Extracto do JORNAL DE SCIENCIAS MATHEMATICAS, PHYSICAS E NATURAES 24 SerE—N. XVIII— Lissos — 1897 D'ANC POR J, V. BARBOZA DU BOCAGE LISBOA Typographia da Academia Real das Sciencias 1897 126 JORNAL DE SCIENCIAS MATHEMATICAS JOSE DANCHIRTA Trouxe-nos o ultimo paquete d' Africa occidental a infausta noticia de que fallecera em Caconda, no sertão de Benguella, o habil naturalista e intrepido explorador a quem se deve, quasi exclusivamente, tudo quanto hoje se conhece da inte- ressante fauna das vastas possessões portuguezas d' Angola e Congo. Não eram na verdade animadoras as ultimas noticias que directamente receberamos de José d' Anchieta, mas ainda assim não nos faziam presentir tão proximo o fatal desenlace. De Ca- conda nos escrevia elle em 8 de julho: «Vejo que não posso lograr saude n'este clima, que, posto deva ser considerado “como benigno para a maior parte dos europeus, não o é para mim, talvez pelas grandes differenças de temperatura entre dia e noite. Pretender resistir-lhe no estado de pobreza de for- ças a que tenho chegado, creio ser-me arriscado. Julgo que no meu caso o mais sensato é o mudar-me para clima mais moderado.» Não logrou porém o nosso amigo realisar o seu intento, de PHYSICAS E NATURAES | se retirar por algum tempo para Benguella, onde encontrara | sempre condições climatericas mais favoraveis; a morte veiu inesperadamente pôr termo aos seus padecimentos. Faltam- | nos ainda pormenores ácerca dos seus ultimos momentos; ape- nas nos consta que Anchieta, por fins de agosto, partira de Ca- conda a explorar as margens do rio Cusse, que alli adoecera gravemente, e no seu regresso para Caconda fôra, no dia 14 de setembro, encontrado morto dentro da machila que o conduzia. Eis tudo o que sabemos. Em homenagem á honrada memoria de quem tão rele- vantes serviços prestou á sciencia e ao paiz, queremos consi- gnar aqui, em breves termos, uma succinta enumeração dos seus valiosissimos trabalhos. Em quasi todos os numeros d'este jornal, desde o começo da sua publicação, não sómente houve o cuidado de se instre- verem as successivas remessas do nosso naturalista, como tam- bem se procurou dar uma idéa exacta da sua importancia nu- merica e do seu valor scientifico. Em outros escriptos, tambem já publicados, encontrarão os zoologistas, que mais particularmente se interessam por quanto respeita à fauna africana, ampla informação ácerca de algumas das collecções que o Museu de Lisboa deve a José d'Anchieta, colleeções que se acham actualmente dispostas em duas vastas salas d'aquelle estabelecimento, recentemente fran- queadas ao publico. Entendemos, porém, que não devemos perder esta occa- sião de consignar aqui uma rapida apreciação dos trabalhos a que o illustre finado consagrara todos os grandes recursos da sua intelligencia e da sua vontade. Cumpre recordar que José d'Anchieta, antes de iniciar JORNAL DE SCIENCIAS MATHEMATICAS em 1867, por encargo official do governo portuguez, a ex- ploração zoologica d'Angola, realisara por deliberação propria e a expensas suas, durante alguns mezes dos annos de 1864 e 1865, uma excursão pela região littoral do Congo, desde Ca- binda até ao rio Quillo, com o fim de obter exemplares da fauna, então inteiramente desconhecida, d'esta porção do terri- torio portuguez. Foi-lhe então adversa a sorte: das numerosas e importantes collecções, que o nosso naturalista obtivera, ape- nas conseguiu trazer ao reino, em 1866, e offerecer ao Museu, uma parte minima; a maior parte e a mais valiosa dos exem- plares ficara submersa com a canoa que os conduzia na passa- gem de um rio caudaloso. Os exemplares que escaparam ao desastre e fazem actual- mente parte das nossas collecções, são principalmente aves e reptis e representam 23 especies das primeiras e 24 dos se- gundos. Talvez pareçam hoje insignificantes estes algarismos, mas seja-nos licito observar que os resultados d'esta mallograda exploração forneceram as primeiras provas authenticas da exis- tencia d'essas aves e reptis n'aquella parte do littoral africano. Em agosto de 1866 regressou Anchieta a Angola para dar começo aos seus trabalhos de exploração e fixou a sua residen- cia em Benguella, donde nos fez uma primeira remessa; d'alli visitou, em 1867, Catumbella, Dombe, rio Coroca e Porto Ale- xandre; em 1868, internou-se no sertão de Mossamedes per- correndo varias localidades nos contrafortes da Serra de Ohela, Biballa, Maconjo e Capangombe, subindo depois ao planalto da Huilla, donde se dirigiu ainda até Quillengues e Caconda; em 1869, passou a Loanda com o fim de visitar algumas localida- des da região que demora ao norte do Quanza, o Dondo, Ca- zengo e Barra do Dande; em 18170, voltou a Benguella, foi de PHYSICAS E NATURAES novo ao rio Coroca e passou à Huilla onde se demorou até fins de 1871; os cinco annos seguintes, de 1872 a 1876, foram con- | sagrados à exploração mais demorada e completa do planalto | de Mossamedes, estacionando successivamente nos Gambos,. Humbe e rio Cunene; d'esta fronteira meridional dos nossos territorios retrocedeu para Quillengues e Caconda, onde se de- morou até fins de 1873; no periodo que decorre de 1879 a 1836, temos a citar a sua fructuosa permanencia em Caconda, precedida de uma curta visita a Novo Redondo; desde essa epocha, com interrupção apenas de alguns mezes em Ben- guella, no anno de 1888, a exploração de Anchieta alargou-se por todo o sertão de Benguella, percorrendo Quissange, Quin- dumbo, Cahata, Quibula, Galanga, Hanha e Caconda, onde chegara no principio de 1897, e onde falleceu em setembro do mesmo anno. Às remessas effectuadas de todas essas localidades, consti- tuem uma numerosa e importantissima collecção de represen- tantes da fauna angolense, na maxima parte já estudados, como consta de diversas publicações que sahiram a lume desde 1867. Para bem se avaliar quanto contribuiu a exploração de José d'Anchieta para os actuaes progressos da zoologia afri- cana, bastará confrontar o que hoje se conhece da fauna d'An- gola, graças a essa exploração, com o que anteriormente se conhecia. Por agora limitar-nos-hemos a fazer summariamente esse confronto, com relação aos grupos superiores de verte- brados. Servindo-nos unicamente para o nosso fim de documen- tos authenticos, offerece-se-nos apenas mencionar como já co- nhecidas anteriormente à exploração de Anchieta, as especies de mammiferos que constam de duas pequenas listas publica-. 130. JORNAL DE SCIENCIAS: MATHEMATIUAS das em 1865 nos Proceedings da; Sociedade Zoologica de Lon- dres. Uma d'essas listas contém a enumeração, pelo dr. Peters, de 11 especies colligidas em Angola pelo. dr. Welwitsch, en- * trando n'esse numero uma que mais tarde o dr. Gray reconhe- “ceu ser nova (Ehyrax Welwitschi) ; a outra lista foi publicada por nós, e consta de 5 mammiferos que o nosso compatriota iai qa ads NÃo RA os pod dA. 'Bayão nos remettera do Duque de Bragança, ao norte do Quanza. ! é Nas remessas effectuadas por Anchieta, dade 1867, te- | | mos Já encontrado não menos de 102 especies de mammiferos, das quaes 25 não estavam ainda inscriptas nos catalogos da sciencia. aa do Era mais avultado, que o dos mammiferos, o numero das aves que se sabia existirem em Angola; mas ainda assim, mui- tissimo inferior ao das que Anchieta logrou colligir. N'uma ex- cellente publicação do dr. Hartlaub, com a data de 1851, so- bre a ornithologia da Africa occidental veem mencionadas 51 especies d'Angola, e este mesmo insigne ornithologista teve occasião de publicar em 1865, nos Proceedings da Sociedade Zoologica de Londres, uma relação de 70 especies de aves colligida por J. J. Monteiro no districto de Benguella, sendo consideradas novas umas T especies; 2 as nossas collecções or- nithologicas, provenientes da exploração de Anchieta, constam de 4:386 exemplares e 560 especies, sendo d'estas novas não menos de 46. Pouco se sabia ipa quanto a reptis e batrachios, que habitam Angola. Citaremos apenas uma colleeção de 21 exem- 1V. Proc: Soc. Zool. Lond., 1865, pp. 400 e 401. 2 V. Proc. Soc. Zool. Lond., 1865, pp. 86 e 89. Museu Britannico, da qual deram noticia em 1864 e 1865 os dr. Griinther e Gray, e 4 especies ineditas, sendo 1 ophidio e à batrachios, colligidas por Bayão no Duque de Bragança, e | | publicadas pelo primeiro d'aquelles distinctos zoologistas. ! As especies de reptis e batrachios encontradas por An- chieta nas diversas localidades que visitou perfazem o numero de 170, sendo 46 novas. Com estes traços geraes procuramos apenas apresentar um esboço da grande obra de Anchieta, nem outra coisa nos. consente a profunda magua que n'este momento opprime o nosso espirito. No desempenho da sua dificil missão consumiu Anchieta mais de 30 annos consecutivos, quasi metade da sua existen- cia, pois nascera em Setubal aos 9 de outubro de 1832 vindo a fallecer com 66 annos de edade. Estes brilhantes resultados por elle alcançados foram de-. vidos, não sómente á sua grande e variada cultura intellectual e á rija tempera da sua vontade; mas tambem ás qualidades excepcionaes do seu caracter, que se accommodava melhor à vida do sertão e aos costumes primitivos dos seus habitantes do que ás praticas e exigencias das sociedades civilisadas. Falleceu José d' Anchieta em Caconda, precisamente na lo- calidade onde mais se comprazera sempre de residir, attrahido principalmente pela riqueza da fauna. Alli o colheu a morte, quando diligenciava, luctando heroicamente cuntra o mal que lhe minava a existencia, descobrir novos materiaes com que en- 1 V. Ann. Mag. Nat. Hist., 1865, vol. xv, p. 97,— Proc. Zool: Soc. Lond., 1865, pp. 442, e 454. 132 JORNAL DE SCIENCIAS MATHEMATICAS y “riquecesse o nosso Museu e fizesse progredir a sciencia de que | se constituira dedicado obreiro. De Hanha nos expedira An- “chieta as ultimas collecções que recebemos; as que diligenciava mandar de Caconda, que lhe abreviaram talvez a existencia, provavelmente não as receberemos, e quando as recebessemos não nos consentiria a cruel enfermidade de que somos victima, que as examinassemos e estudassemos como era nosso costume e nossa principal e mais dilecta occupação. Morreu José d' Anchieta. O seu cadaver ficará talvez aban- donado e perdido n'esses sertões d' Africa, que elle percorrera Ba animado pelo amor da sciencia e pelo amor da Patria; mas passará á posteridade a memoria dos trabalhos, a que elle con- sagrou, com rara sollicitude e heroica abnegação, a maior e a melhor parte da sua vida; e o seu nome, vinculado a muitas das suas descobertas, recordará aos vindouros a parte que ao nosso querido naturalista cabe nos grandes progressos realisa- dos pela zoologia africana na segunda metade d'este seculo. É 2 de dezembro de 1897. J. V. BARBOZA DU BOCAGE À NE A : Coulord == | PAMPHLET BINDER Es Syracuse, N. Y. |===— Stockton, Calif. =