os nervos sympathicos e os pneumogastricos, e todas as funcções se modificarão : o coração e os pul- mões cessam de actuar segundo o rythmo normal, a circulação experi- menta estases nas glandulas vasculares e a formação dos globulos tor- na-se defeituosa.» ! Depois d'esta citação Letourneau continua: «Os si- gnaes physicos, grosseiramente apparentes, das emoções fortes, apresen- tam-se geralmente pela ordem seguinte : «O cerebro abalado por um violento choque moral, vive exclusiva- mente por elle. Ha concentração da actividade nervosa sobre um ponto, d'onde interrupção mais ou menos completa das relações entre os cen- tros nervosos e os outros orgãos. Os musculos voluntarios, esquecidos pelo eixo cephalo-rachidiano, debilitam-se, algumas vezes tornam-se mesmo completamente impotentes. As pernas dobram-se e um athleta torna-se então mais fraco que uma creança. Os orgãos dos sentidos es- peciaes tornam-se quasi inuteis; os ouvidos não escutam, os olhos não vêem, etc. Pode-se n'estas condições soffrer um ferimento grave, uma, mutilação, sem quasi o sentir. «As funcções organicas não escapam à perturbação geral. O cora- ção, cujo apparelho nervoso é mixto, em parte voluntario em parte or- ganico, cujas fibras musculares são estriadas, é o primeiro que se per- turba. Por vezes as suas pulsações precipitam-se por um momento, mas ” 1 G. Sée, Du sang et des anémies, MAMIFEROS EM ESPECIAL 165 em breve retardam-se e suspendem-se até, d'onde a pallidez da face e não raro a syncope. A respiração partilha naturalmente a sorte da cir- culação; as secreções perturbam-se e o trabalho digestivo suspende-se. Como os outros musculos, os esphincteres paralysados dilatam-se, perdem a tonicidade. * «Naturalmente as funcções intellectuaes propriamente ditas acham-se a ponto de suspender-se, haja ou não syncope. Torna-se impossivel 0c- cuparmo-nos de qualquer coisa estranha à impressão moral de momento. Este periodo de depressão moral porém, dura pouco tempo. A onda da vida, momentaneamente suspensa ou retardada, precipita-se com vio- lencia e uma energica reacção se produz. — «Á concentração da actividade nervosa succede uma larga expansão. O systema muscular retoma a actividade e algumas vezes mesmo adquire um poder assombroso. Os sentidos despertam-se; mas a attenção capti- vada sempre por uma idéa unica não permitte ao homem commovido perceber o que se não refere à emoção. Por isso as faculdades intelle- ctuaes não podem funccionar energicamente a não ser no sentido da im- pressão moral; pela mesma razão conservamo-nos ainda quasi insensi- veis à dôr physica. — «De fracas que eram, as pulsações cardiacas tornam-se violentas, rapidas, tumultuosas. O cerebro congestiona-se, a face torna-se vultuosa, a respiração rapida, entrecortada. As secreções produzem-se com uma actividade anormal; muitas vezes as lagrimas correm abundantemente e uma onda de bile derrama-se no intestino. Provavelmente todo o appa- relho glandular gastro-intestinal se encontra affectado, porque ha mui- tas vezes, nauseas, vomitos. A secreção lactea, que nas mães a emoção principia geralmente por suspender, nem sempre se restabelece. «Muitas vezes os rins excretam uma enorme quantidade de urina aquosa, incolôr. Se a bile é segregada em quantidade tal que não pode ser rapidamente expulsa, é reabsorvida; d'ahi a icterícia. Em geral o suor é abundante. «Que pensaremos das qualidades toxicas, especiaes, que certos li- quidos adquirem sob a influencia das emoções? Parece averiguado que depois de uma forte emoção o leite se torna improprio para a alimenta- ção das creanças. Tem-se dito, tomando para base alguns factos, que a mordedura de um homem durante um accesso de colera imprime á fe- rida uma gravidade particular. Refere-se que a raiva foi inoculada a um 1 Esta propriedade que não deve confundir-se com qualquer das outras que per- tencem ao musculo—a elasticidade ou a contractilidade, é o poder que elle tem de se manter sem esforço em contracção permanente por simples influencia nervosa invo- luntaria. 166 HISTORIA: NATURAL homem pela mordedura de um cão furioso, mas não hydrophobo: Gonsi- dera-se como demonstrado que o veneno da vibora é mais perigoso quando o animal está exasperado. Nestes casos a emoção actuaria ou viciando o humor segregado ou exagerando os seus principios activos. Como? Para responder é preciso esperar que o chimico e o micrographo se tornem capazes de determinar os caracteres dos virus, de e ua hoje conhecemos apenas a acção pathologica. à «Como quer que seja, no fim de um certo espaço de tempo pre riamente curto, a excitação organica desordenada, que a emoção produ- ziu, declina, deitado atraz de si a fadiga, O enfraquecimento, que me cedem sempre a uma despeza exagerada. «Nos organismos novos e vigorosos, tudo termina aqui; mas nos se- res debeis, nos doentes, nos velhos as consequencias de uma emoção forte são por vezes terriveis. Os orgãos previamente doentes supportam mais mal a parte que lhes cabe da desordem geral e conservam-se mui- tas vezes inflamados, congestionados, etc. E «Se o periodo depressivo é muito violento, pode matar por suspen- são da acção nervosa, provavelmente por cessação das pulsações cardia- cas. O periodo de reacção varia segundo as organisações. É mais rapido, mais violento, mais explosivo nos sanguineos e nervosos, mais ana nos biliosos, mais raro e mais fraco nos lymphaticos.» ! É esta a serie de factos physiologicos que invariavelmente peanir nham a emoção. Determinar o que se passa em sentido inverso, isto é as emoções produzidas pelos differentes estados organicos, seria importante mas de- masiadamente longo. Limitar-nos-hemos pois a recordar um facto perfei- tamente caracteristico: a paralysia geral acompanha-se sempre de mega- lomania ou delirio das grandezas. Não menos significativo é o facto da irrupção da erotomania ou delirio amoroso por simples estado congestivo. dos orgãos genito-urinarios. Estes factos escolhidos entre muitos, servi- riam a provar mais uma vez, se tanto fosse necessario, o nenhum funda- mento do antagonismo ou mesmo da distincção estabelecida pelos idea- listas entre o corpo e o espirito. Quando a emoção exagerando-se vivamente, se transforma num de- sejo violento e duradouro que domina tyrannicamento todo o nosso cere- bro, acha-se realisada a paixão. Desde então o homem não sente, não pensa, não trabalha fóra do circulo da sua emoção, ou ella se chame o odio, a vingança, ou seja amôr, ambição de gloria, fanatismo, exaltação ar- t Letourncau, Obr. cit., pg. 131 e 132. RR a no q ra dt MAMIFEROS EM ESPECIAL 167 | tistica, agitação reformadora, desejo de saber, de encontrar a verdade. O nome, o destino da paixão pouco importam. O phenomeno essencial é q mesmo sempre: preoccupação exclusiva de alcançar esse fim que se deseja, orientação de toda a intelligencia e de toda a actividade no sentido de en- contrar o caminho que mais rapidamente conduz à satisfação de uma vio- lenta necessidade moral que nos agita, que nos perturba, que nos torna insupportavel a vida, que nos faz infelizes. A suractividade nervosa que physiologicamente caracterisa este estado, implica uma lenta alteração do funccionalismo normal dos orgãos da vida vegetativa e, como observa Darwin, uma nova disposição dos traços physionomicos. As alterações circulatorias e digestivas, apparecem primeiro; depois veem as fundas perturbações respiratorias, as modificações quantitativas e qualitativas das secreções, a perda de forças physicas ou a sua momentanea. exalta- ção, segundo o periodo emocional, as cambiantes physionomicas emfim, que bastam a revelar-nos a presença de um apaixonado. Se a modalidade affectiva se prolonga para além de certos limites, a morte sobrevem às vezes, a loucura outras. | | - Estes estados não são privativos do homem; experimentam-nos egual- mente os animaes superiores. A. Ritti n'um bello estudo inserido na Re- vista de Philosophia Positiva 4 demonstrou a existencia da loucura affe- ctiva nos animaes superiores, mamiferos nomeadamente. De resto, sabem todos a que grao podem chegar n'estes seres alguns affectos e emoções dos que na especie humana consideramos mais elevados. pise E ii mesm or "aro mel + ps ER j CAPITULO IV VONTADE qe nh É dg “ Considerou-se por muito tempo synonimo de liberdade. Suppoz-se o “homem uma extravagante excepção entre os seres naturaes, uma nota discordante em meio do concerto universal. Tudo estaria submettido a 1 Vid. Revista cit. n.º 1 da 13.º serie, 1880. 168 HISTORIA NATURAL leis intransgressivas, invariaveis; o homem porém seria livre, capaz de actuar discricionariamente, sem determinismo de acção. Esta doutrina, que alguem chamou já o ultimo reducto da metaphy- sica vencida, é inteiramente falsa. O homem não é uma excepção; está como tudo o que existe submettido a leis, sujeito nos seus actos à rela- ção invariavel de causalidade que tudo domina e subjuga. Demonstra-o-a historia geral da humanidade, revelando, no longo curso das gerações, correntes d'actividade perfeitamente delimitadas e fatalmente produzidas. por condições ethnicas, geographicas, religiosas, economicas, politicas, por toda uma serie de causas que dão os seus effeitos de um modo tão seguro e inevitavel como o choque de um metal dá o som ou o attrito do: phosphoro dá a luz. Demonstram-o as estatisticas criminaes quando nos manifestam em todos os paizes invariavelmente um acrescimo na cifra das violações da propriedade sempre que uma crise economica se manifesta ; a egual conclusão nos levam as estatisticas de população de cada paiz quando com a mesma impassibilidade numerica nos provam que augmen- tam ou diminuem os casamentos segundo sobe ou desce a producção agri- cola. A um resultado identico nos conduz uma analyse psycologica feita sem opinião antecipada, sem preconceitos de escóla; ella demonstra que um principio precisamente determinado, domina a prodigiosa variedade dos nossos actos, que todos elles se regulam por uma lei, sempre a mes- ma, que Herzen denomina a lei do motivo mais forte. 4 À prova porém mais fundamental do determinismo psycologico, a que radicalmente demonstra estarem os actos humanos submettidos, como todos os phenomenos, à leis invariaveis, fornece-a a physiologia. Fallando dos reflexos, dissemos que estes phenomenos nervosos no seu caso mais simples se reduzem a uma impressão transmittida por um nervo sensitivo, impressão que chegando a uma cellula ou a um pequeno numero de cellulas centraes ahi se transforma, derivando depois para a peripheria por um nervo centrifugo como incitação motora. É este o caso dos reflexos medullares, unicos admittidos até que os trabalhos funda- mentaes de Luys fizeram acceitar a existencia de reflexos cerebraes. Nestes, o facto fundamental de transformação dynamica persiste, conser- va-se, mas complicando-se. A impressão em vez de attravessar um nu- mero limitado de cellulas que não executam mais trabalho do que trans- formal-a em movimento, como são as cellulas medullares, attravessa pelo contrario um numero indefinido d'outras, as cerebraes, que além da ac- ção metabolica, commum ás da medulla, exercem ainda a funcção idea- 1 Vid. o livro Physiologie de la Volonté, in Bibliothtque de Philosophie contem- poraine. MAMIFEROS EM ESPECIAL 169 lisante. Demais, como observa Luys, a retentividade que em todo o sys- tema nervoso se manifesta, é preponderante no cerebro, por maneira que cada cellula d'este centro vibra não só sob a influencia das impressões presentes, mas ainda das passadas. D'este modo quando uma impressão qualquer na sua marcha centripeta attravessa a longa corrente das cellu- las cerebraes, desperta em cada uma d'ellas toda a somma de impres- sões antigas, n'aquelle momento revivescentes. E todas estas impressões posthwmas, como lhes chama Luys, toda esta enorme somma de modali- dades dynamicas que pareciam ter esquecido e que agora revivescem, veem junctar-se à nova impressão, aa movimento sensitivo actual no seu trajecto pelas camadas corticaes do cerebro, modificando-o, transforman- do-o, tornando-o, segundo a feliz expressão do eminente physiologista que citamos, uma verdadeira synthese dynamica. "Os exemplos melhor evidenciarão a nossa idéa: | — Se introduzo um bico de alfinete no braço de um homem que dorme ou delle approximo um corpo em ignição, o individuo retira brusca- mente, embora não acorde, o membro estimulado. Eis o typo do acto re- flexo medullar, o mais simples; — impressão sensitiva rapidamente trans- formada em movimento, em contracção muscular. A execução d'este acto não implica a presença effectiva do cerebro; realisa-se no homem que dorme, como no animal decapitado. Tomemos uma rã a que previamente tenhamos extraido o encephalo. Piquemos-lhe uma pata, laceremos-lhe a epiderme; o membro será retirado. Levemos a experiencia mais longe; não contentes com os processos mechanicos, lancemos-lhe sobre a pata um acido corrosivo, o acido sulfurico, por exemplo. O animal vivamente estimulado agora, fará mais do que retirar o membro; agital-o-ha vio- lentamente no ar, exercerá sobre elle attritos com o outro membro, pro- curará por todo um systema de movimentos ordenados, justos, iamos quasi a dizer racionaes, retirar da parte chimicamente irritada o acido empregado. E no entanto todo este habil concerto de acções se executa sem a assistencia do cerebro. São puros actos authomaticos, estes, mo- vimentos presididos exclusivamente pela medulla. Caracterisa-os a per- feição e rapidez com que se executam. Nos actos reflexos do cerebro, os phenomenos não se passam pre- cisamente d'este modo. Affronte-se um homem dirigindo-lhe palavras gros- seiras, calumniosas, ou mesmo investindo com elle, espancando-o; a reac- ção dá-se, mas é muito possivel, mesmo vulgar, que entre a impressão recebida e o movimento ou movimentos de desaffronta decorra um es- paço de tempo grande e até mesmo que os actos realisados sob a in- fluencia da reacção não sejam os mais proprios, os mais adequados ao fim.que se deseja conseguir. É muito commum a existencia de individuos que, em circumstancias taes, se permittem largos intervallos de perple- 170 HISTORIA NATURAL. xidade; do exame repetido d'estes casos nasceu mesmo a phrase habi- tual ruminar a affronta. É sabido tambem e geralmente notado que nos casos de grandes calamidades ou desastres que nos ferem, não só gas- tamos na irresolução um tempo que nos seria utilissimo empregar, mas ainda que no momento de acção os nossos movimentos são, não raro, desconcertados, inhabeis, desconnexos. É pois certo em face destes exemplos, como de muitos outros, que nos reflexos cerebraes entre a impressão sentida e a reacção determinada ou movimento, decorre um tempo muito maior que o analogo correspondente aos reflexos medulla- res. Assim, se dividirmos, como fazem todos os physiologistas, os actos reflexos em tres periodos — incidencia, propagação e emissão, diremos que nos reflexos de origem cerebral o periodo de propagação é muito mais demorado que nos de origem medular. É tambem certo em face dos mesmos exemplos, que a serie d'actos praticados sob a influencia do pensamento é geralmente menos bem coordenada do que quando as fa- culdades mentaes não existem; isto equivale a dizer que o producto de um reflexo cerebral é em regra menos perfeito que um producto ana- logo do reflexo medular. À razão d'estes factos está provavelmente em que a revivescencia de impressões durante o periodo de propagação implica, nos reflexos ce- rebraes, a creação de factores novos do movimento final, que precisam de encontrar, o que não é facil, a sua orientação dynamica. Se eu actuar por meio de uma força unica sobre um corpo, é certo que desde o mo- mento em que a força incide, esse corpo se move n'uma certa direcção; se porém à energia primitiva novas energias veem addicionar-se, actuando em sentidos ou direcções differentes, pode haver um tempo mais ou me- nos apreciavel durante o qual o movimento se não executa por não estar achada ainda a resultante d'estas forças divergentes. Factos analogos se realisariam no caso dos reflexos da medulla e do cerebro. No primeiro caso, no caso perfeitamente authomatico, o movimento seguiria sem in- terrupção ou intervallo o acto impressivo, porque a força incidente é uma só; no segundo caso, no caso cerebral, entre a impressão primi- tiva e o movimento final medeiaria um espaço de tempo ou intervallo de | repouso, de equilibrio, gasto em achar a direcção de uma resultante, porque à força incidente inicial veem junctar-se novas forças —as im- pressões revivescentes, actuando cada uma n'um sentido particular e exclusivo. As impressões que se despertam de novo, as forças revives- centes, constituem o que psycologicamente chamamos os motivos ; do em- bate d'elles resultaria 0 repouso, o equilibrio, quer dizer a perplexidade, a irresolução. Vencida esta, o 'acto principiaria a executar-se; como po- rém as impressões revivescentes continuariam a produzir-se é a ser ex- portadas sob a forma de movimento, os actos finaes seriam ainda pela Cine o MAMIFEROS EM ESPECIAL 171 addição constante d'estas novas forças, irregulares, vacillantes, indecisos, como vêmos nos que executam uma acção tremendo, suspendendo-a até em meio. Novos motivos, novas ordens centraes importam esta falta de firmeza no orgão que obedece. São estes os elementos que a mechanica cerebral fornece para a explicação de todos os nossos actos. Á luz delles dissipa-se o preconceito do livre arbitrio e ao mesmo tempo a illusão que conduz a estabelecer diferenças radicaes entre o instincto e a vontade. - Quando dizemos acto voluntario é como se disseramos consciente; quando dizemos instincto queremos significar authomatismo. Ora a von- “tade emerge do instincto, a consciencia do authomatismo cego. Dos fa- ctos primitivamente instinctivos passamos lentamente aos actos volunta- rios; da inconsciencia que caracterisa os primeiros actos da nossa vida, derivamos sem solução de continuidade, sem saltos bruscos á conscien- cia, à voluntariedade. O instincto e a vontade tanto não são manifes- tações activas incompativeis, antinomicas, que persistem no mesmo ser durante largo espaço d'annos. E, o que mais é, transformam-se um no outro o authomatismo e a consciencia. Actos authomaticos podem tor- nar-se conscientes e inversamente. Todo o acto que nas primeiras ve- zes que se pratica reclama um esforço, uma attenção demorada, uma effectiva assistencia do cerebro, pode pela repetição dispensar intei- ramente todo o trabalho mental, exercer-se de um modo absolutamente authomatico, e tornar-se então mais perfeito. A marcha pode servir- nos de exemplo. Quanta attenção dispendida, quantos esforços consu- midos, quanta actividade consciente gasta em realisar os primeiros pas- “sos, incertos, vacillantes, mal seguros! Depois pela repetição o acto tornou-se authomatico, dispensou toda a attenção e todo o esforço. Na idade adulta a marcha é um phenomeno inconsciente. Com a escripta dá-se o mesmo. Que somma d'esforços e de attenção para traçar as pri- meiras lettras! E que vacillação, que deselegancia n'aquelles traços que tanto nos custam a dar! A repetição do acto torna-o porém authomatico ; e quando o authomatismo se realisa, realisa-se tambem a perfeição, a rapidez e a facilidade no que antes era imperfeito, demorado, dificil. O mesmo ainda com a leitura. Diz Delboeuf: «Como aprende a creança a lêr? É indispensavel primeiro que reconheça bem a forma das lettras. Nos primeiros tempos confunde os a com 0s 0, 0sn eos wu, os be d,.os p e q; devem ser-lhe indispensaveis muitas comparações para que che- gue a reconhecer os seus caracteres distinctivos. Todas as vezes que a creança emitte um juizo e diz de um a que é um q e de um o que é um o; é necessario que tenha justificado a si mesmo o porque d'este juizo, 172 HISTORIA NATURAL Mas pelo exercicio este juizo torna-se cada vez mais rapido, de modo que, dado este primeiro passo, pode proceder-se ao estudo das syllabas. É necessario agora que a creança aprenda a distinguir os na dos am, os ou dos vo, os ie dos ei; novas comparações, novos raciocinios, novos exercicios. Depois, estas difficuldades são por seu turno, vencidas; chega- se então ao conhecimento das palavras, depois das phrases. Que tempo, que esforços, que estudos não são precisos antes de chegar a lêr corre- ctamente! Por fim consegue-se este resultado, chega-se a perceber im- mediatamente o sentido de uma phrase pela simples inspecção do texto, precisamente como certos jogadores addicionam por um simples olhar cinco ou seis pedras do dominó dispostas diante d'elles. Chegados a este ponto, perdemos absolutamente a consciencia dos actos preliminares por que nos foi indispensavel passar para adquirir a intelligencia da phrase. Não nos apercebemos mais de que soletramos, de que julgamos da forma das lettras e da sua posição respectiva nas syllabas, etc.; partem comprehender n'um conjuncto, de relance, tudo o que temios » 4 Em todos os actos mechanicos ha sempre um esforço primitivo, um estado voluntario, consciente que se vence, que se esquece e do qual passamos à inconsciencia, ao authomatismo, à facilidade da acção instin- ctiva. É n'esta observação que se funda a divisão do trabalho nas indus- trias. O exclusivismo do trabalho de um operario, a sua attenção dirigida sómente sobre uma certa acção, implica o authomatismo della, e assim a sua maior perfeição e rapidez. Pode seguramente aflirmar-se com Luys, com Herzen, com Taine, com a maioria dos physiologistas e pensadores contemporaneos que a vontade emerge do authomatismo para de novo voltar a elle, que a consciencia deriva do inconsciente voltando mais tarde ao ponto de partida, à ori- gem. N'esta dupla transformação progressiva e regressiva se esgota toda a nossa vida nervosa. O homem move e agita ao nascer de uma maneira authomatica os seus membros inferiores; mais tarde estes movimentos tornam-se conscientes e meditados nas primeiras tentativas de marcha. regular; depois quando a locomoção se torna habitual, os ii dos membros retomam a originaria e primitiva inconsciencia. Assim se desvanecem os preconceitos do livre arbitrio e da ms opposição entre o instincto ou authomatismo e a vontade. 1 Delbeuf, La Psycologie comme science naturelle, pg. 91. ip im MAMIFEROS EM ESPECIAL 173 SA mes 25 CAPITULO V LINGUAGEM «AO aa! ndash = ; o resultado de uma serie de vibrações sonoras realisa- las na larynge e modificadas ao attravessar a bocca pela articulação que “lhes imprimem os orgãos de loquella : lingua, abobada palatina e labios. Quando o ar proveniente dos pulmões passa pela larynge, põe em movi- mento as partes vibrateis d'este orgão; e os sons emittidos variam então segundo a forma que aquelle instrumento organico affecta pela acção dos musculos que n'elle se inserem. fe! H ego ABI ? ate ti LARYNGE eps SMA 73 id situação anatomica da larynge é na parte anterior e superior do do. por diante da columna vertebral de que está separada pela pha- - rynge e por baixo do osso hyoide a que está fixa pela membrana thyro- hyoidea e cujos movimentos segue. A parte inferior da larynge continua-se com a trachea-arteria; a sua parte superior acha-se coberta por uma es- pecie de tecto membranoso denominado epiglote. Quando a epiglote se fe- cha os alimentos destinados à pharynge não podem cahir dentro do ap- parelho vocal; o contrario acontece se a epiglote se abre no momento da ingestão de qualquer substancia, como quando fallamos comendo. Então uma particula de substancia alimentar pode penetrar na larynge provo- cando um violento attaque de tosse, que se prolonga até à completa ex- pulsão do corpo estranho. O diametro vertical da larynge é de quarenta e quatro millimetros, o seu diametro transverso de quarenta e trez e o antero-posterior de trinta e seis. A larynge é constituida por um esqueleto cartilagineo de que as dif- ferentes partes se acham connexas por meio de ligamentos e movidas pela acção de musculos. A cavidade do orgão da voz, como em geral a 174 HISTORIA NATURAL de todos os orgãos interiores da economia, é forrada por uma membrana mucosa. As cartilagens da larynge, moveis umas sobre as outras, podem ser deslocadas pela contracção dos musculos e estas deslocações teem por effeito distender as partes chamadas cordas vocaes que ahi se inserem. Das cartilagens laryngeas umas são impares outras pares. As impa- res são: a cartilagem cricoidea, a cartilagem ihyroidea e a epiglote; as pares são as cartilagens arytenoideas. Os ligamentos que unem estas carti- lagens podem considerar-se dependencias de uma membrana elastica que se encontra na face interna da mucosa. A cartilagem cricoidea forma a base da larynge. Ella sustenta as car- tilagens thyroidea e arythnoidea e é supportada pela trachea à qual a prende um ligamento. A cartilagem thuyroidea é formada por duas laminas quadrangulares que se reunem em angulo recto pelo seu bordo anterior na linha media, formando uma saliencia conhecida na linguagem vulgar pelo nome de póômo de Adão. É no angulo reintrante que por traz d'esta saliencia se encontra na linha media, que se inserem o vertice da epiglote e uma porção das cordas vocaes. A cartilagem thyroidea acha-se ligada ao osso hyoide por uma mem- brana fibrosa chamada thyro-hyoidea. Os bordos anteriores d'esta cartila- gem prolongam-se lateralmente em saliencias juxtapostas que se denomi- nam grande corno e pequeno corno. O grande corno articula-se com 0 osso hyoide. As cartilagens arytenoideas estão situadas na parte posterior da cartilagem cricoidea. Teem a forma de uma pyramide triangular que es- taria collocada sobre esta ultima, segundo a comparação dos anatomicos, como um cavalleiro sobre o seu cavallo. Á superficie d'estas cartilagens insere-se uma das extremidades das cordas vocaes. No vertice das cartilagens arytenoideas encontram-se dois nucleos cartilagineos conhecidos pelo nome de cartilagens de Santorini e de Wris- berg. A epiglote é uma lamina delicada, fibro-cartilaginea, situada por traz da base da lingua, adiante do ourifício superior da larynge sobre o qual se applica quando a lingua recua no acto: da deglutição. A epiglote está fixa ao angulo reintrante da cartilagem thyroidea por meio de um liga- mento. Os musculos da larynge são nove é impares todos, se exceptuarmos o arytenoideo. Todos estes musculos teem por fim produzir a dilatação ou constricção da glote, isto é o affastamento ou approximação das cor- “das vocaes. Á excepção do crico-tyroideo, todos teem uma das suas inser- ções sobre à cartilagem arytenoidea. O crico-arytenoideo affasta pela sua contracção as cordas vocaes; todos os outros são constrictores.. MAMIFEROS EM ESPECIAL 175 “+ O crico-thyroideo, musculo situado na parte anterior da larynge, vae da parte anterior e externa da cartilagem cricoidea sobre os lados da li- nha media ao bordo inferior da cartilagem thyroidea. O amy-arytenoideo ou amytenoideo posterior, collocado na parte poste- rior da larynge, estende-se dos bordos de uma das cartilagens arytenoi- deas à outra. O crico-arytenoideo posterior e o crico-arytenoideo lateral vão da car- tilagem cricoidea à cartilagem arytenoidea. O tyro-arytenoideo, situado nas partes lateraes da larynge, vae do angulo reintrante da cartilagem tyroidea ao bordo externo da cartilagem arytenoidea; está comprehendido na espessura da corda vocal inferior. No cadaver o ourificio superior da larynge tem a forma de um V cujo vertice estaria voltado para diante por virtude de uma tendencia que teem as cordas vocaes a afastar-se; no vivo porém esta forma é susceptivel de experimentar numerosas e diversissimas modificações. - A cavidade da larynge é limitada pelas pregas musculo-membrano- sas a que se deu o nome de cordas vocaes e que vão do espaço compre- hendido entre o angulo reintrante da cartilagem thyroidea à parte ante- rior das cartilagens arytenoideas. Ha quatro, duas de cada lado. As cordas vocaes superiores, uma direita, outra esquerda, são for- madas por uma simples prega da mucosa e pelos ligamentos thyro-ary- tenoideos superiores. A cavidade abaixo situada, continua-se com a tra- chea. As cordas vocaes inferiores são constituidas pelo feixe interno do mus- ; iii thyro-arytenoideo e pela mucosa que o cobre. - Às cordas vocaes representam dois triangulos juxtapostos quando se dia a larynge pela sua face superior. O espaço comprehendido entre as “duas cordas vocaes inferiores é o que se chama a glote. O espaço compre- hendido entre as cordas vocaes superiores e inferiores do mesmo lado, recebeu o nome de ventriculo da larynge ou ventriculo de Morgagni. À “-glote é a parte mais estreita da larynge. A larynge recebe vasos importantes, ramos das arterias laryngeas. MACHINISMO POR QUE SE PRODUZEM OS SONS NA LARYNGE E p “Entre 0 que se chama voz e o que denominamos palavra, é indispen- savel estabelecer differenças. A voz é simplesmente o som que a larynge 176 HISTORIA NATURAL emitte quando o ar expirado pelos pulmões a attravessa; a palavra é a voz modificada pelos labios, pela lingua, pelos orgãos chamados de lo- quella, a voz decomposta em sons distinctos e independentes tendo cada um a sua feição propria, o seu caracter especial. Assim a palavra é pri- vativa do homem em quanto a voz pertence a muitos outros animaes. Suppoz-se muito tempo que a voz era devida à passagem do ar atra- vez do ourifício estreito da glote, à similhança do que acontece no tubo de um assobio. O facto porém, é outro; os sons que produzem a voz são exclusivamente devidos à vibração das cordas vocaes inferiores. A larynge em vez de comparar-se a um assobio, como na anatomia classica, deve antes approximar-se de um tubo de palhetas fixas por uma das suas extremidades à parede do instrumento e livres pela outra. As palhe- tas são na larynge as cordas vocaes inferiores; o tubo é a propria la- rynge acrescentada pela bocca e pela trachea que servem a modificar ou a reforçar os sons d'aquellas cordas. O pulmão e a trachea lançam o ar no instrumento; a approximação ou affastamento das cartilagens thy- roideas e arytenoideas determinam a variação de tensão das cordas vo- caes. Dada a comparação que estabelecemos, é facil comprehender que a extensão da larynge tem uma sensivel influencia sobre a acuidade maior ou menor nos sons. Quanto mais extensa é a larynge mais agudo é o som, quanto mais curta, mais grave. Isto explica porque os cantores na emis- são dos sons agudos inclinam a cabeça para traz, emquanto que a abai- xam anteriormente na producção dos sons graves; no primeiro caso alon- gam a larynge, no segundo encurtam-a. ' Durante a producção dos sons, a trachea, os bronchios, as cavidades nasaes e a cavidade da pharymge, vibram ao mesmo tempo que a la- rynge; é por isso que a alteração morbida d'estas partes implica modifi- cações no timbre da voz. x Só as cordas vocaes inferiores entram em vibração quando os sons se produzem, e mesmo parece provado pela experiencia que não é a to- talidade das cordas que vibra, mas apenas a mucosa que as cobre, por- que uma vez destruida esta, cessa a possibilidade de emittir sons. A PALAVRA Na producção do que chamamos palavra é indispensavel que os sons emittidos pela larynge e modificados nas cavidades da pharynge e da MAMIFEROS EM ESPECIAL 177% “bocea de modo a representarem as vozes ou vogaes, se juntem ou asso- E “ciem a ruidos ou vibrações irregulares produzidas n'estas mesmas ca- vidades—as consoantes. É pela combinação das vogaes e consoantes em 4 syllabas e pela combinação d'estas entre si, que se forma a palavra ou E a linguagem, na accepção rigorosa d'este termo. São pois indispensaveis , para fallar, não só os orgãos emissores dos sons, mas ainda o que cha- mamos orgãos da loquella, os labios, a lingua e a abobada palatina. As alterações pathologicas d'estas partes implicam pelo menos a confusão “da palavra, quando a não tornam absolutamente impossivel. “À pureza da palavra, a sua emissão nitida, clara, dependem ainda essencialmente do ouvido; a voz dos individuos que ensurdecem toma cet desagradaveis e obscuras. a sam E pá palávra ou voz articulada, como todas as funcções do organismo, exerce-se sob a influencia do cerebro onde existe um centro especial que preside à sua producção. Esse centro chamado centro de Broca, porque foi este medico e anthropologista notavel que o descobriu e por numero- sas observações demonstrou a sua existencia, reside na terceira circum- volução esquerda e anterior do cerebro. À aphasia ou impossibilidade de fallar, de origem nervosa, depende, segundo é absoluta ou sómente re- ativa a certa ordem de palavras, da destruição parcial ou total d'aquelle centro, o que tem logar umas vezes por existencia de tumores encepha- licos, outras vezes, caso mais vulgar, por hemorrhagias cerebraes. “A aphasia parcial, a mais commum, é um phenomeno curiosissimo de que muitos observadores, C. Bernard nomeadamente, teem descripto “em livros especiaes exemplares admiraveis. Em alguns casos o aphasico não pode pronunciar senão uma phrase ou uma palavra unica tendo toda- via o conhecimento d'esta impotencia. É então um singular e commove- dor espectaculo ouvir o enfermo responder invariavelmente, inalteravel- mente com a mesma phrase a todas as perguntas que se lhe dirigem, sentindo ao mesmo tempo que diz mal e que não pode dizer melhor. Outras vezes o aphasico pode ainda pronunciar um grande numero de palavras, todas porém de uma só cathegoria grammatical, substantivos por exemplo. Então o doente pode fallar por grande espaço seguido de tempo com extrema loquacidade, mas não diz; as suas palavras conti- nuadas não teem nexo, não constituem phrase, não formam sentido. Esta situação extraordinaria pode, como a anterior, ser consciente, o que at- terra o enfermo agravando o seu estado pela preocupação moral que o phenomeno implica. Tem-se discutido largamente a origem historica da linguagem. Esta questão posta como no seculo passado com o sentido de saber por que 12 ca E IT o E Ear, Gi id a Si 178 HISTORIA NATURAL processo o homem articulou a primeira palavra, é perfeitamente esteril. e ociosa. À unica questão que pode utilmente investigar-se é a da trans-. formação evolutiva das diferentes formas de linguagem desde as mais degradadas até às mais correctas e perfeitas. N'esse trabalho andam em- penhados os philologistas contemporaneos mais distinctos, como A, Schlei- cher e Wilhelm Bleek. A linguagem teria uma origem nino ou multipla, isto é derivarão as linguas actuaes de uma só lingua primitiva ou cons- tituir-se-hiam desde o começo diversas formas de linguagem simultanea- - mente? Eis uma outra questão a que conduz a primeira e sobre a qual se discutem actualmente opiniões oppostas. Bleek por exemplo vota pela origem monophyletica da linguagem; Schleicher e Friedrich Miiller crêem na origem polyphyletica da palavra. A questão debate-se entre estes e outros notaveis philologos sem que chegasse ainda a hora do accordo. «A verdadeira linguagem fallada, diz Heeckel, expressão exacta da idéa, o que se chama a linguagem articulada, que transforma por abs- tracção os gritos em palavras e liga as palavras em proposições, uma tal linguagem é propriedade exclusiva do homem.» ! Ao lado desta linguagem porém, uma outra existe que pertence aos animaes e de que usamos tambem ou quando a lingua que sabemos é desconhecida no paiz onde n'um dado momento nos encontramos ou ainda quando o excesso de emotividade se não compadece com o methodico e demorado emprego da palavra. Esta linguagem é nos animaes superiores formada pelos gri- tos e attitudes do corpo; nos seres mais infimos, nos que occupam um logar inferior na escala zoologica, como os articulados, a linguagem é tactil. É esta ultima especie a empregada pelas formigas, por exemplo, que se comprehendem e umas ás outras se dirigem só pelo contacto das antenas 2. É inutil insistir sobre este ponto. A linguagem dos animaes, espe- cialmente a dos gritos, é geralmente conhecida. É por ella que os carniceiros e as aves de preza se dão o signal de combate e por ella tambem que os perseguidos se avisam e se reunem para combater ou fugir. É pelo grito que as hyenas conseguêm reunir-se em bandos ou para cercar um cadaver insepulto que deve servir-lhes de repasto ou ainda para umas ás outras afugentarem o mêdo que lhes causa a perseguição dos cães exercitados em seguil-as. 1 Heckel, Obr. cit., pg. 599. 2 Vid. J. Lubbock, Les mours des fourmies. MAMIFEROS EM ESPECIAL 179 À linguagem tactil não é tão geralmente conhecida; e no entanto não jos evidente aos olhos do observador. Nas formigas é extrema- iosa. Uma experiencia simples a comprova. Tomemos uma caixa lar de vidro imperceptivelmente furada n'um dos angulos, ta- ) ourifício com cuidado e lançemos no interior da caixa uma for- pequeno animal percorrerá impacientemente toda a extensão o aberto. O novo animal dirige-se immediatamente ao pri- -0, é passados instantes o observador vê-os dirigirem-se am- direcção do ourifício que attravessam, recobrando assim a liber- “pois evidente que uma communicação se realisou entre as duas Leva 4 =» este Ls SP BRR * Robo apta E pt mL bio CEE E os RR a oi Ê A ERES k o E ; á : SO 4 Di rsAea tn AE A Ur edad sl . Y k j ; é à E by É b it e : ] cá, a MRE r A DA . ” sp te q E. + Wa as 1 » t Na » Ê ; Y MÃE do MR E à ab E Lda , e: Qd = a . Ê q ê “o 4 & : EV y z j s . s e. j a ; é ' - ma é ) 1 ) ; pés , ; Tp e e) 21 pa o mi dd 1? me ê E RE 4 N - gu Lt ea dad cada : > MAMIFEROS EM ESPECIAL 181 RAÇAS HUMANAS Le genre humain "descend-il on ne descend-il pas d'un seul couple? Le grand débat que s'éter- nise sur ce point repose uniquement sur une faus- se position de la question. HackKEL. As noções de especie, variedade e raça, consideradas na zoologia clas- sica como perfeitamente distinctas, não o são. A escóla transformista desde Lamark a Darwin, desde Goethe a Haeckel, tem demonstrado quanto ha de variavel e arbitrario n'estas concepções, tem insistido em notar a falta de accordo entre os naturalistas quando se trata de classificar certos animaes ou plantas referindo-os a tal ou tal especie, variedade ou raça. Um dado grupo de vegetaes que para uns constitue uma especie distincta, para outros é apenas uma raça, para uns terceiros ainda, sim- plesmente uma variedade. Em relação aos animaes, o mesmo. Todos os caracteres successivamente invocados como os mais proprios para diffe- renciar estas cathegorias naturaes, teem cahido diante da analyse dos factos. E esta tergiversão, esta falta de fixidez e segurança do espirito em questões taxonomicas, parece-nos inteiramente natural, mais até, absolutamente inevitavel; nem vêmos razão, que não seja um precon- ceito de escóla, para as irritantes discussões levantadas entre naturalis- tas a este proposito. Que o transformismo seja attacado, combatido, re- geitado no que tem de puramente hypothetico, de imaginoso, compre- hende-se; mas que em nome de um exclusivismo de escóla, em nome de preconceitos theologicos se venha levantar uma lucta contrá esta doutri- ha, precisamente nos seus pontos inattacaveis, justamente quando ella nos demonstra as illusões da sciencia antiga, é dar provas de indisciplina mental. Os generos, as especies, as raças e as variedades não são rigorosa- mente mais do que pontos de vista subjectivos sob os quaes encaramos os productos da natureza. Como concepções do espirito devem ter inevi- tavelmente estas duas qualidades: serem variaveis de individuo para individuo e não se ajustarem sempre à natureza que pelas suas cam- biantes quebra, não raro, o rigor geometrico e definido das nossas for- mulas mentaes. Na questão das raças humanas, o que vimos dizendo sobre as di- vergencias dos naturalistas ácerca das distincções entre raças e espe- 182 - HISTORIA NATURAL cies, evidenceia-se profundamente. Ao passo que uns zoologistas, consi- derando todos os homens nascidos de um só e unico par primitivo, ad- mittem a existencia de uma especie humana de que os differentes typos conhecidos são raças, outros, tomando um ponto de partida opposto, vo- tam pela pluralidade das especies humanas. Acham estes ultimos que os caracteres que distinguem diferentes grupos humanos são de tal natu- reza, tão profundos que bastam a justificar a admissão de tantas espe- cies quantas as raças por outros descriptas. Haeckel que se inclina para esta opinião, cita com enthusiasmo as palavras seguintes de Quenstedt: «Se o negro e o caucasico fossem caracoes, os zoologistas affirmariam unanimemente que são excellentes especies não podendo nunca ter de- rivado um só par de que gradualmente se tivessem affastado.» ! Hoe- ckel repete este mesmo pensamento, quando escreve: «Segundo a ge- nése biblica, as raças humanas deveriam todas descender de um só par, de Adão e Eva, e não seriam por consequencia mais do que variedades de uma especie unica. Todo o observador imparcial confessará no em- tanto, que as diferenças entre estas raças são tão grandes e mesmo maiores que as differenças especificas sobre que se fundam os zoologis- tas e os botanicos para distinguir as boas especies animaes e vege- taes.» 2 A questão de saber se o genero humano descende de um só ou de muitos pares, acha-a Haeckel mal posta. Segundo o dizer d'este eminente naturalista, é tão ridiculo e tão absurdo agitar esta questão como o se- ria perguntar se derivam de um só par inicial ou de muitos, os cães de caça, os cavallos de corrida, os Inglezes ou os Allemães. O sabio justi- fica a sua asserção, dizendo que todas as especies derivam d'especies anteriores. Para elle o homem primitivo, o pithecoide, derivaria do ma- caco anthropoide, o macaco-homem; é o ponto de vista hypothetico da es- cóla transformista. Regeitando todas as asseverações indemonstraveis, todas as doutrinas hypotheticas, ou ellas derivem da inspiração theolo- gica ou do cerebro dos sabios, nós achamos a questão mal posta por ociosa e insoluvel. O que tem a sciencia com os preconceitos de uma educação religiosa ou com o subjectivismo dos sabios? De resto, para in- vestigar a unidade ou pluralidade das especies humanas, não é preciso inquirir a questão de origem; para classificar grupos naturaes não é im- dispensavel conhecer-lhes as proveniencias. Crêmos infundadas e anti- scientificas todas as coordenações taxonomicas derivadas de uma hypo- these, por acceitavel e racional que ella pareça. Se ha um dominio na 1 Heckel, Obr. cit. pg. 597. ? Tbidem. MAMIFEROS EM ESPECIAL 183 sciencia onde o espirito de positividade deva ser exclusivo, é certamente O que se refere ás classificações. Tomemos os productos da natureza taes “quaes são: que o nosso trabalho de investigação taxonomica saiba redu- -zir-se prudentemente ao que é actual, ao que pode submetter-se à ob- servação directa sempre susceptivel de repetir-se e aperfeiçoar-se. Estamos muito longe de dar uma importancia capital à questão de saber se o que vulgarmente se chama raça o érealmente ou deve con- siderar-se especie, porque nos parece que a differença de nomes, uma vez provada a arbitrariedade d'elles, não pode implicar para o espirito “de ninguem uma illusão sobre caracteres differenciaes dos seres a clas- sificar. Parece-nos tão absurdo que os zoologistas da velha escóla venham “quebrar lanças à arena scientifica pela defeza de uma especie humana, como nos parece ridiculo e monstruoso que os evolucionistas, depois de terem demonstrado o nenhum fundamento racional da noção de especie “fixa, venham intransigentemente luctar sob as bandeiras da pluralidade das especies humanas. No fundo nós vemos apenas os velhos rancores “tradicionaes de escólas metaphysicas, o odio redivivo de systemas que tomam as palavras por idéas. Que os seres cathalogados em cada grupo, releve-se-me 0 termo, sejam semelhantes entre si e diversos de todos os outros, eis o que importa, o que é fundamental; o rotulo, a etiqueta que os designa, é ponto secundario sobre que o accordo será util para cla- reza da linguagem, mas de nenhum modo essencial para o rigor scienti- “fico. Mas se nos perguntarem que nome daremos emfim aos grupos hu- “manos cujos caracteres vamos estudar, diremos que, discordando do “modo de vêr de Heeckel e de Quenstedt, continuaremos com a maioria “dos naturalistas a dar-lhes o nome de raças. Em primeiro logar, porque “é um termo consagrado pelo uso, e somos da opinião de Stuart Mill de “que mais vale para a clareza conservar as palavras geralmente empre- gadas, para designar uma certa coisa, modificando-lhes o sentido, do que “destruir a nomenclatura existente para principiar o emprego de uma lin- “guagem nova ou de novas applicações ignoradas. Em segundo logar, por- «que se entre os termos de especie e de raça é licito conservar diffe- renças, servindo o primeiro para designar grupos mais bem accentuados, classes cujos individuos mais profundamente se assemelhem por caracte- “res importantes e o segundo para designar cathegorias naturaes menos -distinctas do genero ou simples subdivisões da especie, incontestavel- “mente cabe aos grupos humanos o nome das raças de uma especie cara- seterisada por duas condições de primeira ordem: a existencia de lingua- gem articulada e a impossibilidade de cruzamento fertil com individuos de quaesquer especies conhecidas fóra do genero homem. Reconhece- mos inteiramente a somma e a importancia por vezes enorme dos ca- racteres que distinguem os homens uns dos outros, um europeu de um 184 HISTORIA NATURAL o negro da Nova Guiné por exemplo; mas não nos parece que todos esses caracteres differenciaes de côr, de intelligencia, de forma de craneo, de costumes ou de emotividade, possam, apezar de grandes, equilibrar os carecteres unitivos da linguagem e da fecundação limitada. As classificações de raças humanas são extremamente variaveis no numero dos grupos e natureza d'elles, de auctor para auctor, segundo os caracteres que se tomam para base e que são gomimointo-sg forma poi craneo, a côr da pelle e a natureza dos cabellos. F Sob o primeiro ponto de vista teem sido divididos todos os Irointái em dolichocephalos, quando o diametro antero-posterior da cabeça predo- mina consideravelmente sobre o lateral (cabeças longas e estreitas); bra- chicephalos, quando o diametro lateral é notavel e a cabeça parece acha- tada de diante para traz (cabeças largas e curtas); finalmente mesoce- phalos, em que uma justa proporção se conserva entre os dois diametros (cabeças medias). Cada um destes grupos subdivide-se ainda em progna- tos, quando os maxillares fazem saliencia anterior em forma de focinho e orthognatos, quando os maxillares são pouco salientes de forma que os incisivos teem uma posição vertical, dada a estação erecta. É o que resumidamente exprime o seguinte quadro: CLASSIFICAÇÃO CRANEOLOGICA DOLICHOCEPHALOS BRACHICEPHALOS MESOCEPHALOS a ed ps PROGNATOS E ORTHOGNATOS Outros zoologistas, tomando como ponto de partida a côr da pelle e a natureza dos cabellos, teem dividido, como Omalio dºHalloy e Blumen- bach, a especie humana em cinco grandes raças. É o que resumimos no quadro seguinte: CLASSIFICAÇÃO VULGAR SEGUNDO A CÔR DA PELLE BRANCA OU CAUCASICA NEGRA OU ETHIOPICA RAÇAS «4 AMARELLA OU MONGOLICA COBREADA OU MALATA VERMELHA OU AMERICANA O E MAMIFEROS EM ESPECIAL 185 “ A côr da pelle bem como a natureza dos cabellos, são em si mes- “mos caracteres secundarios, de pequena importancia, que não poderiam servir de base a uma classificação scientifica se outros caracteres de mais “subido valor lhes não andassem annexos; esta classificação tem resis- tido, porque atraz da coloração pigmentar da pelle estão condições ana- tomicas e physiologicas de primeira ordem a differenciar os grupos esta- Delecidos. “O naturalista Quatrefages expõe uma outra classificação, embora to- mando o mesmo fundamento. Divide primeiramente as raças em puras e mixtas, resultando estas do cruzamento de outras raças e apresentando por isso caracteres communs a umas e outras; segundo elle as raças puras são trez apenas: branca, amarella e preta. Damos sob a forma es- chematica essa classificação, que é seguida por Brehm. RA set pd ss Quo Et N e ISS CLASSIFICAÇÃO DE QUATREFAGES Frito , Res R Branca PURAS Amarela Negra RAÇAS E Resultantes do cruzamento das anterio- MIXTAS res e oferecendo caracteres communs a elas, »” Cada uma das raças puras é tronco de grandes ramos, a seu turno divididos em ramusculos e familias naturaes muito numerosas. - Seguiremos a classificação de Blumenhach, adoptada por L. Figuier; crêmos ser a mais completa e não apresentar as complicações da ex- posta por Quatrefages que me parece bastante arbitraria no que res- peita às raças mixtas e sobretudo de divisões e subdivisões tão nume- rosas que é quasi impossivel fixal-as de memoria. A classificação que adoptamos, seguindo Figuier e a maioria dos na- turalistas, divide cada raça, como se fôra um tronco, em ramos e fami- lias. Os quadros que abaixo apresentamos resumem esta divisão e ao mesmo tempo servem de programma a esta parte da nossa obra. 186 Raça BRANCA Raça AMARELLA HISTORIA NATURAL Ramos EUROPEU...... ARAMEANO .... Ramos HYPERBOREO .. jd | MONGOLICO. . Raça ! “ COBREADA SINIGO .. 0.01. | Ramos INDICO... | ETHIOPICO . ... MALARIO. +... | Familias TEUTONICA LATINA ESLAVA MAGYAR GREGA LIBYCA SEMITICA PERSICA GEORGIANA CIRCASSIANA Familias LAPONIA SAMOYEDICA KAMTCHADALA DOS ESQUIMÓS IÉNISSEIANA IUKAGHIRA E KORIAKA MONGOLICA TONGOUSA YAKUTA TURCA CHINEZA JAPONEZA INDO-CHINEZA Familias INDICA MALABAR ABYSSINIA FELLANA MALÁRIA POLYNESIA MICRONESIANA MAMIFEROS EM ESPECIAL 187 Raça Ramos Familias INDIANA MERIDIONAL, .. ( PAMPEANA GUARANIANA VERMELHA DO SUL | SEPTENTRONAL| DO NORDESTE. DO NORUESTE Raça Ramos Familias DE CAFRES OCCIDENTAL,... |noreemors NEGROS NEGRA “ORIENTAL, . +...) LUANA ANDAMANA — Trataremos separadamente de cada uma d'estas partes, de um modo resumido. CARACTERES GERAES DAS RAÇAS Raça branca. —A pelle dos individuos pertencentes a este grande tronco da especie humana é geralmente branca. Quando assim dizemos, claro está que é nossa intenção retirar todo o caracter absoluto a uma tal condição, de resto em si mesma secundaria, como já notamos. Pode bem a camada pigmentar, que tanto existe nos brancos como nos negros ou nos amarellos e que mesmo n'algumas partes do corpo apresenta uma espessura notavel, como no mamillo, sob a influencia dos climas ou da exposição solar directa adquirir uma tinta escura. N'esta raça os cabellos são geralmente abundantes, finos e annela- " dos; a sua côr varia desde o negro até ao loiro ou mesmo ao ruivo, caso este pouco vulgar no entanto. Quanto à estatura, as differenças entre esta raça e as outras não são muito sensíveis. Nas proporções relativas das diversas partes do corpo encontram-se porém differenças notaveis, como na conformação de algumas d'ellas. Assim se compararmos o negro ao branco encontramos 188 HISTORIA NATURAL e que n'este o membro superior é mais curto, o calcanhar menos saliente, a depressão umbilical collocada n'um plano mais inferior. Na cabeça e na face principalmente os caracteres distinctivos abundam. Na raça branca o craneo é muito desenvolvido, a fronte larga, ver- tical, os olhos collocados em plano horisontal, o nariz recto e saliente, a oval da face regular, os labios finos, de contorno delicado, a maxilla su- perior e os dentes verticaes. Não é isto o que nas outras raças se realisa, como vamos vêr. Raça amarella. —N'esta raça a côr varía desde o claro ao amarelo escuro ou verde de azeitona. Ácerca d'este caracter repetimos a obser- vação feita sobre ponto identico quando fallamos da raça branca. Por si' só a côr não distingue a raça amarella porque existem individuos da raça negra com caracteres de coloração identicos aos do tronco mongolico. Os cabellos são longos, duros, corredios e grossos. A côr d'elles é negra na cabeça como na face onde são pouco abundantes. + O craneo é achatado no sentido antero-posterior; ha uma evidente. e notavel brachicephalia. A face é muito larga e as saliencias infra-orbi- tarias muito consideraveis, o que dá ao rosto uma forma losangica, de- sagradavel. Por uma iispósição anatomica especial da palpebra pd os olhos parecem pequenos e obliquos. O nariz é muito menos proeminente do que na raça branca. Os la- bios, menos grossos do que na raça negra, estão longe todavia de of- ferecerem a delicadeza que em geral os caracterisa na raça caucasica. O prognatismo, ou saliencia do maxillar e dentes superiores, existe aqui, ao contrario do que succede na raça branca, essencialmente or- thognata. Raça cobreada. — Omalio de Halloy creando esta raça, comprehendia n'ella um grande numero de populações que entre si não teem de com- mum mais que uma côr cobreada menos escura que a da raça negra . mas mais carregada que a caracteristica da raça amarella. Esta raça não pertence ao numero das que Quatrefages denomina puras; encontram-se nella typos muito visinhos pelas suas formas da raça branca, outros que offerecem de preferencia caracteres proprios da raça amarella. Raça vermelha. —Esta raça é conhecida tambem pela denominação de americana porque antes da descoberta do Novo-Mundo pelos Euro- peus, ella formava por si a quasi totalidade da população deste conti- nente. Hoje Europeus de todas as proveniencias, especialmente inglezes, invadindo aquella parte do mundo teem, no dizer de Figuier, monopoli- sado o nome de americanos; os povos da raça vermelha. são designados MAMIFEROS EM ESPECIAL 189 pelo nome de indianos que lhes deram erradamente os hespanhoes do tempo de Christovão Colombo. O nome de raça vermelha se quizessemos tomal-o no sentido literal e rigoroso, seria extremamente imperfeito, porque muitos povos compre- hendidos n'este grupo não teem a pelle vermelha. Os grupos d'esta raça approximam-se dos da raça amarella pelos cabellos negros, asperos e grossos, a pouca abundancia de barba e mui- tas vezes ainda pela côr. Com a raça branca assemelham-se alguns pelos caracteres do nariz que é saliente e recto e dos olhos que são grandes e serah - Na raça vermelha a fronte é deprimida, mas a parte superior do craneo é mais volumosa que em qualquer outra raça; em nenhuma tam- bem são mais largas as cavidades orbitarias. Sobre os caracteres moraes d'esta raça, escreve Figuier: «Hospita- leiros.e generosos em geral, são todavia crueis e implacaveis nos seus resentimentos, movendo-se guerras por motivos futeis. Dos povos d'esta raça dois —os antigos Mexicanos e os antigos Peruvianos, fundaram ou- tr'ora grandes imperios e attingiram uma civilisação avançada, embora inferior à dos Europeus da mesma epocha. “Estes imperios porém, foram destruidos pelos conquistadores hespa- nhoes e a civilisação paralysou. Os que escaparam à devastação da sua raça e se submetteram aos vencedores, fizeram-se cultivadores e opera- rios; os qué ficaram independentes, erram pelos bosques e prados e são os ultimos representantes do homem no estado selvagem ou semi-selva- gem. Vivem nas florestas e savanas à custa dos productos da caça ou da pesca. Manteem na maxima abjecção as mulheres que encarregam dos trabalhos mais penosos. Em algumas tribus subsiste ainda o uso dos sa- crificios humanos aos idolos.» * As guerras contínuas e ainda, no dizer dos viajantes, o abuso da agua-ardente tem produzido um excessivo e constante decrescimento na cifra d'estas tribus selvagens. A raça vermelha como já fizemos notar, não é uma raça pura. Às differenças de côr e de forma craneana são indicio de cruzamentos nu- merosos e successivos. De resto a historia dá-nos o direito de considerar como certa uma tal opinião deduzida do simples estudo anthropologico. A contar da descoberta da America por Christovão Colombo até hoje, o contacto dos povos primitivos d'aquella região com Europeus de todas as proveniencias é um facto indiscutivel. É por isso que a raça poa ria, O paro typo primitivo não pode encontrar-se hoje. 1 L. Figuier, Les Races humaines, pg. 434. 190 HISTORIA NATURAL Raça negra. —A côr m'esta raça varia geralmente desde o escuro carregado ao negro puro. Ha individuos porém que apresentam, como vi- mos, a côr propria da raça amarella e outros ainda em casos de albi- nismo que offerecem a tinta branca. Os cabellos são sempre negros, cur- tos e crespos; a barba é pouco abundante geralmente. Sob o ponto de vista craneano, o negro é dolichocephalo. A fronte é estreita e muito inclinada; os olhos grandes e muito escuros. O nariz é achatado e de uma largura excessiva, por vezes egual ao comprimento. Geralmente a bocca é grande e os labios consideravelmente grossos. As maxillas e os dentes são extremamente salientes; n'esta raça 0 progna- tismo é accusado, muito mais notavel que em qualquer das duas outras raças descriptas. Relativamente à intelligencia, o negro é o menos bem dotado. | “RAÇA BRANCA 1. RAMO EUROPEU Este ramo comprehende os typos mais perfeitos e de mais alta civi- lisação da raça branca. Os individuos d'este grande grupo acham-se di- vididos por considerações linguisticas, na classificação: que adoptamos, em quatro familias: teutonica, latina, eslava e grega. Mau grado as diffe- renças das linguas que empregam é todavia certo que uma analogia fun- damental existe entre todas e o sanskrito. «É esta analogia, diz Figuier, junta à alta antiguidade a que remontam os monumentos historicos de muitos povos da Ásia, nomeadamente os hindus, que leva a admittir a origem asiatica dos habitantes actuaes da Europa.» * ! L. Figuier, Obr. cit., pg. 40. EE o -— Poa penta | Ce dA e a a ci tina ci a ne da a A Se io ES 50] MAMIFEROS EM ESPECIAL 191 FAMILIA TEUTONICA É n'esta familia que mais accusados se encontram os caracteres da raça branca. Proporcionalidade rigorosa e elegante de todas as partes do corpo, estatura elevada, cabellos loiros, olhos de um azul claro e translucido, alvura de pelle que nem mesmo a acção directa do sol nos climas quentes é capaz de obscurecer, taes são os signaes physicos d'esta Os povos que a compoem occupam desde os tempos historicos a Escandinavia, a Dinamarca, a Allemanha e uma parte da França. Tem ha- bitado tambem as Ilhas Orientaes, a Italia, a Hespanha e o norte da Africa; é certo porém que n'estes ultimos paizes se teem confundido com povos d'outras familias perdendo pelo cruzamento a primitiva pu- reza. A familia teutonica constitue actualmente uma parte consideravel de população branca espalhada na America, na Oceania e na Asia meri- dional. Na familia teutonica estão comprehendidos, como foi dito, trez gru- pos principaes: os Escandinavos, os Germanos e os Inglezes. Escandinavos. —De todos os grupos é aquelle que mais puros tem conservado os caracteres typicos da grande familia teutonica. Os escan- dinavos possuem uma vasta intelligencia, uma cultura litteraria notavel e sobre tudo uma instrucção scientifica perfeitamente desenvolvida. Com- prehendem trez populações distinctas: suecos, norueguezes e dinamar- quezes. Os norweguezes são activos, robustos, simples e hospitaleiros. Se- gundo Sainte-Blaise que os estudou de perto, ha pouca sociabilidade entre os sexos; em todas as reuniões homens e mulheres separam-se fóra das refeições. Isto não significa porém pouca tendencia dos dois sexos a approximarem-se, mas simplesmente austeridade de costumes; e a prova disto é que os casamentos realisam-se ahi geralmente antes dos vinte e cinco annos e as mulheres são o typo da dedicação e solli- citude domestica. Não existem n'ellas a preoccupação do vestuario, a subtileza dos penteados, a idéa de se fazerem um conjuncto de faceis at- tractivos; possuem porém todas as dedicações de esposas e de mães. Os dinamarquezes constituem um povo altivo e forte. Os homens são altos e valentes; as mulheres elegantes e vivas, de olhos azues, ca- bello loiro e uma alvura lactea. 192 HISTORIA NATURAL Sob o ponto de vista dos costumes sociaes existe na Dinamarca, se- gundo Figuier, um mixto singular e incongruente de democracia e feuda- lismo: o morgadio ao lado de leis egualitarias. Como quer que seja a instrucção está largamente espalhada entre os dinamarquezes e as clas- ses proletarias teem vida politica. Os costumes moraes são puros; O ca- samento é geralmente respeitado. A proposito, Figuier diz: «Os casamen- tos dos camponezes duram sete dias. Dança-se e fazem-se festas trez dias antes e trez dias depois da boda. É ao ruido de fanfarras que o casamento se celebra. O noivo apresenta-se elegantemente vestido e a noiva mais ainda, levando um diadema onde flores se misturam ao ouro.» + Egual descripção apresentam alguns viajantes. Germanos. —Entre os germanos e os gaulezes existiram as maiores semelhanças no tempo do imperio romano. Uns e outros tinham uma ele- vada estatura, formas vigorosas, a pelle branca, a cabeça grande, a fronte larga, azues os olhos. Uma differença existia apenas em relação à côr dos cabellos, que nos Germanos era ruiva e nos Gaulezes, loira. Os actuaes germanos teem experimentado as maiores modificações no typo primitivo, por maneira que, no dizer dos auctores, é hoje difficil encontrar na Alle- manha caracteres geraes, traços communs no que respeita à côr dos ca- bellos, à forma da cabeça ou à côr dos olhos. Occupam os germanos actuaes a maior parte da Allemanha, da Prus- sia oriental e da região à direita do Rheno. Na Hungria, na Polonia, na Russia e na America septentrional encontram-se tambem. Ora devemos notar que os Allemães de Este e Sul por virtude de successivos cruza- mentos com os povos do Meio-Dia da Europa, não apresentam de um modo exclusivo o typo teutonico; alguns se encontram de cabellos e olhos negros. O Dr. Clavel dá n'uma obra intitulada As Raças humanas e parte que tomam na civilisação um quadro dos costumes allemães, no qual é extremamente favoravel a este povo por elle considerado o typo da bonhomia e da moralidade. Louis Figuier contesta a opinão appellando para o que durante a guerra Franco-Prussiana se passou e diz: «Viu-se então o que devia pensar-se sobre a reputação de bonhomia, de simpli- cidade e doçura que tinham adquirido os povos d'além-Rheno. Esta bon- homia tornou-se uma ferocidade evidente; esta simplicidade, uma negra dobrez; esta doçura uma violencia altiva e brutal.» 2 O que é certo po- rém, é que alguns auctores notaveis, Quatrefages entre elles, tentaram demonstrar em importantes trabalhos ethnographicos, que os Prussianos 1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 46. 2? Idem, pg. 52. MAMIFEROS EM ESPECIAL 193 donde a maior parte das crueldades partiram, não são Allemães e pouco teem mesmo da raça germanica. “ Inglezes. — Consideram-se geralmente um resultado do cruzamento dos Saxões com os primitivos habitantes das ilhas britannicas. Os ingle- zes teem o craneo comprido, a pelle clara, os cabellos castanhos, a es- tatura elevada, o andar rapido, a physionomia austera. Moralmente, são perseverantes, inclinados à vida agitada do commercio e das industrias, ciosos da sua liberdade individual, mas ao mesmo tempo acanhados res- peitadores das mais provectas e irracionaes tradições. Este respeito mui- tas vezes absurdo nota-se mesmo nos escriptores mais distinctos que ve- lam os seus pensamentos cuidadosamente se elles estão em desaccordo com as crenças tradicionaes do paiz. Os inglezes são de um rigor pro- verbial na obediencia à religião evangelica; o gosto dos confortos domes- ticos é n'elles egualmente tradicional. Politicamente são modêlo de tole- rancia; todas as doutrinas ahi vivem, todas as opiniões se podem sustentar. Discute-se, mas não se persegue. Os costumes são profundamente demo- craticos, mau grado a monarchia; recorre-se a cada passo a proposito das medidas governamentaes aos meetings ou comícios populares em que ellas se discutem desassombradamente e se combatem. O respeito da tra- dição mantem comtudo na Inglaterra uma camara alta com interesses proprios e naturalmente adversa ao proletariado. Os escriptores politicos queixam-se d'este mal que parece perpetuar-se com grave prejuizo das classes inferiores» Stuart Mill attribue em grande parte à influencia dos | lords que teem por assim dizer o monopolio territorial, a miseria e o pauperismo de uma parte importante da população da Inglaterra. Ao passo que a maioria dos lords possuem leguas quadradas de terreno in- culto que apenas utilisam em exercicios venatorios, uma quantidade enorme de cidadãos activos e sedentos de trabalho que os tire da mise- ria, não possuem um palmo de terra para cultivar. É o grande vicio so- cial inglez, mantido pela monarchia hereditaria, ciosa dos seus fóros e dos privilegios de uma aristocracia que a sustenta e lhe dá brilho. No dia em que os inglezes extirparem este cancro, constituirão um dos po- vos mais felizes da Europa; sobejam-lhes condições organicas para isso. ) . FAMILIA LATINA Desenvolveu-se na Italia, d'onde posteriormente levou as suas con- quistas a uma grande parte da Europa, da Asia e da Africa, fundando o imperio romano. As linguas latinas existem na Italia, Portugal, Hespa- 13 194 HISTORIA NATURAL nha, França e ainda n'algumas regiões do sudoeste da Europa, bem como no Brazil e nas possessões africanas e asiaticas d'estes paizes. A estatura dos povos que pertencem a esta familia é regular, os cabellos e os olhos negros, a pelle susceptivel de escurecer pela acção do sol. Esta familia comprehende francezes, hespanhoes, portuguezes é moldo-valachos ou moldavicos. | Francezes. — Derivam da mistura dos celtas com os gaullezes e os germanos. D'aqui resulta uma grande variedade, de typos. Assim por exemplo, ao norte, na Normandia, em Champanha e Borgonha encontra- mos individuos de estatura elevada, olhos azues e cabellos louros. No meio-dia, pelo contrario, predomina o typo de cabello e olhos escuros, de estatura baixa. Sob o ponto de vista linguistico ha tambem differenças notaveis, havendo nas provincias actuaes de França dialectos diversissi- mos e multiplos. No caracter moral dos francezes estão reflectidas todas as origens d'este povo. No seu amor pelas coisas ostentosas e brilhantes, nas cam- biantes rapidas do enthusiasmo febril ao desalento completo, na submis- são passiva aos chefes militares, está, segundo Brace, reflectido o ele- mento celta. Na devoção mystica, na impressionabilidade, no espirito de independencia individual, accusa-se a origem teutonica. Nas tendencias organisadoras e no amôr da centralisação, transparece o elemento ro- mano. O francez é geralmente hospitaleiro, vivo, enthusiasta, laborioso, inventivo, mais dedicado à vida exterior do restaurante, do café e dos theatros que á vida intima e tranquilla da familia. N'isto distingue-se dos povos da familia teutonica. É proverbial a genitl apresentação das francezas. Fazem-se notar tanto pela animação enthusiasta da conversa como pelo ar docemente dominativo que de um modo espontaneo exercem em toda a parte. São talvez menos instruidas que as allemãs e inglezas, mas não menos apre- ciaveis pela candura e actividade no seio da familia. Uma opinião errada que entre nós circula, envolve cada franceza n'uma legenda antipathica de volubilidade. Importa reconhecer que nada ha mais falso. A franceza é em geral boa mãe, excellente esposa e sobretudo um incansavel obreiro no interior domestico, auxiliando com a sua animação, com o seu conse- lho pratico, com a sua perseverante actividade todas as emprezas indus- triaes e commerciaes do marido. Não é mesmo raro que o seu genio or- ganisador e dominativo monopolise para si com grande vantagem pra- tica todo o imperio que devêra exercer o homem nas officinas e nos gran- des estabelecimentos de commercio. | MAMIFEROS EM ESPECIAL 195 Hespanhoes.— Garacterisa-os uma extrema impressionabilidade diffi- cilmente disciplinavel. São vivos, enthusiastas, hospitaleiros, extrema- mente expansivos, mas em geral pouco instruídos e cheios de precon- ceitos religiosos. À viveza e energia que é n'elles como que uma condi- ção organica, reflecte-se em tudo, nos actos menos importantes, na mais vulgar conversa, como nas questões mais transcendentes da politica. Como porém lhes falta geralmente em fria meditação o que em senti- mento lhes sobeja, as suas tentativas mais energicas são, não poucas vezes, seguidas do peor successo. É o que por exemplo nos revella a his- toria politica d'aquelle paiz, a cada momento perturbado pelas agitações revolucionarias de partidos sentimentalistas e indisciplinados que hoje se insurgem contra a tyrannia aristocratica para acceitar âmanhã o despo- tismo aviltante de uma monarchia. De resto o que politicamente se chama Hespanha é um todo singular e estravagante de estados differentes pelos costumes, pelos dialectos, pelas tradições locaes, pela litteratura, violen- * tamente reunidos no interesse exclusivo das familias dynasticas. “» A mulher hespanhola é viva, elegante e dominativa como a franceza; geralmente porém mais sentimental e menos pratica do que ella. Captiva-a mais facilmente o cavalheirismo do que o talento scientifico ou litterario que mal pode apreciar. A educação da mulher hespanhola é geralmente viciada; -domina-a o elemento ecclesiastico para quem a ignorancia, a su- perstição e a passividade absoluta são da mais alta conveniencia. O caracter profundamente sentimental d'este povo, fez delle um submisso defensor do catholicismo, cujas tendencias e instituições ainda hoje o prejudicam e lhe são obstaculo à consecução de uma mais alta felicidade social. Nas artes liberaes e na litteratura, muito mais do que na sciencia, dão os hespanhoes o exemplo de uma rara opulencia. Portuguezes. — Temos com os hespanhoes um caracter commum, a impressionabilidade, que nos desvia dos estudos scientificos e das em- prezas industriaes, attraindo-nos, de preferencia para a admiração das artes. Outros caracteres porém nos distanceiam. Não temos a vivacidade dos hespanhoes, não pômos como elles o enthusiasmo em todas as coi- sas. Politicamente não temos tambem a mesma vida; somos menos revol- tosos, mas mais perseverantes, conduzindo pela energia ao successo as emprezas em que uma vez nos empenhamos. A nossa educação é viciosa como a dos hespanhoes. O estudo hu- manista prepondera notavelmente com prejuizo gravissimo dos resulta- dos positivos e praticos. O vicio religioso existe tambem entre nós do- minando as mulheres e as escólas primarias pela interferencia do eccle- siastico. Este vício fez-nos decair d'um logar proeminente entre os paizes europeus à posição de uma nacionalidade sem importancia actual. É pos- x 196 HISTORIA NATURAL sivel que o espirito de independencia, o amôr da propria autonomia, que profundamente nos caracterisa, nos dê ainda na política dos povos lati- nos uma importancia decisiva. Actualmente porém, significamos pouco porque somos ainda um povo em renovação, um paiz que lucta com os seus proprios erros. Ácerca das mulheres portuguezas, dou a palavra a Figuier e a Brehm, um francez e outro allemão, para que me não lancem a accusação de lisongeiro. Diz Figuier: «As mulheres portuguezas são muitas vezes bonitas, algumas vezes completamente bellas. Teem os cabellos abun- dantes, o olhar longo, dôce e penetrante, os dentes incomparaveis. Os pés são talvez um pouco volumosos, as mãos porém são encantadoras.» * Brehm fallando simultaneamente das hespanholas e das portuguezas que reune em uma só e mesma descripção, diz: «No amôr destas mulheres ha uma paixão e uma constancia sem eguaes; precisam de ser amadas e todas as homenagens de homens indifferentes, todas as suas attenções, não valem para ellas um simples olhar do amante. Em todos os seus actos domina a mesma exageração. Educam os filhos com uma attenção e uma paciencia superiores a todos os elogios; encarregar-se-hiam esponta- neamente de instruil-os, mao grado e imperfeição do ensino que recebe- ram.» Brehm acrescenta depois: «Mais tarde quando os filhos escapam à sua tutella, quando os progressos da idade lhes interdizem o amôr, con- “sagram então os restos de ternura que n'alma sobrevivem ainda, ás pra- ticas de uma devoção pagã e pueril.» 2 N'estas ultimas palavras, Brehm toca conscienciosamente a viva chaga da nossa educação feminina. A mulher portugueza tão bem dotada, tão cheia de qualidades superiores, é infelizmente ignorantissima. O excedente de emotividade e o exagero de sentimento que a caracterisam, à falta de destino e de disciplina são con- sumidos nas praticas innervantes da religião a que se entrega incondi- cionalmente. No dia em que por influencia de uma justa educação artis- tica, a mulher portugueza tiver abandonado o cultualismo pagão de que nos falla Brehm, em beneficio de occupações mais uteis e mais altas, ella terá conseguido um logar proeminente, o primeiro talvez entre todas as mulheres do mundo. Halianos-—Não ha para os italianos um typo commum. Em Roma, ao norte, ao sul os caracteres são differentes. A população romana op- primida pelo clero, attrahida pelo brilhantismo emoliente do culto, con- vidada à vida conventual, é apathica, ociosa, immoral. Clavel define a 1 L. Figuier, Ob. cit., pg. 92. ? Brehm, Obr. cit., pg. 25. Lind Sd di io 0 a a Di di aa RE a MAMIFEROS EM ESPECIAL 197 capital do catholicismo como «um logar de prostituição omnisexual que não poupa a mocidade e encontra milhares de adeptos no seio de uma miseria geral.» Ao norte, pelo contrario, os costumes são suaves e sim- ples. É aqui que os grandes esculptores e os grandes pintores teem nas- cido. São os italianos do norte polidos, benevolentes, affaveis para os estrangeiros. A mulher, cercada dos respeitos dos homens, tem todas as qualidades de boa esposa, de mãe e directora do interior domestico. Ao sul, o despotismo, a miseria e a ignorancia teem aviltado os espiritos. A população é grosseira, sensual e vingativa; são communs ahi os amores faceis, as rivalidades multiplas, os conflictos. Os valachos.— São provenientes da fusão das colonias romanas es- tabelecidas por Trajano e das gregas fundadas na Italia com as popula- ções eslavicas d'estas regiões. A lingua reflecte esta triplice origem. Os valachos submettidos desde longa data à soberania musulmana, gozam desde 1878 de independencia. Vivem sob o regimen monarchico absoluto. São pacientes, sobrios, benevolentes. Vestem-se mal e alimen- tam-se do mesmo modo. Sob o ponto de vista physico, os valachos são robustos, de estatura elevada, rosto comprido, cabellos negros, olhos vivos, pequenos labios e dentes brancos. São alegres e hospitaleiros. FAMILIA ESLAVICA Cobre um terço da Europa e forma um quarto da sua população to- tal, pouco mais ou menos. Divide-se em trez grupos principaes que são: os eslavos orientaes, os occidentaes e os do meio-dia. - Os eslavos orientaes são os russos, divididos em grandes que occu- pam o norte, o centro e o oriente da Russia, pequenos que povoam a Rus- sia meridional e brancos que habitam a parte occidental d'este vasto paiz. Os eslavos occidentaes comprehendem os polacos repartidos em nu- mero de dois milhões pela Russia, a Prussia e a Austria; os bohemios que habitam a Moravia e Silezia; finalmente os que vivem ao norte da Hungria. Os eslavos meridionaes comprehendem os bulgaros, os serbos e os croatos repartidos pela Austria e a Turquia. Serbos e croatos formam um povo unico com duas religiões differentes, sendo os primeiros segui- dores do culto grego orthodoxo e os segundos catholicos. Habitam a Dal- macia, o Montenegro, a Herzegovina, a Bosnia e a velha Serbia. Sob o ponto de vista dos caracteres physicos os eslavos teem uma 198 HISTORIA NATURAL estatura abaixo do regular, uma constituição robusta, o craneo alongado e as maçãs do rosto salientes. «As sobrancelhas, pouco espessas, diz W. Edwards, approximam-se no angulo interno d'onde obliquamente se dirigem para fóra. A bocca que não é saliente e cujos labios não são espessos, está muito mais proxima do nariz que do mento. Um caracter notavel e muito geral que junctaremos aos precedentes, é a existencia de muito pouca barba, excepto no labio superior.» 4 Os eslavos são delicados e hospitaleiros. O que entre elles se obser- va constantemente e lhes é honrosissimo, é a doçura com que são tra- tadas as mulheres e as creanças. Teem tendencias poeticas e uma deci- dida inclinação pela musica e pela ornamentação. Brehm cita da obra de Clavel, aqui recordada mais de uma vez, a seguinte passagem: «Abster- me-hei de analysar minuciosamente os costumes de uma raça dividida desde muitos seculos entre a tyrannia e a servidão. Estes flagellos pro- duziram nos eslavos o que por toda a parte produzem. Fizeram nascer o orgulho do oppressor e a dissimulação do opprimido; introduziram a violencia e a venalidade até no amor; desmoralisaram. A egualdade po- rém, fará rapidamente desapparecer estas miserias. O serbo conservou-se bom para as creanças e para a mulher que possue a belleza por excel- lencia, o encanto, e pode citar-se como um modelo de doçura. A familia é entre elles mais unida que em qualquer outro ponto da Europa; ella abre espontaneamente as suas portas aos estrangeiros, mesmo aos que uma vez foram sentenciados. A julgar pelo estado da Bohemia, incravada ha tantos seculos na Germania e resistindo energicamente à absorpção, o sangue eslavico perde difficilmente os seus caracteres. A sua mistura com o sangue de raça allemã foi antes o effeito da força que da decaden- cia; esta união violenta entrou como factor importante nos movimentos militares e religiosos de que o oriente da Allemanha foi theatro durante o seculo xv e contribuiu para o estabelecimento da monarchia prussiana cuja administração e cuja historia não são conformes ao genio germanico. A inspecção da carta como a analyse dos costumes eslavicos, faz pre- sentir que os homens affastados do Oceano e collocados no extremo oriente da Europa devem differir do insular inglez collocado no ex- tremo occidente. Em quanto um é dominado pelo cerebro e pela razão, o outro pertence ao coração e ao sentimento. As consequencias poli- ticas são que não podemos pedir ao Russo nem a iniciativa indivi- dual, nem as coherencias religiosas, philosophicas, politicas e sociaes. Não tem o genio protestante, não tem o instincto liberal, mas possug num alto grao a sympathia, a acção collectiva e os instinctos egua- 1 W. Edwards, citado por Brehm, pg. 20. REA) Pro A me nd» RT” MAMIFEROS EM ESPECIAL 199 litarios que são consequencia della.» Depois o mesmo auctor continua ainda: «Os eslavos do sul differem a muitos respeitos dos seus irmãos do norte. Um logar secco e montanhoso, uma atmosphera cheia de per- fumes, um sol brilhante, um ceu puro e productos variados do solo actuaram poderosamente sobre a raça tornando-a escura, magra, agil, bellicosa e cavalheiresca. Poucos homens de uma nacionalidade, ainda a mais favorecida, seriam mais fortes no physico e no moral do que “os eslavos do imperio ottomano. A dureza e o machiavelismo da admi- nistração turca não poderam domal-os; a cabeça, incessantemente cur- vada sob o sabre, reergue-se sempre e o menor vislumbre de indepen- dencia encontra-os dispostos ao sacrifício da propria vida. Tudo prova que estes homens são perfeitamente dotados. Os seus costumes hospita- leiros teem alguma coisa de biblico, a sua linguagem é inteiramente im- pregnada de poesia e os seus cantos nacionaes exprimem o sentimento da grandeza e do bello. Uma civilisação brilhante surgirá d'entre elles no momento em que conseguirem libertar-se da inepta dominação dos Osmanlis.» 4 Russos. —Formam o povo mais importante da familia eslavica. Como foi dito, dividem-se em grandes, pequenos e brancos. Os Grandes Russos povoam o norte, o centro e o oriente do imperio. Na Grande Russia os invernos são rigorosissimos; esta circumstancia obriga ao recolhimento domestico em torno das estufas. Ricos e pobres, todos procuram segundo as suas posses combater as asperezas de um clima onde as neves se jux- tapoem na altura de muitos metros pelas ruas; assim não falta a estufa em casa nenhuma. O frio excessivo conduz ainda as classes inferiores ao abuso da agua-ardente, circumstancia que os publicistas russos fazem fi- “gurar como um dos principaes factores da criminalidade n'aquelle paiz. O camponez da Grande Russia é no entanto intelligente, corajoso, hospi- taleiro e affavel. Os vestuarios são em geral tristes, e graves as diver- sões d'estes homens que inteiramente desconhecem a alegria dos meri- dionaes. O burguez procura todos os confortos e todos os meios de manter dentro de casa um grande bem-estar, importando tudo quanto a civilisa- ção franceza tem creado de bom n'este sentido. No entanto o caracter local transparece sempre. «Os aposentos, diz Theophilo Gautier, são mais vastos e mais altos do que em Paris. Como todos os quartos são hermeticamente fechados e a porta de saida dá sobre uma escada aque- cida, reina sempre nos salões de S. Petersburgo uma temperatura cons- 1 Brehm, Obr. cit., pe. 20. 200 HISTORIA NATURAL tante de quinze ou dezeseis graos pelo menos, que permitte às mulheres vestirem-se de mousseline e trazerem os braços e as espaduas nuas. Os tubos de cobre dos caloriferos sopram sem interrupção, noite e dia, pe- las suas boccas ardentes e grandes estufas de proporções monumentaes, de faiança branca ou pintada, subindo até ao tecto, espalham o calôr aonde os caloriferos não chegam. As chaminés são raras e não servem, quando as ha, senão na primavera ou no outomno; no inverno dispersa- riam o calôr, arrefecendo os quartos. Fecham-se e enchem-se de flores. As flôres, eis um luxo verdadeiramente russo! D'ellas estão cheias as ca- sas. As flôres recebem-nos à porta e sobem comnosco a escada; heras de Islandia bordam de laçarias os degraos e jardineiras nos patamares de- frontam com os bancos. Nos vãos das janellas desdobram-se as bananeiras com as suas largas folhas de seda; tallipos, magnolias, camelias arbores- centes misturam as suas flôres às volutas douradas das cornijas. Dos va- sos do Japão ou de vidro da Bohemia collocados ao centro das mezas ou aos angulos dos bofetes, saem as flôres exoticas, que ahi vivem como em estufas, que outra coisa não são os aposentos russos. Na rua estamos como no polo; em casa julgamo-nos nos tropicos.» ! Os Pequenos Russos vivem em climas menos asperos e são mais ex- pansivos e mais alegres. As terras da Pequena Russia são eminentemente proprias para a agricultura. Os Russos Brancos habitam a parte mais occidental do paiz. Não dif ferem notavelmente dos Pequenos Russos. Polacos. — Constituem um dos mais bellos typos da raça eslavica. Differenças profundas separam a aristocracia das classes inferiores. Po- liticamente é um enthusiasta, religiosamente um fanatico. As desgraças sociaes da Polonia teem derivado em grande parte talvez do caracter do povo, onde aliás é notavel o espirito de independencia. Os polacos teem uma pronunciada tendencia para a cultura das bel- las artes; na poesia e na musica gozam de extraordinario renome. As suas melodias populares e algumas danças, a mazurka por exemplo, são conhecidas em toda a Europa. Bohemios. —A posição geographica da Bohemia entre Saxe, a Baviera e as provincias allemãs da Austria, torna este povo muito conhecido. Os bohemios ciosos da sua liberdade, teem sustentado longos combates 1 Th. Gautier, Voyage en Russie. MAMIFEROS EM ESPECIAL 201 contra os allemães, conseguindo manter autonoma a sua ameaçada na- cionalidade. Confundil-os com os allemães é um erro tão vulgar mas ao mesmo tempo tão grosseiro como o de confundir portuguezes com hespanhoes. Os bohemios são um povo essencialmente laborioso, sério, dedicado pelo espirito de associação, habilmente industrial, de tendencias democraticas e profundamente tolerantes em materia de religião. A ins- trucção popular é ahi desenvolvida e a litteratura eslavica ardentemente cultivada. A Bohemia é patria de João Huss, o heroico revolucionario. Eslavos do sul. Estão separados dos Bohemios pelos austriacos e dos polacos pelos magyares. São activos e industriaes. As mulheres occu- “pam-se geralmente tecendo tapetes de côres muito estimados, no que revelam uma singular agilidade e um gosto extraordinario. Esta industria extremamente productiva é caracteristica dos eslavos do sul. Jorge Per- rot que visitou estes povos e que de perto conhece tambem os orientaes e as suas industrias, observa no seu livro Viagem entre os eslavos do sul que, se em vez de lãs coloridas pelos processos industriaes, as mulheres eslavas se servissem das côres naturaes, os tapetes que ellas habilmente tecem, valeriam nos nossos mercados, tal é a sua perfeição, tanto como os que importamos da Persia ou da Anatolia. FAMILIAS MAGYAR E FINNEZA Estas familias que alguns fazem pertencer aos eslavos, são conside- radas por outros como independentes d'elles. Magyares O povo magyar habita a Hungria. A lingua e os costumes permittem distinguil-os d'outros povos que vivem no mesmo paiz. O magyar é de estatura media e de cabellos negros. O seu caracter é Dellicoso e a sua civilisação superior à dos povos da familia eslavica. Os povos occidentaes da Europa, que durante a idade-media soffre- ram as incursões dos magyares, propagaram ácerca d'elles lendas atter- 202 HISTORIA NATURAL radoras. Diziam-os anthropophagos, disformes, horriveis, cobertos de cicatrizes, entes sobrenaturaes e diabolicos; fallava-se d'elles às creanças para atterral-as. O magyar é robusto, valente e altivo. Tem da sua raça uma idéa lisongeira e crê-se nobre porque as suas tradições são as da liberdade e da mais absoluta independencia. Do paiz natal formam uma idéa seme- lhante à que teem da raça; um dos seus proverbios diz: «Fóra da Hun- gria a vida não é vida.» Em a Nova Geographia Universal de. El. Reclus encontra-se este typo amplamente estudado no ponto de vista dos costu- mes e tradições. As mulheres são dotadas de grande agilidade e viveza. A lingua é rica de imagens e energica; pelas aspirações gutturaes, diz Figuier, lem- bra o arabe, como por umas certas intonações dôces e cariciosas recorda o italiano. Em poucos povos será possivel encontrar mais vivo e profundo o sentimento da nacionalidade. Finnezes Constituem pequenas populações dispersas que se estendem desde o mar Baltico até oeste de Obi. Os finnezes são considerados, diz Figuier, como os restos de povos mais numerosos conquistados e cercados por Eslavos, Turcos e Mongoes. São caçadores e cultivadores. Os caracteres physicos que os distinguem são: um cabello ruivo, uma barba pouco abundante, uma pelle maculada de sardas, os olhos azulados, as maçãs do rosto salientes e o occipital largo; claro está que estes caracteres encontram-se em alguns d'estes povos, mais ou menos modificados. Fi- guier divide-os em Finnezes da Siberia, da Russia Oriental, do Baltico e do Volga. Os Finnezes da Siberia dividem-se em dois grupos, um do meio-dia, outro do norte. O primeiro é composto por populações cuja lingua se as- semelha aos dialectos turcos. Vivem sob o imperio russo, entregando-se à pesca, à agricultura e à caça. O grupo septentrional é formado por dois povos: os Ostiaks que ha- bitam as margens do Obi, e os Vogoles que habitam o este dos montes Urals. Os Finnezes da Russia Oriental comprehendem trêéz pequenos povos que fallam dialectos turcos de mistura com vocabulos finnezes. Os Finnezes do Volga comprehendem povos que fallam dialectos em que as palavras finnezas e turcas se encontram à mistura. É MAMIFEROS EM ESPECIAL 203 Os Finnezes do Baltico, longo tempo submettidos aos povos teutoni- cos, conservaram geralmente os caracteres d'estes ultimos. FAMILIA GREGA Os gregos devem a sua origem aos antigos povos conhecidos na “historia pelo nome de Pelasgos. Fundaram colonias importantes nas mar- “gens do Mediterraneo e no tempo de Alexandre conseguiram submetter uma parte da Asia e alcançar notaveis victorias no Egypto. No entanto foram a seu turno submettidos e escravisados pelos romanos e eslavos. Deram por muito tempo à Europa o exemplo de uma alta civilisação; as sciencias, a litteratura e as artes attingiram entre elles um grao de aper- feiçoamento nunca excedido nem mesmo egualado pelos povos antigos. Os seus philosophos, como Socrates, Platão, Pythagoras e Lucrecio, fo- ram lidos e commentados em todos os pontos da Europa culta, creando grandes escólas que, depois de terem conseguido proselytos em Roma, vieram dividir ainda na idade-media e nos começos do seculo xvrr Os es- piritos mais adiantados da França, da Inglaterra e da Allemanha. Os seus estatuarios e pintores conheceram como ninguem o segredo da forma; os productos que nos legaram n'este genero de actividade cau- sam ainda hoje a admiração dos artistas. Os seus poetas e os seus dra- maturgos são lidos como modelos, como typos de elevação; n'elles se inspiraram os romanos e n'elles encontraram um guia as litteraturas mais brilhantes dos tempos modernos no periodo classico. As sciencias foram tambem cultivadas com amôr e esmero pelos gregos. As mathe- maticas attingiram ahi um grande desenvolvimento; a astronomia, a phy- sica e a medicina conservam na sua historia os nomes venerandos de muitos escriptores gregos a que devem, como a Hypocrates, a Galleno, a Aristoteles, a Leucipo, a Archimedes e a Democrito os seus fundamen- tos experimentaes. Este povo, assim importante na antiguidade, perdeu o logar d'honra que occupava na Europa. Hoje vale pouco e nos destinos das nações ci- vilisadas é certamente um factor secundario. Os caracteres physicos po- rém, não se perderam completamente; o grego é ainda hoje um typo bello que mais ou menos reproduz as linhas distinctivas da antiga estatuaria. Fronte elevada, olhos grandes, nariz recto com uma inflexão quasi nulla na raiz, sobrancelha pouco arqueada, labio superior curto, bocca pequena de um contorno gracioso, o queixo saliente e arredondado, taes são os 204 HISTORIA NATURAL caracteres physicos d'esta familia de uma formosura proverbial. Na Gre- cia moderna falla-se o grego e simultaneamente o eslavo. A intelligencia d'este povo é bem possivel que lhe reserve ainda um largo destino na politica europea; a guerra do Oriente não deu ainda todos os seus fru- ctos. 7 Os gregos actuaes teem sido accusados de uma grande falta de pro- bidade; referem os viajantes que os roubos se succedem ahi de um modo escandaloso. Henrique Belle diz a este proposito: «Ha no caracter d'este povo uma tendencia manifesta a considerar a astucia e o embuste como armas de guerra legitimas. O que reputaria uma infamia tirar-vos uma tabaqueira do bolso, julgar-se-ha todavia perfeitamente auctorisado a aproveitar-se da vossa ignorancia das leis ou dos usos do paiz para abusar da vossa boa fé, para vos extorquir quanto poder ou para nunca vos pagar o que vos deve. Isto não será para elle mais do que habili- dade e a sua consciencia a este respeito não tem escrupulos.» ! Quanto aos costumes politicos, o mesmo auctor affirma que estão muito longe de ter a pureza e a dignidade que n'outros povos se observa. O parlamento transforma-se a cada passo n'um tribunal das mais odientas accusações, numa praça das injurias mais grosseiras, das calumnias, das insinuações pessoaes odientas e irritantes. O jornalismo político insulta, transfor- mando as suas columnas em logares alugados pela má fé ou pelo servi- lismo para a opposição acintosa que combate um governo ou para a sub- serviencia indigna que o defende. Levantam-se na imprensa, nos comícios, nos parlamentos, na praça publica enormes agitações politicas cujo fim ultimo é simplesmente a mudança de um ministerio. Tempestades n'um copo d'agua! As verdadeiras questões sociaes, as que discutem pontos de vista economicos ou formas de governo, essas não se agitam ahi. Mudanças de ministerios com persistencia das mesmas idéas politicas, a isto se reduzem as agitações d'aquelle paiz. N'este ponto os gregos não fazem mais que approximarem-se de alguns povos da familia latina. A religião grega é a christã sob as formas cultuaes do oriente, Os templos são luxuosos e as vestes dos ecclesiasticos de uma extraordina- ria opulencia. Ao lado dos gregos collocam alguns auctores os Albanenses cuja lingua se assemelha à grega. Habitam as montanhas da Albania e entregam-se quasi exclusivamente às armas; é d'elles que saem os melhores soldados dos exercitos ottomanos. São piratas e salteadores; vivem continuamente 1 H. Belle, Tour du monde, vovage EN crice, 1876-719. Po MA MAMIFEROS EM ESPECIAL 205 em luctas intestinas. A Albania é limitada ao sul pela Grecia, ao norte pelo Montenegro, a Bosnia e a Serbia, a este pela Macedonia e a Thessalia. Foi christã até ao seculo xv; depois da conquista ottomana recebeu por imposição a religião de Mahomet. Ao norte ha porém uma tribu que pra- tica o catholicismo e vive livremente. Sob o ponto de vista physico, teem a cabeça pequena, o nariz fino, o olhar vivo, o corpo magro, o pescoço comprido; recordam, segundo Alberto Dumond, o typo primitivo do grego tal como a esculptura 0 re- presentou nos marmores. Teem uma marcha elegante e os seus vestidos são pittorescos. TS paes q Ea ” IL. RAMO ARAMEANO Foi o nome que deu Cuvier ao conjuncto de povos que habitam o sudoeste da Ásia e o norte da Africa. Quando ainda a Europa vivia n'um perfeito obscurantismo, já os arameanos cultivavam com exito as scien- cias e as artes. Ao passo porém que os povos occidentaes teem marchado ininterruptamente n'um sentido progressivo, os arameanos estacionaram. É assim que depois de terem sido os guardas avançados da civilisação, elles se conservam ainda hoje como ha dois mil annos. O islamismo e o buddhismo conquistaram a maioria das populações em que o christianismo fez pequeno numero de proselytos. - Entre os arameanos distinguem-se geralmente cinco familias: libyca, semitica, persa, georgeana e circassiana. FAMILIA LIBYGA “Comprehende os Berberes e os Egypcios. Berberes. —Formam os povos que desde tempos antiquissimos habi- tam a cordilheira do Atlas ou erram pelos desertos do Sahará. Os gru- pos principaes são os Kabylas, os Schellas, os Tuaregs e os Tibbus. 206 HISTORIA NATURAL Os Kabylas.— Ao tempo da conquista romana occupavam as margens do Mediterraneo desde a Argelia até Constantino onde ainda hoje se en- contram no estado de maxima pureza. Recuando diante da invasão ro- mana, refugiaram-se nas montanhas d'onde depois desceram para a seu turno attacarem os romanos. Sob o ponto de vista physico pode dizer-se que os Kabylas teem uma estatura acima de regular e são menos magros e mais musculosos que: os Arabes. O craneo é alongado, a fronte deprimida lateralmente acima das sobrancelhas, o nariz recto e a pelle escura. Os cabellos são geral- mente negros, lisos e os olhos escuros. A falta de limpeza é extraordinaria n'estes povos; Brehm recorda que em toda a Kabylia e Djurja não existe um só estabelecimento de ba- nhos. Comprehende-se bem qual será o estado sanitario de populações onde reina uma tamanha incuria. Os Kabylas são trabalhadores; a cul- tura da terra absorve a attenção de todos, homens e mulheres. O espi-. rito de independencia é mantido entre elles. Os Schellas. — Occupam a vertente occidental do Atlas, formando uma população pouco numerosa que possue quasi as mesmas qualidades que os Kabylas, e, como elles, teem n'um alto grao o sentimento da pro- pria independencia e da dignidade pessoal. São cultivadores e geral- mente pobres. Os Tuaregs. —Habitam a Barbaria, os montes Atlas ao sul, e o Sa- hará até à margem direita do Senegal. Teem um espirito bellicoso e são temiveis pelo numero. Percorrem o deserto como salteadores. A lingua geralmente usada entre elles é o arabe e a religião seguida o isla- mismo. Os Tibbus.— São por alguns naturalistas considerados como perten- cendo ao ramo ethiopico da raça cobreada. Figuier depois de os ter no- meado entre os povos berberes, estuda-os depois como membros da fa- milia abyssiniense. Teem uma côr escura, cobreada, os labios pouco espessos, a esta- tura elevada e elegante. Não fallam o arabe. Egypcios. —Formam um povo que poderiamos chamar immutavel. Tudo o que d'elles se conhece pelas provectas narrações de escriptores como Herodoto e Luciano, é ainda o mesmo que hoje nos offerecem. Pa- rece que um molde sagrado de costumes e de idéas os domina absolu- tamente sem que as suecessivas gerações de ha trinta seculos se'lem- Er RE pie (a 4 da 4, 35 RS 1) e MAMIFEROS EM ESPEGIAL 207 brassem. por um momento de discutir a legitimidade desse molde, o opportunismo das leis em que se fundamenta. - O typo antigo dos egypcios está conservado em esculpturas e pin- turas monumentaes antiquissimas. Apezar de numerosos cruzamentos, esse typo conserva-se ainda hoje bastante puro. Craneo alongado e largo pos- “teriormente, fronte desenvolvida, linhas do rosto menos finas que entre os Arabes, olhos grandes, nariz recto, bocca larga, labios grossos, côr escura, semblante calmo, quasi impassivel, são os traços physionomicos mais salientes do typo egypcio. à Sob o ponto de vista moral, o povo egypcio caracterisa-se por esta phrase de Figuier: «uma raça que parece dormir.» Attingiram uma civi- lisação a todos os respeitos importantissima. As suas pyramides são mo- numentos que deixam o assombro no espirito de todos os viajantes. Os seus templos, alguns já em ruinas, dão prova do que valia a architectura entre elles em tempos immensamente recuados. À pintura não era menos bem cultivada; o que nos resta d'esta ordem de trabalhos artísticos de- nota um gosto e uma execução surprehendentes. Os antigos Egypcios usa- vam de uma escripta especial, hoje decifrada, os hyerogliphos. A mulher gosava de direitos superiores aos do homem. Este povo, uma vez attingida a civilisação de que fallamos, parou, tornou-se inerte, vive hoje de tradições sómente. Ha no Egypto uma “enorme pobreza; os Fellahs constituem uma parte da população absolu- ' tamente miseravel e servil que não conhece dignidade pessoal e vive no entanto alegre no meio das suas danças e canções. — Em relação ao casamento os egypcios admittem a polygamia; os fi- lhos são muitas vezes «mortos à mão de uma rival qualquer da mãe», dizem Cammas e Lefêvre. FAMILIA SEMITIGA Foram os povos desta grande familia aquelles que primeiro le- vantaram na Ásia as civilisações grandiosas que a historia nos descre- ve. D'esta familia sahiram os Assyrios, os Hebreus, os Phenicios, os Car- thaginezes. Todos elles submettidos por outros povos desappareceram successivamente, sendo hoje em grande parte substituídos pelos Arabes. Na familia semitica reuniremos os Arabes, os Judeus e os Syrios. Arabes.—Formam em grande parte a população da Arabia actual, a 208 HISTORIA NATURAL do Egypto, da Nubia, da Barbaria e do Sahará. Distinguem-se rapida- mente pelos seus caracteres physicos. Teem um perfil alongado, uma ele- vação consideravel da abobada cranecana, o nariz aquilino com uma de- pressão quasi nulla á raiz, a bocca pequena, os olhos pouco profundos e finalmente formas geraes elegantes. Moralmente, pode dizer-se que são sentimentaes, perseverantes e intelligentes. Os A CaDee são pastores ou agricultores. Os primeiros chamados Bo- duinos ou filhos do deserto, são magros, ageis, sobrios, resistindo valo- rosamente às fadigas. Os outros teem apparencias de maior robustez, mas não supportariam tão bem a vida errante e por vezes miseravel dos desertos. A côr da pelle varia nos Arabes desde o branco dos Europeus ou o amarello escuro até ao negro brilhante e puro. Sobre os que offerecem esta ultima côr, escreve Waddington: «Es- tes homens distinguem-se completamente dos negros pelo brilho da côr, pela natureza dos cabellos, pela regularidade das feições, pela expressão suave dos seus olhos humidos e pela macieza da pelle que em nada cede à dos Europeus.» ! Mau grado todas as differenças climatericas, os Ara- bes nomades que fielmente conservam a mesma vida desde tempos re- motos, offerecem os signaes de uma belleza que Figuier qualifica de ex- traordinaria, Judeus. — Os judeus ou israelitas são de todos os grupos da familia semitica os que gosam de maior importancia historica e melhor teem sa- bido conservar o typo originario, a despeito de uma dispersão que dura ha dezoito seculos por todo o antigo continente. O judeu é geralmente magro, de traços physionomicos finos, olhar vivo, barba abundante. Ha no rosto do israelista alguma coisa que traduz a tendencia eminentemente commercial do seu espirito. Distinguem-se rapidamente entre os povos com que se acham misturados. Syrios.— Os Syrios primitivos acham-se confundidos actualmente com os povos que os conquistaram; no entanto a sua lingua é ainda usada na Mesopotamia, na Chaldea, etc. São povos extremamente commerciaes. Beyrouth é, por exemplo, um centro mercantil de toda a ordem de pro- ductos, vinhos, café, damascos, armas, tabaco, cavallos, provenientes dos pontos mais distantes da Asia e da Europa. 1 Citado por Figuier, Obr. cit., pg. 185. PRN MAMIFEROS EM ESPECIAL 209 Maronitas e Drusos. — Estão ethnologicamente ligados aos Syrios. Os Maronitas constituem um povo forte e pouco instruido. Luiz Figuier conta assim uma parte curiosa da historia d'este povo: «Tiram a sua origem de um monge christão chamado Maroun que vivia nos fins do seculo v1 e morreu em cheiro de santidade. Fundou-se um convento em honra da sua memoria. Um seculo mais tarde, um dos seus discipu- los, João Maronita, abraçou a questão dos Latinos contra os christãos gre- gos que então faziam notaveis progressos no Libano. Estes ultimos chris- tãos seguiam as inspirações de Constantinopla; os Maronitas, pelo con- trario, obedeciam às de Roma. O veu religioso devia servir aqui para encobrir dissidencias politicas. João Maronita armou os seus montanhezes, conduziu-os ao inimigo e assenhoreou-se de todo o Libano até perto de Jerusalem. Retirados para as suas montanhas e se bem que em pequeno numero, os Maronitas conservaram por muito tempo a sua independen- cia. Só em 1588 foram reduzidos por Ibrahim, pachá do Cairo, e obri- gados a um tributo annual que pagam ainda hoje. Todavia como povos montanhezes, os Maronitas teem conservado o gosto da independencia. “Opprimidos d'um lado pelos Musulmanos, seus senhores, do outro pelos Drusos, rivaes que lhes oppôz, diz-se, a Inglaterra ciosa da preponde- rancia franceza no Libano, em lucta com os Ausariehs e os Mutualis, nem por isso deixam de continuar com a enxada numa das mãos e o sabre na outra a cultivar e a defender a herança de seus paes.» ! Os Drusos são schismaticos musulmanos e mais guerreiros do que cultivadores. Cada homem é ahi um soldado. São hospitaleiros e menos instruídos que os Maronitas. FAMILIA PERSA Os povos d'esta familia teem a pelle brancas a estatura regular, os olhos e os cabellos negros. Habitam a Persia, a Armenia, o Turkestan e parte ainda do Hindustão. Como todos os arameanos, os Persas attingiram em tempos remo- tos uma alta civilisação a que nada teem acrescentado. Dividil-os-hemos, como Figuier, em seis grupos: os Persas propria- 1 L. Figuier, Obr. cit, pg. 190. 14 210 HISTORIA NATURAL mente ditos ou Tadjiks, os Afghans, os Belutchis, os Kurdos, os Armenia- nos e emfim uma pequena povoação de Ossetos. Persas. — Hoje uma grande parte da Persia é habitada por tribus que erram pelos campos, vivem debaixo de tendas ou fazem arrotear os campos por escravos. É certo porém que uma parte notavel d'essas tri- bus não pertencem à raça persica. Os persas propriamente ditos habitam as cidades. As descripções e estudos antigos sobre os Persas são concordes to- dos em nol-os apresentar como typos perfeitos, de uma rara belleza e ex- traordinaria elegancia. As mulheres sobretudo seriam no dizer d'esses escriptores de uma formosura peregrina. As esculpturas antigas dos mo- numentos persas em Persópolis e outros pontos não dissipam, antes con- firmam esta opinião dos historiadores. Os persas modernos não se desviaram da tradicional poi dos antepassados. Teem o rosto oval de linhas finissimas e regulares, O ca- bello abundante, grandes e espessas sobrancelhas negras, olhos pretos de uma incomparavel doçura, admirada em todo o Oriente. São alegres, espirituosos, amantes do luxo, dos vicios, dos vestidos ricos, do cerimo- nial. À litteratura é rica e o estylo das suas obras florido, cheio de ima- gens arrojadas e pittorescas. À Persia tem um rei absoluto, o schah; o seu successor ao throno é, segundo um velho uso, o neto mais velho do primogenito. A legisla- ção que se assemelha à da Turquia basea-se sobre o Coran. O exercito permanente é de dez mil homens; no entanto a Persia põe em pé de guerra desde que lhe seja necessario, uma força militar de cento e cin- coenta mil. A industria e o commercio que n'este reino foram importan- tissimos, estão actualmente reduzidos a muito pouco. Fóra dos artigos de primeira necessidade nada se produz, tudo se importa. Na Persia actual distinguem-se quatro classes sociaes: Os nobres que exercem todos os cargos publicos; os burguezes das cidades, comprehen- dendo o clero e o magisterio, mistura de Persas, Turcos, Arabes, Arme- nianos, Tartaros e Georgeanos; os camponezes, Persas puros; finalmente as tribus nomades, Persas e restos de antigos povos conquistadores. Sa- hem desta ultima classe os soldados de todo o exercito. Os “antigos persas adoptavam a religião de Zoroastro, a magia. O christianismo durante os seculos 111 e Iv fez n'este paiz um consideravel numero de proselytos, a despeito da occupação dos Arabes. No seculo v porém, os reis procuraram extirpar a religião christã para substituil-a pela de Mahomet que é hoje dominante. Ha todavia uma seita raciona- lista que dia a dia ganha terreno entre os Persas actuaes e para a qual cecal Di, MAMIFEROS EM ESPECIAL 211 o Coran é simplesmente um livro de ethica donde é absurdo tirar, como fez Mahomet, um dogma religioso qualquer. Afghans.— Attrahiram profundamente a attenção da Europa quando em 1878 e 79 os inglezes lhes moveram guerra. A causa foi a morte por elles violentamente dada em Cabul á embaixada britanica. Habitam a região montanhosa ao norte de Penjab. O clima é delicioso. São robustos e extremamente musculosos. Teem o rosto alongado, o nariz proeminente, os cabellos negros, a pelle geralmente escura; são essencialmente rudes e bellicosos. Na guerra com os inglezes, apesar de vencidos demonstraram um grande valôr e notavel heroicidade na defeza do territorio. — Belutchis— Teem uma vida pastoral ou nomade; os seus costumes são simples. Entre os pastores e as tribus errantes ha differenças phy- sicas notaveis. Ao passo que os primeiros são homens de estatura elevada, feições regulares e physionomia expressiva, os segundos, ao contrario, são baixos, deselegantes, de face redonda e impassível. Kurdos. —Habitam as altas regiões montanhosas situadas entre o grande plató da Persia e as planícies da Mesopotamia. São semi-barba- ros. À sua estatura é alta, os traços physionomicos grosseiros, a pelle escura, os cabellos negros, os olhos pequenos, a bocca demasiadamente grande, alguma coisa de selvagem na face. Armenianos. — São notaveis pela belleza physica. Teem a pelle branca, os olhos e os cabellos, negros, a barba abundante. São cultivadores; indica-lhes naturalmente esta profissão a fertilidade do solo, onde os grãos, os vinhos, os fructos e o tabaco são profusamente produzidos. Nas montanhas ha minas de ouro, prata, cobre, ferro e chumbo, pouco exploradas porém. Os seus cavallos passam por ser os melhores da Asia occidental. A flora é rica. Este povo tem um caracter grave, é laborioso, intelligente e hospi- taleiro. Aprende com grande facilidade as linguas dos europeus a cujos costumes gostosamente se adapta. Professam a religião christã, dividida porém em trez seitas princi- paes: a gregoriana, ligada aos costumes da igreja fundada por S. Gre- gorio, a catholica e a protestante. D'estas seitas a primeira é a que conta maior numero de seguidores, quatro milhões, termo medio. Ossetos.—Habitam uma pequena parte da cordilheira do Caucaso. Physicamente assemelham-se aos camponezes do norte da Russia. Os á | 21. HISTORIA NATURAL seus costumes são barbaros; entregam-se ao roubo, accomettendo sem piedade os estrangeiros. FAMILIA GEORGIANA Os povos d'esta familia que habita a vertente meridional do Cau- caso, são de uma belleza proverbial. Teem a physionomia calma e regu- lar que lembra os marmores antigos da Grecia onde os grandes escul- ptores deixaram impresso o typo idealisado da belleza humana. As mu- lheres desconhecem as toilletes compositas, deselegantes e por vezes ri- diculas das europeas. Vestem com extrema simplicidade como quem co- nhece a propria elegancia e a não quer velar sob os artifícios capricho- sos do vestido. Usam os cabellos cahidos sobre as costas em grossas tranças lateraes. Na rua envolvem-se n'uma vasta manta branca que as preserva do sol e que sabem usar com rara elegancia. FAMILIA CIRCASSIANA Não cedem os typos d'esta familia em belleza e elegancia aos da anterior. As mulheres que em todo o Oriente gosam da reputação de formosissimas, são sobretudo notaveis pela oval graciosa do rosto e pelos grandes olhos negros e humidos que destacam voluptuosamente na al- vura setinosa da epiderme. As formas são elegantissimas, os cabellos negros, o pé incomparavelmente pequeno. MAMIFEROS EM ESPECIAL 213 II RAGA AMARELLA 1. RAMO HYPERBOREO o - É composto este ramo pelos povos que habitam as regiões visinhas do circulo polar boreal. São pouco numerosos e espalhados n'um espaço extensissimo. A sua vida é nomade; sustentam-se da caça e da pesca e não conhecem animaes domesticos a não ser os cães e as rennas que utilisam nos seus exercicios venatorios. Teem uma grande paixão pelos “licores e bebidas fortes. A civilisação d'estes povos, facil é deduzil-o do que acabamos de dizer, é perfeitamente rudimentar. Os caracteres d'este ramo melhor se ficarão conhecendo pelo exame “das familias que o compoem.: FAMILIA LAPONIA Os Lapões são baixos, geralmente magros, mas ageis e robustos. À cabeça é proporcionalmente grande, redonda, o nariz largo e chato como nos Mongoes, a côr d'um amarello escuro, os cabellos negros. Observam os viajantes consideraveis differenças entre o Lapão no- made e o sedentario. O primeiro vive exclusivamente para a caça; reduz-se tudo quanto possue ás suas rennas e aos seus cães. Estes animaes são empregados não só na caça mas ainda na conducção de carros especiaes, os trenós, quando a neve cobre inteiramente o solo. Durante os mezes de Junho, Julho e Agosto, o Lapão vive nas altas montanhas com os rebanhos e as 214 HISTORIA NATURAL matilhas; só nos fins de Setembro, quando o frio é intenso, voltam ás suas habitações de inverno. Nada mais desconfortado e miseravel que a vida habitual do Lapão. «Uma tenda colocada sobre quatro estacas, tal é a habitação de estio e de inverno. O lar é no meio da tenda e o fumo que expelle encontra sa- hida por uma abertura praticada no tecto. Cinco ou seis pelles de rennas collocadas em torno do fogo servem de leito a toda a familia, leito que tem por cortinas o fumo que o cerca. A mobilia compõe-se de uma cal- deira e de alguns vasos de madeira. O Lapão traz no bolso uma colher de corno e uma faca. Ás vezes em logar dos vasos de madeira, emprega bexigas de rennas, onde tambem conserva o leite diluido em agua, que lhe serve de bebida.» 4 Esta familia tem diminuido constantemente. O Lapão sedentario é geralmente um antigo dono de rennas que se arruinou e que, por não poder continuar a vida pastoral, se tornou servo ou mendigo. Se alguns meios lhe restaram ainda, estabelece-se à beira do mar, torna-se pescador; entretanto a mulher tece lã em casa. «En- tão, escreve Figuier, passa uma triste existencia no meio de homens de uma origem differente da sua. A sua cabana, os seus habitos, os seus costumes são inteiramente diversos dos mantidos pelas populações que lhe dão asylo. Nenhuma familia poderia alliar-se à sua, e o pobre Lapão vive então absolutamente só se não tem alguns amigos entre estes es-. trangeiros.» 2 As creanças durante as viagens são pelas mães introduzidas num pedaço de madeira cavado em forma de barco; a cavidade é superior-. mente coberta por grades de ferro, que servem para impedir o attaque das feras ao pequenino ser. FAMILIA SAMOYEDICA É nomada e encontra-se espalhada sobretudo aos lados do grande promontorio da Siberia que termina: o Cabo do Norte. Vivem da caça e da pesca às bordas do mar Glacial. Teem um rosto achatado, redondo e largo, os labios espessos, o nariz largo e aberto. Os cabellos são negros, 1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 220. 2? L. Figuier, Obr. cit., pg. 221. MAMIFEROS EM ESPECIAL 215 asperos, a barba pouco abundante e a estatura menos que regular. São de um caracter inquieto e selvagem. FAMILIA KAMTCHADALA Os typos d'esta familia teem uma estatura baixa, os cabellos negros, o rosto largo, os olhos encovados, o nariz curto e chato, as pernas del- gadas e o ventre muito volumoso. São desde muito conhecidos pelos navegadores do mar Glacial. FAMILIA DOS ESQUIMÓS Psi, Habitam a Groelandia e as ilhas visinhas d'esta parte do continente “americano. Os Esquimós formam uma numerosa familia composta de tribus. Teem uma cabeça de forma pyramidal dependente do achatamento lateral do craneo. Esta conformação especial attesta desde logo uma grande inferioridade moral e social. São baixos, de olhar sem expressão e de uma notavel disposição para a obesidade. Tornam-se os Esquimós notaveis pela incuria do seu lar como pela alimentação em que as gorduras predominam. A tempera- tura glacial que os cerca determina esta ordem de alimentos que aos povos de paizes temperados se tornam verdadeiramente repugnantes. À carne e o tecido adiposo da baleia formam o seu prato principal. A pesca d'este cetaceo constitue pois, a occupação quasi exclusiva dos Esquimós durante a primavera; no inverno nutrem-se das provisões ac- cumuladas das pescas anteriores que, por insuflicientes, os deixam mui- tas vezes em lucta com a fome. Os Esquimós vestem-se de pelles, unico meio de supportar um clima gelado como o que cerca estes miseraveis. “A estupidez dos Esquimós é assombrosa. Não sabem contar além de dez, não podem assignalar uma data qualquer aos acontecimentos passa- dos, não conhecem a propria idade, não teem systema de escripta, não são capazes de elevar-se a uma idéa abstracta. A preocupação constante e unica d'estes miseraveis, é o alimento. O cão serve-lhes de animal de carga. Os Esquimós créem nos espiritos maus que tentam propiciar por 216 HISTORIA NATURAL meio de festas e danças grottescas. A isto se reduz a sua pretendida re- ligião. FAMILIA IÉNISSEIANA Constitue um povo verdadeiramente insignificante, conhecido pela designação de Ostiaks do Iénissei e fallando uma lingua que nada tem de commum com a dos Ostiaks d'Oli, da raça caucasica. FAMILIAS IUKAGHIRA E KORIAKA Formam-as povos nomades tendendo a fazer fusão com as populações russas. Vivem junto de Behring, estreito que separa o extremo nordeste da Ásia do continente americano e estabelece a communicação do Oceano Glacial Arctico com o Oceano Pacifico. Manteem com os povos samoyedi- cos notaveis pontos de semelhança no que respeita a costumes e à lingua. IH. RAMO MONGOLICO É nos povos d'este ramo que mais pronunciados e salientes existem os caracteres da raça amarella. Os Mongoes, senhores do imperio chinez, são inclinados à vida nomade. A religião que professam é a de Buddha ou de Mahomet. | Este ramo abrange quatro familias que são: a mongolica, a tongousa, a yacuta e a turca. MAMIFEROS EM ESPECIAL 217 FAMILIA MONGOLICA Nos representantes desta familia a cabeça é mais volumosa, o rosto mais largo, o nariz mais achatado e os olhos menos abertos que nos de quaesquer outras. A côr é amarella escura. Teem o peito largo, os mem- bros e o pescoço curtos. Os povos -d'esta familia acham-se submettidos aos imperios da Rus- sia e da China. É N'esta familia distinguem-se trez povos principaes que são: os Kal- muks, os Mongoes propriamente ditos e os Buriatas. Consagremos a cada um separadamente algumas palavras. Kalmuks.— São povos nomades que se encontram na linha que se- para o Caucaso do paiz dos Cossacos do Don. No estio as creanças, até à idade dos dez annos, andam nuas. No inverno, que n'estas regiões é rigorosissimo, o vestido é ainda relativamente leve. São os Kalmuks po- vos miseraveis que vivem do roubo e se entregam desesperadamente à embriaguez sem distincção de sexos ou idades. As mulheres cuidam da alimentação dos filhos sem que para isso concorram os paes; a incuria e desamor d'estes pelas creanças vae até ao abandono completo. Uma paixão tambem notavel nos Kalmuks é a do jogo; consomem dias intei- ros n'esta inutilidade desmoralisadora. Mongoes propriamente ditos. — São conhecidos tambem pelo nome de Mongoes orientaes. Erram nas charnecas ou steppes da Mongolia. Os Mon- goes acham-se divididos em um grande numero de tribus, de que a prin- cipal é a dos khalkhas. | Podemos dividir a Mongolia em duas regiões ou zonas differentes pelos productos do solo tanto como pelos destinos politicos: a do sul e a do norte. A primeira é árida e apenas habitada na fronteira da China por pequenos povos ou antes bandos mongoes, tributarios do imperio chinez. A segunda, a zona do norte, é fertil e habitada pelas tribus khalkas divididas em duas castas: os padres e os homens negros. Os pa- dres são ministros de Buddha, os homens negros são os que deixam crescer os cabellos e formam a aristocracia d'onde por eleição saem os chefes das tribus. Estas são pastoraes ou guerreiras. As occupações do pastor são extremamente limitadas. Conduz, montado a cavallo, o reba- nho aos pastos, entretem-se nos acampamentos com outros pastores em 218 HISTORIA NATURAL quanto os animaes buscam alimentos, e, quando volta, installa-se na sua tenda para dormir, beber ou fumar cachimbo. Entretanto as mulheres trabalham, mugindo as vaccas, procurando combustivel para o fogão, preparando a lã e as pelles de animaes que devem servir-lhes de ves- tido. Os khalkhas são sobrios e hospitaleiros. Desconhecem quasi com- pletamente as industrias e o commercio. «Trocam, diz Figuier, as mate- rias primas com os negociantes russos e chinezes que os roubam quanto podem. Os pagamentos effectuam-se por meio de chá preparado com as folhas mais grosseiras e mais pequenas dos ramos da planta.» *! O mesmo auctor acrescenta: «A existencia calma e contemplativa dos khalkhas só raros acontecimentos a perturbam: uma peregrinação, funeraes seguidos de longos festins, a recepção de alguns viajantes ou um casamento que nada mais é que um negocio em que a mulher é vendida pelo proprio pae ao que mais offerece, negocio que dá logar a festas de oito dias com largos excessos de carne, de vinhos, de tabaco e de agua-ardente.» 2 Buriatas.—Vivem em numero de trinta e cinco mil, pouco mais ou menos, nos montes situados ao norte do Baikal. São pastores, idolatras e para elles a mulher é um ser inferior, sem alma. São hospitaleiros, recebem com grandes festas e jantares abundantes. | FAMILIA TONGOUSA Compõe-se de dois povos: ao norte, os Tongousas, ao sul os Mand- chus. Tongousas.—Vivem na Siberia perto do Oceano Arctico, são noma- des e sustentam-se da caça e da pesca. Parte d'elles vivem sob a domi- nação russa e dividem-se consoante os animaes domesticos de que se utilisam em Tongousas de cães, de cavallos e de rennas. Mandchus.—São nomades como os precedentes e acham-se actual- mente espalhados por todo o imperio da China. Teem geralmente os ca- 1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 234. 2? L. Figuier, Idem, pg. 236. MAMIFEROS EM ESPECIAL 219 bellos negros e a pelle de um amarello carregado. Teem sabido apro- priar-se da civilisação chineza e contam uma litteratura propria. FAMILIA YACUTA + Os caracteres physicos dos membros d'esta familia são: um rosto mais largo e mais achatado ainda que o dos Mongoes, cabello negro, comprido e corredio, cahido aos lados da face e uma barba pouco abun- dante. Esta familia consta de cem mil almas, termo medio. Um facto ver- dadeiramente curioso é o da mudança de côr que quatro vezes por anno tem logar, por influencia das estações. São activos e intelligentes e hos- pitaleiros, os Yacutas. Professam o chamanismo ou religião idolatra se- guida tambem pelos Finnezes, os Samoyedicos, os Ostiaks, os Buriatas e outros povos. Fallando da extrema habilidade destes homens, Wouvarowski diz na revista franceza Tour du monde: «Basta que um Yacuta queira ser mestre em qualquer arte, para conseguil-o. É ao mesmo tempo ourives, caldeireiro, ferrador, carpinteiro; sabe desmontar uma arma, esculpir, etc.; e com um pouco de exercicio é capaz de imitar qualquer objecto que tenha examinado. É de lastimar que não haja mestres que os ini- ciem em artes mais elevadas, porque elles abalançar-se-hiam a executar trabalhos extraordinarios.» FAMILIA TURCA A familia turca, tambem chamada algumas vezes tartara, compre- hende povos que desde a mais remota antiguidade conseguiram fundar um vasto imperio abraçando uma parte da Asia central desde a China até ao Mar Caspio. Attacados e vencidos porém, pelos Mongoes, os Tur- cos recuaram para o meio-dia da Europa. Depois tornaram-se a seu turno conquistadores e conseguiram submetter e devastar uma parte da Europa meridional. Primitivamente os Turcos tinham os cabellos ruivos e o typo accusa- damente mongolico. Estes caracteres porém desappareceram. As modifi- 220 HISTORIA NATURAL cações n'este sentido operadas, explicam-se facilmente pelos successivos cruzamentos com Mongoes, Persas e Arameanos. A familia turca abrange ou comprehende um grande numero de povos; apenas fallaremos de dois, por mais importantes: os Turcomanos e os Osmanlis. ; Turcomanos. — Erram pelas charnecas ou steppes do Turkstan, da Persia, de Afghanistan, chegando até à Anatolia. São altos e robustos; o seu rosto é largo, a fronte elevada, a abobada craneana desenvolvida, as orelhas grandes e destacadas da cabeça, o nariz pequeno, os olhos vivos e intelligentes, os labios grossos e a barba abundante. Ácerca dos costumes turcomanos escrevia Blocqueville em 1866 na revista Tour du monde: «As mulheres são tratadas com muito mais attenção por estes do que por quaesquer outros musulmanos. No en- tanto trabalham muito; moem todos os dias o trigo destinado à ali- mentação da familia, fam a sêda, a lã e o algodão, tecem, cosem, calcam os feltros, montam e desmontam a tenda, vão buscar a agua, lavam algumas vezes, tingem as lãs ou as sedas, e fazem tapetes.» Du- rante todos estes e outros trabalhos as mulheres aleitam os filhos & não comem mais do que pão secco e sopa. Admiravel robustez! Quanto ao homem, o mesmo escriptor acrescenta: «O homem tem tambem o seu genero de trabalho determinado: occupa-se da lavoira, da cultura, reco- lhe a colheita, cuida dos animaes domesticos, faz cordas de lã à mão, talha e cose tudo quanto se refere aos arreios e cobertas dos cavallos ou camellos, faz algum commercio e nas horas de ocio entretem-se arran- jando a cobertura da cabeça ou os sapatos, joga, canta, bebe chá ou fuma. Nestes povos é evidente o desejo de se instruirem; lêem com avi- dez os raros livros que o acaso lhes depara. Antes dos dez ou doze an- nos as creanças não trabalham; até esta idade aprendem a lêr e a es- crever. Mesmo os paes que carecem do auxilio dos filhos no seu trabalho durante o estio, não deixam de tentar que elles aproveitem na estação invernosa o tempo antes perdido...... Todos estimam a sua tribu e em caso de necessidade por ella se sacrificam...... Raras vezes vi dispu- tas e escandalos entre os Turcomanos. Algumas vezes assisti a discus- sões vivas e animadissimas, nunca ouvi porém injurias grosseiras ou palavras indecorosas como em outros paizes. São tambem menos aspe- ros para com as mulheres, têem com ellas muito maior consideração do que os Persas...... A mulher pode ir de uma tribu a outra tribu, per- correr um caminho longo e isolado sem receiar o menor insulto de quem quer que seja.» Osmanlis—A circumstancia historica de terem sido os fundadores | | | | MAMIFEROS EM ESPECIAL 221 do imperio turco e os conquistadores de Constantinopla, faz dos Osman- lis o povo mais importante da familia turca. A civilisação dos Turcos Os- mamnlis data do seculo vm da era vulgar. Pelas suas formas approxi- mam-se em extremo da raça branca, motivo porque n'ella estiveram por muito tempo classificados. A cabeça é espherica, a fronte larga e elevada, o nariz recto sem depressão à raiz e sem achatamento na extremidade inferior. São altos, elegantes, robustos, de uma physionomia onde ha um mixto de nobreza e rude altivez. Como são de todos os povos asiaticos os que mais recentemente entraram na Europa, os Turcos conservam ainda os costumes e as crenças que ha trez seculos os distinguiam. A vida das altas classes sociaes n'este povo é de uma quietação e tranquilidade que singularmente contrastam com a agitação quasi febril das cidades europeas. O Turco das classes elevadas vive em casas silen- ciosas, cercadas de jardins, deitado mollemente nos estofos, fumando bom tabaco da Syria e bebendo, a pequenos golles, o café preciosissimo da Arabia. De resto, não prescinde de pedir ao opio as hallucinações e os sonhos da vida contemplativa, absolutamente impassível. Nas classes inferiores, no proletariado não existe a miseria pungitiva que se vê tão repetidas vezes na Europa; os ricos não expulsam nunca o desgraçado que lhes pede acolhimento. Entre os Turcos existe a polygamia. Figuier observa porém que ella é muito menos desenvolvida do que geralmente se acredita, porque tendo a mulher turca o direito da mais absoluta ociosidade junto ao habito de um luxo excessivo, só os homens ricos podem manter mais do que uma esposa. Mas quando a fortuna existe, em aposentos reservados, escondidos à curiosidade, isolados, constituem-se os harems. Junctam-se ahi as escravas mais formosas do mundo, as georgeanas e circassianas. Ahi, essas mulheres que na rua se escondem sob veos multiplos e im- penetraveis, patenteiam a belleza incomparavel das formas, a peregrina formosura e a sedução de corpos sem eguaes. A mulher turca, qualquer que seja a sua cathegoria social, vive na mais completa ociosidade. O tedio que esta situação naturalmente pro- move, combatem-no por um processo curioso: fazendo visitas. Estas po- dem, segundo as narrativas dos viajantes, classificar-se em tres classes: as visitas annunciadas, as de surpreza e as de aventura. Comprehende-se o que significam as primeiras; quanto ás ultimas, ellas teem um caracter verdadeiramente singular: são visitas que as damas em bandos vão fa- zer a desconhecidos. N'estas visitas consome-se o tempo ouvindo musica e tômando café. O Turco é essencialmente inactivo, indolente; não tem comtudo o ca- racter hostil que alguns lhe attribuem. Pode dizer-se mesmo que elle tem um fundo grande de bondade encoberto e occulto sob os habitos de 222 HISTORIA NATURAL silencio e proverbial orgulho. O Turco respeita os animaes até o ponto de que nas ruas das grandes cidades pombos volitam aos bandos e nos canaes de Constantinopla são os primeiros a cobrar dos barcos de trigo um tributo que ninguem lhes disputa ou contesta. Não ha medidas to- madas contra o augmento incessante de cães e gatos que vagueiam pelos arruamentos das cidades e villas em numero prodigioso. Para com os vegetaes, o mesmo respeito em que alguma coisa de religioso parece existir; um costume antiquissimo, tradicional interdiz a cada um o di- reito de destruir ou arrancar uma arvore. Quanto ás instituições sociaes é difficil imaginal-as mais deploraveis e mais irracionaes; as leis, é impossivel comprehendel-as mais viciosas e irregulares. O despotismo turco não conhece limites; a fortuna e a vida dos cidadãos estão inteira e incondicionalmente dependentes do ar- bitrio de um chefe, o Sultão. É elle o senhor da Turquia, o distribuidor dos cargos publicos, o conferidor das dignidades, o que dispõe da jus- tiça ao sabor das suas impressões, o que pode, como tribunal supremo, mandar lêr uma irrevogavel sentença de morte e confiscação de bens. Depois vem o Gran-Visir, o commandante geral de todo o exercito, um despota como todos os militares. Depois ainda o Pachá, funccionario ci- vil e militar simultaneamente, outro despota. Não ha verdadeira divisão de poderes; mandam todos, todos ordenam absolutamente. Por vezes, é facil prevêr, ha conflictos profundos entre os senhores tyrannos. Cada um procura fazer-se forte pelas armas para desobedecer ou attacar o outro; assim é que um certo Pachá, como diz Figuier, «destroe um exercito que é enviado para tirar-lhe o governo» e um outro «expede para Cons- tantinopla a cabeça de um general que veio com ordem superior para combatel-o, para o demittir.» ! Com um tal systema governativo, se este nome pode dar-se a um despotismo militar permanente, a Turquia não pode progredir. Onde não ha liberdade, onde não ha garantias para o exercicio dos direitos individuaes, onde a propriedade e, o que mais é, a vida não estão seguros, o estacionamento é inevitavel. Nos ultimos annos realisou-se uma certa modificação politica n'este povo. O Sultão houve por bem conceder aos seus vassalos uma represen- tação nacional. Perfeitamente comico! Um despota que decreta a liber- dade, um tyranno que se abstem magnanimamente do governo incondi- cional em beneficio do seu povo, um dominador que, por espancar o tedio dos seus dias, cria um parlamento onde se farão discursos que elle ou- virá —eis tudo. No fundo um simulacro de liberdade dentro d'um abso- lutismo tradicional e indiscutivel. De resto esta camara, que é um pre- | Obr. cit., pg. 26. E gs ÁS (oi É a MAMIFEROS EM ESPECIAL 223 sente feito ao paiz pelo sultão, durará tanto quanto este o deseje. Não tem raizes no espirito de independencia, nas tradições democraticas, não nasceu evolutiva nem revolucionariamente da vontade do povo, não appareceu mesmo como a simples reclamação de um partido organisado ; ella cahirá quando o Sultão houver por bem dissolvel-a para ND, e cahirá talvez sem protesto. Na Turquia não se segue exclusivamente a religião da Mahoinét: existe lá o christianismo com todos os seus ritos e as suas formas. Es- tas religiões são sufficientemente conhecidas para que possamos abster- nos de descrever as suas manifestações cultuaes. A interdição religiosa de beber vinhos deu origem talvez ao abuso do opio que junto à polygamia constitue uma das grandes chagas sociaes da Turquia. + HI. RAMO SINICO Nos povos d'este ramo são menos accentuados os caracteres da raça amarella. Teem elles a estatura mais elevada, o corpo mais elegante, 0 nariz menos achatado que os povos dos ramos precedentes. Como os po- vos do ramo mongolico, estes attingiram em eras remotas um estado de adiantada civilisação que deixaram perder. O despotismo que os governa creou a subserviencia e o ridiculo amor do cerimonial, da etiqueta, que os immobilita e adormenta. Uma outra causa de estacionamento vem das linguas que são monosylabicas e da escripta que é hieroglyphica. Este ramo comprehende tres familias: a chineza, a japoneza e a indo-chineza. FAMILIA GHINEZA Os seus caracteres physicos são: largura extrema e achatamento da região suborbitaria da face, proeminencia notavel dos ossos zygomaticos e obliquidade dos olhos. 224 HISTORIA NATURAL Foi o povo chinez o que primeiro dos da raça apresentou uma mais alta civilisação. A maior parte do imperio chinez é habitado pelos povos d'esta familia que se estende ainda à Indo-China, às ilhas Phillipinas, ete. Os conselheiros particulares do imperador governam soberanamente. A auctoridade do imperador baseada sobre um respeito tradicional de seculos, é o meio, a arma de que se servem os altos dignatarios chine- zes para manter um governo centralisador e despotico. O caracter moral do povo chinez define-se facilmente; está photo- graphado, se assim posso exprimir-me, nas doutrinas de Confucio. Este celebrado philosopho creou um systema moral cuja base é a apathica submissão dos novos aos velhos, dos vassalos ao imperador, dos filhos aos paes, de todos aos deuses. O livre exame é um erro, a discussão dos direitos e dos meritos uma prova de indisciplina, de immoralidade, se- gundo este systema, que em algumas das suas maximas precedeu de muitos seculos o christianismo. Ora precisamente o que Confucio decreta como philosopho, em nome da moral, é o que na China naturalmente se observa em nome da tradição, do costume. O respeito da velhice, por exemplo, é salientissimo no povo chinez. Quando um velho, embora im- becil, passa nas ruas de Pekin, a mocidade cessa respeitosamente os seus trabalhos ou as suas festas. Se o velho é paralytico e tão pobre que não pode pagar a quem lhe conduza um pequeno carro em que passeie, são as creanças que voluntariamente se encarregam d'este serviço. O governo chinez promove e sustenta este sentimento premeiando a velhice. Na familia o pae é senhor absoluto. A mulher e os filhos são pro- priedade sua. Para casar uma filha, por exemplo, não é preciso consul- tal-a, não é mesmo necessario proceder à formalidade de apresentar-lhe o futuro esposo, o homem a quem irá ligar os seus destinos. Nas classes altas da sociedade chineza, a mulher vive, permitta-se a phrase, encar- cerada; não sae sem que para isso receba ordem do marido e quando visita os parentes vae de cadeirinha hermeticamente fechada. A mulher das classes inferiores gosa de mais liberdade, sae às ruas com a face descoberta; esta independencia porém é apparente apenas, porque não a gosa senão sob a condição de ser, como é realmente, uma verdadeira besta de carga do marido. Sob o peso de trabalhos excessivos a chineza pobre envelhece rapidamente. Do respeito ao imperador, fallamos já; é como se fôra um idolo im- posto pelas tradições sagradas à veneração do povo. Na burguezia chineza ha costumes curiosos, de um ridículo, para nós verdadeiramente incomparavel. Um d'elles é a systematica deforma- ção dos pés como processo para adquirir o que se crê signal de belleza e distincção. Apertam-se, desde a idade dos seis annos, os pés ás crean- ças do sexo feminino por meio de ligaduras que se apertam cada vez ic ic pit ade nes o MAMIFEROS EM ESPECIAL 225 mais violentamente. Então o dedo pollegar é forçado a unir-se, a cer- rar-se contra os outros, e todos a dobrarem-se contra a planta do pé. Quando chega à idade adulta, a mulher não pode marchar, saltita apenas; os pés tornaram-se-lhe mais do que uma inutilidade, porque são um ver- dadeiro obstaculo à marcha regular. Um outro costume curioso é o de deixarem crescer indefinidamente as unhas; é tambem um signal con- vencionado de belleza. Para as não partir, adaptam-se-lhes estojos espe- ciaes de prata. Tudo isto é symptoma evidente de uma vida ociosa; o trabalho é perfeitamente incompativel com estes usos singulares. O ves- tuario accusa tambem pela sua complicação extraordinaria que a activi- dade é desconhecida nas classes alta e media do povo chinez. E com ef- feito o interior das casas de um certo luxo é, na phrase de Figuier, «o refugio impenetravel da preguiça.» Dentro de casa vive-se quasi ex- clusivamente deitado a fumar opio e a beber chá. A primeira coisa qué ao hospede se offerece é o kang, um movel que serve de leito, de canapé ou de cadeira, e uma taça de chá; é o signal de hospitalidade. Assim, procuram-se desde logo as posições mais commodas e os melhores meios de deliciar o paladar e o olfato. A sociedade chineza é profundamente corrupta. O jogo, as bebidas alcoolicas, os excessos eroticos e o abuso constante do opio, taes são as causas principaes da paralysia do trabalho, da indolencia, da inactividade quasi absoluta das classes abastadas. O progresso social n'estas condi- ções é impossivel. Onde não existe o amôr do trabalho, como serão pos- siveis a industria, o commercio, as sciencias? Onde estarão as fontes de riqueza? E sobretudo onde procurará o individuo a energia viril, o vivo en- fhusiasmo e a coragem que são indispensaveis aos commettimentos e ás luctas politicas de um paiz atrazado? A apathia mental implica o respeito servil da tradição, o amôr do formalismo, a irresolução, a immobilidade do que não discute, do que receia o futuro —por peor que lhe pareça o passado e o presente. Isto explica a morbida quietação chineza. Uma coisa apenas existe na China digna de mencionar-se como ma- “nifestação de actividade, a agricultura. É preciso reconhecer que sob este ponto de vista o povo chinez não cede o logar de primazia a nenhum outro. Os seus campos são cuidadosamente cultivados e pode dizer-se que não ha entre elles um palmo de terreno perdido. No entanto a fer- tilidade do terreno, a benignidade do clima e os preços insignificantes por que se obteem braços para a lavoira entre as classes miseraveis, entram por muito na explicação do facto. Se estas condições especiaes se não juntassem para fazer prescindir dos grandes trabalhos fatigantes que necessitam de sustentar perseverantemente os Europeus, o que se- ria da agricultnra na China? O mesmo provavelmente que de tudo o mais por que este paiz se caracterisa. 15 226 HISTORIA NATURAL Na alimentação dos chinezes predomina o elemento vegetal. Os ani- maes que na Europa fornecem de preferencia a sua carne para alimento, o boi e o carneiro, são na China insufficientes para as necessidades de uma população enorme; as plantas e os peixes supprem, embora des- vantajosamente, esta grande falta. É indiscutível que esta forma de ali- mentação deve actuar profundamente n'um sentido favoravel à ore lidade caracteristica do povo chinez. Examinemos por um momento a administração da justiça e as formas judiciaes na China, dando a palavra a Poussielgue, citado por Figuier. «Ha na China, diz aquelle escriptor, uma relação immediata entre a ap- plicação penal da justiça e a organisação da familia. Se o imperador é o pae e a mãe dos seus subditos, os magistrados que o representam em todas as instancias, são tambem os paes e as mães dos seus administra- dos. Todo o attentado contra a auctoridade é um attentado contra a fa- milia. A impiedade, um dos maiores crimes previstos e reprimidos pela lei, não é senão uma falta de respeito aos paes. O Codigo Penal define a impiedade assim: É ímpio o que insulto os seus proximos ascenden- tes, que lhes intenta wm processo, que não lança luto por elles, que não respeita a sua memoria, que falta aos cuidados devidos áquelles a quem deve a existencia, de quem recebeu a educação, por quem foi prote- gido e soccorrido. São terríveis as penas que punem os crimes a im- piedade. «Transportando assim o sentimento da familia para os dominios po- líticos, os legisladores chinezes crearam uma machina governamental de uma força prodigiosa que dura ha trinta seculos e que não poderam des- truir nem mesmo abalar seriamente as numerosas revoluções e mudanças de dynastia, as opposições de raça entre o norte e o sul, a immensidade territorial do imperio, a incredulidade religiosa, emfim o culto egoista dos interesses materiaes desenvolvidos até ao excesso por uma nara ção caduca e immovel. «Entre os tribunaes supremos com séde em Pekin encontra-se o tri- bunal de appellação. Depois veem os pretorios de justiça com séde nas terras mais importantes de cada provincia e que são presididos por um magistrado especial tendo o titulo de commissario do tribunal dos cri- mes; um outro magistrado de grao inferior ahi representa as funeções. de accusador publico. Encontram-se depois nas cidades de segunda e de terceira ordem tribunaes inferiores que não teem senão um juiz, o man- darim ou o sub-perfeito do departamento. As penas que este ultimo ap- plica, são limitadas; quando o crime mereceu um castigo maior, o accu- sado é enviado perante o pretorio à terra principal de provincia. Seo tribunal declara que elle incorreu na pena de morte, o processo deve ser expedido para o tribunal de appellação de Pekin; este julga em ul- E RP meg riam | & Ê ae a A 2 Sófia MAMIFEROS EM ESPECIAL 227 tima instancia nas audiencias de outomno. Nenhum tribunal de provincia tem pois o direito de pronunciar a pena de morte; no entanto, em cer- tos casos quando ha revoltas armadas, pode um governador ser investido de poderes judiciaes analogos aos que na Europa confere o estado de cêrco. Emfim ha em todas as localidades uma sala de instrucções onde o sub-perfeito que faz o seu giro trimensal deve informar-se do que se passa, julgar todas as disputas e fazer um curso de moral ao povo; esta excellente instituição porém que tem uma certa analogia com as nossas justiças de paz, cahiu em desuso por effeito do relachamento dos laços governamentaes e pela incuria dos mandarins. «Resulta d'esta organisação judiciaria que o sub-perfeito acha-se in- vestido de todos os poderes correccionaes na esphera da sua jurisdicção administrativa, estado de coisas este em extremo vicioso e que tem creado enormes abusos. «Não ha advogados na China e, pelo que acaba de vêr-se, muito poucos juizes; assim o modo de distribuir justiça é muito summario e as garantias que elle offerece ao accusado, quasi nullas. Os amigos ou pa- rentes podem, é certo, advogar a causa, mas é preciso que isso conve- nha ao mandarim chefe do tribunal. As testemunhas, essas estão Sujeitas a receber bengaladas consoante o seu depoimento agrada ou não agrada; em geral os depoimentos longos são os que menos agradam aos man- darins, porque ha um grande expediente e o tempo não chegaria para examinar todas as causas nas suas pequeninas minudencias. Assim a con- demnação ou absolvimento dependem dos officiaes subalternos de justiça que prepararam o processo de um modo favoravel ou desfavoravel ao accusado, segundo receberam ou deixaram de receber dinheiro. «Se ha coisas dignas de approvação na jurisprudencia chineza, em compensação, as applicações das penas são pavorosas. O homem é con- siderado como um ser sensivel apenas à dôr physica, à morte; os legis- ladores não procuraram ferir o culpado na honra, no amôr proprio, nem mesmo nos interesses. A escala penal compõe-se especialmente de panca- das que se applicam com um espesso bambu do lado mais grosso ou menos grosso desde dez até duzentas, segundo a gravidade do delicto ou o valôr do objecto roubado. As pancadas applicam-se desde logo e deante mesmo do tribunal. As penas ordinarias são depois a golilha, o pelourinho, o en- carceramento ou a expulsão perpetua para a Tartaria aos mandarins in- cursos em delictos politicos. Dissemos que só o tribunal de appellação decidia da pena de morte; mas os soffrimentos inflingidos por ordem dos tribunaes inferiores são tão terriveis, os carrascos são tão engenhosos na arte de variar as torturas sem produzir a morte, o regimen das prisões é tão odioso, emfim o homem condemnado á golilha, ao pelourinho, à cadeia é exposto a agonias tão terriveis que quando a ordem de morte * 228 HISTORIA NATURAL chega de Pekin todos estes desgraçados caminham alegremente para o supplicio como se o seu ultimo dia fosse o do libertamento. «As execuções de morte, variadissimas nos tempos passados, redu- zem-se actualmente a trez: a estrangulação, a decapitação ou a morte lenta pelo supplício das facas. «A estrangulação opera-se por meio de um laço de sêda que dio carrascos sollicitam de cada lado ou de um collar de ferro que se aperta por traz com um parafuso; este ultimo processo tem muita analogia com o supplício do garrote usado na Hespanha. A estrangulação pelo laço de sêda, reserva-se para os principes da familia imperial; o collar de ferro serve para fazer desapparecer na sombra das prisões aquelles cuja morte se deseja occultar. «Na praça publica ha sómente o supplício da decapitação applicndo a todos os crimes vulgares. Os aprestes são simples e as peripecias ex- tremamente rapidas attentos a tempera, o pezo dos sabres e a habilidade dos carrascos. Nunca a guilhotina attingiu a destreza pavorosa dos sa- tellites do terrivel Yek, o viso-rei de que os Anglo-Francezes consegui- ram libertar a provincia de Canton; bastavam-lhes alguns minutos para fazerem cahir cem cabeças. Verdade é que o seu senhor vangloriava-se de tel-os exercitado à custa de mais de cem mil victimas em menos de dous annos. «A morte lenta pelo supplício das facas é reservada para os crimes de lesa-magestade, o parricidio e o incesto. Os preparativos d'este sup- pliício devem duplicar ainda as agonias do condemnado; amarrado firme- mente a um poste de pés e mãos por cordas, o paciente estende o pes- coço na golilha; depois o magistrado que vigia a execução tira de um cesto coberto uma faca em cujo cabo está designada a parte do corpo que deve ser ferida pelo carrasco. Esta tortura pavorosa continua-se as- sim até que o acaso tenha designado o coração ou outro orgão vital. Devemos desde já dizer que muitas vezes a familia do condemnado com- pra a pezo de ouro a indulgencia do juiz, que arranja por modo a tirar immediatamente do cesto a faca que deve dar o golpe mortal. «Diante de taes penalidades, diante destes repugnantes e frequen- tes espectaculos, como nos espantaremos de que os Chinezes se familia- risem cêdo com a morte e que as mulheres e as creanças mesmo pos- suam no mais alto grao a coragem passiva que faz encaral-a com calma? Para muitos d'elles, a morte não é mais que o final de uma miseravel e dolorosa existencia.» ! Verdadeiramente barbara uma tal justiça! O exercito na China não tem importancia alguma; falta-lhe absolu- 1! L. Figuier, Obr. cit., pg. 307 e 308. MAMIFEROS EM ESPECIAL 229 tamente o valor e a intrepidez. Em 1860 na guerra com os Francezes, os soldados do imperio chinez fugiam à simples vista dos uniformes ini- migos. Assim, o general francez Cousin Montauban pôde realisar uma in- vasão que Figuier chega a denominar fabulosa, levando os seus soldados, atravez de vastas extensões de territorio chinez, até Pekin e obrigando o governo do celeste imperio a assegurar o respeito dos interesses euro- peus no extremo Oriente. Entre as muitas causas de atrazo e estacionamento do povo chinez devemos nomear tambem a difficuldade e complexidade da lingua escripta, que é ideographica, isto é representa as idéas, não pelos sons das pala- vras que lhes correspondem, mas por signaes symbolicos, de uma inter- pretação geralmente obscura. Aprender a lêr e a escrever uma lingua - destas custa um trabalho de muitos annos; assim uma grande parte da vida do chinez é consumida a estudar o que é apenas um instrumento de adquirir sciencia, a lingua. FAMILIA JAPONEZA = Entre esta familia e a precedente ha notaveis pontos de contacto bem como enormes differenças. Fallemos das semelhanças primeiro. No Japão, como na China, os cultos reinantes são os de Buddha e Confucio. Os pagodes são os mesmos, as casas e a alimentação eguaes; o amôr do chá é tão intenso aqui como entre os chinezes. A lingua es- cripta é tambem ideographica. Estes os pontos de contacto. As differenças são proa A familia japoneza é essencialmente guerreira e militar; em quanto que o Chinez sorri quando lhe dizem que fugiu diante do inimigo ou quando lhe pro- vam que mentiu, o Japonez, valente e altivo, crê-se deshonrado para sempre se lhe tiram o seu sabre. O duello, desconhecido na China, é ter- rivel no Japão: um dos duelistas abre o ventre com um sabre e convida o adversario a que faça outro tanto. Ao passo que o Chinez pobre vive na mais absoluta immundicie, o Japonez pelo contrario, sem distincção de classe ou de fortuna, toma invariavelmente de dois em dois dias um - banho quente. Ao passo que o Chinez se fecha apathicamente por traz da classica muralha repellindo tudo quanto é estrangeiro, o Japonez pelo contrario, torna-se notavel pela avidez com que procura saber o que se passa fóra do seu paiz. Assim, a superioridade da familia da em face da chineza é perfeitamente indiscutivel. 230 HISTORIA NATURAL Sob o ponto de vista physico, o Japonez é de estatura regular, ca- beça grande, pescoço curto, peito largo, tronco alto, pernas delgadas e curtas, pés pequenos e mãos finas. Este typo não é evidentemente o do Chinez. Os olhos são negros e os dentes immensamente brancos excepto nas mulheres casadas a quem o uso impõe o dever de ennegrecel-os. O gosto das sciencias e das artes é notavel n'este povo; a musica sobretudo é eminentemente estimada. A industria, no que respeita espe- cialmente à fabricação de estofos, aos trabalhos em ferro, em cobre e porcellana, está notavelmente adiantada e goza de uma justa reputação. No ponto de vista politico, o Japão admittiu por muito tempo a di- visão do poder em temporal, confiado a um chefe hereditario e despo- tico, O taikoun, e espiritual reservado a um outro chefe o mikado, Actualmente porém, este ultimo accumula os dois poderes. D'estes che- fes, o espiritual é da mais velha e aristocratica estirpe japoneza, um descendente e um continuador das tradições dos deuses e dos heroes, um depositario do poder por graça do ceu. O outro, chefe temporal descende de antigos servos do mikado, dos homens que a este teem usurpado pela fraude e pela astucia a marinha, o exercito, o territorio e a fortuna; é um vulgar plebeu, emfim. Ora o chefe espiritual, o depo- sitario supremo do poder que lhe vem dos deuses, o imperador theo- cratico não sabe, como maliciosamente observa Humbert, ex-ministro plenipotenciario da Suissa no Japão, como empregar tão vastas é lati- tudinarias prerogativas. Cioso dos seus fóros tradicionaes e dos seus direitos sagrados, elle não deixa nunca passar sem protesto qualquer tentativa de usurpação, qualquer acto do poder temporal que de algum modo fira as suas prerogativas; como todos os chefes espirituaes porém, acaba por ceder, por assignar, embora vencido, todos os tratados que lhe são impostos. A religião dominante no Japão é o buddhismo, que tem por ideal a anniquilação, que prega a miseria e a inutilidade da vida. Esta religião fundada essencialmente sobre wma emoção pessimista exerce nos cos- tumes sociaes uma deleteria influencia. Não existindo nas massas uma disciplina philosophica moralmente capaz de subordinar as tendencias aggressivas que no fundo de todos nós residem como legado dos tempos primitivos, o desprendimento completo da vida, a quasi voluptuosidade com que se encara a morte vista atravez das idéas religiosas como um livramento, são a causa sempre persistente dos assassinios e dos suici- dios, vulgarissimos no Japão. A doutrina religiosa de Confucio tem menos sectarios. De resto, é preciso observal-o, o buddhismo não é compre- hendido geralmente na sua pureza philosophica de systema abstracto, mas apenas como emoção a que um certo symbolismo cultual, indispen- savel ao maior numero, se mistura fallando aos sentidos. MAMIFEROS EM ESPECIAL 231 “A polygamia não existe legalmente no Japão, a não ser para o chefe espiritual do paiz que orgulhosamente patenteia os documentos d'esta villissima prerogativa. FAMILIA INDO-CHINEZA é Nos povos d'esta familia a côr dominante da raça amarella é mais carregada que nos Chinezes e Japonezes. Caracterisa-os physicamente uma pequena estatura, socialmente uma civilisação menos adiantada que a dPaquelles povos, moralmente, uma indolencia extrema. Pertencem a esta familia os Birmanos, os Annamitas e os Siamezes. Birmanos e Annamitas. —O interesse historico que estes povos of- ferecem, é insignificante. O. Annamita tem os ossos zygomaticos salientes, o nariz largo e achatado, os olhos pequenos e os dentes negros e cariados pelo uso con- tinuo que faz de um preparado de pimenta, areca e cal. O costume chinez de permittir o crescimento indefinido das unhas, existe tambem entre os Annamitas. Os Birmanos são mais altos e ao mesmo tempo mais robustos que os precedentes. A côr da sua pelle é egualmente mais carregada. O seu caracter é desigual: servil e cobarde, umas vezes, arrogante e destemido, “outras. Caracteriza-os uma enorme religiosidade junto a um gosto pro- nunciado por tudo quanto se refere ao vestuario e aos divertimentos fri- volos, qualidades estas que nunca deixam de apparecer como um dis- tinctivo evidente nos povos de civilisações atrazadas. As mulheres são consideradas entre os Birmanos como seres infe- “riores; quando são chamadas aos tribunaes para depôr como testemu- “nhas, conservam-se à porta. Os Birmanos vivem principalmente da caça e da pesca. Siamezes.— Formam o grupo mais importante da familia Indo-Chi- neza. Teem uma estatura pouco menos de regular e a sua côr é de um escuro avermelhado. São servis, incondicionaes respeitadores da ordem constituida, religiosos até se deixarem explorar pelos bonzos ou padres buddhistas, amantes como os selvagens do esplendor até se pintarem e cobrirem de anneis, braceletes e placas falsas, que pagam muito caro porque são brilhantes, os braços, as pernas, o dorso, o corpo todo. O 232 HISTORIA NATURAL seu vestuario é pouco complicado; mal encobre a nudez de algumas re- giões do corpo. O marido tem o direito de vender a mulher e os paes o de vender os filhos. III RAÇA COBREADA ! É. RAMO INDICO Os povos que compoem este ramo, teem sido muitas vezes classifi- cados como de raça branca, attenta a semelhança das suas formas e de algumas das suas instituições com as dos Europeus. No entanto além do “Caracter da côr, geralmente muito escura e às vezes mesmo negra, ou- tras circumstancias de valôr, que irão pouco a pouco resaltando do nosso estudo, separam os povos do ramo indico dos que legitima e indiscutivel- mente pertencem à raça caucasica. A civilisação d'estes povos faz lembrar a de outros já descriptos, os Egypcios e os Chinezes; como a destes, a civilisação indiana attingiu ha muitos seculos um desenvolvimento notavel, altissimo, para cahir tam- bem no invencivel estacionamento ou antes retrocesso que distingue os 1 Esta raça, como já observamos, não pertence 4 cathegoria das que Quatre- fages denomina puras. Pelo contrario, Omalio de Halloy e Blumench junetam aqui povos que parecem resultar do cruzamento da raça branca e amarella com a raça negra. D'aqui uma inevitavel disparidade de typos ethnicos; em quanto uns se ap- proximam pelos caracteres physicos da raça caucasica, outros offerecem profundas analogias de forma com os exemplares da mongolica. > ENE ua epi ai Cr MAMIFEROS EM ESPECIAL 233 povos da Ásia. O que ha hoje de semelhante ahi aos grandes poemas epicos da sua antiguidade? Onde estão os artistas que nos tempos remo- tissimos do mais completo obscurantismo occidental sabiam escrever es- trophes vigorosas e coloridas ou architectar como mestres? A divisão das populações em castas, é um facto caracteristico nas familias d'este ramo. Esta instituição repugnante, talvez a causa mais importante do estacionamento d'estes povos, é tradicional, remonta a uma alta antiguidade. «Como pedir, escreve Figuier, iniciativa, talentos, obras notaveis a homens a quem a sociedade interdiz para sempre a possibilidade de sahirem da condição em que o acaso os fez nascer?» * É justa a observação; onde quer que uma lei ou um costume oppõe obs- taculos ao livre exercicio das faculdades e impede por uma forma qual- quer os actos que a ambição humana é capaz de sugerir, ahi o estacio- namento será inevitavel, a atrophia das intelligencias e dos corações, um facto necessario. - As castas indianas são quatro: a mais alta, brahmanica, que se com- põe dos padres, dos jurisconsultos, dos homens de lettras e dos profes- sores; a dos guerreiros; a dos banians, comprehendendo os agriculto- res, creadores de gado e commerciantes; a dos chuwders, finalmente, abrangendo os operarios e subdividindo-se consoante a natureza dos“offi- cios ou industrias em um grande numero de sub-castas. Cada uma d'el- las tem as suas praticas religiosas especiaes. Não podem alliar-se entre si e os membros de cada uma teem por imposição o modo de vida dos paes. Os que descendem dé typos em que houve mistura compoem uma nova casta, a mais desprezivel. + Distinguem-se ethnologicamente n'este ramo duas familias: indica € Êo FAMILIA INDICA Forma a maior parte da população do Industão septentrional. Fal- lam-se n'este paiz dialectos relacionados com a lingua sanskrita. Entre os povos d'esta familia e os da raça caucasica ha uma grande seme- lhança na configuração do craneo—a mesma oval correctissima e 0 mesmo angulo facial aberto. Os Indios das classes inferiores são timidos, intelligentes e bondosos. A proposito d'elles escreve A. Grandidier no * Obr. cit., pg. 350. 234 HISTORIA NATURAL Tour du monde de 1869, com o titulo Viagem na India: «Dois jugos pe- zam sobre elles desde datas immemoriaes, o da casta e o da dominação estrangeira, que os fizeram creaturas flexiveis com mais prudencia e fi- nura do que energia e rectidão, com mais astucia no espirito do que no- breza nos sentimentos. : «Uma imaginação viva nunca regulada pot uma educação racional, conduziu o indio às superstições grosseiras que a sua religião sancciona por todo um cortejo de divindades impuras. Se a timidez de caracter o preserva de um fanatismo brutal como o dos musulmanos, nem por isso a religião deixa de ser por elle estimada e as crenças, ao menos entre o povo, sinceras.» | Os indios teem como os annamitas e os siamezes um grande amor pelas coisas brilhantes, pelos bijous. Isto, ao mesmo passo que lhes lison- geia a vaidade, satisfaz tambem o seu espirito supersticioso que crê encontrar n'estes objectos o poder de affastarem os malefícios. | É extrema a polidez no tracto dos indios. A este proposito escreve o auctor que acabamos de citar. «A menor desobediencia à etiqueta pres- cripta, é considerada como prova de fraqueza ou como confissão de in- ferioridade. * «As formulas empregadas na conversação com um indigena variam segundo o logar social que elle occupa. Nada é mais facil do que excitar a sua susceptibilidade. — Não falleis nunca a um Oriental na mulher ou nos filhos; é contrario aos costumes. Se conversardes com elle a propo- sito de desgraças que o aflligiram ou de successos que obteve, tende cuidado de não despertar n'elle idéas supersticiosas sobre a sorte de que poderia crêr-se ameaçado. -Servir-se da mão esquerda para saudar, comer, ou tomar café, é um insulto; só a mão direita é destinada aos usos nobres, a esquerda, a impura, serve para as abluções. «Na Europa descobre-se a cabeça em signal de respeito. Tirar o turbante é para os Orientaes um acto descortez; mas se conservam O turbante, tiram o calçado à entrada das habitações. Este uso é racional. Não foram feitos os sapatos para proteger os pés contra as asperezas do solo, contra a lama e a poeira dos caminhos? E sendo assim, não se tornam elles prejudiciaes ou pelo menos inuteis no interior das casas? «N'uma visita, antes de nos retirarmos devemos esperar convite para isso. Pensa-se, com razão, que o visitante nunca deve ter pressa de deixar um amigo que veio vêr; o dono da casa, pelo contrario, pode ter occupações urgentes que reclamam a sua presença n'outro logar. As for- mulas do convite variam; ou são estas simples palavras: «Vinde vêr-me muitas vezes» ou: «Lembrai-vos de que sereis sempre bem-vindo n'esta casa». Açafates de flores e fructas terminam em geral a visita e offere- ce-se sempre pimenta da India.» MAMIFEROS EM ESPECIAL 235 - Chamam-se parias os membros das classes infimas, os miseraveis. Nada mais triste que a situação moral destes infelizes, vivendo existen- cia de reprobos. Os membros das outras classes quando lhes dão uma es- mola, collocam-a no chão para não terem contacto com o paria. Este não presenteia quem quer que seja de uma casta superior, porque seria re- pellido. Os indios amam a familia com a condição porém de que nenhum dos seus membros se affastará por um momento das praxes tradicionaes. Assim o commercio illicito de uma mulher com um individuo de casta infe- rior implica fatalmente para ella a expulsão da casa paterna e o desprezo de toda a familia. Devemos advertir que o estrangeiro europeu é consi- derado quasi como paria attento o uso quotidiano que faz da carne de vacca. Os Dbrahmanes apertam-lhe a mão, tendo porém o cuidado, ao chegar a casa, de se despirem e fazerem abluções para purificar-se das ezas de um tal contacto. / EA À FA d tis FAMILIA MALABAR is LET Ro) gh!) “Os povos d'esta familia distinguem-se da anterior por uma côr ge- ralmente mais carregada. A familia malabar habita o Deccan e offerece trez divisões principaes: os Malabares propriamente ditos, habitando a região d'este nome, os Tamvuls, dominando em Karnatic e os Telingas, “que se encontram ao nordeste. 1 Ra 4 H. RAMO ETHIOÓPICO Mal 4 Os povos que constituem este ramo habitam a Africa e pelas suas “formas assemelham-se aos da raça branca. No entanto a côr, geralmente “muito escura e o facto de nunca terem attingido uma civilisação adian- tada separam-os inteiramente da raça caucasica. 236 HISTORIA NATURAL Distinguem-se n'este ramo duas grandes familias: a abyssinia e a fellana. FAMILIA ABYSSINIA Compõe-se de povos, fallando linguas muito diferentes e por muitos ethnologistas classificados entre os da raça branca. Esta opinião parece- nos todavia insustentavel. Não é sómente a côr que os separa da raça caucasica; são os costumes, a civilisação, o desenvolvimento intellectual. É provavel, como observam alguns anthropologistas, que estes povos re- sultem de um cruzamento de negros primitivos, originarios da porção da Africa oriental que se chama Abyssinia com os conquistadores Orientaes. Os principaes povos comprehendidos n'esta familia são os Abyssi- nios, os Barabras e os Gallas. Abyssinios.—NHa dois typos principaes e differentes: um que se appro- xima dos Arabes, outro que lembra e se assemelha aos negros. Os do primeiro grupo são elegantes; pela expressão da physionomia como pelos caracteres anatomicos da cabeça recordam os Beduinos. Teem o rosto oval, os labios delgados, a bocca regular, o nariz proeminente, os dentes bem implantados; a estatura é regular. Nos do segundo grupo o nariz é um pouco achatado, os labios es- pessos, os olhos desanimados, os cabellos crespos e extremamente gros- sos. À religião professada é a christã: A Igreja tem um pontifice com um poder theocratico ilimitado, vivendo em odio e hostilidades permanentes com o rei da Abyssinia. | Barabras.—Habitam a Nubia. Teem o rosto oval, o nariz aquilino, os labios grossos, os olhos animados, os cabellos em ondulações, e as formas correctas e bem proporcionadas. São vigorosos e naturalmente inclinados à guerra. Nas epochas da extrema corrupção do imperio romano, quando a li- bertinagem- nas altas classes attingiu um desenvolvimento nunca mais excedido, representaram os Nubios um vasto papel; eram os eleitos das patricias romanas que os pagavam a pezo d'ouro como parte Se dos seus festins sensuaes. Gallas.— São os typos mais caracteristicos da raça cobreada. For- MAMIFEROS EM ESPECIAL 237 mam, segundo a phrase de Figuier, a transição dos povos da raça cau- casica que habitam o norte da Africa oriental para os Negros que o0c- cupam o sul do mesmo continente. São nomades e essencialmente bellicosos. Na historia são conhecidos pelas incursões e devastações terriveis que fizeram em diferentes re- giões da Africa Oriental, chegando a conquistar e dominar por algum tempo a Abyssinia. Existem entre elles n'uma singular promiscuidade o christianismo, a religião de Mahomet e o paganismo Africano. ERTIRE Md Er AS ART) Boda Bl mes ABndasibos FAMILIA FELLANA sp abro ghokpeo sanstmoiri “ Os individuos que a compoem, tornam-se notaveis physicamente por traços especiaes que os distinguem de todos os outros da mesma raça. - "São altos, delgados, teem o rosto comprido, os cabellos lisos e muito extensos; o que porém lhes dá um aspecto especial e talvez antipathico, é o nariz deprimido na parte superior e proeminente em baixo, offere- cendo assim uma curva de concavidade anterior. Por esta disposição, pa- rece que das cavidades orbitarias para baixo o rosto está n'um plano “diferente e mais anterior do que a porção craneana. Teem uma civilisação atrazada e professam a religião mahometana. HI. RAMO MALAIO Os povos que compoem este ramo teem a estatura regular, as for- mas bem proporcionadas, os cabellos lisos e a côr variavel desde o azeitonado até ao escuro-cobre. “ Distinguem-se n'este ramo trez familias: malaia, polynesica e micro- nesiana. 238 HISTORIA NATURAL FAMILIA MALAIA | Biyi Comprehende numerosos povos de que apenas estudaremos, por mais importantes, os Malaios e os Javanezes. Malaios. — Acham-se espalhados em Malaca, nas ilhas de Sonde, no archipelago das Molucas, no Borneo, em Sumatra, emfim em toda a região conhecida na geographia classica pelo nome de archipelago da Asia. Os caracteres physicos que os distinguem são: a tinta cobreada, os ossos zygomaticos salientes, o nariz achatado, os cabellos negros e lisos, a barba pouco abundante. O achatamento do nariz não é propriamente uma condição ethnica, mas o resultado de um artifício que consiste em comprimir este orgão desde a mais tenra idade até que a cartilagem pro- pria se fracture: reputa-se um signal de belleza este achatamento que parece tornar o rosto mais largo. Nas classes altas dá-se artificialmente á face uma côr amarella de açafrão. Os principes e os altos dignatarios não se limitam a colorir sómente o rosto, mas todas as partes visiveis do corpo. | vn Vestem com extrema simplicidade; uma tunica apertada na cinta por uma facha, é quanto usam para encobrir a nudez. | No caracter moral d'este povo domina a mais entranhada indolen- cia, bem como uma absoluta corrupção. O trabalho é exclusivo dos es- cravos; os demais vivem jogando, roubando, commettendo assassinatos e exhaurindo as forças no innervamento das sensualidades. Os sentimen- tos de honra, o amôr de familia, a fé aos contractos, são inteiramente desconhecidos entre» elles. Á paixão dissolvente do jogo sacrificam tudo; jogam a mulher, os filhos e a si proprios. Além d'isso entregam-se ao abuso do opio. Todas as consequencias verdadeiramente pavorosas deste vicio se realisam no Malaio. Primeiro as hallucinações, depois o deses- pero que leva ao crime, por fim a atonia mental, o embrutecimento completo. Ás vezes, como conta Figuier, sob a excitação opiacea, o Ma- laio corre semi-nu pelas ruas, armado de um punhal, gritando e ferindo quem passa. Então a policia do paiz, munida de forquilhas e laços, per- segue o hallucinado prendendo-o e enviando-o depois aos tribunaes que geralmente pronunciam a sentença de morte. Javanezes.— Habitam a ilha de Java, teem uma certa civilisação, uma litteratura mesmo e professam a religião mahometana. MAMIFEROS EM ESPECIAL 239 São musculosos e elegantes. O viajante francez M. de Moulins que entre elles viveu dois annos, fallando das creanças que inteiramente nuas brincam nas ruas ao sol, compara-as, tão formosas ellas são, aos bronzes antigos dos grandes esculptores. FAMILIA POLYNESICA Habitam os povos d'esta familia toda a parte oriental da Oceania. Os seus caracteres anatomicos são sensivelmente os mesmos e fallam uma lingua commum em toda a extensão enorme do solo que povoam. Fallaremos aqui sómente de dois povos d'esta vastissima familia: os Novo-Zelandezes e os habitantes das ilhas Sandwich. “ Novo-Zelandezes. — São altos, robustos e de formas athleticas os ha- bitantes da Nova-Zelandia. O rosto é oval, a fronte deprimida, os olhos grandes, negros e revelando ferocidade, o nariz geralmente achatado, a bocca muito grande, os labios grossos e os dentes de um branco bella- mente esmaltado. Ha na physionomia d'este povo os caracteres da sel- vageria. Alliam-se nos Novo-Zelandezes duas qualidades que aos homens civilisados parecem antagonicas, mas que todos os selvagens combinam : o desejo de agradar e falta absoluta de limpeza. A primeira d'estas qua- lidades, que já encontramos noutros povos atrazados, vae até se submet- “terem à tatuagem, operação que consiste em fazer desenhos e pinturas sobre a pelle por meio de processos geralmente dolorosos e para nós ri- diculos; a immundicie é absoluta, perfeitamente revoltante. - Este povo é tambem extremamente supersticioso, essencialmente fe- tichista. Faz depender a sua felicidade da posse de um amuleto. Ás refeições não se servem de utensilios quaesquer, buscando os ali- mentos com as mãos; sómente os guerreiros, segundo refere Lesson, se servem de instrumentos feitos de ossos humanos. Os inimigos vencidos fornecem a materia prima dos seus garfos e colheres. Na guerra o instrumento de combate mais vulgar é uma forte massa “de pedra; é com ella que partem o craneo do inimigo. Conhecem toda- via e empregam mesmo as armas de fogo que recebem dos inglezes e americanos em troca de viveres. O casamento faz-se pela compra da mulher, que geralmente não é cara; duas armas de fogo e um escravo foi o preço por que um chefe conhecido de Lesson comprou a esposa. Este illustre viajante conta um 240) HISTORIA NATURAL costume curiosissimo dos Novo-Zelandezes: quando dois amigos se não vêem ha muito tempo, no primeiro encontro manifestam a sua alegria, O seu grande contentamento, encostando um ao outro os respectivos nari- zes por espaço de meia hora! Na Nova-Zelandia subsistem ainda os sa- crificios humanos. Quando morre um chefe, acontecimento em extremo. doloroso para todos, a tribu sacrifica então um certo numero de capti- vos, que deverão servil-o no outro mundo. Os Novo-Zelandezes são anthropophagos. Refere o notavel viajante citado que o chefe de uma tribu lhe fallou largamente da satisfação que sentia comendo a carne humana, inculcando-lhe o cerebro como a parte mais delicada e as nadegas como a mais substancial. Depois das luctas, os corpos dos vencidos formam a refeição dos vencedores; a cabeça pertence ao chefe do combate, as carnes ao resto da tribu bem como os ossos de que farão utensílios. Habitantes das ilhas Sandwich. — São robustos, elegantes e de uma estatura elevada. O seu contacto com os Europeus, especialmente com os missionarios inglezes, tem modificado de um modo completo o caracter deste povo. Dos velhos usos pouco resta hoje. A religião fetichista pri- mitiva desappareceu deante da invasão do christianismo e com ella mui- tas das tradições que antigos viajantes nos fizeram conhecer nos seus escriptos. Hoje aprende-se ahi a lêr e escrever, substitue-se a velha massa de combate pela arma de fogo, não se pratica já a anthropopha- gia, e a libertinagem refreia-se sob as interdições dos missionarios in- glezes. O habitante das ilhas Sandwich tal como o viu e descreveu Cook, não existe já. Não se encontra já aquella ingenuidade primitiva que lan- cava aos braços sensuaes dos estrangeiros europeus as mulheres mais ele- | gantes e mais estimadas das ilhas. Tudo tem lentamente desapparecido sob a influencia das missões. Sómente um habito resiste reagindo contra to- das as ordens, contra todas as leis religiosas: o de se cobrirem apenas ao nivel da cinta com uma facha excessivamente estreita, 0 maro. FAMILIA MICRONESIANA Repartem-se naturalmente em dois grupos: um que se assemelha aos Polynesios, outro que mantem as maiores analogias com os Malaios. Physicamente considerados os seus caracteres são em geral os seguintes: rosto comprido, olhos negros, cabellos extensos e asperos, maçãs do rosto salientes e uma côr mais carregada que a dos Polynesios. MAMIFEROS EM ESPECIAL 241 Moral e socialmente podemos dizer que valem menos ainda que es- tes ultimos; teem uma intelligencia geralmente menor e uma civilisação menos adiantada. E AA, as Sm APgagyp Bgtreoo nó o + sans E RR RAÇA VERMELHA ! " E Has) qnBiidas o Ae or! |. RAMO MERIDIONAL é aptos pedia] datis is? - Approximam-se os povos d'este ramo dos de raça amarella ur côr, pela forma do craneo e pela obliquidade dos olhos. A E am familias d'este ramo são: a andiana, à pampeana e quaraniana. db os) FAMILIA ANDIANA - Comprehende os Incas, os Antis e Araucanianos. Incas.—Formam talvez metade da população indiana livre da Ame- rica meridional. No seculo xv exerciam a hegemonia ou preponderancia social entre as nações do Peru. “À Repetimos aqui uma observação já feita: esta raça não é pura, resulta pro- pm de cruzamentos successivos dos habitantes primitivos da America com os Europeus. Não é pois de estranhar que typos muito diferentes venham juntar-se sob a designação um tanto vaga certamente de raça vermelha ou americana. - Ésob a denominação io de indianos que os povos bra vi pá se desi- gnam. 16 242 HISTORIA NATURAL Antes da invasão hespanhola que teve logar no seculo xvr, existia entre os Incas uma certa civilisação manifestada por trabalhos astrono- micos, pelo adiantamento da esculptura e ainda por instituições politi- cas de merecimento. Tinham poetas, oradores, musicos de valôr e uma religião eminentemente espiritualista. Depois da invasão tudo se per- deu. Os Incas teem uma estatura baixa, as espaduas largas, o peito vo- lumoso, as mãos e os pés pequenos. São dolicocephalos, teem a face larga, o nariz pronunciadamente aquilino, o queixo curto, a bocca um pouco grande, mas os labios delgados, os dentes bellos e duradouros, as sobrancelhas arqueadas, os cabellos negros, grossos e compridos, e ja barba pouco abundante ou antes quasi exclusivamente reduzida ao labio superior e á parte culminante do queixo. Teem uma physionomia calma, triste, como de quem occulta idéas de desalento. Esculpturas e pinturas antigas demonstram que ha cinco seculos as feições destes povos se conservam sem sensiveis modificações. Antis.—Habitam os Andes da Bolivia. Teem uma côr geralmente mais clara que a dos Incas e formas menos solidas. A sua civilisação é atrazada. A mulher passa uma existencia servil, trabalhando constantemente, acompanhando o marido à guerra para de- baixo dos maiores perigos apanhar as settas por elle lançadas contra o inimigo. A religião que professam é um mixto pouco claro de theogo- nias diferentes, onde, no dizer de Paulo Marcoy, se podem todavia notar como dominantes as noções de um Deus supremo e da immortalidade da alma que na existencia futura recebe o castigo ou o premio dos actos praticados na terra. Araucanianos.— Estes povos formam duas nações distinctas: os Arau- canianos propriamente ditos, guerreiros cujo heroismo ficou celebre na historia por occasião da invasão hespanhola no Peru, e os que habitam a parte austral das montanhas americanas. Sob o ponto de vista da con- formação anatomica, uns e outros teem a cabeça grande em relação ao corpo, face arredondada, maçãs do rosto salientes, bocca larga, labios espessos, nariz curto e achatado, narinas largas, fronte estreita e incli- nada, olhos horisontaes e barba deficiente. Vivem submettidos ao -governo do Chili e offerecem uma civilisação rudimentar. | A sua alimentação preponderante consta como em todos os povos nomades, de peixes e aves, productos da caça e da pesca. Entre os Arau- canianos as mulheres vivem sob as mais rudes imposições. de trabalho; remam, pescam, construem cabanas e mergulham no mar, mesmo em MAMIFEROS EM ESPECIAL 243 tempo dos mais rigorosos frios, para: apanhar conchas de marisco pre- sas aos rochedos. FAMILIA PAMPEANA Os povos da America meridional que formam esta familia são geral- mente de estatura elevada. Habitam as planicies denominadas pampas; d'ahi o seu nome. Occupam-se muito especialmente da creação de ca- vallos. — Nesta familia estão incluidos numerosos povos de que apenas estu- daremos como typo, os Patagonios. Patagonios.—Sob esta denominação incluimos não sómente os habi- tantes da Patagonia senão tambem todos aquelles que se lhes asseme- lham ou seja pelos caracteres physicos ou pelos moraes. Os Patagonios são essencialmente nomades; percorrem constante- mente a cavallo descampados aridos e recolhem-se de noite às florestas. Despresam a agricultura e a industria, vivendo como indomaveis guer- reiros. Estes homens offerecem os mais perfeitos exemplares de organi- sação athletica e robusta. A côr é escura, os cabellos grossos e asperos, a physionomia altiva, os traços regulares mas grosseiros, a cabeça grande, a face larga e os ossos zygomaticos muito salientes. “ Guinard, que viveu entre elles trez annos, refere minuciosamente os seus costumes, de resto muito semelhantes aos de todos os povos bar- baros. Vivem da caça, criam quantidades prodigiosas de cavallos e man- teem guerra quasi permanente com tribus errantes dºoutras familias. No culto religioso, no casamento e nas relações dos paes com os filhos, re- flectem-se os caracteres de uma perfeita selvageria. Nas festas religiosas sacrificam ás divindades um cavallo e um boi, a que arrancam o coração para espetar palpitante ainda no bico das lan- ças; depois pela incisão d'onde jorra o sangue espreitam o interior do amimal para augurar o que será das suas emprezas guerreiras. : O casamento é, como entre os Novo-Zelandezes, um trafico ignobil: a mulher compra-se em troca de animaes para depois a obrigar ao tra- balho em quanto o marido repousa das fadigas da caça. “ As relações domesticas entre paes e filhos são egualmente odiosas. Quando uma creança nasce, discute-se se será util conserval-a ou ma- tal-a. Dada esta ultima resolução, os paes asphyxiam-a, para expol-a de- pois a distancia como pasto dos cães selvagens e das aves de preza. * 244 HISTORIA NATURAL FAMILIA GUARANIANA Estende-se por todo o enorme espaço que vae do Rio da Prata ao mar das Antilhas. ] - Os povos d'esta familia teem uma estatura regular, as formas efe- minadas, os olhos obliquos no sentido ascendente do angulo interno para externo e uma côr como a que resultaria da mistura do amarello e do vermelho. Distinguem-se n'esta familia, duas divisões: os Guaranis e os Boto- cudos. Guaranis.—«Toda a porção da America do Sul, escreve Figuier, que se encontra a este da ribeira do Paraguay e de uma linha tirada desde “as origens d'esta ribeira até à embocadura do Orenoque, era habitada, na epocha da descoberta da America meridional, por um grande numero de tribus indigenas pertencentes a duas grandes familias. Uma era a dos Guaranis, espalhada em todo o Paraguay e que se alliou às tribus selva- gens do Brazil; a outra comprehende as raças que occupam as provin- cias mais septentrionaes e se estendem até ao golpho do Mexico.» + Os Guaranis meridionaes indigenas do Paraguay, estão divididos em tribus numerosas de que umas se encontram dominadas pelas missões jesuiticas em quanto outras erram ainda na mais plena e absoluta liber- dade pelas florestas d'este paiz. Os Guaranis occidentaes comprehendem egualmente duas ordens de ' tribus: umas convertidas à fé christã pelos jesuitas, outras vivendo como selvagens, errantes, em guerra constante com outros povos. Os Guaranis orientaes comprehendem os Brazileiros indigenas. Estes são extremamente hospitaleiros, affaveis, mas em geral pouco instruídos e indolentes. Os seus costumes, a sua lingua e as suas instituições são portuguezas. Este povo que ainda ha pouco aboliu a escravatura, não tem notaveis tendencias commerciaes nem industriaes; o grande com- mercio que entre elles se realisa bem como as industrias que ahi se desenvolvem, estão quasi exclusivamente nas mãos de colonos estrangei- ros, portuguezes, francezes, allemães e inglezes. As suas attenções diri- a 1 Obr. cit., pg. 168. DES im O ms Sds MAMIFEROS EM ESPECIAL 245 " gem-se de preferencia para a agricultura, como naturalmente devia acontecer em habitantes de um solo uberrimo. Botocudos.-—São os povos mais selvagens d'entre todos os America- nos. Foram cannibaes e ainda hoje conservam de velhos tempos alguns costumes caracteristicos. Além da completa nudez que desde logo os de- nuncia como raça atardada, usam de collares de dentes humanos. Um uso muito original, exclusivo d'estes povos, é o de fenderem o labio in- ferior, colocando entre elle e os dentes uma porção circular de madeira, que lhes serve como de meza, porque sobre ella collocam os alimentos que precisam de cortar à faca. Fendem tambem os lobulos das orelhas collocando egualmente entre os bordos da incisão a mesma placa de ma- deira. Isto augmenta-lhes consideravelmente a fealdade, já naturalmente grande. Os Botocudos teem um caracter altivo e indomavel. ; H. RAMO SEPTENTRIONAL | Pi Eeotyrica s povos d'este ramo, mao grado as semelhanças essenciaes que os “unem, offerecem no entanto caracteres ethnicos que permittem dividil-os “em trez grandes familias que vamos estudar. tt » FAMILIA DO SUL Entre esta familia e as do ramo meridional que acabamos de estu- dar existem notaveis pontos de contacto. D'entre os povos d'esta familia examinaremos os antigos Mexicarios, como sendo os que mais interesse offerecem. Antigos Mexicanos.—Os hespanhoes ao entrarem no Mexico encon- 246 HISTORIA NATURAL traram um povo cuja existencia social demonstrava um adiantamento re- gular. Os antigos Mexicanos com efeito tinham uma agricultura, uma industria extractiva de metaes, uma architectura manifestada em monu- mentos dignos de attenção e finalmente uma lingua escripta, que lhes transmittia recordações da propria historia. Apenas como traço de um estado anterior de barbaria, se viam nas cerimonias religiosas sacrifícios expiatorios verdadeiramente revoltantes. "Não se pode talvez pelo exame dos Mexicanos actuaes reconstruir o typo primitivo, nem os documentos abundam para este fim. Apenas se sabe, tão positivamente quanto possivel por alguns retratos antigos mal conservados, que o angulo facial dos Mexicanos era excessivamente agudo. Os Mexicanos actuaes teem uma estatura muito elevada e são bem proporcionados. Teem a fronte estreita, os olhos negros, os dentes bran- cos, bem implantados e regulares, os cabellos espessos, negros e aspe- ros, a barba rara e o corpo geralmente desprovido de pellos. Caracte- risa-os uma grande acuidade de vista. O povo Mexicano é simples, sobrio e bondoso. As altas classes po- rém, influenciadas por um clero estupido, ignorantissimo e orgulhoso, são inimigas de todo o progresso e estão longe de manifestar as virtudes das classes inferiores. FAMILIA DO NORDESTE No seculo xv occupava esta familia toda a extensão da America do Norte que está comprehendida entre o Oceano Atlantico e as Montanhas de Rocha. Hoje esta familia reduz-se a algumas tribus pouco numerosas confinada a oeste do Mississipi. Os caracteres physicos dos individuos desta familia, são: uma côr de canella clara, a cabeça alongada, o nariz longo e aquilino, a estatura elevada, a constituição robusta e os orgãos dos sentidos extremamente desenvolvidos. -Teem um caracter altivo e supportam a dôr com verda- deiro estoicismo. Diante das guerras continuadas que lhes movem os Europeus, estas tribus vão lentamente desapparecendo. Já estão quasi extinctas todas as que viviam outr'ora sobre as vertentes das montanhas voltadas para o Atlantico ou que se estendem ao longo do Mississipi. Existem nos povos d'esta familia os habitos selvagens da tatuagem e da compra das mulheres. MAMIFEROS EM ESPECIAL | RAT “Pertencem a esta familia os Pg povo absolutamente vagem, cannibalesco, que faz a guerra pelo mais futil dos pretextos, e não possue linguagem escripta, que não tem industria nem com- “que tortura os brancos cahidos em seu poder, arrancando-lhes “cortando-lhes lentamente os membros, lançando-lhes por fim o ndo e gritando em torno. + LHS) á . na ORE, . +48 “FAMILIA DO NOROESTE. dE SE Ra E ES o idos familia são em oq menos à iibiadda ê, menos q açã “anterior. jo aqui incluidos os Indianos da California cuja ERA a excessi- e gp quasi negra e cujos costumes são de uma extraordina- lencia. Entre elles é a mulher que trabalha, mananta o homem, fuma “o dia inteiro. | RAÇA NEGRA co |. RAMO OCCIDENTAL RP TA ” nas E oe este ramo pertencem. trez familias; à dos saido dos. Hottentotes e dos Negros. Eds MSN 4 cmi 6 DR o o 248 HISTORIA NATURAL FAMILIA DOS CAFRES Habitam os Cafres o sudoeste da Africa. Ethnologicamente pode di- zer-se com alguns anthropologistas que os Cafres estabelecem a transi- ção entre os povos da raça cobreada e os Negros propriamente ditos. Teem, é certo, o cabello crespo como lã; no entanto nem a sua côr é tão carregada, nem o nariz tão achatado como na familia dos Negros. Sob o ponto de vista moral, a differença subsiste ainda; o Cafre é muito mais intelligente que o Negro. A agricultura e creação de gado preocupam quasi inteiramente o Cafre, que sabe tambem trabalhar com metaes e fazer d'elles utensilios' de que se serve nos usos diarios. A polygamia existe entre elles; cada homem tem tantas mulheres quantas as que pode sustentar. As casas habitadas por estas familias, às vezes muito grandes, são extremamente simples, verdadeiramente primitivas. Ramos flexiveis d'arvores introdu- zidos por uma extremidade na terra a distancias diferentes e pela outra reunidos por um laço e cobertos depois com pelles de animaes, eis toda a habitação. Uma simples abertura, muito baixa, serve ao mesmo tempo de porta, de janella e de chaminé. Com doze d'estas singelas habitações está constituida uma povoação. O gado que os Cafres criam em grande quantidade compõe-se de bois, cavallos e cabras. A ignorancia dos Cafres que se conservam fóra do contacto euro- peu, é profunda. Desconhecem inteiramente os caracteres alphabeticos e não sabem contar além do numero dez. São extremamente supersti- ciosos e nas cerimonias religiosas offerecem o espectaculo de um povo atardado, grosseiro e cynico. As mulheres compram-se e fazem-se tra- balhar; os filhos obrigam-se egualmente às mais asperas fadigas e as filhas vendem-se. Entre as differentes tribus da familia dos Cafres, notam-se os Zulus de que vamos occupar-nos. Zulus.—NVivem sob o regimen despotico de um rei que dispõe in- condicionalmente da vida e dos bens de todos elles. A pena de morte. applica-se com extrema liberalidade. Os Zulus são extraordinariamente bellicosos. Teem um exercito que, se não está organisado tão regularmente como os dos Europeus, nem por isso deixa de fazer-se notar pela disciplina e bravura dos seus soldados, de que muito recentemente ainda deram indiscutiveis provas. Usam das MAMIFEROS EM ESPECIAL 249 armas de fogo e tambem de uma lança curta cujo manejo é para elles simples, tradicional. O illimitado desprezo dos Zulus pela morte, faz d'elles guerreiros indomaveis e temiveis. FAMILIA DOS HOTTENTOTES Habitam os Hottentotes a extremidade meridional da Africa. Ácerca delles escreve Figuier: «Antes da descoberta do Cabo da Boa-Esperança pelos navegadores europeus, os Hottentotes formavam um povo numeroso, cujas pequenas tribus viviam felizes e tranquillas sob o governo patriar- cal dos seus chefes. Formadas sómente de trezentos a quatrocentos indi- “viduos, estas tribus erravam com os seus rebanhos e reuniam-se em povoações cujas casas construidas de ramos de arvores e tranças de junco se desfaziam ao signal de partida e eram transportadas por bois até novo logar de acampamento designado pelo chefe. D'estas tribus as mais selvagens tinham por vestido um manto de pelles de carneiro e por armas um arco que lançava flechas envenenadas. Os Hottentotes eram activos e intrepidos caçadores; conseguiram provar aos Europeus a sua coragem para a guerra. Os seus crueis invasores, os Hollandezes, exterminaram a maior parte. Outros foram violentamente despojados dos seus bens e atirados para as florestas e para os desertos onde vivem ainda os seus desgraçados descendentes.» 4 Pelos caracteres physicos tanto como pelos intellectuaes, os Hotten- totes parecem os representantes mais infiímos da especie humana. Teem uma pequena estatura, uma côr amarellada escura, o nariz extremamente achatado, os olhos pequenos e profundos e os labios extremamente gros- sos; são verdadeiramente repugnantes. De mais por influencia da vida miseravel que passam, envelhecem, tornam-se decrepitos n'uma idade em que nos Europeus existe ainda a frescura e a animação. Sob o ponto de vista intellectual é quasi impossivel conceber povos mais atrazados e mais infimos na familia humana; só os Australianos conseguem realisar sob este ponto de vista um typo inferior ainda. 1º Obr, cit., pg. 547. 250 HISTORIA NATURAL FAMILIA DOS NEGROS 31 Os Negros propriamente ditos habitam uma parte muito conside- ravel da Africa central e meridional, comprehendendo a Guiné, a Se- negambia, a costa do Congo, a costa de Moçambique e de Zanzibar, etc. Physionomicamente o Negro é caracterisado pela proeminencia e. espessura dos labios, pela pouca altura da fronte, pelo prognathismo exagerado, pelo achatamento do nariz, pelo arredondado dos olhos, fi- nalmente pela indigencia de barba e pelo “crespo dos cabellos que na cem lã. | O corpo na marcha affecta um completo ar de fadiga; os braços são mais longos e o tronco mais estreito do que nas outras raças. Os ossos do craneo e do tronco são consideravelmente mais espessos e mais duros que em quaesquer outros homens; o angulo facial notavel- mente agudo. Os pés não teem a elevação pronunciada e a curva que naturalmente affectam nos povos de qualquer das outras raças; pelo con- trario são absolutamente chatos, planos, disposição que impede suppor- tar o corpo durante as longas marchas e que entre os Europeus, Rope excepcionalmente se dá, exempta do serviço militar. A côr negra da melo sendo uma qualidade muito apparente, não é comtudo caracteristica; encontram-se no interior d'Africa muitos indivi- duos que por todos os seus attributos pertencem incontestavelmente à raça negra e que no entanto offerecem uma tinta clara. A côr depende essencialmente da existencia de um principio oleaginoso, o pigmento, disposto em camadas no tecido mucoso que forra a epiderme. Este pi- gmento que é negro no caso de que nos occupamos, impregna toda à economia até as membranas involventes do encephalo. O cruzamento dos Negros com individuos d'outras raças implica a creação de typos diversissimos nas formas, nos caracteres moraes € na côr, como são, por exemplo os mulatos, filhos de negro e branco, mais intelligentes e menos feios que o negro, mais indolentes e menos refle- ctidos que o branco. O cruzamento com as raças amarella ou vermelha origina individuos geralmente odiados pelos paes, formando uma casta ambigua, sempre pouco dedicada ao trabalho e disposta à revolta. A coloração negra uniforme tira aos typos d'esta familia toda a bel- leza. São os contrastes, as antitheses de côr que nos Eua e ea nos surprehendem ; no typo negro não existem. ar pp; | MAMIFEROS EM ESPECIAL 251 Os cabellos dos Negros differem consideravelmente dos que per- tencem à raça caucasica. Nos Europeus são cylindricos, longos e cor- redios em quanto que entre os negros são chatos, crespos e curtos como a lã. . Nos olhos a differença entre o Negro e o Europeu não é menos accentuada. Ao passo que n'este ultimo a côr da iris é por tal forma sa- liente que se torna sempre facillimo reconhecel-a, no typo que estamos estudando ella é de tal modo escura e carregada que a custo "se distin- gue do negro da pupilla. Além d'isso o que chamamos branco do olho é no homem de raça negra constantemente injectado de amarello. “O Negro é naturalmente preguiçoso, indolente; impoem-lhe de um modo invencivel este attributo o clima e o temperamento, em geral pro- munciadamente lymphatico. Por esta simples consideração se avaliará fa- cilmente quanto ha de barbaro no regimen da escravatura; obrigar um negro a trabalhar cuidadosa e activamente é exigir delle que se collo- “que em opposição com a propria natureza. Do mesmo modo tentar sub- trail-o ao uso da agua-ardente, das fortes bebidas alcoolicas, quando a temperatura callida dos paizes que habita reclama os excitantes, equi- vale a contrariar as indicações naturaes, a exigir o impossivel. “O Negro possue em geral uma intelligencia mediocre e instinctos pouco nobres, o que de resto está inteiramente em relação com a acui- dade do angulo facial, o pequeno numero e pouca profundeza das cir- cumvoluções cerebraes. A profunda inferioridade intellectual não per- mitte ao Negro disciplinar as suas emoções n'um sentido racional; dei- Xa-se conduzir muitas vezes por apparencias e ama ou odeia, dedica-se ou vinga-se exageradamente, irreflectidamente sem saber às vezes justi- ficar tão excepcionaes sentimentos. Entregue a si, à sua indolencia e aos seus vicios, o Negro seria absolutamente desgraçado, inteiramente pobre dentro de um paiz uber- rimo, de uma fertilidade assombrosa. É o que incontestavelmente de- monstram as fomes que muitas vezes dizimam as tribus africanas. O Negro é supersticioso e fetichista. Todos os objectos lhe servem para adoração, todos os animaes teem para elle virtudes sagradas. De resto inteiramente fatalista como todos os supersticiosos e todos os po- vos atrazados. Os Negros esperam os acontecimentos, as calamidades ou os beneficios de poderes occultos, sobrenaturaes; não trabalham por ob- ter um successo, incumbem d'isso os fetiches, a que sacrificam e fazem festejos se lhes foram favoraveis ou que abandonam e desprezam se lhes não realisaram um desejo. Isto de um modo geral e tendo em vista a deleteria influencia que deverá ter exercido sobre esta raça um jugo secular esterelisante e a ai or parte das vezes inteiramente brutal, como o tem sido sempre a 2592 HISTORIA NATURAL escravatura. Ha muito tempo que o mercantilismo e a crueldadé se cons- piram para reduzir o Negro ás proporções do animal; ha longos annos que o dominio dos Brancos procura retirar-lhe todos os direitos, misses do-lhe comtudo obrigações. Devemos notar que, mao grado uma indiscutivel inferioridade intel- lectual, o Negro possue uma boa memoria que lhe permitte aprender facilmente as linguas; possue tambem um certo gosto pela musica pos executa em instrumentos rudimentares. IH. RAMO ORIENTAL Os Negros orientaes, chamados tambem Melanesianos ou Negros Ocea- nicos, habitam a parte occidental da Oceania e o sudoeste da Asia. A sua côr extremamente escura pode attingir o negro intenso. Os cabellos, como os de todos os negros, são crespos, curtos, semelhando a lã, os traços physionomicos desagradaveis, as formas irregulares e as extremidades geralmente delgadas. Vivem divididos em tribus. Este ramo abrange duas familias: a Papuana e a Andameana. FAMILIA PAPUANA Nesta familia distinguem-se dois grupos principaes: os Papus e os Novo-Caledonios. Papus.—Entre os attributos que os caracterisam predomina O vo- lume consideravel da cabelleira. Como todos os negros, teem o nariz achatado, os labios muito espessos e salientes, a face larga, os cabel- los e os olhos pretos, a barbã pouco abundante. Entre os Papus, uns, habitantes do sul da Nova Guiné, são incultos, grosseiros, feroses e astuciosos; outros, habitantes do norte, teem cos- MAMIFEROS EM ESPECIAL 253 tumes mais suaves e estão antes dispostos a fugir dos Europeus do que a fazerem-lhes guerra. Lesson que viu de perto estes ultimos, affirma que é facil por meio de um tratamento affavel e de presentes captival-os e fazer d'elles amigos cheios de dedicação. Novo-Caledonios.— Os indignas da Nova-Caledonia teem a pelle côr de chocolate, os olhos e os cabellos negros, a barba da mesma côr e abundante, o nariz achatado e immensamente deprimido entre as orbi- tas, os labios extremamente grossos, as maxillas de um prognatismo no- tavel, a fronte alta, estreita e convexa, a cabeça achatada na região tem- poral e a conjunctiva occular largamente injectada. A estatura é regular, os membros proporcionados e os musculos desenvolvidos. As mulheres são de uma fealdade proverbial, horrivel. Usam a ca- beça rapada e os lobulos das orelhas largamente fendidos; de resto, sub- mettidas a trabalhos asperos envelhecem rapidamente. Os costumes dos Novo-Caledonios são perfeitamente selvagens. Não ha muito existia ainda entre elles a anthropophagia; actualmente a sua alimentação é vegetal, sendo prodigiosa a quantidade de substancias que ingerem a cada refeição. A forma das casas é conica, sendo encimadas geralmente por craneos de inimigos e tendo uma só abertura excessiva- mente baixa servindo de porta e de chaminé. As mulheres representam O papel de verdadeiras escravas a que se impoem os mais violentos ser- viços. Nas occasiões das grandes festas que succedem a um combate, a carne dos inimigos constitue a base do festim! As differentes partes do corpo são distribuidas, como entre os Novo-Zelandezes, pelos combaten- tes segundo o seu grao hyerarchico. FAMILIA ANDAMIANA Abrange dois povos: os Andameanos e os Australianos. Andameanos — Teem uma estatura baixa, a cabeça volumosa, os hombros largos e o cabello crespo. Vivem em absoluta nudez. Alimen- tam-se quasi exclusivamente de peixe. Não são cannibaes; no entanto a “sua selvageria é incontestavel. São estupidos; a sua industria reduz-se à fabricação das flechas e dos arcos com que marcham para os bosques "e de que sabem fazer um uso temivel na caça. 254 HISTORIA NATURAL Negros Australianos. —H. Castella que visitou estes povos afirma que elles não são de uma tão acentuada fealdade como a que lhes teem geralmente attribuido os naturalistas; diz mesmo ter examinado alguns typos regulares, bem conformados. Vivem cada um com uma só mulher, que vão procurar fóra da sua tribu. Não teem habitações fixas; vivem errantes e acampam no primeiro logar em que a noite os surprehende. De resto as suas habitações são de uma simplicidade primitiva: de verão simples ramos de eucalyptos | bastam para portegel-os do sol e dos ventos quentes; durante o inverno as cascas das arvores servem para os abrigar da chuva. Isto lhes basta. Actualmente o Negro da Australia possue armas de fogo. Ha meio se- culo ainda desconhecia-as completamente; os seus instrumentos de guerra eram de madeira e os seus machados de silex como o dos homens ante- diluvianos. A destreza com que o Negro Australiano trepa ao longo dos troncos desnudados dos eucalyptos é, no dizer de Casella, inteiramente admiravel. Possuem tambem estes povos uma extraordinaria aptidão para dirigir os seus pequenos barcos de uma construcção imperfeitissima so- bre as aguas de corrente ainda a mais rapida. A lança aged oçus: de remo n'este exercicio. As tribus negras da Australia diminuem incessantemente ; Casella encontrou duma, outrora numerosa, dezesete individuos apenas. Conhe- cendo-se as vicissitudes da vida errante e selvagem, este resultado não admira. Numa extensão de quatrocentos kilometros o numero de indige- nas é realmente pequenissimo. Um costume dos Negros da Australia que não devemos deixar de mencionar, é o que se refere ao tumulo dos seus mortos. Ha n'elle, se- gundo a phrase de um naturalista francez, alguma coisa de poeticamente melancolico. Sobre quatro ramos de arvores que se mergulham na terra como estacas, collocam-se outros dois em cruz; é sobre estes que o ca- daver se deposita, desartificiosamente coberto pela pelle de um kanguru. Eis o tumulo; os canticos funebres são os gemidos soluçantes dos ventos, os pios horrisonos das aves do deserto e os latidos famintos dos cães. Alli, em meio do vasto descampado sob a alternada influencia dos raios exeiiivintãs do sol e da humidade penetrante das noites, ip e acaba a decomposição dos corpos. MAMIFEROS EM ESPECIAL 255 O HOMEM PRIMITIVO Mais qu'importent aprês tout à la science les regrets ou les satisfactions de quelques-uns ? ToPINARD. - Não abandonaremos o rapido estudo que da natureza humana vimos fazendo, sem consagrar algumas paginas ao exame de um ponto da his- toria natural sobre que actualmente convergem as attenções dos homens mais eminentes e as investigações dos sábios mais illustres. Queremos fallar do estudo do homem primitivo, não sob todos os pontos de vista por que pode ser encarado (seria encher volumes de doutrina para cuja apreciação é indispensavel suppôr conhecimentos multiplos de sciencias especiaes ainda em começo) mas sob o aspecto que aqui naturalmente se nos oflerece: o das provas positivas da sua existencia e dos seus cos- tumes como animal. “Não ha muitos annos ainda, acreditava-se geralmente, subscreviam mesmo a esta crença os sabios mais notaveis, que a apparição do ho- mem na terra remontava a uma epocha até certo ponto recente. Admit- tia-se, é certo, a existencia de um homem prehistorico; ninguem, educado no estudo das sciencias, contestava que o typo humano é anterior ao periodo assignado pela historia e pela tradição mosaica. Impunham esta crença documentos de toda a ordem. Os antigos monumentos egypcios, por exemplo, attestando a existencia, anterior de quarenta seculos á nossa era, de uma população altamente adiantada, forçavam a admittir, por isso que uma civilisação não pode surgir de repente e sem antece- dentes, uma longa corrente de gerações preteritas e anteriores, portanto, ao periodo historico. No que porém se não pensava, como opinião scien- tiífica pelo menos, era na existencia do homem fossil, quer dizer anterior à epocha geologica actual. O proprio Cuvier, collecionador illustre de todos os documentos do homem prehistorico, parece ter morrido, diz Brehm, na convicção de que a antiguidade humana não remontava além da ultima epocha geologica. E comtudo testemunhos inconcussos multi- plicam-se dia a dia attestando uma origem mais distante, uma epocha 256 HISTORIA NATURAL da apparição humana mais remota ainda, precedente ao periodo geolo- gico que vamos attravessando. Nos terrenos da epocha quaternaria foram encontrados esqueletos humanos e, ao lado d'elles, os instrumentos das industrias primitivas da humanidade. Estes vestigios dos nossos antepassados existem ahi e ahi foram descobertos entre os ossos de enormes mamiferos, alguns perten- centes a especies extinctas de ha muito. ! Quaes eram os caracteres desse homem primitivo, d'esse primeiro ascendente da nossa especie? Conjectura-se muito e sabe-se pouco sobre este ponto importante. De verdadeiramente scientifico, de absolutamente positivo, apenas conhecemos o que -se refere a caracteres esqueletolo- gicos. | Nos ossos do homem primitivo descobertos nas cavernas do periodo quaternario, o que desde logo se nota como circunstancia verdadeira- mente caracteristica é a extensão e a força. O femur offerece uma incur- vação muito sensivel e uma linha aspera extremamente saliente. Os pon- tos ou linhas de insersão muscular são profundos, o que indica uma força extraordinaria. O craneo é vasto; attenta porém a estatura elevada que os ossos indicam, o cerebro que elle alojava não devia certamente com- portar mais do que uma intelligencia inteiramente rudimentar. L. Figuier o intransigente inimigo da origem simiana do homem, sob a influencia da, sua paixão deista que o não deixa vêr claro, faz dos primitivos craneos humanos descripções que, a crêrmol-as, nos levariam a suppôr nos pri- meiros homens uma grande intelligencia. Não é isto porém o que se in- fere dos estudos d'outros anthropologistas eminentes. Figuier exagera a capacidade craneana do homem primitivo, porque precisa de admittir-lhe um tão alto grao de intelligencia que a separação entre elle e o macaco se torne um axioma, um dogma .scientifico; é este o seu fito, a sua pai- xão, a idéa que o avassalla. Os factos examinados imparcialmente dão outro resultado. Não poderá dizer-se que o craneo do homem primitivo | seja um exemplar de absoluta degradação, que olhar para elle e assi-. gnar desde logo ao seu possuidor os caracteres de uma indiscutivel in- 1 Para desenvolvimentos em que aqui não podemos entrar, enviamos o leitor desejoso de conhecel-os, aos livros seguintes: Revue d' Anthropologie, par Broca; Anthropologie, par Topinard; Ancienneté de Homme, par Ch. Lyell; Anthropogenie, par E. Hackel; Précis de paleontologie humaine, par E. Hamy. Não esquecendo nunca o intuito d'esta obra e as palavras com que expressamente o definimos no PREFACIO, sobre os pontos mais arduos forneceremos apenas noções geraes. Se a lei- tura d'ellas implicar para o leitor o desejo ou a necessidade mental de procurar em livros especiaes mais amplas informações, teremos alcançado o nosso fim de vulgari- sadores. o MAMIFEROS EM ESPECIAL 257 ferioridade seja uma e a mesma coisa? Afirmar isto não seria cahir no erro opposto ao de Figuier, não seria servir tambem uma paixão, querer “encontrar à força documentos da origem simiana onde elles não estão? A imparcialidade, o frio exame é indispensavel aqui; os exemplares exis- tem — saibamos vêl-os. Os craneos primitivos offerecem uma certa vastidão. Deduziremos daqui uma conclusão. favoravel à intelligencia dos primeiros homens? De modo algum. .Não é em absoluto que as medidas craneanas devem ser consideradas; não é em absoluto que ellas dão o direito de concluir a favôr ou contra o poder intellectual. Se assim fosse, o elephante seria mais intelligente do que o homem, o burro seria superior ao cão. Nas mensurações craneanas não devemos esquecer a estatura, a grandeza geral dos ossos; egualmente não devemos perder de vista outros cara- cteres do craneo, diferentes da grandeza. Ora, o homem primitivo tinha uma elevadissima estatura; em relação a ella, o craneo é pequeno e a massa encephalica proporcionalmente diminuta. Depois, caracteres mor- phologicos d'outra natureza conspiram-se ainda para confirmar este resul- tado da simples mensuração; taes são uma enorme espessura dos ossos craneanos e uma notavel depressão supraciliar da fronte. Devemos obser- var tambem que nas faces primitivas é muito pronunciado o prognatismo, caracter que no estudo das raças vimos ser o inseparavel companheiro da inferioridade intellectual. É isto o que revela o exame imparcial dos exemplares conhecidos e authenticos. Que nos importam a nós as conclusões que a paixão ou a superficialidade d'ahi queiram tirar? Para avaliarmos até que ponto a paixão deista e as idéas systema- ticas de escóla conseguiram perturbar o espirito de Figuier, aliás um distincto naturalista no campo exclusivamente descriptivo, temos duas ordens de provas. A primeira, a linguagem de que se serve combatendo os que admittem a existencia do homem fossil, denominação contra a qual se insurge por modo pouco conforme à serenidade scientifica; a segunda, o facto de serem oppostos ao seu, os testemunhos de todos os sabios que descrevem os craneos humanos reputados mais antigos. É opinião unanime entre todos os anthropologistas que os ossos d'esses craneos são de uma espessura extraordinaria, que a fronte é estreita e extremamente baixa, finalmente que a saliencia das arcadas supraciliares é enorme, consti- tuindo como que um monte osseo após o qual vem um valle, a de- pressão frontal. Que maiores provas anatomicas serão precisas para at- testar a estupidez, a verdadeira bestialidade? Que importa em absoluto a vastidão cranecana? Não se deveria affoitamente subscrever a estas aflirmações, se as vissemos emanadas sómente da bocca dos que sustentam a origem si- 17 258 HISTORIA NATURAL miana do homem; então o justificado receio de interpretações systema- ticas impor-nos-hia uma prudente reserva. Mas quando se vêem homens como Quatrefages, que combate a escóla transformista, serem os primei- ros a confirmar 0 que acima deixamos dito sobre os craneos primitivos, a duvida é impossivel. De resto que dificuldade haverá em admittir que o homem partiu de um estado absolutamente rudimentar de inteligencia para attingir o alto grao de civilisação que hoje offerece? Pois compa- rando a intelligencia de um selvagem actual à de um Europeu, não en- contramos uma differença perfeitamente prodigiosa? Como nos admira- remos pois de que o homem primitivo fosse, ha muitos milhares de an- nos, pouco superior ao bruto? E se a comparação do craneo de um ne- gro ao de um typo de raça caucasica, revela uma notavel differença morphologica, como admirar que o craneo do homem primitivo se dis- tanceie enormemente dos craneos actuaes, ainda os mais degradados? Será possivel estabelecer seguramente o genero da vida do homem ante-historico? Abundam os documentos archeologicos para o fazer; to- mando-os para base tem-se dividido em periodos distinctos a existencia dos nossos antepassados primitivos, como vamos rapidamente examinar. EDADE DA PEDRA - Como animal, o homem em meio da natureza foi necessariamente forçado a travar uma lucta desesperada contra outros animaes. Instinctos hostis, persistentes ainda hoje em muitas especies, armavam contra elle os robustos e enormes representantes de uma fauna cujos vestigios se encontram ao lado dos ossos humanos como testemunho de um contacto que deveu ser violento, de um combate necessariamente desapiedado é horrivel. Para triumphar n'estas pugnas sangrentas, para sahir victorioso destes jogos brutaes, não bastava ao homem a força, aliás enorme, como o demonstra o exame dos seus ossos; era indispensavel o emprego de meios que sobrelevassem as armas naturaes de inimigos tão poderosos como o rhinoceronte e os leões enormes que a paleontologia reconstruiu. Para achar esses meios tinha o homem a intelligencia, embora rudimen- MAMIFEROS EM ESPECIAL 259 tar e nos primeiros alvores. D'esta superioridade, a unica que a natu- reza lhe conferira, aproveitou-se então creando as primeiras armas, im- perfeitissimos instrumentos de silex, de madeira e de osso. As arvores, o sólo, os animaes mortos offereceram-lhe os primeiros materiaes na “ereação dos meios protectivos e agressivos; assenhoreou-se d'elles, for- mou Os primeiros instrumentos que lhe multiplicaram a força e que nos Jazigos seculares se encontram como fieis companheiros, ao seu lado. — É a edade da pedra. Dos instrumentos de silex descobertos com os esqueletos humanos, nem todos affectam a mesma perfeição, o mesmo talento de fabrico, por que assim nos exprimamos. Uns, são apenas pe- daços de pedra lascadá, desartificiosos, quasi informes por vezes. Cor- respondem a um seriado que a sciencia denomina paléolithico. Outros, mais bem fabricados, são de pedra polida; representam um notavel pro- gresso, demonstram a preocupação do homem em aperfeiçoar os pri- mitivos inventos. Correspondem ao periodo scientificamente designado “pelo nome de néolithico. Ao conquistar o primeiro instrumento rudimentar de silex, o homem * conquistou talvez simultaneamente o fogo. É possivel que o embate, o choque primeiro de dous pedaços de pedra, fazendo resaltar uma faisca, lhe denunciassem o lume, esse poderoso agente de incalculavel progresso. “Então, porque não bastava sómente luctar pela defeza, e era preciso tal- vez attacar, porque seria insufliciente já o uso das carnes mortas a que o homem primitivo se entregou, como o provam multiplos documentos, e se teria tornado uma necessidade o uso dos tecidos palpitantes passa- “dos pelo lume, o troglodita, o homem das cavernas, fabricou os primei- ros vasos de terra. Conservados e examinados hoje, vê-se que estes utensilios primitivos são um composto de argilla, de pedra ou de con- chas. Nas habitações lacustres da Suissa encontram-se ao pé dos instru- mentos de silex, dos machados, dos martellos e das facas, numerosos destes vasos, alguns crivados de ourificios, improprios por isso para conter liquidos, mas ao contrario propriissimos para conter carnes que se submettessem à acção do fogo ou ainda, como lembra Zaborowski, para reter a porção coalhado do leite de animaes trazidos à domestici- dade. Neste largo periodo de tempo, incalculavel em numero de annos ou de seculos, que se chama a edade da pedra, realisaram-se immensos progressos. Ha documentos da domesticidade de animaes, de uma agri- cultura incipiente, de uma arte rudimentar attestada por figuras escul- Ppidas em pedra, de preocupação ácerca dos mortos, a ser certo que os dolmens representam sepulturas primitivas, talvez até de vagos usos re- ligiosos como pretende Broca, para quem as trepanações são o indicio de um culto rudimentar, hoje denominado néolithico. As trepanações são * 260 HISTORIA NATURAL operações cirurgicas consistindo em perfurar o craneo tirando-lhe regu- larmente uma certa porção de tecido osseo. Essas operações faziam-se na idade da pedra e, como verificou aquelle notavel anthropologista e medico, sobre individuos vivos e novos. Com que fim? Por effeito de uma. indicação therapeutica? É absolutamente improvavel. Em primeiro logar seria suppôr no homem ante-historico conhecimentos que são re- sultado de um complexo estudo scientifico, hypothese absolutamente irri- soria; em segundo logar a circunstancia de serem tão numerosas essas operações, aliás muito raras hoje, e o facto curiosissimo de se encontra- rem as porções osseas destacadas pela operação dentro do craneo dos mortos, levam a suppôr indicações muito differentes. Eis como a este pro- posito se exprime Broca: «Pergunto a mim mesmo, escreve o illustre me- dico, por que motivo estas operações se praticavam senão sempre, pelo menos quasi sempre sobre individuos novos e mesmo sobre creanças, e aventuro a hypothese de que estariam relacionadas com qualquer supersti- ção, de que fariam parte talvez de qualquer cerimonia de iniciação na san- tidade de não sei que sacerdocio. Isto suppõe, é certo, a existencia de uma casta religiosa; mas não ha duvida de que os povos néolithicos ti- vessem um culto organisado. Esta pequena roda craneana, que se intro- duzia na cabeça de certos mortos como para substituir a que se lhes tinha tirado durante a vida, não implicará uma crença em outra vida? Estas esculpturas grosseiras mas sempre as mesmas que representam uma divindade feminina sobre as paredes das ante-grutas de Baye, pro- vam além d'isso que o culto dos tempos néolithicos se tinha elevado já até ao anthropomorphismo. Ora um deus bem definido, um deus com forma humana, deve ter necessariamente padres iniciados, e a iniciação pelo sangue, a iniciação cirurgica encontra-se, como é sabido, entre um grande numero de povos mesmo civilisados.» ! Este modo de vêr de Broca não passa, é claro, de uma conjectura; o que é certo porém é que não ha impossibilidade em que os factos tenham sido como diz à interpretação, attento o estado relativamente adiantadissimo da e humana na edade da pedra. 1 Citado por Zaborowski, Homme Prehistorique, pg. 148. MAMIFEROS EM ESPECIAL 261 EDADE DOS METAES Durante este novo periodo, um enorme progresso se realisou pela descoberta dos metaes. O bronze e o ferro foram lentamente substituindo a pedra empre- gada. no fabrico das armas e dos utensilios das cavernas, primitiva ha- bitação do homem. Mas assim como a pedra polida se usou por muito tempo. de combinação com a pedra lascada sobrepondo-se e confundin- do-se por assim dizer os periodos paléolithico e néolithico, do mesmo modo tambem o emprego das armas e utensilios de silex se misturou com os objectos de bronze e de ferro. Hoje as excavações archeologicas teem descoberto simultaneamente uns e outros destes productos indus- triaes. «Num tumulo, diz Zoborowski, descoberto perto de Lubek, encon- traram-se sobrepostos os trez modos de sepultura caracteristicos das eda- des do ferro, do bronze e da pedra. No vertice um esqueleto introdu- zido na terra livre estava acompanhado de um objecto de ferro oxidado e de vasos de uso domestico. No meio, repartimentos de paredes seccas continham cada um uma urna cineraria cheia d'ossos e de objectos de bronze. Na base emfim, grossas massas cobriam outros ossos com ma- chados de silex.» 1 Ácerca dos objectos de ferrô, diz o mesmo escriptor:. «Os princi- paes monumentos da edade pre-historica do ferro, são os tumulos famo- sos de Hallstadt, perto de Salzburgo na Austria. Encontra-se ahi o pri- meiro desenvolvimento da arte antiga. Não havia dinheiro ainda, nem moedas, nem vestigios de escripta ou de pintura; mas encontram-se lá o marfim da Africa, o ambar do Baltico, o ouro das minas da Transylva- nia, O vidro, vasos de bronze luxuosos, collares, bracelletes elegantes.» 2 Pensando um instante no uso actual dos metaes, que nos parece já imprescindivel, facil será reconhecer a importancia nos tempos pre-his- toricos da descoberta d'elles—um verdadeiro começo de civilisação. 1 Obr. cit., pg. 153. 2 Obr. cit. pg. 157. 262 HISTORIA NATURAL A QUESTÃO DA ORIGEM DO HOMEM Derivando do campo perfeitamente positivo das aflirmações que se. demonstram com documentos incapazes de receberem mais do que uma interpretação, para o da hypothese, para o da conjectura embora fortale- cida pela probabilidade, os sabios, depois de terem provado a existen- cia de um homem-primitivo, tentaram ir mais longe, inquirindo a origem desse homem. Claro está que lhes não satisfazia a idéa de uma crea- ção, porque a sciencia tem como evidente o principio sempre confir- mado de que nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma. O homem, disseram, é um organismo complexo, o mais perfeito de todos, o mais alto representante de um equilibrio instavel e superior da mate-. ria; é certo pois que formas mais imperfeitas e rudimentares o prece- deram, formas de que elle é a cega a actual, e que devemos in- coviigar. Uma vez collocados n'este terreno, as analogias entre o homem e O macaco tornaram-se um facto sobre o qual as attenções convergiram. O exame dos esqueletos primitivos confirmando e tornando mais salientes essas analogias e os estudos ethnicos sobre os homens mais degradados da especie, onde os costumes são bestiaes e a intelligencia rudimentar, ferindo de morte a opinião que nos constitue seres áparte na creação, infinitamente distanciados de todos os outros, fizeram crêr que o homem derivaria do macaco por lenta transformação. Desde então as investiga- ções dos naturalistas que acceitam este ponto de vista teem todas como alvo encher as lacunas que separam os quadrumanos dos bimanos, pro- curando os homens que mais se approximem do macaco e os macacos que mais se approximem do homem. Estes mesmos naturalistas entrando no terreno puramente abstracto de biologia geral, fizeram uma revisão completa da idéa de especie, pro- vando, como dissemos ao tocar o problema das raças, que ella nada tem de absoluta; que a sua E asnige inalterabilidade era simplesmente uma ficção. Mas, admittido n'um campo puramente ihmorioo que as especies não são fixas, que podem transformar-se umas nas outras e que o homem pode derivar d'um ser anterior, o macaco, era ainda necessario dizer, explicar os processos seguidos pela natureza n'essas transformações. É o que a escóla evolucionista faz, recorrendo aos principios da lucia pela existencia, da selecção natural, da adaptação e da hereditariedade. e ar A MAMIFEROS EM ESPECIAL 263 Admitta-se ou deixe de admittir-se a doutrina dos transformistas, o que é certo é que os principios por elles invocados e postos em relêvo, “são perfeitamente positivos; por isso os exporemos. LUCTA PELA EXISTENCIA Designa-se por esta expressão, a primeira vez empregada por Da- rwin, o combate travado entre todos os organismos para a acquisição dos meios de subsistencia. Quando, por exemplo, mergulhamos duas plantas numa porção de terra insufficiente para as duas, trava-se entre ellas desde logo uma lucta cujo fim deve ser a apropriação exclusiva dos meios nutritivos d'essa porção de terra por uma só. Ao fim de um certo tempo uma das plantas morre e a outra conquista, ella só, todos os meios indispensaveis à sua subsistencia, toda a terra com os seus meios vitali- santes. Diante de uma preza que não basta a satisfazer a fome de muitos carniceiros que a cercam avidamente, estabelece-se um combate ao fim do qual os vencedores, só elles, possuirão a victima. As differentes es- pecies luctam entre si. Um herbivoro destroe as plantas que devem ser- vir-lhe de alimento; um carnivoro procede de egual forma em relação aos animaes inferiores e mais fracos que elle mata para utilisar na satisfa- ção das suas necessidades. Os homens não fazem excepção a este prin- cipio. Luctam não só contra outras especies, como é visivel, mas entre si, Num periodo atrazado, quando a intelligencia se conserva ainda rudi- mentar, é a lucta brutal, cannibalesca, baseada sobre a força como a dos " animaes, attesta-o a anthropophagia; depois quando os progressos da in- * telligencia e do sentimento se oppoem ao exercicio primitivo da força bruta, a lucta toma outra forma, mas subsiste ainda com o nome de con- correncia. O commerciante que desce os preços dos seus generos para chamar a si os consumidores, o fabricante que aperfeiçoa os seus produ- ctos com o mesmo fim, o operario que offerece os seus serviços por um salario menor ou por maior numero d'horas que outro operario, todos Juctam pela existencia, todos procuram apropriar-se de meios que se en- contram repartidos. Isto mesmo fez dizer a Hobbes que o homem era o lobo do homem — homo hominis lupus, afirmação que, se não é perfei- tamente exacta por exclusiva, tem comtudo um fundo indiscutivel de verdade. Mas ha mais. A lucta é ainda de todos os organismos com as con- dições cosmicas, revelada, como o notou Darwin, pela desproporção en- 264 HISTORIA NATURAL tre o numero de nascimentos e o de existencias. Este grande naturalista calculou que, não produzindo o elephante senão um filho em cada parto e suppondo que em noventa annos a femea não dá à luz mais do que trez pa- res, no fim de cinco seculos existiriam no entanto, oriundos de um só par primitivo, quinze milhões de individuos. O calculo feito tomando para | base a reproducção de animaes de pequenas dimensões, muito mais fa- cil, como é sabido, dá resultados verdadeiramente assombrosos. É as- sim que Bonnet, citado por Quatrefages, mostrou que, se durante um €es- tio toda a descendencia de um só par de lagartas sobrevivesse, estes individuos collocados ao lado uns dos outros, encheriam quatro hectares de terreno. Vê-se pois que para povoar inteiramente o nosso planeta, bastaria n'um curto espaço de tempo um limitadissimo numero de especies. Se o facto se não realisa é porque a cifra que representa a mortalidade é con- sideravelmente maior do que a destinada a exprimir a somma dos que vi- vem. Hoeckel escreve a este proposito: «O numero de individuos possi- veis, dos que podem sahir dos germens produzidos, excede muito o nu- mero dos individuos reaes, que vivem effectivamente n'um momento dado à superficie da terra. O numero dos individuos possiveis ou virtuaes será representado pelo numero de ovos ou de germens asexuados que os organismos produzem. O numero d'estes germens dos quaes cada um, em condições favoraveis, poderia dar origem a um individuo, é muito mais consideravel que o numero de individuos vivos, actuaes, isto é nascendo effectivamente d'esses germens e conseguindo viver e repro- duzir-se. Desses germens, o maior numero morre desde os primeiros momentos de existencia, e são sómente os organismos privilegiados que chegam a desenvolver-se, a sahir com exito da primeira infancia e a reproduzir-se.» ! Depois o mesmo naturalista acrescenta: «Todo o orga- nismo lucta, desde o começo da sua existencia, com uma multidão de influencias inimigas; lucta com os animaes que vivem à sua custa, de | que é o alimento natural, com os animaes de preza e os parazitas; lucta com influencias anorganicas de differente natureza, com a temperatura, com as intemperies e outras circunstancias.» 2 Por isso diz Quatrefages : «A lucta para a vida é um facto geral e incessante. Sob a tranquillidade apparente da mais risonha campina, do bosque mais fresco, do mais im- movel lago, occulta-se o combate, que é sempre o mesmo, sempre inexo- ravel. Ha realmente alguma coisa de estranho em pensar n'esta formi- davel guerra sem treguas e sem perdão, que não pára nem de dia nem 1 Heckel, Histoire de la Création naturelle, pg. 144. * Obr. cit., pg. 145. MAMIFEROS EM ESPECIAL 265 “de noite e arma constantemente animal contra animal, planta contra Planta.» 4 — Mas neste vasto combate quaes são os vencedores e quaes os ven- cidos? O que é que determina a derrota, quer dizer a morte, ou a vi- ctoria, quer dizer a vida? = É oque passamos a examinar. e SELECÇÃO NATURAL O que regula a cada momento a posição reciproca dos luctadores é "sem duvida a natureza das armas de que cada um se serve. — Os vencedores são os mais bem dotados; os vencidos, os inferiores nos meios de attaque. Na lucta qualquer vantagem, por pequena que seja, decide da sorte dos contendores; o que a possue, vence, quer di- zer vive, o que a não possue é vencido, isto é, morre. Assim, no exem- plo que acima figuramos das duas plantas sobre uma porção limitada de terra, será vencedora a que nella estender maiores raizes, orgãos de absorpção. No conílicto dos carnivoros em face de uma victima para a posse della, sahirá triumphante o mais forte, o mais musculoso ou O dotado de melhores armas de attaque. Em conflicto com o meio cosmico vencerão os mais resistentes, os mais bem dotados. “» Sobrevivem pois e ici para a reproducção, sómente « os me- lhores, os que teem mais dotes, maiores aptidões; os inferiores succum- bem sem descendencia ou com uma prole destinada como elles a uma morte fatal, inevitavel. » A este facto, tão geral e tão incontestavel como a lucta para a exis- tencia, dá-se o nome de selecção natural. O nome foi escolhido com fe- licidade; ha realmente nestes casos entre as especies e entre os indi- viduos uma escolha natural, semelhante à que o homem voluntariamente promove na cultura das plantas ou na creação dos animaes domesticos e que se chama selecção artificial. «A selecção natural, diz ainda Quatre- fages, não é uma theoria; é um facto cuja generalidade é confirmada to- dos os dias e a todas as horas, é uma consequencia inevitavel da lucta pela existencia,» 2 1 Quatrefages, Darwin et ses précurseurs français, pg. 92. 2 Obr. cit., pg. 92. 266 HISTORIA NATURAL A importancia d'este principio no ponto de vista da evolução, é ca- pital. Sem elle não se percebe a possibilidade de uma transformação de especies. Sem uma lucta com eliminação constante do mais fraco, é im= possivel comprehender claramente a lei da accumulação das pequenas diferenças e, portanto, a passagem especifica de um typo a outro typo. A estes principios que em si mesmôós seriam insufficientes ess um outro que vamos expôr. ADAPTAÇÃO f Designa-se por este nome o poder que teem os organismos de se accomodarem às condições cosmicas ou, como mais vezes se diz, de . meio. Às condições ambientes determinando modificações por vezes pro- fundas nos seres organisados, implicam para elles transformações mor- phologicas. A adaptação que tambem se denomina variabilidade, refere-se ainda a habitos contraidos ou seja por influencia de circunstancias natu- raes ou seja como resultado de uma acção voluntaria e reflectida que o homem exerça, como acontece na aclimação das plantas nos jardins de exposição. O que é certo, o que é indiscutivel é que uma intervenção qualquer nas condições em que vive um organismo traduz-se invariavel- mente em grao maior ou menor por modificações individuaes ephemeras ou persistentes nesse organismo. Assim se por um meio qualquer um animal ou um vegetal é forçado a prescindir do uso de um certo orgão, a atrophia é para este inevitavel, se a falta de exercício se prolonga; do mesmo modo tudo quanto implicar o uso excessivo e desmedido de uma dada parte organica, implica simultaneamente uma hypertrophia, um exagero de volume d'essa parte. A vida nomade, por exemplo, arras- tando comsigo o uso sempre attento e vigilante dos sentidos, dá-lhes uma acuidade notavel sempre no selvagem. As luctas entre os povos barbaros. demandando um forte exercicio muscular, dá-lhes um desenvolvimento muscular e um vigôr que se tornariam verdadeiramente prodigiosos se as fomes e accidentes depressivos de toda a ordem não viessem contraba- lançar no peor sentido os beneficios de uma tão grande actividade. Um outro exemplo de adaptação muito conhecido e a que nos referimos já, é o de variação das côres consoante a acção dos meios. Ás vezes não é preciso mesmo que as differenças de meio sejam muito notaveis para que variações morphologicas appareçam; bastam ligeiras modificações para a apparição de caracteres diferentes, como acontece em individuos MAMIFEROS EM ESPECIAL 267 que vivem em condições geraes sensivelmente as mesmas e que todavia por influencia de leves modificações de habitos offerecem caracteres dis- tinctos. A este respeito escreve Darwin: «Todas as mudanças de confor- mação quer sejam muito quer pouco pronunciadas que se realisam entre um grande numero de individuos que vivem junctos, podem ser consi- deradas como os effeitos indefinidos das condições de vida sobre cada organismo individual. Poderiamos comparar estes effeitos indefinidos aos de um arrefecimento que affecta differentes pessoas de modos diversos segundo o seu estado de saude ou a sua constituição, causando n'uns uma bronchite, noutros um defluxo, n'este um rheumatismo, m'aquelle “uma inflammação de diversos orgãos.» * Ae si oi: HEREDITARIEDADE “Todas as qualidades que na lucta para a existencia dão a victoria a uns certos e determinados combatentes, desappareceriam com elles se nos seres organisados não existisse o poder de transmittirem aos descenden- tes e perpetuarem assim na especie os modos de ser caracteristicos e individuaes. A esse poder, ou antes ao proprio facto da transmissão de caracteres, deu-se o nome de hereditariedade. Este poder é geralmente reconhecido. É por elle que nos traços geraes e especificos os filhos re- produzem constantemente os paes, que em dado organismo é sempre semelhante a um outro de que descende. Um homem é sempre filho de um homem, um cão de outro cão, um elephante de outro elephante, etc. Este facto é por tal forma evidente que nenhum naturalista, até mesmo nenhum homem estranho á sciencia deixou, desde a mais alta antigui- dade, de referil-o, de contar com elle. Modernamente porém, a investi- gação tem ido mais longe, tem pacientemente procurado estudar o phe- nomeno mais intimamente. E essa meiuda investigação conduziu ao re- sultado positivo de que não são sómente os caracteres geraes ou espe- cificos os que se transmittem, mas ainda outros de menor importancia, outros que são particulares e accidentaes. Recolheram os naturalistas grande numero de factos comprovativos do que vimos de affirmar. For- neceram esses documentos com mão copiosa os cultivadores de plantas e de animaes, conhecedores desde ha muito do facto empirico, e utilisa- 1 Ch. Darwin, Origine des Éspêces, pg. 9. 268 HISTORIA NATURAL dores delle. Como é com efeito que estes individuos conseguem as suas variedades, as suas raças mais estimadas e mais raras? Reunindo para a reproducção typos que offerecem accidentalmente tal ou tal caracter notavel, tal ou tal condição organica singular e proeminente de côr, de forma, de instincto, etc. Se se quer obter um typo em que umas certas qualidades sejam notaveis e perfeitamente caracteristicas, promove-se e torna-se exclusiva por longo tempo a reproducção entre individuos que mais ou menos acentuadamente offerecem os caracteres desejados. Mas, proceder d'este modo não será contar com o factor hereditaridade? Não será ter como certa à priori a acção d'esta grande força? Certamente. À exploração, industrial ou commercial d'este poder que se chama. hereditariedade tem ido modernamente entre os cultivadores de vegetaes e animaes até ao ultimo grao da perfeição. Diz Spencer, e é conhecido de muitos, que ha na Inglaterra homens tão eminentes n'este trabalho | que assignam com extrema approximação o numero de annos precisos para obter tal ou tal variedade ou raça, mais ainda tal ou tal typo pré- viamente desenhado na imaginação. E não são simplesmente, note-se, caracteres morphologicos os que assim se obtem, mas ainda caracteres psychicos de intelligencia, de instincto e de energia. O grande philoso- pho H. Spencer archiva no seu livro Principios de Biologia * uma pro- digiosa quantidade de factos d'esta ordem realisados em differentes es- pecies, comprehendida a nossa. ; É assim que se comprehende a accumulação das pequenas differen- ças, a perpetuação dos caracteres adquiridos pela adaptação aos meios e, portanto, a modificação de typo que, segundo os evolucionistas, pode ir até à transformação de uma especie n'outra especie, dado um espaço sufficiente de tempo. Com os principios que acabamos de expôr reunidos a um factor im- prescindivel ou antes a uma condição geral de todos os phenomenos, o tempo, explicam os transformistas a descendencia ou origem simiana do homem. Não contentes com demonstrarem a possibilidade de uma tal origem, elles tentam demonstrar ainda a sua effectividade, soccorrendo-se de do- cumentos da transformação tirados uns da anatomia osteologica (a esses já nos referimos) outros, porventura aquelles sobre que hodiernamente mais se insiste, da embryologia. Estes ultimos são de uma capital importancia para a escóla em ques- 1 Vid. no livro cit., vol. 1.º, o artigo Hereditariedade, MAMIFEROS EM ESPECIAL 269 tão. Não nos demoraremos na detalhada e minuciosa exposição d'elles, porque isso significaria uma recorrencia talvez menos fundada a conhe nentos muito especiaes da parte de quem lê. Limitar-nos-hemos pois a recordar de um modo synthetico esses factos, expressos n'uma formula que se chama a lei de Baêr e que podemos enunciar assim: Nos animaes todos os embryões, ao principio ou no começo de evolução, são semelhan- tes; só em phases successivas e distanciadas de desenvolvimento appa- recem caracteres que justificam primeiro a divisão em dois grandes gru- pos e depois, lentamente, em grupos cada vez mais numerosos até à completa. e perfeita individuação. Por outras palavras: No desenvolvi- mento embryologico, cada ser animal passa por phases que são propria- mente. a de seres anteriores ou inferiores a elle na escala zoologica. As- sim 0 homem, por exemplo, antes de attingir na vida embryonaria os “caracteres de especie, passou por phases que pertencem egual- nte aos embryões do cynocephalo adulto, da ave, do peixe, etc. E Huxley observa, por exemplo, que durante óda a evolnção intra-uterina, o embryão do homem se assemelha muito mais ao do macaco que o deste ao do cão. mta “Tire o leitor d'estes principios a conclusão que se lhe affigurar mais hgié na certeza porém de que os preconceitos de sentimento ou de educação não conseguirão senão falsear o criterio e de que a sciencia inflexivel não se desvia um instante só da linha traçada pelos factos, quaesquer que sejam, como diz Topinard, as satisfações ou os lamêntos de cada um. pe A eta o met paid ro is A Donna: E Pai Tt Medias tú Bene p ru biirods su ok item vê va Oy PMS VCR ART SRD DSL cs áNic DIApos nt 38] dd SEreRa LS MAMIFEROS EM ESPECIAL 271 QUADRUMANOS CONSIDERAÇÕES GERAES Na ordem da classificação zoologica por nós adoptada, a ordem des- cendente, os quadrumanos apparecem-nos como o grupo que logo depois do homem nos cumpre examinar. Dão-lhes incontestavel direito a este logar a sua perfeição estructural e a semelhança que teem com o ho- mem, não sómente no ponto de vista anatomico senão tambem no da in- telligencia. Esta semelhança é tal, resalta por modo tão evidente ao es- pirito do observador que já Linneu, o grande mestre da historia natural, considerava os quadrumanos ligados ao homem n'um mesmo grupo, o dos PRIMATOS, e, 0 que mais é, fazia d'elles e dos homens especies de um mesmo genero. É assim que no grupo Homo comprehendia a nossa especie —homo sapiens, o Chimpanzé —homo troglodytes, o Orango-tango —homo satyrus e o Longimano—homo lar. - Com efeito, o quadrumano póde, como o homem, manter-se de pé, é, como elle, provido de mãos, tem os olhos collocados anteriormente, e nas formas geraes do corpo como na estructura intima dos orgãos, re- corda enormemente a nossa especie. Intellectualmente não encontramos tambem animal que mais se ap- proxime de nós. Esta simples proposição, aliás muito demonstravel, evi- dente talvez até para os espiritos desprevenidos e imparciaes, tem le- vantado sempre desde Linneu até hoje, e agora mais do que nunca, uma verdadeira tempestade. Parece que aflirmar a semelhança no ponto de vista das faculdades mentaes entre o homem e os quadrumanos, é sim- plesmente archivar um facto; e no entanto, ao ouvir os protestos indi- gnados de alguns naturalistas, dir-se-hia que a proposição é um erro gravissimo, um attentado à dignidade humana. Os defensores de um reino hominal, os que perante a cdi “da nossa especie acendem os thuribulos do elogio à outrance, vibram de indignação se alguem se lembra de mencionar as palpaveis analogias 272 HISTORIA NATURAL entre o quadrumano e o homem. Perdem a serenidade, trocando desde logo o dizer frio do sabio pela penna agitada do pamphletario. São esses os mesmos que receberam com má sombra a descoberta de Gallileu que à terra tirava a dignidade de centro planetario e ao homem que a ha- bita a prerogativa quasi sagrada de medida e fim de todas as coisas. Conformaram-se porém; à demonstração não se resiste. Depois, quando ouviram dizer que os actos humanos, ainda os que mais livres parecem, se regulam por leis invariaveis e fataes, indignaram-se outra vez, tive- ram um novo attaque de colera. Mas quando as estatisticas de todos os paizes vieram provar pela fria impassibilidade dos numeros que os casa- mentos por exemplo, se relacionam invariavelmente com a alta ou a baixa dos cereaes e que o crime, a loucura ou a emigração se ligam às crises economicas e politicas por modo tão regular que pode sempre prevêr-se, tiveram de conformar-se uma vez mais. Quando Gall e os seus successo- res tentaram tornar do dominio de todos que as faculdades e as aptidões humanas derivam, não de um pretendido espirito incoercivel e intangi- vel, mas pura e simplesmente da organisação cerebral de cada um, re- voltaram-se de novo, despejaram rios de tinta sobre montanhas de papel, protestando, defendendo sempre o velho ponto de vista dogmatico. Mas quando o estudo das raças, a comparação dos cerebros humanos entre si e com os dos animaes, quando o estudo positivo das aberrações intel- lectuaes e a hysto-chimica descobriram uma indiscutivel relação entre os estados intellectivos e a conformação e composição do cerebro, tiveram de ceder uma vez ainda, de calar por inuteis e ridiculos os protestos do primeiro instante. Agora aos homens concienciosos, aos benemeritos e pacientes investigadores que procuram pelas suas indagações preencher as lacunas que separam na apparencia o homem da animalidade inferior, vibram ainda os doestos já gastos e exanimes de velhas luctas em que sempre ficaram vencidos. Tentam mais uma vez defender o baluarte das tradições, sustentar o forte desmantelado de uma orthodoxia que faz sor- rir de piedade. E para que? Para cederem ámanhã, como hontem cede- ram, às conquistas scientificas, aos resultados do labor impessoal que se funda na experiencia e que não pode cahir a golpes de declamação. Retomemos o nosso ponto de partida. Diziamos que tanto em relação à estructura do corpo como à intel- ligencia, é o quadrumano o animal que mais se approxima do homem. Provêmol-o. O plano de conformação interna é o mesmo entre bimanos e qua- drumanos, tanto no que respeita ás partes osseas como aos orgãos es- planchicos. Uma columna vertebral semelhantemente construida, os ossos dos membros dispostos de egual modo, um systema dentario dividido da mesma maneira que no homem em incisivos, caninos e molares, um a e dr e E o DS Pi A MAMIFEROS EM ESPECIAL 273 craneo fundamentalmente constituido dos mesmos ossos, a hystologia dos orgãos a mesma; taes são as semelhanças. No ponto de vista intellectual uma boa memoria, um certo poder de generalisação que aos quadruma- nos permitte aproveitar as licções da experiencia, uma notavel tenden- cia imitativa que lhes consente apropriarem-se de alguns usos humanos como é, por exemplo, o emprego de utensilios, um certo grao de refle- xão por que chegam a modificar os seus planos quando uma vez inter- vimos n'elles perturbando-os e a estabelecer um systema por vezes com- pleto de defeza contra os perigos ou de attaque contra os inimigos; taes são os pontos de contacto entre a intelligencia do quadrumano e a do homem. Ao lado das semelhanças existem differenças que tambem nos cum- pre estudar. | O aspecto da face dos quadrumanos é muito differente do aspecto da face humana. N'aquelles o angulo facial de Camper é muito mais pe- queno, a face relativamente mais comprida e a fronte immensamente curta. Nada annuncia n'elles a nobreza e a distincção que caracterisam o homem. As mãos são tambem muito differentes. Ao passo que no ho- mem por virtude de uma opposição completa do pollegar aos outros dedos da mão, este orgão se encontra admiravelmente conformado para todos os actos complexos que as industrias e as artes reclamam, nos qua- drumanos não acontece o mesmo. Nestes, o dedo pollegar é muito curto e muito affastado dos outros, a que se oppõe sómente de um modo im- perfeito; além d'isso os dedos encontrando-se em uma mutua dependen- cia, não “podem, como no homem actuar isoladamente, o que sem con- testação indica uma inferioridade. Os membros anteriores do quadru- mano são muito mais longos relativamente aos posteriores do que no homem. Os musculos que pela sua contracção poem em movimento as mãos anteriores são nos quadrumanos como que atrophiados e é tambem esta uma das razões por que as mãos d'estes animaes não podem exe- cutar os complicados movimentos que caracterisam as do homem. Os membros posteriores são delgados. em toda a extensão e as pernas não possuem dilatação inferior alguma. A intelligencia não tem tambem aquella robustez que faz do homem o mais perfeito dos animaes; a generalisação é de um grao muito infe- rior à do homem e a faculdade de estabelecer relações é nos quadru- manos rudimentar. De resto, como observa Brehm, esta intelligencia dos quadrumanos não é capaz de disciplinar n'elles os sentimentos e os ap- petites que muitas vezes os compromettem. Assim, por exemplo, a gu- lodice destes animaes, explorada pelo homem, dá como resultado o dei- xarem-se cahir em laços e ciladas ainda as mais grosseiras. Todas estas diflerenças por importantes que sejam, acham-se singu- 18 274 HISTORIA NATURAL larmente atenuadas se a comparação se estabelece entre os quadrumanos mais perfeitos e os homens mais degradados. E é n'estas condições, crê- mos nós, que o confronto deve ser feito, quando se mira ao rigor scien- tifico. Se approximamos um quadrumano de um homem de raça branca, de um Europeu que tanto no ponto de vista physico como no intellectual condensa as conquistas da nossa especie atravez de todas as vicissitudes e difficuldades seculares que nos custaram esforços inauditos, decerto que se encontra um verdadeiro abysmo. Entre a physionomia serena e expres- siva d'este homem e a face bestial do quadrumano que haverá de com- mum? Entre a palavra facil e correcta de um e os gritos desagradaveis e estupidos do outro, como encontrar semelhanças? Entre uma intelli- gencia que comprehende as sciencias, que sabe utilisar as industrias, que se deixa commover pelas artes e aspira ainda e sempre a conquis- tas novas, a ideaes cada vez mais levantados e mais puros, e o intendi- mento rudimentar, quasi improgressivo de um macaco, não existirá uma distancia immensuravel? Ninguem o contesta. Mas se em vez de um Eu- ropeu, tomamos para typo de referencia o Negro, o habitante da Nova- Caledonia, o selvagem, o cannibal que não tem lingua escripta, que não sabe contar, que é fetichista, grosseiro, hostil a todos os progressos, a distancia não diminue consideravelmente ? E o que se diz no ponto de vista da conformação e da intelligencia, pode exactamente repetir-se do sentimento e da moralidade. O quadru- mano tem sido accusado de sensual, de preverso, de agitador períido, de amigo da desordem. A accusação é justa, com a condição de se não esquecer que ao lado destas más qualidades outras existem realmente apreciaveis, como são 0 carinho para os filhos, a gratidão pelo bom tra- tamento recebido, a dedicação de uns pelos outros na hora do perigo e uma sympathica affeição pela terra que lhes foi berço. Ora, continuando o confronto principiado entre o quadrumano e o homem, não poderá di- zer-se com verdade que este mixto incongruente e singular de senti- mentos tão diversos caracterisa tambem o homem no estado selvagem? Pois a astucia, a perfidia, a sensualidade bestial não são qualidades que nas tribus errantes dos cannibaes se alliam à dedicação pelos compa- nheiros durante as luctas e ao amor do torrão natal? Na lubricidade abo- minavel do quadrumano não haverá alguma coisa de semelhante aos ap- petites eroticos do selvagem, às imperiosas necessidades sensuaes d'es- ses typos degradados que vivem n'uma quasi promiscuidade sexual e para quem a mulher é puramente e simplesmente uma femea? Na perfi- dia, na astucia, na gulodice, no espirito de desordem e de lucta, o qua- drumano não se assemelhará singularmente aos cannibaes que ao repar- tirem entre si, nos grandes festins, as victimas humanas, emittem gritos de uma alegria brutal, de uma satisfação primitiva como a da besta? Ne- MAMIFEROS EM ESPECIAL 275 nhum espirito observador e imparcial contestará estas analogias, de resto perfeitamente evidentes. COSTUMES Os costumes dos quadrumanos são dignos de observação. Durante a infancia é dificil encontrar animaes mais vivos e de maior mobilidade. Quando procuram o alimento, não ha obstaculos que não saibam vencer, dificuldades que não superem com extraordinaria rapidez, qualquer que seja a natureza d'ellas, sebes, portas, barrancos, muros ou inimigos ainda os mais poderosos, como o elephante. Quando se lhes depara um “campo cultivado ou um jardim, principalmente se ahi abundam as arvo- res de fructo, cahem sobre elles como uma verdadeira praga, como a peior de todas as calamidades. Desconhecendo absolutamente o direito de propriedade, tudo invadem, tudo resolvem, em tudo deixam vestigios da sua passagem devastadora. No meio dos terrenos onde os vegetaes abundam, accomette-os um como ardor pantheista; revolvem-se em cam- balhotas grottescas, fazem ouvir gritos de ilimitada alegria, trepam ás arvores, atiram-se de ramo em ramo, acomettem à pedrada os animaes de outras especies, destroem quanto ao homem custou dias inteiros de labor e de cuidados. É preciso ter a paciencia e as superstições religio- sas de um Indio para supportar estes crueis animaes, estes ladrões que n'uma hora de delirio annulam muitos dias de esforços racionaes, de fa- - digas perseverantes. É por isso que em quasi toda a parte os quadru- manos são francamente odiados e perseguidos. De resto, como Brehm observa, para o naturalista o espectaculo que offerecem estes animaes nas suas incursões ás florestas e aos campos, é de todo o ponto curioso. Sobre tudo é admiravel a rapidez com que trepam e se passam de ramo em ramo aproveitando ainda os mais delgados e mais ténues, dando sal- tos prodigiosos, balouçando-se outras vezes indolentemente, suspensos das arvores ora pelos membros anteriores ora pela cauda. Este ultimo “orgão é nos quadrumanos do novo continente uma quinta mão, talvez, diz Brehm, a mais importante de todas; o animal serve-se da cauda - * para trepar, para buscar o alimento atravez de fendas e ourifícios es- treitos onde as mãos não penetram, emfim para auxiliar as escaladas dos companheiros. O quadrumano é em geral musculoso, valente; isto explica a facili- dade extrema com que se ergue a grandes alturas ou permanece por * 276 HISTORIA NATURAL largo tempo suspenso por um só braço que sem fadiga lhe supporta o corpo, algumas vezes pesado como o do cynocephalo. De resto, observa Brehm, ao passo que são verdadeiramente ligeiros e graciosos os mo- vimentos que executam trepando, são pesados e deselegantes os da mar- cha. Caminham geralmente devagar e fazendo oscillações com a porção posterior do corpo; descobre-se desde logo a difficuldade com que exe- cutam este acto, aliás tão simples para a maioria dos animaes. Fallando de movimentos cumpre desvanecer um erro muito espa- lhado. Grê-se geralmente que o quadrumano não pode nadar, que, uma vez cahido à agua, nem mesmo ensaia movimentos, embora desordena- dos, de salvação. A affirmação, tomada de um modo geral, é falsa, por- que ha quadrumanos que nadam admiravelmente, como os cercopictetos que attravessam rios de grande largura tão bem como os melhores é mais seguros nadadores. A opinião a que nos referimos provem da obser- vação incompleta de algumas especies que teem um verdadeiro horror á agua, como acontece com os cynocephalos, por exemplo, e com os macacos uivadores da America. Para estes a agua é o maior de todos os inimi- gos; inspira-lhes um mêdo invencivel. Conta Brehm que se encontrou uma familia inteira d'estes quadrumanos quasi mortos de fome sobre uma arvore cujo pé fôra cercado d'agua durante uma inundação; «estes animaes, diz o naturalista citado, nem sequer se atreveram a procurar salvação n'uma outra arvore affastada da primeira apenas pela distancia - de sessenta passos.» ! Os quadrumanos são eminentemente sociaveis; raras são as espe- cies que vivem isoladas. Em geral juntam-se em bandos sob a direcção de chefe que conquista este logar não pelo accordo das vontades, se as- sim podemos exprimir-nos, ou pelo desejo commum de todos os membros do bando, mas à custa de numerosas luctas de que constantemente sae vi- ctorioso. É a selecção pela força. O mais forte, que é sempre aquelle que possue braços mais musculosos e dentes mais longos, é o que natural- mente alcança a victoria; os outros submettem-se porque não sentem força para se revoltarem. O desejo porém de conquistarem o logar de chefe não lhes falta; e tanto que, se algum crescendo e tornando-se forte, chega a ponto de lhe ser possivel um combate com o chefe em condi- ções favoraveis, desde logo o declara. Se sae victorioso da pugna, cons- titue e organisa então um novo bando sobre o qual exerce o ambicio- nado poder despotico, absoluto, a que até ahi elle proprio se achára submettido. O chefe do bando é respeitado por todos quantos se agre- miam. sob a protecção da sua força e tambem da sua experiencia, por- | Brehm, Obr. cit., pg. 8. E ea CONT * SOR RS a E or 5 EAD Rg (Uai ou MAMIFEROS EM ESPECIAL 277 que elle é geralmente velho e por isso mesmo conhecedor dos logares habitados pelo bando e dos perigos que é necessario evitar. As femeas procuram por todo um systema de seduções e carinhosos attractivos con- quistar os seus favores, tornarem-se as suas favoritas. Um dos meios empregados para alcançar este resultado, consiste em catar cuidadosa- mente o chefe, libertando-o dos parasitas que á raiz do pêllo encontram commoda habitação. A esta delicada operação submette-se o chefe ma- gestosamente como quem em si mesmo reconhece o direito a estes cui- dados. De resto, elle exerce um dominio verdadeiramente incondicional sobre o bando; tem a posse exclusiva de todas as femeas e faz cessar pela força todas as discordias intestinas do seu bando. Em compensação, é elle que vigia pela segurança geral, que, como experimentado, avisa dos perigos no momento opportuno, que dirige as retiradas ou os atta- ques contra os inimigos, que inculca os logares mais proprios para as incursões terríveis a que nos referimos já e durante as quaes devastam desapiedadamente, em busca de alimento, os campos cultivados, sobre- tudo aquelles em que abundam as arvores fructiferas. Os quadrumanos, uma vez surprehendidos pelo inimigo, nem sem- pre fogem. Ás vezes sustentam tenaz e valorosamente luctas horriveis com os mais robustos e ferozes carniceiros, com o homem mesmo para elles bem mais temivel, pela intelligencia e pelas armas de que dispõe. Os quadrumanos ainda novos e de pequenas dimensões defendem-se ou attacam sempre reunidos e dando provas da maxima dedicação e fidelidade mutua. Os grandes quadrumanos attacam muitas vezes peito a peito, isolados. As armas de que se servem são as mãos e os dentes; laceram e mordem. O cynocephalo é tão valente que nenhum homem se atreve com elle sem uma arma de fogo. Tem-se dito que os quadrumanos se servem de ramos de arvores, como de cacetes, para se reforçarem na lucta; parece que o facto se realisa, mas sómente em algumas especies. O que é geral, o que cons- tantemente se observa, é que do alto das arvores ou dos rochedos elles perseguem os inimigos attirando-lhes fructos, pedras e pedaços de ma- deira. Geralmente as especies vivem em bandos separados; algumas vezes porém especies visinhas e semelhantes junctam-se n'um bando unico. O que nos quadrumanos tem em todos os tempos attrahido sympa- thicamente a attenção dos naturalistas é o amor e a dedicação da femea pelos filhos. Sobre este ponto crêmos nada poder fazer de melhor que trasladar para aqui uma pagina perfeitamente expressiva de Brehm. Diz este illustre naturalista: «O recemnascido é sempre um ente absoluta- mente abominavel cujos membros parecem duas vezes mais compridos que os dos paes; o seu rosto cheio de rugas mais se assemelha ao de um velho 278 HISTORIA NATURAL que ao de um recemnascido. Este pequeno monstro no entanto faz as ale- grias da mãe que o acaricia e d'elle cuida com demonstrações de amor apparentemente ridiculas. Algum tempo depois do nascimento o novo ma- caco suspende-se pelas duas mãos anteriores ao pescoço da mãe em quanto as posteriores lhe abraçam os flancos; toma assim a posição me- nos incommoda para a mãe e tambem a mais propria para a amamenta- ção. Depois de mais crescido, salta, em casos de perigo, sobre as espa- duas ou sobre o dorso dos paes. «Este pequeno ser é ao principio insensivel a todas as caricias da mãe, que nem por isso é para elle menos amavel ou deixa de cuidal-o constantemente. Lambe-o, cata-o, estreita-o contra o seio e levanta-o en- tre as mãos para melhor o contemplar; depois aperta-o de novo contra o peito ou balança-o nos braços como se quizesse adormecel-o. Plinio assegura com toda a seriedade que as femeas chegam algumas vezes a asphixiar os filhos á força de caricias; este facto porém não se reproduz actualmente. Ao fim de um certo tempo o pequeno macaco assume uma certa independencia e adquire mais liberdade. A mãe deixa-o então se- nhor dos propriós movimentos e permitte-lhe que brinque com os peque- nos companheiros; não deixa porém um instante só de olhal-o, segue- lhe todos os passos, vigia todos os seus actos e nada consente que possa prejudical-o. Ao menor perigo precipita-se sobre elle, emittindo um grito particular que é um convite a que venha refugiar-se-lhe nos braços. Se elle desobedece, o que raras vezes tem logar, porque o macaco novo é geralmente submisso, a mãe então castiga-o beliscando-o, agitando-lhe violentamente o corpo, algumas vezes mesmo dando-lhe verdadeiras bo- fetadas. - ; «Em captiveiro, a mãe divide fielmente tudo o que come com o fi- lho, toma parte em tudo quanto lhe diz respeito, dá-lhe as mais eviden- tes demonstrações de affecto. A morte do filho implica fatalmente a sua; a dôr que esta perda lhe causa é-lhe sempre mortal. Quando uma mãe morre, um individuo qualquer do bando, macho ou femea, adopta o or- phão, testemunhando-lhe desde então quasi tanto affecto como à propria prole.» 4 + Entre os quadrumanos, como em a nossa especie, a femea não dá geralmente à luz em cada parto mais do que um filho; algumas especies ha porém que habitualmente dão dois. O tempo exacto que é necessario ao pleno desenvolvimento do qua- 1 Brehm, Obr. cit., pg. 10. A E dd a O AR Rad A ii gia ES Rae DA BETO ed m MAMIFEROS EM ESPECIAL 279 drumano não está perfeitamente averiguado. De resto, parece que elle varia, o que é perfeitamente natural, de especie a especie, sendo maior para as que offerecem mais avantajadas proporções. Para os orangos e os cynocephalos crê-se que esse tempo é de oito a doze annos. A mesma indecisão existe ácerca do limite maximo de duração dos quadrumanos; apenas parece averiguado que as especies de grandes dimensões attingem os quarenta annos. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Em periodos anteriores à actual epocha geologica, achavam-se os “quadrumanos mais largamente espalhados à superficie do globo do que hodiernamente. Outras especies, que não as contemporaneas, constitui- das por modo a poderem supportar o rigor dos invernos, existiam ao sul da Europa, na França e na Inglaterra. Hoje os quadrumanos acham-se exclusivamente confinados aos pai- zes quentes; parece que uma temperatura constante lhes é indispensa- vel à vida. Só os cynocephalos habitam por vezes montanhas onde uma temperatura baixa se faz sentir. Todos os outros são de uma extrema sensibilidade para o frio; é por isso que nos climas europeus elles dif- ficilmente resistem. Na Asia e na Africa existem numerosas especies, algumas com- muns. Na Europa existe sómente uma ou antes um bando confinado aos rochados de Gibraltar. No sul do antigo continente, os quadrumunos, re- fere Brehm, attingem até trinta e cinco graos de latitude; no novo con- tinente porém, existem entre o vigessimo oitavo grao ao norte e o vi- gessimo nono ao sul. De resto, a distribuição geographica é para cada especie extremamente limitada. A maioria dos quadrumanos habitam as florestas; sómente alguns, raros, vivem sobre as montanhas graniticas. DOMESTICIDADE Com um certo cuidado e alguma paciencia é possivel na maioria dos casos trazer um quadrumano ao mais completo grao de domesticidade. A 280 HISTORIA NATURAL intelligencia d'este animal permitte mesmo obter d'elle a execução dos mais dificeis trabalhos compativeis com a sua organisação. Podem apro- veitar-se no serviço domestico, por exemplo, como creados regulares; os exemplos d'isto são numerosos. No entanto, como fazem sentir todos os naturalistas que teem ob- servado de perto estes animaes, o que d'elles se obtem não compensa os inconvenientes que para nós resultam da sua convivencia. Os quadru- manos de grandes dimensões, com effeito, são perigosos pela extrema força de que dispoem nos momentos de irritação; os pequenos são ab- solutamente repugnantes e intoleraveis por uma extrema sensualidade nunca apaziguada. USOS E PRODUCTOS As vantagens que d'estes animaes tiramos, são pequenas. Os indi- genas dos paizes que elles habitam utilisam as carnes de algumas espe- cies, como alimento, e a pelle d'outras em usos industriaes. Estas vantagens estão muito longe de equilibrar os prejuizos verda- deiramente terriveis que produzem. CLASSIFICAÇÃO A distribuição taxonomica dos quadrumanos varia consideravelmente de auctor para auctor. Mesmo entre os naturalistas que mais parecem approximarem-se no ponto de partida ou fundamento taxonomico, as clas- sificações são diversas. A nós que nos collocamos n'um ponto de vista quasi exclusivamente descriptivo, importa-nos muito pouco a discussão d'essas classificações. De resto, nem mesmo tentamos expôr o estudo natural de todas as es- pecies, mas sómente das que offerecem, por condições especiaes adiante mencionadas, um maior interesse. Dividiremos, como Brehm, todos os quadrumanos em duas grandes classes ou tribus: os Monos ou macacos propriamente ditos e os Lemures ou falsos macacos. As differenças que separam estas duas classes são no- taveis. Ao passo que os primeiros são geralmente musculosos, de pro- MAMIFEROS EM ESPECIAL 281 a face chata, os segundos são magros, delga- os, notavelmente pequenos e de face proemi- = se lhes tem chamado macacos com focinho 3, lem ram ao mesmo tempo ainda q ae de um modo No pa o ! r Pr o 2 k BEE, W 4 Vo . + + q y ams o 7? À 4 “ Po á E x x E a ç-. A " o 4 E f N t a 74; dé e ; TUE ENG ESGE E ) MES Eh RR MEU x ta) IA du RR ih Cc a are AP RO RO AE Ca - RE RA Dra COS DES 1, MAMIFEROS EM ESPECIAL 283 QUADRUMANOS EM ESPECIAL MONOS OU MACACOS PROPRIAMENTE DITOS O GORILHA O satyro dos poemas pagãos, esse typo incongruente, meio homem meio besta, erotico e cruel, que enchia com os seus risos alegres e grot- tescos as florestas e os bosques, esse ente fabuloso creado pela imagi- nação dos velhos artistas para dar, talvez, aos quadros pittorescos da na- tureza a nota humana, a mais saliente e a mais bella, tem quasi um re- presentante na realidade: o gorilha. A primeira descoberta que se fez d'este quadrumano data de mais de dois mil annos e deve-se a Hannon, chefe de trinta mil expediciona- rios carthaginezes que da sua patria partiram com destino à costa occi- dental da Africa onde se propunham estabelecer colonias. Este chefe re- fere no relatorio que fez da sua viagem ter encontrado n'uma ilha do golfo chamado corne do Sul uma consideravel multidão de homens selva- gens e de mulheres cobertas de péllo, que os interpretes denominaram go- rilhas e que, perseguidos, fugiram lançando pedras contra os expedicio- narios. É hoje evidente que esses estranhos entes encontrados com es- panto por Hannon eram os quadrumanos de que nos estamos occupando. No entanto esta narrativa subsistiu sem importancia, lançada por ven- tura à conta de phantasia, até que o missionario Savage em 1847 des- cobriu de novo nas costas de Gabão o macaco collossal que tanto im- 284 HISTORIA NATURAL pressionara Hannon e ao qual deu o mesmo nome que lhe tinham con- ferido os interpretes do expedicionario carthaginez. Só então se soube na Europa que não era um mytho, senão uma realidade bem palpavel, a existencia d'este macaco singular que, como o satyro da fabula, tanto se approxima do homem. é O gorilha é de todos os monos o mais forte, o maior e tambem aquelle cujas formas são mais perfeitas e mais lembram as da nossa es- pecie. À altura d'este animal é de quatro pés e meio, a largura das es- paduas de trez, o comprimento dos membros anteriores de trez pés e quatro pollegadas, o dos membros posteriores de dois pés e quatro pol- legadas e a extensão do tronco e cabeça de mais meio pé do que em nós. Os membros anteriores teem a grossura da coxa de um homem e todo o corpo é dotado de uma força extraordinaria. O craneo é solido e vasto, a face escura ou mesmo negra, larga € grande, o nariz achatado e o labio inferior muito movel e susceptivel de se alongar consideravelmente. Tem dentes poderosos. Todo o corpo, á excepção da face, de uma parte do peito e da parte interna das mãos, é coberto de pêllos longos e negros. Não possue nem cauda nem callosi- | dades. COSTUMES E REGIMEN Poucos animaes terão sido tão infielmente descriptos no que res- peita aos seus habitos de vida como os gorilhas. A imaginação, subs- tituindo o exame directo, tem sido a causa das inexactidões que sobre estes animaes se referem. Hoje porém, viajantes e observadores cons- cienciosos teem produzido descripções exactas, successivamente confir- madas e com as quaes podemos contar como seguras. Um d'estes via- jantes e sagacissimos observadores é Paulo du Chaillu a quem damos à palavra. «A minha residencia em Africa, escreve o illustre francez, pro- porcionou-me grande facilidade em travar relações com os indigenas; e como a minha curiosidade fosse vivamente excitada pelas narrativas que ouvia fazer d'este monstro tão pouco conhecido, determinei-me a pene- trar nos logares da sua habitação e a vêl-o por meus proprios olhos. Considero-me feliz em ser o primeiro que posso fallar do gorilha com conhecimento de causa; e se a minha experiencia e as minhas observa- ções me demonstraram que muitos dos habitos que se lhe attribuem não teem por fundamento mais do que a imaginação dos negros ignorantes e dos viajantes credulos, eu posso ao mesmo tempo garantir que nenhuma . MAMIFEROS EM ESPECIAL 285 descripção é capaz de dar uma idéa sufficiente do horror que inspira o seu aspecto, da ferocidade do seu attaque e da Re malvadez dos seus instinctos. «Lastimo vêr-me obrigado a destruir agradaveis illusões: é certo porém que o gorilha não se esconde sob as arvores do caminho para apanhar com as garras o viandante desprevenido; elle não o esmaga en- tre os pés como n'um torno; não attaca o elephante nem lhe bate pau- ladas; não rouba as mulheres das aldeas; não construe uma cabana de ramos na floresta, não se deita sob um tecto, como com tanta segurança se tem dito; não anda em bandos e do que ácerca dos seus combates em massa se tem dito, não ha mesmo sombra de verdade. «O gorilha vive nas partes mais solitarias e mais sombrias dos can- naviaes espessos d'Africa e de preferencia nos valles profundos bem ar- borisados ou em alturas muito escarpadas; tambem lhe agradam os pla- tós quando o solo é cheio de rochedos onde faz então as suas cavernas favoritas. Abundam na Africa os cursos d'agua e eu notei sempre que o gorilha se encontra nas visinhanças d'elles. «É um animal vagabundo e nomade, errante de logar em logar; não se encontra talvez dois dias seguidos no mesmo terreno. Esta vaga- bundagem provem em parte da dificuldade que tem de encontrar os ali- mentos preferidos. O gorilha apesar dos seus enormes dentes caninos, apesar da sua força prodigiosa, capaz de esmagar e matar todos os hos- pedes das florestas, é exclusivamente frugivoro. Examinei o estomago de quantos tive a felicidade de matar e nunca n'elles encontrei senão fru- ctos, grãos, nozes, folhas de ananás e outras substancias vegetaes. É um grande comedor que indubitavelmente acabou por esgotar a provisão dos seus alimentos habituaes e que se vê forçado a procural-os n'outro logar, aguilhoado constantemente pela fome. O seu vasto abdomen, proe- minente quando está de pé, attesta bem o consumo activo que faz dos alimentos; de resto, um tão forte esqueleto e um desenvolvimento muscular tão poderoso não poderiam manter-se por uma alimentação me- diocre. «Não é exacto dizer-se que elle vive habitualmente sobre as arvo- res; até mesmo nunca ahi repousa. Encontrei-o sempre em terra, bem que elle trepe muitas vezes às arvores para colher baga ou nozes; mas logo que acaba de comer, desce para a terra. Estes enormes animaes não poderiam, com effeito, saltar de ramo em ramo como os pequenos "macacos. Examinando o estomago de muitos d'elles, pude assegurar-me com uma certeza quasi absoluta da natureza espitial dos seus alimentos. Pois bem; para encontrar quasi tudo o que eu observei, não carecem de tre- par ás arvores. Gostam muito da canna do assucar; teem sobretudo de- 286 HISTORIA NATURAL cidida predilecção pela substancia branca da folha do ananás; nutrem-se tambem de certos grãos que crescem perto do solo, da seiva de algu- mas arvores e de uma especie de noz cuja casca é muito dura, tão dura mesmo que somos obrigados para a quebrar a bater-lhe violentamente com um grosso martello. É este provavelmente o destino do poder enorme de maxillas que me parecia um luxo inutil n'um animal não car- nivoro e que se fez muito notavelmente sentir no dia em que a arma de um meu desventurado companheiro de caça foi achatada pelos dentes de um gorilha furioso. «Só os gorilhas ainda novos dormem nas arvores para se conser- varem ao abrigo dos animaes ferozes. Encontrei muitas vezes vestígios recentes dos gorilhas nos logares em que tinham passado a noite e pude vêr que o macho se senta com o dorso encostado ao tronco da arvore. É por effeito d'esta posição que o dorso do gorilha macho tem o pêllo mais gasto que as outras partes do corpo, emquanto que o Tro- glodytes calvus habituado a dormir sobre um ramo e ao abrigo da folha- gem é lateralmente que se encontra desprovido de pêllo. Creio comtudo que se o macho dorme ao pé das arvores ou em qualquer outro logar. sobre a terra, a femea sobe de quando em quando com o filho aos ra- mos mais altos, porque algumas vezes encontrei signaes d'estas esca- ladas. «Os macacos que vivem habitualmente sobre as arvores, como o chimpanzé, teem os dedos das mãos e dos pés muito mais compridos que os do gorilha, que de preferencia se approximam das mãos e dos pés do homem; esta conformação torna os ultimos naturalmente menos proprios para treparem. Digamos de passagem que se os chimpanzés são muito numerosos nas regiões do Muni e do Gabão como o prova a quantidade d'elles ainda novos caçados pelos negros, eu nunca ahi en- contrei ninho d'elles, o que prova que o não construem e que o Nschie- gombouvi é o unico que tem esse instincto. . «O gorilha não vive em bandos; entre adultos quasi nunca encontrei juntos senão o macha e a femea, e algumas vezes mesmo aquelle vive só. N'este caso, semelhante ao elephante solitario, torna-se mais sombrio e mais mao do que nunca e approximarmo-nos delle é extre- mamente perigoso. Os novos gorilhas encontram-se às vezes até ao nu- mero de cinco juntos; algumas vezes encontrei menos, mas nunca mais. É difficil approximarmo-nos d'elles porque teem o ouvido fino e não per- dem tempo para fugir, emquanto que a natureza do terreno põe rudes obstaculos ao caçador. Salvam-se sempre, emittindo gritos de terror. O adulto é tambem muito ardiloso; aconteceu-me algumas vezes caçar um dia inteiro sem conseguir encontrar o meu inimigo, sabendo que elle me evitava cautelosamente. Comtudo se por fim a sorte colloca o caçador MAMIFEROS EM ESPECIAL 287 diante do animal, pode ter-se a certeza de que elle não fugirá. Quando surprehendia um casal de gorilhas, o macho estava de ordinario sentado num rochedo ou contra uma arvore no canto mais obscuro do cannavial, a femea comia ao lado d'elle e, o que é mais singular, era ella que dava sempre o alarme fugindo e soltando gritos agudos. «Então o macho ficando por um momento ainda sentado e enrugando a face selvagem, erguia-se depois lentamente sobre os pés e, lançando um olhar cheio de fogo sinistro aos que assim tentavam invadir-lhe o re- tiro, principiava a bater no peito, a mover a sua grande cabeça redonda e a soltar o seu rugido formidavel. O aspecto repellente do animal n'este momento, é impossivel descrever-se. Ao vêl-o, eu desculpava aos meus bravos caçadores indigenas que se deixassem invadir por terrores supers- ticiosos e não podia espantar-me já dos estranhos e maravilhosos contos que ácerca dos gorilhas circulavam.» O mesmo observador descreve o encontro que n'uma caçada teve com um gorilha, nos seguintes termos: «Em quanto nós marchavamos no meio de um silencio tal que se ouvia distinctamente a nossa respiração, na floresta resoou o grito terrivel do gorilha. «Depois os mattos affastaram-se de um e outro lado e de repente encontramo-nos em presença de um enorme gorilha macho. Tinha attra- vessado o mato sobre as quatro extremidades; logo porém que nos viu levantou-se a toda a altura e fitou-nos corajosamente de face, a quinze passos de distancia. Nunca esquecerei uma tal apparição. Devia ter perto de seis pés; o seu corpo era immenso, o peito monstruoso, os braços de uma incrivel energia muscular. Nos grandes olhos pardos e encovados deste gorilha havia um brilho selvagem e na face lia-se uma expressão diabolica. Assim appareceu diante de nós o rei das florestas d'Africa. «Não o atterrou a nossa presença. Mantinha-se ahi de pé, no mesmo logar, e batia no peito com os punhos enormes fazendo-o resoar como um tambor immenso; é o modo habitual por que desafia os inimigos. Ao mesmo tempo soltava rugido sobre rugido. «O rugido do gorilha é o som mais estranho e mais atterrador que se pode ouvir n'estas florestas. Principia por uma especie de uivar in- tercadente, como o de um cão irritado, depois transforma-se n'um ruido surdo que parece exactamente o troar: longinquo da tempestade e tanto que mais de uma vez fui tentado a crêr que trovejava quando ouvia este animal sem o vêr. A sonoridade d'este rugido é tão profunda que parece menos sahir da bocca e da larynge que das espaçosas cavidades do peito e do ventre. Os olhos brilhavam-lhe com uma chamma mais ar- dente emquanto nos conservavamos immoveis na defensiva. Os pêllos curtos do vertice da cabeça eriçavam-se e começavam a mover-se-lhe rapidamente, emquanto elle descobria os caninos poderosos, soltando no- 288 HISTORIA NATURAL vos rugidos trovejantes. E então vieram-me à lembrança estas visões dos sonhos, creações phantasticas, seres hybridos, meio homens, meio bestas, com que a imaginação dos nossos antigos pintores povoou as re- giões infernaes. Avançou alguns passos, depois parou para soltar o seu rugido espantoso; avançou em seguida uma vez ainda e parou de novo a dez passos de nós— então como recomeçasse a rugir e a bater no ig com furor, fizemos-lhe fogo e matamol-o. «O estertor da agonia tinha simultaneamente alguma coisa de bes- tial e de humano. Cahiu de face sobre a terra, o corpo tremeu-lhe con- vulsivamente por alguns minutos, os membros agitaram-se com esforço até que a immobilidade sobreveio; incontestavelmente estava morto. Tive então o prazer de examinar o enorme cadaver; media cinco pés e oito pollegadas e o desenvolvimento dos musculos dos braços e do peito at- testavam um vigor prodigioso. «É coisa assente entre todos os can que sabem do seu offi- cio, que é preciso reservar fogo até ao ultimo instante. Quer porque o animal furioso tome a detonação da arma por uma provocação ameaça- dora, quer por outra razão desconhecida, se o caçador atira e erra fogo, o gorilha lança-se sobre elle e é absolutamente impossivel resistir a este assalto terrivel. Uma só pancada do enorme pé armado de unhas, abre o ventre a um homem, parte-lhe o peito, ou fractura-lhe o craneo. Tem-se visto negros, n'uma tal situação, reduzidos ao desespero pelo terror, fazerem face ao gorilha e feril-o com a arma descarregada; mas sem que tenham tempo sequer para dar uma pancada inofensiva, o braço do inimigo cae sobre elles com todo o peso, partindo ao mesmo tempo a arma e o corpo dos desgraçados. «Eu creio que não existe animal cujo attaque seja tão fatal ao ho- mem pela razão mesma de que se colloca face a face diante delle, tendo os braços por armas offensivas, precisamente como um jogador de murro e só com a differença de que são elles mais compridos e de um vigor notavelmente maior que o do mais valente luctador. «Algumas vezes o gorilha senta-se para bater no peito e para rd fitando o adversario com furia; depois marcha bamboleando-se para a direita e para a esquerda, porque os membros posteriores que são muito curtos mal bastam a supportar a massa do enorme corpo. Sustenta O equilibrio balouçando os braços como os marinheiros na coberta dos na- vios; O largo ventre, a cabeça solidamente collocada sobre o tronco sem nenhuma ligação de pescoço, os grossos membros musculosos e o peito cavernoso, tudo isto lhe dá ao balouço do corpo um ar deselegante e re- pulsivo que vem juntar-se-lhe ao aspecto de ferocidade. Ao mesmo tempo os olhos pardos encovados nas orbitas dardejam raios sinistros, o rosto contrahido sulca-se de rugas temiveis e os labios, separando-se, deixam APARENTE EJA RO rd ia CORES DO ND E A E SRI Rn Vea A TESS o O e EP la o ERR MAMIFEROS EM ESPECIAL 289 vêr longos dentes e maxillas formidaveis entre as quaes os membros de um homem seriam triturados como um biscoito. «Quando um negro attaca um hippopotamo, de noite à beira d'agua, salva-se sempre dando um tiro. Mas se fez fogo sobre um gorilha, tem de esperal-o a pé firme, porque a fuga de nada serviria; se não é morto, fica muitas vezes mutilado para sempre. Vi negros n'estas condições nas aldeas circumvisinhas do Rio Superior. Felizmente o gorilha morre tão facilmente como um homem. Um golpe no peito, se é bem dirigido, aba- te-o immediatamente. Cae com a face para diante, os grandes braços abertos, expellindo com o ultimo suspiro um terrivel grito de morte, meio rugido, meio estertor, signal de que o perigo passou para O caça- dor e que resoa no entanto lugubremente ao nosso ouvido como o grito supremo de uma agonia humana.» ! O mesmo observador continuando no estudo dos costumes d'este animal, por tantos titulos interessante, diz: «O gorilha não marcha ge- ralmente sobre duas mãos, mas sobre quatro. N'esta posição o compri- mento dos membros anteriores faz apparecer a cabeça e o peito muito levantados; quando corre, os membros posteriores ficam-lhe debaixo do corpo. O braço e a perna do mesmo lado movem-se simultaneamente, 0 que dá ao animal uma marcha singular. Corre com velocidade extrema. Os pequenos gorilhas, que eu muitas vezes persegui, não se refugiam nas arvores, mas correm rastejando; a uma certa distancia, vistos de face atravez do matto com a cabeça e o corpo meio levantados, recor- dam bastante os negros procurando salvar-se. Os membros posteriores movem-se entre os de diante, que se dirigem um pouco para fóra. Nunca vi a femea attacar o caçador; no entanto disseram-me os negros que as mães quando teem comsigo os filhos, se batem ás vezes para defen- del-os. «b um: espectaculo verdadeiramente encantador o das mães acompa- nhadas pelos filhos que brincam com ella. Muitas vezes os espreitei nos bosques desejoso de matal-os para a minha collecção, mas por fim nunca tive animo de atirar-lhes. N'estas condições, os meus negros revelavam menos fraqueza; matavam-os sem perda de tempo. «Quando a mãe foge perseguida pelo caçador, o filho prende-se-lhe pelas mãos ao pescoço e suspende-se-lhe do seio passando-lhe as peque- ninas pernas em torno do corpo. «Bu creio que o gorilha adulto é completamente indomavel. Em todo 1 P. du Chaillu, Voyage et aventures dans V Afrique equatoriale, pg. 145 e se- guintes. 19 290 HISTORIA NATURAL o caso ignoro como poderia fazer-se a experiencia, porque me parece impossivel apanhar um gorilha vivo, depois de certa edade; o chimpanzé adulto, muito menos feroz, nunca pôde ser trazido ao captiveiro. «Quanto aos pequenos gorilhas, à excepção de um que foi apanhado quando ainda mamava (e era femea), durante o pouco tempo que esti- veram comigo até morrerem, nunca o tratamento que lhes dei, suave ou rude, conseguiu vencer a ferocidade natural e a malvadez tenaz d'estes pequenos monstros. O sentimento do captiveiro azeda-os sempre, como exuberantemente m'o provaram os que tive; recusam todo o ali- mento, excepto os fructos das suas florestas nataes; mordem, laceram com os dentes até mesmo aquelle que attentamente provê às suas neces- sidades; emfim morrem sem doença apparente e sem outra causa pro- vavel mais que o desespero sempre vivo de uma natureza que não Dos supportar nem o captiveiro nem a presença do homem. «O gorilha novo é escuro como o carvão. Tive mesmo um, peque- nissimo, que ainda não podia andar e que era de um negra “de aze- viche. «O poder muscular do gorilha corresponde, como vimos já, ao seu apparelho osseo. Os negros nunca o attacam senão com armas de fogo e onde, como no interior, estes instrumentos europeus não foram ainda introduzidos, entre os Apingis por exemplo, este animal erra sem que o inquietem, como monarcha absoluto das florestas. Matar um gorilha é uma heroicidade que dá ao caçador a reputação immortal de coragem e resolução, mesmo entre as tribus valentes dos negros, era in- trepidas na caça. «O gorilha não faz ouvir, que eu saiba pelo menos, quiri sons mais que aquelles de que já fallei, isto é, para o macho que attaca — um curto uivar agudo e um rugido, para a femea ou para o pequeno go- rilha atterrado —um grito agudo. Algumas vezes tambem a mãe vigilante chama por meio de um som especial de regougo o filho, que por vezes emitte um grito de soccorro, mais semelhante comtudo a um jeptas > de dôr que ao grito de um ser infantil. «O gorilha não emprega outras armas offensivas que não sejam os braços, apesar de que em mais de uma lucta os formidaveis dentes fo- ram provavelmente chamados a representar um papel. Notei, examinando algumas cabeças possuidas pelos indigenas, estarem os caninos parti- dos, em vez de simplesmente gastos, como na maior parte dos gorilhas acontece, por tentativas de partirem arvores que pelas dimensões lhes resistiram. Disseram-me os negros que estes dentes tinham sido quebra- dos n'um dos muitos combates que os gorilhas machos travam entre si para a posse da femea; crêmos a explicação muito provavel. Uma lucta “assim deve ser um espectaculo magnifico e terrivel; o combate de dois E MAMIFEROS EM ESPECIAL 291 gorilhas de força egual deve certamente exceder n'este genero de emo- “ções tudo quanto os Romanos imaginaram de recreativo.» ! DOMESTICIDADE Na citação que acabamos de fazer, foi dito que é absolutamente im- possivel reduzir os gorilhas à domesticidade. Os adultos não podem mesmo apanhar-se vivos; quanto aos novos, aos recemnascidos até, todos os esforços, todas as tentativas, ainda as mais pacientes e mais bem cal- culadas no sentido de os familiarisar com a nossa especie, são perfeita- mente jnuteis, baldados. A este proposito, continuaremos ainda citando Du u: «O dia 4 de maio foi assignalado para mim por uma enorme alegria. Alguns caçadores que à minha ordem tinham ido bater os bos- “ques, trouxeram-me n'esse dia um pequeno gorilha vivo. Não posso des- crever as emoções sentidas à vista d'esse animal que se debatia em- “quanto à força o conduziam para a aldêa. Este unico instante compen- sou-me largamente todas as fadigas e soffrimentos que tinha mouse tado em Africa. «Tinha dois ou trez annos, media dois pés e seis pollegadas; no entanto era tão feroz e tão indocil como se tivesse attingido já um pleno desenvolvimento. «Os meus caçadores, que tive vontade de abraçar, inidiidags n'um logar situado entre Rembo e o cabo de Santa Catharina. Segundo o que então me contaram, dirigiam-se em numero de cinco para uma aldêa perto da costa, attravessando sem ruido a floresta, quando ouviram um grito que logo reconheceram ser o de um pequeno gorilha chamando pela mãe. De resto, áquella hora, era meio-dia, reinava na floresta um grande silencio; decidiram-se então a caminhar para o lado d'onde par- tira o grito, que se fez ouvir uma segunda vez. Com as armas nas mãos deixaram-se escorregar sem ruido para um ponto em que o matto era. mais espesso e onde o pequeno gorilha devia encontrar-se, porque al- guns indicios lhes fizeram crêr não sómente que a mãe estava perto senão que o macho, certamente o mais temivel, devia andar tambem por Jogares proximos. No entanto, sabendo a alegria que necessariamente t Obr. cit., pg. 192. x 292 HISTORIA NATURAL deveria causar-me 0 captiveiro de um gorilha vivo, aquelles bravos ex- pozeram-se a todos os riscos para conseguil-o. «Então sentiram que as moitas se moviam e avançaram cileneioada como a morte, suspendendo a respiração. Passados instantes deparou- se-lhes um espectaculo perfeitamente raro, ainda mesmo para os indige- nas: dois gorilhas, mãe e filho, a pequena distancia um do outro co- miam, sentados, alguns grãos recentemente germinados. Decidiram-se então a attirar; o momento era opportuno, não havia um instante a per- der, porque na occasião mesma em que levantavam as armas, a femea descobriu-os. Felizmente empregaram os tiros, matando-a. «CGahiu. Ao ouvir a detonação, o pequeno gorilha precepitou-se para a mãe abraçando-lhe o corpo, unindo-se bem intimamente a ella, occul- tando-se-lhe sob os seios. Os caçadores não poderam conter um grito de triumpho; foi uma imprudencia este grito, porque, ao ouvil-o, o go- rilha, abandonando o corpo da mãe, trepou rapidamente aos mais ele- vados ramos de uma arvore proxima, onde se assentou soltano rugi- dos selvagens. «O embaraço dos caçadores foi grande então: se, por um lado, não desejavam de modo algum expôr-se às mordeduras do animal, não que- riam tambem, por outro, fazer-lhe fogo. Por fim lembraram-se de abater a arvore e com uma tanga envolver a cabeça do pequeno monstro para lhe deitarem a mão depois; este expediente não impediu que um dos meus homens fosse gravemente mordido n'uma das mãos e outro arra- nhado numa coixa. «Este animal, pequeno na estatura, é certo, e atrazado em edade, era todavia de um espantoso vigor e de uma furia indomavel. Como le- val-o, se não cessava de debater-se? Tomaram emfim a resolução de prendel-o pelo pescoço com uma forquilha, que ao mesmo tempo o im- pedia de fugir e o conservava a distancia. «Toda a aldêa se sobresaltou. O “animal, uma vez desembarcado da piroga onde no rio fizera um curto trajecto, começou a soltar gritos e rugidos. Os pequeninos olhos lançaram em torno vistas de ferocidade; facil era perceber que se podesse aproximar-se de alguem, lhe faria, “sentir vivamente os effeitos da colera. «Descobrindo que a forquilha o feria no pescoço, tratei de obter uma jaula. Em duas horas construiram-me uma, fortissima, de bambu, com as grades solidamente fixas mas bastante separadas para que o gorilha podesse vêr para fóra e ser visto tambem. Attiramol-o para dentro; pude então pela primeira vez gosar com tranquillidade o espectaculo da minha conquista. —Era um macho que, como dissemos, deveria ter perto de trez annos, apto já a marchar sósinho e dotado, em relação à edade, de uma força muscular espantosa. A face e as mãos eram completamente MAMIFEROS EM ESPECIAL 293 negras e os olhos menos encovados que os dos adultos. Os pêllos da ca- beça começavam precisamente ao nivel das sobrancelhas e elevavam-se até ao occiput, onde eram avermelhados, para descerem de novo aos dois lados da face até à maxilla inferior em linhas notavelmente seme- lhantes a suissas. Os labios eram cobertos de um pêllo aspero, pouco abundante e mais comprido no labio inferior; as palpebras eram muito finas, as sobrancelhas rectas e do comprimento de trez quartos de pol- legada. O pêllo do dorso de uma côr geral fuliginosa, tendia para o ne- gro nos braços e era completamente branco em torno do ourificio anal. O peito e o ventre eram tambem cobertos de pêllo, mas na primeira destas regiões menos abundante e mais curto. Nos braços, o pêllo mais comprido que em qualquer outra parte, parecia grisalho, o que de resto se explica pela circumstancia de ser negro à raiz e branco nas extremi- dades. Nos punhos e nas mãos, o pêllo era negro e descia ao longo dos dedos até à segunda phalange, o que no entanto era apenas a penugem precursora dos longos pêllos que no adulto cobrem toda a parte supe- rior dos dedos. Os pêllos das pernas eram grisalhos, como os dos braços, e escureciam à medida que se approximavam dos tornozelos; os dos pés eram negros. «Mal vi o meu pequeno companheiro bem fechado na jaula, appro- ximei-me para dizer-lhe palavras de consolação. Estava n'um canto, ao fundo; desde que me chegei à jaula porém, começou a rugir, lançando-se contra mim. Apgsar da grande rapidez com que me retirei, conseguiu lançar-me as unhas dos pés ás calças que me rasgou completamente; depois voltou para o seu canto. Este primeiro attaque tornou-me mais cauteloso, sem me tirar comtudo a esperança de domestical-o. Deitado ao fundo da jaula, revelava nos olhos pardacentos uma enorme malva- dez; nunca vi aspecto mais sinistro que o d'este pequeno animal. «À primeira coisa que me cumpria fazer, era certamente espiar as necessidades do prisioneiro. Mandei buscar à floresta os fructos que este animal prefere e colloquei-lh'os junctamente com um vaso d'agua ao seu alcance. Elle conservou-se porém em absoluta reserva, recusando-se a tocar em qualquer coisa emquanto me não vio affastado a uma distancia consideravel. «No segundo dia encontrei Joê—fôra este o nome que lhe dei, mais feroz ainda que no primeiro. Atirava-se dando gritos e urros selva- gens a quantos se approximavam da jaula, parecendo disposto a fazer- nos pedaços. Atirei-lhe n'esse dia para dentro da jaula folhas de ananás e notei que elle apenas lhes utilisava as partes brancas. De resto, pare- cia gozar de bom appetite, embora até à morte, que se não fez esperar muito, recusasse constantemente todo o alimento que não fosse as folhas ou fructos da floresta natal. 294 HISTORIA NATURAL «Ao terceiro dia, mais do que nunca, parecia sombrio e selvagem; desde que alguem se approximava da jaula, não cessava de gritar, ora arremettendo furiosamente contra as grades da prisão, ora recolhen- do-se ao seu canto. No quarto dia, quando todos estavam ausentes, conse- guiu arrancar uma das grades da jaula e fugir. Chegava eu a casa pre- cisamente no momento em que acabava de dar-se pela fuga; immedia- tamente enviei todos os negros a cercarem a floresta para me recon- duzirem a casa o fugitivo. Mas como voltasse ao meu quarto para buscar uma arma, ouvi um ronco ameaçador que partia debaixo da minha cama, Immediatamente fechei as janellas e chamei os meus homens para que guardassem a porta. Quando Joê fitou todos estes rostos negros, ficou desesperado; e revelando toda a furia que o dominava pelo olhar faiscante, pelas contracções musculares da face e de todo o corpo, sahiu emfim do seu escondrijo. Sahimos então fechando a porta sobre elle e deixamol-o senhor da sala, porque preferimos ir combinar um plano qualquer para tornar a apanhal-o com segurança a expormo-nos áquelles dentes. «Mas como conseguiriamos prendel-o de novo? Tal era a dificuldade. Revelára já tanta força e tamanha furia que me faltava inteiramente a von- tade de deixar-me morder numa lucta braço a braço. Joê no entretanto conserva-se no meio do quarto, espiando os inimigos de fóra e observando não sem algum espanto os objectos que o cercavam. Receiava eu muito que o bater do meu relogio excitasse novamente o furor delle contra este traste precioso. Deixal-o-hia certamente em plena posse do quarto se não fosse o receio de que me destruisse alguns objectos de elevado preço e muito curiosos, que pelas paredes se encontravam suspensos. | «Por fim, vendo-o um pouco socegado, mandei buscar uma rede que lhe atirei atravez da porta à cabeça com tamanha felicidade que desde logo podemos enleiar aquelle malvado que dava gritos, debaten- do-se, e atirava pontapés em todas as direcções. Apanhando-o d'esta forma, eu suspendi-o pela nuca, dois homens pelos braços e um ter- ceiro pelas pernas; ainda assim, preso por quatro homens, deu-nos que fazer o extraordinario animal. Sem perda de tempo remettemol-o à jaula préviamente concertada e fechamol-o de novo. «Nunca em minha vida vi animal tão furioso. Atirava-se contra quantos se approximavam d'elle, mordia nas grades da prisão, lançava- nos olhares coruscantes e sinistros, revelava emfim em cada um dos seus movimentos uma natureza feroz e intratavel. «Nos dois dias seguintes não houve mudança alguma; aquella fero- cidade não se calmava. Tentei vêr então se pelo jejum domava tamanha violencia; demais, dava um immenso trabalho ir buscar os alimentos à floresta e era preciso habitual-o às substancias menos selvagens que lhe MAMIFEROS EM ESPECIAL 295 iamos dando. O certo porém é que não tocava em nada e que ao fim de um jejum de vinte e quatro horas, o mais que eu tinha conseguido era que elle viesse lentamente, de má vontade, buscar à minha mão os fru- ctos das florestas para ir devoral-os depois ao seu canto. «O estudo paciente a que durante quinze dias me entreguei, não me deu mais esperanças; rugia sempre que eu me approximava e só aguilhoado pela fome consentia em vir buscar á minha mão os alimen- tos, mas ainda assim só os de sua preferencia, nunca outros. «Uma vez que, ao fim de quinze dias, eu ia levar-lhe de comer, des- cobri que uma grade da jaula tinha sido triturada e que o gorilha esca- para de novo. Felizmente não estava longe; olhando em volta, vi Joê que corria sobre os quatro membros com uma desesperada velocidade na direcção das arvores atravez de um pequeno prado. «Chamei os meus homens para que lhe dessem caça. Logo que nos viu e antes que fosse possivel alcançal-o, começou a correr na direcção d'outras arvores. Cercamol-o; elle porém em vez de trepar, conser- vou-se desconfiado à beira do pequeno bosque. Cento e cincoenta pes- soas, pouco mais ou menos, avançaram formando-lhe circulo na inten- ção de apertal-o pouco e pouco; elle então começou a rugir furiosa- mente lançando-se ao mesmo tempo contra um pobre diabo que estava na frente e que de mêdo cahiu por terra. Esta queda, preseverando 0 homem e embaraçando Joê, consentiu que lhe lançassemos redes já tra- zidas de proposito. «Quatro dos nossos homens o reconduziram à aldêa sem que elle ces-. sasse de debater-se. D'esta vez, não confiando na jaula, lancei-lhe uma pequena corrente em torno do pescoço. Resistiu a esta operação tão vio- lentamente que não gastamos menos de uma hora em prender solidamente este pequeno animal em cuja força havia alguma coisa de prodigioso. «Dez dias depois morreu subitamente, apesar de parecer que go- sava de uma boa saude e de comer abundantemente os alimentos ordi- narios que lhe davamos todos os dias. «A morte fez-se acompanhar de alguns soffrimentos. Até ao fim po- rém, nunca deixou de mostrar-se indomavel, junctando, desde o dia em que o acorrentamos, a astucia a todos os outros vicios naturaes. Era assim que muitas vezes, vindo buscar o alimento à minha mão, me fitava bem de face para prender-me a attenção, aproveitando o momento para como pé me ferir a perna. Muitas vezes tambem me teria rasgado com- pletamente as calças, se a tempo me não retirasse. Emfim vi-me obri- gado a tomar infinitas precauções para d'elle me approximar. Os negros não podiam passar-lhe por diante sem que se se enfurecesse. Por fim re- conhecia-me, não me tinha mêdo, mas era evidente para todos que nu- tria o desejo de se vingar de mim. 296 HISTORIA NATURAL «Quando o acorrentei, enchi de feno uma meia pipa para servir-lhe de cama. Comprehendeu desde logo o uso d'aquella peça; era um pra- zer vêl-o mecher o conteúdo da pipa e aconchegar-se n'aquelle ninho quando se sentia fatigado. Logo que a noite descia, agitava muito o feno, apanhava alguns braçados com que se cobria e enrolava-se bem para dormir.» * | Depois da decepção que, como naturalista e colleccionador, soffreu com a perda d'este pequeno gorilha, Du Chaillu procurou mais tarde um outro, femea. «l'esta vez, escreve o illustre explorador, tomei uma parte pessoal na captura. Caminhavamos silenciosamente, quando ouvi um grito e de repente deparei com uma femea trazendo suspenso do seio um pequeno gorilha que aleitava. A mãe acariciava e cobria com um olhar cheio de ternura o filho. Este quadro tão gracioso e ao mesmo tempo tão commovedor fez-me pensar por um momento que deveria dei- xal-os em paz. Em quanto vacillava porém, um dos meus caçadores fez fogo sobre a mãe que immediatamente cahiu morta. «O filho sobreviveu, ficando preso à mãe e tentando por gritos com- moventes attrahir-lhe a attenção. Avancei; O animalsinho ao vêr-me es- condeu a cabeça no seio materno. Ainda não podia marchar nem morder, pelo que foi facil assenhorear-me delle. Conduzi-o eu mesmo, emquanto os negros se occupavam da mãe, que suspenderam n'um pau. Chegados à aldêa, fomos testemunhas de uma nova scena: depoz-se o corpo da femea em terra; o pequeno gorilha ao vêr a mãe arrastou-se para ella lançando-se-lhe sobre o seio. Como não encontrasse porém, o costumado alimento, eu vi que começava a suspeitar a dura verdade. Então rolou ao longo do corpo materno e farejou-o, deixando escapar de instante a ins- tante um grito pungitivo, que, mao grado meu, me commovia. «Procurei inutilmente leite para o pequeno animal que não podia ainda comer, e que morreu ao terceiro dia de captiveiro. Pareceu-me de uma natureza mais docil que a do primeiro, porque reconhecia já a minha voz e procurava, sempre que me via, mover-se para o meu lado.» 2 1 P. du Chaillu, Obr. cit., pg. 375 e E 2 Ibidem. MAMIFEROS EM ESPECIAL 297 a USOS E PRODUCTOS Alguns indigenas do interior d'Africa dão um grande apreço à carne do gorilha, extremamente vermelha e, de resto, bem pouco appetitosa, attenta a sua dureza coriacea. As tribus das costas e mesmo algumas familias de negros do interior, repellem absolutamente este alimento, porque uma velha superstição religiosa os faz crêr que os gorilhas são verdadeiros homens que erram pelas florestas, receiosos de cahirem em escravidão. Pensam mesmo algumas tribus que as almas dos seus reis habitam os corpos dos gorilhas. A pele, que tem a espessura do coiro do boi, é no entanto mais tenra que a de qualquer outro macaco. As tribus que utilisam a carne - do gorilha, aproveitam-se tambem da pelle nos usos ordinarios para que “esta parte do corpo costuma servir. ad DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA sue Os trilhas habitam, refere Brehm, as regiões da costa occidental “da Africa, ommpélicndidas entre o pintados e o decimo ou decimo quinto -grao de latitude e atravessadas pelo Gabão. - O facto de se ignorar quasi completamente a existencia do gorilha, antes de Savage, deriva provavelmente da circunstancia de viver este “am quadrumano no interior das florestas não se approximando nunca das E costas. 298 HISTORIA NATURAL O CHIMPANZÊ Tem-se discutido largamente sobre qual dos quadrumanos, o gorilha ou O chimpanzé, se approxima mais da nossa especie. L. Figuier crê que seja este ultimo. «De todos os macacos conhecidos, escreve este natura- lista, o chimpanzé é certamente o que pelos modos, pela organisação anatomica e pela vivacidade de intelligencia mais proximo se encontra da especie humana.» t As provas aduzidas pelo escriptor francez resu- mem-se n'isto: que de todos os macacos anthropomorphos é o chimpanzé o que tem os braços mais curtos e o que possue as mãos e os pés mais semelhantes, pela sua perfeição, aos do homem. Isidoro Geoffroy Saint- Hilaire e Wymann são de egual parecer. Paulo du Chaillu e Ricardo Owen pensam, pelo contrario, que a especie mais proxima da nossa é a do gorilha. O ultimo d'estes naturalistas diz: «É preciso confessar que à primeira vista, a julgar pelo individuo vivo e pelo craneo, o gorilha offerece em todos os seus traços alguma coisa de mais bestial que o chimpanzé ou o orango. Todos os caracteres do gorilha, do macho sobre- tudo, são extremamente exagerados: a cabeça é mais comprida e mais estreita, o cerebro tem uma situação posterior, as cristas craneanas são enormes, as maxillas muito salientes e de uma força prodigiosa, os ca- ninos muito grossos. À cavidade do cerebro faz-se notar por um desen- volvimento prodigioso das cristas occipitaes; o resto porém do esqueleto do gorilha approxima-se muito mais do esqueleto do homem que do de qualquer outro macaco. Depois de ter estudado bem os caracteres zoolo- gicos que acabo de' mencionar, depois de ter observado o genero de vida do gorilha e o seu systema de marcha convenci-me de que este quadrumano por todos os seus modos se approxima mais da especie humana que todos os seus congéneres.» 2 O chimpanzé é muito mais pequeno que o gorilha; na edade adulta póde comtudo attingir metro e meio ou mais. O corpo é volumoso, por- que o abdomen faz saliencia anterior; a cabeça é grande e alongada, a fronte inclinada, as orelhas semelhantes às do homem, mas maiores, 0 na- riz mais curto e achatado que no gorilha, os labios finos e de uma grande 1 L. Figuier, Les Mamiftres, pg. 591. 2 Citado por Figuier, Obr. cit., pg. 589. E = 1 qem +, MAMIFEROS EM ESPECIAL 299 mobilidade, os braços delgados, mas vigorosos, as mãos de grandeza media armadas de unhas chatas, o pêllo grosso e longo, geralmente ne- gro e cobrindo todo o corpo, à excepção da pao da mão e da parte anterior do rosto. O chimpanzé não apresenta nunca o aspecto feroz do gorilha; é no- tavelmente mais docil e sensivel. De todos os macacos anthropomorphos é aquelle cujo cerebro mais se assemelha pelo seu desenvolvimento ao do homem; tambem, passa por ser o mais intelligente do grupo dos an- thropomorphos. COSTUMES “É extremamente sociavel este quadrumano. Vive em grandes ban- dio; : de noite pelas florestas ouvem-se distinctamente os gritos d'estas sociedades errantes. Os chimpanzés marcham como o gorilha sobre quatro extremidades; o habito de trepar às arvores dá-lhes às mãos anteriores uma flexão tão pronunciada que ao andar não pezam sobre a face palmar, como pode- ria parecer, mas sobre a dorsal. Ás vezes, poucas vezes, marcham na attitude erecta como o homem; então para manterem melhor o equili- brio cruzam as mãos anteriores sobre a cabeça ou sobre o dorso; não manteem nunca esta posição por muito tempo e ao menor ruido que es- cutem, retomam a posição horisontal que lhes é a mais commoda e tam- bem a mais vulgar. Disse-se muito tempo que o chimpanzé vivia habitualmente sobre as arvores; é menos exacta tal asserção. O chimpanzé, especialmente o adulto, vive quasi sempre sobre o solo, subindo ás arvores só quando carece de procurar fructos ou de evitar algum perigo. No entanto são, sem contestação, magnificos trepadores e na edade infantil é, no dizer «de todos os naturalistas, um espectaculo verdadeiramente curioso vêl-os Saltar agilmente de ramo em ramo, expansivos, galhofeiros, soltando gri- tos de viva alegria. Segundo as narrações de Savage, cujo nome recordamos já fallando dos gorilhas, o chimpanzé evita cautelosamente os logares habitados pe- los homens e construe as suas moradas em forma de ninho com ramos partidos sobre o solo ou sobre as arvores a pequena altura geralmente. É raro sobre a mesma arvore encontrar-se mais do* que um ninho; só muito excepcionalmente conseguiram alguns viajantes encontrar cinco. 300 HISTORIA NATURAL Estamos pois, em face d'estas informações que são as exactas, porque foram colhidas directamente e de visu, muito longe das pretendidas 7o- voações de gorilhas erroneamente nomeadas por alguns naturalistas me- nos conscienciosos. As substancias de que se nutrem os chimpanzés são quasi as mes- mas de que fazem uso os gorilhas; fructos, nozes e raizes constituem para o chimpanzé a base da alimentação. A escassez dos fructos obriga-o muitas vezes a mudar de logar, levando uma vida errante por largo tempo ás vezes. O que sobre a vida social dos bandos dissemos ao fallar dos qua- drumanos em geral, é perfeitamente applicavel aos chimpanzés. A orga- nisação dos seus grupos, por vezes numerosos; é a que então foi des- cripta. Os chimpanzés são uns animaes robustissimos. Os indigenas africa- nos aflirmam que um só é capaz de partir um ramo d'arvore que dois homens dificilmente conseguem vergar. No entanto não usam d'esta vantagem contra nós, senão quando attacados. Nas caçadas que se lhes fazem o momento do attaque é, segundo o testemunho dos viajantes eu- ropeus, perfeitamente curioso. O chefe do bando solta um grito que sin- gularmente se assemelha ao do homem em perigo de vida; ao ouvil-o, os outros trepam com extraordinaria rapidez ao cimo das arvores e co- meçam então a gritar tambem de um modo que recorda o uivar dos cães. Desde que o caçador mata um dos membros do bando começa o combate: os machos saltam então sobre elle, seguindo-o, se foge, até que possam lançar-lhe os dentes e apertal-o entre os braços musculosos e formidaveis; as femeas e os menos robustos conservam-se sobre as ar- vores d'onde comtudo tomam parte tambem no attaque, lançando de longe sobre o inimigo pedras, fructos e pedaços de ramos partidos. Durante a lucta, em que o homem é vencido se lhe escasseia o fogo, ouve-se um ruido atroador na floresta; os rugidos dos adultos casando-se aos gritos agudos e afflictivos dos filhos acordam todos os echos, tornando o com- bate por ventura mais pavoroso. Entre os membros do bando reina a maior fraternidade, evidenciada em toda a plenitude na hora do perigo. O amor dos machos pelas fe- meas e a dedicação d'estas pelos filhos tornou-se de ha muito prover- bial. MAMIFEROS EM ESPECIAL 301 DOMESTICIDADE “Como n'outro logar foi dito, não se tem conseguido até hoje apa- nhar vivo um chimpanzé adulto. Em compensação tem-se trazido ao ca- ptiveiro um grande numero d'elles nas primeiras edades. Á Europa teem sido conduzidos pelos viajantes alguns, que todavia por effeito do clima “não conseguem viver senão um tempo muito curto. Observações numerosas demonstram que o chimpanzé se familiarisa rapidamente com o homem tornando-se-lhe muito util e revelando uma docilidade e uma intelligencia notaveis. | Brehm conta a historia de uma femea que o capitão Grand conduzia a bordo com destino à America, em termos que julgamos dever citar. «Ti- nha-se-lhe ensinado, escreve o naturalista allemão, a aquecer o forno e ella cumpria a obrigação com aprazimento de todos; tomava todas as pre- cauções para que os carvões incandescentes não cahissem ao chão e re- conhecia admiravelmente quando o calor do forno tinha attingido o grao desejado. Então ia immediatamante advertir, por signaes os mais expres- sivos, o padeiro; este confiava por tal forma no ajudante que nem já vi- giava o lume. Executava tambem as obrigações de um marinheiro, com presteza e com intelligencia; levantava o cabo da amarra, colhia as velas, ligava-as solidamente, trabalhava emfim por modo que os marinheiros acabaram por consideral-a um companheiro. Infelizmente este magnifico animal morreu antes de chegar á America por causa dos maus tratos do piloto, que se não movia ás supplicas do pobre quadrumano de mãos er- guidas, e continuou sempre na costumada crueza. O animal então recusou os alimentos morrendo de fome e dôr. A tripulação chorou como se ti- vesse morrido um companheiro.» ! O mesmo naturalista conta de dois chimpanzés, macho e femea, trazidos por Brosse à Europa: «Sentavam-se à meza como homens, comiam de tudo, serviam-se da faca, da colher e do garfo. Ingeriam todas as bebidas usuaes do homem, sobretudo o vinho e a agua-ardente por que manifestavam decidida preferencia. Quando precisavam de qualquer coisa chamavam os marinheiros, impacienta- vam-se se havia da parte d'elles uma recusa, prendiam-os pelos braços, mordiam-lhes e atiravam-os por terra. O macho achando-se doente um 1! Brehm, Obr. cit., pg. 28. 302 HISTORIA NATURAL dia, foi sangrado pelo medico de bordo; desde então, todas as vezes que se sentia indisposto, estendia o braço ao facultativo.» * Buffon, no meiado do seculo passado, teve comsigo um chimpanzé que lhe servia de creado. Era tão intelligente e tão sollicito no cumpri- mento dos seus serviços que o menor signal do naturalista francez bas- tava para que immediatamente fizesse o que era preciso. Comia à meza com distincção e era elle que recebia os que visitavam Buffon condu- zindo-os attenciosamente pelo braço à presença do escriptor. Os por deste chamavam ao chimpanzé —o criado. O Dr. Traill, que levou para Inglaterra um chimpanzé muito intel gente, conta que mostrando-lhe um dia um espelho, o animal contem- plára a imagem com as mais profundas demonstrações de reflexão, olhando fixamente a superficie, andando em volta do vidro, apalpando-o com as mãos, finalmente executando todos os actos que ainda hoje exe- cutam os selvagens quando pela primeira vez se defrontam com tal objecto. Quando se lhes satisfazem todos os desejos tornam-se umas verda- deiras creanças amimadas; se um dia se lhes recusa qualquer objecto que appetecem, gritam, batem com a cabeça pelas paredes, atiram-se ao chão, exasperam-se, mas não mordem, nem attacam as pessoas com quem estão familiarisados. Geralmente o chimpanzé tem nos paizes da Europa uma existencia bem curta. No fim de um ou dois annos, o maximo, succumbe à tuber- culose pulmonar, cujos primeiros symptomas se revelam desde que chega aos nossos climas. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Vive exclusivamente na Guiné, habitando as costas do mar ou as grandes florestas nos valles que os rios attravessam. + 1 Thid., pg. 29. lei À A cn A ii da ii DS e SA E Ao O NA MAMIFEROS EM ESPECIAL 303 USOS E PRODUCTOS Além dos serviços que pode, uma vez domesticado, prestar ao ho- mem como creado, o chimpanzé tem ainda a carne e a pelle de que é possivel tirar uma certa utilidade na alimentação e na fabricação de obje- ctos de uso commum. Os negros indigenas apesar de respeitarem estes macacos como primos e de os considerarem como homens decahidos, uti- lisam-lhes a carne todas as vezes que conseguem matal-os nas caçadas. O ORANGO-TANGO É este macaco conhecido desde a mais alta antiguidade. Plinio le- gou-nos delle a seguinte descripção: «É animal muito mao, de rosto humano, marchando ora de pé, ora sobre quatro extremidades e que corre com tão grande velocidade que é impossivel alcançal-o, a não ser quando doente ou muito velho.» Os naturalistas que vieram depois de Plinio fundaram-se sobre este " esboço incompletissimo, acrescentando-o sempre de um modo inconsciente e tornando assim a historia d'este animal quasi fabulosa. De resto os via- jantes teem em todos-os tempos importado à Europa descripções phan- tasticas que lhes referem os indigenas, desejosos de vender os seus orangos pelo maior preço possivel Hoje felizmente possuimos descripções exactas, dádás por naturalis- tas que de perto observaram estes curiosos quadrumanos. Comecemos por distinguir entre si os orangos de Africa e os de Asia, chamados tambem Pongos. Estes ultimos teem os braços extrema- mente longos, descendo até aos maléolos, a cabeça pyramidal ou conica e o rosto saliente, o que, como observa Brehm, lhes tira, especialmente depois de velhos, toda a analogia com o homem. Em quanto novos, o 304 HISTORIA NATURAL seu craneo assemelha-se ao das creanças; os progressos da edade modi- ficam-lhe porém a forma primitiva do modo mais profundo. O orango-tango asiatico chega a attingir na edade adulta a altura de seis pés. O corpo é largo na região renal, o abdomen extremamente saliente, o pescoço é curto e a larynge de paredes molles e extrema- mente dilataveis; as unhas são chatas e faltam nos pollegares e nas mãos posteriores. O orango asiatico tem poderosos e longos caninos fa- zendo saliencia no meio de todos os outros dentes e o maxillar inferior mais longo que o superior; os labios são dilatados, o nariz achatado, os olhos e as orelhas pequenas e de configuração analoga à de orgãos iden- ticos no homem. Os pêllos que são raros no dorso e no peito, tornam-se abundantes nas partes lateraes do corpo; a côr d'elles é fuliginosa ou negra, excepto no rosto onde formam barba que offerece uma cambiante mais clara. No macho notam-se calosidades dispostas em forma de cres- centes sobre as faces desde os olhos até ás orelhas e sobre toda a ma- xilla superior, o que lhes imprime um repellente caracter de fealdade. COSTUMES Os orangos não vivem, como os chimpanzés, em bandos; apenas as femeas e os mais novos d'estes quadrumanos se encontram em socieda- des, de resto, pouco numerosas. A extensão desmesurada dos membros inferiores, torna-lhes a mar- cha dificil e pesada; ao mesmo tempo as mãos como orgãos admiravel- mente conformados para trepar, impoem a estes animaes a vida das ar- vores especialmente nas primeiras edades. Quando marcham, susten- tam-se sobre as mãos em flexão, fechadas. Nunca se servem de duas ex- tremidades só. Desde as primeiras edades revelam extrema prudencia, que succes- sivamente vae augmentando com os annos. Trepam pesadamente, pas- sando de ramo em ramo sem os saltos audaciosos d'outros macacos. No cimo das arvores encontram tudo aquillo de que carecem: fru- ctos, flôres, folhas, cascas, grãos, insectos e ovos, o que no estado de liberdade constitue a alimentação d'estes macacos. Geralmente escolhem de preferencia as partes baixas das florestas virgens para passarem a noite e os cimos das arvores frondosas para se preserverarem da chuva e do vento. Sendo as plantas parasitas que vivem sobre os ramos das arvores, um dos seus alimentos favoritos, os orango-tangos beneficiam extraordinariamente a vegetação luxuriante das florestas. = e ES Ed fd dc ig a qe 4 MAMIFEROS EM ESPECIAL 305 Construem como habitação, sobre as arvores, a quinze ou vinte pés acima do solo, ninhos que se assemelham aos das grandes aves de preza. O material de construcção fornecem-o as arvores; são grossos ra- mos partidos e outros mais delgados e mais debeis cobertos de folhas tenras e macias. Mao grado a sua indiscutivel docilidade de caracter, o orango-tango não é cobarde, não receia o homem, como vamos vêr. A CAÇA E OS COMBATES Quando se sente perseguido, o orango-tango evita systematicamente a lucta, fugindo, trepando ao cimo das arvores e occultando-se sob a fo- lhagem, não por movimentos rapidos, desordenados, mas de um modo seguro, cauteloso, calculado emfim. Se uma balla ou uma frecha do ini- migo o attinge, principia por soltar gritos atroadores e por quebrar ra- mos cujos fragmentos atira ao caçador na intenção provavel de fazel-o desistir do combate. Até aqui parece que nos defrontamos sómente com provas da mais cobarde timidez. O que porém nos convence de que todos estes movimen- tos de defeza são apenas a expressão da prudencia e não do mêdo, é que o pongo uma vez attacado de perto, face a face, fita o inimigo com serenidade, não recua um momento e lucta com extremada valentia. Nestes combates, como o gorilha e como o chimpanzé, serve-se dos bra- ços, que são musculosos e dos dentes, que são fortes e terriveis. Ba- te-se peito a peito e, se o homem não tem comsigo uma arma de fogo ou um instrumento cortante de que saiba usar certeiramente, a victoria do orango é certa, ou se sirva simplesmente dos braços apertando-o, partindo-lhe os ossos ou se utilise dos dentes espetando-os, como settas, nas carnes do inimigo. Assim, comprehende-se isto facilmente, o pongo adulto nunca pôde trazer-se ao captiveiro; em compensação apanham-se muito simplesmente, sem esforço, os novos. 20 306 HISTORIA NATURAL DOMESTICIDADE Reduzem-se facilmente os orangos ao estado de domesticidade, em que parecem achar-se tão bem como os chimpanzés. Teem uma notavel intelligencia e um desenvolvido espirito de imitação que rapidamente permitte adaptal-os às condições sociaes do homem. (Como não ha nºel- les ferocidade a vencer e como pela conformação das mãos se permittem trabalhos complicados e delicadissimos, não é preciso para os educar nenhum dos esforços. que outros animaes reclamam; para ensinar-lhes “qualquer acto nem mesmo é necessario usar da força, castigando-os — basta executal-o diante d'elles para que rapidamente o imitem. É por isso que se tem visto orangos preenchendo dentro de uma casa ou à bordo de um navio todas as funcções de um creado intelligente e cui- dadoso. Bosmaern, observador hollandez, possuiu por muito tempo uma fe- mea, da qual diz que nos usos domesticos representava um papel quasi humano. Nunca este animal revelou o mais ligeiro symptoma de maldade; se o contrariavam, limitava-se a emittir gritos de afflicção, verdadeiras supplicas commoventes, sem que uma unica vez lhe occorresse tirar uma vingança. De resto, habituára-se inteiramente á sociedade humana, tendo uma alimentação egual à nossa e apropriando-se de alguns usos reveladores de adiantado aperfeiçoamento. Servia-se de roupas contra os rigores do clima e.quando bebia enxugava sempre os labios à ma- neira da gente que se preza. Vamos transladar para aqui passagens de trez observações minucio- sas, uma de F. Cuvier sobre um orango femea que viveu durante um mez em Paris no anno de 1808, outra do Dr. Abel Clark, naturalista que estudou um orango de Borneo transportado à Inglaterra, onde viveu desde Agosto de 1817 até Abril de 1819, e finalmente uma, colhida pelo capi- tão Smitt a bordo de um navio allemão, ácerca de um individuo que pôde estudar durante trez mezes consecutivos. O orango-tango estudado em Paris por F. Cuvier, tinha dez mezes. D'elle escreve o illustre naturalista: «Este animal empregava as mãos precisamente como em geral empregamos as nossas; via-se bem que apenas lhe faltava a experiencia para d'ellas fazer o uso que nós faze- mos em certos casos especiaes. Quasi sempre levava os alimentos à bocca com as mãos; algumas vezes porém, tambem os apanhava com os labios que eram compridos. Bebia sorvendo, como o fazem todos os animaes A E io SR É Tr ni DÁ MAMIFEROS EM ESPECIAL 307 cujos labios podem distender-se. Servia-se do olfato para julgar da na- tureza dos alimentos para elle desconhecidos, que lhe apresentavam, pa- recendo consultar cuidadosamente este sentido. Comia indistinctamente fructos, legumes, ovos, leite ou carne, gostava extraordinariamente de pão, de café e de laranjas, e uma vez bebeu, sem que isso lhe causasse incommodo, toda a tinta de um vaso que apanhou à mão. Não tinha nas refeições a minima regularidade; comia sem inconveniente a todas as horas, como as creanças. À vista e o ouvido eram n'elle excellentes. «Houve um dia a curiosidade de saber que impressão lhe produzi- ria a musica; como se deveria esperar, foi nulla: a musica é uma ne- cessidade creada pela civilisação e que mesmo para o homem selvagem não passa de ruido. «Para defender-se, o nosso orango-tango mordia e batia com as mãos; só para as creanças revelava uma certa hostilidade, effeito antes de im- paciencia que de colera. Em geral era docil, affectuoso, inclinado a viver em sociedade, gostando das caricias e retribuindo-as com verdadeiros beijos. Os seus gritos, que eram gutturaes e agudos, nunca os fazia ou- vir senão quando vivamente desejava alguma coisa. Então todos os si- gnaes que empregava, eram expressivos: sacudia a cabeça para mani- festar desapprovação, amuava quando lhe desobedeciam e, se se enco- lerisava, dava gritos intensos e rolava-se por terra. Nestas occasiões 0 pescoço dilatava-se-lhe de um modo notavel. «As fadigas de uma longa viagem por mar e sobretudo o frio que experimentou attravessando os Pyrineos na estação das neves, deteriora- ram consideravelmente a saude d'este animal; quando chegou a Paris tinha alguns dedos gelados e vinha acommetido de uma febre hectica vio- lenta. A despeito de todos os cuidados, foi impossivel salval-o; ao cabo de cinco mezes de constante soffrimento, morreu. «A natureza dotou os orango-tangos de meios muito insignificantes de defeza. É este animal, depois do homem, talvez o que encontra me- nores recursos contra os perigos; possue porém, e n'isto é-nos supe- rior, uma extrema facilidade em trepar ás arvores, fugindo assim dos inimigos que não póde combater. Estas considerações só por si bastam a fazer presumir que a natureza dotou o orango-tango da maxima circumspecção. E com effeito, no que possui a prudencia revelava-se em todos os actos, especialmente nos que tinham por fim subtrahil-o a qualquer perigo. Comtudo, devo advertil-o a vida pacifica e tranquilla que passou sob o meu dominio e a impossibilidade de o submetter, no estado de fraqueza em que se achava, a experiencias rigorosas, impe- diram-me de multiplicar n'este sentido as minhas observações; as que sobre elle fez porém Dacaen durante a viagem da Ilha de França até à Europa, permittem-nos dar uma idéa suflicientemente exacta das faculda- E 308 HISTORIA NATURAL des naturaes d'este animal. Durante os primeiros dias de embarque, este orango manifestava a maxima desconfiança sobre os seus proprios recur- sos, ou antes, porque não conhecia a causa do balanço do navio, exage- rava-lhe os perigos. Não caminhava nunca sem se apegar fortemente a cordas ou quaesquer outros objectos que o sustentassem; recusou per- tinazmente por muito tempo subir aos mastros, mao grado todas as sol- licitações que n'este sentido lhe eram feitas pelos tripulantes e só acce- deu por um motivo de affeição, sentimento que a natureza parece ter largamente dispensado a estes animaes e de que o nosso orango parecia | experimentar constantemente os effeitos. É talvez esta emoção que conduz os pongos a viverem em sociedade e a defenderem-se mutuamente quando um perigo os attaca, como, de resto, fazem todos os animaes que natu- ralmente vivem reunidos. Devo advertir porém, que o nosso orango não teve coragem de trepar aos mastros, senão depois que Decaen, seu dono, - trepou tambem; o orango seguiu-o e desde esse momento principiou a trepar sósinho todas as vezes que sentia desejos de fazel-o. Uma expe- riencia feliz déra-lhe confiança nas proprias forças; por isso a repetia. «Os meios empregados pelos orango-tangos para se defenderem são geralmente os communs a todos os timidos: a astucia e a prudencia; tudo annuncia porém n'estes animaes uma força de reflexão que os outros não teem e que elles empregam admiravelmente todas as vezes que é neces- sario affastar inimigos poderosos. O nosso orango, que vivia em liber- dade, tinha o costume de se transportar, nos dias bons, ao jardim onde encontrava um ar puro e os meios de se permittir alguns movimentos ; trepava então às arvores e gostava de conservar-se sentado entre os ramos. Um dia que estava assim empoleirado, simulou-se querer apa- nhal-o; logo que sentiu isto agarrou-se aos ramos tenazmente abanando-os com violencia na intenção provavel de atterrar a pessoa que fingia su- bir. Desde que esta se retirava, cessava o animal de agitar a arvore, para recomeçar comtudo logo que de novo se simulava uma agressão; os gestos de que então acompanhava o acto, demonstravam bem eviden- temente a todos que a intenção do animal era desviar o perseguidor pelo receio de uma queda ou talvez mesmo impondo-lhe uma queda bem real. A experiencia muitas vezes repetida conduziu sempre aos mesmos resultados. : «Muitas vezes fatigava-se das numerosas visitas que lhe faziam; occultava-se então completamente debaixo da roupa, não sahindo senão quando os curiosos se retiravam. Este procedimento, é quasi inutil di-. zel-o, nunca o tinha quando cercado exclusivamente de pessoas conhe- cidas. «As necessidades naturaes dos orangos são facillimas de satisfazer. Os fructos são o alimento principal de que se nutrem; ora, como os seus “AJ oé d | | | MAMIFEROS EM ESPECIAL 309 membros são, já o dissemos, perfeitamente conformados para trepar ás arvores, é muito provavel que no estado natural estes animaes empre- guem a intelligencia antes em evitar os perigos do que em procurar processos de occorrer aos meios de subsistencia. No entanto todas as con- dições devem necessariamente mudar desde que se encontram em socie- dade e sob a protecção do homem, porque então os perigos diminuem e as necessidades crescem. É o que nos provam todos os animaes domes- ticos e o que com mais razão devia provar-nos o nosso orango-tango. E com effeito, elle teve mais occasiões de exercer a intelligencia satisfa- zendo desejos do que subtraindo-se a perigos. «Tinha o nosso quadrumano por Decaen uma affeição quasi exclu- siva, de que lhe dava a cada passo as mais vivas demonstrações. Tinha elle o costume de vir à hora das refeições, que conhecia perfeitamente, pedir ao dono alguns bocados. Para isso trepava pelo lado de traz à cadeira em que Decaen estava sentado por modo que o não via senão chegando áparte mais elevada das costas do movel; ahi, empolleirado, recebia o que lhe davam. Chegado ás costas de Hespanha, Decaen precisou de ir a terra e um outro official do navio substituiu-o à meza. Como de cos- tume, o orango-tango veio n'esse dia à sala, trepando à cadeira em que suppunha o dono sentado; desde o momento porém em que deu pelo engano, constatando a ausencia de Decaen, recusou todo o alimento, lan- çando-se por terra, soltando gritos de dôr e batendo na cabeça. «Vi-o muitas vezes manifestar assim a impaciencia, se lhe recusa- vam alguma coisa que vivamente desejava e tinha sollicitado. Haveria calculo n'este procedimento? Somos tentados a crêr que sim, porque nos momentos de colera não era raro que levantasse a cabeça de quando em quando e suspendesse os gritos para observar as pessoas que se encontravam perto e vêr se tinha produzido efeito, se estavam dispos- tas a ceder; se não via signaes favoraveis de assentimento nos olhares, recomeçava a gritaria.» * Uma prova da existencia, n'estes quadrumanos, de razão embora rudimentar é a seguinte, dada ainda pelo orango-tango que Cuvier obser- vou: «Costumavamos tel-o n'um quarto, visinho da sala destinada ás reuniões habituaes; ora muitas vezes acontecia que elle abria a porta, cuja fechadura era de lingueta, subindo a uma cadeira que ficava perto. Um dia quizemos impedil-o de entrar, tirando a cadeira de ao pé da porta. Nada conseguimos comtudo, porque logo que a porta se fechou, 1 G. Saint-Hilaire et Frederic Cuvier, Histoire natwrelle des mammif'tres, cita- dos por Brehm, Merveilles de la nature, pg. 38. 310 HISTORIA NATURAL vimol-a abrir de novo e o macaco saltar da mesma cadeira que tinha trazido comsigo para por meio d'ella se elevar até ao nivel da fecha- dura. Podemos assegurar que nunca a este animal se tinha ensinado a proceder por tal modo e que mesmo elle não vira pessoa alguma execu- tar aquelle acto. Tudo quanto podia ter aprendido a este respeito era: que se elevava ao nivel de objectos mais altos do que elle, subindo às cadeiras, que estes trastes eram susceptiveis, provavam-lh'o os actos dos outros, de serem transportados de um logar para outro e finalmente que a porta se abria correndo uma lingueta; tudo o mais n'aquelle acto pro- vinha exclusivamente delle.» 4 Como este facto ha muitos para pro- var nos brutos a existencia da razão, que outra coisa não é, como n'outro logar dissemos, senão o intendimento percebendo relações. As- sim demonstra a experiencia que é falsa a opinião, aliás muito geral- mente acolhida, da exclusividade da razão no homem, que por tal mo- tivo constituiria um reino à parte. Não; a razão não pertence ao homem sómente, pertence tambem aos animaes superiores. A diferença é de grao simplesmente; o que no macaco, no cavallo, no elephante ou no . cão é infimo, é insignificante e se reduz a achar as mais simples e tri- viaes relações dos usos domesticos, origina para o homem os calculos deductivos da mathematica ou as inducções complexas da sciencia social, É no fundo um poder, uma força que varia de intensidade, sem por isso variar de applicação ou de sentido. O orango-tango estudado por Cuvier não reservava as suas affei- ções exclusivamente para a nossa especie; dedicava tambem uma ex- traordinaria sympathia aos gatos domesticos. Brincava com elles, sus- pendendo-os nos braços, collocando-os à cabeça e soffrendo com enorme paciencia todas as arranhaduras de que n'estes movimentos era victima, Por duas ou trez vezes, refere o naturalista citado, o orango-tango exa- minou cuidadosamente as patas dos gatos e descobrindo a existencia das unhas procurou arrancar-lh'as com os dedos; vendo porém que o não conseguia, resignou-se a soffrer as arranhaduras, preferindo isto a sacri- ficar o prazer que sentia brincando com aquelles quadrupedes. De resto, servia-se à meza com intelligencia egual à de um homem e contra os ri- gores do frio sabia usar da roupa com que systematicamente se cobria ao deitar. As informações de Abel Clark sobre um orango-tango que observou na Inglaterra, condizem inteiramente com as que acabamos de expôr. Este orango-tango detestava systematicamente a prisão. Todas as tenta- tivas de conserval-o dentro de uma jaula ou acorrentado, tiveram de 1 Ibid. 4 , E ] N E | ! E e Vo SPO R Pq Mb a MT aa MAMIFEROS EM ESPECIAL 314 & ser abandonadas, porque com ellas apenas se conseguia encolerisar o animal. A liberdade, pelo contrario, foi extremamente favoravel à sua prompta domesticação; familiarisou-se rapidamente a bordo com todos os marinheiros, demonstrando a maxima docilidade. -, Conta Abel Clark que um dos espectaculos mais curiosos e mais divertidos que este pongo offerecia, era o das suas luctas ou desafios de agilidade com os homens da tripulação no cimo dos mastros e das cor- das. Nem pela rapidez nem ainda por meio de ciladas conseguiam os marinheiros vencel-o n'estas luctas. Ás vezes, subindo ao longo de um mastro, simulava cançar-se, e parecia então que forçosamente ia ser apanhado; mas de repente, quando o marinheiro que o perseguia estava a ponto de alcançal-o, trepava com tamanha velocidade que n'um momento obtinha uma enorme vantagem. Outras vezes, desorientava os que o per- “seguiam, mudando repentinamente a direcção da corrida, atirando-se de um salto de uma corda para outra, de um mastro para outro mastro. A dedicação d'este orango-tango pelos que lhe cuidavam da alimen- tação era extrema. Não se passava um só dia sem que, logo de manhã, Os viesse visitar com largos gestos expansivos, alegres. Era tambem ex- tremamente ciumento, incapaz de vêr com boa sombra que os seus ami- gos dedicassem as suas attenções a outros pequenos macacos que então vinham a bordo do mesmo navio para Inglaterra. Um dia que os mari- nheiros deram a estes alguns fructos que a elle lhe tinham recusado, quiz vingar-se da affronta tentando atirar ao mar uma gaiola que conti- nha trez dos saguis. Como todos os orangos em domesticidade, não sup- portava que lhe negassem um objecto appetecido sem immediatamente se irritar, chegando por mais de uma vez a fazer, segundo Abel Clark, verdadeiras tentativas de suicidio. De resto, o orango-tango em questão não era, como a maior parte dos seus congéneres, muito expansivo, nem muito animado do espirito de vivacidade que n'esta especie é ge- ral; pelo contrario, parecia, no dizer do naturalista citado, caracterisal-o uma gravidade visinha da melancolia. Quando se encontrava entre estranhos pela primeira vez, passava horas inteiras olhando em torno com ar pensativo, a cabeça apoiada na mão; e se se enfastiava de ser o alvo das attenções de todos, ia occul- tar-se debaixo do primeiro movel ao seu alcance. Usava tambem de roupa, cobrindo-se geralmente para dormir com uma vela, ou, se a não encontrava, com as jaquetas e as camisas dos marinheiros. Alimentava-se a bordo de carnes ou de fructos, manifes- tando sempre uma decidida predilecção por estes ultimos; comia tambem com verdadeira avidez ovos e pão. Quanto a bebidas, a sua preferencia a bordo era pelo café e pelo chá; chegado porém a Inglaterra affei- çoou-se extraordinariamente à cerveja. 312 HISTORIA NATURAL As observações colhidas pelo capitão Smitt ácerca de um outro orango-tango durante uma viagem de trez mezes da Ásia para a Europa, condizem admiravelmente com as que acabamos de referir. Este animal, a que os tripulantes tinham posto o nome de Bobi, parecia no entanto menos intelligente que qualquer d'aquelles de que acabamos de occupar- nos, porque nunca delle se obteve, apesar de muitos esforços, que usasse de colher. Era docil e extremamente dedicado aos marinheiros. Smitt refere que este macaco, à proporção que o navio se approximava das regiões frias, ia successivamente entristecendo, até ao ponto de che- gar a conservar-se quasi o dia inteiro no logar que lhe tinham reser- vado para dormir, immovel, completamente coberto de roupa, concen- trado. Morreu desastradamente antes de chegar à Allemanha, paiz a que era destinado. Foi victima da sua predilecção pelas bebidas espirituosas, succumbindo aos effeitos de uma extraordinaria ingestão de rhum, que conseguira roubar, durante a noite, da garrafeira de bordo. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA É possivel que noutras epochas os orango-tangos habitassem em regiões multiplicas e distanciadas. Hoje porém, talvez por efeito das perseguições que lhes movem os homens, acham-se exclusivamente limi- tados a Borneo. É n'esta ilha que elles vivem, procurando de preferen- cia as grandes florestas solitarias e pantanosas ou as margens dos rios, e evitando os povoados e as montanhas. USOS E PRODUCTOS Como procuram os logares reconditos e pelas condições climateri- cas quasi inacessiveis aos europeus, nada se sabe de positivo sobre os destinos que no estado natural lhes dão os indigenas. O que é averiguado e já vimos no estudo precedente, é que, uma vez trazidos à domestici- dade, estes animaes se utilisam admiravelmente como creados. A bordo dos navios que fazem o percurso da Asia à Europa, é extremamente commum este uso. ai dd 26, [E E nat da E PE E EN EVER TE E ae MAMIFEROS EM ESPECIAL 313 OS LONGIMANOS * Estes macacos, de que se conhecem dez especies, são caracterisa- dos entre todos pelo comprimento extremo dos seus membros anteriores que geralmente se estendem até aos maléolos. Esta circunstancia permit- te-lhes manter sobre os quatro membros uma posição quasi erecta, ap- poiando-se nas extremidades das mãos anteriores. Os membros de traz são relativamente muito curtos e as mãos que os terminam, offerecem nalgumas especies, no longimano siamang por exemplo, a particulari- dade de se encontrarem osdedos indicador e medio reunidos em parte da sua extensão por uma membrana interdigital. Teem geralmente a ca- beça pequena e oval e a face extremamente semelhante à do homem. Offerecem callosidades na região das nadegas, o que tambem os distin- gue dos que descrevemos, e teem um pêllo espesso, sedoso, a maior parte das vezes negro, outras porém, cinzento ou mesmo amarello- palha. A semelhança extrema que sob os pontos de vista mais interessan- tes affectam entre si as especies dos longimanos, permitte-nos estudar estes macacos de um modo perfeitamente geral, reservando para o fim algumas ligeiras indicações particulares sobre as especies. COSTUMES A extensão extrema dos braços combinada com a amplitude vastis- sima da caixa thoracica que lhes permitte uma respiração energica, faz dos longimanos, macacos essencialmente trepadores e saltadores. Dos membros posteriores que são muito musculosos, servem-se para formar o salto e dos anteriores, porque são muito compridos, utilisam-se para apanhar os ramos das arvores ou quaesquer outros pontos de appoio que lhes dêem segurança. A marcha é-lhes extremamente penosa, dificil; Duvaucel que os observou de perto, diz «que n'elles os braços fazem o officio de muletas sobre as quaes caminham como velhos coxos a quem o mêdo obrigasse a um grande esforço de marcha.» Quando são surprehen- didos no chão, deixam-se apanhar sem resistencia. 314 HISTORIA NATURAL Assim, uma verdadeira antithese se manifesta entre a difficuldade e deselegancia da marcha sobre o solo e a ligeireza dos movimentos nas arvores. São acrobatas com que nenhum outro macaco rivalisa. Trepam | egualmente bem, com a mesma agilidade quer pelos ramos fortes e re- sistentes, quer pelos mais flexíveis; para saltarem a grandes distancias, balançam-se repetidas vezes sobre o ramo que lhes é ponto de partida e, aproveitando depois a velocidade assim adquirida pelo movimento de oscillação, atiram-se com a rapidez do vôo, salvando extensões de qua- renta pés e mais. Estes saltos prodigiosos executam-os sem necessidade, por simples distracção, como exercicio que lhes agrada e que é uma exigencia da propria organisação. Não descem a terra senão raramente e por momentos para beber agua; vivem nas arvores, como se estas lhes foram patria. «k ahi, diz Brehm, que elles encontram o repouso, a paz, a segurança; é d'ahi que podem desafiar todos os inimigos, para ahi que se escapam, quando perseguidos.» ! Um longimano femea conservado em Londres n'um vasto espaço plantado d'arvores, foi por muito tempo o divertimento da população que corria a observal-o com a mesma curiosidade com que se vae a um espectaculo de gymnastica. Os longimanos são excessivamente timidos; o menor ruido sobre- salta-os e fal-os fugir. Duvaucel que teve muitas occasiões de observar de perto os longimanos em liberdade, conta que estes animaes, especial- mente os siamang, vivem em bandos capitaneados por um chefe mais robusto e mais agil do que os outros e que os Malaios reputam invul- neravel. Ora em casos de perigo, refere aquelle observador, cada um dos membros do bando trata exclusivamente de si, procurando salvar-se sem se preoccupar com a sorte dos companheiros. Se algum morre ou cae fe- rido, os outros passam adiante, abandonando-o no caminho. Ha apenas uma excepção para os mais pequenos; se é um destes o ferido, a mãe pára, lançando-se-lhe sobre o corpo, soltando gritos de aíflicção e prece- pitando-se mesmo sobre o inimigo com as largas fauces abertas e os braços estendidos na attitude do attaque. De resto, não é sómente na hora do perigo que o amor materno se manifesta; os cuidados com os filhos são constantes e cheios de mais terna dedicação. Ainda um costume curioso: os longimanos saudam sempre o levan- tar é o pôr do sol por meio de gritos, que são, attenta a sua regulari- dade, verdadeiros signaes indicativos das horas para os Malaios. Durante o resto do dia, se os não perturbarem, conservam um absoluto e inque- brantavel silencio. 1 Brehm, Obr. cit., pg. 47. À in aa o A A oi ic o a SÊ a a ps Pad VET À MAMIFEROS EM ESPECIAL 315 DOMESTICIDADE Os longimanos em captiveiro são, no dizer de Duvaucel, os mais estupidos dos animaes. «A escravidão, diz este observador, referindo-se especialmente aos siamang, parece não modificar em nada os defeitos ca- racteristicos d'estes macacos, a sua estupidez, deselegencia e falta de habilidade. Em poucos dias, é certo, tornam-se tão doceis quanto eram selvagens, tão sociaveis quanto eram ferozes; mas, timidos sempre, não se lhes encontra aquella familiaridade que tão depressa adquirem as ou- tras especies do mesmo genero. A submissão que revelam parece ser an- tes o effeito da apathia que da confiança ou da affeição. São quasi egual- mente insensiveis aos bons ou aos maus tratos; o reconhecimento e O pdio parecem ser sentimentos estranhos a estas machinas animadas. Teem todos os sentidos obtusos: se fitam um objecto, vê-se que é sem intenção; se 0 tocam é sem querer. Nºuma palavra, os siamang são a ausencia mesma de toda a faculdade; se os animaes se classificassem pelo grao da intelli- gencia, este occuparia seguramente um dos ultimos logares. Em capti- veiro, tomam os alimentos com indiferença, levam-os à bocca sem avidez e consentem sem espanto que lh'os tirem. O modo por que bebem está em correspondencia com todos os outros habitos; humedecem os dedos em agua e depois mettem-os na bocca.» * - Um outro observador, Bennett, dá todavia indicações pouco de har- monia com as que acabamos de referir. Conta este observador que um longimano siamang que trouxe comsigo a bordo para a Europa, dentro em muito poucos dias adquirira uma grande affeição a todos os tripu- lantes. Dedicára sobretudo um grande affecto sa uma negrita que vinha no mesmo navio; às vezes ia sentar-se ao lado d'ella enroscando-lhe os braços ao pescoço, e n'esta posição se demorava largo tempo. Manifestava signaes de um grande espirito de curiosidade, mirando e apalpando uma e muitas vezes quanto lhe cahia debaixo das mãos e subindo com frequencia aos mastros mais elevados para dominar quanto em volta se passava. Se algum navio passava ao largo, não abando- nava o mastro emquanto o avistasse. Offerecia uma enorme mobilidade de sentimentos: ora estava ale- gre, expansivo, ora concentrado, taciturno, quasi intratavel; passava ra- 1 Brehm, Obr. cit., pg. 48. 316 HISTORIA NATURAL pidamente de um estado a outro, sob a influencia do mais ligeiro mo- tivo. Emfim, como outros macacos de que nos occupamos já, este lon- gimano à mais insignificante contrariedade revelava ga de exaspe- ração e de colera. Pelo que acaba de vêr-se, existem differenças consideraveis Pres as observações de Bennett e as de Duvaucel. É muito provavel que es- tas differenças dependam das condições especiaes em que cada obser- vador fez os seus estudos. Parece que Duvaucel examinou um individuo excepcional, porque as informações da maior parte dos naturalistas con- firmam as de Bennett. Entre as especies de longimanos existem, como em principio obser- vamos, algumas differenças, não essenciaes comtudo. Assim, o longi- mano siamang-— Hylobates Syndactylus, que é o maior e o mais pesado de todos, oferece por baixo da larynge uma prega extensivel de pelle, que póde encher de ar, tornando assim a voz mais surda; o longimano wngho — Hylobates agilis, é o mais pequeno e o mais delgado de todos; o longimano oa—Hylobates Lewciscus offerece a singularidade de ter O peito negro e a face e os olhos quasi brancos. ' DISTRIBUIÇÃO GEOGRA PHICA As differentes especies teem logares distinctos de habitação. No entanto, nenhuma se encontra fóra de Sumatra ou de qualquer das grandes ilhas das Indias. * USOS E PRODUCTOS Não se conhece para os longimanos outra utilidade que não seja a de nos divertirem nos jardins pelo espectaculo da agilidade em treparem às arvores, como nos circos nos divertem os acrobatas nos exercicios gymnasticos do salto e do equilibrio. N'este sentido são exemplares insubstituiveis. E EE ça MAMIFEROS EM ESPECIAL 317 Os macacos de que acabamos de occupar-nos, não teem cauda. Este caracter negativo de organisação e outros importantissimos, taes como —a perfeição do esqueleto e um grande desenvolvimento de intelligen- cia, approximam singularmente estes quadrumanos da nossa especie. É por isso que os zoologistas os designam pelas expressões de MACACOS ANTHROPOMORPHOS, isto é semelhantes ao homem. O MANDRIL É um macaco extremamente robusto, de focinho alongado, de cauda muito curta, dotado de mãos muito perfeitas, munidas de pollegares ri- gorosamente oppositivos, e offerecendo uma grande acuidade de todos os sentidos, especialmente do olfato. Com os progressos da edade o focinho adquire-lhes, especialmente nas regiões mais visinhas do nariz, côres vivissimas, azul e vermelho; as orelhas e as mãos são amarellas. Apesar d'este colorido vistoso, affirma Brehm que não ha mono mais horrivel. Mede geralmente o macho, metro e meio na posição vertical. A femea é sempre menos alta e de côres menos vivas. COSTUMES O mandril vive em bandos numerosos nas florestas, donde todavia sae não poucas vezes para attacar as povoações em quanto os homens andam occupados nos trabalhos de lavoira ou de pastoreação. O resul- tado destas incursões é sempre funesto para as creanças e para as mu- lheres especialmente, que teem decididas razões para temer-lhes a sen- sualidade brutal. O mandril é dotado de uma força extraordinaria e de uma feroci- dade sem limites. Estas qualidades tornam-o temido e odiado não só pelo homem senão pelas especies animaes que habitam as mesmas regiões. 318 HISTORIA NATURAL É, no dizer de Brehm, o tyranno das florestas. Um naturalista inglez que observou muito este quadrumano, afirma que nada consegug dar uma idéa, approximativa ao menos, do horror que produz em nós a sua co- lera—uma verdadeira tempestade. É rancoroso, vingativo e sensual. Os excessos de luxuria a que cy- nicamente se entrega, principalmente à vista das mulheres, esgotam-o até ao ponto de o deixarem cahido por terra, soltando gritos de raiva. A este proposito escreve F. Cuvier: «Tudo n'elles, o olhar, o grito, a voz, annuncia uma impudencia bestial. Satisfazem as paixões mais im- mundas com um-perfeito e inalteravel cynismo; parece que a natureza quiz n'elle mostrar-nos a imagem do vicio em toda a sua hidiondez.» * Alguns viajantes affirmam que este repugnante quadrumano nas suas tumultuosas incursões às aldêas, chega a forçar as mulheres. É possivel que n'esta asserção. haja exagero; o que com certeza se sabe porém, pelos que vivem em captiveiro nos nossos paizes, é que a vista das mulheres os inflamma de um modo extraordinario, impellindo-os à mas- turbação. DOMESTICIDADE Tem-se reduzido ao captiveiro alguns d'estes macacos, quando muito novos. No entanto devemos dizer que a perfeita domesticidade nunca se consegue, porque não ha meios conhecidos de dominar as inclinações naturaes destes quadrumanos. Ha-os que vivem largos annos em capti- veiro na Europa, expostos nos jardins zoologicos, em communicação diaria, portanto, com centenas de pessoas, e que conservam todavia quasi sem variação sensivel as tendencias selvagens e ferozes do primeiro dia. São os animaes mais temidos pelos guardas. Uma das qualidades mais persistentes n'este macaco é a attracção sensual pelas mulheres, o que os leva aos mais accentuados excessos de ciume. Não pode vêr sem uma repentina irupção de furor e desespero que se abrace diante d'elles uma mulher. Conta Brehm que uma vez no Jardim das Plantas de Paris, este ciume foi aproveitado para fazer reen- trar na jaula um mandril que tinha conseguido escapar-se, produzindo nos canteiros estragos prodigiosos; todas as tentativas feitas para o re- conduzir à prisão tinham conseguido apenas que elle se irritasse até ao ! Brhm, Obr. cit., pg. 98. MAMIFEROS EM ESPECIAL 319 ponto de ferir uns poucos de guardas do jardim. Um d'elles então teve “a idéa engenhosa de attacal-o pelo lado fraco—o lado sentimental do ciume. Para conseguil-o, abriu uma pequena janella que havia na parede do fundo da jaula e fez debruçar-se a ella a filha de um dos guardas; depois fez menção de abraçal-a. Não foi preciso mais; o mandril enfure- cido correu immediatamente sobre ella, penetrando, para agarral-a, no interior da jaula. Só assim se conseguio prender o revoltoso. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA Et Cê Ra Encontram-se estes macacos em bandos numerosissimos na Guiné e principalmente nas costas do Ouro. - Habitam as arvores das florestas montanhosas ou os rochedos. USOS E PRODUCTOS A ferocidade e os instinctos preversos d'estes animaes não permit- tem ao homem tirar d'elles a menor utilidade emquanto vivos. Os negros armam-se contra elles e onde quer que os descobrem fazem-lhes fogo desapiedadamente. A pelle é estimada pelo brilho extraordinario das côres. O PAPIÃO Recorda o mandril na configuração exterior, sendo todavia menos robusto do que elle e tendo a cauda mais extensa. No ponto de vista das qualidades moraes, o papião differe um pouco do mandril, 320 HISTORIA NATURAL COSTUMES É intelligente e excessivamente guloso. Esta ultima qualidade é em. extremo favoravel a domesticação d'este macaco. Lisongeando-lhe o paladar, não é absolutamente dificil fazel-o supportar o captiveiro com docilidade. Dedica aos filhos extraordinaria affeição e mantem com os compa- nheiros, quando captivo, as melhores relações de amisade. De resto, é, mesmo no estado natural, excessivamente sociavel; vive sempre em bamn- dos numerosos no meio das florestas. É de uma extrema mobilidade; não é possivel prival-o do exercicio senão à custa da saude. É libidinoso como o mandril, entregando-se desesperadamente à masturbação sobretudo quando d'elle se approximam mulheres. «É de uma lascivia inexprimivel» diz Kolbe. Linneu já o havia definido —ani- mal libidinosum, fominis facile vim infert. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Vivem estes macacos no Senegal e na Serra-Leoa em companhia de muitas outras especies de monos. Procuram de preferencia as florestas. USOS E PRODUCTOS A sensualidade repugnante d'este macaco affasta completamente toda a idéa de tirar d'elle qualquer utilidade nos usos domesticos, a que aliás poderiam servir perfeitamente, attenta a intelligencia que manifes- tam e a relativa facilidade com que podem reduzir-se ao captiveiro. Ec do A di Da Si adido Ea MB, MAMIFEROS EM ESPECIAL 321 Os macacos que acabam de ser descriptos, mandril e papião, são os mais conhecidos e talvez tambem os mais curiosos da tribu dos cyNocE- PHALOS, assim chamados pela semelhança que affecta o focinho d'elles com o dos cães. São depois dos orangos os monos de maiores dimensões e tambem os mais repulsivos não só pela fealdade, que é enorme, senão pelos costumes que são, como vimos nas especies estudadas, repugnan- tissimos. Geralmente são valentes, musculosos e deselegantes. O seu sys- tema dentario é analogo ao dos carniceiros e os olhos encimados por cristas supraciliares excessivamente desenvolvidas. Teem geralmente uma intelligência acanhada e instinctos de grande ferocidade. O homem só com armas de fogo se atreve a attacal-os. As outras especies temem-os enormemente; só o leopardo e ainda os cães, quando reunidos em grandes matilhas, se abalançavam a dar-lhes caça. Devemos porém dizer que estes ultimos apenas conseguem triumphar quando a perseguição é dirigida contra um ou outro cynocephalo isolado; se attacam bandos, a victoria é sempre dos quadrumanos. O NARIGÃO |) Este macaco é caracterisado pela existencia de um nariz saliente e mobil como uma tromba. É delgado, tem os membros todos das mesmas dimensões e a cauda extremamente longa. Buffon, que possuia um quando ainda os naturalistas o desconheciam completamente, dá delle a seguinte descripção: «l muito notavel pela posse de um nariz largo, proeminente, muito semelhante pela forma ao do homem, mas mais comprido ainda, fino na extremidade e tendo no “meio um sulco que parece dividil-o em dois lobulos. As narinas são abertas horisontalmente como as do homem; a abertura d'ellas é grande e o septo que as separa, fino. Como o nariz é muito alongado para diante, as na- rinas são affastadas dos labios, estando situadas na extremidade do nariz. Toda a face é desnudada como este orgão; o pêllo é de um escuro em que ha cambiantes de azul e de vermelho. A cabeça é redonda, coberta no vertice e em toda a região posterior de um pêllo espesso, muito curto e 24 322 HISTORIA NATURAL de um castanho escuro. As orelhas, occultas sob o pêllo, são nuas, finas, largas, de côr negra e forma arredondada, com uma chanfradura muito sensivel nos bordos. A fronte é baixa, os olhos muito grandes e muito affastados um do outro. Não tem sobrancelhas nem tem pestanas na pal- pebra inferior; pelo contrario são estas muito longas na superior. A bocca é grande e guarnecida de fortes dentes caninos e de quatro incisivos em cada maxilla, semelhantes aos do homem. O corpo é grosso e co- berto de péllo de côr castanha mais ou menos carregada no dorso e nos flancos, alaranjado no peito e de um amarello misturado de cinzento no ventre, nas coxas e nos braços, tanto”pelo lado de dentro como pelo de fóra. Por baixo do mento, em torno do pescoço e nas espaduas tem pêéllos muito mais compridos que os do resto do corpo, formando uma especie de murça ou camalha, cuja côr contrasta com a da pelle nua da face. Este macaco tem callosidades na região das nadegas, a cauda muito comprida e guarnecida na parte superior e inferior de pêllos amarellos muito curtos, as mãos e os pés desnudados na face palmar ou plantar e cobertos de pêllos curtos e de côr amarella com tons acizentados, na face dorsal. Tem cinco dedos, tanto nas mãos como nos pés, sendo as unhas negras; a dos pollegares é achatada e as outras são convexas.» 4. É esta a mais completa descripção que conhecemos do animal. COSTUMES Vive em bandos numerosos sobre as arvores que orlam as ribeiras e os pantanos, fazendo ouvir invariavelmente de manhã e de tarde o seu grito particular e caracteristico—Kahauw, kahaw. Tem uma extrema vi- vacidade; trepa e salta com extraordinaria agilidade. Crê-se geralmente entre os indigenas que este animal goza de uma notavel- e desenvolvida intelligencia. Não repugna admittir esta opinião, attenta a amplidão da fronte e o volume do cerebro, relativamente grande. Diz-se tambem que este macaco é desconfiado, mau, selvagem, enormemente malicioso, rebelde à educação, à domesticidade. De resto, . as informações dos naturalistas a este respeito são inteiramente vagas e deficientes. +! Buffon, Cuvres completes, t. 1v. pg. 103. A di E Tc din dsicicá À ri E SA, 1 be is dE pau Ci A pç E E dt oie de na a Aa MAMIFEROS EM ESPECIAL 323 DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Parecem encontrar-se absolutamente limitados à ilha de Borneo. USOS E PRODUCTOS Não se deprehende dos estudos dos naturalistas que os indigenas tirem d'estes animaes uma utilidade qualquer. Parece mesmo que deve- “rão deixal-os na paz mais absoluta e mais incondicional, porque crêem que elles são homens refugiados nos bosques para o fim de não paga- rem os impostos lançados sobre as cidades e villas. Este preconceito deve certamente no espirito do indigena affastar para muito longe a idéa de usufruir do narigão qualquer das vantagens que um animal póde na- turalmente prestar. O ENTELLA Denomina-se tambem o macaco sagrado dos Hindus, attenta a vene- ração d'estes povos por tal mono, que à vontade, sem resistencia, sem opposição, destroe jardins, estraga, derruba quanto lhe apraz. Uma ve- lha lenda indiana faz delle um semi-deus; daqui o incondicional respeito. 324 HISTORIA NATURAL COSTUMES São os entellas, no dizer dos naturalistas, macacos lindissimos, de uma extrema agilidade, vivendo nas arvores onde executam os mais prodigiosos exercicios de gymnastica a que um quadrumano pode entre- gar-se. Vivem alternadamente isolados e em bandos. Congregam-se em alguns minutos centenas de individuos, que com egual rapidez se dis- persam. Do seu genero de vida é facil conceber uma idéa pelo que dissemos do respeito e do apreço em que são tidos. Conta Brehm que tendo um viso-rei das Indias, o portuguez Constantino de Bragança, tirado a um principe indigena entre outros thesouros um dente d'este animal, lhe fo- ram offerecidos por uma embaixada extraordinaria do rei de Pegu cem mil cruzados para a revindicação d'esta reliquia preciosa. Refere o mesmo naturalista que um hollandez recentemente chegado da Europa e desconhecedor dos prejuizos locaes, tendo matado da janella um d'esses macacos, se viu por esse facto a braços com uma revolta dos indigenas e foi obrigado a estabelecer residencia em ponto distante. Em face d'es- tes factos nada ha de estranho em que estes quadrumanos offereçam exemplo da mais perfeita impudencia, destruindo tudo, fazendo em ban- dos as mais terriveis incursões, entrando mesmo, em pleno dia, pelas casas às horas das refeições e roubando os alimentos. Afirmam os naturalistas que os entellas emprehendem grandes emi- grações no começo e no fim da estação das chuvas. Dão provas de maior affecto de uns por outros, sobretudo de paes por filhos. Duvaucel que uma vez atirou sobre uma femea que levava às costas um filho, ferindo-a perto do coração, viu este pobre animal, exhaurindo n'um supremo es- forço a pouca vida que lhe restava ainda, pegar no filho, suspendel-o a um ramo d'arvore e cahir-lhe depois aos pés, morta. «Uma prova tão evidente do amor materno, escreve o viajante, causou-me maior impres- são que todos os discursos do brahmas; e nem mesmo o desejo de pos- suir um tão bello animal pôde em mim abafar o remorso de ter matado um ser que parecia ligado à vida pelo que ella tem de mais respeita- vel.» 1 1! Brehm, Obr. cit., pg. 52. ea Cd o 5 TER ai ed E cria se. MAMIFEROS EM ESPECIAL 325 DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA - Habita na India, espalhando-se constantemente por todas as regiões d'este vasto paiz, graças à protecção que por toda a parte encontra nos indigenas. USOS E PRODUCTOS Emquanto vivos são simplesmente prejudiciaes. Depois de mortos fornecem aos indigenas os seus amuletos mais preciosos, como entre os povos catholicos e ignorantes, os santos. Um dente de um macaco sa- grado vale tanto para um indio, como para um fanatico um pedacinho “do cabello ou do manto de um homem morto em cheiro de santidade. Os macacos que acabamos de descrever, o narigão e o entella, são exemplares typicos de uma tribu denominada geralmente dos SEMNoPI- THECOS. Estes macacos teem as formas delgadas, os membros compridos e delicados, a cauda extensa, a cabeça pequena, o focinho desnudado e curto. O seu systema dentario assemelha-se ao do cinocephalos, os dedos das mãos são muito compridos e o pêllo de uma grande finura e de côres vivas. 326 HISTORIA NATURAL O MACACO COMMUM É de uma estatura pouco elevada, que raras vezes excede um pé, e de formas delicadas. Na côr do pêllo ha cambiantes de cinzento, negro e amarello; as mãos e as orelhas são pretas. À cauda fina e terminada em ponta é mais comprida que o resto do corpo; mede geralmente pé e meio. COSTUMES Não tem habitos de ferocidade estes macacos. Vivem nas florestas espessas, imperturbaveis e tranquilos, graças a um preconceito dos indi- genas que os consideram sagrados e lhes erigem templos. São de uma ex- trema mobilidade de caracter, passando rapidamente e sem causa apre- ciavel da alegria mais intensa à tristeza completa. Graças à docilidade e à intelligencia de que dão provas, é extremamente facil reduzil-os à do- mesticidade. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Habitam as florestas do Malabar, donde em grande quantidade são trazidos à Europa. USOS E PRODUCTOS Podemos a este proposito repetir o que dissemos ácerca do macaco sagrado dos Hindus. A veneração que lhes tributam os indigenas, faz d'es- tes animaes seres absolutamente inuteis e mesmo perigosos pelas incur- e cm a MAMIFEROS EM ESPECIAL 327 sões que emprehendem, sem protesto, aos campos cultivados e aos po- mares. O MACACO MAGOT É na Europa conhecido desde a mais alta antiguidade. Os romanos serviam-se d'elle para as dissecções anatomicas. Buffon que possuiu um durante muitos annos, diz «que elle é de todos os macacos sem cauda, aquelle que melhor se adapta à temperatura dos nossos climas euro- peus.» ! O macaco magot, talvez um dos mais. communs entre nós, tem as pernas muito altas, o focinho côr de carne, as orelhas muito semelhan- tes às do homem, o pêllo abundante, branco-amarellado na barba, cas- tanho no dorso e negro na cabeça e na fronte. Não tem cauda propria- mente dita, mas apenas sobre o anus uma ligeira dilatação da pelle. COSTUMES Vivem os macacos magot em bandos numerosos sob o commando de um velho macho experimentado. São dissimulados, prudentes, ageis e muito vigorosos; quando n'um attaque são surprehendidos face a face, batem-se com coragem servindo-se dos dentes com verdadeira furia. Manifestam sempre todos os seus sentimentos, ou sejam de prazer ou de desgosto, por esgares grottescos, alongando e mexendo os labios em to- das as direcções e rangendo fortemente os dentes. Vivem nos logares pedregosos ou sobre as arvores a que trepam com extrema facilidade. Teem uma grande predilecção pelos vermes de que fazem o seu alimento 1 Buffon, Obr. cit., pg. 44. 328 HISTORIA NATURAL diario; para o fim de obtel-os levantam e remexem constantemente as pedras, manobra esta que nos flancos das montanhas escarpadas não deixa de ter perigos para o homem. No estado de domesticidade uma das occupações a que mais gostosamente se dedicam é a de libertar os cães, os gatos e até o homem dos parasitas. «Durante a minha estada na Hespanha meridional em 1856, diz Brehm, nada pude averiguar ao certo do bando que habita os rochedos de Gibraltar. Contaram-me que era muito numeroso, mas que poucas Ve- zes apparecia. Do alto da fortaleza vi em mais de uma occasião, por meio de um occulo, individuos d'esta especie procurando alimento e le- vantando para isso pedras que muitas vezes vinham rolar até à base da montanha. É raro que invadam os jardins. Os hespanhoes nada sabem ao certo sobre a origem d'estes animaes; ignoram se estes macacos fo- ram sempre europeus ou se foram trazidos d'Africa e aclimados no paiz.» * Segundo informações de Smitt, consideradas geralmente como exactas, o bando de Gibraltar é diminuto, consta apenas de quatro macacos € bem depressa terá terminado, porque são todos do mesmo sexo, se al- gum homem dedicado à historia natural não fôr buscar à Africa alguns individuos que depois sejam postos em liberdade sobre o rochedo. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA Habitam os macacos magot, o nordeste d'Africa. São os unicos mo- nos africanos que vivem ainda em estado de liberdade na Europa. USOS E PRODUCTOS Serviram, como foi dito, durante largo tempo para o estudo da ana- tomia, quando não era lícito aos homens de sciencia dissecar os cadave- res humanos. Hoje apenas d'elles se utilisam os hystriões, exhibindo-os- J , ao som dos realejos nas praças e nas ruas, onde elles submissos e sob a pressão do chicote executam os exercicios grottescos e singulares de uma gymnastica que faz rir as multidões. 1! Brehm, Obr. cit., pg. 73. penar =; ARE DE O o E IN e, E o MAMIFEROS EM ESPECIAL 329 Os dois monos que acabamos de descrever constituem a classe que os naturalistas denominam dos Macacos. Tomam assim estes monos, como especial, o nome que serve tambem para designar uma grande tribu. Por este motivo, todas as vezes que quizermos designar um mono pela denominação de macaco carecemos de acrescentar a esta palavra uma outra que indique se se trata do grupo geral ou simplesmente do pe- queno grupo a que o magot pertence; assim diremos, distinguindo, a tribu dos macacos e a familia dos macacos. Pode evitar-se ainda a con- fusão, designando, como tambem fizemos, a tribu pelo nome de monos e a familia pelo de macacos. Todos os monos até aqui estudados, anthropomorphos, cynocepha- “Jos, semnopithecos e macacos são por Buffon designados sob o nome ge- ral de MONos DO ANTIGO CONTINENTE. Todos elles, com effeito, são oriun- dos da Asia ou da Africa. Os da America, de que nos occuparemos em seguida, teem o nome, dado pelo mesmo naturalista e geralmente acceite, de MONOS DO NOVO CONTINENTE. OS URRADORES São caracterisados por um desenvolvimento extremo da larynge que se assemelha a uma papeira. Alexandre Humboldt, que dissecou muitos destes monos, cuja voz tem um enorme volume, afirma ser a larynge delles de uma extrema complicação anatomica. Não são deselegantes. Teem os membros regularmente desenvolvi- dos, as mãos, de cinco dedos, bem conformadas, a cabeça grande e o focinho saliente, o pêllo abundante, espesso, formando barba em torno da maxilla inferior. A cauda é comprida e desnudada na extremidade e os seus musculos e nervos desenvolvidos, o que faz d'ella um orgão de prehensão perfeitissimo. 330 HISTORIA NATURAL COSTUMES Evitam os logares aridos. Todas as especies se encontram nos sitios arborisados e onde existe abundancia d'agua. Vivem em bandos gu numerosos, constituidos por trez até seis membros. Existem hoje descripções muito exactas dos costumes d'estes qua- drumanos. Brehm cita as principaes de que extractaremos tambem os pon- tos mais interessantes. Schomburgk que habitou os logares onde estes monos vivem, escreve: «Desde o dia da minha chegada, ouvia constante- mente, ao levantar e ao pôr do sol, os urros aterradores dos macacos, sem todavia lograr vêl-os. Um dia, de manhã, dirigia-me para a floresta virgem, munido de todos os aprestos de caça, quando os urros se fize- ram ouvir de novo nas profundezas dos bosques, despertando a minha ardente curiosidade. Corri atravez dos silvados e dos mattos na direcção do ruido e, depois de grandes esforços e pacientes pesquisas, consegui descobrir o bando sem ser visto por elle. Os membros que o compunham achavam-se sentados sobre uma arvore, que me ficava fronteira, e exe- cutavam um concerto tão formidavel que poderia crêr-se que todos os animaes da floresta se encontravam empenhados n'uma lucta mortifera; os gritos no entanto apresentavam uma especie de accorde. Por momen- tos calava-se o bando inteiro; depois um dos cantores fazia ouvir de novo a sua voz discordante e então recomeçavam os urros. Via-se claramente o tambor osseo do hyoide que dá à voz o seu poder característico, le- vantar-se e abaixar-se emquanto gritavam. Os sons“emittidos recordavam ora o grunhido do porco, ora o, grito do jaguar quando se precipita so- “bre à preza ou ainda o urro surdo e terrivel do mesmo carniceiro se se encontra cercado por todos os lados e reconhece o perigo que o ameaça. Esta lugubre sociedade prestava-se no entanto consideravelmente ao ri- diculo; a physionomia do mais concentrado misantropo ter-se-hia aberto n'um sorriso ao vêr estes musicos de longas barbas que se olhavam com um ar cheio de seriedade, imperturbavel. Tinham-me dito que cada bando possue um director de orchestra, distinguindo-se, por uma voz aflautada e muito aguda, das vozes de contrabasso do resto do bando; tem-se pretendido mesmo que esse director apresenta um corpo mais elegante, mais distincto na forma. Pude com effeito verificar a existen- cia de um director do canto; mas debalde procurei vêr n'elle um macaco mais gracioso e mais bem feito.» * 1 Citado por Brehm, Obr. cit., pg. 99 e 100. Cum Si E a ii do 8, MAMIFEROS EM ESPECIAL 331 São os macacos urradores, como da precedente citação se pode de- duzir, seres originalissimos; diz Brehm que sem exagero se pode aflir- mar ser toda a vida d'elles uma ininterrupta successão de singularida- des. Os indigenas odeiam estes quadrumanos pela physionomia triste e os costumes monotonos que apresentam. Não teem os urradores entre si aquella dedicação de que outros monos dão provas tão evidentes e tão numerosas. Não se divertem uns com os outros; comem, urram, dormem e no resto do tempo conser- vam-se immoveis como estatuas. É uma vida incomparavelmente mono- tona. De dia os urradores vivem de preferencia nas arvores mais altas da floresta; de noite buscam para dormir a folhagem espessa das arvores mais baixas, de todos os lados invadidas de trepadeiras. Não teem vivacidade nenhuma nos seus actos; a trepar são de uma lentidão incrivel. Comem com avidez; depois porém de saciados deitam-se n'um ramo d'arvore, immoveis, paralysados. Azara refere ainda alguns traços curiosos da vida dos urradores. «O macho ou chefe colloca-se sempre, diz este naturalista, n'um logar mais elevado como para vigiar pela conservação da familia que dirige; esta familia não se move senão depois que o chefe, elle proprio, se põe em movimento. Só então passa de'um ramo para outro ramo d'arvore.» ! Se acontece que os ramos se não encontram reunidos, o chefe que di- rige o bando suspende-se então pela parte callosa da cauda a um d'elles e oscilla livremente com o corpo até poder lançar a mão ao outro. Todo o bando repete a manobra. Referindo-se à cauda, este orgão tão importante para os urradores diz Saint-Hillaire: «Além da funcção ordinaria, executa a cauda outras muito variadas. Servem-se d'ella os urradores para apanharem objectos distantes, sem moverem o corpo, muitas vezes até sem moverem os olhos. Isto é sem duvida devido a que a callosidade goza de um tacto tão fino, tão delicado que dispensa n'alguns casos o concurso da vis- ta.» 2 Quando caminham sobre as arvores, nunca abandonam um ramo sem que a cauda tenha encontrado n'outro um ponto de appoio, ao qual se enrola com força. Por vezes acontece, segundo refere Azara, encon- trarem-se animaes d'estes. mortos e meio apodrecidos já, suspensos ainda dos ramos pela cauda. 1 Tbid. 2 Tbid. 332 HISTORIA NATURAL - Poucas vezes abandonam as arvores para descer a terra; só o fa- zem quando vivamente instigados pela sêde. Alexandre Humboldt pre- tende mesmo que lhes é impossivel a marcha sobre o solo firme. Receiam immensamente a agua. Se acontece por effeito de uma inundação achar-se o pé de uma arvore banhado, deixam-se morrer, ex- haustos todos os recursos, mas não descem. Entre os urradores é extrema a dedicação que uns aos outros reune os membros da familia; nunca se encontram isolados. Os machos oceu- pam geralmente os ramos mais elevados e são os que soltam os primei- ros gritos, que as femeas e os filhos acompanham por algum tempo, Humboldt, baseado em dados precisos, affirma-nos que estes gritos abo- minaveis são perceptiveis à distancia de mil e quinhentos metros! Tem-se procurado saber qual a causa desta singular emissão de sons, que, apparentemente ao menos, nada justifica. Os naturalistas con- fessam encontrarem-se a este respeito na obscuridade de quem se de- fronta com um enigma. Pela nossa parte, crêmos firmemente que é inu- til procurar a razão do acto em circunstancias exteriores; trata-se pro- vavelmente de um destes phenomenos authomaticos cuja causa reside só na organisação do animal que os realisa. Estão n'este caso 0 coaxar monotono da rã, o uivar prolongado e insistente d'alguns cães durante as noites calmosas, o ruido ininterrupto das cigarras e mil outros factos que diariamente observamos e que, por vulgares, nem já despertam a nossa attenção. A nossa especie mesmo, em condições particulares, offe- rece exemplos analogos aos que vimos de citar; é de observação trivial nos hospicios de alienados a repetição constante dos mesmos actos por um certo louco. Ha maniacos que cantam desde pela manhã até à noite a mesma phrase, outros que passam os seus dias balouçando o corpo constantemerite no mesmo sentido, outros que não cessam de fitar um mesmo ponto da enfermaria alongando para lá os braços, uns terceiros que conservam inalteravelmente a mesma posição, uns quartos que a to- dos os recemvindos dirigem a mesma e invariavel interrogação, etc. E diante d'estes phenomenos curiosissimos de authomatismo, ninguem se lembra de procurar a explicação nas condições ambientes, mas no modo de ser. especial da organisação pathologica de cada individuo. O caso dos urradores parece-nos entrar na cathegoria geral. É por isso que se nos afligura pueril a explicação de alguns naturalistas que pretendem vêr nos gritos atroadores d'estes macacos um meio de que lançam mão para se divertirem uns aos outros. Uma circunstancia muito para notar e observada vezes sem conta por todos os viajantes, é que a presença de um cão faz invariavelmente cessar os horriveis concertos d'estes quadrumanos, que desde logo se escondem cautelosamente sob a folhagem das arvores. O medo que os Ga daE da o MAMIFEROS EM ESPECIAL 333 cães lhes inspiram, só pode ser equiparado ao que sentem perante q perseguição dos homens e que é bastante forte para produzir-lhes mo- mentaneamente uma verdadeira incontinencia das urinas e das fezes. Os urradores não devastam os campos, como fazem outros quadru- manos; nas arvores encontram quanto lhes é necessario para viver — fructos, flores, folhas, gommos, insectos e pequenas aves de ninho. Entre os urradores o numero de femeas é sempre superior ao dos machos, na relação de trez para um. Não sabemos se entre estes quadru- manos existem luctas renhidas, como entre outras especies, para a posse das femeas. Brehm crê que o caracter indolente d'estes macacos se oppõe a combates d'este genero; se assim é, ou não existe selecção se- xual entre elles ou, a existir, basea-se sobre outros dados absoluta- mente desconhecidos dos naturalistas. De resto, entre os macacos urra- dores a união familial é muito intima; encontram-se sempre juntos n'uma unica arvore todos os membros de cada um destes grupos, qual- quer que seja o seu numero. À femea não costuma dar à luz mais do que um filho em cada parto, realisando-se este geralmente nos mezes de Junho ou Julho. Teem pre- tendido alguns observadores que n'esta classe de macacos o amor ma- terno é menos intenso do que em geral costuma sêl-o; que à mãe não concede aos filhos os seus cuidados e os seus affectos senão durante um espaço de tempo limitadissimo; que se preocupa mediocremente com a sustenção d'elle; finalmente que o abandona nas occasiões criticas do pe- rigo, fugindo só. Esta opinião, comtudo, parece ser falsa e talvez baseada sobre informações phantasiosas dos indigenas, tão prodigos sempre de fabulas ácerca dos seus animaes, quando se trata de relatar-lhes os cos- tumes a estrangeiros. E pensamos isto, porque viajantes que nenhuma razão ha para deixar de suppôr conscienciosos, afirmam precisamente o contrario, baseados em observações proprias e minuciosamente descri- ptas. Assim, por exemplo, Neuwied diz que o perigo augmenta a dedi- cação da mãe pelos filhos; Spix conta que tendo ferido mortalmente uma femea, esta não abandonára o filho senão quando inteiramente exhausta pela perda de sangue, tendo tido ainda assim o prévio cuidado de collo- cal-o, antes de exhalar o ultimo suspiro, sobre um ramo d'arvore; Oex- melin affirma egualmente que para apanhar um urrador nos seus pri- meiros tempos de vida, é absolutamente indispensavel matar a mãe, tão grandes e tão intimas são as relações que os prendem. 334 HISTORIA NATURAL DOMESTICIDADE dd A domesticação dos urradores tem sido poucas vezes tentada e pa- rece offerecer notaveis dificuldades. Não que seja preciso vencer uma ferocidade, que realmente não possuem, mas porque são muito pouco intelligentes e muito pouco susceptiveis das affeições que n'outros qua- drumanos o homem facilmente explora em proveito proprio. São accor- des todos os naturalistas em nos afirmar que, trazidos ao captiveiro, mesmo desde uma edade muito tenra, os urradores conservam sempre para com todos os que os cercam uma frieza glacial, uma indifferença profunda, um ar taciturno, desconfiado, que apenas modificam em rela- ção áquelle que lhes dá o alimento. Passam dias inteiros deitados a um canto, absolutamente immoveis, inexpressivos, sem uma demonstração qualquer, mesmo insignificante, de alegria quando lhes é distribuido o alimento ou quando d'elles se approximam as pessoas que diariamente vêem. De resto, a indole preguiçosa, apathica destes quadrumanos e os gritos insupportaveis que fazem ouvir numerosas vezes, tornam-os anti- pathicos, repulsivos, verdadeiramente intoleraveis. CAÇA Faz-se n'uma grande parte do territorio do Paraguay uma caça muito activa a estes macacos. Não obstante a excessiva timidez de que dão provas e a facilidade com que se descobrem pelos gritos, que de grandes distancias dirigem os passos do caçador, não é empreza inteiramente simples matar um destes quadrumanos. E a razão d'este facto, apparentemente estranho, é o habitarem ramos de arvores de tal modo elevados que dificilmente os attinge uma arma vulgar. Os indigenas usam de preferencia contra elles as frechas que dardejam, como é sabido, com extrema pericia; e, mesmo com esta arma verdadeiramente terrivel, ainda se vêem obriga- dos a trepar às arvores, porque não confiam na certeza do tiro à dis- tancia que vae do sólo ao ponto em que o urrador perseguido se colloca. a a a o 1 AD a MAMIFEROS EM ESPECIAL 335 DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA “ Habitam quasi todas as regiões tropicaes da America do Sul, procu- rando sempre de preferencia as florestas espessas e humidas. USOS E PRODUCTOS - A pelle dos urradores tem innumeras applicações industriaes no fa- brico de bonnets de viagem, de bolsas, de guarnições de vestidos, de xaireis, etc. A carne é tambem muito estimada pelos indigenas, mao grado a magreza e seccura que a caracterisam. O SAÍ Este nome que significa hahitante dos bosques, é dado pelos Guara- nis a uma especie de monos da familia Ti-ti. A designação particular de saitaia chorão ou sai chorão é tambem muito empregada e com proprie- dade, attenta a circunstancia especial de que os gritos d'estes animaes se assemelham, diz Buffon, a supplicas de quem se prantea. O sai é um dos macacos maiores da familia alludida, podendo attin- gir até quarenta e cinco centimetros de comprimento. A cauda é muito extensa; tem trinta e dois centimetros ou mais. O péllo do sai é espesso e de côr extremamente variavel. Quando muito novo, tem o vertice da cabeça, os braços, as pernas e a cauda escuros, as partes desnudadas, como a face, de um vermelho de musculo e a côr dos pés e das mãos de uma cambiante violacea. Á proporção que 336 HISTORIA NATURAL cresce, a côr vae-se modificando. Quando attinge um pleno desenvol- vimento, a cabeça torna-se amarella, os braços, as faces, a cauda e as mãos adquirem uma tinta quasi negra e sobre a fronte apparecem pêllos brancos de extremidade azul formando ahi uma larga mancha clara. Chegado a uma edade muito avançada adquire barbas extensas e o pêllo torna-se-lhe completamente negro, excepto no peito e no ventre. onde continua apresentando a primitiva côr escura. COSTUMES Procura as florestas e vive a maior parte do tempo sobre as arvo- res d'onde não desce senão para beber ou para visitar algum campo de milho. Durante o dia transita constantemente de arvore para arvore e à noite repousa sobre os ramos entrelaçados de qualquer d'ellas. Como entre os urradores, o numero das femeas é maior que o dos machos. Os sais encontram-se geralmente reunidos por familias, onde pa- rece manifestar-se a maxima dedicação dos membros uns pelos outros. Por vezes comtudo encontram-se velhos machos solitarios caminhando atravez da floresta timidamente e olhando sempre o cimo das arvores mais altas. É difficil aproximarmo-nos d'estes animaes, porque são excessiva- mente timidos e fogem ao mais insignificante ruido. Assim, as observa- ções que ácerca d'estes animaes existem, teem sido colhidas de um modo accidental e mediante processos em que a casualidade entra por muito. A avidez d'estes animaes pelos fructos é, no dizer de Rengger, espan- tosa; conta este observador que n'um espaço de tempo curtissimo viu desguarnecerem completamente uma larangeira de notaveis proporções. As incursões que fazem aos campos de milho são terriveis para os agri- cultores. Os sais entram em bandos n'esses campos, trazendo cada um d'elles as espigas que pode transportar e caminhando depois para os bosques onde vão devoral-as. N'uma d'estas occasiões, Rengger atirou sobre uma femea que levava ao collo um filho. Teve então o illustre observador occasião de notar bem os excessos do amor materno e filial n'esta especie. Em quanto teve vida, a femea não cessou de abraçar es- treitamente o filho como se tivera a consciencia de que lhe fazia as ulti- mas despedidas; o pequeno, pelo seu lado, só consentiu em abandonar o corpo da mãe, quando o frio cadaverico lhe deu a certeza de que não MAMIFEROS EM ESPECIAL 337 tornaria a gozar os affagos da que lhe fôra até alli companheira dedicada e estremecida. A femea não dá à luz mais do que um filho de cada vez; dar dois é tão excepcional como na especie humana. A epocha da parturição é em Janeiro. A mãe não abandona o filho em quanto pequeno, nem mesmo sentindo-se mortalmente ferida. O sai marcha geralmente sobre as quatro extremidades; é todavia facil, ligando-lhe os membros anteriores para traz das costas, obrigal-o a andar na posição erecta que caracterisa a nossa especie. Este quadrumano tem um ar de doçura acentuadissimo, que, se- gundo Brehm, está pouco em relação com a vivacidade que o distingue. De todos os sentidos o unico que parece perfeito n'estes macacos é o do tacto. A vista é deficiente, de uma pronunciada myopia, o olfato quasi nullo, o ouvido de extrema dureza, sendo preciso approximarmo-nos muito d'elles para que nos descubram, o paladar, emfim, de tal modo grosseiro que muitas vezes, aguilhoados pela fome e pela sêde, chegam a ingerir os proprios excrementos e urinas. O tacto que, como acabamos de dizer, parece o mais perfeito de todos os sentidos, reside principalmente nas mãos anteriores; nas posteriores é grosseiro e na cauda, nullo. O sai tem uma linguagem muito expressiva; basta viver com elle durante algum tempo para 'se descobrir a significação d'esta linguagem que se compõe de gritos variando de intensidade e intonação, consoante os factos que procuram exprimir. Tambem demonstram a alegria, rindo ou affastando lateralmente as commissuras labiaes e a tristeza, chorando ou enchendo o globo occular de lagrimas, que não são todavia em quan- tidade bastante para correrem pelas faces sob a forma de pranto. Como quasi todos os macacos, O sai é pouco limpo. Todos os logares lhe servem e a todos acha proprios para a satisfação das mais repugnan- tes necessidades organicas. DOMESTICIDADE Os sais adultos são indomesticaveis; uma vez trazidos ao captiveiro, tornam-se tristes, recusam os alimentos e morrem no curto espaço de algumas semanas. Pelo contrario, os que são novos, esquecem rapida- mente a liberdade, familiarisando-se com o homem cujo regimen alimentar adoptam sem dificuldade. Brehm observa que, reproduzindo-se os sais em captiveiro, o amôr 22 338 HISTORIA NATURAL dos paes pelos filhos parece tornar-se então mais vivo ainda que no es- tado de liberdade. As mães só às pessoas conhecidas consentem que se approximem do recemnascido, defendendo-o energicamente contra todos os estranhos. É extrema a sensibilidade d'esta especie para o frio e para a humi- dade. Teem pela agua um verdadeiro horror; se caem a um rio dei- xam-se morrer sem ao menos tentarem um movimento de salvação. A intelligencia dos sais é em extremo desenvolvida. Conhecem desde o primeiro dia de captiveiro o dono e o guarda, distinguem-os perfeita- mente de quaesquer outras pessoas, reclamam d'elles o alimento e a roupa que os preservem do frio, pedem-lhes protecção e soccorro, revelam q maior prazer em vel-os depois de uma ausencia embora pouco demorada, esquecem rapidamente a liberdade, tornando-se, como diz Brehm, quasi animaes domesticos. Rengger teve um destes macacos que algumas vezes conseguiu escapar-se do captiveiro, mas que outras tantas voltou, depois de dous ou tres dias de ausencia, a casa do naturalista, deixando-se então prender sem a minina resistencia. Estes macacos quando os tratam com doçura depositam no homem uma extrema confiança. Não é sómente à nossa especie que dedicam os seus affectos; vivem ainda na mais perfeita harmonia com os animaes domesticos. No Para- guay parece ser costume muito geral crear junctamente os sais e os cães; então estes ultimos representam para o macaco 0 mesmo papel que o cavallo para o homem. À dedicação do sai pelo seu cão é immensa; se 0 separam do companheiro solta gritos aíflictivos e, o que é mais, se o vê empenhado n'uma lucta com outros cães, colloca-se do seu lado, defende-o corajosamente. Sob a influencia dos maus tractos, o sai chorão comporta-se de um modo muito diverso do que acabamos de mencionar. Ou se sente forte, e então procura vingar-se abertamente das offensas recebidas, ensaiando o vigor dos musculos contra quem quer que o maltrata, ou é fraco, re- conhece a sua inferioridade e recorre então à hypocrisia, à dissimulação, mordendo traiçoeiramente o inimigo quando este menos o espera. O sai é extremamente glotão; esta qualidade leva-o ao roubo e à mais refinada astucia de que um macaco é capaz. De resto, como as creanças, apanhado em flagrante delicto, prevê o castigo procurando evital-o à força de gritos supplicantes. Sobre estes animaes o systema brutal das pancadas não dá resultado nenhum; tudo, pelo contrario, d'elles se obtem por um tratamento affe- ctuoso. Desde que este ultimo processo se emprega, é muito facil conse- guir que cheguem á execução dos actos relativamente mais complicados, como todos os que se referem ao uso de utensilios. Distingue-os uma o EN faco — at ES di e a ae oa sgg7 z Aa] dá, ao SO E da ca O Gusta TS MAMIFEROS EM ESPECIAL 339 memoria o u uma ão iii verdadeiramente inaltera- como os iidchicos do antigo continente, muito sujeitos à à tuber- DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA ERA É) | e “e horetado commum nas regiões vá se estendem Colombia. | USOS E PRODUCTOS as utilisam-se am pelle destes animaes e fazem da carma ento Pulo. acne fable É aa LM: o A a “O SAÍMIRI COMMUM iderado pelos naturalistas como o macaco mais bello da Ame- almente, nenhum tem formas mais elegantes, pêllo de côr mais nem socio mais graciosos do que elle. | Ácerca d'este quadrumano escreve Buffon: «Tem o pêllo de um ama- vivo e em torno dos olhos dois bordaletes de carne em forma de neis. O nariz é saliente em cima, achatado na região das narinas, a “be id a face chata e nua, as orelhas guarnecidas de pêllo e “reparo a cauda semilexa mais longa do que 0 corpo. 340 HISTORIA NATURAL desde o focinho até à origem da cauda. Sustenta-se facilmente sobre os membros posteriores; em geral porém marcha sobre os quatro. A femea não é menstruada.» ! COSTUMES Vive geralmente em bandos nas margens dos rios. Durante o dia agita-se constantemente, muda a cada momento de logar; de noite po- rém, porque é timido, evita todas as deslocações e antes que o sol se ponha, procura entre as folhas da palmeira um abrigo onde repoisará até ao dia seguinte. Ao menor perigo, foge correndo d'arvore em ar- vore. Os movimentos do saimiri são graciosissimos; salta e trepa com extrema facilidade. Buffon affirma que os saimiris são os macacos do novo continente que mais custa a aclimar nos paizes frios. Incommoda-os o mais ligeiro abaixamento de temperatura. No inverno para se preserverarem dos ar- refecimentos costumam unir-se uns aos outros, abraçando-se, unindo-se muito e enroscando-se mutuamente as caudas nos pescoços. É vulgar en- contrarem-se n'esta posição sobre os ramos das arvores quando as nu- vens se accumulam no horisonte escurecendo o sol e a temperatuta desce. Receiam tambem o tempo extremamente secco; morrem se os tiram das florestas humidas. A linguagem dos gritos é n'estes macacos muito expressiva. Pela diversa intonação e intensidade d'elles, revela o animal a tristeza, a ale- gria, o desconforto, o odio, o desejo, a maior parte emfim, senão todos os sentimentos que podem affectal-o. Muitas vezes, alta noite, ouvem-se os gritos dos saimiris quebrando o silencio das florestas. Humboldt pensa que este facto é devido a luctas no interior dos bosques; talvez que o jaguar, insinua o illustre naturalista, dando caça aos grandes quadrupe- des que fogem diante d'elle aterrados, disperte indirectamente os gritos dos saimiris respondendo aos dos perseguidos. (Concebe-se que assim seja, attenta a timidez caracteristica d'estes macacos. A physionomia é de uma incomparavel mobilidade; é, como diz 1 Buffon, Obr. cit., t. 1v, pg: 159. O ANS Tn O q E = á 4 h MAMIFEROS EM ESPECIAL 341 Humboldt «o espelho mais fiel das impressões e dos sentimentos que ex- perimenta.» Os saimiris são de uma sensibilidade só comparavel à de uma creança; transitam com extraordinaria rapidez da alegria para a tristeza, irritam-se facilmente. No entanto, ao contrario do que com muitos outros quadrumanos acontece, elles não chegam em circunstancia alguma a es- quecer o respeito que devem ao dono e às pessoas que os tratam bem; a irritação destes pobres animaes não excede nunca os limites de uma docilidade que lhes é nativa. Como todos os monos, estes são curiosissimos. Uma prova d'isto encontra-se no facto observado por Humboldt de olharem com extrema attenção para a bocca das pessoas que fallam e mesmo, se lhes é possi- vel, apalparem-lhes os labios e os dentes. Os saimiris alimentam-se principalmente de folhas; comtudo perse- guem com insistencia os insectos e, no estado de liberdade, as pequeni- nas aves. DOMESTICIDA DE Na domesticação dos saimiris não se encontra nenhuma das difficul- dades com que se lucta na de outros monos. Nem são ferozes, nem es- tupidos; pelo contrario a sua docilidade é extrema e desenvolvida a in- telligencia de que, em companhia do homem, offerecem manifestações por vezes inesperadas. Comtudo a difficilima aclimação d'estes animaes nos paizes da Europa, é um obstaculo poderoso, quasi invencivel com que nos defrontamos tentando fazel-os nossos familiares. É por este mo- tivo que elles são rarissimos nos jardins zoologicos mais variados e mais ricos da Europa. CAÇA Os indigenas fazem caça a estes inofensivos quadrumanos, escolhendo para isso os dias frios e humidos. A arma habitual empregada n'estes exercicios crueis é a sarabatana, especie de tubo d'onde saem settas humedecidas em curara, substancia que mata paralysando os nervos mo- 342 HISTORIA NATURAL tores. Se acontece de ferirem por este meio uma femea que tem filhos ainda em amamentação, estes deixam-se ficar indefinidamente abraçados ao cadaver da mãe. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Este pequeno macaco é oriundo da Guyana. O MICO Este quadrumano conhecido tambem pelo nome de sagui pequenino do Maranhão, tem sido muito estudado na Europa onde facilmente se aclima. - Anstett “escreve sobre os seus caracteres physicos, o seguinte: «Bguala em tamanho o esquillo; o seu corpo e a sua cauda, que é mais comprida do que o corpo, são cobertos de pêllo denso e sedoso. Conhe- ce-se pelo seu grito, que muito se assemelha ao canto do chamariz. O mico tem o corpo coberto de um pêllo macio cinzento-claro, com mesclas amarellas na garganta, no peito e no ventre, a cauda parda e branca e as orelhas coroadas de um penacho de cabello branco.» 4 (1) Historia Natural Popular, traduzida do allemão pelo Dr. Anstett, 2.º edic., t. 1, pg. 62. e, : ha a is re Can Ea Mt a = MAMIFEROS EM ESPECIAL 343 COSTUMES Os micos vivem em bandos numerosos que muitas vezes se appro- ximam das aldêas e cidades. Procuram as arvores e nos movimentos assemelham-se aos esquillos. Não se sentam; ao contrario, como estes ultimos animaes, preferem deitar-se ao longo dos ramos. Fazem às vezes incursões aos campos cultivados, soltando gritos de alegria semelhantes a assobios. DOMESTICIDADE Emquanto novos é absolutamente facil reduzil-os ao captiveiro e à mais completa domesticidade. Alguns dias de convivencia com o ho- mem, bastam para que a elle se affeiçoem, dando as mais vivas é incon- testaveis provas de dedicação por quantos os tratam bem e lhes cuidam da alimentação, que consiste principalmente em fructos e insectos. São irritaveis como as creanças amimadas e essencialmente timidos; tudo o que é novo ou inesperado lhes causa receio. Não dedicam exclusivamente à nossa especie os seus affectos; adqui- rem amisade aos animaes domesticos, sobretudo ao gato com que gostam “de brincar e ao lado do qual se deitam muitas vezes, provavelmente com o fim de se aquecerem. Evitar o frio, parece com effeito a preocu- pação constante d'estes macacos; quando se lhes fornecem tecidos de al- godão ou lã, conduzem-os immediatamente para um canto e fazem com elles uma cama onde se enrolam para passar a noite. Trazidos à Europa, tem acontecido que aqui se reproduzem. Um caso destes, observado no Museu de Historia Natural de Paris por F. Cuvier, deu ao illustre sabio occasião de colher sobre estes animaes no- ticias minuciosas que reproduziremos. «Tendo-se reunido, escreve o na- turalista, dois individuos d'esta especie em fins de Dezembro de 1819, “embora imperfeitamente domesticados, não tardou muito que entrassem em relações sexuaes. A femea concebeu, e pariu a 27 de Abril do mesmo -“anno trez filhos—um macho e duas femeas, perfeitamente viaveis; não foi possivel determinar com precisão o tempo de gestação, porque as re- 344 HISTORIA NATURAL lações sexuaes entre estes quadrumanos prolongam-se quasi até ao mo- mento do parto. Os filhos ao nascer traziam os olhos abertos e vinham protegidos por um pêllo cinzento escuro muito curto e apenas sensivel na cauda. Em breve os recemnascidos se abraçaram na mãe escondendo- se-lhe sob o péllo; antes porém que principiassem a mamar a femea ma- tou um, comendo-lhe a cabeça. Os outros tomaram o peito e desde então a mãe começou a prestar-lhes todos os cuidados, ao que o pae em breve se associou. Quando a femea se achava fatigada de trazer ao collo os filhos, approximava-se do macho soltando gritos de queixume e este en- tão collocava-os debaixo do ventre ou sobre o dorso onde elles se sus- tentavam e transportava-os assim em passeio até que a necessidade de mamar os tornasse inquietos; então entregava-os de novo à mãe que em breve d'elles se tornava a desembaraçar. Em geral era o pae o que manifestava mais solicitude; a mãe não revelava esta viva affeição que as femeas costumam ter pelos filhos. Assim um d'elles morreu ao fim de um mez e o outro não conseguiu prolongar a vida senão até meia- dos de Junho.» ! Devemos observar que desde os primeios dias d'este mez que à femea faltava quasi absolutamente o leite. Milne Edwards observou em Portugal um caso perfeitamente seme- lhante a este. Em S. Petersburgo o naturalista Pallas observou um outro caso ainda, e este bem mais admiravel, attento o clima frigidissimo deste paiz. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Os micos habitam as regiões medias da costa oriental do Brazil e com especialidade o Maranhão. USOS E PRODUCTOS Não consta dos livros dos naturalistas, nem mesmo dos brazileiros, que tirem os indigenas uma utilidade qualquer d'estes quadrumanos. É no entanto verosimil que façam uso das carnes e deem applicação ao pêllo d'estes macacos, por isso mesmo que contra elles dirigem caçadas. ! Citado por Brehm, pg. 126. ice mé o E

TINA E NAN ES 1. À Lontra 2. O CasTOR MAMIFEROS EM ESPECIAL 475 longas, fortes, rijas e brilhantes que chegam a attingir em alguns pon- tos do corpo cinco centimetros. O labio superior é guarnecido tambem de pêllos espessos, mas pouco alongados. O dorso é pardo-escuro e o ventre mais claro; as patas são sempre mais escuras que o resto do corpo. O terço superior da cauda é coberto de pêllos compridos; os dois outros terços são cobertos de pequenas escamas alongadas, arredonda- das ou antes quasi hexagonaes. Entre estas escamas existem pêllos cur- tos, rijos, inclinados n'uma direcção posterior. Toda esta parte da cauda apresenta uma côr escura de reflexos azulados. De resto, a côr é muito variavel tendendo ora para o negro, ora para o pardo, ás vezes mesmo para o ruivo. Os castores brancos são muito raros. - O castor da America, do qual, como acima dissemos, alguns natura- listas teem querido fazer uma especie distincta, separa-se do castor do antigo continente apenas em offerecer um perfil mais curvo e um pêllo geralmente mais escuro. COSTUMES De ordinario os castores vivem aos pares; algumas vezes porém, encontram-se em familias numerosas, se as regiões são tranquillas ou isolados, se os pontos que habitam são assiduamente frequentados pelo homem. Em geral vivem em tocas; algumas vezes no entanto construem verdadeiras choupanas ou casas, como as que em 1822 foram obser- vadas perto da cidade de Barby em um logar dezerto, verdadeiro can- navial attravessado por um pequeno curso d'agua conhecido pelo nome de tanque dos castores. A proposito, Brehm cita as palavras do inspector das florestas de Meyerinck, palavras cuja exactidão é confirmada por muitos naturalistas e que por isso traduziremos aqui: «Muitos pares de castores ahi habitam agora (o auctor refere-se a 1822) em tocas seme- lhantes às dos teixugos, de trinta a quarenta passos de extensão, situa- das à altura do nivel da agua e com differentes aberturas para o lado de terra. Perto d'estas tocas, os castores estabelecem tambem as suas casas. Estas teem dois metros e meio a trez, são construidas de grossos ramos que os castores cortam ás arvores visinhas e dos quaes tiram a casca para comer. No outomno cobrem-as de vaza e terra sepa- rada da margem e que conduzem entre as patas anteriores e o pei- 476 HISTORIA NATURAL to. Estas casas assemelham-se a fornos; os castores não as habitam, apenas n'ellas se refugiam quando as enchentes os obrigam a sair das tocas. Durante o estio a colonia compunha-se de quinze a vinte indivi- duos; notou-se que elles construiam diques. Por esse tempo o Nutho ía tão baixo que se viam por todos os pontos da margem as aberturas das tocas alguns centimetros acima do nivel da agua. Os castores tinham-se aproveitado de uma pequena barreira que se achava ao meio do riacho; d'ambos os lados tinham lançado grossos ramos à agua e enchido os in- tervallos com lama e cannas de modo que o nivel da agua se achava: trinta centimetros mais alto para o lado de cima do dique que para o lado de baixo. O dique cedêra por diversas vezes, mas sempre na noite immediata era reparado. Quando as enchentes do Elba chegavam ao Nu- tho e as habitações dos castores eram submergidas, podiam-se vêr então estes animaes durante o dia. Conservam-se n'estas circumstancias sobre as casas ou sobre os salgueiros visinhos.» 1 Esta narrativa é confirmada pelas descripções de Sarrazin, de Hearne, de Kartwright, de Audubon e de Wied. A proposito ainda das edificações artisticas do castor, escreve Buffon: «Nos mezes de Junho ou Julho, os castores provenientes dos pontos mais diversos reunem-se em sociedade, chegando a constituir bandos de duzentos ou trezentos individuos; o ponto de reunião é geralmente o logar mesmo em que hão- de estabelecer-se, sempre a beira d'agua. Se são aguas quietas e se sus- tentam sempre à mesma altura como n'um lago, os castores dispen- sam-se de construir um dique; mas nas aguas correntes que sobem e descem nos rios e riachos, construem um açude que represa as aguas formando assim uma especie de tanque onde ellas não mudam de ni- vel e que se estende de uma a outra margem, tendo, não raro oitenta a cem pés de comprimento sobre dez ou doze de largura na base. Esta construcção parece enorme relativamente às dimensões do animal e re- presenta na verdade um incalculavel trabalho; a solidez porém espanta | ainda mais que a grandeza. O logar do rio em que estabelecem o açu- de é ordinariamente pouco profundo. Se à margem se encontra uma grossa arvore que possa derribar-se caindo dentro d'agua, os castores deitam-a abaixo para d'ella fazerem a peça principal da construcção; a arvore é muitas vezes mais grossa que o corpo de um homem. Os cas- tores cortam-a pelo pé, roendo-a sem para esse fim se servirem d'outro instrumento mais que dos quatro dentes incisivos; a operação no entanto dura pouco tempo e a arvore cae do lado que elles desejam, que é o do 1 Citado por Brehm, Loc. cit., pg. 645, vol. 2.º MAMIFEROS EM ESPECIAL 477 rio. Em seguida cortam-lhe os ramos para que o tronco possa caír de modo a ficar nivelado. Todas estas operações se fazem em commum; em quanto um certo numero de castores roem o pé da arvore para a fazerem tombar, outros esperam a queda para lhe cortar os ramos, ou- tros ainda percorrem as margens cortando arvores novas da grossura de uma perna ou de uma coxa, decepando-as, serrando-as a certa altura para estacaria e conduzindo-as depois por terra e em seguida pela agua até ao logar da construcção. Para conseguir a conclusão d'este trabalho é preciso vencer numerosas difficuldades, porque para levantar as esta- cas e collocal-as n'uma direcção quasi perpendicular, os castores são forçados a erguerem-as com os dentes pela parte mais grossa e collo- carem-as sobre a margem ou sobre a arvore que attravessa O rio, ao mesmo tempo que outros companheiros mergulham até ao fundo d'agua para ahi cavarem com as patas anteriores um buraco onde enterram as pontas das estacas para se manterem firmes. Ao passo que uns enterram assim as estacas outros vão em busca de terra que amassam com as pa- tas posteriores, batem com a cauda e transportam na bocca e nos mem- bros anteriores em quantidade tal que chega para encher todos os in- tervallos da estacaria. Esta, que se compõe de muitas ordens de esta- cas, todas da mesma altura e dispostas umas ao lado das outras, esten- de-se de um lado do rio ao outro e é em todos os pontos argamassada. As estacas ficam em posição horisontal do lado da queda d'agua, em- quanto que todo o resto da construcção é, pelo contrario, um talud do lado que sustenta a corrente; d'este modo a calçada, que na base tem doze ou treze pés de largura, reduz-se no vertice a dois ou trez de espes- sura, ficando assim não só com toda a extensão e solidez precisas, mas ainda com a forma mais conveniente para reter a agua, sustentar-lhe o pezo e neutralisar-se a força da corrente. No alto d'este paradão, quer di- zer no ponto em que elle tem menor espessura, os castores praticam duas a trez aberturas em declive, que servem para dar passagem ás aguas cuja superficie alargam ou estreitam, segundo o rio sobe ou desce. Quando depois de cheias muito grandes ou muito subitas, o dique fica avariado, os constructores sabem reparal-o, principiando a trabalhar desde que as aguas baixam.» ! Depois d'esta descripção dos grandes trabalhos collectivos dos cas- tores, o mesmo illustre naturalista, referindo-se a outras construcções, continúa: «Seria superíluo, depois da exposição que acabamos de fazer dos trabalhos realisados em commum, dar ainda noticia minuciosa das ! Buffon, Ocuvres Complêtes, tom, 2.º, pg. 651. 478 HISTORIA NATURAL construcções particulares dos castores, se a historia não devesse consi- gnar todos os factos, e se não fosse a consideração de que a vasta obra que descrevemos não é senão um trabalho feito com o intuito de tornar mais commodas as suas pequenas habitações, isto é cabanas ou antes especies de pequenas casas construidas à beira d'agua sobre estacaria, com duas sahidas, uma para 0 lado da terra outra para o lado da agua. «A forma d'estes edificios é quasi sempre oval ou redonda; ha-os pequenos e grandes desde quatro ou cinco atéoito ou dez pés de dia- metro, assim como os ha que teem algumas vezes dois ou trez andares. As paredes teem approximadamente dois pés de espessura e levantam-se a prumo sobre a estacaria que simultaneamente serve de alicerce e de sobrado à casa. Quando o edifício tem um andar apenas, as paredes não se elevam a prumo senão até à altura de alguns pés, formando depois uma abobada que encima o edifício e lhe serve de cobertura. O edificio é todo argamassado com segurança e rebocado com esmero por fóra e por dentro, tornando-se assim impermeavel à agua das chuvas e resis- tente aos ventos mais impetuosos; as paredes são revestidas de uma es- * pecie de estuque tão bem amassado e applicado com tanta perfeição que parece ter andado n'aquelle trabalho a mão do homem. Nº'este serviço a cauda desempenha as funções de um trolha ae applica a argamassa; os pés amassam-a. «Na sua obra os castores empregam differentes especies de mate- riaes: madeira, pedras e terras barrentas que se não desligam facilmente com a agua. As madeiras empregadas são sempre leves e macias: amieiro, choupo e salgueiro, arvores que crescem naturalmente à beira d'agua e que são mais faceis de descascar, cortar e transportar do que outras cujo lenho é pesado e duro. Quando attacam uma arvore, os castores nunca a abandonam senão depois de a terem derrubado; de- pois cortam-a a um pé ou um e meio de altura e transportam-a ao lo- gar conveniente. Trabalham sentados; é esta a posição mais vantajosa e mais commoda. Ao mesmo tempo que vão executando a sua tarefa, go- sam o prazer de roer a casca verde e tenra dos ramos, que preferem à maior parte dos alimentos ordinarios e de que fazem ampla provisão para o inverno, por isso que não gostam de madeira secca. «É dentro d'agua e junto da habitação que os castores estabelecem os seus armazens de comestiveis; cada casa tem o seu, proporcionado ao numero de habitantes, possuindo todos direito egual aos alimentos arrecadados e não roubando nunca os visinhos. « Tem-se visto povoações compostas de vinte e vinte e cinco casas; no entanto é raro encontrar juntos tantos edificios. Em geral estas espe- cies de republicas apresentam-se menos populosas, sendo formadas de dez a doze tribus, cada uma com seus armazens e alojamentos separados, MAMIFEROS EM ESPECIAL 479 para dentro dos quaes se não consente que estranhos venham estabele- cer-se. Às casas mais pequenas comportam dois, quatro ou seis habitan- tes e as maiores dezoito, vinte e até, dizem, trinta, sendo quasi sempre tantos os machos como as femeas. Assim, contando mesmo pelo mini- mo, pode dizer-se que a sociedade dos castores é a maior parte das vezes composta de cento e cincoenta ou duzentos operarios, que primeiro tra- balham todos nas obras de utilidade geral e depois por grupos na cons- trucção de habitações particulares. Apezar de numerosa, esta sociedade sabe manter uma paz inalteravel; o trabalho em commum serviu para estreitar entre os obreiros os laços de amizade, que se manteem pelos confortos de que se rodeiam e pela abundancia de comestiveis que ense- leiram e consomem em commum. Os appetites moderados, a simplicidade de gostos e a repugnancia que estes animaes teem pela carne e pelo sangue, affastam para muito longe a idéa da rapina e das luctas; deste modo gosam de uma felicidade real a que o homem se limita a aspirar.» * - À amizade e espirito de união a que o sabio naturalista francez se refere, provam-se especialmente nos momentos de perigo; quando, d'en- tre os membros de uma colonia de castores, algum suspeita ou prevê uma ameaça à segurança da communidade, adverte desde logo os com- panheiros, batendo repetidas vezes com a cauda na superficie da agua pancadas vigorosas que vão echoar em todas as casas. Assim sollicita- mente avisados, todos procuram subtrair-se ao perigo imminente, mer- gulhando uns e recolhendo-se outros ao interior das habitações. Entre as qualidades caracteristicas dos castores avulta, diz Buffon, a limpeza extraordinaria que manifestam no interior das casas e que não cessa na domesticidade. O naturalista, a que acabamos de referir-nos, possuiu um, do qual conta que, estando fechado muitos dias seguidos n'uma gaiola, depositava os excrementos junto da porta e que logo que lh'a abriam o seu primeiro cuidado era deital-os fóra. Todos os obser- vadores confirmam a noticia de Buffon, attribuindo o acceio meticuloso destes animaes à fina sensibilidade olfativa de que são dotados. De resto, não é este sómente o orgão sensorial desenvolvido nesta especie; afirmam todos os naturalistas que os castores possuem tambem uma vista perspicaz e um ouvido apuradissimo. : Ácerca da epocha do cio encontramos indicações muito diversas nos livros dos naturalistas, affirmando uns que ella se realisa em Fevereiro ou Março, outros que coincide com os principios do inverno, uns tercei- ros ainda, como Buffon, que tem logar nos começos do estio. Em face 1 Obr. cit., vol. 2.º pg. 651 e seguintes. 480 HISTORIA NATURAL d'estas diferenças: na informação do facto, concluiremos que os observa- dores estão em erro? O que nos parece mais razoavel é attribuir, como faz Brehm, a divergencia de noticias ao facto de que a quadra dos amo- res é ni em epochas differentes, segundo as regiões que o ani- mal habita. Tambem se não sabe ao certo o tempo que dura cada ges- tação; o que está averiguado é que o numero de filhos dados à luz em cada parto não excede quatro e que elles nascem com os olhos fecha- dos. A mãe dedica-lhes um cuidado extremo, durante o primeiro mez amamenta-os e depois, quando principiam a carecer de alimento solido e não podem acompanhal-a nas suas excursões, traz-lhes ramos tenros que elles descascam, ensaindo assim os exercicios que os caracterisam como roedores. A fidelidade do macho pela companheira é um facto sobre que todos os auctores insistem. A. este proposito escreve Buffon: «É no começo do estio que os castores se reunem, empregando os mezes de Julho e Agosto na construcção do dique e das habitações e o de Setembro em fazer a provisão de cascas d'arvores; depois passam a gosar o producto dos seus trabalhos e as doçuras domesticas. É então o tempo de repouso, ou me- lhor, a quadra dos amores. Conhecendo-se já, ligados de antemão pelo habito da convivencia, pelas fadigas e pelas alegrias do trabalho em commum, nunca um casal se constitue por simples effeito do acaso ou só- mente para a satisfação de uma necessidade natural, mas por uma esco- lha a que preside o gosto. Passam juntos o outomno e o inverno, con- tentes um com o outro e não saíndo senão para o fim ao mesmo tempo agradavel e util de procurarem cascas verdes das arvores, que prefe- rem sempre ás seccas e ás que se encontram demasiadamente embebi- das em agua. A gestação dura, segundo dizem, quatro mezes e o nu- mero de filhos dados à luz é dois ou trez; os machos separam-se d'elles então, para gozarem as delicias do campo, bem como os fructos que apparecem com a primavera, indo de quando em quanto a casa para Saírem outra vez. Só a mãe se conserva permanentemente no interior da habitação, occupada em aleitar, cuidar e crear os filhos, que ao fim de algumas semanas podem emfim saír, passeiando, fortificando-se ao ar livre, roendo as cascas tenras das arvores, o peixe e os caranguejos. Assim passam o verão à beira d'agua e nos bosques. Só no outomno se juntam de novo, a não ser que as inundações tenham rompido o dique ou destruido as casas, porque então associam-se mais cêdo para reparar os estragos feitos.» 4 1 Tbid., pg. 654. MAMIFEROS EM ESPECIAL 481 Aos dois annos, os filhos encontram-se já em estado de procrear e aos trez teem attingido as proporções que caracterisam o adulto e a que nos referimos no começo d'este estudo. Um facto muito para notar é que em geral os filhos depois de crescidos occupam a casa dos paes, que vão construir uma nova habitação para si. Como a maior parte dos individuos da ordem, os castores teem ha- bitos mais nocturnos do que diurnos; só nos logares retirados em que o homem raras vezes apparece é que estes animaes se atrevem a ex- pôr-se durante o dia. A este respeito diz Meyerinck: «É pouco depois do pôr do sol que os castores abandonam as habitações, fazem ouvir os seus gritos e se precipitam na agua com ruido. Nadam durante algum tempo em volta de casa, sobem e descem a corrente e expoem, segundo o grao de segurança de que se sentem possuidos, o focinho apenas ou toda a cabeça e dorso. Quando tudo está tranquillo, dirigem-se para a margem e affastam-se cincoenta passos ou mais do rio para cortarem as arvores de que precisam. «Quando nadam distanceiam-se às vezes meia milha da habitação, mas voltam sempre a ella na mesma noite. No inverno é tambem de noite que abandonam as casas, conservando-se às vezes affastados d'ella por espaço de oito a quinze dias. Durante toda esta estação sustentam-se das cascas dos salgueiros que no outomno haviam transportado para as tocas e com as quaes taparam todas as saídas para o lado de terra.» ! À facilidade extrema com que nadam e a permanencia habitual na agua, fizeram dizer a alguns naturalistas que os castores são animaes aquaticos, impossibilitados por isso mesmo de viverem exclusivamente em terra. Esta opinião porém é menos exacta, porque, diz Buffon 2 que um castor que possuia e foi sempre creado em casa, não só vivia per- feitamente sem agua, mas até mostrou por ella uma viva repugnancia, uma vez que o naturalista o forçou a entrar n'um tanque. Só depois de obrigado a nadar é que tomou gosto pela agua, procurando-a com en- thusiasmo, fugindo para ella desde que o deixavam em liberdade. Hoje todos os naturalistas são accordes em confirmar as asserções de Buffon. t Citado por Brehm, in Loc. cit., vol. 2.º, pg. 158. 2 Vid. Obr, cit., vol. 2.º, pg. 657. 31 482 HISTORIA NATURAL INIMIGOS Graças à facilidade extraordinaria com que nadam, à vigilancia que exercem sobre tudo quanto os cerca e à solidez das suas habitações, os castores não receiam a maior parte dos animaes que por instincto se- riam capazes de fazer-lhes caça. Geralmente evitam com prudencia todos os perigos d'este genero; e, se às vezes se vêem attacados de improviso por algum carniceiro, batem-se com denodo e, não raro, com vantagem, empregando na lucta os dentes—um terrivel instrumento, como é facil prevêr pelas devastações que com elle fazem nos logares arborisados. . Ha no entanto para os castores um inimigo cruel e justamente te- mido: a lontra. Este animal não só é dotado de uma força extraordina- ria, mas, o que mais importa, nada melhor ainda que o castor e mer- gulha tão bem como elle, podendo assim attacal-o, perseguil-o até ao fundo das tocas, como realmente faz impellido por uma extrema voraci- dade. CAÇA Poucos animaes haverá que o homem persiga com tamanha tenaci- dade e tanta insistencia como o castor. A razão d'este facto está na im- mensa utilidade que d'elle se pode tirar, como adiante veremos fallando dos usos e productos. Os processos mais seguidos na caça do castor, consistem principal- mente em dispôr armadilhas sobre as tocas, attrahindo o animal por meio de ramos frescos, o melhor e mais seguro dos engodos, ou em abrir no inverno buracos profundos no gelo apanhando o animal no mo- mento em que elle ahi chega para respirar. Um outro processo, menos vulgar mas adoptado algumas vezes, é o de partir o gêlo que fica pro- ximo das casas que elles habitam, collocar ahi uma rede grande e con- sistente, derrubar as casas e apanhar depois n'essa rede os animaes expilados pelo susto. Muitas vezes por causa d'estas caçadas ha entre os homens vivas polemicas que nem sempre terminam sem vivos e sangrentos combates. À caça do castor offerece alguns perigos; o animal defende-se vigo- MAMIFEROS EM ESPECIAL 483 rosamente, não sendo raro que o inimigo appareça coberto de feridas, que são como o testemunho de uma lucta porfiada. CAPTIVEIRO Os castores, apanhados e reduzidos ao captiveiro emquanto novos, domesticam-se de um modo completo e com immensa facilidade. Hearne, Klein, Buffon, Brehm, Figuier e Milne Edwards affirmam que é muito vul- gar chegarem estes roedores à profunda e intima domesticidade que ca- racterisa o cão, manifestando, como este animal, alegria ou tristeza se o dono d'elles se approxima ou ausenta. O aceio extremo, que é uma das suas qualidades proeminentes, faz d'elles companheiros agradaveis. De resto, habituam-se muito rapidamente aos alimentos de que o homem se serve, tornando-se assim muito facil conserval-os dentro de casa. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA À area de dispersão dos castores é ainda hoje grande e foi já muito maior. Existe na Asia, na Europa e na America, notando-se porém em todos os pontos em que elle habita, um espantoso decrescimento do seu numero. «É triste affirmal-o, diz Figuier, mas a verdade é que o castor desapparece cada vez mais tanto na America como em qualquer outra parte. É tão desmesurada a caça que se lhe faz que o numero tem desde - ha um seculo diminuido constantemente por modo que pode prevêr-se o momento em que a especie terá desapparecido. O homem abusa de tudo, privando-se voluntariamente de gosos que com um pouco menos de avidez poderia prolongar indefinidamente.» ! Ernesto Menault escreve tambem: «As sociedades de castores mantiveram-se sobre o nosso solo até ao fim da edade media, a despeito de todos os attaques do homem. Á me- dida que este aperfeiçoava as suas armas e os seus processos de caça, os castores redobravam de prudencia, de astucia, de sagacidade. Por 1 Figuier, Les Mammiftres, pg. 457. « 484 HISTORIA NATURAL fim, como a vida em commum importava comsigo enormes perigos, foi preciso: que renunciassem às doçuras da associação. As familias disper- saram-se e não encontrando segurança nas casas, que attrahiam a atten- ção do homem, os castores procuraram um refugio nas fendas dos roche- dos escarpados, que marginavam os cursos d'agua. Foi assim que este roedor renunciou à vida social, que adoptou costumes e habitos inteira- mente novos, que creou uma nova industria, que o constructor em fim se tornou mineiro, precisamente ao contrario do homem que, occulto primeiro nas cavernas, só mais tarde construiu á luz as suas cabanas, quando não receiava já os animaes ferozes.» ! Embora em pequeno numero, existem ainda hoje na Europa colo- nias de castores constructores. Em 1827, não longe de Magdeburgo, um observador allemão descobriu uma bastante numerosa. Na America estas colonias vão rareando tambem sob a influencia da caça; cada vez nos affastamos mais das noticias de Hontan que ha cento e oitenta annos di- zia ser impossivel marchar quatro horas consecutivas nas florestas de Canada sem encontrar um tanque de castores. ACLIMAÇÃO A immensa utilidade que do castor pode tirar-se, trouxe ao espi- rito de alguns homens a idéa de proteger este animal procurando-lhe, junto dos cursos d'agua ou em tanques, as condições mais necessarias à plena manifestação dos seus instinctos naturaes. E assim em Modlin (Po- lonia) e em Paris se fizeram nos ultimos vinte annos algumas tentativas de aclimação, coroadas do melhor exito. O processo posto em pratica para a consecução do fim, é extremamente simples; consiste em plantar nos pontos onde se deseja auxiliar o- estabelecimento e a multiplicação dos castores, as arvores de que estes animaes habitualmente se servem na construcção dos seus edificios. Procedendo assim e abstendo-se por alguns annos da caça dos cas- tores, consegue o homem obter, onde lhe approuver, a presença effe- ctiva d'estes utilissimos e sympathicos roedores. Em face d'estes resultados o Dr. Sacc, naturalista cujo nome aqui citamos por mais de uma vez, observou, a nosso vêr com extrema luci- 1 Citado por Figuier, Loc. cit., pg. 457. 4 MAMIFEROS EM ESPECIAL 485 dez, que favorecendo, o estabelecimento e a multiplicação dos castores, teria o homem um meio muito simples de utilisar os immensos panta- nos, hoje não só desnecessarios mas até prejudiciaes, do Este e Norte da Europa. USOS E PRODUCTOS Alguns prejuizos que faz, de resto perfeitamente insignificantes, por- que se limitam à destruição parcial de algumas arvores em logares ge- ralmente desertos, compensa-os o castor exuberantemente pela muita utilidade que d'elle tiramos. O seu péllo é, e foi sempre, muito estimado; as sedas servem para a fabricação de chapeus, de luvas, de estofos, de todo o genero de obje- ctos de agazalho. Uma só pelle fornece setecentos e cincoenta grammas de pêllos sedosos e vende-se em França, segundo refere Gerbe, pelo preço de trinta a setenta e cinco francos. A carne, especialmente se o animal se alimentou de nenuphares, passa por ser deliciosa; a da cauda, sobretudo, é considerada um prato delicadissimo que n'outro tempo se pagava a doze francos. O castoréum applicado largamente na therapeutica antiga como an- tispasmodico e pago a razão de quarenta francos por cada cem gram- mas, é ainda hoje empregado com as mesmas indicações, embora mais raramente, e pago pelo decuplo. Comprehende-se em face do que acabamos de dizer todo o alcance da lembrança, a que nos referimos, do Dr. Sacc. OS MYOPOTAMOS O grupo dos myopotamos ou ratos fluviaes comprehende um genero unico, o coypu, cujos individuos teem em relação aos costumes alguns 486 HISTORIA NATURAL pontos de semelhança com os castores e que por isso alguns naturalistas collocam junto d'elles no arranjo taxonomico. Os myopotamos caracterisam-se anatomicamente assim: Teem o pes- coço curto e grosso, a cabeça grande, larga, curta, achatada no vertice e o focinho obtuso, os olhos de medianas dimensões, redondos e salien- tes, as orelhas pequenas, redondas, mais altas do que largas, os mem- bros curtos e vigorosos, sendo os posteriores mais compridos que os. anteriores, os dedos, que são cinco em cada membro, ligados nas patas posteriores por uma membrana natatoria, e armados todos de unhas compridas, curvas e agudas, excepto o interno das patas anteriores em que a unha é chata. A cauda é comprida, muito espessa na raiz, decres- cendo insensivelmente até à extremidade que é perfeitamente arredon- dada, escamosa e coberta de péllos rijos e cerrados. O pêllo é em geral espesso, muito comprido e macio e quasi impenetravel à agua. Os inci- sivos, grandes e largos, recordam os dos castores. O COYPU O coypu, conhecido vulgarmente em França pelo nome de castor dos pamtanos tem pouco mais ou menos as dimensões da lontra. A raiz dos péllos é geralmente côr de ardozia e a extremidade ruivo-escura ou amarello-escura. De resto, a côr é muito variavel. COSTUMES Os coypus frequentam, no dizer de Rengger, a beira dos rios e de preferencia as aguas tranquillas em que as plantas aquaticas formam à superficie um estrado capaz de sustental-os. Formam, como os castores, à beira d'agua tocas de um metró e MAMIFEROS EM ESPECIAL 487 vinte e cinco centimetros de comprimento e cincoenta até sessenta e cinco centimetros de diametro, onde passam a noite e uma grande parte do dia. E n'estas tocas que a femea realisa o parto, dando à luz quatro a seis filhos. Os coypus são magnificos nadadores, mas maus mergulhadores. Em terra, os seus movimentos são morosos, o que não causa extranheza se pensarmos que os seus membros são tão curtos que o ventre do animal quasi rasteja pelo solo. São timidos; em caso de perigo, fogem sempre, ora mergulhando, ora internando-se nas tocas. CAÇA Em Buenos-Ayres faz-se a caça a estes animaes empregando cães perfeitamente amestrados em os perseguirem na agua e que com elles se batem vigorosamente, Outras vezes empregam-se, como na caça do castor, armadilhas que se collocam à entrada das tocas. A timidez excessiva destes roedores torna a sua caça dificil. CAPTIVEIRO O coypu velho é indomesticavel; apanhado, enfurece-se, procura constantemente morder e recusa todo o genero de alimentação, mor- rendo n'um curto espaço de tempo. Quando novo, aceita o captiveiro sem resistencia, acabando por se domesticar tão completamente como o castor. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Habita uma grande parte da zona temperada da America meridional. É muito commum em Buenos-Ayres e no Chili central. «A sua area de dis- 488 HISTORIA NATURAL persão, diz Brehm, estende-se desde o Oceano Atlantico até ao Pacifico, attravessando a cordilheira dos Andes e desde o vigessimo quarto grao até ao quadragessimo terceiro de latitude austral. Falta no Perú e na Terra-do-fogo.» ! USOS E PRODUCTOS A pelle d'estes animaes é muito procurada, porque o seu pêllo serve para fazer chapeus de finissima qualidade e outros objectos: largamente empregados como agasalho. Assim se explica a exportação enorme que se faz das pelles para a Europa e o preço excessivo por que aqui se vendem. Em algumas localidades a carne é tambem aproveitada pelos indi- genas como alimento. OS RATOS São de todos conhecidos os roedores que formam este grupo, não só porque os estragos que causam teem sobre elles attraído em todos os tempos as attenções dos naturalistas, senão porque acompanham sem- pre o homem, encontrando-se hoje até nas ilhas mais remotas e menos frequentadas. Esta dispersão prodigiosa não é muito antiga; em muitas localida- des conhece-se a data da apparição d'estes pequenos mamiferos. Ora, como Brehm observa, o homem não tem de agradecer a estes animaes a sollicitude com que por toda a parte o acompanham; pelo contrario elle precisa de empregar, e emprega realmente todos os processos ima- É Obr. cit., pg. 190, vol. 2.º MAMIFEROS EM ESPECIAL 489 ginaveis para se libertar de uma companhia por tantos titulos incom- moda. O motivo da fidelidade dos ratos ao homem, mantida inalteravel- mente, a despeito de todas as perseguições, ninguem o ignora; os ratos acompanham o homem pela razão toda egoista de que junto d'elle en- contram alimentos e abrigo. São ladrões domesticos, atrevidos e impeni- tentes; é esta talvez a razão por que os consideramos geralmente ani- maes repugnantes, quando é certo que alguns, pelo contrario, são ele- gantes e bonitos. As especies do genero rato teem sido distribuidas em grupos mul- tiplos, segundo attributos differenciaes de muito pouco valor, deduzidos do comprimento da cauda e da forma da maxilla. A despeito d'estas divisões, nós podemos descrevel-os de um modo geral. Os ratos teem de ordinario o focinho ponteagudo, coberto de pêl- los, o labio superior largo, fendido, as orelhas salientes, a cauda com- prida, coberta de péllos raros e de escamas quadrangulares e imbrica- das. Os mollares são trez em cada maxilla, diminuindo de grandeza de diante para traz, de corda tuberculosa, achatando-se com o tempo e apresentando fachas de esmalte transversaes que podem desapparecer pelo uso nos individuos velhos. Os péêllos são compridos, rijos e de sec- - ção longitudinal. As côres predominantes são o trigueiro e o branco amarellado. O vulgo estabelece dois grandes grupos no genero dos ratos, re- servando este nome para designar os pequenos e o de ratazana para designar os de maiores proporções. A sciencia acceita e adopta a divi- são vulgar. O RATO GRANDE CASEIRO OU RATAZANA E O RATO DECUMANO CASEIRO CARACTERES DO PRIMEIRO Este rato é de uma côr muito uniforme, um trigueiro carregado de dorso e cauda que vae pouco e pouco tornando-se mais claro, à medida 490 HISTORIA NATURAL que se approxima do ventre. O macho adulto tem o comprimento total de trinta e seis centimetros, dos quaes dezeseis pertencem à cauda que é mais comprida, portanto, que o resto do corpo e coberto de duzentas e cincoenta a duzentas e sessenta escamas. CARACTERES DO SEGUNDO O rato decumano é maior que o precedente; tem de ordinario cin- coenta e dois centimetros de comprimento, dos quaes dezenove perten- cem à cauda. À parte central do dorso é em geral de côr mais escura que os lados; estes affectam em geral uma tinta amarella-pardacenta. A parte superior do corpo é de um cinzento escuro e a inferior mais clara, sendo as duas cores bem claramente separadas. Encontram-se tambem ratos brancos com os olhos vermelhos. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA DO PRIMEIRO As investigações dos naturalistas ácerca da origem e distribuição do rato grande caseiro, levam a crêr como provavel que esta especie veio da Persia para a Europa, onde já se encontrava no seculo xrr da nossa era, tendo fixado dominios primeiro na Allemanha e posteriormente em toda a terra, acompanhando o europeu nas suas excursões. Actualmente pode dizer-se que, exceptuados os pontos extrema- mente frios, não ha região onde este animal não exista. Está averiguado que este animal existe hoje em muito menor nu- mero na Europa do que em outro tempo aconteceu. O facto explica-se perfeitamente pela perseguição sem treguas que lhe move o seu congé- nere, o rato decumano. MAMIFEROS EM ESPECIAL 491 DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA DO SEGUNDO Segundo todas as probabilidades o rato decumano é originario da Asia central, da India ou da Persia. A sua passagem para a Europa fez-se a bordo dos navios mercantes com carreira entre esta parte do mundo e a Asia. Em 1732 appareceu pela primeira vez na Inglaterra, em 1750 na Prussia oriental, em 1753 em Paris, em 1780 era conhe- cido já em toda a Allemanha; na Dinamarca é conhecido sómente ha ses- senta annos e na Suissa apenas desde 1809. Em 1775 foi transportado para a America do Norte, onde se espalhou rapidamente. Não se sabe precisamente a epocha em que penetrou em Hespanha, Portugal, Marro- cos, Algeria, Tunis e Cabo da Boa-Esperança; o que é certo é que hoje se encontra largamente espalhado em todas as costas do Oceano. Como são maiores e mais vigorosos que os ratos ordinarios, os decumanos as- senhorearam-se dos logares que estes habitavam e teem augmentado à proporção que os outros diminuem. COSTUMES As duas especies, cujos caracteres e distribuição geographica aca- bamos de expôr, teem costumes analogos; por isso os comprehendemos n'uma descripção unica. O rato decumano habita sempre os andares inferiores das habita- ções, as covas, os sub-solos, os esgotos, os canos, as margens dos ria- chos; pelo contrario, o rato grande caseiro habita os andares superio- res, os selleiros, as quintas cultivadas. Esta é talvez a unica differença que entre os costumes das duas especies temos de notar. | Um e outro, rato grande caseiro e rato decumano, fazem sua todá a habitação humana onde podem encontrar alimento. Todos os pontos das nossas casas lhes são por egual commodos, desde os salões e os gabinetes mais aceiados até às sentinas e aos canos de esgoto. «Admiravelmente organisados para a destruição, diz Brehm, traba- lham sem interrupção no sentido de atormentar, de aflligir o homem, de lhe causar os mais sensiveis prejuizos. Estacadas, paredes, portas, fe- 492 HISTORIA NATURAL chaduras, nada é bastante para nos collocar ao abrigo das suas incur- sões. Se não encontram caminho, abrem-o, furando as mais espessas ta- boas de carvalho e até mesmo as paredes. Só alicerces profundos, de cimento solido, ou pedaços de vidros associados a pedras, conseguem suspender-lhes a passagem. Mas se, por infelicidade, uma só pedra se destaca, está aberta para elles uma brecha e superado um obstaculo.» 4 “O que mais devemos temer n'estes roedores, é a extrema voraci- “dade que os caracterisa. Tudo lhes serve, podendo affirmar-se com Brehm que não ha uma unica substancia alimentar solida de que usemos que não seja partilhada pelos ratos. Mas vão mais longe ainda; não lhes bastando o que o homem come, ainda utilisam como alimento animaes vivos ou mortos, corpos em decomposição, fezes mesmo. Todos os Wtêndoros de gado sabem por experiencia quanto são pe- rigosos os ratos. Aos porcos que por um excesso de gordura se torna- ram insensiveis ou incapazes de se defenderem, arrancam a pelle, as orelhas, a cauda. Comem a membrana palmar dos patos, roubam às pe- rúas que estão no choco porções do dorso e das coxas, arrastam os pa- tos novos até à agua, affogando-os e devorando-os depois à vista das mães. Em todos os logares em que o seu numero é grande, constituem um verdadeiro flagello. E o que é certo é que não poucas vezes apre- sentam-se em quantidade verdadeiramente prodigiosa. Gerbe refere que em Paris se mataram n'um só ponto destinado a esta operação dezeseis mil no espaço de quatro semanas e que em Montfaucon existia um nu- mero tal d'estes roedores que n'uma só noite ahi foram por elles devo- rados os cadaveres de trinta e cinco cavallos. A seguinte passagem de Brehm é curiosissima: «Quando eu era creança não havia em casa um gato capaz de attacar os ratos. Os que tinhamos eram uma especie de meninos amimados que, quando muito, se permittiam a distracção de apanhar alguns dos mais pequenos. Nestas condições os ratos multiplicaram-se de modo a não nos permitti- rem um momento de repouso. Quando iamos jantar, desciam elles as es- cadas, entravam na sala, chegavam até à meza e investigavam se existia qualquer coisa que lhes servisse; se nos levantavamos para Os caçar, fugiam, mas um instante depois estavam de volta. De noite corriam pe- los forros, fazendo ecco em toda a casa, como se fôra um exercito de barbaros em movimento.» 2 Ninguem que tenha habitado uma casa velha deixará de confirmar esta passagem do escriptor allemão. 1 Obr. cit., vol. 2.º, pg. 104. 2 Obr. cit., vol. 2.º, pg. 105. E o MAMIFEROS EM ESPECIAL 493 “Os maritimos incommodam-se extraordinariamente com a presença d'estes roedores que dentro dos navios velhos existem sempre em quan- tidade assombrosa. Quando o vaso vae bem provido de mantimentos e a viagem é longa, os ratos multiplicam-se de um modo prodigioso, sendo insuflicientes para os matar todos os processos empregados; assim não deixam nunca de causar prejuizos consideraveis. Quando Kane fez a sua viagem aos mares polares, sendo retido muitas vezes pelos gelos, a quantidade de ratos que se multiplicaram dentro do navio forçou este viajante a pôr em execução os mais estranhos processos de exterminio. Uma vez fechou todas as saídas do navio, obrigou a tripulação a passar a noite inteira na amurada e fez queimar no espaço confinado do porão uma mistura de enxofre, de coiro e de arsenico. No dia seguinte obser- vou que o meio empregado não produzira o minimo resultado. Outra vez acendeu uma grande quantidade de carvão esperando exterminar por este processo toda a enorme legião de ratos. No rapido espaço de alguns instantes todo o porão e entreponte estavam cheios de gaz toxico; dois marinheiros que tiveram a imprudencia de lá descer cahiram asphixia- dos. N'essa mesma noite manifestou-se fogo dentro do navio. Apesar de tudo, no dia immediato apenas se encontraram vinte cadaveres de ratos. A multiplicação continuava sempre. Kane recorreu a um novo expe- diente: introduziu no porão o melhor dos cães que possuia. Pouco tempo depois porém, attraído pelos latidos do animal, foi-lhe facil descobrir que na lucta a victoria pertencia aos ratos, que ao pobre cão haviam roido a planta dos pés. Os unicos processos que, ao fim de tantos ensaios, de- ram resultado, consistiram na caça pelos tiros de frecha, serviço a que se prestou um esquimó, e em fechar no porão uma rapoza que os ma- tou pouco e pouco, servindo-se d'elles como alimento. Conta Herodoto que aos ratos se deve attribuir a victoria de Seve- chus, rei dos Egypcios sobre Sennacherib, rei dos Arabes e dos Assyrios. Este avançára e encontrava-se já muito perto do exercito de Sevechus que não tinha forças para lhe resistir, quando uma espantosa multidão de ratos se lhe espalhou nos acampamentos, roendo as cordas dos arcos e todas as correias dos escudos. Assim desarmados e em estado de não poderem defender-se, os Assyrios viram-se forçados a retirar perdendo um grande numero d'homens. Como este facto, ha muitos narrados por Plinio e Strabon, attestando a perigosa importancia dos ratos. Nos exercicios corporeos são os ratos perfeitos mestres. Correm com extrema rapidez, trepam admiravelmente, nadam com espantosa perfei- ção, dão pulos consideraveis e sabem cavar a terra. De todos os sentidos, o olfato e o ouvido são os mais perfeitos, o que não quer dizer que a vista e o paladar sejam maus. É certo, como acima dissemos, que instigados pela fome, chegam a comer cadaveres 494 HISTORIA NATURAL em putrefacção; mas quando se encontram em face de um selleiro bem provido, sabem fazer selecção. Tambem se lhes não pode negar a astucia; ás vezes, apanhados em - ratoeiras simulam a morte para que os ponham em liberdade. Nas relações sexuaes ha uma selecção baseada sobre a força; os machos combatem entre si para a posse da femea. A gestação dura um mez apenas e de cada parto resultam desde cinco até vinte e um pis reproducção verdadeiramente espantosa. CAÇA Os meios empregados para a extincção dos ratos podem dividir-se em dois grandes grupos: artificiaes, consistindo no uso de substancias venenosas, de armadilhas, e naturaes, que se reduzem à caça dada pelos animaes. D'entre os primeiros, o processo mechanico da ratoeira não dá re- sultado satisfactorio quando o numero dos animaes é muito grande. O processo chimico, que consiste no emprego de substancias toxicas con- duz melhor ao resultado, mas tem de ordinario gravissimos inconvenien- tes. O rato vomita muitas vezes parte do toxico, envenenando assim, não raro, as substancias alimentares de que fazemos uso. Dos meios ar- tificiaes o mais seguro e que não tem perigos, consiste em propinar aos terriveis roedores uma mistura de malt ou farinha de cevada e de cal viva; esta mistura excita-lhes uma sêde prodigiosa para apagar a qual são forçados a beber uma quantidade d'agua sufficiente para os matar. Os meios naturaes são sempre os melhores. Os corvos, as doninhas, as aves de rapina nocturnas, os gatos e os cães rateiros são inimigos terriveis do rato dos quaes aproveitamos sempre o auxilio com ni dinaria vantagem. | Ás vezes, todos sabem isto, os gatos não se atrevem a attacar os ratos, ou porque estes são sufficientemente vigorosos para lhes não per- mittirem a victoria, ou porque, razão muito vulgar, o gato anda saciado de alimento e nada o estimula à caça. Estes inconvenientes são porém faceis de remediar; escolhe-se um gato vigoroso e dá-se-lhe pouco ali- mento. Procedendo assim teremos dentro de casa um companheiro sem- pre disposto a garantir-nos contra as devastações, realmente muito sen- siveis, dos ratos. De resto, devemos observar que não é essencial da MAMIFEROS EM ESPECIAL 495 parte do gato uma grande paixão pela caça; basta em geral a presença d'elle para afugentar os ratos. O gato, ainda mesmo quando não seja um grande caçador, é pois sempre o melhor auxiliar que o homem tem para se libertar dos hospedes importunos. Os cães rateiros desempenham func- ções analogas. Os foetas em casa e as doninhas nos jardins e terrenos circumvisi- nhos prestam não menores serviços. Roubam, é certo, de tempos a tem- pos um ovo, uma gallinha, etc., inconveniente porém a que com facili- dade se obsta fechando as portas com cuidado; ao passo que contra os ratos não ha precauções que bastem. Existe ainda um meio de destruição que dá sempre resultado e que é o seguinte: N'um logar frequentado pelos ratos, perto de uma sentina por exemplo, cava-se no solo um buraco cujo fundo se cobre com louza e as paredes tambem; o buraco deve ter um metro e vinte centimetros de profundidade e a abertura, quando muito, metade das dimensões; as paredes são assim inclinadas, por forma que os ratos cahidos ao fosso não podem fugir, trepando. Depois colloca-se no fundo do buraco um pe- queno vaso de cinco centimetros de altura munido de uma abertura muito estreita por onde um rato não caiba, contendo mel ou outra subs- tancia das que estes roedores preferem e reconhecem facilmente pelo cheiro; para que uma gallinha ou qualquer outro animal domestico não caia ao buraco colloca-se na abertura d'este uma grade. Por esta forma está armada e disposta a melhor das ciladas conhecidas. Um primeiro rato, attraido pelo cheiro, cae ao fosso, procura o alimento e nada en- contra; passado um certo tempo a fome accommette-o, procura sair, mas todos os esforços são baldados. Então um novo rato vem cair junto do primeiro; procuram em commum o alimento, forcejam de novo e inu- tilmente ainda por fugir; o primeiro porém, instigado pela fome que não pode supportar, atira-se ao segundo que devora completamente. Um terceiro vem, faz as mesmas tentativas que o primeiro e segundo, mas baldadamente como elles e acaba por attacar, movido pela fome, o com- panheiro repleto. Com um quarto succederá o mesmo e assim com todos os que forem caindo ao fosso. É um processo, engenhoso, facil, seguro e barato, no qual a propria avidez e instinctos carnifices dos ratos são pelo homem aproveitados na destruição d'elles mesmos. 496 HISTORIA NATURAL CAPTIVEIRO Os ratos reduzem-se ao captiveiro e domesticam-se como todos os roedores. À cada passo attravessam as cidades e villas europeas e ame- ricanas hystriões que exhibem à populaça ratos domesticados a que dão o nome ingenuamente ambicioso de ratos sabios. Estes roedores execu- tam sortes, por vezes trabalhosas, e obdecem com docilidade e demons- trações de intelligencia à voz do dono. Figuier conta que Latude, largo tempo captivo na Bastilha, sendo desapiedadamente acomettido pelos ratos que chegavam a mordel-o gravemente, se resolveu, por não poder destruil-os, a entrar com elles em relações amigaveis. Para esse fim principiou por offerecer-lhes co- mida, até que os tornou submissos pela gratidão. Por fim «vinham já, diz o prisioneiro, comer comigo no mesmo prato. Como esta confiança me parecesse demasiada, tomei a resolução de lhes pôr talher especial à parte.» * USOS E PRODUCTOS Em compensação dos enormes prejuizos que causam ao homem, os ratos nada teem que offerecer. As virtudes therapeuticas que outros se- culos attribuiram a diversos orgãos destes roedores, são simplesmente chimericas. Apenas nas grandes crises de fome se podem aproveitar e aprovei- tam como alimento. Foi o que em Paris aconteceu durante a epocha pro- fundamente dramatica do cêrco d'esta cidade pelos allemães. N'esses dias calamitosos um rato era uma preciosidade. 1 Citado por Figuier, in Mammiftres, pg. 420. MAMIFEROS EM ESPECIAL 497 O RATO PEQUENO CASEIRO Assemelha-se notavelmente aos ratos que acabamos de descrever, sendo todavia de proporções menores, mais elegante e mais bem pro- porcionado. Tem de ordinario, quando adulto vinte centimetros de com- primento. O pêllo apresenta uma côr trigueira de mistura com pardo- amarelado. Este roedor, como todos os ratos pequenos, tem uma expressão “Suave, viva, agradavel. O olhar é brilhante e todos os seus movimentos são para o observador um espectaculo tão curioso como aprazivel. A despeito de todas estas qualidades, o rato pequeno caseiro é odiado e perseguido pelo homem. COSTUMES Encontra-se o rato pequeno caseiro em todos os logares habitados pelo homem. No campo estabelece-se muitas vezes ao ar livre, nos jar- dins e nos terrenos proximos das nossas casas; nas cidades só se encon- tra nas habitações e suas dependencias. Todos os buracos, por estreitos que sejam, todas as fendas servem para alojal-o, tornando-se o centro de excursões prejudicialissimas. “O rato pequeno caseiro é um animal vivissimo, que corre com prodigiosa velocidade, trepa admiravelmente e dá saltos de notavel ex- tensão. Basta observar um d'estes pequenos roedores domesticados para fazermos idéa da ligeireza e da graça com que executa todos os seus movimentos. Á voz do domesticador marcha ao longo de uma bengala, mantem-se em pé e dá n'esta posição forçada alguns passos. Sabe nadar com grande perfeição; de ordinario não vae à agua, mas se O atiram a um tanque, a um lago, a um rio nada desde logo, fendendo a agua com extrema rapidez. Todos os sentidos do rato pequeno caseiro são desenvolvidos; ouve o mais leve ruido, tem um olfato muito sensivel e vê bem, melhor tal- vez de noite que de dia. 32 498 HISTORIA NATURAL Se não fossem os roubos e destruições de que é justamente accu- sado, seria, porque tem para isso qualidades de caracter, estimado pelo homem. Distingue-se profundamente da ratazana; é docil e desprovido de tendencias agressivas. Caracterisa-o uma extrema curiosidade que o leva a tudo examinar cuidadosamente. Quando em prisão, o rato pequeno caseiro excede em docilidade e mansidão todos os outros roedores. Todos os naturalistas fallam do amôr dos ratos pequenos caseiros à musica. Affirmam alguns que ouvindo tocar, estes ratos saem dos buracos e se approximam dos instrumentos, perdendo toda a timidez que ordi- nariamente os caracterisa; tem-se dito mesmo que quando entram de noite n'uma sala onde se deixou um piano aberto, estes pequenos ratos se permittem o gozo de correr sobre o teclado ou sobre as cordas des-' ferindo notas e satisfazendo assim a sua paixão musical. Mas ha mais. Embora Brehm apresente sobre o facto algumas duvidas, accumulam-se comtudo os documentos e as informações de muitos observadores ten- dendo a provar que os ratos pequenos caseiros chegam a imitar o canto do canario. Bampfield que possuiu d'estes ratos que podemos chamar, como Wood, melomanos, diz: «Se o canto dos ratos pequenos não tinha a força, o brilho, a plenitude do canto do canario, era comtudo talvez mais suave e mais terno. Muitas vezes os ouvi, de noite, emquanto o canario dormia com a cabeça sob a aza, e mais de uma vez um visitante, olhando o passaro, me perguntou: é o canario que canta assim?» Wood diz tambem: «Um homem digno de fé affirmou-me que tivera ratos me- lomanos, e eu creio bem que os ratos novos creados. com canarios lhes aprendem o canto. Um escriptor que viajou na China refere tambem que os habitantes de uma parte d'este imperio possuem, em vez de canarios, ratos cujos . cantos causam extraordinaria admiração aos europeus. O Dr. Eichelberg publicou observações analogas que teve occasião de colher durante o tempo da sua prisão. Um dia, em Novembro de 1846, à hora do crepus- culo, ouviu pela primeira vez um canto de canario que lhe pareceu par- tir da chaminé. Pensou na occasião que um passaro se tivesse trans- viado; dias depois porém ouviu de novo o canto, parecendo-lhe então que sahia do forro. «Esse canto, diz o observador, não differia do canto do canario; o timbre era suave, melodioso, sendo os gorgeios prolon- gados, ininterruptos.» O prisioneiro investigando bem descobriu ser um rato, o cantor. O carcereiro e o chefe da prisão, verificaram o facto tambem. O mesmo auctor conta que um rato cantador foi apanhado em Cas- sel, no estabelecimento de um negociante por nome Grundlach. | Não podemos dizer precisamente aonde, mas recordamo-nos de ter = ME o q a a gr ii À ii di ad SC SS da MAMIFEROS EM ESPECIAL 499 lido que em França um preso contára muitas vezes aos companheiros que ouvia de noite um canto semelhante ao do canario e que saia do sobrado. Ao principio suppoz-se que o homem fosse victima de uma hal- lucinação auditiva e depois chegou-se a pensar que definitivamente en- doidecêra quando elle disse que o canto era de um rato. A instancias porém do homem, o carcereiro, o medico e alguns presos verificaram, não sem espanto, o facto singular. Os jornaes parisienses occuparam-se do caso, que em realidade tem grandes analogias com o referido por Eichelberg. | Brehm crê que se deve indagar minuciosamente destes factos, pa- recendo assim que no espirito d'este naturalista subsiste um fundo de duvida. O estudo minucioso, a indagação paciente, aqui, como em tudo, não podem ser senão vantajosas; no entanto os documentos insuspeitos são em numero tal, que nos sentimos naturalmente dispostos a crêl-os uma prova. Todas as boas qualidades do rato pequeno caseiro se desvanecem e são esquecidas pelo homem em face da golodice extraordinaria que o caracterisa e para satisfazer a qual é levado a roubos successivos. Todos os alimentos lhe servem. A carne, o leite, a gordura, o queijo, os fructos, tudo é bom para o rato pequeno caseiro, tudo elle rouba, em tudo deixa, se pode fazel-o, os vestigios dos seus dentes de roedor. Annula todos os obstaculos, vence toda a ordem de dificuldades para attingir os alimentos; chega a furar portas de uma espessura considera- vel, levando, sem desalentos, dias inteiros a executar esta operação. Se encontra alimentos em abundancia, leva-os para um buraco e ahi os junta com toda a avidez de um avarento. O rato pequeno caseiro bebe pouca agua ou mesmo nenhuma se a comida é succolenta; em compensação manifesta uma extraordinaria avi- dez pelas bebidas espirituosas. A este proposito encontra-se nas Maravi- lhas da Natwreza de Brehm a seguinte passagem: «Em 1843, escreve-me Blolck, fui perturbado um dia, em quanto estava escrevendo, por um li- geiro ruido, e vi um pequeno rato caseiro que procurava subir pelo pé de uma meza. Tendo-o conseguido, comeu as migalhas de pão que esta- vam n'um prato ao meio do qual se encontrava um copo com agua-ar- dente. De um salto o rato trepou à borda do copo, debruçou-se, bebeu e desceu, mas para subir d'ahi a instantes e tomar uma nova dose. Per- turbado pelo ruido que eu fiz então, saltou abaixo da meza e desappa- receu por traz de um armario. O alcool porém, produzia já os seus effei- tos; passados instantes reapparecia o rato executando movimentos exces- sivamente comicos e tentando em vão trepar de novo à meza. Levantei-me e dirigi-me para elle, sem que isto de modo algum o perturbasse; ia procurar um gato quando elle fugiu, mas para voltar passados momen- * 500 HISTÓRIA NATURAL tos. O gato que eu trouxera, facil é prevêl-o, não teve dificuldade em apanhar o rato embriagado.» * Os estragos produzidos pelo rato quando nos come os alimentos, por importantes que sejam, são-o todavia muito menos que os produzidos quando nos roe objectos de valor. Nas bibliothecas e nos museus é que os prejuizos causados por este roedor, se tornam importantes, verda- deiramente incalculaveis mesmo. O rato pequeno caseiro multiplica-se de um modo prodigioso. À gestação não dura mais de vinte e dois a vinte e quatro dias e o nu- mero de filhos é em cada parto seis ou oito. Assim a femea tem de or- dinario cinco a seis partos por anno, o que produz, pelo menos, trinta individuos novos. Esta frequencia espantosa de gestações explica a mul- tiplicação extraordinaria d'estes roedores, a ORAR do numero dos seus inimigos naturaes. A femea realisa os seus partos em todo e qualquer ponto que lhe offereça uma certa molleza e segurança; às vezes é dentro de saccos, sobre couves, n'uma gaveta desde muito fechada, em roupa abando- nada, outras vezes até nas proprias ratoeiras. O ninho é de ordinario forrado de palha, de feno, de papeis, de pennas, emfim de objectos mol- les que o animal encontra e acumula durante o periodo de prenhez. Os ratos no momento em que nascem são pequenissimos, desnuda- dos e cegos. Ao fim porém de sete ou oito dias os pêllos apparecem e ao decimo terceiro dia os olhos abrem-se. Depois disto, tendo adqui- rido já dimensões regulares, poucos dias se conservam dentro do ninho; procuram desde logo o alimento. A mãe dedica-lhes grandes cuidados, chegando a expôr-se por elles a perigos grandes. Podemos estar certos de que encontrando uma femea"com a ninhada a apanharemos sem dif- ficuldade,. porque ella nem sequer tenta fugir. INIMIGOS Dentro das nossas habitações o peor inimigo dos ratos é o gato e depois o cão rateiro. Nas casas em ruina acresce o mocho e nos cam- pos 0 foeta, a doninha, o ouriço cacheiro e o musaranho que, apesar 1 Loc. cit., pg. 114. EE CAE rá EE Sd SN a NUR O ER O O O a E O MA MAMIFEROS EM ESPECIAL 501 das suas dimensões insignificantes é terrivel na caça ao rato, muito mais fraco do que elle. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Como fiel companheiro ou antes seguidor do homem desde tempos immemoriaes, o rato pequeno domestico existe em toda a superficie da terra, se exceptuarmos as ilhas de Sonda, onde não penetrou. Já os na- turalistas e observadores antigos, como Aristoteles, Plinio e Alberto o Grande, o descreveram como animal cosmopolita. “O RATO PEQUENO DOS MATTOS Mede pouco mais ou menos vinte e cinco centimetros de compri- mento, pertencendo metade à cauda, provida, como a do rato pequeno caseíro de escamas em numero de cento e cincoenta. Tem a parte superior do corpo geralmenté arruivada, o ventre e as patas brancas. As orelhas medem, tambem como a dos ratos pequenos caseiros, metade do comprimento da cabeça. COSTUMES Habita ordinariamente os mattos, os bosques, os jardins e raras vezes os campos descobertos. Nas montanhas chega muitas vezes à al- tura de dois mil metros. De inverno procura as nossas habitações pre- ferindo sempre os andares superiores. 502 HISTORIA NATURAL É tão agil em todos os movimentos como o rato pequeno caseiro e o seu regimen é muito analogo ao d'este, quando dentro de casa. Em liberdade, sustenta-se de insectos, de vermes, de pequenas aves até, de fructos, de caroços de cerejas, de nozes, de glandes e, em casos de ne- cessidade, de cascas d'arvores. Faz provisões para 0 inverno, apesar de não cahir em somno lethargico; estas provisões são-lhe recurso nos dias em que o mau tempo não permitte saír em busca de alimento. De noite penetra nas gaiolas e mata as pequeninas aves. Tem, como o rato pe- queno caseiro, uma viva inclinação pelas bebidas espirituosas de que abusa, quando as encontra, até a uma completa embriaguez, deixan- do-se então apanhar muito facilmente. O rato pequeno dos mattos pare duas ou trez vezes por anno, dando à luz de cada vez quatro, seis ou mesmo oito filhos, que nascem cegos, crescem muito lentamente e só ao fim do segundo anno de existencia apresentam os magnificos reflexos arruivados que caracterisam o péllo n'esta especie. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Existe espalhado em toda a Europa, exclusão feita das regiões mais septentrionaes. O RATO PEQUENO AGRARIO Mede, termo medio, vinte centimetros de comprimento, dos quaes nove pertencem à cauda que tem 120 escamas. A parte superior do corpo é, como no rato pequeno dos mattos, arruivada, com fachas lon- gitudinaes negras; a cauda e as patas são brancas. As orelhas teem um terço do comprimento da cabeça. | O SD Do Do a DEDE TE o a AE MAMIFEROS EM ESPECIAL 503 COSTUMES Habita em pleno campo à beira das florestas e dos bosques pouco espessos. No inverno procura abrigo nos palheiros, nas cavallariças e nos es- tabulos. Vive tambem em buracos. O rato pequeno agrario não é tão elegante como as especies de que nos temos occupado; em compensação porém é mais docil e mais facil de apanhar. Alimenta-se o rato pequeno agrario principalmente de cereaes, de fructos, de folhas, de tuberculos, de insectos e de vermes. Junta, como o rato pequeno dos mattos provisões para o inverno. Durante o estio a femea realisa trez a quatro partos de quatro a oito filhos cada um. A proposito da reproducção d'este roedor, escreve Lenz: «Não ha muito, apanhei no meu quarto um rato pequeno agrario femea com os filhos que então principiavam a vêr; colloquei toda a fa- milia n'um logar seguro e sustentei-a bem. A mãe construiu um ninho é aleitou os filhos. Ao fim de quinze dias de um captiveiro que tinha prin- cipiado no momento em que os filhos se tornavam independentes, pariu sete outros, o que prova que realisára o acto sexual ainda em liberdade. Quanto esta femea aleitava e eu a perseguia até ao ponto de obrigal-a a fugir, os filhos mantinham-se sempre suspensos às mamas, por maior que fosse a velocidade da corrida. Outros ratos agrarios em liberdade me permittiram reproduzir a observação d'este facto curioso.» INIMIGOS Os inimigos do rato pequeno agrario são precisamente os mesmos que nomeamos a proposito do rato pequeno caseiro. Os meios emprega- dos pelo homem na destruição d'elle são os mesmos tambem. 504 HISTORIA NATURAL DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA À area de dispersão do rato pequeno agrario é menor que a das especies precedentes. É muito commum na Europa central, na Russia europea e asiatica e na Siberia. Falta sempre nas altas montanhas. O RATO DA BARBARIA A côr fundamental d'este rato é arruivada ou trigueiro-amarellada em todo o. corpo. O dorso é percorrido longitudinalmente por uma facha negra que, partindo da cabeça, se estende até à raiz da cauda; parallelamente a esta, outras fachas longitudinaes existem aos lados. A cabeça é macu- lada de negro e o ventre é branco. As orelhas são arruivadas e os pêl- los do labio superior negros, de extremidade branca; a cauda afecta uma côr extremamente escura na face superior e trigueira amarellada na face inferior. O animal mede dez centimetros de comprimento sobre quatro de altura; a cauda é sempre um pouco mais longa do que o corpo. COSTUMES Os costumes bem como o regimen dos ratos da Barbaria são muito semelhantes aos de todos os pequenos ratos de que nos temos occupado, tanto quanto pode ajuizar-se pela- descripção de Bruvy, aliás muito in- completa. MAMIFEROS EM ESPECIAL 505 Procuram de preferencia os logares pedregosos que estabelecem o limite entre as planícies ferteis e as montanhas áridas. Construem sub- terraneamente nos flancos das colinas cannaes que vão terminar a uma cavidade central e profunda, onde accumulam no estio as provisões que lhes serão recurso no tempo frio e pluvioso. São dotados de grande voracidade, como todos os ratos, e na epo- cha do cio manifestam uma grande coragem. São destros, ageis e ele- gantes. Nada se conhece sobre a sua reproducção. CAPTIVEIRO Resistem perfeitamente ao captiveiro. Muitos teem vivido largo tempo n'estas condições nos paizes da Europa para onde não raras ve- zes são transportados, graças à sua natural belleza e elegancia. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA O rato da Barbaria habita o norte e o centro da Africa. Não se en- contra esta especie no Egypto. O RATO ANÃO Entre todas as especies de ratos pequenos, o rato anão distingue-se e avantaja-se pela belleza e elegancia de formas. Mede quatorze centi- metros de comprimento, pertencendo seis à cauda; de altura não tem mais de trez centimetros. Peza em geral de trez a sete grammas. Por estes dados se vê quanto é apropriado o nome de rato anão. 506 HISTORIA NATURAL A côr do pêllo é extremamente variavel. Em geral a parte superior do corpo e a da cauda são ruivos, os lados claros, o ventre, o peito e as patas brancos. COSTUMES O rato anão encontra-se em todas as planicies cultivadas, nos can- naviaes e nos juncaes. No estio encontra-se, como o rato pequeno dos mattos e como o rato pequeno agrario, entre as searas. No inverno re- fugia-se entre as pilhas de madeira ou nos palheiros. Quando passa o inverno em liberdade, dorme a maior parte do tempo, sem comtudo cair em lethargia. Durante o estio junta provisões de que se serve no tempo frio quando os campos não fornecem alimento bastante às suas necessidades. De resto, como todos os ratos pequenos alimenta-se de cereaes, hervas e insectos de toda a ordem. Todos os movimentos do rato anão revelam uma extrema vivaci- dade; corre com ligeireza, trepa com agilidade, nada e mergulha perfei- tamente. Nos exercicios de equilibrio que faz muitas vezes sobre os ra- mos flexiveis de colmo, a cauda funcciona como orgão de prehensão, á maneira do que acontece com os macacos. «No que porém, diz Brehm, o rato anão sobreleva a todos os mamiferos e no que chega a rivalisar com as aves, é na construcção do ninho. Parece que n'este ponto a car- ricinha ou a toutinegra o ensinaram. O ninho tem uma forma arredon- dada e as dimensões de um ovo de ganso; consoante o logar em que foi construido, encontra-se situado sobre vinte ou trinta folhas de gramineas reunidas de modo a cercal-o de todos os lados, ou se encontra suspenso à distancia de um metro acima do solo nos ramos de um arbusto ou de um caniço, balouçando-se no ar. O involucro externo é formado de fo- lhas de canna ou de outra graminea, servindo as respectivas hastes de base a todo o edifício. O pequeno architecto apanha as folhas uma a. uma entre os dentes e divide-as em seis, oito ou dez tiras que entrelaça de um modo admiravel. O interior do ninho é forrado com a parte pen- nugenta superior das cannas, com amentilhos e petalas de flores; a aber- tura é pequena e lateral. As partes todas encontram-se tão estreitamente unidas que o ninho adquire uma forma solida.» ! Mais adiante o mesmo 1 Obr. cit., pg. 151, vol. 2.º MAMIFEROS EM ESPECIAL 507 naturalista acrescenta: «Sendo o ninho construido sempre, pelo menos em grande parte, com as folhas dos vegetaes que lhe servem de sup- porte, resulta d'aqui ser elle da mesma côr que as plantas ambientes. O rato anão só se serve d'esta habitação temporariamente para deposi- tar os filhos. As femeas mais velhas construem sempre ninhos mais per- feitos do que as mais novas; estas porém, procuram imital-as, o que conseguem com um anno de aprendisagem.» ! Crê-se que a femea do rato anão realisa dois ou trez partos por anno, produzindo em cada um cinco a nove filhos. A gestação não dura mais do que vinte e um dias. A mãe, de resto, prodigalisa aos filhos todos os cuidados e desvelos possiveis; affirmam os naturalistas que é sempre um bello espectaculo, o que se offerece ao observador, se elle tem a felicidade de encontrar uma familia inteira d'estes pequenos roe- dores quando a femea aleita ainda os filhos. CAPTIVEIRO A melhor occasião de submetter estes roedores ao captiveiro é quando ainda são novos e se alimentam exclusivamente do leite materno. Apanhados n'esta epocha, chegam a domesticar-se com facilidade e a supportar admiravelmente a prisão. Depois de crescidos sustentam-se com carnes, grãos e moscas. Devemos observar que à medida que vão declinando para a velhice, estes pequenos roedores, se não tivermos o cuidado de nos occuparmos d'elles assiduamente, tornam-se desconfiados, timidos. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA A distribuição geographica d'este pequeno rato é extensa. Pode di- zer-se que habita todos os paizes temperados da Europa, existindo com- tudo tambem na Inglaterra, na Allemanha, na Russia, na Siberia, em mui- tas regiões frigidissimas emfim. t Ibid., pg. 118. 508 HISTORIA NATURAL OS CRICETOS O genero designado em nomenclatura linneana pela palavra criceto, abrange cerca de doze especies cujos representantes teem pouco mais ou menos as dimensões do rato grande caseiro, mas de um corpo mais refeito, de pernas curtas e cauda muito pequena. O que principalmente caracterisa estes individuos é porém, a existencia n'elles de grandes pa- pos ao lado da bocca. As patas de traz teem cinco dedos e as de diante quatro e um polex rudimentar. COSTUMES Tratando dos cricetos em especial, melhor poderemos tornar conhe- cidos os costumes d'estes roedores. O que de um modo geral pode di- zer-se é que elles cavam tocas subterraneas com numerosos comparti- mentos, onde vivem e onde arrecadam todas as provisões. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Os cricetos encontram-se espalhados em todos os campos de cereaes dos paizes temperados da Europa e da Asia. MAMIFEROS EM ESPECIAL 509 O RATO CRICETO DO NORTE Este roedor mede cêrca de trinta e trez centimetros de compri- mento, dos quaes trez sómente pertencem á cauda. Tem o corpo refeito, o pescoço largo, a cabeça ponteaguda, as orelhas membranosas, os olhos claros, os membros curtos, os dedos finos, a cauda figurando um cone truncado na extremidade. O pêllo d'este roedor é uma mistura de pen- nugem curta, macia e de sêdas longas e rijas. A côr varia consideravel- mente. O caso mais geral é ser o dorso de um trigueiro amarellado com reflexos escuros provenientes das extremidades dos pêllos que são ne- gras. À parte superior do focinho, o pescoço e a região que circumda os olhos são de um ruivo escuro; as faces são maculadas de amarello, a fronte apresenta uma facha negra, a bocca é branca, o ventre e as patas são negras. Ha individuos que são completamente negros, outros que são ne- gros com o pescoço branco e o vertice da cabeça cinzento, outros ainda que são amarello-claros, de ventre pardo e mancha escapular amarello- desmaiada. Ha-os que são amarellos no dorso, pardos no ventre e bran- - cos nas espaduas; finalmente encontram-se alguns inteiramente brancos. Este roedor é conhecido em França pelos nomes vulgares de criceto or- dinario, marmota da Alemanha e porco do centeio. COSTUMES O rato criceto do norte prefere sempre os terrenos ferteis e seccos, onde encontram boas condições para cavar as suas tocas e evita caute- losamente os terrenos arenosos e dos pantanos cuja terra é muito de- pressivel e não sustenta a forma primitiva que se lhe imprime. Evita egualmente os terrenos pedregosos e as florestas, onde encontraria uma grande dificuldade para cavar as suas tocas. Tambem se não adapta nos solos muito humidos. Nos logares que lhe offerecem condições favo- raveis de existencia, multiplica-se de um modo prodigioso. Conta Lenz que no termo de Gotha, onde este animal se dá muito, se mataram só em 1817 cento e onze mil oitocentos e dezesete individuos d'esta espe- 510 HISTORIA NATURAL cie, que foram apresentados depois aos magistrados encarregados de distribuirem os premios offerecidos para a destruição d'esta especie. A toca do rato criceto do norte é artisticamente construida. Con- siste ella essencialmente n'uma vasta cavidade situada a um ou dois me- tros abaixo do solo, n'um corredor de saída obliquo e n'um outro de | entrada, vertical. Galerias profundas poem o compartimento principal ou quarto de repouso em communicação com os quartos de provisões. As tocas variam consoante a edade e o sexo do animal: as dos mais novos são as mais pequenas e superficiaes; as das femeas são maiores é as dos machos já velhos são mais vastas e mais profundas. Geralmente, a toca do criceto conhece-se por um monticulo de terra, existente na parte de diante do corredor de saída e de ordinario coberto de grãos e de trigo. O corredor de entrada, como foi dito, é vertical e muitas vezes mede de altura um ou dois metros. Este corredor porém, não conduz directamente ao compartimento principal; antes experimenta uma incur- vação marchando em direcção ao aposento central quer obliqua quer horisontalmente. O corredor de saída é, pelo contrario, sempre sinuoso; as duas aberturas distam pelo menos um metro e vinte centimetros uma da outra e ás vezes chegam a ser separadas por uma extensão de qua- tro metros. Conhece-se facilmente se uma toca é ou não habitada. Se a en- trada se encontra obstruida por musgo, por cugumelos ou pela herva e: as paredes estão arruinadas, é indubitavel que o criceto a abandonou; se está, pelo contrario, bem conservada e limpa, habita-a o animal. Quando o criceto mora ha muito tempo n'uma toca, as paredes d'estas | chegam a encontrar-se polidas pelo continuado attrito que contra ellas exerce o corpo do animal. As aberturas de entrada e saída são sempre mais largas que os ca- naes respectivos. Os compartimentos variam muito quanto ás dimensões. O que serve de morada habitual ao criceto é o mais pequeno e acha-se tapetado de palha fina, que forma uma cama fofa e macia ao roedor. Vão terminar n'elle trez corredores: o de entrada, o de saída e o que conduz ao compartimento das provisões. Este ultimo compartimento as- semelha-se pela forma ao primeiro; é arredondado ou oval, tem a parte superior arqueada e as paredes lisas. No fim do outomno este compar- timento acha-se já completamente cheio de trigo. Os cricetos novos construem- de ordinario um só deposito de co- mestiveis; os velhos construem trez ou cinco que enchem com dois ou quatro hectolitros de grão. A toca das femeas differe um pouco da que descrevemos. Tem uma só saída e duas até oito entradas; comtudo, emquanto os filhos se não MAMIFEROS EM ESPECIAL 511 encontram em estado de saírem, serve uma entrada apenas. Quando chega a occasião de os novos cricetos dispensarem o auxilio dos paes, todas as entradas principiam a ter serventia. Na toca da femea, o quarto de dormir é circular, medindo trinta e trez. centimetros de diametro e oito até quatorze de altura; é guarnecido com uma camada de palha miuda e é o ponto de divergencia de todos os corredores. Os depositos de provisões são raros, porque emquanto vive com os filhos a femea não cura de arrecadal-as. A despeito da apparencia que offerece de animal pezado, o criceto “é muito agil. Marcha, quando está excitado, com extrema rapidez e dá saltos notaveis. Trepa tambem ao longo das paredes verticaes com ra- pidez, especialmente se o logar lhe permitte amparar-se de dois lados, - como por exemplo entre uma parede e um movel ou no canto de uma caixa, etc.; a mais ligeira saliencia serve-lhe para se segurar. Cava tambem o solo com extrema. perfeição. Mesmo em captiveiro, se o in- troduzem n'uma gaiola cheia de terra, principia desde logo a exercitar as naturaes inclinações, cavando; serve-se d'ordinario n'este exercicio das patas anteriores, mas se o solo é muito duro, emprega tambem os den- tes. Embora evite entrar na agua, nem por isso deixa, quando n'ella se encontra, de nadar com uma certa rapidez. O rato criceto do norte serve-se com extrema habilidade dos mem- bros anteriores, usando das patas como de mãos para levar o alimento à bocca, para esfregar as espigas até que caiam os grãos e para guar- dal-os depois nos papos faciaes. Quando sae de um banho, limpa-se cui- dadosamente com as patas anteriores, principiando sempre, como quasi todos os animaes, pela cabeça. Quando é surprehendido neste exercicio, colloca-se sobre as patas posteriores n'uma posição erecta, deixa pender as de diante e olha fixamente o objecto de surpresa e perturbação, dis- posto a arremetter com elle, fazendo uso dos dentes. O rato criceto do norte, ou criceto ordinario é dotado de um cara- cter colerico, mau, profundamente antipathico. A coragem não é n'este animal inferior ao espirito colerico. Não poupa mesmo o homem. É vul- gar irmos passando por uma toca e encontrarmo-nos de repente com um rato criceto do norte suspenso ao fato, que a maior parte das vezes não abandona sem nos ter mordido gravemente. Se apanha presa de forças eguaes ás suas ou inferiores, pode ter-se a certeza de que não abandona a lucta sem n'ella ter posto todos os recursos dos seus musculos e dos seus dentes que são temiveis. A malvadez d'este roedor estende-se aos filhos, logo que estes cres- cem de modo a dispensar o auxilio materno, e à femea que, fóra do tempo do cio, mata implacavelmente. Em captiveiro vive sempre em desordem com os seus congéneres e companheiros de prisão. 512 HISTORIA NATURAL Este roedor pode dizer-se omnivoro; alimenta-se com egual avidez das carnes palpitantes das presas como das hervas e dos grãos. O rato criceto é hybernante. Do somno lethargico em que se con- serva durante todo o invezno, só desperta em Março; e então mesmo não sae desde logo da toca. Das provisões accumuladas, ainda por algum “tempo se sustenta sem recorrer aos campos, que então principiam a florir. Quando abandona a toca de inverno, principia a cavar uma outra que lhe será habitação durante o estio. Terminada esta tarefa, o acto sexual tem logar. Na toca de verão, que apenas mede trinta ou sessenta centi- metros, o maximo, de profundidade, ha um compartimento principal onde se estabelece o ninho destinado à deposição dos filhos. No fim de Abril o macho procura a femea na toca de verão e ahi vive com ella em relações de harmonia. Se dois machos se encontram por esta epocha na mesma toca, trava-se entre elles um combate sangrento que só termina pela morte ou pela fuga do mais fraco dos luctadores. «Encontram-se muitas vezes, diz Brehm, velhos machos cobertos de cicatrizes, vestigios destas luctas.» ! Depois porém do coito, macho e femea separam-se e tornam-se tão estranhos ou antes tão inimigos como antes o eram. A gestação dura apenas cinco semanas; são seis ou oito os filhos da- dos à luz em cada parto. Nascem cegos, mas com dentes, e crescem muito rapidamente; no acto do nascimento pesam apenas quatro grammas, mas - altingem cincoenta quando ainda não abrem os olhos, facto que se rea- lisa ao oitavo dia de vida extra-uterina. A mãe dispensa-lhe notavel Sol- licitude, até que chegue o momento de poderem principiar o exercicio de cavar o solo, o que fazem com quinze dias de existencia, INIMIGOS O rato criceto tem muitos inimigos. Muitas aves de rapina, tanto diurnas como nocturnas, corvos, foetas, doninhas e cães, todos o perse- guem implacavelmente. As doninhas são de todos os inimigos talvez os peores, porque perseguem o criceto até ao interior das suas tocas. Por isso diz Brehm que os cultivadores em vez de matarem, como fazem, as 1 Obr. cit., pg. 123. MAMIFEROS EM ESPECIAL 513 doninhas, deveriam pelo contrario, se conhecessem os seus proprios inte- resses, poupal-as cuidadosamente. CAÇA O homem não é dos menores inimigos do rato criceto. As destrui- ções que nos campos produz este roedor, obrigam-nos a uma guerra permanente e desapiedada contra elle. Em alguns logares, chega a haver homens cujo modo de vida é ma- tar cricetos, pelo que recebem dos municipios premios especiaes. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Este roedor habita a Allemanha, a Russia, a Polonia, a Siberia e a Tartaria. USOS E PRODUCTOS Do rato criceto utilisa-se o péllo que dá objectos de grande dura- ção. Em algumas localidades faz-se um uso frequente das suas carnes, que são tão boas como as do esquilo e de muitos outros roedores que se comem com prazer. Todas estas vantagens porém, não chegam de modo algum a com- pensar os prejuizos que nos causam nos campos em cultura. 33 514 HISTORIA NATURAL OS HYDROMYOS Os roedores comprehendidos n'este genero assemelham-se anatomi- camente aos ratos grandes que descrevemos já. Teem a cabeça alon- gada, o focinho obtuso, as pernas curtas, a cauda muito longa e cinco dedos em cada uma das patas, encontrando-se os das posteriores reuni- dos na base por uma pequena membrana natatoria. O que porém caracterisa estes animaes é a dentição. Possuem ape- nas quatro mollares, dois do lado direito e dois do esquerdo. COSTUMES Na descripção especial teremos occasião de fallar d'este ponto. Na generalidade diremos apenas que os hydromyos teem em relação a cos- tumes pontos de contacto com os myopotamos de que atraz nos occu- pamos. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA A especie mais conhecida do genero pertence à Nova-Hollanda. MAMIFEROS EM ESPECIAL 915 O HYDROMYO AMARELLO Este roedor mede cerca de sessenta e seis centimetros de compri- mento. O pêllo das costas é de ordinario trigueiro-escuro com reflexos ruivos e o do ventre e partes lateraes amarello-claro. D'aqui a denomi- nação especial por que é conhecido. As patas são muito escuras e os péllos que cobrem a cauda são rijos e de côr pardacenta. COSTUMES Os costumes d'este animal são muito pouco conhecidos. Sabe-se apenas que frequenta as margens dos rios e as costas do mar, vivendo egualmente bem na agua salgada ou na dôce. Nada e mer- gulha maravilhosamente, no que se parece com os myopotamos de que fallamos e com o rato campestre amphibio de que adiante nos occupa- remos. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Este roedor é natural da Oceania e é vulgar nas ilhas do estreito " de Bass bem como na terra de Van-Diemen. 516 HISTORIA NATURAL O RATO ALGALIOSO O rato algalioso, que em França é conhecido pelo nome vulgar de rato almiscarado de Canadá 4, tem muitas semelhanças de forma com 0 rato campestre amphibio. O seu pêllo é semelhante ao do castor, es-. pesso, macio e brilhante. O dorso é trigueiro e o ventre pardo com re- flexos arruivados; algumas vezes o dorso apresenta uma côr amarella. A cauda é negra. Os machos adultos medem cerca de sessenta e seis centimetros de comprimento, dos quaes dois quintos pertencem à cauda. O rato algalioso offerece, segundo Richardson, trez variedades: uma é completamente negra, outra maculada e a terceira toda branca. COSTUMES Frequenta as planicies que marginam os grandes lagos, os rios de curso lento, os regatos, os pantanos e sobretudo as lagôas pouco exten- sas cobertas de plantas aquaticas. É ahi que elle se encontra em fami- lias e tribus. O genero de vida d'este animal tem tanta semelhança com o do castor que os selvagens consideram estes roedores como irmãos. Como o castor, o rato algalioso é muito sociavel, formando durante uma parte do anno colonias ás vezes consideraveis. Tambem como o castor, construe habitações acima do nivel do solo, tendo porém em baixo galerias profundas semelhantes ás que se encontram nas tocas subterraneas dos ratos campestres amphibios. De ordinario, como acima deixamos prevêr, é à beira de um lago, de um rio ou de um ribeiro cujas aguas teem, se o teem, um curso im- sensivel e cujas margens cobertas de juncos offerecem um declive suave, 1 Este animal possue junto dos orgãos genitaes externos uma glandula parti- cular que se abre no exterior e segrega um liquido branco, oleaginoso, com um forte cheiro de almiscar. D'aqui o nome vulgar por que é conhecido. MAMIFEROS EM ESPECIAL 517 é ahi que o rato algalioso se estabelece de preferencia para construir as suas casas. E n'estas condições as provas que manifesta dos seus instinctos são admiraveis; dir-se-hia que conhece os pontos mais altos a que as aguas se elevam, porque é sempre sobre a linha limitrophe que edifica as suas habitações. Demais, prevendo cheias excepcionaes, construe sempre um andar elevado a ponto de que nunca as aguas possam attingil-o. Externamente as casas do rato algalioso simulam uma cupula. Os materiaes que entram na edificação são juncos, que o animal enterra até uma grande profundidade, enredados uns nos outros com extrema regularidade e cobertos externamente com uma espessa camada de terra barrenta que o animal amassa e transporta com os pés; para assentar e alisar esta camada, serve-se da cauda. Uma cobertura de juncos entre- laçados, attingindo algumas vezes vinte e dois centimetros de espessura cobre o primeiro frontal, que a seu turno tem onze a dezeseis centime- tros; assim as camadas sobrepostas prefazem cêrca de vinte e trez cen- timetros, que tanta é a espessura das paredes da habitação. As dimensões de uma casa variam segundo o numero de hahitan- tes. Para uma familia de sete ou oito individuos, o diametro interior é geralmente de sessenta e seis centimetros. Um corredor subterraneo, que parte do fundo da habitação commum conduzindo até à agua, dá origem a muitas galerias com destinos differentes: umas que não teem saída, servem apenas para descobrir as raizes das plantas aquaticas de que o animal durante o inverno se alimenta; outras terminam em com- partimentos profundos exclusivamente reservados para deposito das fezes. | Quando as colonias são muito numerosas, as casas dos ratos alga- liosos, grupadas ao lado umas das outras, offerecem o aspecto de ver- dadeiras aldêas.. Estas casas tão laboriosa e habilmente construidas não são comtudo para muitos dos colonos, especialmente para os machos, mais do que vivendas de inverno. Quando a primavera chega, os ratos algaliosos abandonam estas habitações e vão aos pares em demanda dos pontos elevados da região. Parece porém que depois do coito, a maior parte das femeas voltam ás casas primitivas onde realisam o parto. No inverno, o rato algalioso forra a habitação com folhas e hervas que encontra, tor- nando-a assim um ninho fofo, quente, confortavel. O rato algalioso alimenta-se especialmente de vegetaes aquaticos; no entanto, restos de conchas teem sido encontrados nas suas habita- ções, o que conduz a crêr que os molluscos entram tambem na alimen- tação destes animaes. A conjectura parece confirmada pelas indicações do naturalista Audubon que viu os ratos algaliosos em captiveiro come- 518 HISTORIA NATURAL rem com prazer molluscos, partindo a casca aos que a teem fragil e - esperando, em relação aos que a possuem muito dura, que elles mesmos a abrissem para então se precipitarem sobre estes invertebrados, ma- tando-os a dentadas. Sabemos muito pouco relativamente à reproducção d'este animal. É em Março e Abril que o acto sexual se realisa. Depois a femea pare na casa ou na toca trez a seis filhos. Não sabemos o tempo que dura cada gestação; tambem ignoramos se realisa um só parto annual, ou se rea- lisa mais. Emfim, desconhece-se o tempo durante o qual os filhos se con- servam em companhia das mães, assim como se desconhece a duração do crescimento d'elles. CAÇA O homem persegue o rato algalioso por dois motivos differentes, mas egualmente poderosos: pelos estragos que este animal produz quando invade os campos cultivados e pela utilidade que d'elle tira. Apanham-se por meio de armadilhas em que servem de engodo as batatas, por meio de alçapões collocados junto das habitações ou ainda matando-os dentro de casa. Os indigenas sabem perfeitamente distinguir se uma casa está ou não habitada; quando o primeiro caso se realisa, approximam-se então sem ruido, enterrando uma lança atravez das pare- des e matando assim de ordinario todos os individuos que dentro se en- contram. A proposito de caça é necessario reproduzir aqui uma observação que faz Brehm: quando se mata um rato algalioso é indispensavel não abandonar um instante o cadaver, porque, se isto se fizer, os compa- nheiros enterram-o desde logo, perdendo-se assim completamente para o caçador. Um processo que tambem se emprega com resultado seguro na destruição d'estes roedores, é o que consiste em queimar enxofre nas casas ou nas tocas; o fumo produzido pela combustão mata quantos ahi se encontrarem. ha Ca e a E Scree iii AE Dia MAMIFEROS EM ESPECIAL 519 INIMIGOS Depois do homem, os mais terríveis inimigos do rato algalioso são o lynce, a raposa, a marta e em geral todas as aves de rapina, tanto diurnas como nocturnas. CAPTIVEIRO Emquanto novos, os ratos algaliosos, como quasi todos os roedores, domesticam-se com facilidade. Estes animaes são com effeito, muito do- ceis nos primeiros tempos; Audubon afirma que, em captiveiro, pode o homem introduzir-lhes um dedo na bocca sem receio de ser mordido. Pelo contrario, quando velhos, tornam-se maus, desconfiados, agressivos. Então só em gaiolas de ferro se podem conservar. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA O rato algalioso habita a America do Norte entre o trigessimo e o sexagessimo sexto grao de latitude norte. Encontra-se vulgarmente em Canadá, d'onde annualmente são exportadas para a Europa milhares de pelles. USOS E PRODUCTOS Os indigenas comem com prazer a carne do rato algalioso, mau grado o cheiro penetrante d'almiscar que a torna insupportavel ao eu- ropeu. 520 HISTORIA NATURAL As pelles são na Europa muito estimadas; faz-se d'ellas um largo consumo no fabrico de objectos de agazalho. OS RATOS CAMPESTRES Distinguem-se estes ratos dos que acabamos de descrever, pela cir- cumstancia anatomica de que não possuem nas patas anteriores mais do que quatro dedos; o pollegar é representado apenas por um tuberculo ou uma unha rudimentar. Caracterisam-se tambem pela exigua extensão da cauda, que não é escamosa, mas sempre mais ou menos coberta de pêllos e arredondada. Emfim, circumstancia notavel e tambem caracte-. ristica, nestes animaes, com raras excepções, os dentes não teem raizes nos adultos. COSTUMES Escrevendo sobre os costumes dos ratos campestres, Brehm princi- pia por estas palavras conceituosas: «Se os costumes dos animaes que nos são uteis teem para nós um interesse particular, os das especies que nos são nocivas não devem interessar-nos menos, porque só o conheci- mento d'esses costumes pode indicar-nos os meios proprios para atte- nuar ou prevenir os prejuizos que essas especies nos causam. Sob este ponto de vista teem os ratos campestres incontestavel direito a toda a nossa attenção.» ! E realmente assim é: poucos animaes serão tão com- pletamente nocivos à nossa agricultura; a muitos d'elles temos devido por mais de uma vez a desolação e a famina dos campos. À crêrmos as 1 Obr. cit., pg. 130, vol. 2.º MAMIFEROS EM ESPECIAL 521 narrativas de alguns naturalistas antigos, invocadas por Brehm, paizes inteiros teriam sido por elles arruinados e as populações obrigadas diante da invasão a abandonar os campos devastados e a procurar em novas regiões os meios de subsistencia. As devastações d'estes roedores foram taes, que nas epochas do paganismo se chegou a crêr que ellas eram flagellos enviados á terra pelos deuses para castigo de iniquidades humanas. Nos seculos xIv € xv da nossa era, cursou egual idéa, como o demonstram as praticas ridicu- las dos exorcismos de que nos restam documentos interessantes; no se- culo xvir mesmo, ainda se não tinha desvanecido inteiramente a crença do castigo divino inflingido ás populações sob a forma tremenda da in-. vasão dos ratos campestres. ' Em epochas menos affastadas de nós, incursões terríveis se realisa- ram tambem em pontos diversos da Europa, conservando-se ainda na memoria de muitos a idéa dos quadros desoladores que então se presen- ceavam nos campos invadidos. Dispensamo-nos de citar os casos, que são numerosissimos, enviando o leitor para o livro de Brehm. O que devemos fazer é explicar por que modo, o rato campestre de proporções relativamente tão insignificantes e dispondo de meios na apparencia tão fracos, é capaz de produzir tamanhos estragos. A historia dos costumes d'estes animaes dar-nos-ha os esclareci- mentos indispensaveis. As diferentes especies de ratos campestres manteem entre si as maximas analogias no que respeita aos habitos de vida. Todos, qualquer que seja a especie a que pertençam, habitam em tocas, todos são mais crepusculares do que diurnos, todos destroem mais do que o exigem as respectivas necessidades alimentares, todos demonstram espirito de pre- videncia arrecadando provisões para o inverno, todos construem um ninho especial para a deposição dos filhos, etc. Estes os pontos de con- tacto; ao lado d'elles ha tambem diferenças. Assim os que se alimentam principalmente de fructos e sementes de certos vegetaes, saem frequen- temente da toca para a superficie do solo, a que o chamam as necessi- dades nutritivas; o mesmo acontece com as especies herbivoras. Pelo contrario, os que se alimentam de bolbos e de raizes teem habitos essen- cialmente subterraneos; saem, é certo, muitas vezes das respectivas tocas, mas é no sub-solo que exercem a actividade, porque é ahi tam- bem que descobrem as substancias de que carecem. O logar onde habitam varía naturalmente de especie a especie, se- gundo o regimen que as caracterisa. É assim que uns se encontram de preferencia nos logares elevados, outros nas planicies, outros ainda à beira d'agua, onde crescem com abundancia os arbustos que lhes forne- cem a subsistencia, como fazem os ratos campestres amphibios. 5292 HISTORIA NATURAL Todos os ratos campestres são mineiros; uns porém mais accentua- damente do que outros. Ha-os que abrem tocas profundissimas, cheias de galerias, outros que se limitam a construil-as muito superficialmente e com muita simplicidade. Na execução dos seus serviços de mineiros, os ratos campestres não possuem mais do que as unhas delgadas de que são munidas as pa- tas anteriores, os dentes incisivos e, como auxiliares, as patas de traz e o focinho. E no entanto conseguem com energia, actividade e prese- verança, o que n'outros reclamaria mais amplos e mais fortes instru- mentos. Os ratos campestres vivem aos pares. Assim, abstracção feita dos recemnascidos que não podem abandonar o seio materno, dentro de cada toca não se encontra geralmente mais do que um macho e uma femea. Geralmente dizemos, porque ha casos em que um só macho vive na companhia de duas ou trez femeas. A cohabitação de uma femea com muitos machos, a menos que estes não sejam excessivamente novos, não se realisa. Quando em uma toca habitada por um casal penetra um novo macho, fere-se entre este e o primitivo caseiro uma lucta encarniçada que não termina senão pela fuga ou pela morte do mais fraco, que in» variavelmente é devorado pelo vencedor. Muitas vezes as femeas proce- dem de egual forma em relação a outras femeas estranhas, especial- mente se teem realisado um parto ha pouco tempo; n'estas condições tornam-se intolerantes até ao ponto de não supportarem companheiras com que, pouco antes, viviam de perfeita harmonia. Os ratos campestres reproduzem-se em todas as estações. Parece pois que as influencias capazes de despertarem o cio, em vez de serem temporarias, como na maior parte das especies animaes, são pelo con- trario permanentes. Ha todavia para os ratos campestres uma epocha que, mau grado a constancia da reproducção, podemos chamar dos amo- res; porque é realmente desde os meiados de Janeiro até fins de Junho que os sexos se procuram com mais insistencia; é tambem n'esta epo- cha que se encontra um maior numero de femeas em trabalho de partu- rição. Em captiveiro, desde que cercamos estes animaes de boas condi- ções, reproduz-se precisamente o mesmo facto: o numero de partos é sempre maior desde Janeiro a Junho que d'este segundo mez ao pri- meiro. «Um tal poder gerativo, diz Brehm, sem exemplo talvez na historia dos mamiferos, exercido tantas vezes e em tão curto lapso de tempo, dá certamente logar a que nos surprehendamos; o facto porém, sem nada perder do seu interesse, parecerá menos espantoso se nos lembrar- mos de que nos ratos campestres a gestação dura apenas vinte dias e de que o aleitamento pouca influencia tem sobre as outras funcções de =" MAMIFEROS EM ESPECIAL 523 geração, por isso que a femea recebe de novo o macho quatro ou cinco dias apenas depois do parto.» ! O numero de filhos não é o mesmo sempre; varia de especie a es- pecie e de parto a parto. Os filhos nascem inteiramente nus e com as palpebras e as orelhas fechadas. O meato auditivo abre-se ao quinto ou sexto dia de vida intra-uterina, ao sexto dia tambem toda a pelle está coberta de péllo e as palpebras ao nono ou decimo abrem-se. No fim de dezoito dias deixam de mamar. Os cuidados e a solicitude das mães pe- los filhos são extremos. Estes, antes mesmo de terem attingido um pleno desenvolvimento, ao fim de mez e meio ou dois mezes de existencia, en- contram-se já aptos para a procreação. Perguntamos agora: deverá causar estranheza a multiplicação dos ratos campestres, sabendo-se o numero de partos que cada femea é ca- paz de realisar annualmente, o numero de filhos que porduz em cada um e tendo em vista a rapida productividade d'estes? As reflexões de Brehm a este proposito merecem ser reproduzidas: «Supponhamos um casal de ratos campestres produzindo no espaço de alguns mezes doze filhos sómente, isto é, termo medio, quatro por gestação; imaginemos que os seis pares que estes novos seres formarão, admittindo numero egual de machos e femeas, dão, a seu turno, trez ninhadas de quatro fi- lhos, isto é setenta e dois; se estes se reproduzem com egual fecundi- dade, o que a experiencia prova que se realisa, teremos na terceira ge- ração e antes que tenha decorrido um anno, mais de quinhentos indivi- duos em condições, a maior parte, de se reproduzirem e descendentes comtudo de um só par. Quantos milhares d'elles não teriamos se, em vez de um par unico, suppozessemos a existencia simultanea em um mesmo terreno de alguns centos de pares!» 2 É por este modo que se explica a multiplicação verdadeiramente extraordinaria dos ratos campestres. Assim se explicam tambem as emi- grações que estes animaes emprehendem, caíndo de subito n'uma dada região que destroçam; as emigrações são a consequencia da multiplica- ção excessiva que torna os alimentos insuflicientes. Estas emigrações fa- zem-se em grandes bandos e em linha recta, sem que obstaculo algum, lagos, rios ou mesmo braços de mar possam impedir a marcha ou mu- dar-lhe a direcção. 1 Obr. cit., pg. 134, vol. 2.º, 2 Obr. cit., pg. 135, vol. 2.º. 524 HISTORIA NATURAL” INIMIGOS Felizmente para nós, a multiplicação dos ratos campestres é impe- dida até certo ponto pelos inimigos de toda a ordem que perseguem estes animaes. | De todos os inimigos o peor é o homem a quem nas suas persegui- ções movem altos interesses. Os ratos, as doninhas, as rapozas, as cre- cerellas, quasi todas as aves de rapina nocturnas e as serpentes são ini- migos implacaveis dos ratos campestres. Ao lado d'estes ha outros de natureza inanimada, mas nem por isso menos temiveis; são a agua e O frio, quando intenso e demorado. As inundações que succedem às chuvas abundantes matam centos de ratos campestres. Os frios demorados e grandes produzem egual resultado. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Os ratos campestres encontram-se na Europa, na Ásia e na America septentrional. USOS E PRODUCTOS Em alguns pontos da Siberia, de Hespanha, da França e da Italia, a carne dos ratos campestres grandes é utilisada como alimento. No entanto devemos dizer que esta vantagem está muito longe de compensar os prejuizos terriveis que nos causam invadindo, destruindo e assolando os campos agricultados. MAMIFEROS EM ESPECIAL 525 O RATO CAMPESTRE ORDINÁRIO Este roedor mede doze a quatorze centimetros de comprimento dos quaes trez a quatro pertencem à cauda. Tem o dorso amarello-escuro, os lados mais claros, o ventre branco ou pardacento e as patas brancas. COSTUMES O rato campestre ordinario vive nos campos descobertos, nos prados, raras vezes nas orlas das florestas; habita indifferentemente os logares seccos, humidos ou pantanosos. Abre tocas ou habitações subterraneas, mais ou menos complicadas, como a maior parte dos roedores. Estas tocas servem-lhe de habitação durante o inverno principal- mente, porque no verão prefere abrigar-se nas medas de trigo ou nas casas, nos palheiros, nas cavallariças e subterraneos artificialmente cons- truidos pelo homem. Não tem habitos exclusivamente diurnos ou noctur- nos; vagueia pelos campos indifferentemente de dia e de noite. O regimen alimentar d'este rato é vegetal; nutre-se de folhas de gramineas, de raizes, de fructos da baga, de grãos, etc. É terrivel o rato campestre ordinario para o agricultor na prima- vera. Quando as cearas começam a sazonar, corta a planta pela raiz, der- ruba-a, arranca-lhe a espiga e condul-a para a toca. Emquanto se realisa a ceifa, o rato campestre ordinario caminha constantemente atraz dos ceifeiros no intuito de ir comendo os bagos soltos das espigas. É este roedor muito sociavel; encontra-se muitas vezes em bandos numerosos e construe as tocas proximas umas das outras. MEIOS DE DESTRUIÇÃO Como meios para exterminar estes ratos que são tão prejudiciaes à agricultura dispõe o homem de recursos artificiaes insuflicientissimos. 526 “HISTORIA NATURAL Em compensação os mamiferos carniceiros, as aves de rapina e, mais do que tudo, os frios intensos e as chuvas prolongadas importam a des- truição de um numero immenso de tão nocivos animaes. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Estes roedores habitam toda a Europa central, uma parte da Eu- ropa septentrional e a parte occidental da Asia central e septentrional. Na Europa chegam a encontrar-se ao norte da Russia; na Ásia attinge a Persia ao sul e Ob a éste. Faltam absolutamente na Irlanda, nasGor- sega, na Sardenha, na Sicilia e no meio dia da França. Embora prefiram as planicies, habitam tambem nas montanhas; nos Alpes, por exemplo, encontram-se a dois mil metros acima do nivel do mar. O RATO CAMPESTRE AMPHIBIO OU RATO D'AGUA Mede cêrca de vinte centimetros de comprimento desde a cabeça até à raiz da cauda, que tem dez. É escuro-fuliginoso na parte superior do dorso, arruivado aos lados e cinzento escuro com toques ruivos ou amarellos aos lados do corpo. Os pés são escuros e a cauda trigueira, mais carregada porém na parte superior que na inferior. COSTUMES Procura de preferência as margens dos rios, dos charcos e todos os logares humidos. MAMIFEROS EM ESPECIAL 527 Alimenta-se de raizes, nomeadamente das de arvores fructiferas, bem como dos bolbos e de plantas aquaticas. Deprehende-se d'aqui quanto será nocivo aos campos agricultados. Construe tocas, como todos os seus congéneres. Cava e nada com perfeição. Os seus sentidos, principalmente vista e ouvido, são pene- trantes, pelo que se torna dificil apanhal-o. Como todos os ratos campestres, este faz durante todo o outomno provisões para 0 inverno. Multiplica-se extraordinariamente. A' femea com effeito, realisa trez ou quatro partos em cada um dos quaes produz, termo medio, sete fi- lhos, que deposita na toca e aos quaes tributa muitos cuidados e muita sollicitude. Em geral o rato campestre amphibio não resiste ao captiveiro. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Este roedor vive em quasi todos os paizes da Europa central e occi- dental. t O RATO CAMPESTRE PARCO OU ECONOMICO Mede cêrca de nove centimetros de extensão desde a cabeça à raiz da cauda, que tem trez. O pêllo do dorso é trigueiro amarellado, o ven- tre pardo e a cauda escura na face superior e branca na inferior. Differe do rato campestre ordinario em ter a cabeça mais curta, os olhos mais pequenos, as orelhas menos salientes e quasi occultas. 528 HISTORIA NATURAL COSTUMES O nome de parco ou economico por que é conhecido este rato cam- pestre, não é devido ao factos de se alimentar com pouca substancia, como poderia parecer, mas a juntar em quantidade prodigiosa provisões para o inverno. Ao contrario do rato campestre ordinario, este trabalha em benefi- cio do homem, sendo por isso considerado pelos indigenas como um bemfeitor e lastimadas as emigrações que ás vezes tenta. Cava canaes subterraneos que terminam em um ninho profundo, redondo, de um pé de diametro e que communica com um ou muitos compartimentos de provisões muito espaçosos. É n'este ninho, forrado de substancias vegetaes, que o rato economico dorme e ahi tambem que a femea dá à luz os filhos. Como este animal para extrair as raizes de que se alimenta, é for- cado a cavar a terra e como faz boas provisões de que o homem se aproveita, é utilissimo. Nos logares onde existe este roedor, os homens quasi não trabalham. «Os indigenas, diz Pallas, não cultivam a terra; com- portam-se' em face d'estes animaes, como os senhores em face dos es- cravos.» Nas emigrações que emprehende, o rato economico toma invaria- velmente a direcção de oeste, marchando sempre em linha recta atravez de todos os obstaculos, de lagos, mesmo de rios. N'estas excursões mui- tos morrem affogados, outros são victimas dos gansos, das raposas, das martas zibellinas e das doenças que a fadiga produz. Nada sabemos de preciso ácerca da reprodução d'este roedor, que deve comtudo ser grande a julgar pelos bandos numerosissimos que emigram. Vira DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA O rato campestre parco ou economico só se encontrou ainda na Si- beria. Ahi existe em todas as planicies que se estendem desde Obi até Kamtschatka. ecc Sai MAMIFEROS EM ESPECIAL 529 OS RATOS LEMMINGOS Approximam-se estes ratos dos campestres de que vimôs de fallar ; a diferença unica ou pelo menos a mais pronunciada em relação a cara- cteres anatomicos, consiste em possuirem cinco dedos completos nas pa- tas anteriores, em terem raizes nos molares e em ser a sua cauda rudi- mentar. COSTUMES Na especialidade teremos occasião de estudal-os. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Habitam a Europa, a America septentrional e a Asia. + O RATO LEMMINGO DA NORUEGA Mede cerca de dezoito centimetros de comprimento, pertencendo dois à cauda. Tem o focinho coberto de pêllos, o labio superior profun- damente fendido, as orelhas pequenas, redondas, occultas sob o pêllo, e os dedos armados de unhas vigorosas, especialmente nas patas anterio- 34 530 HISTORIA NATURAL res. À côr geral é amarellada, existindo aqui e além manchas escuras distribuidas irregularmente pelo dorso. A apparição subita destes ratos em quantidades prodigiosas sobre certos pontos da têrra, conduziu por muito tempo não só os ignorantes, o que não causaria estranheza, mas ainda alguns naturalistas a crêrem que taes roédores caem do ceu onde vivem dentro de nuvens. Ainda em | 1633 Olaiis Vormius escreveu um livro para demonstrar que os ratos lemmingos nascem em nuvens é são lançados à terra nos dias de tem- poral, sem que, diz o ingenuo auctor, valham contra esta peste os es- conjuros e exorcismos. COSTUMES Sob o ponto de vista dos habitos de vida, os ratos lemmingos asse- melham-se notavelmente às pequenas marmotas e aos cricetos. Habitam pequenas galerias formadas sob as pedras ou entre o musgo e muitas vezes vagam entre as colinas pouco elevadas que se erguem em meio dos pantanos. Vivem em permanente exercicio; marchando, empregam uma velo- cidade tal que a custo consegue o homem apanhal-os. Em todas as suas. deslocações manifestam uma notavel intelligencia, descobrindo com rapi- dez os logares seccos, que preferem sempre como meio de attravessa- rem os pantanos sem tocarem a agua, por que teem uma decidida re- pulsão. Se os lançam a um tanque ou a um regato, rosnam, dão gritos, impacientam-se e procuram attingir depressa um logar secco. É facil em geral descobrir estes animaes; elles mesmos denunciam a sua presença, pela excitação que lhes causa a vista do homem. N'es- tas condições, gritam e rosnam de modo que não é possivel ficar igno- rando o ponto em que se encontram. Quando fóra das tocas, em pleno descampado alguem os persegue, precipitam-se, fugindo, para o pri- meiro buraco que encontram e ahi se acantoam, sendo facil então apa- nhal-os. Estas fugas precipitadas porém, não significam falta de coragem. Attacados de perto, oferecem uma resistencia compativel com as forças de que dispoem; se se lhes apresenta uma bengala, um ferro, um canno de uma arma, não deixam nunca de mordel-os fortemente. Brehm conta que, provocando-os, não poucas vezes foi preso pelo fato de um modo revelador da boa vontade com que estes animaes se defendem a dente MAMIFEROS EM ESPECIAL 531 dos inimigos. Perseguidos, encolerisam-se e assemelham-se então aos cricetos. Não receiam animal algum, ainda que muitas vezes são na lucta vencidos e mortos; é o que acontece quando são encôntrados pelos cães ou pelos gatos. Nas luctas que travam entre si, revelam uma extraordinaria cora- gem e uma tenacidade inquebrantavel; raro é que n'estes combates não succumbam alguns, que são devorados pelos vencedores. O naturalista Ch. Martins afirma que sempre que junctava n'uma só gaiola dois ratos lemmingos apanhados em tocas differentes, uma lucta desesperada co- meçava desde logo entre elles, lucta que não terminava senão pela morte de um dos contendores. Scheffer assegura tambem que se dois bandos de ratos lemmingos emigrantes se encontram ao longo dos la- gos, dos prados ou dos rios, se ferem entre elles grandes e sangrentas batalhas em que morrem dezenas de combatentes. No inverno os ratos lemmingos abrem galerias e canaes no gêlo. “ Brehm afirma ter encontrado ahi ninhos de paredes espessas, forrados de vegetaes; é d'estes ninhos de vinte a vinte e cinco centimetros de profundidade, que partem os canaes ou corredores em sentidos diver- sissimos. k A femea não construe ninho especial para os filhos; realisa o parto n'aquelle mesmo em que habita. “Não se sabe ao certo o numero de gestações da femea durante cada anno. No entanto deve elle ser grande, tão grande talvez como o dos ratos campestres, attenta a extraordinaria multiplicação que os ca- racterisa. O numero de filhos dados á luz em cada parto é geralmente cinco. «Gumer e Rycaut, diz Brehm, que fazem ascender o numero de filhos, um a sete pelo menos, o outro a oito ou nove, exageram sem duvida ou baseiam as suas opiniões em casos absolutamente excepcio- naes.» ! Segundo Linneu e Rycaut as femeas que parem durante uma viagem, nem por isso suspendem a marcha; continuam, dizem estes au- ctores, a seguir em columna, levando um filho na bocca e o outro sobre o dorso. «Este facto, escreve Brehm, que suppõe o abandono de uma parte da prole, merece ser confirmado.» 2 Os ratos lemmingos alimentam-se principalmente de lichens e de raizes. Não fazem provisões para o inverno; vivem n'esta estação do que podem encontrar sob a neve. Em captiveiro alimentam-se de pão, de biscoito, de nozes, de uvas seccas, de figos e d'outros fructos. 1 Obr. cit., pg. 150. 2 Tbid. ad 532 HISTORIA NATURAL Em quanto sedentarios os ratos lemmingos não produzem grandes estragos, porque as regiões que habitam são quasi incultas e estes roe- dores não penetram nas habitações humanas. São porém temiveis durante as emigrações. Estas realisam-se de longe a longe, de dez em dez annos segundo uns, de vinte em vinte, segundo outros, mais frequentemente no dizer de alguns naturalistas, mas sempre de um modo irregular, não periodico. De resto, nenhum naturalista teve ainda a felicidade de seguir uma d'estas grandes emigrações desde vo começo até ao fim. Sabe-se apenas que o ponto de partida é a cordilheira dos Alpes escandinavos e que d'ahi se dispersam os bandos emigrantes na direcção do mar do Norte e do golpho de Bothnia, seguindo sempre parallelamente ao curso dos rios e dos ribeiros. As emigrações dos lemmingos são curiosissimas. N'um momento dado, como se todos obedecessem a signal certo, descem das montanhas para nos valles e planícies se reunirem em bandos e formarem colum- nas. Depois principiam a marchar, sempre em linha recta, devorando quanto encontram na passagem e cavando no solo sulcos profundos de quatro a seis centimetros, d'onde resulta para os campos que attraves- sam a apparencia de terem sido lavrados. Nada consegue desviar os lem- mingos da linha recta que se traçaram; vencem todas as difficuldades, todos os obstaculos possiveis. Se um homem se lhes colloca na passa- gem, insinuam-se-lhe por entre as pernas, se encontram uma meda de trigo ou de palha, abrem passagem atravez d'ella com auxilio dos den- tes, se se lhes depara um lago ou um rio attravessam de margem a mar- gem ainda em linha recta, se um barco fundea nas aguas que vão pas- sando, não se desviam, trepam a elle, continuam em linha recta sem- pre e lançam-se de novo à agua do outro lado, emfim se deparam com um rochedo, ladeam-o indo procurar do lado opposto o ponto que fica na direcção rectilinea primitiva. Todas estas minuciosidades, primeiro descriptas por Linneu, encon- tram-se hoje confirmadas por todos os naturalistas que teem observado as excursões dos ratos lemmingos. Durante as viagens conservam estes roedores alguns dos habitos da vida sedentaria; é assim que só se poem a caminho ao caír da tarde, con- servando-se o resto do dia em inactividade. Marcham pois durante a noite, parando na madrugada. O mar do Norte e o golpho da Bothnia são para estes animaes barreiras insuperaveis. Durante a emigração morrem centos d'estes roedores; uns são victimas da agua, outros dos animaes que os perseguem. Hoegstroem, unico naturalista que observou a volta destes ratos ao ponto de partida, affirma que um cento apenas, quando muito, regressa às montanhas. pa E MAMIFEROS EM ESPECIAL 533 INIMIGOS Entre os inimigos mais terriveis dos ratos lemmingos contam-se as raposas, os ursos, as martas, os glutões, algumas aves de rapina diurnas e nocturnas, as rennas, o porco, o gato e o cão. Todos estes animaes fazem aos lemmingos uma guerra desesperada, tenaz. Mas além d'estes ha outros ainda menos implacaveis; taes são, por exemplo, as gaivotas, as pegas e as gralhas. ed " DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA A especie de que nos estamos occupando não, habita sómente, como o nome parece indicar, a Noruega, mas ainda a Laponia e a Groelandia. Occupam sempre de preferencia as regiões montanhosas e os logares seccos. USOS E PRODUCTOS O rato lemmingo da Noruega apenas é util ao habitante da Laponia “que lhe dá caça para se alimentar das carnes d'elle. O péllo não tem valor e os musculos para a maior parte dos homens são repugnantes. 534 HISTORIA NATURAL OS ARGANAZES São pequenos animaes que pelos seus caracteres exteriores e pelos seus habitos recordam os esquilos. Teem o pêllo macio e abundante, a cauda longa e espessa, o olhar vivo e os movimentos rapidos. Os dedos são armados de unhas agudas e recurvas que lhes permittem segura- rem-se fixamente aos objectos quando trepam. Caracterisa-os particu- larmente a existenck de molares de coroa plana coberta de saliencias e de sulcos transversaes. Na Europa existe uma especie representante da familia; d'ella nos vamos occupar. O ARGANAZ ORDINARIO O arganaz ordinario, tambem chamado lirão, mede cerca de trinta centimetros de comprimento; d'estes pertencem quatorze à cauda. O pêllo d'este roedor é longo e muito espesso. O dorso é pardo ou cin- zento mais ou menos carregado com reflexos negros; os lados do corpo são claros. O ventre e a parte interna das patas são brancos com refle- xos prateados, a parte superior do focinho e media do labio superior são cinzento-escuros, a parte inferior do focinho, as faces e o collo são bran- cos. À cauda é trigueira com uma facha branca longitudinal na parte in- ferior. De resto, devemos notal-o, a coloração varía muito n'esta especie. MAMIFEROS EM ESPECIAL 535 COSTUMES “De dia o arganaz ordinario conserva-se inalteravelmente escondido nas cavidades das arvores ou nas fendas dos rochedos e das paredes, nos buracos abertos entre as raizes das arvores, na toca abandonada dos cricetos ou ainda em algum ninho de pega ou de corvo. Só ao caír da tarde abandona o seu escondrijo e vae procurar o alimento, voltando ao ninho para digerir e saindo novamente em busca de mais substancias. Assim passa a noite, recolhendo só de madrugada e geralmente acom- panhado da femea ou de um qualquer dos seus congéneres. É pois de noite sómente que elle se manifesta tal qual é, vivo, agil, trepando ra- pidamente às arvores e aos rochedos, correndo com extrema velocidade e saltando dos cimos altos das arvores ao solo. O arganaz ordinario é de uma extrema voracidade; sob este ponto de. vista, poucos animaes o excederão. Come quanto encontra, manifes- tando todavia preferencia pelas glandes, as avelãs, as nozes e as casta- nhas. Bebe raras vezes agua; se encontra fructos succolentos abstem-se mesmo completamente deste liquido. Durante o estio, se o tempo corre sereno, vagueia toda a noite, parando de instante a instante para sentar-se e levar à bocca com as patas anteriores o alimento que encontrou. Continuamente se ouve então o estalar das nozes que parte com os dentes e o ruido que produz a queda dos fructos que come até ao meio. | No outomno junta alimentos para o inverno e arrecada-os n'um buraco. Então procura tambem um abrigo para o frio. Para esse fim forma um ninho que forra de musgo fino; este ninho estabelece-o umas vezes n'um buraco profundo que abre na terra, outras vezes mesmo na cavidade de um rochedo, de um muro ou na parte occa de uma arvore. Depois deita-se ahi enrolado, geralmente em companhia d'outros animaes da mesma especie e adormece profundamente antes mesmo que a tempe- ratura tenha descido até zero. Torna-se insensivel então, como todos os animaes hybernantes; talvez até seja elle o que tem um somno mais profundo. Pode-se então apanhar dentro do ninho e retiral-o sem que deixe de conservar-se immovel. N'um quarto quente, desperta pouco a pouco, sacode os membros, regeita algumas gottas de urina e agita-se depois com mais velocidade, sem todavia despertar completamente. Em liberdade desperta espontaneamente, come um pouco das provisões que arrecadou, mas parecendo inconsciente em todos estes actos. Uns arga- 536 HISTORIA NATURAL nazes que Lenz conservou durante o inverno n'um logar frio, desperta- vam sempre de quatro em quatro semanas, comiam e caíam de novo em lethargo. Galvani teve outros que não acordavam para se alimentar se- não de dois em dois mezes. O arganaz ordinario desperta só muito tarde na primavera, raras vezes antes do fim de Abril. O somno hybernal deste roedor dura pois sete mezes seguidos. Pouco tempo depois do despertar, o acto sexual realisa-se e depois de uma gestação de cerca de seis semanas, a femea pare trez a seis fi- lhos nus e cegos que deposita n'uma camada molle na cavidade de um tronco ou n'outra identica, mas nunca sobre as arvores, como o es- quilo. Os filhos crescem rapidamente, mamam pouco tempo e em breve procuram elles proprios o alimento. A multiplicação d'estes roedores é sempre proporcional à abundancia de alimentos. INIMIGOS A marta, o foeta, o gato selvagem, a doninha e as aves de rapina nocturnas são outros tantos inimigos perigosos que obstam à multiplica- ção do arganaz ordinario. Este roedor defende-se, é certo, com rara co- ragem, com estremada valentia a dente e à unha; no entanto, porque é mais fraco, acaba sempre por ser vencido, por succumbir. CAÇA O arganaz ordinário nos logares em que abunda é perseguido tenaz- mente pelo homem. Attraímol-o para moradas artificiaes de inverno, cavando para este fim largos fossos n'um logar secco, exposto ao meio dia, nas florestas ou junto de um rochedo; tapetam-se esses fossos de musgo, cobrem-se de palhas ou de folhas seccas e lançam-se-lhes fru- ctos de faia em grande quantidade. Assim attraidos, os arganazes or- dinarios juntam-se ahi em grande numero, ahi se saciam e ahi estabe- lecem a habitação de inverno onde adormecem tornando-se então, como SN MAMIFEROS EM ESPECIAL 537 sabemos já, extremamente facil o apanhal-os. É este o processo de caça mais seguro e mais simples. CAPTIVEIRO “Raras vezes se encontra o arganaz ordinario em captiveiro, pelo motivo talvez de que não é nem muito agradavel, nem muito intelligente. A unica qualidade estimavel que o caracterisa é o extremo aceio; todo o tempo em, que não dorme, consome-o a limpar-se. De resto, é muito irritavel, não brinca nunca com o guarda, rosna sempre a quantos se approximam e chega a morder, se não nos acautelamos. Para o impedir de roer a gaiola é preciso dar-lhe alimento em abun- dancia. Instigado pela fome attaca mesmo os companheiros de prisão. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA A Europa meridional e a Europa oriental são a patria do arganaz ordinario. Existe tambem na Asia. Falta ao norte da Europa, na Ingla- terra, na Dinamarca e na Allemanha do Norte. USOS E PRODUCTOS Utilisa-se a pelle d'este roedor para as obras manufactureiras e a carne para alimento. Isto explica a tenacidade que o homem põe na caça deste mamifero. 538 HISTORIA NATURAL O ARGANAZ DOS POMARES O arganaz dos pomares mede cerca de dezeseis centimetros de com- primento sobre seis de altura; a cauda tem, termo medio, quatorze cen- timetros de longo. O dorso e a cabeça são pardos escuros com reflexos ruivos, o ventre é branco; em torno dos olhos ha um annel negro bri- lhante, partindo das orelhas -e descendo aos lados do pescoço. Por diante e por traz das orelhas encontra-se uma larga mancha clara e por cima uma outra escura. A metade anterior da cauda é de um pardo es- curo; a metade terminal é negra em cima e branca na face inferior. Os pêllos do ventre são pardos à raiz e de um branco-com reflexos amarel- los ou cinzentos na extremidade; as orelhas são côr de carne. Os incisi- vos superiores são um pouco escuros e os inferiores amarellados. Os olhos são perfeitamente negros, dando ao animal um aspecto vivo e in- telligente. COSTUMES Habita tanto as planícies como os montes; as suas preferencias po- rém, em assumpto de habitação concede-as ás florestas das montanhas. Encontra-se muitas vezes nos bosques, nas casas mesmo e principal- mente nos jardins. O regimen alimentar d'este roedor differe consideravelmente do que caracterisa 0 arganaz ordinario. Penetra muitas vezes nas nossas habita- ções e ahi rouba gordura, manteiga e leite; attaca tambem os ninhos, comendo os ovos € as pequeninas aves. Trepa e salta maravilhosamente, não cedendo n'este ponto ao es- quilo. Umas vezes, no estio, toma os alimentos n'um ninho a descoberto sobre uma arvore; outras vezes, quando ha frio principalmente, refu- gia-se nas fendas dos muros, em buracos antigos de ratos, em tocas abandonadas que forra de musgo, convertendo-as assim em habitação commoda e agradavel. Tambem não é raro encontral-o n'um velho ninho d'esquilo ou em ninho especial construido expressamente entre dois ra- mos d'arvores. O acto sexual realisa-se na primeira metade de Maio. A femea é MAMIFEROS EM ESPECIAL 539 disputada pelos machos em combates pertinazes e terriveis, em que os vencidos acabam sempre por ser devorados pelos vencedores. Assim a quadra do cio torna estes animaes terriveis, maus, hostis. Depois de uma gestação que dura vinte e quatro dias ou um mez, a femea pare quatro ou seis filhos nus e cegos que deposita geralmente em velhos ni- nhos abandonados de esquilo, de corvo e outros animaes. Antes de pa- rir a femea repara estes ninhos forrando-os de musgo e de pêllos. A mãe aleita os filhos durante longo tempo e mesmo depois que deixa de dar-lhes leite, quando já comem, traz-lhes o alimento solido. Quando al- guem attaca o ninho, a femea protesta rosnando, mostrando os dentes e mesmo, se pode, mordendo vigorosamente. Passadas poucas semanas, os filhos attingem as dimensões dos paes, mas vagueiam ainda por algum tempo em torno do ninho, procurando o alimento sob a vigilancia dos progenitores; no anno seguinte encontram-se aptos para a reproducção. Um facto devemos observar por curioso que é: o arganaz dos po- mares, sendo em tudo muito limpo, conserva o ninho sempre sujo pela accumulação das fezes, até ao ponto de pelo cheiro se denunciar ao ho- mem a grandes distancias. A habitação de inverno d'este roedor é nas cavidades dos troncos, nos buracos dos muros, em tocas; outras vezes penetra nas quintas, nas casas de campo, nos jardins e ahi procura um abrigo. Ordinariamente encontram-se n'um mesmo ninho varios indivi- duos entrelaçados e adormecidos. O somno d'estes animaes é continuo mas pouco profundo, como o demonstra a sensibilidade que revelam quando n'esse estado os picamos. Os arganazes dos pomares são detestados pelos prejuizos que nos causam destruindo os fructos, para attingir os quaes vencem todos os obstaculos. CAÇA Para collocar os seus fructos ao abrigo das incursões funestas d'este animal, o homem é forçado a dar-lhe caça, perseguindo-o com encarni- camento, matando-o sem piedade. Para este fim empregam-se armadi- lhas, laços e, melhor que tudo isto, os gatos domesticos. A marta e a do- ninha são tambem inimigos terriveis utilisados pelo homem na destruição d'estes roedores. 540 HISTORIA NATURAL CAPTIVEIRO O arganaz dos pomares não se adapta facilmente ás condições do captiveiro. Raras vezes se habitua ao homem; o caso mais vulgar é man- ter-se constantemente em hostilidade contra elle. De resto, é absoluta- mente incommodo ; passa a noite inteira em constante movimento, roendo a gaiola, se ella é de madeira, e fazendo um ruido insupportavel. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Pertence esta especie às regiões temperadas da Europa central e occidental. Encontra-se em França, na Belgica, na Suissa, na Italia, na Hungria, na Galliza, na Transylvania, na Russia e na Allemanha emfim onde é muito vulgar. O ARGANAZ MUSCARDINO Tem pouco mais ou menos as dimensões de um rato pequeno. É um dos roedores mais graciosos, mais agradaveis e mais vivos que se co- nhecem; interessa tanto pela elegancia das formas e belleza do péllo como pelo aceio e docilidade. O pêllo d'este roedor é espesso, liso, brilhante, ruivo mais claro no ventre que no dorso e branco no peito. Em torno dos olhos e das ore- lhas o pêllo é ruivo-claro e na parte superior da cauda ruivo-escuro. No inverno o dorso adquire uns reflexos negros principalmente no- taveis na parte terminal da cauda. MAMIFEROS EM ESPECIAL 541 COSTUMES Encontra-se nas planicies e nas montanhas; n'estas não se eleva além de seiscentos ou mil metros acima do nivel do mar. Habita as " mattas, as sebes, mas mais do que tudo, os aveleiraes. Tem habitos essencialmente nocturnos; durante o dia dorme cons- tantemente e só depois que o sol se esconde é que desperta para pro- curar o alimento que consiste em nozes, em glandes, em sementes du- ras, em fructos succolentos, em bagas e renovos, mas principalmente em avelãs, fructo que o animal prefere a todos os outros. O muscardino vive em bandos pouco numerosos e entre cujos mem- bros não existem nunca relações muito estreitas. Cada muscardino, só ou acompanhado d'outros, construe nos bosques um ninho bem fôfo, bem quente, feito com herva, folhas, musgo, raizes e pêllos; este ninho é a habitação do muscardino durante o dia. O muscardino trepa admiravelmente e corre ao longo dos ramos mais finos não só à maneira do esquilo mas ainda do macaco; ora se suspende aos ramos pelas patas de traz para apanhar uma avelã collo- cada em plano inferior, ora corre pela face de baixo do ramo com a mesma velocidade que pela face de cima. Em terra mesmo, o arganaz muscardino é agillissimo. O coito realisa-se em meio do estio, muito raras vezes antes de Julho. A gestação dura quatro semanas; assim em Agosto a femea pare trez ou quatro filhos nus e cegos no mesmo ninho em que passou o es- tio. Os filhos crescem muito rapidamente; mamam durante um mez ape- nas. Quando se encontram aptos a procurar o alimento toda a familia se dirige aos pequenos bosques de avelãs em busca d'este fructo estimado. Antes que chegue a epocha do adormecimento hybernal, os filhos encon- tram-se já de proporções quasi eguaes às dos progenitores e procuram tambem fazer provisões de inverno. É em meio de Outubro que o muscardino se retira para a habitação de inverno cahindo em lethargia; a sua insensibilidade é então com- pleta. O somno hybernal dura seis ou sete mezes. 542 HISTORIA NATURAL CAPTIVEIRO É- dificil apanhar o arganaz muscardino fóra do somno hybernal. Desde o momento porém em que por meio de armadilhas se consegue lançar-lhe a mão, pode dizer-se que a domesticação se não fará tardar. Não procura defender-se, não ensaia morder; quando muito, se o terror é grande, solta um assobio mais ou menos agudo. Resigna-se à sua sorte e em pouco tempo se submette completamente à vontade do homem. Perde pela convivencia com o homem a desconfiança que o caracte- risa no estado livre, embora conserve sempre uma certa timidez que manifesta quando se acaricia. | Em captiveiro alimenta-se de nozes, de avelãs, de fructos de toda a ordem, de pão e de grãos de trigo. Come pouco e, pelo menos no co- meço do captiveiro, de noite sómente; não bebe agua nem leite. A graça, a docilidade e o aceio d'este animal tornam-o muito esti- mado em domesticidade. Pode conservar-se dentro mesmo dos quartos mais luxuosos sem receio de mau cheiro. Na Inglaterra é vendido como as aves. Mesmo em captiveiro o muscardino cae em somno lethargico ou hy- bernal, excepto se tivermos o cuidado de conserval-o n'um quarto de temperatura constante e muito elevada. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA «O arganaz muscardino pertence à Europa central, diz Brehm. A Suecia e a Inglaterra constituem-lhe o limite septentrional; a Toscana é o norte da Turquia, o limite meridional. Do lado d'éste não excede a Galiza, a Hungria e a Transylvania. É muito commum no Tyrol, na Styria, na Bohemia, na Silesia, na Esclavonia e na Italia septentrional. É mais vulgar ao sul que ao norte.» * 1 Obr. cit., vol. 2.º, pg. 95. MAMIFEROS EM ESPECIAL 543 OS RATOS ATOUPEIRADOS Sob este nome incluem-se no arranjo taxonomico dos roedores, ani- maes que pelos caracteres dos dentes se assemelham aos ratos e pelas formas e pelos habitos de vida se approximam das toupeiras. Teem o corpo cylindrico; as orelhas pouco visiveis; os olhos occultos; as patas vigorosas, largas, providas cada uma de cinco dedos; as unhas fortes, es- pecialmente nos dedos anteriores; o pêllo macio, molle e curto; o focinho cartilagineo; os incisivos fortes e muito salientes e a planta dos pés des- nudada. “ COSTUMES Os ratos atoupeirados não são sociaveis. Vivem solitarios nas suas to- cas, evitam a luz e raras vezes abandonam a habitação subterranea para virem à superficie do solo. Cavam com rapidez extraordinaria os largos corredores das suas tocas, trabalhando n'elles todo o dia e toda a noite. Sendo sobre a terra muito morosos e deselegantes, movem-se, pelo contrario, com velocidade notavel ao longo dos canaes subterraneos. Alimentam-se de plantas, de tuberculos, de raizes, de bolbos que encontram pela terra. Alguns, excepcionalmente porém, comem tambem herva, cascas, grãos e nozes. Os que habitam as regiões frias arreca- dam provisões, mas não caem em somno hybernal. Todo o anno devas- tam os campos, os jardins e os prados. Felizmente para nós a multiplica- ção d'estes roedores é muito limitada. DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Habitam as planícies seccas e arenosas do antigo e do novo conti- nente, exceptuando a Australia. 544 HISTORIA NATURAL O GEOMYO OU RATO DE PAPOS Este animal que entre os indigenas tem o nome de rato bochechudo de Canadá, é um pquco mais pequeno que o criceto; mede apenas trinta centimetros de comprimento, oito dos quaes pertencem à cauda e oito de altura. O pêllo é espesso, macio e fino; no dorso os péllos são cin- zentos azulados à raiz, ruivos na ponta e cinzentos amarellados na face inferior do corpo. A cauda é branca e as patas cobertas de péllos raros e brancos. As bolsas ou papos que teem sido exagerados nos desenhos d'este animal, não são, segundo Lichtenstein, mais do que simples dilatações semelhantes ás que apresentam muitos outros animaes. Os incisivos d'estes roedores são fortissimos e muito salientes. COSTUMES Os habitos d'este roedor approximam-se consideravelmente dos ha- bitos da toupeira. Vive debaixo da terra n'uma obscuridade profunda e | cava numerosos corredores que se ramificam em direcções diferentes. Só no estio se permitte a liberdade de subir de tempos a tempos à su- perficie do solo; em quanto dura a estação dos frios parece dormir cons- tantemente. Audubon, Bachmann e Gesner que observaram: de perto e minucio- samente os costumes d'este animal, são concordes em affirmar que os canaes por elle cavados teem a profundidade minima de trinta centime- tros. O compartimento principal acha-se collocado entre raizes d'arvores à distancia de metro e meio pouco mais ou menos da superficie do solo; é forrado de hervas tenras, como o do esquilo e é destinado ao repouso do animal. Em Março ou Abril a femea pare cinco ou sete filhos em um ninho semelhante ao compartimento principal da toca, mas forrado de pêllos que tira a si propria. O olfato e o ouvido são n'este roedor muito apurados; por isso é-lhe facil prevenir-se contra todos os perigos fugindo para o fundo da toca MAMIFEROS EM ESPECIAL 545 ou mesmo, se tanto é preciso, cavando rapidamente uma galeria nova em que se esconda. Sobre o solo o geomyo de papos marcha pezadamente; debaixo da terra, pelo contrario, move-se com a rapidez da toupeira. Quando o dei- tamos no decubito dorsal, custa-lhe muito a pôr-se em pé; gasta n'esta operação um minuto pelo menos. Para comer senta-se muitas vezes sobre as patas posteriores, levando com as de diante os alimentos à bocca. Quando anda a pasto, enche os papos de alimento e depois vasa-os apertando-os com as patas anteriores. Estes papos quando cheios tor- nam-se ovoides e alongados, mas nunca pendentes; por isso não emba- raçam a marcha do animal. É falso introduzir este roedor terra nos pa- pos, como algumas vezes se tem dito; n'esta affirmação erronea anda sómente a phantasia do indigena, como o provaram demoradas e minu- ciosas observações dos naturalistas. O geomyo de papos causa grandes prejuizos nos campos, roendo raizes d'arvores com extraordinaria rapidez. Por isso é o homem o mais terrivel dos inimigos d'este roedor, dando-lhe systematicamente caça por meio de armadilhas. É de notar que o animal, uma vez preso, emprega esforços inauditos para reconquistar a liberdade. Muitas vezes conse- gue-o, deixando na armadilha uma perna; de resto, é m'estas occasiões perigosissimo. CAPTIVEIRO Audubon que por muitas vezes conservou em captiveiro os geomyos durante semanas, affirma que os sustentava com tuberculos e que elles são muito vorazes em relação a solidos e extremamente abstemios em relação a liquidos. Affirma ainda o naturalista citado que estes animaes procuravam incessantemente escapar-se, retomar a perdida liberdade, roendo para isso a gaiola. São estas tendencias que os tornam insuppor- taveis. 35 II. INDICE DO PRIMEIRO VOLUME MAMIFEROS Pag. RR SS E RS rd e mio 5 Considerações geraes sobre os mamiferos . . . cc. 10-31 Considerações geraes sobre os primatos. . + cs. 32-34 ORDEM DOS BIMANOS -- O HOMEM Noção geral da vida e estructura do corpo humano — Eschema phy- siologico das funcções organicas — A cellula — Eschema anato- mico dos orgãos e apparelhos do corpo humano . 35-43 FUNCÇÕES DE CONSERVAÇÃO Digestão — Anatomia do tubo digestivo — Fome e sêde — Alimentos — Physiologia da digestão — Digestão oral — Digestão estomacal — Digestão intestinal — Absorpção dos productos digestivos |. 44-60 Circulação — Sangue e seus destinos — Anatomia do apparelho cireu- latorio — Coração — Arterias — Veias — Capillares — Physiologia da circulação — Circulação cardiaca — Circulação arterial — Cir- a 548 INDICE culação capillar — Circulação venosa — Influencia do systema nervoso na circulação — Grande e pequena circulação . HI. Respiração — Anatomia do apparelho respiratorio — O ar — Physio- logia da respiração — Mechanica respiratoria — Chimica respira- toria — Influencia do systema nervoso na respiração IV. Secreções — Secreção saccarina do figado — Secreção urinaria — Se- creção lactea das glandulas mamarias V. Calôr animal — Como é que a cifra thermica do organismo humano se conserva constante no meio das variantes de temperatura do meio . FUNCÇÕES DE PROLIFERAÇÃO I. Reprodueção em geral — Diferentes especies de reproducção . II. Reprodueção na especie hamana — Orgãos secretores do ovulo — O ovulo — Orgãos secretores dos elementos fecundantes — Elemen- tos fecundantes — Desenvolvimento do ovulo e formação do em- bryão — Nutrição do feto — Desenvolvimento do embryão — In- fluencia dos paes no producto da concepção — Lactação. FUNCÇÕES DE RELAÇÃO I | Motricidade — Ossos em geral — Musculos em geral — Osteologia descriptiva — Divisões do tronco — Columna vertebral — O tho- rax — Cabeça — Divisões dos membros — Membros superiores — Membros inferiores — Articulações — Myologia descriptiva — Me- chanica animal — Equilibrio — Movimento — Marcha — Corrida — Salto — Natação II. Sensibilidade — Sensações organicas — Sensações perceptivas II. Percepções sensoriaes — O tacto— O gosto — Olfato — Vista — Des- cripção geral do olho — Apparelho de protecção e partes accesso- rias do globo occular — Estructura — Mechanismo da visão — Im- Pag. 61-63 63-80 81-85 91-100 101-112 113-116 a H. HI. IV. I. INDICE perfeições da vista — Tllusões — Ouvido — Descripção geral do ou- vido — Mechanismo da audição — Sentido muscular. . FUNCÇÕES ESPECULATIVAS Systema nervoso — Anatomo-physiologia do systema nervoso em ge- ral — Grande sympathico — Medulla espinhal — Estructura — En- cephalo — Cerebro — Cerebello — Orgãos de união do cerebro, cerebello e medulla espinhal — Os nervos — Distribuição dos nervos e funcções que executam — Nervos craneanos — Nervos rachidianos Raciocinio— De que mo é nação — Não é é attributo privativo do homem j qua ETA ' Emotividade — Influencia sobre as funcções organicas — Influencia, sobre a vontade Vontade — Authomatismo — Reflexos — Consciencia — A vontade é ainda um reflexo Linguagem — Larynge — Machinismo porque se Rene os sons na larynge— A palavra o. SER Sc “ RAÇAS HUMANAS Considerações geraes — Classificação craneologica — Classificação vulgar segundo a côr da pelle — Classificação de Quatrefages — Classificação de Blumenbach — Raça, ramos, familias — Caracte- res geraes das raças — Raça branca — Raça amarella — Raça co- breada — Raça vermelha — Raça negra RAÇA BRANCA Ramo europeu — Familia teutonica — germanos, inglezes — Familia latina — francezes, hespanhoes, portuguezes, italianos, valachos — Familia eslavica — russos, polacos, bohemios, eslavos do sul — Fa- milias magyar e finneza — magyares, finnezes — Familia grega — os gregos, os albanenses . . + 4 549 Pag. 116-141 141-159 159-162 162-167 1067-172 173-179 181-190 190-204 550 INDICE Pag. IH. Ramo arameano — Familia libyca — berberes, egypeios — Familia ge- mitica — arabes, judeus, syrios, maronitas, drusos — Familia Persa — persas, afghans, belutchis, kurdos, armenianos, ossetos — Fami- lia georgiana — Familia circassiana . . . 0. 205-212 RAÇA AMARELLA I. | Ramo hyperboreo — Familia laponia — Familia samoyedica — Fami- lia kamtchadala — Familia dos esquimós — Familia Iénisseiana — Familias Iukaghira e Koriaka. . . cc. 2138-216 IH. Ramo mongolico — Familia mongolica — kalmuks, mongoes propria- mente ditos, buriatas — Familia Tongousa — tongousas, mandchus — Familia Yacuta — Familia turca — turcomanos, osmanlis . . 216-223 HI. Ramo sinico — Familia chineza — Familia Japoneza — Familia Indo- chineza — birmanos, anamitas, siumezes + o. 2238-282 RAÇA COBREADA I. Ramo indico — Familia Indica — Familia Malabar . S RR a(s II. Ramo ethiopico — Familia abysinia — abysinios, barabras, gallas — Familia fellana 75 as RE E ETA O 6 o HI. Ramo malaio — Familia malaia — malaios, Javanezes — Familia Po- lynesia — Novo-Zelandezes, habitantes das ilhas Sandwich — Fa- milia. mieronosiana. Sape gar TD E E RAÇA VERMELHA I. | Ramo meridional — Familia Andiana — Incas, Antis, Araucanianos — Familia Pampeana — Patagonios — Familia Guaraniana— Gua- ramo, Bolocudaos- +. ess esp amo po) PA UR IH. Ramo septentrional — Familia do Sul — Antigos mexicanos — Fami- lia do nordeste — Familia do noroeste . . . . . . 245-247 INDICE 551 Pag, RAÇA NEGRA I | Ramo Occidental — Familia dos Cafres — Familia dos Hottentotes = PANARA QUE DORIOS . is ess sessao 2841-258 I. Ramo oriental — Familia Pampuana — Papus, Novo-Caledonios — Familia andamiana — Andamianos, Australianos . . .. 252-254 O HOMEM PRIMITIVO Considerações geraes sobre a edade do homem — Edade de pedra — Edade dos metaes — À questão da origem do homem — Lucta pela existencia — Selecção natural — Adaptação — Hereditariedade . . . . . 2655-269 QUADRUMANOS Considerações geraes — Costumes — Distribuição geographica — Domesti- cidade — Usos e Productos — Classificação . . . Lc 0. 21-28 QUADRUMANOS EM ESPECIAL I MONOS OU MACACOS PROPRIAMENTE DITOS o gorrLHa — Costumes e regimen — Domesticidade — Usos e Productos — Ro goographios , sc cs Grs on) 288-991 o curmpanzé — Costumes — Domesticidade — Distribuição geographica — RN e Sm cm STR E ao pan ADD 08 o orango-tango — Costumes — A caça e os combates — Domesticidade — Distribuição geographica — Usos e Productos . . 304812 os Loxcimanos — Costumes — Domesticidade — Distribuição geographica RR O PROQRBROR O e BMDS peso | ao eo re e pr 552 INDICE Pag. o manDriL — Costumes — Domesticidade — Distribuição geographica — Usos e Productos - 3171-319 o parião — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos 319-321 0 nariGÃo — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos 321-323 o ENTELLA — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos 323-325 O MACACO commum — Costumes — Distribuição geographica —Usos e Pro- ductos . 326-327 O MACACO MAGoT — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Pro- | ductos . 3271-329 os URRADORES — Costumes — Domesticidade — Caça — Distribuição geo- graphica — Usos e Productos . 329-335 o sat — Costumes — Domesticidade — Distribuição geographica — Usos e EBDÓNISIOS aos ps algo CR O U 3305-339 O saimirr commum — Costumes — Domesticidade — Caça — Distribuição modgraphios «sra A ÇA LT SP E 339-342 - o mico — Caracteres — Costumes — Domesticidade — Distribuição geogra- phica— Usos e Productos. |. 342-344 II LEMURES OU FALSOS MACACOS O MaKI mococo — Caracteres — Domesticidade — Distribuição geographica 344-346 O MAaKI vARIZ— Caracteres — Costumes — Domesticidade — Distribuição geographica . 8346-347 o npriZz — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos . . . . . . . . . . . . . .. 348-349 O LORIZ TRADIGRADO — Caracteres — Costumes — Domesticidade — Distribui- ção geographica — Usos e Productos 350-352 O gaLAGo commum — Caracteres — Costumes — Caça — Domesticidade — 3502-854 Distribuição geographica — Usos e Productos INDICE 553 Pag. | O GALAGO MeDIOCRE — Caracteres — Costumes — Domesticidade — Distribui- RR RR Rs ss o es Cas 355 O TARCEIRO ESPECTRO — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica RR Ss cs srs ces ro 48066-851 O AYE-AYE DE MADAGASCAR — Costumes — Distribuição geographica . . 3571-361 o gargorrrHeco rurvo — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica RR Ratos e Cos ss e e ce a 3861-368 Classificação em quadro eschematico dos quadrumanos . . . . . 3638-365 ORDEM DOS CHEIROPTEROS Considerações geraes — Costumes — Funcções — Captiveiro — Distribuição geographica — Distribuição geologica . + . Lc cc 3671-319 CHEIROPTEROS EM ESPECIAL os pacós — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribuição gcogra- RR à Froduotos. . sic. Cos a. BB os vamprros — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica . . 384 o vampiro EspEcTRO — (Caracteres — Costumes — Distribuição geographica. 384-388 os vEsPERTILIÕES — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica . 388-389 ORDEM DOS INSECTIVOROS Considerações geraes — Costumes — Distribuição geographica — Usos e RE ane mes ss STEVEN SE E E À BOI 554 INDICE INSECTIVOROS EM ESPECIAL A TOUPEIRA commum — Costumes — Caça — Inimigos — Distribuição geo- graphica — Usos e Productos . A TOUPEIRA CEGA — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos A TOUPEIRA DOURADA — Caracteres — Costumes — Usos e Productos A TOUPEIRA DE CRISTA — Caracteres — Costumes — Usos e Productos — Dis- tribuição geographica. A TOUPEIRA AQUATICA — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos . O MUSARANHO VULGAR — Caracteres — Costumes — Preconceitos — Distri- buição geographica — Usos e productos. O MUSARANHO ETRUSCO — Costumes — Distribuição geographica O MUSARANHO AQUATICO — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribui- ção geographica . , O MUSARANHO ALMISCARADO DOS PYRENEOS — Caracteres — Costumes — Distri- buição geographica O MUSARANHO ALMISCARADO MOSCOVITA — Caracteres — Costumes — Caça — Captiveiro — Inimigos — Distribuição geographica — Usos e Productos. os MAcROSCELIDOS — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica O OURIÇO CACHEIRO VULGAR OU DA EUROPA — Caracteres — Costumes — Capti- veiro — Distribuição geographica — Usos e Productos O OURIÇO CAcHEIRO ORELHUDO — Caracteres — Costumes — Distribuição geo- graphica — Usos e Productos . o ouriço seDoso — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos R 6: ia O OURIÇO CACHEIRO SEM CAUDA — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Dis- tribuição geographica — Usos e Productos * Quadro eschematico da classificação dos insectivoros Pag. 8395-399 400 401-402 402-403 403-404 404-407 4071-408 408-412 412-413 413-415 416 417-423 424 425 426-428 429 INDICE Considerações geraes — Costumes — ci cia — Usos e Productos — Inimigos. ... : SE pe ROEDORES EM ESPECIAL os esquiLos — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribuição geogra- “phica — Usos e Productos. O ESQUILO ORDINARIO — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Capti- veiro — Distribuição geographica — Usos e Productos. O EsquiLO NEGRO — Caracteres — Costumes — Inimigos — Distribuição geo- graphica — Usos e Productos . O ESQUILO TERRESTRE — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Capti- veiro — Distribuição geographica — Usos e Productos. O ESQUILO MAIOR VOADOR — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribui- ção geographica . O ESQUILO MENOR voaDOR — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Caça — Distribuição geographica . as maRMorAs — Costumes — Distribuição geographica — Usos e Productos A MARMOTA CITILLA MoscovITA — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Captiveiro — Distribuição geographica — Usos e Productos . O SPERMOPHILO DE H00D — Caracteres — Costumes — Distribuição geogra- phica A MARMOTA DA POLONIA — Costumes — Captiveiro — Distribuição geogra- phica — Usos e Productos. A MARMOTA ORDINARIA — Costumes — Hybernação — Caça — Captiveiro — Distribuição geographica — Usos e Productos . . . 1... Os castores — Costumes — Distribuição geographica 0 castor — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Captiveiro — Dis- tribuição geographica — Aclimação — Usos e Productos . ... myororamos — Considerações geraes 550 Pag. 431-435 436-438 4839-446 446-448 448-451 451-453 4538-456 456-457 457-461 «— 4601-462 462-463 464-472 4712-474 4714-485 485-486 556 INDICE o coypu — Caracteres — Costumes — Caça — Captiveiro — Distribuição geo- graphica — Usos e Productos . +. cc cs os ratos — Considerações geraes. . Lv LL Lv e es O RATO GRANDE CASEIRO OU RATAZANA E O RATO DECUMANO CASEIRO — Caracteres de um e outro — Distribuição geographica de um e outro — Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . O RATO PEQUENO CASEIRO — Caracteres — Costumes — Inimigos — Distribui- NRO NOORTADINES e ut ço RE CP esitag o Cla a a IR O RATO PEQUENO DOS MATTOS — Caracteres — Costumes — Distribuição geo- GTADRIOS. es a RS a Ra A A a POR O RATO PEQUENO AGRARIO — Caracteres — Costumes — Inimigos — Distribui- ção geographica . O RATO DA BARBARIA — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribuição geographica. . o ratTO ANÃo — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Distribuição geo- RAGE ST A os criceTOs — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica O RATO CRICETO DO NORTE — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Distribuição geographica — Usos e Productos os HYDROMvOs — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica . . O HYDROMYO AMARELLO — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica O RATO ALGALIOSO — Caracteres — Costumes — Caça — Inimigos — Capti- veiro — Distribuição geographica — Usos e Productos . . ... OS RATOS CcAMPESTRES — Caracteres — Costumes — Inimigos —- Distribuição geographica — Usos e Productos . +. . Livros, O RATO CAMPESTRE ORDINARIO — Costumes — Meios de destruição — Distri- buição gopgraphios 2) o ARDE DS AS O RATO CAMPESTRE AMPHIBIO OU RATO D'AGUA — Costumes — Distribuição geo- graphica + Culpado PUDE E ARENA Op O RATO CAMPESTRE PARCO OU EcoNouIco — Caracteres — Costumes — Distri- bUIÇÃE gsogranhica .- MES css Et ra SS OS RATOS LEMMINGOS — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica. Pag. 486-488 | 488-489 489-496 496-501 ac 502-504 504-505 505-507 507-508 509-513 514 515 516-520 520-524 525-526 526-527 5271-528 529 Caracteres — Costumes — Inimigos — hai — -Ca-. A Ear anpuioo 7” — Usos e Productos . pila DBA-DIT — - Costrmes — Caça — Captiveiro — Distribição | a ERRATAS 3, eto, — leia-se — direita e esquerda e em quatro cavidades ete. ló ne na pg. 11—0s Iymphaticos, iso chamados chyliferos — leia-se | tambem chamados, na sua origem intestinal, chyliferos. QH Mattos, Julio Xavier de 45 História natural M3 illustrada Vol Biological & Medical PLEASE DO NOT REMOVE CARDS OR SLIPS FROM THIS POCKET UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY AVAST SER O DA ; PBR Q x 7 4 Wi y RINÕEN q ui rr RN RANA e : entanô é a gd NPR RN ARE dia O O Rg E OA N n A y ) RENO N ATO EA Nino À NT IN) q á NA Tan NANA VAR dd Ieda RN PU Pta O A ! DM h » EN s RAM NANÃ ) a E ANA q PAR N A DO CO BANCA NaN ANNAN A N NAO Paolo y Ao NG ta N E ny SRI VA SRI ni ENERRER q "3 E NAAS Ni v) o DNA ley) EN EN BERO A O CINY VAN ES Bud , ENA BN O UNO do dA é NS RN RA ARA ANA NNE NA Ea NS RR EM RES TA, ADA, Tiara [o NAN RA EN E Ni A um gi) ED o aa REI E E a RN NERD SE ON POA NS VA N À A ESEC DI k x NR a a E BA on! po HE ? vi Ne A Ny RE pa Re 4! EIA NIE dead ERRADAS ANTA ARA PDR REA EO Renda : ' v Ro a CENAI EN çs DANCER ) YES) DEAN ay EO LATA ARA ATO vê) e a ES OR TS NRO NE Pe DATAS 4a the PAD FR y