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PEREGRIN ACAM

DE FER.NAM MENDEZ

PINTO.

EM QVE DA CONTA DE MVYTAS E MVY-

to eftranhas coulas que vio & ouuio no reyno da China,no da Tar-

tana,no do Sornau, que vulgarmente fe chama Sião,nodo Calami-

nhan,no de Pegú,no de Martauão,& em outros muytos reynos

& fenhorios das partes Orientais, de que neítas noíías

do Occidente ha muyto pouca ou

nenhúa noticia.

E TAMBÉM D A CONTA D E (JIÍFTTOS CASOS PARTI-

culares que acontecerão a/si a elle como aputras mujtaspejfoas. E no fim delia trata bre~

uemente dealguasçoufas,é"da morte do Canto Padre (ire Francifio Xanier,

'i/nica lu^& re/plandordaquellas partes do Oriente >& Reytor

nel/as vniuerfil da Companhia delefus.

em*)

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Efcrita pelo melmo Fernão Mcndez Pinto.

Dirigido a Catholtca Real CMageftade dei Rey dom Eeliffeo III. defie nome nojfo Senhor,

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Com licença dofanto Officio^ Ordinário }& Taco.

EMLISBOA. Por Pedro Crasbeeck. Anno 1 6 1 4.

A cufta de Belchior de Faria Caualeyro da cafa delRey noílb Senhor, & feu Liureyro. Compnuileaio Real.

Ejla taixado ejle Uuro a 600 reis em papel.

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ESte liuro cujo titulo ht peregrinação de Fernão Mendez Pinto não tem coufa algúa contra anoíTafanta Fèoubõscc flumes & guarda delles.anteshe hiíbriamuy to boa, chca de muyta variedade & nouidade, por as quais partes lia de contentar muyto, porque a nouidade (íegundo diz oPhilofopho) deleita, & a variedade como affiima S. Auguftiobo tira o faftiOjpeloíjuefepode imprimir. Em S.Domingos deLisboaa 15.de Mayo de<S03.

Fr. Manoel Coelho.

-

Vlflaa informação podefe imprimir efte liuro cujo titulo he Peregrinação de Fernão Mendez Pinto, & depois dim- preíTo tornea efte conleiho peia fe conferir como original, & íedar licença pcra correr, &fem ella não correrá. Era Lisboa ii.de Itinho de 5oj.

■Marcos Teixeira. Ruy Pirez, da Veiga.

POdefe imprimir efteliuro da Peregrinação de Fernão Mendez. E depois de impieflò nam correra íem tornar a efta rneíà pêra fe taxar. Em Lisboa a 16. de lunhodc <Sij.

- Sebaftiam Bar bofa. LuysCMachado de Gouuea.

TJ Odcfe imprimir vifta a licença do fanto Officio a 23. de Agottoie áoj.

Sarayua.

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PRIVILEGIO.

EV el Rey faço faberaos queefte aluara virem que o Prouedor & Irmãos da cafa piadas penitentes defta cidade me enuiarão dizer por fua petição que eu lhes fi- zera mercede .ícença para fe imprimir o liuro da hiftoria da perigrinaçao do rnão* MendezPmco que huas filhas fuás deixarão adicta cafa por jaeftar approuado iftopelo farcto officio& pelo ordinário, & porque fe eftaua imprimindo me pe- tiz eíTe mercê de lhes conceder priuilegionatorma coftumada, paraqnenhúa oanem Inaeyroo polTa imprimir fem licença dellesfupplicantes,&viftofeu reque- rimento, &r por fazer mercê por eímollaàditacafajey por bem, &mepraz queporté- e de dc".annos,imprimidor,liureiro,nem outra algua pefíbade qualquer qualidade q ofl'" "- primir,nemvender,em todos eftes reynos & fenhorios,nem trazer de fo- s c Jicolíurojfenão osimpreíTores,liureiroSjOU peíToasque para iflb tiuerem li- :,tdos dittos Prouedor & Irmãos daditta cafa, & qualquer impreííbr, liureiro,ou peííoa que durandoodito tempode dez annos, imprimir, ou vender o dito liuro, nos :us reynos & fenhorios,ou o trouxer de fora dellesfem a dita licença, perdera paraclltís todos os volumes que afsi imprimir,vender,ou trouxer de fora, & alem diílb ericorrerà em pena de cem cruzados,a metade para o dito Prouedor & Irmãos, & a ou- tra ametade para quem oaceufar; &: mando ás juftiças, officiaes, & peíToas a que o co- nhecimento difto pretencer que cumprão & guardem efte aluará como fe nelle con- thcm,o qual fera imprefío,& encadernado no principio de cada volume do dito liuro, & quero que valha,tenha força & vigor, pofto que o efTeito delle aja de durar n/ais 4e hum anno,fem embargo da Ordenação encontrado. Miguel d'Azeuedo ofezémLif- boa a féis de Nouembro de mil feileentos & treze, Ioão da Coíla o fez efcretfer.

R E Y.

DE(M-

DEDICATÓRIA DESTE

LIVRO A EL RE Y DOM PHILIP PE

II. NOSSO SENHOR DO PROVEDOR E IR n-aos da admiração dacafa pia das pemtentes rfco Iludas deita cidade de Lixboa.

Erna"o Mendez Pinto natural defte Revnrv U**,* a

engenho&felicememona)ercreueohuSodTn?- V'"° recupilou as coufas mais no taueis cafe éft Inhn, " 7 ^

fez nas partes do Oriente correndo rm «f. F srmaÇao ^ue as andou,a_s Prouincías & Reynos daqúeí ^ nTCTo aT,?"* "^ cular deuaçao que teue em vida a landa cafa de peni tencia £ft Ç j a pa"" eftáo recolhidas asmolhere »saeDeo.dan»K^dt '^ lhe doou por morte efte largo Itinerário de feus trabXT r V,c,a;

teffes da impreftaô delles foi hum pequena fobfid o de <ET TOíTi ' i como voíTa Mageftade he proteétor da ditaca a & a liSn^af ^^

£ tf" VnârÍâ & 3PraíIud ^ ™'« n°«cil das coui d'?o ^

vofla Mageftade tem tanta parte. Eíabendoel Reyaueí 2 ' eM3ue' nao Mendez ttataua de ordenar efta hirtor!? Lft X T ' Pom <3ue Fer' «ceonos pois temos a nofta «2.1^2X^1^^ ob«>P- era antes obrigação nofta, que atreuirTn o oflW huZ ""^ V Mageftade efte huro pêra que debaixo da Real ZZ - J i m ?K a voffa de podefle entrar & 4 dl maôs do? qufo fclemtj0^ ^^ & fenfuras que faltandolhe efteamparo Lera S kSE^T °S rifc°S « por Iargosannos a Cathohca & Real peffo, d ™f£ m ?1h °r ProíPe" boaaaâ, deFeuereiro.de l6K*ealPelloade vofla Mageftade. De L.s,

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AO LEITOR,

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-, Ntre t, PorttMefes auepafarSea Indk emfeu iefcohrimm» è dcftoh Mk,heitg-

ii . . . <^ J -J 1 J *-. -:-.. nf^J** vivitn . autor deite IturO

niífmo de loLr& perpetua memoria Fernão UUendez Pinto , autor d^elmro (nattiraldavHla de Montemor ovelho>mmto conhecido por nobre & de jwgularen- \enho,mermna,& verdade) o qualcom muitagloúa& honrado nome & nacao Portumeza,a cuíla do Cangue que muitas vezes derramou peleijando pellafe com os j mímLs delia, padecendo os trabalhos &nfiosdapropriavida,quefempreo acom- panhara na larga pengrinafao que fe^por todosos Remos &J"™™"^"M^TST™£ Ctal alcançou a notíadeJfas notaueis&fegredos nunca defcukrtos por outro algu hijlorudor Tsw*esa?orafe communicamao mundo neftabreue hiflonaque efcreueoemeflúlotam vano,queu alalmentefepodemrecrear,&aproueitarcom a licaodella oscunofosquealerem , porque aindaquc Ldecoufas Lto nouas & peregrinas, deuemfer cridas, aJJJpellas refinr&affirmar ^A^Jc tamconhecida verdade,queas mo, apalpou comas mãos ejcreueo comapena, nenhua delias chegue aovoder&iurdichqueocriadordetudodeuanature^aparaobraremqualquerparte lhofas,comquecaadmnosdanoticiadeoutrastaonouasqueparecequeyxcedem,po^ dêeo ?hikfopho,fendoaartetampoderofa& milagrofa nas obras que faz, , quando mais fiT^e che-

ZLimitiL^ L

efteliuroqueefcreueonavidaparafeefiampardeflots da morte, porque os Portuguefes, fi*&f«" -f

fempre,maisafeiCoadosatrabalhar&merecer,queapublicarfuasobm & quanto mais difto teue Fernão Mendez nojfo natural, tanto maior obrigaçaofca aos que na lição defie feu huro o tratarem, deeftimar fua memoria, & defender efe feuretrato de quem o qmfer manchar, negando, oudumdm- dãascoufasque nelle dtz,,com averdade que fempre guardo* áfalouem tudo.

Foi

PEREGRINAÇÃO DE

FERNÃO MENDEZ PINTO.

QATITVLO I.

*Do quepaffey em minha mocida- de nejte ^yno ate que me em- barquejpara a índia.

Vando às vezes po- nho diante dos olhos os moiros &grãdcs na. balhos &infortunios q por mim paíTarão, co- meçados no principio da minha pri meira idad.e , Sc concinuados pelía, mayor partc,& milhor cepo da mi- nha vida, acho q com milita razão me poflfo queixar da vetura que pa- rece q cornou por particular tenção &empreza íuaperfeguirme,& maU tratarme,como íe iíTo lhe ouucra.de íèr matéria de grande nome , & de grande gloria, porque vejo que não contente de me por na minha pátria logo no começo da minha mocida- de,em tal eítado q nella viui fempre em miferias, ôc em pobreza, de não fem alguns fobrefaltos & perigos da vida me quis tambéleuar às partes da India,onde em lugar do remédio q eu hia bufear a ellas,me fora o cre~ cendo com z idade os trabalhos , Sc os perigos. Mas por outra parte quã do vejo que do meyo de todos eíles

perigos & trabalhos me quis Deo3 tirar fempre em íaluo, & porme em feguro,acho que não tenho tanta ra zão de me queixar por todos os ma- les paíIados,quãta de lhe dar graças por eíle prefente, pois me quis conferuar avich , paraqeu pudefíc fazer eíta rude ôc toíca efcrkura,quç por erança deixo a meus hlhosíporã íó para eíles he minha tenção eícre- uella) paraque elles vejão nella eíles meus trabalhos,& perigos da vida q paliei no diícurfo de vmte& híí anos cm q fuy treze vezes catiuo,&deza- fere vendido,nas partes da India,E-'

tiopia, Arábia feIix,China,Tarcaria, MacaííarrSamacra, Sc outras muitas prouincias daquelle oriental arcipe Iago,dos confins da Afia,a q os efert toresChins,Siames,Gueos,Hlequios nomeão nas fuás geografias por pef- tana do mudo,como ao diante eípc ro traçar muito particular, & muito diírufamcnte,& daqui por híía parte tomem os homés motiuo de íe não defanimarem cos trabalhos da vida para deixarem defazeroq deuem, porque não ha nenhús, por grandes que íèjão,com q não poíía a nature- za humana,ajudada do fauor diuino ik. por outra me ajudem a dar graças ao benhor omnipotente por vlar co

A

migo

Teregrinaçoes de

mico da fua infinita mifericordia, a pelar de todos meus peccados,porq cu entendo & cóíeflb que delies me riacerão todos os males q por mim paííarão, & delia as forças, & o ani- mo para os poder paíTar, & efcapar delies com vida,E tomado porprin cipio deita minha peregrinação o q paííey nefte Reyno , digo q deípois que palTei a vida átê idade de dez ou doze annos na mifcria & eftreite za da pobre cafa de meu pay na vil- la de Montemor o velho , hum tio meu, parece que defejoíb de me en- caminhar para milhor fortuna , me trouxe a cidade de Lisboa,&me pos no íeruiço de húa fenhorade gera- ção aíTaz nobre,& de parentes aflaz illuftres,parecédolhe quepella valia âísi delia como delies poderia auer cffeito o q elle pretendia para mim. E ifto era no tempo em q na mefma cidade deLisboa fe quebrarão os ef- cudospella morte dei Rey domMa noel da gloriofa memoria , que foy em dia de fanta Luzia treze dias do mes deDezébro do anno de 1521.de q eu foubé lébrado,& doutra coufa maisantiguadefte reyno me nãolé- bro.Atencão defte meu tio não teue o fuceíTo q elle imaginaua,antes o te ue muito differente,porq auendo an . x no & meyo pouco mais ou menos q eu eftauâ no feruiço defta fenhora, me íbcedeo hum cafo q me pos a vi da em tanto rifco, que para a poder faluar me foy forçado fairme naqlla mefma ora de cafa,fugindo a ma yor prefla q pude, & indo eu aísi tão defatinado co erandemedoqleua-

ua, q não fabia por onde hia, como que vira a morte diãtedos olhos,& a cada paflb cuidaua q a tinha comi go,fuy ter ao cayz da pedra onde a- chey hua carauellad'Alfama, q hia com cauallos & fato de hum fidalgo para Setuual, onde naqlle tempo ef« taua el Rey Ioão o terceiro que fanta gloria aja co toda a corte, por caufadapefteq então auia em muy tos lugares do Reynomefta carauel- la me embarquei eu,& ella fe partio logo,&ao outro dia pella menhã feri do nos tãto auante como Cezimbra nos cometeo hum Francês coíTairo, & abalroando com noíco,nos laçou dentro quinze ou vinte homés , os quais íèm refiítencia,né contradição dosnoflos,fe fenhorearão do nauio, & defpois que o defpojarão de tudo quãto acharão nelle, que valia mais de íeis mil cruzados , o meterão no fundo^ a dezafete cj efcapamos co vida , atados de pès & de mãos nos meterão no feu nauio,cõ fundamcn to de nos leuarem a vender a Lara- che,para onde fe dizia que hião car- regados de armas q de veniaga leua uãoaos Mouros, &trazendonos co efta determinação mais treze dias, banqueteados cada ora de muitos açoutes,quis fua boa fortuna queno cabo delies ao por do fol,ouueráo vi ftade hua vella,&feguindoaa/juella noite marcados pella fua eít/ira,co- mo officiaes velhos pratico/ naquel la arte,forao com ella ant/s do quar to da modorra rendidoyxdandolhe três çurriadasde artilharia a abalroa rão muito esforçadamente, & ainda

Fernão zfMende^fPirjto. %

quena dcfenfâo ouue da parte dos çar mão de mim hum fidalgo do

noílbsalgúa refiftencia,nem ííTo bal- to» para os inimigos deixarem de a entrar,com morte defeis Portugue- fes,& dez ou doze eferauos. Era efte nauio hua fermofa nao de hum mer- cador de Villa de Conde que fe cha- maua Silueílre Godinho, que outros mercadores de Lisboa trazião freta- da de S. Tome, com muytos açuca- res^ eícrauaria,a qual os pobres rou bados,que lamentauão íua defauen- tura, punhão em valia de quarenta mil cruzados. Tanto que eftes cof favros fe viraó com prefa tão rica, mudandoopropoíitoque antes tra- zião,fefízerão na volta de Franca, Ôc leuarão comfigo aígús dos noííos pa- ra feruiço da marearão da nao que tinhão tomada. E aos outros man- darão hua noite lançar na praya ide Iv4elides,nús, ôc defcalços,& algus co muytas chagas dos açoutes q tinhão lcuado,os quais deita maneira forão ao outro dia terá Santiago de Ca- cem^io qual lugar todos forão muy- to bem prouidos do neceíTarío pela gente da terra,& principalmente por húa Senhora que ahi eílaua, por no- me dona Britiz filha do Conde de Villanoua, & molher de Aloníb Pe- rezPantoja, Commendador ôc Al- caide mor da meíma Villa.E defpois que os feridos & os doentes forão conualecidos, cada hum fe foy para ondelhepareceoque teria o reme" dio devida mais certo, ôc o pobre de

MeftredeSantiaao por nome iran- cifcq>le Faria, ao qual icrui quatro annos, em fatisfaçao dos quais me deu ao mefmo Meftre de Santiago por feu moço da Camara,âquem ler ui hum anno Ôc meyo. E porque a moradia que então era cuílume dar- fe nas caías dos Príncipes, me não baftatia para minha fuftentação, de- terminey embarcarme para a India^ inda que com pouco remedio,ja ok. ferecido a toda ventura ou ou boa,que me foccedefle»

CA?. 11

Qomo deíle reyno meparty para a

India^ ç> dofuecefio que teue

a armada em quefuy.

O S onze dias do mês de Março do Anno de mil ôc quinhentos Ôc trinta 5c fete party d ef- te reyno em húa arma- da de cinco nãos, em que não foy Capitão mór,íènão fomente os Ca- pitães particulares das nãos, es quais erão,nanao Raynha,dom Pedro da Sylua, que d'alcunha fe chamaua o Gallo,filhodo Conde Almirante do Vafco da Gama,na qual trouxe a of- fada de feu pay, que el Rey do Ioão que então eílaua em Lisboa, man- dou receber co mòr aparato Ôc pom- pa fúnebre que ate oje fe recebeo my com outros féis ou fete tão de- nenhúa que não foíTe de Rey : Sc na femparados como eu, fomos ter a nao S t Roque dom Fernando de Li- Setuuel, onde kfte eahio em forte lã- ma filho de Diogo Lopez de Lima

A % Alcaide

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*Perigrinaçoes de Alcaide mor de Guimarães, que lo- baya,que o Gouernador tinha mor

gc no anno feguince de 1 5 3 3. falle- ceo cm Ormuz fendo Capitão da fortaleza- & nanao fanta Barbora, leu pnmo lorge de Lima, que hia prouidoemCapitãodeChaul;&na nao frol dela mar, Lopo Vaz Voga- do Capitão ordinário de viagem; & na nao Galega que foy a em queíe

to o veraò paliado. Bile negocio foy logo poftoem confelho, Sc fe deter- minou por todos que as três nãos que eraò dei Rey foííem a Diu co- mo a prouifao mandaua, ôc as duas de mercadores foííem a Goa, por al- gus requerimentos & proteítos de encampação que feus Procuradores

perdeo defpois Pêro Lopez de Sou- fobré efte cafo ja tinhão feitos. Par- fa; hum Martim de Freitas natural tidas as três nãos dei Rey para Diu,

& as duas de mercadores para Goa, prouue a noíTo Senhor letiallas to- das a faluamento. E furgindo as três na barra de Diu a cinco de Setem- bro do mefmo anno de 1558. An- tónio da Sylueira irmaó do Conde de Sortelha Luys da Sylueira, que entaõ ahi efbua por Capitão, as fef. tejou ôc recebeo com aflaz de ale- gria , gaitando largamente com to-j das de fua fazenda , afsi em dar de comer a mais de fetecentos homéstf' como em outras mercês de dinhey-* ro ôc eímolas que fazia continua?» mente. E vendo a gente deita atina- da tãta largueza &abaítança, «fkque aforaiftolhepagauaóíoldos 6c mã- timento, fe deixou aly ficai quaíi to- da por fua própria vontade, fem fét neceflario para iífo nenhum rigpr nem pena dejuftiça, como íèmpfre cuftumou nas fortalezas em qfce auia fofpeita de cerco, As três n2Qs, defpois de venderem aly bem/fcas fazendas, feforaõ para Goa cyírjíós PS officia es delias, ôc a gente /o mar, onde efliuerão mais algús/dias, ate que .0 Gouernador acabou de as d ef- te do Sokãç) BanHur Rey de Cam- pachar para Cochim , Sc dahi, to- mada

da ilha da Madeyra, que aquelle anno matarão em Damaó com mais trinta ôc cinco homés que leuaua comíígo. E velejando todas eíías mos por fua derrota prouue a noíTo Senhor que chegarão a faluamento a Moçambique , onde achamos de ivujernada a nao São Miguel de que <era Capitão & fenhorio hum arma- dor que fechamaua Duarte Triftaó, a qual partindo defpois para o reyi no muyto rica, defapareceo, fem ate oje fe faberem nouas delia, como por noílos peccados a outras alguas tem acontecido nefta carreyra da índia. Defpois de eftas cinco nãos ferem todas auiadas ôc prefíes pa- ra fe partirem de Moçambique, o Capitão da fortaleza, que era Vicen- te Pegado, aprefentou aos Capitães delias húa prouifao do Gouernador Nuno da Cunha, em que matídaua que todas as nãos que aquelle anno deite reyno aly foííem ter, foííem a Diu, ôc deixaííem a gente na forta- leza, pela fofpeita que fe tinha da ar- mada do Turco, porque fe então ef- peraua na índia, por caufa da mor-

Fernão <S\dende? Tinto.

mada â carga, fe tornarão todas cin- co para o rcyno, onde checarão a íãluamento, leuando rambcm con- ligo em companhia outra nao noua que íe fizera na índia, por nome São Pedro, de que veyo por Capi- tão Manoel de Macedo que trouxe oBaíiliíco, a que chamarão o tiro de Diu, por fe tomar ahy na morte doSoltãoBaudur Rey de Camba- ya,com mais outros dous do mefmo teor, os quais foraó dos quinze aue o Rumecaô Capitão mor da arma- da do Turco trouxe de Suez no an- no de 15} 4. quando defte reyno foy dom Pedro de Caftelbranco nas doze Caraucllas dofocorro que par- tirão em Nouembro.

CAT. Ill

Qomo de T>iu me cmbarquej para

o eílreito de Meca, ç> do que

pajley neíla viagem.

VENDOfósdezaf- fete dias que eu era chegado a efta forta- leza de Diu, fazendoíe nellapreftes duas fuf- tas para irem ao eftrey to de Meca, a faberem a certeza da armada dos Turcos, de que ja na índia auia al- gum receyo , me embarquey em hua delias de que hia por Capitão hum meu amigo, por me elle fazer grande; encarecimentos da fua ami- zade na^uella viagem, fazendome muyto fácil fayr eu delia muyto ri- co em pou:o tempo, que era o que

eu então mais pretendia que tudo. Coqíiado eu ncíla promelía, & en- ganado com efta efperanca, fem por diante dos olhes quão caro muytas vezes ifto eufta, & quão arrifcadaeu então leuaua a vida, afsi por fer fora de tempo, como pelo quedefpois focedeo por peccados meus & de todos os que nella fomos, me em- barquey com eíte meu amigo núa FuPra que fe chamaua a Sylueira. Partidas ambas eítas fuftas defta for- taleza de Diu, & nauegando juntas em bua cenferua com tempo aííaz forte,na deípidida do inuerno, com grandes ehuueyros, & contra mon- ção, ouuemos viíta das ilhas de Cú- ria, Muria, & Abedakuria, nas quais eftiuemos de todo perdidos, fem nenhua efperança de vida 5 Ôc tor- nandonos, por nãoauer outro remé- dio, na volta do fuduefte, prouuea noííb Senhor que ferramos a ponta da ilha C,acotorà, híía legea abaixo donde eíteue a noíTa fortaleza que dom Francifco d'Almeida, primey- ro Vi forre v da índia fez , quando no anno de 1 5 07. foy defte reyno, & aly fizemos noíTa agoada, Ôc ou- uemos algum refrefeo, que por nof- íb reígate compramos aos Chriftaos da terra, que decendem daquelles que antiguamente o Apoílolo São Tomé conuerteo nas partes da ín- dia, & Choromandel. Defta ilha nos partimos com fundamento de abocarmos as portas do eílreito, & em noue dias de tempo bonança nospuíèmos na altura de Mafluaa, onde ao pòr do Sol ouuemos viíta A 5 de

I

terminações de

de hua vella , a qual feguimos com tanta preiTa, que ao quarto da- pri- ma nHidido chegamos a ella. E que- rendo nos por via de boa amizade auer falia do Capitão delia, pêra nos enformarmos delle do que pre- tendíamos faber da armada do Tur- co, fe era ja partida de Suez, ou que nouas auia delia j a repofta dos da nao foy taõ fora do que eíperaua- mos, que íem fallarem palaura nos aííombrarão com doze pilouros,dos quais os cinco eráode falcões, & ro- oueyros,& os íete de berços , a fora 'muytas arcabuzadas que também nos tirarão, como gente que nos naõ | tinha em conta. É de quando em quando nos dauão muytas gritas & apupadas, ôc capeandonos com ban deyras& toucas, nos moílrauao de cima do chapiteo de popa muytos terçados nus, efgrimindo com elles no ar,peraque nos chegaífemos a el- les. Cóm a primeyra viíla deitas fuás fonfarrices ficamos nos algum tanto

embaraçados. E praticando os Capi- ,' tural deÇerdenha, filho de hum taés ambos & os outros companhey- mercador que chamaua Paulo

homés dos oitenta quenella vinhaô, Ôc os que ficarão viuos quafi todos fe lançarão ao mar, tendo efte por millior partido que morrerem quei- mados das panelías de poluoraque lhe nos lançauarnos. Aísi que de to- dos os oitenta não eícaparao mais que fós cinco muy to feridos, dos quais hum foy o Capitão da nao, o qual metido a tormento confeífoti cjue vinha de Iudaa donde era na- tural, & que a armada do Turco era ja partida de Suez, com tenção vir tomar Adem, & fazer ahy for- taleza primeyro que cometeíTe a ín- dia, porque afsi o trazia o Baxá do Cayro, que nella vinha por Capitão mor, num dos capitolos do feu re- gimento que o Turco lhe mandara de Conftantinopla. E diíTetanibem outras muytas coufas particulares ' muy to importantes a noffo propofí- to. E antre alguas que nos diííe, nos veyo aconfeífar que era Chriftao renegado, Maihorquy de nação,na-

ros (obre o que fe faria neíle cafo, fe concruyo por parecer dos mais, que os inimigos fe não foífem tanto a feu faluo,masque fetrabalhafie çudo o pofsiuel pelos irmos gaftãdo com a artilharia ate que fone menham, porque então nos ficaria mais fácil ôc menos perigofo o abalroalos, o que afsi fe fez. Edandolhe caça to- do o mais que reftaua da noite, prouue a noífo Senhor que ja quaíi menham ella meíma fe rendeo por íy com morte de feííenra & quatro

Andrès, & que não auia mais que fós quatro annos que fe tornara Mou ro por amor de hua Grega Moura com que era cafado. Os Capitães ambos lhe cometerão então fe fe queria tornar a fè, & fazerfe Chrif- tão, a que elle refpondeo tão dí/ró, & tão fora de toda a rezão, cor/o fe nacera & fe criara fempre naquella maldita feita. Os Capitaes/ambos vendo qiiãocego&defatin/do efta- ua eícemalauenturado nc/conheci- mento da fanta Ôc Cathoílca verda- de

de de que lhe tratauáo, auendo ain- da cão pouco tempo que foraChrif- tão, como tinha confeílado, crecen- dolhe a cólera, com hum zelo janto da honra de Deos o mandarão atar de pès ôc de mãos, & viuo foy lan* çado ao mar com hum grande pene- do ao pefcoço, donde o diabo o le- uou a participar dos tormentos de Mafamede em que taó crente efta- ua, & a nao Com os mais foy metida no fundo, por fer a fazenda fardos de tintas como cà-he o paftel, que nos nao feruia então para nada, ti- rando alguas peças de chamalote que os íoldados tomarão para fe .veítirem.

' ÇAT. 1111.

Como daquy fomos a Majfuaa>

&> dabj por terra â May do

^Preste loaoy à fortaleza

de Gtlejtor*

AQVY deita para- gem nos partimos pa- ra Arquíco, terra do Prefle íoaò, a dar hua carta que António da Sylueira mandaua a hum Anrique Earbofa feitor feu,que andauaa- uh três annos por mandado do Gouernador Nuno da Cunha, o qual com quarenta homens que tra- zia comfígo efeapara do aleuanta- mento <ie Xael, onde catiuaraó dom Manoel de Menefes, com mais cen- to & feíítnta Portuguefes , & to-

Fernao Mende^Tinto. ' ±

maráo quatrocentos mil cruzados, &fcis nãos Portuguefas, que forão as que Soíeymão Baxâ Y^forrev do Cayro leuou cos mantimentos Sc munições da fua armada, quando no anno de mil, quinhentos & trinta ta & oito veyo pór cerco á fortaleza, de Diu , por lhas o Rey de Xael mandar ao Cayro com feíTenta Por- tuguefes de prefente , Sc dos mais fez eímola ao feu Mafamede, co- mo cuydo que as hiílorias que tra- tao da gouernança de Nuno da Cu- nha diraó largamente. Chegando nos a Gotor hua legoa abaixo do porto de MaOuaa,íomos todos bem recebidos da gente da terra, ôc de hum Portuguez que ahy achamos, por nome Vafco Martins de Seixas natural da villa de Óbidos, que por mandado de Anrique Barbofa auia hum mès que aly eítaua, efperando por algum nauio de Portuguefes^ com hua carta do mefmo Anrique Barboía que deu aos Capitães, em que4he dauaas nouasque tinha fa- bidodos Turcos, Ôc lhepidia que em todo caio fe foflem ver alguns Portuguefes com elle , porque im- portaua muytoao feruiço de Deos ôc dei Rey, ôc que elle os não podia yr bufear, porque eítaua naquella fortaleza de Giley tor em guarda de princefa de Tigremahom Mãy do Prefte com quarenta Porcugue-* fes que ahy tinha comfígo. Os Ca- pitães ambos puferaó efta yd a em confelhocos mais que paraiíTo fo- rão chamados , ôc fe aíTentou por parecer de todos que quatro folda- A 4 dos

^Peregrinações de dos o foíTèm verem companhia do. do efte la chegou, o achftu ja mor-

Vafco Martins, & lhe leuaíTem acar- ta que António da Sylueira lhe man- daua, o que afsi fe fez. E partidos os quatro, dos quais eu fuy hum, lo- go ao outro dia feguinte, caminha- mos por terra em boas caualgadu- ras de mulas que o Tiquaxy Capi- tão da terra nos mandou dar por hua prouifaó da princefa Mãy do Prefte, que o Vaíco Martins trou- xera peraiíTo, com mais íeis Abe- xins que nos. acompanharão. E a- quelle mefmo dia fomos dormir a hum Mofteyro de officinas nobres & ricas que fe dizia Satilgão, & co- mo ao outro dia foy menham, ca- minhamos ao longo de hum rio mais cinco legoas , até hum lugar que fe chamaua Bitonto, no qual nos agafalhamos aquella noite em hum bom Mofteyro de Religiofos que íè chamaua São Miguel, com muyta feíla Ôc gafalhado do Prior & Sacerdotes que nelle eftauão, on- de nos veyo ver hum filho do Bar- nagais Gouernador defte império de Ethyopia, moço de idade de de- zaffete annos, & muyto bem def- pofto, acompanhado de trinta de mulas,&elle fomente vinha em hum cauallo ajaezado à Portuguefa, com hum arreyo de veludo roxo fran- jado douro, que da índia lhe man- dara o Gouernador Nuno da Cu- nha auia dous annos, por hum Lo- po Chanoca, que defpois foy catiuo no Cayro,ao qual efte Príncipe man- daua reígatar por hum mercador íu- deu natural de Azebibe, porem qui-

to, de que dizem que moftrou muy- to fen ti mento, & nos affirmou o Vafc co Martins, que aly naquelle Mo- fteyro de São Miguel lhe mandará fazer o mais honrado faymento que clle nunca vira em fua vida,no qual fe ajuntarão quatro mil Sacerdotes, a fora outra mor copia de noui- ços aque elles çhamão Santileus. E íabendo que fora cafado em Goa» & que tinha três filhas moças pe- quenas, & muyto pobres, lhes man- dara de efmolla trezentas oqueas douro, que da noílà moeda tem ca- da oquea doze cruzados. Ao outro dia nos partimos defte Mofteyro em boas caualgadurss que efte Prín- cipe nos mandou dar, com quatro homens feus que nos acompanhaf- fem,os quais nos foraõ agafalhan- do por todo o caminho efplendidif- íimamente, & fomos dormira huas cafàs grandes que fe dizião Bete- nigus, que quer dizer caías de Rey, cercadas em diílancia de mais de três legoas de aruoredo muyto al- to de acipreftes, & cedros, Ôc palmey- ras de datiles & cocos como na ín- dia. Econtinuando daquy pornof- fas jornadas de cinco legoas por dia/ por campinas de trigo muyto gran7 des& muyto fermofas,& chegamos/ hua ferra que fe dizia Vangaleu, pò- uoada de ludeus, gente branca^ & bem proporcionada, mas muyp po- bre, fegundo o que nos parecrodel- la. E dahy adousdias &meyoche* gamos a hua boa pouoaçã/ que fe chamaua Fumbau , duas/egoas da

fortaleza

fortaleza de Gileytor, onde acha- mos Anricjue Barbofajcos quarenta Portuguefes, os quais nos recebe- rão com muyta alegria, acompa- nhada de grande copia de lagri- mas, porque ainda que (como nos elles diziaó) aly eítiueílem muyto à Tua vontade , fendo em tudo fe- nhores abfolutos de toda a terra, com tudo fe não auião por fatisfei* tos nella, por fer aquillo deírerro, & não pátria fua. E porque ja ao tempo que aquy chegamos era muy- to noite, não pareceo a Anrique Bar- bofafaber a Princefa da noffa che- gada. E ao outro dia pela menham que era hum Domingo quatro dias de Outubro nos fomos com elle ôc cos quarenta Portuguefes ao apofen. to onde a Princefa viuia, a qual tan- to que foube que éramos chegados, nos mandou entrar na capella on- de ja então eftaua para ouuir Mifc fa, & pondonos em joelhos diante delia, lhe beijamos o auano que ti- nha na mão, com mais outras ceri- monias de çorteíia ao feu vfo que os Portuguefes nos tinhão mima- do. Ella nos recebeo com muyta a- legria,&nosdiífe: a vinda de vo£ outros, verdadeyros Chriílaos, he ante mym agora taô agradauel,& foy fempre tão defejada, & o he to- das %$ horas deíles meus olhos que tenheno rofto, como o freíco jar- dim d-feja o borrifo da noite, ve- nhais embora, venhais embora, ôc feja em ^ão boa hora a voffa en- trada nefti minha caía, como a da Kaynha Ilena na cerra fanta de ftf»

ruíalem. E mandandonos aííèntrr em húas cfteyras, quatro ou cinco paíios afaftados de ly, nos cíleue perguntando com a boca cheya de rifo, poralgúas coufas nouas ôc cu- riofas, a que dizião que fempre fo- ra muyto inclinada, pelo Papa, co- mo fe chamaua, quantos Reys auia na Chriílandade, fe fora ja algum de nos a caía Santa , & porque íè defcuydauáo tato os Príncipes Chri - ftaós na deftruyção do Turco , & o poder que el Rey de Portugal ti- nha na índia íè era grande, & quan- tas fortalezas auia nella, ôc em que terras eítauão, ôc outras mimas cou- fas defta maneyra. E das repoftas que os nofios lhe dauao moftraua ficar fatisfeita. E com iíto nos defc pidimos delia, Ôc nos recolhemos ao noífo apofento. E defpois de a- uer ja noiíc dias que aquy eítaua- mos, nos fomos deípidir delia, ôc beijandolhe a mão nos diííe : certo que me pefa de vos yrdes tão ce- do, mas ja que he forçado fer aísi, ydeuos muyto embora , ôc feja em tão boa hora a voífa tornada à ín- dia, que quando la chegardes vos recebão os voífos como o antigo Sa- lamão recebeo anoífa RaynhaSa- baa na caía admirauel de fua gran- deza. A todos quatro nos mandou dar vinte oqueaas douro, que lãò duzentos ôc quareta cruzados,& mã- dou também hum Naique com vin- te Abexins que nos veyo guardando dos ladroés,& prouendonos de mãti- méto &caualgad uras ate o porto de Arquico onde as noífas Fuitas efta- *~ ' "' "~ uão

*

uão, & o Vafco Martins de Seixas trouxe hum prefente rico de muy- tas peças de ouro para o Gouernador da índia, o qual fe perdeo no cami- nho^ orno logo ie dirá; 1

(jomo nos partimos do porto de

<L,4rc]uico& do que nosfocce-

deo co ires veílas de Tur*

cos que topamos.

ORNAD OS nos

ao porto de Arquico onde achamos os nof- fos companheiros, d pois de eftarmos aly mais noue dias acabando de efpal- mar as fuílas, & prouellas do necef- íario, nos partimos hua quarta feira feys dias do mes de Nouembro do anno de 1557. E leuamos com nof. o Vafco Martins de Seixas co pre- fente & carta q a Mãy do Prefte íoão .matidaua ao Gouernador, & leua- mos também hum Biípò Abexim, que vinha para vir a eíle reyno, Ôc daquy yr a Santiago de Galiza, & a . Roma, & dahy a Veneza, para dahy fepaíTar a Ierufãlem. E vellejando deíde hua hora ante menham, que faymos do porto, fomos com ventos bonanças ao longo da cofia ate qua- íia vefpora,& fendo ja tanto auante como aponta de Gocão, antes de chegarmos ao ilheo do arrecife, vi- mos três vellas furtas, & parecendo- nos q temo geluas,ou tarradas da ou-

tperigrinaçoh de

tra coíla, fomos guinando a ellas a vella,& a remo, porque ja nefle tem- po o vento nos hia acalmando, & c5 tudo porfiamos tanto neíla ida,cjue em efpaço de quaíi duas horas nos chegamos tão perto delias que lhe enxergamos toda a ape Ilação dos re- mos, & conhecemos que eraõ ga- leotas de Turcos, pelo qual nostor* namos a fazer na volta da terra com a mor preíTa q pudemos, como que defejaua de fugir do perigo em que ja eflaua metido. Os Turcos enten- dendo, ou fofpeitando noíTa deter- minação, deraò hua grande grita, Ôc em menos de hum credo íè flzeraó todos â vella, & bordejando por nofc faeíleyra com as veílas quarteadas de cores,& muytas bandeyras de fe- da; como o vento lhes ficaua mais largo", forão logo fenhores do balra^ uento, com que fem nenhum traba- lho vieraõ arribando fobre nos, ôc tanto que foraõ a tiro de berço, def* pararão em nos toda fua artilharia,

& nos matarão logo noue homes Ôc ferirão vinte Ôc féis, ôc ficando iílo as noíías fuílas de todo mancas, porq a mais efquipação fe lançou toda aoJ mar, os Turcos fe chegarão tanto nos ècj das fuás popas nos fer ião a boj te de lança. Dos noííos aefle tépoii da auia quaréta ôc dous q pódiaó t/e- lejar,eíles vêdoq no feu braço, ua a fua faluaçaó,co tanto imputo ôc esforço cometerão a Capitai/a das três, em q.vinha Soleymão Pragur, Capitão mor da frota, q a/xorarao logo toda de popa a proaycõ morte de vinte & fete ianiçarosi porem a-

cudindolhe

Fcmao Mendes Tinto.

ctidindolhe então as outras duas, que

eítauão mais aíaftadas hum ponco a-

tras, lhe lançarão dentro quarenta

Turcos, com o qual focorro os nof-

íòs ficaraóde todo rendidos, & de tai

maneyra foraó tratados, oue do nu-

mero dos cinquenta & quatro que

crão por. todos, fós onze ficarão com

yida, dos quais ao outro dia íallece-

raó dpus, que os Turcos fizeraó em

cjuartos,& para triúfo os leuarão pin-

durados nas pontas das vergas ate a

cidade de Mocaa, cujo Capitão era

fogrodefteSoleymão ; Drague q nos

tomara; & ao tempo que aly chega- mos, eftauaja napraya c6 todo o po-

uo para receber o genro, & darlhe os parabês da viótoria, Ôc tinha configo hum Caciz feu Mculana que eíles tj- nhão por Tanto, por auer poucos dias cjue viera da caía do feu Mafoma, o cpal em hum carro toldado de feda com grandes benções ôc celas .prouo- caua os ouuintes a darem muycos louuores a Mafamede pela vicloria que dera contra nos aquelle Turco. Ály defe mbarcamos os noue que fi- camos viuos , todos preíbs em húa corrente, ôc nofco també o Bilpo Abexim,o qual hia tão ferido que ao | outro dia falleceo com moííras de ; muyto bomChriflão,o q a todos nos animou, ôc nos coníblou muyto. A gente do pouovendonos vir aísi pre- fos,&conhecen.do q éramos os Chri- ftaõs citiuos,foraó tatás as bofetadas q nos deraó q em verdade afirmo q nunca cu.dey q efcapafíemos daly vida, por^ auiao, pelo cj o Caciz di- zia, que ganhauão indulgência pie-

y *

nariaemnosvitiiperarem,&malua- tarem. Deíla maneyra fomos leua- dos por toda a cidade a modo de triunfo,cb"ín grandes gritas &c t2nee- res,onde ate as molhe res encerradas, ôc os moços ôc mininos nos lancauao das genellas muytas pauellas de ou- rina por vitupério & defprezo do no- me Chriftão. E ja quafi Sol pofto nos meterão em híía mazmorra que efta- na debaixo do chão, na qual eftiue- mos dezaíTete dias afíaz de defa- uentura Sc de trabalho., fem em todos elles nos darem mais que húa pouca de farinha de ceuada para todo o dia. ôc a!g;úas vezes graõs crus mo- lhados em agoa fem mais outra cou- ía nenuua.

C*T*

VI.

De hum motim que ouue neBa ci- dade: ç> da caufa* &> dojucccjjò delk, e> porque via eu fuy da - qui leuaào pêra Ormu^.

Orno os mais dos mi- feraueis de nos vínha- mos maltratados das feridas, que eraó gran- des-& perigofas, ajun-

tandofe a ífto a deshumanidade quenaquellatriíte prifaó fomos tra- tados, quando veyo ao outro dia pela menham, dous do conto dos noue amanhecerão mortos , hum por nome Nuno Delgado , Ôc ou- tro André Borges , ambos de boa geração ôc homés esforçados, por- que como eíles ambos vinhaó feri- dos

Teregrínàçôes de

dos nas cabeças das feridas penetra- tes,& aly não tiuerão beneficio de cu- ra, ou de outro remédio algum, ifío foy caufa de elles acabarem tão de- preíTa. O Mocadão da mazmorra que era o carcereyro daquella pri- íao,tanto que os vio mortos deu lo- go rebate diíTo ao Guazil da juíliça, que entre elles he como Corregedor entre nos, o qual veyo em peííoa a- companhado de muytos miniftros de juftica cornhú grande & temero- ío faufto,& lhes mandou tirar os gri- lhões & as algemas q ambos efta- . uaò prefos,& mandandoos atar com cada hum ília corda pelos pès, os ti-r raraõ fora a rafto, 8c aísi foraó leua- dospor toda a cidade, com grande íbma de moços q os hiaó apedrejan- do,ate os lançarem no mar. Ao ou- tro dia a tarde os fete que ficámos viuos fomos poftos em leilão em hua praça, onde todo o pouo da cidade eílaua juto,& o primeiro que o pof- teyro tomou pela maó para fazer feu officio, foy o pobre de mytrij & começando a dar o primeyro pregão^ o Caciz Moulana q ja ahy era chega-, do mais outros dez ou doze íeus inferiores tambe CaCizes da maldita feita,requereo ao Heredim Sofo Ca- pitão da cidade, q nos mandaíTe de efmola a cafa de Meca para onde el- le eftaua de caminho, paraq em no- me daquelle pouo fizeífe aquella ro- maria, porqnaó era razão, nem taõ pouco honra do mefmo Capitão, mandar vifitaro corpo do Profeta Nobycom as mãos vazias, &íèm leuar coufa em q o Rajaa Dato Mou-

lana mayor da cidade de Medina defíc pór os olhos, porq o não que-. . reria ver nem concederlhe perdaõ nenhú q lhe ellepidiíTe para os mo- radores daquella cidade q taò nece£ fitados eftauaó dos fauores de Deos por feus peccados: a q o Capitão ref. pondeo q não tinha poder naquella, prefa para diípenfar nella tão largo como lhe elle pidia,mas q fallaífe el- le ao Soleymão Dragut feu genro, porq elle o faria de muyto boa vóta- de. O Caciz lhe replicou dizêdo, q as couíàs de Deos,& das efmollas pedi- das em feu nome, naó auiao de fer joeyradas por tantas maóscomo elle dizia, fe não fomente pelas damieU les a quem fe pediííem. E que pois ellesò era Capitão daquella cidade, 8c daquelle pouo que aly eftauajun- to5que a elle pertencia condecetv» der em petitório taójufto &táo íãn- to, & taõ agradauel ao Profeta Ko- by Maíamede, pois elle so fora o que dera a vitoria daquella preía a feu genro, & não o esforço dos feus Tol- dados como elle dizia. O que ouuin- do hum Ianiçaro Capitão de hua das três Galeotas; home honrado, 8c de muyto fer 8c valia entre eiles,por no- me Coja Geinal,lhe refpondeo quaíí menencorio do que lhe tinha ouuid^ em defprezo feu>& dos mais que ío- raó na noíla tomada : mas quanto milhor vos fora para faiuaçao da voffaalma partirdes cos pobris foi- dados do voffo^que vos fob/ja,que palauras de hypocrefia aVererdek lhe roubar o feu, como tendes por officio fazer continuamente , 8c fe

quereis

Fernão Mende^Finto. y

quereis nâo leuar as mãos vazias co- íoldados tornarão naquelle fragan-

mo dizeis, para por voífo interelle peitardes os cacizesde Meca, feja co património que voííb pay vos dei* xou, & não cos catiuos que euílarão muytas vidas dos que ja eílaõ enter- rados^ a nos os que eítamos víiíos muy to infindo íangiie; de que vos eu não vejo a voíTa cabaya cão tinta,co- nio me vos podeis ver a minha, ôc as deites pobres íoldados que eftão pre- fences. A qual repofta dada tão li- uremence por eíte Capitão em fauor dos Toldados, o Moulana Caciz to- mou tão mal, & fallou tão íoberbo, Sc com nuas palauras tão mal con- certadas, que afrontado o Capicao Geinal delias, & os mais íoldados iTurcos ôc Mouros que eftauão d ro- da, hús & os outros fizerão hua taõ grande vnião com a gente do pouo que o Moulana tinha por fy, Sc com cuja afouteza fallaua tão íòlto, que durou todo aquelle efpaço que ref- taua do dia íèm fe poder pacificar, nem o Heredim Sofo Capitão da ci- dade ferpoderoíò para iffo, de ma* neira que poreuitar prolixidade, & não me deter nas particularidades deite cafo, que ferião muyto largas de contar; deita vnião fe veyo a tra- uar-antre elles hua briga taõ afpe- ra,& tão aceíàj que veyo a parar em mais de feiícentos mortos de ambas as. partes, & em fer faqúeada mais derneya cidade, & roubada a caía do Moalana, & elle feito em quar- tos, ôc lançado no mar com fete mo- lheres-íuas, & noue filhos, 6c toda a mais gente da fua familia que os

te, íem a nenhum quererem dar a vida. E nos os lece Portuouefes que

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a eíte temj o, como ja drfle, eílaua- mos na praça par; nos venderem em leylão , tomam* > por remédio mais certo de noíía faluacão tornar- monos a meter na mazmorra, m que miniftro algum de juítiça,0Li ou- tra peíToanos leuaífe, ou foíTe corri nofco, ouuemos que em o Moca* dão carcereyro delia nos meter das portas a dentro, nos não fazia pe~ quena mercê. Eira táo afpera & taõ perigofa reuolca fe veyo em fim a por em paz pelo meyo &audiori- dade do Soleymão Dragut Capitão dasGaleotas, o qualquiz tomar ef- te negocio a feu cargo > porque o Heredim Sofo feu fogro, & Capitão da cidade eftaua acfte tempo na ca- ma maltratado de hum braço que lhe cortarão na briga, ôc daly a tre- ze dias em que a couíà acabou de eftar de todo quieta, nos puferaõ outra vez em leilão com toda a mais prefa, alsi de, fato corno de artilha- ria que fe tomou nas fuftas, de que por então fe fez bom barato. E ao pobre de mim quiçá como menos ditofo coube em forte comprarme hum Grego renegado, de que eu ar- renegarey em quanto viuei, porque me tratou de maneyra em íôs três mèfes que fuyfeu catiuo,que por fetc ou oito vezeseítiue tentado para me matar com peçonha (íe noífo Se- nhor me naó fizera mercê de me ter da fua mão) para lhe fazer per- der o que por mym tinha dado,

porque

*Perigrínãçoes de porque era o mais deshumano, & P^a a índia em nua nao de htm

cruel inimigo que nunca fe vio no mudo.No cabo dos três mefes prou* tic a noíío Senhor que rececío elle q por fer infofriuel perdefle o que dera por mim, como algús feus vizinhos lhe tiniíáo ja dito, me vendeo a tro-

iorge Fernandez Taborda, que hia com cauallos pêra Goa,& velejando por noíTa derrota com vento bonan- ça de mourão tendente,em dezafete $ias de boa viagem ouuemos vifta da fortaleza de Diu, & chegandonos

€0 de tâmaras por preço de doze mil bem a terra com determinação de reis a hum Iudeu por nome Abrao fabermos ahi algúas nouas,enxerga .

Muça, natural da cidade do Toro, duas legoas & meya do monte Si- nay, o qual em húa Cáfila de mer- cadores que partio de Babylonia pa- ra Cayxem me leuou a Ormuz,& me aprefentou a dom Fernando de Li

mos de noite por toda a cofta hua grande quantidade de fogos, &de quando em quando tom de artilha- ria^ lançando noíTosjuizosfobre o que ifto poderia fer, pairamos com pouca vella o* que reftaua da noite

ma que então ahi eftaua por Capi- ate que de todo toy menham, em q

claramente vimos a fortaleza cerca- da de hua grande quantidade de vel- las Latinas. Embaraçados nos todos com efta nouidadetãodefacuftuma- da,ouue fobre ella muytas alterca* çoés,& diueríldade de pareceres,por*' que os mais diziao que era o Gouer- nador que nouamente chegara de Goa a fazer as pazes da morte Soltáo Bandur Rey de Cambava, c] os dias paliados elle tinha morto: outros aífirmauão com grandes apo- flas, que era o IfFante dom Luys, ir- mão dei Rey dom íoão o terceiro, q então chegara defte reyóo, & que o grande numero de vellas Latinas q viamos, erão as carauellas em q çílé

tão da fortaleza, & ao Doutor Pêro Fernandez Ouuidor geral da índia, que de poucos dias ahi era vindo por mandado do Gouernador Nuno da Cunha a fazer alguas couías de fer- uiçodelRey,& elles ambos poref- molas que tirarão pola terra, & po- lo que também derão de íuas cafas, ajuntarão duzentos pardaos,que de- rão por mim ao Iudeu; com que fe elle ouue por muy to bem pago.

CAT. Vil

Do que faffej depois que me em- barquey em Ormu^ ate che» ' gar a fndia.

viera, porque afsi fe tinha entalem Vendo ja dezafeis dias toda a Índia por nona certa» Outros que eu era chegado a diziãõ quê era o Patemarcaa/om as Ormuz, & liure pela cem Mas do Gyamorim Rey de mifericordia de noíío Calecú, outros todãuiá- di/ião que Senhor dos trabalhos trão TurcOs,& afsi o affirniauãó por que tenho contado, me embarque^ íèzoés muyto claras «s/euidentes»

Eftando

Eftando nos nefta confuíàó & varie- dade deiofpeitas,comaííaz de arre^ ceyo do que tínhamos diante, nos fayraó do meyo de toda a frota cin- co Gales muyto grandes, com íeus baftardos quarteados de verde & ro xo,&muytas bádeiras por cima dos toldos, ôc nos calccíès dos maftos e- ftendartes muyto compridos, que cjuafí tocauao com as pótas naagoaj & podo todas cinco as proas em nos, fe vierãoa orça fenhoreando do bal- rauéto, pelo que então acabamos de entender que eraó Turcos: nos tanto cjue as conhecemos, diíFerimos com muyta preíTa a vella grande, que ja

Femao Mcnde^ Timo.

8

da de Turcos, de que era Capitão mor Soleymão Baxa Viíorrey do Cayro, ôc que a grande quantidade das vellas que tínhamos vifto, eraõ cinquenta ôc oito Galés reays ôc ba- ftardas, que tirauão cinco peças pot proa, ôc algúas delias paíTamuros, Ôc lioés, ôc efperas, & oito naosgroílas em que vinhaó muytos Turcos de fobreílalente para refeição dos que morreífem. E que também traziao muytos mantimentos ôc munições, em que fe affirmaua que vinhaó' tre- zentas peças de bater, em que entra* uão doze Bafalifcos; com a qual no- ua ficamos todos aíIasconfúíos,&cf-.

tínhamos de verga dako,& nos fize- pantados, ôc demos muytos lóuuo

mos na vojta do mar com bem grã^ res a noíTo Senhor pela mercê q nos

de arreceyo que j>or noíTos pecca- fizera em nos liurar de tamanho pe-

dos nos aconteceíTe aly outro defa- fírefemelhanteao de que atras te- nho tratado. Os inimigos íèguindo- nosfempre por noíTa efteyra ate qua- fi a noite,prouue a noíTo Senhor que fe tornarão afazer na volta da terra, a demandar o pofto donde tinhaó íaydo. A noíTa não bemeontente de fe ver liure de tamanho perigo, che- gou daly a dous dias a Chaul, onde o Capitão delia, cos mercadores que nellavinhão,fe foraó logo ver com Simão Guedez Capitão da fortaleza, a^uem deraó conta de tudo o que lhefoccedera nafua viagem, ao que clle lefpondeo: certo que tendes to- dos nuiytarezãode dardes graças a Deos por vos liurar de tamanho pe- rigo. E então lhes dilTe que auia ja vinte dias que António da Sylueira eftaua cercado de húa groíía arma-

ngo.

CAT. VI 11

*Do que nosfoccedeo na viagem de

(Joaulfara Çoa, e> do que

eupajjej depois que che-

guey a ella.

Ogo ao outro dia nos partimos daquy de Chaul na volta de Goa, ôc fendo quaíi tanto auante como o rio de Carapatão, encontramos Fer- não de Morais Capitão de três fufc tas,que por mandado do Viíorrey Garcia de Noronha, que então che- gara do reyno, hia para D'abul a vei fe podia tomar ou queima1" húa nao de Turcos que eílaua ahy no porto

carre-

Terigrlnaçoes de

carregando de mantimentos por má- E que o Hidalcão refpõdera por pa-

laura aos offereci mentos que o Ba-' lhe mandara fazer em nome do Turco, que antes queria a amizade dei Rey de Portugal,com lhe ter to- mada Goa, que a Tua, com lhe pro- meter areítituiçãodella; & que fós dous diasauia que anão era partida, & que o Capitão delia que fe cjia- mauaCide Ale, deixara apregoada guerra co Hidalcão, jurando que co- mo a fortaleza de Diu folie tomada (o qual nao tardaria oito dias, fegu- do o eílado em que ja ficaua pofb)o> Hidalcaõ perderia o reyno& a vida & então conheceria quão pouco lhe podiam aproueitar os Portuguefes, * Fernão de Morais vendo queja não tinha aly que fazer, fe tornou para, Goa,a dar conta ao Viíorrcy do que paífaua, onde. chegou daly a dous dias,& achamos nella furto Goncal* lo Vaz Coutinho,que cinco fuítas hiaparaOnor,a pedir á Raynha da terra hua Gale das da armada do SoleymaOjque.com tempo èígarrao aly fora ter, E porque hum dos Ca- pitães deitas fuítas era muy to meu a- migo,& me via vir tão desbaratado* deíejando de me poder ajudarem algua coufa, me cométeo que me embarcaflè com elle, & que me faria aly logo pagar cinco cruzados,,© que eu aceitey de boa vontade, parece n- dome também que h me poderia Deos abrir algum caminho cotrí que me proueíTe de outra milhei capa que a que então trazia, ja q áe meu rjão tinha mais que o que pretendia alcançar por minhas mãoS/£ acudin-

/ dome

dado do Baxà. O qual Fernão de Morais tanto que conheceo anoíía nao,requereo ao Capitão delia que de vinte homésque leuaua comíigo lhe deílê os quinze, por quãto vinha muyto falto de gête pela muyta pref. fa com que o Viforrey o madara em- barcar,por afsi íèr neceíTario ao fer- uiço de Deos & de fua alteza. E def poisdeauer íobre ifto muytos def» goítosdeambasas partes, deq não trato por encurtar rezoés, em fim fe yieraõ a concertar que o Capitão da noílanaolhe deíTè doze homes dos quinze que Fernão de Morais lhe pi- dia,de que elle ficou iatisfeito,& def- tes fuy eu também hum,por fer fem- pre o mais engeitado, & com iílo fi- carão ambos auindos. Partida a nao para Goa, Fernão de Morais com as fuás crés fuítas feguio fua viagem na volta do porto de Dabul, onde che- gou ao outro dia às noue horas,& to- mando nelle hum paguei de Mala» lanares, que no meyo da angra eífa- ua fur to, carregado de algodáo,&de pimenta,pós logo a tormento o Ca- pitão & o piloto delle,x>s quais con- feíTaraò que os dias atras viera aly ter hua nao do Baxà a bufear manti- mentos, & trouxera hum Embaixa- dor que leuaua hua cabaya muyto rica para o Hidalcão,a qual elle não quifera aceitar,pornáo ficar vaííàllo do Turco, vifto não fercuftu me entre os Mouros mandarenfe eílas caba- yas,fenão do lenhor ao vaíTallo,poIa qual defauença a nao fe tornara fem mantimêtos,nem outra coufa algua.

X cos.

gosi

Fernão Monde- Tinto. dome então os foldadcs da fufta com alguns petrechos necef!arios,de que eu vinha falto, fiquey feito aisí de pedaços como qualquer dos ou- tros meus companheyros cjuehião na armada, táo neceísitados como eu. Ao outro dia pela menham, que foy hum Sabbado, partimos da bar- ra de Bardees, & a íegunda feyra íe- guinte furgimos no porto de Onor, com grande cítrondo de artilha- ria, &as vergas ao modo de guer- ra em torno de efpada, & grande vozaria de pífaros & tambores, pa- ra que a gente da terra neftas mo- ítras exteriores lhe pareceíTe que tinhamos nos os Turcos em

9

nao conta,

QAT. IX.

*Do que (jonçallo Z)a% Couti- nho paflou com a Ttgynhít de Onor.

ESPOÍS que â ar- mada foy furta , & fe fez no porto a falua q diííej o Capitão Gon- çallo Vaz Coutinho mandou logo à Raynha húa carta que lhe leuaua do Viforrey,por hum Bento Caftanho homem difereto, & bem criado, pelo qual lhe mandou dizer o paraque aly era vindo,& que pois fua alteza era amiga dei Rey de Portugal, & tinha com elle pa- zes Ôc amizade auia tanto tempo, que como recolhia no feu porto Tur-

que eraÔ no/Tos Capitais ininii-. ao que dia rclpondco,r/:!c (lu mercê foííe mnyto bem vindo com toda a fua companhia, que qtíató ao que lhe mãdaua dizer das pazes que tinha com el Rey efe Portuga!,& cos feus Gouemadores, era muyra ver- dade,& afsi as teria em quanto vi- ueíTe, porem quanto aos Turcos em que lhe apontaua,que íó Deos> aque ella tomaua por íuiz nefte cafo, fa* bia quanto contra feu goíto ellesaly craó vindos, & que pois fua mercê trazia forças para os poder lançar fora,ofízefle,que ella lhe dariapa, raúTotodoo fauor quanto lhe f0f< fe pofsi-uel, que para mais bem fabia ellequenãoera ella poderofa, nem fe atreuia a pelejar com tamanha for* ca, ôc que lhe juraua pelas alparcas douradas do feu pagode, que tan- to folgaria com a viótoria que Deos IhedeíTe contra elles, como que o Rey de Narímga,cuja eferaua eila e- ra, a aífentaffe à mela com fua mo-» lher. Ouuindo Gonçalo Vaz a ef* ficada deite recado, & os compra mentos que a Raynha lhe fazia,inda que ifto erâ menos do que elíe eípera ra delia, todauia o diisimulou com prudencia>& informandofeda gen- te da terra do que os Turcos deter- minauão, onde eílauão, ôc o que fa* ziáojdeípois decófultado o negocio, Sc tratada muyto deuagar a impor- taria delle,em fim fe aílentou por pa- recer d e todos os q fe niífo acharãó,q por honra daquella bãdeyra dei Rey noílò Senhor, a Galé íè cometeíTe, a ver íefe podia tomar,& quãdo não B fe tra^

8

^Peregrinações de

fe trabalhai* todo opofsiuel por fe deípidido, aquém o Capitão mòr

quèÍmaV,porque DeosnoíTo Senhor

por quem pelejauamos,nos ajudaria

contra aquellcs inimigos da fua Tan- ta Fè. AíTéntado ihxTafsi & jurado,

& feito diílb hum aíTento em que os

mais afsinaraó, o Capitão mor fe le-

uou mais para dentro do rio, diftan-

cia de dous.tiros de falcão, & antes

quefurgiííe chegou a fua fufta húa

almadia deterra,na qual vinha hum

Bramene que falaua muyto Por-

tuguez,o qual deu ao Capitão mor

hum recado da Raynha em que lhe

mandaua pedir muyto , & requeria

da parte do fenhor Viforrey,que por

nenhum cafo elle pelejaífe cos Tur-

cos,porque tinha fabido por efpias q

fobre iíTo trazia, que eftauão muyto

fortes em húa tranqueyra junto da

foíTa em q tinhaò metida a fua Gale,

pelo que lhe parecia que auia myíler

muyto mor poder que o que trou- xera para tamanho feito, & que a

JDcos tomaua por teftemunha da grã-

£le dòr & fentimento que tinha pe- lo receyo em que eftaua de lhe acó- tecer algum defaftre. A que o Capi- tão mor refpondeo palauras pru- dentes & decorteíia, dizendo que beijauaasmãos a fua alteza por ta- manha mercê, & taó bom confelho, |mas que quanto a cometer os Tur- cos,por nenhum cafo deixaria de fa- zerporque não era cuftume de Por- tuguefes deixarem de pelejar por me- do dos inimigos ferem muytos nem poucos, porque qíiãtos mais f oífem, tanto mayor feria a fua perda delles, & com efta refpofta foy o Bramene

deu hua peça de chamallote verde, & hum chapeo forrado de citira cramefim,com que foy muyto con» tente.

CAT>. X

Como o Capitão mor cometeo quej*

mar a Çalè dos Turcos, &• do

que [obre ijfo pajfou.

Efpidido o Bramene, o Capitão mòr Gon- çallo Vaz Coutinho fe determinou de todo cm pelejar cos Turcos, mas primeyro teue auifo, por eípias que niíTo trazia, do modo que com nofco queriaõ ter, & de como aquel- la noite, com fauor da Raynha,fcgú- do fe dizia, meterão a Galé em húa foíTa, junto da qual tinhaò fekahúa tranqueyra de \allos muyto altos, & prantadas nella vinte & íeis peças de artilharia. O Capitão mor com tu- do fe abalou para onde os inimigos eftauão, & defembarcou obra de hum tiro de berço afaftado delles com oitenta homés comfigo,porque o reftanteda gente que trouxera de Goa para efte eífeito, que foraó cem homés, deixou no rio em guarda das fuftas . E feitos todos num corpo com boa ordenãça começou de mar- char para os inimigos, os quais ven- do a noíía determinação, ie determi- narão tãbem como homés esforça- dos^ faindo a receber osnoífos obra de vinte & ciíico ou trinta paflbs fo- ra

rada fua tranqueyra,(è trauou a bri- 'pa cnrre hus& outros tão afpera, & com tanto ímpeto, q em pouco mais de dous credos ficarão no capo qua- renta & cinco mortos, dos quais fôs os oito foraô noíTos)& todos os mais da parte contraria, & apertando o Capitão mor outra vez de nouocõ elles, prouue a noíTo Senhor que vi- rarão as cofias, & fe recolherão com muyta defordem, como gente ja ve- ada, o que vendo os nóífòs, os fe- guirão atè dentro da ília tranqueyra, onde elles de nono nos tornarão a "fazer refiro, & aquy andamos todos tão baralhados nus cos outros, que cos punhos das efpadas fe ferião al- gus nos roftos. Nefte tempo chega- rão as noíTas fuftas que vinhaó re- mando ao longo da praya, as quais com grande grita deípararão nelles toda a artilharia, com que lhe der- rubarão dez ou doze laniçaros de ca- Tapucoes de veludo verdej que en- tre Turcos he deuifa de gente fidal- ga, com a morte dos quais todos os outros deíacoroçoaraõ, & de todo largarão o campo. O noíTo Capitão mor cometeo então queimarlhe a Cale, & lhe lançou dentro cinco pa- nellas de poluora, & começandofe ja de atear o fogo no toldo, elles, co- mo homés muy to esforçados o tor- narão a apagar em muy to pouco eí- paço. E aperflando inda os noíToS por entrarem na fbíla, os inimigos derão fogo a hua peça grofTa, que íê~ gundo a forma do pilouro, parecia ler Camello de marca mayor,o qual deíparando com hua roca de pe-:

Femao Mendc^Tinto. ' IO

dra, nos mnroulogo féis homens hum dos quais fpy Diogo Vaz Cou- tinho filho do Capitão mor, & ferio mais quinze ou dezaíTeis, com que de todo ficamos desbaratados. Os inimigos entendendo o dano que nos tinhãoleíto, derão hua grande grita em final de viótoria, chaman- do por Mafamede, porem o noííb Capitão mor, vendo por quem el- les charn.auãp , esforçando os feus lhesdiííe: Ahícnhores ôc Chriftaós, jaque eftes caés chamão pelo dia- bo que feja com elles, chamemos nos por Iefu Chrifto que feja com nofco : & arremetendo com cilas palauras outra vez á tranqueyra, os inimigos voltarão logo as coftas, Sc fugirão manhoíameme para onde cftaua a Galé, com determinação êcfc fazerem nèlla fortes, porem al- guns dos noíTos que entrarão com elles de volta, lhé fiueraõ ganhado a mor parte da tranqueyra, 3c dan- do elles então fogo a hua mina que tinhão junto da porta, ficarão aiy logo mortos íeis Porciigqefcs Sc oi- to efcrauos, a fora outros que fica- rão muyto queimados, com hua fu- maça tamanha, que nos não vía- mos hús aos outros. Receando en~ tão o Capitão quepudeííe auer ain- da outra perda tal como cada hua deitas, fe veyo retirando para a pra- ya, & afsi fechada èm lboa orde- nança, cos feridos & mortos no me- yo em collos de outros, chegou a onde as fuás fuftas eftauao, onde dcf- pois de embarcado, fe Veyo a re- mo ate; a calheta donde tinha par-

Ba

tid<

1

Terígrít

tido, na qual com aííaz de dor & lagrimas enterrou os defuntos , & entendeo na cura dos feridos & dos queimados, de que ouue húa gran- de quantidade.

CA9. XI.

Do que maisfocedeo ate o outri

dia, que (jonçatto Vaz fe

partio para Goa.

Quelle mefmo diâ,cj para os noflbs foy bem trifte,fefezalardoda gente, para fe faber o que tinha cuítado o cometimento da tranqueira, &íea- charaõ dos oitenta foldados os quin- ze mortos,& cinquenta & quatro fe- ridos, dos quais os noue ficarão de£ pois aleijados. E tudo o mais que re- flaua do dia & da noite feguinte, fe paíTou com aíTaz de trabalho,& com boa vigia. Tanto que foy menham a Raynha mandou vifitar o Capitão mor com hum grande çauguate de muytas galinhas,* frãgaós, ôc ouos, que elle não quiz aceitar, mas mo- ftrandofe muyto colérico contra el- la, foltou algíías palauras quiçá mais aíperas do que parecia razão, ôc dif- fe que o fenhor Viforrey faberia muyto cedo quão feruidora ella era dei Rey de Portugal, ôc quanto elle lhe deuia por iíTo, para lho pagar a feu tempo,& que para cila ficar certa que âuia de fer afsi iífo que lhe dizia, lhe deixaua aly em penhor feu filho ^norto, com todos os mais que ellaí

'coes de

manhofaméte fizera matar, co fauox & ajuda que dera aos Turcos, ôc en- tão lhe daria as graças por aquelle prefente que lhe mandaua para dif- íímulação do que tinha feyto. Defc pidido o menfageiro com efta repo- fta,& quaíi aíTombrado dos feros ôc juramentos com que o Capitão mor retificou alguas vezes ifto que lhe dik fera, chegou onde a Raynha eftaua» Sc lhe encareceo a repoíía que trazia de tal maneyra, que a fez ter para íy que por cawfa defta Gaíê fem duui- da perderia muyto cedo o feu rey* no, pejo qual lhe era muyto neceíTa* lio trabalhar todo o poísiuel, por não ficar de quebra co Capitão mòri E tomando íbbre efíe cafo coníèlho cos íèus, lhe tornou logo a mandar outro recado por hu Bramene muy~ to feu parente, & homem ja de dias,' &deafpeito gtaue ôc autorizado, a qual foy bem recebido do Capitão mór,& defpois de fazerem fuás ceri- monias de honra Ôc cortefia lhe diífe oBramene. Se me deres,fenhor,licé- çaparaque falle,abrirey minha boca diante de tuaprefença,& da parte da Raynha minha fenhora te direy © a q venho. O Capitão mor lhe refpon- deo q os embaixadores tinhão legu- ro para fuás peíToas, ôc liceça para di- zerem liuremente o a q eraó manda- dos, pelo que fem nenhu receyo po- dia falar o q quííèííe.O Bramene lhe deu por iflp íeus agradecimentos, ôc lhe diífe. Dizerte fenhor Capitão cjuãoagaftada ôc triíte eftáa Ray- nha pela morte de teu filho, ôc dos mais Portuguefes que na peleja

de

Femao Aíende^Tinto, n

de ontem morrerão, fera coufx im- de tudo o que nefte caio mais foce-

polsiuel, porque afirmadameme te juro por vida lua, ôc por efta linha de Bramene que profeífey de pe- queno, que tão afrontada ficou quã- do foube do teu deíaítre, & defa- uenturado iucceíTo, como fe o dia de oje lhe fizeraõ comer carne de vaca na porta principal do pagode onde feu pay jaz enterrado, ôc por a- quy íenhor julgaras quanta parte tem no teu nojo, mas ja que no fei- to não pode auer o remédio qucel- la defeja, te pede & roga, que de nouo lhe confirmes as pazes que os Gouernadores paífados lhe conce- derão, pois trazes poder do íenhor Viforrey para iíTo, & que ella te fi. ca, ôc te da íua palaura de mandar logo queimar a Gale, Sc aos Turcos que íe vao fora da íua terra, porque para o mais, como tu fabes, nao he •ella podercíà , ôc iílo logo em ter- mo de fós quatro dias, que para ik fo te pede de efpaço. O Capitão mor entendendo quão importante couíâ efta era, lhe aceitou a promef» fa, ôc lhe concedeo de nòuo as pa- zes, as quais juradas aly logo ôc con- firmadas de ambas as partes com as cerimonias coftumadas entre aquel- les Gentios, a Raynha bufcou todos os meyos pofsiueis para cumprir fua palaura, mas porfe não poder efpe- rar o termo dos quatro dias que a Raynha pedira,peio perigo dos muy tos feridos que auia naarmada,o Ca pitão mór fe par tio logo nefte mef- mo dia à tarde,& deixou ahy na ter- ra hum íorge Kogueyra, peraque

deile, crouxcíic recado ao VifoiTey por lho pedir afsi a Raynha.

CA<P. XIL

"Do que pajjou neíle tempo cite Tero de Faria chegar a

Malaca.

Capiraó mór Goncal- lo Vaz Coutinho che« gou ao outro dia com a íua armada a Goa, onde foy bem recebi- do do Viforrey, ôc lhe deu conta de tudo o que ihefocedera na viagem, & do que deixara concertado com a Raynha deOnor, aísi de queimar a Gale, como de lançar os Turcos fo- ra do reyno, de que o Viforrey en- tão feouue por fatisfeito. Paífados vinte Ôc três dias depois q checamos a efta cidade,em q eu acabey de con- u alecer de duas feridas que trouxe da briga da tranqucyra, vendome fem nenhum remédio de vida, me fuy, por coníelho de hum padre meu a- migo, offerecer a hum fidalgo hon-. radopor nome Pêro de Faria, que então eft aua prouido de Capitão de Malaca,& quCnefte tempo daua me ia a todo o homem que a queria a- ceitar delle, o qual aceitou o meu of^ ferecimento,& meprometeo que ao diante na fua capitania, me faria to- da a amizade que pudeíTe, pois o eu quçria acompanhar naquella jor- nada em que hia co Viforrey, Nefté tempo fe fazia preftes o Viforrey B | dom

^Peregrinações de

dom Garcia de Noronha para yr íb- Viforrey aqui mais outros cinco dias

correr a fortaleza de Diu, da qual ti- nha recado que eílaua em grande a- perto,pelo cerco que lhe tinháopof- to os Turcos, para o qual ajutou en- tão hua aíTaz groíTa & fermofa arma- da; em que aueria duzentas & vinte Sc cinco \ellas, de que los as oiten- ta & três erão de alto bordo entre nãos & Galeões & Carauellas, & as mais eraó Galês, & bargantins & fu- flas, em quefe affirmauaque irião dez mil homes limpos, & trinta mil de chufma,&do feruiço da marea» ção, & efcrauaria Chriftam. Deita poderola armada era o Baxâ auiía- do todos os dias por cartas do Hi- dalcáo, & do C,amorim Rey de Calecu, & pelo Inezamaluco, & pe- lo Acedecão, & por outros muytos Príncipes Gentios & Mouros, que a- quy nefta cidade trazião Tuas efpias íecretas. E fendo o tempo chegado, Sc a armada ja de todo preftes &a- parelhada de todo o neceíTario, o Viforrey fe embarcou nella hum Sá- bado catorze dias do mes deNo- uembrodo annode 1538. ondeefte^ ue embarcado cinco dias eíperando que fe acabaílè de recolher neila a gente qeramuyta,nofim dos quais lhe chegou hum catur de Diu com cartas de António da Sylueira capi« tão da fortaleza, em que lhe daua nouasque o cerco era ja leuantado, Sc os Turcos ydos, o que caufouem toda a gente da armada hua notauel trifteza,pelo defejo que todos tinhão de fe verem com eftes inimigos da nofla fanta Fe. E detendofe inda o

prouendo algúas coufas neceíTarias ao eítado da índia, delpidio daly donde eftaua furto duas nãos para o reyno , das quais eraó Capitães Martim Afonfò de Soufa, & Vicen- te Pegado,& mandou nellas o Dou- tor Fernão Rodriguez de Caftelbrã- co Veador da fazenda, para lhes fa- zer em Cochim a carga da pimen- ta, & auiar o Gouernador paíTado Nuno da Cunha; que ja eftaua a- uia dias na nao fanta Cruz, mal defc pofto, «Sc algum tanto defcontente por fe lhe não ter o reípeito que el- le efperaua, & que tinha para íi que merecia por feus feruiços. De/pois de ifto afsi ordenado, fe pardo o Vi- forrey deita barra de Goa hua quin- ta feyra pela menham, feys dias do mès de Dezembro , & ao quarto dia de fua viagem furgio emChaul, onde fe deteue três dias aíTentan- do algúas coulas co Inezemaluco importantes ao bem ôc fegurança da fortaleza , Sc prouendo algúas vellas das que vinhão na arma- da de alguas coufas de que vinhaõ faltas, principalmente de manti- mentos, & de chufma, ôc partindo daquy para Diu, íèndo tanto auan- te como os picos de Daanuu, na traueíTa de meyo golfão lhe deu hum temporal taó rijo, que lhe àu uidio a armada em muytas partes, de que fe perderão alguas vellas, em que entrou a Gale baftarda na barra de Dabul; de que hia por Ca- pitão dom Aluaro de Noronha filho do Viforrey,& Capitão mor do mar,

&no

Fcmao Mendez Tinto

\,

iZ

& no golfada Gale Efpinhcyro cujo Capitão era Ioaõ de Souía que cha- mauão dalcunha o Pvates , por ler filho do Prior de hum lugar q cha- mâo Rates, da qual Galé dom Chri- fíouão da Gama filho do Conde Al- mirante, que defpois os Turcos ma- tarão no Preftc Ioaó, faluou a mayor parte da gente, por fe "achar juto del- ia no tempo que o mar açoçobrou. E afsi fe perderão mais outros fete nauies,de cujos nomes não fou lem- brado. De maney ra que primeyro q o Viíorrey fe corna íFc a refazer do q perdcra,& ajuntar o que a tormenta lhe efpalhara por diuerfas partes, fe paílou mais de hum mes. E chegan- do em fim a Diu aos dezafleis de í.v neyro do anno de 1539. entendeo lo- go em tornar a edificar de nouo a fortaleza,porque os Turcos deixarão a mor parte delia pofta por terra; de maacyraque o faluarfe pareceo que fora mais por milagre que por forca humana. É repartindo eíla reedifica- rão da fortaleza pelos Capitães da armada,deu ao Pêro de Faria,por ter muy ta gente,o baluarte do mar com a couraçada banda da terra, que em vinte & íeys dias com íos trezentos foldados pòs em muy to mi Ihor efta- do do que antes eílaua. E porque ja nefte tempo erão catorze de Março, & a monção de Malaca era ja chega- da; fe partio Pêro de Faria para Goa, ondeporprouifoesdo Viforrey que leuaua, fe acabou de prouer de tudo onecefíario muy to abaftadamente, & fe partio de Goa a treze dias de AbriljCom húa frota de oito nãos, &

quatro fuílfas, 3c húa Galé em que leuaua feilceutos homés,£kcom tem- po feyco de boa monção chegou a Malaca a cinco dias de lunho do mefmoannode 1539.

QAT. XIII

Como Tero de Faria fqy vljiiado por bum Embaixador do Rey dos 'Batas^ & do quepaf- Jou com elles.

O tempo que Pêro de Faria chegou a eíla for taleza de Malaca,efta- uanella por Capitão dom Efteuão da Ga- ma,& efteue ainda algus dias ate a- cabar o feu tempo,porem como Pê- ro de Faria era Capitão chegado de nouo, & que ainda então começaua o feu tépo, deípois de auer algus dias que era chegado a fortaleza, os Reys comarcãos delia o mandarão vifítar por feus Embaixadores, •& darlhe os parabés da fua capitania, com' ofe- recimentos de muyta amizade Ôc cô- feruação de pazes com el Rey de Portugal, entre os quais veyo hum dei Rey dos Batas , que habita na ilha C,amatra da parte do Oceano, onde fe prefume que jaz a ilha do ouro que el Rey dom íoaó o tercey- ro algúas vezes tentou mandar def- cubrir,por informações que deitas partes algíís Capitães lhe efcreueraõ. Efte Embaixador, que era cunhado do mefmo Rey dos Batas, & fe cha- maua Aquarem Dabolay,trouxe hu B 4 rico

*Perigr

-,-iila & ca lambaa, & cinco quintais de beijoim de boninas, & húa carta efcrita em folha dei palmeyra, a qual dizia afsi. Cobiçoíb mais que todos os homés do feruiço do Lião coroado no tro- no efpantoíò das agoas do mar,afren tado por poderio increiuel no aíTo* pro de todos os ventos. Príncipe rico do grande Portugal teu fenhor & meu, ao qual em ti varaò de coluna de aço Pêro de Faria,nouamete obe- deço por yerdadeyra &íànta ami- zade3para de oje em diante me ren- der por feu íubdito,com toda a lim- peza & amor que hum bom vaflàllo deue fazer,eu Angeefsiry, Timorra- ja Rey dos Batas, defejando agora de nouo tua amizade, para cos fruy- tos deita minha terra enriquecer os teus íubditos,me ofFereço por nouo trato de ouro^imenta^anfor^agui- la, & beijoim encher eífa alfandega "do teu Rey & meu, com tanto que na firmeza de tua verdade me man- des hum cartaz de tua letra para mi- nhas lancharas & jurupangos naue- garem feguros com todos os ventos. E te peço mais de noua amizade,que dos efquecidos de teus almazés me íocorras com pilouros & poluora, de que ao prefente me acho muyto fal- to, para com a ajuda &fauor deite primeyro çauguate de tua amizade, caííigar os perjuros Aches, inimigos crueysdeíTatua antiga Malaca; com os quais te juro de em quanto viuer nunca ter paz nem amizade, ate não tomar vingança do fangue de três filhos meus que contino ma pede

igrinaçoh de rico prefente de paos de aguija & ca- com as lagrimas derramadas pela no

bre May que os cócebeo, Sc os criou afens peitos, que efíe cruel tyranno Achem me cem mortos naspouoa- çoés de Iacur & Lingau, como mais particularmente em nome de minha pefíoa to dirá Aquarem Dabolay ir- mão da trifte Mãy deites filhos,que de mim te enuio por noua amizade, paraque fenhor cótigo trate o mais que lhe parecer feruiço deDeos,& bem do teu pouo. De Panaju,aos cia co mamocos da oitaua Lua. £ffe Embaixador foy bem recebido de Pêro de Faria , & com as honras ôc cerimonias feitas ao feu modo,& de£ pois que lhe deu a carta (a qual foy logo trefladada da lingoa Malaya emque vinha efcrita em Português) lhe dide por hum interprete a cauía dadefauença defíe tyranno Achem co Rey dos Batas, a qual foy, q auia algús dias que efte inimigo comete- ra a efte Rey Bata,que era Gentio,cj tomaíTe a ley de Mafamede,& que a caiaria com huafua irmam,cõ tanto que largaííe de fy a molher com que eftauacafado auia vinte & fcys an- nos, por fer também Gentia como elle. E porque o Bata lhe não conce- dera ifto que lhe pidira, incitado o tyranno Achem por hum feu Ca- ciz)Veyo com elle a rompimento de guerra,& ajuntando cada hum delles feu camp0)tiueraõhua batalha aífaz trauada,a qual defpois de durar três horas , conhecendo o Achem a mi- Ihoria dos Batas, por ter perdida muyta parte da fua gente,fe veyo re~ tirando para húa ferra, que fe dizia

Cagerren-

Cagerrendao, onde o Bata o mm cer cado vinte & três dias, & por lhe -ne- íte tempo adoecer muyta gente, & o campo da parte contraria eftar tam- bém muyco falto de mantimentos, fizeraó ambos pazes entre fy,com tal condição que o Achem deíFe ioa0 ao Bata cinco bares de ouro, que Fa- zem da noíTa moeda duzentos mil cruzados,para pagar a gente eflran- geyra que tinha comfigo, & que o Bata caiaria o feu filho mais velho comairmamdo Achem, febre que tiueraó a difFe/ença. E fatisfeito.eíte concerto por ambas as partes,o Bata fe tornou para lua terra, onde desfez logo o feu campo, & defpidio toda a gente. Durou a quietação deita paz por tempo de fósdous mefes & me- yo,em que ao Achem vieraò trezen- tos Turcos, porq ^efperaua do eftrei- tode Meca em quatro nãos de pi- menta q tinha mandado, & muy- tos caixões de efpingardas & armas, com alguas peças de artilharia de bronzo,& de ferro coado,cõ os quais o Achem,& com outra mais gente q ainda tinha cóíigo,fmgindo yr aPa-* cem prender hum Capitão que fe lhe leuantara, veyo fobre dous luga^ tes do Bata, que fe chamauao íacur &Lingau: & como os achou defcuy- dados pelas pazes qeraò feitas auia tão poucos dias, os tomou muyto fa- cilmente,com morte de três fij^os do Bata, & fetecentos Ourobailoés, que hea milhor gente, & a mais fidalga de todo o reyno. O Rey Bata fintin- do em eftremo efta tamanha traição, fez juramento na cabeça doprinci-

Tenão cfMende? "Pinto.

pai ídolo da fira gentílica feita, por •nome Quiay Hocombinor,Deos da

jtjft:ça,de não comer fruyra,nem íal nem couía que lhe rizeiíe íabor na boca ate não vingar a morte de ícus filhos, & fe fatisfazer do que lhe to* rear.:ió,ou-morrer na demada.E que- rendo agora efte Rey Bata pòrpor obra o que tinha determinado, ajG- mu hum campo de quinze mil ho- me^ ai si naturais corno eílrangeiros, em que algús Princip-s feus amigos' o ajudarão,^ não contente com ífto fe quíz também valer do noíTò ía> uor, & por iííõ comeceo Peio de fa- ria com efla nona amizade que atras diíle,a qual lhe elle aceitou de mim. to boa vontade, porq entendia quão importante ella era ao feruiço ád Rey,& à fegurança daquella fortale- za, ôc quanto com ella crecia o ren- dimento da alfandega5& o proueito feu delle, & dos Portuguefes que na- quellas partes do Sul tínhaõ íeus tra* tos,& fazião fuás fazendas.

CAT. XlllU

T>o que mais pajfouneslecafo ate

Tero de Faria me mandar a

eíleT^ey "Bata, & do

que vj no caminho.

Erode Faria deípoisq íeoefta carta do Rey dos Batas, & entendeo do feu Embaixador o negocio a que vinha, o fez agafalhar o mais honradamente que então foy pofsiuel. E paíTados

dezaííete

Teregrínaçoes de ilezafTete dias defpoís que chegara a dez ou doze balões até a ilha de Vpé

Malaca, o defpidio bem defpacha- do3& fatisfeito do que viera Sufcar, porque lhe deu ainda alguas couíàs alem das que lhe pidira, como forno cem panellas de poluora, & rocas, & bombas de fogo, com que fe partio tão contente deita fortaleza,que eh o* rando de prazer, hum dia parante todos os que efrauao no taboleyro da igreija, virandofe para a porta prin- cipal delia, com as maós leuantadas, como quem fallaua com Deos, diíFe publicaméte. Prometo em nome do meu, Rey a ty Senhor poderoío, que com defeanço ôc grande alegria fi- lies aílèntado no tiíouro de tuas ri- quezas, q faó os efpiritos formados da tua vontade,que fe te praz darnos víctoria contra efte tyranno Achem, paraque de nouo lhe tornemos a ga- nhar o q elle com tamanha treino Sc tanta perfídia nos tomou nos dous lugares de Iacur & Lingau,deíèm- precom muyta lealdade &agarde- cimento te conhecermos na ley Por- tuguefa da tua fanta verdade,em que coníifte o bem dos nacidps, & de no- no te edificarmos em nofía terra ca- ías limpas de cheyros fuaues, onde todos os viuos te adorem as maós aleuantadas, afsi como na terra do grade Portugal fe fez íèmpre atego- ra. E afsi te prometo & juro com to- da a firmeza de bom & leal, que meu Rey não tenha nunca outro Rey íè não eíte grande Portuguez, que ago- ra he fenhor de Malaca. E embarcã- dofe logo na lanchara em que viera, fe partio, & o foraò acompanhando

que eítaua daly pouco mais de me- ya legoa, onde o Bendara de Mala- ca,que he o fuprefno no mando, na honra,& najuftiça dos Mouros, por mandado de Pêro de faria lhe deir hum grande banquete ao feu modo feíiejado com chàramellas, trombe- tas, & ataballes, & com muíicas de boas falas àPortuguefa, com arpas, & doçaynas,& violas darco, que lhe fez meter o dedo na boca, que entre elles he íinal de grandifsimo efpan- to. Vinte dias deípois da partida de- fie Embaixador, cubicando Pêro de Faria o muyto proueito que alguns Mouros lhe diziaó que naquelle rey- no podia fazerfe em fazendas da ín- dia fe asld mãdaíTe,& o muyto mais que poderia tirar do retorno delias, armou húa embarcação das que na- quelía terra fe chamao Iurupangos; que faó do tamanho de húa carauel- la pequena, em que por então não quiz arrifear mais que fôs dez mil cruzados de emprego, com os quais mandou hum Mouro natural dahy de Malaca para os beneficiar. E co- meteome fe queria eu yr, porque leuaria niíío muyto gofto, para lo color de Embaixador yrviíitarde fua part£ o Rey dos Batas,& yr cam- bem com elle ao Achem, para onde então fe eíiaua fazendo preífes,porcj quiçá me montaria iflo algum peda- ço de proueito,& para que de tudo o que viíTe naquella terra lhe deíTe ver- dadeyra informaçao,& feouuia ram> bem praticar na ilha do ouro ,por- que determinaua de efereuer á fua

alteza»

Fernão Mcnde^Pinto.

alteza o que niífo paíTafle. Não me

pude eu então efcu lar de fazer o que

me elle pidia, inda que algum tanto

arreceaua a yda, aisí por fer terra

noua, & de gente atraiçoada, como

porque inda então não tinha mais de

meu que íbscem cruzados,por onde

não efperaua fazer proueito. Mas

em fim me embarquey na compa- nhia do Mouro queleuaua a fazéda.

E atraucífando o Piloto daquy de

Malaca ao porto de Surotilau, que

he na cofta do reyno de Aaru, vele*

jou ao longo da ilha Qamatra por

efta parte do mar mediterrâneo, ate

liumrio que fe dizia Hicanduré, ôc

nauegando mais cinco dias por eíla

derrota,chegou a húa fermofa bahia nouelegoas do reyno Peedir em al- tura de onze grãos, por nome Mi- nhatoley, daquy cortou toda a tra- uefía da terra (a qualja aquy nefta paragem não he de mais largura que cie fós vinte & três legoas) atè ver- mos o mar da outra banda do Ocea- no^ nauegando por elle quatro dias com tempos bonanças, foy furgir pumrio pequeno de fete braças de fundo,quc fe dizia Guateamgim, pe- lo qual vellejou féis ou fete legoas a- diante, vendo por entre o aruoredo do mato muyto grande quantidade de cobras, ôc de bichos de tão admi- raueis grandezas ôc feições, que he muyto para fe arrecear contalo, ao menos a gente q, vio pouco do mu- do,porque çfta como viooouco, tam bem cuftuma a darpouco credito ao muyto q outros viraó. Em côdo efte rio, que não era muyto largo, auia

muyta quantidade de lagartos, aos qiuis com mais próprio nome pude- ra chamar ferpentes,por ferem alcús do tamanho de húa boa almadia,có- chadosporcimado lombo, com as

bocas de mais de dous palmos,& tão loltos ôc atreuidos no cometer, fegu- do aquy nos afirmarão os naturaes da terra, que muytas vezes arreme- tiaoa hua almadia quando não le- uaua mais que três quatro negros, & açoçobrauão co rabo, ôc hum ôc hu os comião a todos, ôc fem os efpeda- çaremosengulião inteyros. Vimos aquy também hua muyto noua ma- neyra, ôc eítranha feyção de bichos, aque os naturaes dk terra chamão Caqueífeitão, do tamanho de hua grande pata, muyto pretos, concha- dos pelas coitas, com hua ordem de efpinhos pelo fio do lombo do com- primento de hua pennade efereuer, Sc com azas da feição das do morce- go,copefcoço de cobra, &hua vnha a modo de efporaó de gallo na tefta, co rabo muyto comprido pintado de verde Sc preto,como faó os lagartos deíla terra. Efles bichos de voo,a mo do de falto, cação os bugios, ôc bi- chos por cima das aruores, dos quais fe mantém. Vimos também aquy grande foma de cobras de capello,da groííura da coxa de hum homem, ôc tão peçonhentas em tanto eftremo, que dizião os negros que íè chega- uão com a baba da boca a qualquer coufa viua, logo em prouifo cahia morta em terra, fem auer centrape- çonha, nem remédio algum que lhe aproueicafle. Vimos mais outras co

bras

^Pcrigrínaçoes de

bras aue não faõ decapello,nern tão pequena que fe dizia Batofrendão,

queemnofla lingoajem quer dizer pedra frita, diftante obra de quar- to de legoa da cidade de Panaajú,on- de então o Rey dos Batas fe eftaua fazcdopreftesparayr íbbreoAché, o qual tanto que foubedo prefente & carta que lhe eu leuaua do Capi- tão de Malaca, me mandou receber pelo Xabandar^que he o que gouer- na com mando fupremo todas as coufas tocantes ao meneyo das ar- madas; o qual com cinco lancharas, & doze balloés me veyo buícar a a- quelle porto onde eu eftaua furto, Ôc me leuou com grande eftrondo de atabaques & íinos & grita da chuf. ma,até hum caizdacidade,que fedi* zia Cãpalator,onde o Bendara, GcM uernador do reyno me eftaua efpe- rando,acompanhado de muy tps Ou-» robalo c$,8c Amborrajas, q he a maia nobre gente da corte,porem os mais dellesjou quaíi todos pobriísimos no trato de fuás peílòas, & nos íèus ve- fíidos, por onde entendi que não era efta terra tão rica como em Malaca fe cuydaua. Chegando eu às caías dei Rey, paífey pelo primeyro pátio dellas,&na primeyra porta do fegu-» do eftaua húa molher velha acompa-

peconhentas como eítas, mas mnyto mais compridas & groíías, & com as cabeias do tamanho de húa vitella, eftas nos diziáo elles,que caçauão tá- bem de rapina no chaõ, por efta ma- neyra fobenfe encima das aruores íii- ueftres, de que toda a terra he aífaz pouoada, ôc enrofeando a ponta do rabo em hum ramo fe decem abaixo, deixando fempre a prefa feita em ci- ma,& pofta a cabeça no mato,& com orelha por efeuta pregada no chaõ, fentem com a calada da noite toda acoufaque bolle,& em prepaífan- do o boy, o porco, o veado, ou qual- quer outro animal, o ferraò com a boca,&comoja tem feita a prefa co rabo encima no ramo, em nenhúa couía pregão que a não tragão a fy, de maneyraque coufa viua lhe não efeapa. Vimos aquy também muy- to grande quantidade de monos par- dos ôc pretos, do tamanho de grades rafeyros,dos quais os negros muy- to mayor medo que de todos eftou- tros animaes, porque cometem com tanto atreuimento,que ninguém lhe j*>de refiftir,

QAT. XV.

hada de outra gente muyto mais Do S em Tanaajúpdjfej Com o 7$ey :>bre, & melhor tratada que a que

dos Batas, antes quefepartiffe io Achem.

Ndo nospor efte rio acima efpaeo de fete ou oytolegoas, chega- mos a húa pouoação

/inha comigo. Efta velha meace* nou com a mão como que me man- daua^ú ue rmtraflè, & com afpeito graip^lêuero me diftè, tua vinda, homem de Malaca, a efta terra dei Rey meu fenhor, he tão agradauel à fua vontade, como a eh uua em tépo

feco

feco nalauoura de noflosarrozes-en- tra feguro ôcícm receyo de nadador queja todos,pola bondade de Deos, fomos como vosputros, & afsi efpe- lamos nelle que feja ate o derradei- ro bocejo do mundo,& metendome dentro na cafa onde elRey eftaua lhe fiz meu acatamento, pondo três vezes o joelho no chão, Sc aísilhe dey a carta Sc o prefènte que leuaua, com que elle moftrou que folgaua muyto,& me perguntou aque vinha, a que refpondi conforme ao regimé- to que leuaua, dizendo* que a feruir*

lua alteza naquella jornada, & ver pe los olhos a cidade do Achem, & a fortificação delia, Sc que braças de fundo tinha o rio, para faber fe po* dião entrar nelle nãos grofíàs Sc ga- leões, porque o Capitão de Malaca tinhadeterminadojtantoque a gen- te viefíe da índia, vir ajudar ília al- teza,para lhe entregar aquelle inimi- go Achem em fua mão, o que o po- bre Rey,por quão conforme ifto era ao feu defejo, creo muy to de verda- de^ erguendofe do bailéu, que era a tribuna em que eftaua aíTentado,fe pós em joelhos diante de hua cauey- ra de vaca,que nua coufa como pra-l teleyro ou cantareyra eftaua pofta muyto enramada de muytas eruás chey roías, cos cornos ambos doura- dos^ leuantahdo as maós para elía, diííe quafi chorando. Tu que fem obrigação de amor maternal,a que a natureza te obrigaíTe, recreas conti- nuamente todos aquelíes que quero o teu leyte, como faz a própria mãy ao que pario, não participando poí

Femao éMende^Pinto.

i?

ajuntamento de carne dos trabalhos, & miferias de que parcicipão aquel- las de que todos nacemos,eu te peço de coração, que neifes prados do íol onde com a grande paga & galardão que recebes eftâs fatisfeita do bem q fízeíte,conferues comigo a noua a- mizade deite bomCapitaó,paraque ponha por obra iílo que agora tenho ouuido,a que todos os feus com hua grande grita,& com as mãos aleuan - tadas refponderaó> dizendo três ve- zes, pachy parau tinacor, que quer dizer, ó quem o viíTe & logo mor- reííè. E ficando logo todos em hum íílencio trifte, fe virou el Rey para mim, & alimpando os olhos das la- grimas que a efficacia da oração que fizerajhe tinha feito derramar, me efteue perguntando por algúas par- ticularidades da India,& de Malaca, em que gaitou hum pequeno eípaço atéqueme defpidio com boas pala- uras,& promeíTa de boa veniaga à fazenda que o Mouro trazia do Ca- pitão, que era o que eu então mais pretendia que tudo. E porque ja ne- fte tempo que aquycheguey, el Rey eftaua de caminho para o Achem õc não entendia em outra coufa, fenão no que conuinha para efte eíFeito, paíTadosnouediasdeípoisque che* gueya efta cidade dePanaaju, me- tropoli defte reyno Bata,íe partio c5 toda a gente que ahy tinha comíigo, para lugar que fe chamaua Tur- bão^aly cinco legoas,onde a mayot parte da gente o eftaua ja efperando, ao qual chegou com hua hora de Sol, Cem eftrondo nem regozijo al-

gum,

!

girm.pelo fentimcnto da- morte dos três filhos, que fempre com moftras demuyca tnftcza, fe enxergou nel- les.

CAT. XVI

Como este cRey "Bata partia Tmiaopara o Achem 9 6> < quefe^defpoisquefevb

com elles.

de

mm

B'SÇf

i

^Bã"

Ogo ao outro dia par- tio el Rey defte lugar de Turbaó para o A- chem,que eraô dezoi- to legoas,& leuaua em fua companhia quinze mil homes,de que fós os oito mil eraó Batas, & os mais Menãcabos,Lufoés, Andragui- res,Iambes,& Borneos,que os Prínci- pes deftas naçoés lhe mandarão de focorro,& quarenta Alifantes, & do- ze carretas de artilharia miúda de falcões &berços,em q entrauão dous camellos,& húa meyaefpera de brõ- zo com as armas de França, que fe ouue de húa nao qno anno de 1526. gouernando o eftado da índia Lopo Vaz de Sampayo, foy aly ter com Francefes, de que era Capitão & Pi- loto hum Portuguez natural de villa de Conde, que íe chamaua o Rofa- do. Caminhando efte Rey Bata por fuás jornadas ordinárias de cinco le- goas por dia, chegou a hum rio que íè dizia Qmlem,onde poralguas ef- pias do Achem que ahy fe tomarão foube que o Rey o efperaua em T5- <iacur,duas legoas da cidade, para

Teregrmaçoes de

ahy fe ver no campo' com elíe,& que tinha muyta gente forafteyra, em q entrauão algús Turcos & Guzarates, & Malauares da coita da índia. O Bata pondo efte negocio nos parece- res dos íeus Capitães foy aconfelha-* do que deífe no inimigo antes que fe refízeíte de mor poder, & abalando logo defte rio com efta determina- çãojcaminhoii híi pouco mais apref- íado,& perto das dez horas da noite chegou ao de húa ferra meya le* goa donde o campo da parte con- traria eftaua alojado, na qual repcu- íbu pouco mais de três horas,& tor# nou logo a caminhar co muyto boa ordenança, co feu campo repartido em quatro batalhas. E dobrando cotouello que a mefma ferra fazia,ja; quaíi no cabo defcubrio húa grande várzea de arrozes onde os inimigos eftauão fechados em duas groífas ba- talhas, & tanto que foraô à vifta hús dos outros, ao fom de fuás trombe- tas,atambores,& finos, com vozes ôc gritas increiueisfe cometerão como homés muyto esforçados, & trauan^ dofe a briga entre eIles,defpois de íè arremeíTarem muytas bobas & fre-' chás, & mais munições de fogo que traziaó, começarão entre íi a peleja de mais perto,com tanto impeto,tan to animo & esforço,que a vifta me fazia tremer as carnes. E durando af íi afuria defta batalha por efpaço de pouco mais de húa hoFa fem fe en^ xergar melhoria em nenhúa das par- tes,vendo o Ache que os feus de cart- çados & muyto feridos começauao a perder algúa parfe do campo, fe foy

retirando

Fernão Mende^ Tinto. i tf

retirando para hum cabeço q para a pelejar, íè partio em ícn alcance di-

pane do Sul eftaua mais adiãceobra de hum tiro de efpera, co téção de fe fazer aly forte nús vallos q no topo do morro eftauão feitos como coufa de horca,ou herdade de arrozes, po- rem hú irmão dei Rey de Andragui- re lhe atalhou a efte feu deífenho, porq com dous mil homes fe lhe pos diante, pelo cjual a briga tornou ao primeyro eftado,trauandofe de nouo entre elles com tanta fúria, & ferin- dofe hús aos outros tanto fem pieda- de,cjue não lhe fazem ventagem ou- tras nenhúas nações, porque antes q o Achem cobraíTe os vallos, perdeo mais de mil & quinhentos dos feus, no conto dos quais entrarão os ccto & íeíTenta Turcos, cj poucos dias an- tes lhe eraó vindos do eftreyto de Meca,& duzentos Mouros Malaua* res,có algús Abexins, q era a milhor gente q trazia cófígo. É por ja nefte tépo fer quaíi meyo dia, & a calma muytogrande^o Bata fe recolheo pa- ra a ferra, na qual efteue tudo o que reftaua do dia atè quaíi a noite,em q ouue aílãzq fazer em curar os feri- dos,&prouer no enterramento dos mortos. E hão ouíãndo a íè determi- nar ,atè ver o q o inimigo fazia de íy, fe deixou eftar toda aquella noite boa vigia,& como a menham foy cia ra,a cerca dos vallos onde o Achem eftiuera o dia dantes, appareceo íem gente nenhua, donde entédeo o Ba- ta que o inimigo hia muy to desfeito, &poriflb determinou feguir a vi~ çtoria, & defpidindo logo daly toda a gente ferida que não eftaua para

reito aridade, à qual chegou com duas horas de Sol. E antes que alo- jaííe o campo,para fazer naquellc dia algua coufa em que os inimigos en- tendeflem que não vinha elle desfei- to da batalha paflada,queimou duaâ pouoaçoés muy to grandes, q a ma- neyra de arrabaldes eftauão fora dos muros, & quatro nãos, & dous ga- leões^ eftauão varados em terra,em que os Turcos tinhão vindo do ef- treitode Meca. E ateandofe o fogo a eftas féis vellas grandifsima for- ça & impeto fem os inimigos oufaré a fayr da cidade,o Rey Bata em pef« íòa, como homem q fe íintia fauore* eido da fortuna,& q em nenhua cou- fa queria perder a occafiaó, tentou co meter húa força que com doze peças groíTas varejaua a entrada do rio, q fe chamaua Penacão , & aíTaltandpa á efcalla vifta com obra de fetenta ou oitenta efcadas,a entrou fem per- der dos feus mais que fòs trinta &fe- te^ & todos quantos achou dentro meteo à" eípada, fem a nenhum que- rer dar a vida,que íèrião até fetecen- tas peííoas. De maneyra que nefte primeyro dia que chegou fez eftes três feitos muy to notaueis, de que os feus todos flcaraó taó animados, ôc com tamanha ouíàdia, que quiferaõ logo naquella noite cometer a cida< àcfi o Rey para ifto lhes dera licé- ça, mas por fer o efeuro grande, & a gente eftar muyto caníada, íè conte- tou co que tinha feito,dando por iíTo muy tas graças a Deos.

7 CA?»

CAT. XV 11

\Perig

iZcrfe

T)o mais que o %ey cBatafe^def- pois dofucceffo deíle dia.

Rey Bata teue cere ada- efta cidade por efpaço de vinte & três dias,dé- tro dos quais fizeraõ os inimigos duas fav- elas^ nua delias não ouue couía no- tauel que fe poíla contar, porq não ouue mais que dez ou doze mortos de ambas as partesj mas como as vi- torias, & os bós fucceflbs das [guer- ras tem por curtume darem animo & oufadia aos victótiofos, alguas ve- zes fe acontece fazerenfe os fracos com ifto tão ouíâdos que de todo perdem o receyo,& não duuidão co- meter couíãs que de fy faó árduas & difficultofas, & ainda q leuão alguas auantej todauia em alguas também íè perdem. Ifto íè conhece bem cla- ro no que eu aly vy nefía gente,por- que ven.do os Batas que o Achem fe lhe viera retirando com moftras de vencidojcreceonelles tanto o animo Sc 2l oufania, que tinhão para fy q era impofsiuel terlhe ninguém o rofto direito,& confiados nefta vam & ce- ga opinião,eftiueraõ por duas vezes em rifeo de fe perderem de todo c5 co ufas temerárias que cometerão. Porque na fegunda fayda que os de dentro fízeraó os cometerão os Ba- tas por duas partes commuytoaní- mo,& defpois de andar abriga hum pouco trauadaj fingindo os Aches fraqueza fe lhes yieraõ retirando pe*

'imnaçoes

raa tranqueyra onde os, dias atras o Rey Bata lhe tomara as doze pecas deartilhana,&feguindoos hum Ca- pitão dos Batas defmandadamcnte &femordem,porlhe parecer que ja tinha a victoria certa, os meteo por dentro dos vallos,porem os inimigos lhe tornarão aly a fazer rofto, & íè defendiao valerofamente. Eefíando afsi todos trauados, híís porentrare & outros por defenderem a entrada os Aches deraó fogo a húa grande mina que tinhaõ feita,a qual arrebé- tando por junto do repuxo, que era de pedra em foífa, rafinou para o ar o Capitão Bata com mais de trezen- tos dos feus,feitos todos em pedaços, com hum eftrondo & fumaça taõ ef- pantofa que parecia hum retrato do inferno. Os inimigos deraõ com ifto húagrãdifsimagrita,&o Rey Ache fahiologo em peífoa da cidade com mais de cinco mil Amoucos, & deu nos Batas com muyto impeto,& co- mo a fumaça da poluora ainda então era tamanha que não fe vião husaos - outros,tiuerao antre fy híía confufa, mas cruelifsima peleja, de maneyra que por me não atreuer a dizer par- ticularmente o como ifto'paífou, âi- rey afsi em íbma que em pouco mais de hum quarto de hora que durou efta briga,flcarão eftirados no cam- po mais de quatro mil de hus & dos outros,dos quais o Rey Bata perdeo a mayor parte,o qual fe retirou logo com todo o mais pefo da fua gente para hum morro que fe dizia Mina, çaleu,&proueonacura dos feridos que fegúdo fe diflè, paífaraó de dons

Fernão Mcndc^Píníúi \J

irjí!,aforáoS mortos, que por fenão rH05,& queimados da mína, Ê cn<?*

poderem encerrar, fe lançarão todos pelo rio abaixo. E ficando com iílo ambos quietos mais quatro dias,apa» recco húa menham no meyo do rio contra a parte do Penacão húa ar- mada de oitenta & féis vellas, com grande regozijo de tangeres & feitas, Sc com muytos eftendartes & ban- deiras de feda, que aos Batas meteo em grande confufaó, por não faberé o que era,porem as fuás eípias toma- rão aquella noite cinco pefeadores, os quais metidos a tormento confefc faraó que era a armada que o Rey Achem auia dous mefes tinha man- dado a Tanauçarim, porque tinha guerra co Sornau Rey de Sião* na qual dúTeraó que vinhao cinco mil homés Lufoés,& Borneos, gente to- da efcolhida,& por Capitão mor dei* les hum Turco por nome Hamete- cao, fobrinho do Baxà do Cayro. O Rey Bata pondo em coníelho iík> cj lhe tinhão dito eftes pefeadores, lhe aconfelharaó os feus que em todo ca fo fe deuia de tornar,viíto não eítar o tempo paraelle poder efperar mais húafó hora, afsi porque o poder do inimigo eraja então muyto mayor q ofeu,comopelo locorro q ainda ef- peraua de Peedir,& de Paacem,em q íe affírmaua que vinhaó dez nãos de gente eftrangeyra. Determinado el Rey neíte parecer, fe partio logo a- quella noite feguinte, bem trifte& deícontente, pelo mao fucceíTo da-» quella emprefa, &por leuar menos dos feus paíTante de três mil & qui- nhétos homés, a fora outros tacos fe*

gando daly a cinco dinsáPailáaju, defpidio roda a gente afsi natUrai co- mo cítrangcyra, & fcfoy pelo rio a* cima em húa lanchara pequena, ferri querer leuar comíigo mais que douâ ou três homés^& foy ter a hum lugar que fe dizia Pachiííaru.noquaí efte* ue encerrado catorze dias,a modo nouenas, em hum pagode de hum idolo que fe chamaua GuinaíTeroo* deos da triftezã, & tomado pára Pá- naaju,me madou chamar,& ao Mou, ro que feytorizaua a fazenda de Pê- ro de Faria, ao qual eíleue miuda^ mente perguntando peia venda dei- la, & fe lhe flcauaó deuendo aígua coufa, porque lho mandaria logo pa- gar, a que o Mouro & eu rejponde* mos que com as mercês & iauores de fuá alteza tudo íe nos fizera muy- to bem feito, & que os mercadores tinhão ja pago tudo, fem fícare deuié « donada,&q o Capitão lhe femiria aquella mercê muyto cedo o vin- gar daquelle inimigo Achem, & lhe reftituyr as terras que lheelle tinha tomado: ao que el Rey, deípois de eítar hum pouco péfàtiiro co que me cUuifá, refpõndeo, Ah Portuguez, Portuguez, rogote que não faças de mim tão necio,ja que queres cj te ref» ponda,que cuyde q que em trinta ail nos fe não pode vingar a íy, me pof> ia íbcorrer a mim,pcrq como o Rey de vos outros,& os feus Gouernado-» res,náo caftigarao efte inimigOj quã* do vostomou a fortaleza de Paacem, & a Gale cj hia para Malueo,& ã5 três nãos em Quedà,& o Galeaô de Ma*

C laca

Terigrmaçoes de laca em tempo de Garcia de Sà, & as mo eíhua ja de todo auiado, & pre-

quatro fuftas defpois em Salangor, cora as duas nãos que vinhão de Be* gala,& o junco, & o nauio de Lopo chanoca, & outras muytas embarca- ções que agora me não vemàme- mona,em q me affirmarao q matara mais de mil de vofoutros,a fora a pre fa riquiísima que tomou nellas, logo foy para elle me deftruyr a mim, ÕC eu ter muyto poucas efperanças em voílaspalauras, baítame ficar coma fico,có três filhos mortos,& a mayor parte do meu reyno tomada, & vos na voíTa Malaca não muyto feguros. Da qual repofta,dita com tanto fen- timento,confeíTo q flquey tão corri- do & embaraçadojporq entendi que fallaua verdade, que nunca mais lhe falíey em focorro, nem oufey a lhe retifícaras promeíías que antes lhe fazia,por noffa a honra.

CJT. XV III

T>Q mvis que pajfey co l&y *Ba-

ta ate que me partj para

Malaca,

ffià

Ornados o Mouro & eu para a caía onde am bos poufauamos, efti- uemos mais quatro dias,acabãdo de embar car hus cem bares de eftanho,& trin- ta de beijoim q ainda tinhamos em terra,& como de todo eftiuemos ía- tisfeitos dos deuedores para nos po- dermos yr, me firyao pafTeiuão das caías dei Rey,& lhe dey cota de co-

ftes para me partir, fe íua alteza me deííe licéç^ao q elle, fazédome gaía- lhado,me refpódeo,folguey co q on- tem me diíTe o meu Xábandar,qite a fazenda do Capitão hia negocia* da,mas porq pode fer q nifTo não pre* tenderia tanto dizerme a verdade, como falarme a vontade,pelo deíèjo & goílo que elle íèmpre vio que eu tinha diííbjte rogo muyto q me digas fe he afsi,& fe vay contente efTe Mou ro que trouxe a fazenda,porque não queria q à cufta da minha hora fe pra guejaífe em Malaca dos mercadores de Panaaju,quenão tem verdade no que t iatão,nem ha hy Rey q os con- ííranja a pagarem o que deué, porq te affirmo a ley de bom Gentio que fera iífo tamanha afrõra para minha condiçaó^omo fe agora fem me vin gar fizera pazes co inimigo tyrãno,& perjuro Achem, ao q eu refpondi, q fem falta nenhúa tudo hia muyto bem feito, & a fazenda toda paga, fem fe ficar deuendo delia nada. E elle me tornou dizendo, folgo de fer afsi, & ja que não tês mais que fazer, rezão fera que te vás, & que não per- cas tempo, afsi por fer ja fim da mon çaojcomo pelas calmarias que podes achar no golfaó, que muytas vezes faó caufa de alguns nauios irem tec a Paacem, donde te Deos guarde, porque te affirmo que fe por mofi- na lá foíTes ter, que viuo te comef- fem os Aches aos bocados, & o pró- prio Rey mais q todos,porq a honra de q agora mais fe preza,& q traz por timbre de todos os íèus títulos, he

bebedor

Fernão Mcnde^Pinto.

iS

bebedor do turuo fatigue cftrangciro dos malditos cafres,íem ley,do cabo do mimdo,vfurpadores, por fLimmo grão de tyrannia, de reynos alheyos rys cerras da índia, & ilhas do mar, de qos feus todos fazé grande caio. O qual titulo lhe veyo eíle anno da caia de Meca,pelo prefente das ala- padas douro que mandou de ef*» mola ao alcorão dofeu Mafamede, como cuftuma fazer todos os ânuos. E afsi te digo q digas de minha par- te ao Capitão de Malaca,inda que ja lho tenho eferito, .que fe vigie con- tinuamente deíle inimigo Achem, porque em nenhua outra couía ima- gina, fe não em como vos ha de lan- çar fora da índia, & meternella o Turco,de quem dizem que para ifíb pretende grande focorro, mas Deos por quem he prouerà de maneyra,q todas as fuás maliciofas aftucias foc- cedão muyto ao reuès de feuspen- íamentos. E com iílo me deu húa carta em repoíta da embaixada que lhe eu trouxe, com hum prefente de feisazagayas cos aluados douro, & doze cates de calambuco, com hua boceta de tartaruga,guarnecida dou- ro cheya de aljofre groíTo,&dezaííeis pérolas de bom tamanho. E a mym fez mercê de dous cates douro, & hu terçado pequeno guarnecido do mef mo. E defpidmdome deíle muy- ta lobegidão de horas, como fempre me fizera,moíf.rando íèr de fua parte muyto fixaefta noua amizade q to- mara com noíco, me vim embarcar, acompanhado do meímo Aquarem Dabolay feu cunhado, que fora por

Embaixador a Malaca,como atrás ia fica dito. E partidos deíle porto de Panaajú.chcgamos duas horas de noite a ilheo,que fe dizia Apehn* gau, obra de húa legoa & meya da barra,pouoado de géte pobre, 5 viue pela pefearia dos íaueis,de q, por fal- ta de íal.não aproueitão mais que í os as ouas das fêmeas, como nos rios de Aaru,& Siaca,neftouua coita do mar meditenaneo.

QAT. XIX.

T>o que pa/Jej> ate chegar ao rejno

de Quedaria coíla da terra fir*

me de Malaca. <& do me

ahy me acontece o 0

O oiítio dia feguinte pela menham nos par- timos defte ilheo de f:ingau,& corremos a coifa do mar Oceano» em diftancia de vinte & féis legoas, a téabocaroeftrcito de Minhagaruu, por onde tínhamos entrado}& palia- dos â contracoíla deíbutro mar me- diterrâneo, feguimos noífa derro- ta ao longo delia atè junto de Puí- lo Bugay, donde atraueífamos a ter- ra firme, & aferrando o porto de Iunçalãp, corremos com ventos bo- nanças dous dias &meyo,& fomos furgir no rio de Parles do reync* de Queda, no qual eífiuemos cinco dias furtos,por nos não feruir o ven« to, & nelles o Mouro & eu,por cófe- lho de algus mercadores da terra fo- rnos vero Rey,cõ hua odiàou preFe* Cz te

Terigrmaçoês de

te (como lhe nos chamamos) de fegundo me defpois contarão, que

situas pecas fufncientes a noíío pro- pofito,oqual nos recebeo com mo- ftras de bom gafalhado. Nefte tem- po queaquy chegamos eftaua elRey celebrando com grande aparatou popa fúnebre de tangeres,bailos, gri-* tas,& de muy tos pobres a que daua de comer, as exéquias da morte de íèu pay,q elle matara âs punhaladas para fe caiar com íua mãy,q eftaua ja prenhe delle,& por euitar asmurmu. razoes que fobre efte horrédo & ne- fahdifsimo caio auia no pouo, man- dou lançar pregão, q fo pena de gra- uifsimas mortes ninguém falafle no queja era feito, por rezao do qual, nos difíeraó ahy,que por outro nouo modo de tirannia tinha ja mortos os principaes fenhores do reyno, & ou- tra grande foma de mercadores, cu- jas fazendas mandou que fofíem to- madas para o fifco,o.que lhe impor- tou mais de dous contos dóuro,& co ifto eraja nefte tempo que aquy che- guey, tamanho o medo em todo o pouo,q não auia peflfoa q oufaíTe foi* tar palaura pela boca. E porque efte Mouro Coja Ale q vinha comigo,e- ra de fua natureza tolto da lingoa, & xnuyto atreuido em falar o que lhe vinhaàvontade?parecendolhe q por fer eftrangeyro, Ôc com nome de fei- tor do Capitão de Malaca, poderia ter mais liberdade para iílo q os na- turais,& q o Rey lho não acoimaria a elle como fazia aos feus,fendo hum dia conuidado doutro Mouro que íe daua por feu paréte, mercador eftrã- geyro natural de Patane, parece fer

eítando cilcs no mçyo do banquete, ja bem fartos, yieraó os cqnuidados a falar nefte feito tão publicamente, que ao Rey,' pelas rnuycas efeutas q niíío trazia,lhe deraó logo rebate, o qual fabendo o que paíTaua,mandou cercar a cafa dos conuidados, ôc to- mandoos a todos,que eraó dezaílete, lhos trouxeraó atados. Elle em os vendojfem lhes guardar mais ordem dejuftiça, nem os querer ouuir de fua boa ou razão, os mandou matar a todos com hua morte crue- lifsima, aqueelles chamão de gre- goge, que foy, ferrarennos viuos pe - los pees, & pelas maós, & pelos pefc cocos, ôc por derradeyro pelos pei- tos atè o fio do lombo, como os eu vy deípois a todos. Etemendoíeel Rey que pudeíTe o Capitão tomar mal mandarlhe elle matar o feu fei- tor na volta dos condenados, ôc que por iílo lhe mandaífe lançar mão por algúa fazenda fua que ti- nha em Malaca, me mandou logo naquella noite feguinte chamar ao íurupango onde então eftaua dor- mindo, fem atè aquella hora eu ía- ber algúa couía do que paíTaua. E chegando eu ja deipois da meya noi- te ao primeyro terreyro das cafas/vy nelle muyca gente armada com tre- pados, &: cofosv& lanças,a qual vifta, lendo para mym couía aftaz noua, me pòs em muyto grande confu- faõ, & foípeitando eu que poderia fer algúa traição das queja em outros tempos nefta terra ouue, me quife- ra logo tornar,o que os que me leua-

uão

Fernão Mendcz Tinto',

lúo não confentirão dizendo, q não pLiuefle ntedodecoufaque vifí'e,por que aquillo era gente que el Rey mandaua para fora a prender hum ladraó,daqual repofta confeífoque não fiquey fatisfeito,& começado eu ja neile tempo a tartamelear,tem po der quaíi pronunciar palaura que íe me entedeíle,lhes pidi afsi como pu- de,^ medeixaíTem tornarão íurupã^ go em bufea de húas chaues que me ficarão por efqueciméto, & q lhes daria por iíTo quareta cruzados logo em ouro,aq elles todos íeterefpóde- raó,nem q nos dès quanto dinheyro ha em Malaca, porq fe tal fizermos, nos mandara el Rey cortar as cabe- ças. Nefte tempo me cetcaraõ ja ou- tros quinze ou vinte daquelles arma- dos^ me tiueraó todos fechado no meyo: até q a menham começou a efclarecer,que fizeraó faber a el Rey q eftaua eu aly,o qual me mãdou lo- go entrar,& í'ó Deos íabe como o po- bre/de mim então hia, que era mais morto que viuo. E chegando ao ou- tro terreyro de dentro,o achey enci- ma de hu Alifante,acompanhado de mais de cem hornés,a fora a gente da guarda,que era em muyto mor quã- tidade, o qual quado me vio da rna- neyra que vinha, me diííe por duas vezes, jangaotacor, não ajas medo, vem para cà,& faberàs o para que te mandey chamar, & acenando com a mãojfez afaftar dez ou doze daquel les que aly eftauão, & a mym me a~ cenou que olhaíTe para aly,eu então oihando para onde elle me acenaua, vy jazer de bruços no chão muytos

corpos mortos, todos' metidos mim charco de langue, hum dos quais Co- nheci que era o Mouro Coja Ale fei- tor do Capitão q eu trouxera comi* go,da qual viíla hquey tão pafmado & confufo,q como homem deíatina- do me arremede1/ aos pèsdoahfan- te em q el Rey eítaua,& lhe diíTe cho rando, peçote íenhor q antes me to- mes por teu catiuo,que mandareíme matar como aeíTes que ahy jazem, porque te juro a ley de ChriíHo q o não mereço, &lcmbrote que fou íò* brinho do Capitão de Malaca, que te dará por mim quanto dinheyro ■quiferes,& ahy tês o jurupango com muyta fazenda,que cambe podes to* mar íe fores feruido; a q elle reipon- deo,va]hameDeos,comor caò mao home íou eu cj iíío (aça? não ajas me- do de coufa nenhúa,aílèntare Sc dèí- canfaràs,q bevejoq eítàs afrontado, &defpoisq eítiueresmais cm tyte direy oporq mádey matar efíe Mou ro q troúxeíie comtigo, porq lèfora Portuguez, ou ChriíHo, eu te juro emminhaley q o não fizera, inda q me matara hu hího-então me mãdou trazer hfia panella com agoa, de que bebi hua grande quantidade, ôc me mandou também auanar com hum auano,em que íe gaitou mais de hua grande hora. E conhecendo elle en- tão qeílaua etija fora do íobreíal- to,& que podia refponder a propo- íito,me diíTe,muyto bem fey Portu- guez q ja te diriaó como os dias pal- iados matara eu meu pay, o qual fiz porq fabia que me queria elle matar a mim, por mexericos que homés C 3 mãos

Peregrinações de

II:: í!

mãos lhe fízeraô,certificandolhe que minha mãy era prenhe de 'mim,cou- que eu nunca imagineyj mas ja que com tanta fem razão elle tinha crido ifto, ôc por iíío tinha determi- nado de me dar a morte, quislha eu dar primeiro a elle, & íabe Deos quanto contra minha vontade, por- que fempre lhe fuy muyto bom fi- lho,em tãto,que por minha mãy não ficar como ficão outras muytas viu* uas,pobres,&defemparadas,a tomey por molher, & engeitey outras muy- tas com que dantes fuy cometido,af- il em Patane, como em Berdio, Ta- nauçarim,Siaca,lambè,& Andragui- rè, irmãs ôc filhas de Reys, com que me puderaò dar muyto dote. E por euitar murmurações de maldizentes que fallão fem medo q nato lhe Vem à boca, mandey lançar pregaó que ninguém fallaííe mais nefte cafo. E porque efíe teu Mouro que ahy jaz, ontem eftando bêbado, em compa- nhia de outros caés tais como elle, diífe de mim tantos males queey vergonha de tos dizer,dizendo pub- licamente em altas vozes, que eu era porco, & pior que porco, & minha mãycadellafayda, me foy forçado por minha honra mandar fazer ju- ftiça delle,&de eíToutros perros ta5 mãos como elle.Pelo q te rogo muy- to como amigo, que te não pareça mal ifto que fiz, porq te affírmo que me magoaras muyto niíTo, & fe por ventura cuydas qo fiz para tomar a fazenda do Capitão de Malaca, crè de mym que nunca tal imaginey, & afsi lho podes certificar verdade,

porq afsi ce juro em minha ley, porq fempre fuy muyto amigo de Portu- gueícs, & afsi o ferey em quanto vi- uer. Eu entaõ ficando algum tanto mais defafíombrado, com quãto não eítaua ainda de todo em mim,lhe ref pondi que fua alteza em mãdar ma- tar aquelle Mouro,fizera muyto gra- de amizade ao Capitão de Malaca feu irmão,porquelhe tinha roubado toda fua fazenda, &a mym por iíío japor duas vezes me quifera matar com peçonha, por lhe eu não po- der dizer as emburilhadas que tinha feitas,porq era taó mao perro que tinuamenteandaua bebado,falando quanto lhe vinha a vontade, como cão que ladraua a quantos via paífar^ pela rua. Deita minha refpoíh, afsi tofca, ôc fem faber o que dizia, ficou el Rey tão fatisfeito & contente, que chamandomeparajuntodefimedif fe, certo que neífa tua refpofta conhe ço euíeres muyto homé,& muy- to meu amigo,porq de o feres te não te parecerem mal as minhas cou- ías, como a effes perros caés que ahy jazem, ôc tirando da cinta hum cris que trazia guarnecido douro, mo deu, ôc húa carta para Pêro de Faria de muyto ruins defculpas do q tinha feito. E defpidindome então delle pelo milhor modo que pude, ôc com lhe dizer que auia ainda aly de eftar dez ou doze dias, me vim logo em* barcar,& tanto q fuy dentro no íuru- pango,fem efperar mais hu moméro, larguey a amarra por maó5& me fiz â vella muyto depreífa , parecen- dome ainda que vinha toda a terra

após

Fernão ofMcnde-: T^hitõ.

'..

to

após roim,pelo grande medo, Sc rif- co da morte em que me vira auia táo poucas horas.

CA9. XX.

T)o quepajfey defpois que me par*

íj deEe no Tarlh ate chegar a

Malaca^ da informação que

dey a Tero de Faria de

alguas coifas.

Artido eu com a preíía que digo defte rio Par- les, hum Sábado qtiaíí Sol poítojCÓtinuey por minha derrota atèa ter c^a feyra ao meyo dia,em que prouue a noíTo Senhor que cheguey às ilhas de Pullo C,ambilão, primeira terra da coita do Malayo,onde achey três nãos Portuguefas, duas que vinhaõ de Bengala, & húa de Pegu, de que era Capitão 8c fenhorio hum Triftão de Gaa, ayo que fora de dom Lou- renço filho do Viíbrrey dom Fran^ ciíco de Almeida, que Miroocem matou nabarradeChaul, de que as hiftorias dodefeubrimento da índia fazem larga menção.Efte Triítão de Gaa me proueo logo de muytas cou-» fas de que vinha talto, como foraõ amarras,& marinheyros,& dous foí~ dados, & hum Piloto, & elle com as outras duas nãos me deraõfempre guarda em todo o caminho, ate íur- gir no porto de Malaca* Onde de- lembarcando em terra, me fuy logo á fortaleza ver o Capitão, 8c lhe dey conta de tudo o que focedera na via-

gem, & iíic tr.uey miudamente do dckubrimcnto dos rios,por:os,& an- gras que nouamente achara na ilha C,amatra,aísi da parte do mar Me* diterraneo, corno do Oceano, ôc da commu cação do trato da gente que nellcs habkaua,quc até então não ti- nera com nofco nenhum comercio. E toda efta coda, & portos, 8c rios trouxe por graduação arrumados em fuás alturas, com léus nomes, & medição dos fundos, còforme ao íe- gimentoque leuaua, E r.ambetrou- xe informação da bahia onde fe per* dera o Rofado Capitão da não Frã- cefa,& Matalote do Bricas Capitão da outra nao,que por caio de tempo eígarraó foy terá Diu no ânuo de 1529. fendo ainda viuoSoltão Bau- dtir Rey de Cambava, que a todos os Francefes delia fez Mouros, que eraõ oitenta 8c dous, os quais defpois íèndo ElcheSjleuou no anno de 15^4 por bombardeiros,na guerra que te* ue co Rey dos Mogorcs, onde todoá morreraò,íem hum íp ficar viuo. E também o informey do furgidotiro da bahia de Pullo Botunl,onde anti- gamente eíliuera a nao Bifcainha, cj dizião que fora do Magalhães, que defpois fe perdeo rto boqueyraõ da çunda, querendo atraueííãr a ilha da Iaoa. Deylhe tãbem conca das muy- tas & varias nações de gentes que ha bitão ao longo daquelle Oceano, ôc do rio Lampom, donde o ouro de Menancabo vay teraoreyno de Ca- par pelos rios de íambee &Broteo, no qual os naturaes defta terra affir- mão,peloquelem nas fuás Chroni-- C 4 cas,

Terigrináçoes de cas, que eítiue.ra hua cafa de contra- logo no outro anno íeguinte proueo

to da Raynha Sabà,donde algús pre fume que hum feu feitor por nome Naofem lhe mandara hua grande foma de ouro,que ella defpois leuou para o templo de Ierufalem, quando foy ver a el Rey Salarnão, donde di- zem que veyo prenhe de hum filho, que deípois foccedeo por Empera- dorda Ethiopia, a que o vulgar chama Prefte Ioaó,& de que efía na- ção Abexim fe honra muy to. Tam- bém o informey da peícaria do aljo- fre,que eítà entre Pullo Tiquòs, ôc Pullo Quenim, donde os Batas o le- uauão antigamente a Pacem, & Pee- dir,que os Turcos do eftreyto de Me ca,& as nãos de ludaa ahy lhes com- prauao a troco de outras mercado- rias que traziao do Cayro, & dos portos de toda a Arábia Félix. E afsi mais lhe dey relação de outras muy- tàs coufas que foube do Rey dos Ba- tas, ôc de mercadores da cidade de Panaajíu Elhe trouxe também por cfcrito a informação da ilha do ou- ro ,que me elle muyto encomenda- ra,a qual, fegundo todos dizem, jaz ao mar deite rio de Calandor em cin co grãos da parte do Sul, cercada de muytos baixos,& de grandes corren- tes^ que pode diftar defta ponta da ilha C,amatra, atê cento ôc feflfenta legoas pouco mais ou menos. E de- fta informaçãojde que Pêro de Faria foy certificado, afsi pelo que lhe eu diííe, como pelo que o Rey dos Ba- tas lhe efcreueo por mim,deu aquel- le anno conta a el Rey dom Ioaô o tercey ro que fama gloria aja: o qual

na capitania do dcfcobrimenco dei- la a hum Francifco Dalmeida, caua- leyro de fua cafa,homem de muytas partes,& bem fufficiente para aquel- le cargo, & que ja de muycos dias o pedia, em fatisfaçaó de muytoá fer- uiços q tinha feytos nas ilhas de Ban- da, Maluco, Ternate, & Geilolo, o qual Francifco Dalmeida indo da índia para falleceo de febres nas ilhas de Nicubar. E fendo fua alte- za certificado da fua morte, proueo fegunda vez na mefma capitania a hum Diogo Cabral da ilha da Ma- deyra, aquém Martim Afonío de Souíà a tirou por juftiça, por fe dizer que praguejara delle fendo Gouer- nador, &a dèu a hum Ieronymo de Figueiredo fidalgo do Duque de Bar ganç^que no anno de 1542. partio de Goa com duas fuftas, & hua cara- uella em que leuaua oitêta foldados & officiaes da mareação, & náo teue cíFeito a ília yda, porque parece, íe- gundo o que defpois fe vio, que de- lejando elle de fer rico maisdepreííà do que o efperaua fer pela via que leuaua, fe paíTou à cofia de Tanau- ç^arimjonde tomou algúas naosejue vinhaò do eftreito de Meca, de Adé, de Alcoífer,de Iudaa,& de outros lu- gares da cofta da Perfia, & por fe dar mal cos foldados, ôc não partir com elles do que tomara, conforme ao que de direi to lhes vinha, fêleuã- taraó contra çlle,& depois de outras rnuytascouías,'que me pareceo ra- zão naõ fe eícreuerem, o atarão de pes& de maós, & o leuarão à ilha

Ceilão,

temãoMcnde^Pinto. lt

Ceiláo,ondc o lançarão em terra no mente trezentos Turcos Ao eftreyto

porto de Gàle,& a carauella & fuftas leuaraõ ao Gouernador dom íoaó de Caftro,que lhes deu perdão do 5 tinhao feito,porirem d'armada com elle a Diu a focorro de Ioaô Maf- carenhas, que então eftaua cercado dos Capitães dei Rey de Cambaya, & de então pêra íe não tratou mais defte deícubrimento, que tão proueitofo parece que fera para o commum deftes reynos,fc noflb Se- nhor foflè feruido que efta ilha fe vieíTeadefcobrír.

QAT. XXI

Como chegou a fortaleza de Ma- laca bum Embaixador dei Ttey de Aarú^ & do quepaf- fou nella.

Vendo fós vinte & íeis dias que eu era chega- do a Malaca com efta repofla do Rey dos Batas de que tenho tratado/endo ainda nefte tempo Efteuão da Gama Capitão da forta- leza,chegou aellahum Embaixador do Rey de Aarú, que he nefta ilha C1(amatra, & o negocio aque vinha, era pedir focorro de gente, & algúas munições de pilouros ôc poluora, pê- ra fe defender de húa grofía frota q o Rey do Achem mandaua fobre el- le para lhe tomar o reyno, a fim de ficar mais noífo vezinho, Ôc dahy có- tinuarcom íuas armadas fobre Ma- laca, por lhe ferem chegados nom-

de Meca. O queviftoporPerode Faria, ôc quão importante negocio efte era ao feruiço dei Rey, ôc á fe* gurança daquella fortaleza,dcu cota difíbadomEfteuão,que ainda def- pois difto foy Capitão mes & meyo, oqualfe lhe efeufou de tratar defte focorro, com dizer que ja acabaua o feu tempo, 6c que a elle pertencia if- íõ mais, pois ficaua na terra, Ôc auia de paífarpor eíTe trabalho de que fe arreceaua, A que Pêro de Fana ref- pondeo, que lhe deite elle comiflaô para mandar nos almazés, arque lo- go proueriano focorro que entedia íèr neceílario. E por abreuiar rezoés naocontarey porextenfo o que fo- bre ifto ambos paíTaraó,fomentedi- rey que o Embaixador foy excluydo de ambos, de hum com dizer queja acabaua, & do outro que ainda não entraua.E afsi fe partio fem leuar coti fa nenhúa do que vinha pedir, E ma- goado defta tamanha fem rezão que lhe parecia que com feu Rey fe via* ra,hua menham querendofe embar- car, eftando eftes Capitães ambos à porta da fortaleza, lhes difle publi- camente quaíi chorando : o Deos q viue reynando por poderio ôc ma- geftade fuprema no mais alto Ceo de todos os Ceos tomo,com fufpiros arrancados do interior da minha al- ma, por Iuiz nefte cafo, da rezão ôc juftiça que tenho em fazer a voífas mercês ambos fenhores Capitães e£< te requerimento em nome do meu Rey,vaflàllo leal por menagem ju- rada, que feus antepaífados fizeráo

nas

^Peregrinações de

nas mãos do antigo Albuquerque, Hão c!o bramido eípantofo nas ondas do mar.ao poderofo Rey das nações & pouos da índia, & terra do graó Portugal,o qual então nos prometeo que não quebrando os Reys deite reyrioefta menagem de leais vaífal- los, íe lhes obrigaua aos defendera todos de Teus inimigos como fenhor poderofo que era. Eja que nos ate* gora nunca quebramos efta menagé, qual fera fenhores a rezão, porq não cumprireis com efta obrigação, & verdade do vofíò Rey, fabendo que por feu refpeito nos toma efte inimi- go Achem a noíTa terra, dando por rezão que he o meu Rey tao .Portu-» çuez, & tão Chriftão como fe nafce-; ra em Portugal? E mandandouos a- Eorapedirqlhe valhais nefta afron- ta.como verdadeyros amigos,vos et cufais de o fazerdes com rezoês de muyto pouca força, não montando maís o cabedal defte focorro todo, para fatisfaçaó de noífo defejo, & fe- gurança de nos eftes inimigos não to- marem o reyno,que atè quarenta ou cinquenta Portuguefes com fuás cfpingardas& armas, para nosenfi- narem, Sc nos animarem em noífos trabalhos,& quatro jarras de poluo- ra,com duzentos pilouros de berço, & com efte pouco, que he bem pou- co em comparação do muyto q vos £caynos aueremos por muyto fatis-* feitos davoífa amizade, & onoíTo Rey vos ficará por iífo muyto obri- gado, paraque fempre com muyta lealdade íirua como efcrauo catiuo ao Principe do grande Portugal,Yofi

fo& noíTp fenhor 8c Rey, da parte do qual,& em nome do meu vos té* queiro fenhores a ambos húa&duas Sc cem vezes, que não deixeis de cu- prir co que d.eueis, pois a importân- cia difto que aquy publicamente vos peço,he terdes o rey no de Aarú por võíTo,& efta fortaleza de" Malaca fe- gura para a não fenhorear efte inimb go Achem, como determina fazer, pelos meyos que ja pára iífo pro- curado, com íe valer de muytas na- ções de gentes eftranhas, que conti- nuamente recojheem ília terra para efte effeito. E porq efta noífa lhe im- porta a elle mais que todas as outras para efte íèu danado.propoíito, nola manda agora tomar, a fim de conti- nuar nefte eftreito cora fuás armadas, atè que de todo (como osfeus publi* camente ja dizem) vos toíha o cot mercio da droga de Banda,& Malu- co, & o trato da nauegaçaó dos ma- res daChina,Sunda,Borneo,Timor, & Iapa6,como temos fabido pelo có- trato que agora nouamente tem fei- to co Turco, por meyo do Baxà do Cayro,quep'araifto tomou por íen valedor,o qual lhe tem dado gran- des eíperanças de ajuda, como pelas cartas que eu trouxe tereis ja fabido. E lembrouos efte requerimento que em nome do meu Rey oje vos faço, pelo que cumpre ao feruiço do vof- fo,da parte do qual vos torno outra vez de nouo a requerer, que pois an- gora podeis atalhar a efte mal, que tão perto cftâ de parir o que tem có- cebido,o façais,& não vos efcufeishu com dizer que ja acaba3& outro que

ainda

Fernão Mcnde* "Tinto. ainda não entra, entendendo ambos que tanta obrigação tem para o fa- zer hum como o outro. Acabado efte requerimento, que por então lhe a- proueitou bem pouco, tomou duas pedras do chão,& batendo por ceri- monia com ellas ambas nua bombar- da,diííe quaíí chorando. O Senhor q nos criou nos defenderá E com ifto fe foy embarcar,& fe partio logo, ôc bem defcontente pelo mao recado cjue leuaua.Auendoja cinco dias que era partido não faltou quem diíTea Pêro de Faria qíèmurmuraua muv- to por fora do pouco refpeito que af- íi eile como dom Efteuão tiueraó a efte Rey tanto nofíb amigo, Sc q tan- tas amizades tinha feitas a aquella fortaleza por refpeito da qual lhe to- mauão agora o íeu reyno, Elle então alcançado, ou por ventura corrido d efte defcuydo,inda que por fua par- te daua alguas defeulpas, o mandou íbçorrercom três quintais de poluo- ra de bombarda, Sc duas arrobas da deefpingarda, & cem alcanzias de fogo & cem pilouros de berço,& cin- quenta de Falcão, & doze efpingar- das,& quarenta rocas de pedra,& fefc fenta murroés,& hua coura de lami- nas de citim crameíim com craua- <£aò dourada para fua pefíba, dou- tras peças de veftir, com hua corja de çaraças,& pannos Malayos para fua molher & filhas, que he o comum trajo daquella terra. E embarcando tudo ifto em hua lanchara de remo, me pidio que o quifeíTe leuar a efte Rey, porq importaua muytoao fer- uiço de fua alteza,& que quando tor«

nafíe me prometia de me fazrr mer- cc,afsi de foldo,como de viage para onde eu quifeíTe- o que cu por meus peccadosaceitey,de boa vontade, Ôc digo ifto pelo que adiante focedeo. E embarcandome hua terça feyra pela menham cinco dias de Outubro do anno de 1539. continuey meu cami- nho até o Domingo feguinte q che- guey ao rio de Puneticão, onde eítà fituada a cidade de Aarú.

CAT. XX 11

Qpmo me fuy ver comelT^y de

Aarú & darlhe o que Ter o

de Faria lhe mandaua^

do q pajfej com eíles .

Hegado eu a efte rio de Puneticão, deferrH barquey logo em ter- ra, ôc me fuy à tranf- " queyra que naquelle tempo el Rey fazia na entrada do rio para defender a defembarcaçaó aos inimigos; o qual me recebeo com bom gaíàlhado,& moftras de muyta alegria: Ôc lhe dey hua carta que Pê- ro de Faria lhe mandaua,fundad-a to- da em efperanças de mais ao longe o yr focorrer em peíToa fe lhe cumpria fe,& outros muy tos comprimentos q cuftão pouco,deque toda cila hia be cheya,os quais el Rey eftimou muy- to,porque creo que tudo aquillo po- dia íer afsi. E delpois que vio todo o prefente,& a poluora, Ôc as mais mu- niçoé^abraçandome, diíTe muyto a- legre?afírmote meu bom amigo que

toda

Terigrínaçoes de

toda eíla noite fònhaua que defía for ralezadel-Rey de Portugal meu fe- nhor me vinha todo efi:e bem que a- gora tenho dianre de meus olhos,co o qual eípero em Deos de defender minha terra, para lhe fazer fempre com ella muytos feruiços como fiz 3Í'egora,de que os Caqitaés paíTados de Malaca feraõ boas teftemunhas. E defpois de me pergútar alguas cou- ias que quiz faber,afsi da índia como deíre reyno,encomendando aos feus a obra que hia fazendo da fortifica- ção da tranqueira, em que todos muyto feruor andauão oceupados, me tomou pela mão,& afsi a pê,com feisoufete mochos fidalgos dos que aly tinha comíigo, fem outra mais companhia, me leuou a cidade, que eftaria daly quafi hum quarto de le- goa,onde me banqueteou em fua ca- fa,com moftras de muyto gafalhado, & me moftroufua molher,q he coií4 fa que naquellas partes muyto rara- mente fe cuftuma, & me difie com muytas lagrimas,vès aqui Portuguez porque íintò a vinda deites inimi- gos,queíènão fora verme eu prefo defta nccefsidade, & tão penhorado pelo que a honra nifto me obriga q faça,eu te juro aley de bom Mouro que o que elle agora determina de me fazer,eulho fizera primeyro,fem meter niíTo mais cabedal que fósos meus com minha peífoa, porq muy- tos dias ha que fey quem he eíte fal* fo Achem,ôc a quanto fe eftende feu poder, mas vai íhe que tem muyto ouro com que encobre a fraqueza dos feus, aquirindo com elle muyta

gente eírrangeira de que fe ajuda. E paraque acabes de entender quão vil & baixa he a trifte & auorrecida po- breza, & quanto malfaz aos Reys pobres corno eu fou, vem por aquy & moftrartey neífe pouco que agora veras quão efcaíla foy para mim a fortuna. Então me leuou a huas tere- cenas cubertas de colmo que eraó os feus almazés, & me andou moftran- do o que tinha nelles, que eratao pouco,que com rezão íè podia dizer que era nada em comparação do muyto que auiamyfterpara íèdefen der da força de cento & trinta vellas cheyasde gente tãobellicofa como faó Achés,com miftura de Turcos & Malauares. E dandome então conta com afTaz de trifteza, como quem deíàbafaua comigo do grande tra- balho em que eftaua>& da grandií- íima afronta em que íè via, me difle que tinhaja cinco mil homês Aaríis, fem maisfocorro doutra gente ne* nhúa,com quarenta peças de artilha- ria miuda,antre falcões & berços,em que entraua húa meya el pêra de me- tal,que antigamente lhe vendera ha Portuguez que fora almoxarife da fortaleza dePaacem,por nome An- tónio Garcia,o qual defpois íorgede Albuquerque mandou efquartejar em Malaca, por fe cartear com el Rey de Bintao num certo modo de traição que cometia. DilTeme també que tinha quarenta eípingardas, & vinte Ôc féis Alifantes, & cinquenta de cauallo para guardarem a terra, & dez ou doze milheyros de paos toítadpsjque elles chamao S ali guês,

ema dos

Femao Mcndc^Pinto. v?

*ruados com peçonha,& obra de cin q não tinháo contradição fttas quei-

quenta lanças, & híía boa quantida de de padefes almagrados, para de- ícnfaódos que pelejaflem na tran- queyra, & mil panellas de cal virgé cm pò,para no abalroar lhe feruiré em lugar de alcanzias de fogo, &o- bra de três ou quatro bateis deca- ,lhao,& outras miferias & pobrezas tanto atras do que conuinha para remédio daquelle aperto em q eira- ua,queporellàs mefmas, em as eu vendo,logo entendi quão pouco tra- balho os inimigos terião em lhe to- marem o reyno: & perguntandome o que me parecia deita abundância de moniçoés que tinha naquelles ai- mazés, & fe baftauao para receber aquelles hofpedes que efperaua, lhe refpondieu, que fobejamente tinha que os báquetear, a q elle,defpois de eftar hum pouco penfatiuo,bulín- do com a cabeça, me diífe : Certo q feoRey de vos outros Portuguefes agora foubeífe quanto ganhauaem me eu não perder, ou quanto perdia em os Aches me tomarem Aarú,elle caftigaria o antigo defcuydo de feus Capitaés,que cegos, ôc atolados em fuás cubicas & intereífes, deixarão criar a efte inimigo tanta força, & tã- to poder, que temo queja quando quifer refrealo,nao pofTa,& fe puder q ha de fer com lhe euftar muyto do feu. E querendolhe eu reíponder a ifto que com tanta magoa me dizia, me desfez todas as minhas razoes buas verdades tão claras, q daly por diante me não atreui a lhe refponder maiscoufa nenhúa, porque entendi

xas,porq me apontou cm aigíías cou fas aílàz feyas & criminofas em que culpaua alguas peíToas particulares, de que aquy não trato, porque não faz a meu propoíito, & porque não he minha tenção defeubrir faltas a- lheyas,& o remate defta pratica foy remocarme o pouco caftigo que por eftascoufas fe dera aos culpados, ôc as grandes mercês que vira fazer a que as não merecia,& por derradey- ro ajuntou que o Rey que queria cu- prir inteyramentecò a obrigação do offício que tinha, Ôc que por armas auia de conquiftar ôc conferusr po- uos taó apartados da fua terra, tão neçeííario lhe eracaffear os mãos. como premiar os bos, porem íe elle âcertauadefer tal que ao defcuydo ôc froxidão que tinha no dar do ca- ftigo,punha nome de clemência, fe os feus lhe conhecião eíta natureza, logo punhaó os peis fem medo por onde queriaó,o que defpois pelo tê* põem diante vinha, ou podia vira ier caufa de porem as forças das fuás conquiftasno eftado em que Mala- ca agora fe via. Com ifto fe recolheo para dentro de hua cafa,& me man- dou agafalhar em outra de hum mer cador Gentio natural do reyno de *Andraguiree,o qual em cinco dias q euaquyeítiue me banqueteou fem- f>re èíplendidamente, inda que na- queliè tépo tomara eu antes qual- querruim iguaria em outra parte on 4e me ouuera por mais feguro,pelos ■muytos repiques Ôc rebates de inimi- gos que aly auia cada hora. Porque

logo

2»,

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íôgo ao outro dla,defpois q cheguey, foy el Rçy certificado que os Aches eráo ja partidos de fua terra, Ôc q não rardariaó oito dias, com a qual noua fe deu ellc muyto mayorprefla, afsi emprouer ascoufasque ainda não tinha prouidas, como em mandar defpejar a cidade de todas as molhe- res, ôc de toda a mais gente que não era para pelejada qual toda mandou meter pelo mato dentro, quatro & cinco legoas, cuja miferia & defem- paro,pela defordem & defmancho com que fe ifto fazia, era hua tão pia- dofacoufa de ver,que eu andaua co- mo pafmado, Ôc fabe Deos quão ar- rependido de ter aly vindo» Ara/-. rsha hia encima de hua Alifanta, sòs quarenta ou cinquenta homés velhos còfigo, ôc todos tão cortados do medo, que aquy acabey de enté- der de todo que os inimigos toma* riãofem falta nenhua aquella terra com muyto pouco curto. Pagados cinco dias deípois de eu fer alyche- gado,me mandou el Rey chamar, êc me perguntou quando me queria yr, &eulhe refpondi,que quando fua alteza me mandaíTe, mas que folga- ria que fofie logo, porque me auia o Capitão de mádar a Ghina com fua fazenda: a que elte refpondeo, tês muyta razão,& tirado do braço duas loyas douro,que faó manilhas moei5» ^as tiradas pela fieyra, que pefauao ambas oitenta cruzados,mas deu,di- zendome,rogote que me não tenhas por efcaífo por te dar tão pouco,por- que te affirmo que meus penfamen- tos íaõ agora,& foraó fempre, dç[<z+

eregrwdçoes de

jar de ter muyto para poder dar muy to. E efta cana com efte diamante darás ao Capitão, & dizelhe, que o mais que entendo que lhe deuo pe- lo amor que me moítrou no focorro das munições que me mandou por ty, deixo para lho leuar por mim quando com mais deícanço do que agora tenho me vir liure deftes ini- migos.

CAT. XX III

^Do que me acwteceo defpois cjue m-eparty deíle rejno de Aaru.

Efpidido eu de todo dei Rey, me embar- quey logo, & me parti ja quafi Sol poílo, Ôc me vim a remo pelo rio abaixo, até hua aldeã que cila jun to da barra,que terá obra de quinze ou vinte cafas de palha, & de gente muyto pobre que naquella terra fe não íuftenta de outra couía fe não de matar lagartos, & fazer dos fígados delles peçonha para eruaras frechas com quepelejão, & a peçonha deite reynodeAaru, & principalmente a deite lugar, q íe chama Pocauíilim, temellesque hc a milhorde todas aquellas partes, porque nenhum re- médio nem defeníiuo íè acha que a- proueite para os feridos delias. Logo ao outro dia pela menham nos par- timos deita aldeã, & fomos velejan- do ao longo da coíta cem ventos ter- renhos até deípois da vefpora que dobramos os ilheos de Anchepifao,

ôc fer-

& feruindonosinda o vento Suerte, mdáque algum canto ponteyro,nos fizemos no bordo do mar o q mais reftaua do dia Sc algua parte da noi- te,& fendo ja paíTado pouco mais de meyo quarto da prima, nos deu hua trouoada de Noroefte (que faõ os temporaes que comummente a mór parte do anno curfaó nefta ilha C,a~ matra) que de todo nos teue coço- brados, & ficando a lanchara a aruo- re feca,fem mafto,né v cilas, porque tudo o vento nos fez em pedaços, & com três rombos por junto da qui- lha, nos fomos logo a pique fupita* mente ao fundo, fem podermos fal- uarcoufanenhua, & muyto poucos as vidas,porque de vinte & oito pef- foas que nellahiamos,as vinte & ttes fe afogarão em menos de credo, & os cinco que efeapamos fomente pela miíericordia denofíò Senhor,& aflaz feridos,paíTamoso mais que re ftaua da noite portos íobre os pene- dos,lamentando com bem de lagri- mas o trifte fucceíTo da noíTã perdi- ção^ porque entio nos não íoube* mos dar a confelho,nem determinar- nos no que fizeííèmos de nós,nem q caminho comaflemos,por fera terra toda alagadiça, & fechada de mato tão bailo, que nenhum paíTaro por muyto pequeno que foífe podia paf- far por antre os efpinhos,de que o ar- uoredo filueftre era tecido,eftiuemos aly três dias portos afsi em cocaras fobre hus penedos, fem comermos em todos elles mais que os limos do mar que na babugem da agoa acha- uamos.PaíTado efte tempo com aflàz

Fenão ^Mcnde^into:

decòftfufàó & pena, fem fâbermos determinar o que foífe de nos, cami- nhamosao longo da ilha Qâmatraj atollados na vaza ate a cinta aquelle dia,& ja quail Sol pofto chegámos à boca de hum rio pequeno, de pouco mais de hum tiro de berta em largo, que por fer muyto fundo, & no3 vir- mos muyto canfados, nos não atre- uemos ao paíTar. Aly nos agafalha- mos aquella noite metidos na agoa até o pefcoço,& a paíTamos com af« faz de tormento & trabalho,por par- te dos ataboés, & mofquitos do ma- to que nos atanazauao de tal maney- ra que não auia nenhum de nos quê nãoeftiueíTe banhado em fangue. Ê como a menham foy clara, pergun- tey aos quatro marinheyros q hiao comigo fe conheciáo aquella terra, & fe auia aly por derredor algua po- uoaçaõ,a que hum delles homem ja de dias,& cafado em Malaca,me ref pondeo chorãdo,a pouoaçáo fenhor que tu & eu agora temos mais per- to,feDeosmilagrofamente nos não focorre,he a morte penofa que temos diante dos olhos, & a conta dos pec- cadosq antes de muyto poucas ho-« rasauemosdedar, para o qual nos he neceíTario fazermonos prertes muyto depreda, como quem força- damente ha de paíTar outro muyto mor trago que erte em que nos ago- ra vemos,tomando paciência ífto que da mão de Deos nos he dado,& não te defconfoles por couía que ve- jas^ que o temor te ponha diante, porque conílderado bem tudo, pou- co vay em fer mais oje q a menham.

E abra-

íf

E abraçandofe comigo rnuyto aper- udamence,me pidio com muytas la- grimas que logo o fizeíTe Chriítão, porque entendia,& afsi o confeffaua que lo com o fer íe podia faluar, 8c não na trifte feita de Mafamede, em que ate então viuera, de cjue pedia a Deos perdão. E em acabando de di- zer iíro efpirou logo, porque como elle eftaua muyto fraco, & trazia a cabeça aberta cos miolos todos pifa- dos^ cjuaíi podres,por não fer cura- do, & juntamente a ferida cheya de agoa falgada,& muyto mordida dos ataboés,& mofquitos, parece que a- qmllo foy caufade acabar tãode- preíTa,ao qual eu por meus peccados nunca pude fer .bom,afsi por a breui- dade do tempo me não dar lugar,co- mo por eftar eu também ja tão fra- co que a cada paflb cahia na agoa, do efuaecimento da cabeça, & do muyto fangue que fe me tinha ido das feridas, & das chagas que trazia nas coftas, Com tudo elle foy enter- rado na vaia o milhor que então po- de fcr,& nos,os três marinheyros, & eu nos determinamos em paliarmos o rio da outra banda, com tenção de dormirmos nuas aruores altas que e- ftauão aparecendo da outra parte medo dos tigres & reymoés, de que toda a terra era muyto pouoada, a fora outras muytas diueríidades de animaes peçonhentos que nella auia, com infinidade de cobras de capei- lo^ outras de fardas,verdes, & pre- tas,tão peçonhentas que co bafo fo- mente mataõ. Determinados todos quatro nifto,roguey aos dous dei-;

^Peregrinações de

lesque foílèm diante, & ao outro 6 foíTejunto comigo para me ajudará

go pa r a tu c aj u a a r a íuftencar,porque hiaja muyto fraco, dos dous ie lançou logo hum ao rio, & apcs elle o outro, dizendome am- bos q os íeguiíTe,& não ouueíTe me- do^ em chegado elles a pouco mais de meyo rio , arremeterão a clles dous lagartos muyto grandes, & em muyto pequeno cípaço fizera o a ca- da hum delles em quatro pedaços, ficando toda a agoa cheya de íàn- gue, 8c afsi os leuaraó ao fundo, da qual viftafiquey eu tão aífom brado que nem gritar pude, nem fey quem me tirou fora, nem como efcapey, porque nefte tempo eftaua metido na agoa ate os peitos co outro negro que me tinha pela mão, o qual efía,- ua taõ cheyo de medo que náofabia parte de fy.

CAT. XXULI

T>o que maispajpj ate [er levado

a cidade de òiiaca, & cio que

nella mejocedeo.

Içado eu (comoja dif-' fe)tãopaímado,&tão fora de mim, que nem fallar,nem chorar pu- de por efpaço de mais de três horas, nos tornamos o outro marinheyro & eu a meter no mar a te pela mcnham, que vimos vir húa barcaça demandar a boca do rio, 8c tanto que emparelhou com nofco, nos tiramos da agoa, 8c poftos afsi ?È?eniJ0!^?sAconias maõs ate-

uantadas

«anta 8 as lhe pidimos que nos quifef icm tomar. Os que vinhaõ na barca- ça,em nos vedo leuaraó remo,& def- pois de eílaré hu pouco quedos,ven- do o trifte & miierauel eftado em q cftauamos, & entendendo q éramos gente perdida no mar, fe chegarão mais pertOj& nos perguntarão o que c|ueriamos,nos lhe reipondemos que éramos Chriítaós naturaes de Mala- ca, & q vindo de Aarú nos perdêra- mos auia ja noue dias, pelo que lhe pedíamos pelo amor de Deos q nos quifefTem leuar coníigo para onde quer que foílem. A que q parecia fer o principal delles refpondeo, não citais vós de maneyra, fegundo vejo em voíías difpoíiçoés,quepoíTaisme recer o q noscomerdes,pelo que vos feria bom,íè tendesalgum dinheyro efcondido dardesnolo, 8c então via- remos com voíco deíTa proximida- de que voílàs lagrimas nos pedem, porque doutra maneyra não tendes remédio. E fazendo com ifto moítra de Te quererem tornar,lhe tornamos a pedir chorado q nos tomaílem por íeus catiuos,& nos foíTem véder on- de quifeflem, porque por mim q era Portuguez,&muyto parente do Ca- pitão de Malaca lhe darião em toda a parte o que pedifíe : ao que elles reíponderaójomos contentes có- diçãoq feafsináo for como dizeis, vos auemos de matar açoutes, Sc atados de pês& dcmaós,vós auemos de lançar viuos ao mar,& nos lhe dif- femos q afsi o* fízeíTem. E íàltãdo lo- go quatro delles em terra, nos mete- rão na embarcação, porcj a efte têpo

Fernão Meneie^ Tinto. %$

cftauamos nos tais que nem bulimos podíamos. Defpois de nos terem dé- tro, parecendo] hes que com feros & açoutes confeífariamos onde tínha- mos efcondido algum dinhey ro,que íempre cuydaraó que lhe deílemos, nos acaraò a ambos ao do mafto, & com duas rotas dobradas nos fan-« graraõmuyto fem piedade, & por eu ja então eftar quaíi morco,me não deraõ hua certa beberagem como de rao ao pobre do meu companhey ro, que foy hum certo modo de cal deli- da em ourina,ce>mque logo lhe fíze rao vomitar os %ados,de q morrea daly ahúahorá, de como não lhe a- charaó no que vomitara ouro nenhíi como tinhão para fy, quis noíTo Se- nhor q iíío foy caufà para me nío fa- zeré a mim outro tanto, mas enfal- mourandome com a meíma bebera-* gem as fendas dos açoutes, por não morrer dellaSjfoy adorem mym tão excefsiua, q de todo efítue a morte. Partidos nos daquy deite rio queíer chamaua Ariíuimhee, fomos ao oa* tro dia à vefpora furgir defronte de húa grande pouoaçaó de caías pa- lhaças^chamada Siaca, do reyno de Iambee,onde me tiueraó vinte & fe- te dias, em c] prouue a noíTo Senhor que conualeci dos açoutes, Vedo en- tão os q tinhão parte em mim,que e- rão fete, que lhes não íèruia eu para o officio que tinhão, q era andarem íèmpre metidos na agoa pefeando, me puíèraó em leilão por três ve- zes, íêm em todas ellas auerquem quifeíle fazer lanço em mim, pelo que defeonhados de acharem quem

D me

Terigrmaçoes de

me compraflè, me lançarão fora de me mcty nefte trato das ouas dos fa-

. caía, por me não darem de comer, pois lhe não podia pteftar para na- da. E aaendo ja trinta & íeis dias cjue eílaua fora do feu poder, deitado ao almarge, como íindeyro íèm do-» no, pedindo de porta em porta al- gúa fraca eímolla que muyto rara- mente me dauão, por fer pobrifsima toda a gente daquella terra; permi- tio noíTo Senhor que jazendo eu hu dia lançado na praya ao Sol, lamen- tando minhas defauenturas, acertou de paííàr hum Mouro natural da ilhadePalimbão, quejapot alguas vezes tinha ido a Malaca, & conuer- fado com Portugueíes. Efte vendo- me jazer aísi defpido na área, me perguntou íe era Portuguez, & que lhe não negaííé a verdade , a que eu refpondy que íy, & de parétes muy- to ricos, & que por mim lhe pode- riao dar quanto pediíTe,fe me leuaf- fe a Malaca,porque era fobrinho do Capitão da fortaleza, filho de hua. íua irmam; a que elle refpondeo: pois,íe es eíTc que dizes,que peçcado foy o teu por onde viefte a tão trifte eílado como eflè em que te veio? eu então lhe dey conta miudamente da minha perdição, & da maneyra qos fete peícadores ály me trouxe- rão,& como ja me tinhão laçado fo- ra de cafa,por não acharé que me có- praffe, Elle dando moftras de grãdif- limo efpãto, defpois de eftar âtgõ paço péfatiuo,me diíTe.Eu (como po- des íãber) fou mercador pobre,& tão pobre, q por minha pofsibilidade não chegar a mais q a cem pardaos,

ueiSjCiiydando q por efta via pudefTc ter melhor remédio de vida, o que por minha mofina não pude,& porá agora ten ho fabido que em Malaca poíTo fazer algum proueito,fe o Ca- pitão & os officiais da alfandega me não fizeré os agrauos de q tenho ou- uido queixar a muytos que lhe fazé neífa fortaleza nas fazendas q a ella leuão, folgaria de yr là: & fe te pare- cer que por teu refpêito poíTo eu yrfeguro de receber opreífaó ou a- grauo, entenderey em te comprara os pefeadores de que me dizes que escatiuo.Eu lhe refpondy com aifaz de lagrimas,que muyto bem via que não eílaua eu de maneyra paraque fe elle fiaíTe do que lhe eu difleíTe,af- íi pelo baixo eftado em que me via, como porque lhe poderia parecer q eu,por defejar de me ver liure de tão trifte catiueyro,lhe podia fazer mais. cafò de mim do que em Malaca podia achar, mas que fe elle fe quí- feífe fiar em meu juramento, ja que então não tinha outro penhor que lhe deííe, que eu lhe juraria, & lhe daria hum eferito meu que fe me leuafíè a Malaca , que o Capitão lhe faria por iflb muyta honra, ôc lhe não tomarião de fua fazen- da coufa nenhúa, & lhe pagariaõ dez vezes dobrado tudo o que por mim deífe. O Mouro me reípon- deo: ora fou contente de te comprar, & leuarte a Malaca, com tanto que não digas nada difto queago- rapaífey comtigo, porque me não akuãtemopreç© tão alto que te na5

poíla

poíTa fer bom inda que queyra.Eju- randolhe eu então que afsi o íãria, com cddas as abaftanças que por en- tão me pareceo que eraó íieceffariàs a meu propoíitoje fiou clle delias leuemence.

CAT. XXV.

Do que mais mefocedeo com eUe mercador Mouro;

Afiados quatro dias defpois deite concerto que fiz com efte Mou- ro,elle por meyo de ou tro natural ahy da ter- ra, tratou difsimuladamente com os fete pefeadores fobre o preço , os quais como eftauão ja enfadados de mim,afsi por eu fer muyto docte, co- mo por lhe nãoferuir, nem preFcar paranada,& auerja perto de nu mes qme tinbaõ lançado fora,. & ferem fete os que tinhão parte em mim, & citarem ja differentes na praçaria & conformidade q antes tinhão, dou- tras muytascoufas qDeospermitio cj foliem part® para me não teré em conta,elle todos por meyó^defle ter- ceyro que o Mouro meteo por cor- retor, fe auieraõ co mercador em pre* ço de fete mazes douro,que de noífa moeda fazem comia de mil & qua- trocentos reis, a meyo cruzado por màz,os quais elle pagou logo, & me trouxe para fua cafa. E auédo ja cin- co dias q eu eílaua fora do poder dos outros, & -algum tanto milhorado no catiueyro,pelo bom tratamento que

Fernão Mcndc^Pwto.

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tiue daly por diante no poder deite meu amo nono, elle fe paíjpu para outro lugar daly cinco legoas,por 110 me Sorobayãjonde acabou de carre- gar a embarcação da mercadaria em q trataua, q comoja diíTe,craó ouas de íaueisjos quais neftes rios faõ tan- tos em tanta quantidade,que lhe não aproueitaõ mais que íos as ouas das femeas,ck que carregaó todos os am nos pafíànte de duas mil embarca* çoés,& cada embarcação leua cento & cinquenta;iduzentasjarras, & cada jarra hum milheyro, por fer impof. ííuel poderfe aprouéitar o mais. Aca* , bando o mercador de carregar a ían- chara>que era a embarcação em que leuauaefta mercadaria,feparcio pa- ra Malaca, onde chegou daly a três dias, & fe foy logo à fortaleza ver o Capitão, •& me leuou comíigo, a quem deu conta do que tinha pai- íado comigo. Pêro de Faria em me vendo da maneyra que vinha, ficou como pafmado, Ôc me cliíTe comas lagrimas nos olhos, que fali aífe al- to, para faber fe era eu aquelíe, ja que na deííemelhançâ ôc ciisformi- dadedorofto, & dos 'membros lho não parecia, E como auia jamais de três mefes que não fabião nouas de mim,& me tinhão por morto,-acu- dio tanta gente a me ver,que.não ca- bia na fortaleza4 perguntandome to- dos com as lagrimas nos olhos pe- la canfa da deíauentura em que me víão, «Sc dandolhes eu conta muyto miudamente de todo o fueceflb da minha viagem, Ôc do infortúnio cjuenella paliara, ficarão todos tão v D z admira-

Terigrinaçoes de admirados,q fem fallarem,nem ref- ru, & como, & onde me perdera, &

ponderem coufa algua fe fahião bé- zédo do q me tinhaó ouuido.E pro- uendome então os mais deli es com íuas efmolas, como naquelle tempo íe cuftumaua,fiquey muyco mais rico do que antes era. Ao mercador que me trouxe mãdou Pêro de Faria dar feífenta cruzados, & duas peças de damafeo da China, & lhe mandou cm nome de el Rey quitar os direi- tos de fua fazéda que deuia na alfan- dega,^ feria quaíi outro tanto,& em couía nenhúa lhe foy feito nenhum agrauo, de que elle ficou muyto fa- tisfeito & contente, & fe deu por pago da veniaga que comigo fizera. A mim me mandou o Capitão aga- falhar em caía de hum eferiuão da feitoria^ por fer cafàdo na terra, & lhe parecer que ahy feria milhor prouido que em outra nenhúa parte, como na verdade fuy. E aly eftiue na cama pafíante de hum més que prou ueanoíIòSenhorquede todo rece- by perfeita faude.

QAT. XXVI.

T>a armada que o ^Achem man- dou contra el 'Rgy de Mru, &> do que lhefocedeo chegando ao rio de Taneticao

AíTado efte tempo da minha infirmidade, Pe ro de Faria me man- dou logo chamar a for- taleza, & me pergutou pelo que pafíara com el Rey de Aa-

eu lhe relatey porextenfo todooíu- ceíToda minha viagem & perdição, de que elle ficou aííàz eípantado. Porem antes que trate de outra cou- fa me pareceo neceíTario dar rela- ção do fim que teue eíta guerra dos Achés,& em que parou o aparato da fua armada,paraque fique entendida a razão do pronoftico, & do receyo em q tantas vezes gemidos & fuf. piros tenho apontado por parte da ncífa Malaca, tão importate ao efta- do da índia,quanto (ao q parece) ef- quecida daquelles de que com razão diuerafer mais lébrada,porq enredo q por via de razão, de duas ha de fer húa,ou deftruyrfe efte Ache, ou por feu reípeito virmos nos a perder to- da a banda do Sul, como he Malaca, Banda, Maluco, C,unda,Borneo,& Timor, a fora no Norte, a China, Iapaó,' Lequios, & «outras muytas terras & portos em que a nação Por- tuguefa, por feus tratos & comércios tem o mais importante & mais certo remédio de vida q em todas as ou- tras quantas faó defeubercas do cabo de boa efperança paQi diante, cuja grandeza he tamanha que feeítende a terra por cofta em diftãcia de mais de três mil legoas, como fe poderá ver nos mapas & cartas que diífo tratão, fe fua graduação eftiucr pa verdade. E também nefra perda (que Deos por fua infinita mifericor- dia nunca permitira que aja,por mais defcuydos & peccados q aja em nòs) fe arrifea perderfe a alfandega do Mandouim da cidade de Goa?que he

a milhor

a milhor çóíiíá q temos na índia, por q nos porcos &c ilhas atras nomeadas conhfte a mayor parte cio fêu .rendi- mento^ fora a droga de crauomoz, ôc maça, que dela fe traz para efte reyno. £ do mais que pudera dizer a cerca difto,como teftemunha de vi- fta,não quero tratar aquy mais,porq ifto fométe me parece que bafta pa- ra fe entender a grande importância deite negocio,& entédida, nao duui- do q lhe dará o remédio que pa- recer neceíTario, Ecom ifto me tor- no a mea propofito.Efte tyrãno Rey Achem foy aconfelhado pelos íèus, que fe queria tomar Malaca,por ne- nhúa maneyra o poderia fazer come tendoa de mar em fora, como ja por féis vezes tinha tentado no tépode dom Efteuão da Gama, & de outros Capitães atras piíTados,fenão com fe fazer primeyro fenhor clefte reyno de Aaru, ôc fe fortificar no rio de Paneticãovdonde í»-s fuás armadas po- diao continuar de mais perto a guer ra que lhe pretendia fazer, porque então ficaua muyto pouco cuíloío fe char os eftreitos de Cincapura ôc de Sabaom,& tolher que asnoíTas nãos paíTafsé ao mar da China, ôc G,úda, 6c Bãda,& Maluco, por cujo refpeito poderia também facilmente auer á mão toda a drogaria daqueile ârci- pelago,para ficar aísi effeituado o no no contrato cj por meyo do Baxà do Cayro tinha afeado co Turco. Efte coníelho pareceo taó a el Rey,cj aprouandoo pelo milhor & mais a- certado, mãdou aperceber hua frota de cento Ôc feífenta vellas,de c|a ma*

Femao Aícndc^JPinto. 2.7

yor parte eraó Incharas, Sc galcous de remo, algús calalnzesda laoa, ôc quinze nauios d alto bordo,có ma- cimentos ôc monicoes, ôc n eiras em- barcações meteo dezaíiete mil ho- més,os doze mil de peleja,& os mais, gafradores &chuzma: ôc nos de pe- leja entrauão quatro mil eftrangei- ros,Turcos,Abexins,Malauares,Gu- zarates,& Lufoés da ilhaBorneo, ôc por general do campo hia hum fie- redim Mafamede, cunhado do mef- riio Rey,cafado com húa fua irmam, ôc Gouernador do reyno de Baarrós, Efta frota chegou toda a faluaméco ao rio de Puneticao, onde então el Rey de Aaru eftaua fortificando a tranqueyra,de q ja atras fiz menção, na qual tinha cófigofèis mil homés Aarús, fem mais outra mifturade gête,afsi por elle fer muyto pobre.co mo por a terra não ter mantiniétos, de q fe pucleífem fuftentar. Os Achés- logo em chegando começarão a ba- ter a cidade, ôc abaterão poreípaço ,de féis dias com muytas pecas de ar- tilharia,porem os de dentro a defen- derão valerofamente, inda que foy com algum fangue, afsi de hua parte como da outra,peloque foy forçado ao Heredim Mafamede mandar de- fembarcartodaa gente em cerra, ôc aííèftando doze peças groilas de ca- mellos Ôc eíperas, ihe deraõ ejías três batarias muyto grades, nas quais lhe derrubarão hu dos dous baluar- tes q defendião a entrada do rio, ôc por elle,có bailas de algodão 5 leua- uao diate,o cometerão hua anteme- nham,fendo Capitão defte aííalto hu D 3 ^bexim

*Perigrínaçoes de

Abexim por nome Mamedecãojque ÍAT, XXV II.

viera de íudà auia menos de hum mes aílènrar & jurar a ncua liga ôc Baxà do Cayro em

contrato que o nome do Turco tinha aíTentado co Rey do Achem, no qual lhe elle da- ua caía de feitoria no porto de Paa- cem.Efte Abexim com feífenta Tur- cos, & quarenta Ianiçaros, ôc alguns outros Mouros Malauares fe íenho- rearão do baluarte, ôc puferaõ nelle cinco bandeyras,com outros muy tos guiões. EIRey de Aaru, animando então os íèus com palauras, & pro- meíTas, quais naquelle tempo fe re- queriáo, elles com ímpeto determi- nado derâo nos inimigos,& fe torna- rão a fenhorear do baluarte, com morte do Capitão Abexim, ôc de to- dos os mais que ja eftauão dentro. E querendo el Rey aproueitarfe da boa fortuna deite fucceíTo, como ho- mem defejoíb da vitoria, mandou a- brir logo com muyta prefteza as por tas da tranqueyra, ôc íayndo ao cam po com algúa parte dos feus, pele- , jou cos inimigos tão esforçadamen- te, que os pôs a todos em desbara- to, & das doze peças groífas lhe to- mou as oito, ôc recolhendofe com com ifto a íèu faluo,fe fortale- ceo por então o milhor cj pode para o mais que ao diante efperaua,

T>a morte dei ^ej de Aarú><&

da cruel justiça que fefe^

delle defpois de morto.

Endo o Achem o mao fucceíTo daquelle dia, fentindo mais a mor- te do Capitão Abe- xim, ôc a perda das oi~ to peças de artilharia, que toda a ou- tra gente que lhe fora morta, tomou confelhocos feus fobre o q.fe deuia fazer,& fe aíTetou por parecer de to- dos os Capitães q o cerco íe cótinuaG fe, ôc a tranqueyra fe cometeííè por todas as partes,o que logo fe pós por obra com muyta diligencia. E em dezaíTete dias que aly maiseítiueraó, cometerão a tranqueyra noue vezes com tantas inuençoés ôc artifícios de guerra,que hum Turco engenheyro que comíigo traziáo,lhes inuentaua, q a mòr parte delia foy raia co chaõ, derrubandolhe as principaes duas forças da banda do Sul, ôc hum lan- ço de terra pleno que a modo de cou raçafeguraua a entrada do rio.E fem preos de dentro lhe reíiftiraó com tanto animo, que os inimigos perde- rão dos feus dou s mil Ôc quinhentos, todos confumidos a ferro ôc a fogo,a fora os feridos Ôc queimados, q erão cm mayor quantidade, quede/pois morrerão ao defemparo. E dos Aa« ius morrerão fós quatrocentos. Mas como eftes eraó poucos, ôc os inimi- gos muy tos, ôc milhor armados, no derradeyro aflalto, que foy dado

aos

Fernão Mendcz Tinto.

aos treze dias da Líía,fe acabou tudo deconfumir, porque iaindo Rey fora da cidade por confelho de hum leu caciz de q muyto fe fiaua, o qual por peita de hum bar douro, que va- lia quarenta mil cruzados,qne os ini- migos lhe deraó, o moueo a iífo, ar- remeceo aos inimigos,& trauou com clles hua afpera briga, na qual anda- do com milhoria muyto conhecida, o perro do caciz, que fícaua por Ca- pitão na tranqueira,fingindo querel- lo yr ajudar a continuar âquelle bo principio, íahio fora obra de qui- nhentos homés que tinha comfigo, o que vendo hum Capitão dos ini- migos Mouro Malauar, por nome Cutiale Marcaa,o qual tinha em ília companhia feifeentos Mouros Gu- zarates & Malauares,arremetendo às portas, que o caciz não quiz defen- der pela peita que tinha tomada,foy lo^ofenhor da tranqueira fem ne- nhua refiftencia, & matou quantos doentes & feridos achou nella,que fecundo fe diííe, paíTaraõ de mil & quinhentos, fem a nenhum dar a vi- da. O defauenturado Rey, vendo a tranqueyra entrada, fem até então ter nenhum íèntimento da traição do caciz, querendolhe (ocorrer, por fer o mais importante,lhe foy força- do largar o <campo,& vindoíè retira- do para os vallos da caua que efta- uão mais perto, nefta volta que fez, quiz a fortuna que omataife hum Turco de hua arcabuzada que lhe deu pelos peitos, com cujamortefe acabou tudo deperder,pelagrandif- íima defordem & defarranjo-que el-

la caufou cm todos os íèus. Os inimi- gos tomando o tnftc Rey que jazia morto no campo, lhe tirarão as tri* pas,& falgado o meterão em hua ar- ca^ o leuaraó ao Aachem,o qual o mandou publicamente, & gran- des cerimonias de juftiça ferrar em pedaços, & cozer nua caldeyra de breu & azeite, com hum efpantofo pregão, que dizia afsi. Efta heaju* ftiçá que manda fazer Soltão ÁIara-> dim,Rey da terra dambos os mares, piuetedas alampadas douro da ca- pella do Profeta Nobi, que quer & lhe praz, que afsi ferrado & cozido em fogo padeça a alma defte Mou- ro,por fertranfgreílorda ley do Al- corão^ da perfeita crença dos Mafc foieyinoés da caía de Mec^que fen- do jtiftopor doutrina íantado liiiro das flores, fe fez nas obras inteniente a Deos,com mandar continuamente auiíosdos fegredos defte' reynoaos malditos caés do cabo do mundo, q por tyrannia de orfenfa graue, & por. peecados denoílo defcuydofènho* reão Malaca,a que todo opouo,cpm hum eipantofo tumulto de vozes ref pondia,pequeno caftigo, para tama- nho crime. E deita maneyra,queaísi paífou realmente na verdade,fe per- deo efte reyno de Aarú com morte defte pobre Rey tanto noffo amigo* ao qual. me parece que puderamoâ valer com muyto pouco cufto & ca- bedal que puíèramos de noíla parte, fe no principio defta guerra, íhea- cudirao Co que elle pidio pelo feu Embaixador, mas de que teue a cuk pa difto (fe ahy ouue algua) não que- D 4 ro eu

Terigrinaçoes de roeuferjuiz, fejao aquém lhe per- de tudo o mais que focedera nefte

tence por direyco

CAT. XXVllL

T>o que pajjou no reyno de Aaru

de/pois da morte dellfyy, &>

de como a %aynhajoy a

Malaca.

Orto efíe defàueníura- do Rey de Aaru da maneyra que tenho di- to, & toda a ília gente desbaratada, logo a ci- dade & o reyno todo foy tomado muyto facilmente,& o Heredim Ma famede general da frota, repairou,& fortificou a tranqueira de todo o ne- cefíario a fegurança do mais que ti- nha ganhado. E deixando nella oi- tocentos homés dos milhores da ar- mada, & por Capitão delles hum

trifte eafo, íe quifera logo aly cjuei- mar?porque afsi lho tinha prometi- do em vida, & confirmado jura* mento,porem os feus lho não conferi tiraó, períuadindolhe com muyras rezoés cjue o não fizeflc, ao que ella, defpoisde conceder no que lhe pe- dião,refpondeo, affírmouos em ley de verdade,que nem eíTas razoes que me dais^nem o que com ellas me po- des diante, nem eíTas boas palauras com que enfeitais efle bom zelo de leais vaíTallos, puderaõ íèr baftantes para me defuiarem de tão fanto pro- pofito como efíe que a meu Rey & fenhor tinha prometido,fe Deos ne- fía alma me nao dera a fentir que minha vida auia de vingar a fua moç te,pelo fangue do qual juro diante de todos vofoutros, que em quanto eu forviua bufcarey fempre todos os meyos pofsiueis para o fazer, & por

Mouro LufaÓ,por nome C,apetu de efta caufa chegarey a tanto eftremo, Raja, fe partio comido o mais pe- que mil vezes me farey Chrifíamfe

lo da gente para o Achem, onde fe diflèque o tyranno Rey lhe fizera muyto fobejàs honras, pelo bom fu- cefíb de aquella emprefa, porque fen- do antes (comojafediíte) fomente Gouernador & Bendara do reyno de Baarròs, lhe deu titolo de Rey, & fe chamou daly por diante Soltão de Baarròs, que heo próprio nome de Rey entre os Mouros. A Raynha de Aaru (que todo efíe tempo efíiuera metida no mato daly fete legoas, pa- ra onde fe recolhera, como atras fica dito)fendo daly a algús dias certifica- da da morce dei Rey íeu marido, ôç

for neceíTario para alcançar em mi- nha vida ifto que tanto defejo.Coro efíe feruor,íèm fazer mais detença,fe pòs em hum Alifante, & acópanha- da de trezentos dos feus que aly ti- nha comfígo para fua guarda; & de outros muy tos que defpoisfc lhea- juntaraó,com que fez hum corpo de íètecentos homés, veyo com elles para a cidade, com determinação de lhe pòr o fogo, porque os inimigos a nao lograíTem, & achado nella obra de quatrocentos Aches oceupados no defpojo dalgum pouco fato q ainda nella auia3intitándo os feus a íè faze-

rem

Fernão Mende^ Tinto. a p

remamoucos, &trazendolhesàme- (AT*' XX ÍY

moria com muytas lagrimas, âobri-

gaçaó que para iíTo tinhaó, cometeo *Do recebimento que em Malaca os inimigos tão esforçadamente que Jefe^a ^jnbz de Aarú & do dos quatrocentos ie affirmou defpois nupu^íT^. *cr> ., A .

que pajjou com Tero de Faria

em Malaca que não efeapara nenhú. E vendo ella que para o mais que de- fejaua de fazer não era poderofa, fe tornou a recolher ao mato, dóde em fós vinte dias q ahy mais efkuelhc fez tanta guerra,& os falteou por tan- tas vezes no tomar da agoa & lenha, & outras coufas de que tinhaó ne- cefsidade,que não oufãuãojanenhús a fayr fora,nem fe prouerem do ne- ceíFario,& Te fora pofsiuel continuar- Jhe efta guerra mais outros vinte dias,a fome os ouuera de fazer entre- gar indaque não quiferaó, mas co- mo as chuuas eraò continuas por cau fa do cljma,& a terra em fy era bre- jofa & alagadiça,& as frutas do mato de que fe fuftentauão eraó ja todas podres, & a mayor parte da gente e- ftaua doente & íem remedio,lhe foy forçado à Raynha paíTarfe para hu ario que eftaua daly cinco legoas,que fechamaua Minhaçumbaa, no qual fe embarcou em dezafíeis embarca-? coes de remo que ahy pode ajun- tarem que auia algús parcos de pef- cadores, ôc nellas fe veyo ter a Malaca, parecendolhe que vindo ella em peflba, fe lhe não negaria con- fa de quantas pidifle.

Capitão da fortaleza,

Endo Pêro de Faria certificado da vinda da Raynha a mandou | receber por Aluarode ? Faria feu filho, & Capi- tão mor do mar,ò qual em húa Ga- lé^ cinco furtas, & dous catures, & vinte baloés, acompanhado de tre- zentoshomés, a fora outra muyta gente da terra a trouxe â fortaleza, na qual fe lhe fez húa nobre íalua de ar- tilharia q durou por efpaço de maíã de húa hora. E defembarcando em terra,d efpois que fe lhe moftraraó ai- gúas couías que Pêro de Fana quiz que ella viíTe por fazerem em noflb eafo,como foraó os almazéV a ribei- ra,a armada,a feitoria,a alfandega, a caía da poluora, & outras couías que ja para iffo eftauão preparadas, ella foy agaíalhada em nuas boas caías, & a fua gente,que podião fer ate feif- centaspeiloas,no campo de Ilher,em cabanas Ôc tendas o mílhor que por então fe pode- fazer, & em todo o tempo que ella aquy efleue, que fe- rilo quatro ou cinco mefes, còtinuou íèmpre no requerimento que trazia, que era buícar fauor para vingar a morte de Teu marido, com razoes li- citas ôc baftantes para fe lhe não ne-» gar o que pedia, no fim do qual té- po,entendendo quão pouco lhe po-<

diamos

Teregrindçoes de

diamos fazer,& que tudo o noíTo pa- ra com cila era hum entretenimento de palauras, de que nao via nenhum fruito, determinou de fe declarar c5 Pêro de Faria, & faber delle o que decerminaua de fazernoque lhe ti- nha prometido. E efperandoo hum Domingo à porta da fortaleza, em tempo que o terreyro eftaua todo cheyo de gente, & elle fahia para yr ouuir MiíTa,o foy demandar, & def- poisde fe fazerem entre ambos as deuidas cortefias lhe' diífe. Nobre & esforçado fenhor Capitão, peçouos xnuytopela realidade da vofla pro- génie, que me náo cerreis as orelhas em efte pequeno efpaço que vos que- ro fallar,& que olheis que ainda que fou Mourâ,& cega por meus pecca- dos no claro conhecimento da voíía fama ley,todauia por fer molher, ôc porque ja fuy Raynha,me deueis de ter algum refpeito, pondo piadofa-» mente os olhos de homem Chriftaó em meu defemparo. Ao que Pêro de faria parou,& co barrete na mão lhe fez húa grande cortefia.E eftãdo am- bos calados por hum pequeno efpa- ço^Raynha, defpois de fazer hum grande acatamento para a porta da Igreija que eftaua defronte, diíTe có- tra Pêro de Faria. Foraó fempre ta- manhos os defejosque tiue de vin- gará morte dei Rey meu marido, q determiney de bufcar todos os me-; yos que me foflTem pofsiueis para o poder fazer, ja que por minha femi- nil fraqueza a fortuna me negou ve- ftiras armas. E tendo eu para mim que efte de que primeyro lancey

mão,podia fer o mais certo, fiz mais conca deilc que de todos os outros. E confiada na antiga amizade que tenho com vofco, & na grande obri- gação que metem efta fortaleza por tantos reípeitos quantos vos fenhor muytobemfabeis> me vim agora a ella a pedimos lagrimas, que em nome do ferenifsimo Rey de Portu- gal meu fenhor, cujo fubdito & leal vaíTallo fempre foy meu marido, me quifeíTeis valer, ôc focorrerme em meu defemparo, aque em publico me foy refpondido por voíía boca diante de muytos nobres que então ahy eftauao, que afsi o faríeis fem falta nenhúa , & agora no fimdefta promeífa,tão retificada no tifouro de voíía verdade,em vez de fer, afsi me dizeis, ou days por efcufa que tendes fobrc ilTo efcrito ao fenhor Viíorrey, não tendo eu necefsidade de tanto focorro quanto me vos dizeis que para efte feito de me pode vir,por- que com menos de cem homés, & com a minha gente que anda fugida pela terra, eíperando que eu de cà,me atreuo afsi molher como fou, a em menos de hum mès tornar a tomar todo o meu fenhorio, ôc vin- gar a morte dei Rey meu marido, q- he o que aquy mais pretendo que tu- do,ajudandome Deos que he pode- rofo,da parte do qual vos peço ôc re- queiro por feruiço,& honra do fere- nifsimo Rey de Portugal meu fe- nhor,emparo ôc eícudo de minha or- findade, que pois podeis o façais, & breuidade, porque nella eftâ a rna yor importância de todo efte nego- cio

Ferrão éMende^Pinto, j0

cio,&com o fazerdes afsi atalhareis índia nãoouueíTe trabalho que o e-

o cfFeito da tençaó deite inimigo, fu- dada íométe nadeftruyçao deita for- taleza, como pelos meyos ejue para iflo procura, tereys bem entendido^

ítoruafTe, pelo que lhe aconfelhaua, & pedia muyto por mercê, que por em tanto fe deixaiTe eftar aly em Ma laca, ate que efte pouco tempo lhe

& fe determinais de me dar efte fo- moftraífe aquella verdade. E repli- corro que peço, efperarey, ôc fe não, 'cando ella fobre a incerteza de po-

defenganayme , porque tamanho mal me fazeis em me fazerdes efpe- rar (em me dardes remédio, pelo té- po que niíTo perco, como em me ne- gardes iflo que com tanta efflcacia vos tenho pedido, & em ley Chri- ftam me deueis,como o fenhoí todo poderofô,Deos do Ceo & da terra,a quem tomo por Iuiz nefte requeri- iriento,muyto bem íàbe.

CAT. XXX. .

Como eHa Tiaynha de Aarufepar-

tw de Malaca para^Bintao-

ç> do quepajfou comei

%ey do fantana.

Vuindo Pêro de Faria o que efta defconfola- da Raynha publica- mente lhe diíTe,a qual lhe trouxe aly também à memoria as obrigações que tinha para lhe fazer o que lhe pedia,alcan- çadoelie de feu defcuydo, &quaíi corrido por efta falta em que tinha caydo,lhe refpondeo, que em ley de Chriftaó, & em fua verdade lheaf- firmaua, que ja fobre efte caio tinha eferito duas vezes ao Viíorrey,& que fem falta nenhúa eíperaua aquella monção por gente ôc armada, fena

der ou não poder vir efte foccorro, quafiquefe agaftou Pêro de Faria, por lhe parecer que defeonfiaua ella da fua verdade,& foltando com efta. cólera alguas palauras mais fecas do que era razão, a defconfolada Ray* nhafelhe arraiarão os olhos dagoa, Sc com as maós leuantadas para o Ceo, & os olhos poftos na porta da igreja,que eftaua hum pouco defró- te,com tantos foluços que quaíi não podia fallar,dií?e, Fonte limpa he o Deosquenaquellacafa feadora.de cuja boca procede toda a verdade, mas os hornés da terra faó charcos de agoaturua, em que por natureza continuamente moraó defuarios ôc faltas, pelo quefedeue de auer por maldito o que confia no bocejodos feus beiços. Porque vos affirmo fe- nhor Capitão que deíque me enten- di atégora,nenhúa outra couíâ tenho vifto, nem ouuido,fe não que quãto os deíauenturados como meu mari- do ôc eu mais fazem por vos os Por» tuguefes,tanto menos fazeis vos por elles, ôc quanto mais deueis, menos pagais,pelo que infírindo daquy,o q claramente fe pode afflrmar, he, que o galardão da nação Portugueía mais coníifte,& mais pende da aderência que do merecimento da peífoa. E prouuera a Deos que o que eu agora

conheço

^Peregrinações de

conheço de vós por meus peccados, fas que elle diíle cj pafTaraó por nos,

conhecera el Reymeu marido ago ra ha vinte & notie annos, porque elle viuera tão enganado com vofco como viueo, nem em fim fe viera a perder por voíTa cauía, como fe per- <ko. Mas ja que ifto afsi he, hua coufa me refta agora para confolação de minhas queixas,que he vermuy- to~s tão efcandalizados da voíTa ami- zade quanto a pobre de mim agora vê. E fe vos não atreuieis, ou não queríeis darme efte íocorro, paraque vos penhoraoeis taó leuemente com dia defconfolada molher tao orfam do que pretendia,&do que lhe pare- ceo que achaíTe em vos, quão enga- nada agora fe acha com a liberalida- de das volTas promefTas. Após eítas palauras virou logo as coitas ao Ca- pitão^ fem o querer mais ouuir, fe cornou paraíucafa. E mãdádologo fazer preíles as fuás embarcações, fe pardo ao outro dia para Bintão, on- de naquelle tempo eítaua el Rey do lantana^qualjfegundo íè diíle dei- pois em Malaca,lhe fez muyto gran- des honras,& ella lhe deu conta do q paííàra Pêro de Faria, & de quão perdidas trazia as efperanças da nof- fa amizade,& lhe relatou por extéíò todo o proceíTo, & o fucceíTo do ne- gocio. A que el Rey dizem que lhe refpondeo,q quito ao que dezia da pouca verdade que achara em nós,fe não efpaWauajnem cila fe efpãtaííe, porque em muytascoufas o tínha- mos moftrado ao mundo , & para confirmação diíto lhe trouxe então algus exemplos particulares de cou-

os quais inda que>primeyra vifta parecia que Fazião a íeu propoíiro, todauia como elle era Mouro,traba - balhou por afear as noflascoufasde tal maneira,que as fez parecer muy- to mais feas,& muyto mais graues do que ellas eraó. E deípois de lhe con- tar muytas couíasnoffas muyto mal feitas,aque chamaua mentiras, rou> bos, tyrannias, & lhe punha outros muytos muyto mãos nomes,fem tra- tar das rezoés ôcdefculpas q aquejlas couíàs podião ter por fy,inda q real- mente foraó tão abominaueis como as elle fazia,lhe veyo em fim a dizer, que elle lhe prometia, a ley d e bom Rey& de bom Mouro, que ellafe viííè muyto cedo por feu meyo del- lereítituydaa todo feu reyno, fem lhe faltar hum palmo da terra. E que para ella eílar certa & fegura ni- ílo que lhe prometia,elle era conten- te de a receber por molher,fe ella qui feíTe, porque defta maneyra lhe fica- ua a elle auçao &juíHça contra oRey do Achem, com o qual era forcado vir por feu refpeito delia a rompi- mento de guerra, fe liuremente não quifeíTe deíiílir do que lhe tinha to- mado,ao que ella reípoodeo,q*ainda que a honra do que lhe cometia era muyto grande para ella,a não acei- taria fe em dote & arras lhe não pro- meteíle a vingança da morte de el Rey feu marido,porque lhe affirma- ua que ifibera fomente o que prece- dia, & que fem iíío não aceitaria fer fenhora'do mundo. El Rey,por con- relhjí dos feus, lhe aceitou cila con- dição,

!i M

Femao Mende? Tinto.

diçxó,&lha prometeo com juramé- ro lolennc,tomado num liuro da fua feita em cjiie pòs a cabeça para reti- ficaçâo da promeífaque lhe fazia.

CJT. XXXL

7)a notificação que eí%ej do lan-

tana mandou Ja^er ao *$&$/ do

Achem fobre orejno de Ma-

ru3 <& do que lhe elle

refpondeo.

Efpois que el Rey fez eftejuraméto nas mãos do feu Caciz mayor, por nome Raja Mou- lana, em hum dia da fcfta do leu Ramadaò, fe paíTou à ilha Campar, onde defpois de fe ce- lebrarem as feílas das fuás vodas, te- ue confelho fobre o que fe deuia de fazer nefte negocio em que fe mete- ra,porque bem entendia que era af- .Jaz difficultofo, por quanto lhe era forçado auenturar nelle muyto do feu. E a vitima refoluçaó que fe toJ mou nelle, por parecer de todos os feus,foy, que antes de entender em coufa algúa, mandafTe notificar ao Rey do Achem o direito que tinha nouamente no reyno de Aaru, por parte do cafamento com a Raynha delle,fua noua molher,&que fegun- do lhe elle refpondeíTe, afsi fe deter- minaria. ElReyparecendolhebem efte confelho,ordenou logo Em- baixador com hum rico prefentede peças de ouro, & de pannos de feda, pelo qual eícreueohúa carta ao Rey

do Achem que dizia afsi. Siribi íaya quendou pracamaa de raja, dircyro Rey por fucccilaó de património minha catiúa Malaca, vfurpada por jugo tyrannico de força de braço na injuítiça dosiníieiSjRey do Iantana, & de Bintão,& dos fubditos Reys de Andraguiree, & de Lingaa, a ty Siry Sokão Alaradim Rey do Achem, & de toda a mais terra de ambos os mares, meu verdadeyro irmão pela antiga amizade de noífos auòs fauo- recido por fello dourado da fanta ca- fade Meca por bom Ôc fiel Daroez, como os datos Moulanas que poc honra do profeta Noby peregrina- rão com eíleril vida os canfados dias deita miferia. Eu teu cójunto na car- ne ôc fangue te faço faber por meu Embaíxador,que os dias paliados da fetimaLúa deite nouo annoem que agora viuemos, veyo a mym com grande afronta & trabalho a nobre viuua Ancheíiny Raynha de Aarú, & com rofto trifte,& olhos chorofos, proftrada por terra me diíTe,rafgan- do as faces com fuás vnhas, que teus Capitães lhe tiuhão tomado feu rey- no, com ambos os rios de Laue, ôc Paneticão, & morto Alibomcar feu marido, com mais cinco mil Am- borrajas,& Ouroballoes, gente prin- cipal que comllgo tinha, ôc catiuas três mil crianças que nunca pecca- rãó,as quais cingidas com cordas, ôc com as mãos atadas continuamente açoutauao muyto fem piedade, co- mo que foraó filhos de mays infleis, pelo qual mouido eu teu irmão á proximidade, que o íànto Akoraõ

nos

nos eníma & nos obrigada recebi de- baixo do emparo de minha verda- de, para afsi mais feguro me poder informar da rezão ou juíliça que pa- ra ifíb podias ter, & achando eu em feu juramento não teres nenhúa,a re- ceby por molher, paraque aísi liure- mente lhe poífa allegar eom direyto fua aução diante de Deos. Pelo qual te peco & rogo como teu verdadey- ro irmão, que mandes como bom Mourolargarlheo que lhetomafte, Sc de tudo lhe faças reftituyção fran- ca & boa, pois na ley profefíàda de noíla verdade a ifíb es obrigado, & quanto ao modo quefe ha de ter na

^Peregrinações de

ra de ambos os mares Mediterrâneo & Oceano, Ôc das minas de Menam- cabo, ôc do nouo reyno de Aaru com juíta caufa agora tomado, a ty Rey cheyo de fefta com defejo de duuidofa herança, vy tua carta efcri-. ta em mefa de voda, ôc pelas incon- lideradas palauras delia conhecya bebedice dos teus coníèlheyros, â qual não quifera refponder,' íè m0 não pedirão os meus, pelo que te di- go que me não defoilpes diante de ty,que te confeflb que tal louuor não quero, Ôc quanto ao reyno de Aa- não falles nelle, fe queres ter vida bafta mandalo eu tomar, ôc fer meu'

entrega difto, que peço fe fará pela como muyto cedo fera eíle teu. E fe forma do regimento que Siribicão cafafte com Anchefiny tua molher

meu Embaixador te moít.rarâ,& não o fazendo aísi, conforme ao que por ley dejuftiçatepeço, me ey por de- clarado comtigo por parte deita fe- nhora, à qual por dote meobriguey com juramento íblenne a defender a cauía de feu deíemparo. Chegado efte Embaixador ao Achem, elleo mandou receber honradamente, ôc lhe tomou a carta que lhe trazia,po- rem deipois que a mandou ler ôc vio o que vinha nella, o quiíèra logo mandar matar, fe algus dosfeus lhe não foraòámão, dizendolhe queíè o fizeííe feria infâmia fua muyto gra- de. E defpidindoo logo fem lhe que^ rer tomar oprefente em final de def- prezo, lhe refpondeo por eftas pa- lauras. Eu o Soltão Alaradim Rey do Achem, de Baarrós, de Peedir, dePaacem, &dos fenhoriosdeDa- yaa, & Batas, príncipe de toda aterei

à conta de com ifíb te juílificares no direyto do reyno que ja não he feu, com ella te ficarás como flcão os ou- tros cafa d os com fuás molheres,que cultiuando a terra fe fuílentão do trabalho de fuás maõs. Toma pri- meyro Malaca, pois que foy tua, ôc- então entenderas no que nunca foy teu,- Ôc eu te fauorecerey como a vaf- fallo,mas não como a irmão por que te nomeas. Deita minha grande ca- fa do rico Achem, ao primeyro dia da chegada defle teu homem,que logo de mim deípidy, fem o *- querer mais ver, nem ouuir,como te el- Ie dirá,

CAP.

Fernão €\ien C^T. XXXIL

T>o que mais paffou entre elT&y do lanterna* ç> o do Achem fobre o negocio desta embaixada.

Eípididoo Embaixa- dor dei Reydolãtana cóeftarefpoítanomef no dia q foy ouuido, q entre eilescuíluma a fer hum notaueldefprezo, tornando a leuar configo o preíènte, que tam- bém lhe não quiz aceytar, para mais abatiméto & afronta do mefmo Em- baixador que o trazia, chegou a Ca- par, onde naquelle tempo eílauao Rey do Iantana,o qual quando fou- be todas eftas couías, dizem que fi- cou tão colérico que affirmauão os feus q por alguas vezes o viraó cho- rar em fegredo, como homem que íintira muy to o pouco caio que o ty~ ranno Achem fizera delie. E tornan* do outra vez a auer çonfelho fobre a determinação defte negocio, fe af- ientouque por todas as vias lhefí- zeífe guerra como a inimigo capital, ôc fe entendeííe logo primèyro que tudo em fe tomar o reyno de Aarú, & a fortaleza de Puneticão,antesque o Achem o fortifkaíTe mais. E para efíeito difto fez logo el Reypreftes com a mor prefteza que foy pofsi- uel fiua groífa armada de duzentas vellas de remo, de que a mayor par- te eraò lancharas,joangàs, & calalu- zes,& quinze juncos dalto bordo, mantimentos ôc muniçoés,& as mais

despinto.

couías necéíláms para eíta emprefa, &pòs nella por Capitão moro gran- de Laque Xcmcna feu Almirante, de quem as hiftoriasda índia fazem muytas vezes menção, ao qual deu para ella dez mil homés de peleja, ôc quatro mil de chuzma, gente muyto efeolhida & exercitada na guerra. O Almirante fe partio logo com toda eíta frota,& chegando ao rio de Pu- neticao, ondeeftauaa fortaleza dos inimigos, acometeo por cinco vezes à efcalla vifta com trezentas efeadas, ajuntando a ifto muytas inuençoés de artifícios de fogo,& não a poden- do afsi tomar a começou a bater com quarenta peças de artilharia groíT^q nunca ceifarão de tirar de dia nem de noy te,de maneyra que a cabo de fete dias que continuou a. bataria, a mayor parte da fortaleza foy poík por terra,& dando logo os inimigos o aítalto,a entrarão muyto valerofa- mente,com morte de mil Ôc quatro- centos Aches, de que a mayor parte era chegada hum dia antes que efta frota chegaíTe,com hu Capitão Tur- co fobnnho do Baxà do Cayro, por nome Morado Arraiz,o qual tambe aly ficou morto com duzentos Tur- cos que tinha comfígo.,iem o Laque Xémena querer que íè átffe vida a nenhum delles. E com tanta prefsa tornou logo a repa irar o que cayra, com eftacadas, ôc entulhos de pedra em fofsa- em que a mayor parte da gente trabalhaua*c[ue em doze dias tornou afojtalezaa ficar no eftado primeyro,& dous baluartes mais dauentagem. As nouas defta frota q

elRey

Teregrln

el Rey do Iantana fazia nos portos de Bintáb & Campar chegarão logo ao tyranno Rey Achem, o qual te- mendo perder o que tinha ganha- do,fez lo^o aparelhar outra de cen- to & oitenta vellas,fuftas, lancharas, &galeotas, & quinze galés de vinte & cinco bancos, na qual fez embar- > car quinze mil homés, os doze mil de peleja,a que elles cfiamáo de bai- léu, & os mais chuzma do remo, ôc por general defta frota mandou o mefmo Heredim Mafamede que an tes tomara efte reyno, como atras fi- ca dito,pelo ter por homem de grã- desefpritos, & bem afortunado na guerrá,o qual fe partio com toda efta frota,& chegando a hum lugar que fe dizia AápeíTumhee,quatro legoas do río de Puneticão,foube por algus pefcadores que ahy tomou,tudo o q na fortaleza,& no reyno era paífado, Sc como Laque Xemena eftaua apo- derado,aísi da terra como do mar et perando por elle, com a qual noua dizem que o Heredim Mafame- de ficou muyto embaraçado , por- que na verdade nunca lhe pareceo q

A r cr **

os inimigos hzeílem tanto em tao pouco tempo. Tomando então con- íelho íbbre o que fe deuia de fazer, íè affirmou que o voto dos mais fo- ra,quejaquea fortaleza &o reyno eraò tomados, & toda a ília gente morta,&os inimigos eftauão taó po- derofos no mar, Ôc na terra, que em todo cafo fe deuia de tornar, vifto não eftar o tempo conforme ao que elles cuydauão, Porem o Heredim Mafamede foy muyto contra iíTo,di

açoes de

zendo que antes queria morrer co^ mo homem,que vi-uer em deshonra .como molher5porqja que feu Rey o eícolhera para aquelle feito,náo qiii- feífe Dcosquç elle perdeífe põto da opinião que todos tinhaódelle, peio que prometia & juráua pelos oíTos de Mafamede, & por quantas alam- padas continuamente ardiáo na fua capella, de matar por tredro todo o que foífe contra efte feu parecer, & o mandar cozer viuo nua caldeyraJe breu,como também auia de fazer ao mefmo Laque Xemena: & com efte feruor Ôc aluoroço fe abalou daly dó- de eftaua furto, com grandes gritas, Sc grande vozariade eftroníentos,& tammbores)& íinos,como em ferne- lhantes tempos coftumão, ôc come- teo á vella ôc a remo a entrada do rio,& chegando à vifta da armada-do Laque Xemena,elle que ja a cfte té- po eftaua preftes, & reformado de muyca ôc boa gente que de nouo lhe acudira de Pêra, Bintao, Siaca, & de outros lugares ahy comarcãos, aba- lou logo do lugar onde eftaua, & o veyo receber ao meyo do rio,& dcf. pois de fe fazerem de ambas as par- tesas faluas acuftumadas de artilha- ria, arremeterão de voga arrancada hus aos outros,& como hião deícjo- fos de Ce chegarem, a briga fe trauou entre elles demaneyra, que poref- paçode quaíihora ■&meyà,lè não; enxergou melhoria em nenhua das partes,ate que o Heredim Mafame- de general dos Aches foy morto de húa bomba de fogo, que lhe deu nos pei£0s,cpe. logo o fez em dous peda- ços

Fernão Mcndez Tinto'.

cos, com cuja morte os feus deíaco- rocoarao de tal maneyra, que que- rendo voltar para hua ponta que clumauao Batoquirim, com tenção de ahy feitos todos em hum corpo, fazerem fortes atè vira noite, em que determinauão de fe acolherem, o não puderão fazer, porque a cor- rente da agoa, que era muy to gran- de, osdiuidio em muytas partes. E deita maneyra a armada do tyranno Achem ficou toda em poder do La- que Xemena, fem eícaparem delia mais que fós quatorze vellas, & as cento & feíTenta ôc féis foraó toma- das, & mortos treze mil ôc quinhen- tos homens, a fora os mil & quatro- centos que morrerão na tranquey- ra. Chegadas eílas quatorze vellas ao Achem, lhederaó conta de tudo o que paíTaua, de que dizem que fi- cou tão triíle, que vinte dias o não vio peíToa nenhíía, no fim dos quais mandou cortar as cabeças aos Capi- tães das quatorze vellas, & a todos os mais que nelias vinhão mandou rapar as barbas,& que fo pena de fe- rem ferrados viuos daly por diante andaílem íèmpre veítidos como mo lheres , tangendo com adufes por onde quer que foíTem, Ôc que quan- do juraíTem íobre algúa coufa, foííè,' aísi me Deos traga meu marido, ou afsí eu veja prazer dos que pary. E eítes homens vendofeconftrangidos a hum caítigo tão afrontoío, quaíi todos fe defterrarão, ôc muytos to-, marao a morte com fuás próprias mãoSjhús com peçonha, outros çn*

forcandofe, ôc alguns delles a ferro. E delia maneyra que tenho conta- do, ôc que puntualmente afsi paíTou na verdade, ficou o reyno de Aaru liure deite tyranno Achem, ôc em poder do Rey do íantana, atè o an- no de mil ôc quinhentos feííènta ôc quatro, que o mefmo Achem com hua frota de duzentas vellas, fingin- do yr fobre Patane, deu manhofa- mente hua noite no lantana,onde o Rey então eítaua , ôc o tomou às mãos com fuás molheres ôc filhos, & outra muyta gente, ôc os leuoti catiuos para lua terra, onde de to-» dos, fem perdoar a nenhum, man- dou fazer crueys juftiças, & ao Rey com humpao muytogrofib fez bo- tar os miolos fora, & tornou de no- uo a íenhorear o reyno de Aaru, de que logo intitulou por Rey o leu fi- lho mais velho, que foy o q-uedef- pois matarão em Malaca víndoaeí- le cercar, fendo Capitão da fortale- za dom Lionis Pereyra filho do Có- de da Feira, que lha defendeo com tanto esforço, que pareceo mais mi- lagre que obra natural, por fer en^ tão tamanho o poder deite inimi-j go, Ôc os noflbs tão poucos em fua, comparação, que bem fe pudera, dizer com verdade que eracj duzentos Mouros para, cada Chriftão*

CAPí

CJT. XXXllL

( orno indo eu de Malaca para o

Terigrínafões de

rejno de cPao achej vinte três Chrislaos perdidos no mar.

Úr-

Gora me quero tornar ao propoíuo de q hia tratando.Sendoeu,o> mo ja atras tenho di- J tOjCÓualecido da doé- ça q trouxe do catiueyro de Siaca,Pe-

ro de Faria defejando de me abrir al- gu caminho por onde eu viefle a ter algúa coufa de meu, me mandou em hua lanchara de remo ao reynode Páo, dez mil cruzados de íua fa- zéda,para os entregar a hujeu feitor cj reíidia,por nome Tome Lobo, & dahy me paííar a Patane, que era outras cem legoas auante,có húa car- ta & hu prefente para o Rey,& tratar elle a liberdade de hus cinco Por- tugueíesq no reyno de Sião efíauão catiuos do Monteo de Banchà feu cunhado. Partindo eu de Malaca efte deíTenho, aos fete dias da minha viagem,fendo húa noite tanto auan- te como a ilha de Pullo Timão, que pode fernouenta legoas de Malaca & dez ou doze da barra de pão,qua* fi meyp quarto dalua paflado, ouui- mos por duas vezes húa grande gri- ta no mar,& não vedo nada por cau* fa do grande efeuro que ainda fazia, ficamos todos muyto fufpenfos,porq nãofabiamos atinar co queaquillo feria, & mareando as vellas, fomos guinando para onde tínhamos omii-

do o tom da grira, vigiando todos cos rodos baixos, para vermos fe podía- mos, deu ifar o que aquillo fofTe. E continuando ncíla confufaó obra de

hiiahora,enxergamos muyto ao ló~ ge hua couía preta 6c rafa, fem vulto nenhum, & não fabendo determinar o que feria,tornamos de nouo a auer confelhofobreoque míTo faríamos, & com quanto na lanchara não era' mos mais que quatro Portuguefes,os pareceres foraó muytos & muyto dif ferentes hus dos outros,em que ouue requereremme q não quifeíTe faber o q me não releuaua, & me fofle pa- ra onde me mandaua Pêro de Faria, porque perder húa hora daquelle' tempo,era por a viagem em vétura & a fazenda em riíco, & eu ficar âC do ma conta de mim fe me acótecef. fe algú defafíre. A q eu refpondy,qUC por nenhúa coufa que focedefTe ama de deixar de faber o que aquillo era, porq fe eu erraíTe niíTo,como elles dil ZíãÇ, fôgPcro de Faria, cuja era a lanchara & a fazenda, ania de dar a conta, & não a elles que não ti- nhão aly mais que fuás peffoas fo- mente, em q hia tão pouco como na minha. E em quãto durarão eftas al- tercações, quiz Deos q efdareceoa menhã,em q diftintamente vimos ã era géte que íe perdera no mar,q an- dauafobrepaos, então lhe pulemos afoutaméte aproa a vella £ a remo, & chegandonos bem a elles para que nos conhecelsé, gritarão muyto alto por féis ou fete vezes, fem dizerem outra coufa, íènão, Senhor Deos mi- íericordia, com a qual nouidade fi- camos

Fernão CAlende -[Tinto,

cornos todosjtão cofuíõs& palmados q Qiiaíl ficamos como fora de nos, & mãdado muyto depreíía lacar os re- meyros da lanchara ao mar, os mete- mos todos detro, q erão vinte & três peflbas,quatorzePortuguefes, & no- ue efcrauos, os quais codos vinhaó taó disformes nas figuras dos roftos q metião medo,& tão fracos q nem a falia podião bem lançar pela boca. E defpois de ferem recolhidos & aga- falhados o milhor q então foy poP íiuel, lhe perguntamos pela caufa da fua dcfauentura: a q hum delles ref- pondeocom aíTaz de lagrimas, Se- nhores, a mim me chamão Fernão Gil porcalho,& efte olho q me vedes menos, me quebrarão os Aches na tranqueyra deMalaca,quãdo dafe- gunda vez vieraò fobre dom.Eíte-* não da Gama, o qual delèjando de me fazer mercê, por me ver tão po- bre como era naquelle tepo, me deu licença q foíTe a Maluco, onde prou- ueraaDeos.q não fora,ja q tal íuccef fo ania de ter a minha yda,porq def- pois q oarty do porto de Talãgaine, q he o furgidouro da noíTa fortaleza Ternate, auendoja vinte & três dias que nauegamos com tempos bonl- ças,& bem cõtentes de nòs,em hum junco que trazia mil bares de cra- uo,que valiaó mais de cem mil cru- zados,quiz a minha trifte vétura por muytos peccadosque contra Deos comety, que fendo Noroeíle fuefte com a ponta de Surobaya, na ilha da Iaoa,nosdeu hum tempo de Norte tão rijo,qcom a vaga dos mares cru- zados, & co grande efcarceo q o mar

leuacou, nos abrio ó ^irtco pela roda de proa; pelo qual nos foy forçado alijar o conucs,& corrédoaísi aqucl* la noite a aruore íeca,fem moftrar ao vento hum íb palmo de yella^orfe- feminiofriueis as refegas q amiúde o tempo de Çy lãnçaua, viemos com aílãz trabalho atê mcyo quarto dalua rendido^ em que fupitamertte le nos foy o junco fundo, (em deU Jefe faluaremmais q eftas vinte SC três peíTòas que nos aquy vedes, de cento & quareta& íè te que nellevi» nhamos. E haja quatorze dias q an- damos fobre eftespaos, fem em to-» dos elles comermos mais q hu cafre meu q nos falleceo,cõ q todos nos fu- fíctamosoko dias,& inda efta noite nos falleceraó dous Portuguefes que não quitemos comer,tédo d í íTo bem denecefsidade,porqíem duuida nos pareceo qoje ateamenham aeabaí- íemos co a vida eíles miferaueís tra-= balhos em que nos viamos.

CAT>. XXXI III

l^omo cheguey ao reyno de Tao

tom eíles perdidos & do mais

que ahj paflej.

Sfaz fufpéíòs êi pafmá- dos ficamos todos co q ouuimos a efte ho- me, vendo o trifte õc miíeraueieftadoaque

chegarão elle & feus cõpanheyros,<& naõ deixou cabe de nos efpãtar muy to ver o meyo por onde noíío Seííor por íua mifericordia os quiz faluar tão milagroíaméce, & lhe demos to- E z dos

Terigrinaçoès de dosporiíTomuytoslouuores3&osno terra maldita, & incapaz de poder

uos hoípedes confolamos, & arrima- mosfàzédolhea^llaschriftãs lembra ças q a noíía pobre capacidade então noseníinou. E também partimos elles dos veílidos que tinhamos,co q eíles ficarão algum tanto repairados naquella falta, & deitandoos nas ca* niasem qdo rmiamos, lhes fizemos os remédios que nos pareceo q lhes poderião aproueitar para repoufaré, porque elles,parece que por não dor mirem auia tanto tempo,vinhão tão aruoados das cabeias que cahião no chão com hús eftremecimientos de maneyra que por hua grande hora não tornauao ern íy. Daquy deita paragem nos fomos demandar a bar- ra de Pão, onde chegamos quaíi à meya noi te que furgimos na boca da barra dekonte de hua pouoaçjío pe- quena que fe dizia Campalarau, & como a menham foy clara, nos fo- mos a remo pelo rio acima até a ci- dade,^ feria daly pouco mais de húa legoa,onde achamos o Tomé Lobo, q,como dilTe, ahy reíidia por feitor do Capitão de M aiaea, a que entre- guey a fazenda q leuaua. E nefte dia nos fallecerão três Porcuguefes dos quatorze q achamos perdidos, hunj dos quais foy o -Fernão GilPorcalho Capitão do juco,& cinco moços Chri ftaós,os quais todos laçamos de noi- te ao mar,cò penedos atados nos peis & nos pefcoços paraque fe foíTem ao fundo,porq na cidade nolos não qui- íerão deixar enterrar, quãto To- mé Lobo lhe daua por iflb quarenta cruzados, dado por razão q ficaria a

criar coula algúa,por quãto aquelles clefutos náohiãolauados do muyto porco q tinhão comido, q era o mais grane & inorme peccado q quatos na vidafe podião imaginar: aos outros deites perdidos q ficarão viuos, aga- falhou o Tome Lobo,& os proueo a todos muyto abaftadaméte de tudo o q lhes foy neceíTario atè cóualecc* re>& fe ire para Malaca. Daly a aígús dias querédo eu íèguir minha viage para onde leuaua determinado,q era atèPatane, o Tomé Lobo mo não confintio,pedindome muyto q o não fizeííè,porq me affirmaua que fe não auia por feguro naquella terra, por lhe dizerem que hum Tuão Xerra- faõ, homem muyto principal nelía, tinha jurado de lhe por o fogo à ca- fa,para o queimar dentro quanta fazenda nella eftiueíTe, por dizer que em Malaca lhe tomara hum feitor do Capitão cinco mil cruzados em beijoim, & feda, & aguila, a muyto menos preço do que valia,& lhos pa- gara em roupa podre a como quiíè- ra, pelo q dos cinco mil cruzados de emprego, q em Malaca valião mais de dez mil, a fora o retorno de boas fazendas q de pudera trazer em q mõtaria quaíi outro tanto de ganho, não tirara mais q fòs fetecétos cruza- dos. E q ja por duas vezes o tinhão tentado com arroydo feytiço, ío a fim de elle íàyr forâv& o matarem na briga,pelo qual fendo cafo q focedef- fe algúa coufa daquellas de qfe te- mia, não feria mao acharme eu aly para faluar a fazenda que aly tinha,

porque

porq fc nao perdeíTe á mingoa,a que eu, defpois de lhe dar algíias rezoes por minha parte,q me elk náo quiz aceitar, dandomeíempre outras em contrario das que lhe eudaua, lhe vim em fim a dizer,q fendo caio cjue o mataífem,como elle dizia,a fim de lhe roubarem aquella fazenda, q on- de poderia eu elcapar cj me nao fizel* fem o mefmo? E que íe tinha aquel-» la noua por tão certa como me affir- maua,q porq deixaua yr aquelles on ze Portuguefes, ou porq nãofeem- barcauacom ellespara Malaca? a q refpondeo: Sabe Deos quão arrepen- dido eu eftou dií]b,mas ja q o eu nao fiz como dizeis, fazey vos agora ifto q vos eu peço, & iequeyro da parte do fenhor Capitão, aqué logo ey de efcreuer, & dar conta de todas eítas couías que paíTey com vofco, & elle vos náo ha de ter a bem deixardefme aquy íua fazcndâ,q não he tão pouca q não paffe de trinta mil cru- zados de emprego, & meus quafí ou- tros tãtos. Eu,védome afsí cófufo en- tre o requeriméto q me elle fazia pa- ra ficar,& o perigo q eu corria fe ficaf fe, nao meíabia determinar a qual deites dous eílremos me inclinaífe, pelo qual, defpoisde lançar minhas cótas,me íoy forcado por melhor re^ medio,vir a concerto elle porefta maneyra,q fe dentro de quinze.dias fènão auiaíTe para íe embarcar co- migo naquella lanchara para Pata- nè, com aTazenda feita em ouro 8c pcdraria,de que então auia na terra wuyta quantidade, afsi de húâ cou» fa como de outra,que cu me pudefíe

Femao Aícnde \ Tinto. ? j

yr linremsucs pnfa onde leuaua mi- nha derrota, o que eiie aceitou, 8c deita maneyra hcamos ambos bem auindos.

IAV. XXXV.

Como el I^ey de Tao foy morto,

&• quem o matou ^ a ra^ão por-

que, ç> do q então nosfocedeo

a Tome Lobo & a mim.

ISRipSãi Omè Lobo fe deu ran- ta preíia em vender afazenda,como quem fe temia do que lhe ti- nhaoccrtificado,& fez tão barato delia, que em menos de oito dias as caías eítauão defpeja- das de toda a roupa,& não ouerendo tomar pimenta,nem crauo, nem ou- tra d roga nenhúa que pudeííè fazer pejo, a trocou íbmente por ouro de Menancabo, ôc por: diamantes que ahy tinhao vindo nos jurupangos de Laue, & de Tanjampura, &por alguas pérolas de Borneo ôc Solor* E tendo ja quafi tudo arrecadado,' com tenção de nos embarcarmos ao outro dia, ordenou o demónio que aquella noite logo feguinte a-» çonteceíTe hum cafo ailãz pantofo, o qual foy que hum Coja Geinal Embaixador dei Rey de Borneo que auia ja três ou quatro annos q refidia na corte dei Rey de Pão, & era home muyto rico, matou a el Rey,pelo a- char fua molher, pelaqual cauía foy tamanha a reuolta na cidade, ôc cm todo o pouo,q não parecia coufa E 3 de to-

Terígrmaçoes de de homcSjfe não de todo o inferno a mais de quatro mil peflbas. E par-

junro; vendo então algús vadios & gente ociofa, defejofa de tais fuccef- fos como aquelles, que o tempo & a occaíiaó era entáo muyto accommo- dada para fazerem o que antes, co

tindonos logo daly, dentro de féis dias chegamos a Patane, onde fo- mos bem recebidos dos Portutfueíès que auia na terra, aos quais demos conta de tudo o que acontecera em\

temor do Rey não oufauão, fe ajun- , Paó,& do mao efíado em que físaua taraó nua grande companhia quafí a miferauel cidade,de que todos mo-

quinhentos ou Íeiícétos deites, & em três quadrilhas fe vieraó à feitoria on de pouíãua o Tome Lobo, & abal- roando as caías pot féis ou fete par- tes, nolas entrarão por força , por mais que as nos defendemos, & na defenfaõ delias foraó mortas da nof. fa parte onze peíToas, entre as quais foraó os três portuguefes q cu trou- xera comigo de Malaca, & o Tome Lobo eicapou com féis cutiladas, de hua das quais lhe derrubarão a face direita ate o pefcoço, de que efteue à morte, pelo que a ambos nosfoy forçado largarmoslhe a poufada co toda a fazenda que nélla auia, & re- colhermonos à lãchara.na qual prou- ue a Deos que efcapamos com mais cinco moços, & oyto marinheyros, porem da fazenda não efcapou nada, a qual em ouro & pedraria pafía- ua de cinquenta mil cruzados. Na lanchara nos deixamos eftar ate que foy menham com aíTaz de afflição, porem com boa vigia, para vermos o em que paraua a grande vnião que geralmente auia em todo o pouo, & vendo que hia o negocio cada vez para pior,ouuemos por milhor con- felho paíTarmonos daly para Pata- ne, que pormonos a riíco de nos a- cabarem aly de matar, como fizeraó

ftraraó pefarlhes muyto, & queren- do fazer fobre ifto algua coufa, mo- uidos fomente do zelo de bós Portu- guefes,fe foraó todos a cafa dei Rey, & fe lhe queixarão muyto dafcm razão que fe fizera ao Capitão de Malaca, & lhe pedirão licença para fe entregarem da fazenda que lhe era tomada, o que el Rey lhes con- cedeo leuemente, dizendo : Razão ne que façais como vos fazem,& que roubeis quem vos rouba,quãto mais ao Capitão de Malaca, aquém to- dos fois tão obrigados. Os Portu- gueíès todos lhe deraó muytas gra- ças por aquella mercê; ôc tornando/e para fuás cafas, aíTentaraó que fefi. zeíTe reprefa em toda a coufa que a- chaífem fer do reyno de Paó,ateque de todofe íatisfizeíTe aqueíla perda. E daly a noue dias fendo atufados q no rio de Calantão,q era daly dezoi- to legoas,efíauão três juncos da Chi- na muyto ricos,de mercadoresMoiw ros naturais do reyno de Paó, que tempo contrario fe vieraó aly.meter, ordenarão logo de armarem fobre elles. E embarcandofe oitenta Ppr- tuguefes dos trezétos que>ntãpauia na terra,em duas fuftas, & hum na- ujo redondo,bem aparelhados de to- das as coufas neceflarias â empreía q

leuauaó,

kuauãoy fe partirão daly a três dias com grande preíía, por fe temerem que Te foíTcm fentidos pelos Mouros da cerra deíTem auifo aos outros Mouros queelles hiãobufcar. Deitas três embarcações era Capitão mor hum Ioaõ Fernãdez Dabreu, natural da ilha da Madeyra,filho do amo dei Rey dom Ioaõ,que hia no nauio re- dondo, 8c leuaua comfigo quarenta íõldados,& das duas fuftas eraó Ca- pitães Lourenço de Góes, & Vafco Sermento íeuprimo,ambosnaturaes da cidade de Bragãça,& todos muy- to esforçados & práticos na milícia naual. Ao outro diafeguinte chega- rão cíles noíTos nauios ao rio de Ca- lantao, 8c vendo que cftauão furtos nelle os três juncos de que tiuerao nouas,os cometerão rauyto esforça- damente, & com quanto os de détro trabalharão quanto puderaó pelos defenderem, em fim não lhes apro- ueitou nada, porque em menos de Lua hora foraõ todos rendidos com morte de fetenta 8c quatro delles, 8c dos noíTos três fomente, mas ouue muy tos feridos. E não trato de pai* ticuíarizar aquy o que hús 8c outros fizeraó, por me parecer defneceíTa- rio,fomente direy o que me parece q faz mais ao cafo. Rendidos 8c toma- dos os três juncos,os noííos fe fizerão à vella,& fe íayrão do rio, leuãdo os juncos comíigo,porque ja nefte tépo toda a terra eftaua amotinada,<3c na- uegando daly paraPatane com bom vento, chegarão la ao outro dia qua- íi à vefpora, 8c furtos, faluaraó o por- to com grande fefbw 8c eftrondo de

Femao <£Adende*T**nto.

artilharia,a que os Mouros da terra não cinhão paciência. Ecom quanto erão de pazes Sc íe dauáo por noíTos amigos, codaúía trabalhar aõquanto foy pofsiuel, com peitas que derao a os regedores, ôc aos priuados deel Rey;para que fizeflcm com elle que nos acoimaííè o feito, 8c nos lançaíTe fora da terra, o que el Rey não quiz fazer,dizendo,que por nenhum cafo auia de quebrar as pazes que feusan- tepaífados tinhão feitascom Malaca, mas querédofe fazer terceiro,& me- ter a mão entre nos 8c os tomados, nos pidio que íatisfazendo os três Necodàs fenhorios cios juncos o que em Pão fe tomara ao Capitão de Malaca,lhes largafíem íiuremente as fuás embarcações, o que o ioao Fer- nandez Dabreu, & os mais Portu- guefes outorgarão pelo muyto deíè« jo que virão que el Rey tinha diílb, de que íe elle moílrou muyto con- tente^ lhes agardeceo aquella boa vontade com muytas palauras.E de- fia maneyrafe cobrarão os cinquen- ta mil cruzados que Pêro de Faria 8c Tome Lobo tinhaó perdidos, 8c os Portuguefes ficarão na terra cre- ditou nome honrofo, 8c muyto te- midos dos Mouros. E eíles três jun- cos que então fe tomarão,fe affirmon por dito dos que vinhãonelles,que ío em prata trazião duzentos mil taeis, que íaõ da noííà moeda tre- zentos mil cruzados, a fora outra muyta fazenda, deq vinhãobem carregados.

CAP,

■'Çâv.xxxyt

DehumtriHe cafoque na barra de Lugornos acontecem

ae

Vendo ja vinte & féis dias que eu eftaua a- quy em Patane acaba- do de auiar hua pouca de fazenda que viera da China para me tornar logo, che- gou hua fufta de Malaca, de que vi- nha por Capitão hum António de Paria de Soufa,o qual, por mandado de Pêro de Paria, vinha a fazer aly certo negocio com cl Rey, & aflèn- tar com elle de notro as pazes anti* guas que tinha com Malaca,&agra- decerlhe o bom tratamento que no feu reyno fazia aos Portuguefes, & outras coufas a efte modo de boa a- mizade,importantes ao tempo,& ao intereííe da mercancia,que na verda« de era o que mais fe pretendia que tudo,porem efta tenção vinha rebu- çada com hua carta a modo dfe em-í baixada,acompanhada de hum pre- fente de boas peças, mandadas em nome dei Rey noíTo Senhor, & â cu- fta de fua fazenda,como he cuftume fazerem os Capitães todos naquellas partes. Efte António de Faria trazia hus dez ou doze mil cruzados em roupas da índia que em Malaca lhe empreftaraó,as quais eraó de tão ma drg^ítaÒ naquella terra,que não auia peíloa que lhe prometeíTe nada por cilas, pelo que vendofe elle de todo defefperado de as poder gaitar, de-

igrinaçoh

car eípediente por qualquer via que foííè.poísiuel} & foy acõfelhado por algíís homes mais antiguosnaterra q a mandaífe a Lugor, que era hua ci- dade do reyno Siáo mais abaixo pa- ra o norte cem Jegoas, por fer porto rico,& de grande eícala, em que auia grande foma dejucos da ilha da iaoa, dos portos de Laue,Tanjampura, ia- para,Demaa,Panaruca,Sidayo, Paf- íaruão,Solor,& Borneo, que a troco de pedraria & ouro coftumauãoa comprar bem aquellas fazendas. An- tónio de Faria parecendolhe efte confelho,determinou de o fazer afsi Sc ordenando logo ahy na terra hua embarcação para a mandar, porque a Ma em que viera não eftaua para ifíò, fez feu feitor hum Chriftouão Borralho homem bem entendido no negocio da mercancia, xom o qual foraó dezaíTeis homes chatins,& foi- dados com fuás fazendas, parecen- dolhes que pelo menos fariaódehu íeis ou fete, afsi no que leuaíTem co- mo no que trouxeíTem, na qual yda, o pobre de mim acertou de fer hum dos. defta companhia. Partidos da- quy hum Sabbadopela menham, Sc nauegandofempreao longo da co- íla com ventos bonanças, chegamos a barra de Lugor a quinra feira fe- guinte pela menham. E furgindo na boca do rio,nos deixamos ahy eftar todo aquelle dia, enformandonos muyto miudamente do que conui- ' nha,aísi para a mercancia, como pa- ra a íègurança de noífas pefloas. E as nonas cjue ahy achamos foraó taó

tcrminoudeinuernaraly atélhebuf boas c-ue ri7 m°r tonô ta5

- J * ' p^ ??3Sí 3UC W veniaga efperatiamos

de

Femao Mendez Tinto.

de dobrar o dinbeyro quaíi féis ve- zes, & no mais auia fegurança para todos,com liberdade & franquia por todo acjuelle més de Setembro, con- forme ;io eftatuco do Rey de Sião, por íer o mes das Qumbayas dos Reys, E paraque fe ifto milhor en- tenda, he neceflario faberfe que em toda efta coitado Malayo,&por :dé- tro do fercáo domina hum grande Rey,que por titulo famoío fobre to- dos os outros fe chama Prechau Sa- leu,Emperador de todo o Sornau, q he hua prouincia de treze reynos a q vulgarméte chamamos Sião, ao qual faõ fogeitos,& pagaó páreas cadaan 410 catorze Reys pequenos, os quais porcoftume antigo eraó obrigados a irem peíToalmente todos os annos à cidade Odiaa metropoli defte im- pério Sornau,& reyno Sião, leuar ef- tas páreas que eraò obrigados pagar, & fazeremlhe a çumbaya, que era beijaremlhe o treçado que tinha na cinta. E porque efta cidade eftá cin- quenta legoas pela terra d entro,& as correntes do rio faó muyto grandes, pela qual razão fe acontecia iauer- narem eftes Reys muytas vezes, com muyta defpeía de fuás fazendas, informado o Prechau Rey de Sião d ifto por petição quê todos os cator- ze Reys lhe fizeraó,ouue por mu- darlhe efta fugeição taó graue nou- tra mais leue, & ordenou que daly por diante ouuefle nefta cidade de Lugor hum Viforrey, a que em fua lingoa chamão,Poyho, ao qual eftes catorze Reys de três em três annos viefíem peíToalmente dar óbedierw

?7

cia,como antes cnftumauão dar a el Rey,& pagaíTem então po» junto to- dasas páreas que cada hum deueíre de todos três annos, Sc que naquelle rnèsemqueellesvieíTemdar aquela Jaobediencia.osfranqueauaem fuás fazendas, 8c a todos os mais merca- dores que naquelle mès entraíTem Sc faiííem,afsi naturaescomo eftrangei- ros. E porque na conjunção em que aquy chegamos,como atras diíTe,era o tempo defta franquia, eraó tantos os mercadores que vinhao de todas as partes,que fe affírmaua ferem en- tradas nefta cidade paffante de mil & quinhentas embarcações de diuer- iàs partes com infinidade de fazédas ricas. E efta he a noua que achamos quando furgimos na boca do rio, a qual ficamos todos bem aluoroça- dos Sc contentes, Sc determinamos q tanto que vieíTe a viração entrarmos para dentro, poremquiza defauen- turapor noíTos peccados,que não vif

^emo4i^° Sue tant0 deíejauamos, porqH£ fendo quaíiàs dez horas, ef- tando ja para jantar,& com a amarra a pique para em acabando nos fa- zermos àvella,vimos~ vir de dentro do rio hum junco muyto grande co traquete, & mezena, 8c em empa- relhando com nofco furgio,hu pouco a balrauento donde nos eftauamos,ác tanto que foy-furto,conhecendo que éramos Portuguefes, Sc muyto pou- cos^ nos vio a embarcação taópe- quena,arriando da amarra,fe deixou defcayr fobre nos, Sc igualandofe co a noífa proa pela banda daftribordo nos jantou deuis arpeos talingados

em

'Peregrinações de

H

í

em duas cadeas de ferio muyto com- pridas com que nos atracou a bor- do- E como a ma embarcação era muy to grande, & a nofia muy to pe- quena, lhe ficamos metidos debaixo da tforja dos efcouués de proa. Sain- do*entaóda tolda, onde ate então ef- tiueraó efcondidos, obra de íetenta ou oitenta Mouros, entre os quais af- ilia algus Turcos de miftura, derao húa grande grita, &apos ella foraó tantas as pedras,oszargunchos, aslã- ças, & as chuças de arremefíb febre nòs,que parecia chuua quecahia do Ceo,com que logo em menos de híí credo,dos dezafleis Portuguefes que éramos, os doze foraó mortos com mais trinta & íeis moços & marinhey ros. Os quatro que efcapamos nos lançamos ao mar,onde fe afogou lo- go hum delles, & os três fomos ter a terra bem efcalaurados,& faindo por Lua vafa onde atolauamos ate a cin- tados metemos pelo mato. Os Mou- ros do íunco,entrando logo nanoíTa embarcaçaó,acabaraó inda delatar hus féis ou íete moços que no*ton- uès acharão feridos, íem a nenhum quererem dar vida . E metendo rio junco com amayorpreíTaquepude- raó toda a fazenda quanta acharão na embarcação, lhe nzeraó hum ró- bo,com que a meterão no fundo, EL largando á amarra & os arpeos da abalroa com que nos atracarão, fe íizeraó logo â vella,porque ar- lecearaõ poderem fer conhecidos,

CAT. XXXV 11

Do que púfpimos os três compa- nhejros de) pois. que nos mete- mos pelo mato dentro.

S três companheyros cj efcapamos daqlia defa- uentura, vendonos afsi feridos^ íèm remédio qenhum, nos pufemos todos a chorar,& darmos muytas bo fetadas em nòs,como homés deíafsi- fados,&pafmados,doque tínhamos vifto auia menos de meya hora, "& deita maneyra paííamos aquelle tri- ire dia. E vendo que a terra aly era alagadiça,& cheya de muytos lagar- tos & cobras,ouuemosque o melhor eonfelho era deixarmonos aly 'ficar também aquella noite, a qual pana- mos atolados na vafaatê os peitos, & ao outro dia, fendo ja menham clara nos fomos ao longo do rio arè hum efteiro pequeno, que nos não atreuemos a paíTar,afsi por íèr muyto fundo, como pela grande fomade lagartos que nelle vimos: & aly pai- famos também a noite com allaz de trabalho, no qual continuamos mais cinco dias,fem podermos yr atras adiãte,por fer tudo apaulado, &che- yo de grandes eruaçais, Ôc neíte tepo nos falleceo hnm dos companhey- ros,por nome Baftião Anriquez ho- mem muyto honrado & rico,& que na lanchara perdera oito mil Cruza- dos, Os outros dous que ficamos fo- mente,que éramos Chriílouão Bor- ralho ôc eu, nos pufemos a chorar à

borda

Fcmao Mcnde\ Tinto.

borda do rio encima do morto mal enterrado, & [a neíte tempo tao fra- cosque nem fallar podíamos, Sc com determinação de acabarmosaly eífas poucas horas que cuydauamosq nos ficauáo de vida. Ao outro dia,c|ue era o íètimo de noíTa deíaue!:ura,ja quafí foi pòíto vimos vir a remo pelo rioa- cima húa barcaça carregada de íàl,& perlongahdo de júto de nos,pidírnos de joelhos aos remeyros q nos quifef fem tomar, elles quando nos virão, pararão hum pouco,cos olhos poftos em nòs,como efpantados de nos ve- rem da maneyra que eftauamos em joelhos, ôc com as mãos leuantadas, como quem fazia oração,& Tem nos refponderem,fizera5 moftrade que- rerem íeguir feu caminho,a q ambos gritando em altas vozes, tornamos a pedir com muytas lagrimas que nos não deixaííem aly morrer. Ao tom deites noílbs brados íãhio de debai- xo do toldo húa molher ja de dias, que no afpeito & na grauidade de fua pelToa moftraua bem fer quem defc pois foubemos que era, a qual em nos vendo da maneyra que eftaua- mos,como quem feapiadaua de nos, & fe condohia de nofla defaueutu- ra,& das feridas que lhe moítramos, tomando hum pao na mão, fez che- gar a barcaça a terra, & por três ou quatro vezes deu nos marinheyros com elle,porque refufauã©. E faltan- do féis delles em terra nos tomarão ás coftas,& nos meterão dentro.Efía honrada molher em nos vendo afsi feridos, & com as camifas & calções enuoltos em lama Ôc em íàngue,nos

tf

mãdou logo launr com muytos bal- desde agoa, & dará cada hum íeu panno com q ue por então nos cubri- mos,& fazendonos aíTentar junto de fy, nos mandou trazer de comer, ôc ella meíma nolo pôs diante por fua mão, &nos diífe, comey vosoutros pobres eftrangeyros, & não vosdef- eoníoleys por vos verdes deíTa ma- neyra; porque aquy eftou eu, q fou molher & não tão velha que paííe de cinquenta annos, & ha menos de féis que me vy catiua & roubada de mais de cem mil cruzados que tinha de meu,& com três filhos mortos, ôc hum marido aquém queria ma>sq aos olhos com que o via, ôc todos al- íi pay como filhos, Ôc dous irmãos, Sc hum genro vy defpedaçadosnas trombas dos alifantes dei Rey de Sião,& vida çaníada ôc trifte coey todos eftes males" Ôc deígoítos,& ou- tros quaíi tamanhos,quais forão ver pela mefma maneyra três filhas don* zellas,& minha máy, Ôc meu pay3 Ôc trinrà ôc dous parentes meus fobri- nho« 3c primos, metidos em fornos acefos, dando tamanhos gritos que rompião o Ceo,paraque Deos os va- leíTe naquelle tormento tão infofrí- uel,mas forão meus peccados tama* nhos que cerrarão as orelhas à cle- mência infinita do Senhor de todos os fenhores,paraque não ouuiíTe eíta. petição que a mim parecia íèr jufía, -mas na verdade o que elle ordena ifc fo he o milhor. A ifto lhe refponde- mos nós que por peccados noíTos permitira. Deos vermonos daquella maneyra: a que ella? também com

muytas

Teregw

muytas lagrimas, que lhe não falta- iiap então aísi como a nós^diíTe, bom he fempre em voíías adueríidades juftifícardes os toques da mão do Se- nhor,porqne neíTa verdade -confefla- da de boca,& crida de cor3cão,com

' > J

conftácia firme & limpa, eítà muy tas vezes o premio de nofíbs trabalhos. E difcorrédo afsi por fua pratica, nos perguntou pela cauía da noíTa defa- tietura, & de que maneyra viéramos ter a aquelle miferauel eílado : nós lhe contamos então tudo o como paf fara,mas que não conhecêramos que gente era a que nos fizera aquillo, iabiamos a rezão porque no lo fize- ra. A iíto refponderão os feus, que aquelle junco grande que dizíamos era de hum Mouro Guzarate por no me Coja'Acem,q aquellamenham íayra do rio,& que hia carregado de Brafil para a riha Ainaó. A hon- rada dona,batendo então nos peitos, por final de grande efpãto,diíTe, que me matem,fe aísi não he,porque efíè Mouro que vos outros dizeis fe ga- baua publicamente aquém o queria ouuir, que da gerarão deíles homés de Malaca tinha mortos por alguas vezes húa grande foma, & que lhe queria tamanho mal que tinha pro- metido ao íèu Mafamede de matar inda outros tantos. Kós,efpantados de húa coufa tão noua,lhe refponde- mos, que lhe pediamos que nos dif- íeíTe que homem era aquelle,ou por- que dezia que nos queria tamanho mal: a que ella diíTe, que do porque não fabia mais que dizer elle que hu noííò grande Capitão por nomeEi?

lições efe

ror daSyliiein,lhe matara feupay, & dous irmãos, em húa nao que lhe tomara no e (Ire iro de Meca,vindt> de Iudaa para Dabul, E por todo o ca- minho nos foy cotando outras muy- tas particularidades do grande ódio que nos tinha aquelle Mouro,& do 5 em noííò vitupério contaua de nos.

QÂ<P. XXXV III.

Quem era eUa molher com quem

btâmoS)&- como nos mandou para

Tatane^ & c/o quefe^ nAntonio

de Faria Jabida a noua da nof>

fa perdição, & daf azeda

que lhe tomarão,

Artida eíla honrada molher daquy deite lugar onde nos acha» ra, íefoy à vella &a remo pelo rio acima obra de duas legoas,atè chegar a húa aldeã pequena,onde dormio aquella noite,& como ao outro dia foy me- nhamfepartiopara a cidade de Lu- gor que era adiante cinco legoas, à qual chegou quafi ao mcyo dia, <3c defembarcando em terra íefoy para fua cafa,& nosleuou configo, & com ella eftiuemos vinte ôc três dias muy to bem curados,& prouidos de tudo o neceííarib com muyta abaítançai Efta molher era viuua, & da geração honrada-?& fegundo defpois Coube* mos, fora molher do Xabandar de Preuedim,que o Patê de Lafaparà Rey de Quaijuão na ilha da Iaoa

matara

matara na cidade de Banchâ no an- uo de 1558. & ao tempo que nos a chouda maneyra que tenho cotado, vinha de hum junco feu que eíraua na barra carregado defal, & poríer grande,& não poder paíTar o banco, o defcarregaua pouco a pouco na- quella barcaça. PaíTados os vinte Ôc três dias que diíTe,em que prouue a noíTo Senhor que de todo conuale- cemos,& nos achamos em difpofíção para caminhar, nos encomendou el- Jaahum mercador Teu parente que hia para Patane, que era daly oiten- ta ôc cinco legoas, o qual nos meteo comfigo num ealaluz de remo em q elle mefmo hia. E nauegando por grande rio de agoa doce,que fe dizia Sumheehitão, chegamos daly a íete dias a Patane. E como António de Faria eítaua cos olhos longos efperã- do pornós,ou por recado da fua fa- zenda,tanto que nos vio, & lhe con- tamos o que paffaua,ficou todo tref- paíTado Tem nos poder Falar, por ef- paçodemaisdemeyahora. Ejane- ílc tempo os Portuguefes erão tãtos que não cabião nas cafas, porque da mayor parte delles leuaua fazenda a tnfte da lanchara; & afsi o cabedal q ella leuou paííaua de feíTenta mil cru- zados, de que a mayor parte era em prata amoedada para fe comprar ella ouro. António de Faria vendofe fem nenhum remedio,& cos feus do- ze mil cruzados que em Malaca lhe empreitarão roubados, querédoo ai- gús confolar nefta perda, lhes refpó- deo,que lhes confeíTaua que íè não atreuia tornar a Malaca a Yerorofto

Fcmao MendezThno. 30

aos léus acrédores, porque arreceaua queoquiídTcm.elles obrigar pelas eícrituras que lhes tinha feito a ihes pagar o que-lhes deuia,o que elle en- tão por nenhúa via podia fazer. Pelo que lhe parecia fer mais razão yr buf- carquem lhe tomara o feu, que dei- xar de pagar á quem lho empreitara. E logo publicamente perante todos fez juraméto nos Tantos Euãgelhos, ôc diíTeaque alem do que juraua,pro- metia também a> Deos de yr logo daly em bufea de quem lhe tomara Tua fazenda; o qual lha auia de pa- gar ao galanm, ou por bem, ou por maljinda que por bem ja entendia q não podia fer por nenhúa via, porq quem lhe matara dezaííeis Portu- guefès,& trinta ôc féis moços ôc ma- rinheyros Chriftãos,naó era razaó q paífaíTe taó leuemente fem algum caftigo,porque fe afsi não foííe,cada dia nos fariaó hua,& outra, ôc cento femelhantes a efta. Os circundantes todos lhe louuarão muyco aquella determinação, ôc fe lhe oíferecerao para aquella emprefã muytos homés mancebos,& bós foldados, Ôc. outros com empreftimo, de dinheyro para armar, &fe prouer do neceíTario. Elle aceitou entaó de feus amigos e- ftes offerecimentos que lhe fízerão, & com a mayor breuidadeque po- de fe fez preíí:es,& dentro de dezoito dias ajuntou cinquenta Ôc cinco fol- dados. Nefta yda foy também ne- ceíTario yr o pobre de mim, por me ver fem hum vintém de meu, ne quem mo deíle nem empréftaífe, Ôc deuer em Malaca mais de quinhen- tos

Peregrinações de

tos cruzados que algus amigos me ti- fada,não vinha tão bem prouido do

nhaô empreílado, os quais, comais outros tantos que tinha de meu, to* dos por meus peccados o perro me leuou na volta dos outros de q tenho contado, fem faluar de tudo quanto tinha de meu mais que a pobre pef- íòa)cõ.treszargunchadas, & húa pe- drada na cabeça,de que eftiue á mor- te por três ou quatro vezes, & ainda aquy em Patane me tirarão oflb antes que acabaíTe de farar delia. E Chriftouão Borralho meu còpanhey ro efteue ainda muyto pior que eu, de outras tantas feridas que també lhe deraõ em pago de dous mil Ôc quinhentos cruzados q na volta dos oucros aly lhe roubarão.

QAT. XXXIX.

Como António de Faria fe partio

para a ilha de Ainão em bufea do

Mouro Coja Acem, & do que

achou antes que chega f-

fe a cila.

Anto que António de Faria efteue de todo pre ftes, fe partio daquy de Patane Sábado no- ue de Mayo do anno de 1540. & fez feu caminho ao nor- noroefte via do reyno de Champaa, determinação de defeubrir nelle os portos & angras daquelIacofta,& ahy por qualquer via, de boa pilha- gem fe reformar dalguas coúfas de cjue yinha falto, porque como a fua íayda de Patane foy híi pouco aprek

neceífario que não-ouueííe myíler re fazeríe de muytas co.uíàs, principal- mente de mantimentos,& munições & de poluora. E auendo ja fete dias quevelejauamospor nofía denota ' ouuemos vifta de húa ilha que fe di« zia Pullo Condor em altura de oito grãos & hum terço da parte do nor* te,& quaíl noroefte fuefte com a bar- ra de Camboja, & rodeandoa por to- das as partes, defciibrimos ao rumo de lefte hum bom furgidouro que fe chamaua Bralapifaó, que demoraua da terra firme pouco mais de féis le- goas, no qual achamos hujuncode Lequios q hia para o reyno de Sião, com hum Embaixador do Nauta- quim de LindaUjPrincipe da ilha da Tofa,em altura de trinta ôc féis grãos, o qual em nos vendo fe fez logo à vella. António de Faria lhe mandou pelo Piloto Chim que leuaua hum recado de muytos comprimentos,de boa amizade, a que refpóderaó, que tempo viria em que elles íècómuni- cariao com nofco por amizade da ley verdadeyra do Deosda clernen* cia fem termo, que fua morte de- ra vida a todos os hornês com heran - ça perpetua na caía dos bós, porque afsi o tinhaó que auia de fer paíTado omeyodomeyodos tempos. Ecõ efta refpofta lhe mandarão trepa- do rico, co punho & bainha douro, mais vinte Ôc féis pérolas nua bo- ceta do mefmo feita como faleiro pe queno, de q António de Faria ficou aífaz magoado, por lhe nao poder contribuyr co que era rezáo, porque

jaao

ja ao tcpo q o Chim tornou co reca- do hiãp emmarados em diftancia de mais de húalegoa. Defembarcando .nós aquy nefta ilha,eítiuemos nella três dias fazédo noífa agoada, & pef- cando infinidade de fargos & corui- nas que nella auia, no fim dos quais fomos demandar a coita da terra fir- me,em buíca de hum rio que fe- cha- maua Pullo Cambim, que diuide ò fenhorio de Cambojado reyno de Champaà em altura dênoue grãos, & chegando a elle hum Domingo derradeyro dia de Mayo,foy o Pilo- to furgir três legoas por elle dentro, defronte de húa pouoaçao grande, q fechamauaCatimparu,na qual pa- cificamente, & por concerto de boa amizade eítiuemos doze dias, em q nos prouemos abaftadamente de to- do o neceílario. E'como António de Faria de íua natureza era muyto cu- riofo, trabalhou por faber deita gete que nações habitauáo o 'ferrão da- quella terra,& donde procedia a ori- gem daquelle grande rio, & elleslhe diíTeraóque a origem do rio proce- dia de hum lago que fe chamaua Pi- nator,quedemorauaa leite daquel- le mar duzentas & fefíènta legoas,no reyno de QuitÍruão,o qual lago eíla- ua cercado de grandes ferranias, & no delias ao longo da agoa auia trinta & oito pouoaçoés,das quais as treze fomente eraó grandes, & todas as mais muyto pequenas,mas quefô cm húa deitas grandes por nome Xincaleuauia hua tamanha mina douro, que fe affirmaua pelo dito dos moradores da terra,que fe tiraua

Fernão Mcnde^Pinto

49,

*>;■

cada dia delia hum bar & nieyó-.de^'-^ ouro,qnèpéla valia da noííà moeda vem a fèr por anno vinte &dous mi- lhões douro,na qual mina quatro fe- nhores tinháo parte, tão cubiçofos em tanta maneyra.que continuamé- te andauáo em guerras hús cos ou- tros, íobre qual delles a luiajeíe- nhorear toda, ôc que hum deites por nome Rajahitau tinha, no pátio das fuás caías em jarras metidas na terra ate o gargallo feifeentos bares dou- ro em pò, como o de Menancabo da ilha Qamatra, ôc que fe trezentos homés dos da noíTa nação o come- te/Tem com cem efpingardas, o>-e fem duuida nenhua fèrião íenhoies, delle. E que também em outra da- quellas pouoaçoés por nome Bua- quirim auia hua pedreyra de que fe tirauão muytos diamantes naifes,de roca velha,de muyto mor preço que os de Laue, ôc de Tanjampura na ilha de íaoa. £ fazendolhe Antó- nio de Faria outras muytas pregun- tasde coufas particulares, lhe diíTe- rão outras muytas coufas das aba- rrancas & fertilidade da terra que a^- uia por eíte rio acima tanto para cubicar, quão facis & pouco curtolas parece que íèraó de con- quiikr.

CAP.

Teregrínaçoes de

' ÇAT. XXXX.

Como daquy nos partimos para a

ilha de (t/linão, onde ama nonas

que eslava o (jfffiyro Coja

Acem^O* do que nos aco-

teceo no caminho.

Artidosnòs defte rio dePulloCambim,na- ue^amos ao longo da ceita do reyno de Champaaatè húa ba- nia que Te chamauaSa!eyjacau,de^ zaíTete legoas adiante para o norte, na qual entramos,& por não vermos ahy couía de que lançar mão, nos tornamos a fayr ja quaíi foi pofto, Jfem fazermos mais que ver & con- jtar os lugares que eftauão ao longo ldaagoa,que por todos eraó feis,cinr co pequenos como aldeãs, ôc hum q parecia de mais de mil caías, cerca- do de grande aruoredo,com muytas ribeyras de agoa doce que deciáo do alto da ferra, a qual lhe ficaua nas coitas da banda do Sul a modo de muro,& não tratamos então de fubir aella,por não amotinarmos a terra. Ao outro dia pela menham chega-» mosa hu rio que íe chamaua T.oo- bafoy,onde António de Faria furgio da banda de fora,por o Piloto fe não atreucr a entrar dentro, dizendo que nunca aly fora,né íabia o fundo que tinha. E eftando nos com tudo deba- tendo fobre enrrar ou não entrar ne- fíe rio,ouuemos vifta de hua grande vella que de mar em fora vinha de- mandar o porto; & aluoroçados nós

para a recebermos, com todas as cou" las neceífarias a nofíb officio & bom propofíto,aefperamosaísi furtos na- quelle lugar onde eftauamos, & per- longando ella por junto de nòs,a fal* uamos à Charachina (como naquel- las partes dizem) com noíla bandey- rade veniaga,que faõ as moftras ôc íinais de amizade que entre cftage- tefecuftumaofazeremfemelhant.es tempos. Os danao em vez de nos refponderem pelo mefmo modo,co- mo eíiaua em razão, parece que co- nhecendo que éramos Portuguefes,a quem não tinhãoboa vontade, nos moftraraó de cima do chapiteo,fallá do com pouca cortefíâ, otrafeyro de hum cafre,& fobre ifíb com muytos tangeres de trombetas & tambores & íinos derão húa grande grita & a- pupada a modo de defprezo ôc efc carneo,como na verdade então fa- zião de nós, de que António de Fa- ria fe moftrou aíTaz afrontado. E dandolhe tirar com hum berço, pa- ra ver fefallauão mais a propofito,' lhe refponderão com cinco pilouros, três de falcão,& os dous de camello, de que elle & todos os mais ficarão embaraçados. E tomando confelho fobre o que nefte cafo fe faria, fe af- Tentou q por então nos deixaífemos eftar afsi furtos aly onde -eftauamos, porque não era íifo cometer couíã tãoduuidofa, mas que como foíTe menham fefaberia que gente era, ôc que forças trazia,& que conforme ao que viííemos nos determinaríamos, o qual confelho pareceo bem afsi a Amónio de Faria como a todos os

mais.

Fernão Mendes: Tinto]

•\,

mais* E pondo recado & boa vigia no que coriuinha,nos deixamos eírar efperando pela menham; & âs duas horas defpois da meya noite enxer- gamos ao Orizonte do mar três cou- ías pretas rentes com a agoa, & cha- mamos logo o Capitão q a e (te tipo eftaua no conues deitado encima de híía capoeyra, ôc lhe moftramos o q viamos,o qual tanto q o vio també, fe determinou muyto depre(Ta,& bra dou por três ou quatro vezes, armas, a rmas,a q ue logo fe fatis fez em m uy- to breue efpaço.E tornandofe a rêti- ficarnoqinda então duuidoíamen- te tínhamos vifto, enxergamos cla- ramente ferem nauios de remo que vinhão anos. A gente fe pós logo toda em armas,& o Capitão a repar- tio pelas eftancias mais importantes, & parecendonos na calada do remo que podiao íer os inimigos do dia paffado, poraly na terra não auer coufa de que fe pudeííe ter receyo, diílè aos foldados,iíto,fenhores & ir*, mãos meus he ladrão qnos vem co- meter, por lhe parecer qnaó pode- mos fer mais q íeis ou fete,como or- dinariaméte cuílumamos a andar ne- ftas lorchas,& porq co nome de Chri ílo,poíTamos a noflb faluo, fazer ai- gua coufa,q feja boa,todosTe agache porque não enxerguem eiles de lon- ge peíTòa nenhúa, Ôc então veremos o que elles determinaõ ou querem com nofco,& as panellas de poluora eítejão muyto preftes,porque cilas & às cutilladas me parece q fe ha ifto de aueriguar, Ôc cada hum efeonda bem o murraó porq naò yej*gfogoa

& lhes pareça""que dormimos todos, o que tudo fe pós por obra afsi como elle o ordenou cõmuytaprudécia ôc acordo. Chegadas as três embarca- ções a pouco mais de tiro de beíla da noífalorcha, nos" rodearão por popa &porproa,& defpoisde ateremuy-

* to bem vifta fe tornarão a ajúcar-co- mo q de nouo fazião coníelho, em q gaitarão pouco mais ou rnenos hum quarto de hora,& após ifto fe diuidi- raõ em duas partes,asduas embarca-* coes mais pequenas por popa,& a chã pana,q era mayor,& trazia quafi to- da a força da géte, pela bãda daftri- bordo. Os inimigos entaõíubindo todos jútarnente a grade preí?a,cada hu pela partetq lhe cabia, em menos de credo forao mais de quarenta détro nanoíTa lorcha.Antonío de Fa- ria fahio entaó do toldo onde eiraua

•eõobra de quaréta íbldados,. & bra* dando por Santiago,deú nelles tã- to impeto Sc esforço,q em muyto pe queno eípaço foraó quaíi todos mor tos,& acudindo muytas panellas de poluora íbbre osq ellauaô a bordo nas três embarcaçoêsjos acabarão de axorar de todo, ôc lançalos todos ao mar,& faltado eíte aluoroço algús dos noílos íbldados nas fuás embar- cações, lhas tomarão todas três, de maney ra q prouue a N. Senhor q tu- do a noífo faluo nos. ficou nas maõs. Dos inimigos q fe lãçaraó na agoa,íè tomarão cinco qeítauao aindaviuos^ dos quais foy hum o cafre que nos moítrara o trafeyro,& os outros eraõ hum Turco,& dous Aches, Ôc o Ca- pitão do juco q fe chamaua Similau,

:'

Terigrinaçoh de grande co%ro,& inimigo noíTo,os meu fenhor,mas permitio Deos que

quais António de Faria mandou lo- go meter a tormento, para faber dei- les que gente erão, & donde vinhão, ou que nos queriaój os Aches &o Xureorefpóderaó muyto fora de to- da a razão,& querendo també guin- dar o cafre para lhe darem tratos,que ja nefte tempo eftaua atado,elle cho- rando có grandes vrrosdiíTe que lhe não fizeíicm mal que era Chnftão como qualquer de nós, Sc q Cem tra- tos diria toda a verdade. António de Faria o mãdou então defatar & o che gou para junto de íy, Sc lhe mandou darhúacofta de bizcoito& hua vez de vinho. E afagandoo compalauras brandasjlhe rogou que lhe deícubrif fe toda a verdade pois era Chriftão como dezia, a q elle refpondeovfe o

pagaíTe o que tinha feito. António de Faria, vendo o que lhe diíTe efte mo- ç^o cafre, o qual lhe affirmara por muytas vezes q toda a gente de pe- leja o perro aly trouxera comfígo, & q no junco não ficarão mais q quaré- ta marinheyros Chins, determinou de fe aproueitar daquelle fucceíl fo. E defpois de fazer dar a morte ao Similau Sc aos outros feuscópanhey- ros,qfoycõ lhes mandar lançares miolos fora hua tranca, afsi como elle* fizera em Liampoo a Gafpar de Mello Sc aos outros Portuguefes, fe embarcou logo trinta foldados no batel Sc nas machuas em q os inimi- gos viefao,& com conjunção de ma- ré Sc de bom veto, em menos de hua

hora chegou ao juco que eftaua fur- eu nao diíTer a voíTa meree,nao aja q to dentro no rio hua legoa adiante fou eííe que difle. A mim íenhor me > donde nos eftauamos,* arremetedo ehamao BaftiaoA fuy catiuo de Gaf- a el)e fem eftródo degrica nenhúa fe

par de Mello, q eííe perro q ahy.eftá atado matou agora faz dous annos em Liápoo mais vinte & feis Por- tuguefes q elle trazia comfígo na fua nao. António de Faria dando a ifto hum grande grito a modo de eípan- to, diííe, tá, tà, tà, não quero íaber mais,efíeheoperro do Similau que matou teu fenhor? fy, refpódeo elle, o q tabem agora quifera fazer a vo£ fa mercê, porq lhe pareceo que não poderíeis termais qatê féis ou fete, &poTÍfíb feembarcou afsi tãode- preíTa,có determinação,como elle di zia,de vos tomar a todos às mãos, Sc viuos vos mandar lançar os miolos fora com hm tranca, como fizera a

fenhoreou do chapiteo de popa, dó. de fós quatro panellas de poluora que lhe lançou no conués,onde a ca- nalha eftaua deitada,os fez lançar to- dos ao mar,de que morrerão dez ou doze, Sc os mais por andarem bra- dando na agoaque fe afogauão, mã- dou António de Faria q os recolhef- fem,por ferem neceífarios para a ma reaçlo do junco q era muyto grade, Sc muyto alterofo,E por efta via,q af- íi paííou na verdade, prouue a noflb Senhor por juftojuizo de fuadiuina juftiça q a foberba defte perro foífe o miniftro q nelle fizeííe a execução do caftigo de íêus males,paraq a mãos d e Portuguefes pagaíTe o que lhes tinha

feito.

Femao Mcnde^Pinto. 42

feito.ía quando ifto acabou de fe có» da terra cbamão Tinacoreu, & os

ncluyr era quali menhã, ôc fazcdoíe então inuétayro de toda a prefa,fe a- charaó trinta Sc íeis mil taeis em pra- ta de lapão, que da noiía moeda a razão de íeis toftaes por tael fazem cinquenta & quatro mil cruzados, a fora outra muyta forte de boas fa- zendas, a que então fe não pós preço por não dar o tempo lugar para auer aly mais detença, por eitarja a ter- ia, coda amotinada, de apercebida de mtiytas íangadas de fogo, pelo que

noflòsa varella,ihe pareceo bem por confelho de algus entrar dentro nel» le,para ahy tomar informação de ai» gúas couias que defejaua labcr,& pa- ra também ver feachaua ahynouas do Coja A cem q lua buícar, porque todos os juncos de Sião,& de toda a coita do Malayo q nauegauão para a China, cuílumauão fazer fuás efcal- las nefte rio,& ás vezes vendem bem fuás fazendas a troco de ouro,& Ca»; Jambaa}& marfim, de que em todo

foy neceíTario fairle logo António 9 eftcreyno ha muyto grande quanti-1 de Faria daly donde eítaua, & fa- dade. E furgindo da barra para den» zerfe a veila, ôc partirfe com muyta tro defronte de hua pouoaçáo peque- preíía na que íè dezia Taiquilleu, nos vie»

rao logo mnytos paraoos de refreíco a bordo,os quais vedo cj éramos gecc nouaq elles ally nunca tinhão vido» ficarão muyco efpatados, dizédo hus para os outros, grande nouidads cle- ue fer efta q nos Deos agora vi fita, ôc queira elle por fua bondade qnao feja cita nação barbada daquelies cj poríèu proueito ôc intereíTe efpião a terra como mercadores, ôc defpoisa ialteão como ladroes, acolhamonos ao mato, antes q as faifeas deites ti-* çoés branqueados no rofto com a al- iiura da cinza que trazem por cima, queimem as cafas em q viuemos, ôc abrafem os cãpos de noíTas lauouras,' como tem por cuítume nas terras lheas,a que outros refpondera5,não íèja afsijaquepor noíTos peccados os temos das portas a dentro, nãor entendão de nos que como inimigos nos receamos delles,porq maisdepref fa fe declararão com noíco,mas comi F* fembran*

CAT. xxxxr.

Como oJnfonio de Faria chegou ao rio de Tinacoreu^ a que os nef- fos cbamão Varcúa^ <& da infor- mação que daquelle rejno íbe demo bus mercadores,

Eílerio de Toobafoy fe partio António de Faria hua quarta fey» ra pela menham vef- pora do corpo de Deos do anno de 1 5 4 o. E fez feu cami- nho ao longo da cofta do reyno Champaa, pela não eígarrar cos ve- tos leites, que o mais do tempo cur» faó naquelle clima muyto tempefc tuoíbs, principalmente nas conjun- ções das luas nonas ôc cheyasj ôc logo à fefta feira íeguinte fendo tanto a- uance.co.moo rio a que os nacuraes

Terígrlnaçoes de fembrante alegre, & palauras bran- fa6 pouos de getes muy to ricas. Ve-

das lhe perguntemos o que querem, porque fabida a verdade delles a ef- creuamos logo ao Hoyaa Paquir a Congrauonde agora eílà. António de Faria, fingindo que os não enten- dia,indaqna embarcarão a uia muy- rosinterpretesjosrecebeo com bom gafalhado, & comprandolhe o refref co q traziao,lho mandou pagara co- mo elles quiferão,de que íe elles me- ftraraó muyto fatisfei tos. E pergun- tandolhe elles donde era, ou o que queria,lhe diíTe elle, q era do reyno de Sião do bairro dos eítrãgeyros de Tanauçarim,& q hia de vemagaco- mo mercador q era para a ilha dos Lequios a fazer fua fazenda, & que não entrara aly a mais q a faber de hu mercador feu amigo que fe cha- maua Coja Acem q também para la hia,fe eraja paíTado adiante, peíoq logo fe queria tornar, afsi por não perdera mouçao, como por também ter entendido q não podia aly véder

o que leuaua. Ao que elles reíponde- ráo,dizes verdade, porque aquyne- ík aldeã não hia mais que redes & páraosdepefcar,com que pobremé- te nos luftentamos,porem fe tu fores por efte rio acima â cidade de Pilau- cacem onde eftà el Rey, nos re fegu- rauamosqem menos de cinco dias venderas dez juncos deííes carrega- dos de todas as fazendas que trou- xeras por muyto ricas que foraó,por- que ha la mercadores muyto groíTos* q tratão por cáfilas dealifantes, ôc de bois,& de camellos para toda a terra dos Lauhòs,& Pafiiaasjfc Gueos,que

do António de Faria a matéria diípo fta para fe informar do q defejaua ia- ber,os eíteue inquirindo muyto miu- damente, a q algus d elles, q parecião de mais autoridade,refpÓdcrão muy to a propoíito,dizendo,efíe rio em q agora eflàs furto fe chama Tinaco- rey>a qja algus antiguaméte chama- rão Taraulachim,q quer dizer,maíla farta,nome q com muyta razão lhe foy poíto,fegundo os antigos inda a- gora nos contão,o qual todo afsi,co- mo o vès deite próprio fundo ôc lar- gura,chegaatèMoncalor,q he húa ierra daquy oitenta legoas, ôc dahy para diante he muyto mais largo, mas tem menos fundo, ôc em âlgúas partes tem campos baixos ôc alaga- diços, nos quais ha infinidade de°a- ues que cobrem toda a terra, ôc faó em tanta quantidade, que por ref- peito delias fe defpouoou agora faz quarenta &dousannos todo o rey- no dos Chintaleuhos, que era de oi- to dias de caminho. Mas paliada e- fta terra das aues, fe entra em outra muyto mais agrefte, ôc de grandes ferranias, onde ha outros muytos a- nimaes muyto piores inda q as aues como íaó alifantes, badas, Iicés,por- cos,bufaros, ôc gado vacum em tan- ta quantidade,que coufa nenhúa que os homés cultiuem para remédio de fua vida lhe deixão em pè, fem fe lhepoder tolher por nenhua via. E no meyo.de toda efla terra, ou rey- no, comoja foy antiguamente, eira hum grande lago, a que os naturaes. da terra chamio Cunebetee, & ou- tros

Fernão Mem

tros o nomeão por do Chiammay, do qual procede efte rio com outros três mais que regáo muyto grande quantidade deita terra,o qual lago,fe gtmdo affirmão oscj efereueraó del- ky.em em roda feífenta jaós, de três legoas cada jão, ao longo do qual ha muytas minas de prata, cobre, efta- nho, & chumbo, de que continua- mente íe tira muyta quantidade de- ftes metais q de veniaga leuao mer- cadores em cáfilas de alifantes & ba- das aos reynosde Sornau, que he o de Sião, Pafsiloco, Sauady, Tangú, Prom,Calaminhan,& outras prouin- cias que pelo fertão deíla coita de dous &c três meies de caminho eftáo diuididas em fenhorios & reynosde gentes brancas,de baças, ôc de outras mais pretas. E em retorno deitas fa- zendas fe traz muyto ouro,& d i ama- res^ rubis. £ perguntados fe tinhão eiras gentes armas, refponderaõ que n;.o tinhao outras fenãoíbmétepaos toftados,& crifes de dous palmos de corte; ôc também diíTeraó que fe po- dia la yr por aquelle rio em dous me* fesaté dous &meyo de caminho, & ifto por refpeito das agoas que de- dão com muyto Ímpeto a mayor parte do anno,porem que à vinda fe vinha em oito ate dez dias. E após eftas preguntas lhe fez António de Faria outras muytas, a que elles ref- ponderaõ outras muytas coufasda- quella terra, aííaz merecedoras de qualquer grande efprito defejar de fe empregar nellas,& quiçá de muy- to mór proueito 5c menos cufto, afsi de fangue como de tudo o mais,do q

'into. 4J

he ti,d j o da índia, em que tanto ca- bedal fe tem metido atè gora.

CAT. XX XXII.

Do caminho que António de Fa- ria fez indo demandar a ilha de A imo, &■ do que lhe aconteceo nelle.

Quarta feira feguin- te nos faimos logo de- ite rio da varella por nome Tinaçoreu , Ôc ao piloto pareceo bem yr demãdar Pullo Champeiloo, que he húailhadefpouoada que eítá na boca da enfeada da Cauchenchina emquatorze grãos & hum terço da banda do norte. E chegando a ella ancoramos em húa angra de bom íur gidouro,onde defpcis que eftiuemos três dias fazendonos preftes, ôc pon- do a artilharia no modo conueniente anofíbpropoíito,nos partimos via da ilha de Aináo, parecendo a An* tonio de Faria que ahy achaíTe o Co- ja Acem que andaua bufeando. E chegando a viíla do morro de Pullo> Capas, que he a primeyra moítra da ponta dailha,náo fez nefte dia mais que chegarfe bem a terra para di- ^uifaros rios & portos daquella co- íla, & ver que entradas tinhão. E tanto que foy nojte, porque a lor-j cha em q viera de Patane fazia muy-t ta agoa, ordenou por parecer de toa- dos osloldados, q antes de bulirem outra nenhua couta fe paílaíTe a outra melhor embarcarão, o que logo foy V 5 feicoa

■eregrmaçoes de

feito. E chegando a hum rio que ao pór do foi vimos ao rumo de Lefte, mandou furgir hua legoa ao mar dei* le,porq o junco em q vinha era gra- de^ demandaua muyto fundo,& íè temia dos muytos baixos que todo aquelle dia tinhamos vifto, & man- dou a Chriftouão Borralho q foíTe na lorcha cos íeus quatorze Toldados por dentro do rio, õc viíTe que fogos erãoos q defronte apareciao, o qual íè partio logo fem fazer mais detéça, & indo ja mais de hua legoa pelo rio dentro, foy dar de rofto com hua companhia de quaréta juncos muy- to grades & alterofòs de duas & três gauias cada hum,& por le temer c/ue foííem da armada do Mandarim,de que ja tinhamos alguas atoardas,íur- gio hum pouco à terra delles, & co- mo a rnarè começou a encher, que feria ja quaíi meya noite, lefiou a a- marra muyto caladamente,& paíTou adiante para onde tinha viftosos fo- gos, de que a mayor parte ja nefte tempo erão apagados, & não auia mais que dous ou três que de quan- do em quando apareciao os quais lhe feruião de guia. E continuan- do por efta ordem feu caminho, foy dar nua grandifsima quantidade de navios grandes & pequenos, que fe- gundo o efmo de algús, ferião mais de duas mil yellas, Õc paílando com a calada do remo por entre elles,che- gou ao lugar, que era hua pouoação de mais de dez mil vezinhos, cerca- da de muro de tijolo com fuás tor- res 8c baluartes ao noíTo modo, com barbacam, & duas cauas de agoa ao

redor, Aquy dos quatorze foldados q hião na lorcha, defembarcaraó os cinco em terra, com mais dous Chins da efquipação que deixarão em refes fuás molheres no junco,& correrão o lugar todo por fora em roda, em q gaitarão quaíi três horas, fem auer nunca fentimento delles, & tornan. dofe a embarcar, fe fayrão a remo õc à vella, fem rumor ou rebuliço al- gum,por fe temerem que fe ahy qui- leíTem bulir.com algua couíà,nenhu delles efeaparia, Saydos do rio acha- rão na barra hum junco furto que lhts pareceo fer vella da outra cofia, a qual auia pouco que tinha furgi- do,& chegados onde António de Fa- ria eftaua, o informarão do que ti- nhão vifto, ôc da grofía armada que eftaua dentro no rio,& do junco que acharão furto na barra, dizendolhe muytas vezes que quiçá poderia fer aquelle o perro do Coja Acem q elle bufeaua, com a qual noua elle ficou tão aluoroçado, q fem mais efperar hum momento, íargandoa amarra com que eftaua furto, fe fez à vella, dizendo que o feu coração lhe dizia que fem duuida nenhua era aquelle, & que a iflò poria a cabeça, & q fen- do aquelle,nos certificaua,que aueria por bem empregado morrer na de- manda a troco de fe vingar de quem tanto mal lhe fizera, õc que à ley de bom homem juraua que o não dezia pelos feus doze mil cruzados, que ja lhe não lembrauão, fe não pelos quatorze Portugueíes q o perro lhe tinha mortos. •£ chegando á vifta do junco, mandou que a lorcha fe paf-

faíTe

Fcrnto Mendes Tinto,

faffe da outra banda, porq abalroaf- fem ambos juntamente, & que nin- auem defparafle nenhum tiro de fo- go, porque não fentiflem os juncos da armada que eftauão dentro no rio o tom de artilharia, porque acu- di rião a ver o que era. Tanto que as noites embarcações chegarão ao lu- gar onde eftaua furto o juco,ellc foy logo abalroado fem nenhúa detença, ^faltando dentro vinte Toldados fe fenhoreararão delle fem contradição algua,& a mor parte da gente delie fe lançou ao mar. Algús dos inimigos que eráo de mais animo, defpois de cornarem em fy,quiferaó fazer rofto aos noílbs, porem António de Faria fe lançou logo dentro muyto depref- fa com mais outros vinte foldados que tinha contigo, & dando Santia- go nelles,lhes derrubou mais de trin- ta,&osque ficarão viuos que fe ti- nhão lançado ao mar, mandou que os tomaíièm?porque lhe eraõ necef- iarios para a efquipaçao. E defejan- do faber que gente era,& donde vi- nhão,mandou meter hús quatro del- les a tormento, dos quais os dous fe deixarão morrer emperradameme, fem quererem confefíar nenhua cou- fa. E tomando hum moço pequeno para lhe fazerem o mefmo, hum ve- lho que jazia ahy deitado q erafeu pay,bradou rijo chorando que o ou- uiíTem antes que fizeffem mal aquel le moço, António de Faria mandou então parar os miniftrosdacxecu- ção,&lhediíTe que diíTeíTe o que qui feire,mas que foffc verdade, porque felheminciíTe,foubeíre certo que a

x- 44

elle & ao filho auia de mandar lan- çar viuos ao mar, & le lhe fallaíTe verdade lhe prometia de os mandar por a ambos em terra liuremente, toda a fazenda que por íeu juramé- to diíTcíTe que era fua. A que o Mou- ro refpondeo, aceito fenhoreíla pro- meffa íobre tua palaurajndaque efte officio em que agora andas, não he muyto conforme â ley Chriftam q no baucifmo profeífafte, de que An- tónio de Faria ficou tão atalhado q não íoube q lhe refpondeífe,& man- dandoo chegar para junto de fy o in- quino com brandura Ôc afabilidade, & fem nenhum ameaço.

QAT. XX XXI 11

Troque eíle homem refpondeo às perguntas que íhefe^iAntomo deFaria^ ç> do maisq ahy acontece o.

Hegado efte home ju- tode António de Fa- ria,vendo elle que era bracocomo qualquer denós,lhe perguntou fe era Turco ou Parílo, ao q elle ref- pondeo que não, mas que era Chri- irão, natural de monte Sinay, onde eftaua o corpo da bemauenturada fanta Caterina,a ifto lhe replicou An tonio de Faria, que pois era Chriftão como dezia, como não andaua entre Chriftãos, a que elle refpondeo q era mercador, & de boa progénie, por nome Tome Moftágue, &que cita- do furto comhúa naofiw no porto F4 ~" de

*Perigrindçoes de de Iudaa no > anno de 1558. o Solei- furto em Cincaapura, o Quiay Tai

mão BaxàViforrey do Cayro lha mandara tomar, como fizera a mais outras fete, para trazerem mantimé- íos& munições parafornimento da armada das fe0enta galês em que vi- nha por mandado do Turco, para refíituyro Solrao Baudur no reyno de Cambava, de que o Mogor na- q uelle tempo o tinha defapoiTado, & lançar os Portuguefes fora da índia, &que vindo ellena mefma nao pa- ra a beneficiar & arrecadar o íèu fre- te que lhe tinhão prometido,os Tur- cos, alem de lhe mentirem em tudo comofempre coítumão, lhe toma- rão Tua molher,& húa filha pequena que trazia comíigo,& perante elle as deshonraraó publicamente, & porq hum filho feu,chorando fe lhes quei xou deite grande mal, lho lançarão viuo ao mar, atado de pees & de maos,& a elle meterão em ferros, & lhe dauão todos os dias muy tos açou- tes, & lhe tomarão fua fazenda, que eraò mais de féis mil cruzados,dize- do,que não era licito lograr beés de Deos,fenão os MaíToleymoés, juftos

jaó fenhor daquelíe junco matara cp mais vinte & íeis Portuguefes,& que a elle por íer bombardeyro dera a vida,& o trazia comílgo por feu Gó- deítabre. A que António de Faria, dando hum grande brado,& batédo com a mão na tefta,a modo de eípã- to,difTe,ó valhame Deos,ó valhame Deos,parece que hefonho ifto que ouço,& virandofe para os foldados cj eítauão à roda, lhes contou todo o dif curfo da vida daquelíe Quiay Tai- jão,& lhe afflrmou que por alguas ve zes tinha mortos em embarcações defencaminhadas que achara pelo mar,& com pouca força, mais de Portuguefes,& roubados paflante de cem mil cruzados, & que ainda que o feu nome era o que aquelle Arme- nio dizia Quiay Taijão, defpois que emCincaapura matara Chriítouão Sardinha,íe nomeaua, por vamgío- ria do q fizera, o Capitão Sardinha, & perguntando ao Arménio porel- le,ou onde eftaua,difTe que eftaua ef« condido na proa do junco no payol das amarras,muyto ferido,com mais

& fantos afsi como elles; & porq ne- , outros féis ou fete. António de Faria fte meyo tempo lhe falecerão a mo- fe lenantou logo com muyta preffa,

lher & a filha, elle como defefperado fe lançara húa noite ao mar na bar- ra de Diu,com aquelle moço feu fl- lho,donde por terra fora ter a C,ur- rate,& dahy fe viera ter a Malaca em húa nao de Garcia de Saa Capitão de Baçaimjdonde por mandado, de Efteuão da Gama fora à China com Chriftouão Sardinha, que fora feitor

& fe foy ao lugar onde o perro efta- ua,& os mais dos foldados fe foraõ trás elle, & abrindo o efcotilhão do payol para ver era verdade o que o Arménio diíTera, o perro com os féis que com elle eítauão fe fayrão por outro eícotiíhão que eítaua mais abaixo,& feitos aamoucos arreme- terão aos noífos,q paflauão de trinta,

de Maluco^ qual eftando húa noite -a fçra -outros quarenta moços^ & de

noua

henúo £Mendc2^Pinto\ ^ 4//ftP

nouofe tornou a trauar a briga de & feííenta & duas corjas de roupa

tal mancyra que em pouco mais de trcs credos que os noííòs os acabarão de matar,elles nos matarão dous Por tugiiefes, ôc íete moços, & ferirão .mais de vinte, &o Capitão António de Faria íícou com duas cutiladas na cabeça,& hua num braço de q efteue nuivco maltratado. Acabado eíte deítroço,& deípois de ferem curados todos os feridos,que íèria ja quaíí ás dez horas, fe mandou fazer à vella por íê temer dos quarenta juncos da armada que eftauão dentro no rio,& afaítandonos bem da terra, fomos íurgir ja quaíí noite na outra coita da Cauchenchina,onde fefez inuentai- ro do que trazia o junco deite ladraó & fe acharão quinhentos bares de pi menta, de cinquenta quintais o bar, & fe (Tenta de fandalos, & quaréta de nóz & maça,& oitenta de eftanho,& trinta de marfim, & doze de cera, & cinco de aguila fina,o que tudo, pela valia da terra, podia montar até íejf- lenta mil cruzados, afora hum ca- mello,& quatro falcões, & treze ber- ços de metal,da qual artilharia a ma- yor parte fora nofía, que eíte Mouro tinha roubado na nao de Chriítouão Sardinha, & no júco de loão de Oli- ueyra,& no nauio de Bertolameu de Matos. E acharaõfe mais três arcas _encouradas,com muytas colchas & veftidos de Portuguefes, ôc hum pra- to de prata dagoa ás mãos,dourado, com feu gomil & faleyroda mefma maneyra,& vinte & duascolheres,& três caíliçaes, & cinco copos doura- dos,^ çinqijenja <&QÍtp cfpjngardas,

de Bengala, o qual mouel todo fora de Portuguefes, & dezoito quintais de poluora,& noue crianças de íeis a tèoitoannos,todos com bragas nas pernas,& algemas nas mãos,& taisq era laftima velos da maneyra q efta- uáo, porque não traziao mais que as pelles fomente pegadas nos oíTos.

CAT. XXXXUU.*1*****

Como António de Faria chegou a

bahia de Camojyondefefaz a

pef caria das pérolas dei .

5^7 da (Jorna.

O outro dia á tarde fe partio António de Fa- ria daquelle lugar on- de eílawa furto,& tor- nou a demandar a co- fta de Ainão. E bordejando aquelle dia & a noite feguinte ao longo delia por fundo de vinte ôc cinco ate trinta braças,foy amanhecer no meyo de húa grande bahia onde andauão aU guas barcaças peícando aljofre, & não íâbendo determinar o caminho que daquy leuaria,gaír.ou toda aquel la menham em fe aconíelhar nefte caíb,em que ouue pareceres muyto diueríos,& opiniões muyto differen- tes,porque a hús parecia bem que íe tomaflem as barcaças que andauão peícando o aljofre,outros dizião que não,mas queíeouuelTem comeilas por via de reígate, porq a troco das muytas pérolas que aly auia, podia bem desbaratar a mayor parte da ta*

zenda

^Peregrinações ae

zendaqueleuãuà'. Ecõncluydo por Cauchenchina ", não podião andar

fim de todos eftes vários pareceres, no milhor & mais feguro, mandou leuantar bandeyra de veniaga ao cu- fíume da China, pelo que logo yie- rão da terra duas lanteaas, que faó co mo furtas com muy to refrefco, & os c]ue vinhão nellas, defpois de fazeré iiiasfaluas,entraraõ dentro no junco grande em que vinha António de Faria,porem vendo nelle gente que ate então nunca aly tinhão vifto,fica- Tao muyto efpantados, & pergunta- do q homés eramos,ou q queríamos, lhes foy refpódidoque éramos mer- cadores naturais do reyno de Sião,& que vínhamos aly a fazer fazenda elles,fe para iíTo nos deflem licencia que hum homem velho que parecia de mais autoridade, refpondeo que fy,masqueaquelle lugar onde efta- Uamos não era o onde ella fe fazia, fe não outro porto mais adiante que fe chamaua Guamboy, porque nelle efíaua a cafa do contrato da gente eftrangevra que a elle vinha, como em Cantão, & no Chincheo, & La- mau,& Comhay,& Sumbor,&Liam

Í>oo,& outras cidades que eftauão ao ongo domar para defembarcaçao dosnauegantesque vinhão de fora, pelo qual lhe aconfelhauão como a cabeça dos membros que trazia de- baixo do feu gouerno,que logo fe fof fedaly, porque como aquelle lugar nãoferuiade mais que depefearia de pérolas para o tifouro da cafa do filho do Sol, na qual por regimento do Tutão de Comhay,que era o fu- prerno Gouernador de toda aquella

mais que fós aquelias barcaças que para iílò eftauão determinadas, todo o outro nauio q fe achaua aly mais, era logo por pena de juftiça queima- do com toda a gente que nelle vi- nha. E pois elle era eftrangeyro, & não fabia o curtume & as leys daquel laterra,oauifauão para quefefoíle logo antes que vieífe o Mandarim da armada, q não podia tardar três até quatro dias,o qual eftaua toman- do mantimentos em hum lugar daly Fete legoas por nome Buhaquirim. E perguntandolhe António de Faria que nauios trazia, ôc que gente, lhe diíTe, que quarenta juncos grandes, & vinte & cinco vancoés de remo, em que vinhão fete mil homés, os cinco mil de peieja,& os dous mil do mar. E perguntado quanto tempo refidiaaly, refpondeo que todos os íeis rnefes da pefcaria,que era da en- trada de MarçOjatè fim de Agofto. E tornandolhe a preguntar que di- reitos pagauão daquella pefcaria,& que rendia jiaqueiles féis mefes, refc pondeò,que das pérolas de cinco qui lates acima os dous terços, & das mais baixas a metade, & do aljofre o terço;& que quanto à renda, não era certa,porqnús annos fe pefcaua mais, & noutros menos, mas cjue lhe pare- cia que hús por outros rendia qua- trocentos mil taeis . António de Fa- ria lhe fez muyto gafalhado, como quem defejaua de íaber aquelias cou- fas miudamente, & lhe mandou dar dous pães de cera,& hum faço de pi- menta, & hum dente de marfim, de

que

Femao Mcndc?

JPinto.

"emao

que efte velho com todos os mais fi- carão muyto facisfeicos. E tornando - lhes a perguntar de que tamanho era aquella ilha de Aináo de que tantas grandezas ie concauEo,lhe reípon- deraõ elles,dizenos tu primeyro que cs,oua que ves, & então te refpon- deremos a tuas preguntas, porque te certificamos em ley de verdade que nunca em npííos dias vimos tanta gente manceba em nauios de venia- ga como eífo que aquy trazes com- tigo,nem tão polida & bem tratada, pelo que nos parece que ou na Tua terra as fedas da China faõ tão ba- ratas que náo valem nada,ou as elles tomarão tanto de graça, que derão por cilas muyto menos do q valião, porque vemos que por feu paftatem- po ao laço de três dados arrem cisão, húa peça de damafco tanto fem pie- dade como homés aquém ella cuftou poucoj ao que António de Faria fe iorrio algum tanto Tecamente, porcj ent.endeo que ja elles atinauao que crão furtadas, &Ihes diíTe que elles fazião aquillo como homés mance- bos,& filhos de mercadores ricos,que por íerem mocos eítimauão as cou- ías em menos do que valiãoja q elles

difsimujando o que ja entendião,ref diíTe.Agora fenhor queCey querVes^ ponderão, afsi parece que deue Ter & que com coração limpo deues de

46

ca dos Chins, por não acabarem de fe certificar de todo no que ja imagi- nauão, que era Termos nos gente de mao titulo, lhes mandou abrir as ef- cotilhas do junco que a noite dantes fe tomara ao Capitão Sardinha, que eftaua carregado de piméta,os quais em o vendo abarrotado da maneyra que eftaua, ficarão algum tanto mais quietos, & fora de fuás fofpeitas, di- zendo hús para os outros,òra,jaque íabemosque faó mercadores, lhe podemos tefponder a fuás pergun- tas,porque não cuydem de nos q por Termos boçais o deixamos de fazer, como homés que nãofabemos mais que pefcar oftras & peixe.

QA<P. xxxxv.

Do que hum mercador aquy dijje

a aÂntomo de Faria acerca das

grandezas de ff a ilha de

Ainao.

Veiendo efle merca- í doremalgúa maney- ra fatisfazer ao que An tonio de Faria lhe ti- nha preguntádo, lhe

como dizes. António de Faria ace- nou então aos Toldados que leuaísé mão do jogo,& da porfia que tinhão, & eTcondeflem as peças que eíhuão rifando,porque as não conheceíTem aquelles homés,que os terião em co- ta de ladroes; & elles. o fizerão logo, & querendo fatisfazer àdefconfian-

querer Taber o que preguntas, te di- rey o que duTo tenho Tabido & ou- uido por alguas vezes a homés que antiguaméte gouernaraõ efte An- chacilado. Eftes diziao que efta ilha era Tenhorio abToluto por Ty, & de hum Rey muyto rico,o qual,por no- me mayor 6c mais akuantado Tobre

todos

Terigrináçoes de todos os Monarclias daquelle têpo, feu legitimo herdeyro & fucceílbr,

íè dezia Prechau Gamuu, efte falecé- do fem deixar herdeyro,ouue nos po uos muyto grande difcordia fobre que íbccederia no reyno, a qual foy em tanto crecimento, & chegou a derramar tanto fangue,que affirmão as chronicas que diílo tratão,que em fós quatro annos ôc meyo morrerão aferro dezaííeís lacafaas dehornés, ôc cada lacafaa cem mil, pela qual caufa ficou a terra tão vazia de defen fores,& tão defemparada,que o Rey dos Cauchins a conquiftou, & íe fez íenhor delia com fós fete mil Mogo- jes que o Tártaro lhe mandou da ci- dade de Tuymicão que naquelleté- po era a metropoli do feu império. Conquiftada efta ilha Ainão, o Cauchim fe tornou a recolher para o feu reyno, & deixou nella por Go- nernadorhum feu Capitão chama- do Hoyha Paguarol,o qual fe lhe le- uantou com cila poralgúas juftas ra- zoes que para iífo teue, E tomando por feu valedor ao Rey da China fe fez feu tributário em quatrocentos mil taeis por anno, que de moeda e- ílrangeyra íaõ fei (centos mil cruza- dos- ôc o Rey Chim fe lhe obrigou porifto ao defender de feus inimi- gos todas as vezes que lhe cumpriíTe, Efta conformidade durou entre el- les por tempo de treze annos,dentro dos quais o Rey dos Cauchins foy cinco vezes desbaratado em campo, ôc falecendo o Hoyha Paguarol fem filho herdeyro, por efte beneficio q em fua vida recebera do Rey da Chi na,o declarou €m feu teftamemo pojç

pelo qual de então ategora, que faó duzentos ôc trinta & cinco annos, efta ilha de Ainao ficou metida no cetro defte grande Chim. E quanto ao que mais me perguntaftes dos ti- íouros, rendas, & poUôs defta ilha, diíío não fey mais que o que tenho ouuidoa algus antigos que por tu- toés& chaés gouernarãò' em outro tempo efte ancrucilado de Ainão,os quais dezião que chegaua toda a ré- da, & minas de prata, com as alfan- degas dos portos do mar a dous co- tos ôc meyo de taeis. E eípantandoíe- Antonio de Faria Ôc os mais Ponu- guefes que eftauão com elle de tama- nhas grandezas como efte mercador lhe dizia, lhe tornou elle, fe vos ou- tros defta pouquidade fazeis tama- nho cafo,que fizéreis fe vireis a cida- de do Pequim onde fempre refide o filho do Sol com fua corte, «Sc onde vão ter todos os rendimentos dos trinta ôc dous reynos defta Monar- chia,que fomente de ouro Ôc prata q fe tira das oitenta ôc féis minas, fe af- firma que faó mais de quinze mil picos? António de Faria defpoisde lhe dar graças por quanto a propoíi- to lherefpondera a fuás preguntas, lhe rogou muyto que lhe dííleíTe em que porto lhe aconfelhaua que foífe vender aquella fazenda, que fofte maisfeguro,& de milhor gente, pois não tinha monção para paliara Lã< poo? a que elle refpondeo, aconíè- lhote como amigo que não entres em nenhum defta ilha de Ainão, te fies dos Chins defta terra, porque

te

te affirmoque nenhum te ha detra- tar verdade em coufa que te diga , ôc fiate de mim, porque fou muyto rico, $ não te ey de mentir como home pobre. E afsi te aconfelho que te vàs porefta enfeadadentro,& ícmpreco prumo na mão, porque tem muycos baixos,& muyto perigoíos, ate hum bom rio que fe chama Tanauquir, porque nelle tés lurgidouro em que podes eílar feguro & ã tua von- tadcj&em dous dias poderás vender toda eíTa fazenda que leuas,& outra muyta mais fe a tiueres,mas nâo te aconfelho que a defcmbarques em terra, porque mwytas vezes avifta caufa cubica, & a cubica, deímancho na gente quieta, quanto mais na re- uolcoià & de ma confciencia, que por natureza inclinaríe mais a tomar o alheyo,que a dar do feu aos necefc fitados pelo amor de Deos.Apos iílo elle ôc os cuitros que trazia comfigo fedefpid/aó do Capitão Ôc dos Por- tuguefes com muytas paiauras decú- primentos, de que commummente não faó nada auarentoSj&a António de Faria em retorno do q lhe tinha dado, deu húa boceta de tartaruga pequena como hum faleirõ, cheade graòs de aljofre, & doze pérolas de honefta grandeza, dizendo que lhes perdoafíe por não fazerem aly fazé- dacom elle, porque arreceauão que os mataífem por iílo, conforme à ri- gurofa ley da juftiça daquella terra, ôc que lhe rogaua que logo fe foíTe, antes que vieífe o Mandarim da ar- mada, porque fe aly o achaíTe, fou* beíle certo que lhe auia de queimar

Femao éMcndc^Tinto. aj

as embarcações. Não quiz António de Faria engeitar o confelho deííc homem, & arreceando qucpudeíTe Ter verdade o q lhe elle dizia,le fez lo goàvella,& paííandofe á oucra co- fia da banda do Sul, em dous dias de ventos oeíics chegou ao rio de Ta- nauquir, no qual furgio defronte de húa aldeã pequena chamada Ney- tor.

CAT. XXXXVL

T)o que António de Faria pajjou nesie rio de Tanauquir com hum C 0JJ&ym renegado por nome Francifco de Saa.

m^§\ A boca deite rio de Ta» || nauquirnos deixamos ^-eftar furtos toda^quel- la noite, com tenção de tanto que foífe me- nham nos yrmos para a cidade, que era daly cinco legoas,avei fendia por qualquer via de concerto podía- mos vender a fazenda q leuauamos, porque como era muyta, trazíamos as embarcações tão carregadas, que não auia dia que não deílemcs duas três vezes em feco nos baixos dos parceis,que em partes eraò de quatro cinco legoaSjCom hús alfaqnes deco« roas de área tão baixos q não ouíã- uamos a velejar fenão muvto de dia. ôc fempre co prumo na mão, pelo cj íè aífentou q antes q fe entendeífe em outra coufa algua,nos defpejaffemos de toda a fazenda que leuauamos,& por iíTç Antpnio de Faria nio cuy-

daúft

Teregrínaçoes de daua era outra coufa fe não em bufc vinhão,& fez que lhe hia fugindo pa-

car porto onde a vendeííè. E trazé- donos noííb Senhor a efte para nelle íè dar effeito a efta vontade, traba- lhamos quafi toda aquella noite pa- ra às toas nos metermos da boca do rio para dentro,porque era tamanho o impeto da corxente,que com todas as yellas metidas nos abatia a jula to do porto. E eílando nos nefte tra- balho^ coconuès todo empachado de amarras & calabretes q quafi nos não podíamos reuoluer, nos fayrão de dentro do rio dons juncos muyto grandes,forçâdos de bailéus poftiços de popas & proas, com luas íòbrega- uias de toldos de feda,& apauefados todos em roda de pauefes pintados de vermelho & preto, que os faziao muyto guerreyros. E encadeandoíe hum no outro paraque.a força lhe fi- caíle toda junta, nos cometerão tão aceleradamente., que nem vagar fí*1 liemos para nos aparelharmos, pelo " iqual nos foy forcado lançar as amar- ras & as driças aísi como eftauão ao mar por fazer a artilharia leíla, que era o que então mais nos feruia.Che* gados os dous juncos a nos gran- de grita & eftrondo de tambores Ôc . íinos, a primeyra çurriada de três cjue noshofpedarão foy de vinte ôc íeis peças deartilharia,dequeasno- ue eraõ falcões & camelos, por onde feentendeo logo que eraifto gente da outra cofta do Malayo,o que algu tanto nos meteo em confufaó. An- tónio de Faria, como fagaz que era, como os vioambos encadeados, lo- go lhe entendeo a tenção com que

ra o mar,afsi por lhe ficar tempo pa- ra fe aparelhar, como por lhe dará entender q éramos outra gente; mas elíes tambe como práticos nefte of- flcio em que andauão,defejando que íe lhe não foíTe a prefa das mãos, fe defaferrarão hum do outro,para nos poderem milhor alcançar, ôc chega- do a nòs,nos abalroarão logo, & nos lançarão tanta quantidade de lanças de arremeíTo,que não auia coufa que os efperafTe, António de Faria reco\ lhendofe para debaixo da tolda cos vinte & cinco foldados que tinha no feu junco, & com mais dez ou doze efcrauos & marinheyros, efteuedaly jugando cóelles às arcabuzadas pot- e/paço de quaíimeya hora, ate que os deixou defpêdcr toda a munição que trazião, a qual foy tanta que to- do o conues ficou juncado delia, ÔC determinando quarenta deííes q pa~ recião fer os mais esforçados, de da- rem conclufaó ao que tinhão come- tido, faltarão no noíTo junco ten- ção de fe fenhorearem da proa, pelo qual foy forçado ao noílb Capitão ilos receber, ôc chegandofe hús aos outros com boas vontades/e trauou entre elles húa briga tão acefa, que em eípaço de pouco mais de três cre- dos foy noíTo Senhor feruidoj q dos quarenta ficaíTem aly os vinte Ôc féis, ôc os outros todos fe lãçaraõ ao marj os noíTosfeguindo eíle bom fucceíío dado da mão de Deos, íè lançarão vinte dentro no feu junco, em q não ouue muyta refiítencia,porq os prin- cipais eraój a mortos, ôc matando a

hua

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Fernão Aíende^T imo. a$

hni parte & a outra todos os quea- atando António de Faria loco com chauão, fe lhe acabou de render de todo a gente do mar,a que foy necef fario darfe a vida, por não auer efqui paçáo para untos nauios. líto feito acudio logo António de Fana com muyta prefla a Chriítooao Borra- lho, que éítaua abalroado co outro junco,& muyto duuidofo da vitoria, porque a mayorparte dos noííos e- fíauão feridoSjmas prouue a noflò Se nhor que com eíla ajuda fe lançarão os inimigos ao mar,dos quais fe afo- gou a mayor parte, ôc os juncos fica- rão ambos em noíTo poder. £ fazé- dofelogo reíTenhado quenoscufla- ra eíla vitoria, Te achou hum Portu- guez morto,& cinco moços, & noue

quinze ou dezaíTeis íoldados^dentro no junco, lhe perguntou que era, ao que elle reípondeo, ouço na proa faliar muyta gente que deue de eílar eícondida; acudindo elle então com todos os que tinha com figo, & man- dando abrir a efeotilba, ouuio logo. embaixo húa muyto grande grita q dezia^Senhor Deos mifericordia, tão efpantofos vrros ôc prantos que parecia coufa de encantamento; ef- pàntado elle d iíto,fe chegou com ai* gus dosnoííbsãboca da efcotilha,& viraó todos jazer embaixo noprão hua grande quâtidade dei gente pre- fa,& não podendo ainda o Capitão acabar de entender o que eftaua vé- marinheyros,a fora os feridos;& dos ,, do cos olhos, mandou que fofíem inimigos forão mortos oitéta,& qua- ver o que era, Ôc faltando embaixo

íi outros tantos çatiuos, Defpoisque os ncílos foraó curados, ôc agafalha- dos o milhor que então foy poísiuel; António de Faria mandou recolher os marinheyros que íè unhão lança- do ao mar,os quais andauão bradan- do que lhe valeííèm q fe afogauão, & trazidos ao feu junco grande onde elle eftaua, os mandou prender a to- dos, ôc perguntandolhes que juncos erão aquelles, ôc como fe chamaua o Capitão delies,& fe era viuo ou mor. to, nenhum quiz faliar a propoííto, mas d eixandofe morrer emperrada- mente fem fazerem cafo dos tratos que lhe dauão, bradou Chriftouão Borralho do outro junco em qefta- ua,dizendo, ha fenhor, ha fenhor,a- cuda voíla mercê cà, porque temos mais cuílura do que cuydamos, ôc

dous moços, trouxeraô acima dezaf. fete pefíoas ChriíMs, as quais eraó dousPortuguefes,& cinco meninos, ôc duasmoças,& oito moços,os quais todos vinhão de maneyra que era hum laítimofíísimo efpedaculo ve- los,& tirandolhes logo as prifoés em q vinhão, q erão colares & algemas, Ôc cadeasde ferro muyto groíías,fo- rão prouidos do ncceííario, porq os mais delles vinhão de todo nus, fem trazerem couía algúa fobre fy. Após iftopwguntadohumdos dous Por- tuguefes, porque o outro eftaua co* mo morto, cujos £lhos erão aquelles mininos,& como vierão ter ao poder daquelle ladrão, & como fe elle cha- maua,refpondeo que o ladraõ tinha dous nomes,hum de ChriíHo,& ou- tro de gentio, o de gentio porque fe

então

Teregrinaçõès cte

então nomeaua era Necodà Xicau- do daiy fe fora ao porto de Liãpoo,

lem, Sc o de Chriftão era Franciíco de Saa, o qnal auia cinco annos que era Malaca fe fizera Chriftão, fendo Garcia de Sáa Capitão da fortaleza, & que porque elle fora feu padrinho do bautifmo lhe pufera aquelle no- me^ o caiara com húa moça orfam meftiça muyto gefltil molhe r,& filha de hum Português muyto honrado a fim de o fazer mais natural da terra, ôc que indo no Anno de 1534 para a China em hum junco feu muyto gra- deio qual leuaua vinte Portuguefes dos mais honrados, & ricos da forta- leza^ também fua molher, chegan- do à ilha de Pullo Catão fizera ahy agoada,com tençaó de paíTar ao por to do Chineheo, & auendo ja dous dias que ahy eftaua,como a efquipa- ^aò do junco era toda fua, & Chim como elle, fe leuantaraó húa noite citando os Portuguefes dormindo,& com as machadinhas que traziaó, os matarão a todos, & aos feus moços, fem a nenhum que tiueííè nome de Chriftão fe dar a vida,& cometeoà molher que fe fizeíTe gentia, & ado- xaffe hum idolo q o feu Tucáo me- ftre do junco leuaua nua arca, ôc que afsi delatada da ley Chriftarri a ca- iaria com elle, porque o Tucaá lhe daua por iíTo húa irmam fua qne aly leuaua comfigo , também gentia ôc China como elle,& porque a molher não quifera adorar o idolo, nem cò- fentir em tudo o mais que lhe elle dezia,o perro lhe dera com húa ma- chadinha na cabeça, com que logo Mie lançara os miolos fora. E parti-

onde aquelle anno fizera fazenda, ôc receofo de yr a Patane por cauía dos Portugueíès quelâ refídiaõ, fe fora jnuernar aSiaó,& o anno feguinte íe tornara ao porto do Chineheo, onde tomara hum junco pequeno dez Portuguefes,que vinha da CjUnda,^ os matara a todos. E porque ja fe fa- biaó por toda a terra os inales q nos rinha feitos, receando poder encon- trar com algua força noíla, íe viera a efta enleada da Cauchenchina, onde como mercador fazia fazenda,& co-i mocofTayro também falteaua osco que fe atreuiaj & que auia ja três an- nos que tomara aquelle no por co- lheita de fèus furtos, Ôc também por auer que nelleefíaria mais íeguro de nós, porque não cuftumauamos fa- zer fazenda nos portos daquella en- feada& ilha de Ainaó, Eperguntã- dolhe António de Faria fe eraó aquel les mininos filhos dosTortugu efes cj dezia,reípondeo que naõ,mas q eraó filhos de Nuno preto, ôc de Giaó Diazj& de Pêro Borges cujos eraó tã- bem os moços ôc as moças, os quais Portuguefes elle também matara em Mompollacota na barra do rio de Siao,num junco de íoaó de Oliuey- ra, em que também matara dezaífeis Portuguefes, & que a ellesambos, hu por fer carpinteyro, ôc outro por fer cal afa tendera a vida, ôc q auia ja per- to de quatro annos que os trazia afsi c6figo,matandoos fempre de fome, & de açoutes, & que quando nos co- metera,naó Ihepareceo que erao Por tuguefes, fe naó Chias mercadores

como

Femao Mencicz Tinto.

como os mais que ellc fempre cuftu- maua a roubar onde os achaua de lanco,como cuydaua q achara a nòs; & perguntado ie conheceria o ladrão entre aquelies mortos^diífc que Íy,c5 que António de Faria fe leuantou lo- go,& tomandoo pela mão fe paflbu com elle ao outro juco cj eftaua abal- roado com eíte,&: moílrandolhe to- dos os cj eítauão mortos no conuès, diíTe cjue nenhum daquelles era, & mandando efquipar as manchuas, o foy em peifoa bufear entre os outros mortosq andauaópelo mar,onde foy achado com hua grande cutillada na cabeça,& hua eftocada por meyo dos peitos,& trazendoo acima ao conues do junco lhe tornou a perguntar le era aquelle,a q elle refpondeo que fy fem falta nenhúa,a q António de Fa- rialhe deu credito por caufa de hua cadeadeouro groíía que trazia cin- gida, com hum idolo de duas cabe- ças da feição de lagarto,tambe de ou- ro, co rabo 8c maòs efmaltados de verde & preto. E mandãdoo a rafto leuar à proa lhe cortarão a cabeça,& o fizeraó em pedaços.

CA 9. XXXXVIL

(jomo eslando nos furtos na ponta

de Tdaumera, vieraoa cafo ter

com nojeo quatro íanteaas de

remo, em que vinha

bua noiua.

Vida ePta viítoria da mancyra que atras deixo contado, 8c cu- rados os feridos , 8c prouido na guarda dos calinos, íe fez inuentairo da fa- zenda de/tes dous juncos,& fe achou que o que nelle le tomara poderio chegar até pouco mais de quarenta mil taeis, os quais foraõ logo carre- gados fobre António Borges, que e- ra feitor dasprefas, & ifto a fora os dous cafeos dos juncos, os quais ain- da que eraò ambos nouos, nos foy forçado queimar hum delles, por não auer efquipaçaó para mais que hum fó. E àfsi fe acharão mais dezaf íète peças de artilharia de brózo,em q entrauão quatro falcoés,& hum ca- mello,& doze berços,& a mais delia, ou quafi toda as armas reais, porq eíle perro a tinha tomada toda nos três nauios em q matara osquaréta 8c féis Portuguefcs. António de Faria, logo ao outro dia pela menham quiz tornar a demandar a entrada do rio, porem foy auifado por hõs pefeado- res que fe tomarão de noite,que por nenhum caio foíTe furgir à cidade, porque ja la fe fabia o que elle fize- ra a aquelle ladrão, com o qual o Chileu Capitão 8c Gouernador da- quella pro.uincia tinha feito praça- ria, 8c lhe daua a terça parte de to- das as preíàs que fazia, pela qual caufa eftaua tudo tão reuolto, que ainda que deífe a fazenda de graça lha não tomariaó,<quanto mais vendella por dinheyro; & que na en- trada do porto eítauão ja duas jan- - G gadas

Terigr mações de

gadas muyto grades com muyta fo- receo que eraõ efpias da armada do

ma de lenha,& de barris de alcatrão, & fardos de brefei, paraq em elle (ur- gindo lhas lançaílerr^a fora mais de duzentos paraoos de remo, muy- tos frecheyros & gente de guerra,có a qual noua António de Faria por pa- recer dos que o milbor entendião,af- fentou de Te yr a outro porto que lhe demoraua adiante daquelle quaren- ta legoas ao rumo de leite, o qual íe chamauaMutipináo, porauer nel- lemuytos mercadores ricos, aísi na- turaes como eftrangeyços, que em cáfilas vinhaõ da terra dos Lauhòs, & Pafuaas,& Gueos,com grande To- ma de prata. E fazendonos à vella cos tresjuncos, & com a lorcha em que viéramos de Patane, cofteamos aterra com ventos ponteyros de hu bordo no outro, ate hum morro que íe dezia Tilaumera onde [urgi- mos, porque a corrente da agoa era contra nós. E defpois de eftarmos aquy furtos treze dias íbbola amar- ra, & bem enfadados com tempo- rais pela proa, & algum tanto ja fal- tos de mantimento, quiz a nofía boa fortuna que a cafo jafobola tar- de vieraõ dar de rofto com nofco quatro lanteaas de remo queíàõ co- mo fuílas, em que hia hua noiua pa- ra hua aldeã daly noue legoas que fe dezia Panduree, & como todos vinhão de fefta, eraó tantos os ata- baques, & bacias, & finos com que tangião, que não auia quem fe pu- deíTe ouuir com a vozaria & mati- tiada delles, & não entendendo os noífos o que ifto podia fer, lhes pa-»

Capitão deTanauquir que podia vir em buíca de nòs, António de Faria mandando logo arriar das amarras, fe preparou para tudo o que vieíTe; & afsi embandeyrado & com mo- ftras de muyta alegria eíperou que os das lanteaas eh egaífem a bordo, os quais tanto que nos viraó afsi to- dos juntos, & com as mefmas mo- ítras de fefta que elles trazião, pare- cendolhe que era o noiuo que os vi- nha efperar ao caminho , íe vieraõ com muyto prazer direitos a nòs, & defpois de fe fazerem as fuás & as noíías faluas à Charachina, como entre efta gente fe cuftuma, fe tor- narão a afaftar para junto de ter- ra^ aly furgiraó. Nos, como ef- tauamos de todo alheyos de enten- dermos o fegredo deita nouidade, aíTentarão todos co Capitão ferem efpias da armada que ficaua atras, a qual não tardaria muyto que não apareceíTe. PaíTado neftas lof- peitas hum pequeno efpaço que reftaua ainda do dia, & quafíduas horas da noite, vendo a noiua, que vinha nua deftas lanteaas, que o noiuo a não mandaua vifitar co- m^eftaua em rezão, quiz ella fazei- lo, pôr lhe moftrar o muyto qtfe pa- rece que lhe queria, & defpidindo hua das quatro lanteaas em que vi- nha hum íèu tio, lhe mandou por el- le húaiçaría que dizia afsi. Se a fraca & molheril natureza me dera licen- ça para daquy onde fico yr vera tua face,fem com iflo por nódoa no meu honefto viuer, crè que afsi voaria

meu

meu corpo a yr beijar eíTes teus vaga- roíospeis,ccmo o esfaimado açor no primeiro impero de ília íblcura; mas jafenhor meu, q eu de caía de meu pav ate cjuy te vim buícar, vem cu daiw donde eílàs a eira embarcação onde euja não efton, porque íb em te ver me poflo eu ver, mas com me não veres na eícondáo deita noite, não íèy fe na brancura da menham me poderás enxergar entre os viuos$ meu tio Licorpinau te dirá o que meu coração cm fv cala, afsi porque ja não tenho boca para failar,como porque minha alma me não fofre e- ítar tão orfam de tua vifta quanto a tua eíteril condição o confente, pelo qual te peço que venhas, ou medes licença que vá,& não me negues eíte amor que te mereço pelo que fem- pre te ciue,porque Deos porfuajuíti- ça,emcaftigo de tal ingratidão, te não tire o muyto q herdaíte de teus antigos parentes neíle principio de minha mocidade,emq agora por ma tnmonio mehas de íenhorearatè a morte, a qual elle, como Deos & fe* nhor por quê he,afaíte de ty por tan- tos milhares de annos quantas voltas o Sol Sc a Lua tem dadas ao mundo desdo principio do feu nacimenco, Chegada alanceaaemque vinha o tio da noiua com cita carta, Antó- nio de Faria mandou eíconder to- dos os Portuguefes, &quenãoapa- recefíem mais q fòs os Chins que le- uauamos por marinheyros,porq não duuidaííe chegar a nós,a lanceaa che gandofe muyto feguraméce ao júco, três dos que vmhaõ nellafubiraó io*

Femao Mende^Pintõ. 5-0

go acima,& preguntaraó pelo noiuo, mas arepoíra que os noílos lhe cle- raó foy apanhalos a todos aísi como vinhão,& dar com elies da eícotilha embaixo, Sc como todos elles, 011 os mais vinhão bebados,nem os õ fica- uaona lanteaa fentiraõ o rumor quc os noílos nzerao, nem Ce puderaó a- fartar taõ depreíía q de cima do cha- piteo lhe não deííèm hum cabo a ponta do mafto com que o atracarão de maneyra que nunca ja mais fe pu- deraó defembaraçar,& lancandolhe decimaalgúas panellasdc poluora, os fízeraó lançar a todos ao mar, Sc faltarão logo na lanteaa féis 011 íe- te ioldados com outros cantos ma- rinheyros Sc íè fenhorearaõ delia, na qual defpois foy neceílario corna- re a recolher os triítes que andauão na agoa bradando que fe afogiiião. Sendo eítes recol hidos & poftos a recado, António de Faria foy denu- daras outras três lanceaas q eítauaó iurcas,que feria daly pouco mais de hum quarco de legoa, & dando na primeyra em q vinha a noiua a abaí- roou,porénella não ouue refiftencia algíía, porque não trazia genre de pe- leja,fenão fomente marinheyros que a remauáo, Sc hus íeis ou Tece homés que parecião honrados, fegundo o trajo de fuás peíToaSjparenres da coi- tada da noiua que a vinhão acom- panhando, Sc dous moços pequenos feus irmãos muyto aluos Sc béaíTom- brados,& toda a mais géte eraõ mo- lheresja de dias que íabião tangeras quais nos femelhãtes tépos fe alugao por dinheiro ao cuftume da China,as G z outras

Peregrinações de

entras duas lanteaas fintindo a reuol gria, não fabendó parte do feu mal

ta,largaraó as amarras por mão, & fugirão a remo & a yella com tanta preííà, que parecia que o diabo hia nellas,mas nem ido baftou para dei- xarmos de tomar ainda húa delias, aísi que das quatro nos ficarão as três. E ifto feito nos tornamos a bor- do^ porque ja a eíle tempo era qua íi meya noite fe não fez então mais que recolherfe toda a prefa no junco, & a gente que fe tomou foy toda metida debaixo da cuberta,onde efte ue ate pela menham,que vendo An- tónio de Faria que era gente trifte, ôc a mais delia' molheres velhas qnão preftauão para nada, as mandou to- das porem terra, ficando fomente a noiuacos feus dous irmaõs, por fe- rem moços pequenos, aluos, Ôc bem aííòmbrados, & vinte marinhe vros, que nos foraó muy to bons para a ef- quipaçáo dos juncos, de que algum tanto vínhamos faltos. Efta noiua, ftgundo deipois fe foube, era filha do Anchacy de Colem, que he co- mo Corregedor entre nós, & eraef- pofada com hum mancebo filho do Chifuu Capitão de Panduree,o qual dizem que lhe tinha eícrito q aly na- quelie lugar a viria efperar com três juncos ou quatro de feu pay que era muy to rico, & por iífo fe enganafaó nofco,& ao outro dia à tarde def- pois q nos partimos deite lugar, a q fe pos nome o da noiua, chegou o noiuoem bufca delia com cinco vel- las muyto embandeyradas, o qual paliando por nos, nos faluou com mnytos tangeres, & moftras de ale-

nem que lhe leuauamos- com nof- co a molher, ôc afsi embandeirado ôc com muytos toldos de feda do- brou a ponta de Tilaumera onde nos eftiueramos o dia dantes,no qual íurgio para efperar aly pela molher como lhe tinha efcrita. Nós velle- jádo daquy por noífa derrota prou- ue a noíTo Senhor que em três dias chegamos ao porto de Miitipinão que era o para onde h Íamos, pela noua que António de Faria tinha de poder aly vendera fazenda.

CAT. XXXXVLll

í)a informação que zÀntonio de Faria aquy^ teue deíla terra.

j Hegados nós a eíle por to,íurgimos no meyo de húa angra que faz a terrajunto de hum pe- queno ilheo,q demora ao fui da entrada da barra, onde nos deixamos eftar fem faluarmos o por- to nem fazermos eftrondo nenhum, com determinação de tanto que fofc fe noite mandarmos íbndar o rio, ôc tomar informação do que íè pre- tendia faber, E logo como a lua íà-^ hio que feria ja quaíiàs onze horas, mandou António de Faria húa das lanteaas que leuaua bem efqui- pada, & com doze Toldados, de que hia por Capitão hum Valentim Mar tins Dalpoem, home feíudo, &par&

muyto

Feniâo z5\dende? Tinto.

muyto,& que de fy tinha dado boa conta em negócios deita qualidade; cite defpois que partio, íoy íempre íondando o no acè chegar ao fur- gidouro da cidade, no qual tomou dous homés que achou dormindo nua barcaça de louca, & tornando- íe a bordo Tem ler íentido,. deu con- ta a António de Faria de tudo o que achara, da grandeza óo lugar,& dos poucos nauios que no porto efta- uão, por onde lhe parecia que fem recevo nenhum podia entrar íegu- ra mente, porque íe cafo foíTe que por algum fucceíTo extraordinário não hzeífe fazenda como deiejaua, ninguém lhe podia tfclher tornaríea íayr cada vez que quifefíe, porque o rio era todo muyto largo & lim- po, & fem baixo nem alraiqueem cjue pudeílè correr perigo. E auido confelho fobre o que niílofe faria, íe aííentou por parecer dos mais que os dous Mouros que íè tomarão fe náo inquiriílèm com tratos como e- ftaua determinado, afsi por não os ef. candahzarem,como por não fer ne- cellario. E fendoja menham clara, defpois que todos dillèraó hua La- dainha com muyta deuaçaó,& pro- meterão boas peças & rica^nofía Senhora do outeyro de Malaca pa- ra ornamentos efe cafa, António de Faria íó por fy, animando primey- ro ôc afagando os dous Mouros, ôc fegurandoos do medo que tinha5, lhes perguntou miudamente pelocj pretendia íaber, a que elles ambos por húa boca diíTeraó, que quanto ao entrar no rio não auia que temer

por fer o milhor de toda aquella en- feada,& onde por muytas vezes en- trauão & íàhiao muyto mayores em- barcações que aqueliasque traziãoj porque o menos fundo que auia em todo elle,era de quinze até vinte bra- ças^ que da terra fe não arreceaííe, porque os moradores delia eraõ gé- tepor natureza muyto fraca, &que rião tinhão armas, ôc dos eítrangey- rosqucnella eftauão, os mais erao mercadores que auia noue dias que tinhaó vindo do reyno de Benão, em duas cáfilas de quinhentos bois cada híía,corri muvta orata, ôc a^ui- la, ôc íeda,& roupas de linho, & mar- fim, &cera,& lacre, ôc beijuim,& cânfora, & ouro em pô, como o da ilha C,amatra, os quais com efhs fazendas vinhão todos a bufear pi- menta, ôc drogas, ôc perlas da ilha de Ainão, ôc perguntados íe auia pov a- quella coita aigua armada, diíferao que não, porque as mits' das guer- ras que o Prechau Emperador dos Cauchins fazia, ou lhe fazião, erao por terra 7 ôc quando íè fazião pelos rios eraõ em embarcações peque- nas de remo, mas não em nauios' grandes como aquelles que trazk, porque não auia fundo para elles, d; perguntados íè eftaua o (eu Prechau aly perto, refponderaó quefòs doze dias de caminho na cidade de Quan^ gepaaruoade o mais do tempo reíl- dia com ília caía ôc corte, gouernan-'; doera paz Ôc juíliça o íeu reyno,5 & perguntados que tifouros fren- das tinha, refponderaó que as mi- nas dos metais referuados à fua co-

G ? ro*\

tPerigrinâçoes de toa^ rendião bem quinze mil picos noíTas mifêrias, & muyto efquecido

de prata,de que a metade por ley di- uina do Senhor que tudo criara, era dos pobres que cultiuauão as terras, para fuftentação de íuas famílias, mas que por aprazimento & con- formidade de todos os pouos lhe lar garão liuremence efte direyto, para- que daly por diante os não conftran- gefle a pagarem tributo, nem a cou- ía que lhes deíTe opreíTaó algúa, pe- lo qual os antigos Prechaus em cor- tes lhe tinhão jurado de afsi o cum- prirem em quanto o Sol defíe luza terra. Vendo António de Faria a ma- téria diípofta para poder faber al- guas coufasque deíejaua, lhes per- guntou que noticia tinhaò daquillo que vião cos olhos, de noite no Ceo, & de dia na ligeireza do Sol, em que por tantas vezes lhe tinhaó fallado?a que reíponderaõ q a verdadeyra ver dadedetodaa verdade era terem & crerem auer hum íb Deos todo po- derofo,o qual afsi como tudo criara, tudo conferuaua,mas q fe o noíTo en- tendimento às vezes fe embaraçai] a na defordem ôc defconformidade de noíTos defejos, não era da parte do Criador em que não podia auer im- perfeição, fenão da parte do pecca- dor, que por fer impaciente julgaua

de cubicar tiíouros da terra,porq tu- do era pouquidade na prefença de feu refplandor. E afsi por eiras pre- guntas como por outras que lhe fez António de Faria,entendemos qnão tinha efb gente ategora noticia ne- nhúa da noíTa verdade, mais que fo- mente confeíTarem de boca o que feus olhos lhe moítrao na pintura do Ceo,& na fermofura do dia, a q con- tinuamente por fuás cumbayas ale- uantão as mãos dizendo, por tuaso- bras,Senhor, confeífamos tua gran- deza. Com ifto òs mandou António de Faria por liuremente em terra, dandolhe primeyro alguas peças, de que foraó muyto contentes. Nefte tempo começando ja a ven- tar a viração , fe fez à vella com muyta feita ôc regozijo, ôc as ga- ueas toldadas de feda, «Sc com fua bandeyra de veniaga à Charachi- naj paraque os que afsi o vifíem^n- tendeíTem que era elle mercador, Ôc não gente de outra maney ra, & daly ahúahorafurgio no perto defronte do caiz da cidade,& fez fua falua pouco eítrondo de artilharia,ao que logo de terra vierao dez ou doze ai- madias com muyto refreíco, ôc com tudo eftranhandonos,&: vedo no nof

fegundo o humor do feu mao cora-, fo trajo Ôc afpeito q não éramos Sia- cão; ôc perguntados fe tinhão em fua mes,né Iaos,nem Malayos, nem 011-

ley q viera Deos em algu tempo ao inundo veftido em carne de homem humano,diíTeraõ q não, porque não podia auer coufa q obrigaíle a tama- nho eftremo, porque pela excelência da natureza diuina eftaua liure de

-r" tj «••K»' 'i

tras nações q ja tinhão viílas, difiTe- rao, tão proueitoíà nos feia a to- dos a aluorada da frefca menham* quão bem aíTombrada parece efla tarde na prefença do que ternos diãte dos olhos.E chegado de todo o

numero

Fernão Mende^JPinto'.

numero de almadías híía fomente a bordo, pcdio ftguro para entrarem, a que foy refpondido, que Tem ne- nhum receyo o podião fazer,porque todos éramos feus irmãos; & com if- to,denoue que vinhao na almadia, os três fomente fubirão ao junco, ôc António de Faria lhes fez muyto ga- falhado,& fazédoos aííentar em húa alcatifa, lhes diífe que elleera hum mercador natural do reyno deSiaó, & que vindo de veniaga para a ilha de Ainão,lhe diíTeraó que naquella cidade íaria milhor ôc mais íegura- mete íua fazenda q em outra parte, por ferem os mercadores & opouo delia de mais verdade que os Chins daquella coita ôc ilha de Ainão, aq refponderaõ, não eítàs errado niíTo que dizes,porque íèesmercador,co- mo pareces, crè que em tudo fe te fará aquy muyta honra, pelo qual feguramente podes dormir teu fono deícaníàdc», fem te arreceares dene- nhúa couía,

CAT. IL.

T)o que <t/lntonio de Faria paf- fou neHe porto co 3\(autarel da cidade [obre a venda da jua fazenda.

Eceofo António de Fa- ria de poder vir por terra algum recado ou noua do que tinha £ú« to ao ladraò no rio de Tanauquir, ôc lhe pudeíTem por iífo preiudicar ernalgua coufa? não quis

n

defembarcar a fazenda na alfande- ga, como os officiaes delia querião, pelo que puue aífaz de deígoílo, ôc de trabalho, de maneyra q por duas vezes o negocio efteue de todo deí- baratado. E vendo elle que boas pa- lauras naó baítauaó para quererem elles condecender co que elle lhes pi-' dja,lhes mandou dizer por hum mer cador que andaua nefixs recados, ój be via elle quanta razão elles tinhaõ de quererem que defembarcaffe elle a fazéda em terra^comoeracuítume, mas que lhes afíirmaua cj o não po- dia fazer pornenhd modo, por quã-» to a monção era ja quafi gaftada,poc onde lhe era forcado totnarfe logo% para yr concertar aquetle junco gra- de em q vinha.,porq fazia tanta agoa que fetéta marinheyros naò leuauac* nunca a mão de três bobas, ôc q cor-» ria muyto riíco yrfelhe aly ao funda quanta fazenda trazia, Ôc q quarji-j to aosdireytosdel Rey,elleeramuy to contente de os pagar,porem não a' trinta por cento como elles lhe pe* dião^mas que a dez, como nas outras terras íê pagauão, lhe daria logo de muyto boa vótadej ao que elles não, quiíerão refponder, mas antes pren-; derão o menfageyro que leuou o re* cado;& vendo António de Faria que çlle não tornaua,fe fez á velía muy« toembandeyrado como homem i- fento, ôc que lhe não daua nada de vender nem deixar de véder. O que vedo os eítrãgeyros q tinhão.vindo nasca£ilas,& que por contumácia do Nautarel fe lhes hia a fazenda que tinhãQ no porto com que efperauaa ' ' "' G4 * defe

^Peregrinações de

de fe auiar, fe ajuntarão todos, & lhe terminação, & tedoapor verdadey-

foraó requerer que o mandafTe cha- mar, fenão q proteítauaó de íè irem queixar a el Rey da Tem razão que lhes fazia em ler caufa de fe lhes yr a fazenda que tinhão no porto, em q efperauão fazer feus empregos, O Kautarel, com todos os mais Capi- fondos da alfandega; temedo ferem por iflb caftigados, & fufpenfosde feus officios, concederão em feu re- querimento,porem com condição q q nòs não quedamos pagar mais q dez por cento,pagaíTem elles mais cinco,paraque el Rey fícaíTe me- yosdireitoSide que todos foraó con- tentes, E tornando logo a rrjandar o mercador que tinhaò prefo com hua carta de muytos comprimentos, em q relatauão todo o procedo do con- certo que tinhão feito, António de íarialhe refpõdeo, que por nenhum .modoauiaja de tornar a furgir no porto,porque não tinha monçaópa- ja andar fazendo tantas detenças, tantos poufos,mas que íelhe quifefc fem comprar a fazenda toda por jun- to, trazendo logo prata quanta ba- ftaíTe para iffo,que lha venderia,& fe

ra,arreceando que fe lhe foíTe dentre as mãos aquella occaíiao que entaó tinhaò de fe poderem auiar para íè tornarem para fuás terras, vieraò lo- go em cinco barcaças muyto grades com muytos caixões cheyos de pra- ta, & grande íbma de facosparale- uarem a pimenta. E chegados ao ju* co onde António de Faria eftaua co fua bandeyra de Capitão mór, foraò delle muyto bem recebidos, & lhe refumirãode nouo tudo oq tinhão paflado co Nautarel dacidade^quei.- xandofelhe muyto da fua condi- ção^ dalgúasíèm razoes que lhes tinha feitas,porem ja q o elles tinhão pacificado com lhe daréquinzepor cento, dos quais elles querião pagar os cinco,lhe pediáo que quifeííeelle pagar os dez que prometera,porquc doutra maneyra lhe naó poderiaó comprar fua fazenda. A que Antó- nio de Faria refpondeo que era con- tente,mais por amor delles,que por- que iíjò lhe vieíTe bem, o que elles todos lhe agradecerão muyto, & aísi ficou tudo concertado, & com muy- ta paz & quietação. E dandofe muy-

não que de outra maneyra não que- ta preíía â defcarga da fazenda, em ria nenhum concerto com elles, porq fós três dias foy pelada, & enfacada,

eftaua muyto efcandalizado do pou- co reípeito que o Nautarel lhe tiue- ia,em lhe de íprezar os feus recados, & que fe difto foífem contentes, lhe reípondeiTem dentro de hua hora, q para iílò lhe daua de efpaço, & íè não que íè iria caminho de Ainão, onde venderia a fazenda muyto mi- lhor que aly. Elles yendo hua tal de*

& entregue a íèus donos, com as co- tas aueriguadas,& recebida a prata,a qual veyo a fomar céto & trinta mil taeis,a razão de íeis toftoés o tael,co- moja diíTealgúas vezes.E quanto ifto fe fez com toda a breuidade pof- . liuel,nem iflb' baftou para que antes de fe acabar deixaíTe de vir a noua do que tínhamos feito ao ladrão no

rio

Fernão <^Adendez^Pinto. 5-5

rio de Tanauquir, com que jto,da a Feada & cofia de Ainão,os quais cof-

terra fe amotinou de maneyra que nen.húa peííoa nos quiz mais vir a bordo como antes fazião, pelo qual foy forçado a António de Faria ta- zerfeàvella)(3cmuyto depreíía.

CJT. L.

*Do que foce deo a adntonio de Faria ate f urgir em Made!^ porto da ilba de Ainao^ondefe encon- trou com hum cojjayro^ do quepajfou com eíle.

Ellejando nós daquy deite porto 3c rio de Mutepinão coa proa ao norte, pareceo bem a António de Fana tor nar a demandar a cofta de Aináo em bufca de hum rio que fe dezia Ma- del,com determinação de ahy ás ma resabicar o junco grande emq hia, porlbe fazer muyta agoa,ou fe pro- uer,a troco do que quer quefoíFe,de outro milhor & mais eftanque. E a- uendo ia5âdoze dias que nauegaua ventos ponteyroSj chegou ao morro dePulloHinhor, ilha dos cocos, & não achado ahy nouas do Coja Acé que andauabufcando,fe tornou a de mandar acoitado Sul, onde fez al- c úas prefas boas, & ao que nos cuy- dauamos, bem aquiridas, porq nun- ca feu intento foy roubar fenão ©scoíTayrosquetinhaódadoa mor- te,& roubadas as fazendas a muy tos Çhriftaòs que frequentauão efta er>

fayros tinhao Teus tratos cos' Manda- rins deites portos,a quedauão muy- tas & niuyto groííàs peitas, por lhes coníentirem que vendeíTem na terra o que roubauão no mar. Mas como he cuftume de Deos noííò Senhor de grandes males tirar grandes beés,perr mitio pela inteireza de fua diuinaju- ítiça^que do roubo que Coja Acem nos fez na barra de Lugor, como a- tras fita dito, naceífe a António de Faria determinarfe em Patane de o yr bufcar, para caftigo de outros la- droes que tão merecido o tinhãoà naçaò Portuguefa. E auendo ja algús dias que continuaua com aíTaz de trabalho nefta enfeada da Cauchen- china,eíhndo nòs hum dia do naci- mento de noíTa Senhora que he a oi- to dias de Setembro, metidos num porto que fe chamaua Madel, com receyoda lua noua, que aquy nefte clima vem muytas vezes tao tempé- ftuofa de ventos & chuuas, que não fia nauio que a poíTa aguardar,à qual tormenta os Chins chamío tufaõ,a- uendojatres ou quatro dias, que o tempo andaua toldado, &com mo- ftras d o que fe receaua,& os juncos Fe vinhão meter nas colheitas q acha- uão mais perto, prouue a noíío Se- nhor que na volta de muytos que nefte porto entrarão, foiTe hum de Fium coíiayro muyto afamado que fe chamaua Hinimilau, Chim de na* çjío,que de Gentio que era Fe tornara Mouro auia pouco tempo, & parece, fegundo Fe prefumia,que prouocado pelos carizes da feita Maiometica, q

houa>

Éfc

Terígrmaçoes de nouamente tinha tomado, ficou taò do de d eípíczo, tangendo com hum

inimigo do nome Chriítaó, que de zia publicaméte que IhedeuiaDeos o Ceo pelo grande feruiço que lhe ti- nha feito na terra em a yr pouco a pouco defpejãdo da geração Por tugueía, que por leite mamado nos peitos das mãys fe deleitaua em of- fenfasfuas como os próprios habi- tadores da caía do fumoj & afsi por eiras paiauras,& por outras íèmelhã- tesjdeziadenós coufas tão. torpes & âbominaueís, quais nunca fe imagi- narão. Entrando efte coílairo pelo lio dentro,num junco muyto grande Sc alteroío,com.a gente toda occupa- da no marear das vellas, por fer gra- de à çarraçaó do tempo,& com muy to vento & chuueyros, em prepat íando por junto donde nòs eftaua- * mos furtos,nos faluou à Charachina, a querefpondemos pelo mefmo mo do,como fe cuítuma neílas entradas, femateen.taõ nos conhecer por Por- tuguefes>nem nòs a clles,màis que fo- mente cuydarmos que eraò elles Chins como os outros, que cada ho- xsl entrauão por cauíã do tempo de q vinhao fugindo.Porem hus cinco mo «ços Chriftaós que elle trazia catiuos nos conheceraõ,& todos juntamente derao hua grande grita, dizendo por - três vezes, Senhor Deos mifericor- dia. Ouuindo nós eíla grita, nos le- ( uantamos todos a ver o que era, & bem fora de cuydarmos no que def- poisfocedeo. E vendo ferem moços Chriítãos, bradamos rijo aosmari- nheyros que amainaflem,o que elles súo quiferaó fazer, mas ames a mo*

tambor, derão três apupadas muyto grandes,capeando, & efgrimindo co * trepados nus, como quem nosamea- çaua, E defpois que furgiraó obra de hum quarto delegoaadiãte de nòs, quiz António de faria iaber o que era, ôc mandou hum balão bem èíquipadOjO qual chegando a bordo, forão tant2s as pedradas fobre elle,q os que nelle hião correrão muyto riG co de ferem todos mortos>& com ifto fe tornou a voltar cos marinheyros aílaz efcalaurados, & oPortuguez cl nelle hia com duas pedradas muyto grandes. António de Faria vendoo virafsicheyodefangue, lhe pergun- tou que coufa era aquella, Ôc elle lhe refpondeo, eu fenhor, não fey o que he, mais que verdes a maneyra de cj todos vimos, Ôc moftrandolhe as fe- ridas da cabeça,lhe deu conta do co- mo o receberão, de que António de Faria ficou muyto embaraçado por hum grande efpaço, mas pondo Jogo os olhos nos que eítauao pre- fentes, lhes diííè, ea fenhores ôc ir- mãos meus,não ajaahy companhey- ro que náVfe faça preítes, porq nòs, co nomedeChriftoauemosde faber o que ifto he, porque a mim me na vontade que he eíte o perro de Coja Acem,& quica que nos pagara oje bem noíTas fazendas. Com efte feruor mandou leuar logo as amar- ras^ com a mayorpreíTa que pode fe fez à vella com todos os três jun- cos & lanteaas,& chegando a tiro de efpingarda lhe mandou fazer hua fal ua de trinta ôc féis peças de artilha- ria.

lia, de que as doze forão falcões, & camellos, com mais hua efpera de , bronzo que tiraua pilouro de ferro coado, de que os inimigos ficarão taó aílbmbrados que por então não ie fouberaõ determinar em mais que em largarem as amarras por mão para darem co juncoácofta, o que lhes não focedeo como elles cuyda- uão ou defejauão, porque entenden- do António de Fana, o íeu intento, lhe atalhou a elle com o abalroar pri meyrocom toda a forcados juncos & lanteaas que leuaua comfigo,& rra uandofe neíía junta hua fermoíâ bri- ga.de cutiiladas dos que eftauão per- to^ arremeíTos de chuças, Ôc de pa- nellas de fogo dos que eftauão longe, com mais de cem arcabuzes que ti- rauao continuamente, o negocio foy de maneyra que quafi meya hora íe nãoconheceo melhoria em nenhúa das partcs,mas no fim delia prouue a noíío Senhor que os inimigos de muyto feridos & queimados íè lan- çarão todos ao mar,com que os no£ fos ficarão de todo defafroncados, ôc com grandes gritas feguiraó liuremé- teaquellaboa vitoria. António de Faria vendo que os inimigos íe hião todos ao fundo por caufa do efcar-» ceo ôc corrente da agoa que era muy to grande,fe embarcou em dous ba- lões que mandon efquipar com ai- gus Toldados comfigo,& com ama- yor preíía que pode íaluou hus de- zafleisque não quiz que morreíTem como os outros,pela necefsidade que tinha de chufma para as lanteaas, porq nas brigas paliadas lhe tinhão

*4

Fernão MendezJPintd.

morto amayor parte delia.'

CAT. ti.

Como António de Faria orne â mao viu o o cojjayro Capitão

do junco & do quepaf- fou com elle.

Vida efta vitoria, da n.aneyra que tenho contado, fe entendeo logo primeyro qu*3 tu do na cura de algúsq

ficarão feridos, por í er negocio mais importante,aposiíTo, lendo António de Faria certificado que hum dos dezaíTeis que faluara, era ó çoíTayro,' o mandou logo trazer perante íy, ôc deípois de o mandar curar de duas feridas que tinha lhe perguntou pe«» los moços dos Foriugueíes, a que eK leemperradamente refpondeo que naofabia, &tornandooa preguntar com ameaços, diííe que lhe deííem primeyro hua pouca de agoa,porque fe lhe tolhia a fala,trazia a agoa,a be beo taó apreíTadamente, que íè lhe entornou quaíi toda, ôc porque não ficou fãtisfeito, tornou a pedir mais .agoa, dizendo que Te o fartaíTem be della,prometiapeíaley de Mafame- de,&por todofeu alcorão de con- feíTartudo quanto quifeíTem íàber delle,& António de Faria lha man-* dou trazer logo com hum fraíco de cenfeitos, de que elle não quiz ço- mer,porem da agoa bebeo hua gran- de quantidade,^ tornandolhe a per- guntar pelos moços Çhnitaós, reA

ponde^

ri*

'Peregrinações de

pondeo que no payol da 'proa os a- leíTe,& quanto aos dous mininos dif-

chariao,& António de Faria mandou três foldados que os foíTem logo buf car,os quais abrindo a efcotilha para os chamarem acima,os viraô a todos embaixo jazer degolados, de que fi- carão tão fobrefaltados,que com nua tamanha grita que metia medo co- meçarão a dizer,lefu,Iefu Jefu,venha VoíTa mercê cá,& verá hua couía af- íàz laftimofa, António de Faria com todos os mais que com elle efhuão, correo logo á proa com muyta pre£ &,ôc quando vio os moços jazer to- dos mortos hús íõbre os ourros,ficou tão cortado,que não podendo ter as lagrimas,pondo os olhos no Ceo, ôc com as mãos aleuantadas difíeem Voz alta & magoada, ó bendito fejais meu Senhor lefu Chrifto por quão piadofo Sc miíericordicfo fois em ío Frerdes offenfataó graue como efta, Sc mandandoos tirar acima,não auia homem que pudeíTe ter as lagrimas, Sc que não fizeíTe outros mayores e- ftremos,védo hua molher com dous mininos de íeis até iete annos, am- bos muyto fermofos & innocentes defcabeçados Tem nenhua piedade, fk es cinco moços que tinhaõ brada- do por nòs com as tripas fora dos cor pos & efcalados pelas coitas. Antó- nio de Faria tornandofe a aíTentar perguntou ao coiTayro,porque caufa fizera tamanha crueldade naquelles innocentes que aly jazião? a que elle xeípondeo,que por lhe ferem tredros em fe moftrarem a gente tanto fua 1 inimiga como eraò Portugueíès, &

1 Ê"^?1 P^° ^U 5e0S ^UC ^eS Va'

fe que baftaua ferem filhos de Por- tuguefes , a quem nunca tiuera boa vontade,&com efta mefma ifenção reípondeo a outras algúas preguntas que lhe flzeraó, Ôc com tanta perti- nácia como fe fora o próprio demó- nio em carne. E perguntado fe era Chriftão,diíTe que não, mas quejao fora no tempo que dom Paulo da Gama fora Capitão de Malaca- & di-» zendolhe António de Faria que pois ja fora Chriftão,que couía o mouera a deixar a ley de Chrifto, na.qual ti- nha certa fua faluação, por feguira de Mafamede}na qual eftaua clara a perdição de fua almarrefpondeo,que porque defpois que fora Chriftão, forafempre muyto defprezadodos PortuguefeSjporque onde antes,quã- do era Gentio, lhe fallauao todos co barrete na rnaó, chamãdolhe Quiay1 Necodà,que era nomealo fenhor ca-» pitaó,defpois quefe fizera Chriftaó, vieraó a fazerpouca conca delle,& q fe fora fazer Mounrem Binta6,onde defpois de o fer, el Rey do fantana, que fe achara prefente,o tratara fem- pre com muyta honra, Ôc os Manda- rins todos lhe chamauão irmaõ, pelo que prometera, & afsi ojurara no li- tiro das flores,que em quanto viueíTè feria inimicifsimo da naçaó Portu- guefa,&de todo o mais género de homem que profeíTafle a ley Chri- ftam,o que el Rey ôc o caciz Moula- na lhelouuaraó muytOjdizendo que fe tal fizeíTe lhe fegurauão fer fua al- ma bemauenturada, E perguntado quanto tempo auia que fe lenantara,

&que

&quenauios de portuguefes tinha tomado, ôc quantos homés mortos, & que fazenda roubadajdiífe que de ieteannos a cila. parte, oprimeyro nauio que tomara fora o junco de Luysde Pauia no rio de Liampoo, com quatrocentos bares de pimenta lem droga nenhúa,onde matara dez- oito Portuguefes,a fora os feus efera- nos, de que não fazia caio, por nao ferem gente que oiatisfizeífe no que tinha jurado, mas que defpois oor conjunções de acertos que achara no mar, tomara mais quatro embarca- ções, nas quais matara perto de tre- zentas pefloas, mas que Portuguefes não feriáo mais que ietenta, & que lhe parecia que podia chegar o que tinha tomado de mil & quinhentos .ate mil & feiícentos bares de pimen- ta^ outra fazenda, da ctual elRey de Paó lhe tomara logo mais de a metade pelo recolher em fna terra,& fegurar dos Portuguefes, dandolhe para iíTo aquellescem homés que an dauao com elle, & lhe obedeceíTem como a Rey. E perguntado fe mata- ra mais Portuguefes, ou dera fauor paraiflo, reipondeo que nao, mas q eftando auia dous annos no rio do Choaboquec na coifa da China,fora ahy ter hum junco grande com muy tos Portuguefes, de que era Capitão hum homem muyto feu amigo que fe chamaua Ruy Lobo.que Efte- uao da Gama Capitão de Malaca mandara de veniaga, o qual defpois deter feita fua fazenda fe íayrado porto embandeirado por yr muyto rico,& que auendo ja cinco dias que

Femao Mende^Pinto. 55

era partido, lhe abrira o junco húa agoa muyto groíTa, ôc não a poden- do vencer,lhe fora forçado tornar a demandar o porto donde partira, ôc vindo com vento rijo infunadocom todas as vellas, por chegar maisde- preífaje lhe fora fupitaméte ao fun- do,deque fe faluara o Ruy Lobo dezaffete Portuguefes,& algds efera- uos, ôí viera ter na Champana ao ilneo de Lamau íèm vella,nem açoa, nem mantimento algum.E confiado o Ruy Lobo na amizade antigua q com elle tiuera,lhe pedira em joelhos chorando que o quiíèííè recolher no íeu junco,em que naquelle tempo e- ftaua de caminho para patane, porq ]heprometia,& aísi lhojuraua como Chriílaó de lhe dar por iíTo dous mil cruzados, o que elle aceitara, masq defpois de o ter reco Ih i d o\ fora acon- felhado pelos Mouros q fe nãoriaííe em amizade de Chriíiaó,íc naó que- ria perder a vida, porque comoco- braífem mais forças, lhe auião de to-* mar o junco com quanta fazenda le- uaua,porque aísi o cuftumauão de fa- zer em todas as partes onde íe acha- uao, pelo qual receoíò elle de poder vir a fer o q os Mouros lhe dizião, os matara húa noite a todos eílãdo dor mindo, de que defpois fe arrepédera muytas vezes. António de Faria, & os mais q eítauao à roda ficarão taó pafmados, quanto hum tão feyo ôc inorme cafo o requeria,& não o que- rendo mais inquirir, o mandou a el- le ôc aos quatro^que inda eftauão vi-, ups,matar,& lanhar ao mar.

CAP.

■■

CAT. LU

tPerigrinaçoes de

31 sr^r^ie^rrãil

©0 mais que António de Faria

pajfou neíie rio Madel com a

gente da terra, & do que fez;

de/pois quefefahio deile.

íjg Eira efla juftiça nefte "coílayro&nos outros, Í^ffe§ *e *ez ]niJencayro do WjW^^Í queojuncotrazia,&fe ^•P***» orçou a valia daprefà em quali quaréca mil taeis em feda, & peças de citím & damafco,& re- trós, & almiferc, a fora muyta foma de porcelanas fmas}& outro fato que foy forçado queimarfe co junco jun» taroente,pornãoauerefquipaçãoTpa- ra o marear. E deft e honrado feito ficarão os Chins taó aífombrados, 5 pafmauão onde ouuiaó nomear Por- tuguefes,em tanto que vendo os Ne- codàsfenhorios dos juncos que eíta- uãonaquelle porto, que a cada hum delles íe podia fazer outro tanto, fe ajuntarão todos em hua confulta,a q clles chamáo bichara, & nella elege - , raò entre fy dòus dos mais hórados, & mais fufficientes para o que preté- diaõ, pelos quais como Embaixado- res mandarão dizer a António de Paria, que corrio a Rey do mar lhe pediáo que debaixo do feguro de ília verdade os quifeíTe emparar, para poderem fayr daly onde eítauâo a fa- zer fuás viagés, antes que fe lhe aca- baíTe a monçaò,& que lhe dariáo lo- go por iíTo em reconhecimento de tributários, & fubditos feus como eí-. crauosjvinte mil taeis de prata, de q

logo fem falta neriTma lhe fariaô b5 pagamento,como a fenhor. António de Faria os recebeo com bom gafa» lhado,& lhesconcedeo o que lhe pe- diâo,& jurou de o fazer aísí,& de os auer por feguros debaixo de fua ver- dade, & que nenhú ladraó daly por diante lhe tomaria coufa algúa de Tuas fazendas. E ficando dos dous em arrefés dos vinte mil taeis, o ou- tro fe foy para trazer a prata, a qual logo trouxe daly a menos de hua hora, com mais hum bom prefente de peças ricas que todos os Necodàs lhe mandarão. E querendo António de Faria aproueitar hum moço leu q chamauaóCofta, o fez eferiuão dos cartazes que fe auiãode dar aos Ne- codás, a que logo t^xou o preço, o qualauiadeferaosdosjuncos cinco taeis por cartaz, & aos dos vancoés, & lanteaas,& barcaças)dous,& foy a couía de maneyra que em fós treze dias que durou a .frequência deííes cartazes,ganhou eftk moço,iegundo o dito dos que o Mejaraó, mais de quatro mil taeis em prata, afora muytas & muyto boas peças que to- dos lhe dauaó pelos jauiar mais de- preíTa, & a forma dps cartazes era defta maneyra. Seguro debaixo de minha verdade ao Necodà,foaó,pa- raque poda nauegar liuremente por toda a cofta da Chinaj, fem fer agra- uado de nenhum dos meus, tanto que onde vir Portuguefes os trate co- mo irmãos,& afsinauafe ao pè, Antó- nio de Faria. Os quais cartazes todos fe lhes guardarão muyto inteyramé- te,& com toda a verdade. £ daquy

ficou

Fernão éMende%JPinto< . y^

ficou taõ temido por toda efta cofta, fcmprc o feu principal intento, pc!o

que o próprio Chaem defla ilha de Ainão,c] he o próprio Viforrey delia- pelo que tinha ouuidodelle, o man- dou viíitarcó hum rico prtfcnte de pérolas & peças douro, 6c lhe eícre- ueo húa carta em que lhe dezia que leuaria muyto goílo de elle querer aceitar partido co filho do Sol, para o feruir de Teu Capitão mor da cofta de Lamau atè Liampoo com dez mil taeis de ordenado cada anno, & que ie o feruiíTc bem conforme à fama q delie corria, lhe feguraua acabando ostresannos,íeracrecentado em ti- tulo de hum dos quarenta Chaés do gouerno,com jnãdo fupremo em to- da a juftiça,&que lhe lembraua que daquy vinhão os homés como elle, feeraó ieais, a fer dos doze Tutoes do gouerno,aos quais o filho do Sol, lião coroado no trono do mundo,ie çommunicaua de cama & meia co- mo membros vindos por honra & mando ao feu corpo, & com partido de cem mil taeis. António de Faria lheagradeceo muyto a oferta, &fe efcuíou com palauras de grandescó- primentos ao feu mododelles,dizé- do que não fe fentia capaz de tama- nhas honras como aquellas com que o cometia,mas que íem intereíTe de

d inheyro nenhum eílaua muyto pre- ftes para o feruir cada vez que o mã- daílem chamar os Tutoés do Pa- quim. Aposiftojfaindofe deíle por- to de Madel, onde efteue quatorze dias,tornoua correr a cofta pelaen- íeadadeqtro, a ver fe achaiianouas de ÇojaAcem, porque como çfte foy

que atras fica dito, de nenhúa outra coufa trataua fe não de o buícar por todas as partes, & nifto fomente cuy daua-& fe defuellaua de dia & de noite. E por efta caufa,parecendolhe que neftaenfeada o poderia achar, fe deteuehella mais.de féis mefescom aflaz de trabalho,& rifeo de fua pef- loa, no fjm dos quais chegou a húa cidade muyto nobre, & de edifícios & templos aíTaz ricos que fe dezia, . Quangiparú,no porto da qual efte- ue furto aquelle dia,& a noite feguin- te com moftras de mercador, com- prando pacificamente o que lhe tra- zião a bordo,& por fer pouo de mais de quinze mil fogps,fegundo o efmo -f* daÍgús,tanto que foy menham fe fez a vella,fem a gente da-terra fazer ne- nhum cafo diffo,& tornando na vol- ta do mar, inda que co vento algum tanto ponteyro,em doze dias de na- uegaçaó trabalhofa cofteou toda a fralda da terra de ambas as coitas de Sul & Norte, íem em todas ellas ver coufa de que fe pudeífe lançar mão, as, quais eraõ povoadas de lugares pequenos de duzentos atéx quinhen- tos v ezinhos,algús dos quais eraõ cer cados de tijolo, mas não que baftafíe para os defender de quaifquer bós trinta foldados, por fer a gente toda muyto fraca,& íem armas nenhúas, mais que fòs paos toftados, & algús treçados curtos, com híís pauefes de taboasdepinho pintados de verme- lho & preto,mas o íltio do clima em fy he o milhor & o mais fértil & a- baftado de todas as coufas que quan- tos

toseu-nunc* vv", com tanta quanti- dade de gado vacum, que fera efcu- fado querelio contar,& campinas ra- fas & -grandifsimas de trigos,arrozes, ceuadas, milhos, & muytos legumes de muytas maneyras,que a todos nos fazia pafmar,& em partes foutosde de caftanheyros muyto grandes, & pinhaes,& amores de angelim como na índia,para íe poderem fazer infi- nidade de«nauios,& íegundo o dito de algus mercadores de que António de Faria fe informou,ha aly também muytas minas de cobre, prata, efta- nho, falitre, Sc enxofre, com muytos campos defaproueitados de muyto boa terra,& táo perdida naquella fra ca nação/^ue fe cila eftiuera em nof- fo pcde^quiça que eftiueramos mais aproueitados do que hoje eítamos na Índia por noííos peccados.

QAT. Ull

Como nos perdemos na ilha cios ladroes.

Veftdo ja fete mefes Sc meyo quecontinuaua- mosnefta enfeada de hum- bordo no outro; & de rio em rio, afsi era ambas as coftas de Norte §c Sul4 como na deita ilha de Ainão.fern An tonio de Faria em todo efte tempo poder ternouas nem recado de Co- ja Acem,enfadados os foldados defte trabalho em que auia tanto tempo cj continuauão, íe ajuntarão todos, Sc lhe requererão que do que tinhaõ a-?

ESÈSÉí*

^Peregrinações de

quirido lhes detíe uías-partes confor- me a hum afsinado que delle tinhaõ, porque com iíTo fe queriào yr para a Jndia,ou para onde lhes bem vieíTe, Sc íobre ifto ouue aíTaz de defgoílo& enfadamentos, por fim dos quais íè concertarão em ire inuernar a Sião, onde fe venderia a fazenda que tra. zião nos junc*os,& que defpois de ella fer feita em ouro íe faria a reparti- rão querequenaó, Sc com efte con- certo jurado Sc afsinado por todos,íe vieraó furgir a hua ilha que íè dezia dos ladroes, por eftar mais fora da enleada que todas as outras,para da-« hy as primeyras bafugés da mon- ção fazerem fua viagem, Sc auendo ja doze dias que aquv eftauão, & to- dos com muyto defejode darem ef- feito a ifto q tinhaõ aífentadò,quiz a fortuna que com a conjunção da lua noua de Oitubro,de que nos fempre tememos,veyo hum tempo tão tem-« peftuoíb de chuuas& vetos que não fe julgou por coufa natural, & como nòs vínhamos faltos de amarras,por- que as que tínhamos eraò quaíi to- das gaftadas,& meyas podres, tanto que o mar começou a íe empollar, Sc o vento Suefte nos tomou em defa- brigàdo,& traueíTaó à cofta,fez hum efcarceo taó alto de vagas taó grof- fas,que com quanto fe bufcaraó to- dos os meyospoísiueis para nos fal- uarmoSjCom cortar maftos, desfazer chapiteos & obras mortas de popa Sc de proa,alijaro conuès,guarnecer bo bas de nouo,baldear fazédas ao mar, Sc ahuftar calabretes & viradores pa- ra talingar em optras ancoras com a

artilharia

\ *

Fernão zUAdenâés^Pinto. sj

artilharia groíía que fe defencarreta- das q hús ôc os curros dauão cm fy

ra dos repairos em que eftaua, nada difto nos baftou para nos podermos íàluar,porque como o eícuro era gra- de^ tempo muyto frio, ò mar muy * to groffo, o vento muyto rijo, as a- goas cruzadas, o efcarceo muyto al- to, &a força da tempeftade muyto terriuel náo auia coufa que baftaíle a nos dar remédio fenão a miíeri- cordiadenoffo Senhor,por quem to dos com grandes gritos ôc muytas la grimas continuaméte chamauamos, mascomo,pornolTospeccados, não éramos merecedores de nos elle fazer efta merce,ordenou a ília diuina ju- ftiça, que fendo ja paííadas as duas horas defpois da meya noite nos deu hum pegaó de vento taó rijo,que to- das as quatro embarcações aísi como cftauão vieraóà coita, & íc fizerao em pedaços,onde morrerão quinhé- tas & oitenta ôc íeis peííòas, em que entrarão vinte Ôc oito Portugueiès, Ôc os mais que nos faluamos pela mi- íericordia de noíTo Senhor (que ao todo fomos cinquenta ôc tres,de que os vinte Ôc dous foraó Portugueiès, ôc os mais, efcrauos ôc marinheyros) nos fomos afsi nus ôc feridos meter num charco de agoa; no qual eítiue- mos ate pela mcnham, ôc como o dia foy bem claro, nos tornamos à praya, a qual achamos toda junca- da de corpos mortos> coufa taóla- ítimofa ôc éfpantofa de ver, que náo auia homem que deita vifta não cayfle pafmado no chaó, fazen- do fobre elles hum triítifsimo pran- to,acompanhado de muytas bofew-

mefmos. Durou ifto ate quaíia vef. pora,em q António de Faria (q prou- ue a Deos que FofTe híí dos q ficarão viuoSjCom quetiuemos algú peque- no dealiuio)repnmindo em ív a dor q nos outros não podíamos dilsimu- lar,fe veyo a onde todos eítauão,ve- ítido nua cabaya de gram,q defpira a dos q jazião mortos, ôc com roíto alegre,& os olhos enxutos,fez a todos húa breue fala, tocado por vezes nel- la quão varias &mentirofas eraó as couías do mundo, pelo que lhes pe- dia como a irmãos, que trabalhe to- do o pofsiuel pelas porem em eique- cimento,viítocornoalembrãça del- ias não Temia de mais que de Te ma- goarem hús aos outros. Porque viílo bem o tempo, ôc o miferauel eirado em q a fortuna, por noíTos peccados, nos tinha poíio,conheceriamos1& eu téderiamos quão neceííàrio nos era o q nos dezia ôc aconíelhaua, porque elle efperaua em Deos noíTo Senhor, q aly naqueile deípouoado ôc eípef- ío mato lhes auia de trazer coufas em q fe íaluaíTem,porq fe auia de crer fíc memente qnuca elle permitia males q não foíTe para muyto mayores bes, pelo q elle eíperaua co firme fè, q fe aly perdêramos quinhentos mil cru- zados, q antes de pouco tempo tor- naríamos a ganhar mais de feifcen-; tos mil; a qual breue pratica, de to- dos foy ouuidacom aífaz de lagri- mas Ôc defconfolação. E prouendoíè logo no enterrar dos mortos que ja-' zião na praya, fe gaitarão niíTo dous dias &meyo,em que também falua-) íi mos

^Peregrinações de mos algum mantimento molhado Senhor de fua própria natureza he

para nos fnílentarmos, o qual inda que foy muyto, não durou mais que íós cinco dias de quinze que acjuy eítiuernos, porque como vinha paíTa- do de agoa falgada, àpodreceo de mançyra que nenhum proueito nos faziaocorner delle. Paliados com afiaz de trabalho eftes quinze diasq digo,prouue a noíio Senhor, que nú- ca falta aos que nelle confiaó de ver- dade, trazemos milagrofamente o remédio, com que afsi nus & defpi-» dos como eftauamos nos (aluamos, como logo direy.

C4T: UUl

*Dos mais trabalhos quepajfamos neslailha, &da manejracom que milagrofamente nos f aluamos.

f^ip^spippji Odososqueefcapamos daquelle miíerauel nau fragio q atras deixo co- tado, andamos nus & deltaicos por aquella prava,&poraquelles matos, pausan- do tatos frios,& tãtas fomes, q muy- tos dos còpanheyros,eftãdo faltando hus cos outros cahiáo íupitamente mortos em terra de pura fraqueza,& não caufauaiílo tãto a falta do mãti- mento, quanto fernos eíTe q comía- mos muyto perjudicial, por fer todo podre &boloréto,& ale de feder in- cóportauelmente, amargaua dema- neyra q não auia que o pudefle me* terna boca. Mas como Deosnoííò

infínito,não ha hy parte tão remota, tão deleita onde fe lhe poíTaó ef- códer as míferias dos peccadores, ôc onde os não (ocorra hus effeitos da fua infinita mifericordia tãoalheyos da noííà imaginarão, q íe pufermos os olhos nos termos por onde elles corré,veremos claraméte q fao mais obras milagrofas de fuás diuinas mãos q curíò de natureza,có q o noP fo fraco juizo muytas vezes fe enga- na; digo ifto, porq eftãdo nós dia, q era o em q fe celebra a fefta do Ar- canjo São Miguel, derramado todos muytas lagrimas, & tanta defcon- fiança de todo o remédio humano, quãta nos daua a fraqueza de noíTa miferia & pouca fee, paflbu a cafo voando por cima de nos milhano q vinha de detrás de cabeço que a ilha fazia contra a parte do Sul,& pe- neirando no ar afãs eftendidas lhe cahio das vnhas hum mugem frefco de quaíi hum palmo de comprido, & dando junto donde eítaua Antó- nio de Faria, o fez ficar hum pouco confufo& indeterminado até qco- nheceo o q era; & defpois de eftar hu pouco olhando para o peixe, fe pòs em joelhos, & em meyo de muytas lagrimas qlhecorrião pelo roftoa- baixo, arrãcando do mais intrinfeco do feu peito grande fufpiro, diíTe, Senhor lefu Chníto,eterno Filho de Deos,peçote humilmente pelas do- res da tua (agrada paixão, que nos não acoimes a deícennaça em q a mi feria de nofla fraqueza nos tépoílos, porque muyto bem creyo q aquelle

que

Fewao Mendtz Tinto.

q antiguamete foíle para Daniel no la^o dos lioés quando pelo ProFeca Habacuc o mandaílc prouer,eííe por tua mifericordia nos íerâs agora a- quy,& o íeràs em toda a parce onde qualquer peccador chamar por ty com firme fee & eíperançarpe!o que Senhor meu,& Deos meu te peco, q não por mim,fenão por ty,& pela in- rerceflaó defte teu lanto Anjo, cuja fdta a tua fanta igreja oje nos repie- íenta,não ponhas os olhos no que te merccemos,mas no q tu mereceíte pa ra nós,porq afsi tenhas por de nos conceder o remédio qló de ty efpe- ramos,&nosmãdespor ma miferi- cordia q daquy nos leues a terra de Chriítaòs onde perltuerando em teu fanto íèruiço,acabemos como fi- eis,E tomado o mugem o aííbu nuas braFas,& o deu aos doentes q tinhaõ delle maisnecefsidade.E olhado pa- ra a parte do outeyro dóde o milba- no viera, vimos outros muytosque voado fe aleuãtauão & abaixauão,pe ]o q fe foípeitou q poderia auer aly algúacaça ou carniça em q aquellas aues fe cenauão^ como todos eílaua mosdefejofosdealgu remédio para os doéces,q tínhamos muy tos^nos fo- mos em prociíTaõ o milhor q pude- mos, cò noíía ladainha enuoltaem lagrimas para aquella parte, & fubi- dos encima do morro, defcubrimos híi vajle muyto plano de muy tas ar- uoresdediuerfasfruytas,&pelome- yo delle húa ribeyra de agoa doce,& antes de chegarmos a ella nos depa- rou noflò Senhor hu veado degola- do de aquella hora q hu tigre come-

çaua a comer,& dandolhe todos húa. grade grita, nolo deixou afsi como e- ftaua,& fe foy Fugindo para o mais ef peíío do ma lo. Nos vedo iíío,o toma mos em pronoftico, & nos dece- mos abaixo ã ribeyra, ôc nella nosa- gafalhamos aquella noite, prúde banquete aFsi deíle veado, como de muy tos muges q nella tornamos,por«« q auia aly muyta quantidade de mi- Ihanos qdeciaoà agoa, onde toma- uáo muytos daquelies peixes, & co as gritas q nós lhe danamos, lhe ca- hiãornuytas vezes das vnhas, Neíta ribeira cótinuamos efta noíTa pefca- ria des de a fegunda feyra que che- gamos a ella,atè o íabbado íeguinte, no qual logo pela menham vimos vir húa veila demandar a ilha, de- itando nòs duuidoFos fe ferraria el- la o porto, ou não, nos decemos a-* baixo ã praya onde nos tínhamos perdido, 5c paliada quaíí meva ho- ra enxergamos que era couía pe* quena,pelo que nos foy forçado cor-»: narmonosa meter para dentro do mato, por nos nao verem. Chegada; ao porto eíla embarcação, q era húa, fermofa lanteaa de remo,os que nella vinhaó a atracarão dous proizes de popa & de proa co a ribanceira cj a ponta da calheta fazia, para íê po- derem íèruir com prancha,^ defem- baixados todos em terra, que feriao ate trinta peflbas pouco mais ou me- nos,entenderaó Jogo em fazerem a* goada, ôc lenha, lauarem fua ropa, ôc guifarem de comer, ôc algus fe oc-» cupauao em lutas, ôc em outros pak fatempos, bem fora de lhes parecer

H 2 qiiQ

*Perigrináfoes de

que podia auer aly quem os eftoruaf íe. Vedo então António deFaria quão defcuydados & defordenados. todos andauao,& q na embarcação não a- uiapefToa nenhuaque nolapudeífe tolher, nos diííe, eílando nos todos juncos,bern vedes fenhores & irmãos meus, o tnfte eirado em que noíTòs peccados nos tem pofto, de que eu creyo Ôc vos cófeílo q fós os meus fo- raò caufa,mas como noíTo Senhor he infinitamente mifericordiofo, eu ef- pero nelle que não ha de permitir q acabemos aquy tão rniferauelmente. E ainda q íey quão eícuíado he tra- zemos a memoria quanto nos im- porta trabalhar por tomarmos efta embarcação que noíTo Senhor mila- grofamente agora acjuy nos trouxe, todauia volo lembro,paraq todos af- fi como eftamos, co íeu fanto nome na boca & no coração arremetamos juntamente a ella, & antes q nos íin- taonos lancemos todos dentro, & como a ganharmos vos peço qnao entendamos em mais q em nos apo- derarmos das armas q acharmos,por que com ellas nos poflamos defen- der^ ficar fenhores difto em q âcf~ pois de Deos eftà toda a noíTa íalua- çao,& tanto q eu diííer três vezes le- fu,nome de íefu^fazey o q me virdes fazer, a q todos refponderaõ q afsi o fariaó íem falta nenhúa. E prepara- dos nos no modo conueniente a tão bom propofito,Antonio de Fana fez o final que diífe, & arremeteo logo correndo,& nos todos juntos elle, & chegando àlanteaa, nos apodera- moslogo delia fem contradição ai*

gúa,& largando os proizes com que eflaua atracada, nos afaftamos ao mar obra de hum tiro de befta. Os Chins que eftauão defcuydados di- ílojtanto que fentiraó a reuolta,acu- dfraõ logo a praya com grande pref- fa,& vendo a embarcação tomada fi- carão tão pafmados q nenhum delles fefoube dar a confelho;& tirandolhe nós com hum meyo berço de ferro q trazião na'lanteaa,fe acolherão to- dos ao mato,onde então ficarão cho- rando o íuccefíb da fua fortuna, como nòs ate então tínhamos cho- rado o noflò.

CAT. LV:

Como nos partimos deíta ilha dos ladroes para o porto deLtampoo^ & do quepajptmos ate chegar- mos a hum rio quefe cíu ^ia Xingrau.

Efpois de fermos to- dos recolhidos na lan^ teaa, & íeguros de nos poderem os Chins em pecerem coufa algúa,

nos pufemos a comer muy to deícan^ çadaméte o íèu jantar q hu velho lhe tinha aparelhado,o qual era dous ta- chos de arroz com ades & toucinho picado, que então nos foy a todos, de muyto gofto,fegundo o apetite q todos lhe tínhamos. Defpoisque a- cabamosdejantar,& demos graças a Deos pela mercê que nos fizera, fe bufcou a fazenda q vinha na lanteaa, & fe achou nella íeda, retrós, citins,

damafcos.

Fernão Mende^Pinto'. 59

c .mafeos, & três boyoés grandes de no,que fou tão paruo que poífaaiy-

aimifear, & tudo foy aualiado em quatro rnil cruzados, a fora híía boa matalotagem de arroz, açúcar, la- coés, & duas capoeiras de galinhas, que então íe eftimaraõ mais que tu- do para conualecerem os doentes,de que ainda auia muytos, ôc começan- do hús& outros a cortar pelas peças fem medo, nos prouemos de toda a falta que entáo tínhamos. Antó- nio de Faria vendo hummininoque também aly eftaua de doze ate tre- ze annos, muyto aluo & bem aíTora* brado, lhe preguntou donde vinha aquella lanteaa, ou porque caufa viera aly fer, cuja era, & para onde hia? o qual lhe reípondeo, era do fem ventura de meu pay, a quem ca- hio em forte trifte ôc defauentura- datomardeslhe vos outros em me- nos de hua hora o que elle ganhou em mais de trinta annos, o qual vi - nha de hum lugar que fe chama Qiioamão, onde a troco de prata comprou toda eíla fazenda que ahy tendes, para a yr vender aos juncos de Sião que-eftão no porto de Com- hay,&porqlhe faltaua a agoaquiz fuatriíle fortuna que a vieíle tomar aquypara vós lhe tomardes fua fa- zenda fem nenhum temor da juíHça cio Ceo. António de Faria lhe diííe que não choraíTe, ôc o afagou quan- to pode,prometendolhe que o trata- ria como filho, porque neíTa conta o tinha,& o teria ícmpre,aq o moço,o- lhandopara elle, refpondeo comhu íbrrifo,a modo de efearneo; não cuy- des de mim inda que me vejas mjjú-

dar de ty que roubandome meu pay me ajas a mym de tratar como filho, & fe es eífe c( dizes,eu te peço mpytò muyto muyto por amor do teu Beos q me deixes botar a nado a efíà trifee terra,onde fica quem me gerou, por- q eíTe hc o meu pay verdadevro^om o qual quero antes morrer aly na- quellematOjOndeovejoeftarmecha rando,quevíuer entre gente tão como vos outros fbis- aigús dos õ aly eftauão o reprenderáõ5& lhe diíTeraó q náo diíTeííe aquillojporque não era bem dito,a que elle reípondeo,fabeís porque volo digo, porq vos vy lou> uar a Deos defpois de fartos com as mãos aíeuantadas,& cos beiços vn;a^ dos,como homês que lhesparecs que bafta arreganhar os dentes ao Ceo fem íãtisfazer o que te roubado,poiSj entendey que o Senhor da mão po* derofa não nos obriga tanto a bolic cos beiços,quãto nos defende cornar o alheyo,quanto mais roubar ôc ma- tar, que íaó dous peccados tao gra- ues,quãtoGeípoisde mortos conhe- cereis no rigurofo cafligo de fua di- uinajuftiça. Efpantado António de Faria das rezoés defte moço, lhe difc feXe queria ler Chriíla5,a que o mo-, ço,pondo os olhos neííe, refpondeo/ não entendo ifíb que dizes, nem ícy. que coufa he eífa que me cometes,' declaramo primeyro, & então terei* ponderey a propofíto. E declaran- dolho António de Faria por pala* urasdiferetas aofeu modo, lhe não reípondeo o moço a ellas, mas pon- Úq os olhos np Ceo,com a&maõs ale- t* 5 uanta*

TerlgYtndçoes de

uantadas difíe chorando, bendita fe- de doze que nella achamos,para nos

i

jafenhora tua paciência, que fofre auer na terra gente que falle taõ bem de ty, & vfe tão pouco da tua ley como eftes miferaueis & cegos, que cuydáo que furtar & pregar te po- de (ãtisfazer como aos príncipes ty- rannos que reynão na terra. E não querendo mais refponderapregun- ta nenhua, fe foy pôr a hum canto a chorar, fem em três dias querer co- mer coufa nenhua de quantas lhe dauão. Tomandoíe então confelho fobre o caminho que daly fe faria, ou que ròta fe feguiria, fe para o Norte, fe para o Sul, ouue fobre ifto alguns pareceres bem differentes,por fim dos quais íè aífentou que nos fok femos a Liampoo,que era hum por- to adiante daly para o Norte du- zentas & feíTenta legoas, porque po- deria ferque ao longo da cofta nos melhoraríamos doutra embarcação mayor& mais acomodada a noflo propoíito, porq aquella era muyto pequena para taó comprida viagem, ôc receyos de tantas tempeftades quantas cauíaó as luas nouas na cofta da China,onde cótinuamente fe per- dião muytos nauios.Com efta deter- minação demos a vella ja quaíi foi pofto daquy defta ilha, ficando os Chins na praya como pafmados, & corremos aquella noite com a proa a Lesnordefte,& fendo ja quaíi menhã onuemos vifta de hum ilheo q íè de- zia Guintoo, no qual tomamos húa barcaça de pefcadores muyta ío- iria de peixe frefco, da qual torna- mos o neceíTariOjCÒ rçajs oito homis

marearem a lanteaa, porq a noffa te não eftaua para o poder fazer,por vir muyto fraca & debilitada dos tra balhos paíTados.E perguntados eftes oito pelcadores que portos auia por aquella cofta ate o Cbincheo, onde nos parecia que podiamos achar ai- gúa nao de Malaca,nos diíferaó que daly a dezoito legoas eftaua hum rio muyto bom,& de bom íurgidouro,q íe dezia Xinguau, onde cótinuaméte auia muytos juncos que carregauão de íal* de pedraliume^ de azeite, de moftarda,& de gergelim, no qual bc largamente nos podiamos aparelhar, & prouer de tudo o deq tiueíTemos necefsidade,na entrada do qual efta- ua húa aldeã pequena q fe chamaua Xamoy, pòuoada de pefcadores, & de géte pobre,mas que daly a três le- goas pelo rio acima eftaua a cidade onde auia muyta íèda,almizcre, por- celanas, & outras fortes de fazendas que de veniaga fe leuauão para diuer fas partes. Com efta informação nos fomos demandar efte rio, onde che- gamos ao outro dia à tarde, & fur- gimos defronte delle obra de húa le- goa ao mar, por arrecearmos q nof- fos peccados nós trouxeífem aquy al- gúa defauentura como as panadas. Aquella noite feguinte tomamos hum paraoo de pefcadores, & lhe perguntamos q juncos eftauão den- tro,quantos eraó,& que géte tinhaó, & outras couías que fazião a noííò cafo,a que refponderaó que enci- ma na cidade aueria obra de duzerí- tos júcos fométe, porq os mais eraó

ja parti-

Fernão Mendez Tinto.

ja pimidos para Ainão,& Sumbor,& l..aiioo,& outros portos daCauchen china, mas que aly na pouoacaò de Xamoy podíamos eítar feguros, on- de nos venderião todo o mantiméto que ouuefíemos myírer.Com ifto en tramos para dentro do rio, & (urgin- do junto da aldeã nos deixamos aísi eítar obra de meya hora; & feria iílo então a meya noite pouco mais ou menos. E vendo António de Fana que a lanteaa em que vínhamos não era embarcação fufficiéte para irmos daly a Liampoo, onde tinhamos de- terminado deyr inuernar, aíTentoti com parecer dos mais companhey- ros & Toldados de fe prouer de ou- tra milhor; & ainda cjue naquelle té- po não eítauamos para cometer cou- Ja algua, todauia a necefsidade nos obrigou a fazermos mais do que nofc fas forcas requeriaoJEÍtaua então na- quelle porto íurto hum junco peque- no ío,& femauer outro nenhum, o qual tinha pouca gente, & eííes que eraõ eftauaõ então todos dormindo, ôc vendo António de Faria que era efta boa occaíiao para effeituar feu intento,fez logo arriar da amarra, & fe igualou com elle, & efcolhendo dos vinte & ietefoldados que leua- ua os quinze,com mais oito moços, fe fubio acima ao conuès do junco, lem ate então fer fentido de ninguê, & achando nelíe dormindo féis ou fete Chins marinheyros, os mandou atar de peis & de maós, ameaçan- doos que fe bradaífem os auia de matar a todos,pelo que nenhum del- les com medo oufou de fallar,& cor?

vr" 6o

tandolhe ambas as amarras com que eílaua furto, o mais depreílã que po- de íè fez à vella para fora do rio, & velejando tudo o que reftaua da noi- te fempre coa proa no mar^foy ama- nhecer junto de Bua ilha que fe cha- maua Pulío Quirim nòue legoas dó- de tinha partido, E ajudandonos Deos vento frefco de vellas cheas, fomos daly a três dias furgir a húa ilha chamada Luxitay, na qual foy neceífario para conualecencia dos doentes determonos quinze dias, afc fi por ella fer muyto fadia,& de boas agoas, como por algum refrefco que peícadores aly nos trazião a troco de arroz, Aíy foy burcado todo o junco, & não fe achou nelle mais fa- zend a que arroz fomente,que aly no porto de Xamoy fe eílaua venden- do,de que a mayor parte fe lançou no mar,por ficar o junco mais boya- te,& menos perigoíb para a noíTa via gem. E baldeando o fato da lanteaa dentro no junco, a varamos ern ter- ra para a eípalmarmos, por nos fer neceíTana para fazermos agoadas nos portos onde entraíTemos. Niílo gaftamos, comoja diíTe, quinze dias neíta ilha, nos quais os enfermos co- ualecerao de todo, ôc nos partimos na via do reyno de Liampoo, onde tinhamos por nouas que auia muyta gente Portuguefa,que ahy era vinda

de Malaca,de Qunda,de Sião, Ôc de Patane, a qual toda na- quelle tempo aly cn- ftumaua de vir inuernar.

H4

C:

CAT. LFl.

Como indo nos ao longo, da cosia de Lamau ^encontramos hum cof- Jayro (Jtnm mujto amigo de Tor- tuguefeS) & dopatlo que An- tónio de Faria fe^com elle.

Terigrinaçoes de

Vedo ja dous dias que nauegauamosao logo dacoftadeLamau, ventos & mares bonã- çoíbs, prouuea noífo Senhor que a cafo encontramos hu junco de Patane que vinha dos Le- quios, o qual era de humcoíTayro Chim que fechamaua Quiay Pan- jáo muyto amigo da nação portu- guefa, & muyto inclinado a noííos cuítumes& trajos,é cópanhia do qual andauão trinta Portuguefes, homés todos muyto eícolhidos q efte coflày to trazia a feu foldo, a fora outras muytas ventagés que cada hora lhes fazia com que todos andauaó ricos. Efte junco, tanto que ouueviftade nòs,íè determinou em nos cometer, parecendolhe que éramos outra gen- te, & pondoíè em fom de abalroar, como elle era official velho, & prati- co neíte officio de coflayro,metendo a orça com todas as vellas, fe pós a balrauento quafí três quartas do ru- mo da noíTaeíteyra,& marcando em popa, veyo arribando entre ambos os punhos atè pouco mais de tiro de berço,& nos fez húa falua de quinze pecas de amlharia?com que todos fi-

camos muyto embaraçados por íè- rem as mais delias falcões & roquey- ros. António de Faria esforçou então os feus com animo valeroíb & de bom Chriftão, & os repar tio pelas eftancias mais neceííarias, como fo- rão conuês,popa,& proa,com feu ref guardo de íobreílàlente onde a ne- ceísidadé mais o pediMe, E indo aísi com propoíito determinado de che- gar ao cabo com tudo o que a fortu- na lhe ofFereceííe,quiz noíío Senhor que lhe enxergamos na quadra hua grande bandeyra de Cruz,&.no cha- piteo muyta gente com barretes ver- melhos,queos noíTos naquelletepo cuítumauão muyto de trazer quan- do andauão darmada,pelo que aíTen tamos que eraõ Portuguefes que pfc- dião vir de Liampoo,& yr para Ma- laca,como naquella monção fempre cuítumauão, & dandolhe nós també íinal de nós, para ver nos conhe- cião, tanto que enxergarão que éra- mos Portuguefes, deraó todos hua grande grita,& amainando ambos os traquetes de romania em final de o- bediencia, defpidiraó logo hum ba- lão muyto efquipado com dous Por- tugueíes a ver que gente éramos, & donde vínhamos, os quais tanto que nos reconheceraó,&fe afíírmaraõ na verdade de quem éramos, íe vieraõ mais afoutos a nós, & defpois de fa- zerem fua íàlua, a que nos também refpondemos,fubiraõ acima. Antó- nio de Faria recebeo com grandif- fimo gaíàlhado,& como eraó homes conhecidos de aigús foldados da nof fa companhia, íedetiueraõ grande

efpaço

Femao Mende^Pinto. 6 1

efpaço contando muytas particulari- de fem rifco nenhum fe podião to

dades que fazião anoíTo propofito, Anconio de Faria mandou Chtifto- não Borralho em companhia dos dous a viíicar o Quiay Panjão, & lhe efcrcueo húa carta de muytos com- primentos^ lhe fez grandes offere- cimentosde Tua amizade, de que o coíTayro Panjão fe moftrcu tão có- tente & vfano, que não cabia em fy de vaidade. E chegando júto do nof- fo junco mandou amainar as vellas do feu, & fe embarcou na champana que era o batel, & acompanhado de vinte Portuguefes veyo ver António de Faria, & lhe trouxe hum rico pre- íente que valia mais de dous mil cru zados,em ambar,& pérolas, & peças douro & de prata. António de Faria os recebeo a elle & aos Portuguefes que com elle vinhaò com muytas fe- itas & gafalhado,& a todos fez muy- tas honras & cortefíasj & aíTentan- dofe todos, defpois que algum efpa- ço eftiueraó praticando em coufas de gofto, conformes ao tempo em que eftauão. António de Faria lhes veyo a darcontadetodoofucceífodaíua perdição, & de todos os mais infor- túnios da fua viagem,& da determi- nação da fila derrota para Liampoo, com propofito de fe reformar de gente ôc nauios de remo, para tornar de nouo a correr a coita de Ainao,& yr pela enfeada da Cauchenchina d entro às minas de Quoanjaparu, on- de tinha por nouas que auia féis caías muyto grandes cheyas de prata, a fora outra mor íòma que nas fundi- ções fe lauraua abordada agoa, on-

I

dos fazer muyto ricos. A que o pan- jao reípódeo,eu fènhor Capirão,naó tenho tanto quanto algús cuydaò de mim, mas ja em outro tempo tiue muyto, & também deíaítres da for- tuna;como eífe teu de que agora me defte conta,meleuaraó amayor par te da minha riqueza, & por iíto rece- yodemeyrmeter emPatane, onde tenho molher& filhos, porque fey certo que me ha el Rey de tomar quanto leuo, porque me vim de la íem fua licença, & ha de fazer difto peçonha,fó a fim de me roubar, co- mo ja alguas vezes fez a outros por muyto menos caufa que efta, de que me pode arguyr,pelo qual te digo q fequiferes& fores contente que eu te acompanhe neíTaviagé que que- res fazer,com cem homés que trago nefte meu junco, & quinze peças de artilharia,& [trinta efpingardas, afo- ra outras mais de quarenta que trazé eftes Portuguefes que andão comigo, eu o farey de muyto boa vontade,co tanto que do que fe aquirir íe me ha de dar a terça parte, & diíTo,fenhor, fe te praz me has de dar hum aísina- do teu, & jurarme em tua ley de mo cumprires inteyramente, António de Farialhe aceitou o orferecimento muyto boa võtade, ôc defpois de lho agradecer cem muytas palauras,& o abraçar pcVelle muytas vezes,lhe ju- rou nus fantosEuangelhos de o fazer afsi como lho pedia falta nenhúa, &diíTo lhe paflbu logo hum aísina- do, em que dez ou doze dos mais honrados foraò ceftemiinhas. £ com

~ ~~~ cftç

M

^Peregrinações

ehVpa&o fe forão ambos meter num rio que eftaua adiante daly cinco le- goas,quefe chamaua Anay,onde fe proueiaó de tudo o que auiao my- ftcra. troco de cem cruzados que de-? ra6 de peita ao Mandarim Capitão da cidade,

CAT. LVll

Çpmo encontrámos rio mar hua

embarcação pequena de pefcadores

em que hão oito Tortuguefes muy~

toferidosy & da conta que elles

demo a António de Faria

dafua defauentura.

Artidos nos deíle rio. de Anay muyto bem apercebidos de tudo o neceíTsrio para a via- gem que eftaua deter- minado fazerfe, pareceo bem a An- tónio de Faria por coníelho do Qui- ay Panjão, de que fèmpre fez muyto cafo,pelo conferuar em íua amizade, yr íurgir no porto do Chincheo,pa- xaahy fe informar pelos Portugue- ies que eraò vindos da C,unda, de Nlalaca,de Timor, & dePatane,de algúas coufas neceíTarias a feu pro- poíito, & íe tinhão nouas de Liam- poo,porque íe íoaua então pela terra que era la ida húaarmackile quatro- cento? juncos, em que hiãocem mil homés por mandado dei Rey da CHina a prender os noííos que xe- lidião dafséto,& queimarlhe as nãos, & as pouoaçoeSjporque os não que-

ria em íua terra, por fer Informado nouamentequenãoeraõ elles geme taõ fiel & pacifica como antes lhe ti- nhaó dito. Chegados nos ao porto do Chincheo achamos ahy cinco nãos de Portugueíès que auia ja rui mes q eraó chegadas d eftas partes que âi[- fe, dos quais fomos muyto bem re- cebidos & agafalhados com muyta fefta & contentamento, ôc defpois q nos deraò nouas da teara, & da mer- cancia^ da paz & quietação do por- to,nos diíTeraó que de Liampoo não íãbião nada,maisquedízeremlhe os Chins,que auia muytosPortugue* fes de inuernada,& outros vindos no uamente de Malaca, da Coinda, de Sião,&dePatane, & que fazia© na terra fuás fazendas pacificamente, ôc qu# a armada grofla de que nos re- miamos,não eralà,mas que fe pre- fumia que era ida âs ilhas do Goto em focorro do Sucão de Pontir,aqiie fe dezia que hum feu cunhado tyran- nicamente tinha tomado o reyno, & porque efte Sucãp íe fizera nouamé- te fubdito do Rey da China^om tri- buto de cem mil taeis cada anno lhe dera aquella armada dos quatrocé- tos juncos, em que fe affirmaua que hiãocem mil homés para o metere depoífedo reyno ou fenhorio que lhe rinha© tomado; com a qual noua todos ficamos defcançjados,& demos poriffo muytas graças a noffo Se- nhor. Defpois que nefte porto do Chincheo eftiuemos noue djas nos íàimos delie,leuando ja em ribíla cõ- panhia trinta Ôc cinco íoldados mais, deftas cinco nãos, a que António de

Faria

Fernão £M.endezl?into,

Faria fez bom partido, & feguimos nolTo caminho na via do reyno de Liampoo. E auendo ja cinco dias q nauegatiamos com ventos pòteyros, vellejando às voltas de hum bordo no outro,fem podermos furdir anan- te,húa noite ao quarto da prima en- contramos hum paraoo pequeno de peícadoresemque vinhaóoito Por- tuguefes muyto feridos, dos quais os dous fe chamauão Mem Taborda, Sc António Anriquez,ambos homés honrados,& ricos,& de muyto nome naquellas partes, & por ifío os no- meey a elles particularmente; ôc afsi eftes como todos os outros vinhão tão deítroçados que era coufa piado- fa velos. Chegado efte paraoo ao jíí- co de António deFaria,ellefezlogo recolher dentro eftes oito Ponugue- íès,os quais em fubindo acima que o viraò íè lhe lançarão todos aos peis, & elle os recebeo com muy ta afabili- dade ôc gafalhado acompanhado de aííaz de lagrimas,pelos ver rotos,nus ôc defca!ços,& banhados no íeu pró- prio íangue.E vendoosdaquella ma- neyra lhes perguntou pela caufa de íua defauentura,& elles lha contarão com moítras de muyto fenti mento, dizendo,que auia dezalTete dias que tinhaó partido de Liãpoo para Ma- laca, com propofíto de paíTarem a India,felhe a monção não faltaíTe,& que fendo tanto auante como o ilheo de C,umbor os cometera hum la- drão Guzarate, por nome Coja Acé, com três juncos ôc quatro lanteaas, nas quais fete embarcações trazia quinhentos homés,de que os cento &

6z

cinquenta eraõ Mouros Lufoés, Ôc Borneos,& Iaos, ôc Champaas, tudo gente da outra cofia do Malayo, Sc pelejando com elles cleíde a húa ho- ra atè as quatro defpois do meyo dia, os tomara com morte de oitenta ôc duas peíToas,em que entrarão dezoi- to Portuguefes,a fora qnaii outras ta- tás que leuara catiuas, & que no jun- co lhes tomara de emprego feu ôc de partes mais de cem mil taeis. E jun- tamente com ifto lhe contarão ou- tras particularidades tão laftimofas, que a algús dos circumftantes que as ouuião íe enxergou bem nos olhos a dor ôc magoa que tinhão delles.Sufc penío ficou António de Faria Ôc pen- fatiuohum grande eípaço, imagina- do no q aqudles homés lhe tinhão ditOj&virandofe para elles lhes difc íè,peçouos fenhores que me digais-ja que efla briga foy tal como me con* «:afr.es, como foy pofsiuel eícapardes vós mais que os outros? a que elles refponderaó, defpois de termos pe- lejado às bombardadas obra de húa hora ou hora Ôc meya, os três juncos grandes nos abalroarão cinco vezes, Ôc das grandes pancadas que nos de- raóTnosabrio onoíTohúa grande a- goa pela roda de proa, ôc tão grofía, que com ella nos hiamos ao fundo,a qual foy a principal caufa da noíla perdiçaó,porque querendoa tomar, nos era forçado baldear muyta fazé» da para yrmos dar com ella, ôc occu- pando nifto agente,apertauãoos ini- migos com noíco de maneyra, que para nos defendermos nos era tam- bém forçado deixarmos o que fazia

mos

Teiegrínaçoes de

mós por acudirmos acima,& eftando fomos nós nefte trabalho,& com a mor par- te da gente ferida, & algús também ja mortos, fe ateou o fogo em hum dcs feus juncos, & pegando nooutro que eítaua junto delle, lhes foy for- çado largaré as abalroas para fe de- íempeçarem hum do outro, o q não puderaó fazer tanto a feu faluo por muyto que nifTo trabalharaó,q hum delies não ardeíTeatéo lume da a- goa,& toda a gente delleíè laçou ao mar,de que fe afogou a mayor par-» te,nefte tempo acabou onoíTojunco deaíTentarfobrc a eftacadadaspefc queyras que eftauáo junto do arreci- fe antes que cheguem aboca do no onde agora eflà o pagode dos Sia- mês. E tanto que o perro do Coja Acem, que era o que nos tinha afer- ra cl o,nos vio daquella maneyra, en- trou de romania com nofco com hua grande foma de Mouros todos arma- dos de couras & fayas de malha, Ôc em chegando nos derrubarão logo dos nofíos paíTante de cinquenta,em que os dezoito foraõ Portuguefes, & nòs, defta maneyra q nos voíTa mer- cê vè afsi feridos ôc queimados, por não termos nenhum remédio, nos lançamos a huamanchua que tínha- mos atracada por popa do noíTo jun- co, na qual prouue a Deos que nos faluamos fós quinze peíToas, de que ja ontem morrerão as duas, & as tre- ze que miiagrofamente efcapamos, vimos da maneyra que voíTa mercê nos vé,oito Portuguefes,& cinco mo ços noíTos,& fugindo nefta manchua por entre a eftacada & a terra, nos

«ofendo cos penedos, para que não pudeíTem elles chegar a nós, & acabando as lanteaas de re- colher os feus que andauão ainda na agoa, fe foraó com grande grita ôc muytos tangeres ao nofíò junco, no qual embaraçados com a cubicada prefa,prouue a noíTo Senhor que iífo foy caufa de nos não feguire. E fen- do nefte tempo ja quaíi Sol pofto, fe meterão pelo rio dentro com feita de muytos tangeres ôc apupadas como quem triunfaua dos miíèraueis de nos. António de Faria lhe diíTeen- tão,fegundo iíío ahy deuem de eftar agora dentro neíTerio, pois vaó taõ deftroçados como dizeis, & parece- me quenemo voíTo junco,né o-ou* tro que eftaua abalroado co que íe queimou lhe podem feruir para na-» da, Ôc no outro grande com que vos elíe abalroou, algúa gente lhe auieis de matar ôc ferir, a qtie elles ambos refponderaó, que muyta Ihemata- rão,& muyta lhe ferirão. António de Faria então tirando o barrete,cosjoe lhos no chaõ,as mãos aleuantadas, Ôc os olhos no Ceo, diíTe comaíTazde lagrimas: Senhor Ieju Chrifto, afsi, como tu meu Deos es verdadeyra ef perança dos que em ty confiaó, eii mais peccador que todos os homés te peço com muyta humildade em nome deites teus feruos, cujas almas tu remiíte co teu preciofo langue, q nos des esforço Ôc vitoria cótra eíte inimigo cruel matador detãtos Por- tuguefes,o qual eu, co teu fauor ôc a- juda,& por honra doteu fanto nome determino de yr bufcar como ate-

gora

Fernão Mcnde^T imo. fa

gora tenho feito,paraque a maós de- pelo receyo que teue de lhe podcrc

iíes cens feruos & fieis Toldados pa- gue o que ha tanto tempo que nos deue,ao q todos os que eítauão pre- íèntesem húa voz refponderaó, a cl- les,a ellesco nome de Chrifto,porque o perro pagara a noueado oq deue afsi a nos, como a eftes pobres com- panheyros. E dando com eíte fcruor húa grande grita, marearão as vellas em popa para o porto de Lailooq fícaua atras oito legoas, ao qual por confelho que fobre iíío fe teue, "An- tónio de Faria fe foy aparelhar para efta briga que eíperaua de ter com eíte coflàyro, em bufca do qual, co- mo atras fica dito, tinha gaitado tan- to tempo, íem atè então poder ter nouas delle em nenhum porto de quantos correra.

QAT. IV III

Do que António de Faria fe^em Lailooy ondefe apercebeo para jr pelejar com Coja Acem.

Vrgindo nòs ao outro dia pela menham no porto de Lailoo , o Quiay Panjao que An tonio de Faria leuaua por companheyro, que como feja diíTe, era Chim de naçaó, & tinha muytos parentes naquella terra,& e- ranellamuyto conhecido & valido

fazer algum dano,como por húa pej. ta de mil cruzados que António de Faria lhe deu por illb.com que ficou facisFeico. E dcíembaicaudo algús dos noíTos em terra,compraraó logo com muytapreffa todas as coufas de que cinhaõ necefsidadc,como íoy fa- litrc,& enxofre para poluora, chum- bo, pilouros, mantimentos, amarras, azeue,breu,eíiopa, madeyra, taboa- do,armas,zargunchos,paostoítados, vergas,pauefes,entenas, calhao, pol- liame^riças^ ancoras,fízeraó agoa- da, & feproueraó de efquipacáode gente do mar, porque ainda que eíte lugar não era de mais que de trezen- tos atè quatrocentos vezinhos, auia tanto dirtonelle, & pelas aldeãs ao redorvque em verdade affirmo que quaíí faltão palauras para o encare- cer,porque efta excellenciatem a ter ra da China iobre todas as outras,íeL" mais abaítada de tudo o que íè po- de defejar, que todas quantas ha no mundo. E como António de Faria era muyto largo de condiçaó,& def- pendiado mote mayor,pagaua eftas coufas tanto a vontade dos que lhas vendião, queiíTo couíàuavirlhe tu- do aos montes,de modo que em tre- ze dias fahio deite porto com dous juncos nouos muyto grandes & aL terofos que fe cõpraraó a troco dos pequenos que leuaua, & duas lãteaas de remo lançadas do eítaíeyro, & cé- com todos,pedio ao Mandarim,que to & feíTenta marinheyros, afsi para era Capitão do lugar, quepornoíTo chuzma, como para marearem as dinheyro nos defíe o q ouuefTemos vellas, Feito efte apercebimento de my fter,o que lhe elle concedeo, afsi todas as coufas necefíarias, & poftos

nos

^Peregrinações de

nòs de.vetgadaltOj&as ancoras a pi- uentaraõcom cubica do muyto que

que para nos partirmos,fe fez alardo geral de toda a gente que hia na ar- mada, «3c fe acharão por todas qui- nhentas peííòas, afsi de peleja como de íertiíço,em queentrauão nouenta & cinco Portuguefes,todos géte mã- ceba& determinada para qualquer bom feito, & os mais, moços noííos Ôc marinheyros Sc gente da outra co- ita que o Quiay Panjáo trazia a íòl- do, os quais também erao exercita- dos na guerra como coíTayros que a continuauão auia cinco annqs. Acha- raófe cambem na armada cento ôc feílènta eJpingardas, & quarenta pe- ças de artilharia de bronze, em que entrauáo doze falcões, dous camel- los, húa efpera, & cinco roqueyros q tirauão pilouros de pedreyros, ôc os mais berços, com dous caés como meyaseíperas,&feíTenta quintais de poluora, cinquenta Ôc quatro debo- barda, Ôc féis de efpingarda, a fora a que ja era dada aos arcabuzeiros, de t nouecentas panellas,as quatrocentas depoluora.&asmais decai virgem era pòjComo os Chins cuítumâo, Sc muycas rocas de pedra, & fetas, Ôc la- ças, & bombas de fogo que humle- uantifco nos fazia por feu eílipendio que por ifíò fe lhe daua,& quatro mil zargunchos com pótas de ferro, que ao abalroar feruem de arremeííb, ôc íeis bateis decalhao,porfer coufacõ q toda a eíquipaçaó peleja, ôc doze arpeos de abalroar com íuas fateixas talingadas em cadeas de ferro muy- to compridas,& outros muy tos arti- fícios de fogo que os Chins nos in*

por iíTo fe lhes daua. Com ifto nos partimos deite lugar de Lailoo muy to embandeirados,com as gauias tol- dadas depannosdefeda,& os juncos &lorchas com duas ordés de paue- fes por banda, com íeus bailéus de popa ôc de proa, ôc outros fobrebai- leus leuadiços para fe poderé armar nos tempos necelTariosj ôc prouuea noflb Senhor que dentro de três dias chegamos às pefqueíras onde Coja Acem tinha tomado o júco dos Por-, tuguefeSjôc tanto que anoiteceo An- tónio de Faria mandou eípiaro rio, onde tinha por nouas que elle eíta- ua. As efpias trouxeraõ a bordo hum paraoodepefeadores que tomarão, em que vinhaó féis homes naturais da terra,os quais difleraó que eílaua o CoíTayro daly duas legoas metido num rio que fe chamaua Tinlau,có- certando o junco q tomara aos Por- tuguefes,para nelle ôc em outros dous que tinha feyr para Sião donde era naturalj&que fe auia de partir daly a dez dias, coma qual informação António de Faria aflèntoupor pare- cer de algíis que para iíío foraó cha- mados,que todauia íè mandaíTc ver pelos olhos, porque húa couía em q tanto fe auenturaua, não íe auia de cometer afsi às cegas, fenão muyto bem vifta &efcudrinJ9ada,& que ío- bre a certeza do que fe viíFe, fe de- terminaria o que pareceífe bem a to- dos; ôc defpejando então o paraoo em que yieraó os féis pefeadores, o eiquiparaó dos marinheyros do jú- co do QuiayPanjâo,por ferefquipa-

çao

Fernão Mendes Tinto. çao mais fiel & fegura, com íbs dous dos que fe cornarão, porq os mais fi- carão cm refés,& mandarão nelle íoldado por nome Vicente, Morofa homem esforçado & muyto fefudo, em trajos de Chim por não fer co- nhecido, o qual chegando ao lu<*ar Dnde os inimigos eftauão, fingindo q andaua pefeando como outros fa- zião, vio & efpiou tudo quanto era neceflario,& tornado a bordo deu relação do que vira, & affirmou que 3 inimigo eftaua tão tomado às nãos,que em chegando aueria pou- :o que fazer nelle. Com efta infor- naçaò fe ajuntarão todos nojunco kQuiay Panjaó, onde António de ^aria,pelo animar & fauorecer,& por he dar aquella honra,quiz que foííè :fte confelho,& nelle fe aíTentou que anto que foíTe noite foíTemos í urgir ia bocado rio,paraque ante menhã, :o nome de Chrifto, deíTemos nos i- limigos; &concluydos todos neíte >arecer,proueo António de Faria na >rdem & maneyra que fe auia de ter ia entrada do rio, & no cometer os nimigosj Ôc repartindo a gente, pós 10 junco de Quiay Panjão trinta Por uguefes quais elíe quiz, porque em udo lhe fazia a vontade, por fer afsi leceííario, & nas duas- lanteaas pós eis em cada hua,& no juco de Chri- touao Borralho vinte,& com elle fi- arão os mais que eraó trinta ôc três, : fora os eícrauos ôc outra muyta gé- e Chriftam valentes homés,& rnuy- o fieis, ôc aísi concertados na ordem íeceííaria para o que fe eíperaua fa- :er com a ajuda de noíTo Senhor,deii

à vella para o rio de Tinlau, onde chegou quafi às Aue Marias, ôc paf- fando a noite com boa vigia,tanro q foraó as três horas defpois de meya noite,fe fez â vella, ôc fov demandar o inimigo que eftaua daly pouco mais de meya legoa pelo rio acima.

CAT. LIX.

Como António de Faria pelejou,

co cojfayro Coja Acem, <&doq

com elle Ibejocedeo.

Ellejando nós pelo rio acima com vento ôc maré que noíTo Senhor então nos deu, em me- nos de húa hora che- gamos onde os inimigos eftauáo,que ate efte tempo nos não tinhaõ ainda fentido,mas como elles eraó ladroes Ôc fe temião da gente da terra pelos males & roubos que alycada dia lhe faziáo,eftauão taóaparelhados,& ti* nhão tão boa vigia,que em nos ven- do, tocarão hum fino muyto apref- fadamente, ao íom do qual foy ta- manho o rumor ôc a reuolta da gen- te, afsi da que eftaua em terra como da que eftaua embarçada,que não a-1 uia quem fe ouuiíTe com elles, o que vendo António de Faria bradou lo- go,dizendo, eya fènhores ôc irmãos meus,a elles,a elles,co nome de Chri- fto antes que as fuás lorchas lhe acu-j dão,Santiago, ôc defparando toda a noíTa artilharia prouue a nofíò Se- nhor que fe empregou taõ bem, que dos mais esforçados, que ja nefte té?

tperigrmáçoes de

po eílauao encima do chapiteo, ve- cfcotilha abaixò^izendojguarte da-

yologo abaixo amayorparte feitos em pedaços,que foy hum bom pro- noftico do noíTo defejo; após ifto os noílbs tiradores, que ferião cento & feífenta, pondo fogo a toda a arca- buzaria, conforme aoíinal que lhes fora feito,os conuefes dambos csjíí- cos ficarão taó vazios da multidão q antes nelles fe via, que ja nenhu dos inimigos oufaua de aparecer. Os nofc fos dous juncos,abalroando então os dous dos inimigos afsi comoeftauáo, a briga fe trauou entre todos de ma- neyra, que realmente confeíTo q não me atreuo a particularizar o que nel- la pafíbu,indaque me achey prefen- te,porque ainda nefte tempo a me- nham não era bem clara,& a reuolta dos inimigos & noíla era tamanha, juntamente co eftrondo dos tãbores, bacias, &íinos,& com as gritas &bra dos de hús & dos outros,acompanha dos de muytos pilouros de artilha- ria^ de arcabuzaria,& na terra o re- tombar dos ecos pelas concauidades dos valles,&outeyros, que as carnes tremião de medo,& durado afsi eíU briga por efpaço de hum quarto de ( hora, as fuás lorchas & lanteaas lhe acudirão de terra com muyta gente de refrefeo, o que vendo hum Dio- go Meyrélez que vinha no junco de QuiayPanjáo, & que o feu conde- ftabre dos tiros que fazia nenhu em- pregaua, por andar tão pafmado & fora defy que nenhua coufa acerta- va, eílando elle então para dar fogo a hum camello meyo toruado,o em- purrou tão rijo que deu com elle da

hy vilão, que não preftas para nada, porque eíle tiro neíle tempo he pa- ra os homéscomoeu, & não para os tais como tu,& apontando o caméllo por fuás miras & regra de efquadria, de que fabia arrezoadamente, deu fogo à peça que eftaua carregada pilouro & roca de pedras,& tomado a primeyra lorcha,que vinha na diã- teyra por capitaina de quatro,a def- coíèo toda de popa a proa pelo ai - catrate da banda deílribordo,com q tudo ficou rafo com a agoa de rna- neyra,quelogo aly a pique íe foy ao fundo, fem delia fe faluar peíToa ne- nhua^ varejando a moniçaó da ro- ca por cima deu no conuês doutra lorcha que vinha hum pouco mais atras, & lhe matou o Capitão, & féis ou fete que eftauão junto delle, de q as outras duas ficarão tão aíTombra- das que querendo tornar a voltar pa- ra terra, fe embaraçarão ambas nos guardins das vellas de maneyra que nenhua delias fe pode mais defem- baraçar,& afsi prefas húa na outra ftiueraò ambas eftacadas fem pode- rem yr para trás, nem para diante. Vendo então os Capitães das noíTas duas lorchas (os quais fe chamauão Gafpar Doliueyra,& Vicente Moro- fa) o tempo difpoíto para efFeituarc o defejo que trazião^ a inueja hon- rofa de que ambos íe picauão, arre- meterão juntamente a ellas,& lança- d olhe muyta foma de panellas d< poluora, fe ateou o fogo em amba: de maneyra, que afsi juntas como e ftauáo arderão até o lume da agoa

çoir

com que a mayor parte da gente- del- ias fe lançou ao mar, & os noflos os acabarão aly de matar a todos ás zar rinchadas, fem hum ficar viuo; 5c fomente neftas três lorchas mor- rerão palTante de duzentas peflbasj ôc a outra que leuaua o Capitão mor to tão pouco não podecfcapar, por- que Quiay Panjaó foy trás cila na fuá champana, que era o batel do íeu junco, & a foy tomar ja pegada com terra, mas fem gente nenhúa, porque toda fe lhe lançou ao mar, de que a mayor parte íe perdeo tam bem nús penedos que eftauáo junco da praya, com a qual vida os inimi- gos que ainda eftauaó nos juncos, q podião fer até cento ôc cinquenta, ôc todos Mouros Lufoés,& Borneos,có alaua miítura de Iaos, começarão a enfraquecer de maneyra,que muycos começauão ja a fe lançar ao mar. O perro do Coja Acem que até eíle tempo não era ainda conhecido,acu- dio com muyta preíTa ao defmãcho que via nos íeus, armado com hua coura de laminas de citim crameíim franjada douro que fora de Portu- gueíes, ôi bradando alto paraqne to- dos o ouuiíTem,diíTe por três vezes, lah hilah hilah lah Muhamed roçol halah,oMaíToleymoés ôc homésju- ftos da fanta ley de Mafamede,como vos deixais vencer afsi de hua gente tão fraca como faó eíles caés, fem mais animo que de galinhas brancas & de molheres barbadas?a elles,a el- les, que certa temos a promeíTa do liuro das flores, em que o Profeta Koby abadou de deleites aos daroe-

Femao Mendc^Phito. 6$

zes da caía de Meca, afsi fará oje a vòs Ôc a mim fe nos banharmos no Tangue deites cafres fem ley, com as quais malditas palauras o diabo os esforçou de maneyra, que fazendofe todos num corpo arnoucos.tornaraò a voltar tão esrorçadamente,que era cfpanto ver como íemecião nas noí- ias efpadas. António de Faria então bradando também aos fcus lhes dif- íe, àChriftaós ôc fenhores meus, fe eftes íe esíorçaó na maldita feita do diabo,esforcemonos nós em Chriílo noíío Senhor poílo naCruz por nós q nos não hadcdesépararpor mais pec cadores q fejamos, porq em fim fo- mos feus3o ú eftes perros não faó. E arremetendo eíle feruor ôc zelo da ao Coji Acem como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu còm húa efpadadambalasmaósq trazia hua tão grande cotilada pela cabeça, que cortandolhe Bum barrete de malha que trazia,o derrubou logo no chaó, &tornandolhlcom outro reuès lhe decepou ambas as pernas de que fe não pode maisp.leuantar,oqual fen- do viílo pelos uuSjderaó hua grande grita , ôc arremetendo a António de Faria fe igilalaraó com eíle hus cinco ou íeis cop tanto animo &ou- fadia, que ncníua conta fizeraó de ^trinta Portuguejes de que ellc eíla- ua rodeado,& He deraò duas cutila- das com q o tiurao quaíi no chaó, ó que vendo os jioíTos, acudirão lo- go com muyta jr, eífa, ôc esforçãdoos aly noíTo Senhota fizerão de maney ra q em pouco itíus de dous credos fgraõ mortos dos\mmigos aly íbbre

oCoJA

^erigríndçoes de Coja Accm quarenta & oito, & dos ftiçoés da fua maldita feita era delles

noífos quatorze fomente de qfosos cinco foraó Portuguefes, & os mais moços eferauos mnyco bósChriítios & muyto leays. Ia neíte tepo os q fi- cauao começarão a enfraquecer,& fc

muyto venerado.

CÀT.

LI

T>o mais que António de Faria

foraó retirando defordenadamente fez defpois que QUUe e&a vitoria,

&• cia liberalidade que aquj vfou cos Tortugueíes de Liâmpoo.

Procefíò deíla cruel & aípera peleja, cujo fim roy efta gloriofa vito- ria,que tenho cotado, quiz efereuer afsi bre-

para os chapiteos da proa, tençaò de fe fazerem ahy fortes,a que vinte foldados dos trinta q eftauão nojun- co de Quiay Panjão acudirão com muyta prefíà,& tomandoos de rofto antes que fe fenhorealTem doq pre- tendião, os apertarão de maneyra, q os flzeraô lançar a todos ao mar, tamanho defatino q hús cahiao por cima dos outros. Animados então os noífos co nome de Chrifto noífo Se- nhor por quem çhamauão continua* méte,& a vitoria qja conheciaó, & com a muyta honraq tinhaõ ga- nhada,os acabarão aly de matar, & conííimir a todos,fem ficarem delles mais que fós cinco qie tomarão vi- uos,os quais defpois de prefos & ata- dos de peis& de maós, & lançados embaixo na bomba ç ara com tratos fe lhe fazerem algíus preguntas, fe degolarão às dentadas hus aos ou- tros, có receyo da norte que fe lhes podia dar, E eftes tanbem foraó fei- tos em quartos peksnoíTos moços, & lançados ao mar, em companhia do perro do Coja A:em íêu Capitão &Caciz mayor delRey de Bintão, & derramador & b<bedor do fangue Portuguez, como fe elle intitulaua nos começos das fias cartas, & publi- camétepregauaaodos os Mouros, por refpeito do cpal, & pelas fuper*

ueméte,& em foma,porq fe me ouue ra de pór a cotar por extéío todas as particularidades della,afsi do muyto q os noífos fizeraó,como do grande esforço com que os inimigos íe de- fenderaó,alem de não ter eu cabedal para tanto, me fora neceíTario fazer hu proceífo muyto mais largo,& húa hiftoria muyto mais cóprida que e- fía,porem como minha tençaó he ío mete tocar eítas coufas como de cor- rida, trabalho fempre quanto poíTo por íèr breue em muy tas coufas em q por ventura outros engenhos milho- res q o meu fe alargarão muy to,& fi- zeraó muyto cafo delias fe as viraó, ou as efcreueraój Ôc por iíTo eu não tocando agora mais q aquellas cou- fas q de necefsidade fe haõ de efere- uer,me torno ao de q hia tratado., A primeira coufa em que António de Faria entendeo defpois deita vitoria foy na cura do? feridos, que por to- dos íenaò noueta & dous, de que os

mais

Fernão Mende^JPinto. 66

mais foraõ Fortugnefes & moços nof da cheya de doentes, & feridos que los: após iilo ..querendo faber o nu- Coja acern aly tinha em cura, entre

mero dos mortos, achou dos noflbs quaréta & dous,cntre os quais foraõ oito Portuguefes, q António de Fa- ria moftrou lentirmais que tudo, Ôc dos inimigos trezentos & oitenta, de q fós os cento & cinquenta foraõ a ferro Ôc a fogo,& todos os mais afo- gados. E ainda quç eftaviótoria foy de todos muy to feftejada,não deixou de auer nella aííaz de lagrimas publi- cas ôc fecretas pela morte dos cópa- nheyros, q ainda eftauão por enter.- rar,& os mais delles as cabeças fei- tas em quartos das machadinhas q os inimigos pelejauão. António de Faria inda q eftaua com três feridas defembarcoulogo em terra com to- da a gente q eftaua para o poder a- companhar,onde primeyro que tu- do fe proueo no enterramento dos mortos,na qual obra fe gaftou a mor parte do dia. Após iílo fe foy logo An tomo de Faria a correr toda a ilha em roda,para ver fe auia nelle algúa gé~ te,& foy dar nu ualle muy to aprazi- ueide muy tas hortas & pumaresde muytadiuerfidadedefruitas,noqual eftaua húa aldeã de quarenta ou cin- quenta cafas térreas, q Coja acem ti- nha faqueada, Ôc dado a morte a al- gus dos moradores delia q não pude- rão fugir. Mais abaixo do valle obra de hu tiro de beíla, ao longo de húa frefca ribeyra de agoa doce em q a- uia muyta quantidade de muges, Ôc truitas,& roballos, eftaua húa terrece na ou caía grande, q parecia fer tem- plo daquella aldeã, a qual eftaua toj

os quais auia algús Mouros parentes feu5,& outros também honrados q elle trazia a ioldo, q por todos eraõ nouenta & feis,eftes em vendo Anto nio de Faria,derão húa grande grita como que lhe pedião misericórdia, a qual elle então não quiz vfar com el- les,dãdo por razão que fe não podia dar vida a quem tantos Chriítãos ti- nha mortos,& mãdandolhe pòr o fo- go por leis ou fete partes, como a ca- ía era de madeyra breada ôc cuberta de folha de paímeyra Teca, ardeo de manevra, que foy húa eípantoía coufadever, & em parte piadofa, peia horribilidade dos gritos que os miíeraueis dauão dentro quando a labareda começou deíè atear por todas as partes: algús delles fe quife- raò lançar pelas freftas que a caía ti- nha por cima, poremos noflTos, co- mo magoados, os receberão de ma- neyra, que no ar eraõ eípetadosem muy tas chuças & lanças. Acabada e- fta crueza, tornandofe António de Faria á praya onde eftaua o junco q Coja acem tomara auia vinte Ôc íeis dias aos Portuguefes deLiampoo, entendeo logo em o lançar ao mar, porque janefte tempo eftaua concer- tado^ defpois de fer na agoa o en- tregou a feus donos, que eraõ Mem Taborda, ôc António Anriquez, co- mo atras fiz menção.Efazédoospór a mão a ambos num liuro de rezar que tinha na mão, lhes diíTe : Eu em nome deftes meus irmãos & có- panheyrosafsi viuos como mortos, l $ aquém

^erigrinaçoh de

aquém efte voffo junco tem euftado caías cm que eftaua a enxuta,& a mi-

tantas vidas & tanto fangue quanto oje viftes, vos faço efmola como Chri flão de tudo,porqDeos noffo Senhor nola receba por effa no feu íanto rey no, & nos queira dar neíta vida per- dão de noííòs peccados,& na outra a fua gloria, como confio que dará a eftes noíTos irmãos que oje morre- rão como bõs & fieis Chriftaós por fua fanta Catholicaj porem vos pe ço & encomendo muy to, Ôc vos a- moefto por efte juramento que vos dou que não tomeis mais que a vof- fa fazenda fomente, digo toda a que trazíeis de Liãpoo,aísi voííacomo de partes nefte voíTojunco,porquenem cu vos dou mais,nem he rezão q vós atomeis,porque faremos ambos ni£ íoo que nãodeuemos, cu emvola dar,& vós em a tomardes. Mem Ta- borda^ António Anriquez,q quica não clperauão aquillo delle,íelhe la- çarão aos peis cos olhos cheyos de a- goa, ôc querendo palauras darlhe as graças pela mercê que lhes fazia,o Ímpeto das lagrimas lho impediode maneyra que fe tornou aly a renouar numlaftimofo ôctrifte pranto pelos mortos q aly eftauãoja enterrados,& com a terra que tinhão encima de fy ainda banhada no íeu frcíco íangue. Os dous começarão logo a enten- der em cobrarem fua fazenda, &fe foraó por toda a ilha com obra de cinquenta ou feíTenta moços q os fc- nhores delies lhe empreftaraò, a re- colher a feda molhada q ainda eftaua a enxugar, de que todas as aruores cftauãocheyas, a fora mais 4c duas

lhor acondicionada, que, como elles tinhão dito , eraò cem miltaeisde emprego, no qualtinhaó parte mais de cem homés, afsi dos que ficauão cm Liampoo,cómo de outros q efta- uão em Malaca,a quem fe ella li mã- daua, E a fazenda que eftes dous ho- més ainda recolherão, valeria de cc mil cruzados para cima, porque a mais, que podia fer a terça parte, fe perdeo na podre, na molhada, na quebrada, & na furtada,de que nun- ca fe foube parte. Recolhendofe a- pos ifto António de Faria para a fua embarcação, não entendeo aquelle dia em mais que em viíitar ôc pro- uer os feridos, ôc agafalhar os folda- dos,por fer ja quafi noite,& como ao outro dia foy menham clara fe foy ao júco grade q tinha tomado,oquai eftaua ainda cheyo dos corpos mor* tos do dia dantes,& mãdandoos lan- çar todos ao mar da maneyra cj efta* uão, ao perro do Coja Acem, por fer mais hóradoí& merecer maisfau- fto ôc cerimonia nas fuás exéquias, madou tomar aísi veftido Sc armado como ainda jazia,& feito em quartos o mandou tãbem lançar ao mar, on* de a fepultura q então teueo feu cor- po,por afsi o merecer fua pefíba, Sc fuás obras,foraó buchos de lagartos, de qandaua grade quãtidade abor- do d© júco à carniça dos mortos q fe lãçauão,ao qual António deFana,em lugar de oração que lhe rezaua pe- la alma, diííe, andar muy ti eramà para eíTeinferno,ondc a voíTa enfuf- cada alma agora çftarà gozando dos

deleites

Fernão Mende^JPinto. 67

à cl cites de Mafamede, como ontem CA 7*. LXL

com grandes bradas pregaueis a ef- loutroscaés tais como vos. E fazen- do lo^o vir perante fy todos os eícra- ucs,catiuos, afsi faós' como feridos que trazia em lua companhia, man- dou também chamar os ienhores dei les & a todos lhes fez húa falia de ho mem bom Chriítio, como na ver* dade o era, em que lhes pedio que pelo amor de Deos tiueííem todos por bem de lhes darem liberdade da maneyra que lho elle tinha prometi- do antes da peleja,porque elle da lua fazenda lho fatisfaria nuiyto à íua vontade, a que todos refponderaó que pois fua mercê afsi o auia por bem, elleseraómuyto contentes, ôc os auião por forros & liures daquel- le dia para íèmpré; & difto íe fez lo- go hum aííento,em que todos afsina- raó, porque por então fe não pode fazer mais; Ôc defpois em Liampoo lhes deraó a rodos fuás cartas de al- forria. Após ifto fe fez inuentayro da fazenda que liquidamente fe a- chou, tirando a que fe deu aos Por- tuguefes,& foy aualiada em cento & trinta mil taeis em prata de lápaó, ôc fazendas limpas, como foraõ, ci- tins, damafeos, feda, retrós, tafetàs, almizcre,& porcelanas de barça muy to finas, porque então- fe não fez re- ceita do mais que efte CoíTayro ti- nha roubado por toda aquella co- ita de Sumbor atè o Fucheo, onde auia paíTante de hum anno que continuaua,

Como António de Faria Je pariio desle rio cfm!au para LiampoQ* & dum defauéntnrado juccejfo que teue na viagem.

"iSa Eípoisdc auer ia vinte & quatro dias que An-> tonto d,e Faria tílaua nefle rio de Tinlau,

te rio de

dentro nos quais os fe-

ridos todos conualeceraó, íè partio para Liampoo,ondeieuaua determi- nado de inuernar,para dahy na entra da do verão cometer a viaee das mi- nas de Quãogeparu, como tinha afc- fentado co Quiay Panjão que leuaua em fua còpanhia: ôc fendo tanto auã- te como a ponta de Micuy, que eílâ em altura de vinte & féis grãos, lhe deu hum rijo contraíle de 'Noroeíte, o qual, por confelho dos Pilotos pai- rou à trinca,por não perder do cami- nho que tinha andado, eíie tempo carregou fobola tarde,com chuueiros ôc mares tão groíTos,que as duas lan- teaas de remo,pe!o náo poderem fb- frer,fe fizeraó ja quafi noite na volta daterra,compropoíito de femetere no rio de Xilendau, que eíraua daly hua les;oa 8c meya. António de Fa- ria tambem,temendo que lhe acon* teceííe algum deíaftre, fe leuou o mais depreíTa que pode, ôc marcan- dofe pela fua efteyra, as foy feguin- do com obra de cinco ou féis palmos de veila fomente, afsi pelas naó ef- correr, como por fer o impeto do yento cão rijo, que não auia podello 1^ eíperar.

tPerigrindçoes de efperar. E como a çarração da noite íi que nada nos aproueitaua, por fer

era muy to grande,& o efearceo arre bentaua todo em frol, não enxergou o baixo que eftaua entre o ilheo & a ponta^do arrecife, & varando por ci- ma delle,deu tamanha pancada,qiífc a. fobrequilha lhe arrebentou logo por quatro lugares, com parte do <couce da quilha debaixo; & queren- do entáo o feu condeftabre dar fogo a hum falcão, para que os outros juncos lhe acudiííem naquelle tra- balho, elle o não quiz confentir di- zendo, que ja quenoflb Senhor era

o tempo tamanho, o mar tão groífo, a noite tão efcura,o eícarceo tão alto, o chuueyro tão forte, &o Ímpeto do vento tão incomportauel,& de re- fegas tão furioTas,que não auia home que as pudefle eíperar co rofto direi- to. Kefte mefmo tempo os outros quatro juncos fizeraó também final como q fe perdião,a que António de Faria,pondo os olhos no Ceo>& aper tãdo as mãos,diíTè alto,q todos o ou- uiraõ,Senhor íefu Chrifto,aísi como tu meu Deos por tua mifericordia to

feruido de elles aly acabarem, não ' mafíe fobre ty fatisfazer na Cruz pe- queria, nem era razão, que também los peccadores, afsi te peço por que

os outros«por feu refpeito aly fe per- deífem, mas que pedia & rogaua a todos que o ajudaflem com traba- lharem em publico com as maõs, & emfecreto pedirem a Deos perdão de íèus peccadoSj& graça para emen- darem a vida, porq íê afsi o fizeflTem de todo feu coração, elle lhes ficaua q muyto cedo fe vimo em íaluo & liures daquelle trabalho. E com ifto arremetendo ao mafto grande, o fez cortar por junto dos tamboretes da fegundacuberta, & em eftecayndo ficou o junco algum tanto quieto, indaquea fua queda euftou a vida de três marinheyros, & de hu moço noífo, q ao cayr os colheo debaixo, & os fez em pedaços,& após efte mã- dou também cortar todos os outros maftos de popa & de proa,& arrafar todas as obras dos gafalhados,de mo do que tudo foy fora até a primeyra cuberta,& com quanto eftas coufas fe fazião com grande preftezá, qua-

es, que permitas por caftígo da tua diuina jufíiça que eu pague as offenfas que eíles homés te flzerão, pois eu fuy a principal cauía de elles peccarem contra tua diuina bódade, porque fe não vejão nefta tnfte noi- te da maneyra q eu por meus pecca- dos agora me vejo, pelo q Senhor te ! peço dor da minha alma, em no- me de todos,inda q não fou dino de me ouuires, q tires os olhos de mim, & os ponhas em ty & no muyto q te curtamos todos por tua infinita mife- ricordiajapos eílas palauras deraó to- dos hua tamanha grita de Senhor Deos miíèricordia,q não auia home q não pafrnaíTe de dor& trifteza.E co mo o natural de todos os homgs he neftesfemelhãtestêpos trabalharem por conferuar a vida, íem lembran- ça de outra couíã nenhua,era tama- nho o defejo que todos tinhão da faluaçaó, que não procurauão por mais que pelos meyos que para iíTo

podião

Fernão Mendez Tinto.

podião ter", pelo qual efquecida de todo a cubiça,fe entendeo logo com toda a prefteza em alijar a fazeda ao mar,& faltando embaixo no praõ o- brade cem homés, afsi Portuguefes como efcrauos & marinheyros, em menos de hua hora foy tudo lança- do ao mar, de maneyra que nenhúa coufa ficou a que Te pudeíTe por no- me que pelos bordos não foííe fora, fenáo quanto foy taõ excefsiuo o de- íãcino deíles homés que ate de doze caixões cheyos de barras de prata q na briga paííada fe tornarão a Coja Acem, nenhum ficou que também não foííe ao mar, fem auer homem delles que tiueííe acordo para fe lé- brar do que aquillo era,a fora outras coufas de muyca valia qne na volta do mais forao por efte trifte cami- nho.

CAT. LXIL

"Do mais trabalho &• perigo em que nos vimos, &■ do /ocorro que úuemos.

Aliando afsi toda a- quella noite nus & def- calç3OS,& efcalaurados, & quafi esbofados do grande trabalho que ti nhamos leuado, prouue a noflò Se- nhor cu e como a menham começou a efclarecer, o vento foy fendo algu tanto menos, com que o junco ficou mais quieto, ainda que ja eftaua af- lèntado fobre a ponta da coroado baixo, ôc com treze palmos de agoa

dentro, & os homcs todos eftauão pegados em cordas da banda de fo- ra, porque os mares grandes q que- brauáo encima no coitado os não a- fogaíTem, ou lançaírcm fobre os pe- nedos,como ja tinhão feito a dez ou doze que íe não preuiniraó diíto, ôc como foy o dia bem claro, quiz nofc fo Senhor Jque nos enxergou o junco de Mem Taborda & António Anri- quez, que toda a noite tinhão paira- do a aruore feca com grandes janga- das de madeyra por popa á Chara-, china que os feus officiaes lhe inuen~ taraõ para podere íuftentar milhor o payro, & como ouue vifta de nos nos veyologo demandar, & em che- gando a nós nos arremedarão muy- ta foma de paos aboyados em cor-, das,paraque nos pegaíTemos nelles, o que nos logo fizemos, ôc niftofc gaitou quaíi hua hora com aíTaz de trabalho de todos, pelo deímancho & defordenada cubica que cada tinha de feroprimeyro que fe fal- naflejO qual foy caufa de íe afogar é vinte & duas peííbas,de que os cinco foraó Portuguefes, que António de Faria mais fentio que toda a perda do junco & da fazenda, inda que não foy tão pequena que não paffaííè de cem mil taeis em fazenda de pra-; ta, porque a mayor parte das prefas que fe tomarão, Ôc do que fe tomou ao Coja Acem fe metera naquelle junco em que andaua António de Faria,por fer mayor & milhor,& em que parecia que corria menos peri^ go que nas outras embarcações que não eraó taõ boas nem taò feguras, 1 4 Defpois

*Perigrindçoh de Defpois que com affaz de trabalho pedra, coufa certo nunca vifta nem

&rifcodenoífas vidas nos recolhe mos aojunco de Mem Taborda, íè gaitou efte dia todo em prantos & lamentações por efte triíte & defaué- turado fucceífo,fem fe íaber parte da mais companhia, mas prouue a nof- fo Senhor que íbbola tarde ouuemos vifta de duas vellas,quede hum bor- do no outro fazião as voltas tãocur- tas,como que pairauao o tempo,por onde conhecemos que eraò da noíTa armada, ôc por fer quafí noite naó pareceo bem yr a ellas,por alguas ra- zoes que paraiííò íe deraó,mas fazé- dolhe forol, nos reíponderaõ logo a noíTo propofito, & fendo ja meyo quarto da alua paífado, chegarão a nòs,& deípois de fazerem fuás faluas aíTaz triftemente, preguntaraõ pelo Capitão mòr?& pela mais cõpanhia, a que entaó fe refpondeo, que como foífe menham lho diriao, & que íe afafíaílèm daly ate que o dia mais a- claraíTe, porq andauão ainda os ma- res tão grofíbs,que poderia aconte- cer algum defaftre. Tanto que a ef« trelladaluaappareceo,& a menham começou a fer clara, vi eraõ dous Por ttiguefesdojuncode QuiayPanjão, os quais vendo António de Faria da maneyra que eilaua metido no juco de Mem Taborda, porque o feuja era perdido, defpois que fouberaó o fucceflb da fua defauentura, elles tã- bem contarão do feú trabalho, que quafí foy iguaí ao noífo, em que dif- lerão que hua refega de vento lhe le- uara três homés ao mar,& os lançara tão longe- conio quafí hum tiro de

ouuida. E também contarão da ma- neira que íe perdera o junco peque- no com cinquenta pejfoas,& as mais delias, ou quafí todas Chriítis, das quais fete foraó Portugueíes,em que entrara Nuno Preto Capitão delle, homem honrado & de grande eípiri- to,como tinha bem moftrado nasad- uerfidadespafladas, o qual António de Faria fentio muy to. Nefte tempo cbegou também hua das duas lan- teaas de que ate então fe náo fabia parte,& contou também de fy aííaz de trabalho,& certificou que a outra quebrara as amarras co tempo,& fo-» ra dar à corta, & que à fua viftafe fi- zera em pedaços na praya, ôc que de toda a gente fe não faluaraó maisq fós treze peíToas, cinco Portugueícs, ôc oito moços Chriftaós, os quais a gente da terra leuara catiuos para hu lugar que fe, cliamaua Nouday- de maneyra que nefta defauenturada tormenta fe perderão dous juncos Ôc hua lorcha ou lânteaa, em que mor- rerão paífante de cem peíToas, onde. entrarão onzePortuguefes,a fora os catiuos. E aperdadetudoafsifazen- da,como prata,peças ricas, embarca- çoés,artilharia,armas, mantimentos, ôc muniçoeSjfoy aualiada em paíTan- te de duzentos mil cruzados, com q o Capitão Ôc os foldados todos fica- rão (em terem de feu mais que o que tinhão vertido. E eftas pancadas tais tem efta coita da China mais que to- dasas das outras terras,pelo quenin- guem pode nauegar feguronella hu anno que lhe não aconteçáo de-

faftres,

íaílres,fe com as conjunções das luas cheyas fe não meter nas colheitas dos portos que tem muytos & muyto bòSjOnde íem nenhum receyofe po- de entrar,porq toda he limpa, tirado fomente Lamau &Sumbor,quetem hús baixos obra de meya legoa das barras da parte do Sul,

CAT. LXIIL

(^omo ^António de Faria teue no- nas dos cinco Tortuguefes que eílauao cattuos^ &• do q fe^fobre ijfo.

Femao Mende^Pinto.

Orno aquella braua tormenta acalmou de todo,Antonio de Faria íe paliou logo ao ou- tro junco grande que tinha tomado a CojaAcem de que então era Capitão Pêro da Sylua de Soufa,& dando a vellafe partio com toda a mais cõpanhia que eraõtres juncos & hualorcha oulanteaa co- mo lhechamão os Chins, & foy íur- gir na angra de Nouday, para dahy faber nouas dos treze catiuos- & má- dou logo â boca da noite dous balões efquipados a efpiar o porto4& fondar o rio,& ver o furgidouro & o íitio da terra,& que nauios eftauão dentro,& outras coufas neceíTarias a fua deter- minação, ôc mandoulhes que traba- lhaflem por tomarem algus homés naturaesda cidade,paraíaber delles a certeza do que pretendia,& lhe da- rem nóuas do que era feito dos Por- tuguefes,porque arreceaua que os ti-

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ueíTem ja leuados pela terra dentro. Os balões fe partirão logo,& às duas horas defpois de meya noite chega- rão a hua aldeã pequena que eíbua na boca da barra na ponta de hua calheta que fe dezia NipaFau, onde quiz noííb Senhor que fe negocea- ráo tão bem,que antes que foífe me- nham tornarão a bordo com hua barca carregada de louça & canas de açúcar que acharão furta no mevo do rio^a qual vinhaó oito homés & duas molheres, & hum minino pe- queno de féis ou fete annos, os quais fendo todos metidos no junco de António de Faria, os fegurou do me- do que traziao,porque lhes parecia q a todos os auião de matar, Ôc come- çandoos ainquirir,nunca ja llies pu- deraõ tirar outra palaura da boca, fenão fomente, Suqui hamidau ni- iianquao lapapoa dagatur, que quer dizer,não nos mates fem razão, que te demandara Deos noíTo fangue, porque fomospobres, & iílo cho- rauão ôc tremião de maneyra, que nãopodiao pronunciar palaura ne- nhua. Vendo então António de Fa- ria fuamiferia& íimplicidade,nãoos quiz por então maisimportunar,mas difsimulando com elles por hu gran- de efpaço,rogou a hua molher Chi- na Chriftam que ahy leuaua o Pilo- to,que os agafalhaíTe, ôc os íèguraíle do medo que tinhad,paraque refpó- deífem a propofito ao que ihes per-» guntaíTem, o que ella lhes fez com tantos afagos que em menos de húa hora diíTeraó à China que fe o Ca- pitão os deixaííe yr liurernente. na-

quella

WH

^Peregrinações de

queila fua embarcação afsi como lha aflaz enfadadoipãrecedolhe que po^

tinhao tomado>que elles cófeíTariaó toda a verdade do que viraõ. pelos olhos,& do que cuuiraó dizer, & An tonio de Faria lhes prometeo de o fazer aísi^ lho affirrnou com muy- ras palauras. Então hum delles que era o mais velho, & parecia fer entre elles de mais autoridade, diííe, não me fio inda muyto da liberalidade deíTas tuas palauras,porque te eften- defíe tanto nellas que temo que me faltes no effeito do que ellas prome- tem, pelo que te peco que mo jures por eíla agoado marque te fuííenta encima de íy, porque fe mintires ju- rando, crè certo q o Senhor da mão poderofa com Ímpeto de ira fe indig- nará contra ty de tal maneyra,que os •ventos pot cima & ella por baixo nu- ca ceíTem em tuas viagés de te con- trariar a vontade,porque te juro pela fermofura das fuás eítrellas que he a mentira tão fea & tão auorrecida diante de feus olhos,como a inchada foberbados miniítros das caufas q fe julgão na terra quando com defpre- zo & defcortefiá falao às partes que requerem diante delles o que faz a bem de fua juíliça.Ejurandolhe An- tónio de Faria com toda a cerimonia neceífaria a íeu intento, que elle lhe cumpriria fua palaura,o Chim fe ou- ue por fatisfeito,& lhe diíTeieflesteus homés por quempreguntas,eu os vy ha dous dias prender na chifanga de >3ouday ,& botarlhe ferros nos peis, dando.por razão que eraó ladroes q roubauaó as gentes no mar, de que António de Faria ficou, fufpenfo &

dia fer aquillo afsi: & querendo logo commuyta preíTa prouer no remé- dio da foltura delles,pelo perigo que entendia que podia auer na tardan- çajhes mandou hua carta por hum deites Chins, ficando por elle em re- fes todos os mais, o qual fe partio lo- go pela menham mnyto ced^óc co- mo a eíles Chins lhes releuaua veré- fe fora do em que fe vião, eíle, q era marido de hua das duas que fora o tomadas na barca da louça, & então ficauãonojunco,fe deu tanta preíTa, que quando veyo ao meyo dia tor- nou com arepofta eferitanas cortas da carta, & afsinada por todos cinco, em que breuemente lhe relatauaõ a cruel prifaó em que os tinhaô,& que fem falta nenhúa os au ião de matar por juítiça,pelo que lhe pedião pelas chagas de noífo Senhor íeíu Chri- ftoque os não deixaífe aly perecei: ao defemparo, & que lhe lembraíTe fua 8c verdade, pois, como fabia, porfeureípeitovieraó ter a aquelle trifte eftado,& outras piedadesaefte modo, como de homes que eftanão catiuos em poder de gente cruel ■& fraca como faó os Chins. Anton io de Faria leyo eíla carta perante todos, êc lhes pedio confelho fobre o que nifto fe deuia de fazer, & como eraó muytos os que dauão íèus pareceres, afsi foraó também muytas & diuer- fas as opiniões, de que elle não ficou nada fatisfeito, pelo qual defpois de auer fobre ifto hua longa alterca- çaó,vendo elleq pela variedade dos pareceres fe não tomauarçfolução

no

Fernão tlMendez^P

no negocio,lhes diífe quaíi agaftado, eu,fenhores, & irmãos meus, tenho prometido a Deos com juramento iolenne de me não yr daquy ate não auerâ mãoeíles pobres toldados Ôc companheyros meus por qualquer 'via que feja; ainda que fobre iílo a- uenture mil vezes a vida , quanto mais com deípezas de minha fazen- da que eu eíiimarey muyto pouco, pelo que fenhores vos peço a todos muyto, muyto, muyto por mercê q ninguém me contrarie iílo de qus tanto pende minha honra, porque juro àcafa de noíTa Senhora deNa- zarè,qué qualquer que o contradif- fer,me terá por tanto feu inimigo, quanto eu entendo que o fera de mi- nha alma quem for cótra iílo. A que todos lhe rei ponderaò que o que lua mercê dezía, iíTo era o milhor &o mais acertado, ôc que para lua con- fciencia por nenhum cafo deixaíTe de o fazer afsi, porque eíles todos o, acompanharião ate porem as vidas por iíTo; elle lho agradeceo então muy to,& os abraçou a todos co bar- rete na mão, & lagrimas nos olhos, ôc muyta cortefia nas palauras, ôc de nouo lhes tornou a certificar que pe,- *llo tempo em diante lhe fatisfariapor obras o que então lhes prometia com palauras, com que to- dos ficarão de todo con- formes ôc muyto fatisfeitos.

ntíe^Tinto, 70

ÇAT. LXII/1,

[orno António de Faria efcreueo hua carta ao Mandarim de 3\(ou- dajjobre o negocio deUes ca- ímos* ç> a refojla que te- ue delia & o que elle fe^fobre ijfo.

Ornada eíla refoluçao, fe pós logo em coníe- lho que maneyra fe a- uiadeter no proceder defte negocio, ôc íe afc fentou que a primeyra coufa fofle fa zerfe pacificamente diligêcia co Ma- darim, mandandolhe pedir aquelles catiuos, ôc prometerlhe pelorefgate delles o que foffe razao,& que com a fuarepofta fe determinaria o que fe auia de fazer. E com iílo fe fez logo hua petição conforme ao eítilo com que no auditório fe lhe cuftuma a fa- lar,& a mandou António de Faria ao Mandarim por dous Chins dos quer fe tomaraó,os.que paredão de mais reípeito,& com ella lhe mandou hua odiaaque valia duzentos cruzados, parecendolhe que entre gente de pri- mor aquillo baítaua para não que- rer mais, o que foy muyto pelo con- trario como logo fe vera. Partidos os Chins que leuauão a petição & o pre fente,tornaraó logo ao outro dia co a reporta eferita nas coftas da peti- ção, a qual era hum defpacho que dezia deita maneyra. Venha a tua bo ca diante de meus peis, & defpois de feres ouuidp te prouerey fe tiueres

juftiça,

Peregrinações de

juftiça. Vendo António de Faria o de veniaga para o porto de Liãpooi

mao defpachodo Mandarim,&: a fo- berba & defcôcerto das palauras dei- ]c5fícou algum tanto trifte &malen- conizado,porque entendeo daquelle principio que ja auia de ter trabalho em libertar aquelles catiuos,& prati- cando efte negocio particularmente com algus que para iíTo foraó chama dos,não deixou ainda de auer algúas diueríidades de pareceres, mas no fim delias fe veyo aconcluyr que to- dauialhe tornaííe a mandar outro re cado, em que com mais efficacia lhe pediífe os léus homés,& que lhe da- ria por ellesdous mil taeis em prata & fazenda, & fenão que IhefallaíTe muytoclaro,&o defenganaíTe,que fe não auia de yr daly atè que lhos não roandaííe,porque quiçá que certifica dodefta determinação, o medo lhe faria fazer o que pelas outras vias lhe negaua,quanto mais que pela via do interefie poderia ler que fe rendeíTe. Os mefmos dous Chins fe tornarão a partir logo com efte recado efcrito era hua carta cerrada como de hua peífoa para outra, fem cerimonia de petição,nem outras vaidades que el- les entre fy neftes cafos gentilicamê- te cuftumão,paraque viílè o Manda- rim na ifençáo da carta quão deter- minado eftaua no que lhe dezia. Po- rem antes que mais por diante quero dizer íbs dous pontos do que fiia na carta, que foraó caufa de efte negocio fe danar de todo, dos quais hum foy dizerlhe António de Faria que elie era hum mercador cftran* geyro Português de nação, que hia

onde auia muy tos mercadores eftan- tes na terra com fuás fazendas que pagauão feus direytos cuftuinados, fem nuca fazerem neila roubos nem males como elle dezia. E o outro pó- to foy dizerlhe que porque el Rey* de Portugal feu fenhor era com ver- ' dadeyra amizade irmão de el Rey da China,vinhão elles a fua terra, como também os Chins por efte refpeito cuftumauão yr a Malaca, ondeeraó tratados com toda a verdade, fauor, & juftiça,íem fe lhes fazer agrauo ne- nhum. E ainda que o Mádarim am- bos eftes pontos não fofreo bem, to- dauia efte derradeyrode.dizer que el Rey de Portugal era irmão de el Rey da China, tomou tão mal, que fem ter mais refpeito a couía algúa, man- dou açoutar os dous que leuaraõa- carta,& cortarlhe asorelhas,& os tor- nou afsi a mandar com a repofta pa- ra António de Faria efcrita num pe- daço de papel roto que dezia afsi. Bareja trifte,nacida de mofca enchar cada no mais cujo monturo que pode auer em mazmorras de prefos que nunca fe alimparão, quem deu atre- vimento a tua baixeza para perafu- far nascoufas do Ceo? porque man- dando eu ler a tua petição, em que, como a Senhor me pedias que ou- uefíè piedade de ty que eras mifera- uel & pobre, à qual eu, por fer gran- dioíoja me tinha inclinado,& eftaua quafi íatisfeito do pouco que dauas, tocou no ouuido de minhas orelhas a blasfémia de tua íòberba, dizendo que o teu Rey era irmão do filho do

foi,

Femao

Afende*Tinto.

fol,lião coroado por poderio increi- uel no crono do mundo debaixo de cujo eftão fornecidas codas as co- roas dos que gouernao a cerra com real cecro ôc mando,feruindolhe con cino de brochas de fuás alparcas, ef- magados na trilha do íèu calcanhar, como os efcricores das brallas do ou- ro teftemunhão na fede fuás verda- des cm codas as cerras que as gences habicaó. E por cita camanha hereíia mandey queimar o ceu papel,repre- fenrãdonelle por cerimonia de cruel juftiça a vil eftatua de tua peílba, co- mo defejo fazer a ty também por ta- manho peccado,pelo qual te mando que logo& logOjfem mais tardar te faças á vella, porque não fique mal- dita do mar que em fy te foítenta. Acabando o interprete (que chama tanfuu) de lera carta &decla rar o que ella dezia, todos os que a ouuiraò ficarão aíTaz corridos, & An tonio de Faria mais corrido ôc afron- tado que todos: Ôc eíliueraó hu gra- de eípaco algum tanto confuíos,por- quede todo perderão as eíperanças de refgatarem os catiuos. E pratica- do no defconcerto das palauras da carta, ôc no mao iníino do Manda- rim,ie determinou por fim de tudo que faiíTem em terra, & cometefíèm acidade,porque noílo Senhor osa- judaria.conforme à boa tendão porq o íaziáo,& para eífeito difto fe orde- narão logo embarcações em que faif lem em terra, que foraó quatro bar- caças de pefcadores que aquella noi- te fe cornarão. E fazendoíe alardo da gence que podia auer para eíte feito,

7*

fe acharão trezentos homes, de que os fetenca eraõ Porcugueíes, ôc os maiseícrauos ôc marinheyfos,com a gcnce de Quiay Panjáo, dos quais os cento Ôc ieííènca eraó arcabuzey- ros,& os mais com lanças, Ôc chuças, Ôc bombas de fogo,& ourra<; muycas maneyrasde armas neceíTarias para o eífeito deíle negocio.

CAT. LXV.

Como nAntonio de Faria cometeo

a cidade de 3\(oudaj^ O o

quelbefocedeo,

O outro dia quafi me- nham clara António de Faria fe fez á vella pelo rio acima cos três juncos Ôc lorcha, ôc as quatro barcaças que tinha toma- do, Ôc foy furgir em féis braças ôc meya pegado cos muros da cidade: ôc amainando as vcllas fem falua eftrondo de artilharia,pós bandeyra de veniaga ao cuftume dos Chins, paraque com asmòftrasdeftas pazes lhe não ficaíTem nenhús comprimé- tos por fazer,inda que fabia, que fe- gundo ifto da parte do Mandarim eftaua danado,que nenhúacouía da- quellas lhe auia de aproueitar : da- quy lhe tornou a mandar outro re- cado com promeíTa de mais intereíTe pelos catiuos, Sc cumprimentos de muytas amizades,a que o perro fe in dinou de tal maneyra, que mandou afpar o coitado do Chim, ôc moftra- lo do muro a toda a armada,, com a

crual

Teregrinaçoes de

qual vifta António de Faria acabou &muytas delias cahião três quatro

de perder as efperanças que ainda al- gúslhefazião ter; &crecendocom iílo a cólera aos toldados, lhediíTe- raó,que pois tinha aílentado de fayr era terra, não efperaííe mais,porque feria dar tempo aos inimigos para a- juntarem muyta gente: elle pareccn- dolbe bem eííe coníelho, fe embar- cou logo com todos os que eftauão determinados para efte feito, queja eitatião preftes para hTo,& deixou re cado nos juncos que não deixaífem nunca de tirar aos inimigos & a cida- de,onde viíTem mayores ajuntamen- tos de gente, porem iílo auiadc ler cm quanto elle não andafle trauado com elles. Edefembarcando abaixo do íurgidouro obra de hum tiro de berço fem cótradição nenhúa, íe foy marchando ao longo da praya para a cidadela qual ja a efte tempo auia muyta gente por cima dos muros grande lòma de bandeyras de feda, capeando, com muytos tangeres, & grandes gritas,como gente que eftri- baua mais nas palauras & nas moftras de fora,que nas obras. Chegando o$ noífos a pouco mais de tiro de efpin- garda das cauas que eftauáo por fo- ra do muro,nos fayraõ por duas por- tas obra de mil ate mil & duzentos homés,fegundo o efmo de algus, dos quais os cento ate cento & vinte eraó de caiiallo, ou para milhor dizer, de findeyros bem magros. Eftes come- çarão a eíèaramuçar de hua parte pa- ra outra,& o fizeraò tao bem, & tão defpejadamence,que as mais das ve- zes fe encòcrauão hõs com os outras.

ivo chaó, por onde fe entendeo que deuia de íer gente do termo que era aly vinda mais por força que por fiia vontade. António de Faria esforçou alegremente os feus para a peleja, ôc fazendo final aos juncos, efperou os inimigos fora nocampo,parecendo- lheque aly fe quifeíTem aueriguar com elle, íegundo a fonfarrice das fuás moftras prometião,elles tornan- do de nouo à efearamuça, andarão hum pedaço â roda, como que de- bulhauao calcadouro de mgOjpare- cendolhes que fóaquillobaítaua pa- ra nos defuiarem do noífo propofito, porem vendo que nós não voltaua- mos o rofto como lhes pareceo, ou por ventura defejauão, fe ajuntarão todos num corpo,& afsi juntos & mal concertados fe detiueraó hum pou- co fem virem mais por diante.O nof fo Capitão vêdoos daquella maney- ra,mandoudefparar a efpingardaria todajunta; a qual ate então eftiuera fempre quieta,& prouue a Deos que fe empregou taó bem que dos de cauallo que eftauão na dianteyra, maisde a metadevieraó logo ao chão. IM os com efte bom pronoílico arre- metemos todos a elles,bradãdo fem- pre pelo nome de Iefu, & quizelle por fua m ifericordia que os inimigos nos largarão o campo fugindo tao deíatinadamente que hus cahião pot cima dos outros, & chegando a húa ponte que atraueífaua a caua,íe em- baraçarão de maneyra,que nem po- dião yr para trás nem para diante. Nefta conjunção chegou a elles o

corpo

corpo da noíía gente, & os tratarão de maneyra que mais de trezentos fkaraóiogo aly deitados hús íòbre os outros,coufa laftimoíà de ver,por- que não ouue nenhum que arrancaf- íe efpada. NoSj co feruor deita vito- ria arremetemos logo à porta,& nel- ia achamos o Mandarim com obra de íeiícentos homés comfigo, o qual eftaua encima de hum bom cauailo, com híías couraças de veludo roxo de crauação dourada do tempo anti- go, as quais defpois íbubemos que foraõ de hum Tome Pirez q el Rey dom Manoel da gloriofa memoria mandara por Embaixador à China, nanaode Fernão Perez Dandrade, gouernando o eftado da índia Lopo Soarez Dalbergaria. O Mandarim com a gente que tinha comfíge* nos quiz fazer rofto ao entrar da porta, com que entre elles ôc nos íe trauou Lda cruel briga, em que por eípaço de quatro ou cinco creclos fe hiao el- les ja metendo com noíco muy to menos medo que os outros da pon- te,fe hum moco noíTo não derrubara o Mandarim do cauallo abaixo com hua eípingardada que lhe deu pelos peitos,com que os Chins ficarão taõ aííombrados que todos juntamente voltarão logo as coftas,& fe começa- rão a recolher fem nenhua ordé pelas portas dentro, & nòs todos de volta com elles.derrubandoos às lançadas, fem nenhum ter acordo de fechar as portas, & leuandoos afsi como a ga- do por hua rua muyto comprida,va- zaraó por outra porta que hia para o fertão, pelo qualfe acolherão todos

Fernão ^Mende^Pinto. ji

fem ficar Có. António de Faria recolhendo então a fy toda a gente, por não auer algum defmancho, fe fez todo num cos po,& fe foy ella á chifanga, que era a prifaõ onde os noííòs eítauáo,que em nos vendo de rão hua tamanha grita de Senhor Deos miíèricordia, que fazia tremer as carnes. E mandou logo com ma- chados quebrar as portas & as gra- des, & como o deíejo & o feruor di- ííoera grande,em hum mométo foy tudo feito em pedaços,& os ferros que os catiuos eftauão prefos,logo ti-> rados,de maneyra q em muyto bre- ueefpâço os companheyros todos e- ftauão foltos & liures. E foy manda- do aos Toldados ôc a mais gente da noíía companhia que cada Rum por íy apanhafte o que pudeííe, porque não auia dauer repartição nenhua, fe não que o que cada hum leuaííe auia de Ter tudo íeu, mas que lhesrogaua que fofíe muyto depreíla, porq lhes não daua mais efpaço que meya hora muyto pequena,a que todos ref ponderaõ que eraó muyto contêtes. Então fe começarão logo hús & ou- tros a meter pelas cafas, ôc António de Faria fe foy às do Mandarim,que cjuíz por íèu quinhão, onde achou oito mil taeis de prata fomente, Ôc cinco boyoes grandes de almizcre cj mandou recolher^ o mais largou a os moços que hiaó com elle,que foy muyta feda,retròs, citins, damafcos, & barças de porcelanas finas, em que todos carregarão ate mais não pó» derem,de maneyra q as quatro bar- cas, ôc as três champanas em que a,

gente

gente defembarcarã, por quatro ve- zes fe carregarão & dei carregarão nos juncos, era tanto que não ouuc. moço nem marinheyro que náofa* laffe por caixão & caixões de peças, a Fora o fecreto com que cada hum fe calou. Vendo António de Faria q era ja paliada mais de hora&rneya, mandou com muytapreíTa recolher agente, a qual não ama couía que a pudeífe defapegar da preía em que andaua,& na gente de mais conta fe enxergaria indaifto muyto mais.Pe- lo quai,receofo elle de lhe acontecer algum defaftre, porfeja vir chegan- do a noite, mandou pór fogo à cida- de por dez ou doze partes,& como a mayor parte delia era de taboado de pinho,& de outra madeyra, em me- nos de hum quarto de hora ardeo tão brauaméte que parecia coufa do inferno. E retirandofe com todaâ gente para a praya fe embarcou fem contradição nenhua,& todos muyto ricos & muyto ccftuentes,& muy- tas moças muyto fermofas, que era laítima velas yr atadas cos murroes dos arcabuzes de quatro em quatro, Sc de cinco em cinco, & todas chora- do^ os noíTos rindo & cantando.

ÇAT. LXVL

*Do mais que António de Fam pajfou ate chegar às portas efe Liampoo.

Endo António de Faria em | barcado com toda a gente, ' corno era ia urde, não fe

^erigrináçtiès de

entendeo pôr então em mais que em curar os feridos, que foraó cinquenta, de que oito eraõ Portuguefes, &c os- mais eferauos & marinheyros, & em mandar enterrar os mortos que fo- raó noue,em que entrou hum Portu- guez.E paliando a noite com boa vi- gia,por reípeko dos juncos que efta- uao no rio,tanto que a menham foy clara,fe foy a húa pouoaçaó q eíla- ua da outra par te à borda da agoa,& a achou defpejada de toda agente, fem fe achar nella húa peífoa, mas achou as cafas com todo o rechcyo de fuás fazendas, & infinitos manti- mentoSjdos quais António de Faria mandou carregar os juncos, arrecea- do que pelo que aly tinha feito lhos não quifeffem vender em nenhíí por- to oftdefoífe.E com ifto íedetermi* nou com parecer &confelho de to- dos,de yr inuernar os três meies que lhefakauão para poder fazer fua via gem,a hua ilha deferia que eítaua ao mar de Liampoo quinze legoas,que fe chamaua Pullo Hinhor, de boa a- goada,& bom furgidouro, por lhe parecer que indo a Liatnpoo pode- ria prejudicara mercancia dos Por- tuguefes que inueraauão quieta- mente com fuás fazendas, a qual de- terminação & bom propoíito todos lhe louuaraó muyto. Partidos nós claquy defte porto de Nouday,aucn- doja cinco dias que vellejauamos -por entre as ilhas de Comolem & a terra firme, hum fabbado ao íneyo dia nos veyo cometer hum ladrão por nome Prematà Gundel,grandif- Smo inimigo da naçaó Pottuguefa,

&a

Fernão <£Adenàe%Tinto, 7$

ôc aquém ja por vezes tinha feito hQjunco pequeno em que vinha Pe-

rmyto dano, aisi em Patane,como ern C,tinda, & Sião, ôc nas mais par- tes onde acercaua de os achar a feu propoíito, &parecendolhe que éra- mos Chins, nos cometeo com dous mncos muyto grandes,em que trazia duzentos h ornes de peleja, a fora a efquipacaoda mareagem das veilas, ôc aferrando hum delies o junco de Mem Taborda, o teue quaíi rendi- do, porem o Quiay Panjaó, que hia hum pouco mais ao mar,vendoo da- quella maneyra voltou fobre elle, ôc abalroou ojunco do inimigo aísi in- funado como vinha, ôc tomãdoo pe- la quadra deftibordo, lhe deu tama- nha pancada q ambos aly logo fe fo- raó ao íundo,com q o Mem Tabor- da ficou liure do perigo em q eftaua; liílo acudirão com muyta preíTa três lorchas noífas q António de Faria le- jara do porto de Nouday, & quis 10ÍT0 Senhor q chegando cilas falua- raó a mayor parte da noíTa gente, Sc ds da pai te contraria fe afogarão to- dos. Nefte tempo chegou o Prematà Gundel ao junco grade em q hia An- tónio de Faria, ôc aferrãdoo dous irpeos talingados em cadeas de ferro mnyto cõpndas o teue atracado de popa & de proa, onde fe trauou en- tre elles húa briga muyto para ver, a □uai defpois de durar eípaço de mais de meya hora,os inimigos pelejarão tanto esforço q António de Faria achou com a mayor parte daíua gente ferida, ôc iíío por duas ve- zes em rifco de fer tomado, porem a- ctidindolhe então as três lorchas &

ro da Sylua, prouue a noílo Senhor que com efte focorro tornarão os nof fos a ganhar o que tinhão perdido,& apercaraó cos inimigos de tal maney ra,q em pouco efpaço fe acabou o ne- gocio de concíuyr de todo,cõ morte de oitenta ôc féis Mouros q eílauão dentro no junco de António de Fa- ria^ o tinhão pofto em tanto aperto que os noílòs não tinhão ja mais nel- le que o chapiteo da popa. E daquy- entrando no junco do Coííayro, me- terão à elpada todos quantos acha- rão nelle, fem a nenhum darem a vi- da, & a efquipaçao íè tinha ja toda lançado ao mar. Mas não fe ouue eíla vitoria tão barata que não cu- ftaífe as vidas de dezafkte dos noíTos, nos quais entrarão cinco. Pottugue- íesdos milhores foldados,& mais efc forçados de toda a cópaqhia, ôc qua- renta ôc três muyto feridos,dos quais foy António de Faria q ficou hua zargunchada, ôc duas cutiladas. Concluyda afsi efta briga, fe fez in* uentayro do que ojunco dos inimi- gos trazia,& foy aualiada a prefa em oitenta mil taeis, de q a mayor parte era prata de íapaó q o coflay ro tinha tomado cm três júcos de mercadores que vinhao de Firando para o Chin- cheojde modo q nefta embarcação trazia efte coííayro céto Ôc vinte mil cruzados, Ôc no juco q íè foy ao fúdo differaõ q trazia quafi outro tanto, de q muy tos dos noííòs ficarão bem magoados. Com cila prefa fe reco- lheo António de Faria a hua ilha per queria chamada Buncalou q eftaua

ÍS dal/

I

Terigrháfoês de

daly três ou quatro legoas para a par- fiança &oufania,que aula jacafas

i

cc do Oefte,de boa agoada,& de b6 furgidouro, & defembarcando cm terra,eíteue nelladezoitodias agafa- lhadoemchoçascphyfefizeraõ,por cauíados muytos feridos que leuaua, onde quiz noflb Senhor que todos tiueraõ faude. E daly feguimos nof- ia derrota para onde leuauamos de- terminado, António de Faria no íeu junco grande, Sc Mem Taborda, Sc António Anriquez nofeu; Sc Pêro da Sylua no pequeno q fe tomou em Nouday,& o QuiayPanjáocó todos os feus no que íe tomou ao ladrão, em fatisfaçáo do que tinha perdido, com mais vinte miltaeis que Telhe deraõ do monte mayor,de que fe el- le deu por bem pago & fatisfeito, & todos os noífos foraó também con- tentes diOTo por lho António de Faria pedir grande inftancia, Sc muytas promeíías para o diante. E naúegan- do nòs deílà maneyra,chegamos da- ly a féis dias às portas de Liampoo,q faó duas ilhas três legoas donde na- quelle tempo os Portuguefes fazião o trato de fua fazenda, que era hua pouoaçjío que elles tinhaó feita em terra de mais mil cafas, comgo- uernança de vereadores, & ouuidor, & alcaides, Sc outras féis ou fete va- ras de juftiça Ócofficiais da Repubh- ca,onde os efcriuaés no fim das ef* crituras publicas que faziáo punhaó, E eu foaõ, publico tabaliâo das no- tas & judicial nefta cidade de Liam- poo por ei Rey noíTo Senhor, como feella eftiuera íituada entre Santa- rém & Lisboa,& ifto com cama con-

três Sc quatro mil cruzados de cufto, as quais todas,afsi grandes como pe- quenas, por noífos peccados foraó defpois de todo deftruydas Sc poftas por terra pelos Chins, íem ficar del- ias couía em tj íe pudeíTe pôr olhos, como mais largamente contarey em feu lugar. £ então fe vera quão incer- tas (aó as coufas da China, de que nc íta terra fe trata com tanta curiofida- de,& deqalgús enganados fazem ta- tá conta, porque cada hora eftio ar- rifcadasamuytos defaílres &deíà« uenturas.

QAT. LXVII.

*Do quefe^ António de Faria che- gando as portas de Liampoo, &> das nouas queaby teue do quepaf- Jaua no rejno da (Jhina.

Or entre eítas duas i- lhasaque os naturaes da terra,& os que naue gáo aquella co(ta,cha-

H^^m Ináo as portas de Liá poo,vay canal de pouco mais de dous tiros de eípingarda de iargo,co fundo de vinte atè vinte Sc cinco bra ç^aSjôc em partes tem angras de bom furgidouro, Sc ribeyras frefeas de goa doce, que decem do cume da ferra,por entre bofques de aruoredo muyto baftode cedros, carualhos, Sc pinheyros manfos Sc brauos, de que muytos nauios fe prouem de vergas, maftos? cabeado, Si outras madeyras

íem

fem lhe cuftarem nada. Surgindo An tonio de Faria ncfías ilhas híía quar- ta feira pela menham, Mem Tabor- da & António Anriquez lhe pedirão licença para irem diante dar recado à pouoação de como elle era chega- do^ labcr as nouas que auia na ter- ra^ fe le dezia ou íbaua por algua couladoq elle fizera em Nouday, porque fe a fua yda la prejudica ílè em algííacoufaàfegurança & quie- tação dos Portuguefes, fe iria inuer- nar à ilha de Pullo f Iinhor como le- uaua determinado; & que de tudo o mandariaó auifarcom muyta breui- dade,aoque elle reípondeo que lhe parecia muyto bem, & lhes deu a li- cença que lhe pedião, & efcreueo tã- bern por elles alguas cartas aos mais honrados que então gouernauão a terra, em que lhes dau^i relação de todo o fucceíTo de fuá viagem, ôc lhes pedia por mercê que o quiíèí- fem aconíelhar, ôc lhe mandaíTem o que querião que fizeíTe, porque elle eftaua muyto preíles para lhes obe- decer em tudo, ôc outras palau rasa eíte modo que fem nenhum cufto reíultaó às vezes em muyto prouei- to. António Anriquez & Mem Ta- borda íe partirão aquelle mefmo dia á tarde, ôc António de Faria fe dei- xou aly ficar furto atè ver que reca- do lhe mandauão. Chegados os ousa pouoaçaójacom duas horas de noite, tanto que a gente delia os yio,& foube d elles as nouas que tra- £Íão,& todo o fucceíTo da fua viagé, ficarão tão efpantados, quanto a no- jidade do calo o requeria: ôc ajunta-

Fernão Mende^Tinto.

7$

dofe a fom de fino tangido na igreja de noíía Senhora da Conceição, que era a matriz de féis ou fete que auia mais naterra,trataraõ entre íy íobre o q aquclles dous homés lhe rinhaõ dito,& vendo a liberalidad e que An- tónio de Faria vfara com elles, ôc todos os mais que tinhaó fua parte no junco, aíTentaraó de lhe fatisfa- zerem em parte com moftras de a. mor & agradecimento^ que por fua pouca poísibilidade em todo não po diao; &refoondendolhe às íuas care- tas com húa geral,em q todos afsina- rão como confuha de camará, lha mandarão com duas lanteaas de muyto refrefeo, por hum ieronyrr.o do Rego homem fidalgo,& com cãs, & de muyto íaber ôc autoridade, na qual lhe relatarão com pai auras Ôc de grande agradecimento, a muyta obrigação em que todos lhe eítauão, afsipela mercê q lhes fizera em lhes liurar fuás fazendas das mãos dos ini migos,como pelo muyto amor que lhes moíirara na liberalidade que y- fara com elles, aqual efperauao que Deosnoíío Senhor lhe pagaria cora abundantiísimos beés na lua gloria. E que quanto a íè temer de inucr-j nar aly pelo que fizera em Nou- day, eftiueíTe niíTò muyto defeança- do, porque não andaua a terra ao prefente tão quieta, queiíTò pudefc fe lembrar para nada, aísi pela mor- te do Rey da China, como pelas diíTeníoés q auia em todo o reyno era treze oppofitores q pretédião o cetro delle,os quais todos eílauão ja poítos ern armas com feus exércitos em k z campo,

^Perigrlnâçoes de

campo,para com a força aueriguare António de Faria aquy efteue, não

o que íe não podia determinar por juftiçja;& que o tutão Nay, que era a fuprema peífoa defpois do Rey em todo o gouerno com mero & mifti- co império da mageftade real,eftaua cercado na cidade de Quoanfy pelo Prechau Muão Emperador dos Cau- chins,em cujo fauor fe tinha por cer- to q vinha o Rey da Tartaria hu exercito de 900. mil homés: afsi q a coufa andaua t,ao baralhada & diui- dida entre ellcs, q ainda q fua mercê aíTolara a cidade de Cantão, fe não fizera cafo difíb,quãto mais a cidade de Nouday qna China em cõpara- çaó de outras muytas era muyto me nos do q em Portugal pode fer Oey- ras co Lisboa.E q pela certeza de tão boa noua pediao todos a fua mercê fte aluiífaras,q fe deixaífe aly eftar fur to féis dias,paraq détro nellestiueísê elles tépo de lhe negocearé huas ca-» ias em q fe agafalh afife, ja q não pre- ftauao para mais,né por então podião moftraro muyto qlhe deuiáo con

ficou homem de nome na pouoaçaó ou cidade, como todos lhe chama- uão,q o não vieífe viíitar muytos prefentes de muytas inuençoés de manjares & refreícos, & fruitas, em tanta abundância que todos pafma- uamos do que viamos, & principal- mente do grande concerto & apara- to que eftas coufas traziaó comíigo.

QAT. LXVIIL

T>o recebimento que os JFortu*

guefes Ji^erao a António de

Faria napouóaçao de

Liamfoo,

os* eftes íeis dias que ntonio de Faria aquy e dtteuej como lhe tí- nhão pedido os de Liã- poo, efteue furto neftas ilhas, no fim do qual tempo hu Do- mingo antemenham,que era o tépo

forme ao defejo q todos tinhãodiíToj aprazado para entrar no porto, lhe Ôc outras palauras de comprimentos deraó húa boa aluorada com húa

muyto copiofos,aq elle reípódeo co< mo entendeo q era razão,& lhes quiz fazer a vontade no q lhe pedião. E nasduaslanteaas q lhe trouxeraóo refrefco madou os feridos ôc os doé- tes q auia na armada, ©s quais os de Liampoo agafalharaõ muyta ca- ridade, & os repartirão pelas cafas dos mais abaftados,onde foraõ cura- dos^ prouidos de todo o neceífario muyto cúpridamente fem lhes faltar nada.E em todos eftes féis dias que

muííca de muyto excellentes falias, ao fom de muytos inftrumentos fua- ues,que daua muyto gofto a quem a ouuia, ôc no cabo, por desfeita Por- tuguefa, veyo hua folia dobrada de tambores ôc padeyros ôc feftros, que por íêr natural, pareceo muyto bem. E fendo pouco mais de duas horas ante menham, com noite quieta, Ôc de grande luar, fe fez à' vella com toda a armada,com muytas bã- deyras ôc toldos de íeda,& as gaueas

ôc fobre

Fernão Mende^Timo. yy

&fobregaueas guarnecidas de teli- muyra verdura, &de emas cheyro*

lha de prata, & eftendartes do me£ mo muyto compridos, acompanha- do de rnuytas barcaças de remo, em que auia muycas trombetas, chara- mellas,frautas,pifaros, acambores, & outros muytos inílrumentos,afsi Por tuguefes, como Chins; de maneyra q todas as embarcações hião íuas inuençoés differentes, a qual milhor. E fendoja menham clara acalmou o o vento pouco mais de mevalepoa do porto, a que logo acudirão vinte lanteaas de remo muyto bem efqui- padas,& dando toa a toda a arma- da, em menos dehiíahora aleuaraó ao furgidouro, porem antes que dia la chegaífe,vieraó a bordo de Antó- nio de Faria mais de feííenta bateis & balões, & manchuas com toldos & bandeyras de feda,& alcatifas ricas, nas quais virião mais de trezentos homés veílidos todos de feíla, com muytos colares & cadeas douro, ôc fuás eípadas guarnecidas do meímo em tiracolos ao vfo de Africa, & to- das cilas couías vinhão feitas com canto primor & perfeição que dauão muyto gofto & não menos efpanto *a quem as via. Deita maneyra che- gou António de Faria ao porto, no cjuateítauáo furtas por ordem, vinte tk leis nãos, 8c oitenta juncos, & ou- tra muytò mayor foma de vancoês, & barcaças amarradas húas ante ou-

ías,dcque também os muitos, &as enxarceas eírauao ciibertas. António de Faria deípois de eftar íurto iunto de terra no lugar que para iífo lhe eftaua aparelhado, fez fua falua de mnyta& muyto boa artilhana,aque todas as nãos & juncos ôc as mais em- barcações que eras diíTe,refponderaõ por fua ordem,que foy couía muvro para ver,deque os mercadores Chins eítauão pafmados,& perguntauã© fc era aquelle homem,a q íe fazia tama nho recebimento,irmão, ou parente do noíTo Rey,ou que razão tinha c6: eile,a q algíís cortefaós refpondiao, cj não,masque verdade era que íèú pay ferrauaoscauafios em que el Rey de Portugal andaua, & que por iíTo era tão hõrado q todos os q aly eítauaó podido muyto fer.fe.us criados,&: feruillo como eferauos. Os Ghíns pa- recendolhe que podia fer aqnillo aft íi) olhauão híis para os outros a ma- neyra de efpanto, & deziao, certo que muyto grandes Reys ha no mu- do de que os noíTos antigos eferito* res não tiueraó nenhua noticia, pa« ra fazerem menção delles nas fuás eferituras, & hum deites Reys de que mais caía deuera de fazer parece que deue fer o deites ho- més,porque fegundo o que delle te- mos ouuido he mais rico & mais po- deroío ôc fenhor de muyto mayot;

tras,que em duas alas fazião hua rua. - terra que o Tártaro ne o CauchinV muyto comprida, enramados todos ôi quafí que íè pudera dizer,- fenaõ

de pinho, & louro, 5c canas verdes, muytos arcos cubertos de ginjas, peras, limões, ôc laranjas, ôc de outra

fora peccado,que emparelhaua co fi- lho do Sol,iiao coroado no trono do mundo, o c] todos os outros q eíla-i Jc ^ uão

Peregrinações de

uaõ à roda lhe cõn*rmauâo,& dizião, grande eílrondo de trombetas, cha

K

iflb bem claro eftà,& bem fe pelas muytas riquezas que eftanaçaó bar- bada geralmente poíTue em toda a terra por forca de braço armado,em afronta de todas as outras nações. A- cabadaseftas faluas de húa parte & da outra,chegou abordo dojúcode António de Fana húa lanteaa muy- to bem remada, toda cuberta de freíco bofque de caftanhey rosco feus ouriços aísicomo a natureza os cria- ra nelles, guarnecidos pelos troços dos ramos com muyta foma de ro- ías & crauos,entreíTachados com ou- tra verdura rriuyto mais frefca,& de milhor cheyro que cila, a que os na- turais da terra chamão lechias, & a rama de tudo ifto era tão bafta que íé não vião os que remauão,porque também vinhãocubertos da mefma libre. Encima no toldo deita embar- cação vinha armada fobre íeis per- chas húa rica tribuna forrada de bro- cado com húa cadeyra de prata, & ao redor delia íeis moças de doze a- quinze annos muyto fermoías tã- gendo em feus inílrumentos muíi- cos,& cantando com muyto boas fa- las,que por dinheyro fe trouxeraó da cidade de Liampoo,que era daly fe- legoas, porque ifto, & muytas ou- tras coufas fe achaó alugadas por di- nheyro cada vez que íè ouuerem mi- fler,em tanto que muytos mercado- res faò ricos dos alugueres deitas çoufaSj de queelles vfaô muyto para feus paflatempos & recreações. JN efta lanteaa íè embarcou António de Faria, & chegando ao caiz com

ramellas,ataballes, pifaros, atambo- res, & outros muytos tangeres de Chins,Malayos,Champaas, Siamês, Borneos, Lequios, & outras nações que aly no porto eítauaõà fombra dos Portuguefes, por medo dos co£ fayros de que o mar andaua cheyo,o defembarcarao delia em húa rica ca- deyra de eítadò,como Chaem do go uerno dos vinte ôc quatro fupremos q ha neíle imperio,a qual leuauão oi- to homés veftidos de telilha,cò doze porteyros de maças de prata, & feP ferita alabardeyros com panouras & alabardas atauxiadas de ouro, que também vieraõ alugadas da cidade, &oito homés a cauallocom bandey- ras de damaícobranco,& outros tan- tos com fombreiros de citim yerde, &crameíim,q de quando em quado bradauáo â Cbarachina,paraq a gen- te fe afaftaffe das ruas. Dtfpois de fer defembarcado em terra,& lhe ferem dados os parabés da fua chegada, o vierão aly viíítar todos os mais no- bres^ ricos, os quais por cortefia fe proftrauão por terra,em que ouue al- gúa detença, & feito iftofe chegarão a elle dous homés fidalgos & velhos» reíidentes na mefma teira, hum cha-. mado Triftaòde Gaa, & o outro le- ronymo do Rego, & lhe fizcraó húa fala em nome de todos de muytos louuores feus termos aíTaz eloqué- tes & elegantes, em q na liberalidade o punhão acima de Alexandre, & o prouauaó com rezoés muvto viuas & verdadeyras, & no esforço o aucn- tajauaó de Scipião, Annibal, Pom-

peyo

Fernão CAdenckz^Pmto.

peyo,& fulio Cefar,& outras rnuytas coiiías a eíle modo.Daquy o leuaraó para a igreja por húa rua- inuyto cõ- prida fechada roda de pinheyros ôc lonros, & coda juncada, ôc por cima toldada de rnuytas peças de cinns ôc damaícos,& em muycas partes auia mefas em q eítauaocaçoulas de pra- ta com muytos chey ros & perfumes, & antremeíes de inuécoés moyco cu- floíos.E ja quaii no cabo deita rua e- ftaua húa corre de madeyra de Pinho toda pintada a modo de pedraria, cj no mais alto tinha três curucheos, & em cada hum hua grimpa dourada hua bandeyra de damaíco bran- co,*^ as armas reais illuminadas nel- la com ouro;&nua genella da meíma torre eítauão dous mininos ôc hua molherja de dias chorando, ôc em- baixo ao delia eílaua hum home feito em quartos muyto ao natural, qdez ou doze Caftelhanos eflauao matando,todos armados,& com fuás chuças & alabardas tintas em langue^ a qual coufa,pelo grande fauPco ôc a- parato com que eílaua feita,era muy to para folgar de ver,& a rezão diílo dizem quefoy, porque dizem que delia maneyra ganhara hum foaó de quem os verdadeyros Farias decen- dem, as armas da fua nobreza nas guerras que antiguamence cuue en- tre Portugal & Caílella. Nefte tem- po hum fino que eílaua no mais alto defta torre como de vigia deu três pãcadas,ao qual final fe quietou o tu* multo da gente q era muyto grande, ôc ficado tudo calado,fahio de détro hu home velho veftido cm hua opa

76

dcdaraafco roxo, acompanhado de quatro porteyros maças de prata. ôc fazédo hu grade acataméto a An- tónio de Faria,ihe diíTe com palauraS muyto diíeretas quão obrigados to- dos lhe -eftauao pela grande liberali- dade cj víàra elles,& pela grande mercê que lhes fizera em lhes rcfti- tuyrfuas fazendas, pelo qual todos lhe ficauão daly por diante por fub- ditos Ôc vafiallos,com menagem da- da de feus tributários em quanto vi* ueíTem)& q pufeííe os olhos naquella figura que tinha junto de íy,& nella, como em efpelho claro, veria com «quanta lealdade os íeus antecefibres de quemelledecendia, ganharão o honrofonome daíua progénie, co- mo era notório a todos os pouos de Efpanha,donde também veria quão propno lhe era a elle o que tinha feí to,afsino esforço que moílrara, co- mo em tudo o mais que vfara com elles, pelo qual lhe pedia em nome de todos,que em começo do tributo a que por rezao da vaííalagem lhe eítauão obrigados, aceytafie por en- tão aquelle pequeno feruiço q lhe of- ferecia para murroés dos foldados, porq a mais diuida proteftauão de lhaíatisfazerem a feu tempo, ôc com ifto lhe aprefentou cinco caixões de barras de prata em que vinhão dez: mil taeis. António de Faria lhe agra- deceo com rnuytas palauras as hon-; rasque até então lhe tinhaõ feitas,& o prefente que lhe oífereciao, porem por nenhum cafo lho quiz aceitat por muyto que todos niflò iníííli^ raõ.

k4 CAPS

R

Teres CAT. LXVIIII.

*De que maneyra <iAntoriw de Fa- riafoy leuado a fgreja, &■ do cjpajjou nella atèaMtf- J a fer acabada.

Balandofe daquy An- tónio de Faria, o qui- ferâo leuar debaixo de hum rico pallio, cjue féis homés dos mais principaes lhetinhaò preftes, porem elle o não quiz aceitar, dizendo, que naonacera para tamanha honra co- mo aquella que lhe queriao fazer, ôc feguio Teu caminho fem mais faufto que o primeyro, que era acópanha- lo muyta géte aísi Portuguefa, como d a terra,& doutras muytas nações q aly por trato de mercancia era junta, poríer efte o milhor & o mais rico porto que então íe fabia em todas a- quellaspartes,& leuaua diante defy muytas danças,pellas,folias,jogos, Sc antremefes de muytas maneyras que agente da terra que com nofco tra- taua,hus por rogos, & outros forca- dos das penas que lhes punhaó, tam- bém fazião como os Portugueíès, ôc tudoifto acompanhado de muytas trombetas,charamellas,frautas,orlos, doçaynas,arpas,violas darco, & jun- tamente pifaros,& tambores,com hu labannto de vozes à Charachina de tamanho eftrondo que parecia couía íbnhada. Chegando á porta da igre- ja o layraó a receber oito padres rè- uefíidos em capas de brocado & tel- las ricas,com prpciíTaó cantando, Te

armações de

Deum laudamus, a que outra foma de cantores com muyto boas falias refpondia em canto dorgão tão con- certado quanto íe pudera ver na ca?- pella de qualquer grande Príncipe. Com efte aparato foy muyto deua- gar atè a capella mòr da igreja, onde eftaua armado hum dorfelde damaf co branco,&junto delle húa cadeyra de veludo crameíim com húa almo- fada aos peis do mefmo veludo E af fentandofe nefta cadeyra ouuio Mif- fa cantada oífíciada com grande con certo, aísi de falias, como de inílru- mentosmuíicos,na qual pregou hu Efíeuão Kogueyra que ahy era Vi- gairo, homem ja de dias ôc muyto honrado; mas como elle pelodefcu- ftume andaua mal corrente na prati- ca do púlpito, Ôc de fy era fraco offí- cial,& pouco ou nada letrado, &íb- breifto vão &prefuntuofo de quaíi fidalgo, querendo então, por fer dia íinalado, moftrar quanto fabia, ôc quão reiçorico era,fundou todo o fer mão em louuores fomente de Antó- nio de Faria, com húas palauras tão defatadas,& por hus termos tátofem concerto, que enxergando os ouuin- tes em António de Faria que cílaua corrido & quaíi áfrontado,lhe puxa- rão algús feus amigos pela fobrepe- liz três ou quatro vezes paraque fe calaíTe^ caindo elle no que era, co- mo homem acordado na briga, dif- fe alto que todos o ouuiraò,íing!ndo que refpondia aos amigos; eu fallo verdade no que digo pelos íãntos Euangelhos,& por iffo deixaime,que faço voto a Deos de dar com a ca- beça

beça pelas paredes por quem me (al- uou iece mil de cruz que mandaua de emprego no junco,os cjuais o per- ro dé Coja Acem me tinha ja leuado pelo pao do canto comojugador de bolla,que mao inferno lhe Oeos na alma onde jaz, & dizey todos Amen;&com efta desfeita foytama nha a rifada na gente que nãoauia quem feouuiífe na igreja. Dcípoisq o tumulto foy calado, & a géce quie- ra,vieraó féis mininos da íancreília, em trajos de Anjos com feus iríílru- mentos de mufica todos dourados, & pondofe o meímo padre em joe- lhos diante do altar denoíTa Senho- ra da Conceiç.io,olhando para a ima gem com as maós aleuantadas, ôc os olhos cheyos de agoa; diíTe choran- do em voz entoada & íintida, como que fallaua com a imagem, vòs íois a rofa Senhora, a que os íeis mininos reípondiáo, Senhora, vósíbis a roía, jçleícantandotão fuauementé cosin- ílrumentoâ que tangiaó, que agente eftauatoda pafmada & fora de fy, fem auer quem pudeíTe ter as lagri- mas, nacidas da muyta deuaçao que iítocauíou em todos. Após ifto to- cando o Vigairo húa viola grande ao modo antigo, que tinha nas mãos, diíTecom ameímavoz entoada al- gúas voltas a eíle vilancete, muyto deuotas ôc conformes ao tempo, Ôc no cabo de cada húa delias refpon- dião os mininos, Senhora vos fois a

Fernão Mende^ Tinto. y y

fou em toda a gente,com que em to- da a igreja fe derramarão muy tas la- grimas.

CAT. LXX.

T) o banquete que ncfte dia fe deu

a António de Fana &■ a feus

companbejros*

Cabada a MiíTa,fe che garaò a António de Faria os quatro prm- cipaesdo gouerno da- quella pouoaçaõou ci

mÊMi

dade de Liampoo, como os noííòs lhe chamauaõ, que eraó Mateus de Brito, Lançarote Pereyra, íeronymo do Rego,& Triílão de Gaa, & to- mandoo entre fy, acompanhado de toda a gente Portugueía; que feriaò mais de mil homcs,o leuaraó a hum grande terreyro que eftaua na fron- tana das fuascafas, todo cercado de bum eípeíTo bofque de caftanheyros afsícomo vieraõ do mato carrega- do de ouriços, ornado por cima de muytoseftendartes &bandeyras de íeda, & por baixo juncado de muyta efpadana,ortelam,& roías vermelhas ôc brancas,de.que na China ha gran- difsima quantidade. Nefte boíque eftauaó portas três mefas muyto c6- pridas ao longo de húas latadas de murta,com que todo o terreiro eíla-

ua cerrado,onde auia muytos efguí rola; o que a todos geralmente pare- ^ chos de agoa que por cantirnprofas ceo muyto bem, afsi pelo concerto corria de hús aos outros, por hús rho- grande da mufica com que foy feito, . dos Ôc inuençoés,que os Chins otde* como pela muyta deuação que cau-; naraó,taó foas Ôc artificiofas,que nu- ca nia«

Terigrtndçoes de ca ninguém pode entender o fegredo to, & de TníMo de Gaa troirxeraò

delleSjpptque com a fúria do aíopro de hum folie, como de.orgão,a que todos tinhão fua correfpondécia, guichauaotão alto, que quando tor- naua a agoa a cair para baixo, vinha tão miúda, que não molhaua mais q íò corno orualho, de maneira que hum íó pote de agoa feborrifaua to- do o terreiro,que era como hua gran de praça: defronte deitas três mefas eítauão três aparadores da mefma maneira,com grande Toma de porce- lanas muito finas,& fcis gomis de ou- ro irmitp grandes,que os mercadores Chins trouxeráo da cidade de Liam- poo,que la pedirão empreitados aos Mandarins, porque todo o feruiço deíles he com baixellas douro, porq a prata he de gente mais baixa & de menos qualidade, & trouxeráo mais outras muitas peças,como forão pra- tos grandeSjlaleiros, & copos també de ouro,com que a vifta fe deleitaua muito, fe de quando em quando lhe não cauíara inueja, Defpedidos logo os que não erão do banquete,ficarão fós.os conuidados.que feriao fetenra, ouoitcnta,a fora os Toldados de An- tónio de Faria , que paífauão de cin- coenta,& aífentados á rnefa forao fer uidos por moças muito fermoías^ & ricamente veítidâs ao modo dos Mã- darins, que a cada iguaria que punha cantauáo ao íbm dos inítrumentos, que outras tangião,& a peíToa de An tonio de Faria foy feruida com oito moças muito aluas & gentis molhe- reSjfílhas de mercadores honrados, q &us pais por amor de Mateus de Bri-

da cidade, as quais todas vinhão ve- fíidas como íèreas, que a modo de dança fazião o feruico da rnefa ao fom de inítrumentos muíicos, que dauão muyto contentamento aque osoimia,de que todos os Portugue- fes eftauão aííaz oaímados, mas ga- bando inuyto a ordem, concerto, Ôc perfeição do quevião,& ouuião,& quando auia de beber,então íè toca- uáo as oharamelias, & trombetas, & ataballes. E com efta ordem duraria efte banquete perto de duas horas, nas quais ouue também léus entre- meies de autos hum Chim •& outro Portuguez. Da perfeição & abaítan- ça das iguanas não trato, porque fe- ria proceíTo infinito querer eu parti- cularizar o que aly ouue aquelle dia, mas direy fomente que ponho em muyta duuidaque era muyto pou- cas partes fepudcílèdar banquete q em nenhuacoufa fízefíe ventagem a eíie. Leuantadas as mefas, que feria ja perto das duas horas deípois de meyo dia, fe forao para outro ter- reyro,tapado todo em roda rmiy- tos palanques em que auia infinida- de de gente, no qual fe correrão dez touros,& cinco caualíos brauos , que foy a mais regozijada feita que fe pu- dera ver , acompanhada de muytas trombetas,ataballes, pi faros, tamho- res,& de muitos antremefes de diuer- fas inuençoés. Defpois de iflo fer aca- bado.que eia ja íobre a tarde, queré- doífe António de Faria tornar a em- barcarão não coníentirão,mas Tri- ífáo Degaa ? & Mateus de Brito lhe

d erão

Fernão MendeçJPinto, yS

deraõ as fuás caías, que ja para iíTo nem trabalho que em carregar os

eftauão concertadas com feus paíla diçosde híiasaoutras,ondeelleficou muyto bem apofentado por tempo de cinco meies que aly efteue, nos quais fcmpre ouue muytos defenfa- d amentos de pefcarias, & caças de altanaria de falcões & açores, & mo- rarias de veados, porcos,touros,&ca- uallos brauos, de que nefta ilha ha muyta quantidade, & muytos jogos & paílatempos de autos,& antreme- fes de muytas maneyras, com ban- quetes efpíendidos todos os Domin- gos & dias Íamos, & muyta parte dos da fomana; de maneyra que todos eftes cinco mefes que aquy eftiue- mos nos não parecerão cinco dias, No fim do qual tempo fe fez Antó- nio de Faria preíles de embarcações & gente para yr às minas de Quoan- geparu, & porque nefte meyo tem- po faílecera Quiay Panjaó, que elle muyto fentio, foy aconfelhado que as não cometeííe,porque fe foaua por noua certa q andaualà a terra muy- to inquieta, por caufadas guerras q o prechau Muhaó tinha co Rey do Chiammay,&cosPafuaas,&co Rey doGhampaa. Masenculcaraólhea- hy hum coíTayro muyto afamado q fe chamaua o Similau>de que ellp la- çou mão, õc ouue logo fala defle, o qual lhe contou muyto grandes cou ias de.híía ilha por nome Calépluy, na qual eftauão dezaíTete jazigos dos Reys da China em hús presbitérios de ouro,com muyto grande quanti- dade de Ídolos do mefmo,em que di ziaque não auia mais difficuldade

nauios, & também lhe diííe outras muytas coufas de tamanha magefta- de & riqueza, que deixo aquy de as contar,porque temo que facão duui- da a quem as ler. E como António de Pana era naturalmente muyto cu- riofo,&náolhefaltaua também cu« biça,íe abraçou logo tãto co parecer defle Chim, que fo por efte feu dito, fem outro mais teftemunho,determi- nou de fe pòr a todo o rifco & fazer efta viagem, fem nefta parte querer tomar outro confelho de ninguém, de que algús feus amigos fe efcanda- lizaraó algum tanto, õc não fem ra- zão.

CAT. LXXL

Como António de Faria fe partio

de Liampoo em bufca da ilha

de (^alempluj.

Endo ja o tempo che- gado, & António de Faria preftes de tudo o que era neceílario pa* raeftanoua viagem cj tinha determinado de fazer, húa fe-; guoda feira quatorze de Mayo do anno de 1542. fe partio daquy para a ilha de Calempluy,embarcado em. duas panouras,que íaò como Galeo- ras,inda que hum pouco mais alte-, roíàs,porque em juncos de alto bor- do foy aconfelhado que não foíT^afc íi por não fer íèntido, como por res- peito das grandes correntes, & peio dasagoasquedecem da enfeadado

Nanquim,

Terigrindçoès de Nanquim,q nauíos groííbs,naquelle Nangafau, ao longo da qual com a

tempo em que elle hia não podião romper,nem com todas asvellasda- das,por caufa das inuemadas da Tar taria,& de Nixihumflaó qnaquelks mefes deMayo,Iunho,& Iulho cor- rem para aquella parte com grandif- íimo impeto. Neítasduas embarca- ções hião cinquenta ôc íeis Portugue íes.& hum padre Sacerdote de iMií^ ía,& hião mais quarenra & oito ma- rinheyros para o remo, & para a ma- rearão das veilas, naturaes dePata- ne,a que íe fez bom partido, por íer efquipaçãofiel&fcgura, & afora e- ftes hião quarenta & dous eferauos noílos,aísi que por todos eraõ cento -i Ôc quarenta & íeis pefíoas, ôc não fo- ' rão mais porque o coíTairo Similau, que era o noíío piloto, não quiz que foffem,nem taõ pouco quiz mais em barcaçoes,por arrecear poder fer fen- tido,porque como auia de atraueíTar a enleada do Nanquim,& entrar por lios frequentados de muyta gente, temia muyto acontecerlhe algum defaftre dos muyros a que hiamos ofFerecidos. Aquelíe dia,& a noite íe guinte nos botamos fora de todas as ilhas de Angitur, & feguimos noíTa viagem por mar que nunca até en- tão Portugueíes tinhão viftonem na uegâdo.E indo nós afíaz confufos a imaginação deftes perigos, fomos os primeyros cinco dias com vento bonança à vida da terra atè a boca cia enleada daspefcariasdoNãquim, aquy atraueflamos hum golfão de quarenta legoas,& onuemos viftade fcúa ferra muyto alta que íc dezia

proa ao Norte corremos mais ou* tros cinco dias,no fim dos quais nos eícaceou o vento,& por fere os ma- res ja aquy muyto groíTos, fe meteo o Similau num rio pequeno, & de bom íurgidouro,pouoado de húa te muyto alua, de boa eftatura, «Sc co olhos pequenos como os Chins, mas em tudo o mais muyto dirTerente delles, afsi na fala como no trajo. Eftes homés que aquy achamos, nu- ca,em três dias que aquy eftiuemos, quiferaó ter com nofco nenhu mo- do de communicaçaó, antes acudin- do muytas quadrilhas delles à praya junto donde nòs eítauamos furtos, com grandes algazaras, & cataduras medonhas nos dauao grandes apu- padas^ atirandonoscom fundas ôc beftas, corrião de híía parte para a outra, como que fe tem ião de nòs. No cabo dos três dias, em que o té- po ôc os mares nos derão lunar para íèguirmos noílà derrota, o Similau por quem então tudo fe gouernaua, ôc aquém todos dauão obediência, fe fez à vellacom a proa a Lesnor- defte, pelo qual rumo velejou mais fete dias,& fempre à vifla de terra ,5c atraueílando daquy outro golfaó, a- bocoua Leite franco hum eítreyto dedezlegoasnaboca, que fe dezia Sileupaquim,por dentro do qual cor reo mais cinco dias, Ôc fempre à vifta de muytas pouoaçoés& cidades mny ro nobres, ôc efte rio, ou eílreito, era frequentado de infinidade de em- barcações. È por António de Faria jfe temer de poder íer fentido, & lhe

certifica-

Ferrão tZMenàezTinto. 79

certificarem que fe o fotTe não pode- te eíhua hum rio de pouco mais de

ria íaluarfe por nenhum modo.aífen- tou de fe tornar daly; porem o Simi- lau contrariou efte parecer de todos, & lhe diífc, não me pode vofla mer- cê inda agora arguyr depeccado,né nenhum outro de quantos v ao na co- panhia,porque em Liampoo vos dif fe publicamente na coníuka geral q fe fez na igreja perante mais de cem Portugueíes o grandiísimo riico em que todos nos púnhamos, ôc eu, por fer Chim ôc Piloto,muyto mais que todos, porque a voíTas mercês não lhes farião mais que darlhe hua mor- te,mas a mym duas mil, fe tantas fe pudeíTem dar, pelo que eftà claro q me he neceíTario ôc muyto forcado não vosíertredro, mas muyto leal, comofou&ferey fempre, afsi nefta viagem como em tudo o mais, a pe- fardos murmuradores que com vof- fa mercê me tem mexincado. Mas fe arreceais tanto efte perigo que di- zeis^ quiferdes que vamos por ou- tro caminho de menos gente & em- barcaçoés,auemosdepór mais tem- po na viage,mas nauegaremos fem receyo de coufa nenhua, ôc por iífo fenhor,lâ vos determmay cos voífos foldados,& feja logo, ou nos torne- mos,porque eftou preftes para fazer tudo o que quiferdes. António de Fa- ria lhe agradeceo ifto muyto, ôc o a- braçou por iffo muytas vezes ôc pra- ticando com elle porque caminho faria efta viagem, ja que por aly lhe não parecia bem por cauía do muy- to perigo em que fe vião,diíTe que ao Norte cento ôc fecenta legoas auan-

meva legoa em largo que fe chama- ua Sumhepadao,pelo qual não auia coufa que lhe pudeceíle empecer,por não fer pouoado como aquella en- feada do Nanquim em que então eíhuão, mas que fe auia de por mais hum més no caminho, por caufa do grande rodeyo que por aquelle rio íe fazia; ôc parecendo entaõ milhor a António de Faria auéturarfe antes a mais demora de tempo que aorifca das vidas,concedeo no que o Similau lhe dezia, ôc fe tornou a fayr da en- feada do Nanquim por onde tinha entrado,& cofteou a terra mais cin- co dias, no fim dos quais prouuea noífo Senhor que vimos hua ferra muyto alta com hum mono redon- do para a pane do Lefte,a qual o Si- milau diífeque fe chamaua Fanjus,& chegandonos bem a ella entramos em hua muyto fermofa angra de quarenta braças de fundo que a ma- neyra de meya lua ficaua abrigada de todos os ventos, na qual podião muyto eftar furtas duas mil nãos, por muyto grades que foífem. Aquy defembarcou António de Faria em terra com dez ou doze foldados, Ôc a correo toda em roda, fem achar ne- nhua gente que o informaíTe do ca- minho que pretendia fazer, de que ficou aífaz agaftado& arrependido cio que fem coníideração nem con-« fclho de ninguem,mas por fua vo tade Ôc por fua cabeça tinha cometi- do, inda que em fy reprimia a dor defte erro com a mayor difsimula- çaò que podia, por não enxergarem

os

Peregrinações

©sfeus nelle fraqueza^ Aquy nefta angra tornou a praticar perante to- dos co Simílau fobre efta nauegaçaò que fe fazia tanto as cegas: & elle lhe reipondeo, Eu, fenhor Capitão, fe te pudera empenhar outra joya de ma- yor preço que minha cabeça, crè de mim que o fizera muy to leuemente, porque vou tão certo nefta via que leuo,cjiie não receara darte mil filhos em refés do que em Liãpoo te pro- meti, & ainda agora te torno a dizer quefe te arrependes ou receas pafc far auante pelo que os teus te dizem de mim continuamente à orelha, co- mo eu muyto bem tenho viílo & ou-» uido, manda o que quiferes, porque preftes eftou para em tudo te fazer a vontade. E cjuantoa te dizerem que te faç/ agora efta viagem mais com- prida do que em Liampoo te pro- mety,tu íabes a razão porque o fiz, a qual, no tempo que ta dey, te não pareceo mal-, & pois então to não pa receo,quietefe agora teu coração, & não tornes atras do que tês aíTenta- do,& ru veras quão proueitofo fruito tiras defte trabalho. Com ifto ficou António de Faria algum tanto mais quieto, &lhe diííeque foíTe muyto embora por onde lhe parecefie mi-

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T>o mais que António de Faria

f a jf ou ate chegar ao rio de Tate-

benao^ <&- da determinação

que ahj tomou acerca

da jua viagem.

Artidos nós» deita an- gra, velejamos ao lon- go da coita mais treze dias, fempre à vifta da terra, & chegamos a húa bahia quefe chamaua Buxipa- lem,em altura de quarenta & noue grãos, cujo clima achamos ja algum tanto mais frio, na qual auia infini- dade de peixes & íerpentes de rão diuerfas maneyras,que realmente af- firmo que arreceyo muyto concallo, & de que o Similau diíle a António de Faria coufas muyto increiueis,afsi do que ja aly íè achara,como do que de noite feouuia, principalméte nos antreiunhos de Nouembro, Dezem- bro,& Ianey ro,em çarraçoés de tem- peftades chuuofas, alguas das quais lhe moítrou logo aly ao olho, don- de fe infirio que podia fer verdade o

mais que dezia. Vimos aquy hus pei- lhor,& queda murmuração dos Co\?T xes de feyçaó de rayas, a que os nof- dados de que fe queixaua lhe não íoschamauão peixes matas, demais

dcíTenada, porque de gente ociofa

era emendar vidas alheyas , & não

olhar pela fua-, mas que elles íe re-

freanão daly por diante,ou os ca-

ftigaria muyto bem, de que o

Similau então fe deu por

íãtisfeitoi

de quatro braças em roda, Sc o fuci- nho rombo como de boy. Vimos ou- tros como grandes lagartos, pintados de verde,& preto, com três ordés de efpinhas no lombo, da groííura de húafeta, & de quaíi três palmos de comprido,muyto agudas nas pontas,

&o

Fernão MendezJPinto. gfo

& omaiscorpo todo cheyo delias, teria mais de féis legoas, a maneyra

mas não táo groífas.nem tão compri- das. Eftes peixes fe encrefpaó de quã doem quando como porcos efpins, com que ficão aíTaz temeroíbs no afc peito,tinhaó o fucinho muyto agu- do,& preto, com dentes que lhe fa- hião fora do queixo a modo de ja- uaris,de cumprimento de quaíl dous palmos,a eftes dezia o Similau q cha mauão os Chins PuçhiíTucoés. Vi- mos também outros peixes muyto pretos da maneyra de enxarrocos, mas tão disformes na grandeza que loa cabeça era de mais de féis pal- mos de largo,& quando nadauão ôc cftendião as perpatanas ficauão re- dondos de mais de húa braça ao pa- recer dos que o virão. E não digo de outras muytas diuerfidades de pei- xes que aquy vimos, por me parecer defneceíTario determe fobejamente cm coufa que não faz a propoíuo do que vou tratando; fomente direy q cm duas noites que aquy eftiuemos furtos,nos não dauamos por feguros dos lagartos,baleas,peíxes,& ferpen- tes que de dia unhamos vifto,porque craó tantos os huiuos, os aíTopros, Ôc osroncos,& na praya os rinchos dos cauallos marinhos,que eu me não a- treuoa podelo declarar com pala- uras. Saydosdaquy deita bahia de Buxipalem,aque os noíTos puferaò nome rio das ferpes, o Similau vele- jou por fua derrota diftancia de mais quinze legoas,& foy furgir em outra bahia muyto mais fermofa , & de muyto mayor fundo, que fe chama- ua Calindão,a qual na volta do arco

de angra, fechada toda em roda de ferras muyto altas, & de aruoredo muyto efpeflb,& de muytas nbeyras de agoa que decião do mais alto dei las á praya, a efta angra vinháo ter quatro rios muyto grandes, que por abertas que a terra fazia em partes, vinhao todos entrar na bahia. E a- quynosdiífe o Similau qpelamuy* ta foma de immundicias de alimá- rias mortas que com as enchétes das inuernadas eftes rios aly trazião, vi- nhao todos os animaes q tínhamos vifto, afsi na outra bahia como na- quella a feceuarem nellas,o que não era em outras nenhúas de toda a mais cofta que atras tínhamos dei- xado/te perguntandolhe António de Faria de que parte vinhaò aquelles rios, díífe que o não fabia, mas que fe era verdade o que delles eftaua ef- crito,que dous delles vinhaõ de hum grande lago que fe chamaua Mof- cumbià, & os outros dous, de hua prouincia de grandes ferranias que todo o anno eftauão cubertas de ne- ue,que íe dezia A li mania, pela qual caufa no veraó,em que a mayor par< te da neue fe derretia, vinhaó aquela les rios tão impetuofos & com tanto poder de agoa quanto tínhamos vi- fto,que era mais que em todo o ou- tro tempo do anno,& que por aquelw le rio,em cuja boca eftauamos furtos^ que fe dezia paatebenam, auiamos* co nome do Senhor do ceo de vr ca- a proa a Lefte,& a Lesfueíte deman- dar outra vez a enfeada do Nãquirn que acras unhamos deixado duzen- tas

'Perigrínaçoes de

tas & feíTenta legoas, porque toda ef- hiamos para nos dar animo & esfor-

ça diftancia de caminho tínhamos multiplicado em mòr altura do que era onde nos demoraua a ilha que hiamos bufcar5 & que ainda que nif- íò pafiaífemos algum trabaiho,pedia muyto a António de Faria que o ou- ucífe por bem emprcgado,porque el- le o fizera por milhor & mais íeguro à vida cie todos : & perguntandolhe" António de Fana quantos dias po- deria por na viagem ate paíTaraquel le rio por onde o leuaua, diíTe q qua- torzeate quinze fomente,& que def pois defaydos delle a cinco,lhe pro- metia de o defembarcar cos feus íbl- dados na ilha de Calempluy, onde bem largamente fatisfariao feu defe- jo,& auerião por bem empregado to- doo trabalho de que agora fe quei- xauão. António de Faria o leuou en- tão nos bra^os,& lhe Fez grandes pro meíTas de íua amizade, & o reconci- liou cos foldados, de que elle vinha <júeixofo,com q todos ficarão muy- to íarisfeitos. Certificado António de Faria deita boa noua que o Similau lhe dera,& do nouo caminho por on de auia de entrar nua terra tamanha & tão poderoía^sforçando os feús,fe pós no fom conueniente a feu propo- fòo,aísi na artilharia, que até então fora abati d a, como em concertaras armâSjOrdenar Capitães de vigias,& tudo o mais que era neceíTario para qualquer fucceíTo que tiuefíèj onde o padre Diogo Lobato que com nof- go hia,como atras difTe, & era noíTo patrão & íbtacapitão íbbre todos, fez hum breue %nwo aos que aly

ço para o que tínhamos por dauante^ em que tratou de algúas couíãs muy- to neceílãrias a noíTos bós propofi- tos,com taó boas palauras & por ter- mos tão difcretos, & ta5 conformes ao tempo,& eftando todos até então alTaz defanimados & cheyos de me- do,fe lhes enxergou logo hum nouo efprito & ouíadia para não duuidaré cometer o que leuauaó determina- do. E com efte nouo feruor fizerao h£ía dcuota falua diante de bua ima-, gem de noíTa Senhora,perãte a qual todos prometerão de fem nenhum receyo leuarem ao cabo eflajornada que rinhaó começado. E marcando efte aluoroço as vellas, abocamos o rio que o Similau nos moílrara, a proa direita ao riimo de Leítc,cha- mando com muytas lagrírnas,& com todo noííò coração muytas vezes pe- lo focorro & ajuda daquelle Senhor queeíti aíTentado à mão direita do Padre eterno,para que nos tiueífe da fua mão poderofa.

QAT>. LXXIII.

T>o que^Antonio de Fariapajfou ate chegar aferra de GangitanoUy &• da disforme gente com que ahyf aliou.

Ontinuando noííb ca- minho a remo & a vei-

fj la com a proa a diuer- fos rumos, por caufa das voltas que em par- tes fazia o rio, chegamos ao outro

di a

Fernão zlhdcnàez Tinto,

£ia a húa ferra muyto alta & cie muy- ;as ribcyrasdeagoa que fe chama- Lia Botinafau, em que auia muytos tigres,badas, lioes, caleus, onças,zcu- ras, & outra muyca diucrfidade de bichos,os quais faltando & preando pela inclinação das fuás robuíhs ôc feras naturezas, fazião cruel guer- ra aoutras fortes de bichos 8c ani- maes de natureza mais fraca, como faó veados, porcos, bogios, adibes, monas, rapoías, & lobos, o que to- dos eftiuemos vendo com muyto go fto porhum grande cfpaço,& com grandes apupadas ôc brados que lhe dauamos,dequeelles fe não efpan* tauão muyto, como coufa que não eraó corrida de cavadores. Em paf- far efta íerra,que feria de quarenta & cinco ate cinquenta legoas, puíemos féis dias de caminho,& no fim delles entramos noutra ferra não menos a- grefteqefta por nome Gangitanou, &daquy por diante toda a mais ter» ra he muyto montuofa.agra, & quaíi jntratauel, Ôc tão fechada de aruore- do, que por nenhum cafo lhe podia o foi comunicar os feus rayos,ncm a fua quentura. Efta ferradeziaoSi- milauqem diftancia denouentale- goas não era pcuoada, por carecer de íitios neceíTarios â agricultura, mas q fomente nas faldras debaixo habitaua húa disforme gente, que fe chamauão Gigauhos,os quais viuen- do feluaticamente fe não fuflentaó de outra coufa fenão da caca do mato, Ôc de algum arroz que de cer- tos lugares da China por mercancia lhe leuauaõ mercadores de que fa-

zião refgate a troco de pelles em ca- bello que lhes dauão. E que fe affír- maua pelos direitos que íe pagauaõ deitas pelles nas alfandegas de Po- eaííer 3c Lantau chegar o numero delias a vinte mil cates,& em cada ca te ou fardo íeflenta pelles, donde íe ve/eoSimilau falou verdade que o numero deftas pelles chegaua a hum conto Ôc duzentas mil, das quais a gente nos inuernos fe feruia de for- ros de roupas,& de armação de calas, ôc de cubertores de camas,de que mummente, por fer o frio muyto grande,todos víauaó.Efpantado An- tónio de Faria do muyto que diflo Ôc doutras coufas o Similau lhe dezia,& muyto mais deites Gigauhos, & da disformidade dos feus corpos, de mê- bros,lhe rogou que trabalhaífe todo opofsiuelpor lhe moftrar algú del- les,porque lhe aíflrmaua que o pre- zaria mais q fe lhe deífe todo o tifou- ro da China,aq elle refpondeo: Bem vejo fenhor,quanto me iífo importa, afsi para me acreditar comtigo, co- mo para tapar a boca aos murmura- dores,q fe acotouellão quãdo me ou uem,mas porq por húa coufa creão a outra, antes que feja foi pofto faila- ràs comais de hum par delles, com tal condição q não íayas em terra,co- moategoratés feito, porque te não aconteça algum defaííre, dos muy- tos que cada dia aquy acontecem a mercadores que querem paíTari- nharpor matos alheyos, porque te afirmo que com ningué eftes Gigau-| hostrataó verdade, afsi pela não ma- marem no leite, como por íua natu-

L reza

Terigrinaçoh de

reza robuíla & ferina os inclinar a fe bem fe não entenderão, o moço íe

,

manterem de carne & Tangue como qualquer defíes bichos do mato. E indo nos afsi a vella Sc a remo aoló- ro da terra^vendo a eípeíTura das ar- uores.a rudeza das ferranias, & do mato, & a multidão de monas, bo- $*ios,adibes,lobos,veados, porcos, ôc dfeoutra muyta quantidade de ani- mães íiliieítres,que correndo & falta- do teciáo hús pelos outros, ôc húa gaznada tamanha que em muytas partes nos não ouuiamos com elles, com-que tiuemos hum bom pedaço de paífatempo, vimos vir por detrás de húa ponta que aterra fazia, hum moço íem barba com féis ou fete va- cas diante de íy, como que as pafta- ua,& acenandolhe o Similau húa toalha,o moço parou até que chega- mos bem aborda da agoa onde elie eítaua, ôc moftrandolhe húa peça de tafetá verde,aq diíTe q eraò muyto in clinadoSjlhe pregútou por acenos íe a queria comprar, a q elle chegandofe bem a nós reípondeo com húa falia muyto defentoada, quiteu paraó fau fau, porem não fe íoube o que queria dizer,porq nenhum de quantos hião nas embarcações fabia falar nem en- tender aquella lingoagem. E fomen- te por acenos trataua o Similau a mercancia do que lhe moftraua. E mandandolhe António de Faria dar obra de três ou ouatro couados de tafetá da peça que lhe tinhaó mof- trado, &íeis porcellanas,elle tomou tudo com muyto aluoroço, ôc dif- le, pur pacampochy pilaca hunan- %ue doreu, as quais palauras tam-

moftrou muyto contente co que lhe tinhaó dado, & acenou com a mão para donde tinha vindo, ôc deixan* do ahy as vaccas fe foy correndo p£- ra dentro do mato. Vinha efte mo- ço vertido de húas pelles de tigre com a felpa para fora, cos braços nus, defcalço, ôc fem couía nerthúa na cabeça, ôc com hum pao toíco na mão. Era bem proporcionado nos membros, tinha o cabello muy- to crefpo , ôc ruyuo que lhe dauA quaíi pelos hombros, Ôc íèria de comprimento , fegundo o que ai- gús diííeraó, de mais de dez pal- mos. DefpoisdepaíTado pouco mais de hum quarto de hora, tornou a vir com hum veado viuo ás coifas, & em fua companhia treze pefíbas, oito homés ôc cinco moiheres, com três vacas atadas por cordas, & bai- lando todos ao íom de hum ataba- que em que dev quando em quando dauão cinco pancadas, ôc dando ou- tras tantas palmadas com as maós, deziao alto ôc muyto deíentoado, cur cur hiriau falem. António de Fa-» ria lhes mandou moftrar cinco ou féis peças, ôc muytas porcellanas,pa- raqúecuydaífem que éramos mer- cadores,que elles folgarão muyto de ver. Todas eílas peííoas afsi machos como fêmeas vinhaó vertidas de húa mefma maneyra, fem auerdif- ferença no trajo, íomenteas moihe- res traziaó nos buchos dos braços húas groílas manilhas de eftanho, ôc tinhaó os cabellos muyto mais com- pridas q os homês,(Sj cheyos de húas

flores

flores como de efpadana a que nefta cerni chamão lirios,& ao pefcoço tra ziãohúa grande trãbolhada de con- chas vermelhas do tamanho de caf- cas de oltras. E os homés traziáo nas mãos hús paos groífos forrados ate o mcyo das mefmas pelles de q vinhaõ veítidos,eraó todos de geílos groífey ros,& robuíros,tinhaõ os beiços groí fos,os narizes baixos & aparrados, as ventas grandes,&faõ algii tanto àif- formes na grandeza do corpo, mas não tato como íe cuyda dcilcs,por- cjue António de Faria os mãdou me- dir^ nenhu achou q paíTalFede dez palmos ôc meyo,fenão fo velho 5 era de onze efcaíTos, & as molheres íaõde menos de dez algúa couíaj mas todauia entédo q he géte muyto ruftica & agreíte,& a mais fora de to- da a razão q quantas ategora fe tem delcuberto,nénas noflas conquiílas, nem em outras nenhuas. António de Faria lhes mãdou dar três corjas de porcelIanas,& húa peça de tafetá yefr- de,& hum cefto de pimenta, & eiles fe arremeíTaraô todos no chão, & c5 as mãos ambas leuantadas, & os pu- nhos cerrados diíTeraó/vumguahileu opomguapau lapaólapaõ iapa6,das quais palaurasíe infírio q deuiao de fer de agradecimçnto,íegúdo os me- neyos q as diíTeraó,porq três vezes íè arremeíTaraô no chaõ. Edãdonos elles as três vacas 6c o veado, Ôc húa grade toma de celcas, tornarão a di- zer todos juntos voz alta Ôc deíèn- toada outras muytas palauras a feu modo,cj me não lembraó, mas q tam bem fe não entéderaò : ôc defpois de

Fernão McndcçfPinto. Sl

eftarmos faliãdo por acenos elles mais de três horas, pafmados nòs de os vermos a elleSj& elles de nos veré a nós, fe tornarão a meter no mato âõdc cinhaó vindo,huiuando ao íom das cinco pancadas do atabaque, ôc faltando de quãdo em quado como q hião cõtentescoq leuauaõ.Daquy fegnimos nofío caminho mais cinco dias pelo rio acima,nos quais fempre os vimos ao longo da agoa, & ás ve- zes lauandoíe nus, mas não que nos cõmunicaííemos com elles mais que eíla vez fomente. Paliada toda efta diítancia de terra ; que podia íer de- quarenta legoas pouco mais ou me* nos, caminhamos afsi a vella Sc are- mo mais dezaffeis dias/emern todos elles vermos géte nenhúa como cou- deípouoadaj íó em duas noites en- xergamos híás fogos muyto pela ter- ra dentro. No cabo deftes dias quiz noílò Senhor que chegamos a enlea- da do Nanquim, que o Similau nos tinha dito,& com efperançaq daly a cinco ou féis dias veríamos o effeito. do noíTo defejo.

QAT, LXXI11L

Dos trabalhos cjuepaffamos nesla enfeuda do D\(an(juiní^ & do que aquy nos fe^ o Si- milau.

Hegados nòs a eíía enfeada doNanquim, António de Faria foy aconfelhado pelo Si- milau que por nenhu L z cafo

^Peregrinações de

cafoconfintiffemoftrãrenfe os Por- tuguefes a gente nenhúa, porque ar- receauaque vendoos ouueíTe aluo- roço nos Chins, vifto como por a- quelle lugar nunca ate então fe vira gente eftrangeyra,porque elles ba- ftauão para darem razão do que lhes preguntaflem,& que feu parecer era também que nauegaíTem antes pelo meyo da enfeada que ao longo da terra,por refpeito da muy ta frequên- cia de lorchas & lanteaas que conti- nuamente paíTauáo de húa parte pa- ra a outra,o que afsi pareceo a todos, Sc afsi fe fez. E auendo ja feys dias que fazíamos noflb caminho ao ru- mo de Leite Lesnordefte ouucmos vifta de húa grande cidade que fe chamaua Sileupamor, & caminha- mos para elladireitos,&ja com duas horas da noite entramos dentro no porto,o qual era húa fermofa angra dequaíiduaslegoas em roda, onde vimos furtas grandifsima quantida- de de vellas, que ao parecer dos que as efmaraó,ferião mais de três mil, a qual vifta nos meteo em tamanho temor que fem oufarmos a bulir em coufa nenhúa, nos tornamos a fayr muyto caladamente, & atraueflando a largura do rio,que podia fer de feys ou fete legoas, corremos por noíTa derrota ao longo de húa grande ca- pina o que nos reftaua do dia, de- terminação de tomarmos algú man- timento onde o viíTemos mais a nofc fopropoíitoj& porque então leua- uamos ja muyto pouco, & fe nos da- ua muyta regra, paíTamos treze dias de muyta efterilidade ôc fome,

cm tãto q fe não daua a cada homem mais q fós três efcaíTos bocados de ar roz cozido na agoa, fem mais outra coufa nenhúa. efta miíèria chega- mos a hús edifícios muyto antigos, q fe chamauão Tanamadel, nos quais íaimos em terra húa antemenham,& demos núa cafa q eftaua afaftada hu pouco delles,onde prouue a noíTo Se-. nhor q achamos húa grade íòma de arroz & de feijoés,& muy tos potes de mel,& adés chacinadas,& cebollas,& alhos,& canas dacucar, de q nospro- uemos bem à noíTa vontade; a qual cafa nos difTeraó hús Chins que ncU la tomamos, q era defpenfa de hum efprital q eftaua daly duas legoas,de que fe prouião os peregrinos que por aquella parte paflauáo em romaria a viíitar os jazigos dos Reys.E tornado nos a embarcar prouidos efte mantimeto, cótinuamos nofía viagé mais fete dias, q fazia ja dous meies & meyo q tínhamos partido de Lia* pooj & ja nefte têpo hia António de Faria deíconfiado do que o Similau lhe diíTera,& muyto arrependido de ter, cometido aquella viagem, & afsi o cófeíTou a todos piiblicamente,pò- rem como naquillo não auia ja q fa- zer fenão encomendaríè a Deos, 6c prouer com prudência no quç tinha por diante,afsi o fezfempre muy- to esforço. E preguntando húa me- nham ao Similau em que paragem fe fazia, lhe refpondeo muyto fora de propoíito, & como homem que tinha perdida a eftimatiua por onde tinha nauegado,de q António de Fa- ria fe meteo em tatá cólera, q leuado

de húa

Fernão sIMenâez^Pinto. 8$

de húa adaga que tinha na cinca, o fós as lagrimas eraõ as que fallauaó,

quifera matar, íe fe não meterão no meyo muytos homes,aconfelbando- lhe que tal não fizeíTe,porque fe aca- baria de perder detodo,& refreando então a cólera obedeceo ao confelho que léus amigos lhe deraõ,mas toda- uia não tanto fora delia qdeixafie de jurar,pondo a mão nas barbas,que fe daly a três dias lhe não moftraíTe o engano ou defengano de fuás men- tiras, de o matar às punhaladas, de que o Similau ficou taó aíTombrado, que logo aquella noite feguinte,eíti- òo furtos ao longo da terra, fe lançou ao rio muyto caladamente,fem os da vigia o fentirem, ienao defpois do quarto rendido,em que o fizeraó ia- ber a António de Faria,o qual co íu- pitodaquellanoua ficou tão forade fy que quafi perdeo de todo a pacie- cia,&porfe temer de algú mutim, o qual fe começaua ja de yr ordenan- do,deixou de matar os dous da vigia pelo defcuydoque naquillotiueraó, E Jaindo logo em terra com toda a gente, o andou bufcando ate quafi a menham,fem o poder achar, ne pef- foaviua que lhe pudcífe dar nouas delle,& tornandofe a recolherás em barcaçoés,achou dos quarenta & íeis marinheyros Chins que leuaua, os trinta & dous fugidos, que receofos do perigo em que fe vião, determi- narão também de fe faluar daquella roaneyra, de que António de Faria com todos os mais que fe acharão elle ficarão taó palmados, que aper- tando as maós,& pondo os olhos no Ceo,emmudeceraóde maneyra,que

& dauão teítemunho do q os íèus co- rações lentião. Porque ponderado o fucceííb daquella hora,& acófufaò & grade perigo em q todos fe vião, o menos era perder o animo,o íiíb,& o encendiméto,quãto mais a fallaE to» mandofe coníelho íobre o q ao diãtc fe deuia fazer,por hum grande eípa* ço eíteue o negocio fufpeníb, fem fe tomar conclufaõ nelle, pelamuyta variedade & dirferença de pareceres que ahy auia,mas em fim feaílèntou que todauia feguifièmos adiãte com nofib intento,& fètrabalhaíTe porto marmos o mais fecretamente q pu* deífe fer,pornão aluoroçarmos a ter- ra,quem nos diíTelle a ditbíicia que podia auer daly à ilha 'de Calépiuy, & que fe pelas informações q acha£ femos viítemos q era tao fácil o co* metiméto delia como o Similau nos tinha ditOjfofíèmos adiante,& quan- do não, então nos tornaíTemos pelo meyo da corrente do rio abaixo,por- que ella nos leu ária ao mar paraon* de tinha feucurfo. Concluydos ne- fle parecer, que foy por votos dos mais,feguimos noífo caminho adiate com aílaz de confufaò & temor, ôc tão entregues ao perigo da morte quanto o defemparo em q nos via-, mos nos eflaua moftrando. Aquella noite feguin te, fendo quafi o quarto da modorra rédido, vimos no meyo do rio por nofTa proa eftar hua bar- caça furta,dentro na qual,pelo grade aperto &neceísidade em q então e-j ítauamos,nos foy forçado entrarmos fem tumulto nem rebuliço algum, L5 &nella

*Perigrinaçoes de

&nella tomamos cinco bornes q a- chamosdormindo,os quais António de Faria inclino cada hum por fy para ver fe concertauão todos nas reí poftas do q lhes preguntaua, às quais preguntas todos refponderaó que a- quella terra & paragem onde efta- uamos fe chamaua Tanquilem , da qualauiafós dez legoas dediftancia àilhadeCalempluy. E preguntan- dolhes miudamente por outras muy tas coufas neceflarias a noíTa faluaçaó & fegurança, a todas cada hum por íy refponderaó muyto a propoíito, de que António de Faria & todos os mais ficarão muyto fatisfeitos,& fo- bre tudo muyto pefaroíbs dos des- manchos paíTados,porque bem fe cn

Obrada, como tenho dito,eíta ponta de Gui naytaraó,defcubrimos adiante obra de duas legoas húa terra rafa, a modo delizira, íituada no meyo do rio, a qual, fegundo as moftras de fora , podia ier de pouco mais de húa legoa em roda. António de Faria íè chegou bem a ella com muyto ai* uoroço mifturado com não pequeno receyo,porq ate então não entendera ainda o grade perigo em que fe me- tera a fy & a todos, & fendo ja paf* íadas mais de três horas da noite fur- gio obra de hum tiro de berço delia, & como a menham foy clara, juntos

em confelho todos os que para iífo tendeo que fémo Similau que era o i foraó chamados, aífentaraó q vifto Norte da noíTa viagé, não podíamos como húa couía taõ grandioía como

fazer couíã que foffe bem feita. Eftes cinco Chins icuou António de Faria comfígo prefos a banco,& feguio por íiia derrota mais dous dias & meyo, no fim dos quais prouue a noífo Se- nhor que dobrando húa póta da ter- ra que fe dezia Guinaytaraõ defcu- brimos efta ilha de Calépluy, a qual auia oitenta & três dias que andaua- mos bufcando com tanta confufaó de trabalhos Sc medos, quantos atras ficão contados.

QAT. LXXV.

(jomò chegamos a efta ilha de Ca»

lempluy>&' damaneyra,ordem9

fítio9&fabrica delia.

aquella,& que de íy moftraua hum aparato & mageftade tamanha, não parecia pofsiuel que eítiuefíe lem ai- gúa gente q aguardaíTe jlhes parecia bom confelho que com todo o filé- cio pofsiuel fe rodeaíTeprimevro to- da por fora para fe ver as entradas cj tinha,ouqueimpediméto podia ter a noíTa deíembarcaçao, & que fegú- do o que fe viífe fe determinaria o q fe auia de fazer. Com efta refoluçaó fe mandou António de Faria leuar, Ôc íèm eltrondo nem rumor ne- nhum fe chegou bem aterra, &ro- deandoa toda, a vio bem à fua von- tade^ notou particularmente nel- latudo o que a vifta podia aican^ çar. Era efta ilha toda fechada em roda com hum terrapleno de canta- ria de jaípe de vinte & féis palmos

em

Fernão Aíendez Tinto.

cm alto,feico de lageas úo primas & bem aífentadas,que todo o muro pa- recia húa pe^a,coula de que todos fe cfpantaraó muyto,porque atè en- tão não tinhão viíto em nenhúa par- te,nem da índia, nem de fora delia, coufacjue íè pareceiíecom aquella. Efte muro vinha criado de todo o fundo do rio até chegar acima à agoa em altura de outros vinte & íeis pal- mos,de maneira que a íua altura era de cinquenta & dous palmos, & e'm- cima no andar do terrapleno em que o muro acabaua a fua altura, tinha húa borda da mefma cantaria roliça como cordão de frade,da groíTura de hum barril de quatro almudes que a cinera toda em roda, íbbre a qual hiáo aíTentadas húas grades de latão feitas ao torno, que por quartéis de féis em féis braças fechauão nus ba- lauftes do meíiiio lataó, em cada hum dos quais eítaua hum idolo de molher com húa bolla redonda nas maés,que por então fe não pode en- tendei o que ifto figniflcaua. Deftas grades a dentro hia húa fdeyrade

anãs muyto bailo fem outra miftura de aruore nenhua, no meyo do qual eftauão fabricadas trezentas & feííen ta irmidas, dedicadas aos deofesdo anno,de*que efta génlidade nas fuás hiftorias conca grades patranhas em renficação de íua cegueyra. Mais aci« ma obra de hum quarto de legoa,ío- bre humteíoquea terra fazia para a banda do Leite, aparecia© hús edi- fícios com fere f romarias de caías a modo de igrejas,todos dalto abaixo, quanto a vifta podia alcãçar, cozidos em ouro,com íuas torres muyto al- tas,que fegúdooque parecia, deuião de íer campanayros,& por íora duas ruas de arcos que cingião eftes edifí- cios, os quais arcos eraõ do mefnno teor das íete frontarias das caías, ôc todos, desdo mais alço do eípigão dos curucheos até baixo cozidos em ouro,peloqualde todos íe julgou cj deuia iílo defer algum templo muy- to/umptuofo & de grandilsimá ri- queza. Deípois de íer bem vifta & examinada efta ilha ou lizira, por ef- tar,çomo diífe, íituada no meyo do

grandilsimá quantidade demonftros ' rio, António de Faria íe determinou, de ferro coado,que a modo de dan- inda que era ja tarde, de íayr em ter-

ça com as maós dadas de hús aos ou tros fechauão toda a redondeza da ilha, que, como digo, feria de quaíi húa legoa em roda. D eftes m 5ft.ru o- fos ídolos a dentro, pela meíma or- dem ôc fileyra em que elles cingião efta lízira, auia outra de arcos, deo- bra riquifsima em que os olhos ti- nhaó^ífaz que ver,& em que fe de- leitar^ tudo o mais daquy para dé- tro era hum bofque de larangeiras

ra, para ver fe podia tomar lingoa emalgúa daqnellas irmidas, que o certifícaífe do que lhe era neceflario faber,porque fegúdo a informarão q tiueífe,afsi íe determinaria,ou em yr por diante,ou em fe recolher, ôc dei- xando aguarda neceífaria em am- bas as embarcaçoé^elle com quaren- ta foldados, Sc vinte eferauos, tantos de lanças como de arcabuzes,& qua- tro Chins que fabião a terra^porque L4 jaaly

ja aly tinhão ydo algúas vezes, para nos encaminharem & feruirem de in- terpretes,cometeo a defembarcaçaó, & deixou o padre Diogo Lobato por Capitão das duas panouras, por fer homem fefudo, & de grandes efpri* cos. E defpois de fer defembarcado em terra, fem atè efte tempo fe ter vifto peífoa nenhúa, nem fentido ru- mor ou reboliço algum, fe meteo lo- go deite edifício para détro, por hua de oito entradas que nelle auia,& en- caminhou pelo meyo do bofquedo laranjal,& foy demandar húa irmi- da que defronte eftaua aparecendo, obra de dous tiros de efpingarda do lugar onde defembarcamo§,na qual achou o que logo fe vera.

CAT. LXXVL

(jomo António de Faria chegou a efla irmida^ & do quepaj- fou nella,

Aminhando António de Faria para a irmida que ti- nha diante,co mayor filen- cioque podia,& não fem algum re- ceyojpor não íãber atè então o em q fe tinha metido,leuando todos o no- me de Icfu na boca, & no coração, chegamos a hum terreyro pequeno que eftaua diante da porta,& inda a^ te quy não ouuemos vifta de peiToa nenhúa,& António de Faria, que hia fcmpre diante com hum montante nas mãos,apalpoua porta,& a findo fechada por dentro,& mádando a hu dos Chins que eftaua junto com elle,

Teregrinaçoes de

que batcíTe,elle o fez por duas vezes, & de dentro lhe foy refpondido, feja louuado o Criador que efmaltou a fermofura dos Ceos, rodee por fora, & faberey o q quer: o Chim rodeou a irmida,& entrou nella por hua por ta traueíTa,& abrindo a em que efta- ua António de Faria, elle com toda a gente entrou dentro na irmida, & a- chou dentro nella hum homem ve- lho, que ao parecer feria mais de annos,com húaveftidurade damaf* coroxomuyto comprida, o queno feu afpeito parecia fer home nobre, como defpois foubemos que era, o qual em vendo õ tropel da gente, fi- cou tão fora de fy que cahío de foci- nhos no cháo,& tremendo de peis ÔC demaõs, não pode por çntaofallar palaura nenhúa,porem p«iíTado hum grande efpaçó em que a alteração deite fobrefalto ficou quieta, ôc elle tornou fobre íy, pondo os olhos em todos, com rofto alegre ôc palauras feueras,preguntou que gente éramos, ou que queríamos; o interprete lhe > refpondeo por mandado de Antó- nio de Fana,que elle era hum Capi-» tão daquella gente eftrangeyra natu- ral do reyno de Sião,&que vindo de veniaga num junco feu com muyta fazenda para o porto de Liampoo, fe perdera no mar,do qual fe faluara milagroíameme com todos aquelles homés que aly trazia comfígo, ôc q porque prometera de vir em roma- riaa aquella terra fanta a dar louuo- resaDeospelòfaluardo grande pe- rigo em que fe vira,vinha agora a cu- prirfuapromefla, & juntamente lhe

vinha

* Femao Mende^Pinto. 8?

-vinha pedir a elle aígua coufa de ef- penfatiuo ôc confufo que via dã-

mola com que fe tornaíTe a reítaurar defua pobreza,& cjue elle lhe prote- ftauaquedaly acres annos lhe tor- naria dobrado tudo o que agora to- maíTe. O Hiticou (que aísi fe cha- maua o irmicão) defpois de eftar cuy dando comfigo hum pouco no que ouuira,olhando para António de Fa- ria lhe diííe muyto bem tenho ouui- do o que dúTefte, & também tenho entendida a tua danada tenção em q o fuíco de tua cegueyra,como piloto do inferno te traz a ty & a eíToutros àconcaua funda do lago da noite, porque em vez de dares graças a Deos por tamanha mercê como con- feíías que te fez, o vês roubar, pois, pregunto Je afsi o fizeres,que efperas que faça de ty a diuinajuftiça no der- radeyro bocejo da vida ? muda efle teu maopropoíico, ôc não coníintas que em teu penfamento entre imagi- nação de tamanho peccado, & Deos mudara de ty ocaftigo, ôc fiate de mim que te fallo verdade,afsi me el- la valha em quanto viuer, António de Faria fingindo que lhe parecia o confelho que elle lhe daua, lhe pi- dio muyto que fe não agaftaíle, porq lhe certifícauaque não tinha então outro remédio de vida mais certo q aquelle que aly vinha bufear: aque o irmitáo,olhandopara o Ceo,& com as mãos leuantadas diíTe chorando, Bemdito fejas Senhor que fofres a-

te, tornou a por os olhos no tumulto & rumor que todos fazíamos no de- íarrumar ôc deípregar dos caixoésj & olhando para António de Faria, q nefte tempo eftaua em encoftado ao montante,lhe rogou que fe aíTen- taíTe hum pouco a par delle, o q An- tónio de Faria fez com muyta corte- íia & muytos comprimentos, porem não deixou de acenar aos íbldados q continuaíTçm coque tinhaõ entre as maòs,que era efeolher a prata que íe achaua nos caixões de miftura cos of fos dos finados que também eftauão dentro,o que o irmitaõ fofria taó mal que duas vezes cahio efmorecido du banco em que eftaua aflentado em- baixo, como homem que fenda a- quillo por oífenfa graue. E tornando pefadamente a continuar com An- tónio de Faria lhe diííe, querote de* clarar como a homem que me pare- ces diícreto,o em que coníifte o per- dão do peccado em que tantas vezes me apontafte, para que não pereças para íempre fem fim no derradeyro bocejo da tua boca. laque me dizes que a neceísidade te obrigou acome- teres delito taó graue,& que rés pro- poíito de reftituyr o que tomares an- tes que morras, fe a pQÍsibilidade te der lugar para iíTo,farâs trescoufas q te agora direy, a primeyrahe refti- tuyres o que tomares antesque mor- ras.porque fe não impida de tua par-

uer na terra homésque tomem por - te a clemência do alto Senhor, a fe- remedio de vida oftenfas tuas,& não gunda,pedireslhe com lagrimas psr- por certeza de gloria íeruirte hum dão do que fizefte, pois he tão feyo dia. E defpois de eftar hum pouco diante da fua prefença, ôc caftigares

poc

^Peregrinações de

por iíío a carne continuamete de dia ceo bem a todos não fe bulir por en-

& de noite; ôc a terceyra partyres cos íèus pobres tão liberalmente como comtigo,& abrires as tuasmaós com difcriç>aò& prudência, porque o fer- uo da noite não tenha cjue te arguyr no dia da conta. Epor efte conlèlho te peç^o que mandes a eíTa tua gente que corne a recolher os oíTos dosfan tos,porquenao fiquem defprezados na cerra. António de Faria lhe pro- meteo que o faria afsi com muytas palaurasde comprimentos, de que o írmitão ficou algum tanto mais quie- to,inda que náo de todo íatisfeiro. E chegandofe mais para elle, o come- çou de amimar,& afagalo com pala- uras brandas, & de muyto amor & corteíia,certificandolhe que defpois queoouuirafe arrependera muyto de ter cometido aquella viagem,mas que os íèus ihç dezião que fe fe tor- naííeo matarião logo,&queiftolhe deícobria em grande íegredo:aque elle refpondeo,queira Deos quefeja iíTo afsi, porque ao menos não terás tanta pena como eííoutros miniftros da noite, que como caés esfaimados me parece que toda a prata do mun- do os não poderá fartar,

CAT. LXXVll

T>o mais que António de Faria

pajfou mfia ermida ate fe

embarcar.

Efpoisde fer recolhida to- da a prefa q aly auia,& mã- idada às embarcações^ are*

tão com mais nada, afsi por não fa- bermos a terra, como por íerja quaíi noite, efperando que ao outro dia o poderíamos fazer mais à noíla von- tade; & querendoíè António de Fa- ria embarcar, fe quiz defpidir pri- meyro do ermitão, ôc o confolou boas palauras,dizendo, que lhe pedia muyto pelo amor de Deos que não fe efcandalizaíTe, porque lhe certifi- caua que a muy ta pobreza em que fe via o fizera fazer aquillo que na ' verdade não era defua condição, & que defpois que fallara com elle, ar- rependido do que cometera fe qui- fera logo tornar,porem que aquelles homés lhe foraó à mão,& lhe jurarão todos que o auião de matar ie tal fl- zefTe,& que por iíTo confrangido el- le do medo,fe calara & coníintira na- quillo que claramente via fer tama- nho peccado como elíe tinha dito3pe lo que leuaua determinado, tanto q íè viíTe defembaraçado dellesjrfe lo go por eíle mundo a fazer tanta peni- tencia quanta entendia que lhe era neceíTaria para íàtisfaçaó de tama- nho crime. A que o ermitão reípon- deo,praza ao Senhor que viue reyná- dofobrea fermofura de fuás .eítrel- Ias,que te não faca mal entenderes tanto delle quanto moftras neíTas pa- lauras,porque te aífirmo que muyto mòr perigo corre o que ifto entende fe faz màs obras, que o ignorãee fem ley aquém a falta do entendimento eftá defeulpando Deos ôc co mu- do. Aquy fe quiz entremeter na pra- tica hum dos noíTos por nome Nuno

Coelho,

FernSo MendeçfPinto.

Coelho, & lhe difle que fe não aga- ftaíTe por tão pouco,a quem elle reP pondeo^ muyco mais pouco he o te- mor.que tu tês da morte, pois gaitas a vida em feitos tão cujos, quão cuja eu creyo que eftarà tua alma das por tasdeííemunturo da tua carne para dentro.E fe queres mais prata,como moftras na fede de tua cobiça, para com ella acabares bem de encher o fardel do teu infernal apetite,neíTou- trascafasquepor ahy eftão acharas com que bem te enchas ate arreba- tares^ quiçá que não errarás, porcj ja que por eíTa que tês tornado às de yrao inferno, vay também poref- íoutra, porque quanto mais pefole-» uaresfobretuacabeça^anto mais de preíla iras ao fundo,como parece pe- lo que tuas mas obras de ty teftemu- nhaó. E tornando o Nuno Coelho a replicar,que lhe rogaua que tomaíTe tudo em paciencia,porque afsi o mã- daua Deos em íua fanta ley, o ermi- tão pondo a mão na teria a modo de efpanto, & bulindo cinco ou féis ve- zes corr. a cabeça,forrindofe do que lhe tinha ouuido,lhe refpondeo,Cer- to que agora vejo o que nunca cui- dey que viífe nem ouuiíTe, maldade por natureza, & virtude fingida, que he furtar & pregar. Grande deuefer a tua cegueyra,pois cofiado em boas palauras,gaftas a vida em taõ mas o- bras,não fey fe gracejará Deos com- tigo no dia da conta, & não o que-» rendo mais ouuir,fc virou para An- tónio de Faria, que nefte tempo ja eítaua em pc,& com as maòs aleuan* tadaslhe pedio com muyta efficacia

86

que não confêntiíTe cufpiremlhe os noíTos no akar,porque o fentia mais que tiraremlhe mil vezes a vida, a q elle refpondeo que afsi fe faria, & em tudo o mais que mandaíTe feria logo feruido,de que o Hiticou ficou algu tanto confolado. E porfer jamuyto tarde.determinou António de Faria de fe não deter então alymais, poré antes que fe recolheíTe, vendo que lhe era necefíario tomar informação dalguas cquias importantes, para fe certificar dalguns receyosque tinha, preguntoUao ermitão que gente a* ueria em todas aquellas ermidas,a q elle refpondeo que trezentos & fef- fenta talagrepos fométe, hum em ca- da ermida, Ôc quarenta menigrepos que os íeruiaó de fora,& os prouiaó de mantimento, & da cura dalguns doentes. Ê preguntado fe vinhaóos Reys da China a aquelle lugar algu anno,ou em que tempo,re(pondeo q não,porque o Rey, por fer filho do Sol,elle podia abfoluer a todosí& nin guem o podia condenar a elle. É pre * guntado fe tinhaó aquelles ermitães algua maneyra de armas, refpondeo que não, porque os que pretendiaõ caminhar para o Ceo, não lheserao neceííarias armas para oíFender, fe- nãò paciência para fofrer. E pregun- tado porque caufa eftaua aqúella prata naquelles caixões de miftura com aquelles oíTos, diíTe que porque era efmolla que aquelles defuntos leuauaò comíigo, para no Ceo 'da Lua fe valerem delia em fuás necef- 1 fidades. E deípois de lhe preguntare » outras muytas coufas?preguncando~

lhe vltlmámente Te tmhaõ molhe- res,reípondeo que os que ouueííem de dar vida a alma lhes era muyto neceííario não gaitarem dos deleites da carne,porque claro eítaua que no fauo doce domelfecriaua a abelha que picando efcãdalizaua,& magoa- na aosque o comião.Antonio de Fa- ria abraçandooentão, & pedindolhe muytos perdoes ao feu modo,que el- leschamãods Charachina fe veyo embarcar jaquaíi noite,com deter- minação de ao outro dia tornar aco- meteras outras ermidas, onde tinha por nouas que auia húa muyto gran- de quantidade de prata,& algús Ído- los douro, mas noííos peccados nos tolherão vermos o effeito difto que com tanto trabalho & nico das vidas tínhamos procurado auia palTante de dous meies & meyo, como logo íe dirá.

QAT>. LXXVUL

Qpmo esla prtmeyra noite fomos fentidos^ porque caufa, gr- ão mais quefocedeo fobre ijjo.

Efpois-de fer embar- cado António de Fa- ria^ nos todos com el le,que lèría ja quaíi ás Aue Marias , nos paf- famosa remo à outra parte da ilha, Sc íiirtos delia obra de hum tiro de falcão, nos deixamos aísi eftar ate quaíi mcya noite, determinação, como ja atras diíTe, de tanto que ao*

Térígrínâçoes de

outro dia roíTe menham tornarmos a fayrem terra, & cometer as capei- las dos jazigos dos Reys que eítauão de nòs menos de hum quarto de le- goa,para nellas carregarmos ambas as embarcações, o que quiçá pudera muyto bem fer fe nos íouberamos negocear,ou António de Faria quife- ra tomar o coníelho que lhe dauão, o qual foy que pois ate então não e- ramos ainda fentidos, que- trouxeíJc configo o ermitão, porque não defle recado na caía dos bonzos do que tí- nhamos feito,o que António de Fa- ria não quizfazer,dizendo que fegu- ro eftaua dilTo,afsi por íer o ermitão tão velho como todos viamos, como por íer gotoíb,& ter as pernas tão in- chadas quefe não podia ter nellas, porem não foy afsi como elle cuyda- ua,porque o ermitão tanto que nos vio .embarcados (fegundo o que deí poisfoubemos) aísi trôpego como e- ftaua, fe foy em peis & em mãos à outra ermida^ue diftaua da fua pou co mais de hum tiro de befta, & deu conta ao ermitão delia do que lhe tínhamos feito,& lhe requereo q pois elle fe não podia bolir por caufada fua ítropeíia,foíTe elle logo dar reba- te na caia dos bonzos, o que o outro ermitão logo fez.E nós também on- de eítauamos o entendemos Wo, porque íéndo paííada húa hora deí- pois dameya noite, vimos encima da cerca do pagode grande dos jazigos dos R.eys,húa muyto comprida car- reyra de fogos, como que fazião fi- nal^ preguntandoaosnoflbs Chins que lhes parecia aquiilo, reípónde-

rao

Fernão Mende^Pinto. Sy

rão todos que fem falta nenhúa era- o quifeílem aly efp ef ar, porque que

mos fentidos, pelo que nos aconfe lhauao que fem mais detença nos fi- zeffemos logo à vella. Difto fe deu logo rebate a António de Faria, que nefte tempo eftaua dormindo,o qual acordou logo muyto depreíía,& lar- gando o cabo por mão fez tomar o remo,& afsi como pafmado fe foy di reico à ilha,a ver fe fentia nella algua maneira de aluoroço,& chegando ao caiz,ouuimos grande cftrondo de fi- nos que fe tangião em todas as ermi- das,& de quando em quado rumor de gente,a que os Chins diííeraó, fe- nhor,nãotensja mais que ver que faber,acolhetc pelo amor de Deos,& não fejas caufa de nos matarem aquy a todos: porem António de Faria, fem fazer cafo do que elles dezião, faltou cm terra com íeis homés de efpadas & rodcllas, & fubio pelas ef. cadas do caiz acima quaíi afrontado & fora de fy, & fubindo defatinada- mente por cima das grades, de q to- daailha,comojadiíTe, era cercada, correo como doudo de hua parte pa- ra a outra, fem íentir coufa algua, & tornandofe às embarcações muyto afrontado,praticou com todos fobre o que nifto fe deuia de fazer, & dek pois de fe darem muytas razoes, que elle não queria aceitar,lhe fizeraó os mais dos foldados requeriméto que cm todo o cafo fe partiífe logo,& elle arreceofo de auer algum motim,ref- .pondeo que afsi o faria, mas que pa- ra fua honra lhe conuinha primeyro íaber o de que auia de fugir, & q por tanto lhes pedia muyto por mercê q

ria ver fe podia tomar algua lingoa qo certificaííe mais na verdade de- ita fofpcita,& que para iífo lhes não pedia mais de efpaço que íó meya hora, viftocomo ainda auia tempo para tudo antes que fofle menham.E querendolhe algús dar alguas rezoés contra ifto,as não quiz ouuir,mas dei xandoos afsi a todos com lhes tomar primeyro as menagés, &lhes dar ju- ramento nps íamos Euangelhos, fe meteo cos féis que leuaua por den- tro do aruoredo do bofque, Ôc cami- nhando por elle mais de quatro tiros de efpingarda,ouuio diáte tanger hu fino,& atinando pelo tom onde era, foy dar nua ermida muyto mais no- bre Ôc rica que a outra em que o dia dantes tínhamos entrado, na qual e- ftaaão dous homés quaíi ambos de hua idade,veftidos em trajos de reli- giofos, ôc com fuás contas ao pefeo- ^o,por onde infirio q eraõ ermitães, & dando nelles de fupito os cornou a ambos,de que hum ficou tão pafma- do que muyto tépo não falou a pro- pofito. Dos noflbs féis os quatro en- trarão na ermida, ôc apanharão do altar hum idolo de prata de bom ta- manho,com hua mitra douro na ca- beça^ hua roda na mão, q não íbu- bemos determinar o que fignificaua, & tomarão mais três candieyros de prata com fiias cadeas muyto com- pridas; Ôc tornandofe António de Fa ria a recolher muyto depreílã, cos dous ermitães quafi arafto,&com as bocas tapadas, chegou onde as em- barcações eftauãOj& recolhido nellas.

fe fez

^Peregrinações de

fe fez logo á8 vella com miiyta prciP fer jamuyto velho,pelo que todos os

ía,& fe foy pelo rio abaixo, ôc fazen dopregLincasa hum dos dous q hia mais em íeu acordo,& grandes a- meaças íe mentiífe, refpondeo, q era verdade cjue hum fanto homem de Lua daquellas ermidas por nome Pi- lau Angiroo, chegara ja muyro de noite a caía d o jazigo dos Reys,& ba- tendo muyto apreííadamente à por- ta dera hum grito muyto alto dizen- do: O gentes tníles ôc enfopadas na bebedice do fono da carne, que pro- feffaííes com juramento íbléne a ho- ra da deofa Amida, premio rico de noílb trabalho,ouui,ouui,ouui,o mi- ferauel que nunca nacera, fabey quê faó entradas gentes eílrangeyras do cabo do mundo com barbas compri- das, ôc corpos de ferro, na cafa dos vinte & íete pilares,de que hum fan- to homem que me ifto diíTe era vafc fourado chaó, & roubando nellao tifouro dosfantos, botarão com def- prezo ieus oíTbs no meyo da terra, 6c os contaminarão com efcarros po- dres & fedorentos, dando muytas ri- fadas como demónios obÍT,inados& contumazes no primeyro peccado, pelo que vos requeyro que ponhais cobro em voíTas peíToas, porque fe dizquetemjuradodecomo for me- nham nos matarem a todos, & por iílò oufugy,ou chamay quem* vos íbcorra,pois por ferdcs religiofos vos não he dado tomardes na mão cou- ; fa que tire fangue, a cujas vozes toda agente acordou, & acodindo rijo á porta,o acharão quaíi morto deita- do no chaò de triíteza & canfaço por

grepos & menigrepos fízeraó os fo- gos que viftes,& a grande preíTamã- daraó logo recado às cidades de Cor pilem,& Fumbana.paraque muy- ta breuidade acudiíTem com toda a gente que fe pudeífe ajuntar, & ape- lidaíTem toda a terra para que fizeíTe o mefmo, pelo que fem duuida vos afôrmo que não tardarão mais que em quanto íe ajuntarem,porque pe- lo ar,fe puder fer,viraó voando com tanto impeto como açores esfaima- dos quando lhe tiraó asprifoés; &ia beyque eíta he a verdade de tudo o que paíTa, pelo qual vos requeyro q nos deixeis yr,& não nos mateis,por- que fera mor peccado que o que on- tem cometeítes. E lembreuos q nos tem Deos tomado tanto a fua conta pela penitencia que fazemos, q quaíi nos todas as horas do dia; & tra- balhay por vos pordes em faltio;por- que vos affirmo que a terra, o ar, os ventos,as agoas, as gentes, os gados,- os peixes, as aues,as eruas, as prantas, & tudo a mais que hoje he criado, vos ha de empecer, & mordemos tã- tofem piedade, que aquelle que viue no Ceo vos poderá valer. Cer* t-ifícado António de Faria da verda- de deíle negocio pela informaçaõcj efte ermitão lhe dera, íè foy logo à grande preífa pelo rio abaixo, depe- nando as barbas, ôc dando muytas bofetadas em fy por ter perdido por feu deícuydo •& ignorância híia ta- manha coufa como a que tinha cometido, fe chegara com ellaaocabp,

CAP,

Fernão Mende^Pinto. Ç AT. LXXVllll. xinacau, que eftaó em quarenta &

(jm\o nos perdemos na erifeada do J\Qtnqmm^ do fie pajfd- mos de j pois ciijfo.

Ete dias auia ja que fa- zíamos noíTa viagem | pelo meyo da enleada do Nanquim, para a força da corrente ca-, minharmos mais depreíTa,como que nella tinha íua íaluaçaó,porem to- dos tão triftes & d efcon tentes, que como homêsforade fy nenhum de nos fallaua a propoíuo, quando che- gamos a húa aldeã que íe chamaua Suíoquerim, & como ainda aly não auia nouas de nós,nem donde vinha- mos,furgimos no porto delia, & def. pois de nos prouermos de algu ma- timento, & nos informarmos diísi- muladamente do caminho que auia- mos de leuar, nos partimos daly a duas horas, & o mais deprefta que pudemos entramos em hum efteyro menos íèguido de gente que a enfea- da por onde tínhamos vindo,quefe chamaua Xalingau,pelo qual corre- mos mais noue dias, nos quais cami- nhamos cento ôc quarenta legoas, Ôc tornando a entrar na mefm a enfea- da do Nanguim, que ja aquy era de mais de dez ou doze legoas de largo, velejamos por noíTa derrota ven- tos Oeítes de hum bordo no outro mais treze d ias, ôc bem enfadados do, muyto trabalho ôc medo que paíTa-» uamos,& jacom pouco mantimen-» «o,&;íendoà vifta das minas deCon-

hum graos,& dous rerços,nos àcu hu* tépodoSul, aque os Chins chamão tu.faó,caó forte de vento, ôc çarraçao & chuueyros, que não parecia couía natural- &: como as noíías embarca- ções eraó de rerno,& não muyto gra- des^ baixas, Ôc fracas, Ôc fem mari- nheyros,nos vimos em tanto aperto, que quaíi defeonfíados de nos po- dermos faluar, nos deixamos yr aísi rolando à cofta, auendo por menos mal morrermos entre os penedos, q afogados no mar- ôc feguindo nòs com efte propoíito noíío caminho, íem podermos effeituar efte mifera- Liei intento, que então efeolhiamos por menos mao,& menos trabalho- ío,nos faltou o veto ao Nornoroefte ja fobola tarde com que os mares fè> caraó taó cruzados, ôc tão altos na vaga do efearceo, que era couía me- donha de ver. Com efte medo co- meçamos a alijar quanto trazíamos, ôc foy tamanho o defatino nefte ex^ çefsiuo tçabalho,que ate o mantimé- to ôc os caixões da prata fe lançarão ao mar, Ôc após ífto cortamos també ambos os maftos, porque ja a efte té- po as embarcações hião abertas, ôc corremos aísi a aruore íeca o q mais reftaua do dia, & fendo quaíi meya noite, ouuimos na panoura de An- tónio de Fana húa grande grita de Senhor Deos mifericordia,poronde imaginamos que fe perdia, ôc acu- dindolhe nós da noíTa com outra pe- lo mefmo modo, nos não refponde- raó mais como que eraó ja alaga- dos, de que todos ficamos taó paf-

mados.

Terigrinacoes de

mados & fora de nos, q hua grande QA <P. LXXX,

hora nenhum falou a propoííto. Pak

fada neíb aflição & agonia aquella iriílé noite,húa hora antes que ama- nheeeííe, nos abrio a noíTa embarca- ção; por cima da fobrequilha, com q logo em prouifo nos creceraõ oito palmos dagoa,de modo que fem ne- nhu remédio nos hiamos ao fundo, por onde ja então prcfumimos que era noíTo Senhor feruido que tuieísc alyfimnoíTas vidas & noítos traba- lhos. Tanto que o dia foy de todo claro, & defcubrindo ja todo o mar não vimos António de Faria, acaba- mos todos de palmar de maneyra, q nenhum de nós teue mais acordo pa- ra nada. E continuando nefte traba- lho Ôc agonia atè quaíi as dez horas, com tanto medo ôc defauentura quã to me aão atreuo a declarar com pa- 3aurasJviemosadaràcoíta,& meyos alagados nosforaóos mares rolan- do atè hua ponta de pedras que efta* na adianie,na qual,em chegando, co rolo do mar nos fizemos logo em pedacos,& pegados todoshus nos ou« tros7có grande grita de Senhor Deos mifericordia, nos faluamos dos vin- te & cinco Portuga efes que éramos os quatorze fomente,& os onze fica- rão aly logo afogados mais dezoi to moços Chriftaõs,& fete Chins ma rinheyrcs, & efta defauentura íoce- deo hua fegunda feyra cinco do mez de Agofto,do anno 1542. pelo qual noíTo Senhor feja louuado pêra ra fempre.

Domais que nosfocedco defpois desk miferaueí nauf ratio.

Stes quatorze Portu- guefes que efcapamos pela miíèricordiá de noíTo Senhor lefu Chri fto, eftiuemos todo a-; quelle dia & a noite feguinte chora- do o noíTo triíle fucceíTo)& o mifera- ueí eftado em que nos viamós, fem nosíabermos daraconfelho,afsi por íer agra a terra ôc de grande íerrania, como por atè então nao termos vi- fto peífoa a que pudeííemos precrun- tar por coufa algúa. E tomando con- felho fobre o remédio que nefte tê- po,& nefte trabalho podíamos ter, íè adernou que nos meteílemos pela terra dentro,porque claro eftaua que ou ao perto,ou ao longe, não podía- mos deixar de achar algíia gente que por catiuos nos defle de comer ate cj noílb Senhor foííe feruido de nos a- cabar ou a vida ou o trabalho. Com efta determinação nos fomos cami* nhando ao longo de húa lerra,& def pois de termos andado íeis ou fete legoas, defcobrimos da outra parte hum grande paul dagoa, quanto nos alcançauaa vifta, fem adiantedelle vermos mais outras moftras de ter- ra nenhúa,pelo que nos foy forçado tornarmos a voltar,& irmos deman- dar o lugar onde nos tinhamos per- dido,ao qual chegamos ao outro dia ja quafi foi pofto,& achamos na pra- ya todos os noííòs que o mar tinha

lançados

Fernão McnrfezTinto.

8ç>

lançados fora,fobre os quais fizemos Je nòuo hm trifte pranto,& ao outro Jiapela menham os encerramos na irea, porque os tigfes, de que a cerra ira muyto pouoada,os não comeí- rem, na qual obra, com aíTaz de dor & trabalho,gaftamos a mayor parce jo dia,porq como elles por codos e- rão trinta & íeis, & o fedor cíelles era jaincomportauel, porcftaréja muy- to podres ôc corruptos, ôc nos não ci- nhamos oucros inftrumencos fenão is maós fomence, com q arranhaua- mos nos lugares onde fazíamos as :ouas,gaftauamos em cada hua quaíi Kicya hora. Defpoisde ferem encer- rados eftes detiintoSjnos fomos apou- fencar num charco dagoa, no qual íftiuemosacéquaíi a menham com medo dos tigres, daquy feguimos loííb caminho contra o Norre, por maços & brenhas cao eipeíTas, q em ilgíías partes as paíTauamos muy- to trabalho, aísi caminhamos três dias acé chegarmos a hu efteyro5íem nunca -acé então auermos vifta de peííoa algúa,& cometendo pafTalo a nado,os primey ros quatro que fe la- çarão a elle,que foraó três Portugue- fes ôc hum meço, fe afogarão logo, porqcomohiaoja muyto fracos ôc debilitados, ôc o efteyro era largo,& a corréte da agoa grande,naó os aju- dou a força dos braços a. remar mais ^ atè terço do rio: eftes Portugue- íes codos três erão homes muyco hó- rados,& dous delles irmaós^um por nome Belchior Barbofa, & o outro Gafpar Barbofa,& o terceiro era pri- mo deír,çs,ôcfe chamaua Frãcifco Bot

ges Cayciro,& todos três nacuraes de Póce de Lima,& de muyco boas par ces, aísi no esforço, corno no mais preço de fuás peiíoas. Os onze que ficamoSjCÕ mais mda crés moços,vé- do o miferauel fucceííò de noííos cõ- panheyros, ôc como cada hora nos hiamos diminuindo poucos a pou- cos, nos pufernos a lamentar aftaz de íufpiros& lagrimas^fsi o que da- quelles cinhamos vifto, como o q ef- perauamosq ao diance foííe de nòs. Paliada afsi efta efeura noite entre chuuas,vencos, frios, lagrimas, Ôc fuf- piros,prouueaiioíTo Senhor q antes quefoíTe menham vimos contra a parte de Leite hum fogo muyto gra- de^ como o dia foy aclarado, mar- cados por fracas eíli matinas dalgus q ainda hião para iíTo, começamos a caminhar dircycos ao fogo,encomé- dandonos a aquelie Senhor omnipo- tente, do qual elperauamos o re- médio dos males Ôc trabalhos em q nos viarnos, E cõtinuando ao longo do. rio eíta noíTa trifte jornada cmq gaitamos a rr^ayor parte do dia,che- gamos quaff foi poftoa húas roças de mato, em que cinco nomes anda- uao dizendo caruao, chegandonos então a elles, nos lançamos aos íeus peis, ôc lhe pedimos por amor de Deos,q*nos encaminhaísé para algíí lugar onde foííemos remediados do mal em q nos viaõ, a q delles ref- pódeo,oxalànaó íora mais qhum mal q era mataruos a fome,mas vejo em vos cantos que para vos cubrir effas carnes que trazeis tio chagadas nao baftaó quantos facos aquy te-

M

mos,

Terigririaçoes de

mos, mas a boa vontade nos receba tinhaò a feti cargo, os quais nos aga

Deos,por cujo amor vos daremos hu pouco de arroz q tínhamos para cear, & agoa quente para beberdes, q vos fíruirà em lugar de vinho, a qual pafíàreis efta noite, fe vos a prouuer, * mas o milhòr íerâ,inda que íeja com algum trabalho, pafTardes adiante a aqueiie lugar que acolá eílá aparecé- do,onde achareis hua albergaria que ferue de aga falhar peregrinos que por efta terra caminhão ccntinuamé te.Nóslhc agradecemos entaó muy- to o ícu bom zelo, ôc a caridade que nos tratauáo, & lhe aceitamos a eímola do arroz, de que cada hum de nòscomeo íós dous bocados^or- que era tão pouco que naó abrangeo a mais, ôc íem nos mais determos nos deípidimos delles, & pelo cami- nho que elles nos iníinaraó começa- mos a caminhar uara o lugar onde cftaua a albergaria, aquella pref- fa que as noflas fracas forcas nos con- fentiaõ,

ÇAT. LX$XL

(jmio chegamos, a hua aldeã onde

ejtaua ejia albergaria^ & do

que milapajpimos.

A feria húa hora de. noite quando chega- mos ao lugar onde efta ua efta cala da alber- garia, q era húa aldeã pequena,& nós Tomos logoaella,& nella achamos quatro homés que a

falharão com muyta caridade. Eco mo ao outro dia foy mcnham no. preguntarão quegête eramos,ou co mo vínhamos daquella manevra, | que refpondemos que éramos eftrai geyros naturais do reyno de Sião, ô que vindo do porto de Liampoo p: ra a peícaria do Nanquim, nos per déramos com húa grande torment; auia quinze dias,fem faluarmos mai: que aquellas miferaueis carnes ais chagadas & nuas como as vião. El- les nos tornarão a preguntar que determinarão era a noífa, ou pari onde queriamosyr, a que refponde- mos que para a cidade de Nan- quim, para dahy por remeyros daí lanteaas, nos irmos para Cantão, ot paraComhay, onde os noííòs na. turais, com licença do Aytao de Paquim fazião. fuás fazendas de- baixo do feguro & verdade do fi- lho do foi, iião coroado no trono do mundo, pelo que lhes pedíamos pelo amor de Deos, que nos deixaf fem eftar aly naquella cafa ate con- ualeçermos, & termos forcas para podermos caminhar, & nos deíTem algúa maneyra de veftido para nos cubrirrnos, elles todos quatro nos refponderaó,razao he que fe a ias voíías nuas carnes o que com tantas lagrimas nos pedis, mas a cafa ao prefente efta tão pobre, que iífo nos fará não cumprirmos de todo coma nofía obrigação, mas o que podermos tudo faremos de muyto boa vontade; então nos leuaraó, afsi nuscomo eftauamos;por todo o lugar

que

Fernão Mende^Pinto. po

que podia fer de quarenta atecin- mundo não pode darcoufa que boa

quencavezinhos,poucomais ou me nos, Sc fegundo o q viamos nelle, de gcte muyco pobre q viuia por leu tra balho,&:nos tirarão de eímoladous tacis em dinheyro, Sc hum meyo fa- ço de arroz, & hua pouca de farinha, & feijões, & cebollas, ôc aísi mais al- gum vertido velho, com que pobre- mente nos remedeamos, & da meia da albergaria nos derão outros dons taeis de prata,& de ficarmos aly fe ef- cufarão, dizendo q não era coftume eítarem aly os pobres mais que três <lias até cinco,tirádo fe foíTem homés doences,ou molheres prenhes, aquc fempre fe tinha muyco refpeito por não poderem caminhar fem perigo, pelo qual elles por nenhum caio po- dião quebrar elle regimento que an- tigamente fora feito por pareceres de homes doutos Sc religiofòs, mas q daly a três legoas núa villa grande q fe chamaua Sileyjacau, auia hum ef- prital muyto rico em que recolrnao toda a maneyra de pobres, no qual podíamos fer curados miiyto milhor que naquelle que era pequeno Sc po- bre conforme ao lugar onde eílaua, & que para ifib nos darião hua carta de encomenda afsinada pelos da ir- mandade, pela qual nos recolheriao logo. Iíto lhe agradecemos nos muy- to dizendolhe que fofTe pelo amor de Deos,aque hum velho q era hum dos quatro,refpondeo,por efle ref peito fe faz, Sc não pelo do mundo, porq Deos Ôc elle eítão fempre muy- to diríeréces,afsi nas obras, como nas condições com q as fazem, porque o

feja por fer pobre Sc miíero,& Deos hc muyto rico, Sc amigo dos pobres, q com humildade Sc paciência o lou- uáo na aflição de fua pobreza, o mu- do vingatiuo,& Deos paciéte, o mu- do ruym,& Deos muyto bó,o mun-^ do comedor,& Deos abítinéte,o mu- do reuoltofo Sc murmurador,&Deos pacifico Sc fofredor,o mundo menti- rofo & trapacey ro para os q faó feus, Sc Deos verdadeyro Sc claro, Sc doce & fuaue aos recolhidos na fua ora-« çaó,o mundo fenfual Sc auarento,& Deos liberal ôc limpo íbbre toda a limpeza do foi &c das eílrellas, & de outras eftrellas muyto mais exccllé- tes q eítas q vemos, as quais aísiftem cõtinuaméte diate da face do leu ref- plandor,o mudo cheyo de diuerfas o- pinioés no falíb fumo de fua vamglo ria,& Deos puro Sc cõftante em lua verdade paraq íêpre por elle tenhão gloria os humildes Sc limpos de cora- ção^o mundo doudo Sc ignorante, Sc Deosfabeduria pura de toda a verda de.E por iííbjmigos meus, inda que vos agora vejais defla maneyra, não defcôfieisdefuaspromeíras,porqvos certifico ójfe de vofía parte o não d^f merecerdes,qelle da fua não falte,pot q nuca faltou aos feus,inda q os cegos do mundo tenhão para fy o contra-» rio,por caufa da aflição com q a mi^ fera pobreza concinuamente os aba* te, &o mundo os defpreza. £ dan- donos a carta de encomenda para o efprital , nos partimos com elia ja quaíi ao meyo dia,& chegamos à vil-» ia hua hora ou duas antes do foi M 2 poílo,

Peregrinações de

pofto~ & nos fomos logo direitos à no dia da morte, paraque não veja

cafa do repoufodos pobres,porq aísi lhe chanião os Chins, inda que eu aquy,por me entenderem,lhc chamo efprital,como fe cuftuma entre nós;

mos a indignação do feu rofto. Lidí efta carta, nos mandarão logo aga falhar nua cafa muyto lirnpa,em que eftauão quatorze efquifes honefta

& dada a carta que leuauamos aos mente concertados, Ôc húa mefa cc tanigores da irmandade, que então muytas cadeyras, na qual nos pufe

eftauão todos juntos a húa mefa def-

Í)achando os negócios dos pobres,eL es a tomarão com húa noua cerimo- nia de acataméto, & mãdarão ao ef- criuãoquea leíTe, o qual fe ergueo lopo em pc,& voz entoada a leo perante todos, os q eftauão â meia, cuja forma era a í eguinte. Nos os mais pobres dos pobres, indinos de feruir efte fenhor cujas obras faó tão admiraueis quanto as eftrellas dos ceos teftemunhão delle no mais efcu ro da noite, eleitos na fucceíTaó dos paíTados nefta fua cafa de Buatédoo, íituada nefta aldeã de Catihorau.pe- dimos com reuerencia & acatamen- to a voílas humildes peílbas admiti- das ao íeruiço defte Senhor, que por zelo de caridade mandeis agafalhar Ôc fauorecer eííes quatorze eftran- geyros,tres baços^ oiize mais bra- ços, cujas carnes nuas, Ôc cuja grande pobreza moftrarão a voíTòs olhos com quanta razão lhe pedimos ifto, porque fe perderão com fuás fazen- das nas impetuofas agoas do mar, as quais com a fua coftumada fúria fi- zera© nelles a execução da mão po- deroía, que muytas vezes permite por caftigo da fua direyta juftiça a- contecerem cafos que moftrem cla- ramente quanto íe deue temer o feu juizo, do qual nos elle Hure a todos.

rão muyto bem de comer, & tancc que ao outro dia foy menham, o ef criuão por mandado dos outros no: preguntou que gente éramos, de qut nação, ôc onde nos perdêramos, Si outras coufas a efte modo, as quaií nós refpondemos conforme ao que diíTeramosno outro lugar, porq nos não achaííem em mentira. Então nos preguntou que determinação e ra a nofTa,& nós lhe diííemos que de nos curarmos naquella cafa íe para iíTò nos deííempicença, porque ví- nhamos muyco doentes, ôc não po- díamos caminhar, a que ellerefpon- deo que de muyto boa vontade, por* que iíío era o que continuamente fe fazia nella por íeruiço de Deos,o que nós todos chorando lhe agradece- mos com húãs molhas exteriores ri- to a noííò propofko , que a elle fe lhe ar rafarão os olhos dagoa, E mãd dando logo vir hum Fificojh.e diftè que a todos nos curaííè muyto bem, porque éramos rão pobres que não tínhamos mais que fomente aquillo queacafafnos daua. Então nos to- mou os nomes, ôc os efcre-ueo num liuro em que todos afsinamos, ôc nosdiíTe que afsi era neceíTa rio pa- ra a conta do que fe gaftaua com nofco,

CAP.

Fernclo zIMerJezJPinto.

9l

CAT. LXXXll.

forno nos partimos de/le lugar de $i/ej]acau>&' do que nos acon- teceo de/pois de parti- dos delles*

Efpois de errarmos dez oito dias nefte efprital prouidos de todo o ne- ccíTario muyto abafta- damentcprouue anof- fo Senhor q de todo conualecemos. E achandonos ja com forças para ca- minharmos,nos partimos para hum lugar que fe chamaua Suzoanganee, quediftaua daly cinco legoas adian- te,ao qual chegamos ao 'foi poílo,& porque vínhamos muyto canfados, nos aflentamos â borda de hum cha fariz que eftaua á entrada delle, on- de nos deixamos eílar hum pedaço, algum tanto confufos & indetermi- nados no caminho que daly íegui- riamos. Osquevinhaó bufcaragoa vendonos daquella maneyra, para- uão,íem oufarem chegar ao chafa- riz^ muy tos Fe tornarão para o lu- gar cos potes vazios, & derão rebate â crente delle; os mais dos moradores fayrão logo a vernos com grande preíTa , & admirados da nouidade, porque nunca aly tinhão vifto gen- te da nofla maneyra,fe ajuntarão to- dos em húa confuka,& defpois de al- tercarem entre fy hum grande efpa- co,como que eftauão differentes nos pareceres, nos mandarão preguntar por húa molher muyto velha que gente éramos, ou que fazíamos aly â

borda daquella fonte onde eílauaa a agoa que elles bebião? a que re (po- demos que éramos pobres eftrangey ros,naturaisdoreynode Siáo>& que nos perdêramos no mar húa gran- de tormenta,da qual nos Deos íalua- ra daquella maneyra que nosvião,a que ella tornou,pois,que quereis que vos façamos,ou ouq determinais de fazer, porq aquy não ha cafa de re- poufo de pobres onde vos poíTamos agafalhar,a q hum dos noííbs, la- grimas & meneos exteriores confor- mes a noíTd propoíito, reípondeo,cj Deos,por quem era, nos náo defem- parana da fua mão poderoía, lhes mouer os corações a fe apiadarem de nós & de noíTa pobreza,& que noíía determinação era caminharmos por aquella pobre via até a cidade do Nanquim, para dahy por remeyros das lanteaas dos mercadores q hiao para Cantão nosyrmos ao porto de Comhay onde auia muytos juncos da noíTa terra em que nos embarca- ríamos. A que ella refpondeo,ora, ja que fois eííès, efperay ate que vos digo o que efta gente quer determi- nar de vós, & tornado para onde os feus eftauão, que ferião ja a efte tepo mais de cem pelToas,eííeue com elles em grandes porfías,por fim das quais tornou com hum feu facerdoce, ve ilido nuas operlandas muyto cõpri- das de damafeo roxo,que he o orna- mento da dignidade fnprema entre elles,o qual trazia hum molho defpi- gas de trigo na mão, & chegando ao chafariz nos chamou q nos chegaíTe- mos para elle, o q nos logo fizemos M 3 cora

tPerigrindÇQes de

com noíTas corteíias deuídas,de q el- eíteyras em que nos deitamos.E tau-

le fez pouco cafo por nos ver pobres, elle laçando logo na agoa as efpigas q tinha na mão, nos diíTe que pufef- femos as mãos nellas, & nos o fize- mos logo todos por nos parecer q era aísi neceíTario para a paz ôc coformi- dade q pretédiamos ter ellesj & como as pufernos, nos diííe eile, por «eítefantojuramétoq diáte de mym tomais íbbre eftas duas fuítancias de agoa ôc paó, q o altifsimo Criador de todas as coufas por fua vontade formou para fuílentar osnacidos do mudo na peregrinação deita vida, q conleífeis & digais fehe verdade o q tendes dito a eíta molher, porq íè o for vos apafalharemos com nofco conforme á caridade que por iey de razão fe deue ter cos pobres de Deos, ôc fe também o nio he, vos arrioeft© Sc mando da fua parte q logo vos va- des com pena de ferdes mordidos ôc desfeitos nas gengiuas da íèrpetraga-

to que foy menham nos fomos pe- lo lugar pedindo de porta em por- ta,onde tiramos quatro taeis de pra- ta, com que defpois remedeamos al- guas grandes necefsidades em q nos vimos. Daquy nos partimos para ou* tro lugar q íe chamauaXianguuIee, duas legoas adiante, com tenção de afsi peregrinando nos yrmos para a cidade do Nanquim,quediítauain- da daly cento Ôc quarenta legoas, pa- recédonosque de la nos poderíamos yr para Cantão, onde as noíTasnaos naquelle -tempo faziao Teu comer- cio, fe a fortuna nolo não contrariai fe. A efte lugar chegamos ja quafíá vefpera, & nos fomos por à fombra de húa aruore que eftaua hum peda- ço afaftada delle, onde achamos três moços com gado, os quais em nos vendo fugirão a grande preífa, bra- dando,ladroes,ladroés; a que os mo- radores logo acudirão com muytas

doía da cõcaua funda da cafa do fu- bèftas, & lanças, bradando a grandes

mo,ao q nòs lhe diífemos q tudo era verdade quanto lhe tínhamos dito fem falta nenhúa,cõ q elle ficou fatif- feito, ôc nos diííe ja que fey que fois os que dizeis, vinde comigo, Ôc não ajais medo,porpue eu vos feguro em minha verdade.E encaminhando lo- go para onde os feus eftauão, lhe dif- íe q bem nos podião dar fuás efmoj- las, porq elle lhes daua licença para iflo. Elles então nos leuaraó a todos configoparao lugar,& nos agafalha- rão nus alpenderes do feu pagode, onde logo nos mandarão prouer do neceífario para comermos, Ôc duas

vozes, nauacaranguee , nauacaran- guee,que quer dizer, prende ladroes, prende ladroês;& correndo após nós que ja então lhe hiamos fugindo,nos perfeguiraóde maneyra, com muy- tas pedradas,& pancadas,que a todos nos ferirão,de que logo hum moço dos três que leuauamos.nosmorreo, Ôctomandonos a todos, nos atarão côas mãos detrás pelos buchos dos braços, & nos leuaraó prefos ao lu- gar^ defpois defermos bem hofpe- dados de muytas bofetadas ôc pança- dasjnos meterão dentro nfia ciíterna de agoa encharcada que nos daua

pela

Femao Mende^^Pinto.

pclacinta,na qual auia infinidade de íambexugas, onde eftiuemos dons dias,que nos parecerão cem annos de inferno.fem nunca em todo efte tem- po termos hua íó hora de repoulo, nem nos darem de comer couía ne- Âhuajno firn dos quais vindo aly ter hum homem do lugar de Suzoanga- nee,donde tínhamos vindo, Ôc acer- tando de faber o que nos era feito, diííeâ gente da terra com grandes juramentos,que não éramos quais el- les cuydauão,mas que éramos eílran- seyros perdidos nas agoas do mar, & que tinhaõ cometido hum grande peccado em nos prenderem, ôc nos tratarem daquella maneyra, & pelo dito defte homem prouue a noííb Senhor que nos tirarão da cifterna, & tão enfopados em Tangue como emagoadas muytas íambexugas q nos tinhãofangrado de maneyra, q fe eftiueramos aly mais hum dia fem faíta nenhúa acabáramos todos, ôc daquynos partimos jacuaíiíol po- ílo,bem afrontados,& nos fornos to- dos chorando noílas deíauenturas.

QAT. LXXXIÍL

Como chagamos a hua quintam de

hum homem fidalgo que eflaua

muyto doente-, <& do que

pajiamos com elie.

Artidosnòs deita al- deã de Xianguulee,che gamos a hús cafaes de géte pobre,onde acha- mos três homés que

eítauaó maçando linho, os quais em nos vendo largarão logo tudo, ôc fu- girão para hum pinhal que eftaua para cima num outeyro,& daly bra- dauaõ agente que paíTaua,que le ar- redaíTem de nos porque éramos la- droes. Nos arreceoíos (íegundo a couía fe hiaja aparelhando) de nos acontecer aly outro caio femelhante ao paííado, nos partimos logo daly, inda que era^a quaíi noite, ôc torna- mos a caminhar fem íabermos para onde. Eindo afsi béenfadados,porq não fabiamos que caminho íèguiíTe- mos, chegamos com grande eícuro de carracoés Ôc chuueyros a hus cur- rais de gado, onde nos agaíalhamos encima de hum pouco decftrumea que a menham foy clara que tor- namos a bufear o caminho que tí- nhamos deixado; Ôc acabado de fayr o ÍqI defeubrimos, de cima de hum cabeio húa várzea de grande aruo- redo, no meyo da qiial junto de hua ribeyra eftauío híías nobres cafas c6 muytas torres em q auia curucheos com fuás grimpas douradas; Ôc che- gandonos a ellas fempre co nome de Iefu na boca,nos aíTentamos à borda de hum chafariz que eftaua á entra- da de hum terreyro que as cafas ti- nhão, porque ate então não tipha- mosviftopeíloanenhúa. Defta ma- neyra paliamos algum cfpaço do dia na confufaõ que o cafo de fy nos daua, quando vimos vir hum moco que poderia fer de dezaflete ate dez- oito annos^ncima de hum bom ca- uallo, acompanhado de quatro ho- * mes de pè,hum dos quais trazia duas M 4 lebres

^Peregrinações de

lebres, & outros cinco niuatores, que, faó a modo de faiíàes,& hum açor na mão, & derredor de íy húa quadri- lha de féis ou fetecaés.Efte moço era chegando a nos deteue o cauallo, & preguncou que gente eramos,ou que queriamos, ao qual nós demos por repofta relatarlhe muyto por exten- íb todo o fuccefíb da noífa perdição, elle,nos finais exteriores que nelle vimos,moítrou códoerfè do que nos tinha ouuido, & entrando para den- tro do pátio nos dilTe cfperay^ue lo- go vos mandarey prouer do q aueis * myfter, & fera pelo amor daquclle que com gloria de grande riqueza viue reynando no mais alto Ceo de todos os Ceos. E dahy a pouco eípa< ço nos mandou chamar por húa mo- lher velha, que trazia húas veftidu- ras compridas & húas contas ao pefc coço,ao modo cUquellas a que o po- uocuftumade chamar beatasjaquai nos difFe, o filho daquelle que temos por íènhor,& que com feu arroz nos fuftenta, vos manda chamar, & vin- de detrás de mim com humildade, porque nao pareça aos que vos vire queiois gente que toma por remé- dio de vida pedir por não trabalhar, daquy entramos com ellapara ou- tro pado muyto mais nobre que efte primeyro,cercado à roda de duas or- dens de varandas como crafta de frades,pintadas todas de caças, em q andauao molheres a cauallo com a- çores nas maòs. Na frontaria d efte patio,onde eftaua a efcada por onde íubião para cima,tinha hum grande arco laurado todo de obra de nuce-

naria muyto rica, do meyo do quaj pendiahumefcudode armas a mo- do de paués pindurado por, hua cá- dea de prata, o qual no meyo de circulo tinha pintado hum homem quafí da feiçaó de hum cágado cos peis para cima & a cabeça para bai- xo, com hua letra que dezia, Ingua- lec finguau,potim aquarau, que quer dizer, tudo o que ha em mym he aí- íi. Efte monftro dezião que era figu- ra do mundo que os Chins pintão ás aueiTas,& porque toda s as couíàs âçl- le faõ mentiroías, para defenganar a os que fazem caio delle lhes diz, tu- do o que ha em mym he afsi,comQ fe diíTcíJe, feito ás auefias,cos,peis pa- ra cima &com a cabeça para baixo. Daquy fubimos por húa efcada muy to larga de boacantaria,& entramos em húa cafa grande,onde eftaua hua molher que ao parecer feria de cida- de de cinquenta annos, aíTentada9em hum eftrado,com duas moças muv- to fermoías junto de íy, ricamente veftidas,& feus fios de pérola* ao pef- coço,& entre ellas eftaua hum home. velho deytado em húa camilha, a q húa deftas duas moças eftaua auanã- doj&omoçoquenos mandara cha- mar eftaua junto com elle. Fora do eftrado eftauão noue moças veftidas de damafeo crameíim & branco la- urandodebaftidor, Nós tanto que chegamos junto do eftrado onde o velhqjazia,nos pufemos em joelhos &lhe pedimos efmolla,& começan- do com algúas lagrimas o intróito danoíTaarenga,com as milhores pa- laurasque o tempo & a necefsidadc

nos

Fernão AiendezfPinto. pj

nos infínauão,a velha,acenando com rogote que te fique na memoria pa«

a mão nos diííe,no mais,no mais,por que me doe veruos chorar, «Sc ja fey que deueis de pedir efmolla.O velho que eílaua na camilha nos chamou entáo,&nos preguntou fe auia entre nós algum que fouJ|elTe curar de fe- bres^ que a moça que o eílaua aua- nando, que era fua filha, forrindefe paru a mãy difle contra o pay, bofe íênhormaisnecefsidade tem ellesdc os mandarem curar da fome que tra- zem que de lhes préguntarem fe faó officiaisdaquillo que pode bem fer que nunca aprenderão, & por iííò o bom feria mandaremlhe primeyro acudir co mais neceííario, & defpois fe lhe fallarâ no que menos importa, §c reprendendoa a mãy diílolhedif- fe,vòs pegafempre aueis de falar on- de vos não chamão, algúa hora vos ey de fazer perder eíTa manha; a que elia rindo diíTè, façalhe vofla mercê primeyro perder a fome, que iíTòu- tro perdido eftâ cada vez que ella quiler. Porem o velho como home enfadado da doença, tornou a pegar de nòs, Sc nos preguntou que gente eramos,de que terra/para onde hia- mos,& outras couías a efte modo: & nòs lhe rcfpondemos conforme ao q nos era neceíTario, ôc lhe declaramos o como & onde nos perdêramos, a gente que fe afogara, & como anda- uamos por aly perdidos, fem nosíã* bermos determinar em coufa-nc- nhua: a que elle, defpois de eftar hu pouco peníatiuo, virandofe para o filho lhediífe.que te parece do que agora ouuifte a eíles eílrangeyros?

raquefaibas conhecer & agradecer a Deos com lhe dares muytas graças o pay que te deu, que por te efeufar daquelles trabalhos , & de outros muytos que ha pelo mundo,te gran* geou com fua vida, ôc faber as mi- lhores três coufas deíle anchacilado, que a menor de cada húa delias vai mais de cem mil taeis,mas tu és tal q tomaras antes matar húa lebre quê tudoifto, a que elle não refpondeo mats que forrirfe para as irmãs. En* tão nos fez aly trazer de comer perã- te íy,& nosmãdouque comeíTemos^ o que nós fizemos de muyto boa võ- tade, .& elle, por fer doente ôc enfa- íliado moftrou que folgaua de nos ver comer. Porem as que mais gofto moftraraó difto foraó as- irmãs fuás filhas, porque em quanto comemos tiueraõ muytos paííatempos debós ditos com feu irmão quando viraóq comíamos com as maõs, porque em todo aquelle império Chim fenão coftuma comer com a mão, como nòs fazemos, fenão com dous paos feitos como fulos. E defpois que de^ mos graças a Deos (que elle notou muyto em nós) leuantando asmaós para o Ceo diíTe com muytas lagrí^ mas: a ty Senhor que viues reynan- do na quietação da tua alta labidu- ria,louuo com coração humilde, p premiares que gentes eílranhas, na-' cidas nos fins de todas as terras^lea i conhecimento de tua doutrina, re de louuores& graças conforme à fua fraca capacidade, que tu, por quê ès, aceitarás tanto como que foífe km

grande

grande offerta de mufícas fuaues em tuas orelhas. Então nos mandou dar tres pecas de panno de linho, ôc qua- tro taeis de prata, & nos rogou que dormifíemos aly aquella noite, por ferja muyto tarde para caminhar- mos, o que nos aceytamos, & lho a- gradeçemos todos com muytas pa- lauras ao feu modo, de que elle mo- ftrou ficar fatisfeito,& a molher & as filhas muyto contentes.

QAT. LXXXIltl

(jomo daquy fomos ter a villa de

Tàypor^s- de como ahy nos

aconteceof ermos prefos.

O outro dia fendo ja j menhamclara,nosdef pidimos do noíío hos- pede, ôc nos partimos daly,& fomos ter a hu lugar que fe chamaua Hnginilau,que <ftaua daly quatro legoas adiante,no qual nos detiuemos tres dias, & con- tinuando por noíTas jornadas de lu- gar em lugar, & de aldeã em aldeã, afaftandonos fempre das cidades ôc villas notaueis, arreceando que a ju- íliça entendeíTe em nós,andamos af- íi peregrinado quafídous meies fem ninguém nos yr â mão em coufa ne- nhúa,noqual tipo pudéramos muy- to bé chegará cidade do Nanquim íè ciueramos guia que nos encami- nhara,mas como não fabiamos o ca- minho, errandoo muytas vezes, ga- itamos debalde toda efta diftancia de tempo cora muytos trabalhos, &

^Peregrinações de

grandes perjgos,no fira' do qual che: gamos a hum lugar pequeno que fe dezia Chautir,onde então fe celebra uao huas grandes exéquias com po- pas fúnebres ao feu modo muyto cu- ílofas,pela alma de húa molher muy to rica,que deserdara todos os feus parentes, ôc deixara por herdeyra a cafa do pagode do mefmo lugar on- de eftaua enterrada; nas quais exé- quias fomos conuidados por ler- mos pobres, comermos fobre a fua coua,como coftumao: & paíTados os tres dias que aquy eítiuemos, que foy em quanto durarão eftas exe- quias,nosderaóde eímollafeis tacis, ôc nos pedirão muyto que fempre em noíTas orações rogaíTemos a Deos pela alma da defunta. Deite lu gar fomos ter a outro que fe chama- ua Guinapalir, donde continuamos outra vez por noíTas jornadas por ef« paço de quaíidous meies de terra em terra,até chegarmos a hua viíla q fe chamaua Taypor,onde por noíTos peccados,fem o nós fabermos, acer- tou de eftar hum Chumbim,que faó como Prefidentes de alçadas, que de tres em tres annos correm as comar- cas do reyno,& deuaílaó dos Corre- gedores &officiais da juftiça, o qual em nos vedo andar aísi pedindo, nos chamou de húagehélla onde eftaua, & nos preguntou perante tres eferi- uaés ôc outra muyta gente que logo aly fe ajuntou, que gente çramos, de que nação, ôc como andauamos da- quella maneyra? a que nos respon- demos que éramos eftrangeyros na- turais do reync* de Sião,que por nos

perder*

Femao Mendes Tinto.

perdermos no mar com híía tormé- ta,andauamos peregrinando, & pe- dindo de porta em porra para com as efmollas dosbós liiftentarmosnof fas vidas ate chegarmos à cidade do Nanquim para onde hiamos, com tendão dela nos embarcarmos nas lanceaas dos mercadores para Can- tão onde eítauão os noflos nauios;cõ a qual repofta elle nos mandaua fol- tar,fe hum dos efcriuacs lhe não fora ámão,dizendo que o não feíTe,por- que éramos vadios & vagabundos,q gaftauamos a vida em calacear de porta em porta comendo indeuida- mente as efmollas que nos dauáo,pe lo que conforme âiey que fobre iífo era feyta no liuro fetimo dos doze das ordenações do reyno que neíte cafo fallaua, nos não podia mandar foltar por nenhum cafo, fo pena*de na reíidenciaferpor iífo graueméte punido,pelo qual lhe accnfelhauaco. mo feu feruidor qn-e era,que nos ma* daíTe logo pór a bom recado porque não fugUremps para outra parte, o qualoChumbimlogo fez com ta- manho exceíTo de crueldade quanto fe eiperaua de hum Gentio fem ley qual elle era: ôc fazendo logo com grande inftancia autos com teílemu- nhosfalfos de infâmias muy to feas & criminofas, como tem por cuíiu- me,nos mandou meter nua efleril pri laó com grilhões nos peis, algemas nasmãos,& colares nos peícoços, Ôc muyto ma lt ratados de acoutes ôc fo- rnecem que paíTamos hum miferauel trabalho por efpaço de vinte & féis dias,em que por íua íemença fomos

remetidos à rolacão do Chaem do

Nanquim, porque na fua alçada não

cabia poder condenar nenhum pre- fo à morte.

CJT. LXXXV.

(jitno dejle lugar de Tay for fomos

leuados à cidade do 3\(anquim7

&* do que nella p afiamos .

Efía cão afpera & mi- ferauel priíaó paíTa- mos os vinte ôc féis dias que tenho atras dito,os quais nos pare- ceraó vinte ôc féis milannos, porque íèm nenhum remédio nos víamos claramente acabar, em tanto que hu dos companheyros por nome íoão Rodriguez Brauo nos morreo comi- do de piolhos fem lhe podermos vi-t ler,& nos também deita praga efca- pamos quaíi por milagre. Daquy nos tirarão hum dia pela menham, aísi carregados de ferros como efta- uamos, ôc ja nefte tempo tão fracos Ôc doentes, que crabalhofamente po diamos falar, ôc nos meterão a todos nua corrente, & nos embarcarão na volta doutros trinta ou quaréca pre- fos que por cafos graues també hiáo remetidos por apellação a efta cida»- de do Nanquim, a qual, corno ja dií- fe, he a feguncia do reyno da China, &onde coniinuameote refíde hum Chaem da juftiça, que he titulo fu- premo como de Viíòrrey, com húa grande rolaçaó de cento & vmtege- rozemos ôc feruçuas,cj íaó os deíem«

bargadores,

gadores,chançareis,& reuedores de todas as caufas ciuis & crimes,fem a- uer nellas reuifta,apellação,nem agra no, fenão para outra meia que ahy ha que poder ainda fobre el Rey, para a qual quando íè apella he co- mo apellar para oCeo.E paraq fe ifto miihor entenda, he de faber,que co- mo efta rolação, & outras femelhan- tes que ha pelo reyno nas cidades notaueis, tenhao do Rey alçada fu- premanociuil & crime, fem apella- ção nem agrauo,ordenarão outra fo- bre efta do Rey,para a qual fe apel- la em algús caíos graues, & muyto importantes, que íe chama a meíà do Criador de todas as coufas,. na qual aísiftem vinte ôc quatro meni- grepos,que tem por nome os da au- ftera vida, que he hua certa religião como de capuchos, dos quais, fe fo- rão Chriftãos,pela afpereza com que viuem, & penitencia que fazem, fe pudera efperar muyto, Eftes não cu- ftumão de vir a efta judicatura fenão deípois de ferem de idade de fetenta annos para cima, ôc ainda então vem com licença de feus prelados, & por diftrtbuição delles,os quais em todas as caufas que vem a elles por apella- ^ãofaótãointeyros, ôc tão direytos noquejulgãoque fobre a terra não ha mais que dizer,porque ainda que íeja contra o mefmo Rey,nem cótra Quantas valias no mundo fe poíTao imaginar,nenhúa couía bafta para os fazer torcer a mais pequena parte do que entenderem que he juftiça. Em- barcados nós da maneyra que tenho ditOjfomos aquelle dia ja quafi noi-

TPerigrindçoes de

te dormir a hua villa grande que fe chamaua Potimleu,& na cadea delia eftiuemos noue dias, por caufa das muytaschuuas queouue na conjun- ção daquella lua noua,onde quiz nof fo Senhor que achamos prefo hum homem Alemão, que nos agaíalhou com muyta caridade, &preguntan- dolhe nos na lingoa do Chim (com a qual nos entendíamos com elle) donde era natural,ou como viera aly ter? nos difle,que era natural de Mof couia,de hua cidade que íe dezia Hi- quegens,& que auia cinco annos que eftaua aly prefo por morte de hum homem, porque fora fentenceado a cárcere perpetuo, mas que por fer eftrangeyro tinha tinha apellado pa- ra o tribunal do Aytau da Batampi- nana cidade do Pequim, que era o fupremo Almirante fobre os trinta ôc dous almirantes dos trinta ôc dous reynos que faó íbgeitos a aquelle im perio,oqual Almirante porjuriídi- çãoparticular,tinha alçada fobre to- da a gente forafteyra,& mareantes q vinhão de fora,onde efperaua ter re- médio para fer íolto,& para yr mor- rer Chriftão entre Chriftãos. Paífa- dos os noue dias q aquy eftiuemos prefos' nos tornarão a embarcar, Ôc nauegando por hum muyto grande rio acima, em fete dias chegamos â cidade do Nanquim,que alem de ler a fegunda de toda efta Monarchia, he também metropoli dos três rey- nos de Liampoo, Fanjús, Ôc Sumbor, naprifàóda qual eftiuemos mes ôc meyo com aífaz de trabalho ôc pobreza, porque chegamos a tama- nho

Femao Mendes Tinto»

nhoefíremodemiferia que vifiuel- mete morríamos ao defemparo,fem termos mais que chorar,& olhar pa* ra o Ceo, porque na primeyra noite que chegamos fomos logos rouba- dos de quanto leuauamos, fem nos deixarem nem hua camifa, porque como a caía da priíaó era muytogrã de/& muyta a gente que eftaua nella (porque íegundo nos affirmarãopa£ íauáo de quatro mílprefos) náoauia onde hua peíToa fe pudeífe alTentar que logo nao foííe roubado & cu- bertode piolhos.PaíTado efte mes Ôc meyo o Anchacy do feito, que era hum dos dous juizes perante quem ifto corria ordinarirmente, julgou a requerimento do prometer da jufti- ça,que vifto o procedo das noífascul pas que o Chumbim de Taypor ma dara,em que fe prouaua auer de nos ruyns indícios, & qne nòs por noíTa parte não contrariauamos em noíla defefa couía algfu,& que ao que tí- nhamos dito fe nao podia dar credi- to quanto o direito em tal caio man- daua; que por então foffemos publi- camente açoutados nas nádegas, pa- raque com efte caftigo emendaffe- mosnoílas vidas, Ôc quetambénos cortaíTem os dedos polegares das mãos,com as quais por claras fofpei- tas fe podia bem coltegir termos nos feitos roubos & males tãocrimino- fos,quanto o foberano íuiz que rey~ naua no Ceo, defpois caftigaria com a potencia da fua direyta juftiça no derradeyro dia de noííos dias, & que da mais pena que merecíamos apel- laua por parte dajuítiça para otri-

9S

bunal do Aytau daBatampina aqué o cáfo competia por via demòr al- çada. Efta íentença nos foy publica^ da dentro na priiaó onde eftauamos mais para morrer que para íbfrcr- mos osterriueis ôc ctueys acoutes q então nos derão,dos quais todos fica- mos tão fangrados que todo o chão ficou cuberto do noífo fangue em tanta quantidade, que dos onze que éramos, milagroíamente eícaparnos osnoue com vida, porque os dous com mais hum moço morrerão daly a três dias.

CAT. LXXXVL

T)a caridade com que nefla prifio

fomos curados, &* do mais que

defpois paffamos. .

Efpoisdefermos açou

tados da maneyra que

tenho dito,nos leuarão

a hua caía que eftaua

dentro na prifaõ a mo

do de enfermaria, onde jazião muv-

tosdoentes,& feridos, hus em leitos,

& outros pelo chão, na qual fornos

logo curados com muycascõfeiçoés;

Ôc lauatorios,& efpremidos ôc aperta-

dos,compós por cima das chagas,có

que algum tanto fe nos mitigou*

dor dos açoutes,a qual cura nos fize--

raõ homés honrados, que íaó como

entre nós irmãos da mifericordia q

feruem aquy aos mefes pelo amor

de Deos com muyta caridáde,& pro*

uem os enfermos de tudo o neceíía-

íio com muyta abaftança ôc limpeza:

&aucn>

regrindçoes de & auédo ja onze dias que aquy eíta- bim da juítiça nos prendera fem cati-

uaçnos era cura, Sc ja começauamos^ de nos achar algú tanto milhor, mas lamentando o cortar dos dedos con- forme ao rigor da fentença cjue era dada,quiz Deos que a cafo entrarão hua menham dous homés veítidos cm húas veíiiduras de citim roxo muyto compridas,& huas varas bra- ças nas maós a manevra de cetros, cuja entrada os enfermos todos da cafa deraó hua grande grita dizendo, pitau hinacur macuto chendoo, que quer dizer,venhaócom Deosos mi- niílros de fuás obras, ao que elles er* jguendo as varas,refpóderaó,& a vos , todos de paciência em voíTos traba- lhos & aduerfídades: eftes, começan- do a prouer com dinheyro & verti- do algús dos que eíhuaó mais perto ' delles,chegaráo também a nós,& def pois de nos faudarem afabelmente,&: com moítras de teré piedade de noí- ías lagnmas,nos preguntaraó que ho mes cramos, de que terra, ou de que naçaó,& porque cafo eítauamos pre- íos,aque refpondemos commuytas lagrimas que éramos eítrangeyros naturaes do reyno de Sião, de hua terra que fe chamaua Malaca, & que fendo mercadores abaítados dos bés do mtindOjVJndo com nofias fazen- das para o porto de Liampoo, nos perdêramos com húa grande tormé- tadefronte dos ilheos de Lamai^on- de perdêramos quanto leuauamos, íem faluarmos mais que aquellas mi feraueis carnes da maneyra que as viaõ,& que chegando afsi a hum lu- gar cjue fe chamaua Taipor,o Chum

fa nenhua,dizendo q éramos ladroes vagabundos, que por naó trabalhar- mos andauamos calacearido de por- ta em porta,comendo indiuidaméte as efmollas que nos dauão, & fazédo difto hum auto como quifera, nos mandara em ferros a aquellaprifaó, na qual auiaja quarenta & dous d ias que padecíamos imméíos trabalhos de doenças & fomes, fem nosquere- réouuirdenoíTajuítiça, afsi por naò termos que peitar, como por não ía- bermosfalar,& fôramos condenados fem caufa nenhua a pena de acoutes, & a nos cortaremos dedos como la- droes, de que logo fe executara em nòs a pena dos cruéis açoutes tan- to rigor & fobegidaó de crueldade quanto feus olhos veriaò nas n-oíTas triftes carnes,pelo qual lhe pediamos pelo ofncio que tinhao de feruira Deos, que nos naó defèmparaíTem, porq por noíTa muyta pobreza éra- mos auorrecidos de todos, & trata- dos com grandifsimas afrontas. Elles ambos nos ouuiraõ muyto bem, ôc defpois de eítarem hum pouco pen- fãtiuos,pódo com lagrimas os olhos no Ceo,& os joelhos na terra, difle- raó: O poderofo ôc paciente Senhor das alturas,que coníentes que o cla- mor dos q pouco podem faça eftron- do em tuas orelhas,para naó ficarem íèm caítigo as graues offenías que os miniítros de noíTas juíliças contino te fazem, as quais temos por fede tua Tanta ley que caftigarâs ou tarde ou cedo,& tomando informação dal gus que eftanaó a roda, difto que lhe

diííe/nos,

Fernão Mendez Tinto.

diíTemos, mandarão logo chamar o clcriuao do feito,& que graues pe- nas trouxefíè o que era proceíTado no noflb negocio) o qual logo veyo, & os informou de tudo o que paíTa- tia,& dos termos por onde eíla def. ordem tinha corrido. Elles vendo q nos açoutes que érãp dados não auia ja remedio,fobre o cortar dos dedos fizeraò hua petição dagrauo ao Cbaé á qual lhe foy refpondido por deípa chode rolaçaó, naó cabe mifericor- dia onde a juftiça perde íeu nome,pe lo que fe ha por efcuíado conceder oquefe pede, no qual defpacho vi- nha afsinado o Chaem & oito Con- chacis,que íaó comojuizes do crime. Vendo eftes dous procuradores dos pobres pela honra deDeos (porque efte he o íeu nome pelo officio que tem) o mao defpacho com que nos fayraó, deíèjofos de nosliurar da- quella afronta, fízerão logo outra pe- tição para húa meia que fe chama Xinfau nicor pitau, que quer dizer, bafo do Criador de todas as coulas, na qual confe fiando como peccado- res a culpa do que nos era pofto, pe- díamos mifericordia, & a leuaraó breuidade-a efta mefa em que aísifté vinte & quatro talagrepos, que íaõ hús religiofos como entre nos frades capuchos,& de grande credito & ati- toridade^afsi co pouo como co Rey, os quais a modo de reuifta tomão co- nhecimento de todos os feitos dos pobres,& da gente que pode pouco contra os que litigao com elles. Eftes, tanto que efta petição lhes foy dada, tangendo hum fino fe ajuntarão to-

w- . 96

dos,& vendo todo o proceíío do fei- to desdo principio atè o cabo, & as petições &deípachos,& tudo o mais que era paíTado, entendendo que a ncíTa juftiça fe perdia totalmente ao deíemparojdefpidiraó logo dous da- quellesaísiftentes da mefa, os quais com húa carta de íellos pendentes foraó inhibrr a rolaçaó do Chaem para auocarem o feito a Çy, a qual rolaçaó fe deu logo por inhibida por hum defpacho que dezia,cócede efta meia da força do íião coroado no trono do mundo por petição dos vinte & quatro da auftera vida, que eftes noue eftrangeyros fejaó reme- tidos por appellaçaò ao tribunal do Aytau dos Aytaus na cidade do Pe- quim, para com mifericordia fe lhes moderar a fentença que he dada có- tra elles, aos fete dias da quarta lua, dos vinte & três annos da cadeyra do filho do Sol, no qual defpacho vinha afsinado o Chaem com oito Conchalins do defpacho da mefa do crime, que faõ como Defeníbarga- dores. Efte defpacho nos trouxerao logo os dous procuradores dos po-« bres que tinhão tomado a íeu cargo efte noífo negocio,& nòs o tomamos de íua mão, dizendo que Deos lhes pagafle ifto que por Teu amor nos fa- zião,& ellesnosrefponderaój&ayos encaminhe no conhecimento de fuás obras, porque nelle colhais com paciência o fruito de voííbs tra- balhos como aquelles que temem feu nome,

CAP.

Terigrindçoès de

A T. LXXXVlI. elles ambos refponderaõ, não digais

iíTo,que he grande peccado,inda que

(j) fomos remetidos por appellaçao a cidade do Tequim.

AíTadas todas eítas ad- uerfidades de que te- nho tratado nos em- barcarão nar compa- nhia doutros trinta ou quarenta prefos,que também por ca fos graues hiaó remetidos por appel- laçaò ás rolaçoéscompetenteSjaos de litos porque eraó fentenciados, para la fe executar nelles a pena que me- reciao. E hum dia antes que nos par- riflemos, eftandoja embarcados na lanteáa,& prefos de três em três por húas cadeas muyto compridas, que amaneyrade corrétevinhaó fechar nos ellos que tínhamos nos peis, che- garaó eftes dous procuradores dos pobres, & prouendo primeyro que tudo os mais neceísitados com man- timento & veílidos, conforme à ne- ceísidade que em cada hum viao,nos preguntaraó fe auiamos myfter al- gúa coufa para noíTa viagem,a q ref- pondemos, que de tudo hiamos taó faltos quãto Deos fabia, mas q fe até então lhe não tínhamos dito as muy- ias mjferias q padecíamos, não fora fenáoafimde lhes pedirmos que a tfmolla que nos auião de fazer loíTe daremnos húacarta para os tanigo- res daquella fanta irmandade, em q lhe pediíTem que nos quifeíTem fa- uorecer,porque éramos, como elles fabião, taó defem parados que nin- guém na terra nçs fabia o nome, a q

voíTa ignorância vos defculpa com Deos,porque fabey que quanto mais abatidos fordes por lerdes pobres no mundo,tanto mais altos fereis diante dos feus olhos, fe com paciência f o frerdes a pena que a íoberba carne fempre enjeita, porque afsi como o paíTaro naó voafem afãs, afsi també a alma não merece fem obras.E quã- to à carta que pedis vos daremos de muyto boa vontade, vifto quão ne- ceílaria vos ha de fer, paraq o fauor dos bons vos não falte no tempo que o ouucrdes miíter. Então nos deraõ hum faccodarroz,& quatro taeisem prata>& húa colcha para nos cubrir- mos, Ôc nos encomendarão muyto ao Chifuu, que era o alcaide aquém hiamos entregues.^ fedefpidiraó de nòs com muyto boas palauras, & fe tornarão a vifitar a enfermaria da prifaó q atras difíe, onde então auia paífante de trezentos enfermos,& co mo ao outro dia foy menham clara, nos mandarão a carta que lhe tínha- mos pedido mutrada.com três íine- tes de lacre verde, a qual dizia afsi. Seruidores daquelle alto Senhor, pelho claro de luz incriada, ante cu- jos merecimentos os noííos ficao fen do nada,nòs os fomenos feruos deita fanta cafa de Tauhinarel, íituada no fauor da quinta prifaó do Nanquim, com verdadeyras palauras de acata- mento deuido fazemos iaber a vof- fas humildes peíToas, que eíTes noue eítrangeyros que efta lhe darão faó homés de terras muyto apartadas,

cujas

Fernão Mcnde^Pinto. py

cujas fazédas & corpos o mar confu- triftes;viílo Ter o grão da mifericor-

mio feu brauo Ímpeto tanto Tem piedade,q de noueta & cinc^c^ erão, fegundo por feu dito nos foy affirma do,fós efles coitados lançou na praya dos ilheos de Tautaa na coita da en- íeada de Sumbor & Fanjus, & vindo com fuás carnes chagadas,como por noíTos olhos foy vií1o,pedindo de lu- gar em lugar aaquellesq por proxi- midade lhes dauão do feu, como he cuítume dos bõs& fieis, forão prefos fem razão néjuftiça pelo Chumbim de Taypor,& mãdados a efta cjuinta prifaódo Fanjau,onde os códenarão a pena daçoutes de q logo fe fez nel- les execução pelos miniftros do bra- ço da ira, como no proceíTo da fua fentençavay relatado, &querendo- Ihes mais pordefordenada cruelda- de cortar ambos os dedos polegares dasmãos,nos pedirão infinitas la- grimas q por efle verdadeyro Senhor em cujo feruiço andamos, enxergaf- fem em nòs o fauor do íèu bafo, & acudindo nós logo grade preíTaa tato defemparo, fizemos petição de clamor, aque foy reípondido na me- fado leão coroado,que não cabia mi fericordia onde ajuítiça perdia feu nome,pelo que, zelofos nós da hora de Deos,nos queixamos logo â meia dos vinte & quatro da auftera vida, os quais com zelo fanto, a íbm de fi- no tangido fe ajuntarão todos na fan- ta cafa do remédio dos pobres,& de- fejandode valera eftes, a maldiçoa- rão toda a mefa grande, & todos os miniftros do crime,paraq a ira dojeu rigor não preualeceíTe no langue dos

dia em Deos de tam altos quilates,

como vemos pelos effeitos que por

ella obra em nos. Pelo que reuogan-

r r

do a lua pnmeyra ienteça remeterão

a caufa a eífa cidade,com emenda na fegunda tenção,como la podem ver no volume que vay proceíTado, pelo qual fenhores, & humildes irmãos lhe pedimos todos por Deos que em tudo olhem o que lhes conuem,por- que íè não perca a fua juftiça,que pa- ra nòs todos fera grande peccado, $c vergonhoíã infâmia. E também os ajudem com luas efmoilas, & cubrão íuas carnes, porque não pereeão ao defemparo, na qual obra íanta que poreiles fizerem agradarão ao Se- nhor das alturas, a quem os pobres da terra continuamente dão gritos, & faô ouuidos no mais alto Ceo de todos osceoscomo temos por fè,-na qual efte diuino Senhor, por quem ifto fazemos, nos fuílente ate a mor- te^ nos faça dignos da fua vifaó na calado fol,on de eíti aíTentado com todos os feus.Efcrita na meia do zelo da honra de Deos, aos noue dias da fetima lua dos quinze annos da ca- deyra& cetro do leão coroado no trono do mundo, -v

CAT. LXXXVlll

(jomo daqtg partimos para a cida* de do Tequim, & das gran- dezas da cidade do 3\Qtnquim.

N

Sendo-

^Peregrinações de

Endonos dada efta car- taros refide 6 mais do tempo. Defte

lago,q he de vinte & oito legoas de

1

ta nos partimos ao ou- tro dia antemenham prefos da maneyra q te nho contado, & conti- nuando nofla viagem por jornadas incertas porcaufa da impetuofa cor- rente & grande força da agoa q na- quelle tépo trazia o rio,fomos ja qua íiíol pofto furgir a húa aldeã peque- na que fe chamaua Minhacutem,d5- de era natural o mefmo Chifuu, ou Alcaide que nos leuaua, ôc ahy caia- do com molher & filhos,na qual efte- ue três dias auiando alguas coufas. E embarcando elle íua molher com toda íua cafa & familia , feguimos noíTa derrota em companhia dou- tras muytas embarcações que por a- quelle rio hião para diuerfas partes dos anchacilados & íenhorios da- quelle imperíorE ainda que hiamos prelos ao banco da lanteaa onde re- mauamos, náo deixanao os olhos de ver coufas muyto grandiofas nas ci- ^dadeSjVillas, ôc lugares q ao logo de- bite grande rio eftauão íituadas, das quais breuemente direy algúacoufa deíTe pouco q vimos, ôc começarey logo por efta cidade do Nanquim dõde partimos. Efta, eftá em altura de trinta ôc noue grãos ôc hum terço debaixo do Norte, lançada ao lon- go deite rio por nome Batampina, que na noíTa lingoa quer dizer frol do peixe, o qual rio, fegundo então nos difíerão,& eu defpois vy, íae da Tartaria, de hu lago por nome Fão- íli^noue legoas da cidade de Lança- mejonde o Taborlao Rey dos Tar-

comprido^ doze de largo,& de grã diísimo fundo,faem os mais podero- fos cinco rios caudais que ha em to- do o defeuberto. O primeyro he efte por nome Batampina, q atraueftado pelo meyodefte império da China trezétas ôc feflenta legoas,faz fua en- trada no mar pela enfeada do Nan- quim em trinta ôc féis grãos; o fegun- do,pornome Lechune, fua euafaó c6 grandifsimo Ímpeto ao longo dos montes de Pancruum, qdiuidé a ter- ra doCauchim,&ofenhoriodeCa<- tebenáo, que pelo fertáo confina co reyno deChapaa em dezafleis grãos. O terceyro rio por nome Tauqui- day,q quer dizer,mãy dasagoas,vem cortado ao Oefnoroefte pelo reyno de Nacataas.q he hua terra dõde an- tigamente íe pouoou a China, como adiáte direy, efte tem fua entrada no mar pelo império do Sornau, aque o vulgar chama Sião pela barra deCuy abaixo de Patane cento ôc trinta le- goas. O quarto rio por nome Bato- baíoy dece pela prouincia de Saníim, q he aq fe alagou no ano de 1556. co mo adiante fe dirá, efte entra no mar pela barra de Cofmim no reyno de Pegti. E o quinto rio por nome Ley- facotay,corta, fegundo a opinião de todos os Chins a terra a Lefte ate o anchaciladode Xinxipou, q confina cos Mofcouitas,& dizem que fe mete num mar innauegauel, por caufa de jeftar o clima em altura de fetenta grãos. E tornando a meu propofíto, efta cidade do Naquiru eftá^omo ja

difíe,

Fernão Mende*JPinto.

clifTe, íicuada ao longo deite rio da Batampina em hu tefo de boa altu- ra,por onde fica a caualeyro das ca- pinas que eftãoem torno delia, cujo clima he algum tanto frio,pore muy- to íãdio,tem oito legoas de cerca por todas as partes.íT.tres legoas de largo, & luta de comprido por cada parcela caiaria comua he de hu íb até dous fobrados,porem as cafas dosManda- rins íaó todas térreas, & cercadas de muro & caua,em q ha porttes de boa cantaria q dão feruintia para as por- tadas quais todas tem arcos de muy- to cufto & riqueza; muytas diuer- íidades de inuencoés nos curucheos dos telhados, o qual edifício vifto to- do por júto, reprefenta aos olhos húa grade mageílade.As cafas dos Chaés,

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praças muyto grãdes,& cero Sc trinta caías de açougues de oitenta talhos cada húa,& oito mil ruas, de q as féis centas, q faó as mais nobres,té todas ao cõprido de húa banda & da outra grades de latão muyto groflás feitas ao torno. Affirmaráonos mais q tem duas mil Sc trezétas cafas de feus pa- godes, deq as mil íaó mpfteyros de gente profeíTa,& faò edifícios muyto ricos,com tones de feífenta Sc feten- ta finos de metal, & de ferro coado muyto grandes, q he couía horren- da ouuiilos tanger. Tem mais efta cidade trinta prifoes muyto grandes & fortes, em cada húa das quais ha dqus Sc três mil preíos, & a cada húa deitas prifoes rej ponde húa caía co- mo de mifericordia, queprouè toda

& Anchacys,& Aytaus,& Tutoés, Sc ; a gente pobre, com feus procurado

Chumbys,q faó fenhores q gouerna- raoprouincias&reynos, tem torres muyto altas de íeis Sc fete fobrados, curucheos cozidos em ouro, onde feus almazés darmas,fuas recama- rasjíèus tifouros,& feu mouel de feda Sc de peças muyto ricas,eô infinidade de porcellanas muyto finas q entre elle he pedraria^a qual porcellana de- ita forte não fae fora do reyno, afsi porq entre elles vai muyto mais q en tre nòs,como por fer defefo c6 pena de morte véderíè a nenhú eítrageyro faluo aosPerfas do Xatamaas, aque chamão Sofio, os quais licença q para iíTo cóprão algúas peças por muyto grande preço. Affirmaráonos os Chins,q eíta cidade oitocentos mil vezinhos, Sc vinte Sc quatro mil cafas de Mãdarins,& feífenta & duas

res ordinários em todos os tribunaes de ciuil Sc crime, Sc onde Te fazé gra- des eímollas. Todas eftas ruas nobres tem arcos nas entradas, fuás por- tas qSe fechão de noite,& as mais dei las tem chafarizes dagoa muyto boa, Sc íaó em íy muvto ricas,& de muy-, to grande trato. Tem todas as luas nouas Sc cheyas feyras gerais, onde cócorre infinidade de géte dediuer- ías partes,& ha nellas grãdifsima abíí dãcia de mantimétos quantos fe po- de imaginar, afsi de fruitas como de carnes. O pefeado deite rio he tanto em tatá quantidade, principalmente de tainhas,& lingoados, que parece impofsiuel dizerfe, o qual fe vende todo viuo,com juncos, metidos pelos narizs por onde vem depédurados>&: a fora eíte pefeado frefco,o íeco Sc Tal N 2 gado

gado q vem do mar he também in- finito. Affirmaráonos mais os Chins que tinha dez mil teares ide feda,por« que' daquy vay para todo o rey no. A cidade em fy he cercada de muro muyto forte,& de boa cantaria,onde tem cento & trinta portas para a fer- uiotia da gente,as quais todas pon- tes por cima das cauas. A cada por- ra deftas eítaua hum porteyro com dous alabardeyros para darem razão de tudo o que entra ôc íae. Tem do- ze fortalezas roqueyrasquaíi ao nof- ío modo,có baluartes & torres muy- to altas»mas não tem artilharia ne- nhúa. També nos aífirmaraó q rédia eíla cidade a el Rey todos os dias dous mil taeis de prata,q íàó três mil cruzados, como jadiíTe muytas ve- zes. Dos paços reais não direy nada, porq os não vimos fenão de fora, delles foubemos mais q oq os Chins nos difleraójO qual he tãto q he muy to para arrecear cõtalo,&por ifTo não tratarey por agora del!es,porq tenho por dauãte cotar o q vimos nos da ci- dade do Pequim,dos quais cófeíTo q eftouja agora arreceado auer de vir a cotar ainda eííe pouco q delles vi- mos,não porq ifto poíía parecer eftra nho aqué vio as outras grandezas de- ite reyno da China/enão porq temo qosqquiferem medir o muyto q ha pelas terras q elles não virão,co pou co quem nas terras em q fe criarão, queiraoporduuida, ou por ventura negar de todo o credito a aquellas coufas que íe não conformao co íeu entendimento, & com a fua pouca experiência.

Terigrínaçoes de

CAT. LXXXVllll

T>o que mais vimos & pa ff amos

ate chegarmos a cidade de Tocaf-

íer^ & da grandeza de bum

pagode que ha nella.

Ontinuãdo noíTo cami nho por eíte rio acima não vimos nos primey ros dous dias nenhúa vilia cidade nota- uel,né edifício de q íe poíTa fazer me- çáo,fenáo íbméte grande quãtidade de aldeãs & lugares pequenos de du- zentos & trezentos vezinhos q efta- uão ao logo daagoa,os quais,íegudo fuás moítras, & o pouco aparato de feus edifiejos parecião fer de peícado res & de géte pobre q viuia por leu trabalho. E tudo o mais pela terra dentro/juanto alcançaua a vifta,eraó bofques de grandes pinhais, & aruo- redos, & íoutos, & laranjais, Ôc cam- pinas de tngoSjarrozes^ilhos, pain- ços, ceuadas, centeyos, ligumes, li- nhos, ôc algodões, & cercas de jar- dins com caías nobfes que deuiáo de fer quintas de Mandarins &fe- nhores do reyno. Auia ao longo do no tanta quantidade de gado de to- da a fone,q realméte poíTo affírmar q fe iguala com o da Ethiopia, ôc da terra do Prefte loáo. Nos altos das ferras aparecião muytas cafasdasíuas gétilicas feitas, muyros curucheos cozidos em ouro,& com hum apara- to de fora tão foberbo «3c grandiofo, q ainda q de longe, era muyto para

folgar

Fernão Mendez^Pinto. 9?

folgar de ver pela mnyta riqueza q a fora muyto mantimento de carne»

eftaua monftrando. Ao quarto dia da nofia viagem chegamos a hua boa cidade quelechamaua PocaíTer,ma- yor que Cantão duas vezes, & muy- to bem cercada de muro de cantaria muyto forte,com torres & baluartes quaíianoífo modo, & hum caizna f romaria do rio, quanto dezia o ro- fto do muro, de mais de dons tiros de falcão de comprido, todo fecha- do com duas ordés de grades de fer- ro,com luas entradas de portas muy- to fortes para feruintia da gente, ôc defcarga dos juncos,& outras embar- caçoes que continuamente aly carre- gauão de todas as mercadarias para diuerfas partes doreyno, principal- mente de cobre, açucar,& pedra hu- rne, de que ha grandifsima copia, & no meyo de hum grande terreyro, quaíi no cabo de toda a cidade eftà hum caftello muyto forte que tem três baluartes,& cinco torres,em húa das quais, que era a mais alta, nos diíTeraõ os Chins que o pay defte Rey tiuera prefo hum Rey da Tar- taria noue annos, o qual ahy morre- ra de peçonha que os feus mefmos vaífallos lhe mandarão, dar, por não darem por elle o refgate que o Rey Chim pedia. Nefta cidade nos deu o Chifuu licéçaparaque dos noue que eramos,fofTem os três pedir efmolla com quatro vpos de alabardas, que faò como beleguins. Eftes nos leua- rão afsi prefos como hiamos por íeis ou fete ruas, nas quais nos derão ef- molla que valia mais de vinte cruza- dos,afsi em ropa como em dinheyro,

arroz, farinha,& fruytas, da qual ef- molla partimos pelo meyo cos qua- tro vpos, porque afsi era cuftume. Aquy nos leuarão a hum pagode on- de naquelle tempo auia grande con- curío de gente, por fer o dia da fua inuocação, o qual nos difleráo que foraó antigamente cafas dei Rey,nas quais deziáoque nacera o auó defte que agora reynaua,& porque a mãy aly fallecera do parto, fe mandara enterrar na mefma camará onde pa- rira o filho ) & por honra da fua morte, fe dedicara nas mefmas ca* fas efte templo a inuocação de Tau- hinarel, que he hua feita gentílica das principais defte reyno da Chi- na, como adiante direy quando vier a tratar do labarinto das trinta ôc duas leys que ha nelles. Todo efte e- dificio com todas as officinaSjjardins, pumares, ôc tudo o mais quanta ha nelle que íe fecha das portas a den- tro, eftá armado no ár fobre trezen- tos ôc feífenta pilares cada hum de húa pedra inteyra, da groíTura qua- íi de hum tonel, Ôc de vinte & íete palmos dalto,eftes trezentos ôc feíTen ta pilares tem os nomes dos trezétos ôc feíTenta dias doanno, ôc em cada hum delles particularmente fefefteja muytas elmollas,& íacrificios fan- guinolétos, acòpanhados de muytos tangeres,danças,& outros modos de folcnidades,o nome do idolo daquela le pilar,q nelle mefmo eftâ pofto em húa rica charolla, com húa alampa- da de prata diante.Por baixo,no an-» dar deftes pilares vão oito ruas, 5 muyto

^Peregrinações de

muyto nobres fechadas de hua ban- os Chins nos diíTerão que as moíhe-

ii "

da ôc da outra de grades de latão, fuás portas nas entradas para feruin- tia dos peregrinos q de fora, & da mais gente q como jubileu concorre continuamente a eílas feftas. A caía encima onde a Raynha eftaua fepul- tadaerafeyta amaneyra de capella redonda, toda dalto abaixo forrada de prata,de muyto mais cufto no fei- tio que na valia,fegundo o que pare- cia na diueríídade dos lauores que nellafe vião, tinha no meyo hua tri- buna redonda feyta â proporção da meíma cafa daltura de quinze de- graos, fechada em roda com féis or- dés de grades de prata cos nós doura- dos, & no mais alto delia eftaua hua grande poma, fobre a qual eftaua leão de prata que tinha na cabeça hum caixão de quaíi três palmos em quadrado douro muyto fino, em que dezião que eftauão os oífos daquel- la Raynha, que eftes cegos ôc igno- rantes veneraó por grande relíquia, em torno defta tribuna na mefma proporção, eftauão quatro tirantes deprata,q tomauão toda a grandura da cafa,armados encima de toda efta obra, dos quais pendião quarenta ôc três alapadas de prata ôc fete douro, as de prata em honrados quaréta ôc três annos de idade q dezião q ella ti- nha quãdo morrera, & as fete douro por fete filhos q dezião q parira, JDo arco defta capella para fora logo à entrada do cruzeyro em oito tirantes q atraueífauão toda a cafa,efta|ía hua muyto grande íòma de alampadas

res dos Chaés, Ay taos,Tutoés,& An- chacys,que fao as mais honradas do reynoq fe acharão prefentesà mor- te da Raynha,aly mandarão porem memoria daquella honra, as quais a> lâmpadas dezião queerão duzentas & cinquenta ôc três. Das portas para fora de toda efta cafa (q feria quaíi do tamanho da igreija de Saò Do- mingos de Lisboa) em féis fileyras muyto compridas que a fechauão toda em roda, eftaua húa muyto grande íomadeeftatuas de gigantes de quinze palmos cada hua muyto bem proporcionados, as quais erão todas de bronzo fundidas, ôc tinhão fuás alabardas Ôc maças do meímo nas mãos,& algúas delias macha- dinhas âs coftas, a qual maquina aísi toda por junto reprefentaua hútanu nho aparato Ôc grandiofidade q a vi- ftafe não fartaua de fc empregar nel- la. Entre efta íoma de eftatuas (q fe- gundo os Chins nos affirmarao, eraó mil ôc duzentas) eftauão vinte ôc qua tro ferpemes do mefmo brózo muy- to grãdes,& encima de cada hua dei- las eftaua aífentada hua molhercom húa eípadana mão, Ôc hua coroa de prata na cabeça,eftas vinte ôc quatro molheres dezião que tinhão titulos de Raynhas para honra de feusdecé- détes,porque todas fe facrlficaraó na morte daquella Raynha, paraque na outra vida as almas defíasfer- uiffem a fua,como nefta os corpos feruiraõ ao feu corpo, coufa que os Chins da geração deftas molheres,té

de prata muyto grandes Ôc ricas,que * por muyto grande Jhóra, ôc o trazem

por

Fernão zIAdendez Tinto*

por timbre nos efcudos de fuás no- brezas. Deftasfileyras de gigantes pa- ra fora eftaua outra que os rechaua a todos em roda de arcos triúphais co- zidos todos emouro,cõ muyta quan cidade de campainhas de prata, pin- duradas por cadeas do mefmo, as quais tangédo cótinuamente co mo- uimencodoar que lhes daua,fazião hum tamanho eftrondo que não a- uia quem le ouuiire com ellas. Deftes arcos para fora, na mefma proporção, eftão duasordés degrades de latão q fechão coda efta obra, armadas por quartéis em colunas do mefmo, com luís leocs em todo cima poftos fobre bollas,que íaò as armas dos Reys da China, como )a algúas vezes tenho ditojnas quadras deite terreyro eftaó quatro monftros do mefmo bronzo, fundidos de taó eftranha & defeom- paíTada grandeza, ôc diabólica feal- dade que os entendimentos dos ho«» mes quaíí o não pode imaginar, dos quais milhor me fora não dizer na- da: pois entendo & cófeíTo de mym que não tenho íaber ne palauras pa- ra declarar tudo o que nelles ha,mas como não he razão que de todo fi« quem efeondidos fem íè dar algúa noticia delles,direy o que couber no meu fraco entendimento. Hum de- ites monftros que eftâ logo na entra- da do terreyro a mão direyta, aque os Chins nomeauão por ferpe traga- dorada concaua funda da cafado fumo, que fegundo fuás hiftoriascó- raó,heLuòfer,eftâ em figurade húa deííemelhauel ferpente,com feteco-

v

10O

to feas & temeroías,todas conchadas de verde & preto,com muytos efpí- nhos de mais de palmo em compri- do por todos os corpos,como tem os porcos eípins,& cada húa delias tinha na boca húa molher atraueífada cos cabellos todos derrubados para trás, como que eftaua efmorecida: o mò- ftro tinha na boca, que era muyto grande & defeompaflada^hú lagarco meyo fora,de mais de trinta palmos de cumprimento, ôc da groííurade húa pipa,cos narizes ôc ventãs,& bei- jos tão chevos de fangue que todo o mais corpo deita grande íerpeme daly para baixo eftaua tinto delle, ÔC tinha apertado entre as mãos num grande elefante, que parecia ícr com tanta forca, que as tripas & os bofes lhe íãhião pela boca fora,& tudo ifto taó proprio,& tanto ao natural, que as carnes tremião de verem húa fi- gura que porventura nunca entrou em imaginação de homes, a volta do rabo.que feria de mais de vinte braças, eftaua enrodilhado noutro deííemelhauel monftro,que era ofe- gundd dos quatro que diíFe que efta- uão nas quadras do terreyro, o qual eftaua em figura de homem de mais de cem palmos dako,a que os Chins chamauaó Turca mparoo,& deziáo q era filho daquella ferpente-efte,alem defermuytofeyo, eftaua com am- bas as maõs metidas na boca, que a. fazia tamanha como húa porta, ôc com húa ordem de dentes dentro no concauo delia, & com a lingoa negra de mais de duas braças bota-

brasquelhefahiãodos peitos muy* daparafora,que cambem eracoufa

N4 muyto

í

muyto cemerofa de ver, & que fazia arripiar as carnes. Dos outros dous monítros,hum era hua figura de mo- lherpornorne Nadelgau, dedezaf- fete braças de cuprido, & féis em ro- da,efla na groííura da cinta tinha rofto feito â proporção do corpo, de mais. de duas oraças,o qual pelas ve- tas lançaua muyto grande quantida- de de fumo, ôc pelo boca infinidade de faiícas defogo,nãoartificial,íenão yerdadeyro,porque dizem q enci- ma dentro na cabeça lhe faziao con- tinuamente fogo, para moítrarem a gente que era a Raynha da esfera do fogo,porque efta dizem elles que ha de queimar a terra quando fe acabar o mundo. O quarto monílro era húa figura de hum homem que eftaua em cocaras, aíToprádo com húas bo- chechas tamanhas ôc tão inchadas q parecia hum papafigo de vella infu- nadocom muyto grande vento, ôc também era de tão defacuítumada grandeza,& de hum afpeito taó feyo & temcroíb,que apenas o podia ío- frer avilta; a eftc chamão os Chins Vzanguenaboo, o qualc|ezíão q era oque no mar fazia as tempeítades,& na terra derrubaua os edifícios, & a efte daua o pouo muytas eímollas porq lhe não fizeíTe mal, & fe efere- uião todos por feus confrades tri- buto de màz cada anno,q íàó cin- quenta reis,porq lhes não alagaíTe os feus juncos,né fizelTc mal aos mareã- tes>& outras muytas ôc diuerfas abu- foés q por íua grande cegueira crem tanto de verdade que morrerão mil mortes por cada hua delias,

*Perigr!naçoes de

T)o que achamos por eíle rio acima ate chegarmos a hua vi/la chama- da tunquileU) <&• do,que,nel(a vimos. c> noutro lu?ar adtante delia.

Artidos nós ao outro dia deita cidade de Po ca fler, chegamos a ou- tra que fe dezia Xinli- gau , também muyto grande 8c muyto nobre,& de muyto boa cafaria,cercada de muros de ti- jolo,com íua caua ao redor, ôc nos ca bos ctous caftellos de entulho muyto fortes, ôc bem acabados, com torres Sc baluartes quaíl a noífo modo, Ôc nas entradas pontes leuadiças quefe fofpendião no ar por groífas cadeas de ferro,&no meyo de cada hum de- ftes caftellos húa torre de cinco fo- bradoscom muytas inuéçoesde pin- turas de diuerfas cores,nas quais tor- res ambas nos affirmaraó os Chins <|ue eílauão em tifouro quinze mil picos de prata do rendimento da- quelleanchacilado, que o auó defte Reyaly mandara porem memoria de hum filho que aly lhe nacera por nome Leuquinau,que quer dizer, a- legria de todos, o qual elles tem que foyfanto, porq acabou em religião, Ôc eílà aly enterrado num templo da inuocaçio do Quiay Varatel, Deos de todos os peixes do mar, de que e- fies cegos ermitão muytos defatinos deleysque inuentou, ôc preceitos q deu,que he efpanto auuilos,de que a

> feu

Fernão Afencfe^ Tinto. i o i

feu tempo farey menção. Nefta cida- outros dous de ferro coado que pa-

dc,& noutra mais acima cinco legoas fe tece a mayor parte da feda defte reyno, por caufa das agoas que dizé que fazem mais viuas as cores das tintas que todas as das outras partes. Os teares deitas fedas, queemfoma dezião que erão treze mil, rendiáo a el Rey da China cada anno trezen- tos mil taeis. Continuando noíío ca- minho por efte rio acima,chegamos ao outro dia ja quaíi vefpera a húas grandes campinas em que auia muy- ta quantidade de gado vacú,& de im deyros & egoas,aos quais guardauão muytos homésacauallopara osve* derem aos merchantes que os tortao nos açougues como a outra carne. Paliadas eftas campinas, que podiao fer de dez ou doze legoas, chegamos a húa villa,que íe chamaua Iunqui- leu, cercada de tijollo, com efpigoés por cima do muro, fem a meyane- nhúa,nem baluarte,ncm torre,como osoutrosde que tenho contado. No cabo do arrabalde defta pouoaçao pa ra a parte do rio vimos huas cafas ar~ madas naagoa,fobre efteyos de pao muyto gtoílos, ja muyto velhas & danificadas a maneyra de terecenas, diante da porta nu terreyro peque- no,eftaua hum muy mento de pedra fechado todo em roda de grades de ferro pintadas de verde & vermelho, & por cima hum curucheo de azule- jos de porcelana muyto fina brancos ôc pretos, armado fobre quatro co- lunas de pedra luftrada muyto bem acabadas, & encima do muymento

reciaõ fer de mcya efpera,na fronta- ria do muymento :-raua hum lerrey- rode letras douradas á Charachina que dezião. Aquy jaz Trannocem Mudeliar tio dei Rey de Malaca,a quem a morte leuou antes que Deos o vingafíe do Capitão Albuquerque lião dos roubos do mar. Efpantados nòs todos de ver efte ietreyro,pregú- tamos que coufa era aqnella, aque hum Chim que parecia mais honra- do que os outros que eftauão preíen- tes reípondeo,eííe homem que ahy jaz enterrado veyo aquy haquaréta annos por Embaixador de hum Rey que íe dezia Malaca, a pedir focorro ao filho do Sol contra húa gente de terra fem nome^ue do Cabo do mu- do viera por mar & lhe tomara Ma- laca,com outras particularidades de medos increiueis que eftáo eícritas numliuro impreíTo que diíTo fe fez. E auendo ja quaríi três annos que an- daua na corte continuando co reque- rimento do íocorro que pedia,o qual lhe era ja concedido pelos Chaés do gouerno,quiz fua ventura que adoe- ceodearque lhe deu eftando húa noite comendo, de que não durou mais que íos noue dias. E parece cj magoado de não ter eífeito o que vi- nha pedir,declarou fua linhagem nef feletreyro deíTa fepultura em que jaz enterrado, paraque ate o fim do mundo os homés da terra fóubefíem quem elle foy, & o a que veyo. Da- quy nos partimos logo, & continua- mos nofíò caminho pelo rio acima, o

eftauão cinco piiouros de camello,& ^qualja nefta parte he menos Fargo q

* na

Peregrinações de

na cidade do Nanquim donde pri- nha paruoice & diabólica cegueyra,

meyro partimos,mas a terra he muy- to mais pouoada de aldeãs & quin- tas que todas as outras, porque não lia tiro de pedra onde não aja húa ca- fa, ou de pagode, ou de laurador Ôc geme de trabalho. E indo mais ad ia- te obra de duas legoas, chegamos a hum grande terreyro todo cercado de grades de ferro muy to groíTas, no meyo do qual eftauão em duas monftruofas eftatuas de bronzo fun- didas,húa de homem,& outra demo lher,encoíbdas a húas groíTas colu- nas de ferro coado da groíTura de hum barril, & de altura de íeze bra- ças, & o comprimento ideítes mon- ftros ambos era de íetenta & quatro palmos,com ambas as mãos metidas nas bocas,& as faces muyto inchadas como que aíToprauãoi & cos olhos tão encarniçados que metião medo aquém olhaua para elles, G nome do macho era Quiay Xingatalor, & o da femea,Apancapatur, ôc pregun- tando nos aos Chins pela figni fica- rão daquellas figuras, nos refponde- rão,queo macho era o que aílopra- ua com aquellas bochechas tão in* chadas o fogo do inferno para ator- mentar as almas daquelles quenefta vida lhe não dauão efmola, & a fe-- mea era a porteyra do inferno, & que os quenefta vida lhe dauão efmola, os deixaua fugir para hum rio de a- goa muyto fria por nomeOchileu- <lay, onde os tinha efeondidos Tem os diabos lhe fazerem mal nenhum. Hum dos da noífa companhia não íe pode ter que fe não rifle de tama:

de que hústres bonzos que y efta- uáo (que faó osfçus facerdotes) fe es- candalizarão tanto,que meterão em cabeça ao Chifuuque nos leuaua, cj fe nos não caftigafle de maneyra qile aquelles deofes fe ouuefTem por ia* tisfeitos daquella zombaria que fi- zéramos deiles,quefem duuida a íua .alma feria muyto atormentada dei- les ambos,fern nuca a deixarem favr do inferno, o qual ameaço afsóbrou tanto o perro do Chifuu que fem perar mais,nos mandou a todos no* ue atar de peis ôc de mãos, & húas cordas dobradas nos derão a cada hu mais de cem açoutes^e que todos fi- camos aíTas íangrados, ôc daly por diante nunca mais zombamos de coufa que viíTemos.A eftes dous dia- bólicos monítro3,no tempo que aly chegamos, eítauao incençando doze bonzos com feus 'incenfarios de pra- ta,cheyos de muycos cheyros de a- guila,& beijoim, & diziáo em voz al- ta & muyto defentoada. Afsi como te feruimos, afsi nos ajuda; aque ou- tra grade foma de facerdotes refpon- dia com hua grade grita: Afsi to pro- meto como bom fenhon E afsi anda- rão todos em prociíTaó âroda do ter reyro com eftes defentoados clamo- res por efpaço de hua grande hora, tangendo íèmpre muytos finos de metal,& de ferro coado, que fora do terreyro eftauão poftos em campa- nayros,& outros tangião com tambo res ôc feftrosque fazião hum tama- nho eftrondo, que em verdade affir- mo que metia medo.

CAP.

Fernão Mendex Tirito. - CAT. XÇl

Como chegamos a bua cidade que federia Sampitay-,& do que f afiamos com bua molber Chriflam que acha- mos nella.

102

Efte terreyro para dia- te continuamos noííà viagem pelo rio acima mais onze dias, o qual nefta paragé he ja tão pouoado de cidades,villas, aldeas,lu- gares,fortalezas, & caftellos, que em muytas partes ha menos diftancia de hús aos outros que tiro de efpingar- da. E afsi toda amais terra que vía- mos quanto alcançaua a vifta, tinha muyta quantidade de quintas no- bres,& cafas de feus pagodes,có muy toscurucheos cozidos em ouro, que reprefentauao tamanha mageílade & nobreza, que todos pafmauamos do que viamos. Defta maneyra che- gamos a húa cidade que fe chamaua Sampitay, na qual eftiuemos cinco dias,por caufa da molher do Chifuu que hia muy to doente. Aquy c6 íua licença faymos em terra afsi preíbs como hiamos,& nos fomos todos pe las ruas a pedir eímolla, que os mo- radores delias nos derão muyto lar- gamentejOS quais admirados de ve- rem gente da nofla maneyra,íè ajun- tauão em quadrilhas a nos pregun- tarem que homés- éramos, & de que reyno,ou como fe chamaua a nofla terra? aque refpondiamos conforme ao que ja tínhamos dito rríiiytasve-

zes,que éramos naturais do reyno de SiãOj&qucnos perdêramos no mar com húa tormeta indo de Liampoo para a eníeada do Nanquim, & que éramos mercadores queja fôramos ricos,& tiueramos muyto de noflb, indaquenos vião daquella maney- ra. Húa molher que eftaua aly pre- fente a volta de outras muy tas,ouuin do a nofla pratica refpondeo, coufa he efla de que ninguém fe deue de efc pantar,porque nunca ai vimos fenão ficarem pela mayor parte fepultados no mar,os q muyto lauutão no mar, &poriflb amigos meus o milhor& mais certo he fazer conta da terra,& trabalhar na terra, ja que Ocos foy feruido de nos fazer de terra. E dan* donos com ifto dous mazes de efmo la como a pobres, nos encomendou muyto que não cu raflernos de fazer viagés compndaSjOnde Deos permi* tira fazer as vidas tão curtas; mas lo- go após iíto delabotoou a manga de humjubãodecitim roxo que trazia veír.ido, & arregaçando o braço nos moftrou húa Cruz que nelle tinha efeolpida como ferrete de Mouro, muyto bem feita,& nos diíTe,eonhe~ ce por ventura algum de vosoutros eíle final que a géte da verdade cha- ma Cruz,ou ouuiftelo algua hora no mear? aque nós todos em o vendo, pondo os joelhos em terra co deuido acataméto,& algús com as lagrimas nos olhos refpondemos que fy,a que ella dando hum grito,& leuantando as mãos para o Ceo difle alto, Padre noííò que eftàs nos Ceos, fantifkado feja o teu nome, &ifto difíeonalin-

goagem

^Pengrinâçoes de

gõagem PortugLÍefa,& tornando lo- teue todos os cinco dias que aquy

go a falar Chim, como que não fa- Eia mais do Portuguez que eftas pa- lauras,nos pedio muyto que lhe dif- feflemos fe éramos Chriftaõs, aque todos refpondemos queíy,&tomã- dolhe todos juntos o braço em que tinha a Cruz a beijamos,& diíTemos tudo o que ella deixara por dizer da oração do Padre noíTo, porque íbu- beíle que lhe falauamos verdade. Quando ella ifto ouuio & entendeo daquy que nos éramos Chriftãos, to- 4a banhada em lagrimas fe defpidio da gente que aly eftaua, & nos diíTe, vinde Chriftaõs do cabo do mundo com efta voíía verdadeyra irmam na de Chrifto, & quiçá que parenta dalgum de vos outros por parte do pay que me gerou nefte defterro, & começando a encaminhar com nofco para fua cafa,os vpos,que erão os be- leguins que nos trazião, o não que- rião confentir, & nos deziao que fof» femos pedir eímolla pela cidade co- mo nos era mandado pelo Chifuu, fenão que nos leuariao a embarca- ção, & ifto deziao pelo intéreíTe que diíTolhes cabia, que, comojadiíle, era a metade de toda a eímolla que tirauamos, & fazendo moftra de nos quereré tornar a embarcação, a mo- Iher lhes diíTe, bem vos entendo, & bem fcy que não quereis perder na- da do voíTo, & afsi he razão, ja que nãotendes outros percalços de que viuais,então metendo a mão na bok íâ lhes deu dous taeis de prata,de que ficarão contentes, & com licença do Chifuu nos leuou afua cafa^nde nos

eítiucmoSjfazendonos fempre nuiy to gafalhado,& tratandonos muy-' ta caridade, Aquy nos moftrou hu oratório em que tinha húa Cruz de pao dourada,com húscaftiçais ôc húa alampada de prata, & nos diíTe que fe chamaua Inez de Leiria,& que íèu pay fe chamara Tomé Pirez, o qual defte reyno fora por Embaixador a el Rey da China^ que por hum ale- uantamentoque hum noíTo Capitão fizera em Cantão, ouuerão os Chins que era elle efpia ôc não embaixa- dor como elle dezia, & o prenderão com outros doze homés que trazia comíigo, & defpois que porjuftiça lhes derão muy tos açoutes & tratos, de que logo morrerão os cinco, aos outros defterrarão,apartados húsdos outros, para diuerfos lugares, onde morrerão comidos de piolhos, dos quais hum era viuo que fe chama- ua Vafco Caluo, natural de hum lu- gar da nofla terra que fe dezia Alçou chete,porque afsi o tinha muy tas ve- zes ouuido a feu pay,chorando muy- tas lagrimas quando nifto.fallaua. E que a feu pay lhe coubera em forte fer feu degredo para aquella terra, onde fe cafara com lua máy, porque tinha algúa coufa de feu, & a fizera Chriftam,& fempre em vinte &fete annosque aly eftiuera caiado com ellajviueraó ambos muyto catholi- camente,conuertendo muytos Gen- tios â de Chrifto, de que ainda na- quella cidade auia mais de trezétos, que aly em fua cafa fe ajuntauão íempre aos Domingos a fazer a dou-

trina.

Femao Mende^Tinto. 10$

trina. E preguntandolhe nós que era por hum bom prefente que cila mau

o que deziao ou que rezauao, reípõ iko,que nenhúa coufa mais que fo- mente poréTe todos em joelhos dian- :e daquella íua Cruz,& com as maós leuantadas&os olhos no Ceo dize- ■em todos: Senhor IefuChrifto afsi :omo he verdade que tu es verda- kyro Filho de Deos, concebido pe- o Efpirito fanto no ventre da virgé anta Maria para faluação dos pecca- iores,afsi nos perdoa nofíbs pecca- íos paraque mereçamos ver a tua fa- :e na gloria do teu reyno,onde eftàs uTentado á deftra do muy alto. Pa- ire noíTo que eftâs nos Ceos, fantifí- :adoíejaoteu nome. Em nome do Padre, & cio Filho,& do Efpirito fan- :0,amen. & beijando todos a Cruz fe ibraçauão hus cos outros & fe hião Dará fuás caías. E afsi viuião todos nuyto conformes & amigos íêma- jer entre ellesodioou inimizade al- ?ua. E que outras mais orações lhe ieixafafeu pay efcritas, qucdefpois he furtarão os Chins, por onde não Scarão fabendo mais que aquillo :juenos tinha dito: a que refponde- mos que muy to bom era o que lhe :inhamosouuido, mas que nòs lhe ieixariamos outras orações rnuyto aoas antes que nos fofíemos, & ella ios diíTe,afsi o fazey pelo que deueis i hum Deos tão bom como tendes, & que tanto fez por vòs,& por mim, &: por todos. E mandandonos por a mefa nos proueo de comer muyto a- baftadamente, & afsi o fez todos os cinco dias que neíla fua caía eftiue- mos,o qual o Chifuu nos concedeo

dou a fua molher, & lhe pedio muy- to que fízeffe com feu marido q nos trataíTe bem, porque éramos ho- mésque Deos tinha muyto à fua conta,& ella lhe prometeo de o fa- zer afsi com muy tas palauras de a- gradecimentopelo que lhe manda- ra. Dentro neítes cinco dias que efti- uemosem fua cafa fizemos fete ve- zes doutrina aos CFiriftãos, de que todos ficarão muyto animados, & Chriítouão Borralho lhe fez hum ca derninho na letra China em que lhe deixou efcrito o Pater nofter a Aue Maria, o Credo, a Salue Regina, os mandamentos, & outras muy tas o- rações boas. E com ifto nos defpidi- mos dos Chriítáos,& da Inez de Lei- ria^ qual parecia verdadeyra Chri- ftam fegundo o que vimos nella fes poucos dias que eftiuemos em íuacafa. Eftes Chriítãos nos derão cinquenta taeis de efmolla, que def pois nos forão bós para remédio de muycas neceíiidades em que nos vi~ mos, como direy mais adiante, & a Inez de Leiria por íy nos deu outros cinquenta taeis muyto efcondidos, & nos pedio muyto que em noíías orações a encomendaíTemos a noíío Senhor, pois vía- mos quanta neceí-* íidade tinha diílò.

CAP.

'Peregrinações de

i

QAV. XQL

Donde teue principio a origem &

un dàmento deUe império (Jbimy

&- donde procederão os pn-

meyros que o ponoarao.

Efpois que partimos deíta cidade de Sampi tay, feguimos adiante por tile rio daBatam- s3 pina acima até hum lu- gar que fe chamaua Lequimpau, de dez ou doze mil vezinhos, & de boa cafària,fegundo as moftras de fora,& cercado de muro & barbacam com fua caua ao redor, junto da qual da banda de fora eítaua húa cafa muy- to comprida trinta fornalhas por banda,em que fundião ôc apurauão grande loma.de prata, que em carre- tas fe trazia de húa ferra que eítaua daly cinco legoas por nome Tuxen- guim, &aquynos diíTeráo os Chins que nas minas delia trabalhauão có« tinuamente paíTante de mil homes em arrancar prata, & q rendia todos os anos para cl Rey da China cinco mil picos de prara, ôc nos contarão mais outras particularidades curio- fas de ouuir,que não efereuo por me temer que poderey íer proluxo. Da- quy nos partimos ja quaíi folpofto, & fomos ao outro dia â veípera fur- gir entre duas cidades pequenas de- fronte húa da outra pouco mais de hum quarto de legoa, que era a di- ítancia da largura do rio,húa por no- me Pacão,& outra Nacau, & ambas de pequenas em fora, muyto nobres

& bem cercadas de lagias de cantaria muyto largas & fortes. Tinhão muy tas caías de pagodes cozidas em ou- ro, com muytas inuençoés de grim- pas & curucheos de muyto-cufto Ôc riqueza; que era coufa aííaz fermoía & agradauel para ver. Deitas duas cr dades direy o que ahy nos contarão, ôc eu defpois algúas vezes ouuy,porq fe faiba a origem ôc fundamento de- ite império Chim, ja que os eferito* res antigos atègora não derão ne- nhúa razão diíto. Leefe na primeyra Chronica das oitenta dos Reys da China no capitolo treze, a qual eu ouuy muytas vezes ler, que defpois dodiluuiofeifcentos ôc trinta & no- ue anhos auia húa terra que* então fe chamaua Guantipocau,a qual,fegun- dojparecepela altura do clima em q eftâ,deue de eítar em feílênta ôc dous grãos da banda do Norte, ôc jaz nas coitas deita noíTa Alemanha. Neíta terra viuia naquelle tempo prín- cipe de fenhorio ôc eítado pequeno por nome Turbão,o qual dizem que fendo mancebo folteyro ouuera três filhos nua molher por nome Nancaa aqueemeftremo era arTeiçoado, de qaRaynha viuua mãy delle tinha muyto grande defgoíto. Eíte,;fendo algúas vezes requerido pelos princi- , pães do reyno ou fenhorio que então era,que fe .cafafTe, fe efeufou fempre, dando por defeulpa algúas razoes q #os feus lhe não aceitarão, antes inci- tados ôc eítimulados pela mãy, não deíiftindodo requerimento, aperta- rão tanto com elle,que elle por fe cf- cijfar de fazer o que não era fua von- tade,

Fernão ^M.enàezTlnfo, 3 04

ade^com tcção 'de legitimar o filho com tudo íe faluou a Nancaa cos

nais velho que tinha da Nancaa, Sc leixarlhe o reyno, fe meteo em reli- do em hum templo cjtie fe chama- la Gizom, que fegundo parece foy dolo & feita que tiuerao os Roma- ios,o qual oje em dia ha nefte impe- io da China, na ilha do lapão, na :auchenchina,em Camboja, ôi em iiáo,do qual neftas terras eu vy muy as caías, & declarando no Teu tefta- nento que era eftafua vitima von^ ade,a Raynha fua may que naquei- e tempo era viuua,& de idade de :inquenta annos,o não confentio}di- :endo, que ja que feu filho queria norrer na religião que tinha profef- ado,& deixar o reyno fem legitimo :rdeyro,ella queria dar remédio a :fte tamanho defmancho; & logo fe :afou com hum feu facerdote por no ne Silau,de idade de vinte & féis an- ios, & o fez a pefar de muytos jurar íor Rey. Difto que a Raynha fez m Turbão logo auifado, & enten- dendo que o fizera a fim de lhe ex- Juyr feu filho da herança, & não cú- irir o feu teílamento,fe tornou aíàyr da religião com propoíito de tornar i tomar poíTe do que tinha deixado, 8c niíTo pos todo feu trabalho & di- ligencia. A mãy,ôc o Silau com que era caiada, temendo que fe eftacou- fa hia por diante, viefle a parar em morte de ambos, ajuntando fecreta- mente algús dos que erão da fua par- te, que fegundo fe conta forão trinta de cauallo & oitenta de pé,derão húa noite nas cafas onde o Turbão efta- ua, & o matarão com todos os feus,

feus três filhos,& com mais algús fa- miliares de fua cafa, & embarcando- fe em húa laulee de remo,fe veyo fu- gindo pelo rio abaixo até hum lugar que eítaua daly fetentalegoas, onde defembarcou com os poucos q trou- xera comfigo,& aly com outra algúa mais gente que defpois ajuntou, fe fez forte em hua lizira que eítaua no meyo do rio, aque pòs nome Pilau- nera, que emnoífalingoagemquer dizer,colheytade pobres, com téçaó de acabar aly a vida cultiuãdo a ter-* ra,& fuftentandofe co trabalho dos feus,porque daly para baixo, fegúdo fe lèno mefmo capitulo,não era a ter ra inda então pouoada de gente ne- nhúa. Auendo ja cinco annos que el- la viuia nefta miferia & pobreza de efiado, temendofe o tyranno Silau, por não fer bem quiíto do pouo, que como os três moços foflem demais idade o poderião deíapoíTar daquil-* lo que indeuidamente lhes tinha v-' furpado, ou ao menos o poderião definquietar com aluoroços & leuã- tamentos de gentes, caufados do di- reito que pretenderião ter no reyno, dizem que mandou a bufcalos húa frota de trinta jangàs de remo, em q dizem que hião mil & feifeentos ho- mes. A Nancaa fendo certificada, de- fte poder que vinha fobre ella,tomã- do confelho fobre o que niíTo deuia fazer,fe afientou que por nenhú cafo o efperaífe, vifío fere feus filhos mo^ ços^Ôc ella moiher,& a fua gere muy- to pouca,fraca,& deíarmada,& muy* to falta de tudo o necefiario para fe

defen-

7erigritiãfoes de

defender de tantos inimigos, & taõ pregão que íõ pena de morte nenhú

l

j: í,

bem prouidos. E mandando fazer reflenha da gente que tinha,achou q toda ella não paíTaua de mil & trezé- taspefloas, das quais as quinhentas fós erão homés^ todas as mais,mo- lhcres, & crianças pequenas, para a qual copia de géte nãoauiamaisem todo o rio que três laulees pequenas, & húa jangaa em que não podião ca- ber cem peílòas: béentendeoa Nan< caa que não erão eftas embarcações capazes de toda a gente que tinha comíigo,& começando então a cuy- dar no remédio que poderia ter efta tamanha necefsidade,diz a hiíioria q tornou outra vez chamar a coníelho, Sc defcubrindo em publico o receyo q tinha, lhes pedio a todos íeus pa- receres, do qual elles por étão fe efcu farão, dizcdo que lhe affirmauão em toda a verdade que não fentiãoem fy entendimento para fe determina- rem tão depreífa no que lhes pregú- taua, mas que conforme a feus cultu- mes ôc ritos ancigos lançafiem fortes comoícmpre cuírumauão fazer em femelhantes apertos, Sc que naquelle em quem caifíe poder falar, eíTe dif- feffe o que Deos no coração lhe in- fpiraíTe. E que para iífo tomaíTem três dias de efpaço,em que por jejus, lagrimas,& brados pediíTem todos a húa voz remédio Sc focorro ao alto Senhor das mifericordias, em cuja mão eftaua muyto certo efte remé- dio que pretendião. Determinada a JNancaacom todos os íèus nefte pa- recer, que por então fe aprouou por milhor que todos., mandou lançar

peífoa comelfe em todos aquellc três dias mais que húa vez,porqu com a abfíinencia da carne hcaííe i efprito pronto com Deos.

QA<P. X(JU. ...

T>o que mais pafíou nejie negoch

de/pois de o jejum fer acabado,

&- dofucceffo que teue,

Afiado o termo deite três dias em que con tinuarãofua penitêcia lançarão as fortes poi cinco vezes, Sc roda cinco cayrão num minino de fete an nos, que fe chamaua Silau como c tyrannode quem fe temião, dequí todos ficarão muyto confufos de tri- ltes5porfeaffirmarque não auia ou- tro do mefmo nome em todo o arra- yal. Edeípois de fazerem feusfacri- fícioscom todas fuás cerimonias cu- flumadas de tangeres Sc fumos chey- rofos a modo de daré graças a Deos, mandarão ao menino que leuantaíTe as mãos ao Ceo,& diíTeííe o que lhe parecia no remédio daquelle aperto & grande trabalho em queeílauão. Aque o menino pondo os olhos na Káncaa dizem que difle. Agora que com afflição & anguília trifte,ó mife- rauel Sc fraca molher eftàs mais atri- bulada Sc confufa no pouco remédio que o entendimento humano te eira reprefentando, Sc te fometes hu- mildes fuípiros debaixo da mão do alto Senhor,tira?tira;tira, ou quando

não,

não, trabalha por tirares teu coração dos fumos da terra, pregado de ver- dade teus olhos no Ceo,& nelle veras quanto pode a oração do innocente & atribulado diante da juftiça do 5 te criou, porcj na hora q com humil- des íufpiros lhe manifeftafte a tua fra queza & pouco poder, logo de cima te foy concedida a vitoria do tyrãno Silau, grade promeíTa q o Senhor de todos os homés te mada fazer por my m lua formiga,& te manda q nas embarcações de teus inimigos em- barques teus filhos,& toda tua fami- lia,& ao fom das agoas corras a terra vigiando a noite com dór de teu bra- ço,porque elle te moftrarà antes que chegues ao defcanço do rio, onde af* fentes por longa habitação húa caía de tamanho nome, que pelo tempo dos tempos fua mifericordia feja nel- la cantada com vozes & fangue de gentes eftranhas,cujo clamor feja tão agradauel em fua prefença como os bramidos dosjuftos & fieis meninos de téra idade. É dito ifto afsi por eftas próprias palauras, diz a hiftoria que logo naquelle inftante o menino ca- hio morto em terra, do qual fuc- ceíTo (fe afsi foy) a Nancaa com tó-^ dos os feus ficarão aíTaz eípantados. Affirma também efta hiftoria, que eu muytas vezes ouuy lér,quepaf< íãdos cinco dias deípois deite fuc- ceífo, viraó hua menharn vir pelo rio abaixo a armada das trinta jan- gasmuytobem concertadas, & íem gente nenhua, & a razão diftofoy, íegundo affirma ameíma hiftoria (a qual os Chins tem por muyto#yer«:

Fernão Mende^ Tinto.

IO?

dadeyra)que vindo efta armada co- da junta, para fem nenhua piedade efTcituar na pobre Nancaa, & nos feus três filhos, &na mais gente que eftaua com ella,os danados & crueys intentos do tyranno Silau, cftando hua noyte furta num lugar que fe dezia Catebafoy, fe criara fobre el- la húa nuuem preta, a qual lançan- do de fy muytos fuzis & curiícos, chouera delia húa agoa muyco grof- fa, de gotas tão quentes em tanto eítremo, que dando na gente que nefte tempo eftaua ainda acordada, a fez lançar toda ao rio, onde em menos de hua hora pereceo toda, porque dizem que na carne onde tocaua qualquer daquellas gotas, a queimaua de tal maneyra, que com húa dor incomportauel lhe penetra-» ua até o mais intriníeco dosoíTos,fem aucr veftido nem outra coufaalgúa que fobre fy puíèfíem que lhe pu« deffe fazer refiftencia. Conhecendo então a Nancaa que era aquillo hum muy to grande myfterio,recebeo efta mercê da mão .do Senhor com muy- tas lagrimas,& lhe deu por ella muy* tas graças com todos os feus. E em- barcancíofe cos Teus três filhos 6c com toda a mais gente nas trinta jan-» gás da armada, fe foy pelo rio abai- xo, & ao fom da impetuofa corren-* te da agoa que em feu fauor hia, ak firma a hiftoria q acabo de quarenta & fete dias chegarão a aquelle fítio onde agora eftá edificada a cidade do Pequim, onde ella com todos os feus defembarcou em terra,com de- terminação de aífentar aly fua mo J

O " rada.

Terígríndçoes de

rada,& por fe temer do Silau;de que que ja tinha mandado Iaurar, & che-

fempre tiuera receyo, dizem quefe

fez aly forte o milhor que pode,com

eftacadas & entulhos de pedra em

foíía pela maneyra que ao diante fe

dirá.

CAT. xcmi

Quais forao os fundadores das pri- meyr as quatro cidades da (Joina^ <& dafe conta de alguas gran- dezas da cidade do Tecjiúm.

\ Eíembarcada a Nan- caa em terra com to- dos os feus, diz a hifto- ria que cinco dias pa£ faraó fomente deípois

de fer chegada, quando logo fez ju- rar por Príncipe daquella gente o feu filho mais velho, por fe fegurar dalgús receyos que íempre teue,& ficar mais aliuiada do trabalho que atè então tinha paíTado. O filho tan- to que foy obedecido deífa pouca gente que aly tinha còílgo, no mef- modiaâ tarde abalifou o íitio on- de feauia de fazer forte, & defpois de fer aberto o primeyro vallo, que elle mandou abrir com muytapre: fteza, fahio da fua tenda, acompa- nhado de fua mãy , pela qual tudo fe gouemaiia, & de feus irmãos, ôc dal- gús mais principais que entaó auia, & com veftid uras de feftanefta pri- meyra morna que de fy deu ao po-* «o,fe foy acompanhado dos feus, le- mndo diante por eftado hua pedra

gandofe onde o alice eftaua aberto, a tomou nasmaós com muyto con- tentamento^ aíTentandoíe em joe- lhos com as maós leuantadas ao Ceo diffe aos que eftauão prefentes. A ef- ta pedra,irmaôs & amigos meus, íb« bre que fe ha de fundar efta noua ca- fa, ponho o nome de minha peíToa, porque afsi fe ha de chamar de oje por diante, pelo que a todos peço como amigos, & mando como Rey que lhe naó chamem outro nome fe- naó eíte, paraqué fique em memoria aos que vierem defpois de nós da- quy ate o fim do mundo, que aos três dias da oitaua lua do annode feiícentos & trinta & noue defpois que O Senhor de todo o criado ma- nifeftou aos que então viuiaó no mundo, o aborrecimento que tinha aos peccados das gentes, alagando a terraços rios do Ceo para cumprir com lua juftiça, fabricou o nono Pe- quim efta caía, ôc lhe pos o feu pró- prio nome,na qual, conforme ao que nos he declarado pela profecia do morto menino , pelo tempo dos tempos exalçara por vozes de gentes eftranhas o como íe deue te- mer o Senhor, &'ag radar em facrifi- cio jufto, E huas letras que dizem ifto deita própria maneyra, eftáo in- da oje eículpidas num eícudo de prata que efta pendurado encima na volta do arco de húa porta da cida- de q agora fe chama Pommicotay5q he a principal de todas as portas, na qualeftão continuamente por honra & memoria deita profecia, quarenta

alabar-

Femao Mende^Flnto. tò^

labardeyros com fen capitão. E em caa/e também que fundou a cida«

ida húa das outras eftão quatro fo- ;iente para daré razão do q cada dia ior cilas entra & fae. E porque o dia n que efte nouo Rey laçou eíh pri- íeyra pedra quãdo fundou eftaci- ade,fegundo o q coníla pelas hifto- as foy aos três dias do mes de Ago- o, cufturoarão fempre os Reys da !hinadentãoparacâ,& o cuftumao ida agora moftrareníè ao pouo ne- e melmo dia,o qual fazé com tanta lageftade, & tão eftranho & gran- ido aparato^ue em verdade affir- 10 q he muyto para arrecear dar ; da mais pequena parte delle,qnã- mais de todo, & por iíío me não uiz meter no q íey certo q não ey " poder leuar atiante.E por ifto que fceprimeyro Rey diíTe quãdo efta :dra,qos Chins por húa profecia luyto certa, fizeráo defpojsos feus rcendétes eftatuto em q fe mãda grauifsimas penas,q nenhúa gente trangeyra entre no reyno íenão fós nbaixadores& catiuos, peio qual lado os tomão,he forçado degra- iremnosde húslugarcpara outros, imo nos fízerão aos noue que era- os.Defta maneyra q breueméte te- 10 contado,fe fundou efta cidade, fe pouoou efte império Chim por le príncipe filho da Nancaa cha- ado Pequim,q era o mais velho de dos, Os outros dous feus irmãos ais mocos,q fe chamauão Pacão Ôc acau,fundarão defpois outras duas jades,- aque também puferão os us próprios nomes. Edamãydel- s^ue^comodiíTe/e chamon Nan-

de do Nanquim^q he a fegunda de-» fta monarchia, & que delia tomou o nome que inda ojeem dia tem. Efte império Chim fe que foy fempre corrédo por direitas fucceífoésde hús Reys nos outros deíde aquelletépo atè húa certa idade,que,(egundo pa- rece pela noíTa conta,foy no anno do Senhor de mil & cento ôc treze,& en- tão foy eíla cidade do Pequim en- trada de inimigos,& aílolada, Ôc po- fta por terra vinte ôc féis vezes, mas como ja nefte tépo a gente era muy- ta,& os Reys muyto ricos, dizem q o q então reynaua,que tinha por nome Xixipaõ, a cercou toda em roda da maneyra que agora eftá em vinte ôc três annos, ôc outro Rey por nome Iumbileytay,que era íeu neto, fez a íègunda cerca daly a oitenta Ôc dous annos, as quais ambas tem de circui- to feíTenta legoas, trinta cada húa,có- uem a íaber,dez de comprido,& cin- co de largo, das quais cercas ambas fe que tem mil ôc feíTenta baluartes redódos,& duzentas ôc quarenta tor- res muyto fortes largas ôc altas, com íèus curucheos de diuerfas cores,que lhe dão muyto luftro,& em todas e- ítao leoés dourados fobrebollasou pomas redondas, os quais faõ adi- uiíâ ou as armas do Rev da China, pelos quaisquer dará entender que he elle leão coroado no trono do múdo.Por fora deita derradeyra cer- ca vay húa muyto grande caua dea« goa,de mais de dez braças de fúdo,& quarenta de largo,dentro da qual ha continuamente grande foma de na- O z uio$

tPengrmãÇL

irios de remo, toldados por cima co- muytas alampadas ao redor, & per-

^h

mo .caià§,em q íè vende codas sS cou las qnãcas fe podem imaginar,aísi de manriméwOS(como de toda a diueríl- dade de mercadarias aque fe pode pòr nome. Tem mais efb cidade em roda, fegundo os Chins nos affirma^ tão,trezétas & feífenta entradas, çm cada húa das quais eftao fempre qua» tro vpos,como pouca ha diíTe, arma- dos^ com alabardas nas mãos, para 4arem razão de tudo o que paíTa nel- ]a, ha aly cambem húas certas cafas que faó como cafas de câmara, q a cidade para iílo tem deputadas com íèus Anchacys &officiais dejuftiça, ôc a onde também fe leuão os moços que íe perdetr^paraq feus pays os ve* rihão aly bufear, Das mais grandezas deita inhgne cidade direy afeu tem- po.porque iílo que agora contey afsi de corrida,íoy fomente para dar hua breue relação da origem & funda- ção deite império, & do primeyro q fundou efta cidade do Pequim, me- tropoli com razão, & com verdade de todas as do mundo, na grandeza* na policia, naâbaítânça,na riqueza, Ôc em tudo o mais quanto fe pode dizer ou cuydar, ôc também para dar contada fundação Ôc principio da fè- gunda cidade deite grande império que he a do Nanquim, comojadif< íe,& defbutras duas de Pacão Ôc Na-, caij,deque atras tenho contado, nas quais ambas jazem eíles dous feus fundadores em téplos muyto nobres Ôc ricos, nuas fepulturas de alaba- firo verde ôc branco guarnecidas dou rPjpoftâs. íobre lcois de prata, com

w -

fumadores de muytas diueríidades de cheyros*

CA<p< xcv.

Qualfy o TZçy da China que fez o muro que dmide os dous impérios da (hina & cia Tartariajfr da prifao aneixa u eltes*

A que tratey da ori- gem Ôc fundação deite império Chim, &da cerca deita grande ci- dade do Pequim,tam- bem me pareceo razão tratar ornais breueroente que puder de outra cou^ ia não menos efpantofa cada húa de- itas. Leefe fio quinto liuro da íitua. cão de todos os lugares notaueis de- ite império, ou monarchía, ou como lhe quiferem pòr o nome (porque na verdade todo o q for grande lhe ca« be) q hum Rey por nome CrifnagoJ dacocay,que fegundo parece péla co- ta dv 'opor onde eira gente cu- fíurri.. .azer a conta das fuás eras,rey. fiou no do Senhor de quinhen-

tos ôc "me ât oito , vindo â cej guerra co Tártaro pòr dirTerertçaí que teuecom cile fobreo eítadode XenxinapaUj que pelo íertão confi na co reyno dos Lâuhós, o desba- ratou, & ficou fenhor do campo, porem o Tártaro refazendoíè logc de outro mâyór poder q ajuntou poi meyode hua liga & confederação^ fez outros Reys feus amigo-s,tor-

nou

Fernão Mende* Tinto. iój

óu fobre o Chim dahy a oito annos, firma na mefma chronica, he diftan-

fe affúma que lhe tomou trinta 8c ous lugares notaueis, dos quais foy ú a grande cidade de Ponquilor. E ?médo o Chim q não íc lhe pudeíTe efender,veyo c6 elle cm cócerto de az,có alguas códiçoés em q o Chim efiftiodo direyto fobre q era o liti- io,& lhe deu mais dous mil picos de rata para pagada gente forafteyra

trazia comíigo, & com iílo ficou o egocio pacifico & quieto por efpaço e cinquenta 8c dous annos,porq af- o diz a mefma hiftoria. Porem o Ley que então reynaua na China>re- eãdofe doutro poder & confedera- femelháte â paílada,a q elle na5 udeíTe refiftir,determinou de fechar ora muro toda a raya dambos eftes nperios. E chamando os pouosto- os a cortes,lhes deu conta defta fua eterminaçaó, a qual a todos pare- eo muyto bem,& muyto neceííaria, c para ajuda defta obra taó impor- mte,lhe derão dez mil picos de pra- j^que por noíla conta Ía6 quinze c5 os douro,a rezão de mil 8c quinhé- os cruzados cada pico, & a fora iílo i diz que lhe deraó mais duzentos c cinquenta mil homéspara traba- barem nefta obra em quãto ella du- aííe,de que os trinta mil dizem que raõ officiais examinados, & os mais ;ente deferuiço. E defpois de fe ajú. ar tudo o que era neceíTario para fta taó infignc obra, fe começou a >òr a maó nella,& diz a hiftoria que :m vinte 8c fete annos íe fechou to- lo o eftremo deftes dous impérios le pdhta a ponta, que fegundo fe afr

cia de fetenta jaós, que por noífa co- ta^ razaõ de quatro legoas 8c meya porjáo,íaó ao todotrezetas &quín- ze lcgoas,na qual obra dizem q tra- balharão contínuos fetecétos &cin- quéta mil homés,de q o pouo, como jadiíTe^eu a terça parte, 8c o Sacer- dócio 8c ilhas de Ainao, outra terça parte, 8c el Rey cos príncipes 8c fe- nhores,& Chaés,& Anchacys do go- uerno a outra terça parte. Efte muro vy eu alguas vezes,& o medy, que he por todo geralmente de féis braças dalto, 8c quarenta palmos de largo no mociço da parede,mas das quatro braças para baixo corre hum entu- lho a modo de terrapleno, ala-mbo- radodafacede fora dehú betume como argamaíTa,de mais largura q o mefmomuroquaíi duas vezes, por onde fica fendo tão forte que mil bafilifcos o poderão derrubar, & em lugar de torres ou baluartes húas goaritas de dous fobrados armadas fobre efteos de pao preto, a que elles chamão Caubeiy, q quer dizer pao ferro, de groífurade hua pipa cada hu,& muyto altos,por onde efbs goa ritas parece que ficão fendo muyto mais fortes que fe foraò de pedra 8c cal. Efte muro, ou chanfacau, como elles lhe chamão, que quer dizer re- íiftencia forte, corre todo a fio igual- mente,atè enteftar nos agros das fer- ras que no caminho fe lhe oíferecem, as quais para poderem também fct« uir de muro, vão todas chanfradas ao picão, com que efta obra fica fen- do muyto mais forte que o mefmo O j muro

^Peregrinações

(e

II

nu

muro em ly« E afsi fe ha de entender que em toda efta diftancia de terra não ha mais muro que o que toma os efpaços que ha entre ferra ôc ferra no mais,as rnefm as ferras íèruem de mu ro.E em todas eftas trezétas & quin- ze legoasnão ha mais entradas que fós cinco que os rios da Tartaria fa- zem por eftas partes, pelos quais de- cendo com impecuofa corrente, com que cortão por eíle fertão efpaço de mais de quinhentas legoas, fe vão meter no mar da China ôc da Cau- chenchina,& hum deites, porque he mais poderofo que os outros, vay fayr no rcyno Sornau (aque o vul- gar chama Sião) pela barra de Cuy, & em todas eftas cinco entradas o Rey Chim tem húa força, ôc o Tár- taro outra, em cada hua das quais o Chim tem fetemjl homés contínuos aque paga muyto grandes foldos, de que os íeis mil faó de pèv& os mil de cauallo, & a mayor parte d efta gen- te he eftrangeyra, como faò Mogo- t es,Pancrús, Champaas, Coraçones, Sc Gizares da Períia, ôc outros de ou- tras muytas terras Ôc reynos que pe- lo âmago defte fertão habitão, por- q na verdade os Chins não faó muy- to homés de guerra, porque alem de ferem pouco práticos nella, faõ fra-» cos de animo, ôc algum tanto careci- dos de armas,&de todo faltos de ar- tilharia. Em toda a diftancia defte muro ha trezentas ôc vinte capita- nias de quinhentos homés cada hua, que faõ ao todo cento &'feflenta mil homés, a fora miniftros Ôc offi- ciais de j«ftiça,& vpos da guarda dos

Anchacys,& Chaés,& outra mais gé- te neceífaria para o gouerno ôc fu- ftentaçaó defte pouo, que por todos nos affirmaraó os Chins que chega- nãoacopiade duzentos mil homés contínuos, a que el Rey paga manti- mento fométe, porque como todos, ou a mayor parte delles íaõ força- dos condenados a aquelle degredo, não he obrigado a lhes dar foldofe- não mantimento fomente, como a- diante declararey quando fallarna prifaõ do depofito deftes degrada- dos que efta na cidade do Pequim, que também he outro notauel edifí- cio ôc de admirauel grandeza,& efta- do, no qual ha continuamente pre> fos em depofito para a fabrica defte grande muro, de trezentos mjl ho' mes para cima,& todos, ou a mayoi parte de dezoito até quarenta Ôc cin- co annos, entre os quais ha muyta gente nobre,& homés muyto ricos & de grade refpeito,que por caíos gra- ues fe lhe comutou ò caftigo que me- reciaopara efte depofito; no qual a modo de cárcere perpetuo eftão eí- perando para dahy os leuarem ao íèruiço daquelle muro,donde podem ter recurfo conforme aos eftatutos da guerra que íobre iíTo faõ feitos, ôc aprouados pelos Chaés,quenífto & em tudo ornais tem os mefmos poderes dei Rey,com mageftade fu- prema de mero ôc mixto império, & no poder Ôc alçada de cada hu deftes Chaés do gouerno, que faó doze, ca* be dar fe quiíèr hum conto douro de renda , fem lhes ninguém yr â maó a ifíb.

CAP.

Fernão MendezfPintò.

lol

CA9. XCVL

I)e alguns outras coufas que vi- vos ate chegarmos a bum lugar onde cjlaua bua Cru^, e> da ra^âo porque ella alj eslaua potla.

Ornando agora a con- tinuar co que atras vi-» nha contando, de que ha muyto q me apar- téy. partidos nós deftas íuas cidades de Pacão & Nacau, ôc eguindo noíTa viagem pelo rio aci- na afsi prelos como tenho dito, che- camos a outra cidade que fe chama- ia Mindoo,pouco mayor que cada ula deftoutraSj na qual para a parte lo ferrão efpaço de meya legoaefta- ia hum muyto grande lago de agoa aigada,em que auia muyto grande bma de marinhas, o qual nos affir- naraó os Chins que enchia & vaza- ia da própria maneyra que o faz o nar, eílando pela terra dentro mais le duzentas legoas,& que rendia to- los os annos para o Rey da China o do terço Cjue defte fàl lhe pagauão^ :em mil taeis: ôc que a fora eftes lhe endia mais efta cidade outros mil aeis dos teares da feda, da cânfora, lo açúcar, da porcelana, do verme- hao,& do azougue,das quais coufas íosdifíerão que auia aquy grandik ima quantidade. Adiante defta ci- lade obra de duas legoaseftauão do- iecaías muyto compridas a modo le terecenas,em q trabalhauamuyta :opia de gente em fundir ôc apurar

paftas de cobre, onde o tumulto 6c o eftrondo que os martellos fazíão era tamanho,que fe ahy ha coufa na ter* ra q fe pofla parecer co inferno não deue fer outra fe não efta. E para no- tarmos bem a caufa defte tão deía* cuftumado eftrondo, nos pufemos a olhar o donde procedia, ôc vimos q era de aucr em cada húa deftas cafas quarenta fornalhas,a razão de vinte por banda, com quarenta bigornas muytogrãdes,em cada húa das quais malhauão oito homés a cópaflo tão apreíTadamente, que quafi nãoda- uão lugar aos olhos para o enxerga-* rem,aísiqueemcada hua deftas ca- fas trabalhauão continuamente tre- zentos & vinte homes,que a efta ra- zão em todas as doze cafas fe vinhao â montar três mil oitocentos &qua- réta trabalhadorés,a fora outra muy* ta gente que trabálhaua noutro fer- uiço. E preguntando nos que forria era de cobre a que fe lauraua aly ca- da anno,nos rei ponderão que de cé- to ôc dez ate cento Sc vinte mil pR co^de que el Rey tinha as duas par* tes,por ferem as minas fuás, Ôc que av ferra donde fe tiraua fe chamaua Co- retumbagâ,que quer dizer^rio de co- bre,porque deípois que fe defeubrira até então,que auia mais de duzentos annos,nunca fe pudera eígotar* mas antes fe defeubria cada vez mais,» Adiate deftas terecenas obra, de hua legoa junto co rio,nu terreyro muy- to grande fechado com três ordés de grades de ferro, vimos trinta calas poftas em cinco ordés, féis em cada; ordcm,as quais também erão rrsuy- O 4 to currvf

Terigrlndçoes

compridas 8c mu y to bem acaba- toque tirana delia, Neftas trinta ca-

!

* ti

i

das., com grandes torres de finos de metal ôc de ferro coado, &muytos lauofes de obra de talha, Ôc com co- lunas douradas, & feus trontefpicios de pedraria laurados de muytas in- uençoés. Aquy neíle terreyro íahi- mos nós em terra licença do Chi- fuu que nos leuaua, porque fe tinha prometido a efte pagode, que fecha- maua Bigay potím,que quer dizer o Deos de cento ôc dez mil deofes, Corchoo fungané ginaco ginaca, di- zem elles,q quer dizer,forte ôc gran- de íbbre todos os mais. Porque hua das cegueyras queeftesmiferaueis té, lie terem pêra íi, que de cada coufa por íy ha hum Deos particular que a fez,& lhe cóíèrua íèu fer natural,mas que efte Bigay potim os pario a todos pelos fobacos, ôc delle,como de pay, recebem o fer por húa vnião filial aq elles chamao Bijaporentefãy. E no reyno de Pegu, onde eu ja eftiue al- gúas vezes, vy outro pagode Teme-» lhante a efte a que os naturais da ter- ra nomeão por Ginocoginana, Deos de toda a grandeza, O qual edifício fizeraó antigamente os Chins quan- do fenhorearaõ a índia, que foy, íe- gundo parece pela fua conta, defdo anno do Senhor de mil ôc treze até o de mil &fetenta&dous, pela qual conca íeye que alndiaefteue debai- xo do império do Chim cinquenta ôc nouc annos fomente, porq o Rey fucceífor do que a conquiftoú,que íe çhamaua Oxiuagao, alargou por fua vontade, por entéder quanto fangue dos feus lhe cuftaua o pouco prouej-

fas que atras digo, eftaua hua muy to grande quantidade de ídolos de pao dourados, & outra tanta de outros de eftanho,cobre,lataò, ferro coada, ôc de porcelana, a qual quãtidade de Ídolos era tamanha,que naõ me atre uo a porlhe numero. Naõ teríamos daquy andado féis ou lete legoas a- diante5quando vimos hua grande ci- dade,cos edifícios & muros todos por terra,a qual,ao parecer,teria mais de hua legoa em roda. E preguntando aos Chins pela caufa daquella ruy- na,nos differaó que aqueila cidade fe chamara antigaméte Cohilouzaa, que quer dizer,frol do campo, a qual em feu tempo fora muyto profpera, & que aueria cento ôc quarenta ôc dous annos que aly viera ter ho- mem eftrangeyroem companhia de hus mercadores do porto de Tana- çarim do reyno de Sião,o qual,fegú- do eftaua eferi roem hum liuro por nomeToxefalem quefallaua nelle, parecia fer homem fanto, inda que naquelle tempo pelas obras que fa- zia lhe chamauão os bonzos feiticey- ro,porque em menos de dum mez re fufeitara cinco mortos, ôc fizera ou- tras muytas marauilhas, de que to- dos receberão grandiísimo eípanto, Ôc tendo por vezes os facerdotes ai- gúas difputas com elle, os confundio & enuergonhou a todos de maney* ra,que por naô fe verem elle nou- tras altercações, amutinaraõ o pouo todo,& lhe meterão em cabeça que feo naõ mataíTem os auia Deos de caftigar com fogo do Çeo,'pelo qual

incita-

Fernão Mende^Pinto.

ío9

inchado opouopelo dito dei les fe neraó todos a cafa de hum tecelão 3obrc,pornome Ioane onde.eite ho» mem poufiiua,& matando o tecellão & dous genros feus, & hum filho, loroueo quiferaó defenderão fanco íomcm fe veyo chorando a elles, & reprendendoos de fuás vnioés çaufa- hs dofeumao viuer, ancre alguas :oufasque então lhes diííe,huafoy iffirmarihes que o Deos em cuja fe anião de fàluar íe chamaua leíu Chriftojoqual viera do Ceo aterra a fe fazer homem, ôc fora neceífario morrer pelos homés,& que co preço do feu langue derramado na Cruz pelos peccadores.fc ouuera Deos por cão íatisfeito em fua juftiça, que en- rre^andolhc o poder dos Ceos &da terra,lhe prometera que a todos os q profeíTaíTem íualey com & obras, ie lhe não negaria o premio que por iíTo era prometido, ôc que todos os deoíes aque os bonzos íeruiáo ôc a- dorauão com facrifícios de fangue, erao faífos,& figuras em que o demó- nio fe metia para os enganar: o que Diluindo es facerdotes fe acenderão tanto em colera,que bradado ao po- no lhe diíferaõ.que maldito foíle o q naó trouxefíe lenha Ôc fogo para o queimar, o que logo foy feito com muyta prefteza, ôc começandofe o fo^oaatear com grandiísima fúria, elle lhe fez o final da Cruz,& lhe dif- fera huas palauras q lhes a elles não lcmbrauáo, mas quetambé eítauão eícritas, com que o fogo fe apagara loco. £ que vendo o pouo tamanha marauiihadera hua grande grita, di-

zendo todos, muyto poderofo deue íer o Deos deite homem, & digno de ferreuerenciado em toda a grande- za da terra. O queouuindo hum da- quellcs bonzos, que forão os princi- paes naquelle mutim, ôc vendo que a gente íe começaua ja a retirar peio que tinha viíto,tirou comhúa pedra ao fanto homem, ôc diíle, quem não fizer o cjue eu faço, â íerpe da noyte o trague no fogo, a cujas palauras to- dos os outros bonzos hzeráo o mc£ mo^emaneyra que logo aiy o ma- tarão as pedradas, ôc lançandoo no rio,a corrente da agoa fe deteue táto, que em eípaçode cinco dias quoo íanto corpo efleueno rio nunca elle correo para baixOjCom a qual mara- uilha feguiraô então muytos a íey daquelle homem, de que ainda auia por aquella terra hua grande quanti- dade. Em quanto eítes Chins nos fo- rão contando ifto,dobramos nos hua ponta da terra,& vimos hum terrey- ro pequeno cercado de amores ao redor,emmeyo do qual eftaua hua Cruz de pedra muyto grãde,& muy to bem feita,com cuja vifta certifico em verdade que faltão palauras para dizer o que Deos noíío Senhor aly nos deu a fentir : ôc pedindo nos to- dos de joelhos ao Chifuu que nos deixaíTe yr a terra a ver aquillo que aquelles homés nos dezião, o perro Gentio fe efcufoti dizendo,que tinha- mos longe o lugar onde auiamos de yr dormir, de que ficamos aíTaz def« confolados, mas como Deos noíío Senhor por fua mifericordia nos quiz fazer eíía mercê quafi milagro-

famente

*Perigrinàçoh

1 1

famente,orctenou que tendo ja cami- nhado mais de hua leçioa adiante, o qual fazia a força de remo,& com aí- íaz, de trabalho, deílem naquella ho- ra alua niolhcrque leuaua prenhe tamanhas dores de parir,que lhe foy forcado tornar daly a arribar ao lu- gar que abaixo tínhamos deixado, q era húa aldeã de trinta ou quarenta caías por nome Xifangau,junto don- de eílau a a Cruz,& defembarcando aly em terra^omou hua cafa em que posa molher onde a cabo de noue dias lhe morreo do parto. Nós en- tre tanto nos fomos todos ao lugar onde a Cruz eftaua , & proftrados por terra com muytas lagrimas, lhe fizemos nofío dcuido acatamento, de que os moradores da aldeã fica- rão muyto eípantados, & correndo todos ao lugar onde nos eftauamos, fe puferaó também de joelhos, & le- uantando as mãos beijarão também a Cruz muytas vezes, dizendo com YozèntoadajChriílo íeíujefu Chri- ílo,Maria micau vidau, late impone moudel, que em noíía lingoagem quer dizer,Chrifto lefu,lefu Chrifto, jMaria íempre Virgem o concebeo, 6c Virgem o pario,& Virgem ficou,a que nos refpondemos chorando,que aísiera verdadeyramente. E pregu- tandonos fe éramos Chriftaós, lhe diíTemosque ly, o que elles folgarão muyto de ouuir,&nosleuaraóaiuas caias,& nos agaíalharão com muyto amor, os quais todos eraó Chriftaós da progénie do tecellão, em cuja ca- fa o fanto homem poufaua.- Nos lhe preguntames então pela certeza da-

quillo que os Chins nos tinhâo dito, & elles nos relatarão todo o proceíí® defte negocio como paíTara, & nos moftrarão diííb hum liuro impreíTo em que trataua de muyto grandes marauilhas que o fenhor por aquelíe fanto home aly tinha obrado, o qual dezia que fe chamaua Mateus Efcan- dei, & que fora Ermitão no monte Sinay, & dezia que fora Vngarode nação,de hum lugar que fe chama Buda. E contaíe no mefmo liuro que noue dias defpois de fer enterrado o íànto homem, que foy naquelle meímo lugar onde elle então jazia, tremera aquella cidade de Cohilou- zaa onde elle fora morto, hua vez taó rijamente, que a gente do pouo co grande temor que recebera, fugi- ra toda para o campo,& fe agafalha- ra em tendas, fem aúer ninguém que oufaíTe de entrar nas calas. À ifto acu dirão logo os bonzos para apazigua- rem a vnião do pouo, porque todo junto a hua voz dezia com grandes brados, o Tangue do fanto homem eftrangeyro ha de pedir vingança da morte que os noííos bonzos lhe de- rão porque fallaua verdade- E repré- dendo elles o pouo por ifto que de- zia,lhe diíTeraó. que naó diíTeííema- quillo que era grande peccado, nem oúueiTem medo, porque elles lhes prometiaó de pediré todos ao Quiay Tiguarem deos da noite, que man- daíTe a terra que não fizefle mais do que tinha feito, porque lhe não da- riaõ efmollas. E com ifto íe forão to- dos os íacerdotes íbmente em pro- ciííaõ â caía defte ídolo que era o

princi-

■:!;:

Fernão Aíende^ Tinto. 1 1 o

principaljfem ãuer pefToa nenhúa do fe chamaua íunquinilau, muyto rica

pouo que quifeíTc yr com elles,por auerem medo de entrar na cidade,& dizem que citando a noite logo íè- guinte após efte tremor, todos eftes miniftros do demónio fazendo feus facrificios com fumos cheírofos, ôc outras cerimonias cuftumadas entre elles,permitio noíTo Senhor por jufto caftigo de fuadiuinajuftiça, que len- do quafí âs onze horas da noite, tor- nou a terra outra vez a tremer com tamanho impeto,que templos, caías, muros,& todos os mais edifícios quã tos auia na cidade vieraó ao chaõ,on de foraó mortos todos os bozós fem hu ficar viuo,q fegundo o liúro af- flrma,paíraráo de quatro mil,& arre- bentando a terra erri borbolhoés de agoa,fe fouerçeo toda a cidade, & fi- cou em hum grande lago de mais de cem braças de fundo. E nos conta- rão mais outras muytas particulari- dades muyto eftranhas que a todos nos caufaraó grãdifsima admiração,

& abaftada de todas as coufas, & de muyta& muyto nobre gente òqc^- uallo & de pé,onde auiagrandifsima multidão de embarcações, afsi de re- mo,como juncos muyto grandes. Ne fta nos detiuemos cinco dias, porque nella quizo noíTo Chifuu celebrar as exéquias da morte de íua molher, pela alma da qual nos deu aly a to- dos de comer & de veílir, & nos li- bertou do caftigo do remo, Ôc nos deu liberdade para fayrmos em ter- ra quando quifeíTemos, fem colares nem algemas,que para nós foy muy- to grande aliuio. È partidos daquy, feguimos noflá viagem pelo rio aci- ma/vendo fempre de hua banda Ôc da outra muytas & muyto nobres ci- dades ôc vilias, & outras pouoaçoes muyto grandes, cercadas de muros muyto fortes Ôc largoSj com feus ca- ítelíos roqueyros ao longo da agoa,a fora muytas torres ôc cafas ricas de fuás gentílicas íèitas,com campanay-

ôc de entaó para ca fe chamou Fiun- *os de finos ôc curucheos cozidos em ganorfee, que quer dizer caftigo do vA"ro,& pelos cãpos auia tanta quan-

Ceo,chamandofe antes Cohilouzaa, que comojadiíTe, quer dizer frol do campo.

QAT. X(JU.

T)o que vimos dejpois quefaymos

de bua cidade queje de^ja

funquimlau.

Artidos nos deita cidade ruy- nadade Fiunganorfee, chega- mos a húa cidade grande, que

p

tidade de gado vacum, que em ai- gúas partes occupauão diftancia de leis fete legoas da cerra,& no rio auia tamanho numero de embarcações, que em alguas partes onde auia ajú- tamento de feiras,íenão podia alcan- çar com a viíla,a fora outros muy tos magotes mais pequenos de trezétas, quinhentaSjfeifcentas, ôc de mil vel- las que a cada paíTo encontrauamos afsi de hua parte como da outra,nas quais vende toda a diuerfidade de coufas a que fe pode por nome, E

rnuytos

Peregrinações

!

muy tos Chins nos affirmarâo que ncfte império da China tanta era a gente que viuia pelos rios, como a q habitaua nas cidades, & nas villas, & que fe não fofíe a^ grande ordem ôc gouerno que íè tem no prouer dagé- te mecanica,& no trato & offkios que os cóílrangem a bufcarem vida, quefemduuida fe comeria hua com a outra,porq ue cada forte de trato ôc de mercancia de que os homés viué íè reparte em três & quatro formas, deita maneyra. No trato dasadés, hus trataõ em botar os ouos de cho- co^ criarem adinhos para vendere, outros em criarem adés grandes para matar & vender chacinadas, outros trataó na penna fomente, & nas ca- bedellas & nas tripas,& outros nos o- uos fomente, & o que trata em hua deftas coufas, não ha de tratar na ou- tra ío pena de trinta açoutes em que não ha appellação nem aggrauo, valia, nem aderência que lhe pofla valer. Nos porcos, hús tratao em os venderem viuos por juto, outros em - os matarem, & os venderem aos ar- ratés,outros em os chacinarem, & os venderem de fumo, outros em ven- derem leitões pequenos, outros nos miúdos das tripas,& banhas,peis,ían- gue,&freíluras. No peixe o que ve- de o frefco não ha de vender o falga- do,&oque vende o falgado não ha devenderofeco, & todas as outras coufas,afsi de carnes, caças, & peíca- dos, como de fruitas, & ortaliças fe gouernâo a eík modo. E nenhum dos que tem qualquer trato deites íè pode mudar para outro íem licença

dacamara,& pòrcãufàs juftas & liei- tas,fo pena de trinca açoutes* Ha ca- bem outros que viuem de venderem pefcado viuo que tem em grandes tanques & charcos de agoa,dos quais carregao muytas embarcações de re- mo, onde em payoes muyto eftan- ques o leuáo em viueyro para diuer- fas terras daly muyto longe. Ha tam- bém ao longo defte grade rio da Ba- tam pina por onde rizemos efte noC- íb caminho da cidade do Nanquim para a do Pequim, que he diftancia de cento & oitenta legoas,tanto nu* mero de engenhos daçucar, &laga^ res de vinhos & de azeites, feitos de muytas & muyto diuerfas maneyras de legumes & fruitas,que ha ruas de- ftas cafas ao longo do rio de hua par- te ôc da outra de duas & três legoas em comprido, coufa certo de gran- diísima admiração. Em outras par- tes ha muytos almazés de infinidade de mantimentos, ôc outras tantas ca- fas como terecenas muyto compri- das,em quechacinao, falgão, empe- íaó,& defumao todas as fortes de ca- ças ôc carnes quantas íè criaõ na ter- ra,em que ha rumas muyto altas de lacoésjmarrãsjtoucinhos^dés, patos, grouSjbatardas^ma?, veados, vacas, bufaros, antas, badas, caualos, tigres, ca^rapofos, ôc toda a mais forte de animaes que a terra cria, de que to- dos eftauamos taõ pafmados, quan- to requeria hua tão noua, tão efpan- toíãj&quaíiincreiuel maramlha, ôc muytas vezes deziamos que não era pofsiuelauer gente no mundo que pudefle acabar de gaitar aquillo em

coda

ermo

toda a vida. Vimos també neíte rio grande loma de embarcações como f tiftas^a que chamão panouras,fecha- dasdepopa ôc de proa com redes de canas como capoeyras,de três & qua tro (obrados, de dons palmos dalto cada iobrado,cheas de adés, que ho- méstrazião a vender, os quais vão pelo rio acima a remo Ôc a vella, ou como querem, vendendo eftas adés que trazem por mercadana.E qiiãri- do vem que he tempo de lhe darerri de comer,íe chegão a terra,& onde o campo he mais brejofo, & aíguas alagoas dagoa, põem pranchas em terra, & abre as portas daquelles fo- brados,& dando quatro pancadas nu tambor, todas eftas aues.qué faõde íeis fete mil para cima, com húa gra- de grita íe faem fora da embarcação^ & todas de corrida íe vão meter nd charco da agoa que eftà no campo. É paífado o eipaço em q ao dono lhe parece queellas podem ter comido, torna a tanger o tambor, ao fom do qual, todas com a meíma grita fe tor- não a recolher â embarcação donde rayraó,& cada hua vay demandar o feu fobrado fem faltar húa fó, &par- :ido daly íe vay leu caminho, E quã- fovèquehe tempo para porem, fe :orna â chegar á terra, & onde o :ampo enxuto, Sc de boa relua,abre is portas dos fobrados em q as traz, §c torna a tanger no tâmbor,<3c em o Duuindo fe faem todas à terra para jorem. E paííada hua hora detépo )u aquelle elpaço em que lhe a elle 5 u ece pouco mais ou menos que el« as podem ter poílojtorna a tocar nd

Fernão ^Kdènde^P

encle^rmtô* iíi

tambor, ôc ellas fe tornâologó todas muytodèpreíTa a recolher à embar~ cação,fem,como dígo,flcar hua íó nd campo,&como íaó recolhidas détro na embarcação, o dono com outros dous ou três que traz comíigo fe vão* a terra com alcofas nas mãos, Ôc che- gando à relua onde as adés pnfera5,c] eítá toda branquejando cos ouos, os recolhem nas alcofas, & fe tornaõ à embarcar, &não ha dia em que naò enchaó dez Ôt doze alcofas, & corri ifto torrtaó a íeguir feu caminho, vé- dendoeítafuamercadaria. E quan- doja vem a ter poucas adés,& fe que- rem reformar de outras, as vão com- prar a outra gente que também vi- Ue de as criar & vender por junto á éíles regátoeSique as não pode criai como eftoutros, porque como jadif- fe,hinguem trata em mais q naquil- lo quelhefoy concedido por licen- ça da camará. E eftés que viuem criar eftas adés tem junto das caías em q morão hus charcos dâgoá erri cjue trazem dez doze mil adinhos húsmayores ôc outros mais peque- nos: ôc para tirarem ós ouos tem erri nuas cafas como terecenas rriuyto pridas vinte crintá fornalhas chevas de eíkrcQ,& nelle foterrão duzentos, trezentos ôc quinhentos ouos juntos, Ôc tapado as bocas das fornalhas pa- raqúe o eftercd efteja quente, os dei- xão afsi eftar ate o tempo que lhes parece que podem ja fer para (ayré, ôc metendo então em cada húa de- itas fornalhas hum capão meyd de- pennado,& ferido riospeitos,Íne tor- não a cerrar a porta, ôc daly á dous

Wedgmãçom de

dias os tem o capão todos tirados fo- pofta pelos Conchalys do gouerno,1

ra,& então os põem debaixo de hús couãosque ja para iflb tem feitos íèus farellos molhados dentro,& af- Çi andáo dez ou doze dias foltos até ¥jue elles por ly fe vão meter nas ala- goasem quefe acabão de criar, & fe fazem grandes para os poderé ven- cer a eíles regatoés que digo, que de veniaga os leuão para diuerfas terras, os quais,como ja difle,os não podem criar como eftoutros q lhos vendem, íb pena de ferem por iflb açoutados, porque no que hústrataonão hão de tratar outros que tratem noutra cou- ia. E tanto he ifto afsi, que nas ruas, & praças ou lugares onde fe vendem eftas coufas de comer,fe ao que ven- de ouos de adem lhe acharem ouos de galinha de que/e prefuma que os tem para vender,logo aly onde o to- mão com a falíidade lhe dão trinta açoutes nas nádegas, íem fer ouuido por nenhum cafo,&fe osquifer ter, para não cayr na pena, haos de ter meyos quebrados por cima,porq pa- reça q os tem para íeu comer, & ifto que he de hús he também dos outros nem mais nem menos.E os que ven- dem peixe viuo,tambem o hão de ter em grandes tinas dagoa, preíbcom hum junco pelos narizes por onde o tome o comprador que o quifer ver de que tamanho he,porque o nãoa- polegue, nem çuge, nem enxoualhe, & fe o tal peixe morre,o haó logo de fazerem poftas,& íalgalo para o ven- derem pelo preço do falgado,que he menos algúa coufa. Afsi q ninguém fae do limite & da ordem que lhe he

que faó como almotaceis, fo pena de ferem logo por iflb grauemente pu- nidosjporqheneftaterrao Rey tão venerado,& ajuftiça tão temida, que não ha peflba nenhúa por grande q fejaque ouíeaboquejar,ncmleuan- tar os olhos para nenhum miniftro dejuftiça,inda que feja vpo daçou- te, q faó como algozes ou beleguins entrenós,

CAT. XQVlll

De outras muytas diuerfidades de

coufas que vimos-><& da ordem que

fe tem nas cidades mouediças

quefe fa^em no* nos em

embarcações,

Imos também ao lon^ go deite grade rio por onde hiamos, grande multidão de porcos, & fíndeyros brauos & ma fos,que homésacauallo guardauão. E noutra parte muytos bandos de veados maníbs q homés de pe guar* dauão,& os trazião a pacer, os quais veados todos erão mancos da mão direyta para não. poderem fugir, a qualmanqueyra lhe fazem em pe- quenos por correrem menos perigo. Vimos também muytos currais em que criauão grande foma de gozos para venderem aos merchantes,por- que toda a forte de carnes fe come nefta terra, & pelos talhos & preços fe fabe de que íorte he. Vimos mais muytas barcaças cheyas de leitoés,&

outras

Fernão MendeçTinto.

H2

ítràs cheyas de câgados,rãs,lontras, .bras,enguias, caracoes, & lagartos, n-que tudo, como digo, fe compra ra íe comer. E porque as coufas (ta q ualidade fa6 de menos preço, permite aos que tratão nellas tra- rem em muytas fortes delias, porq :udo fe tem refpeito; com tudo fe zem certas franquezas mais^ nuas ufas que em outras,porque não fal- quem venda tudo, Ejaque aoc- fíaódoque vou tratando meda :ença para falar de tudo,direy o q ais vimos,& de que nos não efpan- mos pouco, por vermos de quão lixas dl quão immundas coufas ian- . mão a cubica dos homés para feu ■oueitòj&iftohequç vimos outra rnyta gente que trata em Comprar véder o efterco dos homés, o qual itreellesnãohetão ma veniaga, q ío aja muytos mercadores delia my to hõrados & ricos, & efte efter- > ferue para eftercar as fementeyras n terras alquéuadas de nouo, porq :haòque he milhorqueo de que )mummente fe vfa. E os que com- raõiftoandão pelas ruas tangendo -n hfias tàboinhas como quem pc- e para Saõ Lazaro, & afsi declaraõ que querem comprar,'porque nao eixão de entender quão cujo he o :u nome proprio,& quão mao para : apregoar pelas ruas. E he tão boa [la veniaga entre elles, que às vezes :vé num porto de mar entrarem ua maré duzentas & trezentas vel- is a carregar delia, como nefta nof- i terra entrão vrcas a carregar de al,& amdtólhçdà muytas vezes

por repartição de almotaçaría, con- forme á falta que ha delia na terra, & por fer efte efterco taó exccllcnce para as fementeyras, efta terra da China três nouidades cada anno. Vi- mos também muytas embarcações carregadas de cafcas de laranjas fe- cas,queferuem para nas tauernas fe cozerem a carne do caó, para lhe tirar o mao chey roque de fytem,& fecarlhe a humidade, & fazelamais tefa. Vimos também (como jadiíTe) por efte rio acima muytos vancoés, lanteaas, & barcaças carregadas de quãtos mantimentos a terra & o mar p^dem produzir, &ifto em tanta a- bundancia, que realmente affirmo q nao fey como nern que palauras o pofta contar, porque não fe ha de imaginar que ha deitas couías a qua- tidadequeha neftas terras quepot ca fe íabem, fenãotle cada coufa de- itas por fy ha duzentas trezentas cm- barcaç5es,principalmente nos chan- deus & feyrasque íe fazem nos dias dosfeus pagodesjem q tudo he fran. co pelo grande concurfo de gente q nellas fe ajunta, & as cafas deftes pa- godes todas ou a mayor parte delias eftaó íítuadas aborda do rioparaque o carreto das coufas fique menos tra- balhofo,& ellas! fiquem mais nobres & mais abaftadas. E quãdo eftas em- barcações fe ajuntão neftas feyras, fe ordena delias hua cidade muyto grã* de & muyto nobre, que ao longo da terra toma comprimento demais de húalegoa,&quaííde hum terço de largo, em que ha mais de vinte mil embarcações, a fora balões, & gue* """ " dees?

^eregrmaçoes de

áee$,& mãnchuis que não tem con- to,por íerem embarcações muyto pe quenas, & em que agente ncgocca. Nefta cidade,por ordem do Aitao da Bitampina, que como ja diíTe,heo íupremo Preíidente fobre todos os trinta & dous almirantes dos trinta & dous reynos defta monarchia, ha íèfíenta capitães, trinta do gouerno da republica defta cidade,& que tem cargo de a porem por fua ordem, ôc ©unirem as partes de fua juftiça, ôc outros trinta pàjfa guarda dos merca- dores que vem de fora, porque na- Uegiiemfeguramente,&iem receyo de ladroes, & fobre eftes todos hâiu Çhaem,que na jurifdiçaó do ciuil Ôc crime tem mero& miftico império, fem apellação nem agrauo. E nos quinze dias que eftas feyras duraó,q fce da lua noua atè a cheya, he mais para ver a policia o concerto,& a no brcza defta cidade, que eftá fabrica- dano rio emembarcaçoés,que cjuan tos edifícios ha na terra,porque nella íe vem duas mil ruas muyto compri das & muyto direytas, fechadas to- das com embarcações de hua parte *k da outra, & as mais delias com tol- dos de feda, & muy tos eftendartes £uioés,& bandeyras,& varandas pin- tadas de diuerías pinturas, encima das quais fe vendem todas as couíàs quantas fe podem deíejar,noutras ha todos os ofíiciais mecânicos dequa- tosofficios ha nas republicas, ôc pelo meyo corre agente quenegocea em húasmanchuas pequenas,muyto pa* £iflcamente fcm eftrondonem rebu* ^^huiru &fe» «fofc acha la-

drão que furtaíTe algíía coufa, log na mefma hora he caftigado confoi me ao delito que cometeo. Tanto he noite fe fechaó todas eftas ruas c cordas que fe atraueíTaõ de húas ; outras, paraque ninguém patTede pois do íino ler corrido.Em cada ru d eftas ha dez doze lanternas acef; poftas encima dos maftos,paraque ] veja quem paíTa de noite, quem para onde vay, & o que bufca, para pela menham fe de razão de tudo a Chaem,& efta quantidade de lum nanas, vifta afsi juntamente de no te, he a mais fermoíã coufa ôc ma para ver que quantas fe podem imc ginar, Em'cada rua deftas hahur fino de vigia, ôc quando fe toca o d embarcação do Chaem, refponder os outros todos a ellecomtamanh eftrondo de vozes que nos fícamc pafmados de ouuir hua coufa quic nunca imaginada dos homes, ôc d tanto concerto>&taó bom regimer to. Em cada hua deftas ruas, até na mais pobres, ha cafas de oração, fa bricadas fobre grandes barcaças, co mo gales, ôc muyto limpas ôc bcn concertadas com toldos cozidos en ouro, que ferué de capellaondeeft o idolojcom feus facerdotes que mi niftraó os íàcrifkios que a gente d< pouo offerece,de que todos tem afia larga comedia das oftèrtas ôc efmol las que lhes dão continuamente, /. cada homem honrado,ou mercadoí principal deftas ruas nobres lhe ca< por diftribuiçaõ hua noite de vigi: com certos homés de fua quadril ha ff fora os trinta capitães do gouernc

que

Fernão Mend&fPinio. 1 1 j

roldão por fora cm balões muyto do parayfo o vir com muytos cria-

emefquipados,'porq nãoefcapela- raó em nenhua parte, os quais fem- re andao bradado paraq íèjaò ouui- !òs. Antrealguas coufas notaueis que quy vimos foy húa rua de mais de em embarcações carregadas de ido- ds de pao dourados de muy tas fortes I íe vendião para fe orTerecerem nos >agodcs,&a fora ifto,peis, & pernas, c braços,& cabeças, q homés doen- es cóprauáo para orTereceré por lua ieuaçaó, Hatábem outras embarca- oés toldadas de feda, em q fe fazem nuytas farças,& muytos jogos de di lerias maneyras,a q muy ta gente do >ouo concorre para feu paflàtempo, ia outras em q fe vendem letras de ambio para fe paliar dinheyro da erra para o Ceo,de q eftes íacerdotes le Satanás lhes prometem muytos ;anhos & intereíTes, & lhes affirmão j fem eftes câmbios fe naõ podem aluar por nenhua via, vifto fer Deos nortal inimigo dos que não dão ef- nola aos pagodes, & difto lhe dizem antas mentiras,& lhes pregão tantas )atranhas, que os coitados deixaó nuytas vezes de comer por lho da- em. tia outras embarcações carre- gadas de caueyras de defuntos em muyta quantidade,que homés com- praõ paraq quãdo algum morre lhas leuem por offerta diante da tumba, porq dizem q afsi comp aquelle de- Funto vay à coua acompanhado da- quellas caueyras, afsi a fua alma ha de entrar no Ceo acompanhada das efmollas daquelles cujas foraó aquel- las caueyras,porc] quando o porteyrô

dos,lhe fará honra como a homem q nefta vida foy fenhor de todos a- queiles, porq fe for pobre & não for acópanhado,não lhe abrirão, & quã- to mais caueyras leua,tanto fe jul- ga por mais bemauenturado. Ha tã- bem outras embarcações em q os ho mes trazem grande foma de gayolas pafíarinhos viuos, & tangendo inftrumentos rnuíicos dizem em voz alta a gente q os ouue, q libertem a- quelies catiuos que faò criaturas de Deos, aq muyta gente acode a lhes dar efmcla q refgata daquelles ca- tiuos os q cada hum quer,& os lança logoaauoar, & toda a gente dando húa grande grita lhes diz, pichaupi- tanel cataó vacaxi,que quer dizer,di- ze a Deos como o feruimos. Ha outros homés que noutras embarca- ções trazem grandes panellas cheyas de agoa,em q trazem muytos peixi-j nhos viuos q tomãonos rios nuas re- des de malhas muyto miúdas, & tá-» bem pela mefma maneyra vem bra- dando que libertem aqnelles catiuos por feruico de Deos,que faó innocen tés que nunca peccaraó, a que tãbem agente dando fuaefmolla^ompraõ daquelles pexinhos os que querem^ & os tornaólogo a lançar no rio, di- zendo, vayte embora, & dize de mym efte bem que te fiz por feruiço de Deos. E eftas embarcações em cj eftas coufas fe trazem a vender não fe haó de contar por menos foma cj de cento & duzentas para cima,& ou- tras muytas de*outras coufas em muy to mor quantidade.

P CAP.

CAT. XCIX.

Das mais coufas que vimos nesla cidade ? &• de outras alguas que ha na (Joina em ou- tras fartes.

Imos também húas barcaças *em que vem jf homés & molheres ta- gendo em vários ef- trométos para ciarem muíicas a quem os quifer ouuir,& por iíTo vem a fer muyto ricos. Ha também outros homés que trazem as embarcações carregadas de cor« nos que os Sacerdotes vendem para íe darem banquetes no Geo, os quais dizem que foraó de animaes que offereceraó em facrificios aos idolos por deuaçoés & votos que homés fi- zeraò por infortúnios em que fe a- charão, ou por enfermidades que ti- ueraõ,porque dizem que afsi como a carne daquelles animaes fedeu ca a os pobres da terra pelo amor de Deos,afsi também aalmadaquelle por quem fe ofFerece aquelle corno, come no outro mudo a alma daquel- le mefmo animal cujo foy aquelle corno, & conuida outras almas fuás amigas, como na terra os homens cuítumao fazer hús aos outros. Vi- mos també muy tas embarcações tol- dadas de dó,có fuás tubas, & tochas, &cirios)(3c molheres q chorão pordí nheyro,para enterraré a géte q mor* tc quaó honradamente cada hu quí- zer yr acompanhado ou chorado* Ha outros que fe chamaó pitaleus,

*Pengrwaçoes de

qtrazé em barcaças muyto grandes muytas inuençoés de animaes brauo rnuy topara ver& temer,em q entra« cobras,ferpentes,lagarcos muyto gr des, tigres, bichos, & outros muyto de diuerías maneyras, q também c< tangeres & bailos moftrao por di nheyro. Ha outros q trazem grandi foma de liuros que contaó hiftoria & daõ relação de tudo o que fe que: faber,afsi da criação do mundo, en q dizem infinitas memíras,comoda terras,reynos,ilhas,& prouincias qu< ha no mundôjôc dasleys «3c curtume de cada húadellas, pnncipalment( dos Reys d* China quantos foraó,& o que fizeraõ, & os que fundarão a terras,& as cidades, & as coufas qu< acontecerão em cada hum dos tem pos.Efles fazem támbem pericoés & cartas, & daó coníelhoscomo procu radores,& outras coufas a efte mode com q támbem ganhão muyto berr. fua vida. Ha outros que pelo mefmc modo nuas embarcações muyto li geiras,&có homés armados apregoa do em altas vozes, q qué fe quifer fa- tisfazer de qué o afrótou ou injuriou q venha aly fallar elles, & fera lo* go reftituydo em fua honra.Ha tam- bém outras embarcaçoens em que vem grande foma de molheres ve- lhas que feruem de parteyras, & daó mezinhas para botarem as crian- ças, Sc fazerem parir ou naó parir. Ha outras embarcações em que vem grande foma de amas para cria- rem enjeitados, & outras crianças, pelo tempo que cada hum quifer. Vimos também outras embarcações

muyto

Femao Mende^Pintò. t*4

touyto bem concertadas era que vc tes a principal, porque" eíta Monar-

lomes honrados & de muyta autori Jade com fuás molheres de afpeito nane ôc honrofo,q feruem de corre- ores de cafamencos, & confolar mo- heres anojadas por mortes de mari- Jos & filhos, & outras coufas d eíta naneyra. Ha cambem outras embaí :açoés em que vem grande íoma de niftaleyras, de que muytas não faó nal aflombradas. Ha também ou-^ :ras embarcações em que vem gran- de foma de moços & de moças para fe darem â íoldada a quem as ouuer .iiy{ter,com fuás fianças íeguras. Ha ambem outros homés- mais graues i que chamão mongilotos,que com- jráo demandas de couías ciuis & cri- mes, ôc compaaó cambem eicrituras k poíTes antigas, ôi conhecimentos k coufas íonegadas por aquillo em que íe concercáo as parces.Ha ou- ros q vem noutras embarcações que :uraõ de boubas com darem íuadou- os,& curaó também chagas & fiftu- as incuraueis. E em fim por não me Jeter mais em parcicularizar codas is coufas que aquy fe achão nefta ci- lade,porque íèrânaò poder dar fim lefta hiftoria, direy fornece que não lahy coufa de quantas na cerra íe pofíaõ pedir nem defejar, queneftas fmbarcaçoês fe nao achem por efte :empo, em muyto mayor quantida- de do que tenho dico. E das mais ci- dades ôc villas, & lugares que peía cerra eftão Acuados não quero aquy dizer nada, porque pelo deftenofe julgara o mais, que tudo fe parece bum co outro. E hua das coufas^n-

chia da China que contem em fy trinca & dous reynos* he cão nobre* tão rica>& de tão grande trafego, ôc comercio,he porque he toda laurada de rios & efteyros de admirauel fei- çaó,muycos q a natureza fez;& muy-* tos que os Reys,os fenhores,& os po* nos ancigaméce mandarão abrir, pa- raque toda a terra fe pudeíTe naúegar & comunicar fem trabalho,dos quais os mais eftreiros tem pontes muyto altas,& compridas & largas de can- taria muyto force, feitas ao modo das noíTaSjôc algus q huá pedra os acraueílà de húa parte á outra, de oi- tenta, nouenta, & de cem palmos de comprido, ôc de quinze ôc vinte de largo,coufa certo digna de grandifsi- mo eípanto, ôc que qliaíi fe não dei- xa encender como húa tamanha pe- dra fepoíTa afsi inceyra arrancar da pedreyra,nem mouerfe delia para por no lugar onde eftauá, Todos os caminhos ôc feruintias das cidades^ villas,lugares,aldeas, Ôc caftelloSj íaa de calçadas muycó largas* feitas muycó boa pedraria, Com colunas ôc arcos nos cabos delias de muyto rico feicio,com lecreyros de lecras doura- das,em que eftão efcricfes grades Iou- uores dos que as mandarão fazer,& de húa banda ôc da oucra cem poyais de muyto cufto para deícançarem os caminhantes ôc ghé pobíe,& muy tos chafarizes ôc fontes dagoa muyto Doa,& em lugares efteriles Ôc pouco pouoados tem molheres fokeyras, cj de graça derh entrada à gente pobre que não tem dinheyro: & efte abuíoj Pi &abo*

^Peregrinações

& abominação, a que elles chamão obra de mifericordia,deixarão defú- tos em capellas para defcargo de fuás aiipas,eõ terras,rédas,& foros aplica- dos a eftes males, q ellçs tem para fy cj faó bees . Ouue tábem outros defu- tos q deixarão rendas paraq nos def- pouoados & nas charnecas aja cafas em.q fe tenhão grades luminárias de noite,paraq os q caminhão não per- cão o tino de fuasjornadas, & aja tã- bem vaíílhas agoa para elles be- berem^ cafas para deícançarem. E para não auer nifto falta, fe bufcão peíToas a q dão muyto bós ordena- dos,as quais fe obrigão a terem eftas coufasíempre muyto preparadas, da meíma maneyra q o inftituydor o deixou ordenado por fua akna.De- fías grandezas qfêacbão em cidades particulares deite império da China, fe pode bem colligir qual fera a grã- dezadelle todo junto, mas paraque ella fique inda mais clara,não deixa- rey de dizer (fe o meu teftemunho he digno de fe) que nos vinte & hu an* nos que durarão os meus infortú- nios, em que por vários accidentes de trabalhos que me foccedião, atre- ueífey muyta parte da Afia, como nefta minha peregrinação fe pode ver,emalgúas partes vy grandifsi- mas abundancias de diuerfifsimos Mantimentos que não ha nefta nof- fa Europa, mas em verdade affírmo, que mo digo eu o que ha em cada húa delias, aias nem o que ha em to- da* juntas vem a comparação co que ha-difto na Ghíná fomente. E a efte modo íaó todas as mais coufàs de q

a natureza a dotoíf, a/si nafalubrida de & temperamento dos ares, come na policia, na riqueza, no eítado, no: aparatos, ôc nas grandezas das fua couíâs, & para dar Iuit.ro a tudo ifto ha também nella hua tamanha ob feruancia- dajuftiça, & hum gouerne tão igual & tão excellente, que a to das as outras terras pode fazer jnue ja,& a terra a que faltar efta parte,to. das as outras que tiuer,por mais ale- uantadas & grandiofas que fejão, £■ cãoefeuras ôc fem luftro. E quande algúa vezme ponho a cuidar no mui to que vy difto nas partes da China, por hua parte me caufa grandifsimc efpanto, ver.com quanta liberalida- de noífo Senhor partio com efta gen- te dos beés da terra, Ôc por outra me cauíá grandiísima dor ôc fentímen- to verefuáo ingrata ella he a tama- nhas merces,pois ha entre ella tantos ôc tamanhos peccados com que con- tinuamete o oflfende, afsi os das fuás beftiais ôc diabólicas idolatrias,como também o da torpeza do peccado nefando,porque efte não fomente fe permite entre elles publicaméte,mas por doutrina dos feus facerdotes,o por virtude muyto grande. E das particularidades que ha nifto fe me perdoe não fallar aquy mais largo, porque nem o entendimento Chri- ftaó o fofre, nem a razão confente que íe gafte tempo ôc palauras cm coufãs tão torpes,tão brutas,& tio abo- minaueis,

CAP.

Fernão MendeçTinto.

CA9. £

( orno checamos a cidade do Te-

qMtnj&daprtjad em que nos

meterão? e> do que nel~

lapajfamos.

Artindo nós deita tão rara & ráo efpantoía ci- dade, nauegamos tan- to tempo pelo rio aci- ma, até queima terça fey ra noue dias de Outubro do anno de 1541. chegamos â grande cidade do Pequim, para onde, como jadif. fe, hiamos remetidos por appella- ção. E aíiiprefos comohiamos^de três em três nos meterão em húapri- íaó que fechamaua Gofanjauferca, na qual de boa entrada nos defão lo- go a cada hum trinta açoutes,de que algús dias eítiuernos bem mal tra- tados. E como o Chifuu, que era ò Alcaide a que hiamos entregues, a- prefentou na pilanga do Aytao, que lie a fua relação, o proceflb da nof- fa íêntença afsi fechada cos doze íi- netes de lacre como no Nanquim lha entregarão, os doze Conchalys dameía do crime, aquempordif* tribuição foy cometido o conheci- mento da caufa, nos mandarão lo- go à priíaó onde eítauamos,hum de- ites doze com dous efcriuaés, & feys ou fete miniftros,aque chamão vpos, o qual em chegando nos fez gran« des medos & ameaços, dizendo, eu pelo poder & autoridade que tenho do Aytao da Batampina, íupremo ■prefidence da cafa dos trinta & dous

li?

da gente eítrangeyra, em cujo peito fe encerra o fegredo do leão coroado no rrono do mundo, vas amoeíio&: mando da fua parte que me digais q gente fois, & o nome da terra em q naceítes,& fe tendes Rey que por fer- uiço de Deos, & pela obrigação do cargo q tem, fe incline aos pobres,& lhes guarde inteyramenteíuajuftiça, porq não clame as maósleuãtadas & lagrimas dos íeus olhos ao Se- nhor da fermofa pinturajde cujos ían tospeisfaõ alparcas todos os limpos qcóelle reinão.Noslherefpõdemos que éramos eftrangeyros naturais do reyno de Sião, & que vindo para o porto de Liampoo com noíTas tazé- das,nos perdêramos no mar com hua grande torraenta,de que nos faluara- mos nús& defcalços íèm coufa algua fobre noíTas carnes,& que afsi nos fô- ramos pedindo de porta em porta, até chegarmos ao lugar de Taipor, onde o Chumbim q ahy reíidia nos prendera fem caufa, & nos mandara á cidade do Nanquim, naqual pot feu dito fôramos cõdenados à açou- tes^ a nos cortarem os dedos, fem nos*ouuirem de noíía juftiça, pelocj poftos os olhos no Ceo, pedíramos com lagrimas aos vinte ôc quatro da auftera vida, q por zelo de Deos ou- ueíTem de noífo defemparo,por- q éramos pobres & valia nenhua, ao q elles logo, com zelo fanto acu- dirão com muy ta prefteza, fazendo auocar a caufa a aqúelle juizo a que éramos trazidos , pelo que lhe pe- díamos que por feruiço de Deos vifc febemnoílo defemparo, ôc quanta

P3 fem

*Pengnn

fem razão nos era feita por não ter- mos valia na terra, nem quem por nós fallafíe hua palaura. E elle def- pois de eílar hum pouco calado, rei- pondeo, não he neceíTario dizerdes mais, bafta Terdes pobres paraque if- fo corra por outra via differente da que correo até gora. Mas eu pelo of- ficio que tenho vos dou de efpaço cinco dias,conforme á ley do tercey- roiiuro, paraque façais voííos pro- curadores que requeyraó voíía ju- ftiça, & de meu confelho deueisde- fazer petição aos Tanigores do Tan- to officio, paraque elles por zelo da honra de Deos comem a íèu cargo voífos trabalhos. Então nos deu hu tael de efmolla, & nos difíe, guar- day muyto bem o voflb dos mora- dores deita prifaó, porque labey que tem mais por officio roubarem o a- lheyo que partirem do feu cos necef- íítados. E entrando daquy para ou- tra grande cafa, onde eftaua hua gra- de quantidade de prefos,lhes fez aly audiência por efpaço de mais de três horas, por fim da qual mandou fa- zer execução de pena de morte em vinte ôc fete homés,que ja dos dias a^ trás eftauão fentenceados, os quais todos morrerão a açoutes,com a qual vifta ficamos tão aíTombrados,& tão cortados de medo, que quaíi de to- do perdemos o juizo. E como ao ou- tro dia foy menham clara nos mete- rão a todos nua corrente, com cola- res aos pefcoços,& algemas nas mãos que nos derão aflaz de trabalho, E a- uédo ja íète dias que paflauamos efte grande tormento,jazendo deitados a

ãçoès de

hum canto hus fobre os outros,lamé - tando com aflaz de lagrimas nofla defauentura, & com bem grande re- ceyo de padecermos cruéis mortes, fe por algum cafo fe vieíTe a auentar o que tínhamos feito em Calepluy, quiz Deos que acertarão de vir os quatro Tanigeres da caía da miferír. cordiaque refponde a eftapriíaó,a quenafua lingoa chamao Cofilem guaxy,có cuja entrada todos os pre- los íe baquearão, dizendo com voz a modo de entoada, bendito feja efte dia em que Deos nos viíita por mãos dos feus feruos, aque elles com fem- brantegraue ôc modefto reíponde- rao,& a fua mão poderoía & diuina que fabricou a fermoíura da noite vos tenha em fy como tem aquelles que íempre chorão os males do po- uo, & chegado a onde nós eítauamos nos preguntaráo com palauras cor- tefes que homés éramos, ou porque caufa fazíamos mais fentimento por eftarmosprefosque os outros? a que refpondemos chorando, que éramos hus pobres eftrãgevros taõ defempa- rados de todos os homés, q nenhum auia naquella terra que nos foubefle o nome- ôc que o mais q lhe podía- mos dizer da nofla pobreza para lhes pedirmos que por Deos fe lembrai fem de nos, o verião naquella carta que traziamos para elles da cidade do Nanquim da mefa da irmanda- de da cafa do Quiay Hinarel, ôc dandolha entaó Chriítouão Borra- lho, elles a tomarão com hua noua cerimonia de grande corteíia, di- zendojlouuado feja o que tudo criou

pois

rêmã^MLmaê^Finto,

pois fc quer íeruir de peccadores na terra; para por ifíb lhes fazer a feria do feu pagamento no derradeyro dia de todos os dias, com lhes pagar feu jornal tanto por encheyo nas rique- zas dos feus fantos tifouros, que fe- gundo temos para nos fera em tanta multiplicação como as gotas que as nuuens do Ceo tem lançado em to- da a terra. Hum deites quatro me- teo a carta no feyo, & nos difle, que como fe aprefentaííe na meia do re- médio dos pobres nos refponderiao, & nos prouenão de todo o neceíla- rio, & com ifto fe deípidirão de nos. Três dias paliarão que não vieraó viíitar a pníàó,& ao quarto pelo me- nham tornarão a vir, Ôc fazendonos por hum rol que traziao muy tas pre- guntas, lhe reípondemos a todas cò- forme ao que cada húa dezia, das quais repoftas elles ficarão muy to ia- tisfeitos. E mandando chamar o ef- criuão q tinha a nofla appellação, íc enformarão delle muy miudaméte, ôc lhe pedirão cõíelho no modo que terião em requererem nofla juftiça, & tomando por item ascoufasque Fazião ao bem do noflb direyto, dií- feraó que lhes dcixaíTeleuar o feito, porque o queriaó ver todos juntos na mefa cos procuradores da caía,& que ao outro dia lho tornariaó à mão ara o leuar ao Chaem co- mo eftaua determi- nado.

T)o que maispajfou nefte nojo ne- gocio ate o feito yr conclufo fobrejinal.

Or não me deter em contar miudaméte tu- do o que íè fez nefte noíTo negocio atè o fei to yr conclufo fobre final, em que fe paliarão féis mefes &meyo, nos quais fempreeftiuern os prefos paflando aíTaz de trabalhos, direy breuemente o que mais focce- deo até de todo efte feito fer fenten- ciado, o qual correndo perante os doze Conchalys da mefa do crime, que fao (fallando ao noflb modo) os defembargadores& j-uizes dasappel- laçoés ôc das reuiftas com alçada fu« prema, os dous procuradores defta caía da mifericordiaque por nòs fa* zião, tomarão muyto a cargo faze- rem reuogar a iniufta íèntença que contra nòs fora dada. E fazendo an- nullar o que fobre ifto era proceíTa- do, vieraó dizendo por nofla parte nua petição que fizeraõ ao Chaem, q era o fupremo defta rolação, q por nenhum caio podíamos fer condena dos em pena dejíangue,vifto não auer teftemunhas dinas de q nos viflèm claramente em roubar o alheyo,nem fermos achados armas nenhuas co mo pela ley do primeyro liuro era de feíbjíenão nus ôc deícalços como po« bres perdidos, qverdadeyraméte éra- mos, pelo qual parecia q a nofla po- breza ôc delêparo era mais dino de hu P4

çuáolÕTeípcitb," qne daquelle rigor com que os primeyros miniftrosdo braço da ira tinhão executado em oòs a penados açoutes,& que da cul pa ou innocencia noíía Deos era -claro juiz, da parte do qual lhe re« querião hua & duas &muy tas vezes que olhaííe que era mortal, & que a íua natureza era acabar em breue tempo,que por Deos lhe era dada a vida da carne,no fim da qual auia de dar conta daquelias coufas que lhe erao dicas & requeridas,poisfe tinha obrigado por juramento íolennea fazer tudo o que o feu claro juizoen tendeíle muyto inteyramente, fem refpeitosnenhus mundanos, pertur- badores do fiel da balança, cujos pe- fosomefmo Deos tinha afilados na inteyrezada íua diuinajuftiça. Defta petição fe mandou dar vifta ao pro- metor dajúftiça, que era o que re- queria contra nòs, o qual veyo dize- do nus artigos que fez, que elle pro- uaria por teílemunhas de vilta, afsi naturais como eftrangeyras.que nòs éramos públicos ladroés,roubadores das fazendas alheyas,*& não merca-- dores como deziamos,porque fe vié- ramos de bom titulo â cofta da Chi- na^ com tenção de pagarmos os áu reytos a el Rey nas fuás alfandegas, que nós nos metêramos nas colheitas dos portos onde ellas eílauão poftas por ordem do Aytao do gouerno, mas que por andarmos como coíTay ros de ilha em ilha, permitira Deos, a quem os males & roubos erão abor recidos,que nos perdeiTemos, para por iíTo lermos prelos pelos mini-

flros da lua juftiça, para conforme a ella colhermos o fruyto de noíTas más obras, que eta a pena morte que por ellas merecíamos, conforme â ley do fegundo liuro em que ifb efpecificadamente fe declaraua, & q ainda que o mefmo direyto por al- gus outros refpeitos que em nós não auia nos releuaíTe da pena de morte, todauia por fermos eftrangeyros,&. gente fem ley,em que não auia claro conhecimento de Deos para por feu amor ou temor deixarmos de nos occupar em muytos mãos & peruer- fos exercicios,iíTo baftauâ paraque ao menos foíTemos códenados a nos cortarem as mãos & os narizes>& nos degradaífem para fempre para os lu- gares de Ponxileytay,onde era cuítu- me lançàrej$íe os do noífo officio, como mofírària por muytas fenten- ças que ja íobre efte cafo forao da- das^ executadas, pelo que requeria que lhe recebeííèm eftes artigos a q efperaúa dar proua no termo que lhe foífe afsinado.Eítes artigos forao contrariados pelos procuradores da mefa do remédio dos pobres q pro* curauão por nolTa parte, no termo cj lhesfoy pofto,por outras muytas ra- zoes alegadas em noíTo fauor, reque- rendo por algúas vezes que lhe não recebeífem eftes artigos,vifto ferem muyto difamatorios^ fora da ordé que o direyto mãdaua. Aque o Chaé fahio com defpacho que lhe recebia os artigos com tanto que os prouaííe por teílemunhas claras & tementes a Deos dentro nos féis dias da order nação, fo pena de lhe náoíerdado

mais

w

ernao

mais tempo ainda que o pediífe, vi- fto fer contra pobres,aquem a necef- íidade muytas vezes obrigaria a to- marem o alheyo,mais pára remedia rem fuás faltas que para cometerem algum peccado. Paífados os leis dias que lhe forão afsinadosj em que não prouou conrra nós coufa algúa, nem achou pcflòa que nos CoriheceíTe,ve- yo pedindo mais outtos féis dias,que lhe não foraòconcedidos^porfercó- tra pobres,por quem a cafa de Deos prooiraua cóm muyta defpeía>mas q para efcufar prolongas de razoes for- jadas fomente para dilatarjhe mart- daua que logo afreztíâíTe em fmal$ yifto fer lançado porjuftà caufados mais dias que viera pedindo. Eque los procuradores do deíèmpafo dos sobres fe deífe também viftâ, paracj 10 termo dos cirtco dias que lhe fo* 'ão afsinados, atlegaíTem por noííà :aufao que foíTe direyto. O prome- :orarrezoou contra nos cm quatro irtigos tão difamatorios,& por pala* iras tão defcortefes, que o Cháerri e afrontou de as ver. E tomândofé nuytodo maoinílno & defconcer- b dellasjhas mandou íogó rifcar to* las,& íahio com hum defpacho qUd leziá: Antes de fentencear efta cau- a.cõdenoòprometor dájuftiça em 'inre taeis de prata, pata o remédio leftes eftrangeyros,viftortãoprouar: oufa algua do que cotttf â elles veyo [izertdo.& por efta pfimeyra vez fe* a íufpenlo do feu offício até o Tutãó >rouer niífo, & feja anilado que dâ- |uy por diante não articule portão nàmaneyra,nem porpalauras tão

defconcertadas,fo pena de pela fegií- da vez íêr caftigado conforme ao di* reyto determinado pelos Chaésqué efta aceitado na cafa do filho do Sol lião coroado no trono do mundo. E fendo fatisfeitoa ifto em termo três diasprimeyrosfeguintes,me tor íie a efta mefa com as mais razoes q ambas as partes por fy quiferem á- pontar. Ao outro dia,logo em fendo menham clara, os quatro tanigores da irmandade que viíitauao a'prifãó aquella forriana, nos mandarão cha* mar â enfefmaria onde eftauão re- partindo o comer dós doentes}& nos deraó conta do borri defpacho que era faydo,com efperaftçás de boa feri tença, & nos nos baqueámos todos aos feus peis dizendo com muytás la« grimas,que Deos lhes pagaíTe o rriw to trabalho que por rios tinhaó le- uado,com lhes dar pôr ifío o galar- dão que pretendiãó, a que hu delles refpondeOj & avós todos coníèrué no conhecimento de lua íey, em que Confífte o premio dos bõs, então rios mandou dar duas colchas para rios cobrirmos de noite, porque padecia* mos grandifsimo frio,& nos diíTe^tu- do o que ouuerdes myfter nos pedfo porque Deos íioflb Senhor não cu- ffuma a fer auarento riò dar das fuás efmollâs. Nefte comenos chegou â nós o eícritião cio feito, & nos publi- cou o defpacho com quê o Cháérri fayra o dia dantes,& rios deu os vín* te taeis de prata em que o prometor da juftiça fora condenado, & nos fez afsirtar a todos hum termo quê aíy coftcinuou; ftòs lho âgradecerrios co

fíiuyfóf

}engrtnâçoes

i

muytas palaura?, 5clhe pedimos que t-omaífe delleso que quifeíTe, porem cile o fião quiz aceitar, dizendo, não troco eu por cão pouco o merecime- nto que poíTo ter com Deos por vof- íbreípeito*

CAT. ClL

Do que nos refpondemo effes pro- curadores dos pobres , pedindolhe nos que fallaffem pomos ao Cbaem que tinha em fua mão onoffo feito para ofentencear.

| Oze dias efteue efte

noíTo negocio calado

§§j £ fem fe fallar a fcyto,

no fim dos quais vin-

" do húa menham eftes

quatro da irmãdade de viíitar os en- fermos da cafa,nos lhe pedimos com muyta inftancia que quifeíTem fal- lar por nos ao Chaem, que então ja tinha o noífo feito na fua mão ja có- clufo para o fentencear, viftofermos tão defemparados ôc tão pobres co- mo elles fabiao: da qual noíTa peti- ção fe eícandalizaraó elles muy to, & nosdiílerão,fe vós outros fôreis na- turais como fois eftrangeyros, iífo ío bailara para vos afearmos da obri- gação que a cafa vos tem, ôc nunca mais darmos paíTadaem voífos nego cios, mas á voífa ignorância & íim- plicidade nos fará diísimularmos a- gora efta voífa fraqueza, porque cre- de que quem iílb comete não he di - nodaseímolas de Deos. E ficando oós hum hum pouco fobreíakados

com efta fua repoíta, Ôc quafí corri- dos do modo com que nola diíTerão, lhe pedimos perdão , dizendo que nofía ignorância nos defeulpaua, afsi para com Deos como para com el- les. Hum delles então olhando para os outros lhes diífe, quiçá que não tem eftes homês tão pouca razão no que agora apontarão, quão pouca nós tiuemos emos efeandalizarmos, porque pode bem íèr que fe cuftu- me iífo entre elles, porque afsi como por ferem bárbaros carecem do per- feito conhecimento da noífa verda- de, afsi também não fera muyto te- rem entre elles tão pouca confeien cia os miniftros da juftiça, que fera neceífario às partes fazerem mais cafo da aderência para com elles, que do direyto que tiuerem nas luas caufas. Nos, íbandonosifto bem nas orelhas, lhe diífemos, fenhores ir- mãos, ja que em tudo vfais virtude em voífo officio, vos pedimos muy- to que nos digais, qual foy a caufa porq vos eícãdalizaftes tanto de vos pedirmos húa couía que nos a nòs parecia fer tão jufta & tão neceíTa- ria ao noíTo defemparo, quanto vós eítays vendo? A que hum que pare- cia de mais autoridade refpondeo, muyta razão he que nos façais lem- brança nefta couía em que tanto voí vay,porque nos apliqueis à fazermoí as diligencias neceífarias cm meno; tempo, paraque fe conclua mais bre- uemente voífa foltura, mas não h< razão ?que nos peçais que fallemoi ao julgador com tenção de por noíK reípeito fazer elle o que não deu<

ene

Ferrão ^/lenâe^JPinto. 1 1 8

cm feu offlciój poi*q fera darlhe mo- o perdão das culpas que fe vos poé,

tiuo de peccar.cótra Deos,& yrfe ao inferno, & nos ficaremos íèndo mai< propriamente íeruos do diabo qiii miniílros do remédio dos pobres, &fe dizeis que tendes juftiçaparaq fe vos olhe por ella, iflb fe ha de ver no feito por onde a caufa fe ha de julgar, & nao pelo que outrem de fo- ra poíía lembrar, porque as contro- ueríias & differenças fobre que fe ar- mão as demandas entre os litigãtes, nunca íe aueriguão bem com repli- cas & treplicas d eíheceíTarias,né com libellos ôc contrariedades fora de or- dem,arguidas mais para efeurecer & entreter a juftiça aquém a tem, que para aclarar & darlhe execução,porq tudo iífo faó inuençoés de atgús tra- pofos a que as triftes das partes cha- mão procuradores, mas aueriguaofe com prouas claras,& de teílemunhas tementes a Deos, nas quais o julga- dor fe funda,fe faz o que deue,& por ellas julga o que com razão fe deue julgar. E fe na vofla terra irmaòs me^us fe não ufa ifto, deueis todos de andar muyto receofos do caftigo do Ceo,porque Deos la não tem noite em queihefeja neceílari o cerrar os olhos para dormir, como fazem os Reys da terra, os quais eftao tão íojeitos a todas as imperfeições delia ;omo qualquer de nòs outros, pois faó homés como nos. Pelo qual vos aconlelho amigos meus que a ade- cencia que pretenderdes em voíTos trabalhos,feja pordes os olhos humii mente nos Ceos,porque de vos ha de vir a fentença de voífa foltura, &

ôc nos vos ajudaremos como bós a- migos,íé Deos for feruidodenosou- uir. Então nos derão noífa ração or- dinária, & fe foraõ vifitar outros po- bres que eftauão doentes na enfer- maria, de que continuamente nefta prilaó auia grande quantidade.

(jzmo nos leuaraodaquy a cafa da judicatura do crime a ouuirmos pu- blicar a nojfa fentença. S do apa- rato & magejtade com que os of- Jiciaes estão neBa cafa^ c> das cerimonias queje gmr- dao nella*

Oue dias auia ja que com aífaz de receyo e- ftauamos eíperando a publicação da noífa fentença,quando hum Sábado pela menham nos vierão buf car à prifaó dous Chumbins da jufti- ça,que faó, como ja diílè, os meiri- nhos da execução do crime, acom- panhados de vinte miniftros, aque bem ja diífe que chamauao vpos,c5 alabardas & chuças, & barretes de malha, & outras couíasa eftemodo que os fázião temeroíòs à vifta, os quais nos meterão em aííaz de me- do & agonia^ rodean donos a todos noue nua corrente de ferro muyto 5 prida,nos leuarão ao Caladigão, que era a cafa da audiericia,& onde fe fa- zia a execução dos padecentes, com

a qual

tPerigrtnâçoes

•á qual ida ficamos de maneyra, que portaSjtoda i gente entrou de roldão

affirmo em verdade que naõ fey dar razão que declare bem o que então paflamos,porque naquella hora hia- tnos tais, que nenhum de nós íabia por onde hia,mais que lo cõformar- monoscem a vontade de Deos no£ fo Senhor & pedirmoslhe com muy- ras lagrimas que pelas dores da íua fagrada paixão, nos recebeíle a pena daquellajuftiça em fatisfação denof fos peccadosj & em algús paílbs on- de o medo nos repreíentaua mais a terriuel pena da cruel morte,nos pú- nhamos todos em joelhos abraçados hus cos outros, Sc lhe pedíamos mi- fericordia.de que os Chins fe efpan- ráuão grandemente. E chegando em fim com aííaz de trabalho & afron- ta de grita de muytos rapazes ao pri- meyro pátio do Caladigaõ, onde rauão os vinte & quatro algozes, aq elles chamão miniítros do braço da ira,com outra muyta gente do pouo que aly era junta para feus requeri- mentos,eftiuemos hum grande efpa- ço, até que fe tangeo hum íino, Sc íe abrirão outras portas que eítauão de- baixo de hum grande arco de canta- ria,laurado de muytos entretalhos & pinturas ricas,encima do qual eíta- ua hum móítruoíb leão de prata,cos peis Sc mãos fobre mapa do meP mo,redondo & muyto grande, que íignifica as armas dos Reys da Chi - ha}que commummente eftãopoítas nas frontarias de todas as rolaçoes íu premas em que afsiftem os Chaés da juítiça,que entre nos faõ como Vifor reys. £ abrindoíè, como digo, eftas

em húa grande caía a maneyra de 1- f,reija, pintada toda dalto abaixo de tiiuerfas pinturas,& eíkanhos modos de juíliças que algoze-s de geftos me- donhos ôc efpantoíòs fazião em to- do o género de gente, Sc com letrey- rosao pede ca3a hfía das pinturas que dezião,por efte tal caio íe da eíte tal género de morte,de maneyra oue na diuerlidade deitas horrendas pin- turas em que fe punhaõ os olhos fe declaraua o género de morte que íe deuia a cada género <le culpa, Sc o grandifsimo rigor de jufliça com cj as leysordenauãocftas tais mortes. Na frontaria deita cafa atraueílaua outra como cruzeyro muyto mais ri- ca^ de muyto mor cuíto,toda cozi- da em ouro,em cuja vifta os olhos fe puderaó oceupar com muyto gofto, fe o nos então pudéramos ter de al- gúa coufa. No meyo deita cafa efta- ua húa tribuna de fète degraps fe- chadaem roda três or<lés de gra- des de ferro,& larão,& pao preto,có troços marchetados de madre pero- la,& por cima hum doríèl de damaf- co branco franjado de ouro Ôc verde, com buas rendas muyto largas do mefmo, debaixo do qual eftaua o Chaem com grande aparato Sc ma- geftade, aíFentadonua ricacadeyra de prata ,& hua meia pequena dian- te de fy, com três meninos ao redor aílentados em joelhos ricamente ve- fíidos, Sc com cadeas douro aos peí^ coços,hum dos quais que eftaua no meyojferuia de dar a pena ao Chaem com que aísinaua, & es dous dos ca- bos

Fernão Mencíe^Pintol 1 1 p

bo< tôiwâíiíà âs petições aos reque* como lancctas de fangrafjo qual in-

remes, & asaprefentauão na niefa pa ri [e lhes dardefpacho.A mão direy ta em outro lugar mais alto, quafi i- gualco Chaem, eftaua moço pe- queno que parecia de dez ou onze annos, vertido de citim branco cu- bertoderofas douro, & ao pefeoco hum rico fio de pérolas que lhe da- ua três voltas, & os cabellos muyto compridos como molher, trançados com húa fita douro & cramefin^cõ fua guarnição de pérolas de muyto preço,& nos peis huas alparcas de ou ro Ôc verde guarnecidas por cima de aljofre groífo, 8c na mão por deuifa Sc demonftraçaó do que reprefenta- Ja tinha hum ramo pequeno de ro* as de feda Ôc fio douro, Ôc em partes )erolas muyto ricas, Ôc elle tão cren- ilhomem& bem aíTom brado, que jualquer molher por fermofa que ora lhe não pudera fazer vétagem. ifte moço tinha o cotouello enco- tado na cadeyra do Chaem, onde ►arecia que defeanfaua o braço da não em que tinha a iníignia, ôc efte eprefentaua a mifericordia. A mão fquerda pelo mefmo modo eftaua utro menino também muyto fer- :iofo&riquifsimamente veftidode uas veftiduras de citim cramelim am roías douro efpalhadas por el- is, o qual tinha o braço direyco ar- ígaçado,& tinto de vermelhão que arecia como Tangue, Ôc na mão di- gita tinha hum rico treçado nu, tã- em tinto do mefmo vermelhão, ôc a cabeça húa coroa a modo de mi- •a5guarnecida toda de naualhinhas

da que em tudo fe via muyto rico \ bemaíTombrado, todauia eftaua afr faz temerofo pela iníignia de q efta- ua acompanhado,^ efte reprefenca- ua ajuftiça,porque dizem eíles que o julgador que eftà em peííba do Rey o qual reprefenta a Deos na terra,hí lhe neceflario ter eftas duas partes de juftiça ôc milericordia, ôc que o que não via de ambas lhe vem de fer cy- ranno,fem ley,& vfurpadorda iní]^- nia que traz na mão, O Chaem efta- ua veftido de huas veftiduras de ci- tim roxo muyto compridas, franja* das de ouro ôc verde, com bum ben- tinho como frade lançado ao peíco- Ço,que tinha húa grande chapa de ouro no meyo, na qual eftaua eícuí- pida hua mão hua balança muy- to direyta,& húa letra ao redo^ que dezia,Pefoj(S<: conta,&medida,tem a natureza do alto Senhor em fua ju- ftiça^ poriftb olha o que fazes;por- que íe peccares hás de pagar para fempre fem fim; na cabeça tinha húa coufa como barrete redondo de ver* gas douro,efmaltadas todas de verde & roxo^Sc encima nocucuruto tinha hum leão pequeno douro pofto com as mãos ôc peis fobre húa botlaredõ^ da também douro^e que o leão co- roado como ja algúas vezes tenho dito,íignifica el Rey,& a bolla o mu- do^ pela fignificação deftas iníig- nias fe declara fer el Rey leão coroa- do fobre o trono do mundo,& tinha na mão hua vara de marfim muyto alua a maneyra de cetro, de três pak mos de cumprido fomente. Encima

V*

Peregrinações de

dos primeyros trts degraos delia tri- fora na outra cafagrar.de -eftauáõ os

buna eftauão oito porceyros co luas maças de piara em pé,& embaixo no chãofeffenta homés Mogores muy- to bem defpoftos, em duas fileyras, aíTentados em joelhos, com alabar- das atauxiadas douro nas mãos, & na diameyra deftes,em pé,como tenen- tes, ou cabos de efquadras dous gi- gantes fantafticos muyto bem def- poftos,& ricaméte veftidos, com feus treçados a tiracollo,&alabardas muy to grandes nas maós,os quais os mef- nios Chins chamão em fua lingoa gigauhosj em ambas as quadras de- ita tribuna eftauão duasmefas muy- to compridas poftas embaixo naca- fa,a cada húa das quais eftauão aíTen- tados doze homés, dos quais os qua- tro erão como juizes ou corregedo- tes, os dous eícriuaés, outros quatro procuradores,& outros dous concha- lys,que íaò como defembargadores, ou 'chançar eis,& húa deftas mefas cos dozeofficiaes que tinha, era do cri- me,& a outra cos outros doze offi- ciaes,era do ciuil,& todos os offlciaes dambaseftas meias eftauão veftidos de huas veftes de citim branco muy- to compridas ôc com mangas largas, para moftrarem com ífto a largueza & a pureza da juftiça. As mefas efta- uão cuberttas com panos de damafco toXo,cõ franjas Ôc rendas douro muy to bem concertadas, fomente a meia doChaem,por fer de prata, eftaua defcuberta, ôc não tinha mais qhua almofada pequena debrocado,em q eftaua hum efcritoriozinho redondo que tinha o tinteyro Ôc a poeyra. ,Cà

vinte Ôc quatro algozes, a que elles* comojadiíTe, chamáo miniftrosdo braço da ira, todos núacarreyrapo- ftos por fua ordem. Por todas as ou* trás partes eftaua grande multidão de requerentes todos em pé,fómente as molheres eftauão affentadas em bancos. íunto âs portas defta cafada banda de fora eftauão féis porteyros com maças de cobre, a que chamão vpos. E todas eftas couías viftas, afsi juntamente da maneyra que em fua ordem eftauão poftas, reprefentauão hum grande fer ôc mageftade,& o ter ribcl afpeito dos miniftros dellas,da + ua grãdifsimo terror & efpanto a que punha os olhos nelles.E dando então quatro pancadas num fino muyto de preíía, hum dos dous conchalys fe leuantou em pé, ôc defpois de fazer feu acatamento ao Chaem,diíTe em voz alta que todos ouuiflem, calar ÔC ouuir com prontidão humilde fo pe- na do caftigo que pelos Chaés do go- uerno eftà determinado aos deíin- quietadores do filencio da fanta jufti- çz,ôc fentandofe efte,fe leuantou ou> tro,& com as mefmas cerimonias de cortefiafe fobio em cima na tribuns onde eftaua o Chaem, ôc tomado oi feitos da mão de hum mimftroquí os trazia, os publicou em alta vo; hum & hum, com húas cerimonia tão prolongadas q gaitou nifto mai de húa hora. E chegando a publica ção danoíTa fentença, nos fizeraó todos aíTentar em joelhos com as ca becas inclinadas aochaó, ôc as mac ambas leuantadas como quem fa

©raçac

Fernão Mende? Tini©.

oração, para co eíla humildade a ou- uirmos publicar, a qual dezia aísi, Pitau Dicalor nouo Chaem nefte fan to auditório da géte eftrangeyra por vontade do filho do Sol leaó coroa- do no trono do mundo, ao qual to- dos os cetros & coroas de todos os Reys que gouernão a terra fàõ íòjei- tos,& portos debaixo dos feus peis, por graça & vontade do mais alto dosCeos,Moítrando em publico a eftes ouuintes o que determiney na appellação deftes noue eftrangeyros que da cidade do Nanquim me foy auocada a requerimento dos vinte ôc quatro da auííera vida por modo de agrauo a elles feito,digo que pelo ju- ramento que tenhodefte cargo em q jfsiftopelo Aytaoda Batãpinapre- fidentefobre os trinta & dous q go- íernáo.os pouos de toda a grandeza la terrajqueaos noue dias da fetima úa dos quinze annos da coroação 3o filho do Sol me foraõ aprefenta- las as culpas que delles me mandou ) Chumbim de Taipor,nas quais de- lia ferem elles ladroes roubadores las fazendas alheyas, no qual ofíício mia muyto tempo que gaftauão as 'idas,com oíFenfa graue do alto fe- ihor que tudo criou, & cjuefem te* nor feu fe banhauao no fangue dos jue lhe refifliáo com jufta razão, pe- o qual crime foraó condenados a >ena de açoutes, & dedos cortados, le que nos açoutes fe fez logo exe~ uçaó, & querendofe também fazer 10 cortar dos dedos, vieraó allegan- !o por parte delles os procurado- es dos pobres, que erãomalcon-

I20

denados, vifto naó auer proua ne- nhúa do quefora porto contra elles, pelo quo requeriaô por fua parte q fe preguntaífé de nouo teftemunhas tementes a Deos, &aodireytocafti- go da fua diuina juftiça,& os naojul- gaííem por indicios de fofpeitas in- certas a que foy refpondido em ajun- tamento de mefaque não era licito tirar á juftiça ò feu nome.E queixan* dofeosquerequerião por elles defte defpachoaos vinte & quatro da aú- ftera vida por algúas caufas muyto juftasjfegundo fe vio na petição que fízeraó, foy logo por elles prouido em feu defemparo, vifto ferem po- bres,& de nações tão eftranbas a nofc ío parecer, que nunca fe lhes foube terra própria em que naceííem,a cu- jo claxnor piadoíb foy reípondido na. mefa dos doze,que remetiaó a cauía a efte juizo, & corrédo ella nelle por feus termos ordinários, o Continao prometor da juftiça lhes naó prouou, nada do que ailegou contra elles ent fuás razoes, fomente diíTe que eraa elles dignos de morte pela foípeita q delles fe tinha. E como a íãnta jufti- ça derefpeitos limpos & agradaueis a Deos, naó aceita razoes de partes contrarias fem auer clara proua no q dizem, pareceome não íèr jufto acei- tar o libello do prometor, pois naó prouaua o que rielle dezia,& queré- doelleinííftir no que tinha pedido, fem moftrar caufas juftas,nem proua fufficientepara o que requeria cótra eftes homés eftrangeyros,foy conde- nado por mym em vinte taeis de pra ta para o remédio delles, & rifcadas

em

Terigrínâçoes de

cm publico fuás razoes, por virem efta minha fentenca for aprefemad a

que logo lhe paOem carta fegura pa- raque liuremente fe poflaó yr a fua terra, ou onde for mais fua vontade. Acabada de publicar efta fentenca, eftando nòs todos noue fempre em joelhos, & com as mãos leuantadas diante do Chaem, & outras muy- tas cerimonias que os miniftros nos enfinauão, diíTemos alto que todos oouuiraó. Confirmada he em nós a fentenca do teu claro juyzo, afsi co- mo a limpeza do teu coração a praz. ao filho do Sol. Dito ifto,fe aleuart- tou humConchaly dos doze da me- fã, & fazendo fua corteíia ao Chaem diíTe muyto alto, por cinco vezes â gente q eftaua no auditório, que era rhuyta, ha por ventura algum nefta cafa, ou nefta cidade, ou nefte reyno que tenha embargos a efta fentenca, ouduuidaa fe foltarem eftes noue prefos? Enão lhe refpondendo nin* guem a todas as cinco vezes,os douí moços que repreíentauão ajiiítiça,& a mifericordia fe tocarão ambos com ásiníignias que tinhão nas maós,& difíèrao com hua voz entoada, fejãc liures & foltos, conforme â fenten- ca que juítamentefe deu. E dandc logo hum daquelles miniftros qu< chamão vpos três pancadas num íi no, os dous Chumbins da execuçac que nos trouxeraó prefos, nos folta rao da corrente em que vinhamo metidos, & nos tirarão as algema: das maós, & os grilhões dos peis, & os colares dospeícocos, de maneyn que de todo ficamos foltos,& demo por iífo muytas graças a noífo Se

nho

fundadas em mao zelo«& inclinação, & fora dos refpeitos juftos & agrada- ueisaDeos, cuja mifericordia fem- pre fe inclina aos mais fracos da ter- ra quando lhe choraò, fegundo pa- rece pelos efTeitos piadoíos de lua grandeza. E mandando eu por meu defpacho aos tanigores da fanta ir- mandade que por parte delles arre- zoaíTem fobre final, elles o fizerao no termo que por mim lhes foy ak íinado. E fendo fatisfeito por ambas as partes conforme ao eftilo defte juizo, mandey que me viefíe o feito

conclufo, para determinar nelle por minha fentenca o que foífe juftiça. Peio qual, viftas & confíderadas bem todas eftas coufas, naò torcendo por nenhuns refpeitos humanos coufa al- gúadoque direytamenw fedeuejul gar, conforme â determinação das ]eys aceitadas pelos doze Chaés do gouerno no quinto liuro da vonta- de do filho do Sol, que nefte cafo pe - ia fua grandeza & realidade fe incli- na mais ao clamor dos pobres que ao bramido dos inchados da terra, mando que eftes noue eftrangeyros fejaó aítoltos de tudo o que contra elles requereo o ContinãoPrometor da juftiça,fem lhes dar caftigo nenhú de pena crime, fomente os condeno cm hum anno de degredo para as o- bras de Quanfy, onde trabalharão, por feu mantimento. . E compridos os oito mefes do anno que ficão pe- la juftiça, mando ao Chumbim, & a ©sConchalaas,&Monteos,& todos os mais miniftros do feu gouerno a |

Fermo Mende^ Tinto. ji i

íor ícfti Chrifto, porque fempre bem, & nos d i (Terão que nos não a4

>s pareceo que padeceílemos por ju ca por algúas mas prefumpçoés q tinhaó de nós. Daquy nos torna- o enráo folcos â prifaó, onde fe fez im affenro no liuro da carceragem [i que eítes Chutnbins ambos aísi- irão,& nós todos com elles, aísi pa« o carcereyro ficar defobrigado,co- o para nós ficarmos obrigados a mos cumprir ncfíò degredo den- o de dous mefes, fo pena de ficar- os catiuos dei Rey,có forme a íuas denaçoes. E querendo nòs logo yr pedir efmolla pela cidade, o Chi- u,que era o guarda mòr deíla pri- 6 nos difle que efperaíTemos ate o ítro dia, que nos encomendaria a Tanigores da irmandade para que >s pioueííem com algúa eimolla.

CAT. Cllll

)o que paffamos cos Tanigores da irmandade^ &- do que elles Jí^eraopor nos-

Í^^p^£ Ogo ao outro dia pe- $\ pX-^X Ia menham vierao eí- tóSPS ces quatro Tanigores B feSll da irmandade de vifi- tar a enfermaria deita ifaõ, como tinhaó por cuftumc,& >sderão os parabés da noíía boa ntenca,com moftras de terem dif- muyto contentamento, o que lhe >s agradecemos com muytas pala- ■as mifturadas com algúas poucas : lagrimas, que nos elles tiueraó a

gaftaífemos pelo tempo do noílo de- gredo ler cumprido, porque do an- no em que pela íencença fôramos condenados, não tínhamos paracú- prir mais que fós oito meies, porque dos quatro, que era a terça parte da pena, nos fazia el Rey eímola pelo amor de Deos, vifto lermos pobres, porque fe fôramos ricos & podero- íos não tínhamos efmplla nem fauor nenhum,& que elles nos fariaó logo pôr nas coitas da íentença o paffe de- íle perdão; & também iriaó fallara hum homem honrado que eítaua defpachado por capitão & monteo de Quanfy, que era o lugar do noíTo degredo,paraque nos fauoreceííe, & nos mandaífe pagar o tempo que refidiíremos, porque era bem incli- nado & amige- dos pobres, pelo que lhes parecia bem irmos com elles a fuacafa, porque quiçá nos tomaria logo â íua conta, & nos mandaria a? gafalhar em algúa pouíàda como fa- zia a outros muy tos que leuaua com- íígo,ja que não tínhamos quem nos conheceíTe naquella terra; o que to- dos lhe agradecemos muyto, dizedo que Deos lhe pagaíTe aquella efmola que por íèu amor nos fazião, E com iílo nos fomos logo todos com elles a cafa do Monteo, o qual os veyo receber ao terreyro de fora , tra- zendo, para mais honra, ou para mais cerimonia fua molher pella mão: & tanto que os vio, fe lan- çou a feus peis, dizendo: Ia agora fe- nhores & fantos irmãos ey o meu def pacho por bó> ôc o aceitarey fem me

^Peregrinações de agTatrar,pois foy caufa de permitir ya hora. E querendofe deípidir no

Deos que por meyo delles vieíTem os feus feruos a minha cafa,eoufa cer- to de fnym nunca cuydada, por me fentir indigno de tamanha mercê: a que os Tanigores,defpoisde fazerem fuás cortefias muytas cerimonias, de que elles vfaó,refponderaó> Deos noííbSenhor,poço íem fundo de mi- íericordia te gratifique combeés ne- íta vida as efmollas que fazes aos po- bres por feu amor, porque cré irmão noíTo que o bordão principal em q a alma ie encofta para não cayr qui- tas vezes embica, he a caridade que víamos co próximo, quãdo por vam gloria não leua farelio do mundo q cegue a aluurado bom zelo a que a lua [anta ley nos obriga, & porque mereças em fua prefença ver o rifo celeíle do feu doce bafo,te trazemos aquy eíksnoue pobres,& tão pobres que quiçá não ha outros em toda e- fía terra que o fejão tanto,paraq nef- fa cidade para onde agora vâs porca pitão ôc monteo da juftiça lhe faças aquillo q vires que fe lhes deue fazer por tão alto Senhor como efte de cu- ja parte te pedimos ifto, a q elle & a molher refponderão huaspalauras tão bem arrezoadas,& tanto para no- tar,q nòs todos eftauamos como pal- mados de vermos o modo com que atribuyão fuás couías â caufa princi- pal eje todos os beés,como fe elles ti-. ucrão lume de fé, ou conhecimento da noífa fanta ley Chriftam. Então fe recolherão elles todos para húa ca- fa em que nós os noue não entramos, onde eítiuerão praticando quafi me-

mandaraó entrar dentro, & Os Tani gores lhe tornarão a falar em nos, á denouonos encomendarão a elle< Elle nos mandou efcreUer num liur que tinha diante de fy, & nos diífi faço iílo porque ja que não íou bom q vos de do meu pelo amor d Deos,q nãoleja tão mao que por el quecimento vos tire o íuor do vofl trabalho a q el Rey vos he obrigade &deoje por diante vencereis voíT mantimento,ainda q não firuais,poi que quero q me fique ifto a conta d efmolla,& aquy vos agafalhareis er minha caía por agora, onde vos pre uerey de tudo o neceflario, & quãt ao mais não vos quero prometer n; da, porque temo q tome vamglori da promeíTa, & fique o demónio nhando por mão como muytas vi zes acontece por noíía fraqueza, mi bafte por agora íaberdes de mim vos tenho tomado muyto à minh cota por amor de Deos, & dos fante irmãos que me fallaraó em vos. De pidindoíe com ifto os quatro Tan gores nos derao para todos quatr taeis, ôc nos diíTerão, não vos efqui cais de agradecerdes a Deos o Ê ceifo q tiueftes no voíTonegocio,po; qpeccateisgrauemente fe lhe defec nhecerdes tamanha mercê. Deít maneyra ficamos agâTalliados er cafa defte monteo, o qual em tod o tempo que eftiuemos em fua caí nos fez fempre muyto boa compí nhia. Epaííàdos osdous mefesqu tínhamos de liberdade para podei mos aquy eftar, nos partimos par

Quanf

Fernão Mende^Pinto. uz

Quanfy a cuprir "noíio degredo em de jaz, & a altura dos grãos cm que

:ompanhiadefte monteo, o qual ta :>em daly por diante nos tratou íem- >re muyto bê,&nos fez muytos fa- iores, ate q os Tártaros entrarão na :idade,có cuja vinda ouue nella muy r-as dcíauenturas, muytas mortes ôc xiuy tos trabalhos, como adiante có- ;-arey mais largamente.

De algua pequena informação de- ita cidade ao Tequim onde o %ey da (Jhina rejide dajjento.

Ntes que conte o que paliamos daquy por diante deípois que nòs embarcamos com efte Chim que nos leuaua a íèu cargo,& nos daua boas eíperan- ças de termqs liberdade, me pareceo conuenjente dar algua pequena infor mação deita cidade do Pequim, que com verdade pode chamar metro- poli da Monarchiado mundo, & de algúas couías que nella notey, afsi da abaftanç^policia, & grandeza "delia, como do regimento & grande go- uerno da íua juftiça, & o admirauel modo que tem no prouimento de to- da a Republica,^ porque maneira íè pagaó os feruiços dos que jubilão na guerra,còforme aos eftatutos della,& outras coufas femelhantes a eftas,ain- daque confeflb que me falta o mi. lhor,q he íãber & engenho para dar a entender o clima em que efta cida-

eftà,que he coufa q eu cuydo que os doutos & curioíbs defejaraó de faber. Mas como meu inteto (como ja atras tenho dito) não foy outro fenão dei- xar ifto a meus filhos por carta de A: B. C. para aprenderé a lér por meus trabalhos, não me deu muyto efere- ueloafsi tofeamente como eu o íbu- be fazer,porq entédo cj o milhor de- itas coufas he tratalas eu da maneyra q a natureza me infinou, fem buícár circumloquios nem palaurasalheyas com que apontoafíe a fraqueza do meu rudo engenho, porque temy q fe ifto fizeííe me tomaílem co furto nas mãos, ôc fe difíeííe por mim o ri- fão cõmum,donde veyo a Pedro fa- lar Galego. Mas ja que me he força- do tratar difto,para cumprir o que a- tras deixo prometido, digo que efta cidade que nós chamamos Paquim, a q osfeus naturais charruo Pequim, por fer efte o feu primeyro nome, eftà íltuada em altura de quarenta & hum grãos da banda do -Norte, tem os íeus muros de circuito, fe- gundo os Chins nos affírmaraõ, ôc cu defpois vy num liurinho que tra- ta das grandezas delia, que fe cha- ma Aquefendoo, que eu trouxe a e- fte reyno, trinta legoas, dez do com- prido,& cinco de largo, & outros af- fírmaò que tem cincoenta, dezafíe- te de cóprido& oito de largo. Ejacj os q trataó delia variaó nifto tanto como he dizerem huns trinta, & ou- tros cinquenta legoas, quero eu de* darar a cauía defta duuida confor- me ao que vy por meus olh.QS.Quan-

Q * toac*.

Terigrínaçoes de

to ao como cila agora eftâ pouoa- &bicasdagoa. E as paredes das cer:

da de cafaria muyto nobre, terá de circuito as trinta legoas que dizem, & eftà cercada toda de duas ordens de muros muyto fortes, com infini- dade de torres & baluartes ao noflb modo, mas por fora deita cerca,cjue he a da própria cidade, vay outra de muyto mayor comprimento & lar- gura, que os Chins affirmão que an- tiguamente fora toda pouoada,o que agora não he, mas tem íóméte muy- tas aldeãs & pouoaçoens diuididas huas das outras, com muyta quanti- dade de quintas ao redor muyto no bres, em que entraò mil ôc feifçen* tas que tem muyta ventagem de to- das as outras, as quais faó apofentos dos procuradores das mil ôc feifeen- tas cidades ôc villas notaueis dos trin- ta &dous reynos deíla Monarcbia, que quando chamão a cortes fe ajun- tão neíta cidade cada três annos fo- bre o gouerno do proueito comum, como adiante fe dará relação. Por fo- ra d efta grande cerca, a qual, como digo, corre por fora d e toda a cidade, eftão em diftancia de três legoas de largo, & fete de comprido vinte ôc quatro miijazigos de Mandarins, q faó húas capeilas pequenas cozidas todas em ouro, as quais tem todas a- dros fechados em roda com grades de ferro, & de latão feitas ao torno, & as entradas que tem, fao huns ar- cos de muyto cufto ôc riqueza. lun- to a eftas capeilas tem apofentos muy to grandes, com jardins ôc bofques cfpeflbs de grande aruoredo, Ôc muy~ tias inuençoens de tanques, & fontes,

cas faó forradas por dentro de azule- jos de porcelana muyto fma,& por ci ma pelos eípigoés tem muytosleoés cóbandeyras douradas, ôc nos tos das quadras curucheos muyto altos de diuerfas pinturas. Tem mais qui- nhentos apofentos muyto grandes q fe chamão cafas do filho do Sol, on- de fe recolhem todos os q aleijarão na guerra em feruiço dei Rey, &a fora eítes outros muytos q por ferem ve- lhos ou doentes deixarão também a guerra,&íe apofentarão.E a cada hu de todos eit.es fe tanto por cada més para feu mantimento, os quais, fegúdo os Chins nos affirmaraó,che- gauão a copia de cem mil,porque ém cada deites apofentos dezião elles qauia duzentos hom és: Vimos mais hua rua de cafas térreas muyto cópri* da, onde poufauão vinte ôc quatro mil remeyros, q faò os das panouras dei Rey. Vimos outra rua do mefmo modo de maisde hua grade legoa.de cópnméto, onde poufauão quatorze mil tauerneyros q faó os da corteyôc outra rua pela mefma maneyra,onde auia infinidade de molheres folteiras, priuilegiadas do tributo q pagaóas da cidade,por ferem tãbem da Corte, muytas das quais fugirão a feus marí dos por andaré nefta defauentura, ôc fe elles por iíío lhe fizerem algum mal tem muyto grande pena,porque ellas tem aly íegurodo Tutão da cor te,que he o fupremo em todas as cou fas que tocão â cafa do Rey. Viuem també neíta cerca todos os mainatos que lauão roupa a toda a cidade,que

íegundo

Fernão oSMende^Pmtô.

cgundo nos affirmarao paflaõ de nil, por aucr aquy grandes rios,& ri- >cyras dagoa, com infinidade de ta- jues muvto fundos, & lagos fecha- los todos de cercas de cantaria muy- o forte, & de lageas muyto primas k bem lauradas. Tem mais o vaõ ícíla grande cerca, fegundo conta e- te Aqueíendoo, mil & trezentas ca- ãs nobres, & de officinas de muy- :o cufto,demolheres& de homens -eligioíbs que profeíTao as quatro eys principaes do numero das trin- :a & duas que ha neíte império da China, das quais cafas dizem que ilguas tem das portas a dentro pai- ante de mil peífoas, a fora os ferui- iores que miniítraó de fora o necek ario para a fuftentação delias . Vi- nos mais outra grande quantidade k cafas q tem edifícios muyto gran» ies & nobres, com grandes cercas, ?m que ha jardins ôc bofques efpek "òsjonde fc acha toda a maneyra de montaria Ôc caça quanta íe pode de- sejar, as quais cafas nobres faõ co- mo eítalagés onde concorre de con- tino muyta infinda gente, afsi a co- mer, como a ver autos, farças, jogos, touros, lutas, & banquetes efplendi- dos,queTutoés,Chaés, Conchacys, Ay taos,Bracaloés, Chumbins, Mon- teos,Lauteaas, ôc outros muytos íe- nhores, capitães, mercadores, Ôc gen- te nobre & rica aly vão dar a feus a- migos & parentes, com grande appa- rato de muytos porteyros de maças de prata, ôc baixellas ricas, com to- do o íèruiço de peças de ouro. E aly fe achão camarás onde ha lcytos de

prata ôc dorfeis de brocado. E todo o feruiço fe faz com moças virges muyto fermofas,& muyto ricamente vefhdas. E não he muyto leriíto af* ÍI,& muyto mais íem comparaçaó,íe- gundo o grande apparato ôc grande- za que vimos em alguas deitas cafas. E os Chins affirmaraó que ha ban- quete que dura dez dias â Chara- china, o qual na largueza, ôc grande apparato ôc pompa com que fe faz, nosminiítros & feruidores, nas mn- íicas, nos paíTatempos de pefeanas, de caças, de montarias, de jogos, de farças, de autos,& de defafios de gen- te de ôc de cauallo, faz de cuíto mais de vinte mil taeis. Eftas eftala- gês tem de fabrica mais de hum con- to douro, que fuítentâo companhias de mercadores muyto ricos, que por via de trato ôc mercancia, metem a- quy feu dinheyro,em que fe diz que ganhão muyto mais que em o auen- turarexn por mar. E eítà ifto ja tao taxado Ôc com tanta ordem, que quando hua peíToa quer fazer al- gum grande gaito, fe vay ao Xipa- tom da cafa, que he o principal del- ia, Ôc dandolhe contado que deter- mina,elle lhe moftra hum liuro to- do repartido em capitolos, do regi- mento ôc modo dos banquetes, no qual fe lhe declara o que fe em ca- da hum delles,& como,& de que ma- neyra fe ferue para elle daly efeo- lher á fua vontade, o qual liuro eu algúas vezes vy ôc ouuy lér, ôc fe chama Pinatoreu. E no intróito dei- le, logo nos primeyros trescapitolos trata dos banquetes com que Deosfe t Qj ha de

- ^ >

Peregrinações de ha de comiickrJ& que preço tem. E troito,como ja difíe, he do banquete

daly por decendencia vem logo ter ao Rey da China, que na terra & no gouerno delia dizem que afsifte por cípecial graça do Ceo, por prefid en- te iobre todos os Reys que ha nella. Edo Rey da China para baixo, fal- iando ja humanamente, trata do ban quete dos Tu toes, que faò as dez di- gnidades fupremas no mando fobre todos os quarenta Chaés do gouer- no^ ue faó Viforreys, & aos Tu toes chamao reíplandoresdo Sol, porque dizem elles que afsi como o Rey da China he filho do Sol, afsi os Tutoés que o reprefentão fe podem chamar refplandores que procedem delle,af- íi como os rayos que o Sol lança, Masdeixando agora eftas brutalida- des gentílicas que trazem por prati- ca, de hua coufa tratarey aquy particularmente nefta matéria, que he das iguarias que dizem que fe haõ de dar no banquete em que fe con- uida a Deos, de que a algús dclles vy vfar muy to à letra, inda que por fal- ta de luas obras lhe haóde apro- ueytar pouco,

T)o regimento qfe tem no dar dos

banquetes nas eslalages notaueis^

& do esiado q tra^ o Chae dos

trinta c> dous eíiudos.

-jgp Ste liuro que trata do

^|jPj regimento dos banque

m

J; tes, a primeyra coufa

llgà^i' de que falia no íeu ia

y

que na terra fe ha de dar a Deos, & fallando delle diz deíla maneyra. Todo o banquete, por muyto cuíto- fo que feja, fe íatisfaz com hum cer- to preço de dinheyro, ou menos ou mais,conformeaoqueo que cóuida quer alargar a máo, de maneyra que a paga delle fecootribuecódinhey. ro, íem dahy ficar mais ao que con- uidou por premio de todo o feu ga- ito que louuor dos lifongeiros, ôc murmuração dos ociofos, pelo que te aconfelho irmão, diz o intróito doliuro,que gaíles antes o teu com banqueteares a Deos nos feus po- bres, &proueres fecretamente os fi- lhos dos bós, porcj fe não percão por falta do muyto que te a ty íbbeja, & lembrete a vil matéria de que teu pay te gerou, Ôc a muyto mais vil em que tua mãy te concebeo, & verás de quanto menos quilates es que todo o outro género de animal bruto que diftincto de razão íè moue a qual- quer effeito a que a inimiga carne o conuida. E ja que queres como ho- mem cõuidar teus amigos que a me nham não ferao,conuida como bom & fiel os pobres de Deós, a cujos ne- ceísitados gemidos fe elle compade- ce como pay piadofo, & com pro- metias de fatisfaçaô infinita na caía do Sol,onde temos por que os feus o pofiliiraõ com grande alegria. E a- pos eftas Ôc outras muytas palauras dignas de ferem natadas.que por re- gimento da cafa lhe diz hum Sacer- dote^ Xipatom, que he,como diííe, o principal íobre todos os outros

que

i

Fernão Mendes^Pinto.

quegouemão eíte grande labarinto, lhemoítra os capítulos de todo o li- uro começando dos mais iiluítres a- o mais baixo;& lhe diz que veja a cjue género de homem ou de fenhor quer conuidar, & cjuantos haõ de fer os conuidados, Sc quantos dias quer cjuedure o banquete, porque os Reys Sc Tutoés tem no banquete que íe lhes tais iguarias, & tantos íeruidores, & tal apparato,& em tais caías, &: comtais baixellas, Sc tantos paílatcmpos, Sc tantos miniítros, Sc cauallos a deítro,& tantos dias de ca- ça, ou montaria, o qual lhe ha de cu- ftar tanto dinheyro, fem lhe faltar nenhúa coufa. E fe também quer o banquete de menos cuíto, lhe mo- ítra noutro capitolo osbaquetes que íedaõaos Chaés, Aytaos, poncha- cys, Bracaloés, Anchacys, Concha- laas,Lauteaas,ou Capitães, ou mer- cadores ricos, porque toda a outra mais gente daquy para baixo não cem que fazer mais que aíTentaríèá meia (Sc comer a pairo, da maneyra que quer,& yrfe embora,de q ue con- tinuamente ha cinquenta feílènta ca- ías cheyas de todo o género de ho- més&molheres a q feruem outros mini ítros mais baixo. E niíto,como digo,ha muyto q ver,afsi nas caías Sc no ornamento Sc concerto delias, co- mo nas cuzinhas, deípenías, açou- gues, enfermarias, dormitorios,eítre- barias, falas, pátios, camarás, & ca- ías íeparadas com leytos ricos, Sc grandes baixellas, & mefas peitas com fuás cadeyras fem auer mais q aíTentar Sc comer.Ha outras caías on-

de fe daó muíícas com todas as arpas Sc violas darco deícantadas com do- çaynas, frautas, orlos, facabuxas, Sc outras mnytas differenças de eítro- mentos de muíicaque naó ha entre nòs, Ediítotudo hecantaaabundan cia que íe o banquete he de molhe- res, como muytas vezes fe acontece, também oíeruiçopela mefma ma- neyra he de molheres, Sc de moças virgés muyto fermoías, Sc muyto ri- camente vertidas, em tanto que pon ferem ellas eítas, fe cafaó aquy com ellas muytas vezes muytos homens nobres, De modo, que para con- cluyr o que deitas eítalages quiz dizer afsi em íòma, de todo o di- nheyro que fe gaita neítes banquetes fe tira a quatro por cento, de que o Xipatom da os doiis,& os que daò os banquetes os outros dous,para fuítent tacão da mefa dos pobres, que íe aquy pelo amor de Deos a todo o género de peíToa q íe quifer aíTentai: a ella,& íe lhe caía Sc cama muy- to limpa Sc bem cócertada por tem- po de três dias fomente, íaluo íè he molherprenhe,ou enfermo que não poíTa caminhar, aos quais fe gaia-. Ihado mais tempo, porque a tudo íè tem refpeito, conforme â necefc fídade que fe oíferece. Vimos mais aquy neíta cerca de fora (que como ja diíTe, cinge 'toda eítoutra cidade) em diftancia de mais três legoas de largo,&fete de comprido, trinta Sc dous apofentos muyto grandes, a- partados hus dos outros pouco mais de tiro de falcão, que íàó os eítu- dos das trinta ôc duas leys que ha nos Q_4 trinta

trinta &:doiis reynos deíle império, emciiia hum dos quais eftudos, fe- gundoa grande quantidade de gen- te que vimosnelle.deue de auer mais de dez mil eftudantes, & o meímo Aquefendoo, que heo liuroque tra- ta deitas coufas,osorça todos por ju- to em numero de quatrocentos mil. E a Fora eítes apofétos ha outro muy to mayor & mais nobre,íèparado por fy,que terá quaíi hua legoa em roda, em que fe vem habilitar todos os q que íe hão de agraduar,afsi no facer- docio,como nas leys do gouerno do reyno,noqual afsifte hum Chaem da juítiça,aqué os mayorais dos ou- tros eítudos obedecem, que fe cha- ma por dignidade fuprema o Xiley xitapou,que quer dizer,fenhor de to - dos os nobres. Me Chaem, por fer mais honrado que todos os outros, traz hum eftado tão grandioíb co- mo qualquer Tutao,porque traz tre zentos Mogores de guarda, & vinte & quatro porteyros de maças,^: trin- ta ôc íèismolheres em facas brancas com jaezes de prata,& gualdrapas de feda,tangendoem eftromentos fua- ues & cantando a elles, com que fa- zem mufíca a feu modo muyto bem eoncertada,& vinte cauallos a deftro em oíTo com fuás cubertas de broca - òotÔc de tella de prata, & o peícoço todo guarnecido do mefmo, & com bocais de campainhas de prata, & junto com cada hum delles vão féis alabardeyros, & quatro homés da eftribeyra muyto bem concertados, Sc diante de todo efte aparato vão mais de quatrocentos vpos gran-

*Perigrtndçoh de

defoma de cadeas de ferro muyto compridas que vão arrojando pelo chão, com hua defordem Ôc hume- ílrondo tão medonho que fazé tre- mer as carnes a toda a peílba, & vão doze homésacauallo^quefe chamão peretandas,cò fombreyros de citim crameíim nas mãos a modo de eípa- raueis poftosem afteas muyto com. pridas,& outros doze com bãdeyras de damafeo branco, com íuas franjas & rêdas douro muyto largas. Detrás de tudo iftovem o Chaem aíienta- do num carro triunfal, & derredor delle vem fefienta cóchalaas, ôc chú- bins, Ôc monteosdajuftiça, que fao como entre nos defembargadores, ôc chançareis^ corregedores, os quais todos vaó a com feus trepados de chaparia douro âs coftas, ôc os mini- ftros mais baixos que eftes,como Ía5 efcnuaés, contadores, meirinhos, ôc enqueredores,vao diãte de todo efte tumulto, dando grandes brados pa- raque a gente do pouo íe recolha pa- ra íuas caías,porque fique a rua def- pejadafem. aparecer peflba vma, ôc na reçaga de todo efte eftado, vem os requerentes & follicitadores,tam- bem a pé. E junto da peflba deite Chaem ou Tutáo (que ambos eíles nomes lhe podem caber) vão dous meninos a caual!o,hum à mão direv- ta,& outro à efquerda iguais com el- le,muyto ricamente veftidos, ôc com fuás inílgnias nas mãos,queílgnifíca5 a juftiça Ôc a miíericordia da rheíma maneyra que ja atras diíTe, o da mão direyta queíignifica a miferkordia, vay veftido de branco, & o da maó

ezquerda,

III

Fernão alMende^Pinto.

n?

czquerda,que fígnifica a juítiça, vay veftido de encarnado. E as caualga- durasem que vão eíles meninos,tam bem leuão fuasguald rapas do mef- modecjellesvãoveftidos, &asguar niçoés & jaezes delias faò douro,com hua rede por cima deprata tirada pe- la fíey ra,que lhe cobre todas as ancas, & derredor década hum deftes me- ninos vaofeis moços de ate quinze annos com fuás maças de prata, de maneyra que não ha peíToa que iíto teeja,que por hua parte lhenãotre- mão as carnes de medo, & por outra não fique palmado da grandeza Sc mageílade que ifto repreíenta. E por me não deter ja mais nas coufas der (la grande cerca, deixarey de contar outras muytas que nella vimos, afsi de edifícios nobres & ricos, como de :emplos de feus pagodes, & potes ar^ nadas fobre colunas de pedra muy- :o groíTas, 5c caminhos todos calça- dos de lageas muyto primas,& todos nuyto largos ôc acabados,& muy« :o compridos, ôc que de hua banda 5c da outra tem fuás grades de ferro inuyto bem feitas,porque das coufas ^uejatenhodito fe poderá collegir ijuais faó as que deixo por dizer, pois :odas fc parecem húas com as outras. E.tracarey agora o mais breuemen- :eque puder de alguns edifícios que ty dentro nacidade,& principalmé- :edequatro,quepor me parecerem naisgrandiofososnotey com mais zuriolidade, & de outras coufas par- ticulares que ha nella dignas de fere notadas.

cjt. çvu.

T)e alguas coufas particulares no* taueis que ha na cidade do Tequim.

Sta cidade do Pequim de que promety dar mais algúa informação

H^)j da que tenho dada, he m^^J^j de cal maneyra, ôc tais faótodasas coufas delia, que quaíl me arrependo do que tenho prome- tido, porque realmente não fcy por onde comece a cumprir minha pro- meíTa, porque fe não ha de imagi- nar que he ella hua Roma, hua Con- ílantinopla, hua Veneza, hum Paris, hum Londres, hua Seuilha, hua Lif- boa,nem nenhua de quantas cidades iníígnes ha na Europa por mais fa- mofas ôc populofas que fe)ão,nem fo- ra da Europa fe ha de imaginar que hecomo o Cairo no Egypto,Taurys na Perfía,Amadabad em Cambaya, Biínagàem Narímga, o Gouro em Bégala,o Auaa no Chaleu, Timplaõ no Calaminhan,Martauão ôc Bagou em Pegú,ou Guimpei Ôc Tinlau no Siammon,Odiaa no Sornau,PafIàr- uão ôc Demaa na ilha da íaoa, Pan- gor no Lequío, Vzanguee no graõ Cauchim, Lançame na Tartaria, &: Miocôo em íapão, as quais cidades todas faó metropolis de grandes rev- nos, porque oufarey a affirmar que todas eftas fe não podem comparar com a mais pequena couía deite gra- de Pequim, quanto mais com toda â grandeza ôc fumptuoíidade que tem

em

^Peregrinações de em tpths as fuás coufas}como faõ ío- ta fole-nnidade a feita da inuocação

berbos.çdificioSjinfínita riqueza, fo- bejiísima fartura & abaítançade to- das asccuías ncceíTariaSjgentCjtrato, Sc embarcações fem conto, jtiíbça, gouerno,corte pacifica,eílado de Tu= toes, Chaés, Anchacys, Aytaos, Pu- çhancys, & Bracaloés, porque todos eítes gouernão reynos & prouincias muy to grandes,&có ordenados groP fiisimos os quais reíidem continua- mente neíta cidade,ou outros em Teu nome,quando por caíos q foccedem fe mandão pelo reyno a negócios de importância. Mas deixando agora iito para íe tratar a íèu tempo^fta ci- dade,fegundo o que fe eícreue delia, afsi no Aqueíendoo de que fiz menção,comó em todas as chronicas dos Reys da China,té em roda trin- ta legoas, a fora os edifícios da outra cerca de fora, de queja tenho dito hum pouco. & bem pouco em com- paração do muy to que me ficou por dizer: & he (como ja diífe outra vez) toda fechada duas cercas de mu- ros muyto fortes, & de muyto boa cantaria, onde tem trezentas & [c[- fenta porcas, a cada húa das quais eftá hum caitello roqueyro de duas torres muyto altas,& todos com fuás ■cauas, & pontes ieuadiças neilas. A

do idolo de cada hua das portas,de cj elia também tem o nome, & diíto ja atras tratey também largamente. Te mais cila grande cidade dos muros para dentro, fegudo os Chins nos af- firmaraó, três mil Sc oitocentas caías dos feus pagodes, em que continua- mente fe íacrifíca bua muyto gran- de quantidade de aues,& de animais íilueítres dado por razão que aquel- les faõ mais aceitos a Deos que os ou tros domeíticos que a gente cria em caía, Sc para iito dão os facerdotes muytas razoes ao pouo, com que o períuadem a terem efta abufaò por artigo de fé. Deites pagodes que di- go ha muytos edifícios muyto fum- ptuoíos,principalmence os das reli- giões em que viuem os menigrepos, &conquiais & talagrepos,que faó os facerdotes das quatro feitas de Xaca, & Amida, Sc Gizom, &• Canom, as quais precedem por antiguidade âs outras trinta Sc duas deite diabólico laberinto era queo demónio fe lhes moftra algúas vezes em diuerías fígu ras,para os fazer dar mais credito a eítes feus enganos Sc falíidades. As ruas ordinárias deita cidade faó to- das muyto compridas Sc largas,& de cáfaria muyto nobre de hu até dons

cada hua deitas portas eítâ hum ef- fobrados,fechadas todas de hua ban criuão eom quatro porteyros*de ala- da Sc da outra com grades de ferro, bardas para darem razão do que en- tra & íae por cada húa dellas,as quais

por regimento do Tutão faò reparti- das por todos os trezentos Sc íeíTenta dias do anuo, de maneyra que cada dia por feu giro fe celebra com muy*

& de latão, com fuás entradas para os becos que nellasentefteítão,& nos cabos de cada hua deitas ruas eítão arcos com portas muyto ricas qucfe fechão de noite,& no mais alto deites arcos tem finos de vigia. Cada rua

deitas

Fernão Mende^ Tinto. 1 2 6

deitas nobres tem feu capitão & qua- tidade de peças de fedas, brocado?,

drilheyros que [roldão a quartos, & a cada dez dias faó obrigados a irem dar relação a camará do q paíTa nel- lr.s,paraos Ponchacys ou Chaésdo Jouerno prouerem no que focedeo, :onforme âjuftiça. Tem mais efta grande cidade,fegundo conta efteli- iro com que cenho alegado muytas f ezes,que trata íó das grandezas del- ate to & vinte efteyros que os Reys k pouos antigamente fízerão,detres >raças dagoa de fundo, & doze de argo,os quais todos atraueíTaó toda i largura 8c comprimento da cidade, :om grande foma de pontes feitas fo >re arcos de pedraria muyto fortes, c nos cabos colunas com fuás cadeas traueíTadas, &c poyais com encofto >ara agentedeícançar. E eftas pen- es que eíKo neftes cento & vinte e- teyros fe affirma que íaó mil & oi- ocentas, & todas a qual milfior, 8c riais rica,afsi no feitio corno em tu- \o o mais que fe vé. Afhrma també fte liuro,que tem céto & vinte pra- as nobres,em cada húa das quais fe az cada mez húa feyra, que feita a onta ao numero delias, fae a quatro eyraspordia em todo oanno, das [uais, nos dous meies que aquyan- lamos emnoíía liberdade,vimosak ;úas dez ou doze em que auia infíni- agente.aísi de como de cauallo, |ue nuas caixas como de bufarinhey os vendiáo quãtas coufas fe podem tornear, a fora as tendas ordinárias los mercadores ricos, que em fuás uas particulares eftauão poftos por miyta boa ordem>& com tanta quã-

tellas,& roupas de linho, & de algo- dão, 8i de pelles de martas, & armi- nhos^ de almizcre,aguila, porcella- nas finas, rkcas douro,& de prata, al- jofre,perolas;ouro em pó, 8c em bar- ras,que nos os noue companheyros andauamos como palmados. Pois,fe quifer fallar particularmente de to- das as mais coufas de ferro, aço, c hu- bo,cobre,eftanho,latão,coral,alaque- ca,criftafpedradefogo,azougue,ver- melhãojmarfímjcrauo^oz^aça^gé- giure, canella, pimenta, tamarinho, cardamomo.tinca^ani^mefcera^an- dalo,açucai\confcruas,mãtimcntode fruitas,farinhas,arrozes,carnes,caças, pefcados,& ortaliças, difto tudo auia tanto,que parece que faltão palauras para o encarecer. Af firmaraónos ta- bem eftes Chins que tem efta cidade cento & feflenta cafas de açougues ordinários, em cada húa das quais a- uia cem talhos de todas as carnes quã tas fs críão na terra, pfcrque de codas efta gente come,vitclla,carneyro,bo- de,porco,cauallo,bufara, bada, tigre, Ho, cão, mulato, burro, zeura, anca, lontra.. texugo>& finalmente todo o animal a que fe pode por nome,& em cada talho efta logo limitado o preço de cada coufa d eftas. E alem do pefo que tem cada merchante por onde pefa,eftão mais a cada porta ou« trás balanças da cidade em que fe tor naa repefar,para ver fe leuão as pau tes feu pefo certo, porque não fique o pouo enganado. E a fora eftes açou guessq faõ os commús,não ha rua ne- nhúa em que naó aja cinco feys cafas

como

^erigrinaçoh de

como açougues de todas as carnes feu fauor diurno, fede a entender a

muyto exceílentes, & alem difto ha também muy tas tauernas emquefe tudo guiíãdo com muyta limpeza & perfeição. Ha também logeas che- yas de lacoés, marras, & chacinas, Ôc aues,porcos & vacas de rumo,& diílo tanta quantidade que o feria na5 o contar, mas digoo porque fe faiba quão liberalmente Ueos noíTo Se- nhor partio com eftes cegos dosbeés q eile criou na terra,pelo q o leu no- me feja bendito para fempre.

CJT. CVLll.

'DaprifaÕ do Xtnanguibaleu on- de eftão fempre os degradados para ojermço do muro

da Tartaria*

Eixando agora de pari ticularizar miudamen- te a grande multidão de edifícios nobres,grã- diofos,& ricos q vimos nefta cidade, fomente de algús darey relação que me parecerão maisno- taueis que os outros que ha nella, ôc deftes fe poderá infírir quais feraõ os outros muytos de que não quiz tra-« tar por euitar prolixidade. E nem de- ites ainda tratara,fe não conííderara, que poderia Ter que em algum tem- po permeteria noíTo Senhor que fe achaífe a nação Portuguefa com ta- tás forças,& co efprico tão aleuanta- do,quelançaíTemão deita enforma- cão para gloria doSenhor,& que por eftes meyos humanos, ajudados do

eftes bárbaros a verdade da nofía íanta Fe Catholica, da qual elles por feus peccados andão tão alheyos que zombaó de quanto lhe dizemos di* fto, Ôc chegao a tanto barbarifmo ôc defatino,qUe dizem que em vero rofto ao filho do Sol, q he o feu Rey, eftá fer hua almabéauenturada mais que todas as outras coufas, por onde me parece que fe Deos noífo Senhor por ília infinita bódade ôc mifericor- diapermkiffequeo Rey deita gente fe fizcffe Chriftão, q em todo o mais pouo aueria pouco que fazer, ôc fem o Rey fer Chriílaõ,me parece muyto difficultofo feio nenhum dos feus, ôc iílo pelo grande temor que todos te da juftiça, a qual he tão temida ôc venerada,& os miniftros delia tão a- catados, que he couíà que a penas fe poderá crer. Mas tornando ao pro< pofítodeque mcapartey: oprimey- ro edifício dos que diflè que vy maií notaueis Ôc dignos de memoria, foy húa priíaó a q elles chamão Xinan „guibaleu,que quer dizer, encerramé- to dos degradados,cuja cerca íèrá quafi duaslegoas em quadrado, tan- to de largo como de comprido, fe chada com hum muro muyto alto fem ameyas nenhuas, íènão íoment( com feus eípigoés por cima, os qnaif fa.6 todos forrados de paftas de chu bo muyto largas & groíTas,& por fo- ra cem hua caua dagoa muyto fundi que a rodea toda,com fuás pontes le« uadiças que de noite fe leuantão corr cadeas de latão, & íe foípendem err húas colunas de ferro coado muytc

grorfas,

groflas. Tem hum arco de pedraria muyco forte q vay fechar em duas torres, na volta do qual em todo ci- ma eftaò féis finos de vigia muyto grandes, aos quais quando tangem, refpõdem todos os outros que eftaõ dentro, que, fegundo os Chins nos affirmaraó,faó mais de cento, & fa- zem hum eftrondo aflaz tei ribel & elpantofo. Nefta prifaõ ha continua mente, por regimento dei Rey, tre- zentos mil homeSjde dezaíTete annos ate cinquenta,de que nós recebemos tamanho efpanto, quanto nua couía tão noua & ta5 deíacuftumada fe re- queria, E pregíitando nós\aos Chins pela cauía daquelle tamanho edifí- cio^ da grande quantidade de pre- fos que em fy tinha,nos reípóderão, que defpois q aquelle Rey da Chi- na,por nome Criínagol dacotay aca- bara de fechar com muro as trezen- tas legoas de diftancia que ha entre efte reyno da China, & o da Tarta- ria,como ja atras fica contado,orde- nara com parecer dos pouos,que pa- ra iíTo foraò chamados a cortes, que todos aquelles que por juftiça foíTem condenados em pena de degredo, foíTem degradados para a fabrica da quelle muro,aos quais fe daria man- timento fomente/em el Rey lhes fi- car por iíTo obrigado a fatisfaçaò ne- nhua,pois lhes fora aquillo dado em pena de feus delictos.E que feruindo íeis annos contínuos, fepoderião yr liuremente,fem as juftiças os confira- oeremaferuirem o mais tempo em que foíTem condenados,porque deí- fc lhes fazia el Rey mercê, em fatifc

Fernão Mende\ Tinto.

"7

facão do que em cõfciencia lhes po* dia eftar deuendo. E que fe antes do tempo deftesjíeis annos fer acabado, fizcíTem algum feito notâue),ou cou- ía em que fe moftrafTenfi auétajados dos outros.ou fofTem feridos três ve- zes nas faydas que fizeíiem, ou ma- taflem algum inimigo; ficariãodeío- brigados de todo o mais tempo que lhes ficaífe por cumprir, & o Chaem lhe paífaria certidão em que decla-» rafle o porque o deíobrigara, paraq porella íe viíTe que fàtisfizera con- forme ao eftatuto da guerra. Efte mu ro era obrigação ter contínuos duzé- tos & dez mil homés, que por regi- mento dei Rey lhe eraò dados, dos quais fedauão de quebra para cada anno a terça parte,nos mortos,nos a- leijados, &nos que fe liurauão,ou por terem cumprido feu tempo, ou pelo merecimento de fuás obras: &z porque quando o Chaem, que heo fuperior de toda cila gente manda* ua pedir efta copia de homés ao Ph taucamay,que he a rolaçaó fuprema de toda a juftiça/e não podiao ajun- tar tão deprefla como eraneceíTario, eítando diuididos por diuerfos luga- res do império todo, que he tama- nho como ja tenho dito, & fe paftaua muyto tempo antes que íè ajuntaC» fem, ordenou outro Rey que foce- deo a efte Crifnago-1 dacotay,por no me Goxiley aparau, que fe fizeíTe ne- fta cidade do Pequim efta grande cerca, paraque tanto que os prefos foíTem condenados em degredo pa- ra o muro, fe trouxeflemlogoaefte Xinamguibaleu, onde eftiuefíèm to»

dos

m

'Peregrinações de

todos juntos", paraque quado do mu- turais chamão Gunxinem aparai ido

ro mandaflem pedir os homés q lhe foífem neceíTarioSjOs achaflèm alyA osdefíemlogofem detenha nenhúa, como agora fe faz. Eftes prefos,tãto cj pela juftiça faó entregues nefta pri- faõ,de q fe pafla certidão a quem os leua, os íbltão logo das priíoes em q vieraòA andão todos foltos íem te- rem mais q húa taboazitiha pequena de quaíi hum palmo de comprido,& quatro dedos de largo,muyto delga- da,na qual eftâ efcrito, Foão de tal lugar, condenado ao degredo geral portalcafo,entrouem tal dia de tal més & de tal anno. E efte relicayro traz cada ao pefcoço por teftemu- nho de fuás virtudes,paraque fe faiba porq crime foy condenado, & quan- do aly entrou, porque todos faé por fuás antiguidades conforme ao tépo em q aly entrarão. Os quais prefos fe tem por muy to bem liurados quan- do os leuão a trabalhar no muro, por que da prifaó do Xinãguibaleu, não podem por nenhú cafo ter remiíTaó, nem fe lhe leua nenhum tempo em conta, nem tem outra nenhúa efpe- aança de liberdade íe não a hora em ciue lhe couber fayr daly para o mu- ro por fua fucceíTaó, poré como faó no muro, logo efperança certa de íèrem liures conforme ao eftatuto q ja tenho dito. E ja que dey relação da caufa porque fe aquy fez efta ta- manha prifaòjantes que me faya del- ia me pareceO que vinha a propofito dar conta de húa feira que nella vi- moSjde duas que dentro nella fe cu- ftumao fazer cada anno, a que os na-

Xinam guibaleu, que quer dizer,fey- ra rica da prifaó do degredo. Eftas feiras íê fazem nos mcfes de Julho & Ianeiro, com feitas notaueis, fei- tas à inuocaçaó dos feus Ídolos, on- de por feu modo tem feus jubileus plenifsimos em que lhes prometem grandes riquezas de dinheyro na ou- tra vida. Saó eílas feyras ambas fran- cas & liures, fem pagarem nenhum direyto, pela qual cauía concorre a ella tanta gente, que fe affirma que oaíTa de três contos de peífoas. E porque, como diííe, os trezentos mil homens que eíMo em depofito nefta prifaó andão todos foltos, como a própria gente que vem de fora, tem cita maneyra para não auer impedi- mento nafayda. A cada hum dos li- ures que entra, fe põem na taboa do braço direyto húa chapa de húa cer- ta confeição de óleos Sc bitumes de lacre com reubarbo & pedra hume, que defpois que fe feca não fepode por nenhum cafo tirar íènão com vi- nagre & fal muyto quente. E para- que tanta multidão de gente fe pof> ia toda (inalar, eftaó a eftas portas de húa banda Sc da outra húa grande fomma de chanipatoés,que com hús finetes deehúbo molhados naquel- le bitumeacada dos que chega lhe poelogoaquelle final, Sc o deixa entrar. E ifto fe faz aos homés fómé- te, Sc não as molheres, porque eftas não eftaó obrigadas ao degredo do muro. E quando vem ao íàyr deftas portas,vem todos cos braços cm que trazéòs finaes arregaçados, paraque

os

Fernão Mende^Pinto. 128

os mefmos Chanipatoés,q íaó os por tos do Chaem, todas com arcos de

teyros,& miniftrosdaquelle negocio, os conheção & os deixem paiTar, & o que por algum caio foy taó mofi- no que acertou de fe lhe apagar o fi- r l,bem pode terpaciencia,& ficarfe cos outros prefos, porque nenhum remédio ha para o deixarem íayrde dentro, pois não traz o final que íê lhe pos ao entrar da porta, E anda fto ja por todos eftes chanipatoens :ão corrente, Ôc tanto fem enleyo, q lua hora entraõ & faem cem mil ho ués fem auer embaraço em peííoa lenhua: & defta maneyra todos os rezentos mil obrigados ao degredo icão íempre dentro, fem nenhú po- lerfayr na volta dos outros. Tem e- ta priíaô,ou depoíito, das cercas pa- a dentro três pouoaçoés como gran- lesvillas, todas de cafa? térreas, ôc uas muyto compridas fem becos ne. ihus, & nas entradas delias tem por- ás muyto fortes com íèus finos de rigia encima, ôc cada húa tem feu Dhumbim,& vinte homens deguar- laj ôc deftas pouoaooens obra de hu iro de falcão, eftao os apofentos do ^haem que he o fuperior de toda e- b prifaò, os quais faõ húa grande juantidade de caías muyto nobres, om pátios muyto grandes, ôc jar- lins com muy cos tanques dagoa,& alas ôc camarás de muytas inuen- oés,em que hum Rey fe pode muy o bem agaíalhar por muyta gente jue traga comfigo. Das principaes luas pouoaçoens deftas atraueííãó luas ruas de mais de tiro de falcão :ada húa, que chegão até os apofen-»

pedraria cubertos por cima como os do efprital de Lisboa, fenão quanto lhe fazem ainda muyta ventagem, nos quais íe vendem continuamente quantas coufas fe poífaó pedir,aísi de mantimentos como de mercadarias muyto ricas, onde ha todas as ouriui- zarias douro ôc de prata, Ôc logeas de mercadores muyto groííbs. a que fuás riquezas não aproueitão para deixarem deyrcomprsr féus degre- dosquandolhe couber por fua íuc- ccíliò. E entre eftas ruas dos arcos, que he hum eícampado muyto gran de,fe fazem eftas duas feiras cada an- no,a que vem efta grande quantida- de de gente que tenho dito. Tem mais efta prilaó das cercas para den- tro muytcs bofques de. aruoredo muyto alto, com muy tos regatos, Ôc tanques dagoa muyto boa para o feruiço ôc lauagem de toda efta gen- te prefa, ôc muytas irmidas, Ôc muy- tos efpritaes, ôc doze mofteyros de cafas muyto fumptuoías & ricas. De maneyra que tudo quanto deue ter hua cidade muyto nobre &^muyto rica,tanto fe acha deftas cercas para dentro em muyta abundancia,& em muytas coufas de muyta ventagem, porque os mais deftes prefos tema- quy comfigo fuás molheres ôc íèus filhos, a que el Rey da caía conformei família que cada hum tem.

CAP,

CAT. £/X

"De outra cerca que vimos nesla

cidade por nome tifouro dos mor-

tosje cujo rendimento fe fuslenta

esla p rifão 3 &- de muytas cou-

[as notaueis que ha

nella.

esáKs/

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V^;o

Segunda coufa deftas de que determino dar relação, he outra cerca que vimos quaíi tamanha como efta, cercada em roda de muros muyto fortes com íuas cauas, que íe chama }viuxiparaó,que quer dizer, ti íòiiro dos mortos, com muytas torres de cantaria laurada, & em todas curu- cheosdediuerfaspinturaSjOqualmu ro em todo cima no lugar das ame- yas era fechado todo em roda com grades de íerro,& encoftados a cilas grande quantidade de ídolos de dif- ferentes figurasse homés,de ferpen- tes,de cauallos, de bois, de elifantes, de peixes,decobras,& de outras mny tas feições monftruoías de bichos & alimárias nunca viftas em nenhúa parte,& todos eftes de bronzo & de ferro coado,& algus delles de eftanho & de cobre,a qual maquina vifta afsi toda por junto no modo & poftura em que eftá era muyto mais notauel ôc apraziuel para ver do que ningué pode imaginar. E paliando nos por hús. ponte que atraueffaua a largura da cáua,, chega mos a hum grande ter- reyro,que eftaua no recibimento da

Terigrínacoes de

primcyra entrada todo fechado em roda grades de latão muyto grof- fas,& lageado todo de lageas bran- cas & pretas a dentadas a maneyra de en xadrez, tão lifas & tão bem luíka- das que fe via húa peiToa nellas co- mo num efpelho. No meyo defte ter reyro cftaua húa coluna de jafpe de trinta & íeis palmos de alto, &toda, ao que pareci a,de húa pedra, enci- mada qual eftaua hum idolo de pra- ta em vulto de molher que com atu- "bas as mãos eftaua afogando húa fer- pente muyto bem pintada de verde & preto,&logo mais adiantei entra- da da porta que eftaua entre duas. torres muyto alta*,armada íobre vin- te & quatro colunas de pedra muyto groíías, cftauão duas figuras deho- més.cada hum com fua maca de Fer- ronas maõs,como que guardauâo a. quella entrada,cuja eftatura & gran- deza era de cento & quar£ta palmos, com hus roftos tao feyos em tanta maneyra que quaíi tremião as car- nes a quem os ollxaáa, aos quais os Chins chamauão Xixipitau Xalicâo, que quer dizeijaíTopradores da caía do fumo. A entrada defta porta efta- uãodoze homés com alabardas, ôc dous efcriuaés uíTentados a huamc- fa que eícreuiao todo o género de peííoa queentraua, aos quais fe da- uao duas caixas, que eraõ três reis da noífa moeda . Entrando nòs defta porta para dentro,démos em húa rua muyto larga,fechada toda de ambas as partes com arcos muyto ricos,afsi no feitio como em tudo o mais, nos quais agia infinidade de campainhas

de

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Fernão

le latão que por todas as voltas dos .rcos eíTauão penduradas por ca- leas do mefmo,que com o monimé- o do arque dana nellas fazião hum amanho ruvdo,& hua tamanha tra« Rimada que naoauia quempudeffe >uuir por muyco alto que fe fallaíTe. ifti rua teria de comprimento quaíi neya legoa, & deites areosa dentro ifsi de húa parte como da outra ti- lha feitas pela proporção dos arcos, luas ordes de caías terreyas como mandes igreijas, com feus curucheos :ozidos em ouro, & outras muytas nuençoés de pinturas. As quais ca- as nos affírmaraõ os Chins que eraõ res mil,& todas dalto abaiko eftauão :heyas de caueyras de homés mortos itè os telhadoSjCoufa de tamanho ef- )anto,que ao que fe julgaua, mil íaos, por grandes que foíTem, as po- lerião carregar. Por detrás deitas ca* as eftaua húa ferra de oíTos tão alta jue fobrepujaua por cima dos telha- los dellas,a qual era de comprimen- o dum cabo & do outro da mefma neya legoa,& muyto larga em gran Je quantidade. E preguntando nos los Chins fe tinha aquillo conto5reP xmderaó que fy, porque tudo efta. ja eferito por matricolas das três mil :afas que os talagrepos tinhaó em reupoder,& qnaoauia caía daquel- tas que não rendeíTe cada anno de dons mil taeis para cima, de proprie- dades que defuntos lhe tinhaõ dei-, xado por defeargo de fuás almas, o qual rendimento chegaua todo a cin co contos douro, dos quais el Rey

MendczTintú.

129

leuauaos quatro, & os talagrepos O outro para deípeíà de toda aquella fabrica, & que os quatro que el Rey como padroeyro leuaua, fe gaftauão no mantimento que fedaua aos tre- zentos mil degradados do Xinam- guibaleu. Com efte cfpanto do quê víamos começamos a caminhar por efta rua adiante, & chegando ja qua- íi ao meyo delia fomos dar em hum grande terreyro,cercado em roda duas ordés de grades de latão,no me^ yo do qual eftaua hua cobra de brõ- zo toda enrofeada & armada por pe- ças,que tinha em roda mais de trin- ta braças, coufa de tamanho efpanto que fakão palauraspara o encarecer^ a qual alguns dos noíTos eírnaraó em mais de mil quintais, prefupofto fer ocapordétro. Efem embargo de íêr de tão demaíiada gradeza,cra em. tu- do tão bem proporcionada, que em nenhúa coufa fe lhe enxergaua falta. A iíto correfpondia também o feitio delia, porq fe via nelle todo o primor & perfeição q fe podia defejar. Efta, monftruofa cobra, a q os Chins cha- mauão ferpe tragadora da cafa do fu- mo,tinha metido na cabeça humpi- louro de ferro coado de cinquenta 3c dous palmos, como que lhe tinhaõ tirado com elle. Mais adiante obra de vinte paflos eftaua húa figura de homem do mefma bronzo,a mo* do de gigante, também aíTaz eftra» nha & defacuftumada, afsi na gradei za do corpo, como ria groííura dos membros, o qual íuftétaua ambas as mãos hum pilouro de ferro coado, R êc olhara

^Peregrinações de

èc olhando para a ferpe muytQ arre- lhes dizem que não eftà" em mais íè

ganhado a modo de colérico, fazia tjiie lhe ciraua com elle. redor defta figura eftaua hua grande foma de ídolos pequenos todos dourados, poftos em joelhos com as mãos le- uantadas para elle como que o ado- rauão, & em quatro tirantes de fer- ro que eílauao por derredor, eftauão cento &feífenta & dous candieyros de prata, com íeis fete & dez torci- das cada hum.Efte idolo era o da in~ Uocaçaó de todo efte edifício, ôt fe chamaua Muchiparom , o qual de- zião os Chins que era tifoureyro de todos os oíTos dos mortos, &que vindo aquella ferpe que tinhamos vifto para os roubar, elle lhe tiraua com aquelle pilotiro que tinha nas maõs, por onde ella logo com me* do fugia para a concaua funda da ca- fa do fumo, onde Deos a tinha lan- çado por ler muyto mà, E que ja lhe tinha feito hum arremeífo auia três mil annos, &quedahya outros três mil lhe auia de fazer outro, & que afsi de três em três mil annos a* uia de gaftar cinco p-ilouros,com que a auia de acabar de matar t & como foíTe morta., auião todos aquelles o[- fos que aly eftauão junto? de tornar aos corpos cujos antes foraõ para mo "rarem para femprenacaia da Lua# E afora eftas beftialidades nos Con- tarão outras mtiytas a efte modo, nas quais eftes cegos miferaueiseftão tão crentes, que não ha coufa que lhas poíTa tirar da cabeça, porque ifto he o que os feus bonzos lhe pregão, ôc

hua alma bemauenturada que cr. lhe trazerem aly os feusoílos, pel que não ha dia que aly não venha» duas mil oftadas deftesmalauentura dos, & os que não podem trazer c oíTos por fer a diftancia de muy to caminho, trazem hum dentei dous, porque comiíTo, dando fua e! mola, dizem que fatisfazem tanti como fe trouxeraó tudo o mais. Pe lo qual ha por todas eftas caías tant, quantidade de dentes em tanta ma neyra, que me parece que muyta nãos os não poderão carregar.

CA9. CX.

Do terceiro edifício que aquy

vimos por nome 3\(a-

capirau.

Imos mais num gfarn de efcampado fora do muros defta cidade ou tro edifício muyto furr ptuoío 6c rico, por no me Nacapirau, que quer dizer Ray nha do Ceo, porem elles não di zem ifto pela que o he Verdadey ramente, que he a Virgem Marií noíla Senhora, mas tem efteá cegoí para fy que aísi como na terra o; Reystéporâis faó cafados, aísi tam- DeoS noíTò Senhor la no Ceo hc cafado,&q os filhos que gerou nefta -Nacapirau que he fua molher faô as eftrellas que de noyte fe vem

no

:emao Mende^PintQ.

10 Ceo,& quando algua delias corre- lo fe desfaz no âr,dizem que he hum laqiielles feus filhos que morreo, ôc me pelo fentimenco deíla morte, as nitras luas irmãs choraõ tantas lagri- nas.que do que fobeja delias Te rega á embaixo a terra, por meyo das juais nos ordena Deos a fuftencaçao íe noíía vida, como eímolla dada iela alma daquelle defunco,Mas dei- ando eítas ôc outras infinitas patra- ihas que eftes miferaueis tem nas nnta ôc duas feitas que ha entre el- es, tratarey fomente das officinas q imos nefte edificio,as quais faõ cen- o & quarenta mofteyros deita mal-» liça religião, tantos de homens co- no de moiheres, em cada hum dos [uais nos affirmaraó que auia qua- rocencas peílbas que ao todo fazem Dma de cinquenta ôc íeis mil, a fora nitra muyta grande copia de daroe- es queíeruem de fora, que não ef- ío atados ao voto da profilíaõ co- noos de dentro, os quais por infig- |a do íacerdocio andão veítidos de oxo,com fuás altirnas verdes íobra- adas, que faõ como entre nos as e- colas, & as cabeças, & barbas & fo- irancelhas rapadas, de contas ao pef* oço por onde rezáo, mas nãope« lem efmolla, porque tem próprio le que fe fuftentão; Nefte edifício la Nacapirau fe apofentou no anno le mil ôc quinhentos ôc quarêta qua- uor o Rey dos Tártaros, quãdo pôs erco a efta cidade, como adiante íe lira, no qual por íacrificio diabólico k fanguinolento, mandou degolar rinta mil peífoas, das quais as quin*

I}0

ze mil eraò moiheres, Sc as mais del- ias moças ôc fermofas, Ôc filhas dos principais fenhores do reyno, Ôc reli- giofas profeífas das feitas do Quiay Figrau, deos dos atamos do Sol, Ôc do Quiay Niuandel, deos das bata- lhas, & do Compouitau, ôc doutros quatro cujos nomes faõ Quiay Mi- truu, Quiay Colompom.Quiay Mu- helee, Ôc Muhee Lacafaa, cujas cin- co feitas faó as principais das trinta Sc duas que ha nefte reyno, comoa- diante fe declarara quando fe tratar delias. Mas tornando a meu propo- fico, dencrona cerca deite grande e- dificio de que hia tratando, vimos alguas couías què me parecerão me- recedoras de fe fazer memoria del- las,hua das quais he outra cerca no a.~> mago deita, dequafí bua legoa em roda,armadasas paredes delia íobre arcos de cantaria muyto fortes,& em cima no lugar das ameyas fechada toda em roda com grades de lataõ, &a cada íeis braças tirantes de fer- ío íbbre colunas de bronzo que fe- chauão de huas nas outras, com infi- nidade de campainhas penduradas por cadeas, as quais mouidas co àr, que continuamente lhes daua, faziáo hum continuo ôc tão efpantofo ruy- do, que não auia peííoa queopu- deífe efperar. Aquy nefta fegunda cerca em bua grande porta por on- de encramoseftauáo,em figuras muy to disformes, os dous porteyros do inferno,fegúdo elles dizem, hum pof nome Bacharom,& oucrO Quagifau, ambos maças de ferro nas maós, ôc taõ feyos em tanto eítremo, que R z ascar-»

Terigrinapes de

as carnes tremião aos que olhauão pa re a que eftaua encoftado por canos

ra elles. Paííando efta porta por bai. xo de húa groífa cadea que a atra- ueífauatoda, & fechaua nos peicos deites dous diabos, fomos dar nua rua rouyto fermofa,aísi de larga co- mo de comprida, fechada toda de bua banda & da outra com arcos to- dos pintados de diuerfas maneyras, por cima dos quais hião duas fíleyras de Ídolos quanto diifaua o compri- mento da rua,em que aueria mais de cinco mil vultos,os quais não deuifa- mos bem de qeraó feitos, poré erao todos dourados, & com mitras nas cabeças de diuerfas inuençoés.No ca bo d efta rua eftaua hum grande ter- reyro,quadrado,lageado todo de la- geas muy to primas brancas & pretas, aíTentadas ao modo de enxadrez, ôc todo â roda cercado de quatro fíley- ras de gigantes de metal de quinze palmos cada hum, & com alabardas nas mãos, & as grenhas das cabeças, & as barbas douradas, o qual efpe- éhculo, a fora o contentamento que dauã aos olhos,moftraua também real & aífaz grandioío aparato. No cabo deite terreyro eftaua o Quiay Hujão Deos da chuua, encoftado a hum bordão, de mais de fetenta pal- mos de comprido, ôc elle tão alto q dauacom a cabaça encima nas ame- yas da torre, que feria de mais de do- ze bracas,o qual era também de me- tal, & botaua pela boca, pelas faces, pela tefta & pelos peitos vinte & ieys eíguichos de agoa, que a gente em- baixo tomana por grande relíquia, a qual agoa lhe vinha de cima da tor--

tão íecretos que ninguém lhos enxer gaua. E paíTando nó» por baixo da; fuaspernas, que elle tinha afaftada; húa da outra com que fazia o portal por onde a gente fe feruia, fomos dai em hua grande caía como igreijí muyto comprida,& de três naues cc efteos de pedra de jafpe muyto grof fos, & altos, ôc ao longo das parede* de hua parte ôc daoutra,muyta forn- iria de idolos grandes Ôc pequeno* em diuerfas figuras todos dourados os quais poftos em prataleyros poi muyto boa ordem, tomauao toda í largura ôc comprimento das paredes & aviria dos olhos parecia que erac todos de ouro. No cabo deftacaíà em hua tribuna redonda de quinz( degraos eftaua hum altar feito â pro- porção da tribuna, fobre o qual efta- ua a eftatua da Nacapirau, em figu- ra de molher muyto fermofa,cos ca- bellos foltos por cima dos ombros, &as mãos ambas leuantadas ao Ceo. & ella em íy tão refplandecente poi íer o ouro muyto fino ôc muyto b.r i| nhido, que náo auia quem lhe pudei le ter os, olhos direytos, porque os rayos que de íy lançaua cegaua co- mo os de hum efpelho. Em torno de- fta tribuna nos primeyros quatro de- graos eftauão doze Reys da China em vultos de prata, com coroas nas cabeças, & maças darmas as cofias. E mais abaixo íe vião três fíleyras de Ídolos dourados poftos em joelhos com as mãos leuantadas, Ôc ao redor encima no âr muyta foma de can- dieyros de prata, de féis ôc fete tor- cidas,

Fernão zfMendc^Tinto. 1 3 1

:idaSjj>indurados dos tirantesque a- bresôc ricos que aquy vimos, hum

rauenãuão a caíaSaindonosdaquy, ios íòmos por outra rua cambem de ircos<jlamaneyra da outra por on- \c tínhamos entrado, & deita por nitros duas? também de edifícios niiáo ricos, & fomos íayr a hum TraSde terreyro, no qual eftauão oi- :enia & dous finos de metal muyto brandes, que eftauão pindurados por cofias cadeas de hú> tirantes de fer- ro que de hua ponta & da outra íe tiftentauão fobre colunas de ferro coado. Saydosnós também daquy, chegamos a húa porta muyto forte, pofta entre quatro torres muyto al- tas, na qual eftaua hum Chifuu com trinta homes de alabardas, & dous efcriuaés que tomauao nús liuros os nomes de todos os que fahião,como fizerão também a nós aos quais de- mos trinta reis da fayda.

CAT. CXL

T)o quarto edifício fítuado no me- jo do rio* onde eílao as cento &tret?e capellas dos^js da (Joina.

Por acabar ja de dar fim a efta matéria , a qual, fe eu ouuer de dar conta de todas as particularidade delia, viria a fer quaíi infinita, entre hua grande quantidade de edifícios no-

que me pareceo maisnotauel foy hua cerca ficuada no meyo do rio da Ba- tampina, de quall hua legoa em ro- da, em hum ilheo rafo a modo de li- zira, cercado todo em torno de can- taria muyto prima, que pela parte de fora íe leuantaua fobre a agoa al- tura de mais de trinta & oito pal- mos , & por dentro ficaua rafa co chão, fechada por cima toda em ro- dade duasordés de grades de latão, de que as primeyras q eftauão mais para fora, erao de leis palmos dalto lomente,em que a gente íe podia en- coftar, ôc as fègundas q eftauão mais por dentro, eraó de ncue palmos, as quais tinhaó leoés de prata poítos en-« cima de bollas redondas, que como jadiííe alguas vezes, faó armas dos Reys da China, Deftas grades para- dentro eftio,por muyto boa ordem, cento Sc treze capellas a modo de ba luartes redondos, em cada hua das quais eftaua hua rica ftpultura de a- labaftro, aíTentada com muyto ar- tificio fobre duas cabeças de ferpen- tes de prata, que por eftarem ehrof- cadas, & terem muytas voltas, pare- dão fer cobras,inda que tinhaó os ro fios de molheres,com três cornos nas teftas,que não foubemos determinar: o que fignifícauão, E em cada hua deftas capellas ardiao treze cãdieyros de prata de fete torcidas cada hum,q ao todo e eftas céto & treze capellas, vinhão a fer os candieyros mil ôc quatrocétos & trinta & noue.No me yo de húa grande praça, fechada em ioda com três ordésde grades, «Seco

R 5 duas

yerigrinâçoês

duas fileyras de ídolos, eftaua húa torre, muyto alta cinco curucheos de diuerfas pinturas, & feus lcoés de prata no mais alto delles,na qual nos deziao os Chins que eftauão as oíTa- das deftes cento & treze Reys.que Te tinhão paíTado para aly daquellas ca- pellas debaixo; E eftas odiadas (que elles veneraõ por grande reliquia)di- zem elles que todas as luas nouas fe banqueteão húas com outras, pelo qual a géte commum neftes tais dias lhes cuftuma ofFerecer infinidade de aues de toda forte, arroz, vacas, por- cos, açúcar, mel, & todo o mais gé- nero de mantimento a que fe pode por nome, & por efta ajuda que lhes dão para eit.es banquetes, a qual os facerdotes tomão toda para fy, cuy- dão elles que fícao remidos como por jubileu plenifsimo, de toda a im- mundicia de feus peccados. Aquy nefta torre vimos também húa ri- quifsima caía; toda dalto abaixo for- rada de paftas de prata, na qual efta- uão eftes cento & treze Reys da China em figuras de vulto também de prata, & a oííada de cada hum dos Reys eftaua metida em cada hu daquelles vultos, porque dizem que afsi todos juntos, fegundo lhe de- ziao os íèus facerdotes, íe communi- cauão de noite hunscos outros,& ti- nhão feus paíTatempos que ninguém era digno de ver fe não certos bon- zos, a que elles chamão Cabizondos, que faó de dignidades & grãos mais altos que os outros, como Cardeais entre nós. E de eftas cegueyras & ig- norâncias, & de outras muytas nos

contauão eftes miferaueismuyta quã tidade, em que elles crem tão firme- mente como fe foraó verdades muy-, to claras & manifeftas. Em toda efta grande cerca contamos em dezaíTe- te eftancias trezentos & quarenta fi- nos de metal, & ferro coado, vinte em cada eftancia, os quais todos íè tangem em certos dias da Lua, q Íà5 aquclles em que elles dizem que ef- tes Reys íe viíitaó & fe banqueteão. Iunto defta torre núa riquifsima ca- pella armada no ar fobre trinta & íe- te pilares de cantaria muyto forte,e» ftaua a eftatua da deofa Amida fei- ta de prata, cos cabellos douro, íb- bre húa tribuna de quatorze degraos, toda cozida em ouro, tinha o rofto bemaíTombrado, & as maós am- bas leuantadas ao Ceo, dos feus ío- baços pendião enfiados como ra- mais de contas hua grande fomma de idolos, tamanhos como hum me- yo dedo, & nos lugares íècretos ti- nha duas oftras de pérolas guarne- cidas douro muyto grandes. Epre- guntando nós aos Chins pela ílg- niflcaçaó daquellas coufas, nos dil- íèrão, que defpois que Deos ala- gara o mundo com a agoa dos rios do Ceo, em que fe afogara todo o género humano, vendo que a ter* ra ficaua deíèrta, & fem auer nella quem o louuaíTe, mandara do Ceo da Lua a deoía Amida camareyra mórdaNacapirau fua molher para- que reftauraflè a perda da gente q fe afogara, a qual em pondo os peis em hua terra queja era defalagada, por nome Calempluy (q he aquella ilha

ou

'erriao ivien

■ulizira que atras diíTe, que cita na níeada do Nanquim,onde António e Faria defernbarcou em cerra) cila z tornara toda em ouro, ôc aly eftã- o em & co rofto no Cco, íiiara •elos fobacos grande foma de crian- as, pelo do braço direyro machos, c oelo do ezquerdo fêmeas por não er outro lugar no corpo por onde as ludeíTe parir, como tem as molhe- es do mundo que tem peccado, em :aít!go do qual as fojeitara Deos por >rdem da natureza à miíeria da cor- ■upção cuja & fedorenta; para mo- Irar quanto lhe fedia o peccado co- metido contra elle. E defpoisdepa- •idas,ou lançadas pelos fobacos eílas :riíncas,as quais affirmão que foraõ irinta* & três mil & trezentas Ôc trin* :a & tres,asduas partes de fêmeas ôc bua de machos, porque dizem que ifsi auia fempre de auer no mundo, Seara tão debilitada daqueile parto, por não ter quem a proueííe do ne- zeiTario, que lhe deu hum vagado de fraqueza tamanho,que cayramof ca em terra,fem nunca mais fe leuan- car ategora, pelo qual a lua em me- moria do íentimento deita morte, fe cobriodedó,q fao aquelías nódoas dafombra da terra q comummente lhe vcmos,& q quando acordar, que ferádefpois de paílarê tantos annos quantas foraó as crianças que pario, quefaõ,corno diffè^^. então tira- a lúa aquella mafeara do dó, ôc ficara a noite daly por diante tão clara como o dia. E deites defatínos & outros muytos a efte modo nos contarão tantos, que he muyto para

into. ijz

pafmar, mas muyto mais para cho- rar^vei com quão claras & manifef- tas mentiras traz o demónio tão en« ganados a homens por outra parte tão entendidos, íèm poderem atinar com a trilha deita noíTa fanca verda- de que o filho de Deos yeyo notifi- car ao mundoj porem o fegredo di- fto elle o íãbe. Dsfpois que faimos deite terreyro onde vimos todas ef- tas couías, fomos a outro templo de religiofas muyto fumptuofo &nco, no qual nos diííerão que eftaua a mãy deite Rey, que fe charn^ua a Nhay Camifama, ôc nefte nos não deixarão entrar por fermos eftran- gcyros. Daquy fomos por hua rua toda de arcos até chegarmos a hum caizquefe dizia Hicharioo topileu, onde auia grande íomma de embar- caçoens de peregrinos de diueríos reynos que continuamente concor- rem a efte templo por jubileu pie- nifsimo, que el Rey da China Cof- chaens do gouerno lhe tem conce- dido, Ôc juntamente priuilegios de muyta franquia por toda a terra, ôc comer de graça em muytâ abaftança. De outros muytos mais templos que vimos nefta cidade os doiis meies q andamos nella em noíTa liberdade, não trato, porque querer dar por extéfo relação de sodos fera procefíb infinito, mas não deixarey de di- zer algúas coufas outras particula- res,& dignas de fe notarem, que vi» mos,de que a primeyra fera dizer ca a mayor breuidade que puder algúa eoufadas cafas ôc do eftado dei Rey daChina,&do gouerno da íuaRepub R 4 liça,

1

'mgrtnáçods

Ika,&dos miniftros da juftiça, da fa- zenda ,& da corte, paraque íe faiba a maneyra com que efte Gentio gouer- aa o feu ponoà a prouidécio q tem em todas as couíãs delle.

QâT. CXIL

*Do proumento que fe tem com to- dos os aleijados <& gente defemparada,

Rey da China refíde o mais do tempo nefta cidade do Pequim,por

fmm

i wm .

e^JÉS^i aísi o prometer & jurar no dia da fua coroa*

jFÍ^ÇujÇ^gíK^

çaó,em que lhe metem na mão o ce- tro de todo o gouerno, do qual ao diante tratarey hum pouco. Nefta cidade era ruas íeparadas por fy de certos bairroSjha húas cafas a que el- les chamáo; Laginampur, que quer dizer iníino de pobres, nas quais por ordem da camará fe eníina a todos os moços ocioíos a que íe não íabe pay,afsi a dourrina, como o lér & ef- crcuer,&; todos os offícios mecânicos, ate que por íuas mãos pode ganhar fuás vidas, Ôc deftas cafas não ha taõ poucas nefta cidade, que não paílèm de duzentas, Ôc quiçá de quinhentas; & ha outras tantas,emque também por ordem da cidade eftão muytas molheres pobres que fao amas, Ôc dão de mamar a todos os engeitados- a que de certo íe nãj^be pay nem máy,porem antes qcPeftes fe aceite nellas cafas, faz a juftiça íbbre iífo gvandes exames, & fefe vem a faber

Ht

qual foy o pay ou a mãy do enjeita* do,os caftigao grauernente, &os de- gradão para certos lugares que elles tem por mais efteriles ôc doentios. £ defpoisde íerem criados eif.es enjei- tados,íer^partem por eftoutras cafas que digo,onde íaò iníinados. E feâU gus por defeito da natureza não iaó para aprender offícios^ também íè lhes dá- outro remédio de vida, con- forme á ntcefsidade de cada hum, fe faó cegos, dão acadaatafoneyro, q tem engenho de mão,très,dous para moerem, & hum para peneyrar,& e- fte he o modo que às Republicas paraprouerem,afsi os cegos como os outros neceísitados que a cidade a feu cargo?porque nenhum mecânico pode aífentar tenda para offkial, fem licença da camará, Ôc quando algum faz petição em que pede efta licença, logo lha dão, com obrigação de íu~ ftentar ou hum, ou mais daquelles neceísitados que pertencerem para ofeuofncio,paraque daquilío de que elle pretende íuftentaríejíè remedee também o pobre,porque dizem elles que he ifto obra de proximidade mã- dada por Deos, Ôc muyto aceita a el- le,& pela qual elle difsimula nof- co o caftigo de .noífos peccados, Ôc a cada hum deftes três cegos ha o ata- foneyro de dar de comer Ôc veftir ôc calçar, & íeis coftoés por anno,paracj quãdo morrer tenha que deixar por fuaalma,porque não pereça, porfer pobre, na concaua funda,dacafado fumo,conforme ao quarto preceito dadeolaAmida.queíoya primeyra de quem eftes cegos corrlaraó íuas

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Femao s;

fipéfftiçoesi& fuás erronias, a qual, fc t.ndo parece,foy defpois dodilu- uio í ei icemos & trinta & féis annos, E cíla feita com todas as mais que fe achao ncfte barbarifmo da China,q, íegundo cu foube delles, &jadiífe algúas vezes,íàó trinca & duas,vieraó do reyno de ?egu ter a Sião, & daly por façerdotcs ôc cabizondos fe eipa- lharaó por toda a terra firme de Cá- boja,Champaa,Lacs, Gucos, Pafuas, Chiammay, império de Vzanguee, &Cauchenchina, &peío arcipelago 3as ilhas de ÀinãoXequios,& íapaõ, ite os confins do Miacoo & Bandou, le maneyra que a peçonha deíles er- >escotrõpeo tamanha parte do mu- lo como a maldita feita de Mafa- nede. Ha também outro remédio le vida para os aleijados não perece-. ema fome,oqual hc, que osaleija- íos dospeis que não podem andar, ãofe aos efparteyros paraque torção imiças, ôc facão em preitas para iei- dcs & outras couías que as mãos po-* em Fazer. E para os aleijados das ióos,que não podem trabalhar com [las, dãolhe huas feiras paraque ás aftas a carretem das praças por di- hey ro,carne,pefcadoyor taliça, ôc ou- |bs couías,á gente que nem tem que 10 Iene, nem o pode elia leuar,&aos ue faó aleijados de peis ôc de mãos, Dm que totalmente carecem de re- íedio para ganharem por íy fuás vi- as, poemnos em huas caías muyto randes como moftevros, em q tam- * em ha grande quantidade de mer- ÉeyraS.que rezem pelos defuntos, ÔC as offertas dos íai mentos de todos

%íende^Pi

?nae^LJmto. i„

os mortos lhes dão a metade, ôc aos facerdotes a outra a metade. E feíãõ mudos,tambemfe recolhem em ou* tra cafa como hoípital,& para fua fu- ftentaçaó lhe aplicão todas as penas das regateyras ôc molheres brauas q íè deshonraô em publico. Para as mo lheres publicas que na velhice vieraõ a adoecer de algúas doenças incura- ueis,ba também outras cafas da me£ ma maneyra, em que ião curadas ôc prouidas muyto abaftadamente â cu- ítadas outras molheres publicas do meimo officio, para a qual obra cada fiúa deftas paga de foro hum tanto cada més, porq tãbê cada hua deftas pode vir defpois a cayr na meíina in> firmidade,& então as outras que fo- rem fãs pagarão para ella o que eíla agora em íàm paga para as outras doentes. E para a arrecadação deitas rendas ha homés poítos pela cidade, aqueTedãoporifíb bós ordenados. Ha também outras cafas como mo-» fteyros, em que fe fúftentao muyta foma de moças orfãs,as quais a cida- de prouee,& cafa a cufta das fazendas que perdem ãquellas que feus mari- dos accufaraó por adultérios, ôc dão ãifto por razão, que ja que aquella fe quizperder por fua deshoneftida- de,que fe empare co feu hua orfam, pois he virtuofa, porque aísi fe cafti- guemhuas,& fe emparem outras. Ha também certos bairros em que íè a- gafalhaõ homés pobres & de bom vi- tier,que a cidade também fuílertta â eufta dos procuradores que fuftentão demandas injuftas cm que as partes não tem juftiça, Ôc de julgadores q

^Peregrinações de por aceitação de peíToas, ou por pci- do reyno celeyros de trigo & de ar-

roZjporqtie quando por algúa efteri» lidade a terra não deííefruyto, como algíías vezes fe acontecia,tiueiTe agé- te mantimento de que fe fuítentaííe aqueile anno,paraque os pobres não pereceíTem â raingoa,& que para iíío daua toda a decima parte dos direy- tos reais, E mandando paflàr, diíío

m lodoso 'reyno celeyros Vara os h™ ?^*° &<f 1 P"? todas f áá** j , i c> cd ' des que erao cabeças dos ancnacila-

f obres, ç> qualjoy o \Rey

tas não correm cos feyto \ conforme ajuftiça, de maneyra que em tudo fe gouerna efta gente com muyta or- dem.

CJT. ÇXUL

Da maneyra quefe tem para auer

dos das comarcas,diza chronica,que trazendolho paraque o afsinaííe com hum finete douro que trazia no bra- ço,com que,poríèr cego, o cuftuma- ua defazer,logo em o afsinando lhe deraDeosvifta perfeita, a qualíem- pre tiuera todo o tempo que defpois prouer o íeu reyno de mantimentos, viueo,que foraô quatorze annos. Pe- paraque a gente pobre não padeça lo qual exemplo (fe afsi foy) parece

que Mo ordenou,

Ambem he razão que je faiba a grandiísima ordem & marauilhoto gouerno que tem efte Chim Rey gentio em

neceísidades,& para iíío direy òque difto fe trata nas fuás chronicàs, que eu aliiúas vezes ouuy lér, eferitas em letra de forma ao feu modo, que aos reynos & republicas Chriftâs pode fer exemplo, afsi de caridade como de bom gouerno. Contaó eftas chro- nicàs que hum Rey,bifauodefteque agora reyna,por nome Chaufiraõ Pa nagor, que por húa grande infirmi- dade que tiuera perdera a vifta, era grandiísimamente amado do feu po- uo,pela realidade & brandura da fua condição & natureza. Efte deíejando de fazer a Deos hum grande feruiço, & quelhefoíTe fummamente agra- dauel,cbamou a cortes, & nellas or- denou que para remédio de toda a gente pobre ouuefle(comoinda ago- ra ha) em todas as cidades &villas

que quiznoífo Senhor moftrar quã- to lhe agrada a caridade que por fettf amor fe vfa cos pobres, ainda entre os infiéis, & que o naó conhecem. E de então para ouue fempre em to* da efta Monarchia hum grande nu- mero de celeyros,que, fegundo fe af- firma,faò quatorze mil cafas. E a or- dem que as camarás do gouerno emosprouerem fempre de manti- mentos nouos,he efta. Tanto que as nouidades parece queeftãoja certas & íeguras, fe reparte o trigo velho por todos os moradores & gente dos lugares, conforme â pofsibiíidade de cada hum,& lho dão a modo de em- preftimo,por tempo de dous mefes, os quais homés, acabado efte tempo que pela juftiça jíhes foy pofto, vem logo todos entregar outro táto trigo

nouo

'ermo

nouo quanto receberão velho,&dão mais de crecença a íeis por cento pa- ra as quebras, porque nunca fe dimi- nua a copia que aly fe pu(er,& quan- do acerta o anno a fer efteril,fe repar- te também o trigo pelo pouo fem fe leuar por ifíb ganho nem intereíle ai gum,& o que fe à gente pobre ój não tem com que fatisFaça o que fe lhe emprefta,eíTè todo fe eontribue das rendas que as terras pagaõ aei Rey,por fer efmolla que elie porá- quelle padrão lhe tem feita, o qual eftàregiftado em todas as camarás, paraque os Anchacys da fazenda o leué em conta. E de toda a mais ma£ fa das rendas do reyno, que he hua muy to grande quantidade de picos de prata, fe fazé três partes, das quais húa he para a fuftentação do eftado real, & do gouerno do reyno, outra paraadefenfaõdas terras, Ôc proui- mentodosalmazés, & das armadas, & a outra fe põem em tifouro aquy nefta cidade do Pequim, com o qual o Rey de poder ordinário não pode bulir, por eftar deputado para a de- fenfaõ do reyno,& para as guerras cj muytas vezes fe tem cos Tártaros, & co Rey dos Cauchins,& com outros Reys que confinão com elle, ao qual tifouro elles chamão, Chidampur,cj quer dizer, muro do reyno, porque dizem elles que em quanto aquelle tifouro eftiuer aly viuo para remé- dio dos trabalhos,a que de necefsida de fe ha de acudhyiao lanhara o Rey tributo nem finta fobre os pobres.né os pouos feraó feuexados,como te faz nas outras terras em que fe não tem

endez Tmto.

n

efta prouidencia, Afsi que em toda5 as coufas ha nefte reyno hum taó ex- cellentegouerno,& húatãoprompta execução nas coufas delle^que enten- dendo bem ifto no tempo que an- dou aquelle bemauenturado padre meftre Francifco Xauier, lume no íeu tempo de todo o Oriente,cuja virtu- de ôc fantidade o flzerão taó conhe- cido no mundo, que por iíTo efcuía- rey por agora tratar mais delle, eípã- tado,afsi deftas coufas, como doutras muytas excelíencias que nefta terra vio, dezia, que fe Deos algúa hora o trouxeífe a efte reyno, auia de pedir de efmolla aei Rey noffo Senhor q quifeffe ver as ordenações, ôc os efta- tutos da guerra & da fazenda,porque efta géte fe gouernaua, porque tinha poríemduuidaqueeraó muyto mi- lhoresque os dos Romanos no tem-* po de fua felicidade, Ôc que os de to- das as outras naçoens de gentes de que todos os efcritores antiguos tra- tarão.

CJT. QXllll

T)o numero da gente que viuenas

cafas delT^ey da (hina^ &• dos

nomes das dignidades fupremas q

gouernao o reyno, õ* das três

principaes feitas que ha

nelles.

g! Or me temer que parti-" cularizando eu todas as coufas que vimos nefta cidadela grandeza eííra-

nha

Peregrinações

nha delias poiTa fazer duuida aos que as lerem,& também por não dar ma- téria a murrnuradores ôc gente pra- guenta,que querem julgar das coufas conforme ao pouco q elles viraò, & q íeus curtos ôc rafteyros entendimé- tos akanção,de lanharem juyzos fo- bre as verdades que eu vy por meus olhos, deixarey de contar muytas coufas que quiçá derão muyto gofto agente de efpiri tos altos, ôc de enten- dimentos largos & grandes, que não medem as coufas das outras terras pelas miferias ôc baixezas que tem diante dos olhos,porque eftes fey eu, que afsi pela grandiofídade de feus efpiritos, como pela fua natural cu- riofidade,& pela capacidade dos feus entendimentos folgarão muyto de as íaber.Mas por outra parte não porey também muyta culpa a que me não der muyto credito, ou duuidar do q eu digo,porque realmente affirmo q eu mefmo q vi tudo por meus olhos, fico muytas vezes confufo quando i- magino nas grandezas deíla cidade do Pequim, no admirauel eílado co que fe fetue efte Rey Gentio,no apa- rato dos Chaés da juftiça, ôc dos An- chacys do gouerno,no terror ôc efpá- *o q em todos caufaó os feus mini- ftros, Ôc na fumptuoíidade das cafas ôc téplos dos feus idolos,& de tudo o xnais q ha nella, Porq fomente na ci- dade de Minapau,q eftâ fituada den- tro da cerca dos paços dei Rey,ha mil capados, & trinta milmolheres, & doze mil úomés da guarda, a q el Rey dâgrolTos falarios ôc téças,& do 2cTutoês,q faòas dignidades. íupre:

masfobre todas as outras, aos quais (como jadiíTe) o comum chama rci- plandoresdò Sol, porq como o Rey fe nomeapor filho do Sol, dizé elles, q eftes doze, por reprefentaré em tu- do fua peflba, fe chamáo refplando- res do Sol. E abaixo deftes doze ha quaréta Chaés,q faó como Viforreys, a fora outras muitas dignidades mais inferiores,que faò como Regedores, Gouernadores,Veadores da fazenda, Almirantes, Capitães mores,q fe no- meáo por Anchacys,Aytaos, Pócha- cys,Lauteaas,& Chúbins,os quais to- dos ainda qneítacidade,q he a corte, íaõ mais de quinhentos,nenhum traz eílado de menos de duzentos homes, ôc os mais delles, para mayor efpan- to, faó gentes eftrangeyras de diuer- fas nações, dos quais a mayor parte faó Mogores, Períios, Coraçones, Moés,Calaminhãs,Tartaros,& Cau- chins.&algús Bramaas,do Chaleu ôc Tanguu, porque dos naturais não fa- zem conta por íèr gente fraca, ôc pa- ra pouco, inda que muyto habiles ôc- engenhoíbs em todo o negocio me- cânico* & de agriculturas,& arquitei- tos de engenho muyto viuo, ôc inué- tores de coufas muito fotis ôc artificio ías.E as molheres íaó muyto aluas,& caftas, ôc inclinadas a todo o traba- lho mais q os homes:a terra em fy he fértil de mantimétos,táo rica Ôc abaf- ad a de todas as coufas,q em verdade afirmo q não íey como o diga, porq parece q não ha entedimento q poíTa cõprender,quãto mais palauras, que poílaõ declarar os nomes de tantas ôc tão varias coufas quantas Deos

quiz

Fernão Meneie^ <P,

quíz dar a efte pouo infiel & inimigo *u;ôc tão ingrato a todas eftas mer- :cs que recebe d elle,que tem para (y í pelos merecimentos do feu Rey >roduze a terra toda efta abaftança, k não pela diuina prouidencia,& pe- oamor dacjuelle Senhor que tudo >ode. Deíla lua cegueyra & incredu- idadelhe nacernos grandes defati- ios,& a grande confulaô de fuperfti- oés cjuc tem entre ly,em q tem min/ osabufos & cerimonias diabólicas, c víaõ de facrificios de Tangue hu- nano,os quais offerecem com diuer- idade de fumos cheyroíbs, Ôc com randes peitas que dão aos feus fa- erdotes,porque lhes fegurem gran- as beés nefta vida,& na outra rique- as de ouro infinitas, os quais facer- otes lhes dão para iflb hus efcritos orno letras de cambio,a que o com- num chama Cuchimiocòs,paraque i no Ceo,em elles morrendo,lhes cento por hum, como que tiueílèm lies refpond entes. E nifto eftáo :es miferaueis tão çegos,que muytas ezes deixão de comer, &prouerfe o que lhes he neceílario, por terem [ue dar a eftes facerdotes de fatanas, uendo efta veniaga por boa & muy- 3 fegura, Ha também outros facer- otes doutra feita qfe chamão Nau* X)lins,os quais pelo cõtrario pregaò os feus ouuintes, & lho affirmão jandesjuramentos^ue não ha mais me viuer ôc morrer como qualquer >ruto, Ôc por iífo que fe logrem dos >ees enrquanto lhes durar a vida,por jue de ignorantes era cuydar outra :oufa. Ha outros doutra íeita que fe

int% jtf

chama Trimechau,que tem por (opi- nião que quanto tempo hum home viue nefta vida, tanto ha de eftar morto debaixo da terra, Ôc deípois por rogos deites feus facerdotes fe ha de tornar a fua alma a meter nua cria ça de fete dias,para de nouo viuer na quelle corpo, até tomar forças para tornar em bufea do corpo velho aue deixou na coua,para oleuar ao Ceo da Lua, onde dizé que dormirá hua grande foma de annos.até fe conuer- terem eftrella, Ôc que aly ficará fixo para fcmpre. Outros de outra feita q fe chama Gizom,tem para fy que fós as beftas pela penitencia que íizerao nefta vida cos trabalhos que leuarao nella,alcançarão defpoiso Ceo^m q defcanfem, ôc não o homem q fem- pre viueo â vontade da carne,roubã- do, Ôc matando, ôc fazendo outros muytos peccados, pela qual razão por nenhu cafo pode fer faluo fenão o que à hora da morte deixar quanto nuer ao pagode Ôc aos facerdotes que roguem por elle. De maneyra que todo o fundamento deftas fuás dia- bólicas feitas efta pofto em tirannias, &em proueito dos bonzos que faó os que ifto pregão á gente, ôc lho af- firmão com muytas palauras,por on- de os triftes dosouuintes parecendo- Ihes fer aquillo verdade,lhes dão tu- do quanto tem, porque cuydãoque com lho darem ficão faluos &íègu* ros dos medos com que os ameaçao fe o afsi não fizerem. Não quiz nefta matéria tratar de mais q deftas três feitas fomente, ôc quiz deixai- todos os mais abufos das trinta ôc duas fei- tas

^Perigrinaçoes de tas que lia nefte grande império da pouco trabalho,como por fer o rM

China,afsi porque declaralios todos ferâproceíío infinito, como ja diífe alguas vezes, èomo porque deftes fe pode bem entender quais Terão os ou tros, porque todos faó a efte modo. E deixando o remédio deftes tama- nhos males ôc cegueyras a mifericor- dia& â prouidencia diuina aquém fomente elle compete, não tratarey daquy por diante de mais quede co- tar outros trabalhos quepaíTamos no noíío degredo na cidade de Qua- íy^até Termos catiuos dos Tártaros q foy no anno de mil & quinhentos ôc quarenca &: quatro.

CAT. CXV.

Como fornos leuados para Quanfy

a comprirmos noffb degredo 5 &• da

defauentura que ahy tiuemos

pouco tempo defpois que

chegamos.

iS

mm

Eípois de auer dous meTes & meyoque an- dauamosneíta cidade do Pequim, hum Tab- bado treze dias do mes de laneyro do anno de 1544, nos le- uaraó para a cidade de QuanTy a cõ- prirmos o noílo degredo, onde che- gados, nos mandou o Chaem leuar perante fy,& deípois de nos fazer al- guas preguntas, quiz que oferuhTe- rrsos na guarda dosoitéta alabardey- ros que el Rey lhe daua, o que nós não tiuemos por pequena mercê de noflb Senhor,aTsi por Ter o officio de

timentomuytoauetajado «Si milhor pago, & nòs termos mais liberdade. E auêdo ja quaíi hum mes que aquy eftauamos pacificamente, ôc conten- tes de nós por acertarmos milher tratamento do que eTperanamos, ve- do o demónio quão conformes vi- uiamos todos noue, porque tudo o noílb era comum de todos, ôc todos irmammente repartíamos entre nòs eíla miTeria que cada hum tinha, or- denou Temear entre dous de nòs hua contédaaíTazperjudicial para todos, nacida de húa certa vaidade que a nofía nação Portugueíà tem comfi. go,a que não Tey dar outra razão Te- não ter por natureza Ter mal Tofrida nas coufasda honra, ôc a diiíerença foy efta. VierãoacaTo dous dos no- ue q eramosatrauarTeem palauraí Tobre qual geração tinha milhor mo- radia na caía dei Rey noíTo Senhor, íè os Madureyras Te osFonTecas, ôi de palaura em palaura veyo o nego- cio a chegar a tantoque vieraó a vTai dos baixos termos das regateyras, di- zendo hum para o outro quem íoií vos? mas quem Tois vos? por ven- tura cada hum delles ter pouco mais de nada. E com ifto fe meterão en: tanta cólera, que Hum delles deu ao outro hua grade bofetada, a qual ou- ue por repofta húa grande cutilada pelo rofto do que a deu, dada hua faca,que lhe derrubou meya face era baixo,& o ferido lançado mão a hua alabarda,decepou ao outro hu braço. ôc trauandofe com ifto a briga entre todos noue Tobre efta defauéturada

queftãoj

Fernão MendezJPkã* \]6

[ueflãòjâ coiíía veyo á eftado q def ou Sumbor,ou Lamau, para onde íe

ois de íèce de nos eftarmos muyto cridos, acudio o Chaem empeflba om todos Os Anchacys da juftiça,& )mandortos âs mãos,riós.deraó logo cada hum trinta açoutes, de que fí- imos mais fangrados que das Feriu as,& nos íeuaráo a húa mazmorra q taua debaixo do Chàó,Onde nos ti- erao quarenta & íeis dias com gri- loésnos peis, algemas nas maõs, & )lares nos pefcoços, com que paíTà- ios aflfaz de trabalho. Efté noíTo ne- xio fe pós logo na mão do prome- (rdajuftiça,© qual veyo logo com Dello contra nós^&i nuni dos artigos :lle,o quaí prouóu com dezaíleis té- ;munhas,veyo dizendo que nos e- mos gente Tem temor nem conhé- méto de Deos,nem tínhamos niais je confeífalo com â bocà,como po* a fazer qualquer animal bruto ubeíle fallar, porque de crer era cj )més de huâ nação,dé hum fanguéj ; húa carne,de húa terrá,de hu rey^ ),de húa lingoa,& de hua ley,que íe rião & matauáo tãto fem piedade, m auer caufa nem razão para ííTo, lo era fenão por Termos feruos rpe tragadora da cafa do fumó,o q via claramente em noíTas obras, >is eraò tais como as que ella fem- ecuítumaua de fazef,peío qual có- rme á ley do térceyro liuro das bro ias douro vontade do filho do por nome Nileterau, nos déUião i defterrar ide toda a communicâ- lo da gente, como praga contagio- .& peçonhenta, & que rtofla habi- ,ção foíTe nos motes de Chabaqué,

cuftumauão de defterrar os tais co- mo nòs,para que la ouuiíTernos bra- mir de noite as feras íi^ueftres^erao da noíTa mefma progénie, & vil na- tureza. Daquy nosleuarão hum dia pelamenham Pitau Calidão da juftiça,que era o tribunal onde o Ari chacy eítauá aíTerttado, com aparato aíTaz grande & temerofò, acompa- nhado de muytos miniftros & offí- ciais,aqueelles chámão Chumbins, VpoSjLauieaas^ Sipatoés,afora ou- tra muyto grande copia de ouuintes & requerentes de diuerfas partes, ôc aly nos tornarão a dar a cada ou- tros trinta açoutes, &defpois de nos publicarem âfentertça, nosleuaraô a outra prifaó, onde eftiuemos me- nos trabalho que outra donde nos tirarão,mas arrenegando dos Fonfe- cas& Madureyrasi& muyto maisdo demonio^que tais obras tecera. Ne- fíapriíãõ eftiuemos quafi dotis me- fes, nos quais de todo guarecemõs das feridas Sc dos açoutes, mas paf- fando neíla grandes neceísidades de fome&deíede,riofim do qual te/ri- po prouue a noíTo Senhor q o Chaé ouue mifericordiâ de nos, porq num Certo dia em que elles cuftumao fazer grandes efmolas por feus defuntos,- tornou de nouo à ver a noíTa fenten- ça^ íãhio,qué aUendo reípcito a fer- inos nòs gente eftrangey ra, ôc de ter- ra ôc nàçâo tãó remota que até éntáõ nãoâuiaalyde nòs nenhúa noticia,- nem liuro ou eferitura âlgua que fi- zeíTe menção do noíTo rtome, nem áchaua quem encendeflea noílalirt-

goàgemv

_^,

■I

Terígrinãçoes de goagem,& juntamente por Termos lemos pedir efmola até fermos faôs,

cuftumados £, íofrer a mifera & vil pobreza, a qual muy tas vezes cuftu- maadeíènquietaros bós & quietos, v «quanto mais a gente que não profef- íou paciência em fuás aduerfidades, donde ficaua claro que a noíia dif- cordia procedera mais dos effeitos q a noíla miferia & pobreza caufara em nós,que da ruym natureza de que o prometor nos aceufaua, & auendo também refpeitoaauer na terra pou cos degradados para o feruiço ordi- nário da Republica, & dos officiais da juítiça, a que de necefsidade fe a- uia de acudir, mandaua que por es- mola feyta em nome dei Rey, a pe- na do crime que cometêramos fefa- tisfízeíTe cos açoutes que nos tinhaõ dados, & ficaíTemos aly catiuos para iempre até o Tutão mandar o con- trario fe lhe bem parecefle. E que o q daly por diante flzeííe vnião nos ba- zares, ou tiraíTe fangue a qualquer peííoa,foíTe morto a açoutes omefc rnodia. Efta fentença nos foy logo publicada, & ainda que a ouuimos com aííaz de lagrimas, por vermos o miíerauel eíladó a que éramos che- gados,todauia a ouuemos por menos que a primeyra. Com ifto fomos logo tirados da prifaó, & prefos de três em três fomos leuadosa huas fer rarias, onde eftiuerrios cinco meies com aííaz de trabalho & denecefsi- dades,fem veftido,nem camacuber- tos de pioihos,& mortos de fome,no fim dos quais viemos todos a adoe- cer de modorra,& por fer o mal con- tagiofo,nos lançarão fora paracj fof*

& nos mandarão foltar das prifoés em que nos tinhaõ. E auendo ja mais de outros quatro mefes que afti doé- tes andauamos de porta em porta pe dindo efmoía,que nos dauão muyto raramente,pela muyta eílerilidade q então auia na terra, nos foy forçado conformarmonos todos hus cos ou- tros^ fazermos entre nós hum con- certo prometido & jurado de todos co m. voto foi enne,o qual foy que da- ly por diante viueíTemos em muyta conformidade como Chriftaôs que éramos, & que aos mefes cada hum de nos foíTe como mayoral,a que pe- lo juramento que tínhamos feito, to dos os outros obedeceíTem como fc forafuperior& prelado verdadeyrc de todos,fem nenhum de nòster tade própria, nem fazer outra couíl fe não o que lhe foíTe mandado po elle. E difto tínhamos noíTas regra eferitas por óde nos gouernauamos E ifto quiz noíTo Senhor que dalj por diante nos conferuamos em mu} ta paz & concórdia, índa que foy cc bem grande trabalho & falta do qu< nos eraneceífarioparaavida.

CAT. Ç2.VL

(orno acafo acbey neíla cidade hi

^Tortugue^ &• o que com elle

pajfamos*

Vendoja algus dias < continuauamos todo em muyta paz & quie tacão pela ordem qu atra

Fernão eJUencle^T,

'ernáo c

tras tenho dito, vendo o noíToma- oral daqlle mès,q fe chamaua Chri* :ouão Borralho,quãoneceífario nos ra bufearmos noíío remédio por to- las as vias cj pudeflemos, nos repar- io âs fomanas de dons em dous,.hus iara pedirem efmola pela cidade,ou- ros para bufearem agoa & fazerem le comer,& outros para irem ao ma- obuícar lenha para vendermos ôc ara gaftarmos. E cabédome a rnym mm dia yr ao mato em companhia le hum Gafpar de Meirelez, nos le- lantamos pela menham, ôc nos fa- limos de caía a fazer noíTo officio» icomo efte Gafpar de Meirelez era nuíico, & tangia nua viola, ôc can- aua muyto arrezoadamenre,que faó •artes muyto agradaueis a efta geti- e, porque o mais do tempo gaitao m banquetes & delicias da carne, ;oftauáo aly muyto delle,& era muy- as vezes chamado para eftas coufas, las quais fempre trazia húa efmola :om que o mais do tempo nos reme- liauamos. E indo nos, como digo, :lle ôc eu para o mato, como nos era mndado, acertamos de encontrar nua rua antes que faiflemos da cida- de húa grande fommade gente,que :om grande regozijo ôc feita leua- uão a enterrar hum morto,com muy- tas infignias de pompa fúnebre, no meyo da qualhia hua grande muíi-» ca de muytos que cantauão ôc tan- gião em feus eftromentos, E conhe- cendo hum daquelles,que comoma- yoralou meftre da muíica gouerna os outros,o Gafpar de Meirelez, lançou mão por elle para tanger, ôç metera

ncte^mto. ity

dolhe na mão hua viola lhe difíe, ro- gote que cantes o mais alto que pu- deres, porque te ouça efte deíunto q aquy leuamos,porque te affirmo que vay muyto triíle pela faudade que leua de lua molher ôc de feus filhos a que em eftremo era arTeiçoado,o Gaf par de Meirelez fe. lhe efeufou com alguas razoes que para iífo ihe deu, porem o meftre da muíica lhas não aceytou,mas antes com cólera lhe refpondeo, fe tu não aproueicares a efte defunto com eíTa graça de tan- ger ôc cantar que Deos te deu,não ái~ rey de ty que es homem íanto,como ategora todos cuydamos, masque a excellencia deíía falia que tgs he dos. habitadores da cafa do fumo, cuja propriedade &natureza primeira foy tãbem catar vozes fuaues, inda q agora chorem & gemão no lago da noite como caés esfaimados, q range os détes, ôc eníbpados na baba do o- dio dos homés,fe lhe enxerga a eícu- ma de fuás maldades nas offenías que fazé ao q viue no mais alto dos Ceosv Após ifto pegarão dez ou doze no Gaípar de Meirelez,& o fizeraõ qua- íi por força tanger>& o leuarão com- íigo até o lugar onde auiao de quey- mar o defunto, conforme ao vfo de fuás gentilicas feitas- Eu, vendome afsi , ôc o companheyro leuado porforça^me fuy ao mato abuícar o meu feixe de lenha como me era mandado, Ôc tornando ja fobola, tarde com elle ás coftas, me fahio ao caminho hum homem velho ve- ftido de húas roupas de damafeo pre* to, forradas de pelles de cordeyras S brancas,

Terigrittdçoes de

brancas,© qual vinha fó,& tanto que fabedo determinar o que aquillo pu

me vio fe meteo para húa azinhaga que aly fazia o mato,& á entrada del- ia me efteue efperando,& vendo que eu ao prepaíTar não olhaua para elle, efcarrou alto paracjue eu o ouuiííe, Sc euouuindo oefcarro leuanteyoso- lhos,&pondoos nelle,vy qmeace- naua com a mão, como q chamaua por mym, eu auendo ifto por coufa noua,lhe diíTe pela lingoa do Chim, potau quinay? que quer dizer, cha- mafme? a que elle fem reíponder pa- laura me deu a entender por acenos que íy. Eu então imaginando q po dería aquillo fer negaça dalguns la- droes que me quererião tomar o fei- xe,como algúas vezes aly fe acótece, o pus no chaó, por ficar mais preftes para me defender, & tomando na mão hum pao que trazia para me en- coftar, me fuy para elle meu pafíb cheyo,o qual vedo q eu o feguia, en- caminhou hum pouco apreíTadamé- te para dentro da azinhaga,com que eu então acabey de aííèntar comigo que íèm duuida era ladraó, & torna- do com ifto a me retirar para onde tinha deixado o fcixe,o tomey âs co- itas o mais depreflaque pude, com tenção de fugir para a eftrada por on- de paíTaiia a gente para a cidade.Po- rem o homem entendendo o meu propofito, tornou a efcarrar muyto mais alto, & tornando eu a olhar pa- ra elle, o vy fentarfe em joelhos & rnoftrarme húa Cruz de prata de qua íi hum palmo de comprido, & leuã- tar as maõs ambas para o Ceo, de que fiquey tão cfpantado qtie não

deífèfer,me pus como pafmado ao

lhar para elle, o qual em todo eft<

tempo não deixaua de me acena

com hunsmeneyos piadofosque m<

chegaíTe a elle. Eu então tornand<

mais emmym,me determiney yrfa

ber o que era,ou o que queria, & en

caminhando para onde elle eftaua,c<

meu pao nao mão,o fuy íeguindo pa

ra dentro da azinhaga onde elle i

efte tempo me eftaua efperando, 8

chegando a elle, fem ate então cuy

dar delle outra coufa fenão que er

Chim, fe me lançou aos peis, & con

grandes foluços & muytas lagrima

começou a dizer: Bemdito &louua

do feja o dulcifsimo nome de no]

fo Senhor Ieíu Chnfto, pois a cab

de tanto tempo & em tamanho de

fterropermitio verémeus olhos hc

mem Chriftão, que profeíTaíTe a le

de meu Deos pofto na Cruz. Quãd

euouuy húa coufa taó noua, &

lógedoqeuefperaua, fíquey tãofí

breíTaltado,q afaftandome rijo atn

mais q pafmado, lhe diíTe alto: Em

eíconjuro da parte de noífoSenh(

Iefu Chrifto que me digas quem éi

a que elle muytas mais lagrim;

refpódeo, fou, irmão meu, hum p<

breChníraõ Portuguez, por norr

Vafco CaluOjirmão de Diogo Caiu

q foy Capitão da nao de dom Nun

Manoel,natural de Alcouchete, qi

agora faz vinte & fete annos que m

fta terra fuy catiuo com Tomé P

rez,q Lopo Soarez mandou por en

báixador a efte Rey Chim, que de

pois acabou.defeftradamente por t

defarrar

Femao Mendez^Pinto] 1 3 g

lefarranjo de hum Capitão Portu- de lagrimas de todos. Elle nos leuou

;uez.Ncfte tempo,tendo eu jade to- lo tornado cm mim, o leuantey do haó,onde jazia chorando como hua riança,&'com outras titãs lagrimas orno as fuas,lhe roguey que nos af- mtaffemos aly ambos no chaó, o q lie difficultofamente me concedeo, orqne quiferaq nos fôramos logo ara íua cafa. E tornando elje de no- o a me contar todo o fucceílb de

*

íus trabalhos,me relatou todo o dií- urfo de lua vida,& de tudo o mais q inha paíTadOjdefde que partira defte eyno até então, & afsi da morte do embaixador Tomé Pirez cómodos Liais que Fernão perez Dandrada eixou elle em Cantão para ire ao ley da China^ q,(egudo me elle 3D,não fe conforma muyto co q os oflòs Chroniftas efcreué. E deípois paliamos tudo o q reftaua do dia m nos contarmos hum ao outro os oíTos trabalhos,nos vimos para a ci- ade, & moftrandome a cafa onde oufaua, me rogou q fofle logo cha- lar os outros meus companheyros, : eu me fuy logo ter com elles, & os chey todos juntos na pobre caílnha mq viuiamosefperando por mim, c dandolhe conta do que achara, & e tudo o mais que me acontecera, caraò elles todos tão efpãtados,quã o a nouidade do cafo o requeria, ôc ívieraò logo todos comigo a caía oVafcoCaluo, o qual nos eftaua i efperando com muyto aluoroço c com a meia pofta, ôc chegando a lle,íe tornou outra vez a celebrar a ntrada dos companheyro,com aíTaz

para outra cafa onde eftaua fua mo. lher com dous meninos,& duas mo- ças rilhas fuas,& ella também nos re- cebeo & nos agafalhou com tanto a- mor como fe fora mãy ou irmam de cada hum de nòs. E defpois de fer. paífada hua grande parte da noite, nós aíTentamos â mefa, na qual elle mefmo nos deu a todos agoa as mãos, & todo o tempo que durou a mefa não ouue nenhum de nós que pudeíTeter os olhos enxutos, a qual acabada,fe leuantou fua molhercom muyta corteíia, ôc como tinha por curtume darChriftammente gradas a Deos em fegredo, por algum re- ceyo que tinha dos Gentios ou de parefites honrados que tinha na ter- ra, tirou hua chaue que trazia no bra- ço, ôc abrio hua portinha de hum o- ratorio muyto bem concertado, on* de eftaua hum altar com húa Cruz de prata, ôc dous caftiçaes ôc hua a- lâmpada do mefmo, & pondoíè el- la & os filhos todos quatro em joe- lhos comas maós aleuantadas diíTe- raò eftas palauras pelo Portuguez, ôc bem pronuciado, Verdadeyro Deos, nós peccadores confeíTamos diante da voífa Cruz como bons Chrirlaós a fantifsima Trindade, Padre, Filho, Ôc Efpirito Santo, três peíToas -& hum Deos, Sc afsi prometemos de viuer Ôc morrer na vofla fantifsima FéCatholica como bós& verdadey- ros Chriftãos,confefTando ôc crendo da voífa fànta verdade tudo o q ôc- créafanta madre Igreja de Roma, & deftas nofTas almas co vofíb pre* S 2 ciofo

Terigrinaçoes de

ciofo Tangue remidas, vos fazemos vniãode repiques & gritas, q pareci; preito & menagé, para com ellas vos q fe fundia a terra,& acudindo nos te íeruirmos toda a vida, & na hora da dos a caía de Vafco Caluo lhe pre

gíítannos pela cauía daquelle tumul to,& eíle aííaz de lagrinfas,nosdi fe,q auia noua certa de eftarelRe^ da Tartaria fobre a cidade do Pe quim,co maisgroíTo poder de genn q nenhum outro Rey nuca ajuntar; no mundo, desde o tempo de Ada< até aquella hora,no qual fe affirmau; que vinhaó vinte & fete Reys,& q f dezia q trazião comfigo hu conto <3 oitocentos mil homés, deq os feiicé tos mil eraó de cauallo,que por terr; eraó vindos da cidade de Lançame & de Famftir,& de Mecuy,dóde par tiraò com oitenta mil badas em qin vinha o mantimento Sc toda a baga ge,& o conto & duzentos mil de vieraò em dezaíTeis mil embarcaçoé de Laulees,& langaas pelo rio da Ba tampina abaixo,& q el Rey da Chi na por fe não atreuera reíiííir a tam; nho poder, fe fora aforrado para c Nanquiro.E que agora no pinhal ò Manicataraó,queera daly húa lego; Sc meya, eftaua alojado hum Nau ticor do Tártaro com íètenta mi de cauallo,fem gente nenhua de o qual vinha fobre aquella cidade,<3 que lhe parecia q não tardaria dua horas, com a qual noua ficamos tã< fora de nós, que tartameleando hu cos outros, nem podíamos, fabia mos fallar a propofito. E preguntan dolhe nos o que faríamos, ou q me yo poderíamos ter para nos faluar mos,refpondeo elle,& agaítado, ( meyo q eu agora,meus irmãos,acha

ua mai

morce volas entregarmos como a Deos & Senhor, cujas confcííamos q q íaó por criação & por redempçaó. E após ifto diíleraò o Pater noíter «Sc a Aue Maria,o Credo,& a Salue Re- gina muyto bem ditos & pronuncia- dos,^ a todos nos fez derramar muy tas lagrimas, vedo aquelles meninos innocences,em terra taó apartada, Sc fem conhecimento de Deos, confef farem afua ley com palauras tão fan tas. Acabado ifto tudo, por ferem ja mais de três horas defpois da meya noíte,nos tornamos para a noíTa pou- íadaçtaõ efpantados do que viramos quanto damefmacoufa íe pode en- tender que era razão.

IAT. CXFIL

(jorna hum (ap-hao Tártaro en- trou com gente neíla cidade cie Qmiify-, & do que neilafe^.

Védoja oito meies Sc meyo q eftauamos ne- íle catiueyro em que paíTamos aííaz de tia- - balhos&necefsidades, porq não tínhamos deq nos fuílen- taííemos, fe náo de algúas fracas ef- mollas q tirauamos pela cidade. Húa quarta feira treze dias do mez de Iu« lho do anno de 15 44. lendo paflada mais de meya noite íe leuantou em todo o pouo húa tamanha reuolta Ôc

Fernão Mendez^Pintè. íjp

na mais certo cie noíla faluaçao, era outros com Tuas lartçastèrçàclas, rol

acharmonos entre Laura &Curuche ao pede húamouta, onde me euja vy muytas vczes,mas jaque não po- de ifto 1 er, encomendemonos a Deos noíTo Senhor q nos valha; porq vos affirmo que ha menos de hua hora que eu daua mil taeis de prata a que me pufefle em faluo c5 minha mo- lher & meus filhos, mas que não ou- ue remédio por eftarem ja todas as portas fechadas, & a muyto reca- do,^; os muros infinidade degéte que o Chaem lhes tem pofta, a fora outros Capitães que de íobreííelente eftão poftos ern certos lugares para roldarem, & acudirem onde ouuer neceísidade. Com ifto pafsamos os noue cópanheyros o que ficaua da- quella tnfte noite,em afsaz grande af flicaó7& agonia do eípirito, fem nos fabermos dar a confelho,nem deter- minar no que faríamos, íomence ge- mendo & chorando co grande me- io & tribulação em que nos víamos* sendo ja menham clara,antes q o Sol "aiíse appareceraò os inimigos,& de- *aó de fy hua guerreyra & aísaz me- ionha viíta, diuidídos em íete bata-» has muyto grofsas,có muytas ban* leyrasde capo quarteadas de verde k brãco,q faó as cores dadeififa def- e Rey da Tartaria, & ao de muy- os tãbores tocados ao feu modo, fe áeraõ chegando para hum pagode le grandes officinas chamado Peti- au Namejoo,que eftaua hum pouco ifaftado dos muros,& trazião na dia- eyra muytos corredores em caual- os ligeyros, que tecendo huns pelos

dauão todas as fete batalhas, ôc toda a mais fardagem que vinha na vam- guardia. Chegando elles ao pagode com efta ordem que digo, defpois de eftarem parados quaíi meya hora, íe otfdenaraó ao fom dos inftrumentos de guerra com que continuamente tãgião,em grofso eíquadraõ a mo- do de meya Lua, que cercaua toda a cidade em roda.E eftado pouco mais de tiro de efpingarda afaílados dos muros,arremeteraò a elles com hua grita taõ eípantofa que parecia que íè ajuntaua o Ceo com a terra, & ar- uorando mais de duas mil efcadas que para iíso trazião, lhe deraõ o afc fako a toda em roda, por todas as partes que puderaõ, fubindo pelas cadas aeima muyto determinada- mente,& fem nenhum medo, E ain-» da que no principio ouue algúa reíi- ftencianos de dentro,com tudo nem ifso foy baftante paraque os inimigos deixaísem de erTeituaríeu intéto^por que quebrando com vayués feitos de vigas ferradas, as principaes quatro portas da cidade, matarão logo o Chaem com bua grande quantidade de Mandarins & gente nobre q com elle acudirão a defender a entrada,E com ifto fem auer outra nenhua reíi« ftencia, a miferauel cidad e foy entra- da deftes bárbaros por oito pârtes,os quais meterão â efpada todos os mo- radores delia fem perdoarem a coufa viua,de maneira q fe affirmou q o nií mero dos mortos paliou de fefsenca mil pefsoas,em q entrarão muitas mo lheres dózellas virgés muyto fermo-

S í ias

:

QAT. CXVllL

Do affalto q o < 3\(auticor de Lan*

çarnc deu ao eaftelto de 3S(kJam«

coojÍQJiiCcefio queteue^ &• do

mais quefoccedao dabj

por diante.

erlgrindçoes

fãs & filhas de fenhóres de muy ta ré- da. Defpoisde fer morta toda eftâ gente, a cidade abrafadâ, & os edifí- cios de caías particulares, & templos furnptuofos, 6c tudo o mais que nella âuia pofto por terra, fem auer couía que fícaííe em pé, fe detiueraó aly fere dias,& no fim delles fe tornarão para a cidade do Pequim onde en- tão o feu Rey eftaua, ôc donde os mandara a aquellefey to, os quais le- uaraó comíigo infinidade douro Ôc de prata fem outra fazenda nenhúa, por não terem em que a leuaflem^ porem a toda puferaò o fogo aiites que fe partiflèm,paraque os Chins a nãolograíTem, Dous dias defpois de lerem partidos, chegarão a hum ca- ftello que fe dezia Nixiamcoo, no qual o Nauticor de Lançame gene- ral deita barbara gente aíTentou feu campo,& íe atrincheyrou por todas as partes com tençãc de o aíTaitar ao outro dia, por fe dizer que quando por aly pafsara para Quanfy,lhe ma taraóos Chins aly cem homens em húa cilada que lhe flzeraó de que e- fiauamuyto magoado.

Efpois que o campo fc acabou de alojar ôc a- trincheyrar de todo, & foy pofto em quieta ção,q feria quaíi âs Au< Marias,o general fós cííígo de ca- uallo o roldou todo féis ou fete ve- zes, & pódolhe a guarda ôc as vigia; neceífariasjfe recolheo ao feu dopo,c era a eftãcia onde tinha â f ua téda, & mãdou chamar fecretâméte osfetctí Capiraés de toda a gête,& lhes defct brio a fuâ determinarão, a qual ellej todos lhe aprouaraò por boa, ôi tra- tando do modo q ao dia feguinte f< teria no alfalto do caftello,fe afsentoi q íê cometefseâ efcalla viík,& fe def fe o afsalto quinhétas efcãdas,que logo naquella noite fe fizeraó prefte< ôc tanto q foy menham clara,ao forr dos feus eftrométos de guerra, a q cl- leschamáo paliguindoetts, âmayoi parte da géte, repartida em quatorzí batalhas começou a marchar para c caftello pafso não muyto apreísa- do,& chegado ã tiro de frechà,come- çâraó logo oS foldados grades gri- tas, ôc eftròdo de muy tos eftrométos â encofíar as efcadas ao muro, Ôc fu- bindo por ellas acima,elles por entra íetn o caftello,& os de dentro por lhe defenderem,trauarãó entre íi hua bri tão aceía,q em menos de duas ho- ras oTartaro perdeo três mil dosfeus, E recolhedofe então defordenadanK te os q pelejauão,elle íè veyo retirado para o feu arrayaí, onde áqueíle dia efteue quieto , entendendo fomente lio enterramento dos mortos, ôc m cura dos feridos, de que também

óuue

termo Meneie-^ Tinto.

jjuue hum grande numero, de que a payor parte defpois morreo, por fe- •em as ietas com que os Chins lhes :irauãoeruadas húa peçonha raò Forre que nenhum remédio lhe apro- tieitaua. Vendo os Capitães o mao iucceíTo deite aíTalto,receofos de lho dtranharel Rey, porque ja no capo auia algúas murmuraçoés,di(Tera5 ao Nauticor que fe elle determinaua de dar íegundo aífalto, o pufeííe em có- íelho geral, conforme ao regimento que trazia,porque fe não atreuiáo el- les a tomar fobre íy hum tamanho peíb,& a elle lhepareceoiílobem,pa ra o que mandou logo chamar a ma- yor parte dos nobres, & os fez ajun- tar no campo em que eftauão as ten- das,onde em voz alta de cima de cauallo, lhes fez húa falia, em q lhes declarou a razão paraque alyforaó juntos, & fobre ella fe altercou hum grande eípaço, com tanta variedade de pareceres,que por então fe não po de tomar concluíaó em coufa algúa, & por fer muyto tarde,& auer no Ca- po muytcs feridos, a que neceíTaria- mente ie auia de acudir,fè aífentou q o outro dia feguinte fe tornaíTem to- dos a ajuntar no mefmo lugar, para fe tomar refolucáo no que fe tinha altercado, & com ifto fe recolherão cada hum para a fua eftancia. Hum deites que le acharão neíle ajunta- mento, era o guarda que nos trazia comfigo.o qual, por fer homem rico &honrado,vinhaõcom elle três dos mais principaes, conuidados para a cea,os quais defpois de terem ceado,

vieraõ a praticar no mao fucceíTodo lo,eu vos affirmo que em vez de fer-

S 4 des

140

diadantes,&decomo oMitaquer(q alsi fe chamaua o Nauticor) andaua por iííòaííaz agaífado. E acenando hum deftes que eílaua na pratica de olhar para nós,por eítar mais chega- do â p rifão onde nos eítauamos, vio que entediamos o que elles failauão, &nosprcguntou que gente éramos, & como íe chamaua a noífa terra, 6c de que maneyra nos catiuaraó os Chins, as quaiípreguntas refponde- mosconformeà verdade do que fc podia dizei\de que elle fez algú cafo, & diícorrendo mais pela pratica, nos pregimtou fe pelejauamos na noíla terra,& fe era o noílb Rey inclinado á guerra, a que hum dos noíTos por nome lorge Mendez, refpódeo qfy, porque todos éramos criados nellajôc exercitados de muyto pequenos, da qual repoíta o Tártaro fe fatisfeztã- to,que chamandoos feusdouscom- panheyroslhes diíTe, vinde ouuir ef- tes prefos,porque vos certifico q me parecem homés em que cabe razão: os outros dous fe chegarão logo, & nos eíiiueraõ ouuindo algúas coufas que lhe contamos de nós acercado infortúnio da noíla pnfaó, E não cef- fando elles de nos fazerem pregútas, a que nos reipondemos o milhor que foubemos,hum delles que fe mofíra- ua mais curioío diíTe ao íorge Men- dez,que era o que fallaua com elles, fe algum de vós outros,pelo muyto q dizeis que tendes vifto do mundo, entendeíTe,ou foubeíTe algum ardil, com que o Mitaquer Nauticor de Lançamepudeffe tomar efte caílel-

des vós Teus catiuos,o fera elle voífo, a que o Iorge Mendez, inconfidera- damente,&fem entender o quefal- laua,nem o em que fe metia, refpon- deo,Se ofenhor MitaquerjNauticor deLançame nos der hum afsinado feu em nome dei Rey de nos mádar poríeguros nas agoas do mar da ilha de Ainão, donde nos podamos yr li- uremente para noífa terra,quiçà que lhe farey eu tomar o caftello muy to pouco trabalho. Hum dos Tárta- ros que aly eílauão,homem velho & no parecer graue & de autoridade,do qualfedezia que era muyto aceito ao Mitaquer, lhe refpondeo aluoro- çado, ve bem o que dizes, porque te affirmo que fe iííò fizeres te íerá lo- go concedido quato pedires,& muy- to mais ainda do que podes pedir. "Nos então vendo o em que o Iorge Mendez fe queria meter, & da ma- neyra que fe penhoraua no que pro- metia, & que os Tártaros lan^auão mão diíío, o reprendemos todos di- zendo, que fe não meteíTe em couía que nos deífe trabalho, & nos puíefiè em rifeo de perdermos as vidas,aque elle refpondeo algum tanto agaftado, bofe íenhores, que quanto a minha, eu a eftimo agora tão pouco, queie algum deftes bárbaros ma quifeíTe juaar àprimeyra,vos certifico que quaifquer duas lotas a meteíTe logo no primeyro inuite,porque bem en» tendido eítà que não he efta a gente que nos ha de dará vida pelo refga- te que pretenda de nós, como fazé os Mouros de Africa;& ja que afsi he tanto monta oje como amenham. E

lembreuos o que lhe viftes fazerem Quaníy,& por ahy julgareis oq vos podem fazer a vòs. Os Tártaros fica- rão algum tanto eípamados de nos verem altercar hús cos outros, & fa- lar mos alto, que he coufa que elles en trefy nãocuítumão,&nos reprende- rão com boas palauras,dizendo, que mais próprio era das molheres falla- rem alto & deíentoado,pois não tem freyo na lingoa,nem chaue na boca, que de homens que cingem eípadas, & tiraó com frechas na furiofa tor- menta da guerra , mas que fe o Ior- ge Mendez pufeíTe em effeito o que lhe tinha dito,o Mitaquer lhe conce- deria tudo quanto lhe pediíTe: & iíto fe deípidiráô hús dos outros,& fe recolheo cada hum à íua eítancia,por ferem ja quaíi as onze horas da noi- te,em que o quarto da prima fe aca- bara de readerv& os Capitães da guar da roidauão o capo ao íomdos íeus eftromentos,como cuílumão em fe- melhantes tempos.

' \

CA<P. :CXl%-

T>o ardil que forge Mendez^ deu para/e tomar o casiello, & do af falto que fe lhe deu-, <& do JucceJJo delles.

Quelle dos três Capi- tães Tartaros,de que a^ trás fica ditO) que era muyto aceito ao Mita- quer general daquelle campo, lhe foy logo dar conta do q paliara com Iorge Mendez,& lhe fez

diflb

rêrnãtuwênaélçi^nF^

4'

difTo muyto mayor caio do q a couía em fy era, & lhe diífe que o deuia de mandar chamar, &ouuilo,porq qui- çá lhe íatisfariao fuás razoes de cal maneyra,que laçaria mão por ellas, & que quando lhe não pareceíTem hem,que pouco fe perdia niíTb, ôc o Micaquerlhe pareceo bom aquelle confelho, Ôc mandou logo recado ao Tileymay,que era o Capitão q nos ti nha afeucargo,quenos leuaílelá>& elle o fez logo com muyta prcíleza. Chegando nósafsi prefos como cfla- uamos á tenda do Mitaquer,o acha- mos em confelho com todos os feté- ta Capitães do campo,& feria ja qua- íi ás duas horas delpois da meya noi- te, elle nos fez gafalhado com fem- brante afabel,porem graue ôc feuero, & fazendonos chegar para junto de fy nos mandou logo tirar parte das. cadeas em q de três em três vínha- mos preíòs, ôc nos preguncou fe que- ríamos comer,a que nós refpódemos. que fy,porqne auia ja três dias q no- lo não dauao, o que elle efíranhou muyto ao Tileymay, &o reprendeo comalgúaspalauras,& logo alynos mandou trazer dous pratos grandes de arroz cozido, Ôc adés de chacina cruas em talhadinhas, com que nos, como necefsitados, nos metemos de tal maneyra,que todos os circundan- tes parece que moftrauao gofto de nos verem comer, & diíleraõparao Mitaquer, índa, fenhor, que os não mandaras vir ante ty para mais que para 1 he matares a fome,por não mor rerem a mingoa, como parece que ouuerade fer, não fizefíe tão pouco

que nao foíTe ganhares eíles noue ef crauos,quepara tefernirem em Lã- çame te hão de fer muyto bós,& qui- çá que também para os venderes por mais de miltaeis,do qual dito hús&: os outros eftiueraõ entre fy graceja- do hum grande efpaço: Ôc tornando denouoa nos mandar trazer mais arroz,& feijões cozidos com bringel- las,nos rogou que comeííemos, porq folgaua muyto de nolo ver fazer, o qual goílo lhe nos então demos de muyto boa vontade. Deípoisque ti- uemos comido tratou co lorge Men- dez pela informação quelhe tinhão dado,do modo que fe teria no tomar do caftello, ôc lhe fez muytas pro- melTas de grandes honras, Ôc rendas, ôc valia com el Rey,ou liberdade pa- ra todos noue, com outras muytas ventagés de que nos encheo bem as medidas, porque lhe aífirmauaque fe por feu meyo lhe Deos deíTe aquel la viclonacomque elle tomaíTe vin- gança de íèus inimigos como cieieja- ua,& o Tangue dos mortos eftaua pe- dindo,que elle o fizeíTe em tudo quá- to pediííe femelhante a íy,ou ao me- nos^ qualquer de íèus filhos, de que o lorge Mendez ficou hum pouco embaraçado, porque nunca lhe pa- receo que a couía chegaííe a tanto,& lhe relpondeo que daquellecafo ejis náodiíTera mais a aqueile homem fenão que por ventura diria como ie tomaíle o caftello fe o viííe. por íeus olhos,mas que como foíTe menham, elle o rodearia todo,& o veria muy- to bem, ôc então lhe diria o modo q para iílb fe poderia ter,da qual. repo-

ftao-

nMçl

fta b Mitaquer com todos os mais ficarão muyto fatisfeitos, & lha lou- uarão muyto, EfTtão nos mandarão agafalhar em outra tenda junto defta em que elle eftaua, onde paíTamoso que reftaua da noite com boa guar- da que fe teue fobre nós,& Dcos fabe quão atemorizados, porque bem fa- biamosque fe a couía não focedcíTè como elies defejauão,nos auião de fa zer a todos em quartos,porq acoufa deque fazem menos caio he de ma- tarem vinte & trinta homés por va- lia de quaíi nada,íèm terem reípeito a Deos, nem á humanidade. Ao ou- tro dia,fendo ja paíTadasas noue ho- ras,o Iorge Mendez, & outros dous de nos que lhe derão licença que le- uaíIêcomíigo,forão leuados por trin ta de caualo a ver o caftello, & def- pois de bem vifta a fortaleza & o íí- tio delle, & o por onde & como fe poderia tomar,o tornarão a leuar ao Mitaquer, que com grande aluoroço o eftaua efperando, ao qual elle deu relação do que vira, & lhe- facilitou a tomada do caftello fem nenhum tra- balho,& com pouco rifco, de que o Mitaquer ficou tão contétequenáo cabia de prazer. E mandandonos lo- go tirar a todos noue a parte das pri- íoês que ainda tinhamos,que eràó as ferropeas dos peis, & as çadeas dos pefcoços, nos jurou pelo arroz que comia, de tanto que chegafle ao Pe- quim,nos aprefentar a ei Rey, & cu- prirquato nos tinha prometido, fem falta nenhua, & de nos paliar logo dífTo hum formão afsinado com le- tras douro, porque pudefiemos def-

cançar na verdade da fuapajaura. E mandandonos vir de comer,nos mã- douaíTentar junto defy, & nos fez outras muytas horas ao feu cuftume, de que algum tanto ficamos facisfei- tos,mas bem arreceoíbs dos deíaftres da fortuna, íepor noííos peccadoso negocio não focedeíle conforme a ef perançaqueo Mitaquer ja tinha cò- cebida. Logo naquelle mefmo dia fe tomou concluíaòcom todos os Capi taés fobre a ordem que fe auia de ter no cometer do caftello,de que o Ior- ge Mendez daua a traça ôc era o rae- ftredo campo,porquem tudo fego- uernaua, &fe cortou infinidade de faxina para fe entulhar a caua, &fe fizeraó mais de trezétas efcadas muy- to fortes ôc largas em que bem po- dião caber três homens emparelha- dos^ ajuntouíe mais húa grande To- ma de ceftos ôc enxadas que fe acha- rão pelas cafas das pouoaçoés defpe- jadas,& a mayor parte da gente an- dou todo efte dia occupada em ajun- tar eftas achegas neceíTarias para o dia feguinte em que fe auia de dar o aíTalto,& fempre o Iorge Médez an- dou a cauallo junto co Mitaquer, & muyto fauorecido delle, com que to- dos enxergamos logo nelle,hum no- uo efprito & oufania, tão differente dos dias atras,que efpantadosnós de- fta nouidade que viamos nelle, não faltarão algús que mouidos defta npf íamâ natureza que fofre muyto mal eftas diíferenças, vielTem a murmu- rar delle dizendo a modo de donay- T3Ôc torcendo os fucinhos, que vos parece defte perro? ou nos por feu ref

peito

7

mla^Avende^Tinto.

14Í

jeito auemos todos a menham de fer eitos em quartos, ou elle, fe lhe efte ífgocio íocede comoimagina,hade er tamanha valia c5 eftes bárbaros, ]iie nos auemos de auer por honra- los de o feruirmos toda noíTa vida. \o outro dia, duas horas ante me- iham ao ibm dos palosguindoés,que os feus atabales , & de outros nuy tos eftrornentos de guerra, que lies víaó,toda a géte do campo foy iofta em ordenança, repartida em toze batalhasse que fe fizeraó cinco ileyras muyto compridas,& húa co- rafileyraque na vamguardia,a mo- io de meya lua cingia todo efte ca- to, Ôc nas pontas hião os gaftádores om todaefta máquina de faxina, ef. adas,ceftos,& enxadas para vâzaré á aua,& a entulharem até ficar igual om a terra. Marchando tudo cr rri fta ordem, chegarão ao caftePjjà lia claro, o qual nefte tempo eitauá nuyto fornecido de gente,& ornado le muytos eftendartes de feda, & ;uioés compridos à Charachiria.Lo- ;o em chegando, a primey ra falua q e derão os de forage Os de détro, foy le muytas frechadas, & de muytos irreméíTos de zargunchos, &de pe- Iras.ôc de panellasde cal em pò,& ai- ;úas de fogo,em que fe gaftoti quaíl neya hora,& após efta íalua, logo os rartaros (angraraó acauã poríeis oii ete partes,& entulhandoa com muy :a prefteza com faxina & terra, foraó 0^0 as efeadas todas juntamente en- :oftadas ao muro,quejaficauamuy to baixo por cauía do entulho, o Ior* ge Mendez foy o primeyro que íu-

bio pelas efeadas, acompanhado de dous dos noíTos,que como amoucos; hião determinados demorrerem,ou fazerem couía com que fe finalafsé, ôc prouue a noíTo Senhor que lhe fo- cedeobem,afstpor ferem elles osq fizeraó efta primeyra entrada, como por aruorarem o primeyro guiaò,dè que*o Mitaquer com todos os mais que eftauão com elle ficarão taó ef- pantados que dezião hús para os ou- tros, fe o Rey defta gente cercara o Pequim como nòs o cercamos, o Chim perdera mais depreíía a fua ra do que lha nos fizemos perder.E fubindo logo nas coftas deftes três Portuguefes todos os Tártaros que eftauão ao das efcadas,o que tam- bém fizeraó com muyto esforço,afsi por terem feu Capitão diante, como por ferem de fua natureza quaíi tão determinados como os lapões, em rnuyto breué efpaço foraó encima do muro mais de cinco mil dos noftà parte,os quais com o Ímpeto q íeuauão fizeraó retirar os Chins, ôc a briga fe trauou entre hus Ôc os outros tão braua, ôc tanto fem piedade, que em pouco mais de meya hora o ne- gocio ficou logo concluydo, ôc o ca- ÍMlo tomado morte de dous mil Chins ôc Mogores que eftauão den- tro nelle,& dos Tártaros não mais cj âté cento & vinte. Após ifto fe abri- rão logo as portas com grades feftas &regozijosde muytos tangeres em final de vitoria. E o Mitaquer com todos os Capitães & gente nobre en- trarão dentro,os quais vendo a gran- de quantidade dos mortos que efta-

ua na1

Wegrmaçoes

m na praça do cafl:èllo,fícârâo ainda muyto mais efpantados, & fem fa- zer cafo dos feus que também aly a- cabara5,mandou queymar as badey- ras dos Chins, &embandeyrar o ca- fteliodas íuas, com outra noua ceri- monia de tageres & feitas ao feu mo- do, & fez mercês aos feridos, & ar- mou alguns caualeyros com iníignia de húa manilha douro. ífto acabado, que feria quaíi à húa hora deípois do meyo dia,comeo dentro com alguns amigos & priuados feus, em final de mayor tmimfo. Ao íorge Mendez & aos outros Portugueíes deu tam- bém manilhas douro, & os mandou aífentar junto de fy,& defpois q co- meo,le fahio para fora com todos os que eítauão com elle,& mandou der- rubar todo o muro em roda, & def- pois de fer rafo co chaò, lhe puferaó o fogo com muy tas cerimonias a mo do de triumfo de muytos tangeres ôc gritas, ôc o borrifou todo por cima com íangue,& mandou cortar as ca- beças a todos os mortos que na pra- ça eítauíío>& aos íêus mandou enter- rar^ curar os feridos,& ifto acabado íe jecolheo para a fua tenda gran- de apparato de cauallos a deftro, & porteyros de maças,& gente de guar- da, leuando fempre junto comfigo o Jorge Mendez a caualIo,& nos os oi- to com todos os mais Capitaens ôc gente nobre a pè. E chegando á fua tenda.que também eílaua com iníig- nias de Feíla, mandou dar ao íorge Mendez mil taeis de mercê, & a cada hum de nòs cento fomente, de que algús,que prefumiáo de mais honra-

dos, ficarão bem triítes & defconten- tes por íê lhe ter menos reípeito q ao íorge Mendez, por cuja induftna íê principiara & eneituara efte fuc- ceífo,o qual foy caufa de fermos to- dos liures ôc poftos honra em nofc ia liberdade.

CAT. ÇXX.

T>o caminho que o Muaquer fe^

defle casleHo, de S^Qxiamcoo ate

chegar ao arrojai que el 2^gj/

dos Tártaros tinha Cobre

a cidade doTe-

quim.

?&>m

gf~gg^fl Anto que ao outro dia foy menham clara,co- moaquy janáo auiaq l Sá} fazer, o Mitaquer de- terminou de íeguir feu

caminho para a cidade do Pequim, onde então el Rey eftaua,como atras ja fica dito, & pofto o campo na or- denança com que cuftumaua de ca. minhar,abalou daquy âs oito horas, ôc marchando a paífo cheyo ao fom dos. feus eftromentos, íê foy alojar ja quaíi ao meyo dia a húa ribeyra muy tofreíea, & de grandes pumares de muytafruyta, em algús dos quais a- uia caías nobres que deuiao de Ter qnintãs,mas tudo j a defpejado &fem gente,nem fato,nem gado,nem cou- ía algúa de que eftes bárbaros pudef- íêm lançar mão : ôc paflada a força da calma,que feria quaíi ás três ho« ras,fe leuantou , ôc íeguio feu cami- nho,

Fernão AlendezJPintò.

Hi

ího, "& com meya hora de noite fe by alojar em húa boa pouoaçaó q :llaua à borda do rio,por nome Lau- imey,aqual também achamos fem r«e, porque toda a terra eftaua defa- jiradacom medo defte cruel barba- oque a nenhúa coufa perdoaua laua vida. Ao outro dia,íendoja me iham clafa,efte exercito táo cruel Ôc ão bárbaro como o feu Capitão,pòs ogo á pouoaçaó,& a outros muy.tos Ligares muyto frefcos, que ao longo leite rio eftauão, o que também ca- lio em forte a hum campo chamado Jumxay, de mais de féis legòas em oda,& muyto plano,todo de femert- eyras,que a efte tempo eftaua menos le meyo fegado, ôc tudo o mais do riao que nelle eftaua ainda por fe* ;ar,que era a mayor parte, foy cott-- iimido do fogo de tálmarteyra,que ião ficou nelle coufa que não fofte lesfeita em cinza. Acabada efta obra, iflaz digna de quem a fez, o campo e abalou daquy todo, tio qual aue- ia leífenta Ôc cinco mil de cauallo, íorque os mais ficarão mortos, afsi ia tomada de Quanfy, como na do aftello de Níxiancoó, Sc. feguindo èu caminho,chegou ahúa íerra que e cbamauâPommitay, onde fe alo-* ou aquella noite, & ao outro dia pe- a menham fe prartio. caminhando ilgum tanto mais apreífado para pó- ler chegar com de dia ao Pequim, }ue era daly fere legoas, Ôc chegado is três horas defpois do meyo dia a húa ribeyraque íe chamaua Palem- xitau,o veyo aly receber ao caminho hum capitão Tártaro com obra de

cento de cauallo,© qual auia ja dous dias que aly o eftaua efperãdo, Ôc lhe deu húa carta dei Rey que trazia pa- ra elle,a qual elle eftimou muyto, ôc. a recebeo do que lha trazia grade cerimonia de corteíLu. Dstiuy d efta ribeyra até o arrayal dei Rey, quê podiaó fer duaslegoasfcaminhou agéteforada ordenança quéace aly trouxera, afsi porfe não encontrar a muyta que pelos caminhos em gotes o eftaua eíperari Jo,como tam- bém pela outra que os íenhorestra- ziãocomílgo, á qual era tanta q to^ dos os cãpos eraó cheyos delia. íeni auer coufa que pudeííe romper por nenhum caminho, Ôc chegados aisi com çfta ordem,ou antes defordem^ ao caftello de Lautir, q era o primey- ro forte de noue eípias que tinha o campo, em que auia hua grâride for- ' ca de foldados,achanios ja nelle hum príncipe filho dei Rey Pêrfiâ cha- mado Guijay Faraó, o qual el Rey âly tinha mandado paraleuar o Mi- taquer coníigo. O Mitaquer chega- do a elle, que ó eftaua efperando â entrada do caftello,fe deceo do caual lo em que hia,& tirou da cinta o ter* çado que leuaUa,& ihooffereceo em joelhos, beijando primeyro â terra cinco vezes,que cerimonia de cor- tefia vfada entre elles.O príncipe lhe fez muyto gafalhado, tk com fem- brante alegre lhe deu os parabês honra Ôc fama que ganhara na toma-* da de Quanfy .* Ôc após ifto fe retirou atras dous ou três paftbs com outra noua cerimonia, ôc leuantando a voz com hua falia ja mais ifenta, Como

que ri»

fperigrinãfõh ide

quem reprefeiitaua ã peíToa do Rey ros & defentoados eítromentos, fc

em cujo nome vinha,lhe diíTè: Aquel k,a quem a boca do meu rofto beija continuamente o rico quimão doíeu veftido,o qual por poder de grande- za fènhorea os cetros da terra, & as ilhas do mar,te mãda dizer por mim ícu efcrauo,que a tua honrofa vinda íeja tão agradauel diante dafuapre- fenca como a doce menham do ve- rão,no qual o banho das agoas frias mais íatisfaz noíTa carne, & que fem nenhúa detença te apreííès a ouuir a fua voz, &que nefte cauallo ajaeza- do do leu tií ouro te leue junto comi- go,porque hques igual na honra cos rmyores da lua corte, & conheção os que te virem yr deita maneyra, que es tu membro forte aquém o agro das armas da tal galardão. O Mita- quer proítrado por terra, côas mãos aleuantadaslhe refpondeo, cem mil vezes feja trilhada minha cabeça co calcanhar do feu pé, paraquea diuifa <la íua pegada abranja a todos os da minha geração, ôi fique por timbre de honra meu filho mais velho, & caualgando então no cauallo que efte principe lhe dera ajaezado com arre- yos douro,que dezião que era da pef loa dei Rey,íe_pos a fua mão direy- ta,& começarão a caminhar grá- difsimo apparato & majeftade, de muytos cauallosa deftro,&porteyros com maças de prata ao noífo modo, '& hua guarda de feifcentos alabar- deyros,de que a mayor parte eraó de cauallo, & quinze carretas com ata- balesde prata, os quais juntos com outra rriuyca quantidade de barba-

zião tamanha marinada, q naoauia quem fe pudeíTe ouuir com elles, & em todaadiftanciadefte caminho q feria quaíi delegoa & meya,era tan. ta a gente de cauallo que não auia poder romper por parte nenhua.Che gando o Mitaquer com efte triumfo aosprimeyros vallos doarrayal, nos mandou a nòs por hum homem íeu para o dopo da eftancia onde tinha o feu apofento, «Sc nos diíTe que ao outro dia mais deuagar nos aprefen- taria a el Rey,onde fomos bem aga- faíhados, & prouidos do neceííario muyto abaftadamente.

QAT. CXXI.

Da maneyra que o Mitaquer nos

leuoupara nos apresentar a elTiey

& do que vimos c> pafiamos

antes de chegarmos a

vello.

Efpois de auer quator- ze dias q éramos che- gados a efte arrayal, hua quarta feyra pela menham , efte Mita-j quer noíTo general nos mandou cha- mar a fua tenda onde então eftaua acompanhado dalgushomés nobres, perante os quais nos difíe,a menham a eftas horas eftay todos preftes para vos eu cumprir o que vos tenho pro- metido,que he verdes a face daquel- le que temos por fenhor,& efta mer- cê que vos foy feita por meu reípeito,

junta-

juntamente com a liberdade que vos he concedida,alcancey eu oje por ho- ra muyto grande aos peis da íua ca- deyra, a qual vos affirmo em boa verdade que eu eftirney tanto pora- mor de vos como a tomada de Ni- xiancoo,de que direys algúa couíà, fe fordes tão d itofos quefe vospre- gunte. E lembrouos que eftimarey eu muyto lembraruos neííà terra do cabo do mundo onde me dizeis cj he a voíTa patria,quecompri eu com vofco minha palaura,& que fuy niflb tão puntual que quiçá deixey de pe« dir outra coufa a el Rey de mais meu proueito,por lhe moftrar que íó de- ita teria mais goíto,a qual me elle lo- go concedeo, com moftras de tama- nhas honras,que vos confeíTo que eu íou o que neíTa parte vos fico deué- do muyto mais do q me vós deueis a mym,a q nòs todos noue nos pro- firamos no chão, & com as cortefías deuidas a tão boanouajrefpõdemos, faó tamanhas,fenhor,as mercês q nos tes feitas,que querertas agradecer co aspalauraSjComoagentedo mundo cuítuma de fazer no tempo dagora, entédemos que fera mais ingratidão que verdadeyro &deuido agradeci- mento,por onde nos parece q o mais acertado fera o filencio metido na alma que Deos em nòs pos. E ja que a lingoa nos não íerue para ifto, pois não pode formar palauras que fejão capazes de íatisfazer a tamanha obri gacaocomo efta em que todos te e- flamos,feruirnoshade pedirmos con tinuamente com muytas lagrimas & gemidos a aquelle Senhor que fez os

Fernão Mendez^Pinto.

144,

ceos & a terrado qual por fua infinita bondade & mifericordia quiz tomar a íèu cargo pagar pelos pobres aquil- lo a que fuás fracas forças não pode chegar,que a ty Ôc a teus filhos de ta- manho conhecimento da fua verda- de que por elle mereças ter parte nas fuás promeíTas defpoisque nefta vida viueres muyto largos annos. Entre os homés que então acompanhauão oMitaquer, eítaua hum por nome Bonquínadau, homem jade dias,& dos principais fenhores do reyno, ôc que aly era Capitão da gente eftran- geyra,& das badas da guarda do cã- po,a quem fe tinha mais refpeito q a todos os outros que efíauao prefen- tes: eíte,quando ouuio a noífa repo- fta, pos os olhos no Ceo ôc diíTe, ó quem pudefTe preguntar a Deos pela declaração deite fegredo,a que o nofc ío pobre entendiméto não pode che- gar, que porque caufa quiz que gen- te tão auefTa do conhecimento da noíTa verdade reíponda afsi impro- uiío com hila doçura de palauras tão agradaueisaos ouuidos,que vos affír- mo que eftou em dizer4 &quaíique a iíTo poria a cabeça, q ue da conta de Deos Ôc do Ceo fabem mais dormin- do,que nós todos efpertos, donde fe pode infirir que terão entre fy facer- dotes que entendão do que vay das eftrellas para cima muyto mais que os nofibs bonzos da cafa Lechune: a que os outros refponderaó.tern voílà. grandeza tanta razão no que diz,que quaíi deuemos todos ter iíTo por fé, pelo que nos parece que fora muytò acercado não os deixar yr deíb terra,

porque

1

Teregrfaaçoes de

s

porque nos puderão^ cqpno meftres, infinar o q fabem das coufas do mu. do. A ifto refpondeo o Mitaquer, af- firmouos a todos que por nenhú ca- foofaçael Rey, ainda que poriíío lhe dem o tifouro da China, porque íè o fizeíTe,feria quebrar a verdade de fua palaura, com que fe perderia to- da a reputação da íua grandeza, pelo qual he efcuíado tratar de coufas que não podem fer,nem he bem q fejão: & voltandoie para nòs nos diíTe, vos outros ideuos muyto embora, &a menham a eftas horas eítay preftes para quando vos eu mandar chamar, & com ifto nos fomos todos tão con- tentes quãto era razão. Ao outro dia às horas que nos difle, nos mandou à tenda noue cauallos bem concerta- dos,nos quais caualgamos, & nos fo- mos á fua tenda, & elle fe pos num piambre, que he como andas entre r nós,o <jual leuauãc dous cauallos có- bos jaezes,& hia todo cercado em ro- da dos feus feííenta alabardeyros, co féis pages bem veítidos,emquartaos brancos, & nòs os noue hum pouco atras em noíTos cauallos,& toda a ou- tra mais gente a pé, 8c leuaua feusef- tromentos de eftado,que de quando cm quando tangiaó, fem outro mais faufto nem apparato algum, & defta maneyra abalou para onde eftaua el Rey, o qual eftaua apoíentado na- quelíe grande 8c fumptuofo edifício da Kacapirau, a q os Chids chamao Raynha do Ceo, de que atras ja fiz menção no capitolo cento 8c dez. E chegando as primeyras tranqueyras do dopo dei Rey, que fe chamaua

Xuxiapom, fe decèo do piambre, 8c todos os mais com elle para Paliar ao !Nautaraó,& com algdas cerimonias gentilicas lhe pedio licença para en- trar dentro, o qual lha concedeo. E fubindo o Mitaquer outra vez no piambre, entrou co mefmo faufto q leuaua deitas portas para dentro,on- de o nós feguimos a pè,& chegou até húa varanda rafa muyto comprida, na qual eftaua húa muyto grande fomma de gente nobre,aly decendo- fe outra vez do piambre, nos diííe q aly o efperaíTemos,porque hiafaber fe eftaua el Rey em tempo para fe lhe poder fallar,& aly ficamos todos porefpaçodequaíi húa hora. Nefte meyo tempo,vendo algús dos nobres queeftauao na varanda, que éramos nòs eftrangeyros, 8c gente que ainda aly não tinhão vifto, nos chamarão para dentro, 8c com muyto gafalha- do nos aíTentaraó junto comíigo,on- de eftiuemos hum grande eípaço ve- do voltear hus trejeitadores ôc catar, de que elles fazião muyto cafo, mas nós muyto pouco, aísi pelos nao en- tendermos,como por nos parecerem muyto frios 8c dei engraçados. Sendo ja paílada quaíi hua hora,oMitaquer tornou de la dentro,& trouxe comíi- go quatro moços pequenos muyto fermoíos,veftidos em húas marlotas compridas de giroés verdes 8c bran- cos^ fuás xorcas douro nos pcis, aos quais toda agente fe leuãcou em pé, & tirando os treçados que tinhão nas cincas os puferaòno chaó, com húa nona cerimonia de corteíia que nos pareceo muyto bem,dizédo por três

vezes,

Fernão Mende^ Tinto. ]as

:zcs, fa!y hincanê midoo patinau mos cm hua grande fala de madeyra

icorem, que quer dizer,cem mil art- )sviuaofenhorde noíTas çabeças> eftando nos todos ja nefte tempo oftrados por terra, cos roftos no ião.hum dos moços nos diífè com )zifenta& bem entoada, alegray- >s homens do cabo do mundo por t chegada a hora devoílò defejoj a que vos fera concedida a liberda- q o Mitaquer q aquy efta vos pro- eteonocaftellode Nixiancoo, er- leyvoíTas cabeças do chão,& leua- y as mãos ao Ceo, dando muytas aças ao Senhor q efmakou as eftrel- i na noite quieta de noflb defeãço, nspermitio por fy ío, fem mereci- ento de carne nenhtía, auer nefte fterro quem em feu nome libertaf voííàs peffoas, a que todos afs! co- 3 eftaua mos proftrados no ehaó Temos pelo dito. do lingoa que nos inaua,chegue a noíTa ventura a feu trilhar noíTas cabeças a q os mo- s refpóderaõ,coneedauos o fenhor c dom de riqueza*

CAT. CXXIL

]o mais que vimos ate chegarníOí onde elT^ey dos Tártaros eslá- M)&do que paffamos com elk.

Stes quatro moços & 6 Mitaquer q eraoqno9 guiana^paíTaraó d aquy por hum corredor ar- mado fobre vinte & s colunas de bronzo,<Scdelle entra-

como terccena, na qual eftaua muy- ta gente nobre,em que auia alguns e- ftrangeyrosMogores & Perfios,Ber- dios,Galaminhãsj& BramaasdoSor- nau Rey de Sião, E paíTada efta ca- íà,em que não ouue detença de ce- rimonia nenhua^ chegamos a outra que fe chamaua Tigihipau, na qual também auia outra grande foma de gente, porem efta eftaua armada, & toda em pé, a qual pofta em cinco flleyras tomáua todo o comprimen* to da caía, Ôc toda efta gente tinha Teus tréçados guarnecidos de chapa- ria douro poftos ás cortas. Aquy de- tiueraó o Mitaquer hum pouco, fa*' zendolhè com muytas cerimonias algíías preguntas, ôc dandolhe jura- mento íobre as maças que os quatro moços leuauão, o qual elle tomou em joelhos, beijando o chaó por três vezes, E com ifto lhe deraó entrada por outra porta que eftaua defron- te, ôc chegamos a hum grande ter- reyro feyto em quadra como crafta de conuento, no qual efíauao qua- tro fíleyrás de eftatuas de bronzo em figura de homens a modo de íàluagens com maças, Ôc coroas do mefmo^orem tudo cozido em ouro, os quais Ídolos, ou gigantes, ou o que quer q eraõ,tirtháo dakura vinte & fete palmos, Ôc feys de largo nos peytos, eraó nos fembrantes aíTaz fe- yos ôc malaíTombrados, co cabello crefpo, ôc feito em grenhas a modo decafres,& pregutando nòs aos Tár- taros pela ílgniheação daqucllas fígu-r ras,nos diíTeraó que eraò os trezét t & feífen.

*Perigrin

& feílenta deófes que fizeraõ os dias doanno, paraque era todos ellesa gente continuamente os veneraíTe pelo beneficio da criação dos fruy tos que nelles a terra produze, os quais o Rey Tártaro aly trouxera de hum grande templo chamodo Angica« moy que tomara na cidade Xipatom na capella dos jazigos dos Reysda China para triumphar delles quando fe embora tornaíTepara fuâ terra,por quefe foubeíTe por todo o mundo que a peíar do Rey da China lhe ca- tiuara os Teus deoíes. Nefte terreyro que digo entre hum laranjal que no meyodelle eftaua, cercado de nua la* tada de era, & alecrim, ôc rofeyras, com outras muytas diueríidades de eruas ôc flores que não ha nefta noíía Europa, eftaua hua fantaftica tenda armada íbbre doze balauftres de pao de cânfora, enxerido cada hum del- les em quatro troços de prata a mo- do de cordoes de frades, mais grof- fos que .hum braço, dentro da qual tenda eftaua hua tribuna rafa a mo- do (Je altar, guarnecida toda emro« da de folhagem de ouro muyto fino, com hum guardapoo por cima a mo do de íobreceo,marchetado de muy- tas eftreliaside prata,& co Sol,& Lua, &algúas nuués, huasr brancas, &ou* trás da cor daquelias queapparecem quando cboue,todas feitas de efmal- te,com tanto artificio, Sc tanto ao natural, que quafi fe enganauao os olhos com eltas, parecendolhe que trazião agoa, & tudo o mais muy to perfeito -aísi na proporção como na; píntura,No meyo defta tribuna efta«

dfoes de

ua hua grande eftatua de prata deit da em huui leytó do mefrno, que chamaua Abicaunilancor, que qu dizer,deosdafaudedosReys,que t bem fe tomara no templo de An£ camoy de que atrazfiz mençáo,&; redor defta eftatua eftaúao trinta quatro idolos,do tamanho de mer nos de cinco até féis annos,poftos t dos por duas fileyras em joelhos, com ambas as mãos leuantadas pa ella como que a venerauão, & loç â entrada da tenda eftauão quati moços muyto gentishomens, & ric mente veftidos,que com feus ence: farios a rodeauaò por fora de do em dous, os quais ao Tom de cert pancadas que fèdauãoem hum fir fe proftrauão por terra, Ôc fe encei fauãó hús aos outros, dizêdo em v< alta, como quem canta entoado, h xapu alitau xucabimitamy tamy o parii maguo, que quer dizer, chegt aty noflo brado 'aísi como chey] fuaúe^porq nos ouças. Em guarda d fta tenda eftauão ifeíTen ta akbarde; ros q afaftados hum pouco delia a c cauão toda em roda,os quais eftau; veftidos de couro verde efcodado,< fuás celadas ricas 5c bemlànradás n cabeças, o que tudo junto erà hu efpeáaculo affaz fermofo & de gr de magsftade. Paliado efte terreyi entramos noutro ápofento em qau quatro caías muyto ricas & bem o certadas, nas quais eftaua muy ta g te nobre,afside;i»aturaiscomode c trangey ros . Daquy paííandd ma is diãte,feguindoo Mitaquer & os cju tro moçoSjChegamos á porta de

grane

grande fala térrea, fabricada ao mo- do de igreija, na qual eftauão íeys porreyros de maças5que com húa nó- ua cerimonia que tiueraó co Mica- quer, nos meterão a todos dentro, íem darem entrada a outra nenhúa peíToa. Nefta cafa eftaua efte Rey Tártaro acompanhado de muytos orincipes & íenhores, Ôc capitães na- rrais & eftrangeyros, entre os quais eftauão os Reysde pafua, Mecuy, Capimper, & Raja Benáo, ôc o An- rhefacotay, & outros Reys mais, que 3or todos faziao o numero de qua» orze, os quais vertidos de veftiduras iças, & de fefta,eftauao todos alien- ados ao da tribuna, afaftados Jelladousou três partos: ôc ao lon- ;o delia hum pouco mais afaftadas ftauão trinta & duas molheresmuy- o fermofas, que tangendo em dif- erentes eftromentos, faziao húa mu- icamuytopara folgar de ouuir, -A *eííòa dei Rey eftaua encima no )iambre, que era a tribuna, cercado le doze meninos que ao redor delle ftauão em joelhos, com fuás maças louro pequenas a modo de cetros, )oílas aos ombros, logo mais atrás •ítaua húa moça muyto fermofa, ôc nuyto ricamente vertida, que com íum abano o abanaua de quando m quando,a qual era irmam do Mi- aquer nofíb general,& rriuyto acey- a a el Rey, por cujo meyo elle ti- lha tamanha valia ôc tamanho no- me em todo o exercito. El Rey feria lejdade de quarenta annos, de efta- ura comprida,& de poucas carnes,& 3em aírombrado>tinha a barba curta,

Fernão Mende^Pmto.

146

ôc com bigodes à Turquefca,os olhos algum tanto achinados, de afpeiro feuero ôc graue,veftido em hum qui- mão roxo a modo de opa, recama- do de pérolas, ôc nos peis húasalpar* cas verdes, lauradas de ouro de canu- tilho guarnecidas das mefmas péro- las, ôc na cabeça húa celada de citim roxo, com húa borda de diamantes ôc rubins entreftachados huns pelos outros. Antes de chegarmos a elle dez ou doze partos, rizemos nofla corteíia, beijando o chaó três vezes com outras cerimonias que os in- terpretes nos infinauao El Rey man- dou então que ceííaíTe a murtea dos eftromentos, ôc diííê ao Mira- quer, pregunta a efta gente do ca- bo do mundo fe tem Rey, ôc como fe chama a fua terra, & que diftan- cia auerá deila a efta do Chim em que agora eftou, a que hum da nof- fa companhia em nome de te dos refc pondeo, que a nofta terra fe chama-» ua Portugal, cujo Rey era muyto grande, poderofo, ôc rico, Sc que deU laaaquellacidade do Pequim aue- ria difíancia de quaíí três annos de caminho, de que elle fez hum gran- de efpanto como homem que não tinha efta maquina do mundo por tamanha, ôc batendo três vezes na coxa com húa varinha que tinha na mão, & os olhos portos no Ceo co- mo que daua graças a Deos,diíTe alto

qtodos o ouuirãojulicauão julicauão minaydotoreu piíinãq himacor da- uulquitarooxinapoco nifando hope* rau vuxido vulcanjtirau companòo foragrem hupuchiday purpuponí T 2 hincau,

hincau, que quer dizer, ò criador, ò criador de todas as coufas qual de nós outros pobres formigas da terra poderá comprender as marauilhas da tua grandeza? fuxiquidane,fuxquida- nè,venhão cà,venhão câ,& acenando com a mão nos fez chegar até os pri- meyros degraos da tribuna onde os quatorze Reys eftauão aífentados, & nos tornou a preguntar como home eípantado do que tinha ouuido, pu- cau,pucau? que quer dizer quanto? quanto? a que refpondemos omef- mo de antes, que quaíi três annos de caminho, a que elle tornou a dizer, que porque não vínhamos antes por terra que auenturarmonos aos traba- lhos do mar? a queferefpondeoque por a terra fer muyto grande, & auer nella Reys de diuerfas nações que o não confintirião, a que elle tornou, que he o quue vindes bufear a eílòu- tra,porq vos auenturais a tamanhos trabalhos? & declarandojhe então a razão difto pelas melhores & melhor enfeitadas palauras que então o cor- rerão.efteue hum pouco fufpenfo, & bulindo três ou quatro vezes com a cabeça difie,para hu homem velho q eftaua junto dellejConquiítar^fta gé* te terra tão alongada da fua patria,dâ claramente a entender que deuede auer entre elies muyta cubica & pou- ca juftiça, a que o velho, que fe cha- mauaRaja Benão,refpondeo,afsi pa recequedeue fer,porque homésque porinduftria & engenho voao por cimn das agoas todas,por aquirirem o que Deos lhes não deu,ou a pobre- za nelles he tanta que de codolhes

*PerigYÍnâçoes de

faz efquecer a fua patria,oU a vayda- de,& a cegueyra que lhes caiifa a fua cobiça he tamanha que por ella ne- gao a Deos,& a íeus pays. Da qual répofta algus dos que eftauão pre- fentes,fegundo delles inflrimos, mo- tejarão algum tanto com alguns di- tos cortefaós & galantes, de que el Rey goftaua muyto, Então torna* rão as molfoercsa tocar feus eftromé- to5,em que íè gaitou mais algú pou- co efpaço,& el Rey fe recolheopara outra cafa ío com as molheres que tangjão,& com a moça que o auana- ua,fem nefta volta entrar homem ne-

nhum. E chegando hum dos doze meninos que trazião os cetros ac Mitaquer,lhe difíe da parte de fua ir* mam que el Rey lhe mãdaua que f< não folie, o que elle teue por honra muyto grande,por lhe íêr dado o re' cado perãte aquelles Reys & fenho res q eftauão na caía. E com ifto fe £ cou aly, & nos mandou q nos fofle. mos para a noíTa tenda, porque ell< teria cuydado de fazer lembrança d< nós ao filho do Sol,

CAT. ÇXXLll

Qpwio eHe %ej Tártaro leuantoi

o cerco que tinha poslo a cidade dl

Tequim^ &*fefoy para fua terra>

C> do quefe^ ate chegar a ella.

Vendo ja quarenta & três dias que eramoí chegados a efte arra- yal, dentro dosquai; ouue

Fernão Mende^JPinto» 14.7

nine algus combates 5c efearamu- no campo, & dar fogo ao arrayal:&

as entre os cercadores & os cercá- los^ dous aflaltos a efcala vifta, a q >s de dentro refiftiraó valeroíamen- e, como honríes determinados, ven- lo efte Rey Tártaro quanto ao re- lés do que cuydara lhe tinha focedi- lo aquella emprefa,em que tinha ga- tado tanto de lua fazenda, pós o né- scio em confelho geral, para o qual òraó juntos todos os vinte & fete leys que aly tinha comfigo,& muy- os príncipes & íèhhores, com á ma- ?ov parte dos Capitães, & nelle fe af- entou que vifto ler ja entrada dein- lerno, Ôc os campos começarem ja 'e fe alagar, & as agoas dambos os ics virem com tãto ímpeto ôc forca jlhctinhãoja desfeito?a mayorpar- e dos vallos&tranqueyras de todo o rrayal, &juntarnéte ferlhe ja morta nu y ta gente de doença,& ella yr em anto crecimento, que não auia dia m que naó morreífem quatro ôc cin o mil homens, ôc a falta dos manti- nentos íèr tamanha,que os Capitães iãopodião fuftentar as iiiefas, nem >s cauallos, q de reçãopara iííolheS lauão, eráo baftantes para a' menor >arte da gente baixa,lhe era forçado euantar o cerco,& yrfe antes que odo entraíTeo innerno,porquefe ef- )eraíTe aly mais,corria rifeo de fe per ler. Eítas razoes ouueel Rey por )oas, ôc determinou de fazer o que he aconfelhaiião,inda que era muy- o contra fua vontade, por enten-* ler que era afsi neceíTano. E man- cou logo embarcar toda a gente de )é, com todas as munições que auia

elleíepartio por terra com fós tre- zentos mil de cauallo,& vinte mil ba- das. E feita a conta de toda a gente que era morta, fe achou peias liftas dos Capitaés,que eraó quatrocentos ôc cinquenta mil homés,de que a ma yor parte morrera de doença, ôc tre- zentos mil1 cauallos^ ôc feíTenta mil badas, que fe comerão em dousme- fes ôc meyo que tiuerao de eílerili- dade. De maneira q de hu coto ôc oi- tocentos mil hornés com que partio do feu reyno para cercar eíta cidade do Pequim, fobre a qual eíleue féis mefes Ôc meyo,leuou menos fetecen* tos ôc cinquenta mil,os quatrocentos ôc cinquenta mil que morrerão de peíte,fonie,&guerra,& trezentos mil que fe lançarão cos Chins pelo gran- de Toldo que por iflblhes dauáo,a fora outras muytas ventagés de hon- ras & mercês de dinheyro que lhe fa- ziao continuamente. E não he ifto muyto de efpantar^ porque â expe- riência nos tem moftrado que ifto tem iriuyto mais força, que todas as outras coufas quantas na rerra po- dem obrigar os homés. Partido eííe Rey Tártaro defta cidade do Pe- quim hua íèguda feyra dezafete dias do mes de Outubro , com fos trezen- tos mil de cauallo (como atras diíFe) dos feifeentos mil, que trouxera com figo, eííè mefmo dia ja quaíi noite fe foy alojar a húa ribeira que. fe e-ha- maua Quay tragUm , ôc ao outro dia hua hora ante menhã , tocando muy- tos tábores & pífaros, $c outras muy- tas diueríktades de inftrumetos guer*

T 3 reiros

^Perigrinaçoes de

íeyrôs ao feu mocIo,ô campo foy pó- húa hora ante menham. E ao outro

ík> na ordenança que lhe era dada, mandando diante feus atalayas,& corredores* Sc ordenando Cápitaens da vanguardia,& teuguauxés,que outro modo deforma que elles cuftu- máo leuar detrás de toda abagage, & gente de feruiçó, com que o cam- po caminha muyto mais feguro do que fe cuítuma entre nos, & marcha- do com efta ordenança, chegou ja quafi á vefperâ à húa cidade que íe châmauã Cuijampee, a quaí achou de todo defpejada,&como â gente reooufou húa hora & meya, que era O que tinha por regimento, fe leuan- íou daly o campo, & tornou a mar- char com paífo cheyo, & íe foy alo- jar ao de hua grande ferra quefe dezia Liampeu, donde também fe abalou logo quarto dalua. Com efta ordem caminhou dezaíTete dias â oito legoas por dia, & no cabo dei- les chegou a húa boa cidade por no- me Guauxitim, de dez ou doze mil vezinhos, na qual foy âconfelhado que fe prouefíe de mantimentos,por que ja então hia muyto falto delles. E para iftofe cometeô a cidade toda em roda a efcalla vifta, & achando nella fraca reíiftencia, em pequeno efpaço foy entrada & metida a faço, com hum cruel eftrago dos mifera- lieis moradores delia, de que. nósoá fíoue companheyros andauamos co- mo pafmados. É defpois de tudo fer cOníumido & pofto por terra, afsi ^com ferro como com fogo, & o ar- rayal lar^mence prouido de muy- los & bons mantimentos, fe partia

dia paffando â vifta da cidade de Cãixiioo, à não quiz cometer, poi íer grande & forte; afsi por imo <& fortificaçãoxomo por ter íabido qu( êftauao dentro nella cinquenta mi' homens, em que entrauáo dez rar Mogores, & Cauchins, & Cbam paas,gente mais determinada & pra tica na guerra que a da China. Pai fandó daquy para diante chegou í os muros de Singrachirau, que fâc os de que atrás diífe que diuidem tes dous impérios da China & daTai taria,& não achando nelles refiften cia algúa fe foy alojar da outra ban« da em Pamquinor,que era a primey ta cidade íua* que eftaua treslegoai defte muro de Singrachirau,& ao ou tro dia chegou á Xipátor onde dei pidio a mayor parte da gente. E nãc íe detendo aquy mais que fòs fet< dias em que acabou de negocear ia tisfaçoés & pagas de foldos,& execu çoés de juftíça em alguns quetrazi; prefos,fe embarcou aforrado, come homem não muyto contente* & f< foy na via de Lançame fem íéuai mais companhia que íos cento & vinte laulees de remo, em que po- dião yr até dez ou doze mil homés, nas quais daly a féis dias chegou a ci- dade de Lartçame, onde fem querei que íe lhe fizeíte recebimento ou fefta algúa defembarcou duas horas de noite/

CAp,

Fernão Mende^Pintó. í^g

CA T. rXXIIÍL fomente tem dezafTete reyrios em feii

ymo esle "Rey Tártaro fepaffou

íe/la cidade de Lançamepara a de

luymicãos onde fqy vifitado de

muytos príncipes peffoa/mente>

& de outros por J eus

embaixadores 0

L Rey fe deteue neílá

cidade deLançamea- j que chegou a ella to- j da a fua gente, aísi de como decauallo, q oy efpaço de vinte & féis dias. E dei >ois de a ter toda recolhida,fe pafibu >ara outra cidade muyto mayor & nuyto mais nobre, que fe chamaua ruymicão,onde foy vifitado peííoal nente de akus orinciDes íeus cornar- :ãos,& por embaixadores o roy tam- >em doutros Reys & fenhores de nais longe, de que os principaes fo- ãofeisaílaz grandes Ôc poderofos, juais forão o Xatamaas Rey dos ^rfas^ Siammom Emperador dos jiieos, que confina por dentro deftè èrtão co Bramaa do Tanguu,o Ca- aminhanfenhorda forca bruta dos lifantes da terra,como ao diante di* ey quando tratar delle, & do feu fe- ihorio.o Sornau de Odiaa,que íc in- itula Rey de Sião, cujo fenhorio Co- ina por diftãcia de fetecentas legoas lecofta, como lie de Tanauçarim a Phampaa cos Malayos & Berdios & 5atanes, ôc pelo fertaó,co Pafsiloco k Capimper,&Chiammay,& Lau- bos, & Gueos, de maneyra queefte

fenhorio,o qual entre efta gentilida- de toda fe intitula por grão mais fu- premo/enhor do elifante brancos- tro era o Rey dos Mogores,cujo rey- no & fenhorio jaz por dentro do fer- rão entre o Coraçone que he juto da Perfia,& o reyno de Dely & Chitor, & hum Emperador que fe chamaua o CarãOjCiijo fenhorio, fegúdo aquy íoubemos, confina por dentro dos montes de Goncalidau em feíFenta grãos auante,com hua gente a que os naturaes da terra chamão Mofcoby, da qual gente vimos alguns homens aquy néíta cidade,que fao ruyuos, Ôc déeítatura grande, vertidos decai- çoés,roupetas & chapeos ao modo q neíta terra vemos víar os Framengos & os Tudefcos, & os mais honrados trazião roupões Forrados de pelles,& algus de boas martas, trazião efpadas largas & grandes, ôc na lingoagem q fallauao lhe notamos algus vocablos Latinos,& quando efpirrauão deziãô três vezes dominus,dominus, domi- nus. Porem o mais, fegundo o q nel- les notamos, tinha mais apparenciá de idolatria ôc gentilidade q de ver- dadeyra religião, ôc fobre tudo erao muyco dados a torpeza nefanda. Ao embaixador defte príncipe Carão fez miiyto mais auantajado recebi- mento que a todos os outros: efté trazia comíigo cento Ôc vinte homés de guarda de frechas Ôc panouras tauxiadas douro ôc prata,veftidos to- dos de couro eícodado roxo& vérdé^ 6c doze porteyros a*cauallo com ma- ças de prata, ôc doze quaruos a de' T 4 flro«

'eregrmaço

es

UrOjtodos com guarnições crameíins guarnecidas por cima de rendas de ouro ôc pratajentreííãchadashúas pe- las outras, & doze homens agiganta- dos de eítaturas muyto deíacuftuma- cias de grandes vefi:idos,como íe pin- tao os íaluagés,de pelles de tigres, c5 cada hum feu grade libreo,prefos to- dos com cadeas de prata, & todos co feus abamos do mefmo com muytas campainhas támbem de prata por el- les a modo de boçais de cauallos, os quais acames, que elles trazião para não morderem,fê fechauão nuns ar- ganeis de latão, com feus copos dou- rados como de brida, & doze moços pequenos em facas brancas felladasà eítardiota,co íèllas de veludo verde, huas redes de prata por cima; & elles veílidos todos de híia maneyra, roupas curtas de citim roxo forra- das de martas,& calças Ôc chapeosdo mefmo ôc cadeas douro a tiracolo de fuzis muito groflbs3os quais doze mo ços eraó todos iguais, & os maisfer- mofos dos roílos, & be defpoítos dos corpos, & bem proporcionados dos membros que vy em minha vida, porque em nenhum delles auia qual- quer defeito da natureza em quefe lhe ■pudeíte pòr tacha, ôc nenhúa ou- tra mais gente de cauallo trazia coli- go que foife lua, Elle vinha num car rode três rodas por bãda todo guar- necido de pra>a,corn húa cadeyra do mefmo em que hia affencado, & em torno deite pirange, (porque aísí fe chàmaua"; vinhaò auárenca homens da eftribeyra muyto bem veílidos couras & calças < de panno verde õc

roxo ercf enxadrez>com rendas de fe da vermelha, & çapatos abrochado quaíi a Portuguefa antiga, & efpada de mais de três dedos de largo, con cabos & punhos & conteyras de pra ta,& fuás cornetas de monte poítas , tiracollo em cadeas também de pra ta,& nas cabeças húas celadâs a mo do de gualteyras muytas pluma nellas, guarnecidas de muyta íom; de argentaria^ e maneyra que o eíh do&apparato deite embaixador, < fechamaua Leixigau, era de tant; grandeza & mageííade,que logo po: eílefejulgauaferde príncipe muyte poderofo ôc rico. l^las cafa« em qu< eíle poufaua (que hum dia fomos vei em companhia do Mitaquer que c foy vifitar da parte dei Rey) entn algúascoufas que vimos, ôc muytc notamos pornouidade mais admira uel q todas naquella terra,foraõcincc cafas armadas de tapeçaria de raas, muyto rica,da maneyra deíla q entre nós fe vfa,por onde parece que onde fe faz a que vem a efte reyno, fe faz também aquella de que efta gente fe íerue,& em cadacafa deitas cinco ef taua hum dofel de brocado, ôc de- baixo delle húa meia com hum pra- to ôc humgumil de prata de muytc euftofo feitio,com hua cadeyra de eC- tado crameíim,franjada douro ôc ro- xo,& húa almofada do mefmo aos pejs, ôc em partes alcatifada de gran- des tapetes,& hum brafeyro de pra- ta com húa cacoula do mefmo nelle, quelãçauacle fy cheyrofuauifsimo. A porta de cada húa deftas cinco ca- ías eftauão dous alabardeyros qnão

tolhião

"ermo

Icndez Tinto.

tolhiao a entrada a nenhua p^eíToa no- bre que a quifeíTe ver. Noutra fala muytogrande,quea modo de vara- da tomaua toda a fronta*ria da rua, tambern armada pelo teor deftotitras :aías, eftaua fobre hum eftrado alto pofta húa mefa ao nofio modo, com :oalhas adamafcadas, & outra fobre- :oalha da mefma maneyra,franjadas imbas douro, & hum guardanapo obre híía falua de prata,com nua co- her & hum garfo douro, ôc dous fa- eirinhos pequenos também douro, kfaftados deita mefa dez ou doze >aflbs eftauão dous apparadores, em que auia baixellas muyto ricas, com brande foma de peças de prata de to- h forte feitas ao torno. E nos quatro :antos defta cafa quatro tenores que euariacada hum. quafi hum quarto :om fuás caldeirinhas prefas por ca- kas, guarnecidos em partes de tro- ps dourados da groflura de húbra- ;o,& dous caftiçaes muyto grandes ;om fuás tochas de cera nouas apa- gadas porfer ainda de dia, A porta iefta varanda eftauão doze alabar- 3eyros muyto bem derpoftos, vefti- 3os de huacacheyra muyto felpuda, :om íèus carapuçoés do mefmo nas :abeças,& treçados na cinta de cha- paria'de prata, os quais todos era5 tão foberbos & defarrezoados no modo das fuás repoftas no modo das fuás reportas que toda a gente os te- mia. Eíle embaixador, alem daviíi- tação que vinha fazer como os ou- tros, vinha também tratar cafamen- to defte Emperador Carão com hua irmam do Tártaro, que fe chamaua

49

Meica vidau, que "quer dizer, çaflra rica, molherjade trinta annos, mas bem aílombrada,& muyto inclinada a fazer bem aos pobres pelo amor de Deos,a qual nós vimos muytas vezes neftacidack eni feftas notaueis que efta gétecuftuma fazer em algus dias abalifados do anno, em que tnuy- tos regozijos & paífatempos, porem ao modo gentilico,quaisfàó todos os feus cuítumes. Mas deixando ja ago- ra iflo, que não toquey para mais q para dar relação dos embaixadores que vimos nefca corte, ôc defte prin- cipalmente,porque me pareceo mais para fe notar que todos os outros,me tornarey â matéria de que hia tratá- do.afsi do que toca à noíía liberda- de, como ao caminho que fizemos até as ilhas do mar da China, onde eíle Rey ou Emperador da Tartaria nos mandou leuar, paraque venhão ao conhecimento dos homens delias partes alguas coufas de que ategora por ventura não tiueraó nenhua no-

i>:ííu

CA9.

Como fow$$ kuados oúirá vê^

diante d$Ue %ey Tártaro, &>

do que pãff amos com ellè.

M

Afiados algus dias òqC-

pois de fer chegado ef-

^ÉH te ReX a enla C1dade de

jp §|K|à|!

gi: m Taymícao > "os q«ais

mgâ^^èsm ouue a}gúas feftas no_

taueis, por fe concUiyro cafamento1 defta pnnceíà Meyca vidau irmam

Hgnnâçoes de dei Rey com efle Emperador Caraó como por alguas vezes nie tendes di-

de que tenho tratado, o Tártaro, por parecer &cófelhodos feus Capitães quiz de nouo tornar a tentara em- prefa do cerco do Pequim que dei» xará, fentindo quaíl por afronta em fua peílòa o mao fucceíTo paííado, para o qual chamou logo a cortes por todo o reyno,& fez aigúâs ligas & có* federaçoés,por meyo de groíTas pei- tassem muytos Reys & príncipes co- marcãos,& vendo os pobres de nós, quanto ifto nos podia prejudicarão que nos era prometido a cerca da nof íà liberdade,tornamos de nouo a im- portunar o Mitaquer,a quem era da- do o cargo diíTo, trazendolhe á me- moria alguas couíàs que faziáo a nok ío propoíuo, & a obrigação que pa- ra iííò nos tinha pela palaura que nos tinha dado,a que elle refpondeo, tê- des muyta razão no que dizeis, & eu muyta mais em vos não negar o que me pedis com tanta juftiça, pelo que Terá bomconfelho íazer diflo lem- brança a el Rey,porque fe não perca voííã liberdade ao defemparo, & ta- bem me parece que quanto mais ce- do vos fordes daquy,tanto maisfegu ros citareis dos trabalhos que o tem- po nos começa a moftrar nifto que a- gora fua alteza quer em prender de nouo por confelho de algus que haó miflermais de confelho para íego- tiernarem a fy mefmos,de» que a ter- ra ha mifter de agoa para produzir os fruitos de fuás fementes,mas à me* nhamDeos querendo, eu Ihç farey lembrança de ^ós,de voíTa pobreza, &daorhndade de voííbs. filhinhos

to, porque quiçá fe mouerá a por os olhos em vos, como por ília realida- de ôc grandeza cuítumaa fazer, em cafos femelhãtes a efte voflb. E com ifto nos defpidio,& ao outro dia pela menham fe foy ao Pontiueu, que he a caía ondeei Rey geralmente cuftu- ma a ouuir as partes, & fazendolhe lembrança de nós,lhe reípondeo elle, que como defpachaílè hum embai- xador íeu para o Rey da Cauchen- china,entao nos mandaria com elle, porque afsi o tinha determinado.Cõ efta repofta tornou o Mitaquer para fua caía, onde o ja eftauamos efperã- do^ ôc nos diíTe ifto que el Rey lhe refpondera,& que íintira nelle defejo de nos fazer efmola para o caminho* Com efta boa noua nos tornamos muyto contentes paranofTacafa,on- de eftauamos eíperando a hora em q efta promeífa auia deter efTeitó,áté que delpois de paíládos dez dias o Mitaquer por mandado dei Rey nos leuou ao paço,& chegando nós a on- de elle eftaua aquellas cerimonias de grandeza ôc mageftade com que fe lhe çuftuma a falar^que faó as meí mas de que vfou quando eftaua no Pequim,como atras deixo contado, nos olhou com bom íèmbrante, ôc diíTe ao Mitaquer que nos pregun- taíTe fe o queríamos feruír, porque teria gofto diíTo, & nos faria mercês ôc honras mais atientajadas que a to- dos os outros eftrangeyros que o fef- uiãona guerra. A que o Mitaquer refpondeo em noftb fauor oq alguas yezes lhe tínhamos dito,que éramos

ca fados

-~

Fernão Mende^Pinto.

i?õ

ralados na nofía terra, & com muy- os filhinhos, & tão pobres que não inhamos mais que o que lhe gran- ;eauamospor noíTâ induftria &tra- >alho com que pobremente os fufté- auamos.o que elle ouuio com mo- trasdetercópaixão de nos, que nos leraóalgúasefperanças de o achar- nos faúorauel ao nolTo propoíko, & liíTe para o Mitaquer, Folgo de faber |ue tem la tamanho penhor como ef : que dizem,para lhes cumprir com riais gofto o que em meu nome lhe rometefte. que o Mitaquer,& nós sdos com elle, leuantando as mãos m íínaLde lhe darmos graça>, beija- dos o chaò três vezes dizendo, hi- auíinafapò lagaó companoo ducu- e viday hurpane marcutó valem, q |uerdizer,fobre mil gerações deícã- sm teus peis, porque fiques fenhor os que habitão a terra, ao que fe el- \ íorrio,& difle para hum príncipe q ftaua junto com elle,falão como gé- e quefè criou entre nós. E pondo ntão os olhos em íorge Mendez q ftaua diante de nós todos junto co Mitaquer, lhe diíTe,& tu cm q eftás, [ueres yr ou ficar? a que elle refpon- leo,como homem que ja de mais ló- ^e tinha feito o concerto, eu fenhor, orno não fou caiado riem tenho fí- hos que mechorem,quero antes fer- iir voíía alteza.pois diíTo tem gofto, iue fer mií annos Chaem do Pe«; juim.aque el Rey íê.forrio. E tor- iando a praticar com algús fenhores iue eftauáo mais chegados a elle em :oúfas de feus paíTatempos,nos nao difle mais nada. Com ifto nos reco-

lhemos aíTaz contentes para nofía ca- fa,onde eftiuemos mais três dias fa- zendonospreftes,nofím dos quais a requerimento do Mitaquer, & por meyo de fua irmam,que,como ja dií- fe era a mais aceita a el Rey de todas nosmãdou dar para todos oitodous mií taeis,& nos entregou ao feu em- baixador que hiapara a cidade de Vzanguee na Cauchenchinaj em có- panhia doutro defte mefmo Rey Cauchim, & com elle nos partimos daly a cinco dias embarcados na mef ma embarcação em que elle hia, ôc o íorge Mendez nos deu mil cruza- dos;porquejaa efte tempo tinha íeis mil de renda,& nos acompanhou to- do aquelle dia, Ôc em fim fe defpidiò denòscom muytas lagrimas^iamé- tando entre ellas alguas vezes o de- fterro em quê ficaua.

CJ$. CXXFL

T>o caminho que filemos deita cU

finde de Tuymtcão ate. chegamos

ao terrejiro das caueyras dos

mortos.

p Ârtidosnós.ariouedias « do més de M avó do anno de 154.4, deftaci-' dade de TuymícEo,fbV mos aquelle dia ja quá íi noite dormir a hús eftudos quefe chamauão Guatipamor,em hum pa- gode por nome Nãypaqm, nos quais os embaixadores ambos foraó bem agafalhados pelo Tuyxiuau. da ca! que era o Reytor delies. E como

outro:

Peregrinações de

ètitro dia foy menham clara feguiraó feu caminho pelo rio abaixo cada hu em ília embarcação, a fora outras duas em queleuauãofúa fardagêm. E íèndo paíFadas duas horas deipois da vcfpera, chegamos a hua cidade pequena por nome Puxanguim4bem fortalecida com torres & baluartes ao noílò modo, ôc cauas largas com três pontes de cantaria muyto fortes, & grande íoma de artilharia de pao como bombas de nauios/omente os vafos c!os ley tos em que íe atacauão as caraara^eraó chapeados de ferro, ôi tirauão pilouros como de falcoens & meyas efperas. E perguntando nós aos embaixadores quem inuentara aquelle modo de tiros, nos diíTeraõ q hua gente que fe chamaua Alimanis, de hua terra por nome Mufcoo, que por hum lago dagoa falgada muyto grande & fundo aly vieráo ter em noue embarcações de remo, em có- panhia de hua molher viuua fenho- ra de hum lugar que íe dezia Guay- tor^aquem hum Rey de Dinamarca deziáo que lançara fora da fua terra, ôc vindo aly ter fugida com três fi- lhos feus,oviíauò defte Rey Tártaro os 'fizera grandes íenhores,& os cafa~ ra com parentas fuás, dos quais ago- ra procedião as principaes cafasda- quelle império. Ao outro dia pela menham nos partimos defta cidade, & fomos dormir a outra muyto mais &obre,por nome Linxau. E íeguindo mais cinco dias noíla viagem por efte rio abaixo/omos hum fabbado pela menham ter a hum grande templo pornome Singuafatur, o qual tinha

>

hua cerca que feria demais de hua legoaem roda, dentro da qual efta- uáo fabricadas cêto ôc feíTenta & qua- tro caías muyto compridas & largai a modo de terecenas, todas cheyass os telhados de caueyras de gentí morta,as quais crão tantas em tantí quantidade que receyo muyto di. zello,afsi por fer coufa que fe poden mal crer,como pelo abufo & ceguey* ra deftes miferaueis. Fora de cadí hua defta s cafasefíauão os oflbsdai caueyras que eftauão dentro nella poftos em rumas tão altas que fobre. pujauáo por cima dos telhados mai: de três braças^de maneyra que a me, macafaficaua metida debaixo de te da efta oíTada fem fe apparecer dellí mais que fomente a fretaria em qu< eftaua a porta. Sobre hum tefo que í terra fazia para a banda do Sul, efta ua feito hum terreyro alto fechade todo com noue ordés de grades d< ferro para o qual fe fobia por quatre entradas, Dentro defte terreyro efta ua pofto em pé,encoftado a hum cu bello de cantaria mnyto forte Ôc ai to,o mais disforme & efpantoío ftro de ferro coado que os homés po dem imaginar, o qual tomado ais a efmo,fe julgaua que feria de maií de trinta braças em aíto,& féis de lai go, & nefta tamanha disformidade era muyto bem proporcionado em todos os membros, íaluo na cabeça. que era hum pouco pequena oarata< manho corpo, o qual monftro fufte« taua em ambas as mãos hum pilou- ro do mefmo feno coado de trinta & féis palmos em roda. Aíignifica?

caó

Fernão Mende^JPintò. 1 j 1

çao defta eftranha monítruoíidade tarugapor nome Miganja, & dehu

pregutamos nos ao embaixador Tar taro,o qual nos reípondeo, fe vos ou- tros foubeíTeis a conta defte Deos for te,& quão neceíTario vos erater- delo por 2migo,ouuereis por em- pregado dardeslhe tudo o que ten- des antes que aos voíTos meímos fi- lhos, porque aueis defaber que efte grande fanto que aquy vedes he o tifoureyro de todos os oíTos de quan- tos nacerâo no munda, para no der- radeyro dia de todos os dias,quando oshoméshao de tornar a nacer de nouo^dar a cada carne os oflbs que deixou na terra, porque conhece to- dos, & fabe particularmente de que carne foy cada oíTada daquellas, ôc aquelle trifte que nefía vida foy tão mofino que lhe não fez honra, nem lhe deu efmolla,darlheha os mais po- dres oíTos que achar no chaó porque viua íèmpre enfermo, ou lhe dará híí offo ou dous menos, paraque fique manco, ou aleijado, ou torto, & por iíío vosoutros, de meu coníèlho,fa- zeyuos aquy feus confrades, & offe- receilhe algúa coufa, & vos vereys o bem que dahy íè vos fegue. També lhe preguntamos paraque era aquel- le pilouro que tinhanas mãos, & nos reípondeo,que para dar com élle na cabeça a ferpe tragadora que viuia na concaua funda da caía do fumo, quando os quifefíe vir roubara Após ifto lhe tornamos a preguntar pelo nome daquelle monftro, & nos difTe que era, Pachinarau dubeculem pí- nanfaquè,o qual auia fetentá & qua- tro mil annos que nacera de hua tar-

cauallo marinho de cento & trinta braças de comprido,que fe chamaua Tibremvucão,que fora Rey dos Gi- gaos de Fanjíis. E deitas patranhas ôc beftialidadesnos contou outras muy tas que tem para íy, com que o de- mónio os leua todos ao inferno, a cj elles chamao concaua funda da cafa do fundo. Affírmounos também efte embaixador que íbmente das efmol- lasdos feus confrades paíTaua de du- zentos mil taeis de renda cada anno, a fora as propriedades das çapellas dos jazigos dosnobres,que feparadas por íy faziáo outra muy to mayor quantidade de renda que efta das eí^ mollas,& que tinha de ordinário do- ze mil facerdotes a que fe daua de co mer & veftir,que,como merceeyros, eraó obrigados a rezar pelos defun- tos daquelles oííòs, os quais nãoia- hião fora daquella cerca, fem licença dos feus Chiíangués a q obedecido, masque de fora auia feifcentos fer- uidores que lhe negoceauão o necel- fario,os quais facerdotes hua vez no anno fe lhes permitia quebrarem a caftidade dentro naquella cerca, mus que fora delia o podião fazer ca da vez & com quem quifeflem,fem encorrerem em peccado,& que para iíTotinhaò também feus encerramé*- tos, onde tinhão muytas molheres deputadas para ifto, as quais com li- cença das fuás Libangús, que faóas prioreíTas fe não negáo aos facer- dotes defta beftial ôc diabó- lica feita.

CAP.

7) o caminho que filemos ate che

garmos a cidade de Quanginau^

& do que nella vimos.

^Pengnnâcoh de

A T. CXXVIl. <J°r ouuc ÍPor rá° hónrado,&: a vay

dade que tomou porifto o fez tão a- lheyo de lua condição(porq natural- inéte eraapertado)qoíez aly gaitar em efmollàs que deu aos, facerdotes tudo quanto leuaua de feu,& não cõ- tente ainda com iflo nos tomou tam- bém a cambio os dous mil taeis que el Rey nos tinha dado, de q defpois nos deu de intereííe a quinze por cé- to,& querendoíè eftes embaixadores partir/oraó viíitar o Talapicor a fru pagode onde eftaua apofentado, por q por fer grandiofo & tido em repti- taçao de íanto, não podia poufar co nenhtí home fenáo el Rey fomen- te, porem clle lhes mandou que íe não fofíem aquelle dia, porque auia elle de pregar em hum templo de vç+ ligioíasda imiocação de Pontima- xjueu,o q elles tiueráo por muyto grã de honra, & daly íe foraó logo para o pagode onde íe auia de fazer o fer- mão,onde era tanta a gente em tan- ta maneyra que foy neceíFario mih dariê o agrem,que era o pulprco,para hum terreyro muyto grande, o qual em menos de húa hora foy todo cer- cado em roda de palaques toldados depannos de feda,em que efíauáo as molheres & filhas dos nobres rica- mente veíbdas, & doutra parte eíta- wa~a Vanguenarau,queera aprioref- là,com todas as menigregas do pa- gode, que erão mais de trezentas, Ôc íobido o Talapicor no ,»agre, defpois de moífrar no exterior muycos go£ tos Ôc meneyos de fãtidade, podo de quando em quando os olhos no Ceo eom as mãos leuancadas, começou

feii

Eguindo noílò cami- nho deite pagode para í| diante,fomos ao outro dia ter a húa cidade muyto nobre que eíta- ua â borda do rio por nome Quangi- naii^na qual eftes embaixadores am- bos fe detiuerao três dias prouendo- íe de aígúas coufas de que ja vinhao faltos,& vendo húas feitas q fe fazião â entrada do Talapicor de Lechune, c]ue he entre elles como Papa, o qual hia viíitar el Rey ôc coníolalo pelo imo fucceílb que tiuera na China. Eíte Talapicor entre algíías honras ôc mercês que fez aos moradores de- ita cidade para lhes fatisfazer o muy to que gaitarão no recebimento que lhe fízerão/oy concederlhes que pu- deílem todos fer facerdotes, ôc mini- ftrar facrificios onde quer queíea- chaílem para lhe darem por ifíb feu eítipendiocomo aos outros que fo- rao feitos por exame, ôc que pudefc fem também paíTar eferitos como le- tras de cambio para no Ceo darem dinheyroaosque lhe fizeíTembé. £ ao embaixador da Cauchenchina, por fer eítrangeyro,concedeo que na íua terra pudeífe legitimar por nouos parentefcososqpor ilTo lhedeífem dinheyro,& dar nomes de títulos hó- rofos aos íenhpres da corte,aísi como cl Rey o fazia,de q o trifte embaixa-

Fernão Meneie^ Tinto. 1 5 2

cu iWoito,dizendo:Faxitmau hina- »♦ liberalidade, a que a ley do Senhor or datirem, voremidané datur na- vos obriga,porque a falta do voíTo Co

igão filau impacur, coilouzaa pati- ,áo,&c, que quer dizer, Afsi como ior natureza â agoa laua tudo, & o ol aquenta as criaturas, afsi he pro- rio em Deos por natureza celefte izer bem a todos. Pelo qual hús 8c urros íomos muyto obrigados a i- litarmos efte Senhor que nos criou : nos fuftenta, com fazermos geral- iente aos faltos do bem do mundo quiilo que queríamos que nos fí« eííem a nósvvifto como nefta obra agradamos muyto mais que em to as as outras,porque afsi como O bo ay.folga quando que lhe conui- ao feus filhos,afsi folga efle Senhor^ ay verdadeyro de todos, quando am zelo de caridade nos communi- amos bus cos outros. Pelo que erM ifto & claro que o auarento que fe- ba a mão para aquelles a que a ne- Cidade obriga a pedir o que lhe ika,& lhe he neceíTario,& torce o fu- inho para outra parte íem lhe dar ;medio, afsi ha de fer torcido por lizojufto de Deos no charco da noi- í,onde contino bradara como ram, tormemado na fome de fua auare* a,pelo.que vos amoefto 8c mando a odos que pois tédes orelhas que

bejo os não conftranja a tomarem o alheyo,em cujo peccado vosíereis tão culpados como fe matareis hum me- nino no berço.E encomendouos que vos lembre o que eftà eferito nos vo- lumes da noífa verdade a cercados bcésque aueis de fazer aos facerdo- tes que rogaõ por vos, porque fe não percão ámingoa do qlhe não dais, que íèrà ante Deos tamanho pecca- do como que mataíTeis hua vaca bra- ça citando mamando na teta da mãyj em cuja morte morrem mil almas q nellacomo em cafa douro eftãofe- pultadasefperandoo dia da íua pro- meffa,em que ferao tornadas em pé- rolas brancas para bailarem no Ceo como osargueyros nas refteas do Sol. E afsi com citas ruyns razoes, & ou- tras muytas tão ruyns como ellasfe veyo aaferuorar de tal maneyra, 8c dizer tantos defatinos, que nos os oi- to PortuguéfeS eftauamos pafmados da.deuaçáo daquella gente,& de co- mo todos eftauãó promptos 8c com as mãos aleuantadas,dizendo de quá do em quando, taximida, que quer dizer afsi o cremos. Hum dos da nofc fa companhia por nome Vicéte Mo- rofa^quando eftesouuintes em certos

uçaís,^ façais o q a ley do Senhor paffòs dezião tayximida, dezia tam- os obriga, que he dardes do voíTo bemjtal fejar.ua vida, 8c ifto com tan-

obejo aos pobres^ aquém falta ore nédio para fe íuitentarem, porque )eos vos não falte no derradeyro )ocejo da vida, Efeja efta caridade ati voátão vifta & cão geral que até >s paílarmhos do âr fincão efta voíla

ta graça nos meneos, 8c com hum ferabrante tão fefudo, 8c fem nenhu mouimento de riíb,que não auia ne- nhum de quantos eítauão no auditó- rio que fe pudeíTe ter ao rifo, & elle nao fazia de fy nenhúa mudança,

mas

'Peregrinações de

imas fícauâ fempre muyto feguro,fin* nho por eík rio abaixo, pór efpaçc

gindo que choraua com deuaçao, & fempre cos olhos poftos no Talapi- cor, o qual quando olhou para elle não íe pode ter que não fizeíTe també o que os outros fazião,de maneyra q o fim da^pregaçaOjafsi no que pregai ua como nos ouuintes fe íokou num rifo com tanto gofto, que até a Van- ganarau com todas as menigrepas da religiaô,nãoauiacoufa que as pudef- fe tornara meter na autoridade com que primeyro eítauao, tendo todos para fy que o Poítuguez fazia aquil- lo com deuaçjío'& em todo feu íifò, porque na verdade íè entenderão q o fazia zombando ou pordefprezo, quiçá que fora muyto bem caftiga- do. Após ifto fe recolheo o Talapi- corparao pagode ondepouíaua,a* companhado de toda a gente honra- da & dos embaixadores, & de cami- nho foy gabando a deuação do Por- tuguez,dizendo,atéjeftes, ainda que beftiais,& fem conhecimento da nof faverdade^áo deixao defentír que be coufa fanta o que me ouuiraõ,aq todos refponderaó que era afsi fem falta nenhúa.

CA9. ÇXXVlll.

2)tf caminho que fiamos de&a ci- dade de^ Quanginau^alè a cidade de Xolorj&do que nella vimau

Ogo ao outro dia nos parti- mos defta cidade de Quangi? nau, & feguimos nofíb eami-

de quatro dias, vendo em todos ellei muytas pouoaçoés & lugares grande; que eítauáo ao longo da agoa, & nc fim dos quatro dias chegamos a húí cidade que fe chamaua Lechune,qu( he cabeça da falfa religião deita gen- tilidade,como o he Roma entre nos na qual eíiâ templo muyto fum- ptuofo, & de edifícios muyto nota ueis,emque eftãofepukados vinte & fete Reys ou Emperadores defta Tai tara Monarchia,em jazigos de capei las muyto ricas, afsi por ferem laura- das de obra muyto cuítofa,como poi íerem todas for,radas de prata, ond* auia húa grande quantidade de ido los de di Aferentes naturezas, tamberc feitos de prata, Para a parte do Nor te,hum pouco afaílada defte templo eftaua húa notauel cerca aísi de gran de,como de forte, dentro da qual ef tauao edificados duzentos ôc oitentí mofteyros,dedicados aos Teus pago des,tantos de homens como de mo- lheres, nos quais nosaffirmaraó que auia quarenta ôc dous mil lacerdotes ôc menigrepos, a fora os minift ros c feruião de fora, de que> também era húa grande quantidade. Por entre eftas duzentas ôc oitenta caías auia in- finitas colunas de bronzo, & encima década húa delias eftaua hutnidolo do mefmo bronzo dourado, & algús deftes idoíos eráo de prata,que faó as eílatuas dos que elles nas fuás iêitas tiueráó por fantos, & de que eontão grandes patranhas,& fegundo os qui- lates das virtudes em que cada hum exercitou a vida, afsi lhe fazem a ef-

tatua

Fmiao Mendez *Pintè.

tua mais ou menos dourada & rica* traq os viuos q os virem aísi hóra- )s,!e incicem & animem aos imita- m,para que defpois de mortos lhe çaõ aelles outro tanco.Num deites oíleyres que digo,da inuocaçao do uiayFrigau, Deos dos atamos -do l,em hum ricoápofento cftaua húa riam dcl Rey viuua que fora mo- er do Raja Benao principe de Pa- â,a qual por morte de feu marido metera alyem religião com íeys il molheres que trouxera comíígo, por grão mais honrofo que todos intitulaua vaíToura da cafa de eos. A cila molher foraó ver os em- ixadores, & lhe beijarão o péco~ o a íanta,& ella os recebeo afabel- cnte,& com palauras diícretas lhes cguntou miudamente por algúas ulasde quelheellcs deraó razão^ ihando então para nòs,que ficamos m pouco mais afaftados, & entea- ndo que éramos gente noua na- idla terra,pregunton.aos embaixa- »res de que naçaó éramos, a que el- j refponderaó, que de húa terra do t>o do mundo, a que fe nãofabia nome^de que ella fez humgran- efpanto. É mandandonos chegar ra junto de fy, nos preguntou muy. i couías, a que reípcndemos como irazão,oqUeella,& todas as mais c eftauão preíentes folgarão muy- deouuir, &efpantada a Raynha srepoíiasque hUm dos nofibslhe ua^ diífe, falão como homens que criarão entre gente que via mais mundo que nós, & defpois de fe ter com nofco hum pequeno efpa-

**i

ço em algúas preguntas,nos defpidio com boas palauras,& nos mãdou dar cemtaeis de efmola, Defpididosos embaixadores della,feguiraò fua der- rota por eíle rio abaixo, Ôc a cabo cinco dias chegamos a húa grande cidade por nome Rendacalem qué eftauano eítremodo reyno da Tar- taria, & daly por diante começa o fe- nhorio de Xinaleygrau,pelo qual ca- minhamos mais quatro dias, até che- garmos a húa pouoaçãoque fe de- zia Voulem, onde os embaixadores ambos foraó bem recebidos do íe- nhor da terra, & prouidos do necef- fario para fua viagem, ôc de pilotos para aquelles rios. Daquy feguirão fua derrota mais fete dias tem em to- dos elles vermos couía de que fe pu- deíle fazer cafo, no.fim dos quais a- bocamos por hum efteyro que fe de- zia Quatanqur, pelo qual os pilotos entrarao,afsipor encurtarem o cami- nho,como por fe arredarem de irem encontrar com hum famofo coíTay- ro.que rinha roubado a mayor par- te daquella terra. E correndo por ef- . te efteyro a Lefte, Ôc a Lefnorde- fte, ôc em partes a Lesfuefte con- forme as quedas por onde a agoa fazia fua euaíaó, chegamos ao la- go de Singapamor, que os naturais da terra nomeão por Cunebeteej que, íêgundo a enformaçáo que fiosderão, tinha em roda trinta ôc feys legOas, no qual vimos tanta diuerfídade de aues de toda a forte* que me não atreuo a podelo dizer. Deite lago. de Singapamor, que á natureza por obra admirauel abria

¥ no

Terígrlnaçoes de no coração deita terra,faem quatro não confentirãó fayr em terra,& qu

rios muyto largos & fundos, hu por nome Ventrau, que corta direyco a Oeíte toda a terra do Sornau de Sião, & faz íua entrada no mar pela barra de Chiãtabuu,em vinte & féis grãos. Outro,que fe chama Iangumaa,cor« tando ao Sul & ao Sueíte,& atrauef- íando muyto grande parte da terra, como he o reyno do Chiammay, os Laos,osGueos,&algua parte do Dã- bambuu, entra no mar pela barra de Martauão no reyno de Peguu, Ôc ha de diftancia de hum ao outro pe- la graduação dos íeus climas,mais de íetecentas legoas. O terceyro rio.por nome Pumnleu, corta pela melma maneyra todo Capimper,& Sacotay, Revoltando por cima deite fegundo rio,corre todo o império do Mongi- noco,com algúa parte do iMeleytav, & Souady, & vay fazer fua entrada no mar pela barra de Cofmim, jun- to de Ànacão> & do quarto rio, que também he do teor de cada hum de- ftes, nos não íouberaô dar razão os embaixadores, mas prefumefe, fégík do a opinião dos mais, que he o Gá*' ges de Sategaono reyno de Benga- la. De modo que eítes quatro rios fe tem que faó os mayores que quantos ategora fefabem em tudo o que he deícuberto naquellas partes Or-ien- tais, & deite lago para diante hea> terraja menos pouoada que toda a outra por onde paílamõs. Seguindo daquy noílb caminho para diante por elpaço de mais íete dias, cnega~ mos a huni lugar, pornome Caley- ptite^io qual os moradores dellé;nós

rendo os embaixadores a porfiar n

defembarcação, os tratarão tão mi

com pedradas, & arremeílos de lai]

guês & paos toítados, que ja quand

nos vimos liures dellesouuemos qu

nos fizera Deos muyta mercê. E pai

tindonos daquy aílaz enfadados l

maltratados.^ íbbre tudo muyto f;

tosdoneceííario,nauegamos por cc

felho dos pilotos por outro rio muj

to mais largo q o eíteyro q tínhamc

deixado,por tempo de noue dias,n

fim dos quais prouue a Deos q ch<

gamos a húa boa pouoaçaó q fe d(

zia Tarem, cujo íenhor era fubdit

do Cauchim, q recebeo eíte feu en

baixador com moftras de grande ;

mizade,& o proueo de tudo o nece;

fario em muyta abaítança. Daqu

nos partimos logo ao outro dia

quafifol poíto,& continuamos noíl

caminho por eíte rio abaixo mais f

te dias,q chegamos a hííaboa cidac

chamada Xolor,na qual fe faz toda

porcellana adamaícada que vay t<

á China. Aquy eítiuerão os emba

xadores cinco dias,nos quais mand,

rão varar as quatro embarcaçoei

que leuauão,por a eíte tempo irei

muyto zorreyras ôc cheas de buí

no. E em quanto fe entendeo em J

prouer o neceííario, foraô os emba

xadores ver húas minas q o Rey ò

Cauchim aquy tem,das quais fetir

tia grande quantidade de prata,q ei

carretas lenauao para a fundição, ei

q trabalhauão mais de milhomes

fora os das minas q erão muyto ma

E preguntando aly os embaixador

Fernão Mendef^Pinto. 15^

ue copia fe tirana aly de prata ca- pitão delia. Daquy íe partirão logo

aanno,lhes foy refpondido q feys lil picos,que fazé oito mil quintaes a noíTa moeda.

CAT. ÇXX1X.

00 que 'fâffamos defpois que par- timos de Ba cidade de Xolor ate

que chegamos onde eBaua el *l{ej da Qauchenchina.

«Efta cidade de Xolor cótinuamos noílas jor- nadas mais cinco dias por eíle grande rio, ve- do iempre em todos lies muytos & muyto nobres luga* ís que ao longo deile eftauão, porq

1 aquy nefle clima he a terra muyto lilhor^mais pouoada,rica,& abaíta- a,& os rios muyto frequentados de rande multidão de embarcações de emo,& os campos cultiuados de tri- os arrozes, & de toda a forte dele- umes, & canatieais daçucar muyto randes,de q toda efta terra he muy- 5 abundante, A gente nobre anda eftidadeféda, emcauallos ajae- ados, & as molheres faò muyto al- as &fermofas. Eftes dous efteyroâ c o rio de Ventinau de que atras fiz nenção,pafiamos com muyto traba- 10 & perigo, por caufa dos muytos offàyros q auia nelles,& chegamos â idade de Manaquileu, q eftà íituada o dos montes de Comhay na ar- aya dos reynos da China & do Cau-» him, na qual eftes embaixadores mbosforaõbem recebidos do Ca-

ao outro dia pela menhamcedo, ôc foraó dormir a húa cidade que fede- zia Tinamquaxy, na qual forao am- bos vifitarhua tia dei Rey, íenhora della,que lhes fez bom gafalhado,& lhes deu por noua q ei Rey feu fobri- nho era ja vindo da guerra dos Tino- couhós, ôc muyto contente do bom fucceíTo q nella tiuera, & outras par- ticularidades que folgarão muyto de faber, principalmente quando lhes diíTe que el Rey deípois de defpidida toda a gente q trouxera còmíigo, fe paliara aforrado a Fanaugrem, onde auiaja qUaíi hum mès qeftaua oceu- pado em cacas & pefcams, Sc com tenção de yr inuernar a Huzamgueer que he a metropoli defte império Gauchim.E auido entre ambos cófe- lhofobre eftanoua,aíTentaraó de darem as embarcações todas quatro aHuzamguee, ôc elles ambos com poucos dos íèi^s iréfe por terra a Ta- naugrem onde tinhão por nouasq el Rey eftaua,o q logo fe pós em eífeito co parecer também defta princefa, a qual lhes mãdou dar todas ascaual- gaduras q ouuerão mifter para fy ôc para os feus,& oito badas para leua- rem o feu fato. E partindofe daly a trees dias, defpois de terem andadas oitenta ôc féis legoas,em que puferão treze dias com aífaz de trabalho, por caufa dalgus montes agros Sc feri ranias muyto grandes q atraueíTaráo, fòraó ter a hum apofento grade que íe dezia Taraudachit que eftauaâ borda dehu rio, onde fe agafalharão aquella noite> & como ao outro dia

V % foy

tperigrinaçoes de

fof ménhâm fe partirão para hua vil decimemos, & os pf oiieo dinhey

la q fe dezia Lindau panco^ onde Fo ráo bem agafalhadós do Capitão del- ia q era parente do embaixador da Cauchenchina, o qual auia fós cinco dias q chegara -de fanangrem onde el Rey ficaua,q era ainda daiy quin- ze legoas, Efte Capitão defpois que contou a efte embaixador feu paréte alguas houas da corte & dos fucceífos da guerrajhe deu também por nouas que hum feu genro era fallecido^or cuja morte fua filha, q era molher do morto,íè queimara também logo,de que feus parétes todos eftauáomuy- to coníõlados, por ella moftrar neíta fineza que fizera quem fempre fora. E o meimo embaixador pay da mor ta, fe moftr ou também difto muyto íatisfeico, dizendo, agora filha, q íèy q es fánta^ & eftàs feruindo teu mari- do no Ceo, te prometo & juro que por eífa fineza em q moftrafte o real langue donde procedesse mande fa< ler em memoria de tua bòdade* húã cafa de nome tão honrõfo,q tu defe* jes de vir de dóde eftàs a te recrear nella, como aquellas almas q temos pêra nos, que ja antigaméte fízeraó o mefmo.E com ifto fe deixou câyr em terra de bruços co rofto no châó} on- de efteue ate o outro dia que foy vi* fitado de todos os religiôfos daquel- laterra,que o confolarão com muy^ tas palauras, affirmandolhe que fua fiiha era íanta, & como a tal lhe po- dia mandar fazer eftatua de prata,por que todos elies lhe dauao licença pa- ra iftb,o que elle eftimou grafldemé- te3& lhes deu por iífo muytos agra-

rei afsi a todos os pobres q auian; terra, Kefte lugar nos dctiuemos no ue dias celebrado elie às exéquias de fta defiinta,& no cabo delles nos par timoS,& ao outro dia fomos ter a hú; ábâdia chamada LatiparaU,qne que dizer^rernedio de pobres, na qual o embaixadores ambos íè detiueraí três dias efperando por recado de Rey,a quê tinháo mandado dâr c< ta da fua vinda o qual lhes mandoí q fe vielTem para húa villa mais adia te três legoas,q era hua de Fanau gré q íe dezia Agimpur,onde os daria bufcar a ambos quando folli tempo.

CA?. tXXX.

*Do recebtmeto q eíle *Rey da Cau- . cbenchinafe^ ao embatxadct da Tartariá na villa de Fanaugretit*

Êndo el Rey auifadc pelo feu embaixadoí como trazia comíigc eftoUtro dei Rey Târtaria,o madou lo- go ao outro dia bufcâr a efta villa ât Agimpur onde eítaUã alojado, poi hum feu cunhado irmão da Raynhi fua molher,principe muyto valeroic & de mUyta réda q fe chamaua Paf i lau Vãcão,oqual vinha em hua car- reta de três rodas por banda, toáz forrada de prata* com quatro quar- taos brancos, guarnecidos todos de jaezes douro j & ão redor defta fiam'

bra

Fernão Mendez Tinto* bra, que afsi íe chama naquella ter- ra, vinhão íeíTenta homens a pé, os quais poftos em duas fileyras, a cer- cauão coda em roda, & vinhão ve- ílidos de couro verde, & todos com treçados às coitas com as bainhas cha peadas douro, & juntamente come- ílesjdoze porteyros de maças. Por fora deitas fileyras, com a meímá or- dem delias, vinhão outros muytos homens com alabardas guarnecidas de prata, & com quimoés & calças de feda verde & parda, # feus trepa- dos em talabartes quafi ao noíTo mo do,&elles todos muyto bem defpo- ítos,& de afpeitosioberbos&carran- cudos,os quais afsi ifto, como cos mais meneos exteriores,q em tudo íe conformauáo com a lua natural fo- berba,não deixauão de cauíar algum temor. Adiante deita guarda obra àc trinta paíTos,hião oitenta elifantes muyto bem concertados,com cadey- ras & caftellos guarnecidos de prata; & nos dentes fuás panouras de guer- ja,& campainhas aos peícoços de bo tamanho,& adiante deites elifantes, quefe dezia que erão da guarda dei IRey,hia outra muy ta gente de caual- Jo,combós veftidos & jaezes, E na dianteyra de todo eíle apparatohiÍQ doze carretas com atabalesde prata, fuás gualdrapas de feda. Chega- do efte príncipe com efte apparato ôc vmageftadc ao embaixador da Tarta Tia,que ja o eftaua efperando,deípois de fe fazerem todas as cerimonias de cumprimentos &cortefias qíè cuftu- mãx) entre elles,as quais durarão qua- fi hu quarto de hora, o príncipe deu

ao embaixadora fiarhbra em quevi nha, & fe pós em hum quanao à fua mão direyta, & o outro embaixador dcl Rey que vinha com nofcOjá mão ezquerda. E caminhando afsi com a meíma ordem q trouxera,có muytos eftródos de tangeres de diueríãs ma- neyras,chegarão ao primeyroterrey ro do apofento dei Pvey,onde o Bro- quemxapitão da guarda do paço o eftaua cíperando ape,acompanhado de muyca gente nobre,a fora aguar- da de cauallo? que pofta em duash- leyras,tomaua todo o comprimento do terreyro. È defpois cj outra no- na cerimonia todos ftzerao íuas cor- tefias, fe forão afsi a até a entrada dopaço^nde acharão hum homem velho, quedezião qera tio dei Rey, por nome Vuemmiferau, de mais de oitenta annos deidade, acompanha- do de muytos fenhores & g3te nobre, ao qual os embaixadores ambos por outra nona cerirnonia,beijarão o tre- pado q tinha na cinta,a cj elle por ho- ra fuprema íatisfez com lhes pòras mãos nas cabeças defpois de íe lhe ambos prcftrarem por terra. Elle to* mando ao Tártaro quafi igual defy, abalou por húa fala muyto compri- da até húa porta que na frótaria deU la eftaua, & batendo nella três ve- zes,lhe refponderão de dentro que e-" ra o que queria, a que elle reípondeo com voz mifurada, he chegado por cuftume antigo de verdadeyra ami- zade hum embaixador do grão Xi- narau da Tartaria, para fer aquy ou- uido do Prechau Guimião que to-' dos temos por fenhor de aoffas cabe-

Tertgrindçtiês

«cassem a qual reporta as cortas am-« bas forão de toda abertas, & entra- rão para dentro. Diante de todos te príncipe co embaixador da Tar- taria pela mão,& o outro dei Rey co broquem bum pouco mais atras, Sc após elle os outros de que yinhão a- companhados, poftos todos por fua ordem de três em tresj& paíTando ef- ta caía, em que não auia mais gente que homés daguardapoftos em joe- lhos còíuas alabardas nas mãos, en- tramos noutra muyto mayor & mais nobre,quefe chamaua Naguantiley, onde vimos feflenta ôc quatro efla- tuas de bronzo,& dezanoue de pra- ta,preías todas pelos peícoços ca- deas de ferro. Elpantados nòs diílo Sc preguntado o que era,nos foy refpó- dido por hu dos orepos que aly efla- uão que era iacerdote, que o que tí- nhamos vifto, & de q nos efpantaua- mos,eraóos oitéta& três deofes dos Timocouhós que el Rey, quando os desbaratara no campo, lhes tomara cm hum grade templo onde eflauão, porque a mayor honra, & de que el Rey fazia mayor caío,era triumphar dos deofes de feus inimigos, que & feu defpeito trazia catiuos, ôc pregú- tandolhenòs paraqueos tinhão aly prefos,nosrefponderão q para quan- do entrafle na cidade de Huzanguee, para onde eflaua de caminho,os m£- ilar leuar arraílandopor aquellas ca- deas com que eflauão prefos para -triumpho da vidoria que alcançara delles. Paliando efta caía dos Ídolos, entramos noutra onde vimos muyta •ioma efe molheres muyto fermofas^

ao longo das paíedes eflauão aflen- tadas,húas >laurando,& ou trás tangé- do & cantado, que muyto folgamos de ver,& noutra cafa mais adiante, a cuja porta eflauão féis molheres maças de prata como porteyras, ef- taua el Rey acompanhado de algus homés velhos, inda quepoucos, & a mais companhia eraó molheres mo- ças tangendo em feus eftromentos muíicos,& alguas meninas que can- tauão a elles. El Rey eflaua em hua tribuna de oito degraos, a modo de .altar,aqual tinha por cima hum tey to que defcançaua fobre hus balau- ftres,& efle teito & balauftres eraó to dos forrados de paftas douro. Iunto delle eflauão feys meninos em joe- lhos com cetros nas mãos,& mais a - faflada hum pouco eflaua húa mo- lher de dias que o abanaua de quã do em quando, a qual tinha hum ra- mal de contas groíTas ao pefcoço: Elle feria de idade de trinta & cinco annos,bem aíTombrado,os olhos gra des,a barba bem pofta & loura,,© ro- fto graue,a filofomia feuera, ôc o afc peito de principe grandioíò afsi no eftadOjComonomais que areprefen- taua. Entrando os embaixadores ne- fta caía, fe proftrarão ambos por ter- ia três vezes, ôc da terceyra ficou o feu debruçado no meyo da caíã,& o do Tártaro paliou adiante,& chegou ate junto da tribuna onde elle efla- ua, &fubindo noprimeyro degrao lhe diífe em voz que todos ouuiraõ, oOtinãocor Valirate,. prechaucom panoo das forças da terra, o bafo do alto Deosque tudo criou proípere

oíèr

FernSo éMende^Pmto»

*H

d íèr de tua grandeza pára mil annos as tuas alparcas ferem cabellos de to« dos os.Reys,com te fazer íemelhan- ce aos olTos & carne do grande prin* ripe das íerrasdaprata,porcujo mã- dadoaquy fou vindo até viíitarem [eu nome como por efta mutra do feu real fello podes ver. El Rey o- [liando para elle com rofto alegre, lhe reípondeo, no feu defejo & no meu conforme o Sol com a doce quentura dos feus claros rayos efte yerdadcyro amor até o vitimo bra- mido do mar, paraque o Senhor fe- ia louúado na fua paz para fempre, à que todos os fenhores que eftauão ia cafa refponderaó em hua voz,af- S o conceda o que fer ao dia &»â ioke>& tocando então as molheres >s eftromentos que antes tangiáoel Key por então não fállou mais, fó- nente ao recolher lhe diíTe, eu ve* ey a carta do Xinarau meu irmão* k reíponderey a ella conforme ao eu defejo paraque te partas alegre liantedemim: a que o embaixador èm reíponder nada fe tornou a pro- irar ao da tribuna pondo por res vezes a cabeça no degrao em que :ftaua aílentado. Então o tomou o broquem pela mão, & o leuou com- igo para fua caía, óde poufou todo o tempo quê aly efteue que fo- raò treze dias em que fe el Rey partio para Huzanquee*

ÇAT. CXXXÍ-

Como èlTZpfe pajfou de Fanau* gr em para a cidade da Huzgn* guee <& do triumpho com que neila entrou,

AíTados. treze diasdef- pois que chegamos a efta villa de Fanaugre* eftando ja el Rey a efc te tempo de caminho para Huzanguee, não teue efte em- baixador da Tartaria mais entrada com elle que fôs duas vezes, em hua das quais lhe fallou em nós confor- me a hum dos capítulos que trazia no feu regimento, a que elle com íèmbrante alegre dizem que refpon* deo^ afsi fe fará, & tu não te eíqueças demo lembrares quando vires que os ventos o pedem, paraque lhes não falte monção para chegarem on- de deíêjão,de que o embaixador ve« yo muyto conte.nte, Ôc nos pedio de aluiçaras de tão boa noua que lhe ef- creueíTemos nu liuro q tinha alguas orações do noflb Deos,porque ddc-< jaua grandemente de fer feu eícrauo pelas muytas excellécias q nos tinha ouuido delle,pela qual noua, q para nós foy de grandifsimo contentamé- to, lhe demos todos muytas graças* porque ifto era o q pretendíamos fo- mente*^ q defejauamos muyto mais q o grande intereííe com q alguas ve- zes fomos cometidos porei Rey dos Tártaros para ficarmos é feu feruiço. Partido el Rey defta villa de Fanau- V 4 grcm

, I

gremhiwn

leu caminho por jornadas defós íeis legoas por dia, por caufa da muyta gente que leuaua cóílgo. Oprimey- ro dia cjue paitio,foy jantar a hua vil Ia pequena que fe dezia Benau,& nel la efteue até tarde, & foy dormir a iiúa abadia por nome Pomgatur, ôc ao outro dia pela menham cedo fe partiopara Mecuy, donde aforrado fós três mil de cauallo feguio íeu caminho por eípaço de noue dias, p&flando por muytos & muyto no- bres lugares,fegundo moftraua a ap- parencia de fora, fem querer aceitar recebimento nem feiras em nenhum delles,dando por razão que feitas de pouo eraó occafião para oíficiaes ty- rannos roubaremos pobres, do qual Deos fe auia por muyto deííeruido. Deita mancyra chegou a cidade de Lingator, íituada ao longo de hum rio dagoa doce muyto largo & fun- do, frequentado de muytas embar- cações de rerm^onde fe deteue cinco dias por vir mal defpofto do cami- nho. Daquy fe pardo hua antemc- nham com íós trinta de cauallo, íem querer leuar mais companhia. E afsi defuiando dacommunicaçãodagé- t^fc foy deíenfadando em muyta caça dakenaria,aqtié fe dezia que fo- ra fèmpre muyto affeiçoado, & ne- ftes paífatempos,& em Outros de mo tarias & de outras ca^as que ospo- uòs lhe tinhão apparelhados,paífou a mayor parte defte caminho,dormin-< do as mais das noites, por fragueyri- ce.no mais efpeíTo dos matos em ten- das que-para iíTo leuaua, E chegado

tgnnapes

ela menhã fez aoriodeBaguetor,que he hum dos

crés que atras diíTe que faem do lago de Famítirno reyno da Tartaria, o paíTou da outra parte em laulees ôc jangaasde remo q lhe aly tinhão preftes, Sc nellas feguio feu caminho pelo rio abaixo até hum lugar gran- de que íe chamaua Natibaíoy, onde deíembarcoujâquafi noite femfau- fto nenhum,& daquy fez o caminho por terra, <Sc a cabo de treze dias che- gou a Huzamguee, onde fe lhe fez hum grande recebimento, leuando por triumpho diante de íy todos os deípojos que tomara na guerra, de q a principal parte ôí de q íe eiie mais ja<5taua erão doze carretas carrega- das dos idolos de que atras fiz men- çãojOS quais eraõ de diuerías maney- ras comoelles os cuftumao ter nos feus pagodes, ôc deites os feílenta ôc quatro erão gigantes de bronzo, & dezanoue de prata do mefmo teor ôc grandeza,porque, como ja por vezes tenho dito, o de que efta gente faz mais cafo he de triumpharem com eftes idolos, dizendo que a pefar de íeus inimigos lhe catiuarão os feus deofes, em torno deitas doze carre- tas hia hua grande quantidade de fa- cerdotes prefos de três em três com cadeas de ferro, os quais todos hiao chorado. Após eftes facerdotes,mais atras hum pequeno eípaço hiao qua- renta carros com duas badas em ca- da carro,cheyos até cima de inhnida de de armas, com muytas bandeyras a raíto,& noutros vinte carros q trás eftes hião pela mefma maneyra vi- nhão huas arcas muyto grandes cha«

peadas

Fernão MendeçTinto.

jeadas de ferroam que fe dezia que 'inha o tilouro dos Timocouhos, ôc leíta ordem hia tudo o mais de que lies cuítumão afazer cafo nos triú- ihos deitas entradas,como forão du- entos elifantes armados com ca- tcllos & panouras de guerra,que íaó s efpadas que leuão nos dentes quã» !o pelejão, & húa grande íoma de auallos com íacas de caueyras Sc de fios de gente morta. De maneyra q efta entrada moflrou ao pouo tudo que ganhara por fua^lança aos ini- ligos na batalha que tiuera com el- ;s.Defpois de auer quaíi hum més q ftauamos nefta cidade,vendo muy- 3S jogos ôc feitas notaueis, & outra? nuytas maneyras de deíènfad amen- os que os grandes & o pouoconti- uamente fazião, com banquetes efc lendidos todos osdias, oembaixa- or Tártaro que nos trouxera, fallou el Rey fobre a noílà yda,a qual lhe He concedeo muyto leuemente, & os mandou logo dar embarcarão iaraa cofta da China, onde nos pa- eceo que achaíTemos nauios noíTos m que nos foíTemos para Malaca, c dahy para a índia, o qual foy logo iofto em efTeito, ■&. nòs nos fizemos •reftes do neceílario para a partida,

romo nos partimos deílà cidade

íe Hu^amguee^ &• do que nos

iconteceo ate chegarmos a ilha de

Tanixumaaque beaprimejra

terra do facão.

V7

O aluoroço Sc conten- tamento que fe pode imaginar queteriamos acabo de tantos tra- balhos ôc deíàuentu- ras como até então tínhamos palia- do, de que por então nos viamos li- ures, nos partimos deita cidade de Huzamguee a doze dias do més de laneyro, ôc fizemos noffo caminho por hum grande rio de agoa doce de mais de húalegoa em largo, leuando a proa a diuerfos rumos, por caufa das voltas que o rio fazia/vendo íem- prepor efpaço defete dias que por elle corremos^ muytos ôc muyto no- bres lugares,afsi villas como cidades, que fegundo o apparato de fora, pa- recia que deuião de fer pouos muyto ricos, pela fumptuoíidade dos edifí- cios que ríelles fe viao, afsi de cafas particulares,como de templos cócu- rucheos cozidos em ouro,& pela gra- de multidão de embarcações de re- mo que aly fe vião com toda a forte de mercadárias ôc mantimentos em muyta abundância. Chegando nós a, hua cidade muyto nobre que fe de- zia Quangeparuu, que teria quinze ou vinte mil vezinhos,oNaudelum, que era o que por mandado dei Rei- nos leuaua,fe deteue nella doze dias fazendo fua veniaga cos da terra a. troco de prata & de pérolas, em que nos confeílbu que de hum fizera qua torze,mas que íe leuara Tal, fe não tentara com dobrar o dinheyro trin". ta vezes. Nefta cidade nos affirma- rao que tinha el Rey de renda todos os annos íó das minas de prata dons * mil

fperígfkãçoes de

syii! & quintetos pícõs^qiie faó qua* tado deítd nòíTo foarbàriírnò, fe par-

iro mil quintais, & a fora efta renda cem outras muytas de muytas coufas dirTerentes.Eíra cidade não tem mais força para fua defenfaó que hum Fraco muro de tijolo de oito palmos, dos meus de largo,& húa caua de cin co braças de largo,& fete palmos de fundo. Os moradores delia faógen- te fraca & defarmada, nem tem ar- tilharia, nem coufa que poíTa preju- dicar a quaifquer quinhentos bós foi dados que a cometerem. Daquy nos partimos húa terça feyra pela me- nham,& continuamos por noíTa der- rota mais treze diasmo fi m dos quais chegamos ao porto deSanchão no reyno da China, que he a ilha onde defpois falleceo o bemauenturado padre mcftre Francifco,como adian- te fe dirâ,& não achando alyja a efte tempo nauio de Malaca,por auer no- ue dias que erão partidos,nos fomos a outro porto maisadiate fetelegoas por nome Lampacau,onde achamos 4ous juncos da coita do Malayo, fiu de Patane5 & outro de Lugor, E co- mo a natureza deita noíía nação Por tuguezahe fermos muyto arTeiçoa- dos a noíTos parecères,ouue aquy en- tre nos todos oito tanta dirTerença,& defconformidade de opiniões fobre húa coufa em que o que mais nós re- leuaua era termos muy ta paz & con* cordia,que quafi nos ouueramosde vira matar huns aos outros, de ma<- neyra, que por fer aíTazvergonhofo cotar o como parlou, não direy mais fenão que o Necodá da lòrcha que nos aly trouxe de Huzanguee, eipan-

tio muyto enfadado, fem querer le> uar carta recado noíTb q nenhu de nós lhe deífe^ dizendo que antes queria que el Rey poriflo lhe man- daíTe cortar a cabeça, que orTendera Deos em leuar couía noflà onde elle fofíè. Èafsi diríerentes &malauin« dos ficamos aquy nefta pequena ilha mais noue dias,erh que os juncos am- bos fe parairaó, fem também nenhíí delles nosquerer leuar còmíigo, pe- lo qual nos foy forçado ficarmos aly metidos no mato, arrifeados a muy- ros& grandes perigos, dos quais po- nho em muyta duuida podermos ef- capar, fe Deos noflb Senhor íè não- lembrara de nòs, porque auendoja dezaíTete dias que aquy eílauamos em grande mi íeria>& eíterilidade,ve yo aly a cafo furgir CoíTayro por nome Samipocheca que vinha des- baratado fugindo da armada do Ay- tao do Chmcheo,que de vinte & oi* to vellas q tinha lhe tomara as vinte Sc feys,& elle lhe efeapara com fome teaquellasduas que trazia com figo, nas quais trazia a móf parte da gen- te muyto ferida,pelo que lhe foy for- çado deterfe aly vinte dias paraque a curaíTe, E nòs os oito eonítrangidos da necefsidade nos foy forçado aílen tarmos partido com elle paraq nos leuaíTe comfigo por onde quer que fofle, até que Deos nos melhoraíle noutra embarcação mais fegura em que nos foííemôs para Malaca. Pif- fados eftes vinte dias em que os feri- dos guareceraó fem em todo efte-té- po auer entre nos reconciliação da

defa-

Fernão Mende^Piniol 1 52

defauençapaíTada, nos embarcamos com efta determinação por efte ar-

ainda afsi malauindos com efte coP fay ro,os três no júco em que elle hia, & os cinco no outro de que era Ca- pita o hum feu fobrinho, & partidos daquy para hum porto que fe cha- ma ua Lailoo, auante do Chincheo íetelegoas,& defta ilha oitenta, íè* guimospornoíTa derrota com ven- tos, bonanças ao longo da coita de La.mau, efpaço de noue dias, & fen- do húa menham quaíi Noroefte fue- fte co no do fal, que eftâ abaixo do Chabaquee cinco legoas, noscome- teo hum ladraó com fete júcos muy-» to alteroíos, & pelejando com nofco das féis horas da menham até as dez, em que tiuemos húa briga aíTaz tra- uada de muytos arremeíTos aísi de lanças como de fogo,em fimie quei- marão três veljas, as duas do ladrão, & húa das noflas,que foy o junco em que hiãoos cinco Portuguefes, a que por nenhúa via pudemos ler bõs, por ja a efte tempo termos a mayor par- te da gente ferida. E refrefcandonos fobola tarde a viração, prouue a nof» fo Senhor que lhe fugimos ôc eíca- pamos das íuas mãos. E continuan- do noílà viagem afsi deftroçados co- mo hiamos mais três dias,nos deu hu temporal de vento efgarraò por ci- ma da terra tão impetuofo que na- cjuella mefma noite a perdemos de vifta,& como então a não podía- mos tornar a tomar, nos foy forçado arribarmos em popa â ilha dos Le- quiosonde efte coílayro era muyto conhecido, afsi do Rey como da ou- tra gente da terra,& nauegando nòs

cipelago de ilhas adiante, como ne- fte tempo naò leuauamos piloto,por nos íèr morto na briga paifada,& os ventos Nordefíes nos eraõ pontey- ros,& as agoas cornão muyto contra nòs,bordejamos às voltas de hum ru- mo no outro vinte & três dias com aíTaz de trabalho, no fim dos quais prouue a noílo Senhor q vimos ter- ra, ôcchegandonos bem a ellapara vermos daua de fy algua mo (Ira de angra ou porto de bom furgidou- ro, lhe enxergamos da parte do Sul quaíiaoOrizonte do mar hum gran de fogo, por onde imaginamos que deuia de íer pouoada de algúa gente que por noílo dinheyro nos proueíTe deagoade que vínhamos faltos. E furgmdonòs no rofto da ilha em fe- tenta braças,nos íayraó da terra duas almadias pequenas em que vinhao féis homês,os quais chegando a bor- do,deí pois de fazerem fuás faluas ôc corteíias a feu modo, nos pregunta- rão donde vinha o junco, a que fe reípondeo que da China com mer- cadariaspara fazer ahy veniaga com elles,íè para iílb nos deííèm licença, hum dos feys nos reípòdeo^q a licen- ça o Nautoquim fenhor daquella i- Iha Tanixumaa a daria de boa von- tade íè lhe pagaíTemos os direytos q íe cuftumauão pagar em lapaó, que eraaquella grande terra que defron- te de nos apparecia. E com ifto nos deu relação de tudo o mais que nos conuinha,& nos moftrou o porto on de auiamos de yr furgir. Nos com efte aluoroço leuamos logo as amar- ras

3

^Peregrinações

rãs,& nos fomos co batel pela proa uao prefentès,que me matem fe não

meter em hua calheta que a terra fa- zia da banda do $ul,onde eftaua hua grande pouoaçao quefe dezia Miay gimaa,da qual logo nos vierao a bor- do muytosparaoos com refrefco que lhe compramos.

CAT. ÇXXXUL

Como defembarcamos neBa ilha de <Tanixumaa& do queçaf- famos cofenhor delia.

Ao auia inda bem duas horas que eftauamos furtos nefta calheta de Miaygimaa, quando o Nautoquim príncipe deita ilha de Tanixurnaa fe veyo ao nofíb junco acompanhado de muy- tos mercadores & de gente nobre, co grande íbma de caixões cheyos de prata para fazer fazenda, Edeípois de fe fazerem de parte a parte as cor- teíias coítumadas, & elle ter feguro para fe poder chegar a nós,fe chegou logo, & vendonos aos três Portu- guefes,preguntou que gente éramos, porque na dirFerença do rofto & bar- bas entendia que não éramos Chins. O Capitão coífay rolhe refpondeoq éramos de hua terra que fe chamaua Malaca,a onde auia muytos annosq tínhamos vindo de outra que fe de- zia Portugal,cujo Rey, fegundonos tinha ouuido algúas vezes, habitaua no cabo da grandeza do mundo. De que o Nautaquim fez hum grande VípantOjôc duTepara os feusqeíta-

faó efíes os Chenchicogisde que eftâ eferico em noííbs volumes,que *voan do por cima das agoas tem fetnho« reado ao longo delias os habitado- res das terras onde Deos criou aí; ri- quezas do mundo,pelo que noscav- ern boa íõrte fe elles vierem a í.fta noíTacom titulo de boa amizade, E chamando então para juto de ly bua niolher Lequia que era a interprete por quéfe entendia co capitão Chim íenhor do junco» lhe difle, pTegunta ao NecodàjOnde achou eítes homés, ou com que titulo os traz comíigo a e/la noíTa terra de lapão? a que ref- pòdeo que fem falta nehhua éramos mercadores & gente boa^ & que por nos achar perdidos em Lampacau, nos recolhera, para nos ajudar com íiias efmollaSjComo tinha por curtu- me fazer a outros que ja afsi achara, paraque Deos permitiíTe liuralo a el* le das aduerfidades impetuoíàs que curfauão por cima do mar, com as quais íè perdião os nauegantes. Âo Nautaquim parecerão tão boas eiras razoes do coífay roque entrou logo no junco, & mandou aosíèus q por ferem muytos,nãoentraííem mais q os que elle diíTeíTe. E defpois de an- dar vendo todas as particularidades do junco afsi da popacomoda proa, fe aííèntou em hua cadeyra junco co a tolda, Sc nos efteue inquirindo de aiguas coufas particulares que <,Mc' jou faber de nós,a que refpondemos conforme ao gofto que nelle enxer- gamos,de que elle mofíraua muyto contentamento, Neftas praticas ga-

ftou

Fernão Mende^Pinló. j?p

lou com nofco hum grande efpaço, le,& o Necodá lhe deu hum pré-

noftrando em todas as íuas pregun- asier homem curiofó & inclinado icouías nonas. & fe defpidio de nós k do Necodá Chim, que dós mais ião fez muyto caio, dizendo, á me- iham me ide ver a minha cafa^íSc ne íetiay hum grande prefente de louás deite grande mundo por on- andaftes, Ôc das terras que. tendes iftoj & o como fc chamão, porque os afhrmo que eíTa mercadaria omprarey mais a meií gofto que to !as ás outras, & cóm ifto íe tornou ará terra. E comoâo outro diafov nenham clara, nos mandou aojun- ohum grande paraoo derefrefco, m que emrauão vuas, peras, me- xs, & toda a forte de ortaliça que a nefta terra, com cuja vifta dêmos iiiyt.is graças ôc lotiutíres â fioíTô enhof. O Necodá do junco lhe mã- ou pelo meníàgeyro algúas peçâá iças, ôc brincos da China em fetor- o dorefrefGo^ &lhe mandou dizet tie como 0 junco ancoraíTe no lur- idouro onde eftiueíTe íègiirò do té- 0,0 iria lo^o ver a terra, Ôc leuarlhe s moftras da fazenda que trazia pa* i vender, È ao Outro dia tanto que dv mertham defembarcou em terra, cnosleiíoucomíigóatódos três riais dezí Ou doze Chins, os que lhe areceráo mais graues ôc autorizados m fuás peífoas, quais os elle queria •ara o ornamento deftá priméyra vi- ta em que eíta gente cuftumâ a fe noftrar com muyta váydade. Che- cando nos â caiado Nautaquim,fo-i nos todos muyto bem recebidos dei

fente<& após iífo lhe moftrou as mo- ftras de tódà a forte fazenda que trazia,de que elle ficou fatísfeíco, & mandou logo chamar os principaes mercadores da terra,cóm osquaisíe tratou do preço delia, ôc concertados nellefeaíTentouque ao outro dia troufreífe a hflá cafa qué mandou dar ao Necodá em queíe ágafalhaífecó a fua gente até fe tornar para a Chi- na* Ifto ordenâdo,o Nautáquim tor- nou de nouó a praticar corti noíco^ ôc preguntarnos por muytâs coufis muyto miudamente, a querefpon- -demosmais coniormeao gofto que nelíe viamos,quenão ao q realmen- te era verdade, más ifto foy em cer- tas preguntás em quefoy rieceflario àjudafmonos de alguas coufas fingi- das por náo desfazermos credito que elle tinha defta noífa pátria. A priméyra foy dizemos q lhe tinhãó dito os Chins Ôc Lequios,que Portu- gal erá mnyto mayor é<m quantida- de afsi de terra como de riqueza,que todo o império da China, o que nos lhe concedemos^ Á fegundâ,que tã- bem lhe tinhão certificado que tinha O noífo Rey fogigado porconquiftá de mará máyór parte mundó,aq também diftèmos que era verdade. A terceyrâ, que era; tão fico o rioíTó Rey de ouro & de prata,quefe affir- rnauá que tinha mais de duas mil cá- fas cheyas até o telhado,& a ifto feí- pondemós,que no numero de duas mil cáfas nos não certificáuámos, por fer a terra Ôc ò reyno em fy tamá nho,& teí tantos tifouros Ôc pouosí

Éjué

O

^Peregrinações de

i tjue era impofsiuel poderfelhe dizer a certeza diffo. E neftas pteguntas,& em outras deita maneyra nos deteue mais de duas'horas, & diííe para os íèus, certo q íe não deue de auer por 0 ditofo nenhum Rey de quantos ago- ra fabemos na terra, fenão o que forvaíTallo de tamanho Monarcha como he oEmperador defta gente. E defpidindo o Necodá com toda a íua companhia, nos rogou que qui- feíTemos ficar aquella noite com elie em terra, porqle não fartaua de nos preguntar muytas coufas do mundo, a que era muyto inclinado, & que pela menham nos mãdaria dar húas caías em que pouíàíTemos junto com as fuas.por fer o milhor lugar da cida- de,o que nós rizemos de boa vonta- de, & nos mandou agafalhar com hu mercador muyto rico, que nos ban- queteou muyto largaméte, afsi nefta Boite,como cm doze dias mais que pouíamos com elle.

CAT. CX XXII II.

Da honra que o 3\(autaquim fe^

a hum dos nojfos pelo ver tirar

com hua efpingarda^ &•

do que dahjfocedeo.

Ogo ao outro dia íe- guinte efte Necodà Chim defébarecu em terra toda a íua fazen- da como o Nauta-

quim lhe tinha mandado,& a meteo nuas boas caías -que para iílò lhe de- rão5a qual fazéda toda íê vendeo em

três dias, afsi por fer pouca,como por que eftaua a terra falta della3 na qual efte coííáyrofez tanto proueito, que de todo ficou reftaurado da perda das vinte & feys vellas que os Chins lhe tomarão, porque pelo preço que elle queria por na fazenda lha toina- uão logo, de maneyra que nos con- feflbu elle que com fós dous mil ôc quinhentos taeis que leuaua de feu fizera aly mais de trinta mil, Nós os três Portu^uefes como não tínhamos veniaga em que nos occupaíTenios, gaftauamos o tempo em pefcar ôc eal çar,& ver templos dos feus pagodes queerão de muyta mageftade ôc ri- queza,nos quais os bonzos, que fac osíèus facerdotes, nos fazião muytc gafalhado,porque toda efta gente de lapão he naturalmente muyto bem inclinada Ôc conuerfauel. No meyc defta noíTa ocioíidade, hum dos treí que éramos, por nome Diogo Zet- moto,tomaua alguas vezes porpaf fatempo tirar com hua eípingarda cj tinha de íèu, a que era muyto ineli* nado, ôc na qual era aíTaz defiro. E acertando hum dia de yrter a hum paul onde auia grande fóma de aueí de toda a forte, matou nelle com a munição húas vinte& féis marrecas, Os lapões vendo aquelle nouo mo- do de tiros que nunca ate então tf* nhão vifto,derão rebate diíTo aoNai taquim que nefte tempo eftaua ven- do correr hús cauallos q lhe tinhão trazido de fora,o qual efpantado de- fta nouidade,mandou logo chamar c Zeimoto ao paul onde andaua ca- çando, & quando o vio vir com a

pingarda

Fernão aSMendeçfPlnto, \ i£o

>ingardâ âs coftas,& dous Chins caí* mou pela mão ficando nós os dous

egados de caca, fez difto tamanho aio, que em todas as coufas felhe nxergauao gofto do que via, porq orno até então naquella terra nun afe tinha vifto tiro de fogo, não fe abião determinar coque aquillo e- a,nem entcndiáo o fegredo dapol- ora,& aíTentarão todos queerafei- içaria. O Zeimoto vendoos tão paf- nados, & o Nautoquim tão conten- ?,fez perante elles tf es tiros em que latou hum milhano & duas rolas, c por não gaftar palauras no enca- ecimento defte negocio;& por efcu* ir de cotar tudo o q fe paílou nelle, orqhe coufa para fe não crer, não irey mais íenão q o Nautaquim le- ou oZeimoto nas ancas de hu quar ao emq hia,acompanhado de muy- a gente,& quatro porteyros com ba- iões ferrados nas mãos.os quais bra- íando ao pouo,que nefte tempo era :m cóto,dezião,o Nautoquim prin- jpe deftailha Taníxumaa,& fenhor le noílas cabeças manda & quer que odos vós outros, & afsí os mais que labitáo a terra dantre ambos mares lonrem & venerem efte Chenchico* ;im do cabo do mundo, porque de >je por diante o faz feu parente aísi :omo os facharoés que fe aflèntão unto defuapeíToa,fopena de perder l cabeça o que iíto nao fizer de boa /ontade ^que todo o pouo gran- Je tumulto de vozes, refpondia, afsi è fará para fempre. E chegando o Z,eimoto com efta pompa munda- na ao primeyro terreyro dos paços, deícaualgou o Nautaquim, &oto-

hum b5 eípaço atras,& o leuou fem- pre junto defy até hua cafaondeo aíTentou à meia comíígo, na qual,tã- bem,por lhe fazer a mayor honra de todas,quiz que dofraifie aquella noi- te^ íempre daly por diante o fauo- receo muyto,& a nós por feu refpei- to em algúa maneyra. E entendendo então o Diogo Zeimoto que em ne« nhua coufa podia milhor fatisfazer ao Nautaquim algua parte deitas honras que lhe fizera, nem em q lhe deífe mais gofto que em lhe dar a ef- pingardajha offereceo hum dia que vinha da caça com muyta foma de pombas ôc de rolas, a qual elle acei- tou por peça de muyto preço, & lhe affirmou que a eftimaua muyto mais que todoo tiíouroda China, & lhe mãdou dar por ella mil taeis de prií ta,& lhe rogou muyto que lhe míí- naflè a fazer a poluora, porque fem ella ficaua a eípingarda fendo hum pedaço de ferro defaproueitado, o q o Zeimoto lhe prometeo, & lho cu* prio. E como daly por diante todo o gofto & paíTàtépo do Nautaquim era no exercício defta efpingarda,v6- do os feus que ém nenhúa coufa o podiao contentar mais que naquella de que elle moftraua tanto goík>,or- denaráo de mandarem fazer por a- quella outras do mefmo teor, ôc aísi o fizerão logo,De maneyra que o fer uor defte apetite ôc curiofidade foy daly por diante em tamanho creri- mento,quejâ quando nos daly par- timos,que foy daly a cinco mefes ÔC meyo,auia na terra paííante de feií*

centas*

^Perigrwaçoes de

tentas. Edefpoís a derradeyra vez q C^^- (TtXJLV.

me li mandou o Viforrey Afon íb de Noronha comíhum preíente para o Rcy do Bungo^q ue foy no an- no de i5564me affírmaraó os lapões, que naquella cidade do FucheOjCjiie he a metropoly deíle reyno i auia mais de trinta mil. E fazendo eu di* fto grande efpanto, por me parecer q não era pofsiuel que efta coufa foífe em tanta multiplicação, me diíTeraó algus mercadores homens nobres & de refpeito, & mo affírmaraó com muytas palauras, que em toda a ilha do lapão auia mais de trezentas mil efpingardas, & que elles fomente ti- nháo leuado de veniaga para os Le* quios em feys vezes q tinhaó ido, vinte ôc cinco mil. De modo que por eftaíoqueoZeimoto aquy deu ao Nautocjuim com boa tençaó & por boaamizade,&por lhe fati fazer par te das honras & mercês que tinha re- cebido d elle, como atras fica dito,fe encheo a terra delias em tanta quan- tidade que não haja aldeã nem lu- ^ar por pequeno que feja donde não *ayãode cento para cima, & nas ci- dades & villas notaueis,não fe fala fe- não por muytos milhares delias, E por aquy Te faberâ que gente efta he, ôc quão inclinada por natureza ao cxercicio militar, na qual fe de- leita mais que todas as ou- tras nações que ago- ra íefabenv

Como eBe 3\(autoqmm man- dou tnoftrar ao ^ej do T>ungoy & do que vj & pajfeyatè chegar onde elle eíiauá.

Vendo vinte &tres dias que eftauamosnc fta ilha de Tanixumaa defcançados ôc come- tes, paliando o tempo em muytos defenfadamentos de pe£ carias Ôc caças a que elles íapoés co- mummente laó muyto inclinados, chegou a efte porto húanao do rey« no do Bungo, em que vinhão muy- tos mercadores, os quais defembar- cando em terra foraó logo vifitar o Kautoquim com feus prefentes, co- mo tem por cuftume. Entre eftes vi- nha hum homem velho ôc bem acó* panhado, ôc aquém todos os outros fallauão com acatamento,o qual po* fto de joelhos diãte do Nautoquím lhe deu húa carta, ôc hum rico treça- do guarnecido douro, Ôc húa boceta cheyade auanos,que o Nautoquira tomou com grande cerimonia. È dei pois de eítar com elle hum grande efpaço pregútandolhe por algúas par- ticularidadeSjleyo a carta entre fy,& entendendo a íuftancia delia, ficou algum tanto mais carregado, & def- pidindo de fy o que lha trouxera, o mandar agafalhar honradamente, nos chamou para junto de fy, &ace* nou ao interprete que eftaua hu pou- co mais afaftado,& nos diíTe por elle, rogouos muyco amigos meus q ou-

çais

Fernão Mende^ Tinto. i tf i

cais efta carta cj me_ agora derão dei minha prolongada doença & dif-

Rey do Búgo meu fenhor & tio,& en tão vos direy o q quero de vós. E dá- ioa a híi leu nfoureyro, lhe mandou l] a leíTe, a qual dezia afsi. Olho di- reyro do meu rofto, aflemado igual ie mim como cada dos meus ama Jos,Hyafcarão goxo Nautoouimde -i anixumaa, eu Oregemdoo voflò pay noamor verdadeyrode minhas emranhas,comoaquelledequemto- mafi.es o nome & o fer de voíTa pef- foa,Rey do Búgo & Facataa, fenhor na grande cala da Fiancima,& Tofa, 5c Bandou, cabeça íuprema dos Reys pequenos das ilhas do Goto & Xa- manaxeque, vos faço faber filho meu pelas paíauras de minha boca ditas a voílà peííoa,que os dias paílados me certificarão homens que vierão def- ia terra,que tínheis nefla voíTa cidade hús três Chenchicogins do cabo do mudo, gente muyto apropriada aos (apoés,& q veftem feda & cingem ef padas, não como mercadores que fa- zem fazenda, fenão como homés a- roigos de honra, & que pretende por ella dourar feus nomes,& que de to- das as coufas do mundo que la vao por fora vos tem dado grades infor- maçoés,nas quais afirmão em fua ver dade q ha outra terra muyto mayor q efta noífa, ôc de gétes pretas ôc ba- ças, coufas increiueis ao noíTo juízo, pelo q vos peço muyto como a filho igual aos meus,q por Fingeandono, por que mando viíitar minha filha, me queirais mandar moftrar hum cleíTes três q me dizem que tendes poisjcomoiabeis, mo efta pedindo a

pofí~ão,cercada de dores,& de muy- ta trifteza,& de grade faftio,& íe tiyç rem nifto algú pejo> os fegurareís voíTa & na minha verdade,que lo^O fem falta o tornarey a mádar em fal- uo,&como filho q defeja agradar a feu pay,fazey q me alegre fua vi- íta,& q me cupra efte defejo,& o mais qnefta deixo de vos dizer, vos dirá Fingeandono, pelo qual vos peço ój liberalmente partais comigo de boas nouas de voííapelToa&de minha fl; lha,pois íabeis que he ella a fobran- celha do meu olho direyto, com cu- ja viíla fe alegra meu rofto. Da caía do Fucheo, aos fete mamocos da Líia. Defpois de lida efta carta, nos diíTe o Nautoqujrrijefte ReydoBu« go he-meu fenhor & meu tio, irmão de minha mãy,&íobre tudo hemeu bom pay,&ponholhe eftenome,por que o he de minha molher, pelas quais razoes me tem tanto amor co- mo aos íeus meímos filhos, & eu pe- la grande obrigação que por ifto lhe tenho, vos certifico que eftoutãp defejofo de lhe fazer a vontade,que dera agora grande parte da myiha terra porque Deos me fizera hum de vos outros, afsi para o yr verr co- mo para lhe dar efte gofto que eu en- tendo, pelo muyto q fey da fua con- di ção,que elle eftimarà mais q todo o tifouro da China ,Eja que de mim tendes entendida efta vontade, vos rogo muyto, que conformeis avoíTa com ella, Ôc que queira hum de vós ambos yr a Bungo ver efte Rey q eu tenho por pay ôcíenhor, porq eftou-

X tro

^Peregrinações de

tf o a que dey nome & fer de parente hy a hua boa cidade q fe dezia Quã-

não o ey de apartar de mim até que de todo me não iníine a tirar como elle.Nòs os dous, Chriftouão Borra- lho ôc eu, lhe refpõdemos, q beijaua- mos as mãos a fua alteza pela mer- cê q nos fazia em íe querer feruir de nòs,& que niflb moílraua gofto,or denaíTequal de nòs queria q fofle, porque fe iria logo fazer preftes, a q elledefpois de eftar hum pouco pen íatiuo na deliberação da efeolha, a- pontando para mim refpondeo,efte, que he mais alegre & menos fefudo, perq agrade mais nos Iapoês,&; dek malenconizeo enfermo,porque gra- uidade pefada como a deftoutro,en- tre doentes não ferue de mais que de caular trifteza ôc melanconia,& a- crecentar o faftio a que o tiuer.E gra- cejado cos feus fobre efta matéria algus ditos ôc galantarias,a q natural- mente íaó muyto inclinados,chegou o Fingeindono, ao qual me cllc lo- go entregou com palauras de muy- to encarecimento a cerca da fegurã- ça de minha peíToa,de que me eu ou- ue por muyto fatisfeito, ôc fiquey fo- ra de algus receyos q antes fe me re- prefentauão pelo pouco conhecimé- to q ate então tinha defta géte,& me mandou dar duzétos taeis para o ca- minho, cos quais me fiz preftes o mais depreíTa que pude, Ôc nos parti- mos o Fingédono ôc eu em húYem- barcação de remo a q elles chamão funce,& atraueíTãdo húa noite da- quy defta ilha de Tanixumaa,fomos amanhecer no rofto da terra em hua angra por nome Hiamangoo, & da-

guixumaa,& vellejandoafsi por no£ ia derrota menção tédente de ve- tos bonanças,chegamos ao outro dia a lugar nobre por nome Tânorâ, & defte fomos ao outro dia dormir a outro q fe chamaua Minato,& dahy a Fiungaa. E fazédo afsi noíTos pou- fos em terra cada dia,onde nó's pro- uiamos de bòs refrefeos, chegamos a hua fortaleza dei Rey do Bungo cha madaOfquy, fete legoas da cida- de, na qual fortaleza efte Fingeaa- dono fe deteue dous dias, porque o Capitão delia, que era feu cunhado, eftaua muyto doente, Aquy deixou a embarcação em q tínhamos vindo, & nos fomos por terra para a cida-" de, chegamos ao meyo dia, ôc pot não fer tépo de poder falar a el Rey fe foy decer a fua cafa> onde mo- lher ôc dos filhos foy muyto rece' bido,& a mim me fizeraõ muyto ga falhado. E deípois q jãtou Ôc defean- çou do trabalho do caminho, fe pòs de veftidos de corte,& algús pare- tes feus íe foy ao paço,&me leuou cc figo a cauallo. El Rey fabédo da fua vinda?o mandou receber ao terreyre do paço por hum feu filho moço, a<3 que parecia,denoue até dez annos,c qual vinha acompanhado de muyta géte nobre^ elle vinha ricaméte ve- ftido feys portevros de maças dia- te, & tomando o Fingeindono pe- la mão, lhe diíTè com rofto alegre & béaffóbrado,a tua entrada neftacafa delReymeu fenor fejadetamanhaho ra ôc cótentamétopara ty,q mereçáú teus filhos, por ferem teus filhosco-

mei

Fernão Mendez Tinto.

ner à mela comigo nas fcftas do an- io,a que elle proftrado por cerra ref. jondeo,os moradores do Ceo, de Buem íenhor aprédefte a íer tão bói clpondáo por mim,ou me dem lin- ?oa de reftea de foi para te gratificar :om muíica alegre a tuas orelhas eP ra grande honra que me agora fazes, por tnagrãdeza,porq fem íifo pecca- rey fc falar,como os ingratos q habi- taó no mais baixo lago da concaua efcuradacafa do fumo. E comido arremetendo ao trecado q o menino tinha na cinta para lho beijar,elle lho não confentio; mas tomandoo pela mão acompanhado daquelles fenho- res q com elle vieraó, o leuoti cófigo até o meter na cafa onde el Rey efta* ua,o qual inda q jazia na cama doéte^ o recebeo com outra noua cerimonia de q me efcufo dar relação por náo fazer a hiíloria proluxa. E defpois q leo a carta q lhe elle trouxe do Nau- toquim, & lhe preguntar por algúas nouas particulares de fua filha,lhe dif fe q me chamaífe, porq aefte tempo eftaua hum pouco afaftado atras. El- íe me chamou logo, Ôc me aprefétou a el Rey,o qual fazendome gafai ha- òo me diíTe,a tua chegada a eíla ter- ra de q eu íou fenfior,feja ante mym tão agradaual,como achuuado Ceo no meyo do campo dos noííos arro- zes, eu, achandomeaíTaz embaraça- do com anouidade daquella fauda- (po,ôc daquellas palauras,lhenão rei pondy por cntaó coufa algúa,elleen tão, olhando para os fenhores que eíhuão prefentes lhes diííe,finto tro- uacão nefle eftrangeyro, ôc fera pot

t6t

ver tanta gente,de que pode ferque venha defacuftumado, pelo que fera bom deixarmos ifto para outro dia, porque fe fará mais â cafa, & não e- ftranhará verfe no que íe agora vé. A ifto reípondy eu então pelo meu intcrprete,queíeuaua muyto bom,q quanto ao que fua alteza deziade me fentir trouado,lhoeofeíTaua,mas nãoporcaufa da muyta gente decj me via cercado, porque outras ve- zes tinha vifto outra em muyto ma- yor quantidade, mas que quando eti imaginaua que me via diante dos íeus peis,irTo baftaua para eu ficar mudo cem mil annos, fe tãtos tiuera de vida, poiq os que eftauãoà roda erío homens como eu, porem fua aíteza,o fizeraDeos em tão alto grão auentejado de todos, que logo qui- fera que foíTe Senhor,& os outros fof fem feruos,& q eu foífe formiga tão pequena em compararão da fua grã- deza,que porfer pequeno, nem elle me enxergaíTe, nem eu foubeíTe ref- ponder a fuás preguntas. Da qual toíca & groíTeyra repofta todos os que èftauão préfentss fizerao tama- nho caio, que batendo as palmas a modo de efpanto, diíferão para el Rey, ve voíía alteza corrio fala â pro pofito, não deue efte homem de fer mercador que trate em baixeza de comprar ôc vender, fenão bonzo pregador que miniftre facrificio ao pouo,ou homem q fe criou paraeof- fayro do mar, a que el Rey refpon- deo,tendes razão, & á mymaf9ímo parecc,mas ja q largou os fechos á cd uardia, vamos adiante corri iloítas X z fregtíqt*

(\

preguneas,& ninguém falte nada, por que eu quero ler o que lhe prego* te, que vos affirmo que tenho gofto de fallar com elle^ em canto que qui- çá comerei daquy a hum pouco qual querbocado,porque naõ finco ago- ra nenhua dor em mim, de q a Ray- nha,&fuas filhas que eftauáojunto com elle-, com grande contenramen- to4 & cos joelhos em cerra leuanta- íao as maós ao Ceo,& derão a DeoS muytas gradas por aquella mercê q lhes fizera»

CAT. (XXXVL

T>um defaslre que neíia cidade a* contecco a hum filho delTley^ & do perigo em que eu por ti- fo me. vj,

7^^^es~~i L Rey me mandou ío* ffgM|g° chegar para junto

eíta- enfer mo & atribulado de gota,& me diííe,rogote q te não en- Fades .de eftares jtko de mim, porque folgo de re ver & de falar comtigo, & que me digas fefabes algúa me- zinha lâ de (Ta terra do cabo do mu- do para efta infirmidade que me tem \ío aleijado, ou para ofaftioj porque v-ay em dous mefcs que não púíio comer coufa nenhúa,a que ref- pondy que eu não era medico, âi prendera ejTa fciencia, mas q no júco em q eu viera da China vinha- hum po cuia agoacuraua muito mayores inhrmidadeá q aquelia de que fe elle

Peregrinações de

queixâua,& q fe o tomaíTe,teria log< faudefem falta nenhua, o q elle foi gou muyto de ouuir. E querédo p0i em eífeito curarfe com elle, o man dou bufcara Tànixumaaonde ojun co eftaua, & fe curou com elle,& f0) logo faó em trinta dias, aiiendoj; dous annos que daquellâinfirniidi de eftaua entreuadona camafem f< poder bulir, nem mandar os bra- ços. Vinte dias contínuos defpoi< quechegueyaeíta cidade Fucheo paftey muyto â meu gofto, ora em refponder a varias preguntas que e| Rey,aRaynha>0 Príncipe, & osfe- nhores me faziao, como gente que naò tinha noticia de auer mais mun- do que íapaó,& não me detenho em dar relação do que me elles pregúca « uão,&eurefpódia,porq como tudo erao coufas de pouca fufticía,parece- me q não feruirâ de mais q de encher papel coufas qdem mais faftio q gofto: ora em ver as fuás feitas, as luascafasde oraçaó^ os feus exercí- cios de guerra, os feus nauios dar- madav& as luas pefcarias fretas a que faó muyto arTeicoados, princi- palmente as de altenaria com fal- coens & açores ao nofifo modo, & algúas vezes paííaua também o tem- po com a minha efpingarda, ma- tando muytas rolas, & pombos, & codormzes, de que a terra era bem abaftada. Os delta terra,para quem efte modo de tiro de fogo foy cou- íacao noua como para os de Taní- xumaa,vendo hua coufa que a^é en^ taonaó tinhaó vifto, foy tamanho o caio que íízeraó diíTo, que o naó

íey

Fernão Mcnde^Pinto.

ey encarecer. O fegundo filho dei \çy, por nome Arichandono, moço le dezaiTeis ate dezaíTete annos, & a iucm cite era rauyto arfeiçoado, me gq i!-:reo algíías vezes q o cjuilefle in- inar a tirar,de q me eu eleuley (em- S-Çjdizendo q auia mifter muycoté- )o para o aprender, porem clie não iccitando efta minha razão, fezquei cume de mym a Teu pay, o qual pe~ o comprazer me rogou que lhe def- ~e hum par de tiros para lhe fatisfa- ter aqnelle apetite, a que refpondy que dous,&quatro,&: cento, & quã- :os lua 'alteza mandaííe;& porq elle leíle tépo elíaua comendo com feu 3ay.,fícou para defpois que dormifle ifefta, o qual indaaquelle dia nao :eue eríeito;porque foy aquella urde :om a Raynhaíuamãy a hum pago dedegrande romagem, onde fazia húa feita pela faude dei Rey. E logo ao outro dia feguinte, que foy huía- bado vefpera de noíTa Senhora das Neues,íè veyo pela íeíla à caía onde eu eítaua,fern trazer comfigo mais q Pós dous moços fidalgos,,onde me a- chou dormindo fobre hua efteyra,&. vendo eíkr a efpingarda pindura- da, não me quiz acordar, com pro- poíito de tirar primeyro hum pár de tiros, parecendolhe, como elle def- pois dezia,que naquelles que elle to- mauanãofeentenderião os que lhe cu prometera, & mandando a hum dos moços fidalgos que foíTe muyto caladamente accender o murraó, ti- rou aeípingardadódc eftaua,& que- rendoa carregar como algúas vezes me tinha vifto fazer,comonão fahia

l6*

a quantidade de poíuora que lhe a- uia de lançar, encheo o cano em có- primento de mais de dous palmos,& lhe meteo o piiouro,& a pós no roífo ôc apontou para húa larãgeyra q eíla ua defróte,& pódolhe o fogo, cjuiz a cleiauetura q arrebétou por três par- tes,&deu nelle& lhe fez duas feri- das,húadasquais lhe decepou quaíi o dedo polegar da mão direy ta,de cj o moço logo cahio no chão como morto,o q vedo os dous q elle efta uão,forão fugindo caminho do paço & gritado pelas ruas hião dízendo,a eípingardado eftrangeyro matouo filho dei Rey,a cujas vozes í e leuãtou tamanho tumulto na géte,q toda a cidade fe fundia,acuchndo com ar- mas & grades gritas à Gafa onde o po brede mim eftaua, & ja enraõ qual Deos fabe, porq acordado eu efta reuolta,&védo jazer o moço no chaõ júto de mim éfopado todo em fãgue, acudir a néa maõ, me abracey com elle jâtaódefatinado &fora de mim q nao fabia onde eftaua. Nefte tépo chegou Rey debruçado fobre húa*cadeyra q quatro homés trazião aos ombros, & elle taó coado q nao trazia cor de home viuo,&aRaynha a péfobraçada em duas molheres,& ambas as filhas da meíma maneyra em cabello cercadas de grade quãti-» dade de fenhoras ôc gente nobre, as quais vinhão todas como pafmadas, &entr£do todos na cafa,&védo jazer o moço no chaó como morto, ôc eu .abraçado elle enfopados ãbós em íague,aíTétaraó todos totalméteq eii o matara,& arremetédo dous dos ój X 5 aly

^Perigrlnaçces de

I ' : |

aly efíâuãoamym cdl treçados nus nas mãos me quiferão logo matar, po tem el Rey bradou rijo dizendo, ta, ta,tâ,inquÍranno primeyro,porq fof- peito q vem efta eoufa de mais íóge, porque pode fer q peitaíTem efte ho* algus parentes dos tredos de q o outro diâ mãdey fazer juftiça. E eha* mando então os dous moços fidalgos que ie acharão aly com feu filho > os inquiri© com grandes prèguntas, a q reíponderao q a minha efpingarda o matara Com hús feitiços q tinha den* tro no cano, a q os circúítantes todos diíteraó c6 fiua grita muyto grande,

f>araq he fenhor ouuir mais? defelhe ogo cruel morte. Com iíto manda- rão logo a grande preíTa chamar o íurubaca q era o interprete por que me eu entendia com elles, q rtefíe té- po também era fugido com medo,& o tronxérão preío diante dei Rey, & perante elje & toda a juftiça lhe fize- rão hum preambulo de muytos a- tneaços fenaofalafle verdade,a q el- le tremédo& chorando refpondeo, q elie a diria. Então fizerão logo aly vir três eícriuaés,& cinco algozes treçados dambas as mãos arracados, & eu ja neíle tépo eítaua com as mi- nhas atada$,& pofto em joelhos dia- tedelíes{& o Bonzo Afquerão teixe q era o Preíldéte da juítiça,cos braços arregaçados,& húa gomia tinta no fã- gue do mefmo moço na mão me dif ié,eu te efcõjuro como a filho do dia- bo cue es,& culpado nefte crime tão grauecomoos habitadores da caía do rumo metidos na cõcaua fúda do ;cetr o da terra, q aquy em voz alta q

todos teoução me digas qualfoyí caufa porq qtiiíefte qa ciia efpingards feitiçarias mataíTe efte innoccnt* menino q todos tínhamos por cabel los da nofíà cabeça? a q eu por entãc não refpódy palailra por eftar tão fo ra de mim q ainda q me matará cuy do q o não íentira;poré elle féb ra- te feroz eirado me tornou a dizer, fe nao refpòderes a minhas pregúcas te ey por cõdenado a morte de ían< gue,& Fogo,& agoa^aíToprodevê* to,para nos ares feres defpedaçado cc mo penna de aue morta qfe diuidc em muy tas partes. Ecó ifto me deu hu grade couce paraq efpertáííe^&mc tornou a dizer,falla,cófeiTâ de quern fofte peitâdó,& quãto tederão.& co mo fe chamão,& onde viuéra q eu ai cato mais efpertojefpondyjquc Deosoíàbia, & a elle tomaua por Iuiz deita caufa, elle tudo não cori téte co q tinha feito, me fez outroá muytos ameaços de nouo,& me pòá diãte outros muytos efpantos & ter^ ribilidadesem q fe gaftou eípaço de mais de três horas, dentro nas quais prouue a noíTo Senhor q p moço tor- nou em íy, & vendo feu pay & fui mãy junto configo banhados em la- grimas lhes difle q lhes pedia muyto qnãochoraíTem,nem demandaílem â ningué a íua morte,porq elle fo- ra a caufa delia, & que eu não tinha culpa nenhua, pelo que lhes torná- ua a pedir muyto pelo fangue em q o vião banhadoj que me mandaf- íem logo foltar,& íenão q tornaria a morrer de nouòj & el Rey me man- dou tirar logo asprifoes com que os

algozes

Femao McndeçTinto. Nfy

algozes me tinhao atado, Nefte té, £ A T. CXXXVll.

po chegarão quatro bonzos para o curarem,&vendooda maneyraque eftaua, &co dedo polegar pendura- do^zeráo tamanho calo difto que o naó fey dizer,o que ouuindo o mo- ^o,come^on a dizer, tiremme eíTes diabos de diante, & tragaóme ou- tros que me naõ digaò da maneyra que eftou,pois foy Deos feruidoq eftiueiTe eu defta maneyra, E defpi- dindo logo eftes quatro, vierão ou- tros,os quais fe náo atreueraõ a curar as feridas^ afsi o diflerâo a feu pay, dequeelle ficou aííaz trifte & def- confolado, & tomando fobre ifto o parecer dos que eftauaó com elle,lhe aconfeiharaó que deuia de mandar chamar hum bonzo por nome Tei- xe andono muyto afamado entre el- les,que eftaua entaó na cidade de Fa cataa que era daly fetema legoas, a q o moço afsi ferido refpondeo, nâo fey que diga a eíTe confelho que dais a meu pay eftando eu da maneyra q todos vedes, porque onde ouuera de fer curado para fe me eftancar o fanguc, quereys que efperepor hum velho podre que eftâ daquy cento & quarenta legoas de ida & de vin- da, que primeyro que chegue fe pafíarâ hum mes,defafrontay eíTe ef- trangeyro,& fegurayo do medo que lhe tendes poftq,& defpegem efta ca fa,que elle me curara como fouber, porq antes quero q me mate hu ho- me q tanto chorado por mim co- rno eíTe coitado q o Bõzo de Facataa de 92. annos,& fem viftanos olhos.

T>o que maispaffej no negocio de~

He moço, 6> como me ambarquey

para Tanixumà , &> dahy para

Liapoo, &- do que me aconte-

ceo de) pois q ahji cbcguey.

' Defconfolado Rey,q a efte tépo eftaua como paímado por^ ver feu filho daquella maney- ra,voltando para mim © rofto,me difle c6 muyta brandura, rogote q vejas íè me podes valer ne- fte perigo em q vejo meu filho, porq te afirmo q fe afsi o fizeres,eu te tenha, també como a filho, & te quanto me pedires íè mo deres faõ.Eu lhe ref põdi q madaíle fua alteza aquella te q íe foífe,porq me trouaua co me- do da vozaria q fazião,& eu veria q tais eraõ as feridas, & fe me atreueíTe a curalo,o faria de muyco boa vonca-. de,o qel Rey logo fez,&chegádomc eu entaó ao moço, lhe olhey as feri- das,*^ vi q naó eraõ maisqduas,hua acima da tefta,a qual inda q era com prida naõ era perigofa , & outra na maó direyta que naõ tinha mais q fóméteo dedo polegar meyo depin« durado. E dãdome aly noííb Senhot hum nouo esforço diíTe a el Rey que fe naó agaftaíTe fua alteza,porque eu efperaua em Deos que lhe daria feu filho faó em menos de hum mez. E começado eu logo a me pòr em iora de o curar,foy el Rey muyto reprédi do dos bpnzos por cófentir niííò, Sc lhe diíTeraó que íem falta nenhíía feu X4 filho

filho morreria aquella noite, pelo q lhe feria melhor a elle mãdarme cor- tar a cabeia, que querer que lhe tor- xiaífe outra vez a matar feu filho,por quefeáfsi foíTe, como eftaua claro q auia de fer,ficaua a fua morte muyto infamada, Ôc el Rey tido em muyto conta de todos os feus. El Rey lhes reípondeo que bem via quanta razão tinhão no que lhe dezião,pelo quelhees rogauaquelhe aconfelhaf» íem o que então deuia de fazer,a que elles diíferaó q efperaflTe pelo bonzo Teixe andono{ & não tomaífe outro coníelho, porque por elle Termais íantoque todos lhe affirmauão que íb com lhe por a mão lhe daria fau- de,comojá fizera a outros muytos, de que elles eraó teftemunhas. De- terminado jà el Rey em aceytar efte maldito confelho deftes feruos do diabc^o rao^o íè começou a queixar que lhe dohião muyto as feridas,& q cm todo o caio lhe acudiííèm logo de qualquer maneyra que quifeíTem, porque não podia fofrer as dores. El Rey com ifto tornou de nouo a to- mar os pareceres dos que aly ficarão com elle,& lhes rogou a todos muy- to ,que vifta por húa parte a contra- dição dos bonzos,& por outra o gra- de perigo em que íeu filho eftaua, & as grandes dores que fentia lhe acon- ièlhaíTemo que faria nefta perplexi- dade em q fe não fabia determinar,& elles todos lhe diíferão que muyto milhor era Ter curado logo queeípe- rar o tempo que os bonzos dezião. El Rey lhe aprouou efte confelho por milhor & mais acertado>& como

Terigrlnáfôès de

tallhoaceytoii &-Ihõ agradeceo. E tornando a cõtinuar comigo me fez de nouo muy tos afagos, Sc me pro- meteode me fazer muyto rico felhe deflè faude a íeu filho, a que eu com as lagrimas nos olhos refpondy q eu o faria com tanto cuydado como fua alteza veria. E encomendandome a Deos,& fazendome(como fe diz)das tripas coração, por ver q não tinha aly outro remédio, Ôc que íè afsi o não fizeííe me auião de cortar aca- beça,preparey tudo o que era necef- fario para a cura, ôc comecey logo pela ferida da mão por me parecer a mais perigofa, & lhe dey nellafete pontos,mas íe fora curado por mão de çurujão quiçá que muytos menos lhe baftarão,& na ferida da tefía,por fer mais pequena, lhe dey cinco fo- mente^ lhe pus encima fuás eftopa- das de ouos.& lhas atey muyto bem como algúas vezes vira fazer na ín- dia^ aos cinco dias lhe cortevos pontos,& continuando afsi com a' mi nhaxura quiz noflb Senhor que dé- tro em vinte dias elle foy faó,femlhe ficar mais mal que hum pequeno efquecimento no dedo polegar, pelo qual el Rey & rodos os fenhores da- ly por diãte me fizerão fempre muy- to gafalhado,*&;muyra honra, Ôc o meímo me fizerão a Raynha& fuás filhas,as quais me derão muytas pe- ças de vefti dos de feda, & os fenho- res me derão treçados ôc abanos, ôc el Rey me deu feifcétos taeis,de ma- 4 neyra que ainda a cura me montou mais de mil Ôc quinhentos cruzados que de la trouxe. Nefte tempo,fendo

eu

Fernão ^IMeride^JPinto. 1 65

çu auifado por cartas dos dous Por- nella auia, & do muyto proueito que

tuguefes que ficarão em Tanixumaa, •que o coflayro Chim com quem aly vieramos,íe fazia preftes para íe par- tir para a Cliina,dey conta diíTo a el Rey,& lhe pedy licença para me tor- nada qual me elle deu muyto leue- mente,& com palauras de muy tos a- gradecimentos pela cura de fcu filho, Emandandome logo efquipar húa . funce de remo apercebida de todo o neceífario,& com vinte criados íèus, & hum homem nobre por capitão della,me party defta cidade doFu- cheo hum. íãbado pela menham,& â feita feyra logofeguinte ao Sol po- fto chegamos a Tanixumaa ondea- chey os meus dous companheiros q me receberão com alTaz de alegria. Aquy nos detiuemos mais quinze dias,em que o junco de todo acabou de fe fazer preftes, & nos partimos para Liampoo,hum porto de mar do reyno da China,de que atras fiz lar- ga menção, onde os Portuguefes na- quelle tempo tinhão feu trato,& vel- lejando por nofla derrota, prouue a Deos que chegamos a elle a falua- mento,onde dos moradores da terra fomos muyto recebidos, os quais auendo por couía noua virmos nos daquella maneyra entregues á pouca verdade dos Chins, nos perguntarão de que terra vínhamos, & onde nos embarcáramos com ellcs,a querefpò

fe fizera nas fazendas da China, de q todos ficarão taó contentes que não cabião em fy de prazej,& logo orde- narão húa deuota prociífaó para da- rem graças a noflo Senhor por tama- nha mercê, & nella foraõ da igreija mayor que era de nolfa Senhora da Conceição, até outra de Santiago, q eftaua no cabo- da pouoação, onde ouue Miífa ôc pregação. Acabada e- ílatão pia ôc tão íànta obra, come- çou logo a cubica a entrar nos cora- ções dos mais dós homens daquella pouoaçaõdetal maneyra, por que- rer cada hum delles fer o primeyro q fizeíTe eíta viagem,que vieraõ hus ôc outros a fe diúidirem,& poremíe em bandos>& com as armas mão a* traueífar cada hum as fazendas todas da terra Ddondenaceo que vendo os mercadores Chins efta tão noua& defordenada cobiça, onde o pico de feda valia naquelle tampo a quaren- ta taeis,veyo em fos oito dias a fubir a preço de cento Ôc feíTenta,& ainda afsi a tomauão por força & de muy- to ma feição. E com efta fede ôc de- fejo dointereífe, em fòs quinze dias fe fizerão preftes noue juncos que en- tão no porto êftauão, Ôc todos tão mal negociados, ôc tão mal aperce- bidos que algús delles não leuauão pilotos mais que fós os donos delles, que nenhua coufa fab ião daquella ar

demos conforme â verdade do que te,& afsi fe partirão todos juntos hu paflaua, Ôc lhe demos conta de toda Domingo pela menham contra ven-

a noíTa viagem, ôc da noua terra de lapaó que tínhamos defcuberto,& da grande quantidade de prata que

to, contra monção, contra maré, Ôc contra razão,& fem nenhua lembra - ça dos perigos do mar,, mas tão con- tumazes

tumazes & taõ cegos niílo que ne- to ifto fe fez com todo, o tento & ref.

nhum inconueniente fe lhes punha diante,& num deites hia eu também. Deita maneyra vellejaraõ afsi ás ce- gas aquelle dia por entre as ilhas ôc a terra firrrie,& á meya noite co húa çarraçaõ de grande chuueyro & tem peftadc que lhes íobreueyojderaò to- dos por cima do parcel de GotoiT^q eftâ em trinta & oito graos,com que dos noue juncos efcaparaó fós dous por grande milagre,& os fete fe per- derão todos fem de nenhum delles fefaluar hua peífoa, a qual perda foy orçada em mais de trezentos mil cruzados de fazenda, a fora outra mayor de feifcétas peíToas que nel- lcs morreraó,em que entrarão cento & quarenta Portuguefes, todos hon- rados & ricos. Os dous juncos que eícapamos milagrofamente , fegui- mos por nofTa derrota, & ambos em hua conferua fomos até tanto auan- te como a ilha dos Lequios, & aly com a conjunção da Lua nos deu ta- manho contra íte de veto Nordeííe, cjue nunca nos mais vimos hum ao outro, & quaíl fobola tarde nos faltou o vento ao Oefnoroeítc,com que os mares ficarão tão Cauados, ôc com efcãrceo & vagas taõ altas que eracoufa efpantoíilsima de ver. O noíTo Capitão que fe chamaua' Gaf- par de Mello,homé fidalgo, ôc muy- to esforçado, vendo que o junco hia ja aberto de popa, Ôc com noue pal- mos dagoa no praõ da íegundacu- berta,ai1entou.com parecer dos offi- ciais,de cortar ambos os maftos,por- cjuc nos abriaó o junco, ôc com quã-

guardopoísiuel, não pode fer tanto anoíTo faluo que a aruore grande não leuaífe debaixo de fy quatorze peíToas,em que entrarão cinco Por- tuguefes, os quais todos ficarão aly amaíTados, arrebentando cada hum delles por mil partes, que foy hua coufa laítimofiísima de ver, Ôc que a todos nos derrubou os efpritos de tal maneyra, que ficamos comopaf- mados. Ecrecendo com tudo a tor- menta cada vez mais, nos deixamos yr^comaífazde trabalho,ao fom do mar até quafi o Sol pofto, em que o junco acabou de íe abrir de todo. Vendo entaó o Capitão ôc toda a mais gente o trifte eftadoemq nof fos peccados nos tinhaõ pofto, nos íò corremos a húa imagem de noíTa Se- nhora, â qual pedimos com muytás lagrimas ôc muytas gritas que nos alcançaífe do íeu bento filho perdão denoílos peccados, porque da vida nãoauiaja quem fizeíTe conta. De- fta maneyra paíTamos a mayor parte da noite,& ço junco meyo alagado corremos atè o quarto da modorra rendido, que varamos por cima de hua reftinga,na qual logo às primey- ras pancadas fe fez em pedaços, em que morrerão feíTenta Ôc duas pe£ foas,hus afoga dos,& outros esborra- chados debaixo da quilha, couíàde tanta dor ôc laftima, quanta os bons entendimentos podem imaginar.

"CÁP,

CA?. tXXXVUL

<Do quepaffamos effes que efcapa- mss defte naufrágio defpou que fomos em terra.

S poucos que efcapa- mos defce milerauel naufrágio, que naó fo- ráo mais que vinte & quatro, a fora algúas molheres, tanto que a menham foy clara conhecemos que a terra em q eftauamos era do Lequiogrande,pe- las moftras da ilha do fogo Sc a ferra de Tay dação, & ajunrandonos todos afsi feridos como eftáuamos de muy tas cutiladas das õftraS ôc das pedras que auia na reftinga,encomendando- hosanoíío Senhor com muy tas la- grimas^omeçamos à caminhar me- tidos na agoa até os peitos, & alguns lugares atrauefíamos anàdo,& deita maneyra caminhamos cinco diaS cõ- tinuos com tanto trabalho quanto â mefma coiifa a entender, fem em todos elles acharmos coufa que co- meíTcmosfenão algús limos do mar, ôc no fím deíles dias proUué ã nolTo Senhor que chegamos a terra, & ca- minhando pelo mato, nos deparou á diuina proui dencia o mantimento de huas eruas queneftanoíTa terra fe chamáo azedas,deque comemostres diasaue ali eftiuémos,ate que fomos viílos de hum moço cj andâua guar- dando gado,o qual tifo que nos vió, corrédo pela ferra acima foy dar re- bate de nòs ahua aldeã que eftauá

Femao MendezfPinio* tó6

daly hum quarto de legoa, o quefa- bido pelos moradores della,apellida- ráo logo toda á comarca com gran- de vozaria de tambores,& buzios,de maneyra que em eípaço de três oii quatro horas fe ajutaraó paífante de duzentas peíToas,de que os quatorze eraó de cauallo,& tanto que ouueraó viíta de nós fe diuidirão erri dous magotes,& fe vierão direytos a nós,o fioíío capitão vendo efte trifte ôc mi- ferauel eirado em que a defauemura nos tinha pofto, fe aífentou em joe- lhos^ com muy tas palauras nos co«* meçou a animar, & lembramos que nenhúa coufa fe mouia fem a vonta- de diuina,pelo que como Chriftãos deuiàmos de entender que noílo Se- nhor fe auia por feruidó de íer aquel- la a noíTa hora derradeyra, & q pois afsi era, nos conformaflemôs todos com a fuá vontade, tomando corri muy ta paciência da fua mão aquella tão defeftrada morte>pedindolhe de todo noíTo coração ôc com muytâ. efficacia perdão dos peccados da vi- da paífàda, porque elle confuua em fua miíericordiá, que gemendo nós todos,como a fua fanta iey nos obri- gauaje não lembraria deíles naqueU la hora, & leuantando com ífto as mãos & â voz ao ceo, diíTe por três yezes,çom muytas lagrimas, Senhor Deos mifericordia,com as quais vo- zes íeleuantou em tòdòs huà tama- nha grita de hum Chriftaõ Ôc deuoto pranto,que com verdade poíTb afflr- marque o que então menos fe fentia era aquillo que naturalmente mais feteme« E eftando afsi todos neíte

trabalho-

^Peregrinações de

tfabalhofo trance,chegarao a nós íeis decauallo,&. vendonos aísi nus, & ítPã armas, & cos joelhos em terra, & duas mclheres' mortas diante de nos, ouucrão tamanha piedade, que vol- tando os' quatro deiles para a gence de que vinha atras, os fizeraó ter a todos,fem coníentirem que nenhu nos rizeíTe mal, & tornarão logo tra-* zendo com figo féis daquelles de que pareciaô ler miniftros dejuíliça, ou ao menos daquella que então cuv danamos que Decs queria que fe fi- zeíTe de nòss& eíles,por mãdado dos decai!allo,nos ataraó a todos de três em tres,& com moílras de piedade nos diíleraò q naó ouueííerflòs me- do,porque el Rey dos Lequios era homem muyto temente a Deos,&in cíinado por natureza aos pobres, aos quais fazia íempre grandes eímollas, pelo que nos affirmauao em verda- de,&jurauaó porfualey q nos naó auiade fazer nenhum malgas quais confolaçoés, inda que nas moftras fora nos parecerão algum tanto pia- dofas,com tudo naó nos fatisfizeraó nada, porque ia a efte tempo eílaua- mos tão deiconfiados da vida, q ain- da que nolas diíTeraò peiToas de que tiueramos muyta confiança, piadoía- mente lho crêramos, quanto mais' Gentios crueys, & tyrannos, & fem. ley nem conhecimento de Deos.Tá- to que nos tiueráo atados, a gente de nos fechou a todos no meyo,& os de cauallohiaõ diante correndo de ííila parte para a outra a modo de roídas. E começado nòs a caminhar, húas três niolheres que ainda leua*

uamos viuas, ou para milhor dizer, mais que moftas5fe naó puderaó da- ly bulir de pa.fmadas,co muytos defc mayos áísi de fraqueza como de me- do, pelo que fòy forçado aos de letiarçnnas ao colo, reuezandofe de hú$ nos outros,& antes oue chegaíféo mos ao lugar eípiraraô as duas dei- las,que ficarão aSy no mato nuas,& a condição de ferem comidas, dos bi- chos// dos adibes, & lontras, de que aly tínhamos viílo muyto grande quantidadej&ja quaíiíoi porto che- gamos a hum grande lugar de mais dequmhetòs vezinhos chamado Si- pautor,no qual fomos logo metidos dentro de hum pagode,que era hum templo da íua adoraçaó,cercado em roda de parede muyto aka,& vigia- dos de mais de cem homés, que com gritas & eftrondos de muytos tange- res nos vellaraó toda aquella noite, em que cada hum de nos teue o re- pouíoqueotempo ôc oeftado emej eftauamos de íy nos dauao.

CAT. QXXXlX.

Qomo fomos leuados a cidade de l^ongo)\(s* aprefentados ao "Bro- quem dajusiiça Gouernador do rey no l

W)-tm/\^'M O outro dia delpois de A lermenham clara nos

Bm^^'^% vierao viíitar as mo- ^lS3 Ibereshõradasdaqueh 15 le lugar,& por obra de

<«^

caridade nos trouxerão muyto arroz Sc peixe cozido,em algúas fruytas da

terra

Fernão Mendcz Tinto.

i6y

tem pâfàque comeíTemoSjmoítran- do nas palauras que deziaó,& nas la- grimas que derramauão condoeren- femuytoda noflattifte miíeria. Ef- :^s vendo também quão faltos todos íítauamosde veftidos, porq naquel- íe tempo tínhamos fobre nos muy to pouco ou nada mais que o que trou - ceramos dos Ventres de noílas mãys, "t foraõ íeis delias que todas entre I efcolheraó, a pedir com grandes pozes por todas as ruas dizendo, ó Tentes gentes que profeífòis a ley do senhor cuja condição lie (fe íe pode" Kzer) fet pródigo para com nofco, fel nos communicar íeus beés, fahy 3o encerramento de voílas paredes a perdes carne de noíTa carne tocada )or ira da mão do Senhor poder©íò, fcfocorrerlhe com voíías eímollas Mí-u^iíeamifericordiade Tua gran- jeia vos naó deíempare como a el- es. A cujas vozes foy tanta a efmol- la que a gente lhe dana que em me- nos de húa hora fomos todos pro- jidos do neceíTarioemmuyta aba- [lança. Paliadas as três horas deípois do meyo dia chegou corrédo a gra- de prefla hum coireo de cauallo que deu húa carta ao Xiualem do lugar, que era o Capitão daquella gente, d qual tanto que a leyo, mandou logo tocar dous tambores a modo de re- pique,com que íe ajuntou todo o po uo em hurri grande templo do feu p.a godé, & elie de húajanella lhe fez húa falia em que lhe deu conta do q mandam o Bioquem Gouernador do reyno,oúe zxz\ \fSt .nos leuaiTem á cidade de Poíijor,que efhua daly

fete legoas, o que os mais delles re- fufaraó por féis ou fete vezes, <k fo- bre iíTo tiueraó grandes debates, de maneyra que aquelíe dia fe naó to- mou alíentoem couía nenhúa mais que fomente tornarfe a mandar o correo ao Broquem com recado do que paífaua; pelo que foy forçado tereanos aly metidos até o outro dia ás oito horas,em que vieraó dous pe- retandas, que faó como corregedo- res, com muyta gente da cidade erri que entrauáo vinte de cauallo,& en- tregandofe de nos com grandes af- fencosque fe fízeraó fobre ifiò por efcriuaés públicos, fe partirão logo aqueíle mefmo dia7 no qual quaii noite chegamos a hua vi! la q íe ^ chamaua Gundexilau,na qual fomos metidos em húa mazrnorra resta co- - mo cifterna debaixo do chaõ, onde eftiuemos aquella noite com gran- diísímo trabalho em hum charco da goaem que auia infinidade de fam- bexugas,das quais todos ficamos af- íaz enfanguentados. Ao outro dia ja menhàm clara nos leuaraó para a cidade, â quai chegamos ás quatro horas defpoisde meyo dia,& porfer ia tarde nos naó vio então o Bro- quem,nem nos vio fenão daly a três dias, que aííi prefos nos mandou la- úar perante ly pelas principais qua- tro ruas da cidade em que auia gran difsima copia de gente, a qual, no q de fora parecia, moftraua ter pieda- de & compaixão de noíTa mifena dç. defâuentura, principalmente asmo- lheres. Deita maneyra chegamos à . cala da audiência em que eftaua a ;

guarda

*Perigrindfoès guarda dos miniftros da juftiça,onde í*ente? fala de Deos como que ter*

nos detiuetão hum grande eípaço, porque ainda aefte tempo naò eraó horas de fazer negocio, mas chega- da a hora federão crés pãcacjas num ÍIno,& fe abrio outra porta que cita- ua defronte,pela qual nos mandarão entrar em húa grande cafà onde ef- taua o Broquem aflentado em húa tribuna ornada de pannos de feda hum dorfel de brocado, & feys por- teyros de macias ao redor poftos de joelhos,& embaixo ao longo das pa- redes de toda a cafa eftauaó muy tos komés armados com alabardas tau* xiadas douro & prata; & em todo o mais corpo da cafa muyta outra géte de diuerfas nações que até entaó naó tínhamos viíto naquellas partes. E feito íilencio no rumor que e.fta gen- te fazia, nos profiramos afsi como hiamos diante da tribuna em que ef- tauaõ Broquem, ao qual diílemos chorando, pedimofte fenhor, pelo Deos que fez o Ceo & a terra, debai* Xo de cujo poder todos eítamos,que por elle te mouas a piedade da nofTa trifte fortuna, porque que as ondas do mar nos puferaõ néíte eftado de tamanha deíauemura, nos ponha a tua boa inclinarão em outro milhor diante dei Rey, paraque íè moua a ter piedade de nòs,porque fomos po bres eítrangeyros aquém faltou o fauor & o remédio do mundo, por afsi o permitir. Deos por noíTospec- cados. Ao que elle,olhando para os que ehrauãoâroda, defpois de fazer algus meneos com a cabeçajhes diP fe,qye vos parece a vós outros defta

noticiada fua verdade, akum çran de mudo deue de auer neíle criado de que naó temos ainda noticia, & pois conhecem a fonte dos beés, ra záo fera que fe vfe com elles confor medslagrimas com que o pedem E virandofe então para nòs,que a ef te tempo eítauamos todos profira dos no chão, & com as mios leuanc; das, como quem adora a Deos, no; diíTe, ey tamanha piedade da voíf; miíeria,& tenho tamanha dor da vo fa pobrezà,que vos certifico em bo; verdade,& afsi me ella valha diant< dei Rey, que mais quifera agora fei cada hum de vós outros, com ter erc mim o que vejo em vós,que eíle car goque por meus peccados agora te nho, porque temo muy to eícanda- lizaruos,oque por nenhum cafo qu< ria fazer, porem que ha de fer d( necefsidade, porque ha de fer força do cumprir eu co que deuo, vosro go como a amigos que vos nao eípã teis de vos eu fazer alguas "preguntaí neceíTarias ao bem da juítiça,& qua- to ao mais que competira voflà foi- tura,fe Deos me der vida, vos a te reis,& podeis defcançar nefta minha promeííã) porque fey dei Rey meu feníxor quão real condição tem para os pobres como vos outros, as quais promeííàs lhe nós então agradece- mos com húa grande quantidade de lagrimas, porque nefíe tempo eira » uamos todos tais que de nenhúa maneyralhepudemosreípó- derporpalauras*

CÁP.

nsi:

QAT. CXXXX.

T>as preguntas que nos fi^erao^ do que a ellas reffondemos^ do mau que então foc cedeo.

Broquem mandou lo* go vir diate de fy qua- tro efcriuaens, & os dous peretãdas da cor- te; que faócomo cor- regedores, como ja diffè, & outros dez ou doze miniftros da jufíiça, & leuantandofe em pe com fembrante colerico,& hum trepado nu na mão, nos começou a preguntar com voz ifenta & hum pouco alta paraque to- dos o ouuiífèm, dizendo, Eu oPina- chilau Broquem deita cidade de gor por vontade daquelic que todos temos por cabellos das noflas cabe- ças Rey da nação Lequia, & de to- da efta terra dambos os mares, onde as agoas doces & falgadas diuidem as minas dos feustifouros,vos amoe- fto & mando co rigor & força da mi-» nha palaura,que me digais com co- ração limpo & claro que gente fois ' ou de que nação, & qual hc a voíTa terra & como fe chama?a que refpp- demos toda a verdade, que éramos Portugueles naturaes de Malaca. E clle nos difle,pois, quem vos trouxe a-efta noíTa terra,ou para onde hieys quando vos perdeftes? & nos lhe ref- pondemos, que por fermos merca* dores,& termos por offício tratar c6 noflas fazendas, nos embarcáramos

FernSo oIMcnde^Pinto. 1 6 8

no reyno da China do porto de Lia" poo para Tanixumaa,onde ja tínha- mos ido álgúas vezes, & que fendo tanto anate como a ilha do fogo nos dera húa tamanha tormenta q não podendo pairar o mar, nos fora for- çado correr em popa ao fom do ve- to três dias com fuás noites, no fim dos quais varáramos co junco por ci* ma da refíinga de Taidacão,onde de nouenta & duas peíToas que éramos fe afogarão logo as fefíenta & oito, &nòs os vinte & quatro que aly via? diante de íy,nos faluara Deos mila- grofamente, fem outra coufa mais q fós aquellas chagas q via nos noffos corpos. A que elíe replicou,dizendo, & de que titulo poíTuys tantas rique- zas de fedas & peças quantas o mar deu ái noflas gentes defle voíío jun- co? que, íegundo tenho fabido, vale mais de cem mil taeis,pelo que pa- rece increiuel poderem homés aqui- rir bem tanta foma de riqueza fem intreuirem niíTo roubos,os quais,pe- la ofTeníà graue que com elles fe faz a Deos,faó mais offício dos feruos da ferpe da cafa do fumo,que dos da ca- ía do Sol, onde os juftos & de cora* ção limpo fe banhao cheyros fua- ues no tanque das agoas do alto Se- nhor. E nós lhe refpondemos a iílo que íem falta nenhua éramos rner-* cadores& nãolaclroês,comopor tan tas vezes nos tinha apontado,porque o Deos em que criamos nos vedaua cm fua fanta ley o matar & o furtar, A que elle, olhando para os circurv* ftances, diíTe, fe eit.es faláo verdade*, podemos dizer que faõ como nos

o

*Pengrinâçoes de

õ feu Deos muytó milhor q todos os uifado por cartas do Broquem, afsi

cutros,pelo que parece que afsi fera como dizem, Então tornado a olhar para nós, profeguio adiãte com luas preguntas,& fempre com rofto gra- ue,& moftras i roías, como miniftro inteyro em feu officio,nas quais íe de teue quafí húa hora, & por derra- dcyro nos diíTe,pois, qual íoy a caufa porque as voílas gétes no tempo paí- íãdo quando tomarão Malaca pela cubica das fuás riquezas, matarão os noíTos tanto fem piedade,de q ainda agora ha nefta terra alguas viuuas? a querefpondemos que íeria por fuc- ceíTo de guerra, mas não por cubica de os roubar,porque o não cuiTiima- uamos de fazerem parte nenhua: &. elle tornou, pois, que he ifto que di- zem de vos? negareis que quem con- quifta não rouba ? quem força não mata?quemfenhoreya não efcanda- liza? quem cubica não furta? quem aprema nãotyraniza? pois, todas ef- tas couías fe dizem de vos,& fe affir- mãoemleyuk verdade, por onde parece que largamos afsi Deos da lua mão', dando licença ás ondas do mar que vos afogaííem debaixo de

danoíTapriíàó, como do que pelas preguntas tinha fabido de nos, & lhe apontou algúas couías em noílofa- uor,as quais o moucráo anão mãdar logo fazer juftiça de nos, como de ziáo que tinha determinado por ai- gús mexericos que os Chins de nos lhetinhão feito. "Nefta prifaó eftiue- mosquaíidolismefes, com aílazde trabalho, Tem em todo efte tempo nosfallaremafeito; & defejando el Rey ter mats algúa informação de nos que a que o Broquem lhe tinha efcrito, mandou hum home por no- me Raudiuaa que fecretaméte viek fe â priíaõ onde eftauamos,& fingin- do fer mercador cltrãgeyro foubeííe miudamente a verdade da noíTa vin- da aquelle lugar, porque fegundo a informação que efte lhe deífe, deter- minaria elle nifto o que lhe parecefle juftiça.E ainda que ifto íe fez todo o íegredo poisiuel, não faltou quem o dia dantes nos auifou da vinda de- fte homem,para a qual no? armamos das mais criftes & mais miíeraueis moftras de fora q em meyo de quáta miferia então paííauannos,foubemos

fv, muyto mais foy inteireza da fua ' ainda fingir,porque defpois de Deos iuftica que fem razão que víaífe com eftasforaò fépre as cj mais nos apro-

juftiça que lem razão q vofeo. E leuantandofe então da ca- deyra em que ja eílaua aíTentado, mandou aos Peretandas que nos tor- naíTem a prifaõ , da qual feriamos ouuidos conforme a piedade que el Rey quifeíTe ter de nós, com que to» dos ficamos bem triftes & defeonfo- lados,& fem nenhúa efperança de vi- da. Logo ao outro dia foy el Rey a-

ueitarão nefte negocio,q quantos ou- tros meyos para elle buícamos. Efte home entrou hum dia pela menham acõpanhado no vileu,q era a maz morra onde nos tinhaó preíos,& def- pois de nos andar^vendo a todos hu & hu,chamou o Iurubaça que com- figo trazia,q,como ja difte, era o feu interprete, & lhe diífe, pregunta a

eftes

Fernão Mendez Tinto.

es hoirscs qual foy a caufa porque cos os deiéparou ranço da íua mão dcroía,& permitio no juizo da fua nina juíliça que vieííem Tuas vidas íèr julgadas por pareceres de ho* ensa que oremordimenro dacó- encia não porá diante dos olhos o )anto da viiaó temerofa com que a mana derradeyra hora da vida fe èafr&tar? pelo q he de crer que pec dos jbbre peccados foraó os que ufarão iftoque nellesvejo.Nòs lhe rpõdemos que tinha muyta razão, irque claro eftaua que os peccados >s homens eraõ a principal cauía >s íeus trabalhos,mas que nem iíTo ■aua a Deos que era pay & Senhor mifcricordia,condoerfe daqUelies jecom lagrimas & gemidos cha- auao porelle de continuo,em cuja >ndade tínhamos poílas noíTas-ef- ranças,paraqueefpritaífe no cora- o delRey quereríe informar da nof verdade, & prouernoscomjuftiça, jrque éramos pobres eftrangeyros, (em aderência nenhíia,q era o me* 3 principal,& de q os homés nefta ida fazião mais calo. A q elle refpo- so, muyto bom he iíTo,íc voíTos co-

içoes eítlo conformes com võíTas alauras,& fe afsi os tendes como di* eis,não ajais de vos, porque cia- 3 cita que quem pintou o q noíTos lhos eílãovepdo na fermofura da oite,&emtudooo mais que o dia os moftra na fuftentação dos bichi- hos da cerra,que a vos não negara o cmcdio de voíla fokura,pois .can- os gemidos lhe pedis tantas vezes,pe 3 que vos rogo muyto que não te-

nhais pejo de me confeíTardes com verdade o que agora pretendo faber de vos, que he,que gente foys,de que nação,& em que parte do mundo ha bitais,&como fe chama a terra ou fe nhorío do voíTo Rey fe o tendes,& a caufa porque vieftes ter aquy onde agora eftais, & para onde hieiscom tanta foma de fazendas ricas quantas o mar tem laçado nas prayas de Tay- dação, de que toda eíta gente ficou tão pafmada que Tem duuida tem para íy que fois vos íenhores do tra- to da China que he o tíiavór de to- < do o criado. As quais preguntas,& a outras muytas que então nos fez refpondemos conforme ao quena- quella conjunção nos era neceíTario, de q fe elle moítrou tao fatisfeito que fazendonospor vezes muytos orTe* recimétos de fy,íè orfereceo també a falara el Rey na noíTa fokurajíèm nosdefcubrirnuncâa verdade do a que fora mandado, antes fingindo fempre que era eftrangeyro & mer- cador como qualquer de nós,&quã- dofe defpidionosencomédou muy- to ao carcereyró,& lhe pedio q fem- pre nos proueíTe de tudo o neceíTario porq elle lho pagaria muyto á fuaVô tade,o q todos lhe agradecemos com aíTaz de lagrimas^que também o mo ueraõ a ter compaixão de nòs,& nos deixou húa manilha douro que ti- nha de pefo trinta cruzados, ôc feys fardos darroz, ôc nos pedio ainda mUytos perdoens do pouco que nos daua. Tornandofe efte homem daly para el Rey lhe deu contado que paliara com nofco, ôc lhe affirmouá

X fem

.S3/

Terigrinaçoes de

Ttm duuida nenhua nao éramos os q os Chins lhetinhão dito de nós,& q a iíío poria mil vezes a cabeça, de q el Rey dizem que por então ficou al- gu tanto mais defcarregado das más foípeitas que lhe fazião ter de nós. E tendo determinado de nos man- dar foltar,afsi pelo que efte homem lhe tinha dito,como pelo que o Bro- quem lhe efcreuera,chegou ao porto hum Chim coílayro com quatro ju- cos,a q el Rey daua colheyta em íua terra,por lhe dará metade dasprefas q trouxeííeda China,& por efta cau- fa era muyto valido com elle & com todos os grandes da terra,o qual por noflbs peccados era o mayor inimi- go q os Portugueíès tinhão naquelle tempo,por húa briga q os noflbs ti- uerâo elle o anno dantes no porto de Lamau, na qual foy capitão hum Lançarote Pareyra natural de Ponte de Lima,em que lhe queimarão três juncos, & lhe matarão duzentos ho- mes. Efte perro quadofoubeda nof- fa prifaó, & como el Rey eftaua de- terminado de nos mádar íbltar, em- burilhou o negocio de maneyra, Sc diíít-âe nós tãtas medras a el Rey, q quaíi lhe fez crer q fem duuida per- deria muyto cedo o reyno por noflb reípeito,porq lhe d-ifíeycj era noflb cu fturne eípiarmos húa terra lo color de mercaria, & defpois a tomarmos como ladroés,matãdo Sc aíToládo to- daa coufa q nellaachâuamos,a qual informação pode tãto el Rey q o fez tornar de todo atras do que tinha, determinado,^ mudado a fentença niãdou q vifto o qnouaméte lhe ti*

nhãoditodenós, nos fizefíem at dos em quartos, os quais ferião pc tosfnas ruas publicas paraque pub c amente fe ioubefle quão merec dores éramos ctaquellajuíriça.

CAT. QXLl

Como el^ey mandou ejlafente\

ça ao ^Broquem da cidade onde ej

íauamos prefos para que aexeci

tajje& do que nijfofocedeo.

Ada eíla cruel fentei ça contra nós, mande el Reyhumperetanc que a leuafTe Iogo,& entregaíTc ao Broqi da cidade onde eftauamos prefos,p; raq em termo de quatro cíiasa exec tafle em nòs}o qual fe partio logo c ella,& chegando á cidade, permiti noflb Senhor q fe foííe agaí alhar er cafa dehúafuairmamviuuia)& me lher muyto honrada, da qulál tinha mos t ecebido muytasefmollas,aqu elle em muyto fegredo deu conca d; a que vinha,& que auia de leuai' cei tidoes dajuffrçaque fe fizeíte em como el Rey lhe mandaua. Eík no bre molher difle ifto a hua fua, fo brinha filha Broquem Gouerna dor da cidade, em cuja caía fe aga íalhaua huà molhei Portuguefa qu era cafada co pilote» que também eJ tâuáprefocom ttofco com dousfi filhos feus. E querendoaeítajácon folar, lhe defc.ubrio o que tinha fa bido, a qual pobre Portuguefa^ tan

to qui

Fernão MendezJPinto. 5 70

to que efta fenhora lhe deu eira no- virão naquella molher,q determina-

ua,d;zem que cahio fupitamente no chaó como morta, onde cfteue íem falia hum grande efpaço, 6c quando tornou em fy, fe ferio com as vnhas no roílo tão cruelmente, que ambas as faces foraó desfeitas em íangue, a qualcoufa, tãonoua Ôc tão deíacu- flumada entre eíla gente, efpalhan- dofe lo£o por toda a cidade, caufou em todas as molheres delia tamanho efpanto,que as mais delias fe íàyrao de fuás cafas afsi como naquella ho- ra fe acharão cos filhos Ôc filhas pelas mãos, fem porem diante as repren- loensquelhepodiaó dar feus mari- dos;nem arrecearem as más lingoas da gente praguenta ôc ociofa, que mouida da íua inclinação & natu reza tem por cuftume fallar, mal de muytas coufas que pela fingelleza ôc boa tenção com que íaófeitas,as acei tara noííb Senhor muytas vezes em feruiço. E chegando afsi todas a ca- da filha do Broquem onde eO:a molher então eflaua mais para mor- rer, que para dar razão do que huas & outras lhe preguntauão, ellas mo- uidas pela caufa primeyra & princi- pal que he Deos noffò Senhor autor de todos os beés, o qual mouido da fua infinita bondade & mifericor- dia,quando os trabalhos ôc os infor- túnios faò mayores, então acode co ^remédio mais certo a aquelles que fe achao mais atribulados, & mais def- conflados do remédio da terra, inda que eraó Gentias íe enternecerão tã- to,&ouuerão tamanho das lagri- mas ôc defacuftumado fentimento cj

rão todas entre fy de efcreuerem luia carta á mãy dei Rey em noííb fauor, a qual efcreueraó aly logo , em que lhe dauão cota de toda a verdade de nós,& do que por dito do pouo ti- nhãofabido, & quanto contra juftiça federa aquellalentença contra nós, & também lhe deziãooque eftaPor tuguefa fizera, ôc a grande dòr &la- ílima com que derramando íangue de todo feu roílo, lamentaua com al- tas vozes a morte de feu marido ôc de feus filhos, ôc lhe afílrmarao que tinha Deos tomado â fua conta ocaíligo da fem razão defle crime,&; as palauras da carta dezião afsi. Pe-r rola fanta congellada na oílra mayor do mais fundo dasagoas, eflrella ef- maltadade rayos de fogo; madeixa de cabellos dourados entretexidaem capeila de roías,cujos peis de tua grã- deza fe apoiétáo no principal de nof fas cabeças como ruby dejoya fem preço, nós as fomenos formigas da tua defpenfa,apofentadas noelqueci- do de fuás miga Ih as, filhas ôc paretas da molher do Broquem, co todas as mais tuas catiuas aquy afsinadas te fa zemos fenhora queixuma do que os noíTos olhos oje nos moftrarao, que foy hua pobre molher eftrangeyra femfemelhança de carne no roílo, alagada toda num charco de fati- guemos feus peitos feridos com tao admirauel crueza que aos brutos do mato fazia efpanto, Ôc a toda agen- te temor muy to medonho,gritando em vozes tão altas q te afflrmamos todas em ley de verdade q feDeos

Y2 m

^Peregrinações de

lhe inclina as õrclhasjcomo temos pe- cidade eftâ pofta,cujos moradores to-

ra nos q ha de fazer, por cila fer po- bre ôc defprezado do mundo,q gran- de caíligo de fogo & de fome venha fobre nòs,pelo q receofas nos difto,q todas grandemente tememos, te pe- dimos num grito como crianças es- faimadas que chorão à máy, ejue po- ftos os olhos na alma dei Rey teu ma rido,por refpeito dacjual te pedimos iíto de efmofta,te queiras fazer da na tureza dos Santos,& pores de todo a parte os rcfpeitos da carne; porque quanto te mais moueres por Deos, tanto mais íèrâs metida nacafade Deos,onde temos por certo q acha- rás elRey teu marido catando ao fom da arpa dos meninos q nuca peccarão acatigadefta piadofa efmola q por Deos ôc por elle todas te pedimos, q he pedires com efficacia grande a el Rey teu filho q fe moua por Deos ôc por ty,&por noflbs gritos Ôc lagrimas a auer piedade deftes eftrangeyros,& perdoarlhes liureméte toda a culpa q tiuer delles, pois, como fabes, não os aceufou nenhú fato q vieííè do Ceo, fenao homés torpes ôc de mao viuer, a que não he licito inclinarenfe as o- relhas. Conchanilau,donzella fermo fa,& inclinada,& íobre tudo mais honrada que todas as deita cidade, pelacriaçãoquefuamáyfez emty, te certificara da parte de Deos,& dei Rey teu mando, por cujo amor te pedimos ifto,das mais particularida- des defte negocie, afsi das continuas lagrimas & gemidos em que todos cftespobres agora ficão^omo do grã de medo & tnfteza em que toda efta

1 )-—j - - - --.

dos com jejus & efmolas te pedem q aprefentes feus gritos diante dei Rey teu fobre todos muyto querido filho, a quem o Senhor de todos os beésdè tanto bem,que dós feus eíquecidos fe fartem as gentes que habitão a terra & as ilhas do mar. Efta carta hiaaf- finada por mais de cem molheres das principais de toda a cidade,&foy mandada porhúa donzella filha do Mandarim Comanilau Gouernador da ilha de Banchaa, que jaz ao Sul deftadòs Lequios, a qual donzella partio o mefmo dia que chegou a fentençaja com duas horas de noite, por fer aísi neceflario, acompanhada de dous irmãos feus,& de outros dez ou doze parentes,todos gente muyto nobre ôc dos principais da cidad#,

CAV. ÇXLll.

Como efta donzella deu a carta

a ^Raynha may dei Ifyy-, &•

da repofta que trouxe

delia.

Hegada efta donzella ao lugar de Bintor, onde então eftaua el Rey ôc a Raynha fua mãy,queera feys le- goasdefta cidade de Pongor,fe foy apeara cafa de hua fua tia q era ca- mareyra mòr da Raynha, ôc muyto fua aceyta,â qual deu conta do aq vi- nha,&lhe pos diãte quanto cópriaa fua hora Ôc a feu credito para as ou

trás

Forno Mencfez Tinto.

ríis que a cfcolheraô para efte nego- :io,leuar de fua alteza efte perdão q pdas lhe pediao. A tia dcfpois que a igaf.ilhou com as circunftancias que > verdadeyro amor lhe iníinaua,lhe liíle, que pois affírmaua que lhe hia nífo íua honra> ella trabalharia to- lo o polsiuel porque fe não tornalTe laly deíconrence,& mal íacisfeicano eu requerimento, principalmente

>ois a couía em íy era cão jufta co- 110 dezia, a fora íer pedida de efino- apor cantas fenhoras & cão princi- >ais como na carta- vinhaõ a(4na- las, a que dizem que a donzella.deí- >ois de lhe darás deuidas graças, pe- lio de noua mercê que lhe deíTe to- la a preíTa pofsiuel, pois não auia de ermo para a juftiça que tanto con-* ra razão íe queria fazer de nòs,mais jiiefósdous dias, os quais cambem :11a trazia de eípera fomente. A tia he refpondeo a ifto, muyro bem ve- o a necefsidade que ha deíTa preíTa^ )eia muy ca que de ca foy para íe exe- cutar neííes triftes efTe caftigo que el Rey pelo dito dos Chins moftrou cã- :a vontade, mas como a Raynha a- ;ordar,que pode íer daquy a hua ho ra,ella me achará aos feus peis, por- que efta nouidade feja caufa para me ella preguncar pela razão delia, por- que mais ha de feys annos que não fiz outro tanto por minha diípo- íição* Então deixando íuaíobrinha agafalhada no feu apotento^ abrio hua porta de hum paíTadiço de que ella trazia a chaue, & fe recolheo para a camará onde a Raynha jazia dcitada,& dizem que fendo ja paíTa-

171

do meyo quarto da lua acordou a Raynha, & fentindoa aos feus peis lhedifte^que he ifto Nhay Mcica-» mur, (porque afsi íe .chamada efta fua camareyra mor) como vos dei- xailes eíquecer efta noice ? algúa grande nouidade deue ifto de fer. A que ella refpondeo,fy he íenhora por cerco, & cuydo que fera cão noua nas orelhas de voíía alceza, quanto foy para mim ver agora a efta hora che- gar minha fobrinha da cidade com camanha afronca de íua peííoa que não acerca palaura que diga.E a Ray nhalhediíí^, fe efta para ifte^cha- maya câ, ôc ella a fez logo encrar de* tro, a qual chegando diance da Ray^ nha, que ainda aefte cemoo eftaua na cama, íe proftrou ante ella, & fa- zendolhe o deuido acatamento, lhe diííe chorando o a que vinha, Ôc lhe deu a carta que leuaua, a qual lhe ella mandou que leíTe, & beijandolhe a donzella poriíTo a mão, lha leo co- mo conuinha a fua tenção, de que a. Raynha dizem que ficou tao fencida, que não fendo ainda acabada de lér de codo, lhe diflè muytas vezes com as lagrimas nos olhos, não mais, não mais, bafte por agora o que cenho ou uido; ôc pois afsi he como me cendes dico, não queyra Deos, nem a alma dei Rey meu marido, por cujo rei- peico codas me pede iíTo de eímola^ que eíTes coitados percão a vida can- co fem caufa, porque bem lhes bafta por pena do q os Chins diííeraó dei- les,a execução q o mar nelles fez> ôc deixaimecom ifto, porque eu tomo â minha eóca eíTe voiTo requeriméto, Y 3 & hiuos

'Peregrinações de

Be hiuos rcpotifar hum pouco até que fejâ menham, & iremos todas três tomar el Rey meu filho antes que fe erga ,& lerlheys efla carta, afsi como ma leites a mym, paraque fe moua a piedade, & nos conceda le* uemente ifto que com tanta razão lhe imos pedir. Tanto que a menhã foy clara, a Raynha íe leuantou lo- go, ôcleuando comfigo efta fuaca- mareyra mór, & a donzella fomente, femmais outra peíToa,fe foy pordé- tro de hum paííadiço á camará on- de fèti filho inda então jazia na ca- ma, & dandolhe conta do que. deli e queria, mandou à donzella que lhe leíTe a carta, & por palaura diíTefíe tudooquefobre ifto era paliado, o que a donzella fez tudo muy to intei- ramente, & fegundo foubemos,com muytas lagrimas ílias & de lua tia* El Rey,dizem que olhando para fua mãy, lhe refpondeo,certo fenhora, q toda efta noite lonhey que me via prefo diante de hum íuiz muyto ira- do, o qual me dezia, pondo três ve- zes a máo no feu rofto,como que me ameaçana, eu te prometo que fe fan- gue deíles eftrangeyros chega diante de mim, ou bramido nas minhas orelhas,cjue tu,& os teus o fatisfaçais à minha juftiça, & por iffo tenho por fem duuida que veyo ifto por Deos, por cujo amor digo que de efmolia feita em íeu louuor, lhes concedo a todos as vidas & as liberdades, para- qne liuremente fepoftaó yrpara on- de quiferem,&á eufta de minha fa- zenda lhes mãdarey logo dar cm bar* c,aeão>& tudo o mais q ouuerem mi-

fter. A Raynha fua mãy lhe deu poi ifto as graças,& madou â camarevra mór $c a fua fobrinha q lhe beijaííem ambas por iflb os peis, as quais o fi. zerão aisi;& ifto fe recolheo a Ray nha para o leu apofento. E el Rey * mandou logo chamar o Chubim c fora no dar da fentençjâ,& lhe deu cc ta de tudo O q paíTaua, afsi do q elk íonhara,como doq fua mãy lhe pe« dirá, & lhe elle concedera, pelo qual todos lhe beijarão a maõ, & lhe lou- uaraõ muyto o que tinha feito,& ma dan^) logo reuogar afentença qera dada, & dar outra em q nos perdoa- ua,efcreueo hua carta ao Broquem da cidade que dezia. deftâ.maneyra« Broquem cia minha cidade de Pon- gor, eu o íenhor das fete gerações, & cabellos da tua cabeça te enuio o ri- fo da minha boca,paraque a tua hó* rafeja acrecentada. P«la informação q os Chins me deraó do mao viuef deíles eftrangeyros,certificadome juramento folenne na q tinhaó em todos os feus deoíès q craó eíles fem falta coíTayros do mar,& roubadores na terra de fazendas alheyas,trazen- do continuamente feus braços tintos •do Tangue daquelles que comjufta caufa defendiáo o feu, como era no- tório por todo o vniuerfo, ao qual por cubica tinhaó dado mil voltas, fem deixarem ilha, nem terra, nem porto, nem rio que <ião abrafaíTem, com males tão feyos & criminofos q temo dizellos por honra de Deos, me pareceo ferem ifto caufas juftas para elles ferem caftigados por ju- fliça,& conforme âsleysdo meu rey

no o

Fernão MendezfPinto. vjt

no o piís em pareceres dos Chubins a auarcza te feche a mão. E quanto

do gouerno,cjue todos perante mim jurarão em fuás almas q eráo elles me recedorts não íómente de húa mor- te,mas de mil íe tatás fe lhe puderao dar,pelo qual me fuy cos léus pare- ceres,&mandey ao Khay peretanda que de minha parte te notrncafle que cm termo de quatro dias pufeíTes em effeito a execução deite cafíigo con- forme â minha fentença. E porque agora me foy pedido por todas as molheres nobres dcflãcidad^que eu tenho em conta de minhas parentas, que pela alma de el Rey meu fenhor lhe fizeíle efmolla deíuas vidas,<apò- tandome na fua carta razoes que me moueraó a não lho negar> ouue por bem cócederlho, porq temy q le lho negaíle chegaííem os feus brados ao mais alto dós Ceos, onde viue rey- nando aquelle fenhor, cuja natureza & propriedade he condoeríe de la- grimas derramadas com tenção vir- tuofa das boas que zeláo fua ley.E li- ure eu da cega paixão a que a car- ne me tinha inclinado, quiz que não preualecefle minha ira (obre o lan- gue deífes coitados.Pelo que te man- do que tanto que eíla fermofa don- zella de geração nobre,& paréta mi- nha te aprefentar efta por mim afsi- nada, & em qiie eonfeflb leuar muy- to gofto pelo refpeito de quem ma pedio, te vâs aprifaó onde pufefte eífeseftrangeyros, & fem mais dila- ção os mandes foltar, & de minha fazenda os prouejas de embarcação, com as mais efmollas que a íey do Senhor te mandar que faças fem que

a verem minha peíToa antes de fua partida o ey por efeufado, aisipelo trabalho que niífo podem leuar, co- mo por não me fer dado, por cero officio de Rey, ver gente que co- nhecendo muyto de Deos, vfa pou- co de fualeyj tendo por cuftume to- mar o alhevo. De Bintor,ás três cha- uecas do primeyro mamoco da Lua, na prefença daíobrancelhado meu, olho direyto mãy minha, & fenhora de todo o meu reyno. E o final de Rey dezia afsi. Hirapitau Xinan- corAmbulec, efteo forte de toda a juítiça, Adonzellatantoqueteuea carta dei Rey na mão, não fe deteue mais que em quanto fe defpidio fua tia, & caminhou com tanta preí- fa que em pouco tempo chegou à ci- dade, & deu a carta ao Broquem, o qual logo em a vendo ajuntou todos os Peretandas, & Chumbins daju- ftiça, & fe foy á prifaò, na qual na- cjuelle tempo eftauamos a muyto recado. Nos em o vendo entrar de- mos húa muyto grande grita de Se- nhor Deos mifencordia por três oui quatro vezes, de queellecom todos os mais de que a caía eftaua chey ar- carão taó efpantados que alguns dek les chorauão com laftima que ti- nhãode nòs.O Broquem nos confo- lou então com palauras notaueis, Sc de muyta caridade,&nos mãdou lo- go aly tirar as prifoés dos peis & das mãos,& tirandonos para hum pátio q eftaua mais adiãte,nos relatou tudo* oq era paífado fobre o noíTo nego- cio,de éj nos atè então nãotinhamos Y 4 fabidef

Terigrinaçoes de

fàbidô couta aigúa,pelas muitas guar rèm às molheres defta terra, natural

EH

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das que nos erão poftas.E defpois de mandar publicar a carta que el Rey lhe mabdara,nos diíle,rogouos muy- to por amor de mym queja q Deos vos íez tamanha merce,lha Taibaisa- gradecer,cólhe dardes muytas gra- ças &louuores por ella,porque fe vos achar agradecidos, communicaruos ha de de cima donde tudo proce- de, hum defcanço alegre para íempre fem fim, que he o que nos conuem mais,que viuermos quatro dias nefta miieria mundana,em que não ha def cançoíe não trabalhos^ores, & afli- ções grandiísi mas, & [obre tudo po- breza, que he o remate de todos os males,& por onde comummente as ttoilas almas le coníumem de todo na concaua funda da caía do fumo.

CA9. CXL11L

o que mais peamos ate cheyar* mos a Liampoò^ ç> da infor* maçào defla ilha Lequia.

Broquem mandou lo- go aly tiazer duas ca- nalhas cheyasde vefti- dosja feitos, & osre- partio por nòs confor- me á falta que via em cada hum, & daly nos leuou comíigo para fua ca- ía,onde fua mo lher & todas as mais fenhoras Lequias nos vi erão logo ver,& alem de moítrarem contenta- mento pelo bom fucceílo da nofla lokura, nos coníolaraócom muyto boas palaurís, &ifto lhes nace de íe-

mente bem inclinadas. E não con- tentes indâ com ifto, repartirão tam- bém todas entre íy agaíaíharcmnos em fuás caías o tempo que aly eíK- tic fiemos ate noíTa partida,que forão quarenta & fcisdias.nos quais fomos fempre muyto bem prouidos delias de tudo o neceffarioem tanta abaf tança, que não ouue nenhum de nós que não trouxeíle de cem cruzados para cima, & a Portuguefa em ài- nheyro & peças trouxe mais de mil, com que leu marido em menos de hum anno fe reftaurou do que tinha perdido. Paliados com bem de dei canço noíTo eftes quaréta ôc íeis dias, fendo ja chegado tempo da montão, o Broquem nos mandou dar embar- cação num junco de Chins quehia para o porto de Liampoo, no reyno da China, conforme ao que el Rey lhe tinha mandado,&ao Capitão do junco fe tomarão grandes fianças â cerca da fegurança denoíías pefíòas, porque nos não fizeíTe traição no ca- minho, E defta maneyra nos parti- mos defta cidade dePongor5metro- poly defta ilha Lequia,dâ qual aquy breuemente quiz dar aígua informa- ção,como cuftumey de fazer nas ou- tras terras de que atras tenho trata- do,para que fc em algum tépo Deos noííò Senhor for feruido de íhfpirar na nação Portuguefa, que primeyra ôc principalmente pela exaltação & acrecentamento da fua fanta Ca* tholica,& após ifíb pelo muyto pro- ueito que clahy pode tirar,queyra in

#ntar a cóquifta defta ilha,faiba por

onde

Femao Mende^Pinto.

ande ha de pór ospeis, & o muyto q ?ode ganhar no defcobrimento del- a,& quão fácil lhe fera conquiftala. |ííailha Lequia jaz íltuada emvin- e ôc noue graos,cem duzentas legoas :m roda,feíTenta de cóprido, & trin- a de largo. A terra em fy he quaíi lo teor do Iapaó, algum tanto em >artesmontanhofa,mas no interior lo fertão he mais plana, ôc fértil, & içofa de muytos campos regados de ios dagoa doze, com infinidade de nantimentos,principalmente de tri- ;o& arroz. Tem ferras de que fe ti- a muyta quátidade de cobre, o qual lor fer muyto,val entre efta géte tão >arato,que de veniaga carregáo jun- os delle para todos os portos da Chi a,&Lamau, Sumbor, Chabaquce; [ofa,Miâcoo,& Iapao,com todas as riais ilhas que eftão para a parte do ul,de Sefirau,Goto,Fucanxi,& Pol- :m. Tem mais toda efta terra do Le uio muyto ferrojaç^churnbo, efta- ho,pedrahume,falitre,enxofre,rr<el, era,açucar,& grande quantidade de engiure muyto milhor ôc mais per- sitoqueoda índia, Tem também nuyta madeyra de angehm, jate- nar,poytão,pifuu, pinho manfo, ca- :anho,fouro,carualho,& cedro, de q ; podem fazer milhares de nauios. para a parte do Oefte cinco ilhas nuvto grandes, em que ha muytas ninas de prata,perolas,ambar, encé- o, & feda, pao preto, brafil, aguila i,& muyto breu,inda que a feda algum tanto menos que a da Chi- la. Õs habitadores de toda efta ter- ttfôó como Chins, veftem linho, ai-

J7?

godão,& feda, com alguns damafcos que lhe trazem do "Nanquim. São muyto comedores, 5c dados às deli- cias da carne,pouco inclinados às ar- mas..& muyto faltos deltas, por onde parece que fera muyto fácil conqui- ftal!os,em tanto qno anno de 1556. chegou a Malaca híí Portuguez por nome Pêro Gomez Dalmeyda, cria- do dó meftre de Santiago, com hum grande prefente Ôc cartas do Ncjko- quim príncipe da ilha Tan«5a;:rua parael Rey dom Ioaó o terceiro q Janta gloria aja,& toda a :. iácío

feu requerimento vinha fundada ç .. lhe pedirquinhentos homêsparacó elles Sc com a íua gente conquiftar efta ilha Lequia, ôc ficarlhe poriííb tributário em cinco milquintaes de cobre,& mil de latão em cada hum anno,a qual embaixada não ouue ef- feito por vir efte recado a efte reyno no Galeão em que fe perdeo Ma- noel de Souía de Sepulueda. iaz mais aoNornoroefte defta terra Lequia hum grande arcipelago de ilhas pe- quenas,donde fe traz muyto grande quantidade de prata,as quais, íegun- do parece,& eu femprefofpeitey pe- lo que vy em Maluco nos requeri- mentos que Ruy Lopezde Vilhalo- bos general dos Caftelhanos fez a Jorge de Caftro capitão que então éra da noíTa fortaleza Ternace, deue de fer as de que efta gente tem algua noticia, as quais nomeauão por íftas platarias; ainda que não íey com quã ta razão, porque fegundo o que te- mos vifto ôc lido, afsi em Ptolomeu como nos mais que efcreueraó da

geogra-

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Peregrinações de

geografia, nenhum deftes ouue que paftaftedoreynode Sião& da ilha C,amâtra,fenãofós os noííos Cof- mogfaphos,os quais do tempo de A- Fonfo Dalbuquerque paca ca palTa- tao hum pouco mais adiante,& tra* tarao ja dos Selebres>Papuaas, Min- danaos,Champaas, China, & Iapaó, mas não ainda dos Lequios, dos tnais arcipelagos quê na grandeza defte mar eftáo ainda por defcubrir. Defta breue informarão que tenho dado deftes Lequios fe pode entéder, & afsi o euydo eu pelo que vy, que com quaifquer dous mil homés fe to mara,& fenhoreara efta ilha com to- das as mais deftes arcipelagos,donde refukará muyto mayor proueito q o que fe tila da índia, & com muyto menos cufto, afsi de gente como de tudo o mais,porque fomente do trato nos afirmarão mercadores com que falíamos, que rendiáo as três alfan- degas defta ilha Lequia hum conto & meyo douro,a fora a mafta de to- do o reyno,& as minas de ^>r ata, co- bre^acão^erro^o, chumbo, &^fta* nho,que rcndião ainda muyto mais que as alfandegas. Das mais excel* lencias particulares que pudera dizer defta ilha,não tratarey agora,porque me parece queifío bailara para ef- pertar& incitar os ânimos dos Por-

tuguefes a híía emprefa de tanto feruiço de noflb Senhor, &

£ de tanta honra & pro- ueyto para elles»

H

CJ<P. ($11111.

(orno de Liampoo me party par<

MaUca^dundeo (Capitão dafor

tale^a me mandou a Marta-

não ao (haubambaa.

Hegando nòs a falua meto ao porto de Liã poo fomos todos ber recebidos & agáfalha dos dos Portuguefes então aly eftauão» E daquy me err barquey para Malaca em híía nao d hum Portuguez chamado Triftáo d Gaa,com tendão de tornar de a ti tar de nouo a fortuna que tantas v< zesmefora contraria, como fe ter vifto do que atras deixo cotado. Eíl nao chegou a faluamentoa Malac. onde achey ainda a Pêro de Fan por capitão da fortaleza, o qual di fejandode me aproueitar antes qi acabafle o feu tempo, me comete com a viagem de Martauao, de qt então fe tiraua proueito,em junc- de hum Mouro por nome Necoc Mamude,o qual ahy na terra tinh molher & filhos,& que a minha yc auiade fer afsi para adernar paz» co Chaubainhaa Rey de Martauã< como para por via de comercia vii os feus juncos com mantimentos fortaleza,que nefte tépo eftaua mu; to falta delles pelo fucceífo das gue ras da Iaoa- E outra caufa da minr ida não menos importante que ef era yr também chamar hum Lanç íote Guerreyro que então andau* t

coí

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Fernão Mcndez Tinto.

ctoíladeTanauçarim com cc homês cm quatro fuftas com nome de ale- LUnrado,paraque acudifle â Fortale- za porque ie tinha por nona certa q vinhaoRey do Achem fobre ella, Pelo qual védofé pêro de Faria muy :odeiapercebidode tudo o neceíTa- io para efte cerco,& com mUyta fal^ :a de gcnte,quiz tentar valeríe deftes :em homés,alsi por eftaré mais per- o,& poderem acudir mais depreíTa, :omo também por terem,corrio que indauanaquelle officio, mtiytogrã- le foma de munições neceílarias a :íte cerco que eíperaua. E a terceyrá :aufa porque me mandaua cambem iflaz importante, era yr dâr auifoàs laos de Bengala, paraqué vieíTem to las juntas a bom recado,&apercebi- laspará o que rio caminho lhes fo- edefiè,porque o deícuydo não foi* e ceuía de algum deíãftre. Eu lhea- eitey a viagem de boa vontade, & ne party húa quarta feyra noue dias lo mezdelaneyrodoânno de 545 lefta fortaleza de Malaca, & íeguy ninha derrota com vetos bonanças ttePullopracelar,oride o piloto fe de eue por refpeito dos baixo* que atra leíTauão todo efte canal da terra fir- ne â ilha C,amatra,& dei pois de fer nos fora dclles iridà que com traba- ho,vellejamos por nofta derrota até is ilhas dePuilo C,ambilâo,onde me nety nua manchuâ bem efquipada que leuaua,& nauegando fempre nel a por efpaço de mais de doze dias,có rbrmeao regimento que leuaua de Pêro de Fana,efpiey toda a coita de- [le Malayo, que faó cento & trinta

v ^ . *7i

íegoas ate íunçalão, entrando em to* dos os rios de Barruhaas, Salangor, Panaagim, Quedaa, Parles, Pendão, 6c Sambiláo Siáo, fem em nenhum dclles achar noua certa deftes inimi- gos. E feguiodó pela meíma derrota por efpaco de mais de noue dias.que era aos vinte & tres danofla viagem, íurgimos em húá ilha pequena que - fe dezia Pifanduree,na qiíalfoy ne- celTario ao Necodâ,que era o Mouro capitão do junco, fazer húa amarra, 6c toma/ ágoa & lenha» E defembar- cado em terra com efta determina- çáo,fe deu ordem ao eíFeito delia co toda a preíTa poísiuel,& repartio a gente pelos íeruiços mais neceífarios, em que fe gaitou aquelle dia quaíí todo. Em quanto feifto fazia, hum ( filho defte capitão Mouro me come- teo que foííe com elie matar hu vea- do,de que auia muytós por aquella ilha,aqueeu refporidy que de boa vontáde,& tomando húaefpingarda me fuy com elle aterra,oride meten- donos pela efpeffura do mato,nãox:à minhariamos por elíe pouco mais de cem paífos, quando defeubrimos rtu efeampado húa grande bádâ de por- cos montefes que ândauão foçando junto de hum charco dagoâ.Áluoro- çados nos com a vifta deita rrionta- f ia,nos fomos chegando para o mais perto delíes que pudemos, ôc defpa- rando ambos as efpingardas no cor- po de toda abãdà,derrubàmosdpUs delles: co aluoíoço difto demos huà grande grita* ôc nos fomos correrido» ate o efeampado em que foçauão, orí de achamos noue hòmés deíèriterra-\

Terigrinâçoh de dos,& outros dez ou doze meyos co* Necodâ entendedo o myfrerio diftc

midos,com a qual vifta ficamos aííàz paítiiaidos Ôc confufos, Ôc nos afaga- mos hum pouco para trás por cauía do grande fedor deites corpos mor-* tos. O Mouro que hia comigo, que íe chamauaC,apetuu diíle então, pareceme que lerá bom com confe* lho yrroos dar conta difto a meu pay que ePcá na prava fazendo a amarra; para ój mande logo rodear efta ilha, ôc ver le fe defcobrem algúas lancha* ras de ladroes que pode eftar detrás dâquellaponta,& temo que nos pof» ia acontecer aquy algú defaílre, co- mo já alguas vezes âconteceo a algús nauiosem qouue mataremlhe muy- ta gejite por defcuydo dos feus capi - taés. Eu parecendome bem o feu có* felho,me tomey logo com elle a pra* ya,onde elle deu conta a feu pay do que tínhamos vifto. E como o Ne- coda era homem fefudo, &eítaua ef- caldado deftes delaftres, mandou lo- go com muyta prefteza rodear a ilha toda,& fez embarcar as molheres& os moços pequenos com a roupa me- y-a lauada afsi como eftaua, ôc elle quaréta homés de efpingardas & la- ças íe foy demandar afoça,dóde nòs tínhamos vindo, & chegando ao lu- gar dos mortos, os andou vedo com as mãos nos narizes, por cauía do grade fedor,que fe podia mal fofrer, Sc mouido a piedade delles mandou pelos maunheyros fazer hua grande coua em que os enterrarem, ôc reuoi uendoospara os meterem nella,a hús acharão alguscrifes guarnecidos dou |-o3&a outros manilhas nos bracos.O

que via, me diíTe que defpidifíe logc daly a embarcação de remo q tinha Sc madaííe recado ao Capitão de laca, porque fem duuida nenhua afftrmauaque aquelles mortos eraí Aches que vinhaó desbaratados d< Tanauçarim onde as fuás armada continuauâo por caufa da guerra au« tinhaó com el Rev de Sião, porqu< aquellas manilhas douro que achara eraó dos capitães do Achem que cu ftumauão enterrarfe com ellas no: braços,& que a iíTo poria a cabeça. E q para mais proua difto queria man ' dar dèfenrerrar algús,o que logo fez ôc deíentcrrando mais trinta ôc fet< quealy eífauão, lhe acharão dezaf féis manilhas douro,& doze crifes ri- cos com muy tos aneis,de maneyra c ainda montaria efte defpojo paílan> te de mil cruzados que o Necodá le uou,a fora o de que fe não foube par. te,mas não foy ifto tanto a noífo faí uo,.que nos não cuílaíTe adoecerno: agente quaíi toda do grande fedoí dos mortos. Eu defpidy logo daqu) para Malaca o balão de remo que k uaua, pelo qual efereuy a Pêro de Fa- ria todo o fucceífo da viagé, ôc o ca- minho q fizera, ôc os portos Ôc rios Ôi angras em q entrara, fem em nenhua parte achar noua nem recado àeftes inimigos mais que fofpeitarfe eftaré em Tanauçarim, donde por efíes coi pos mortos que aquy acháramos íè podia crer que vinhaó desbaratados, E que da mais certeza que tiuefse di- fto lhe efe reue ria logo donde quer c me achaíse.

CAP,

CAT. CXLV.

forno chegamos a hua ilha quefe de^ia Tuilo Hinbor^ do que o IZgy delia ahy pajfcu comigo.

Elpedido eflc balão pa- ra Malaca com cartas a Pêro de Faria,& eftã- do ojunco apercebi- do de tudo oneceíía- rio, nos fizemos á vella navolca de Tanauçarim, onde (eomo tenho di- to) eu leuaua por regimento que foQ fe furgir,para negocear co Lanzarote Çuerreyro que elle & os mais Por- tuguefes que andauão em fua com- panhia vieíTem focorrer Malaca pela noua que auia de virem os Aches íb- bre ella- E vellejandò por noíTa der- rota^ chegamos a humilha pequena de pouco mais de hua legoa em ro- da que fe chamaua Pullo Hinhor,dó- de nos fahio hum paraoo em que vi- nhão feys homens baços, todos com barretes vermelhos, mas pobremen- te veftidos, & chegando a bordo do junco, que ainda nefte tempo hia á vella, nos faluarão com moftrasde paz,a que nòs refpondemos da mef- ma maneyra,& após iíTo nos prcgun- tarao fe vinhaò aly algús Portugue- fes,a que foy rcfpondido que fy, po- ; rem elles não fe fiando do q os Mou- ros lhe dezião, lhe rogarão que lhes mandafíèm moftrar hum ou dous, porque releuaua ferafsi. O Necodá me pedio então muy to [que quifeíTe

Fernão MendezJPinto'. \ys

fubir acima, porque nefte tempo ja- zia eu deitado embaixo na camará, mal defpofto, o que eu fiz logo por lhe fazer a vontade : & aparecendo encima no conuè<,chamev pelos que vinhaó no paraoo, os quais tãto que me virão & conhecerão que era Por tuguez,derão hua grita, & tangendo as palmas a modo de alegria, entra- rão dentro no junco, & hum delles q noafpeito parecia de mais autorida- de me diííe, antes, fenhor, que peca licença para falar, te rogo que veja*. eíTa carta para por ella me dares cre- dito ao que diíTer, & íaibas que fou eíTe que ella diz: & com ifto me me- teo húa carta na mão emburilhada num trapo cujo, a qual eu tomey & vy que dezia deita maneyra. Se- nhores Portuguefes & verdadeyros Chriítaós,eíte honrado homem que efta moftrar a voíTas mercês, he Rey deita ilha agora nouamente feyto Chriftão,por nome dom Lançarote, do qual todos os aquy afsinados & outros muytos mais q andamos por efta cofta,temos recebido grandes a- uifosdetrayçoésque Aches & Tur- cos contra nós ordenauão,& por me- yo deite bom homem foubemos tu- do,^ também por íèu refpeito nos deu noflb Senhor agora húa muy to grande victoria contra elles, em que lhe tomamos hua galé,& quatro ga- leotas,có mais cinco fuftas, nas quais lhe matamos mais de mil Mouros, pelo que pedimos a voíTas mercês pelas chagas de noflb Senhor Iefu Chrifto,& pelas dores da íúa fagrada paixão que não confintão fazerfelhe

mal

mal nem âgíãuo algum,"mas antes o fauoreção em tudo como bós Portu- guefes,porq feja exéplo, paraque os outros q ifto fouberem facão o mek mo q efte fez. Beijamos mil vezes as mãosavoffas merces,oje três de No- uembro de 1544. Efta carta^ vinha afsinada por mais de cinquenta Por- tuguefes5em q entrauão os quatro ca- pitães q eu bufcaua, quecraó Lança- rote Guerreyro,Antonio Gomez,Pe ro Ferreyra,& Coimo Bernaldez.Eu vendo efta carta & a efficaciade fuás palauras,fiz ao pobre Reizinho algús offereeimentos de minha peífoa, in- da que a minha pofsibilidade era en- tão tão pequena, que não chegaua a mais que a hum fraco jantar, & a hu barrete vermelho; o qual com quan- to era velho, inda era milhor que o que elle trazia,Elle entre alguas con- tas que me deu de fy & de íuas mife- riaSjleuantando as mãos para o Ceo, & chorando muytas lagrimas me dif fe: Sabe noflb Senhor Iefu Chrifto,& fua mãy fanta Maria,cujo efcrauo eu fou, quanta necefsidadeeu agora te- nho do fauor & ajuda de algús Chri- ítãos, porque por eu fer també Chri- ílãojde quatro mefes a efta parte me poshum meu efcrauo Mouro nefte eirado em que me agora vejo, fem ter por mim mais, que por fomente os olhos no Ceo,& com grande dor & pouco remédio chorar minha defa uentura,& te affírmo na verdade de- ita fanta & noua ley que agora pro- feíío, que por ferChriftaõ «Sc ami- go de Portuguefes, me vejo períè- guidodeftamaneyra. E ja que por

tpengrindçoh de

ty,por feres hum fó,nâo poíTb fer aja dado, te rogo fenhor que me leues comtigOíporque não perca efta alma q Deos ém mim pos,& eu te prome- to de te feruir como catiuo em quãto viuer,& tudo ifto que diíle foy acom panhado fempre de tantas, lagrimas que era coufapiadofa de ver. O Ne- codàjComo de fua natureza era bem inclinado abrando de condição, ou ue muyto grande delle^ôc lhe deu hum pouco de arroz, & hum panno para íè cubrir,porque de tudo vinha tão falto que nem as carnes trazia de todo cubcrtas, & defpois que fe informou delle de alguas coufas que lhe releuauafaber,lhe preguntou tã- bem pelo feu inimigo onde eftaua, & que poder tinha,a que lhe elle ref- pondeo, que eftaua daly pouco mais de hum quarto de legoa, em hua ca- la de palha, com fós trinta pefcado- res comíigo,& os mais delles,ou qua« íi todos,fem armas nenhuasaO Neco então podo os olhos em rnym, Sc védome eftar trifte porq eu não ba ftaua para poder dar remedip a efte pobre Chriftaó,& parecendolhe que niftome fazia muyta amizade, me diíTe,fe agora fenhor, foras capitão d efte junco aísi como eu, que fizeras ás lagrimas defte coitado, de que os teus olhos também tem fua par- te? E eu lhe não refpondy palaura nenhua, por eftar tão malenconiza- do & trifte quanto a proximidade Chriftamme obrigaua. O filho do Kecodâjé] comoja diíTe, era mance- bo de bom efpirito, & criado entre Portuguefes, vedo a dor Ôc vergonha

em

Fernão tSMende^Tínto. ij£

«n que efte aperto me tinha pofto, terra, & nos fomos logo caminhan-

pedióa feupay que lhe defíe vinte marinheyros do junco, para com el- les reftauraraquelle pobre Reizinho, ôc lançar aquelle ladraò fora daquel- la ilha, a que elle reípondeoque íe lho eu pedifíè o faria de boa vótade, euarremetédolheaos peis para lhos abraçar, por fer a mais humilde cor- :eíía que fe cuftuma entre elles, lhe iiífechorandojque íè me iíTo fízeíTe, oda minha vida feria feu elerauo ca-« iuo,& lhe conheceria aquella tama- iha amizade, Ôc a todos feus filhos, omo elle veria,porque aísi lho jura- ia em minha verdadc,& elle mo có- edeo muytoleuemente.E mandan- lo furgir o junco junto da ilha,fe fez reítes com rodos os léus em três em- arcaçoés de remo, com hum falcão í cinco berços,& fefséta homés laoá : Lufoês com muyto boa's armas, m que auia trinta com eípingardas, :os mais com lanças & frechas, & luyta íòma de panelias de poluora, : outros artifícios de fogo conuenié* :s a nofso propoííto.

%J<P. CLXVÍ;

)<? que fòcedeo aos nojfos contra inimigos desle ^ei^inho^ & de u grande vitoria que hm Tor* tuguefes ouuerão nejla cojla contra hum capitão Turco,

Eria âs duas horas defpoiá do meyo dia quando def- embarcamos todos em

do para a tranqueyra onde os inimi- gos eftauão, na dianteyra hiaofilho do Necodà com quarenta homés, dos quais os vinte erão de efpingar- das,& os mais de lanças Ôc frechas,& o mefmo Necodâ hia na retroguar- dia com trinca homés, &leuauahíía bandeyra de Cruz que Pêro de Fa- ria lhe dera quando partio de Mala- ca, para porella fer conhecido por Vafsallo dei Rey noíso ferthor íe no ■mar encofitrafse com alguns nauios nofsos: ôc feguindo com efta orde- nança nofso caminho por dentro da ilha,& leuando o pobre Reizinho por guía,chegamos á onde o leuanta- do eftaua com fua gente toda poíta em campo, fazendo muytas algaza- ías,& dando moflras de muyta òufa- ttia,como que nos não tinha, em cota, os quais por todos podiãõ fer até cin- quenta,mas nas moftras gente fraca & deíàrmada,& mal prouidallo ne- eeísario para fua defeníàõ, porq náo tinhão mais que paos,& dez ou doze lanças,& húa elpingarda. Os nofsos tanto qué ouueraô vifta delles,dera5 fogo ao falcão Sc aos berços, ôc def- parando vinte eípingardas arremete- rão a elles, que nefte tempo hião fugindo, quaíi todos feridos, ôc fem ordem nenhua,& osfeguiraò tan- ta preísa que os alcançarão emeimâ no viíò de hu outeyro, onde em me- nos de dous credos foraó todos mor- tos, fem èfcaparem mais que íostres â que íe deu a vida por dizerem que eraò Chriftaõs, ôc chegando a híía pouoaçao de vinte caías de palha

terreal

íeífeas,fe não achou maistiellas que fós fefsenta & quatro molheres ôc crianças pequenas, as quais todas em hum crnto (dezião chorando Chriftão Chnftão,Iefu, Iefu, fanta Maria, ôc algús dezião Padre noíso que- eftâs nos Ccos fantificado feja o teu nome, fem mais outra coufa. E parecendo- me a mym q na verdade eraó Chri- fíaós como dezião, pedy ao Neco- que mandafse retirar feu filho, & não cófentifse que fe matafse nenhã pois eraó Chriftaós,& elle o fez logo- com muytaprefteza,com tudo aspo bres caías foraõ faqueadas,& em to- das ellas íe não achou valia de cinco cruzados,porque toda efta gente he tão pobre que nem hum real tem de íeujnem fe mantém de outra cou- ía mais que de algum peixe que to- «ião alinha que comem afsado nas braías & fem fal, & fem embargo di- ílo faó taó vaós, tão prefumptuofos, & tão íheyos de opinião,que não ha nenhum delles que íe não chame Rey de qualquer pedacinho de terra em que tem húa.choupana de palha ícrn mais outra coufa. E nem os ho- mes nem as molheres tem coufa al- gua de feu de que fe viílão. Morto efte Mouro aleuantado com todos os mais da fua companhia, & fendo ©pobre Reizinho Chriftão entregue de lua molher & de feus filhos qefte inimigo lhe tinha catiuos,com mais fcííenta ôc três almas Chriftãs, & or* denada aly húa igreija para fe dou- trinarem os nouameate conuertidos,- «os tornamos ao juco, onde embar- cados demos logo à vclla, & íegui-*

fperigthâçohde

mosnoíía derrota na volta de Ta- iiauçanm, onde efperaua de achar o Lançarote Guerreyro & osíeus com- panheyros para tratar com elles o ne gocio que atras teéiho dito. Mas por- que na carta que efte Reizinho me moftrara dos Portuguefes fazião el- les menção de húa vitoria que Deos lhes dera contra os Turcos ôc Aches deftacôfta, determiney de declarar aquy o como ella paíTbu,afsi porque me parece que niííodarey gofto aos leitores, como porque fe entenda q os bós foldados no tempo da necef- dade não ha couía que não leuem ao cabo,& que por iíío importa muyto terennos muyto mimofos, ôc muyto fauorecidos. Auendo ja quaíi oitq meies que eftes noflbs cem homens andauão nefta cofta embarcados ctti quatro fuftas muyto bem concerta das,em que tinhão tomadas vinteà três naosdeprefas muyto ricas}& ou tros muytos nauios pequenos,as gen tes que cuftumauão a nauegar por a quella cofta andauão ja tão aííom bradas do nome Portuguez, que d< todo deixarão o comercio de fua viagés, & vararão os feus nauios en terra, por onde as alfandegas d efte portos de Tanauçarimjluçalão^er guim, Vagaruu, ôc Tauay perdia» muyto dos feus rendimentos, pelo j foy forçado a eftes pouos darem ta diíío aoEmperador do Soma Rey deSião,que he fenhor fuprem de toda efta terra, paraque proueíí nefte mal de que todos geralment fe queixauão,o qual proueo logo d cidade de Odiaa onde então eítau

coi

com muytá prefteza, mandando vir da frontaria dos Lauhos bum feu ca- pirão Turco por nome Heredim Ma ramcde, o qual no anno de 1 3^8. vie- ra de Suez na armada de Soleimão Baxà Viforrey do Cayro, quando o graõ Turco o mandou íobre a índia; k defgarrando efte em hua galé do corpo da armada, veyo cer a efta co- fia de Tanauçarim,ondc aceitou par àdodefte SornauRey de Sião, & o reruio defronteyro morna arraya io reyno dos Lauhos, com doze mil :ruzados de foldo por anno. E por- que el Rey, por elle íer Turco, o ri- lha em conta de homem inuenciuel, k para mais cjue todos os feus.o ma- tou então vir da frontaria onde efta-" Kr com trezentos laniçaros cjue ri- lha comfigo,& fazendolhe hua grof- a mercê de dinheyro, o fez general la cofta deite mar com prouiíoés de iey abíoluto íoBre todos os Oyaas, jLie iaó como duques, para defa- rôtar eftes pouos das auexaçoés que >snoflos lhe faziáo, & lheprome- eo de o fazer duque de Banchaa,cj te hum eftado muyto grande, fe lhe rouxeíTe as cabeças do? quatro capi- aes Portugucfes. Eftefoberbo Tur- o, oufano & cheyo de vaydade snouas mercês & noua promeííâ q 1 Rey lhe fizera, fe partio para Ta- puçarim com muyta preíla, cinde hcgado fez logo hua armada de dez ellas para yr pelejar cos noííòs, & ío confiado em ter victoria, que em epofta de algúas cartas que o Sornau he efcreuera da cidade de Odiaa,lhe efpondeo elle hua cjue dezia eftas

Fernão Mencfe^Pintoí \yy

palauras.Do dia que a minha cabeça fe apartou dos peis de voíTa alteza para efte pequeno feito emq moftrou goftoqueoeuferuiííe, a noue dias, ch.eguey a Tanauçarim, onde logo com toda a prefteza prouy na falta de v ellas que aquy achey, de q não cpfera leUar mais que duas, porque fem falta para mym tenho que eifas fòs baílauáo para enxotar eftes for- migueyros, mas para fer em tudo o*, bediente ao regimento que me deu o Combracálãogouernador doimpe- rio fellado com a mutra do fello real, aparelho a galé grande, & as quatro pequenas^ cinco .furtas, a^quais ' determino partirme logo, porque arreceyo que faibão eftes caés da mi- nha vinda,& cj Deos,por meus p.eç- cados/eja tanto feu amigo q lhes tempo para fugirem,o que para mim fera tamanha dor, que a imagina- ção delia temo que me confuma a vida, ou por de.refperaçáo me faça femelhante a cada hum delles. Mas eu confio no profeta Mafoma, cuja ley profeíTey de pequeno,que fe não moftre tanto meu inimigo que con- finta peccados poderem tanto. Che- gado,como digo, efte*Heredim Ma- famede a Tanauçarim, fez logo pre- ftes efta armada de cinco fuftas,qua- tro galeotas, & hua galé real, &• em- barcou nella oitocentos Mouros de peleja, a foraachuzma do remo, em que entrauão trezentos íanizaros, & os mais eraõ Turcos^regoSjMalaua res, Achés,&Mogores,gétctoda muy to efcolhida,& exercitada na guerra, emque parecia que a vidoria eftaua 2 muyto

muyto certa, & com ella fe fahio do porto de Tanauçarim em buíca dos noíIos,que nefk tempo eftauão nefta ilha de Pullo Hinhor de cj efte Chri- . ftáo era Rey,o cj uai nefta conjunção queefta armada íe fazia, acertou de eftarlána cidade vendendo hu pou- co de peixe Teco. E fintindo o cjue fe ordenaua contra os noíTos, largou a .veniaga; Sc íe veyocom muyta preP faaeíta íua ilha, na qual os achou muyto defcançados, íem íaberé par- te de nada, & com todas as quatro fuíbs varadas em terra; Sc dandolhe conta do que paíTaua,ficaraó elles to- dos tão fobrefalradcs,quanro a qua- lidade do caio requeria, & logo .'.sa- Gisélia noite3& no dia feguime efpal- marão os nautas, Sc os lançarão ao mar,& embarcarão mantimentos,a- goa,artiih:ina,-& munições, 8c le pu- feraõ co remo em punho, com ten- cão;fé2t!Étâto me elie^ defpois conta- rão,de íe irem para Bengala ou para Ração, por íe não atreueré a pelejar armada tão groíía. E eftando aísi vacilandoem differerites pareceres, appareceráo todas as dez vellasjun- ta$,íkfi3$ cofias delias cinco nãos grof ias deGuzarates, cujos íenhoriosti- nháodac(oao Heredim Mafamede trinta mil cruzados pelos fegurar dos noílos. A vifta deftas quinze velías meteo a noíía gente em muy- ta ccníuíaó, õc por ja a efte tempo fe não atreuc! em a fe fazer na vol- ta do mar por lhe ficar o vento muy- to ponteyio, fe meteraó detrás de liúa calheta que a ilha fazia, da ban- cado Sul cercada de arrecife depe-

Tcrlgríndçoes de

dras,porque não tinhao outro re- médio, Sc aly determinarão de efpe- rar o que a fortuna lhe oífereceífe. cinco nãos dos Guzarates íe fizerac na volta do mar,"& as dez vella^ d< remo fe foraó direytas à ilha, ond< chegarão quaíi às Aue Marias, & ( Turco mandou logo efpiar o porte onde tinha pornouas que os noílo eílauão,& fe vçyo a remo por na bo cadaangra,porlheficaraisi a preí; mais fegura,& com tençaò de tanto c fofle menham tomar todos osnoífo as maõs, Sc atados com cordas, co. mo elle dezia,os aprefétar ao Sornai de Siáo,porque iífo era o porq lhe ti nha prometido o eftado de Banchaa como atras fica dito. Amanchuac fora efpiar o porto, tornou áarmad; duas horas de noite,& deu por no uas ao Heredim q os nofsos eraó ja a colhidos,de q dizem q ficou tão pa( mado,que dando bofetadas em íy ô depenando as barbas,difse chorando bê" me temy eu fempre que peccado meus auiãode fercaufa q Deos neíl feito íè moftrafse mais Chriftãoqu Mourc,&q Mafamede auia de fer ta como cada hum deftes perros que ei vinha bufcar,& ifto fe deixou cay no chaõ como morto, onde efteu fem fala por efpaço de mais de grande hora, porem quando tornoi em fy,proueo logo como capitão n< q conuinha,mãdando logo as quafri galeotas em bufea dos nofsos a ilha q fe dezia Taubafoy,q eftaua a> mar daquellade Pullo Hinhor íèt legoas, tendo parafy queládeuiã< de eftar,por íer muyto milhor colhi

ta qu

Fúrnao Mende^Finlo. 1 78

m cj acjuéllà em q eítaua: & as cinco & noue Portuguefes feridos,& na "Ga

íullas diuidio em trcs partes, duas rara dou a outra ilhe por nome C,ambi- lão,& outras duas a outra que eftaua mais junto da terra firme, por ferem todas de boas colheiras,& a outra fit- íra,porJkr mais ligeira, mandou trás as quatro galeotas, paraque antes da mcnham lhe trouxelTe recado do q ichaílc, prometendo daluiflaras cin- :o mil cruzados. Os noífos que efta- Liáo bem á lerta, vendo que o Tur- ro íe tinha desfeito da mayor força io poder que trazia-, & que não ri- lha aly comfigo mais que a Ga- é em que eftaua, fe determinarão :m o cometer, & íaindoíe da cal he- ra co remo em punho,fe vcieraô muy- :o caladamente a ella. E como os i- limiços eftauão feguros, & fora de hes parecer que podia auer aly cou- a que os cometeííe, & fer paífan- I da mcya noke,tinhaõ em íy fraca /igia. As noíías quatro fuftasderao :odas juntas na Galé com grande im- seto & esforço, & lhe lançarão den- :ro feílenta homens, os quais antes q 3s inimigos entfaífem em íèu acor- Jo para fe valerem das afmas,que fe-i ria efpaço de dous ou três credos, he matarão â efpada paífante de oi- :enta Turcos, & todos os mais fe lan- harão ao mar, fem na Gale ficar na- nem viuo,nem peífoa a que fe deíTe 1 vida, onde também morreo o per- •0 do Heredim Mafamede, & tanto auoreceo Oeos noífo Senhor os nof- os nefte grande feito, que lhes deu :fta honroía victoria tão barata que iúo cuííou mais q hum moco noftbj

lemeaffirmaraóeUesque morrerão â efpada & afogados, muyto perto de treze tos Mouros, de que a mayor parte fora o laniçaros de cerceia dou ro,que he diuiía de nobreza entre os Turcos. Eja quando ifto acabou de íe concluyr íeriãoas duas horas deí- pois da meva noite. E defcançando o que reftaua da noite com muyto contentamento & com boa vigia^ em vindo a menham quiz noíTo Se- nhor por fua milericordia que che- garão duasfuftas da ilha onde foraó mandadas, que fem faberem parte do que era paliado vinhaó algum tanto deícuydadas, as quais em do- brando aponta da angra onde efta* ua a Galé,os noífos todos quatro ar- remeterão a cilas, Ôc em muyto bre- ue efpaço foraó tomadas com muyto pouco eufto dos noífos, E auendo el- les efte profpero fucceífo por mercê grande dada da mão de Deos^zerão todos húadeuota falua em q lhede^ raó muytas graças ôc muy tos louuo- res,& lhe pedirão muitas lagrimas q os não defemparaífe, porq por ho- ra do feu fanto nome fe lhe oíFere- cião todos em facrificio pa/a no mais q íeu fauor efperauão de fazer da- rem as vidas pela fua fanta Fe Ca- tholica. Após ifto prouendo muy- ta preífa na fortificarão das duas hi~ ílas Ôc da Galé que tinhaó tomado, as abalroarão com a ribanceyra da parte do Sul, Ôc lhe aííeftarão cin- co peças groflas que defertdiâo 2 entrada da angra, E fendo ja quaíl veípera, chegarão as outras duas» Z 2 fuílas-

m

*Perigrinafoes de

fuílâSque forao mãdadas à tem fir- me,conielmodéfcuydo das outras, & ainda tjue ouue algum pequeno de trabalho em abalroallas, todauia Fo- rão ambas rcndidas,mascom morte de dous Portuguefes, dos quais hum foy Lopo Sardinha Feitor de Ceilão, fe tornãdofe os noiTos a fortificar de nouocõ eftoutras duas fuftas, deter- minarão de efperarem aly as quatro galeotas que erão mandadas â ilha domar, porem aeftas deu lànoílo Senhor ao outro dia tanto veto Nor- te que deu com duas delias acoita, de que fe não faluou peííoa nenhõa. As outras duas vindo ja íobola tarde deftroçadas de toda a appellação dos remos, diítantes hua da outra mais de três legoas, hua delias chegou ao porto ás Aue Marias, que também teue a fortuna das outras, fem fe dar vida a Mouro nenhum. Ao outro dia húa hora antemenham, fendo o ven- to calma de todo, virão os noiTos á outra Galeota que andaua maca, por ter alijado toda a efquipaçaó do re* mo ao mar, & que não podia tomar o porto fenão fobola tarde co vento Gefte, &determinandofe de a irem bufcar, fe chegarão a ella, & lhe de- ráo duas cornadas de artilharia com que lhe matarão a mayor parte da gente, & após ifiTo a abalroarão, & a tomarão fem nenhum trabalho, por ter a gente quafi toda morta & feri'» da, & atrouxeráoâtoa para dentro da angra onde as outras eftauão. De maneyra que das dez vellas da ar- mada,ficaraò aos noííos a Galé,duas Galeotas,& quatro fuHas, & dos ou-

tros três nauios as duas Galeotas de raó à coita na ilha de Tobafoy,comc ja difTe,& da outra fuíla fe não Io» be nenhua noua; mas fofpeitoufe c a comerão mar, ou dera â coita err algua das outras ilhas. E efta glorio fa vitoria que noífo Senhor deu ao; noíTos foy no mes de Setembro d( anno de 154.4. na veíperá & diad( Arcanjo Saõ Miguel, com a qual ( nome Portuguez ficou tão celebra do & tãoiemido por toda efta coíh que em mais de três annos fe não fa lou noutra coufa, O que fabido peh Chaubainhaa Rey de Martauão,o mandou logo bufcar com promeí fas de grandes partidos para o ajuda rem contra o Rey do Brarnaa q na quelle tempo fe fazia p refles na cida de de Pegu para o vir cercar com fe< tecemos mil homés.

CA9. (XLVIL

T>o que mais paflejt ate chegar l barra de Martamo.

Artidos nos, como difie atras,defta ilha d< Pullo Hinhor conti nuamos por noífa der roxa na via âo porte de Tanauç^arim, ao negocio que ji atras difleáíguas vezes, & comofo) noite, receofo o Piloto dos muyto: baixos que tinha por proa, fe fez nc bordo do mar com tenção de tante que foífe menham tornar a deman< dar a terra cos ventos Oefles, que ja

neííe

j Fernão Mende^ Tinto. , ^p

ueíle tempo curfauao da índia por nefta terra foy defpois mandado por

moução tendente.' E auendo cinco diasq nauegauamos por eíla derro- ta, correndo com aflàz de trabalho por rumos muyto dirferentes, per- niitio noílb Senhor que a caio viflTe- mos húamenham húa embarcação peejuena, 8c parecendonos que era de pefcadores,a fomos demandar pa ra nos informarmos delles da para- gem em que eí"tauamos,& que legoas aueria daly a Tanauçarim,& paífan- do por junto delia lhe bradamos,po- rem ninguém nos refpondeo , pelo que foy forçado mandar o batel bem apercebido de gente, para con- franger os que achaííe a vire a bor- do. O noífo batel chegou com muy- ta preííà à embarcação que tínha- mos vifto, & fem nenhua dificulda- de a trouxe á toa, a qual em chegan- do a nos me meteo em aíTaz de cõ- Fufaò,porque era hum batel em que vinhão cinco Portuguefes,dous mor- tos,& os tresinda viuos, & hum co- fre com três íacos de tangas, laarins, & hum enuoltorio em que vinhão muytos copos & jarros de prata, 8c dous pratos muyto grandes,o que tu do eu logo fiz por a bom recado, 8c es três Portuguefes mety dentro no junco, 8c fazendolhe todo o gafalha- doíque pude,ostiue dous dias fem falia, 8c com gemas douos 8c cal- dos de galinha que lhe lançaua pe- la boca tornarão em íy, & prouue a noíío Senhor que em feys ou fete dias conualecerão para poderem dar razão de fy;& hum deites Portugue- les era hum Chriftouao . Dória, que

capitão a SãoTomè,& os outros dous eráo Luys Taborda,& Simão de Bri- to,todos homés honrados Õc merca- dores ricos. Elles me contarão q vin- do da índia nua nao de Iorge Ma- nhoz cafado em Goa para o porto de Chatigaó no reyno de Bégala fe per- derão nos baixos de Ração por ma vigia que tiueraó,& faluãdofe no ba- tel d ezaíTete peííoas fomente de oi- tenta 8c três que vinhão na nao, ca- minharão ao longo da coita cinco dias, com tenção de fe irem meter noriodeCoímim no reyno dePe- guu,para dahy fe embarcarem para a india na nao do lacre dei Rey,oti doutro qualquer mercador que no porto achaífem, 8c vindo com eíla determinação lhes dera hum vento Lefte defobola tena tão impetuofo, que nua noite & num dia a perderão de viíla. E andando áfsi emmarados fem vella nem remos, nem quem entende/Te que rumo lhes demora- ua, continuarão neíle trabalho de- zaífeis dias em que de todo lhes fal- tou a agoa que foy a caufa das fuás mortes,& deíles dezaíTete que eíca- paraó no batel, íos três ficarão viuos damaneyraqueaquyosachey. Da- quy deita paragem vellejamos por noífa derrota mais quatro dias em q prouue anoíTo Senhor que hua me- nham nos achamos entre cinco nãos Portuguefas que hiao de Bengala para Malaca, âs quais todas moí- trey o regimento que leuaua de Pê- ro de Fana, 8c lhes fiz requerimento que foííem todas juntas por caufa

Z- 5 d*

Peregrinares da armada dos Aaches que andaua na pois de eílarmos quietos, ouuimos

coita, porque o defcuydo náofoffe caufa de algum defaftre, ôc diílo lhe pedyhumeítromento,quc todos me derão,& me prouerão de tudo o que me era neceflàrio em muy ta abaftan- ra. Feita efta diligencia íeguiraos da- quy noíTo caminho,& paífados noue dias chegamos á barra de Martauão, hua feita feyra de Lazaro vinte & fe- tede Março do anno de 1545. ten- do paífcdo por Tanauçarim, Touáy , MerguimjIuncay.Pullo Camude, ôc Vagaruu, Tem em nenhum deites portos achar noua deftes cem Por- tugueíes que hia bufcar, porque a ef- te tempo erão lançados deíTa par- te do Chaubainhaa Rey de Marta- uão,o qual (fegundo ouuy dizer) os mandara chamar para fe ajudar dei- les contra o Rey do Bramaa que o tinha cercado com hum campo de fetecefttos mil homens, como atras fica dito, porem elles ja então não eftauão em feu feruiço , como logo fe verá, mas a razão porque, eu a não foube.

CAT. CLXVllL

T)algúas coufas particulares 'que aquy em Martauão focce- demo.

A ferião duas horas da noyte guando chega- mos á boca do rio, Ôc ancoramos nella com tenção de* pela me- nham yrnaosfurgirá cidade. E def-

por vezes muytos tiros de artilharia groíTa,com q algú tanto ficamos em- baraçados & duuidofos no que faría- mos, E co.moo diafoy claro,o Neco- chamou toda a gente a confelho, por fer afsi feu curtume em femelhan- tes cafos,& lhe diíTe, que pois todos auião de participar do perigo, todos tambetn deílem nelle feu voto, & â todos geralméte fez hua fala em que lhes pos diante o q aquella noite ou- uira,&o receyo q por iíTo tinha de yr furgir na cidade, fobre q ouue alguns pareceres & opiniões diuerfas , por fim das quais fe concruyo q todauia fe foíTe ver cos olhos o de que fe te- miaó . E para ifto fe fez vella pa- ra dentro do rio com conjunção dfe vento & maré, & dobramos hua pó- ta que fe dizia Mounay,da qual def- cobrimos a Cidade cercada toda em roda de hua grade quãcidade de gét< q ocupaua grãdej^arte da vifta, & nc rioquaíi outra tanta de vellas de re- mò,& com quãto fofpeitamos ó q if to podia íer palias atoardas q tra ziamosde mais lóge, não deixamo: de vellejar até dentro do porto , on de furgimos com muy to recado, & fazendo por cinmonia de paz noíí; falua cuftumada , nos fahio da terr; hum batel bem efquipado em qu< vinhaõ feys Portuguefes , cuja viíl nos alegrou em eftremo, os quais fu bindo a cima, onde foraõ bem rece bidos de toda a gente,nos declararac tudo o que conuinha a fegurança noíTas peífoas , Ôc nos aconfelharaí que por nenhú calo fizefTemos dal]

mudançi

Fernão

mudança como lhe diííèmos que tí- nhamos determinado, cjuc era fugir- mos aquella noite para Bengala,por- qtic lem duuida nos perderíamos, ôc lei iamos tomados da armada que o Rey do Bramaaaly tinha,queerade mil & fttecentas vellas de remo, em íj entrauaó cem galés todas be pro - jidas de gente eftrangeyra,mas q me oíTeeu logo com elles a terra ver a 'oão Cayeyro que aly eftaua por ca- ntão dos Portugueíe,a que daria có- a do a q vinha^ faria o que me elle tconlelhafíe íe nao queria errar, por- jue era elle home bem inclinado, & ;rande amigo de Pêro de Faria, em jué lhe tirthaó ouuido fallar muytas ezes,gabandolhe íempre a nobre,- ^ a de íua peílba ôc condição, ôc que ambem acharia Lanzarote Guer- eyro, & os outros capitães para qué fazia cartas,& que nua couía ôc nou« ra íe praticaria o q foííe mais ferui- o de Deos ôc dei Rey noííò Senhor 'arecendome a mim bem eíta con- í!ho,me fuy logo elles a terra, a ero ioao Cayeyro,do qúal,& de to os os mais q eftauaó elle na fua ranqueyra fuy muytobé recebido,q raó letecentos Portuguefes, gente to a muyto limpa & rica,& moftrey ao aaõ Cayeyro as cartas,& o regiméto ue trazia de Pcro de Faria, ôc prati- uey elle o negocio a que vinha, c elle fez fobre iíTo logo hu grande íquerimentoaos quatro capitães a nem eu vinha dirigido, os quais lhe efponderaó que elles eftauáo todos miyto preftes para ieruirem Rey oíToíenhor em tudo o que fe oíTe-

zIMende^ Tinto. i

rcceíTe, porem q pois a carta de Pêro de Faria capitão de Malaca vinha to- da fundada no receyo q tinha de os Achés,& a armada das céto ôc rrihta vellas q eíperaua, de q era general o Bijayaa fora Rey de Peedir,& Almi- rante do Aachem vir a Tanauçarim^ a qualjâahy viera,& fora desbarata- da pela gente da terra,com perda de íetema lancharas, ôc de cinco mil homens, auião a fua yda então por defaeceíTaria, porque fegundo o que elles tinhão vifto, hia eíle inimigo raó quebrado das forcas, que lhes parecia que em dez annos fe não po- deria tornara refazer do que tinha perdido. E afora eíta razão, fe de- raó nefte caio outras muytas por on- de fe aílentou que era eícufada a fua yda a Malaca,& eu pedy a íoão Ca- yeyro q de tudo o q era pagado nefté caío me mandaííè paíTar hum eítro- méto,para por elle fe me dar credito em Malaca,porq em o. auendo á mão determinaua de me tornar logo pois aly não tinha mais que fazer. E afc íi me deixey aly ficar em companhia do íoão Cayeyro com fundamen- to de me yr no, junco como foíTe tempo, Ôc continuey com elle no tra- balho deite cerco por efpaço dequaw renta ôc íeis dias,q foy o tempo q eíle Rey Bramaa aquy maisfe deteue,do qual aquy breuemente direy pou- co,porq me parece q os curiofos fol- garão de íaber o fucceíTo q teue nefta guerra oChaubainhaa Rey de Mar- tauão. Sendo ja paífados féis meíès ôc treze diasq duraua eíle Gerco,den- tro no qual tempo a cidade foy co-

^Peregrinações de metida cinco vezes á efcala vifta do o tifouro que fora do Rey pafTa

mais de três mil efcadas, fempre os dentro a defenderão valerofamente, Sc moítrarao ferem homés de mnyto animo,mascomo o tempo & os fuc- ceíTos da guerra os foraó eonfumin- do poucos a poucos, Ôc de nenbXià parte lhes vey o focorro, & os inimi* gos erão fem comparado muytos mais cjue elles,o Chaubainhaa fe vio tão falto de tudo que fe affirmoucj não tinha em toda a cidade mais q fós cinco mil homés,porque os cen to & trinta mil q auia mais nella, eraò mortos â fome Ôc a ferro,pelo qual auido confelho no remédio que ifto podia ter, fe aflentou que tentaífe el

do,ou lhe daria por elle três contos douro, o que também lhe íoy nega- do. Pelo qual,deíefperado o Chau- bainhaa de poder ter paz nem cõ- certo algum com eíle cruel inimigo, reuoluendo no penfamento que me« yo tem para fe poder faluar de fuás mãos^em fim tomou por derradeyro remédio valeríe dos PórtugUefes,pa< recendolhe que por feu meyo pode- ria íer faluò do perigo em que fe via3 ôc mandou Cometer a Ioaò Cayeyro queíeembarcaíTede noite nas qua- tro nãos que aíy tinha,paraque o fal- uaífecom fuâmolher ôc feus filhos, & lhe daria por iflò á metade do feo

Rey o inimigo por íntereffe, o que ^tifouro, Eeíte negoCio mandou tra elle logo pos por obra,& lhe mandou1' tarcommuytofegredopor hu Pau

Cometer que leuantaífe o cerco, & q lhe daria por iílo trinta mil bicas de prata,que era hum conto de ouro, ÔC lhe ficaria tributário em feííentamil cruzados cada-anno. Ao que foy ref» pondido pelo Rey Bramaa que ne- nhum partido lhe auia de aceitar íè não fe entregafíe primeyro em feu poder. Outra vez lhe cometeo o Chaubainhaa que o deixaífe fayr em duas nãos co feu tiíouro & com fuâ molher & feus filhos, para fe pàífar ao Sornau Rey de Sião,& que lhe lar garia a cidade com tudo quanto nel- la eftiueíTe, o que também lhe não quiz conceder. Terceyra vez lhe ma dou cometer que íe retiraífe co feu campo para Tagalaa que era daly íeys legoas, paraque fc elle pudeíle fayrliuremente Cos feus, & que lhe largaria a cidade 6c o reyno com to«

lo de Seixas nattiral da vilía de Obi dos que tinha comfigo dentro na ci- dade,o qual em trajo de pegu, poí não fer corthécido,veyo ter hua noi- te à tenda onde eftaua o Ioaõ Caye) ro,& lhe deu hua carta do Chaubai- nhaa,a qual deziaãfsi. Esforçado & leal capitão dos PortUgUeíes por mei ce do grande Rey do cabo do mudo leão forte, 5c de bramido efpantofo com coroa mageftadena cafa de Sol, eu O malafortunado Chaubai nhaa príncipe que fuy, & ja não foi deita mal afortunada ÔC catiua cida de,te faço faber por palauras ditas d; minha boca na firmeza fiel de minhí Verdade,que eu me rendo deita ra para fempre por vaíTalíõ ôc fubdi todo grande Rey Pórtuguez,fenho foberáno de meus filhos ôc meu,con reconhecença de pãrias,& de tribute

ria

Fernão McndezJPiniò. 1 8 £

rico qual ordenar â fua vontade, pe- lhe diíTc que diíTeífe ò que difío en"

tendia, & íe era verdade que o tifou- ro do Chaubainhaa era tamanho co- mo tinha a fama, a que elle refpon-. deo,qne pelojuramemo que toma- tia elle não íabia de certa certeza qtia manhoo tifouro era, mas que elle vi-* ra cinco vezes por íeus olhos hua grande cafa do tamanho de hua igrei ja meam cheyá de paés, & de barras dotfroatéo telhado,em que lhe pa- recia que poderia auer carrega de duas nãos grandes,& vira mais vinte & féis caixões fechados & liados, cordas em que o Chaubainhaa lhe diííèra que eftaua o tifouro que fora do Brefagucão paífado Rey de Pe- gou, & que da quantidade do ouro lhe diíTeque eraó cento & trinta mil bicas, de quinhentos cruzados cada biça,que ao todo vinhacr á fer feffen- ta & cinco contos douro, ôc que dos paés de prata que também vira na bralla do Qujay Adocaa Deos dos trouoésnão fabia a quantidade cer- ta,mas que com feus olhos vira ta- manha copia delia, que quatro boas haos a não eígotariaó. E que també lhe mòítaara a eítatua- douro do Quiay Frigau quefe tomara em De- gumtoda cuberta de pedraria^âo^ri- ca,de tanto refplândor, & de tama- taho preço,que tinha para fy quê eni todo o mundo não auia coufa igual áella. De maneyra quedo queeíle homem declarou aly em publico pe- lo juramento que lhe deraõ, ficarão os ouuintes todos tão efpantados, cj aos mais delles pareceo fer aquillo couía impoísiuel. E mandandoo fayr

para

Icffflfete reqtieyro da fua parte que tarlft^cjue Paulo de Seixas te dér eífa minha carta, fem fazeres nenhúa de- tença te venhas logo com eífàs nãos por junto do baluarte docaezdava- rella,onde me acharas em efperã- do por ty para logo ferri mais outro coníelho me entregar etii tua verda- de com todo o tifouro que tenho co- migo de pedraria ôc Ouro,& da ame- tade delle faço íiuremente íeruiço a d Rey de Portugal, com tanto q me conceda licença que â eufta do que me fica,faça no feii reyno ou nas for- talezas da índia dous i mil Portugue- fes a que prometo de dar groííos lol- dos,para com elles me reftituyrnoq agora me he forçado largar por mi- nha grande defauentura, E quanto a ty ôc aos mais que eftáo cOntigo.qué Forem em ajuda de me eu íaluar,pro meto na de minha Verdade de partir tão largamente com todos cj ajao por muyto fatisfeitos. E porq d tempo não fofre carta mais com- prida, Paulo de Seixas por quem ta mando te certificara afsi do que vio, tomo do mais que corri elle paífey. Lida efta carta por Ióaó Cayeyro, mandou logo com grande fegredo chamar a confelho os mais honrados & de milhor nome que tinha comíi- go,& moíírandolhes a cartâ,lhes re- latou por palaura quão importante & proueitofo era ao feruiço de Deos & de el Rey noífo fenhor âceytar efte partido que o Chaubainhaa os cometia E dando íbbre iííó de no- tto juramento ao Paulo de Seixas,

'Pcrigrlnaçoes de

pata Fora da tenda fe praticou fobre a refolução defle feito,em o qual por pcccados noílos fe não tomou ne- nhúa, por auer nefta junta tantas di- uerfidades de opiniões & de parece - res3que Babylonia em leu tempo não lançou de fy mais variedades delin- goas,de que a principal caufa,iegudo fe difle, foy, a inueja de féis ou íète homens que querião prefurnir de fi- dalgos que fe acharão aly prefentes, os quais tendo para fy que fe Deos permitiífe que efte negocio focedeíTe como fe efperaua- o Ioão Cayeyro (a quem os mais não tinhão boa vó- tade) ficaria daquy tamanho no- me & tanta honra, que feria pouco, como elles defpois dezião, fazeloel Rey Marquez, ou quando menos, Gouernador da índia. De modo cj eftes miniftros do demónio, deípois de porem diante algúas impofsibili- dades, que eraõ o rebuço de fua fra- queza & mâs inclinações, &o temor que tinhaô de perderem fuás fazen-

CAT. CXUX.fô

T)a determinação q tomou oChau

bainhaa de/pois que entendeo

que não podia Jerj ocorrido

dos Tortuguefes.

Endo loaõ Cayeyro quão pouco lhe apro* ueitara toda fua dili- gencia^ que nenhum remédio tinha para ef- feicuar o que tato defejaua, eícreueo hua carta ao Chaubainhaa, em q lhe dauamuyto fracas deículpas de não fazer o que lhe pedira, & dandoaa Paulo de Seixas, o defpidioparaque fe tornaííè com a repofta, o qual fe partio logo que feria então as três ho ras defpois da meya noite. E chega- do á cidade achou o Chaubainhaa cj o eftaua efperãdo no lugar onde dif- fera na íua carta, & lhe metet) na

mão a repoíla que leuaua, o qual dei das,& de lhes o Rey Bramaa cortar ' pois que a leo,& entendeo por ella q por iíío as cabeças, fe rofumiraó em não podia fer focorrido pelos noílos.

totalmente não confenurem nefte feito^anteso defeubrirem íe Ioão Ca- yeyro iníiítiííe em leuar auante o q determinaua,que era aceytar o que o Chaubainhaa lhe cometia. A qual loaõ Cayeyro então difsimulou por lhe fer afsi forçado, porque arreceou que fe hzeíTe míTo força o defeu- briíTem ao Rey Bramaa, co- mo ja deziao,fem temor de Deos,nem ver- gonha dos ho- niens.

como fempre lhe parecera que foíTe, dizem que ficou tão fora de íyt que com a grande dor Ôc trifteza cahio em terra como morto, onde defpois de jazer algum efpaço, tornando em fy fe deu por vezes muytas bofeta- das no rofto, lamentando fua triftc (orte,&com muytas lagrimas & fuf- pirosdiífcah Portuguefes Portugue- fes,quãomalpagaítes ao defauentu- rado de mim o muyto que por muy- tas vezes tenho feito por vós, pare- cendome que em o*fazer aísi fazií

tifourc

FernaoAfendezJPinto. i8z

tifouro de vofíà amizade,paraque co por oitenta mil. PaíTados cinco dias

mjf leais me valeííeis núa tamanha neceísidade como efta cm que ago- ra me vejo,da o, uai couia eu náo cjue ria nem pretendia mais cjue vida pa- ra meus filhos, & enriquecer ovoílb Rey,& teruos comigo em minha ter- ra,de que vos todos ouuereis de fer os principaes,& prouuera a aquelle q viue reynandonafermofura de fuás eftrcllas,que merecereis vos ante elle fazerdesme efte bem, de que meus peccadós foraó o incoQueniente,por- que vos augmentareis por m\ym a fua ley,& eu me faluara nas prom.ef- íãs da fua verdade. E delpi^indo então de fy o Paulo de Seixas , com húa moça de que tinha dous filhos, lhe deu pelo acompanhar nos tra&a- lhos do cerco dous bracelletes que ti- nha nos"braços,& lhe diííè, rogote cj te náo lembre efte pouco que te dou, fenao o muyto que te fempte quiz, & qtie te náo efqueça de d,ares con- ta aos Portugueíes defta dor com cj lamento a fua ingratidão-^ qual pro- tefto de aprefentar no dia da conta de todos os mortos,& os accufar cri- memente diante de Deos. Eíte Pau- lo de Seixas tornou a vira noite íe- guinte dous filhinhos feus, & hua moçamãydelles fermofa & muyto fidalga, com a qual defpois fe cafou em Choromandet, onde vendeo os dous bracelletes q lhe dera o Chau- bainhaa por trinta & íeis mil cruza- dos,a Miguel Ferreyra, & Simão de Brito, & Pêro de Bruges lapidayro, aos quais o Trimila Raja gouerrça- dor de Nariínga os comprou defpois

defpois que eíte Paulo de Seixas ve- yo da cidade ao arrayai onde cotou todas eftas coufas que tenho dito,vé- dofe o Chaubainhaa ja de todoíem remedio,tomou confelho cos feus ío- bre eftes males & defauenturas que cada dia íe focedião húas íobre ou- tras,no qual aíTentaraó de darê a mor te a toda a coufa viua que não pudef. fe pelejar,& fazerfe de todo efte fan- guc hum facrificio ao Quiay Niuã- dei deos das batalhas do campo Vi- tau,& lançarem no mar todo o ti- íouro para que feus inimigos fe não aproueicaíTem delle,& após iflb porê fogo a toda a cidade, & os que p'u- cjeflem tomar armas íe fazerem a amoucos,& morrerem todos no capo pelejando cos Bramaas. Efte coníe- lho aprouou então o Chaubainhaa por milhor que todos, & efte fomen- te quiz que fe feguifle. E com efta determinação mandando logo def- manchar as caías ôc ajuntar muyta lenha para íè efteituar ifto aue efta- ua determinado,huns dous Capitães dos três principaes da cidade,temen- do o que ao outro dia auia de íer, fe lançarão aquella noite com quatro mil homés no arrayai do Bramaa,cu ja fugida Ôc deslealdade quebrou tã- to os ânimos aos que ficarão, q não auiaja nenhum que quifeíTe acudir aos repiques,nem vigiar as eftançias como antes fazião,masdezião todos a hua voz, que íe o Chaubainhaa íe não determinaíTe em algum concer- to co Bramaasauiáo de abrir as por- tas, porque por muyto menos mal

teriáo

tPerigríndçoh. de terlão morrer pelejando, qconfumi- tido por homem fanto, a qual de*

los aly o tempo poucos a poucos co- mo gado enfermo. A q oChaubai- nhaa,para quietar o motinrq ja fe co meçauade leuantar,refpondeo,que afsi feria como dezião,&para ifto dou fazer de nouo reííenha da gente que podia pelejar, & não fe acharão mais que íòs dous mil homés, & eflès todos jatais,& tão quebrados do a- nimoquenema molheres fracas re- íiíliriao. E chegando elle com ifto á vitima defefperaçáo, traçou efta íua defauenturacom fua molher fomen- te, porque ja nefte tempo não auia outrem com quem fe pudeíTe acon- felhar,nem que lhe fallaíTe verdade, & tomou por derradeyro remédio entregarfenas mãos de feu inimigo, á condição do que quifefle fazer del- le, & ao outro dia as feys horas da menham apareceo no muro húa ba- deyra branca em final de paz, a que logo do arrayal refponderaó com outra,& o Xemimbrum qerao me* jftre do campo mãdou hum homem a cauallo ao baluarte onde a bandey ia eftauaj&lhe diíTerão de cima que o Chaubainhaa queria mandar híía carta a ei Rey, que lhe mandalTem feguro para ííTo. O Xemimbrum lho mandou logo por dous Bramaasa cauallo, homens ambos muyto prin- cipais, o qual feguro hia nua folha douro batido em que eftaua o final dei Rey. E ficando eftes dous Bra- maas em arreies na cidade, o Chau- bainhaa lhe mandou húa carta por

ziaaísj. Pode tanto o amor dosii- Ihos nefta cafa de noíla fraqueza, que não ha nenhum de nos os que fomos pays, que por refpeito delles não deça mil vezes ao fundo lago da cafa da ferpe, quanto mais por por elíes a vida na mão de quem tanta clemência \ía com todos, pelo que aíTentey efta noite comigo &,com minha molher & filhinhos* por me tirar de opinioens contrarias a efte bem que tenho por mayor que to- dos os outros, de me entregar nas mãos de voíla alteza,paraq de mym & delles faça o que for mais fua vó- tade, & quanto ádeículpa quepof. ío*allegar por mim ante teus peis,ef- fa fenhor, quero que me não valha, para que fique mayor ante Deos o merecimento da mifericordia que ?h; íãres comigo. VoíTa alteza mande logo tomar poffe de minha peiToa, de minha molher & de meus filhi- nhos^ afsi da cidade, do tifouro, 8c de todo o reyno, porque defta hora lho ey por entregue, como a Rey 3c fenhor verdadeyro & natura], com- lhe pedir de joelhos,& proílradopor terra, que a elles & a mim imitan- do pobreza deixe acabar em reli- gião, onde procefto de chorar fem- pre com arrependimento profundo a culpa do crime paíTado, porque honras & eirados do mudo com que voiTa alteza me pode enriquecer co- mo fenhor da mayor parte da ter- ra & ilhas do mar,eu as ey todas por

hum feu como religiofo de idade ja renunciadas ante íeus peis, com lhe de oitenta annos, que entre elles era fazer de nouo perpetua menagem

&jura

Fernão

ajuramento folenne no Dcos ma- yor de todos os deoíes Ojue moue as nuuésdo Ceo com Ímpeto íuaue de máo podéroíà} de nunca em quanto viucr fayr da religião onde íenhor vofla vontade me mandar que pro- fefle, & feja em parte onde Deos queyra que tudo me falte, porqafsi esfaimado das promeílas da terra fi- que mais aceita a minha penitencia ante aquelle que tudo perdoa. Efte íànto grepo talapoy mâyor da caía dourada do fanto Quiay, que por rua autoridade ôc auftera vida leuâ poder de*minha peíToa,relatará anta íéuspéis tudo o mais que nefta lhe pudera dizer do que conuem â mi- ihaentrega,porque feguro eu na rea- lidade da lua palaura, fe quietem as ilteracoês que continuamente com- batem minha alníâ, Viftâ efta carta >elo Rey Bramaa,lhe refpóndeo lo-' 50 com outra cheya de muytas pró- neílas & juramentos que tudo o paf ado poria em eíquecimento^ Ôc que lelleproueriacom hum eftado de antas terras Ôc rendas que ficaífe :ontente,oque defpois Ihecumprió )em mal como adiante direy. Pa£ ado efte dia com grade aluoroço de odos para fe ver efta entrega j logo 10 outro pela menham o dopo dei Hey,que era a fua eftariciá, apareceo ;om oitenta & íeys tendas de cam- muyto ricas, cada hua das quais ■odeauão trinta elifantes poftos em da de duas fileyras a modo de guer- ra com feus caftellos embãdeyradoSj ik panouras nas trombas, que por to- áoseraòdous mií Ôc quinhentos ôc

MendezJPinti.

*J

oitenta,& doze mil Bramaas de ca- uallo,comjaézeâ& cubertas ricas, c] também por fua ordem fechauão to- do o dopo em quatro fileyras, ôc ep tes todos armados de coíTollettes, ôc cOuras,& fayas de malha,& com lati ças^reçados, Ôc cofos dourados; E porforadefta gente decauallo efta- uão outras quatro fileyras de gente de também de Bramaas, em que auia mais de vinte mil homés, ôc tu- do o mais que reftaua do campo.que era gente ferri conto, eftauão poftos por fua ordem em fuás capitanias muytajbma de guiões ôc bandcyras ricas,& muyta diueríidade de eftro- mentos que fe tocauão, a qual voza- 1 ria toda junta fazia tamanho eftron- do,queaíem de caufar grandifsimò terror ôc éfpanto, não auia ninguém quefepudeíTe õUuir nem entender com ella, Ê por fora de todo efte e- xercito afidaua outra grade copia de homés de cauallo, correndo de húa parte para a cuitra com fuás lanças nasmaóSiCjue cõrhlgrarides apupos ôc brados metião agente em ordem. E querendo efte Rey Bramaa por grandeza de eftado feftejar efta en- trega do Chaubainhaa, mandou que todos os capitães eftrangeyros com fua gente armada &veftfcía de feftá . íè pufeíTem em duas fileyras à modo de rua para vir por ella o Cháubai- nhaa,o que logo foy feito, Ôc efta rua íomaua desda porta da cidade até á fua tenda que feria diftaricia de dous terços de legoa, qual rua eítauão trinta & feys mil eftrarigeyro*, de quarenta Ôc duas naçoe^em que auia

Portugue*

^Peregrinações

Portuguefes, Gregos, Venezeanos, rao logo abertas. & pnmeyro que tu

Turcos Janiçarosjudeus, Arménios Tartaros,Mogores,Abexins,Raizbu tos,Nobins, Coraçones, Perfas,Tu- paraas, Gizares, Tanocos da Arábia Felix,Malauares, laos, Aches, Moés, Siames,Lufoés da ilha Borneo, Cha- eomaas, Arracoés, predins, Papuaas, Selebres,Mindanaos,Pegús,Bramâs, - ChaloésJaquefaloésSauadis^Tãgus, Calaminhãs, Chaleus, Andamoens, Bengalas, Guzarates, Anclraguirees^ Menancabos,& outros muy cos mais a que não foube os nomes. Eftas na- ções todas fe puferaó na ordem que lhe foy mandado pelo Xemimbrum meftre do campo,o qual pós os Por- tuguefes na diantcyra de todos, que era junto com a porta da cidade por onde o Chaubainhaa auia de fayr,& lo^o após elles os Arménios, & logo os ianiçaros &os Turcos,& todos os mais nos lugares que lhe a ellc bem pareceo,& com elta ordem chegaua eíta gente eftrangeyra, como ja diííe até o dopo dei Rey, onde eftaua a gente Bramaa da guardado campo.

CAT. CL

'Dequemaneyrao C^ubainhaa fe entregou ao S^ do cBramaa7 '■ & da grande afronta que os Tortugucfes alj/paffaraÔ.

Endo ja quafi a hua horadefpois do meyo dia fe tirou bua bom- barda, ao qual final as portas da cidade fo-

do começou a fayr a guarda que el Rey o dia dantes lhe mandara pór,q erao quatro mil Sioés& Bramaas,to- dos arcabuzeyros,& alabardeyros,& ptqueyros,com mais crezécos eliían- tes armados, de que era Capitão hu Bramaa no dei Rey por nome Mó. pocaíTer, Bainhaa da cipade de Me- leitayno reyno do Chaleu, Qetras deffo guarda dos elifantes dez ou do- ze paíTòs vinhaó muytos íenhores por quem el Rey o mandou receber, entre os quais vinhaó os que fe fegué, O Chircaa de Malacou, com outro apar, a que não foube o nome, eíkí ambos vinhaó em cada hum íeueli fante com jaezes & cadeyras de cha- paria douro,& col res de pedraria ac pefeoco. Logo após eftts pelamef ma ordem vinha o Bainhaa Quen doufenhor de Coímim cidade no bre do reyno Pegíi, & o Mongibraj dacoíem. E trás eftesdous vinhaó c Bainhaa Brajaa,& o Chaumalacur,â o Khay Vagarú, & o Xemim Aníe daa,& o Xemim de C,atão, & o Xe mim Guarejn filho do Moncamicai Rey do íangómáa, Ôc o Bainhaa d< Laa, Ôc Raja Sauady, ôc o Bainha; Chaque>Gouernador do reyno, & ( Dambambuu fenhor de Merguim & Raja Sauady, irmão dei Rey di Berdio,& o Bainhaa Bâíoy.;& o Coi talanhameydoo,&.o MonteodeNi grais,& Ghircaa de Goulaam, Apo eftes príncipes & outros muytos aqui não foube os nomes, vinha era dilti cia de oito ou dez paííos o Rolim d Mou.nay Talapoy de dignidade fu

prem

Fernão

prema Ibbre todos os outros íacerdo- :cs cio reyno,& tido de el Rcy em rc- niraçaó de homem fanto, eik vi- tíía junto do Chaubainhaa como ttdrinho & terceyro entre elle & el Icv.ck logo trás elle em três palan- pis vinha a Nhay Canatoo filha cj ora do Rey de Pegú paílàdo, a qué ih Bramaa tomara o reyno,& mo- hcr do Chaubainhaa com quatro fi- hinhos feus.dous machos & duas fe- |èfts,de quatro até fete annos de i- iade^ck ao redor deftes palanquis vi- iháo trinta ou quarenta molheres locas fidalgas muyto fermoias cos oitos b.iixoa chorando, & muyto a- femadas, encoíladas todas em cu- ra, molheres que as fuílentauão. Ef- %s todas vínhão cerradas em roda de fam fiode talagrepos, que entre el- ís fàõ como capuchos, honoés todos ide dias, os quais defcalços, & com Scabeças deicubertas hiáo rezando ©rcomas,&;esíorcandoeh:asfenho- as, &acudindolhes com agoa quã- ,o efrooreciã© que era muytas vezes, iqual espectáculo era tão piadofo q ão auia homem que nãopaímaíTe tedor &triíkza. Logo após eífadef bnfolada companhia vinha outra ,uard a de gente de pé, & na reçaga e tudo vinhão obra de quinhentos p&másde cauallo3A peíToa doChau •ainhaa vinha em hua encanta pe- iem final de pobreza & deíV >rezo do mundo cõforme â religião m que nouamente queria entrar, bm mais outro nenhum fauílo, ve- Hdo'por em hua cabaya de velu- io preto muyto compndaj& rapado

zTMcndczTinto. 1 S-f

de nouo de cabeça, barba, & íobran- celhas, & ao pelcoço hua corda de cayro muyto velha, para afsi com eh la íeentrco-arael Rev,noa!peito do rolto vinha tão triiteq não auia que olhaííepara elle que pudeíTc ter as lagrimas,era de idade de íèílènta ôc dous annos, grande de corpo ôc bem ^.(íombrado, os olhos cançadoi & tri- íles,afi!onornia graue & feuêra, &o peito deprincipe generoío, o qual tanto que chegou ao 'terreyro de dê- tro da porca daclda Je,onde ó eíláua elpendo todbo pouo de rfiolheres, & crianças & algus iiomésvcIho?,eoi o vendo da nianey ra que vi:. ores que iaiíie fora deraõ todos hua ta- mAn.ha grita por Jêys ou fete vezes q parecia que fe fundia a terra, & após líío lamentações com grandes vozes & prantos , |& bofetadas nos roftros, ferindoífe com pedras nas cabeças ta- ro íèm piedade que os mays dèílés Te banhauão no feu próprio langue , de modo que a horribilidade Ôc a laftfc- ma do que aly í? via , & ouuia caufa- ua tamanha triíteza em toda agente, que até os mefmos Bramaas da guar. da,gente inimiga,& por natureza ro- buftajchorauão como crianças, Aq-y nefte paíTo efmoreceo a -Nhay Ca- natoo molher do Chaubainhaa por duas vezes com teclas as mais de que hia cercada, pelo que foy neceíTario decerennoaelle da ehfanta em que hia para a confolar ôc animar, o qual era a vendo deitada no chão como morta abraça-da com todos osíeus quatro filhinhos, pos os joelhos am- bos em terra, & leuantando os olhosv

Teregútiãçoes de

ao Ceo diíse com muytas lagrimas: O Chaubainhaa em pando os olho»

nelíe que o conheceOjVoltando o ro,

ílofe deixou cayr debruçado íobre(

pefcoço da elephãta,& não queréd<

paíUí- adiante diíTe com as lagrima

nos olhos aos de que hia cercadovve

dacleyramente vos affírmo irmãos 8

amigos meus, que por menos dor 8

afronta tenho fazer de mim eíle fa

crificioque Deos permitio por fu;

jnfí:iça,que ver diante de meus olho

gente tão ingrata,& tão ma como ei

ta,ou me matem aquy, ou os tiren

daly, porque não ey de paííar mai

adiante, E com iílo fe virou para tra

por nos não ver, & por moíirar quã'

magoado hia de nós, o que be olha

do,quiçáquelhe não faltou razac

pelo que atras fica dito. O capitão d

guarda vendo a detença que o Cha

bainhaa fazia, & a razão porque

queria paííar adiante, & não fe fabé

do determinar nacauía porque eli

fe queixaua dos Portuguefes,voho

muyto rijonoelephanteemq andí

ua fobre íoaõ Cayeyro,. & lhe diíl

defpeja logo o caminho, porque

he licito que gente tão como vc

outros trilhe a terra que pode d;

fruiro,& perdoe Deos a quem mete

em cabeça a el Rey que podíeis pr

ftar para algúa couía,rapay as barb;

porque fe não engane a gente coi

vofco, & feruirnoseys de molhe?

por noílb dinheyrò, E começando

os Bramaas da guarda a fe encreíp

rem contra nós, meyos arremang

dos,nos lançarão daly fora com a

faz de afronta & vitupério noíío,

em verdade affírmo que foy a cou

4l

ò alta potencia do diuino Deos todo poderofo^uem poderá comprender o jufto juizo da tua diuina juíliça, q não tendo refpeito á innocencia -de- ites que nunca peccaraõ, das lugar â tua ira que pafse adiante daquilio aq nofso entendimento não pode che- gar,porem Senhor Senhor meu lem- brete quem ès,& não quem eu íòu,& com ifto cahio no chaó de fucinhos junto com fua molher, o que cauíòu de nouo em todo aquelle ajuntame- to,que era fem conto, outro tão hor- ribel pranto, que não fey formar pa- lauras com que declare a grandeza delle.^Jàprem tornando' o Chaubai- nhaa em fy pedio agoa com que bor rifou fua molher, 8c a fez tornar em feu acordar,& tomandoa nos braços a efteue coníolando kum bom efpa- çocom palaurasnâode Gentio que era,mas de homem Catholico, & be entendido, E defpois de fe gaitar ni- ílo quaíi meya hora,o tornarão apor naelephátat&profeguiraõ pela mef- ma ordem que trazião o feu triíle ca- minho. Tanto que el Rey fahio fora da porta & abocou pela rua que efta- ua feita dos eftrangeyros,lenantando os olhos,itida que hia naquelle efta- dojepxergou na entrada delia os íe- tecentos Portuguefes todos vertidos defefta,com fuás couras cortadas, & gorras nas cabeças concertadas com íiias plumas, Sc todos com feus arca- buzes asco ftas, & íoaõ Cayeyro no meyo delles veftido de citim crame- fim com hum motante dourado nas mãos fazendo preparar o caminho.

Fernão

q mais fenty em minha vida,por ho- ra dos meus naturais- feito ifto, con- tinuou o Chaubainhaaíèu caminho até q chegarão a tenda dei Rey, que cílaua efperãdooChaubainhaa com aparato rcal,acópanhado de muytos iènhores,em q entrauão quinze Bai- nhaas q iaó como duques, & outros íeis ou íete de títulos inda mayores & mais honrados q eftes,o Chaubai- nhaa em chegando a elle fe lhe lacou aos peis,& proftrado no chão efteue como paímado fem poder pronun- ciar palaura nenbúa,aquy lhe acudio \ o Rolim de Mounay q hia junto elle, &como era religiofo falou por elle a el Rey dizendo,vifta he fenhor efta,para o teu coração íe mouera piedade, inda que o crime feja qual he,& lembrete que o offício mais a- ceito a Deos, & a que fe elle mais in- clina com eíFeitos de mifericordia,he efte que agora tês diante de ty, por- que imitandoo nefta clemência que os coraçoens de todos eftão defejan- do,inda que paraifíb não abrão léus beiços,entende & crè por certo que te ficara Deos por iííò tão obrigado, que quando na» hora da morte olhar para ty,eftenderâ íua mão poderofa lobre tua cabeç^para que de todo fi- ques fem culpa. E após eftas lhe difle outras muytas palauras q moueraó cl Rey a lhe perdoar liuremente, & ,afsi lho prometeo,de que o Rolim & todos os mais ienhores q eftauão pre- fentes moftrarão muyto gofto & lho louuaraò muyto parecendolhes que afsi o faria como o prometera dian- te de todos. E porque defte tempo

<£Adende%T!nto. i g?

era ja quafí noite os defpidio,& o tr1- fte do Chaubamhaa foy entregue a hum capitão Bramaa por nome o Xemim Coumidau, & íua molher & filhos com todas as mais molhe- resao Xemim Aníídaa por teraly íua molher,& fer hõrado & velho, õc de quem* o Rey Bramaa fe íiaua muyto.

CAT. CLL

Como a cidade de Martauao foy

jaqueada^çj» deshuyda-> & da or+

dem com que leuarao a padecer

a~Raynha & outras muy-

tas molheres,

Or fer ja quaíi noite quando íc acabou de fazer efta entrega,temé dofe el Rey q a gente do campo cntraíle na cidade a tomar o faço delia para íy, mandou pòr em todas as portas del- ia q eraó vinte &quatro,capitaes Bra maas que as guardaílem, & com pe- na graue que não confentiíTem pefc foa nenhua entrar delias para den- tro, até elle não prouer niífo con- forme a prometia que tinha feito á gente eftrangeyra,a quem tinha pro- metido de dar campo franco. Mas efta fua diligencia não foy tanto por efte reípeito que elle dezia,quari to por faluar primeyro o tifouro do Chaubainhaa, E por efta caufa efteue dous dias fem tratar do nego- cio doscatiuosque tinha em leupo- der,que foy o tempo que baftou parg.

A A elfe

*Perigrinaçoh de

elle por em cobro t;odo o tifouro, o ptuoíòs tépjos de edifício^ obra ri

qual dezião que fora tal,que mil ho- més tiueraò bem que fazer em o re- colherem. PaíTados eftes dous dias fe foy el Rey por húa menham fobre hum outeyro qfie íe chamaua Bei- dao,que eftaua dous tiros de Falcão, & mandando recolher os fcapitaens que guardauão as portas, a trifte ci^ dade de Martauáo foy entregue á gente do campo, a qual ao tiro de

quifsima íè affirmou por dito de muytos q paliara de dez contos de ouro,& não cõtence inda ifto mã- dou por fogo por mais de cem partes ao que ficara em pé, o qual, por fer em conjunção de vento fe ateou com tãto impeto,que ío naquella primey- ra noite não ficou coufa q não foíTe abrafada de tal maneyra, que ate os meímos muros torres,baluartes,&

húa bombarda que era o final derra- > cubellos,arderão em partes até os ali deyro,arremeteo tão dènodadamé- ' ceces. E feita afsi a efmo a aualíaçaõ

te a elía, que ao entrar das portas íe difle q fe afogarão mais de trezentas peílòas, porque como a gente era in- finita, & de nações muyto differen- tes, & os mais delles fem Rey, fem ley,& fem temor nem conhecimen- to de Deos,andauão todos tão cegos & encarniçados na prefa, que o que menos aquy fe eílimaua era mataré certí homés por hum cruzado, em tanto que por feys ou fete vezes foy neceííario acudir el Rey em peíToa a quietar a reuolta & tumulto que auia na cidade, O faço delia durou três dias ôc meyo com tanta fede,cu« bica, ôc crueldade daquelles feros ôc inimigos foldados, que de todo fi- cou defpojada, fem ficar coufa nel- la em que fe pudeífem pòr os olhos. El Rey,com húa noua cerimonia de pregoes com tròbetas, mandou der- rubar as cafas do Chaubainhaa, que crao muyto nobres Ôc muyto ricas, & outras trinta ou quaréta mais, que eràó dos principaes capitães, com to- das as varellas, pagodes, & brallas de toda a cidade,onde a perda dos fum-

ôc a lifta deita defauenturada vingã- ça,fe diííe que morrerão a fome,& a ferro cento Ôc feíTenta mil peíToas, a fora quaíi outras tantas catiuas,& fo* raò queimadas cento & quarenta mil cafas,& mil & feifcécos templos, nos quais dizem que arderão feíTenta mil eftatuas de idolos,a mayor parte del- ias cozidas em ouro,& três mil elifá- tes q fe comerão no cerco, Ôc feys mil peças de artilharia de ferro ôc debro zo, Ôc cem mil quintais de pimenta] ôc quaíi outros tantos de drogas, fandalo, beijoim, lacre, pucho, ro- çamalha, aguila , cânfora , feda , & outras muytas fortes de fazenda? muyto ricas , ôc fobre tudo infi- nidade de roupas que de todas as partes da índia aly tinhão vindú em mais de cem nãos de Cam- bava, Aachem , Melinde, Ceilão, Ôc de todo o eftreyto de Meca,Le- -quios, ôc China. E da prata, ôc ou- ro, & pedraria fe não pode fabera certeza, por fer coufa que geralmen- te fe encobre ôc fe nega, fomente o que efte Rey Bramaa tomou paraify

em fo-

Fernão Mcnde^ Tinto.

iSá

em folido do tifouro do Chaubai- nhaa fcaffirmou que pafíara de contos douro,dos quais,como fica dito atras, el Rey noflò Senhor per- jcoa metade por noíTos peccados, ik quiçá pela fraqueza ou inueja de mimos mal intencionados. Logo ao Dutrodiafeguinte deípois que a ci- dade foy faqueada,deíi:ruyda, abra- Fada, cVpofta por cerra, aparecerão húa menham íobre o mefmo outey- ro onde el Rey eftiuera vinte ôc húa Forcas,as vinte todas de hum teor, Ôc a outra mais peqnenaarmada lobré pilares de pedra,& fechada em roda com grades de pao preto, & por ci- ma hum guardapò grimpas dou- radas,&cemBramaasde cauallo q a guardauao, ôc por fora húa cerca de vallosmuyto largos com muytas bã- deyras pretas falpicadas de gotas de íangue. E como efta nouidade pro- metia de íy o q até então ninguéen- tédeo,nos determinamos feysPortu- guefes a yrmos ver o q era,& defpois de andarmos vedo todas eftas orrici- nas de morte, ouuímos no arrayal grande rumor em toda a gente, que algum tanto nos meteo em cõfulaõ, & fem podermos acabar de cayr no q aquillo podia fer, vimos vir da ef- tancia onde el Rey eftaua húa grade íòma de homes a cauallo, que com lanças nas mãos preparauão húa gra- de rua,& dezião em altas vozes, q ío pena de morte ningué apareceíTe armas,nem lançaííe pela boca o con- ceyto do feu coração, Afaftado deites miniftros hum grande elpaço vinha o Xemim brum meftre do campo,có

cem difames armados, & multa gen- te de pè. Após eftes vinhaõ mil ôc quinhentos Bramaas decauallo,pof- tos em quatro ordens de fíleyra?,de feys em íeys a fileyra , dos quais era capitão o Talanbagibray Viforrey do Tãgú. Detrás deftes vinha o Chau ferooSiammomcó três mil Siamês d,e efpingardas Ôc lanças todos jun- tos nua pinha, Ôc no meyo delles vi- nha húa grade copia de molheres, q fegúdo feahy difte,erão céto Ôc qua-« réta^atadas todas de quatro em qua- tro,acõpanhadas de talagrepos de au itera vida, que íaó como entrenós frades capuchos,que as vinhaó esfor çando naquelle trance da morte que auião então de padecer. Trás eftas, cercada de doze porteyroscõ maças de prata, vinha a Nhay Canatoo fi- lha do Rey de Pegu aq eftetyranno Brama tinha tomado o reyno,& mo- lher do Chaubainhaa co quatro cria ças flíhos feus,q homés a cauallo tra- zião nos braços, ôc todas a cento & quareta padecétes eraó molheres ôc filhas dos principaes Capitães que o Chaubainhaa tiuera comíigo na\;i- dade,nas quais efle tyranno Bramaa a modo de vingança quiz executar lua ira, & a ma inclinação q fempre teue cótra as molheres. Todas eftas padecentes, ou a mayor parte delias erao de idade de dezafíete até 25. annos, ôc todas muyto aluas,&muy- to fermofas, cos cabellos como ma- deixas douro,as quais hiãò taó fracas ôc tão fora de fy que a cada pregão q ouuião cahião eímorecidas é terra, a q outras molheres queasleuauão A A z fobia-

fobraçâdasacudião com esforços de couíàs doces, de q astriftes fazião pouco caíb,porq nefte tépo hiaotaò treípaííadas que quaíi não acudião aoqostalagreposlbe hião dizendo, mais que íomentealgúas vezes, inda c]uepoucas,aleuantaremas mãos ao Cto, Logo após eftaprincefa vmhão em duas fíleyras, feíTcnta grepos re- zando por liuros,cos roftos baixos & chorando muytas lagrimas, os quais de quando em quando com voz en* toada a modode ladainha deziãoitu que porty tés o ferde quem csjufti- fica em ty noíTas obras, paraque fe- jão aceitas tua juftiça, a que ou- tros refpondiãochdrando,aísi te pra- za Senhor queíeja, porque não per- camos por nós os ricos does das tuas promeflas. Trás eftes grepos hia húa prociííaô de mais de trezentos mini- nos,nus da cinta para baixo,com vel- las de cera branca nas mãos,& cordas de cairo aos pefcoçoâ, que em outra ladaynha muy ta ícntida hião dizen- do, piadofo Senhor, ouue a voz do nofíò clamor, & concede perdão a e- fta%tna$catiua$,porque fe gozem jnfo alegre nas mercês dos teus ricos tifourosj & aísi a efte modo hião di- zendo outras couías femelh antes a eftas em fauor das padecentes. De- trás defía prociííaô vinha outra guar- da de gente de também de Bra- maas, com lanças & frechâs,& algúas com arcabuzes. E por derradeyro de tudo hião outros cem elifantesda guarda como os que hião na dian- teyra. De modo que a gente que fe ©ccupaua afsi no miniílet io>como nã^

^Peregrinações de

guarda Sc aparato defta juftiça, era dez mil homés de pè, & dous mil d cauallo;& duzentos elifantes, a fora gente do pouo que não tinha conte afsi de naturais, como de eftrangej ros.

CJ<P. QUl

T>e que maneyrafe executou ap,

Bica nas cento ç> quarenta pade

centesjao Cbaubainhaa^na 3\(ba

(^anatOQ, & nos J eus qua-

trofilhinbos.

[jEfta ordem foy cam: | nhando efta trifte gen j| te pelo meyo do arra Ê yal para o lugar ond todos auião de pade cer, ao qual chegarão com aflàz d trabalhojporque como eraó molhe res fracas de animo, & de fprças,& a mais delias moças & muyto delicí das,a cada pado efmorecião, 8c che gadas em fim onde eftas vinte 8c hu forcas eftauão,osfeys portèyros qu hião a cauallo, tornarão de nouo lançar o feu pregão, dizendo em vc Zes muyto altas, ouçao 8c vejão a gentes do mundo a criminofa jufti ça quê manda fazer o Deos viuo Se nhor da verdade Rey íbberano da noíTas cabeçaSj que quer 8c lhe pra que morrão todas eftas cento 8c qua renta molheres entregues ao elemeri to do ar, porque por feU confelb' feus maridos 8c pays fe leuãtaraò ci efta cidade,& matarão por vezes nel

la doz

Fernão Mende^Pinto. 3g~

a doze mil Bramais do reyno Tan- go portas nas vinte forcas, fere em

uni. E tocando hum fino,toda a tur ximulta deftes miniftros, & gente de guarda dana híía tamanha gritaque ;racoufa medonha de ouuir,&muy- :opara temer. Querendo oscrueys itgozes dar effeito a aquella ritfuro- a juítiça,as miferaueis padecentes lílaz de lagrimas fe abraçarão húas :omas outras, Ôc pondo todas os o- hos na Nhay Canatoo que a efte té- )o eftaua como morta encoftada no ;ollode hua molher velha, lhe fize- :ao as mais delias fuás çumbayas, & lua delias como que fallaua em no-* me das mais fracas que o náo podião azer^lhedilíe, Senhora, capeíla de :oías de noíTas cabeças, ja que por :uascatiuas nos embarcamos cornei- to neftas tiiftes cafas da morte, con- òlanos com a vifta da tua preíença, )araque partamos menos dor de- la carne^penofa averojuftoíuiz da não poderofa; diante do qualpro- eftamoscom lagrimas requerer tua uftiça vingança perpetua da fem razão defte crime. A Nhay Canatoo olhando para elías com rofto de morta,lhe refpondeo com húa falia :ão fraca que a penas fe podia ouuir, biche hocão finarato quiay vanzi- lau maforem hotapir, que quer di- ser,não vos partais irmãs mi nhãs, & ijudarmeeys a leuar eit.es filhos: & :om ifto tornou a encoftar a cabeça íio collo da molher, fem fallar mais outra palaura. E começando os mi- niftros do braço da ira (que afsi cha- mão os algozes) a fazer feu officio nas pobres molheresjforaõ todas lo-

cada híía atadas pelos peis, &as ca- beças para baixo, as quais dando grandes eftalejaduras, como que ti- nhao a morte penofa, o fangue as a- fagou a todas em menos de hua ho- ra. Os de cauallo fízerão então de nouo afaftar a gente, que era tanta quenáoauia quem pudeífe romper por ella, Ôc a Nhay Canatoo foy trazida pelas quatro molheres em que vinha encoftada , â forca onde auia de fer porta cos feus quatro fi- lhinhos, ôc dizendolhe o Rolim de Mounay, que entre elles era tido em reputação de fanto , alguas palauras com que a esforçou, pedio ella que lhe deflem hua pouca dagoa, a qual lhe trouxeraó logo , ôc tomandoa na boca a repartio cos quatro filhinhos que então tinha nos braços, Ôc bei- jandoos muy tas vezes lhes diííe cho- rando : O filhinhos filhinhos meus, gerados agora de nouo no interior de minha alma, quem fora taó bem- auenturada que pudera remir vof- fas vidas a troco de poriftb meda- rem mil mortes, eu vos certifico por erta hora de temor & trifteza em que vos eu vejo, ôc todos me vem, que afsi o aceitara da mão d efte fra- co inimigo, como Ver aprefençado alto Senhor no defeanço da fua ceie- fte morada. E pondo os olhos noal- goz,que ja a efte tépo tinha atados os dous dos mininos,lhe diííe, rogote migo meu q não fejas tão defpíadofo q queiras q veja eu a morte a meus filhos , porque pecaras grauemen- te,mas dama a mym ptimeyro, ôc f& A A 3 cartee w

Peregrinações de carteey ckuendo efta efmo!a,quc por mefma noite no mar com hua pedr,

Deos te peço. E tornando de nouo a tomar os filhinhos nos braços, def- pois de lhe dar muytos beijos nos ro- ftos como que íe defpidia delles, ef- pirou no collo da molher fem bulir mais comíigo,a -cj o algoz acudio muyta preíía, ôc a pindurou na forca da maneyra das outras, o q também fez aos quatro filhinhos, pondolhe dous de cada parte, de maneyra q a triftçda may ficaua no meyo. Ao quallaftimofo&cruellifsimo efpec- taculo fe leuantou em todo o pouo hum tamanho tumulto de gritos ôc vozes q a terra tremia debaixo dos peis,& no campo fe aleuantou hum motim com q elle efteue tão reuolto & baralhado, q a el Rey lhe foy ne- cefTariofazerfe forte na fua eftancia íeis mil Bramas de cauallo & trin- ta mil de pé,& ainda afsi eftaua bem cheyo de medo do q fépre arreceou que ouueíTc, como ouuera de íer fe a noite o não eftoruara,porq não auia couíà que baftaííe a quietar a gente, porq dos fetecentos mil homés q auia no arrayaljos feifcentos mil eraò pe« gús,decujo Rey aqueila Raynha fo- ra filha^mas traziaos efte Bramaa tão fogigados & tão cortados do ferro, que não oufauão de leuantar os o- lhos. E deita maneyra, com taõ bai- xo &afrontoío género de morte a- cabou e&a Muhee Canatoo,filha dei Rey de Peguu Emperador de noue reyncs, ôc molher do Chaubainhaa Rey de Martauão, princefa de três contos douro de renda. Eofemuen- tura de ieu mando ioy lançado eíTa

ao pefcoçOjCÕ mais outros cinquen taou íeílentavalTallos feus,em qu entrarão algús fenhorcs de trinta 2 quarenta mil cruzados de réda,payí maridos & irmãos das cento 6c qua rentamolheresque tanto femculp receberão hua tão cruel & tão afron tofa morte, no conto das quais en traraó três criadas deita princefa qu o Rey Bramaa fendo conde manda ra requerer de cafamento, de cjue el las nem íeus pays então quiferaõ fa zer conta,mas faó fucceíTos da fornj na, ôc do têpo que fempte cuftuma raó trazer comíigo eftas variedades

CAT. CLlll

T>a defauentura que me acontece

em Martauão, c> do que o í^g

^Bramaafe^ defpois que chegou

a Teguu.

$\ Oue dias fe deteue ; quy o tyrannoBrama defpois que fez efta r gurofajuftiça, cm c; da hu dos quais ferr pre fezjuftiçasnouas na gente da c dade^ E no fim deite tempo fe pai tio para Peguu, Ôc deixou aly o Ba nhaa Chaque feu mordomo mòr p; ra aíTentar alguas coufas necefíari; á quietação do reyno, & tornar a £ zer de nouo o que o fogo confum ta, para o qual lhe deixou guarniçá baftante,&leuou comfigo tudo o

reftau

Fernão Mende^ Tinto. j g g"

eftatia do exercito,em que leuou ta- muyta gente contra o Rey *do Bra-

bem ò loaõcayeyro cos fetccentos Portuguefes , fem ficarem aly delles mais que fo os três ou quatro,homcs de pouca fuítancia. A fora cites ficou també outro por nome Gonçallo fal- cão,homem fidalgo & de fatigue, o qual antre os gentios fe chamaua Crifna pacau,que quer dizer flor das flores,nome antre elles honroío, que o Rey doBramâlhedcra em fatisfa- çaò de feruiço. E porque Però de Fa- ria quando party de Malaca me de- ra hua carta para elle,em que lhe pe- dia que fe la me foíTe neceííario o feu fauor para o negocio a que me man- dauamonãonegaíTe,afsiporíèr fer- uiço dei Rey, como por lhe fazer a «llemçroe, tanto q cheguey a Mar- tauão,ondeo achey de morada, lhe dey a carta,& lhe difle també o aque hia,q era cófirmar as pazes antigas q o Chaubainhaa por feus embaixado- ra fizera com Malaca quando Pêro Fana da outra vez fora capitão dei la,do qual tinha muy to conhecimen- to,^: que para iíTb lhe trazia húa car- ta de grande amizade, com hum pre fente de pechas ricas da China, Efte Gonçalo Falcão quiçá parecendolhe que per aquy fe confirmaria na gra- ça do Rey do Bramaa, para quem no cerco fe tinha paíTado, deixando o Chaubainhaa a quem antes íer- uia, paliados fós três dias depois da partida dei Rey íe foy a efte íeu Go- uernador,& lfiediíTe queeraeualy vindo com hua embaixada do Ca- pitão de Malaca para o Chanbai- nhaa,em quelhe mandauaofFerecer

maa,porqucm aterra então eftaua, para fazer fortaleza em Marrauâo,&: lançar os Bramaas fora do reyno, &■ outras tantas coufasa eíle modo, que o Gouernador me mandou logo pré- der,& defpois de me ter pofto a bom recado, fe foy ao junco em que en ti- nha vindo de Malaca,^ lançou mão porellecom todaa fazenda que ti- nha dentro,que valeria mais de cem mil cruzados, & prendeo oNecodá capitão & ienhorio do junco com to- dos os mais que achou nelle, q foraó cento & feflenta ôc quatro peíTba?, em que encrauão quarenta mercado- res rico?' Maiayos & Menancabos, Mouros& Gétios naturais de Malaca, os quais logo aísi em breue foraó fen tenciados na perda das fazendas,& cj ficaíTem fcatiuos dei Rey afsi como eu,por fere cònfentidores & encubri- dores da traição q o Capitão de Ma- laca trataua em fe^redo co Chaubai nhaacõtraeJ Rey doBr^maa.E ma- dãdoos meter a todos nua mazmor- ra,lhe mãdoudar muytosáçoutes,de maneyra q em obra de mes q efti- ueraó preíos,morreraó dos cento 8c feíFenca & quatro, ao defemparo 8c de modorra,& á fome & âfede, céto & dezanoue,& aos quarenta & cinco q ficarão, mandou meter nua cham- pana fem vella nem remos,& lança- los pelo rio abaixo; os quais afsi en- tregues ao arbítrio da fortuna forao dar núa ilha defpouoada que fe de- zia Pullo Camude, vinte legoasao mar delta barra, onde fe fornecerão de algum mantimento de marifeo, A A 4 & fruy-»

Terigrinaçoei de

&fruytas do mato, & engenharão canudos de lacre, de que aiy fiqiiey

húa vella dos pannos que traziao ve- rtidos^ com hum par de remos que aly ou acharão feitos, ou ordenarão, fizerão feu caminho ao longo da co- ita até lunçalão, & dahy em outro poufo, em quegaftaraó dous mefes, forãoter ao rio de Parles no reyno de Quedaa,onde a mayor parte del- les fe confumio de húas poftemas na gargãta a maney ra de nacidas de pe- íle,de que a Malaca não foraó ter vi- uos mais que íos dous, que contarão a. Pêro de Faria todo o fucceííb deita trifte viagem , & como o pobre de mym ficaua ja fentenciado â morte como na verdade ficaua, da qual nof fo Senhor me liurou milagrofamen* te, porque defpoisque oNecodá& çs mercadores foraó deíkrrados pe- la maneyra que tenho duo, me paf- farão logo a outra prifaó mais aper- tada,na qual me tiueraó trinta & íeis dias carregado de ferros com affaz de afpereza & crueldade. E procedé- do efte perro contra mim ordinaria- mente com feus libellos,me veyo do nelles mtiy tos aleyues nunca cuy- dados,fóafim de me matar, & de me roubar, como fizera a todos os outros que vierão no júco}& me fez em juizo preguntas por três vezes em pnblico,a que eu nunca refpódi cou- ía que foíTe a propofico, de que elle com todos os mais que eftauão pre~ fentes fe meterão em muyta cólera, ôc difleraò que eu o fazia poríober- ba,&por defprezo da juftiça, pelo qual logo aly em publico me deraó jnuvtos acoutes ôc pingos de fogo

quafi morto de todo,& afsi eftiue ef- paçode mais vinte dias em que nin- guém me julgou a vida. E dizendo eualgúas vezes que por me roubare minha fazenda me aíTacauão todos aquelles falfos teftemunhos,mas que o capitão íoão Cayeyro que eftaua em Pegú daria conta diffo a el Rey muyto cedo, por iftoqueeu a cafo diíTe como defefperado, & fem fa* beroquedezia, permitio noífo Se- nhor que fofle hurc da morte, Porq eftando efte perro para dar â exe- cução a fentença q ue tinha dada con- tra mim,lhe foraó algús feus amigos â mão. aconíelhandoo que o não fi- zeíTe,porqueíeme mataíTe, os Por* tuguefes todos em Pegú fe auião de queixar delle a el Rey, ôc dizerlheq por me roubar cem mil cruzados q trouxera do capitão de Malaca me condenara á morte,& ma dera,& que eftaua claro que el Rey lheauiade pedir conta de toda efta contia,&q ainda que na verdade-entregaíTe tu- do o que me tinha tomado fe não a- uia de auer por fatisfeito, parecendo- lhe que era muyto mais,pelo que po- dia daquy ficar em tanto deferedito com el Rey que nunca mais entrafc íe em ília graça,& ficarião feus filhos de todo perdidos com abatimento & deshonra muyto grande, O perro do Gouernador Bainhaa Chaque,ar- receando que pudefle fer ifto aísi,dei xou de yr com fua teima adiante, & proceílãndodenouo fobrea fenten- ça que tinha dado,fahio que me ab- íoluia da pena da morte, mas que

perde/Tc

perde/Te a fazenda, & ficaífe catiuo dei Rey,& tãto que fuy íaó das eh a- .gas que me fizeraó os açoutes ôc os pingos, me leuarão em ferros a Pe- gú,ondc como catiuo fuy entregue a hum Bramaa tifoureyro dei Rey por nome Dioforay, que em fua có- panhia tinha oito Portuguefes, que também por infortúnios nacidosde peccados como os meus,já la eftauao auia íeis mefes .os quais foraóde húa nao de dom Anrique Deca d e Cana- nor, que com tempo fora aly dar â coita. E ja queatequy tratey do fuc- ceifo da minha viagem a Martauão, & do proueito que delia me refultou por feruiço dei Rey noíTo Senhor, q foy,porfim de tantos trabalhos rou- baremme minha fazenda,& ficar ca- tiuo,antes que paífe mais adiãte de- termino de tratar oquepaíTeymais neftes reynos no difcurfo de dous an- nos & meyo, que foy o tépo do meu catiueyro,& das terras por onde, por caufa de trabalhos & infortúnios que por mim paíTaraó,andey peregrina- do, porque afsi me pareceo que era neceífario para declaração do q vou continuando. Partido efte Rey Bra- maa da cidade de Martauão, como atras fica dito, caminhou tanto por fuás jornadas que chegou a Pe- gu, onde antes de defpidir (eus capi- tães fez reíTenha da gente que tinha, & r'hou que dosfetecentos mil ho- més que cercara o Chaubainhaa trazia meros oitenta & féis mil. E porque janefte tempo tinha atoar- das que o Rey do Auaa,cònfederado cos Sauadijs,& Chaleus daua entrada

Fernão Mende? Tinto.

ao Siammon (que pelo fcrtão deftes reynos confina a Loefte &a Loesnor- oefteco Calaminhan Emperadorda força bruta dos elifantes da tena.co- mo adiante declararey quando tratar delle)para que tomaífe as fortalezas do reyno Tanguu a efte Bramaa, el- lecomo bom capitão & muy to pra- tico ôc aftuto nas coufas da guerra, mandou logo primeyro que tudo prouer bem de gente & de todo o nece/Iàrio as principaes quatro for- ças que tinha, ôc de que mais fe arre-, ceaua. E determinando de yr febre a cidade do Prom, fez deter o exerci- to que tinha junto, ôc fez de nouo grandes apercebimentos por todo o reyno,& em cinco mefes ajuntou ate nouecentos mil homes,com os quais partio da cidade de Bagou,a q o vul- gar chama Peguu, embarcados em doze mil embarcaçoens de remordas quais as duas mil erao feroos, lau- lees,catures, Ôc fuftas. E partida efta frota anouedias do mes de Março do annode 1545. pelo rio de Anfe- fedaa acima,foy ter a Danapluu, on- de fe efteue reformado de algus mã- ti mentos de que hia falta. E feguin- do daquy fua derrota por hum gran de rio de agoadocede mais dei legoa em largo, que fedeziaPid malacou, íurgio á vifta do Prom a treze de Abril,& por efpias q âquélia noite fe tomarão teue por nouas cue o Rey era morto,& que por fua mor- te lhe focedera no reyno hum feu fi- lho moço de treze annos,oqual,'feu pay,antes que morreffe, cafara com húa fua cunhada irmam de Tua mo?-

CAT. CLlllL

T>o quepajfou entre a Ifyynha do <Prom7&> o T{ej TSramaa, & do primejro ajfaltoquefe deu a ci- dade, & ofuccefio delle.>

^Perigríndcoês de

Iher, & tia do mefmo moço, & filha doReydoAuaa;& efta fabendo da vinda do Bramaa fobre e/la íua cida dedoProm,mandara logo pedir fo- corro a el Rey (eu pay,o qual fe affir- maua que mandaua hum feu filho ir- mão da Raynha, húa armada em q vinhãofeíféta mil Moés,&Tarees, & Chalés,gente efcolfoida, & muyto determinada na guerra, com a qual nouao Rey Bramaa fe deu muyta preíTa, determinando de tomar a ci- dade antes que o focorro vieífe, Ôc deíembarcandoem hum campo que íe dezia Meigauotau, duas legoas a- baixo da cidade, feefteue nelle pre- parando de tildo o que lhe era ne- ceíTario por efpaço de cinco dias. E deípois de dar ordem ao que Te auia de fazer,abalou daly hum dia antes que amanhecefTe, & marchando ao íom de infinidade de tambores & pí- faros de guerra, chegou à cidade as onze horas do dia, (em até então a- char contradição algúa, onde come- çou logo de aíTentar o campo por íua ordem cuftumada,& antes de fer noite ficou todo fechado em roda com trincheyras Ôc vallos muyto for- tes,& com féis eíiancias de artilharia.

Vendo cinco dias q eíle Rey Bramaa a- quy era chegado, a Raynha cercada,q era a que gouernaua por feu marido,o mãdou viíitar com híí rico prefente de peças douro & pedra ria por hum talagrepo religiofo de mais de cem annos,& tido entre elles por home fanto, pelo qual lhe efe re- ueo húa cana q dezia afsi. Poderofo & grande fenhor,mais fauoràcido na cafa da fortuna q todos os Reys que habitão na terra, fortaleza forge de grande poder, enchimento dos ma- res falgados,em que todos os rios pe- quenos da terra, como a pobre de my m,té o vitimo d efcãço de fuás cor rétes,eícudo forte de grades deuifàs, poíTuidor degrades eítados, em cuja cadeyra teus peis fe aíTentáo roíío defafrontado, de grande mageftade, EuaNhay Niuolau pobre molher, aya, & ferua deíle orfaõ minino te peço com lagrimas proftrada diante de ty,comaquelleacatameto quefe te deue como a íènhor,que nãoarrá- quês tua eípada contra minha fra-, queza, porque fou molher q me não fey defender,nem íèy mais que cho- rar diante de Deos a fem razão que fe me fizer, a cuja diuina natureza he tão próprio focorrer com miferi- cordia, & caftigar com juftiça, que por muyto grandes que lejáo os ef- tados do mudo os trilha debaixo do com húa potencia tão eípantofa, que até os habitadores da concaua. baixa da cafa do fumo temem & tre- mem diante defte Senhor. Por amor

do

Fernão Mende^Pinto] ij?ó

do qual te pêçó ôc togo que me não tregoas em quanto ãndafíe neftes co-

queiras tomar o meu; pois, como fa- bes,he tão pouco, que nem com elle podes fer mayor,nem fem elle ficarás menor, mas antes fenhor vfando co- migo de piedade, lera húa tamanha grandeza na fama de tua peffoa/que ate os mininos deixarão de mamar aaluurados peitos de fuás mãyspor te darem louuores cos beiços limpos de íua innocencia, & todos os natu- rais ôc eftranhos teraõ na memoria efta efmcma que me fizeres,a qual eu mãdarey efereuernas fepulturasdos mortoSjparaquê elles &os-viuos te gratifiquem por mim ifto que com tanta efficaciâ de minhas entranhas te peço. Ao fanto Auemlachim que para ty fènhor leua efta carta efcrka de minha mão, dey poder & autori- dade para em nome defte orfaó mini K>,&meu affentar comtigo todo o :oncerto que jufto for,& te conceder 3 tributo ôc páreas que te bem pare* :erem,com tanto que nos deixes pof ityr noffasc,aías,paraque debaixo do "eguro de tua verdade criemos nof- bs filhos, & colhamos as nouidades Je rioíTas lauouras para fuftentaçaó ios pobres moradores defta catiua ôc sobre aldea,os quais todos, & eu :lies,com humilde acatamento te fer j iremos naquilíò em que a tua von- tade nos oceu par. Efta carta & em- Daixada recebeo o Bramaa c6 gran- de autoridade,fazendo honra ao que itrouxe,afsi por fua idade, como por Fer entre elies tido por fanto, & lhe concedeo logo* no principio alguas couías que lhe elle pedio,como foraò

certos,& liberdade para os cercados communicarem com a gente do ca- po, 6c outras coufas como eftas de pouca importância, porem vendo as còdiçoés que efta pobre Raynha lhe mandaua cometer,& as humildes pa- laura* da fua carta, atribuindo tudoâ medo ôc a fraqueza, nunca mais quiz rcíponder a propofito ao meníagey- ro,mas antes fecretamente mandaua fazer algús faltos por toda a terra em gente fraca & defarmada,que confia- da em fua pobreza fe não fayra das choças q tinha pelos matos, na qual eftes inimigos crueys ôc deshumanos fazião tamanho eftrago, fem acharé reííftencia ou contradição âlgua,que em fós cinco dias fe diíle que mata- rão quatorze mil peílbas,& todas tas, ou a mayor parte delias foraõ molheres & cri iças &hòmés velhos que não podiâo tomar ãrmaç.E def- enganado o Roolim que trouxera a carta das falias promeílàs defte tyrã- no,& alTaz defeontente do pouco reí- peito que fe lhe tiuera, lhe pedio li- cença para fe tornar â cidade,a qual lhe elle não negou, ôc lhe refpondeo por palaura que fe lhe entregaífea Raynha primeyro,com fua gente,tí- fouro &reyno,& que elle a'fatisfaria em outra couíade que ella foíTe cò- tente,& que a ifto lhe refpondeíTe lo- go no mefmo dia que para iífo lhe daua de eípaço fomente,porque com a fua repofta fe determinaria no que auia de fazer, O Roolim fe defpidio logo delle, Ôc fe foy â cidade, & deu conta â Raynha de tudo o que paf-

fara,

Terigrwdçõès de

lãra, & lhe deckr ou a danada tenção nienham da fua eílántia onde eftaui

do tyranno, & a fua pouca verdade, Ôc lhe pos diante o que em Martauão fizera co Chaubainhaaque fe lhe en tregara fobre feu feguro, & como o inádara matar aelle Sc afuamolher Sc a feus filhos jCom todos os nobres do reyno. Pelo que logo aly áfíen- íou a Raynha com todos os do feu confelhoque fe defendeíTea cidade ate cjue o (ocorro de feu pay vieíTe que não poderia tardar quinze dias, &difto lhes tornou denouoa tomar a todos as menagés. E com efta de- terminação, lem fazer mais nenhúa detença, cheya de hum efprito aíTaz ammofo & aferuorado proueo logo em todas, as couíãs que eraó impor- tantes à defenfaõ da cidade, esforça- do os feus animo varonil & muy- ta prudencia,& partindo liberalmen- te com elies do íeu tifouro, lhespro- meteo também a todos que ao dian- te lhes fatisfaria feus íeruiços com muytas mercês, & honras, com que todos ficarão muy to animados. O ReyBramaa, vendo que oRoolim nao tornara com a repofta no termo que paraiíTo lhe dera,logo.ao outro dia tratou de fortificar as eftancias com artilharia dobrada, para ella bater a cidade toda em roda, & mã- dou fazer grande foma de efcadas. para aíTakar os muros à efcala vifta, Sc com ifto mandou lançar pregão q todos em termo de três dias eftiuef- fem preftes fo pena de morte. Che-: gado efte dia determinado para o at- í alto, que foy aos três de May o de 1545. el Reyaballdu hua hora ante

íiirto no rio com dous mil íèroos qnipados de gente muyto efcolhida, êc fazendo final aos Capitães da ter ra, que a efte tempo eftâuao pre fles,todos juntamente num corpo ar remeterão aos muros com tamanhc eítrondo de gritas 8c alaridos q pare ciaajuntarfe o Ceo com aterra, & chegando os inimigos hús aos outros íe trauou entre todos húa tão crue 8c tãoafpera briga^que em pouco paço o ar fe vio arder todo em fo go5& aterra banhadaem íangue,<S ajuntandofe a ifto o refplandor da efpadas, 8c dos ferros das lanças qm por entre as labaredas de quãdo en quando.reluzião,fazião hum tão me donho efpeóto.culo,que nós os Porei guefes andauamos como palmados Durou alsi efta peleja por efpaço d< mais de cinco horas,no fim das quai vendo o tyranno Bramaa que os d< dentro íe defendião esforçadamen te,& cjue os feus em partes hiao ja ei fraquecendo,faltou em terra obr; de dez ou doze mil homés, dos mi lhores da armada,& reforçando con muyta prefteza as companhias dos < pelejauáo, a briga fe tornou a traua de nouo com tanto Ímpeto 8c esfor ço de ambas as partes, que parecia < então fe começaua. Durou efte íegu do aperto ate íe querer ja quafi cei rara noite, mas nem iflb foy part para el Rey querer defiftir do com bate,por mais que os feus lheacon felharaó que fe retitaíTe, antes juro de dormir aquella noite dos muros dentrojou mandar cortar as cabeça

a quanto

ternao

a quantos capitães não viíTe feridos,^ foy cauía. de grande deftmncho,por que durando efta contumaz porfia a q fe pòs a Lua q feria as duas ho- ras defpois da rneya noite,em que os mandou retirar,íè achou pelo alafdo cjfefez ao outro dia que morrerão vinte & quatro mil homens, a fora mais de trinta mil feridos* de q def- pois ão defemparo morreo outra jrande quantidade, donde naceo a- jer tamanha pefte no campo,aísi pe- a corrupção do ar, como porque a a- 50a do rio eftaua cheya de fangue,& :om iíío quaíi danada,que iflb íó foy :aufa de morrerem defpois (fegundo ediffe) mais de oitenta mil homés, ;m que entrarão quinhentos Portu- 5ueíes,â que então fe não deu outra epultUra fe não a que os abutres & )s cornos lhe derao dentro em fy lefpedaçandoos nos campos & pra* faspor ondejaziáOi

C^T. CLV.

mais que focedeò nejle cercos

& dos cnieys castigos que esle

tyrannofe^ nos que tomou

catiuos l

&S£$:

3 g<s^3 Vj^ao viS

Endo o Rey Bramáà quão caro lhe cuftará efte primeyro aílalto, não quiz auenturar mais a fua gente por cftavia,mas mandou fazer gran- de entulho de terra & faxina com mais de dez mil palmeyras q man- dou coitar,& veyo criando húa ferra

<£M.ende^Pintò. i p i

taó alta que fobreleuaua por cima dos muros quaíi duas braças,na qual mandou affeftar oitenta peças gro£ fas de artilharia, & varejando com eílas toda á cidade por efpaço de no- ue dias,á mayor parte della,ou qua- íi toda foy pofta por terra com mor- te de quatorze mil peífoas, de que a pobre Raynha ficou de todo que- brada,femjâ a efte tempo ter conaii- go mais que fós cinco mil liames que pudeílem pelejar, porq tudo o mais eraõ molheres & crianças, & gente inhabil para as armas. Pelo que aui- doconfelho fobre o remédio defte tamanho aperto,fe aífentou por pa- recer dos principais da terra que vntaffem todos co azeite das alárri- padas da capella do Quiay Niuan- del,deos das batalhas do Campo Vi- tau, & áfsi ofFerecidos em facrifício cometeflem a ferra, & ou vencelTem, ou moireíTem todos feitos àmoiicos pela defeníaó do fed Rey, pois efâ minino, & lhe tinhão dado mertagê* & feito juramento de lhe ferem bós & leays,& aíTentados todos neííe pa- recer, que a Raynha ôc todos ouue- rão então por milhor ôc mais acerta- do para o tempo em que eftauão,pa- ramais firmeza difto, fizerao todos entre fy hum juramento folenne de afsi o cumprirem. E feito ifto, fe deií logo ordem ao modo que fe auiâ de ter nefte negocio, ÔÍ fizeraó capitão* defta gente hum tio da Raynha, por nome Manica votail,o qual ajuntan- do logo todos os cinco mil homés q auiana cidade, aquellâmefma noite* defpois de fer rendido o quarto

mpdorri

ifl

11

§1

1 a

f|jf .í!

Terigrindç oh de

modorra fahi o pelas duas portas que deixar liuremente pòíTuyr feu efta

eftauão roais fronteyras â ferra, & a cometerão tão determinadamente, q em pouco mais de hua hora o capo fe diuidio em mais de cem partes, ôc aferra fov tomada com as oitenta peças de artilharia» &elRey ferido, 4$ tranqueyras queimadas, os vallos derrubados,&o Xemirn Brum gene- ral do campo morto, com mais de quinze mil homés,em que entrarão íèiícentos Turcos, & foraõ tomados quarenta elifantes, & outros muytos mortos, & oitocentos Bramaas cati- uos, de modo que eftes cinco mil a- moucos fizeraõ coufa que cem mil liomês outros por esforçados que fo- raó parece que fizeraó muyto diffí- cultofamente)& recolhendofe ja hua hora ante menham, íe não acharão mortos dos cinco mil mais que fós fetecentos. Defte fuccfíTo fe deu o Rey Bramaa por tao afrontado,pon-« do a culpa delle a algus dos íeus ca- pitães pela ma vigia que em fy tiue- raõ,& pelo defcuydo que íè teue na guarda da ferra, que logo naquelle

do,& lhe não tocaffe em cafa de ne- nhum feu familiar, & o íízeíTe no reynoPegu Xemim de Ánfedaaco toda a renda que nelle tiuera o Bai- nhaa de Malacou, q era5 trinta mil cruzados,& que elle lhe entregaria a cidade dandolhe entrada nella poi hua porta que tinha a feu cargo... O Rey Bramaa aceitou o partido com todas eftas condiçoés,& para penhoi de fua verdade lhemãdou hum anel rico que tinha no dedo. E no dia a- prazado em que ifto auia de fer^que foy vefperade São Bertolameu de anno de 1545". as três horas deípoií da meya noite fepprpor obra con: aquella ferina & horrenda crueldadí que efte tyranno Bramaa fempre cu ííumou em todas as coufasdefta qur lidade. E porque me parece que ler; proceffo infinito contar por eftenfe como efte negocio paíTou, não direj maisdelle,fe não que a porta foy a- btfíta, a cidade entrada, & a gentí ilella toda metida á eípada, íemf< >dar vida a peíToa nenhua, ôc o Re)

meírno dia mandou defeabeçar mais, a Raynha catiuos,& o tifouro toma dedousmil Pegus qu^e eraóos que do,& todos os edifícios ôc templo

vigiauao aquelle quarto. Após efte fucceííb ficou a coufa quieta por paço de doze dias em que nos de fo- ra não ouue nenhum rebuliço,& ne- lle tempo hum capitão dos quatro principais da cidade por nome Xe- mim Meleitay,temendo o que geral- mente já todos temião, que era não poderem efcaparaefte inimigo que ©s tinha cercados, fe carteou fecreta- mentecom elle, com partido de o

poftos por terra, Ôc outras muyta: maneyras de crueldades tanto acim; das imaginações ôc dos penfamento; dos homés,que realmente aífírmoc eu mefmo quando algúâ hora m< paíTa pelo penfamento o tomo paí fou ifto que eu vy por meus olhos, íi co de todo fora de mim. Porque co mo o tyranno eftaua magoado & a frontado do íuccefío paiíado, todo os modos de cruezas vfou com eíl

deíaiien

Fernão Mende^Pintb. ipi

dcfauenturada gete, para tomar vin- gritas lhe trouxerao mais de cem ca-

gança da m,á fortuna que tiuera no começo defte cerco, mas a verdade difto foy por elle fer fraco de animo, ôc de baixo Tangue & geração, em quem a crueldade & o defejo de vin- gança cuftuma a ter mais lugar cj nos

uallos carregados de quartos de ho- mes & de molheresmortas,a q tam- bem,defpois de feitos em poftas mã- dou pòr o fogo, Após ifto lhe trou- xerao a Raynha molher do Reizi- nho,que comojâfe diíTe,elle era de

generofos ôc esforçados, & fobre tu- idade de treze annos, & ella de trin do por não ter verdade em nenhúa ta & feys,molher muyto alua,& bem

coufa, Ôc íer por natureza afancho- nado & inimicifsimo de molheres, tendoas naquelle reyno & em todos os mais de que era fenhor, tão aluas & tão fermofas que muyto poucas lhe fazem vétagem. Acabada a cruel & fanguinoléta deftruyção deita tri- fte cidade,o tyranno,a modo de triu- pho,com muyto grande pompa ôc eftado entrou dentro nella por hum; lanço de rnuroque mandou derru- bar, & chegando às cafas que forão do pobre Rey minino fe coroou nel-» laspor Rey do.prom, tendoo fem- pre em quanto durarão eftas cerimo- nias pofto de joelhos com as mãos, le uantadas,como quem adora a Deos, ôc de quando em quando lhe fazião abaixar a cabeça até o chão, ôc bei - jarlhe os peis,de que o ty ranno fingia que fe não daua por achado. E dek pois de ifto feito fe veyo pòr a hua janella que eftaua na frontaria de hu terreyro>onde lhe trouxerão mais de duas mil crianças mortas que jaziáo pelas. tm% ôc logo aly perante fy as rr andou fazer em poftas muyto miu das,& emburilhallas em farellos dar- roz ôc em erua, ôc dalas a comer aiis elifantes. E deípois com outro modo de cerimonia de muytos tangeres ôc

aíTombrada,& tia de feu marido, ir- mam de fua mãy,& filha do Rey do Auaa,que he a texra donde os rubis, &asçafíras, & as efmeraldas vem a Pegú,a qual Raynha auia três annos que efte Bramaa mandara pedir por molher a feu pay, fegundo fe então làdezia,& elle lha negara dizédona repofta que deu ao embaixador que em muyto mais alto põto trazia fua filha openfamentoque em fer mo- lher do Xemim do Tanguu, que era a geração donde procedia efte cruel ôc fraco tyranho, o qual agora aísi para defprezo delia Ôc de feu pay,co- mo para fe vingar da p afifada afron* ta que recebera delle, a mandou aly em publico defpir nua,&darlhemuy tos açoutes,& após iíTo'a mandou le- uarpor toda a cidade, & com gran- des gritas ôc apupadas de gente bai- xa Ôc deshonefta lhe mandou dar ou- tro tormento,com que a pobre Ray- nha logo efpirou,& defpois de morta a mandou atar abraçada co Reizi- nho feu marido que ainda eftaua vi- uo, ôc com cada hum fua pedra ao peícoço os lançarão ambos pelo rio abaixo,que foy hum género de cruel dade aíTaz efpantofo para quem o via. E a efte modo fez outras muycas

cruezas

Terígrinâçoes de

cruezas nuca imaginadas. E para dar fortaleza de Meleitay, q era daly de:

remace a todas ellas, ao outro dia quefoyo de São Bertolameu man- dou efpetar em caloetes todos os no- bres que tomarão viuos, que ferião quafi trezentos homés, & afsi efpe- tados como leitões foraó também lançados pelo rio abaixo. De maney- ra que fezaquy efte tyranno juftrças tão nouas neftes miferaueis, que nòs osPortuguefes andauamos todos co mo paímados. \-

CAT. (LVl.

[orno o ^Rey do cBramaafoyfohre

a cidade de Meleitay onde eílaua

o príncipe do oÂuaaco trinta

milhomeSjO^ do que f o-

cedeo neflajda.

Vatorze dias auiaja q eftas coufas erao paíla- das,nos quais o tyran- no fe occupou íempre iÈfl em fortificar a cidade grande preíleza & cuydado,quan- do lhe chegou noua certa pelas efpias q niíío trazia, q da cidade do Auaa era partida pelo rio de Quekor abai- xo (ma armada de quatrocentas vel- las de remo, em que vinhão trinta mil homés do Siammó,a fora a chuz ma & a gente da mareação, de q vi- nha por general hum filho do Rey do Auaa irmão da pobre Raynha, o qual fendo auifado da perdição da ci dade de Prom,& da morte de fua ir- mã,&de feu cunhado, fe alojara na

zoito legoas do Prom pelo rio aci- ma,a qual noua fez no tyrãno tama- nho abalo,q lhe foy neceíTario y r lo* go em peíloa íbbre eíta gente,antes qlhevieíTeooutro focorro q tinha por nouas q fe ficaua fazendo preftes em q vinha o Rey do Auaa por ge- neral de oitenta mil Moés.E comen- ta determinação fe partio logo efte tyranno Bramaa em buíca defta géte q eftaua no Meleitay, & leuou com- íigo exeicito de trezentos mil ho- més,os duzentos mil por terra ao lon godo rio, de que hia por capitão o Chaumigrem íeucolaço,& os mH. leuou elle em fua cõpanhia pelo rio em dous mil feroos,& todos huns & outros gente muy to efeolhida. E che gando avilta do Meleitay, os Auaas por moftrarê quanto mayor impref- íaó fazia nelles a determinação com q aly vierão,que o temor que tinhãò diante, & arreceando q os inimigos lhepudeíTem tomar a fua armada q tinhaó norio,quepara elles féria húa muyto grande afronta>lhe puferaó o fogo, & determinados todos com húa brutal oufania, de vingarem a oíFenía que era feita ao feu Rey,fern porem diante aquillo que natural- mente a carne mais arreceya, íe pu- feraó todos em campo, & fefizeraõ em quatro batalhas, nas três, que e- rão de dez mil homés cada húa,hiao os trinta mil Moés, & na outra, que era hum pouco mais groflà, hia to- da a chuzma do remo das quatro- centas vellas que tinhaó queimado. Efla lançarão elles diante, com de- terminação

Fernão Mencte^ Tinto. ,p?

terminação de canfarem os inimigos por feu Rey a fortaleza como fcm-

nella, a qual arremetendo logo a el les,trauou com elles húa cruel briga, cjue durou porefpaçode hua meya hora,em cjue a mayor parte da chuz- ma foy coníumida. Logo após ifto os trinta mil Moés,aísi fechados co- mo eftauáo nas três batalhas, arre- meterão cos inimigos com grandifsi-. mo impeto, & como nefíe tépo, por caufa da peleja que tiuerão a chuz ma os acharão cangados, & muytos delles mortos,& outros muytos feri- dos,a batalha foy entre elles tão cruel &tao deíàcuftumada, que por me não deter em particularizar coufa em que parece que pode auer duui- da,não direy defta mais, fenão q dos trinta mil Moés não eícaparão mais que fós oitocentos, os quais afsi feri- dos & desbaratados fe recolherão ao Meleytay, deixando no campo dos duzentos mil do Rey do Bramaa os cento ôc quinze mil mortos, & os DUtros quaíi todos feridos. Nefte té- po o tyranno Bramaa que vinha pe- lo rio nos dous mil feroos,chegou ao lugar onde fora a peleja, Ôc vendo o iftrago que os Moés nos feus tinhaó leito, ficou como atónito & fora de y,&defembarcando em terra, pós ogo cerco â fortaleza comdetermi- iação,como elle dezia,de tomaras nãos viuos os oitocétos que eftauão íella, Efte cerco fe cõtinuou fete dias :m que os de fora lhe derão cinco ;flaltos,& os oitocétos fe defenderão èmprc valerofamente^porem vendo jerachegadaa derradeyra horade uas vidas, ôc q não podião fuftentar

pre cuydaraõ, pelo focorro da gente derefrefco q o Bramaa trouxera na armada, querendo que foííe delles o , q fora dos outrosTe determinarão co- C mo esforçados q erão de ire morrer ao campo como fízeraò feus compa- nheyros,& vingaré fuás mortes com as de feus inimigos, vifto como den- tro fe não podião aproueitar de feus esforços como defejauãp,& q a arti- lharia do Bramaa os hiacófumindo poucos a poucos. E com eíta deter- minação fe fayraõ hua noite q acer- tou de fer muyto efcura,&de grande çarraçaó & de grande chuua,& dado nas primeyras duas eítancias que ef- tauão mais juntas a porta do fer- tão p*or onde fayrão, as defpejaraó de todea gente q eítaua nellas, ade* guindo com feu propoíitoadiãte co- mo homésjâde todo determinados, & cegos da defefperação,ou defejos de ganharé honra 8c fama onde dei- .xauãoas vidas, fizeraõ tanto que o tyranno lhe foy necetfariolançarfe a nado ao rio para fe faluar,& o cam- po eíteue quafí de todo desbaratado, Ôc fe diuidio em mais de cem, par- tes,com morte de doze mil homens, em q entrarão mil & quinhétos Bra- maas,& dous mil eítrangeyros de di~ ueríasnaçoés,& os outros todos Pc- gús. Efta peleja duraria pouco mais de hum quarto de hora,& não fe aca bou fenão defpois que os Soo. Moés foraó de todo confumidos, fem auer nenhú q fe quifeíTe dar a partido, & vendo o tyrãno Bramaa a peleja aca bada,&acoufajà de todo quieta, fe B B tornou

Wtrigh

tornoúã recolhei ao campo, & ajun- tando outra vez a géte,entrou na for- taleza de Meleitay,onde mandou lo go cortar a cabeça ao Xemim, dize- do q elle fora caufa daquelle defaftrê^ q lhe acÓtecera,porq quem fora tre- j, dro ao feu Rey não lhe podia a elle íer muyto leal,& efte foy o pago q o tyrannolhe deu por lhe entregar a cidade do Prom, mas bem deuido a que entregou feu Rey & a fuamefma

pátria em poder de feus inimigos. E por então não fe entendeo em mais q em curar os feridos,de q també ouuç húa gjande quantidade.

CAV. &vlL

<Do quefocedeo a esle "Rey *Brar

maa ate chegar a cidade do

<iAuaa,&> do que ahy

maisfeç.

Oda aquella noite fe paíTou com muyto te- mor & boa vigia,& tã- toqfoy menham cla- ra fe proueo logo pri- meyro q tudo em fe defpejar o capo da gente morta, de q todo eftaua cu- berto. E feita reífenha de toda a co- pia dos mortos de ambas as partes q tinha cuftado efta vinda ao Meley- tay,fe achou q da parte do Bramaa e- rão cento & vinte & oito mil, & da do príncipe filho do Rey do Auaa quarenta & dous mil em q entrarão todos os trinta mil Moés do focorro. Ifto feito,o tyranno Bramaa defpois de fortalecera cidade do Prom,&

indçCes de

efta fortaleza do Meleytay, & criai de nouo outras duas fortalezas á bor da do rio, em lugares importantes à fegurança daquelle Yeyno, fepar- tio em mil jferoos ligeyros de remo pelo rio de Queitor acima,nos quais Feuou fetenta milhomés,com deter- minação de yr em peífoa efpiar o rey no do Auâa,& dar de fy húa mo- ftra aridade, para ver cos olhos as forças della,& que poder aueria my* fter para a tomar, & a cabo de vin- te & oito dias defte caminho, dentro nos quais paíTou por lugares muyto nobres do Rey do Chaleu, & Iacu- çalão que eftauão â borda da agoa, fem tratar de nenhum delles, che- gou a efta cidade do Auaa aos tre. ze dias de Outubro defte mefmo anno de 1545. fobre o porto da qual efteue treze dias fem fazer mais dano que fomente queimar duas ou três mil embarcações de feruiço que achou no porto, & por fogo a alguas aldeãs que ao redor eftauão, o q lhe não cuftou tão barato, que não che- gaíTe a deípeza deftes faltos a oitc mil dos feus,emque entrarão feíTen ta & dous Portuguefes,porque ja fte tempo que aquy chegamos efta ua tudo muyto prouido,& a cida de ale de fer forte,afsi por fitio com( por fortificação,eftaua apercebida d< vinte mil Moés, dos quais fe dezia < auia fós cinco dias que erão chega dos dos montes de pondaleu,onde < Rey do Auaa, com licença do Siammon Emperador defta Mona* chia,ficaua fazendo mais oitenta m: homes para tornar a ganhar o Pron

porqu

Fernão Mendez Tinto.

porque fendo efte Réy do Auaa cer- tificado da deshonra& morte defua filha & de feu genro, como atras fica dito,& vendo que por fy não era po- deroíbparafefatisfazer das oífenías Ôc males q efte tyranno lhe tinha fei- tos^ fègurarfe dos que temia que ao diante lhe fizeíTe,que era tomarlhe o reyno,de quealgúas vezes otinhajà ameaçado,fe foy em pefToa com fua molher & feus filhos lançar aos peis defte Siammon, & dandolhe conta dos feus trabalhos & afrontas, &do propoílto que leuaua, por hum con- certo feito entre ambos Te fez feu tri- butário emfeifcentas mil bicas ca- da anno, que da noíTa moeda faò trezentos mil cruzsdos, & húa guan- ta de rubis, que he húa medida co- mo canada, para húa joya de fua molher, do qual tributo dizem que lhe fez logo pagamento por dezan- nos dante mão, a fora outras peitas de pedraria muyto rica, & baixellas ôc peças que valeriao mais de dous contos douro. Pelo qual o Siammon

\- a -P+

der fer efta a mais certa occaííão de íe perder que todas as outras de que fe podia arrecear, fe tornou lo^o a fortificar o Prom com rnuyco mavor inftanciado que até então tinha fei- to,porem antes q íe parciíledaquel- le rio onde eftauaíurto,qíeria húa le- goa d efta cidade do Auaa,mandou o Bramaa feu rifou rey ro por nome Dio foray (em cujo poder eu atras jádif- fequeeftauamos os oito Portugue- fes catiuos) por embaixador ao Ca- laminhan,que he príncipe degra- de poder que habita no âmago deíle fertão em muyta diftancia de terra, .do qual adiante tratarey hum pouco quando vier a dar informação delle, paraque por liga & contrato deno- ua amizade fe fizeíTè íèu irmão em armas, oiTerecendoihe por iíTo cer- ta quantidade douro ôc- pedraria, & rendimentos de algúas terras co- marcas ao íeu reyno, paraque efte Calaminhan entretiueíTe com guer- ra ao Siammon o verão feguinte, com que não pudeíTe íoccorrer o

fe lhe obrigou de o tomar debaixo Rey do Auaa, &lhe ficaíTe a elle do feu emparo, & fepór em peífoa mais fácil poder tomar efta cidade,

em campo por elle todas as vezes que lhe foííe neceífario, ôc o reftkuyr no reyno do Prom dentro de hum an- no,parao que lhe logo deu cento Ôc trinta mil homés, os trinta mil do fo- corro que o Bramaa tinha morto no Meleitay, & os vinte mil que aquy eftauao nejfta cidade, ôc os oitenta mil porque íè efperaua,de que o mef- mo Rey do Auaa vinha por general. Pelo que íèndo efte tyranno auifado de todas eftas coufas, temendo po-

fem receyo defte focorro de que fe temia. Efte Embaixador partio da- quy embarcado em húa laulee,& do- ze feroos,em que hião trezentos ho- més de feu feruiço, ôc guarda, a fora a chuzma. do remo, que íeriáo quaíi outros tantos, ôc lhe íeuou de prefen- te muytas peças ricas douro ôc pedra ria,em que entrou hum arreyo de e- lifante que fe affirmaua q valia perto defeiícentos mil cruzados, de modo qtodo o prefente dezião que paliara. B B z de

Terigrínaçoh de

de hum conto douro. E entre algúas mercSs que o Rey Bramaafez nef- ta yda a efte feu embaixador, hna delias foy darlhe a nós todos oito, com que dahy por diante ficamos ca tiuos defte tifoureyro, o qual nos ve- ftio ôc nos proueo de todo o neceí- fario em muyta abaftança, ôc fe mo- ftroumuyto contente de nos leuar comfigo, ôc fez fempre de nos muyta mais conta quede todos os outros q leuaua em íua companhia.

C.AT. tLV III.

*Do caminho qne filemos ate ché' garmps ao pagode de^Tina- googoo.

Areceome razão & cõ- ueniente às coufas de que vou tratando apar tarme agora hum pou co defte tyranno Bra- maa,ao qual me tornarey a feu tem- po, para tratar do caminho que fi- zemos daquy para a cidade de Tim- plao metropoli defte império Cala- minhan, que quer dizer, fenhor do mundo, porque na íua lingoa, cala, he fenhor, & minhan he mundo, ôc por outra via fe intitula tambem,ab- foluto fenhor da força bruta dos eli- fantes da terra, porque na verdade efte o he mais que outro nenhum em todo o vniuerfo como adiante fe di- rá, partido efte embaixador daquy do Auaa em Outubro do anno de 1545. fez feu caminho por efte rio do Queitor acima, com aproaLoés

fuduefte)& em partes a Lefie franco^ por cauía das voltas que a decente da agoa fazia, Ôc por efta variedade de rumos continuamos por noíTa der rota fete dias, em que chegamos a hum efteyro que fe dezia Guampa- noo, pejo qual o Robao, que era o noífo piloto fez feu caminho, por íe defuiar da terra do Siammon, como leuaua por regimento dei Rey, ôc chegamos a hua* grande pouoação que fechamauaGuatelday,onde ef- te embaixador fe deteue três dias, prouendofe dalgúas coufas necefla- rias para fua a viagé. Partindo da- quy, feguimos por efte efteyro aci- ma mais onze dias,em todos os quais não achamos nem vimos lugar ne- nhum que foíTe notauel, fenão fo- mente aldeãs pequenas de cafas de palha, pouoadas de gente pobrifsi- ma, & nos campos auia infinidade de gado vacum, que,fegundo pare- cia, não tinha dono, porque mata- uamos perante ús da cerra vinte Ôc trinta cabeças cada dia, fem auer quem nos foíTè a mão , nem nos diffeíTe palaura nenhúa , mas an- tes em partes nollo traziao de gra- ça, como que folgauao de o mata- rem> Sayndo defte efteyro de Guam- panoo, entramos em hum rio muy- to grande que fe chamaua Ange- gumaa, de mais de três legoas em largo,& em partes de cento & vinte braças de fundo, com reueífas tão impetuofas, que muytas vezes nos fazião defandar muyta parte do cami nho. E cofteãdo por elle acima efpa- ço de mais fete dias,chegamos a hua

cidade

Femao Mcndez Tinto.

cidade pequena & bem cercada,. que fe dezia Gumbim, do reyno do lan- gomaa, rodeada da parte do íertão em diftanciadecincoou íèys legoas de aruoredo de beijoim, 8c de cam- pinas de lacre,o qual defta cidade íe lcua de veniaga a Martauão, onde le carregão muycas nãos delie para di- uerfas partes da índia, para o eftreito de Meca,para Alcocer, ôc iudaa. Ha também nefta cidade muyta foma de almizcre muyto milhor que o China, que também íe leua para Martauão &Peguu,onde os noíTos ipcompraó para de veniaga o leua- rem a Naríin^a, Orixaa, & Mafu- lepatão . As molheres defta terra faõ geralmente muyto aluas Õc bem- iflombradas, vertem pannos de fe- da & algodão, trazem xorcas dou^ tais,o qual todo eftaua em poços de- ro & de prata nos peis, & colares de baixo do chaó. Daquy continuamos

t9f

bemefte embaixador, com muytos rcfrcícos para todos os feus, 8c lhe deu por nouas que o Calaminhan eftaua na cidade de Timplão. Da- quy partimos hum Domingo pela menham, & ao outro dia á vefpera fomos ter a húa fortaleza que fe de- zia Campalagor, íituada fobre húa ponta de rocha metida no rio a mo- do de ilheo, cercada de boa canta- ria, com três baluartes,^ duas torres de fete íobrados, dentro dos quais diíleraó ao Embaixador que* tinha o Calaminhan hum groílo tifouro dos vinte & quatro que eftauão re- partidos pelo reyno, de qiie a ma-* yor parte era em prata, o qual teria de peio íeys mil candins,que da nok ia conta faò vinte 8c quatro mil quiri

Fuzis groílòs ao pefcoço. A terra em íy he muyto abaftada de trigos, ar- rozes, & carnes, 8c fobre tudo abun- dantiísima de mel, de açúcar, 8c de cera. Rende efta cidade com fua co- marca, que he de dez legoas em ro- da, para o Rey do Iangomaa,feíTen - Ca mil alças douro, que faõ da nof- moeda íetecentos 8c vinte mil Buzados. Daquy cofteamos o rio peia parte do Sul por efpaço de mais (ète dias, 8c chegamos a húa gran- de cidade por nome Catammaas, que em nofta lingoagem quer di- zer, camarão douro, do fenhoriodo Raudiuaa de Tinlau, fiiho fegun- do do Calaminhan, que he como em França o duque de Orlíens. O Kaugator deita cidade agafalhou

noíTo caminho mais treze dias,ven- do ao longo do rio afsi de húa parte como da outra muytos lugares muy- to nobres, que fegundo o apparato das moftras de fora, deuião de fer os mais dcllcs cidades ricas, 8c tudo o mais erão bofques de grandes aruo-< redos,emqauiamuytas hortas, jar- dins^ pumares,& aforaifto capinas de trigo muyto grãdes^em que pacia grade íoma de gado vacum, muytos veados,antas,& badas, 8c tudo apacé- tado por homesa cauallo.Norio auia infinidade de embarcações de remo, nas quais fe vendião todas ascoufas quãtas a terra pròduze, em grande a- búdancia,das quais noílò Senhor foy feruido de enriquecer agente deftas partes muyto mais q todas as outras B B 5 que

^Peregrinações de

cj fe âgorà fabê em todo o mundOjel- . feição, que até muficas de mol herc,

le fabe o porque. E porcj o embaixa- dor adoeceo aquyde inchaço nos peitos,foy acõíelhado q não paíTaffe adiãte até não fer faó delle,pelo q a.f- fentou còalgusdosfeusde íè yr cu- rar a hua grande enfermaria q eftauã daly doze legoas adiante em pago de por 'nome Tinagoogoô,q quer di- 2er,deosde mil deofes,para onde par tio logo, & chegou la hum fabbado jâquaíi noite»

<Dofiúot&- fabrica desJe pagode de Tinagoogoo-, <> do grande concurfo de gente que a tile vem,

Efembarcado o eni^ baixador em terra^ lo- go ao outro dia íe- guinte pela menham foy leuado a Hua en- fermaria de gente nobre por nome ChipanocãOj em que auia quarenta & duas cafas muyto limpas, &muy^ to bem concertadas, em húa das quais o recolherão por mandado âo Puitaleuj que era como regente da- quella enfermaria, onde foy curado & prouido afsi de fííicos, como de tudo o neceíTario muvto abaftada- mente, a fora iffco os cheyròs, ospre- fumes, a limpeza ôc concerto dos fêr* uiços, as baixellas, as roupas, os má- jares, os regalos, & os paíTatempos crãocom tanta curioíidade & per-

muytó fermoías que tangião ôc cari- tâuão muyto bem, lhe dauão duas vezes cada dia, ôc algúas horas lhe reprefentauão farças de grande apa- rato. E porque me não atreuo a con- tar por eftenfò o muyto que niílo ha para dizer, calarey muytas couíasde que outros que as íouberâo dizer mi lhor que eu, por vétura fízérão muy- to caio. Paííados vinte ôc oito dia< deípoisque aquy chegamos em qiií ©embaixador conualeceo de todo nós partimos para hua cidade que íc dézia Meidufj doze legoas adiante, pêlo rio de Arigegumáa acima; Má! porque não fique em falta com a pro meífa que atras fiz de dar informa ção defte pagode de Tinagoogoo quero agora deixar o embaixador fa zèrfeu caminho, ôc tornarme ao pa gódé,& dizer breueméte algúa couíí das muytas q nelle vimos,paraq veja ínos eu Ôc os Chriftaôs q faõ taó dei' cuydados na vida como eUjqUão pot co fazemos por rios fáluârmõs em cc pararão âo mUytò que eftes cegos & miíeraueisfazem para fe perderem ' Porq Como nos vinte Ôc oito dias c ô embaixador efteue em cura, nói os noue Portuguefes^<& toda a outrí gente que hia êm fua companhia^n dauamos ôcioíòs, nem tinhamos en que gâftaíTèmos o tempo,o gaílaua- mos em diuerfos modos de defenfa- dámentos,cada hum naquelle a cj en mais aífeiçoado, que pafá todos a chaua aly commodídade, E afsi íeoccupauãoerrf caças,deque hain fínidade neflâ tetra, principalinenti

devea

*

Fernão Mende^ Tinto. jçú

de veados ôc porcos montefes-outros dos os mortos. A qual feita vimos a-

em montear tigres, badas, onças, ze uras,lioés,bufaras,vacas brauas,& ou- tras mnycas diueríidades de alimá- rias nunca viílas nem nomeadas na Europa, de maneyra que os mais fragucyros fempre andauão no ma- to; outros andauão no campo à ca- ça das marrecas, das adés, &"dos pa- tos, outros com falcoens & açores â caça de altenaria, outros nos rios pef cando truitas, bogas, bordallos, lin- goados, azeuias, mugens, ôc outras muytas diueríídades de peixes oue ha em todos os rios defte império. E nós pela mefma maneyra gaftaua- mos o tempo oranúacouíà ora nou- tra^ indaq o mais era em ver,ouuir,& prcguntar de leys,pagodes, Ôc facrifí- cios cj víamos de grande temor & ef- pato,dos quais não darey reJaçaóde mais q de cinco ou feys ío.mente, co- mo já tíí em outros, porq me parece cj eííes íós baftaraõ para por elles íe poderem infirir & entéder os outros de que não trato. Hum deíles fe fez no dia da Lua noua de Dezêbro,que foy aos noue do mes,& he o dia em q efta gentilidade cuftuma a celebrar hua feita a q a gente deífa terra cha- ma MaíTunteriuoo, & os íapoés lhe chamáo Forioo, & os Chins Mane- joo,& os Lequios Chãpàs,& os Çau- Ihins Ampatilor, ôc os Siamês, Bra- máSjPafuâs, ôc Qacotais lhe chamão 5anfaporau.de maneyra q ainda que pela diueríidade daslingoas os no- mes em fyfaó diíferentes, todos na noíía ltngoagem querem dizer hua mefma coufa, q he memoria de'to-

quy neíle dia celebrar com tantas differenças de coufas nuca cuydada?, que não me fey determinar,por qual delias comece,porq a imaginação diítomiíluradacoma cegueyra def- tes miferaueis, em tanto menoícabo da hora de Deosjbaíta para hum ho- mem ficar mudo.Porque a eíle lugar concorre neíle tempo innumerauel gente de todas as nações daquellas partes,que vem a hua feira que fe faz nefta feita que dura quinze dias,que íaó os da Lua noua até a Lua che- ya, na qual fe vendem quantas cou- íãs a natureza criou no mâr ôc na ter- ra, ern tão alto grão de abundância, que não ha efpecie de coufa por fy de que não aja dez, doze, quinze, , vinte^uas de caías, Ôc cabanas' ôc ten- das tão cumpridas que quafi fe per- dem de vifta, pouoadas todas de mercadores muyto ricos,a fora a ou- tra mais gente do pouo que não tem conto, a qual toda fe aloja ao longo de hum grande rio em hum cam- po rafo de mais de duas legoas, to- do pouoado de aruoredo de diuer- fas maneyras, em que ha foutos de nogueyras, ôc caftanheyros, ôc pi- nhaes,&palmares de cocos5&datiles, de q todos tomão quãto queré, porq tudoiílo he do pagode. O templo defteidoíohe hum fumptuoíiísimo edifício que eítâ no meyo defte cam- po em hum outeyro redondo q tem mais de mey a legoa em rod a,chãfra- do todo ao picão em altura de quin- ze braças,& delias acima eftâhú mu- ro de cantaria muyto a Lua de três B B;4 braças

bradas com feus baluartes, & cubei- Ios,& torres ao noíTô modo. Defte muro para dentro tem hum terrapie no cjuc vem ao liuel as ameyas de mais de tiro de pedra em largo, que pelamefmamaneyra do muro,cinge também o outeyro todo em roda,q ao parecer fica como varanda; onde eílão ao comprido cento & feíTen- ta hoípedarias, & cada hua delias de mais de trezentas caías térreas muyco limpas & bem concertadas, cm que íe agafalhão os peregrinos, Fancatoés,c:daroezes,qvem em ca- bildas como ciganos com feus capi- tães,de duas três milpefíbas cada ca- bilda,búas mais, outras menos, con- forme ao longe ou perto das terras Sc dos reynos donde vem,& logo pe- las ckuiías das bandeyras cjue trazé, fe conhecem donde faó naturais. Da quy para cima he tudo fechado com grande aruoredo de acipreftes &ce- dros,com muy tas fontes dagoa muy to boa,& no mais alto defte outeyro que fera dequafi hum quarto de le- goa em roda eílão vinte & quatro mofteyros de templos muy to fum- ptuoíos & ricos doze de homés,& do ze de molheres.que fegundo ahy nos affirmarao tinha cada deíles qui- nhétas peííoas. No meyo deíles vin- te & quatro mcfteyros, em hum jar- dim fechado com três ordés de gra- des de latão, com arcos a cada dez braças laurados de macenaria muy to rica,com feus curucheos cozidos em ouro,& com muytas campainhas de prata que continuamente eftão ran- gendo co mouimento que faz ncllas

tPerígríndçoes de

o ar que lhes dá, eftatia a capella do idolo Tinagoogoo que he o deos de mildeofes,em húacharoila redonda, toda dalto abaixo forrada de pran- chas deprata, com muyta foma de candieyros do mefmo. O feu mon- ftruofo vulto, (o qual não foubemos fe era douro, fe de pao, íe de cobre dourado) eftaua em com ambas as mãosleuantadas ao Ceo,& húa co roa rica na cabeça, ao redor delle ef- tauão outros muytos Ídolos peque- nos, aílentados em joelhos olhando para elle como pafmados, & embai- xo eílauão doze vultos de homês agi- gantados feitos de bronzo, de trinca & fete palmos em alto, muy to feyos em grande maneyra.Eftes deziãoei- les que eraó os deoíes dos doze me- fes do anno. Fora deita cafa eftauão cento & quarenta gigantes, q poíloí em duas fileyras a fechauão toda em roda, os quais erão feytos de ferre coado com fuás alabardas nas mão; como que eftauão em guarda daquei le edifício. Entre hus & outros auií muytos finos de metal pindurado! delirantes de ferro muy to groíTosc eftauão lançados de hús ombros ao: outros deftes gigãtes,o qual edifick vifto afsi todo por junto moftrauí de fy hum tamanho aparato, que lo go em fe pondo os olhos nelle,fe en xergaua a grade riqueza & fumptiu íidade da íua fabrica. E deixando a gora a parte a mais informação qn pudera dar das officinas defte ric< templo,porquea quedey meparec que bafta para íe entender qual ell era, tratarey aquy hum pouco do

facrifi

Fernão Mende^Pinto. jçy

ftcrifíciòs que nelle vimos em hua tinhão afsi erao reuereciados do po-

fcfta a que elles chamáo Xipatilau que quer dizer refrigério dos bõs.

CAT. QLX.

Tb a grande &fumptuofa procif- fad quejefa^ neíle pagode ç> dosfacrjficios que je fa- ^em nella.

Orno erta fua ferta ôc

m

%

eíla feira que nella fe fazia com tanta con- corrência de gente, & diueríidade de com- panhias de peregrinos,como atras fi- ca dito,duraua quinze dias, em que auia muytas di ftèrenças de fãcrificios & cerimonias, não auia nenhum dia em que não ouueíTe muytas maney- ras de coufas muyto nouas & muy- Eocuftofas,& muyto para ver,& muy io mais para notar,húa das quais foy aos cinco da lua em que fe publica- rão os jubileijs,húa prociffaõ que te-» ria de cumpriméto, fegundo o efmo dos noííbs, mais de três legoas, na qual fe affirmou pelo dito de toda a gente, que hião quarenta mil facer- dotes das vinte & quatro feitas que ha nerte império, dos quais muy tos cinhaó difFerentes dignidades, como erao grcpos,talagrepos,roolins, nee- pois,bicos,facureus,&chanfarauhos, os quais todos pelas vertiduras deq hião ornados, ôc pelas diuifas & infi- gnias que leuauão nas maós, íe co- nhecião quais erão hús & quais erao outros,& conforme â dignidade que

uo,porem eftes naó hiaò a pé} como os outros facerdotes comus,porcj lhe naó era licito naquelle dia poderem pòrospeisno chaó fem cometerem grande peccado,mas hião nus palau- quinsque outros facerdotes feus in- feriores leuauão aos ombros verti- dos de citim verde,& íuas altirnàs de damafco roxo íbbraçadas a modo de eftolas. No meyo das fíleyras defta prociíTaó hiaò todas as inuençoens dos facrificios com luas charollas ri- cas,em que hjaõ os idolos de que ca- da huera deuoto,com feus confrades vertidos de amarello,& c5 cirios nas mâos,& entre efpaço de cada quinze charollas deftas,hia hum carro triun- fados quais carros ao todo eraó du- zentos & vinte & feys. Cada carro deites era de quatro fobrados ôc ai- gus de cinco,com outras tantas rodas por cada banda, em cada hum dos quais hiaõ pelo menos duzentas pef- foas entre facerdotes & géte de guar- da, ôc em todo cima hía hum ídolo de prata com hua mitra douro na cabeça, ôc todos leuauaó ao pefcoço fios de perolas,& colares ricos de pe- draria, Derredor deileshião muytas caçoulas de cheyros fuauifsirnos, ôc mininos em joelhos com maças de prata aos ombros, & outros com tri- butas nas mãos que de quando em quando ao fom de certos inftrumen- tos encençauaõ por três vezes dizen- do em voztrifte & fentida, pautixo- rou numilem forandacheevaticura- polem, que quer dizer, abranda fe- nhor a pena dos mortos, paraque te

louuem

^Peregrinações de

louuem com fono quieto, a que todo o pouo com hum tumulto de vozes reípondia, afsi te apraza que feja em todos os dias que nos moftras o teu Sol. Cada carro defíes,por feys cor- das muyto cumpridas forradas de feda,drauão mais de três mil peíToas, a que por iíTo era concedida plenária remiíiaõdospeccados fern reftituy- ção de coufanenhúa. E o modo que tinhaó para lerem muytos os que pu- xando por eítas cordas participaífem deita abfoluição,era, por hum a mão na corda &: fechar o punho, 8c após eíte outro, 8c logo outro Sc outro da mefma maneyra^ afsi continuando até o caboficaua todo o curnprimé- to da corda cuberto de punhos cer- rados fem fe ver mais outra coufa, 8c pcrque outros que ficauao de fora q erão muytos, ganhaíTem cambem o mefmo lubileu 8c indnlgencia,ajuda- uao aquelles que leuauao as mãos nas cordas,com lhes poré as fuás nos pef- coços, 6c outros faziaò o mefmo a efc tes,de modo que a cada compriméto de cada hua deitas cordas hiao feys 6c ktQ fiiey ra?,em cada húa das quais yriao mais de quinhétas peffoas. Por fora de todo o cumprimento deita prociífaò corriao muytos homés a cauallo com baíloens ferrados nas maos,bradando muyto alto â gente do pouo,que era infinita, paraque íe afaftaflem, 8c não deífem trouaçaóa osfacerdotesquehião rezando, 8c ás vezes dauao tamanhas pancadas que derrubauao três quatro no chão, & outros muytos hião eícalaurados,a cjue nenhum reípondia, nem leuan-

taua os olhos fomente. E deita m; neyra foy paíTando efta eípantol prociífaõ por mais de cem ruas qu para iíTo eítauão feitas,enramadas d paimeryas 8c com febes de murta,c muytos eftendartes 8c bandeyras d feda, 8c em partes muytos entrem< fescommefispoftasemque íe dau de comer pelo amor de Deos a tod o género de gente que o queria,6c er algúas partes fe dauao vertidos 8c di nheyro,6c íe. fazião reconciliações d inimizades, 8c quietas de ■diui.das, t outras obras pias tão próprias d Chriílandade, que fe ellas fe fizera< com 6c bautifmo por Chníto noJ fo Senhor, fem leuarem miíturadt mundo, a mym me parece que Ih foraó muyto aceitas,mas faltoulhe < milhor por feus peccados 8c pelos nc fos. Indo aísi toda efta turbamult, de charollas 8c carros, com efpanto fos roydos, de tangeres 8c gritas,6c ói trás muytas diferenças de coufas, fa hião de certas cafas de madeyra qu em partes efíauãojâ feitas para iffo feys, íete, oito, dez homens enuolto em muytos cheyros, & encachado com patolas de feda,6c fuás manilha douro nos| braço?, aos quais toda; gente fe afaílaua 8c daua lugar, 8c fa zendo eítes por algúas vezes çuraba yás ao ídolo que hia emeima no cai ro, fe arremeííauão de bruços n< chão, 8c paíTando as rodas por cim; delles os cortauão em dous pedaços a que toda a gente com hua grandi grita dezia, pachiloo a furaó, q que dizer a minha alma com a tua. E de- cendologo de cima do carro hun

facerdoti

Fernão Mcndez Tiniu.

x

íacerdote dos que hiáo nelle mais bre elles para os tomarem,que as ve-

dez ou doze facerdotes comfigo fe zes íe afogauão hús cos outros, porq

chegaua a aquelles bemauenturados os tinbao por muyco grade relíquia,

ou malauenturados que jazião mor- de maneyra que andando eftes ma-

tos3& ajuntando os pedaços 8c as ca- - lauenturados em pè, enuoltos no feu

bec.is Sc às tripas com tudo o mais q meíino Tangue, 8c Tem narizes, nem

aly eftaua daquelles defauenturados corpos em húas bandejas muy to grã- des o moftrauáo ao pouo de cima do mais alto fobrado do carro onde hia o idolo, dizendo riUni tom muyto Temido, rogay peccadores todos a Deos quê vos faça dignos de Terdes Tantos como efte q agora morreo em Tacrincio de cheyro Tuaúe, a q todo o pouo proftrado cos roftos no chão com húa efpantoíà grita reípondia, afsieTperamosnodeosdemil deoTes que Teja. E alsi pelo modo deíles ma- lauenturados Te facrificaráo mais Ou- tros muytos, queern copia, fegundo o que ãhy nos contarão mercadores honrados a que Te podia dar credito, paííàraó de leiíceritós. A fora eftes vinhaõ também outros a que elles chamáo Xixaporaus, que também Te íàcrifícauao diante deíles carros, cor- tando pela Tua mêímà carne tanto fem piedade,que parecia couTa muy- to fora da natureza humana^ & to- mando os pedaços da Tua carne, que ílles cortauao com huns naualhoens iTíiiy to ãgudoSjOS metiáo em hus ar- :os como piloUros,& tirauão com el- es para 0 Ceo,dizertdo que os man- áauaoafDeos de preTente pela alma 3e Teu pay, ou filho, ou nfolheiv ou sela da peíloa por quem aquillo fa- tião,& no lugar onde cahia qualquer áeftes pedaços, era tanta a gente To-

orelhas,nem Temelhança de homés, cahião mortos no chão,a que os gre- pos de cima do carro acudião logo com muyta preto, & cortandolhe á cabeça a moftrauáo ao pouo, o qual tambeín cosjoelhos poftos em terra, 8c as mãos aleuantadas, dezia c6 húa grande grita,cheganos Senhor a tem- po que por te Teruir façamos o mef- mq. Vinhaõ mais outros que també o demónio aquy trazia por outro modo,os quais pedindo efmola de- ziâo, minta dremaa xixapurha pa- ram^ que quer dizer, dame eímoía por Deos 8c Te não matarmeeyj &Te lha não dauãologo muyto depreíTa metião por Ty hus naualhoés que tra- ziaó nas maós 8c Te degolauaó,ou bo tauão as tripas fora,& cahiaõ mortos ndchaõ. Á eftes acudiaó também os grepos,& lhe cortauão as cabeças, 8c pela mefma maneyra dos outros as moftrauão ao pouo, o qual também com grandes gritas as veneraua pro- flrádò cos roftos no chaó. Vinhão 4tambem outros que Te chamauao Nucararnoés, muyto feyos ôc mal afr Tombrados, veftidos de pelles de ti- gres com húas panellas de cobre de- baixo dos braços,cheyas de húa cer- ta confeição de ourina podre, miftu- rada com èfterco de homés, taó pe- çonhenta 8c de fedor taó incompor- cauel, que por nenhum modo Te po- dia

Terigrmaçoes de

'dia fofrer nos narizes, & pedindo ef- molla ao pouo dezião, darne eíraola logo nefla hora.,& íe não comerey di- fío que come o diabo, & borrifarteey com que fiques maldito como elle;a que logo todos.acudião a lhe darem efmolla muyto depreda, & íe tarda - ua mais hum momento do que elle queria punha a paneila a boca, & be- bendo hum grande trago daquella fedorenta confeyçio, borrifaua com ella aos que queria fazer mal.,porque toda a outra gente que os via borri- fados,auendoos por malditos, íal- tatia nelles,& lhes daua tão mao tra- nque os triftes naó fabiaó parte de fy,porqa nenhua peífoa cataua cor- teíia que o naõ deshonrafle, &lhe deífe muytas bofetadas & arrepeloés, dizendo que erão eícomungados por ferem caufa de aquelle homem íanto comer aquelía cugidade como os dia bos,<% ficar fempre fedorento diante de Deos, para não poder yr ao paray fo, nem ninguém o ver mais nefte mundo. E a efte modo ha entre efta gente,a que por outra parte naõ fal- ta grande juizo & entendimento em todas as outras coufas,outras muytas maneyras decegueyras & brutalida- des táo fora de toda a razão & enten- dimento humano, que fica fendo hil grandifsimo motiuo de dar conti- nuamente infinitas graças a Deos a- quelle a quem êlle por fua infinita bondade & mifericordia quiz dar o lume da verdadey- ra Fé,para íe faluar com elle.

CJT. (LXL

De hm penitentes cjue vimos en- cima na ferra de ík pagode, & da vida quefazgm.

Endoja pâíTados de[- tes quinze dias os no- ue, fingindo toda efta turba multa da gente que aquy eftaua junta que vinha a ferpe tragadora da con- caua funda dacafa do fumo que he Lúcifer (como atras diífe) a rou- bar a cinza dos que morrerão no fã- crificio paíTado,para não irem as fuás almas ao Ceo, fe leuantou em todo cite pouo hua grita tão efpantofa^er* riuel,& medonha para ouuir,que fal- tão palauras para o encarecer, a qual acompanhada de infinidade de finos bacias,tambores,buzíos,&feftros,fez hum tão defacuftumado eftrondo,q a terra tremia debaixo dos peis,& if- to tudo a fim de efpãtarem o diabo, o qual eítrondo durou desda hua ho ra defpois do meyo dia até o outro cjuaíi menham clara,na qual noite íê gaftou infinito numero de cera nas luminárias que fe fizeraõ,as quais to*-' mauâo tanto efpaço de terra quanto a »vifta podia alcançar, o que tudo parecia então que ardia em fogo,& a razão difto era,porque dezião que o Tinagoogoo deos de mil deofes era ido em bufca da ferpe tragadora pa- ra a matar com húa efpada que lhe viera do Ceo, PaíTadaafsi efta noite nefte infernal eftrondo nunca cuyda-

do,quan-

Femao Mende^ Tinto . i ç p

lo,quandoa mènham foy clara apa- eílaua fabricado, no qual auia feys

eceo todo efteouteyroem que efta ia eíle templo cheyo debandeyras )rancas,com a qual viftao pouo pa- a dar graças a Deos fe proftrou todo lor terra,moftrando grande alegria, E dandoíe muy tas peças hús aos ou- ros daluiflaras pela noua que osSa- erdotes lhes dauão com as bandey- as brancas que lhes moftrauão,por- [ue erão final certo de fera ferpe tra adora ja morta. E fubindo com rande alegria toda efía gente ao ou- :vro onde eftaua o templo por viu- í & quatro entradas que auia para lie, foraó todos dar os parabés ao lolo da vitoria que a noite paíTada uera com a morte da ferpe a q cor* ira a cabeça, A qual concorrência e gente durou três dias fuás noi- •s,íèm em todo efte tempo íe poder >mper por nenhum dos caminhos não com muy to trabalho. E como snouePortuguefes que aly nosa- lamos andauamos ociofos, deter- linamosde nosnão ficar couía por srdefte abuío, & pedimos licença ) Embaixador, o qual nola negou então,mas nos diííè que ao outro ta iríamos com elle,porque fe tinha prometido na doença paíTada,de Lie nos não peíou por podermos ter lilhor entrada,& vermos mais à nof vontade o que defejauamos.E def- risque o ímpeto. da gente deu al- ia euafaó, que foy aos dous dias :fte concurfo,nos fomos em fua cõ- mhia acima ao templo do Tina- 3Ògoo, & ainda então com traba- 10 chegamos ao outeyro onde elle

ruas muy to compridas, cheyas todas de balanças pinduradas de tirantes de bronzo,nas quais fe pefaua infini- ta gente para cumprimento de votos que emadueríidades & doenças ti- nha feitos,& para remiífaó de quan- tas culpas tinhaó cometidas contra Deos desde que fouberaó peccar até aquella horaj & fegundo o prometi- mento, ou a graueza da culpa; ou a pofsibilidade que cada hum tinha,af- ii íe pefaua. E a coufa que daua por fy era cóforme ao peccado que tinha cometido. Porque os queíefentião culpados no peccado da gula, & não tinhaó feito naquelle anno abftinen- cia nenhúa,fe pefauáo a mel, açúcar, ouos,& manteiga, por ferem coufas agradaueis aos Sacerdotes de quem auião de receber a abíòluição. E os q feíintião culpados na íenfualidade,fe pelauáo a algodão, & frouxel, & pa- nha,& roupa, & vinho, & cheyros, porque dezião queefías eraó as cou- ías que feruião para cite peccado. Os tíbios & froxosno amor de Deos, ôc auarentos no dar das,efmolas fe pefa* uao a dinheyro amoedado de cobre, eítanho)& prata,ou-a peças douro.Os culpados na preguiça,fe peíàuão a le- nha,arroz,caruão,porcos,& fruyta.O que peccou na inueja, de que íe não tira mais fruy to que o pefar do bem que Deos quizdar aoutrem,opaga^ ua com o confeíTar publicamente,& com lhe darem doze bofetadas no rofto em louuor das doze luas do an-5 no. E o peccado dafoberbafepaga- ua a peixe feco,& a vaíTouras>& boíta

de

Teregrinaçoes de

de boy,por ferem coufas mais baixas uão paíTante de ce mil pardaos dou que ttfdas, & o que peccou em fallar muyto em perjuizo do próximo fem lhe pedir por ido perdão, offerece por (y na balança húa vaca, ou hum porco,ou carneyro,ou veado.de mo- doque por eíta via íe pefaua infini- dade de gente em todas as balanças que eílauao neftas feys ruas, de que os Sacerdotes recebiáo taó grande quantidade deílas efmollas, que de cada coufaauia rumas muyto gran- des. E o pouo mais pobre que não ti- nha que dar nem que offerecer em remiííaó de feus peccados, daua os cabellos da cabeça, que logo alylhe truíquiauão mais de cem Sacerdotes, que todos por ordem eftauão para iíTò aíTentados em tripeças com ti- fouras nas mãos- E també auia muy- to grandes montes daqueiles cabei- los, dos quais outra companhia de mais de mil grepos todos poílos em ordem,faziaócordoês,tranças,aneis, ôc manilhas, que toda a gente cópra- ua para leuarem para fuás cafas, co- maentre nos cuítumaõ os romeyros que vem de Santiago trazer os brin- cos dazeuiche. E porque não pareça abufaó ifto de que tratcaffirmo real- mente que efpantado efte nofíò em- baixador das coufas increiueis que aquy vio, declarandolhe os grepos a íignificaçáo de cada húa delias, & o q rendião todas eílas efmollas , & as mais oíFertas que íe orTerecião por di- uerfascouías nos quinze dias deite concurfo,lhe affirmaraó que fomen- te eftas coufas que fe fazião dos ca

ro,que íaò nouenta mil cruzados d; n-oflà moeda,«& por aquyfe julgara ( muyto mais a que todo o outro po dia chegar. Defpois que o embaixa dor fe deteue hum efpaço neftas rua das balanças, paliando maisadiant por todas asefíaçoés dos facrifícios efmollaSjentremefes^aileSjautoSjmi íicas,& lutas,chegamos â cafa do Ti nagoogoo com aífaz de afróta & tra balho,por fer a gente tanta em tant quatidade, que não auia romper po ella por muyto que niíTo fe traba lhaíle* a qual cafa era de húa na ue,mas muyto comprida,larga,& el paçofa,& muyto rica ôc bem concei tada, com infinidade de luminarií de cera, ôc de candieyros de prata d dez doze torcidas cada hum,& mu) tos cheyros de aguila ôc beijoim. ( idolo deite Tinagoogoo eftauà qu; do aquy chegamos no meyo do coi po da cala.em hua rica tribuna com altar cercado de muytos candieyrc ôc caíliçaes de prata, &demininc veftidosderoxo, que comtribulos eftauão encençando ao fom de mu tos ôc muyto vários eírromentos mi íicos,quaíi ao noífo modo que mu\ tos Sacerdotes tangião não defeor certadamente, ao qual íòm dar çauao também diante delle molhen muito fermoíãs ôc ricaméte veftidaí ás quais o pouo daua as efmollas fe orTerecião, ôc da mão delias as r< cebiao os Sacerdotes, & asoíFereciã diante da tribuna do idolo gran des cerimonias de corteíias, deitar

bellos da gente pobre, lhe importa- dofe de quando em quando de bru

9

Fernão Mende^ Tinto.

is no chão. A eílatua defte monftro a de prata em vulto de homem a- gãtado, de vinte 6c fete palmos em covinha os cabellos de cafre, Ôc as :ntãs dos narizes muyto disformes, os beiços groíTos,& toda a fifono- ia do roílo triftonha ôc mal aíTom- •ada. Tinha na mão húa bifarma a iodo de fegur de tanoeyro, mas co ,bo muyto mais comprido, com a .laldeziao os Sacerdotes ao pouo q noite paíTada matara a íerpe tra- idora da concaua funda da cafa do, imo,por quere* roubar a cinza dos crifícados; a qual fèrpe tragadora tauanomeyo da caía diante da ibuna do idolo, em figura da mais cftemelhauel cobra que o entendi- léto humano pode imaginar, Ôc tão aturai em tanta maneyra que me

fundo de condenação, enuejofa dos beés do Senhor, dragão esfaimado no meyo da noite, & aísi lhed.ezião, outras muy tas injurias ôc afrontas, por húas palauras tão nouas ôc tão. próprias aos effeitos, da mefma fer- pente,que nos fa-zião a todos pafm ar;. & paítando adiãte lançauão nuas ba- cias q eftauão ao da. tribuna fuás efmolas de ouro, prata, ancis, peças de feda,dinheyro amoedado, Ôc pan- nos finos dalgodao, de que aly auia hua grande quantidade. Daquynos faymps em companhia do embaixa- dor^ fomos elle ver as lapas dos penitentes, que pelo bofque abaixo eftauão obra de hum tiro de berço, feitas â mão entre hus penedos de ro- cha viua núa grande ordem de fur- nas,coufa que não parecia poder fer

aturai em laui-íi "»<«"*/ *" t -- L* % t'' *

amedo,&ascarnestremiãofódea ' feita por mãos de homes, as quais e

erem,a qual jazia eftirada no chaÓ rao por todas cento & quarenta ôc

d comprido,& com a cabeça corta- a,era no colo de groífura de hua pi- a,& de oito braças de comprimen- 3,& com quanto eftauamos vendo, [ entendíamos muyto bem que era rtificial,nem iíTo baftaua para dei- ar de fazer temor ôc efpanto muyto ;rande a quem a via, por fer, como ligo tão natural em tudo, que fe ião podia julgar fenão por coufa vi- ia,& toda a gente fe chegaua a picar íella com hús ferros como agulhas lalbarda,& lhe deziamuy tas pala- vras injuriofas em feu»defprezo ôc a- :ronta, chamandolhe turbação, ma- úranee, valoo, hapacou, tangamur, cohiloufa,que quer dizer, foberba, rnaldita,payol do inferno, lago pro-

duas,em algúas das quais eftauão ho- mes que elles tem por fantos fazédo penitencia com hum eftranho excef-, fo de aufteridade, ôc afpereza de vi- da. Hus doze que eftauão logo â en- trada nas primeyras lapas, unhão as veftiduras pretas ao modo dos bon-, zos de Iapaó, ôc feguião a ley de hu idoloquefora hum homem que fe chamou Situmpor micay, que dei- xou por preceito aos feus fequazes, q em quanto eftiueíTem vertidos na podridão deftes oíTos paíTaífem feuy dias em muyta afpereza de vida,por que lhes affirmaua que no caftigo da carne eftaua o merecimento do ceo muyto mais que em outra coufa nenhúa,& que quanto mais fem pie- dade

«Ia de fe matafíem por íy, tanto mais largamente lhe auia Deos de dar to- dos osbeés quefempre lhe pedifsé, Eftes que aquy vimos nos diíferaò q naõ coimão ordinariaméte mais que íos ertias cozidas com feijões torra- dos^ algúa fruy ta filueftre, que por hum buraco da furna lhe botauão outros Sacerdotes como crauftais q tinhao cuydado de prouerem eftes penitentes conforme ao quemanda- ua a ley que cada hum delles feguia. Adiante deites em outras furnas da mefma maneyra vimos outros dafei ta de outro diabo por nomeAnge- macur, que eftauão em húas couas debaixo do chaó,cauadas no mociço dameíma rocha, & eraó feitas con- formes a opinião deftes coitados, os quais íem comerem outra coufa íê- naó mofcas,formigas>alacraas,& ara- nhas,com çumodehúas eruas q ne- fta noíla terra chamáo falgadeyras, meditando todo o dia & toda a noi- te cos olhos no Ceo, & ambos os pu- nhos das maós cerrados em íinal de não quererem nada do mundo, íè deixáo morrer como beftas, & eftes comummente fe tem entre elles por mais fantos que todos, & por ferem tais, deípois tte TnoTtos-os^peímão em fogueyras cheyrofas de grande cuíto, & com grande mageftade, & pompa fúnebre, & com offertas de peças ricas para lhe edificarem tem- plos fumptuofos, paraque os viuos q iftó virem cubicem fazer o rneírno, para alcançarem efta vamgloria que o mudo lhe fomente por premio &fatisfaç>ãodaíiia tão excefsiuape-

Teregrindçoes de

nitencia. Vimos mais outros de out

diabólica feita, inuentada por hum

fe chamaua Gilcu mitray, os quais

guem diuerfas mancyras na orde

da penitencia, & quaíi que na vari

dade das opiniões fe conformaó e

parte cos Abexins da Etiópia no re

nodoPrefteloaõ. Hús deftes, poi

o feu jejum,pela afpereza com que

fazem,lhe feja milhor recebido, m

comem mais que efearros podres

muyto vifcofos,& gafanhotos,& pa

de galinha. E outros comem poft

de fangue coalhado das fangrias d<

outros homés,com fruytas & eruas ;

margoías do mato,poronde ordin

riamente durão muyto poucos dia

& faõ tão disformes na cor & na ap;

rencia dos roftos, que metem med

aquém os vé. Vimos também outre

da feita de hum que fe chamaua Ge

domeirijque acabaó feus dias por ar

darem gritando continuamente , t

batendo com a maó na boca, pele

montes de dia & de noite em voze

muyto altas, dizendo fem defeança

rem Godomem,Godomem, atéqu

caem mortos no chaó por naõ po

derem tomar fôlego. Outros vimo

também de outra feita que fe cha

mauão Taxilacoés,que morrem indi

muyto mais beftialmente que todo

eftoutros,porque fe metem em lapa,

muytopequenas, & muyto tapada-

que ja para iftb tem feitas ao propo

fito de fua tençaõ, & fazendo dentre

grandes fumaças cie cardos & ramos de trouifco verde fe deixaó afsi afo- gar. De maneyra que todos eftes eftastaõ varias & taó cerriueis afoe-

rezas

Fer

mo

ezas de vidafaó marcares do demo- jio,o qual lhes por premio delias finfei no para femprê.: ípjelo qual.hs ibula digira; de .grádilsitóa, dor fofo® «neto vero muyto queceftes mife- auueisi fazem por íe perderem, & o rouco que os níiais dos Chriltaòs rap- temos por nos faluamos*

íúT. CLXÍl.

Do que mais paffamos •£>■ vimos

antes de chegarmos a cidade ' de^imvíão,

q

Eípois de viíras. todas eítascouíarscô aííaz ef- panto de todos , nos partimos deíle pagode J de Tinagoogoo,& có-

ydc*Timo.

201

nuamos noííb caminho por efpaço -Binais treze dias em q chegamos a uas muyto grandes cidades,íltuadas borda do rio defróte hua da outra m diftãciade pouco mais de hu tiro epedra,hua por nome Manauedee, í outra Singilapau, & no meyo do io,<j aquyjâ era mais efíreito, eítaua inlheo redondo que a natureza ály riara em pedra viua de trinta & feys raças dal to, 8c mais de hum tiro de efta em Iargo,no meyo do qual e[-: lua edificado hum caítello roquey- a çõ noue baluartes, & cinco torres, por fora do terrapleno do muro e- i fechado todo em roda com duas rdés de grades de ferro muyto grof is,& dos quatro baluartes que eíta- áofronteyros às duas cidades cor- iáo duas cadeas de ferro.que fecha-

uãoemambas;de maneyra ão rio ca ellas ficaua fechado fem poder en- crar por cile coula nenhúi:.. f *a cida- de de [tas duas que ie chamaua Sm- gilapau;fahio o Embaixador em cer- ra, ondíe lhe foy.feico muyto gaíalha- do peio Xemim âum q era capitão della,& proueo atodosos feus com muyta abundância de refrefco.E par tidodaquy ao outro dia pela menhã acompanhado de vinte iauíeeés de remo em q hiaõ mil homés, chegou quafi âveíperaàstau.mgrás do rey no,q eraó dous caftellòs muyto -for- tes q de hum outro com cinco, ca- deyas de latão muyto groíías fecha- uão toda a largura do rio de máney- ra q nenhua couía podia paíFar por eile. Aquy chegou hum home num íèroaligeiro,& diíTe ao Embaixador quefoíle furgiraodiuão de Campa- lagrau,qera hum dos dous caftellòs que eftaua da bandadò Sul, para mo ftrar aív a carta cue leuaua do leu Reyparaò Calaminhan,& fe ver Te vinha na lorma ordinária com que fe lhe cuíruma a falar, o que o Embai- 'xadorlogo fez, & defembarcando em terra,entrou cm hua grande cafa, onde eflauao três homes aííentâdos a hua mefa acompanhados de outra muyta gefue nobre, os quais o rece- berão com gaíàlhado, $c preguntan- dolhe o que queria como homês que naõ fabiaóo a que vinha,lhes refpó- deoelleq era Embaixador do Rey do Bramaa fenhor do Tanguu, 8c trazia hua embaixada para o fanto Calaminhan fobre couías muyto im portantes a Teu eftado, E defpois de- C C reípon-

refpondera certas preguntas que por cerimonia lhe fízeráo- os três princi- pais que eftauão á mefa,lhes moítrou aeartayna qual emendarão algúas pa> latiras que vinháo fora do eftilo por- que fe lhe cuítuma a falar,& cambem lhes moftrou o prefente que leuaua, de que todos hcaraó muyto efpanta- dos, principalmente quando viraó a cadeyra douro,& a pedraria do eli- fante,cujo preço Ôí valia, fegundo o dito de muycos lapidairos era de qui nhentos^ou feifcentos milcruzados,a fora outras muytas peças muyto ri- cas que também leuaua, como jadif- fe. Deípois que o defpaeharaó neíta mefa daprimeyra tanangraa,nos fo- mos â outra que eftaua mais adian- te,daíy húa legoa,pelo rio acima, na qual achamos outros homésde muy- to mòr refpeitOjOS quais também outra noua cerimonia viraó a carta &o p relente, & puferaõ em todas as peças hús cordoes de retrós encarna* do com três mu trás de lacre,que foy o remate para a embaixada poder fer recebida do Caiaminhan. Eneíte mefmo dia chegou hum recado de cima da cidade do Queytor que era o Gouerrtador do reyno, em que daua yiíitar o Embaixador compre-. Tentes de muyto refrefco, aísi de car- nes como de fruitas, & de outras cou- fas ao feu modo, E em todos osnoue dias que efte Embaixador aquy mais efteue foy fempre prouido muyto largamente de todas as coufas, afsi para fua peflba, como para todos os ieuS) & a foraifto teue muytospaíTa- tempos àt pefcarias, caças, banque-

tes, rauficas, âc farcas reprefentaá por molheres muyto fermofas & t tamenteveUid&s, E neftesmefm< noue dias}nésòs Portuguefescom] eença do Embaixador fomos ver a igúâs coufàs que a gente da terra m tinha gabactbyde edificios-4n|ígos, pios fumptuofõs & ricos, quintis^ c ftellos,& caías q eftauão ao longo d fte rio feitas; por €^^0' mod de fortaleza & curto grandifsimOje cré ás quais foy húa hofpedaria c peregrinos que tinha por, nome M; nicafaraó, que em nofía. lingoagei propriamente quer dizer prifaódí deofes, a qual era húa Cerca de ma de húa legoa em roda,eó doze ru; de arcos dabobada, em cada húa d; quais auia 240. cafas,a razão de cet & vinte por bãda,q ao todo vem afj zerduas mil ^oitocentas &oitem cafas,as quais a efte tepoeftauão.qi todas cheyas de peregrinos q cie < uerías partes aquy concorre em pei grinaçãotodo oanno continuamét & dizé ellesq por fer deos catiuo d gente eftrangeyra,& não ter liberd; de para fe poder tornar para fua te rança muyto mais aceita efta viíít; cão que codas as outras. A eftespi regrinos, que^ fegundo dizem os nj curais da terra; íaó em todo oann mais de cem mil peíToas continuas,! comer, & gafalhado todo o ten po q aquy eftão â cufta das renda & das efmollas dacafa. Eefteferu ço deites peregrinos era miniftrac por quatro mil Sacerdotes do mefm ManicafarJo, q com outros muyt( reíidem aquy dentro nefla cerca ei

cent

Fernão Alencfe^Phno. 20?

cento ôc vinte cafas de religião, onde deixo de contar,* não podendo en-

lutam bem outras tãtas demolheres q íeruem no meímo minitterio.O te- pio defta hofpedaria era húa cala muyto grande de três naues, a modo das noíías igreijas, no meyo da qual eíhua hua capella redoiíd a, fechada três ordés de grades de latão muy :o groffas feus aldraboés nas por- ias da mefma maneyra,& dentrqnel a eftauão oitenta eftatuas de ídolos ?m vultos de homés,& de molheres> :om outra fonia de outros mais pe- quenos deitados no chão,& os oitéta Õmente, que erão os mayores, efta- ião em pé, prefos todos porcadeas le ferro,& colares g-roflos do mef no aos pefcoços, & algús algemas ias mãos,& os pequenos que jazião 10 chão como filhos deftes mayores, ftauão cingidos pelas cintas de féis m féis com outras cadeas mais dd~ ;adas,& por fora das grades em duas utras fíleyras de três em três a fíley- í, eftauão duzentos & quarenta ôc uatro gigantes de bronzo, de vinte i cinco palmos cada hum,com fuás labardas & maças âs coftas, como q uardauão os outrosq eftauão prefos, : em todo cima,emtirantes de ferro tomauão toda a largura da naue, taua húa muyto grade Toma de lu- linarias a modo de cadieyros da In- a de dez torcidas cada hu, os quais ão inuernizados, como também o ao as paredes da cafa,&tudo o mais fe via nella, em final de trifteza pe- ! feu catiueyro. Eípantados nòsos 3ue afsi difto que tenho contado, >mo de outras muytas couías que

tender o íegredo da prifaõ deftes deo íesjpregumamos aos facerdotes pela dignificação difto que víamos, a que humdelíes que entre todos parecia de mais autoridade refpondeo : q como eftrangeyros quereis faber o q eu entendo q nunca ouuiftes, nem os voíTosliuros tratarão difto, diruosey o que ifto he, &ocomopaíiou na verdade conforme ao que concão as. nofías hiftorias. Agora neífa lua em q eftamos faz fete mil &trezétas & vin te luas (que íàõ feifcentos Ôc dez an- nospela conta das outras nações) 6 imperando na Monarchia dos vinte & íete reynos defla coroa hum fanto Caiaminhan", por nome Xixiuarom mc!eutay,fobre diíferenças q ouue etv cre ellc & o Síãmon Emperador dos motes da terra, fe ajútaraò de ambas as partes feflenta & dous Reys, os quais poftos todos em capo, vieraõ a ter entre fy hua cruel ôc afpera bata- lha,^ durou deída hua hora anteme- nham até os dous terços do dia paíla dos,em q morrerão de ambas as par- tes dezafteis laquefaas de homens, & cada laquefaa te mil. E ficando en- tão a vitoria co noílb Calaminhan c5 fôs duzétos & trinta mil dos feus vi- uos,deftruyotoda a terra dos inimi- gos em tépo de quatro meíès de ca- minho,na qual deftruyção foy tama- nho o eftrago da géte,q fe he verdade o q as noíías hiftonas contão, como muytosaffirmão,nellas fe aehaq mor rerão cinqueta laquefaas de pefToas.' Efta batalha fedeu aos noue dias da primeyra lua defte tempo que digo, CCi de

Teripin

d e fete mil & trezentas & vinte no a- faraado capo vitau, onde lhes apare- ceo o QuiayNiuandel aíTentado nua cadeyradepao,o qual ficou daquy grão de nome mais hórofo q to- dos os outros deofesdosMoés&Sioés celebrado por deos das batalhas, em tãto q quando fejuráo coufasíncrei- ueis entre as nacoés q habitâo a ter- ra,para fe lhes dar credito a ellas,não fe diz outra coufa íenáo pelo .fanto Quiay Niuádel deos das batalhas do capo vitau, & em hua grande cidade q íe chamaua Sorocataó, em q foraõ mortas quinhétas mil peíIoas,fc catH uaraó todos eftes deoles q aquy ve- des prefos em defpeito dos Reys que criáo nelles, & dos facerdotes q lhe miniftrauaóocheyro íuaue de íeus facrificios, E por efte refpeito defta vitoria tão gloriofa todos eftes pouos nos ficarão fogeitos obrigarão de parias hórofas à coroa dos que agora gouernaõ o cetro da juftiça Calami- nhan,inda q cuftado aííaz de Tan- gue & trabalho em fefíenta ôc quatro, aleuãtamentos q dentaó para ou- ue em todos eftes pouos,os quais nao pode íofrer veréíeus Jeoíes catiuos, porq na verdade he grande afróta pa ra elles,& íobrc q feito voto de em quanto os naô tiraré daquy naõ ceie braré fefta nenhúa em q fe enxergue alegria,né nas fuás brallas ôc caías de ©raçaó fe accendeo mais fogo até o, dia de ojet nem fe acendera em quan to aquy eftiuerem çatiuos. E efpecu- lado bem efte negocio por algus dos noíTos q eraòmaiscuriofos, le affir- ma,fegundo o dito defte grepo, & pe

âcoh de

lo q aly nos jurou em fua verdade, q fobre a libertação deftes Ídolos que aquy. vimos prelos, íaó mortos por alguas vezes mais de três contos de homens,a fora os das batalhas palia- das, donde fe pode Ver claramente quanto o demónio tem fojeitos eftes miferaueis^por quantas maneyras de defpropoíitos & delatinos os leua em tanta quantidade ao inferno. Da- quy nos partimos para outro templo q íe dezia Vrpaneíendoo,de q me cufo dar relação, por não tratar de matérias deshoneftas ôç abomina- ueisjdo qual deixado a parte a excef íiua fobegidão do q nçlle vimos,afsj de riqueza como de tudo o mais, dt< rey fóméte o de q ferue q he de toda! as molheres virgés filhas dos princi- pes ôc fenhores do reyno, ôc de todí a outra mais géte nobre irem aly poi voto q de pequenas' lhe fazé faZer,fi çrificar fuás horas, porq Tem ifto nãc quer nenhú homem honrado caía com ellas, ainda que lhe dem todo ( dinheyro do mundo, por fer entre el les deshonra muyto grande, o qua torpe ôc íênfual íacrificio fe faz con tanta defpefa de fuás fazendas, q h, muy tos delles em q fe gaftão de de; mil cruzados para cima,có as offerta q fe fazé a efte idolo Vrpanefendoí aquém ellas entregáp fuás honras, | qual eftá em bua capella redond; toda coziçla em ouro,& he feito tod de prata,& eftâ aífentado em hua tri buna a modo de altar cercado pc cima de muytos candieyros tamb de prata de feys fete torcidas cad hum, ao redor defta trihuna efta

outrc

Fernão Mcnde^ Tinto.

205

outros muytos Ídolos em vultos de molheres muyto fermofas cozidos emouro,q cos joelhos no chão &as mãos leuátadas o eftao venerando,as .quais os Sacerdotes nos diííeraó que crão almas fancas de algúas moças q aly acabarão as vidas,q para todos os parentes delias fora húa grandifsima hora, & q mais efti mão q todas qua- tas os Reys lhes podem dar. eíte maldito idolo de renda cada anno,íè- gundo aly nos af firmarão, trezentos mil cruzados,a fora as oífertas & pe- ras rieasdos íeus abominaueis lacri- ficios.que fe orção em muyto mayor quantidade.Nefte diabólico templo eítão metidas em religião em muy- tas cafas q vimos mais de einco mil molheres,mas o q notey he5q faò to- das velhas,fem nenhúa íer moça,& a mayor parte delias muyto ricas, as quais todas por fuasmortes fazé doa- ção de feus beésa eíte pagode,& por iílo elle tanta renda. Tornãdonos daquy para a tauangraa onde deixa- ramos o Embaixador, fomos de ca- minho veras cabildas dos jogues q aquy vinhãoem romaria pela ma» neyra q atras tenho dito, q eraô qua- réta & feys,de céto,duzétas, trezétasv ■Si quinhétas peflbas cada cabilda, ôc àlguas de muytas mais, q como num aTrayal,eftauão todas alojadas ao lo- co do rio. Em húa deftas achamos íua molher Portuguefa, de que fica- mos muyto mais efpantados q de tu- do quato aly tínhamos viílo,& que- rendo nòs faber delia a razão de tão eftranha nouidade,nosdiíTe co muy- tas lagrimas que era,&o modo como

aly viera,& fe caiara hu jogue que. peregrinaua naquellas cabildas, q fora cafada 23, annos, Ôc ao prefente eftaua viuua delle. B porq ue naó fe atreuia a viuer entre Chriftaós, cóti- nuaua naqlla defauétura ate q Deos a leuafie a terra onde acabaííe íeus dias fazer penitencia da vida paffada. Mas q ainda q a viíTemos aly daquel- la maneyra^&naqueiles trajos do dia bo,nuoca deixara de fer verdadeyra Chriítá. AíTazefpãtados ficamos to- dos de hu caio táonouo como eíte,&; cambe aíiaz triftes de vermes o dela' uéturado eftado em q eftaua efta po- bre molher,& lhe difièmos entaó o q nos pareceo razaò, & o q íe nos ente- dia^ por fim da pratica afíentou noíco de yr dahy a dez dias ter â ci dade de Timplão,para fe vir em nof fa cõpanhia para Pegu^ dahy fe em barcarpara Choromandel,& acabar feus dias na pouoação doApoíloloS, Tomè.Có efte concerto, q ella affir- moucójuraméto,nosdefpidimosdel la,parecedonos q fem dnuida não fa- ria outra coufa por naó perder hua taó boa occaíiaõ de tirar da erro-' nia em q andaua,& tornaríê a eftado em q íè pudeíTe faluar, como era or- denar noífo Senhor q nos encócraífe naquella cerra tão apartada,& taó 16 ge do q ella podia cuydar nem efpe- rar,pore ella em tudo nos faltou, por q nuca mais a vímos,néfoubemosno nas delia, por onde parece q ou de- uia de ter algú grande inconuenien- te com q naõ pode cornar,ou andaua caõdefatinada em feus peccados que por elles não mereceo aproueicarfe C C 5 deita

Terigrlndçoes de deita mercê q noflb Senhor por fua ualio, &muytos elifantes de peleja

infinita mifericordia lhe pos diante

QAT. QLXlll

T)eque maneyra eHe Embaixa- dor do ^ey do ^Bramaafoj recebi- do no dia da fua entrada, &• da grande mageílade & apara- to das cafas do Qda- minban.

AÍTadososnone diasq tfte Embaixador aquy ■íê deteue,q hc cerimo- nia que lhe fizerão por honra da fuaembaixa- da,como he cuítume daquella terra, o veyo bufcar da cidade hu dos go- uernadores delia por nome Quam- panogrem,acompanhado de oitenta íèroos & laulees muyto bem concer- tados de efquipaçjão,& de géte muy- to luzida, tanta diueríldade de tã- geres bárbaros ôc deíconcertados q quaíi fazião tremer as carnes,porque os mais delles erao finos,bacias, tam- bores,atabales,feftros,cornetas)& bú- zios^ fobre tudo a grita da chuzma q parecia coufa de encantaméto, ou, para dizer milhor, muíica do infer- no,fe algúa. Com efte défcon- certadoeítrondonos partimos para a cidade, que feria daly pouco mais de hõa legoa, onde chegamos ja qua íi ao meyo dia, & abordados ao pri- meyro caiz que fe dezia Campalar- raja,vimos nelle infinidade de gente muyto luzida,afsi de como de ca»

muyto concertados, cadeyras & caftellos guarnecidos de prata, ôc fuás panouras de guerra nos dentes, q os fazião muyto temerofos.Defem b arcado o Embaixador em terra, o Campanogrem,que era o Mãdarim que o trazia,o tomou pela mão,& íéntado em joelhos o entregou ao ou tro que o eftaua eíperando no caiz com grande eftado, por nome Pate- dacão,homem dos principais dogo- uernodoreynoj&fegundo íe dezia, de muyta renda & vaíTallos, o qual defpois que com hua noua cerimonia de corteíiafe entregou do Embaixa* dor,lhe ofTereceo hum elifante que tinha apar de fy, concertado com ca- deyra & jaezes douro, mas o Embai- xador o não quiz aceitar por muyto que oMandarim infíftio niííojfic má- dando logo trazer outro quaíi da meíma maneyra,lho deíi^Sc para nós os noue Portuguefes com mais ou- tros cinquenta ou feífenta Bramaas trouxeraó cauallos em que todos £0» mos. Defta maneyra abalamos da- quycom grande eftrondó de tange- res & gritas,& dezaííeis carretas com atabales de prata, & outras tantas de tambores ôc íinos, & fomos att» dando "por húa grande copia 4e ruas muyto compridas, das quais as noue fomente eraõ fechadas com grades de lataó, Ôc nas entradas del- ias arcos de obra rica 9 em que a- uiamuytos curucheos todos doura- dos,& iinos de metal muyto grandes, q como relógios dauáo as horas aos quartos d o úiay qhe o por ode o pouo

ordina-

Fernão Mende^Pinto. 204,

ordinariamente íè gonerna. Chega- caftellos&cadeyras ricas de diuerfas

dosnòscomaííàz de crabalho,pelo grande concurlo de gente que auia pelas ruas, ao primeyro terreyro das calas do Calaminhan, que teria de comprimento quaíi hum tiro de ber co,& a largura em proporção conue- niente,fe deleicaraò os olhos aííaz no que viraõ nelle, porcj a efte tépo efta» ua (fegundo algús q o viraó) mais de íeys mil decauallo,todos com cu- bertas de feda,& arreyos de prata,& os homés todos armados de coííole- tes de cobre ôc de latão,com fuás ce- ladas de argentaria, & bandeirinhas nas mãos, & rodeiras Sc adargas nos arções das fellas,da qual gente era ca- pitão o Queitor da juítiça, que he o fupremo Gouernador delia íobre to- dos os miniftros do ciuil ôc crime, q he jurifdição feparada por íy com mero & mifto império, de que não ha appellação nem agrauo. Chegan- do o embaixador a elie, quejâ a efte tempo o vinha demandar apeado os dous Mandarins que o trazião, fe proftrarão todos aísi comohiaono chão três vezes,que he outra noua ce rímonia de corteíia entre elles, a q o Queitor não refpondeo mais q íô- mente lhe tocar com a mão na ca- beça^ darlhe treçado q tinha na einta,q o Embaixador aceitou delle, &o beijou três vezes. O Queitor o pos então júto cófigo, ôc deixando os Mandarins ambos pouco atras,a- balarão pelo meyo de húarua de eli- fantes,q era do cóprimento de todo O terreyro, em q aueriamais de mil &quinhetos,& todos ajaezados com

inuençoés, ôc muytas cubertas ôc ban deyras de feda, ôc ao redor dciles miiytcs homês de alabardas, cuja vi- fta daua de (y moftra de hum grade aparato &mageftade, por onde to- dos julgamos íer efte príncipe hum dos rnayores & maispoderofos da- quellas partes,aísi em riqueza, como em eftado. Chegados nòs a húa gra- de porta que eftaua entre duas torres muy to akas,na qual eftauão duzétos homés armados,q em vedo o Quei- tor fe puferão todos cos joelhos em térra,entramos por ella,& fomos dar em outro terreyro muy to comprido, no qual eftaua a fegunda guarda dei Rey q erão mil homés de efpadas 'ôc adargas, armados de armas doura-, das,có celadas de argentaria douro Sc de prata, & muytas plumas de diuer- fas cores- EpaflTando pelo meyo de toda cfta gente,chegamos a grade pátio do recebimento das cafas, on* de eftaua Mandarim tio dei Rey, por nome Monuagaruu, homem de mais de fetenta annos, acompanha- do de gente mnyto nobre,com muy- tos capitães, &fenhores do reyno, Ôc em torrão delle eftauão doze mini- nos ricamente veftidos, com cade- yas douro groíTas a tiracolo,& maças de prata aos ombros. Efte,em o Em- baixador chegando a elle, lhe tocou na cabeça hum auano q tinha na mão,& lhe diíTe, a tua entrada nefta cafa do fenhor do múdo.feja tão agra dauel diante dos feus olhos, como a chtuia no campo dos noíTos arrozes, porq fendo aísi te concedera o q teu CC4 Rey

Terigrinaçoes de

Reylhepede. Daquy fubimos por ze vultos de Reys também de prataj

húa grade efcada acima, & entramos em húa fala muyto cõprida, na qual eftauáo muytos ienhores & capitães & outra muyta gente nobre, que em vendo o Monuagaruu fe leuantarão todos em pe como q conhecião nelle fuperioridade.Paííando efta fala en- tramos em outra caía onde eftauão quatro altares muyto bem concerta- dos,todos com Ídolos de prata, em hum dos quais vimos húa molhcr como hum grande gigante de trin- ta palmos dalto,cos braços abertos, olhando para o Ceo, a qual era tam- bém de prata, & tinha os cabellos douro muyto cumpridos lançados íbltos por cima dos ombros. Auia aquy também húa tribuna,em torno da qual eftauão trinta gigantes de bronzo fundidos, com macas doura- das ás coftas,tão feyos dos roftos co- mo o próprio demónio. paflTada efta caía entramos em outra muvto có- prida a modo de corredor, guarneci- da dalto abaixo de muytos prateley- ros de pao preto marchetados de nurfim,cheyos todos de muytas ca- ueyras de homés, todas com letrey- ros nas teílas de letras douro que de- clarauâo os nomes de cujas erao, No cumprimento de toda efta caía auia doze tirantes de ferro dourados,che- yosde muytas luminárias de prata de muyto cuftofo feitio, & muytas a modo de tribulos em q ardião muy- tos piuetes decheyrofuauifsimo, & caçoulas de ambre & calambaa. E num altar redondo fechado três ordcs de grades de ptata,eftauão tre«*

com mitras de ouro nas cabeças, de encima de cada húa delias eftaua húa caueyra de home, & embaixo muy- tos caftiçaes de prata com vellas de cera branca, as quais os mininos ti» nhão cargo de efpiuitar cantando â confonancia de outras vozes entoa- das por grepos a modo de ladainha, a que huns aos outros íe refpondião* Eftas treze caueyras que eftauão en- cima deites vultos, nos diílerão os grepos,que foraó dos treze Calami» nhans que antigamente ganharão a* quelle império a húa gente foraftey- ra por nome Roparoés, que por ar* mas o tinha vfurpado aos naturais donde elles todos decendem, & quff as mais caueyras que aly viramos naquellesfagiraues que eraõ os pra* tileyros,foraó também de capitães cj nareftituyçao daquelle império fa- zendo feitos heróicos acabarão as vi- das honradamente, pelo qual era ra- zão queja que a morte lhes tinha ti- rado o premio que merecerão por íuas obras,íhe não tirafle o mundo a memoria que fe lhes deuia, o qual a os bós& animoíos faria inueja com que fe lhesacrecentaílè o animó,& a os fracos & couardes feria confufaõ defua fraqueza. Paffada efta cafa a- trauefíamos por húa cumprida pon» te a modo de rua, toda com arcos de obra muyto rica & cuftofa,& fe- chada toda com grades de latão com fuás cimajhas de prata & efcudosdar mas letreyros dourados, os quais encima nas voltas dos arcos tinhaó por timbre mapas re dedos de prata,

de

de mais de feys palmos em roda fei- tos com grande primor & cufto,em q íc moftraua hum real aparato & ma- geítade.PaíTando por efta grade rua, 90 cabo delia chegamos a húa gran- de cafa, a qual nefte tempo tinha as >ortas cerradas, & batendofe nellas quatro vezes por cerimonia, não ref- >ondeo ninguém de dentro, até que ocaraó hum fino aprefladamente nitras quatro vezes, ao qual acudio ma molher de mais de cinquéta an« ios,acompanhada de feys moças pe- juenas ricamente veftidas, com fuás ltirnas de prata fobraçadas ao mo- io de eftolas, ôc com trepados de cha ►ária douro às coitas. Efta velha pre- [untou ao Monuagaruu que queria, •u porque tangera o fino, ôc elle lhe eípondeo com acatamento,que tra- ia aly hum embaixador do Rey do kamaa fenhor do Tanguu, para tra- ir ao pédoCalaminhan algúascou- is importantes ao íeu feruiçoj da lual repofta a velha,pela grande au- jridade de fuapeíToa, moftrou que áo fazia cafo, de que todos ficamos fpantados,porfer o que lhe falaua o rincipalíènhor do reyno, & tio, fe« undo fe dezia, do Calaminhan, & úa das feys moças reípondeo ao Monuagaruu pela fenhora,& lhe difc :,efpere eíTe embaixador Ôc voíla randeza com todos os mais que pi elle atéfe faber fe he tempo pa- 1 podermos beijar os peis a efta tri- una do fenhor do mundo, &denú- arafeus ouuidosa vinda deíTeefc "angeyro, ôc conforme à mercê que oíío Senhor Deos niflb nos quifer

Fernão Mcnde^Tinto. 20^

fazer, afsi fe alegrara o íeu coração ôc osnoífoscom elle. E entrando para dentro íe tornou aporta a cerrar, & aísi efteue por cerimonia cerrada por efpaçode três ou quatro credos, no fim dos quais as feys moças peque- nas a tornarão a abrir,porem não vi- mos então a velha que viera primey rocom ellas, mas vimos hum mini- noque poderia íèr de noue até dez annos riquifsimamente vertido, ôc húa hurfangaa douro na cabeça,qué hea modo de mitra, mas fechada to- da em roda fem abertura nenhúa,& húa maça douro a modo de cetro pofta ao ombro,o qual fem fazer ca-* fo do Monuagaruu,nem dos mais fe* nhores que aly eftauão,tompu o em- baixador íó pela mão, & lhe diflè, a os peis da Binaigaa do fanto Cala- minhan cetro dos Reys que gouer- não a terra, foy dada noticia da tua chegada,táo apraziuel a fuás orelhas, que com boca de rifo te manda buf- carparaemfua prefença feres ouui* do do que teu Rey lhe pede,a quem nouamente recebe na guarda de feus irmãos com amor de filho de fuás entranhas, paraque fique poderofo íbbre feus inimigosj ôc metédoo das* portas para dentro co Monuagaruu íoniente,& cos três fenhores que vie raõ com eile,toda a outra mais gen- te ficou de fora: o embaixador então vendofe tão desacompanhado dos feus, olhou três vezes para trás àeC~ contente ao que parecia no rofto. O que entendendo o Monuagaruu, por quem aly fegouernaua tudo,acenou ao Queicor> que vinha hum pouco

detrás

i

Têrêgnnàçoes de

detrás delle, que fizefTe entrar os ef« aui a ninguém que não tiueíTe nuiyto1

trangey ros fómente,& abrindoíe ou- tra vez as portas para efte erJeito,co- meçarão de entrar os Bramaas, & nos os Portuguefes, & de volta com nofco foy tanta a gente que cometeo a entrada, que os porteyros todos, q eraó mais de vinte, tiueraó alTazde trabalho em fechar as portas, dando muy tas pancadas cosbaftoés que ti- nhão nas mãos, & ferindo algús ho- mcs de muyto refpeito,fem auercou faquepudeiTe deter o Ímpeto defta enchente com tamanhas gritas & vo- zariaq metiaõ medo. Entrados nós deitas portas para dentro, paííamos pelo meyo de hum grade jardim fa- bricado com tão eftranhas & varias maneyrasdecouíâs apraziueisaos o- lhos,que faltão palauras para o enca- recer, porque auia nelle muy tas ruas fechadas grades de prata, & muy^ tas aruores de cheyros eftranhos,das quaisnosdiíieraõ que erão por na- tureza tão acomodadas ás luas do an HO,que todo o tempo flor Ôc fruy- ta, & a fora ifto tanta diuerfidade de rofas, & de outras muytas flores& buninas,queo milhordifto entendo cjue he diísimulaio, pois íe não pode dizer o que paíTa na verdade. Pelo meyo deite jardim andauão muytas molheres moças muyto fermofas ôc muyto bem vertidas, recreãdofe em muy tos paiTatempos,aísi de bailos ôc danças muyto concertadas, como de muíicas de muyta variedade de in- fírumentos fuaues quafi ao nono mo do,os quais tangião com tanto con- certo^ tão fuaue armonia, que não

gofto de lhe inclinar as orelhas; ou- tras eítauão alTentadas, laurando/& fazendo debuxos, ôc cordoes douro, outras jugando, & outras colhendo fruytas para comerem,& tudo ifto tanto primor Ôc concerto,& com húa quietação taò honefta,graue, Ôc feue- ra,que nòs os noue hiamos como pai mados. Saydos defte jardim em que oMonuagaruu quiz que o Embai- xador íè detiueiTe algum tanto para ter em Peguu que cotar ao feu Rey, entramos nua antefala muyto grade, que fe deziaCutamuilau,na qualek tauão aflentados muytos capitães & íenhores,& algús principes de muyta renda ôc de grandes eftados,que com certas cerimonias de corteíias rece- berão efte Embaixador,mas não que nenhum delles íe tiraíTe do lugar em que eftaua. Paífada efta cafa chega- mos a húa porta onde eftauao feys porteyros com maças de prata,&poi eila entramos noutra cafa riquifsima mente fabricada, onde eftaua o Ca« laminhan em hum teatro de grande mageftade,fechado em roda c6 três ordés de grades de prata, acópanha- do de doze rnolheres muyto fermo- fas, & riquifsimamente veftidas, as quais eftauão das grades para dentre alTentadas nos degraos da tribuna,tã- gendo em inftrumentos fuaues,a que f os duas cantauão a reuezcs,& em to- do cima ondefua pefíba eftaua, efta- uão doze moças de noue até dez an- nos cada húa aífentadas em joelhoí ao redor delle,com maças pequenas douro a modo de cetros, ôc húa em

peque

Fernão Mende^ Tinto»

jeque o eftauã ãuariando, &' embai- to,por todo o comprimento da caía iítauão muytos homés velhos com nicras douro nas cabeças,& vertidos Jc cjueimoés Scraudiuaas de citins & ]amafcos,com guarnições largas de io douro,& com maças de prata aos >mbros, os quais todos podião fer eíTenta ou fetenta,& eftes eftauão to los encoftados ao logo das paredes^ i em toda a mais largura da cafa ef- auão aílentadas em alcatifas & tape- es ricos muytas molheres moças nuyto aluas & muyto fermofas,que bgundo o elmo dos noflbs, ferião aais de duzencas. Efta cafa, afsi na narauilhofa fabrica delia, como na rande ordem «Sc concerto de tudo o uenellaauia, affirmo em verdade ue reprefentaua húa tão rica, tão 3Ía, & tão extraordinária magefta- e,que a todos nos encheo de eípã- >, de tal maneyra que ao próprio embaixador, tratando alguas vezes ifto,ouuimos dizer,íe me Deos le- aaPeguu,eunãodirey nada difto el Rey,afsi pelo não entriftecer,co- 10 por menão ter em conta de ho- iem que finjo coufas a que fe não ode dar credito.

CAT>. ÇLXlllL

Je que maneyra esie Embaixa-

or faltou ao Çalaminhan, da re~

oílacjuelhedeuy &> como ne/ia

cidade fe pregou antigamente a

ley Suangelica.

2.0(5

Ktrandoo Embaixa- dor neftacafa,como te nho dito,acompanha- do dos quatro prínci- pes que o leuauão, fe proftrou cinco vezes no chão,fem ou lar de aleuantaros olhos para o Ca- laminhan,por acatamento notauel q que fe lhe tem, ate que o Monuaga- ruu lhe mandou que paíTaflfe adian- te, & chegando junto da primeyra grade,fempre co rofto em terra, di£ íe contra o Calaminhan em voz alta que todos ouuiraó: As nuués do ár q recreão os fruytos de que nos man- temos,tem diuulgado por toda a mo narchia do mundo a grande mage- fíade do teu poderio,pelo qual cubi* çando o meu Rey,como pérola rica, a tua amizade^è te manda por mim em íeu nome entregar por irmão verdadeyro, & com obediência hon- rofa por razão deferes tu mais ve- lho^ elle mais moço, & como a tal te manda efta carta,por fer ajoya fu- prema do feu tifouro,em que fcus o* lhos mais fe deleitão por honra ôc gofto,queem fer fenhor dos Reys do Auaa,com toda a pedraria da fer- ra Faleu,& Iatir,& Pontau. O Cala- minhan cora rofto graue & feuero lhe refpondeo,eu aceito em mim ef- ta noua amizade, para em tudoíàtis fazer a teu Rey como a filho noua- mentenacido de minhas entranhas. As molheres então tocarão de nouo feus inftrumentos como antes fazião, & féis delias dançarão com feys mi- ninos pequenos por eípaço de três ou quatro credos, & após eftes, dan- çarão

^Peregrinações de

carão feys mininas muyto pequenas & ferem ellas pela fuauidade da fua

com feys homés dos mais velhos q eftauão na caía,que a todos nos pare- ceo mnyto bem. Acabado ifto ouue húa comedia repreíentada por doze molheres muyto fermoías & muyto bem veftidas,na qual veyo húa filha de hum Rey atraueíTada na boca de hum peixe, que defpois aly era pub- lico* perante todos foy engulida do meímo peixe, o que vendo as doze, fe foraõ com muyta preífa & muy- tas lagrimas fugindo para húa hermi da que eftaua ao de hua ferra,dõ- de tornarão com hum ermitão com- figo, o qual fazendo ao feu modo grandes orações ao Quiay Patureu deos do mar,que mandaíTe lançar a- quelle peixe na praya para fe dar íe- pultura aaquelladonzeila conforme aos altos quilates da fua geração, lhe foy reípondido pelo melmo Quiay Patureu, q*ue conuerteífem aquellas doze donzellas feu pranto em muíi- ca íuaue & agradauel a fuás orelhas, & que elle mandaria ao mar q lan* •çaííe logo o peixe fora, & lho entre- garia morto em fuás mãos. E vindo então féis mininos com coroas douro nas cabeças,& afãs do mefmo,da ma- neyraquè entre nós íe pintão os An- jos,porem niis^íèra couía nenhúa íb- bre fy, fe.puferaò de joelhos diante das doze, & lhederão três arpas, & três violas, com outros algús inftru- mentos muíicos, em que entrauão duas doçaynas,& lhes diíTeraó que o Quiay Patureu lhes mádauadoOo da Líía aquelles caulanges para com elles adormétarem os peixes do mar,

mufica fatisfeitas em feirMefejfr, As doze tomarão com grande cerimo^ nia de cortefiaos inftrumentos das mãos dos feys mininos,& os tocarão, & cantarão a elles com húa armonia tão trifte,& com tantas lagrimas,que algús fenhores dos que eftauão na ca« fa as derramarão também, & conti- nuando em fua mufica por efpaço de quaíl meyo quarto de hora, virãc íayr debaixo do mar o peixe que co- mera a filha do Rey,& alsi como ar- uoado, pouco a pouco veyo morte daremfeco na praya onde as doze da mufica eftauão, & tudo ifto tãc próprio & tanto ao natural que nin- guém ojulgaua por couía cbntrafei- ta,fenão por verdadeyra, & a fora if to era feito com grandifsimo fauftc & aparato de muyta riqueza ôc per« feição. Húa das doze arrancando en tão húa adaga de pedraria que tinh; na cinta^fcalou com ellao peixe poi húa ilharga, & lhe tirou de dentro i filha do Rey,a qual ao~Tom daquel la mefmafoy beijara mão ao Cala minhan,que com grande honra a a fentou junto comfigo. E efta moça f< deziaque era fuafobrinha, filha d( hum feu irmão: & todas as outra; doze que repreferítaraõ a farça, erac filhas de príncipes ôc grandes fenho res, cujos pays & irmãos eftauão alj prefentes. Ouue também outras tre ou quatro comedias ao modo defta reprefentadas por molheres moça muyto nobres com tanto apparato primor)& riqueza?& com tanta per feicaó em tudo que os olhos não de

"ejauãc

Fernão MendcçJPinto. 207

rejauãodever mais. Ia fobola tarde Embaixador cinco vezes, afsi a ver

e recolheo o Calaminhan para ou :ra cafa de dentro acompanhado das nolheres fomente, Ôc todos os mais ~c vieraoco Móuagaruu,o qual trou- íe o Embaixador pela mão até a der :adeyrafala,& aly fe defpidiodelle, & o entregou ao Queytor, que o Içp .1011 para lua caía, onde fempre pou- !õu até fe tornar, que foraò trinta ôc 3oiis dias, em todos os quais fpy bã- nueteado dos principais íènhoresda ;orte com hum eftranho modo de jerfeiçáo ôc riqueza; 6c nós os íeus ambem fomos muyto bem proui- los de tudo o neceíTario em muyta tbundancia, & em todos eíles dias )uue fempre muytos paíTatemposde >efcarias,caçjas, ôc outros muytos de liuerfasmaneyras,&'por toda aci-; iade, ôc ao redor delia vimos alguns edifícios notaueis, ôc templos de pa- godes íumptuoíifsimos, ôc de oFfich ias & obras muyto ricas, entre os quais foy-hum muyto mais nobre & fiimptuofo que todos os outros da :idade,por nome Quiay Pimpocau, deosdos enfermos, em que auia hua> grande foma de facerdotes com há- bitos pardos, ôc fuás altirnas de da- mafeo roxOjfcbraçadas, como óif- fe algúas vezes,a modo de eítclas, os, quais por ferem mais lábios que to- dososoutros das vinte Ôc quatro fei- tas deite império, trazem hua certa diuifade cordoes amarellos, com q andaó cingidos,a que o vulgar da gé- te oor grão fupremo de honra no- meya por Sigiputoés,que quer dizer homés perfeitos. A efte templo foy o

coufas de grande admiração como a ouuir a doutrina dos que pregauâo, ôc de tudo o que aquy paííou vio,& ouuiojleuou hum volume de patra- nhas eferitas ao Rey do Bramaa,que defpois em Pegíi mandou que fe pre gaííe nos púlpitos de todas as brallas do reyno, como inda oje íe faz, do qual eu trouxe o treílado a efte rey. no,que Florentino me pedio em- preftado,& querendop eu tornar a a- uer à mão, mo fez perdidiço, ôc o ie- uou comíigo a Florença^ o prefen- tou ao duque da Tofcana,o qual me diíTeráo que o mandara imprimir titulo de crenças nouas da gentilida- de do cabo do mundo. Aquy hum dia nefte pagode o Embaixador, nua pratica que teue com humdosgre- posdequeera amigo (porque natu- ralmente todos faó bem inclinados, & caridoíbs no conuerfar^ commu- nicar cos eftrangeyros) lhe pregun- tou quantos annos auia que o mun- do fora criado, ou fe tiueráoprnci- pio eftas coufas que Deos nos mof- traua aos olhos claramente, como e* rão dia, noite, foi, lua, eftrellas, Ôc as mais criaturas a que fe não fabia por natureza pay nem mãy donde pro- cedeíTem5a que o grepo,conflado no feufaber mais que os outros que efc tauáo àroda,lhe refpondeo,q quan- to ao mundo ôc as mais coufas em cj apontaua,a que por natureza fe não fabia pay nem máy,que pay ôc may tiueraò,indaque não palpaueis ôc vi- íiueis como as outras coufas,& que o mundo por íi não tiuera mais cria-

çaS

Teregtlnaçoes

çáo que aquella que procedera da ambos fogeitosa pena de morte, &

mini

vontade do íèu criador, a qual elle em hum certo tempo determinado na faa mente diuina manifeftara aos moradores do Ceo que antes eraó. E que fegundo o que diíío era éfcri^ to,auia oitenta & duas mil luas, & q deícuberta a terra do lago das agoas, criara Deosnella bum fermofo jar* dim.em que puferao primeyro ho- mem a que pòs nome Adaa,com íua molher Bazagom,aos quais dera por preceito, pelos meter em jugo de o- bediencia, que não tocaíTem na frui- ta de húa aruorequefe chamaua Hi- faforaõ,porque eíía referuaua pa- ra fy,& comendo della,goftarião por caftigo defta culpa, o rigor do açoute dafua juftiça, a que perpetuamente ficaria obrigado com todos os mais quedecendeííem delle, E que. vendo o grande Lupamoo, íerpe tragadora da concaua funda da cafa do fumo, eftepreCeito a que Deos íojeitara o homem por lhe dar merecimento no Ceo/e fora a fua molher, &'lhe dif- fera que comeíTe & conuidaíTe feu marido,porque lhe afirmaua que em comendo íícarião ambos na fabedu- ria muyto mais excellentes do que Deos os criara,& liures daquclla na- tureza pefada de que os compufera, com que nurn momento feus cor- pos entrariaó no Ceo. E que ouuin- do a Bazagom molher do Adaa ifto que lhe dezia oLupantoo,cubiçando eftaexcellenciaque lhe elle punha diante,comera da fruita,& fizera tam bem comer feu marido, & que pelo gofto do trifte bocado ficarão logo

dòr,& pobreza. E que vendo Deos a defobediencia deftes dous primey- ros íèus criados no mundo, eh eyo de rigor de juftiça, os mandara lançar fora do jardim em que ospufera, & confirmara nelles ás penalidades c6 que os ameaçara. E que vendofe o Adaa ameaçado co gofto da morte, temendo que pafíàíTe ainda adiante o açoute da diuina juftiça, paííou hu efpaçode annosem continuas lagrí- mas,pelo qual lhe mandou Deos di- zer que feperfeueraftem feu arrepen- dimento qnanto" de fua parte foííe, lhe prometia perdão do feu erro. O Embaixador, para quem era aíTaz nouo iftoque ouuira a eftegrepojhe diíTe.certo que nunca el Rey meu Te- nho r ouuio coufa como efta que ago ra me diíTefte^nem os facerdotes das noíTas brallas tal nos diíTeraó, nem nos põem o premio de noíTas obras em mais que em poftuyrmos rique- zas & faude nefta vida,' forque def- poisda morte dizem que não ha ga- lardão, mas que auemos de acabar todos como as alimárias do mato, ti- rando as vacas, que defpois de mor- tas,pelo leite que nos dão,fe conuer- tem em -outras vacas do mar, & que dos bugalhosdos feus olhos faem as pérolas que nellefe achaõ. A que o grepo,quafí vamgloriandofe do que tinha dito,refp6deo, nem ifto de que eu agora te quíz tratar por amizade, te dirá ninguém nefta terra, fenão fe for hum grepo muyto douto como eu fou. E olhando com efte fumo de prefumpçaópara os noue queefta-

uamos

Fernão

uamos detrás do Embaixador,no dii" fe forrindofe como miBiifkodo de-> monto que era, õc cuydando que «riamos nó&na conta em que elle ic tinha: ja que vofoutros por ferdes e- ÔtangeyroSjCáreceis da noticia defta verdade,folgarra q me ouuifFers mais vez.es, parafaberdes o como Deos criou eiras coufas, õc quanto lhe to- dos deuemos pelo benefício deita criação. Hum então dosdã noíía có- panhia,chamado Gafpar de Meire- lez,querendofe moftrar niílo mais cu rioíb que os outros, defpois de lhe darem nome de todos as graças de- utdaSjihe pedio licença para lhe pre*. guntaralgúas coufas que folgaria de faber delle,a qo greP° fe abno muy- to dizendo, que leuaria niftb muyto £ofto,porque do homem diícreto & :uriofo era preguntar para faber, õc io ignorante ouuir fem faber refpó- 3er. O Gafpar de Meirelez lhe pre- *untou então, fe defpois que Deos :riara todas aquellas coufas de que :iflha tratado, obrara mais na terra ilguas obras de juftiça ou de miferi- :ordia,& elle diíTeque fy,porque cia ■o eftaua que nunca no homem dei- íara de auer culpas para fe caftigaré, lem em Deos faltara vontade para has perdoar. E que multiplicando- è pela corrupção da natureza os pec ados dos homés no* mundo, alagara )eos toda a terra, com mãdar âs nu- lés do Ceoque choueíTem fobre el- a,& afcgaífem toda a couía viuaquc iella ouueífe, & fe (aluara fomente rum juíto com fua familia que Deos nandara recolher nua grande cajá

Mende^Tinto. 10S

depao, do qual defpois procederão todosos outros que habitão a terra. Onoíío lhe tornou a preguntar, defpois de$e caftigo dera Deos ou- tro algum,& refpondeoy que geral ne nhum outro que foffe femelhantea efte,masqueem particular cafbga- ua continuamente a todos, afsiaos rcynos&aos pouos com guerras õc fomes,€omo aos homéscom aflições, trabalhos, & doençâç, & fbbre tudo com pobreza,que era ó remate de to dos os males. E tornado á preguntar fe tinhão eíperança que Deos em al- gum ternpofe aplacafíe, para os ho- més apoderem tambemí ter de en- trarem noCeo, difiè que o nãofabia, mas que çkro eftaua, & de fe po- dia crer,que afsi como Deos era bem infinito, fèauia de inclinar âosbeés que os homés por feu amor & por feu ref peito fizefíem na terra. Epre- guntandolhe também, fe ouuira di- zer ou achara efcrito qUe defpois de paííadas aquellas coufas de que tinha tratado,vieíTe algum homem ao mu- do,© qual morrendo morte de Cruz fatisnzeffe a Deos pôr todos osho^ mcs,ou fe auia entre ellesalgua noti- cia difto,refpondeo rninguem pode fatisfazer perfeitamente a Deos fe não o mefmo Deos, ainda que ouue ja no mundo homés fantos & virtuo fos que fatisnzeraòpor fy, õc por ai- gus íeus amigos, como os deofes das noííàs varelas,fegundo o q os grepos noscertificao diífo: mas auer hum que fatisflzefíe por todos, não te- mos ategora nenhúa noticia diífo, nê7 pode fer criar a terra por fy em pe^

dreyra

vinaçoes

dreyra tão baixa ruby de tão altos do te dem graças por tamanha Tnertf

quilates. Ainda cjue ja iflo fe certifi- cou nefta terra antigamente pelo dí* to de hum homem chamado íoaõ-q veyo terá efta cidade, do quaífe ef- íÇ^uecjiieera homem fanto, &que rorald^cip^lo doutro que fe chama- ua.Tomè ModeIiar,cnado de Deos^ .-que.os naturais de Dumclee tinhaó mortso^porcjue pregaua publicamen* xeque Deosfe fizera homem,& mor *era..polos homis,coufa que neíta ter ígjífí^tamanho.a.balo em toda a gen- l&,que muyto&creraó feriíto verda* de;; & outros a maney ra de contrabã- jdo,por excitação dos grepos daley do Quiay Figrau deos dos atamos 4p foljhe reprçstiauáo o tyie dezia, pejo qual foy defterrado deíla cida- jde. para o Sauady reyno dos Bra- maas,<Scdahy pelo meímo cafoofoy para a cidade de Digum, onde foy morto, por çaufa que pregaua difto publicamente, que era certificar que Peosfe fizera homem, & íe pufera na.Cruz pelos homés. A que oGaf- par de Meirelez,& nos todos com el IediíTemos,que tudo aquilloque a- quelle homéaquy pregara, era íem falta a verdadeyra verdade; de que o grepo com todos os mais que efta- uão com elle fez tamanho caio, que poíto em joelhos com as mãos leuari tad as,& os olkios no Ceo diííê com muytas lagrimas: A ty Deos & Se- nhorjdecuja fermofura & bondade faó teítemunha os Ceos com as fuás eítrellas peço de todo meu coração q permittas que em noíTos tempos che gue a hora em que as gentes do mu-:

ce. Pailadas eftas coufas, & outras muytas a eíte modo de que fe pude** ra dar relação,fe na minha alçada &: engenho coubera podçlas aqny ef- creuer,o Embaixador fe defpídio de fte grepo com Tnuycas palauras de cortefia,de que não faó entre íy na- da auarentos, porque deíla maneyra cuílumao a fe tratarem ordinariamé-> te hús aos outros^

CAT. (-LXV.

h r \ ' "' ' ■■■■■'

Sm quefe da larga infowiaçãoJe'. Be império do (^alammhan, &>d' giía do reyno deTemu, &• dosjBramaas.

Endo ja paílãdo hum mês defppis que che- gamos a cita cidade dcTimplão onde en- tão eftaua a corte, re- querendo o Embaixador a repoífa da fua embaixada, lhe foy concedi- do fallar ao Calaminhan,que o rece- beo com moftras de bom fembran- te;& lhe fez .ga falhado, & defpois M tratar breuemente com elle do ne- gocio a que vinha,o remeteo ao Mò- uagaruUique era,como ja: diíTe,ofu-: premo no gouerno do reyno, & nas coufas da guerra,por quem eftesdeí- pachos ordinariamente corriao. Efte lhedeu a repofta do Calaminhan a- companhada de hum rico preíênte em retorno do que o Rey do Bra- maa lhe mandara, & lhe efereueo hua carta que dezia aísi* Braço de . * , •■■ caro

claro ruby, notiamente pegado por Dcosem meu corpo, cuja carne rica propriamente em mim como a de qualquer irmaó meu por efta noua li ga& amizade que te concedo, eu o Prechau Guimião fenhor dasvinte & íete coroas dos montes da terra,erda das por legitima fucceíTaó do fenhor que punha íeuspeis na minha cabe- ça de vinte & dous mefes a efta par- te,porque tátos ha q de mim fe apar- :ou para mais me não ver,pela íanti- ícaçaõ em q fua alma agora efta po- ra^oftando dafuaue quentura dos •ayos do Sol, vy a tua carta ás cinco :hauecasdaoitaua lua do anno, a q( 3ey credito de verdodeyro irmão,& :omo a tal aceito em mim o partido j me cometes,& me obrigo a te fazer iures as entradas ambas do Sauady, iaraq fem temor da gete Siame pof- as íer Rey do Auaa,como na tua car a me pedes, & quãco as mais condi- oês apõtadas de fora em q o teu Em laixador me cocou, eu reípóderey a lias pelo meu q logo daquy manda* / ey,para em meu nome concluyr ffeito no gofto q moftras de fazeres uerra a teus inimigos. Dada efta car i ao Embaixador,elle fe partio logo efta corte aos três de Nouébro do nno de 1546. acompanhado dalgus chores q por mandado do Calami- hanforaócom elle até hum lugar ue fe dezia Bidor, onde pordeípi- ida lhe deraó hum grande banque- í ôc algúas pecas para fua peftba.Po :m ante; que trate do caminho que zemos daquy para Pegu, onde el ,ey do Bramaa então reíidia, me

Fernão Mende^Tirito.

2op

pareceo cóueniente «Sc neceíTario dar informação daigúas couías q vimos nefta terra; o qual fareycomama- yor breuidade que puder, como fu em todas as outras coufas de q cenho trarado, porque fe ouuera de cracar particularmence de cudo o que vy Ôc . paíTey, afsi nefte império como nos mais reynos em q me achey nefta mi nha crifte & trabalhofa peregrinação ouuera mifter oucro volume muyto mayor q efte, 3c oucro faber, habili- dade & engenho muyco acima doq em mim ha, o qual eu conheço por muyto baixo Ôc muico groífeyro,co- moja muitas vezes cenho dico &có- feííado. Mas pornaõ ficaré de todo efeondidas couíãs tão notauejs;direy aquillo q minha rudeza me enfinar. O reyno de Pegu tem de cofta cento & quaréca legoas, a qual eftâ em de- zaífeis grãos da handa do Sul,& pelo amagodo ferraòaorumode Lefte, cento Ôc trinta legoas, por cima do qual eftâ cingido de híia grande fai- xa de terra por nome Panguaísirau, em que habita a nação Bramaa,que Cem oicéta legoas de largo, & duzécas de comprido, cuja monarchia foy an cigamente coda reyno,& agora. o não he,porq eftá diuidída em creze eftados de fenhores que fe leuãcaraó com elles, matando primeyro o Rey com peçonha em banquece q lhe deraõ na cidade Chaleu, fegundofe conca nas fuás hiftorias. Dos quais treze eftados os onze faõja fenhorea- dos de outras nações, q por diftancia doutra maior terra cingem por cima toda efta corda dos Bramas, na qual P D habicaó

^peregrinações de

habitaodous grandes Emperadore?, por nome Siammon, & outro efte Calaminhan, do qual agora determi no de tratar fométe.O império &fe- nhorio defte príncipe fe affirma q mais de 300. legoas, aísi de largo co- mo de cóprido,em q antigaméte ou- uc 27. reynos,porem alingoa era to- dahúacomo inda agora he. Nefte império vimos muytas cidades muy to populòfas,ricas,& abaftadas de to- dos os mãtimentos de carnes, pefca- dos dos rios,trigos, legumes, arrozes, ortaliçjas,vinhos,& fruitas,& tudo if- to em tãta quãtidade, q não fe pode encarecer quãto he razão. A metro- poli de todas eftas cidades he efta de Timplao,na qual o mais do tépo reíi- de efte Emperador Calaminhan toda lua corte. Toda ao cóprido eftà íítuada ao logo de grade rio cha- mado Pituy, (requentado de infinitas embarcações de remo. He toda em roda cercada de dous terraplenos de cantaria muy to forte,com fuás cauas largas por fora, & em todas as portas tem caftellos torres mUyto altas,a qual nos affirmarão algús mercado- res a q o pregútamos q tinha quatro cétos mil fogos, onde a mayor parte de todas as cafas he de hum atê dous fobrados, & alguas delias de muyto cufto & riqueza,principalméte as dos mercadores &da gente nobre,a fora os apofétos dos fenhores q eítão fepa rados por íí dentro de cercas muyto grãdes,có terreyros de feus paífatem pos, & nas entradas delles arcos ao modo da China, & jardins & pu mares de muitas arúores,& tãques

de agoa muyto acomodados aos gc ftos& delícias da vida.aq efta gent he muyto inclinada. CeKificaraõnc mais qdosmurosadétro & por for húa legoaaoredordefta cidade aui 2óoo.cafas deíeus pagodes, & algua deitas em que nos entramos erao ú pios muyto fumptuofos, &de obr muyto prima & rica, porem os mai delles pela mayor parte faò caías pc quenasaomodode ermidas. Segu cftes pouos vinte & quatro feitas d diíTerentes opinioés5nas quais ha tat variedade &confuíaõ de erronias <! preceitos diabólicos, principalment ,nos facrificios de íàngue de q vfaó, he cfpáto ouuillos, quãto mais velo: como nós alguas vezes vimos nc dias íolénes dos feus teriuoos, mas mayor 8c a mais frequétada feita d todas he a de idolo,de q fiz mi ção muytas vezes,q íè chama- Quia Frigau,Deos dos atamos do fol,por efte he o em que crè, & o que adoí o Calaminhan, & todos os principa fenhores do reynpjCUJos. grepos,m< nigrepos, 8c talagrepos, q faò os fei facerdotes,faó também muyto ma honrados, q todos os outros, & tidc dopouoern reputação de fantos, C feus mayorais,a q por grão fuprem chamão Cabizondos,não conhecei molheres,fegundo fe delles prefum Mas para efreituarem os feus torp Ôc fenfuais apetites não lhe faltãoii uençoés diaboliças,maispara fe ch< rarem q para fe dar noticia delias, por iífo me pareceo coufa deuida 1 neceíTaria paífar por ellascom filei cio, porq faó totalmcte indignas d,

lingoí

Fernão McncfeçJPinto.

2 IO

[ingoas &das orelhas Chriílás. Vi- mos tábem nas feiras ordinárias d - ta cidade^ elles chamão Chandeu- hós, codas as coufas quantas a terra :ria,&. ale diíTo muyto ferro,aco,cbú- bo^ítanho.cobre^atãojíalitre^nxo- Fre,azougue,vermelhão,mel, cera, a-« jUcar,lacre, beijoim, feda, roupas de muytas maneyras,pimenta, gégiure, :anella, linho, algodão, pedrahume, :incal,anil, alaqueca, criítal, cânfora, ilmizcre,marfim,canafiítola,reubar- )o,treuite, efeamonea, azeure, paftel, :ncenço;pucho,cochonilha, roç^ama- ha açafrão,cacho, mirra, porcellana iquiísima^urOjpratajrubiSjdiaman- es, efmeraldas, çaflras, & todas as nais coufas a que íe pode por nome, :m tão fobeja quantidade q he mais >ara fe ver que para íè contar, porq ião deixara de fazer duuida.As mo- dere* comummente faó muyto al- ias & muyto fermofas, mas o q lhes mayor luítro he ferem muyto nclinadas,caftas ,caridofas,& mauio- as. Osfacerdotes comuns de todas s vinte Ôc quatro feitas,de que nefle mperio ha muyto grande quanti-» lade^ndão veftidos de amarello co- no osRoolinsde Pegu,com fuasal- irnas fobraçadas a modo de cftolas. Sião ha moeda de prata nem de ou- o, mas por pefo de cates,taeis, maa- es, & conderins fe negocea toda a nercancia. A corte defte Em perador 3alaminhan he muvto rica, & de jente muyto polida. Ha nellamuy- os príncipes & fenhores de muyta enda & eftado. Eile em fy he muy- o temido, em grande maneyra, ôc

juntamente muyto venerado, & traz na íua corte muytas capicaens degé- teeítrangeyra,.aque dâgroíTos or- denados. A f firmarão a eíte Embais xador que ha continuamente nefta cidade onde he a corte, de feíTenta mil de cauallo para cima, & efez mil elifantes- A gete nobre trataíè muy- to limpa & honradamente, com fer- uiços de baixelas de prata, & algúas vezes douro, ôc a gente comum, de porcellana,& de latão,Veítem citins, damafeos , & taficirasda Períía, ôc nos inuernos roupas forradas de mar tas. Não tem na fna juítiça autor reo^nem cuítumão obrigar por libei- lo, mas os capitaens das quadrilhas determinão verbalmente todas as duuidas do pouo miúdo. E fe a caio efías duuidas faó entre peífoas de mayor qualidade , trataole perante religiofos que para iífo eíHo depu- tados em certas caías,dos quais a mo- do de appellação vão os negócios ao Queitor da juítiça,que he oRegedor. della,do qual não ha appellação nem agrauo,por muyto graue ôc impor- tante que o caio feja. Tem a monar- chia deft.es vinte &íêtereynos fete- centas comarcas a razão de vinte féis por reyno,em cada hua das quais íèu capitão que refide na cidade ou villaque he cabeça da comarca, os quais todos tem o poder igual, na íua comarca tem mais poder que o outro na ília. Cada h li deites capi^ taés he obrigado é cada hua das luas a fazer reífenha geral da gente que pelo Vagaruu lhe he taxada, que ião a cada capitania dous mil depé,& DDz quinhen-

i

Terigrinaçoes de . *

quinhentos de cauallo,& oitenta eli- Q A T. (JLUVl.

fances de peleja,& deites elifantes hu

uiri Hl IH

IH UM 11

fe intitula do nome da villa ou da ci **dade,q he cabeça da mefma comar- ca» de modo que feita a conta por ju- ro da gente &c elifantes deitas fetece- tas capitanias das comarcas, vem a fer.hú coto & íetecentos «& cinquen- ta mil homés, dos quais os trezentos & cinquéta mil faõ de cauallo,& cin- quenta & íeis mil elifantes. Epor íe rem eiles nefta terra tantos em tama- nho numero/e veyo efte Emperador a intitular Jenhor da força bruta dos elifantes da terra. O rendimento dos direytos reais, que fe chama do preço do cetro,com todas as minas, chega a vinte contos douro, a fora os feruiços que lhe fazem os príncipes, capitães, fenhores, que andáo por fy feparados em outra folha,que tam be n he húa muyto grande quanti- dade, de que por diítribuição fe re- parte com todos conforme ao que cada hum merece. Tem nefta terra muyta valia as perolas,o ambre, & o fal,por ferem coufas que fe criáo no mar, que he muyto diftante deita ci- dade, mas de todas as outras coufas ha nella muyto grande abundância. A terra em fy he muyto fadia & de de bós ares, &agoas. Quando eípir- rao fazem o final da Cruz como nos, & dizem, Quiay doo fam rorpy,que quer dizer o Deos daverdade he três & hum. Pelo que parece, como a- trasficadito,queteue eíta gente al- gúa noticia da noífa ley Euange- lica que he fomente a ver- dadeyra.

T>o caminho que filemos ate a ci~

dadede cPaueli& da diuerfida-

de de gentes c> nações que

nella vimos,

Artidos nós ao ourrc dia deita villa de Bi- dor, feguimos noífa derrota poreíte'gran de rio de Pituy abai. xo,& no mefmo dia fomos dormir 2 húa abadia da ley do Quiay Iarerr deos dos cafados, fítuada à borda da agoa,emhum efcampado de grande aruoredo,& de edifícios muyto ricos na qual o Embaixadoi'foy bem aga- falhado do Cabizondo & talagrepof della,& continuando daquy pornof- fasjornadas mais fete dias,chegamo5 a húa cidade por nome Pauel, ondí eítiuemos três dias prouendo as em barcaçoés do que lhe era neceííario, & o Embaixador cóprou muytas pe- ças ricas, & brincos da China q aquy fe vendiao muyto baratos, em q en- trou grande quantidade de almi^cre, . porcellanas finas,feda,retrós,&pellei de arminhos,& outras doutras muy- tas fortes q nefta terra fe gaftão nos inuernos por íer fria,as quais fazédas fe trazé por détro do fertio em cáfi- las de elifãtesôc badas de terras muy to diftãtes,fegúdoo qaquy nos cota- rão algus mercadores.osquais nosdil feráoqerãodehuaprouinciaque íe chamaua Friucaranjaa,alem da qual habitaaão huns pcuoscom quem ti« nhão continua guena-que íe chama-

uao

Fernão Meride? Tinto.

uóo Calogés, ôc Fungaos, gentes ba- ças & muy to grades frecheyros, cjue tem as pacas dos peis redondas como bois,mas dedos & vnhas, & tudo o mais como os outros homens, tiran do as mãos,que as tem muyto cabel- íudas. Os homens faó de natureza crueyeis ôc mal inclinados, ôc nas co- itas embaixo quafi na reigada dos -bos tem húlobinho como dous pn- nho$,& q habitauão em húas ferras muyto altas Ôc afperas, cj em algúas partes tékouas tão fiadas, q em algúas delias por noites de inuerno fe on- uião gemidos & vozes muyto elpá- tofas. E ale deites pouosauia outros q le dezião Calouhos,&Timpaces,& Bugé,& outros de terra ainda muyto maisapartada,chamadosOqueus & Magores, os quais fe fuftentauão de animais íilueítres q caçauáo, ôc os co- mião crús,& de toda a duerfidade de animaisimmúdoscomo íàò lagartos, bichos,& cobras q auia na terra, ôc q efta caça de animais íilueílres faziáo caualgados em outros animais do ta- manho de cauallos,q tem três cornos ou pórasno meyo da tefta, ôc os peis Ôc as mãos muyto curtos Ôc groíTbs,& no meyo do lobo tem húa ordem de efpinhos com qferião quado fe afia- -nhauão,{k todo o mais corpo he con» chado da còr de fardão,& no pef- •coço em lugar de coma, te outros ef- pinhos muyto mais cõpridos Ôc grof- fos q os do lobo, & nos encòtros dos ombros húas aias curtas como per 1 petanasde peixe,có q dizem q voão a maneyra de falto 25. & 30. paíTòs, os quais animais dezião q fe chamauão

v

2 TI

banazas,& q a gente daqlla terra fa- zia nclles muytas encradas nas cornar cas doutras nacoens q tinhao cóti- nua guerra,& algúas delias lhe paga- uão páreas em íal q mais eítimauão q tudo,pelo não auer íènão daly muy- to longe. Falamcs também com ou- tros que fe chamauão Bumioens, de húas ferras muyto altas de pedreyras de pedra hume,& lacre, &c paítel pa- ra tintas. Deita nação vimos húa cá- fila de mais de dous mil boys com fuás albardas. qual! ao noífo modo. Eftes erão todos homens grandes as barbas ôc os olhos como Chins. Vimos outra nação de homens muy to ruyuos,& algús com algúas fardas, ôc muyto barbaçudos, ôc tinhaó as orelhas Ôc os narizes furados, ôc nos buracos hús reuices douro como col-* chetes,eítcs fe chamauão Ginafógaos &aproumcia donde erao naturais, Surobafoy, os quais por dentro dos montes dos Lauhos confuiaõ co lago do Chiammay, 6c deites huns andão veflidos de pellcs em cabello3 & ou- tros de pelles efçodadas, ôc andão deícalços, ôc com as cabeças fempre defeuberras. Eftes nos dezião alguns mercadores, que erao comummente muyto ricos,& que não tinhão entre fymais que fomente prata, porem deita muyta em grande quantidade. Também falamos com outros q fe chamão Tuparoens, gente baça, Ôc bêinclinada^ias muyto comedores, & em eítremo dados âs delicias da carne Ôc da gula. Defta gente fomos muyto milhor agafalhados quedas outras nações, porq os mais dos dias D D 3 nos

Peregrinações de

nosbanqueteauão.E porq num bati- muyta hôra,& poílos em joelhos, o

tjuete deites em q todos os noue nos achamos co Embaixador, dos nof ios por nome Mcifco Temudo, lhes fez ventagem no beber,quaíi injuria- dos difto,Ôc auendoo por muyto grã de afronta,fizerão o banquete mais comprido,para reftauraré lua honra, porem o Portuguez fe deu tal manha vinte delies q então eftauáo a me- fa,q todos ficarão deitados à cofta,& elie ficou muyto inteyro. E defpois q tornarão emfeuacordo,oSapitou q era o capitão delles,em cuja cafa íc dera o banquete,mandou chamar to dos os feus,qUe ferião de trczêtos ho- mes para cima,& podo o Portuguez, muyto em q lhe pês encima de e- lifante, o leuarão por toda a cidade acópanhado de infinita géte,cómuy tostãgeres de trõbetas^ atãbores,& ck outros inftrumétos,& o capitão^ o Embaixador,&4iós c5 todos os Bra maas detrás delle a ramos nas mãos, & dous homés a cauallo q em vozes muyto akas hião dizendo, lou- uay gétes alegria os rayos q pro- cede do meyo do íol,q he o deos que nos cria os noííbs arrozes,por vos che gar a tépo q viíTeis em voífa terra home tão lanto q bebendo mais que quantos naceraó no mundo, derru- bou as principais vi nfeí cabeças da noífa quadrilha^ para íua fama íer augmentada em todos os dias,a que toda a turbamulta de q hia acompa- nhado daua húa tamanha grita q me tia medo. E chegando eftaordé a caía do Embaixador onde pouíaua- mos, o decerao com cerimonias

entregarão ao Embaixador,encomé- dandolhe muyto que o tiueíTe daly por diante em conta de fanto, ou de filho de algum grande Rey, porque não podia deixar de o fer, jaq Deos lhe dera tamanho dom de riqueza, & tirando por todos hum petitório, lhe ajuntarão logo aly paífante de duzentos taeis em barras de prata q lhe deraó^por afsi fer cuílume deita naçaó^ nos dias que aquy mais ef« tiuemos/empre foy vifitado muy tos prefentes, & peças de feda como oíferta que fe daua a fanto,no dia Ço- lenne da íua inuocaçaó., Falamos a- quy mais com outros homes brãcos, quefe dezião Pauileus, muyto fre- cheyroSj& grandes caualgadores, ve- rtidos de queimoés de feda como la- pões^ comião paos como Chins. DiíTeraónós eítes q a ília terra fe cha maua-Binagorem, qdíftauadeftadu zentaslegoaspelo no acima. Eíles trazião de veniaga muyto ouro em pó, como o de Menancabo da ilha Gjamatra, aguila, lacre, almízcre, eftanhoj cobre, feda, & cera,que da* uão a troco de pimenta,gengiure,fal, & vinhos de arroz. As molheresde- fíes q aly vimos,faó muyto aluas, & tracaofe milhor q todas as Outras da- quellas partes, & geralméte faó bem acondiçoadas & carídofas, E pregú- tãdolhe nos q ley era a iua,& q Deos adorauão, nos diíTerao q o íèu Deos era o foi, & o Ceo,& as eftrellas,porq delies lhes vinhaó por comunicação fanta,os beés que pofluyaó na terra, &cj a alma do homem era o fôlego,^

fe

Fernão Afendc^Tinto.

HZ

feacabaua na morte do corpo,& def pois andaua no ar de miítura com as nuués,até que fe derretia em agoa,& tornaua a morrer na terra, aísi como •antes fizera o corpo. E deites deiati- nosnosdiííeraó outros muytos cjue he muyto para pafmar ver a confu- faó.& cegueyra deites miferaueis, & muyto para dar continuamente gra- ças a Deos aquelle a quem elle quiz fazer mercê de o liurar delias. Aísi <]ue pela variedade de nações incóg- nitas que aquy vimos, íe pode muy- to bem collegir, que neíta Monar- chia do mundo ha ainda muytas ter- ras que não faó defcubertas,nem co- nhecidas de nós.

QAT. CLXVll

*Do mais caminho que filemos ate chegarmos a Tem onde eslaua o 'Rey do "'Bmma, & da mort-e do TZpolim de Mounay, .

Ontinuando nolTo ca- minho defta cidade de Paueljiògo ao ou- tro dia defpois q fay- mos delia fomos ter a húa aldeã qfe chamauaLunçor, cer* cada em roda em diftacia de mais de ires legoas de aruores de beijoim, q daquy fe leua de carregação para o reyno de Pegú & de Sião. Daquy na- uecramos por efte grande rio abaixo mais noue dias, vendo ao longo del- muytas & muyto nobres cidades & pouoaçoésde muytas fortes, &che gamos a outro rio q fe dezia Vétrau,

pelo qual fizemos noíTa viagem até Penauchim,prirneyrolugar do reyno íangumaa,ondc efte Embaixador re- giftoa as embarcações toda a géte que leuana nellas,por fer afsj curtume daquella terra. E partidos daquy fo- mos dormir aos Raudites, que eraò duas fortalezas do principe de Pan- canor. E daly a cinco dias fomos ter a húa grande cidade por nome Ma- gadaleu,que he a cerra donde vem o lacre ter a Martauão, cujo principe ao tempo que aquy chegamos deu mofrra ao Embaixador de húa reíTe- nha cerai de gente que fazia contra o Rey dos Lanhos, com quem efta- ua de guerra, por lhe mandar enjei- tar húa filha fuacó q auia três annos q era cafado,& fe caiar húa man- ceba de q antes tiuera hum filho>a qual legitimara, ôc o fizera herdeyro do reyno, tirado o direycodelle anu feu neto filho defta fua filha. Daquy feguimos noffo caminho por hum e- íléyroq fe dezia Madur, mais cinco dias,& chegamos a húa aldeã por no me MoucheLDrimevroiug;ar do rey- no de Pegú,no qual ladrão muyto afamado por norpe Chalagonim, q ahy andaua ao falco trinta feroos cócertados,& boa géte, nos co- meteo húa noke,& pelejando nof co ate quaíia menhám,nos tratou de tal maneyra,q a nos fazer Deos muy ta mercê efeapamos da briga per- da de cinco embarcações das doze cj trazíamos, & morte de céto & oitéta homés da nofia parte3em q entrarão dous Portuguefes, & o Embaixador ficou braço cortadoj& duas D D 4 frecha-

.' •" . li li

tpengnnáçoh de

frechadas, de que efteue â morte,' & cidade de Pegu mandou a todos ia

i)òs com todos os mais muyto feri cjos,& o prefente que o Calaminhan ínandauajque valia mais de cem mil cruzados,foy tomado outra muy ta fazenda rica que vinha nas cinco embarcações, & defta maneyra che- gamos dahy a três dias á cidade de Martauão deftrocados & roubados. & com a mayor & milbor parte da gente morta. O Embaixador auifou logo daquy o Rey do Bramaa por búacartafua,&lhedeu conta de tu- do o que lhe íocedera, afbi na viagé como nefte delãftre, & el Rey pro- ueo logo niflo,mandando com muy ta preíteza húa armada de cento & vinteleroos com gente muyto efeo* lhida, em que foraò cem Porrugue- fes,a qual foy em bufea defte ladraõ, & quando chegou, tinha elle ja os trinta feroos com que nos cometera varados em terra, & elle com todos os ieuseftaua metido em húa forta- leza a qual tinha cheya de muytas prefasque tinha feitas em muytos pouos de todas aquellas comarcas. Os noííos puferaó logo cerco á for- taleza^ no primeyroaíTalto que lhe derão a entrarão com morte de al- gús Bramaas, & de hum Portu- guez,mas muytos ficarão feridos de FrechadaSjdequé em poucos diasfo- raõ faós femvperigo nem aleijão de nenhum delles;& entrada a fortale- za, toda a gente delia foy metida a efpada fem fe dar vida mais que ao ladraõ,& acento & viute homes de fua companhia, os quais crouxeraó viuos ao Reyd o Bramaa, o qual na

çataos elifantes,que em pouco efpa- ço os esborracharão & fizeraò em muytos pedaços. E nefta ida que fe fez fobre efte ladraó íocedeo aos Portugueles5porque todos vieraõ de la muyto rico^em que ouue cinco ou feysa que dizem que couberaõ em parte a vinte & cinco & a trinta mil cruzados a cada hum, ôc aos pior li* urados a dous & a três mil. Deípois que o Embaixador aquy em Marta- uaoconualeceodas feridas que ou- uera na briga,fe partio para a cidade de Pegu,onde naquelle tempo,como atras fica dito, o Rey do Bramaa re- íidia com toda fua corte,o qualfabé- do da íua chegada, & da carta que trazia do Calaminhan em que lhe aceitara a liga da íua amizade» o mi- dou receber pelo Chaumigrem, feu colaço & feu cunhado, acompanha-? do de todos os grandes* & com húa moftra de quatro batalhões de gen- te eílrangeyra, em que entrauao mil Portuguefes,de que era capitão hum António Ferreyra natural de Braga- ç^homenr de grandes efpritos, & a quem efte Rey daua doze mil cru- zados de partido,^ fora mercês par- ticulares que montauão quaíi outro tanto. Vendo o Rev Bramaa como

4

Deos nefta noua liga lhe fatisfizera íeu defejo, querendo lhe dar graças por tamanha mercê, mandou fazer por todo o pouo muyto grandes fe* ftas, & nas bralias de fuás gentílicas feiras facrificios de fumos cheyrofos em que fe degolarão mais de mil veadoSj& porcos, & vacas, que fe de*

rão

Fernão Mende^ Tinto. z i 3

rao de efmola aos pobres, a fora ou- no meyo delle hua tribuna de doze

;ras obras de caridade, como foraó Jaríe de veftir a cinco mil pobres, ôc Jarlè liberdade a mais.de mil prefos :om quita de muyto dinheyro. E def >ois de auer íète dias que durauão :ftas feítas,continuando fempre nel- as efte feruor,com defpefas grandifc imas de todo o pouo,& de el Rey Ôc los íenhores, chegou noua certa a ef- a cidade que o Aixquédoo Roolim le Mounay, dinidade fuprema do eu facerdocio,era fallecido,pela qual auíà ceíTou logo tudo de improuifo om moftras no pouo de grande fen- imentOj & el Rey fe recolheo, 8c os czares feleuantaraõ, & todas as ja- lellas ôc portas das cafas fe fecharão, ?m em toda a cidade aparecer, cou- a viua,& as brallas dos feus pagodes 2 frequentarão de penitentes,que co ontinuas lagrimas faziáo em fy grã- lesexceíFos de diíferentes peniten- ias de que algus morrerão, El Rey 1 partio logo eíla mefma noite para Mounay, que era daly vinte legoas, »or íerneceíTario acharfe preíentea fte enterramento, conforme ao cu- tome antigo dos Reys de Pegú, on- le chegou ao outro dia â vefpera, & ez dar tanta prefía a tudo o que era eceffario para eftas exéquias, que o mefmo dia foy tudo preparado j poílo em ordem, E fendo quafí d! poílo tirarão o corpo do defunto la cafa onde falleeera para hum ca- afalío que eílaua feito no meyo de iua grande praça, paramentado to- lo de veludo branco, ôc cuberto por ima com três dorfeis de brocado, ôc

degraos com húa eeíía quaíi ao nof- fo modo,guarnecida de muytas pe- chas douro 8c pedraria,& por fora húa grande fomade caftiçaes & de ca- çoulasde prata, em que auiamuytà diuerlrdade de cheyros íuauiísimos, por cauía da corrupção do corpo q jacheyrauamal. Edeftamaneyra o tiuerãotoda aquella noite, em que ouue aíTaz que fazer, com tamanho rumor 8c horribilidade de choros 8c gritas de todo o pouo, que faltáopa- lauras para o declarar, porcjue de bicos, grepos, menigrepos, talagre- pos, guimoés, 8c roohns, que faóas ordés 8c dignidades do íèu facerdo- cio,íè afirmou que paíTauaó de trinta mil os que aly eítauáo juntos, a fora os que vinhaó todas as horas. E def* pois de aparecerem aly algúas inuen- çoésde triíleza muyto apropriadas ao auto daquelle fáiméto,íêndo paf- fadas as duas horas defpois da meya noite fahio de hum templo q fe cha- maua Quiay Figrau deos dos átomos do fol,húa prociíTaó em que virião mais de quinhentos mininos nus cin gidos pelas cintas ôc pelos pefcoços com eadeasde ferro, Sc cordas de cairo,& nas cabeças trazião feixinhos de lenha,& cutellos nas mãos, ôc vi- nhaó cantando em dous coros com tanta triíleza & fentimenco quepro- uocauáo os ouuintes a derramarem muytas lagrimas, dizendo hum dei- les a modo de profa,tu que vâs gozar dos contentamétos do Ceo, náo nos deixes catiuos nefte defterro,aque o outro coro reípondia, para que nos

alegre-

Teregrmaçoes de

alegremos comtigo nos beés do Se- comiftofeforaó,comóquedeixauãô

nhor. E continuando ifto a modo de ladainha,dezião outras muytas cou- ías defta mefma maneyra & pelo meímo tom. E poftos todos de joe- lhos diante do cadafalfo onde efta- ua o corpb do defunto, hum grepo demais de cem annos proftradono chão com as maõs ieuantadas lhe fez húa íala em nome deites mininos, a que outro que eftaua junto da eeíTa, como que refpondia em nome do defunto,diíre,Deos, que por lua fan- ta vontade lhe aprouue formarme de terra,permitio que nefte dia tor- nafle a ella, pelo que vos encomen- do muyto filhinhos meus que temais efta hora onde a mão do Senhor nos põem na balança de fua juftiça,a que todos com húa grande grita de pran- to relponderaò, ao alto Senhor que no Sol viue reynando praza não ver antefy noíTas obras, porque fique- mos liures da pena da morte. Idos efc tes mininos, vieraõ.oito moços de dez até doze annos de idade, vefti- dos de veíliduras compridas de citim branco,&xorcas douro nos peis, & aos peícocos muytas joyas ricas, & fios de pérolas, & defpois que com muytas cerimonias fizeraò grandes çumbayas ao defunto,efgrimiraó co hús treçados nus q trazião nas mãos por derredor da eeíla, como que en- xOtauãoo diabo,dizendo,vayte mal- dito para a concaua funda da caía do fumo,ondecom pena perpetuamen- te morrendo fem acabar de morrer, pagarâs,com nunca acabar de pagar arigurofajuítiçadoalto Senhor, &

defafrontado aquelle corpo dos diabos que daly lançarão. Após eftes vieraò íeystalagreposdos principais que auia entre elles, & de mais de oi- tenta annos cada hum, veftidos de damaíco roxo,& com altirnas lança- das por cima dos hombros, & fobra* çadasa modo de eftolas.os auais tra- ziao nas mãos encençanos de prata, & diante delles, para ornamento de- ite auto,vinhaò doze porteyros com maças de prata. Elles fèysfacerdotes, defpois que encençaraó a eeífa, por quatro vezes muytas cerimonias, fe proítraraó todos cos roftos em ter- ra^ chorando com muyto fentimé- to,difíe hum delles como que fallaua co morto, Te as nuuês do Ceo foraó capazes de explicar ella dòr aos bru- tos do campo, elles deixarão o feti pafto por nos ajudarem a chorar a tua falta, ôc o grande defemparo em que todos ficamos,ou te rogarão Se- nhor que nos embarcaras comtigo neíla cala da morte em que todos te vemos fem nos tuvere?j porque nao fomos dignos de tamanha mercê. Mas porque em ty fe coníble efte po uo,antes que a coua nos efconda o teu corpo,moftra Senhor por figuras da terra a quieta.alegria& o conten- tamento fuaue do teu defcanço, para que fe efpertem todos do íonopeía- do em que o fufco da carne os tem occupados, ôc a nos miferaue^s nos incitem ate imitarmos, ôc feguirmos tuas pifadas, porque no fim d erra- deyro do noflb bocejo te vejamos a- legre na cafa do Sol,a q todo o pouo

com

■kí

Fernão zSMende? Tinto.

:om húà efpantoíâ gritarefpondeo) niday talambaa,que quer dizer, iflb íos concede Senhor. E tornando ioze porteyros das maças a prepa- ar o caminho com muyto trabalho, >orquc agente por nenhum cafolhe lana lugar, fayraò de húa cafa que ftaua á máo direyta do cadafalfo, ante & quatro moços pequenos, ri- |uifsimaméte veftidos,& com mur- as joyas&cadeas douro aos pefco- os,& eíks todos com muytos inftrtf rientos muficos ao íèu modo, & po- tos em duas fileyras aífentados em Delhos diante da eeífa tangerão to- los eftes inílrumentoí, aofomdos juaiscantauao douç daqUelles mo- os fomente, a que cinco refpondião le quando em quando , O que foy auíadetodoo pouO derramar tan- as lagrimas,& com tanto íetimento, jue algús homés muyto honrados Sc e muyto reípeito ferião os roftos,& auáo por vezes com as cabeças nos egraos da eeíTa. E no efpaço q du- ou eíla cerimonia com outras dez u doze mais que fe aly fizerão,fe fa- rificarão feys grepos mancebos & ;entishomêsi bebendo de hum vafo 'ouro que eftaua nua mefa hum li- or amarello tão peçcmhento,q em o cabando de beber mataua logo íu- itamente,os quais poriftoquefa- ião erao tidos por Tantos, & por iflb rao enuejadosde todos* E daly do* e cayráo mortos os tomarão logOj i nua prociíTaó os leuaráo a queimar m húa grandifsima fogueyra que ftaua feita de íandalo & beijuim & guila, onde foraó todos feitos em

•x* 2' +

cinza, Chegada a menham, ocada- falío foy defguafnecido das peças mais ricas que eftauão nelle,& lhe fi- carão porem os dorfeis com todo o veludo,& guioés,& bandeyras,& ou- tras alfayas de muyta valia, & com muytas cerimonias & grandes gritas, & prantos, & com horribel eílrondo de muytos inftrumentos que fe to- cauáo,puferaó fogo aO cadafalfo com tudo o que ficara nelle, & ceuandoo muytas vezes com licores cheyrofos compoftos de confeições muyto cu- ftoías, ò corpo em pequeno efpâço foy todo feito em einza>& em quan- to ardia,el Rey com todos os gran-» des que aly fe acharão, lhe oíFerece* íao de efmola muytas peças douro,& anéis ricos de rubis,& çafiras,& algfli fios de pérolas de muyto preço, o qual rico mouel,tão mal empregado* todo ofogoaly confumio cos ofíòs & corpo do triítè defunto* De ma- neyía que fegundo íe aly affirmòUj chegou o cufto defta pompa fúnebre a paíTante de cem mil cruzados^a fo- ra os veílidos que el Rey ôc os gran- des mandarão dar aos trinta mil fà* cerdotes^em que íe gaitarão infinitas corjas deroupa,dequeos Portugue- fes ficarão bem aproueitados,porquè venderão a fua que trouxerão de Be* gala por aquelle preço que pedião por ella,aqual lhe foy logo paga: em paés douro, & em barras de prata,

CAP.

I

. . .'•'■. .'' I

C AV. CLXVUL

T>eque maneyYafoj eleito o nouo

Ifyolim de Mounay7 fummo ta-

lagrepo desia gentilidade do

rejno de Tegu,

Ocutrodia pela me- nham entre as fete ôc as oito horas, quefoy o termo em que aca- bou de arrefecer a cin za dos oííos, cl Rey em pefíba com todos os grandes do reyno Te veyo a aquelle lugar onde o corpo fora quei mado em companhia de húa fum- ptuoía prociííaó de todos os grepos do feu lacerdocio, entre os quais vi- nhao cento & trinta encençarios de prata, & quatorze com bandejas douro nas cabeias, Ôc eíies todos veftíduras compridas de citim ama- relio, com fuás akirnas de veludo verde,íobracsadas)& todos os mais,q ferião de féis até fete mil, vinhão ve« fíidos]da meíma còr amarella, po- rem de tafetâs& chautares finos,oq, pelo grande numero, pareceo couía de cuílo, E chegados ao lugar on,de fe queimarão Roolim,deípois de alr gúas cerimonias gentílicas, feitas ôc ditas ao feu modo,conformeao tem- po,& ao íentimento que todos mo- ítrauão, hum talagrepo Bramaa de naçãoj.tio dei Rey irmão de feu pay, auido no comum do pouo por mais jtntendido que todoSj& que por iflo fora efeolhido para o fermão daquei lahora,fefubio num agrem, que era

*Perigrinaçoe$ de

o púlpito, & defpois que no intróito tratou da vida,&louuoresdo morto, com razoens & palauras enfeitadas a feu propoíito, le aferuorou de ma- neyra,que vírandoíèpara elReycó as lagrimas nos olhos,leuantando pouco a voz paraque foíTe bem ou- uido,lhe diíTe: Se os Reys q no tem- po dagora gouernão, ou por fallat mais verdade, tyrannizão a terra,cuy daíTem quão depreílà lhe ha de vir eira hora,& com quanto rigor de ju- fíiça hão de fer caftigâdos da mâc poderofa do alto Senhor pelos crimes Ôc infultos da fua tyrannica vida,qui« çá que lhes foramilhor pacerem nos campos como os brutos,que vfatem de fuás vontades tão abíòluta mente, & tanto contra razao,& ferem cruéis para as manias ouelhas, & froxos no caftigo dos males daquellesaq qui- ferão dar nome de grandes. Que cer- to fe pode auer muyto daquelles a que fua ventura chegou a tão perí- goío eftado como vemos que he o dos Reys deite tempo, pela diffolu- çáo & defenfreamento em q viuerri continuamente, fem terem hua hora de temor nem de vergonha, porque fabey cegos do mundo que fazer Deos homens q foíTem Reys, fpy para que foíTem humanos para os homen^ouuiíTem os homens, fa- tisfizeííem os homens,& cafíigaíTem os homens, mas não paraque tyran- nizando mataíTem os homens,porem vos triftes Reys,nefíe íerReys negais a natureza de que Deos vos formou, ôc transformaifuos em outras muy- fas muito diflerentesjcom vos veítír-

des

Fernão Mende^Pinto.

Zt,

des todas as horas de qualquer libré que quereis, porq para hús fois lam~ bcxugas que lhe chupais continua- mente as fazendas, & as vidas, fem nunca vos defapegardes até lhe ter- des chupado todo o langue fem lhe ficar gota em todas as veyas, & para outros íbis lioés de bramido terribel, que para rebuço de voíTas cubicas mandais apregoar que quem der cj falar, quem fizer morra por iílb, Ôc perca a fazenda,que he o fim de vof. ias tenções & para outros que vos íaó aceitos,& a quem vos ou o. mundo, ou não fey quem pos nome de gran- des,fois tão froxos no caftigo de fuás foberbas,& tão pródigos nas mercês que lhe fazeis à eufta do dei pojo dos pobres que deixaftes nus & íem pelle nem oíTo,que aos pequenos fica au- ^ão de vos accuíarem por todas eftas :oufas diante de Deos,onde triíles de vós não tereis efcuía que deis por yoiraparte,nem boca para falardes, Fe não confufaó medonha para vos perturbardes. E por efta maneyra diíTe tantas coufas em fauor dos pe- E]uenos,&deu tantos brados, & cho- rou tantas lagrimas por fuacaufa,que cl Rey eftaua como pafmado ôc fora de fy,& fez ido tanta impreífão nel- le, que logo aly mandou chamar o Brazagarão gouernador de Pegú, Ôc l-he mandou que foíTelogo delpidir x>dos os procuradores dos pouos do reyno que mandara ajuntar na cida- de de Cofmim para lhes pedir húa grande foma de dinheyro para fu- primento da guerra do reyno Saua- dyqae nouamente queria fazer, &

jurou publicamete na cinza do mor- to,que em quanto reynaíTe não lan- çariapeita a nenhum pouo, nemos obrigariaao íermrem por força, co- mo anttes fazia, ôc que daly por diã- te teria muyto particular cuydado de ouuir os pequenos^ fazer juíhça do> grandes, conforme ao mereci- mento de cada hum, & afsi prome- teo mais outras muy tas coufas muy- to juífas & boãs,que para Gentio nos confundio grandemente. Acabado efíe íermao, a cinza do morto,queja a efte tempo eílaua junta, íè repartio como relíquia pelas quatorze bande- jas douro, das quais el Rey leuou hua a cabeça, ôc os grepos das digni- dades mayores leuarão as .outras, E abalando daly com a mefma procif- faó com que aly tinhaó vindo, leua- rão eíla cinza a hum templo rico que eílaua daly quaíi hum tiro de efpera por nome Quiay Docoo Deos dos affligidos da terra, onde foy lançada em hum jazigo rafo co cháo,íem fau- fio nem vaydade nenhua, pelo ter aísimãdado efte Aixequendoo, que como diíTe,era feu fupremo Roolim fobre todos os grepos, como o Papa he entre nós os Chriftaós, o qual ja- zigo foy logo cercado de três ordés de grades,duas de prata,& hua de la- tão. E em três tirantes que atraueffa- uão toda a largura da cafa,eftauão fe tenta Ôc dous candieyros de prata, uinte ôc quatro em cada hum, todos de muyto cufto& valia, óccada hum delles de dez doze torcidas, ôc todos pindurados por cadeas de prata muy to groflàs, A coiia das grades para

dentro,

^Peregrinações de

détro,eftaua rodeada de trinta & íeis perfnmadores a modo de caçoulas, era que auia cheyros íuaues de agui- la&beijoim de boninas, com outras confeiçoens miíluradas com ambre. Eftas exéquias fe acabarão quaíi á vefpera, pelas muytas cerimonias que nellas ouue.E nefte dia fe não fez -* mais que libertarfe húa grande quã- tidade&quaii innumerauel de paf- farinhos, que em mais de trezentas gayolas & corças aly erão trazidos, dizendo que eraó almas de defuntos parladas deita vida, que naquelles paíTaros eftauão em depoíito efperã- doo dia em que as auiáo de íbltar, paraque liuremente pudeflem yr acó panhar a alma defte defunto. E o meC moflzerão também a outra grandif- íima quãtidade de pexinhos que em ■yiueyros de gamellas cheyas de a- goa por deuaçaõ unhão aly trazido, aos quais com outra noua cerimonia derãoliberdade,lancandoos no rio, paraque fe foíTem feruira alma da- quelle defunto. Também íe trouxe aquy muyto grande quantidade de toda a veação do mato,que foy mais para ver que tudo o que tenho dito, porem a carne delia fe deu de efmol- la aos pobres do pouo, que eraõfem conto. Acabadas eftas & outras muy tas cerimonias que nefte auto fe fize- raõ,elRey, por fer quaíi noite, fe recolheo ao leu dopo, que era a fua cftancia,ondefeagafalhaua em ten- das por fentimento da morte do der funto.o que também fizeraõ os gran des, com toda a mais gente que aly jira junt^. E ao outro dia defpois de

fer menham clara, mandou el Rey lanhar grandes pregoes que toda a peífoa de qualquer qualidade q fof- ie,fe faiíTe logo fora da ilha lo pena de morte, & os que foííèm façerdo- tes fe recolheflem em fua oração, íb pena de o que aísi o não fizeíle, fer defpofto da dignidade que tiueíTe,o que logo foy tudo feito com muyta prefteza. Deípejada a ilha, & recoí lhidos os facerdotes, nouenta q erão deputados para elegerem o que auia de focceder em lugar do defunto, íê ajuntarão todos na cafa do Guangi- parau para fazerem feu officío,& pot que nos primeyros dous dias,que era o termo limitado cm quefe auia de fazer efta eleyção,nãopode ella auer erTeito,por auer muyta dirTeréça nos pareceres,& fe darem os votos a di- uerfas peíToas, fe aíTentou por pare* cer dei Rey,que dos nouenta deputa dosíè efcolheflem noue defindores, os quais por fy fós fizeíTem efta elei- ção. Eícolhidos logo eftesnoue de- fíndores,elles fe ajuntarão todos, & fe detiueraò mais cinco dias, & em to- dos ellescom fuás noites ouue muy- tas orações de bonzos, & oífertas, & efmollas,& veftir muytos pobres, 8c mefas poftas aquém quifeííe comer, & procifíbés ao feu modo.E còcluin- do os noue por conformidade de vo- tos na eleyção/ahio eleito hum cha- mado Manica mouchão, que nefte tempo eftaua por cabizondo na ci- dade de Degum, em hum pagode éj fe dezia Quiay Figrau, deos dos áto- mos do foi, de que muytas vezes te- hho feito meçãojhomem defcfíenta

&oito

Fernão

& oito annos, & tido na opinião da gente por home prudente, & de boa vida,& muyto letrado nas leys & cu- rtumes das fuás gentilicas feitas, & fo bre tudo muyto caridofo para os po- bres,de que el Rey ôc todos os gran- des ficarão muyto fatisfeitos. E íerri fazerem mais detença defpidio logo el Rey o Chaumigrem feu colaço,a cj então deu titulo de Coutalanhaa, q he irmão dei Reyr,por yr mais hon- rado^ qual íe pardo com cem lau- lees de remo,em que foy a flor da gê- te Bramaa, com os noue defindores da eleição, & foy bufcar o nouamé- te eleito ao lugar onde eftaua, donde o trouxeraò com muyta autoridade, & veneração;& chegando dentro de noue dias da fuapartida,a hum lugar q fe chamaua Tagalaa, cinco Iegoas deita ilha Mounay,el Rey em peíToa o foy bufcar com todos os grades da corte, a fora a outra gente que era quafi infinita, em mais de duas mil embarcações de remo. E chegando com todo efte apparato ao lugar on- de o nouo Roolim eílaua,fe proftrou diante delle beijando a terra por três vezes,& lhediíte,tu pérola íanta de efmalte roxo no meyo do fol,bafeja, por infpiração apraziuei ao Senhor da potencia incriada,fobre minha ca beça,porquenãotemana terra o ju- go pefado de meus inimigos. A que oRoolim,eftendendoa maó paraq fe leuantaííe, diíTe: Faxy.hinapoo va- rite pamordapou companoo, daco- rem fapixãopau.que quer dizer, tra. balha filho meu por agradarem tuas obras a Deos, & eu orarey continuo

alMende^Pinto. a 1 6

por ty,& leuantandoo do chaô onde ainda eftaua,o aflentoujunto comfi, go, & lhe pòs a mão na cabeça três vezes,que o Rey teue por honra fu- prema que lhe fazia, ôc defpois de lhe dizer algúas palauras que lhe não ouuimos por citarmos hum pouco longe, o bafejou outras três vezes na cabeça eftando el Rey pofto de joe- lhos, & todo o pouo debruços no chão. Após ifto abalando daquy grandes gritas & muyto eílrondo de finos & inftrumentos íònoros,fe em- barcou na laulee deh Rey, aflentado nua rica cadeyra douro & pedraria, ôc el Rey embaixo aos feuspeis, por honra grande que o Roolim lhe deu, & ao redor delle hum pouco afafta- dos hiaó doze mininos vertidos de citim amarello,com altirnas de bro- cado, ôc maças douro, como cetros, nas mãos: & pelos bordos da embar- caçaõ,em lugar de remeiros,hiao to- dos os íènhores do reyno com feus remos dourados as cortas, ôc na popa Ôc proa dous coros de moços verti- dos de crameíím com muytas ma* neyras de inftrumentos muíicos,can- tando ao fòm delles muyto boas falias muitos louuoresde Deos,dos quais húa cantiga que os nofíos notarão dezia afsL Louuay mininos de coração limpo aquelle admirauel Ôc diuino Senhor, porque eu não fou digno por fer peccador,& fe para iíTo não tiuerdes licença, chorem voíTos olhos diante de feus peis, ôc ^agradal- loeis, E afsi por efte modo cantauao outras muytas canções com muyto boas falas ao fom dos inftrumentos

que

'Perigrwdçoès de que tangiãoj que fe foraõ Chriftlos eftaua feita, cuberto com hum pano

puderaó prouocar os ouuintes a de- uação. Chegado efte Roolim com efteíumptuoi o aparato â cidade de Martauão, por íer ja muyto noite não defembarcou logo em terra como taua determinado,mas tanto que foy menham o fez,& porque não fe per mitia por nenhum modo tocar elle cospeis no chão pela grandiísima di- gnidade de fua peffoa, el Rey o def- embarcou ao hombro, & aísi de co- lo em colo,por cima dos príncipes õc fenhores doreyno foy leuado ao pa- gode do Quiay Ponuedee,por fer o mayor & mais fumptuofo templo de toda a cidade,no meyo do qual eíla- ua hum teatro riquiftimamente pre- parado,com toda a armação da cafa de citim arnarello.que íignifíca orna- mento facerdotal. Aquy deitandofe com hu ? noua cerimonia num efqui- fe dour o,fingio que morria,& razen- dofe íinal de elle fer morto,com três pancadas que íe deraõ num fino, os Roolins todos fe proftraraó de bru- tos cos roftosem terra,por efpaço de quafi meya hora, & o pouo nefte té- po todo efteue por final de trifteza, com as mãos poftas diate dos olhos, •dizendo em gritos muyto altos, re- íuícita Senhor em noua vida efte teu fanto feruo,paraque tenhamos que o repor nos. E logo o tirarão daly a- mortalhado em hua vefte de citim amarelÍo,& o meterão em hua tum- ba,orna'da da mefma libré, & com canções triftes & muytas lagrimas,dã do três voltas ao redor da caía,o dei- xarão em húa coua, que para iíío

de veludo por cim2, & cercado em roda de caueirasde mortos,& lhe re- zarão com muytas lagrimas algúas orações a feu modo, em que elRey moftrou muyto fentimento. Efeito então filencio no rumor que auia no pouo,fe deraõ três pancadas nu gran de fino,ao qual final refponderaó lo. go em prouifo quantos iinos auia em toda a cidade, com hum taó horri« t>el & tãoefpantofo eftrondo que a terra coda tremia. E defpoisde elle íer acabado,dous talagrepos,homens muyto afamados de doutos nas fuás feiencias fe fubiraó emdous agres, q íaó os púlpitos, como diíTe alguas vezes, os quais eftauão concertados, & ornamentados com pannos de fe- da ôc alcatifas ricas, & tratando aos ouuintes daquella cerimonia que íe fazia, lhes declararão a fignihcaçaõ decadacoufa, & lhe relatarão por íeus paíTos a vida & a morte do Roo limpaíradoj&aeleyção deite, & as partes que efte tinha para aqueíle tão infigne pontificado, paraque Deos o chamara,& outras muytas coufasde que o pouo ficou muyto fatisfei to. E dando por defpidida outras três pan* cadas no mefmo fino em que fe de-' rão asprimeyras,os agres amfeosaf- como eftauao ornamentados,foraõ logo queimados com outra noua ce- rimonia.de que me efcpfo dar rela- cão,porque me parece defnecefíãrio gaftar o tempo neftas gentílicas fu- perfluidades, para as quaisbaftao q o que tenho ja dito. Defpois de eflar tudo ifto quieto, õc com filencio por

efpaço

Femao Mcndez Tinto. cfpaço de cinco ou íeis credos, vcyo de outro téplo q eftaua diítante deite obra de tiro de beíla húa muyto euftofa & rica prociíTaò de mininos, todos vertidos de tafetá branco, em íignificação de lua limpeza, & inno- :encia,com muytasjoyas douro aos pefcoços, & xorcas do mefmo nos peis,& vellas de cera brãca nas mãos, k nas cabeias capellas de argentaria ie retrós de cores & fio douro & efe

>rata cõmuytafoma de pérolas en- reílachadas, & rubis, & çafiras. No tieyo defta prociíTaò vinha húa rica harolla cuberta,có panno douro jue doze mininos deftes trazião aos íombros, cercada toda em roda de nuytas macas Ôc perfumadores de >rata,có cheiros muyto fíiaues. Eftes nininos vinhão todos tangendo em nuy ta variedade de ínftrumétos mu icos^ catando louuores de Deos,& edindolheq reiufcitaíTe a noua vi- a aquelle morto, os quais tãto q che araó onde oRoolim eííaua deitado, ecendo os mininos a charoila, & ti- ádolhe o panno q vinha cuberta, ihio de dentro delia hu mininOjéj ao arecer naò podia Ter de mais q de ;es annos,até quatro quando muy- >,& quanto vinha nu, fe lhe não parecia da carne coufa nenhúa, por- tiído trazia cuberto douro Ôc de pe« raria num trajo como entre nós : pinta hum Anjo, com afãs douro, : cetro na maó,& húa coroa riquif- nna na cabeia, ao qual, em faindo a charoila, todo o pouo fe proftrou or terra, dizendo todos em altas vo- es q faziaó tremer as carnes : Anjo

de Deos,mandadodo Ceo paranof- fa faude,quando embora tornares ro ga por nos. Hl Rcy fe chegou logo a cite inini.no,& to/nandoo nos braços com acatamento grande, ôc com eltranho modo de cerimonia,co- mo q moítraua que não era digno de. lhe por a máo,por ler Anjo q vinha do Ceo mandado por Deos, o posa borda da coua,& tirado o pano deve íudo q eítaua encima della,eftãdo to- do o pouo pofto é joelhos, cos olhos no Ceo,&as maõs aleuantadas,o mi- nino,delpois q íeis face rd o tes o encéV çaráo cinco vezes,?diífe em voz alta como q failaua co morto,a ty pecca- dor,cócebido em peccado na vil mi- feria & torpeza da carne, mãda Deos dizer por mima menor formigada fuadeípeníã,q refufeites em noua vi- da aceita a elle, temeres íempre o caftigo da fua maó poderofa, paracj no derradeyro bocejo não, embiques em ty como os filhos do mundo, & que dahy dondejaz.es morto te leuantes muyto depreda, porque em íy fe tem confirmado por mayor dos maybres nas brallas da terra, ôc vem após mim, & vem após mim, ôc vem após mim. A eíte tem- po tornou el Rey a tomar o mini- no nos braços, ôc leuantandofe o Roohmque eftaua na coua, como admirado daquella vifaó, fe pos em joelhos diante do minino que ainda eftaua nos braços dei Rey, & diíle, aceito em mim efta noua mercê da mão do Senhor,conforme ao que de fua parte me dizes, & me obrigo a fer até a morte exéolo de humildade, ÊE &o

Teregrinaçoes de

ôc o maispequeno de todos os feus, Roolim efteue três dias apofentado

paraq os faposda terra fe não percaõ na feruura do múdo.E abaixãdofe en tão o minino o acabou por fua mão de tirar da coua, dòde ainda não ef- taua de todo fora. A efte tempo fe derão cinco pancadas. em hum fino, as quais em fe ouuindo,todo o pouo íe proftrou por terra dizendo a alças vozes, Bendito fejas Senhor por ta- manha mercê, & repicandofe então todos os finos da cidade, era o eftró- do deiles tamanho que não auia que fe pudeffe ouuir nem entender, & a- jontandofea ifto infinidade de arti- lharia que defparou, aísi na terra co- mo no rio,onde eílauão a/s duas mil embarcações, fez o eftrondo muyto mayor,& muyto pior de fofrer.

CA 9. (ZXIX.

Da manejraque efte 'RpoKmfoy leuado a ilha de Mounay, c> me- . tido nella de pojfe do feufu- premo pontificado.

Nouo Roolim foyle^ uado daquy deite lu- gar em hum riquiísi- iiio andor douro & pe Oraria q os principais oito fenhorès do reyino leuauao aos hombros,& el Rey diante delle a pé, trepado rico âs coifas, & defta nianeyra o acompanhou até os íeus mefmos paços, q a efte tépo eftauão com ornamento pontifical riquifsi- mamente preparados nos quais o

em quanto na ilha de Mounay fe a-

parelhauao algúas coufas neceiTariai

à fua entrada nella. Neftes diasqu<

elle efteue nefta cidade de Martauão

ouue muytos jogos de inuençoem

muyto euft ofas, q o pouo, ôc os prin

cipes & íenhores fizerão, em dua:

das quais el Rey entrou em peífo;

com aparato riquiísimo & muyt<

grandiofo,de que não curo de dar re

lação porque confefto que me na<

atreuo a íaber cotar na verdade o co

mo ifto paiTou, Chegado o diaqell

auia de entrar nefta ilha de Mounay

(a quafeomo diffe,elles tem entr

fy como entrenós he Roma, ôc po

cabeça do feu diabólico pontificado

a armada dos feroos, ôc laugoas, «5

laulees,& de toda a mais forte de en

barcaçoés que eftauaò no rio, q pai

fauão de duas mil,forão polias em 2

la de duas fileyras(em diftancia de t<

do o efpaço q ha da cidade até a ilha

que pode fer hua legoa Ôc meya, t

defta maneyra ficaua a mais ferrac

fa rua q fe podia dizer, porque toda

eftas embarcaçoens eftauão cuberta

de ramos com muytas fruirás, ôc d

muytas rofas, Ôc flores, & boninas d

muytas maneyras, & muytos to;

dos ôc eftendartes, ôc bandeyras j\

feda, com húainuejataó regozija,*!

em toda a gente, que parece que ar

dauão a competência a qualoaui

de fazer milhor, para lhe fer outòi

gado jubileu plenifsimo, &abíblu

ção de quantos roubos tiueísé feite

íem reftituiçaò de eoufa nènhúa, <

outras larguezas nos nefandos abi

* ' fc

Femao Mcndcz Tinto. fos da'fua torpe vida, as quais calo por ícr matéria indigna das orelhas pias, & conforme às íuas -diabólicas Jeitas, & âs tençoens danadas dos in- ftituidores delias, porque nas licen- ças & larguezas da carne íaó taóde- ii2ÍTos & diíTolutos como todos os outros infiéis & hereaes. Para irem na companhia do Roolim ficarão íóméte trinta laulees de remo ligey- ros, os quais hião todos efquipados ■de fenhores & gente nobre. Elie hia em hum riquilsimo feroo, aílenta- doemhúa tribuna de prata comhú guardapoo por cima de tela douro, & el Rey embaixo aos íeus peis, por naó fer digno de íe lhe dar outro lu- gar^ ao redor delle hiaó trinta mi- ninos veftidos de citim crameíim em joelhos com luas maças de prata aos hombros, & doze em pecom vefti- durasde damafco brãco}& com per- fumadores de cheiros fuaues nas mãos, & em todo o mais corpo da Embarcação hião obra de duzentos talagrepos de dignidades honrofas, como Avcebifpos entre nós, no qual numero emrauão íeis ou fete filhos de Reys.E porq hia efta embarcação taó cheya de gente que fe não podia remarca leuauao á toa quinze lau- lees,cujos remeyros eraõ os fupremos religiofos das noue feitas defte rey- no. Com efta ordem abalou defta > cidade de Martauáo duas horas an- te menham, & fez Teu caminho pe- lo meyo da rua das embarcaçoés,nas quais auia infinitas luminárias de muy.tas & muyto differentes inuen- çoens,poíta*põr entre os ramos de q

cftauaó cubertas. Quando começou a abaUr,íe fez hum linal com cies pe- ças de artilharia,o qual tanto que foy ouuido, foraó tantos os repiques dos finos, & tamanho o eftrondo da artilharia que defparaua, & de muy- tasdiueríidades de bárbaros inftru- mentos que fe tocauão,& da vozaria & gritas da gente,que o mar & a ter-« ra parecia que fefundiaò. Chegan- do ao caiz onde auia de defembar- car,o recebeo húa prociíTaò de Roo- lins do ermo,a q elles chamaó meni- grepos, q faõ como entre nos os capu chos, aos quais toda efta gentilidade muyto reípeito,por ferem tidos na maneyradeqviuem,&na regra que profeíTaõ por gente demais abftiné- cia q todos os outros. Eftes,q em nu- mero podiaõ fer até féis ou fete mil, vinhaó todos defcalços, & veftidos de eíleyras pretas, por defprezo do múdo,cócaueyras &oííos de finados nas cabeças,& cordas de cairo groftas aos peícoços, & as teftas barradas de lama,com hum íetreyro que dezia, Jama, lama, não ponhas os olhos na tua baixeza, mas poénos no premio q Deos tem prometido aos q fe def- prezão pelo feruir.E chegado aoRoo lim,q os recebeo afabetanente, fe lhe proftraraó todos cos rofíos era ter- ra, & defpois de eftarem afsi hum pouco, hum delles que parecia fer o mayoralde todos, pondo os oMios no Roolim lhe difíe, praza aaqueile de cuja maò nouamente aceitaíle fe- res na terra cabeça de todos , fazerte taõ & taò fanto, que as tuas obras lhe fejão em tudo taõ agradaueis E E 2 como

como a fimplicidade dos innocentes de tenra idade q chorando fe calão nas tetas das mays,a que todos os ou- tros refponderaó com hu grande tu- multo de vozes,afsi permitta q feja o alto Senhor da mão poderofa.E aba- lando logo daquy acompanhado de- fta prociflaó,q el Rey por mais hon- ra hia gouernando algús dos mais principais que para iíío chamou, fe foy direyto ao lugar onde o Roolim morto eftaua enterrado,& chegando á fua fepultura,fe proftrou fobre el- la co rofto em rerra,& defpois q der- ramou muy tas lagrimas, húavoz trifte & fentida, diííe como que falia- ua co morto3praza a aquelle que vi- ue reynando na fermofura das fuás eftreflas,que por premio de meus tra- balhos me faça digno de fer teu ef- crauo,paraque nacafa do Sol onde tu agora te eftâs recreando, eu te íirua de vaflbura dos peis,porque afsi fíca- *ey diamante de tantos quilates que o mundo todo com todas fuás rique- zas fe não poderá igualar cofeu pre- ço, a que os grepos refpóderaõ,maf- firao fatipay,que quer dizer, afsi lho concede Senhor. E tomado húas co- tas que fbraõ do morto, que eftauão fobre a íèpukura, as pós ao pefcoço como relíquia de grande eftima, & lhe deu de efmola féis alampadas de prata,& dt>usperfumadores,comfeis ou fete peças de damaíco roxo. Da- quy fe recolheo para as fuás caías a- companhado fempre dei Rey ,& dos príncipes & fenhores do reyno, to da a turbamulta de facerdotes q aly eftauão jútos,on.de fe defpidio gerai-

Terigrindçoès de

mete de todos, & de hua jariella lhes laçou nas cabeças graós de arroz, co- mo entre nos fe laça agoa beta, que a géte recebia delle cos joelhos no chaó & as mãos leuantadas, Acabada efta cerimonia,q duraria quaíi três horas, fe derão três pácadasnú íino,ao qual íinal o Roolim fe recolheo para dé- tro,& a gente às embarcações, & na- quelle dia ouue affaz q fazer em àcf* pejar a ilha, El Rey fe defpidio tam- do Roolim lobola tarde, & ve- yo dormir â cidade, õc como ao ou- tro dia foy meahá fe partio para a ci- dade de Pegíi q eftaua daly dezoito legoas, onde chegou ao outro dia co duas horas da noite, fem regozijo faufto nenhú, pormoftrarfentiméto pela morte do Roolim paííàdo,de q íe dezia que fora muyto deupto.

CJT. CLXX.

T> o que eíle l^j "Bramaafe^ def- pois q chegou à adade de "Tegu^ como mãdou fobre a cidade Saua- dy&doq aby nos acenteceo a os noueTortuzuefes.

Afiados vinte dias deí^ pois que efte Rey Bra- maa chegou â cidade de Pegu,yendo que na carta que o feu Embai xador lhe trouxera do Calaminhan lhe dezia elle que por feu Embaixa- dor tomaria com elle conclufaóna liga que ambos querião fazer noua- mente contra o Siamrnó, & que efta

fe não

remao

fe não podia ja efTeituar aquelle ve- ráo,pelo /nuyco que ainda auia que fazer niífo, & que para yr cambem lobre o reyno do Auaa,como defeja- ua, não era ja tempo, determinou de mandar efte feu colaço (a quem, co- mo atras rica dito, tinha dado titulo de íeu irmão) fobre a cidade do Sa- uady,que era daly cento & trinta le- goas contra o Nordefte. E ajuntando para iílb hum exercito de cento ôc cinquenta mil homens, em que en- trauão trinta mileftrangeirosde di- uerfas nações, & cinco mil elifantes, dous mil de peleja, ôc trcs mil da ba-, gage & mantimentos, íê pardo o Chaumigrem defta cidade, embar- cado em hua frota de mil & trezen- tas embarcaçoens de remo a cinco dias do mes de Março,& aos quator-» ze chegou â vifta do Sauacty, Ôc furto ao longo de hum campo que fe de- zia Guampalaor, efteue ahy féis dias efperando pelos cinco mil elifantes que vinhaó por terra, os quais chega- dos,abalou logo para a cidade,& pó* dolhe cerco a cometeo três vezes a efcalla vifta, Ôc de todas fe retirou fé- pre com muyta perda dos feus, afsi pela reíiftencia q achou nos de den- tro, como por fer ofício trabalhoíb :parao aruorar das efcadas, porque aquelle lugar fobre queeftauaedifu cado o muro, era todo piçarra. E to- inando confelho fobre o q ao dian- te deuia de fazer, lhediíferãoos feus capitães q a bateífe duas eftancias de artilharia pelos dous lugares por onde parecia de fora q era mais fraca, porq arrafados aly os dous laços do

<£\dende^ Tinto. i t 9

muro, lhe ficaria a entrada mais fácil Ôc menos perigofa: o que logo fc pòs por obra çómuytaprefteza, ôc para ifto começarão os engenheirosa criar pela báda de fora dous como baluar- tes íobre grande entulho de vigas Ôc faxina,& em cinco dias os puferaó ambos em tanta altura q fobreleua- uáo por cima dos muros mais de duas braças, ôc em cada hu deiles fe aíTeftaráo vinte peças groíías de eípe ras ôc camellos de marca mayor q começarão a bater os muros, ôc der- rubarão dou' lanços dellesf Ea fora eítas peças auia aly mais de trezentos falcões q tirauao fem ceíTarem pa- ra mataré a géte q andaua pelas ruas, os quais lhe fizeráo muyto dano.pe- lo q vendofeos de dentro tão afron* tados,& com tanta perda dos íèus, fe determinarão como homens muyto esforçados a venderé fuás vidas a feus inimigos, ôc fainJo huanteme- nhã pelos lanços do muro q a artilha ria tinha derrubadojderão no do ca- po tanto fem medo, q em menos de hua hora o exercito do Bramaaefte» ue quaíi de todo desbaratado,& po fer ja quaíi menham clara os Saua-' dis fe recolherão â cidade, deixan- do mortos oito mil dos inimigos, ôc em muyto breue tempo repairaraõ os dous lanços do muro caidos com hum contramuro terraplenado de entulho de vigas ôc terra Ôc faxina que não auia defpois artilharia que o pudeífe paíTar. Peio qual vendo o Chaumigrem quão mal ate en- tão lhe tinha focedido aquelle nego- cio, determinou de fazer guerra aos EE3 . lugares

Peregrinações de

lugares comarcãos que eftauão mais de gente pobre, fegundo as moílra

perto da cidade,& mãdandoo Diof- íaray tifoureyro mór,de quem os oi- to portuguefes éramos catiuos, por

de Fora,& não oufando de nos deícu brirmos, nos embrenhamos aquelh dia nua terra alagadiça em que auii

coronel de cinco mil homcs,lhe diíTe , muy ta efpadana,onde miemos mu) que foíTe fobre lugar q fe chama- to trabalho por caufa das muitas farr

ua Valeutay donde a cidade muytas vezes era prouida de mantimentos,a jqualida lhe focedeo de maneyra, q antesq chegaífe ao lugar derãonelle obra de dous mil Sauadis , & em me- nos de meya hora dos cinco mil ne- nhum ficou que nãofoíTe morto- & neftareuolta por fer de noite, quiz noíTo Senhor q nòs os oito Portugue íès q ahy nos achamos, eícapaíTemos fugindo, porq ouuemos por milhor coníelho faluarmos as vidas q ficar- mos mortos no campo como os ou- tros. Daquy,fem fabermos por onde hiamos, cometemos o caminho pof cima de húa ferra muy to agta,& cor remos por ella aílaz de trabalho três dias & meyo, no fim dos quais fomos dar em huas capinas apaula- das/em caminho nenhú, nem outra cópanhia mais que muyta lo ma de tigres & cobras, & outras muy tas ma neyrasde animais filueftres que nos meterão em affaz de ccnfufaò. Mas como DeosnoíTo Senhor, por quem chamauamos cõtinuamente muy- tas lagrimas,he o verdadeyro cami- nho dos defencaminhados, permitio ellc por fua mifericordia q no cabo defte tépo íbbola tarde viífemos Jhurh fogo contra a parte do Lefte,& feguindo nòs direitos a elle fomos a* manhecer junto de hum grande la- go pcuoado â roda de alguas aldeãs

bexugas q aly auia, q nos tíraraó de fangue. E tanto q anoitecco fegui- mos noílo caminho até quafi menhã q nos achamos junto de hum grandí rio, & caminhando ao longo dellc por efpaço de mais cinco dias, che- gamos a outro lago muyco mayor, à borda do qual eftaua hum templo pequeno a modo de ermida com ermitão muyto velho que nos fez gafalhado: efte nos deixou aquy ef tar apoufentados comíigo dous dias, nos quais lhe preguntamos por muy tas coufas que fazião a noíTo propo- fito, a que' elle refpondeo tudo 0 que era verdade,& nos diííe que aquelía terra em q eftauamos era ainda do Rey do Saua dy, & q aquelle lago fe chamaua Oregantor,que quer dizei bocejo da noite, & a ermida Quiay Vogarem,deos do focorro- E pregú- tandolhe nos pela íignificação daql- leabuíb, nos afnrmoupondoamáo fobre hum cauallo de arame q eftaua por idolo no altar, que fegudo tinha lido muytas vezes em hum liuro que trataua da fundação daquelle reyno, que auia duzentos Ac trinta & íete annos que fendo aquelle lago húa grande cidade por nome Ocumcha- lcujoutro Rey q fe dezia Auaa, aca- mara por guerra,& pela vitoria defte feito lhe acQÍelharaóos feus facerdo- tes por quem fe elle gouernaua, que

para

Femao Mcndez^Ptnto*

2io

para gratificação cte tamanha honra como aquella, lhe era neceílàrio ia- crificar ao Quiay Guamr dcos da guerra, por lhe dar aquella vitoria, todos os machos pequenos que aly forao catiuos,porque fe aCsi o não fí- zeíTe, foubeife certo q*como foíTem homés lhe auião de tornar a tomar o reyno,& que temendo o Rey o peri- go defte ameaço, os mandara ajurar todos num certo dia, que entre elles era muy to folenne,.os quais erão oi- tenta & cinco mil, & metidos todos â efpada com grandiísima crueza, 8c Vffuíào de Tangue pata ao outro dia ferem todos queimados em facrifi- cio, diíTe, & aísi nolo affirmou com muy tas palauras,que aquella mefma noite tremendo a terra,cayrão íobre a cidade tanta quantidade de corif- cos & fogo do Ceo, que ella com tu- do quanto nella auia, em obra de meya hora foy fouertida,no qual ca- ftigo da jufta juftiça de Deos foy morto o Rey com todos os íeus,fem eícapar nenhum, em que morrerão trinta mil facerdotes, os quais de en- tão para íè ouuião naquelle lago todas as luas nouas & cheyas, hus bramidos tão efpantoíòs que a gen- te pafmaua de medo; pela qual cau- fa de então ate agora aquella terra fe defpouoara toda â roda, fem auer nella mais que fós oitenta & cinco ermidas, em memoria dos oitenta & cinco mil mininos que o Rey fem caufa pelo confelho dos feus íacerdotes manda-

M

ra matar.

CM CLxxi

T>o que mais pajpimos nesle ca*

mmho^ ç> do fuccejfo que

úuemos nelle.

Efta ermida paíTamos os dous dias que diffe, bem agafalhados ào ermicão della,&aoter ceyro dia logo em fen- do menham nos deípidirnos delle,& nos partimos 2Ílaz eípantado:-;,& cor- tados de medo do que tinhamos ou- uido,& continuamos nolOTo caminho ao longo do rio todo aquelle dia & a noite feguinte; 8c fendo quaíi me» nham nos achamos junto de hum grande canaueal daçucar,onde então nosprouemos de algúas canas, por não termos outra coufa de que nos pudeíTemos Mentar, ôc caminhan- do fempre ao longo do rio,o qual ti- nhamos tomado por roteyro da nof- viagem, porque nos parecia que neceíTariam ente, ainda que foíTeao longe, auia de fazer feu efpediente ao mar,onde eíperauamos que noílb Senhor por algua via nos deparaífè algum remédio de íãluação, chega- mos o gutro dia a húa aldeã que íè chamaua Pommiferay,onde nos me- temos em hum efpeííb mato,pornao íèrmos viftos da gente que frequen- taua aquelle caminho. E fendo paf. fadas duas horas da noite,* íeguimos por noífo intento, que, como ja diíTc era irmos afsi ás cegas por aquelíe rio abaixo até onde a véturas nos guiaf- EE4 íe,ou

Terigrindçoes de fe, ou Deos foíTe feruido c6 noíTa mercê que noíTo Senhor nos fazia

-SC

morte dar fim a tantos trabalhos quã tos continuamente de dia &de noi- te tínhamos pafíado, com muytos efíremecimentos & vifoes de morte que nos atormentauão mais que a mefma morte que tão abraçados hiamos. E a cabo de dezaflete dias que cótinuauamos eíla trabalhofa & trifte peregrinação, prouue a noíTo Senhor que por nua noite de grande efcuro & çarração de chuueyros vi- mos hum fogo adiante de nos pouco mais de hum tiro de berço, & recea- do nós em algúa maneyra.de poder fer aquillo pouoacao, nos deixamos eftar quedos hum grande efpaço có- fufos & indeterminados, até que de- uifamos que aquelle fogo fe mouia, pelo queaíTentamosqueeraímbar- cação que andaua, & não fe paíTou pouco mais de meyahora que ao lõ- - jgo da terra enxergamos vir hua em- barcação que trazia em fy noue pef. foas, as quais emparelhando por júV to de nós,fe igualarão com a nban- ceyra da borda do rio, Ôç defembar- caraó em terra em húa calheta que a mefma terra fazia a modo de angra,. & ordenarão logo fogo com que co- meçarão de guilar a cea, & defpois de guiíada fe meterão nella muy- tas feftas & regozijos, em quÊgafta* rão hum grande efpaço, ôc íèndoja bem fartos de comer ôc de beber, quiz Deos que todos noue, em que vinhão três molheres, adormecerão demaneyraque não dauao acordo fy. Vendo nos então o tempo diP pofto para nos aproueitarrnos da

nos fomos todos oito muyto calada mente a embarcação, que meya en uafada na lama eíhya atada a hú; vara, & ppndolhe os hombros a pu lemos. em nado, ôc nos embarcamo: todos neíla aommuytaprefla,& no: fomos a remo pelo rio abaixo [en rumor ourebolíçoalgumj& como í corrente daagoa hia emnoíTo fauor, Ôc o vento nos feruia a popa, fomoí amanhecer daly mais de dez legoas. junto de hum pagode que fedezia Quiay Hinarel,deos dos arrozes, nc qual não achamos ,mais que Jium íò homem,& trinta ôc fere molheres,de que as mais eraõ velhas, ôc beatas profeílas daquelle templo, dasquais fomos agafalhados com muyta cari- dade,inda que, fegundo parecia, foy mais pelo medo que tiuerão de nos, que por vontade que tiueífem para iífo» E pregíítandolhe nos por aíguas çouías particulares que fazião a nof- fopropofito, nos não íbuberão dar razão de nenhua, dizendo que eráo molheres deíapegadas por voto das coufasdomundo,&que não tinhão outra vida íenâo eftarem aly encer- radas , rezando continuamente ao Quiay Ponuedee que mouia as nu- ués do Ceo,pedindolhe que lhes def feagoa nos campos das fuás lauou- ras, para que lhes rjao faltaíTe o ar- roz. A quy gaftamos todo aquelle dia fio concerto da embarcação, ôc nos prouemos também; da defpenfade- ílas beatas de arroz,açucar,feijoés,ce- bolías,&de ajgúa chacina,de queel- las eílauão bem largamente proui-

das.

Fernão MendeçJPinto* 2 2 1

das, E partindonos daquy com húa deíconfolação,pela confiança que ti*

hora da noite a remo ôc à vella, con- tinuamos noflo caminho íete dias in~ teyros fem nenhum de nòs, (ayr em terr.a,por nos temermos dalgum de- faííre que leuemente nos podia acó- tecer em qualquer lugar dos que via mos ao longo do rioj mas corno nin- guém pode fugir ao que eftâ deter- minado là de cima, indo nòs afsi af- fozeonfufos, .& arreceoios do que o entendimento nos repreiencaua,com muytos fobrefakos cada hora, afsi do que viamos,como do de que nos arreceauamos,quiz a noíla triíte for- tuna que húa ancemenham paliando nòs pela boca de hum efteyro, nos co meterão treze paraoos de ladroes c5 tamanho impeto,& com tantas dif- ferenças de arremedos fobrenòs, q em menos de dous credos nos mata- rão três companheyros,& nos os cin- co que efeapamos nos lançamos com muyta preíia ao mar todos enuoltos no noíTo fangue das feridas que ieua- uamos,de que deípois dous eftiueraò à morte. E chegando a terra,rios me- temos por dentro do mato,onde efti- uemos todo aquelle dia lamentando com muytas lagrimas aquella pre- fente deiauencura acabo de tantas como tínhamos pafíado.E partindo- nos afsi feridos deite lugar com mais eíperanças de morte que de vida,fe- guimos noflo caminho por cerra afTaz de trabalho, ôc tão confufos ôc indeterminados no que então deuia- mos de fazer, que muytas vezes de palmados nos púnhamos a chorar

nhamos de podermos ialuar as vidas por nenhús.mcyos humanos. E eira- do nòs neíie triíte eílado, & cos dous cópanheyros dos cinco que eramos> para morrer,prouuea noílo Senhor (que aly onde os meyos humanos faltão eítâ fempre mais certo) que a calo pafTaíle por aquelle lugar onde nós eítauamos à borja da agoa húa embarcação em que hia húa molher Çhriítam por nome Violante, q era caiada com hum Gentio cuja era a- quella embarcação, o qual carregado de algodão hia de veniaga para a ci- dade de Çofmim: efla em nos ven- do deu hum grande grito Ôc diíTe,Ie- íu,iíto faõ Chriítãos que eu vejo dia te de mim? & mandando muyto de«. preíia tomar a vellafe veyo a remo para onde nós eítauamos, ôc íaltãdó em terra,& o marido com ella (que ainda que era Gentio era muyto ca* ridofo)nos abraçarão ambos chora* do muytas lagrimas, ôc nos meterão dentro na embarcação, ôc ella tratou logo de nos prouer de cura para as fe ridas,& de veítido para nos cubrir- mos o milhor que entaó foy poísi- uel,&nosfez outras muytas carida- des de boa Chnftam. E partindonos daquy fora dos receyos paliados, quiz noíTo Senhor que em cinco dias chegamos â cidade de Coímim,qué he hum porto de mar no reyno de Pegu,onde em cafa deita Chrifbm fomos curados com muyto gaíalha«« do, & acabamos deconuaiecerdeto do das noíTas feridas. E como nas

hús com os outros com bem grande mercês q Deos faz nunca pode auer

falta,

Peregrinações

falta, ordenou elle que nefte tempo eftiuefle aquy nefte porto húa nao de que era fenhorio Luis de Mon- tarroyo que hia para Bengala,& áe[ ^pois de nos defpidirmos da noíTa hof pedâj&lhe darmos as deuidas gra- das pelo que delia tinhamos recebi- bido,nos embarcamos com efte Luis de Montarroyo, o qual também nos fez muyto ga falhado, & nos proueo a todos cinco muyto largamente de tudo o que nos era neceífario. E che- gando nós ao porto de Ghatigaó no reyno de Bengala, onde naquelle to- po auia muytosPortuguefes,me em- barquey eu logo nua fufta de hum Fernão Caldeyra que hia para Goa, onde prouue a noíTo Senhor que che guey afaluamento. E ahi achey a Pêro de Faria capitão que fora de Malaca, & que me tinha mandado a Martauão a embaixada ao Chau- bainhaa,como atras fica dito,ao qual dey larga conta de tudo o que por mim tinha paífado,de q fe elle mof- trou afiaz peíàrofo, Ôc me proueo algúa coufa a que por ília confeien- cia Ôc por fua nobreza lhe pareceoq me eftaua obrigado,pelo muyto que eu tinha perdido por feu refpeito. E comifto me torney logo naquella mouçaõ a embarcar para a banda do Sul,& tornar denouo a tentar a fortuna pelas partes da China &de Iapaó/para verfe onde tantas vezes perdera a capa,me poderia clefta vez melhorar noutra menos gafada que a que então fobre mim trazia.

CAT. ÇLXXII.

Qpmo da fndia me fuy para a

^unday&- do que la pajfou

num inuemo que ahy

eBiue.

Mbarcãdome eu aquy em Goa em hum jun- co de Pêro de Faria q de veniaga hia para a

C,unda,chegueyaMa laca no dia que falleceo Ruy Vaz Pereyra Marramaque, capitão que então era da fortaleza. E partindo da quy para a Qund^em dezaíTete dias cheguey ao porto de Banta, quche onde comummente os Portuguefes fazem fua fazenda. E porque nefte tempo a terra eftaua muyto faltada pimenta que hiamosbufear, nosfoy forçado inuernarmos aly aquelle an- no,com determinação de para o ou- tro feguintenos irmos para a China, Eauendoja quaíi dous meies q efta- ua mos nefte porto fazendo pacifica- mente noíías mercancias na terra,ve- yotera cila por mandado dei Rey de Demaa^mperador de toda a ilha da íaoajAngenia.BaleA Madura,cõ todas as mais ilhas defle arcipelago, húa molher que fe chamaua Nhay Pombaya; donayiuua de quafííef- íentaannosde idade, a qual vinha de fua parte dar recado ao Tagaril Rey da C,unda,que também era feu vaíTallo como os mais Rey? defta monarchia,paraque peíToalníéte, em termo de rnés &meyo folfe ter com

|!

Fernão Mcndix Tinto.

elle a cidade de Tapara onde então fazia preítes para yr íobre o reyno de Paííeruãp. Eira rnolher quando defembarcou neíle porto,o Rey mef jnip em peifoa a foy bufcar ao cala- luz em que vinha,& a leuQ^ gran- de faufto para liia caía,& a agaíalhou coma Raynhafuamolher, & ellefe paííou paraoutro apoíénto lóge da- ly,porque;eíta era a mayor honra q íe lhe podia fazer. E paraque fe faiba a razão porq eíle recado veyo mais por molherquepor homem,fe ha de jaber que foy fempre cuftume anti- quifsimodos Reys deites reynosdes do principio delles, tratarem as cou- ias de muy ta importanda,& em que fe requere paz & concórdia, por mo* lheres;,& ifto não fomente nos reca- dos particulares que os fenhores mã- dão aos vaííalloSjComo foy efte ago

fayr fora de cafã, porque dizem que afsi como por fer f ermo ia contenta a todos,alsi também por eíTa mefma cauia,poderà ler monuo maisde defc inquietarão nas coulas em que íe re- quere concerto, que de as trazer ao íi m da paz & concórdia que fe preté- de. Dizem mais que ha de fer caia- da de legitimo matrimonio, ou ao menos q ha de fer viuua de feu mari- do legitimo; & fe pario de feu mari- do ha de prouar poi^eftromento co- mo criou a feu peito todos os filhos q ouue delle,porque a que pario 6c não criou os fiHios podendoo fazer, dizé que fica mais propriamente fendo mãy de deleitarão como" qualquer corrupta,&rdeshoneíta,que mãy yer dadeyra âo feu próprio fllho.E guar- dafe efte cuftume tão eftrcitamente entre a gente nobre deita terra, que

ra,mas também nos negócios publi- fealgíiaraolherpare, & poralgú im- cos & gerais que.hús Reys tratãocos pedimento licito que tenha não po«

outros por fuás embaixadas, 6c dão para ifto por razão,que ao género fe- minino, pela brandura dafuanatu- reza,dera Deos mais afabilidade, Ôc autoridade, & outras partes para íe lhe ter mais refpeito que aos homés, porq iaófecos,& por eíía razão me- nos agradaueis a parte onde fe man- dão. Porem efta molher que cada hu deites Reys cuftuma de mandar a coufas de qualidade que digo, dizé elles que ha de ter as partes que lhe a elles parece queíe requerem para ci- la poder fazer bem feito o negocio q fe lhe encomenda,dizem que não ha de fer folteira, porque por eftar neífe eftado perdera o fer de quemhe íè

de criar o filho a feus peito:, helhe tão neceílàrio para fua.hóra tirar d if- fo hum efí romento,como fe fora ou tracoufa muyto mais graue, & de muito mayor importãcia.E íe fendo moça acerta a ficar viuua, para ma- yor fineza de fúavirtudejfe ha de me ter em religião,porq pareça que não cafou tanto para os goítos que dahy podia efperár, quanto para cer filhos conforme â limpeza & honeítidade com que Deos no paráyíb da terra ajuntou os primeyrós dous caiados. E paraque o feu matrimonio feja de todo limpo&cóforme âíey deDeos, dizem que defpois que fe fentir pe- jada não ha de ter mais comunicação

com

^Perigrmttçoes de

com feu rmrido,pGrque então não fera ajuntamento puro & honefto, Te não íenfual&çujo, E tem mais para ifto outras condições que aquy não digo,porque entendo que fera pro- lixidade determe em coufas que me -parecem efcuíadas.A Nhay Pomba- ya que trouxe o recado ao Rey da C,undaque eu atras diíle, defpois q negoceoucom elle o a que vinha,fe partio logo deíla cidade de Banta,& cl Rey fe fez preftes com muyta bre uidade,& íe partio com húa armada de trinta calaluzes, & dez jurupan- gos,bem apercebida de mantimen- tos & munições, nas quais quarenta vellas biáò fetc mil homés de peleja, a fora a críuzma do remo, & hião ne- fía companhia quarenta Portugue- , fesdos quarenta & íeis que então a- h.y. nos acbamos,porque por iflb nos fez muytas ventagés em noíTas fazé- das, ôc confeflou publicamente que leuaua gofto diflo, por onde não ou- ue razão com que nos pudeíTemos cfcuíar,

CAT. CLXXlll.

£omo oTangueyrao deTate £m- peradorda faoafoj com bu grof- fo exercito contra o %ej de Taf- famao& do quefefe^ def- pois que la chegou.

Artido efte Rey da GjUnda-defte porto de Banta a cinco dias do mes de íancyro do an- no de 1546. chegou a

os dezanoue à cidade de íapara,ònde o Rey de Demaa Emperador deíla ilha Iaoa então fe eftaua fazendo pre íles com hum exercito de oitocentos mil homes, o qualíabendo da vinda defte Re)frda C,unda,que era feu cu- nhado & feu vaflallo, o mandou re- ceber á embarcação por el Rey de Pánaruca Almirante da frota, o qual leuou comfígo cento & íeflenta cala. luzes de remo, & nouenta lancharas de Lufoés da ilha Borneò,& com to- da efta companhia o trouxe onde el Rey eftaua, do qual foy muytobem recebido,& com honras muyto aué- rajadas de todos os outros. PaíTados quatorzedias defpois que chegamos a efta cidade de íapara,o Rey de De- maa fe partio na via do reyno de Paf faruão, embarcado em hua frota de duas mil ôc fetecentas vellaSjem que entrauão miljuncos dalto bordo, & tudo o mais eraó nauios de remo, ôc aos onze dias de Feuereyfo chegou ao rio de Hicandureeque he na en- trada da barra. E vendo o Rey de Pánaruca Almirante da frota que os nauios groíTbs não podiãoyr furgir à cidadeque eftaua daly duas legoas, por refpeito dos alfaques, & bancos de área que auia em alguas partes do rio,mandou defembarcar todaa gé- te dos nauios groíTos em terra, & os nauios de remo foraó ancorar no fur- gidouro da cidade,para queimarem as embarcações que encima no por- to eítiueíTem,& afsi o fizcraô,na qual armada foy o Pangueyraó Empera- dor em peíToa, acompanhado de to- dos os grandes do reyno. O Rey da

Ç,unda

Fernão Mende^Finto. 223

C,undafeu cunhado, que era gene- fua^edjráóaofèu Rey que lhes dei-

ral do campo,abalou por terra. 'a mayor parte da gente, & deípois dei lerem todos chegados ao lugar onde eauia de aíTentar o campo, que era defronte dos muros, fe entendeo pri- meyro que tudo na fortificarão dei* e,& em ordenarem as eílanci aspa- da a artilharia com qne fe auião de 5ater os lugares mais acomodados a eu propoíito,no qual trabalho fe ga- tou a mayor parte do dia, E pafían- loaquella noite com muytas feitas k regozijos,& com boa vigia, tanto jue foy menham clara,cada capitão e aplicou ao que cóuinha â-fua obri- gação, não ceíTando todos de traba- harnoque pelos engenheyros lhes :ra mandado, de maneyra quenefte ègundodiatodaa cidade ficou cer- ;ada em roda de vallosmuyto altos, :om fetis terraplenos fortificados ca àgas muyto fortes, fobre que aííe- larão muytas peças groílas, em que :ntraraó algúas aguias,& lioés de me ai, que Turcos & Aches lhe fundi- ão,d a qual fundição fora meílre hu enegado Algarauio de nação, que >elo nome de infiel que então tinha, e chamaua Coje Geinal,&o que te- jc antes quando era Chnftão, callo )or honra da lua geração, porq não rra de baixo fangue. Os de dentro la cidade aduertindofe do deícuydo jue tinha paíTado por elles em con- sentirem que os inimigos trabalhaf- èmdous dias inteyros nafortifica- jão do feu arráyal pacificamente, & em auer quem lhes FoíTe à mão, aué- lo aquillo por húa grande afronta

le licença para aqueila noite feguinte. os apalparem,porque decrér era que gente cançada & trabalhada não po- dia íer muyto lenhora das armas, lhes poderia ter rofto direyto naquel le primeyro ímpeto. O Rey que en* tão era íènhor deite reyno de PaíTar- uão,era mancebo, & dotado de par- tes que o fazião fer muyto bem qui- fto & amado dos feus, porque fegú-. do íè dezia delle» era muyto liberal, & nada tyranno, era bem inclinado para os pequenos do pouo, 6c gran- demente amigo dos pobres, & das viuuas,& tão largo para ellas, que fe lhe dauão cota de luas. neceísidades, lhe focorria logo a ellas,& lhes fazia mais mercê do qtfe lhe pedião.E a fo raeílas excellencias tinha outras al- gúas tão conformes cos defejos dos homés,que nãoauia nenhum q não auenturaíTe por ellemil vezes ávida íe tantas lhe foíle neceíTario; & jun- tamente com ifto tinha aly comíígo toda a flor do Teu reyno,& todos gé- te manceba, & muyto efcolhida, a fo ra muytos forafteyros a que també fazia groíTas merces,& muytos fauo- res & honras acompanhadas de boas palauras,que faó os meyos por onde fe ganhaó as vontades dos pequenos Sc dosgrandes,& fe fazem de manfas ouelhas brauos lioés, & o contrario difto abate os ânimos de maneyra cj algúas vezes fe acontece de brauos lioés fazer mãfas & tímidas ouelhas. Efte Rey pondo eíta licença que os feus lhe pedião, no parecer dos mais velhos & prudentes cjue tinha com-

tPerigrindfoes de

figo,c!efpois que fe altercou largamé- teíobre ofucceíTo que podia ter efte negocio, íe concluyo por parecer de todos que quando a fortuna de todo lhe fofte contraria nefta fayda q que- rião fazer contra feus inimigos, in^ia tomarião ifib por menos mal,& me- nos afronta fua, que verem feu Rey cercado de húa géte tão baixa & tão vinque contra toda a razão & juftiça os queria por força obrigar a deixa- rem a fee em quefeus pays os cria- rão^ aceitarem outra que ella noua-- mente tinha tomado por confelho &' incitação defarazes que não punhão a ialuação em mais que em lauar as partes traíeyras,náo comer porco, & I caiar com íete molheres,pelo que ef- taua claro & bem entendido da gen- te dilcreta que Deos era muyto feu inimigo,& os não.auia de ajudar em couía que cometeífem, pois tanta offenía íua,fo color de religião, & razoes mal concertadas querião que forçoíamente feu Rey folie Mouro, i & feu vaílállo. E aísi a efte modo de- râo outras muytas razoes q a el Rey Ôcâ todos os que eftauão prefentes quadrarão táto,que todos a húa voz diíleraãOjtáo próprio & tão deuido he ao bom & leal vaflàllo morrer porfeuRey,comoâmolher virtuo» fa manter caftidade ao marido que Deos lhe deu, pelo que nãoconuem dilatarfe húa coula tão importante, fenão moftrarmos todos em geral, «3c cada hum em particular no eífeito defta fayd.a o amor que temos ao nof fo bom Rey, & o que elle deue de 1 ter ao fangue dos que rnilhorpelé-

jarem,porqije ifto fomete queremo nós deixar por herança a noflos fi lhos. E com ifto ficou determinadc quefaiflèm aquella noite contra o: inimigos.

CAT. CLXXIUI.

Qomo da. cidade fayrao doce mh

amoucos^ & do que fiarão

contra os inimigos.

Endo paííadas as dua! horas defpois da meya noite, como o aluoro-

ço defta fayda era ge- ral cm todos os da ci- dade,não deu elle lugar a eíperarem que foílem chamados, mas antes do tempo que el Rey lhes limitara fe a- juntaraó no paíTeyuão dascafas reais que he hum grande terreiro onde Os naturais da terra cuftumão fazer fuás feirasj&íuas feftas notaueis nos dias iníignesdas inuocaçoés dos feus pa- godes. El Rey contente aííaz de ver nellcs tanto feruor & tanto animo, entre todos os fetenta mil que então auia na cidade,efco!heo fomente do- ze mil que foílem nefte feito,& os re- partio em quatro bandeyras de três mil cada húa, das quais foy por ge- neral hum tio dei Rey irmão de fua mãy,chamado Quiay Panaricão,ho- mem que por experiência tinha- jl moftrado fer muyto para efte feito, & que tarnbem leuaua a. feu cargo a primeira bandeira : da fegunda hia por capitão outro Mandarim princi- pal quefe chamaua Quiay Anfedaa:

da

Femao Mendez^Pinto.

22

daterceyrahum eítrangèyro Cham- paa de nação,natural da.il ha Borneo, por nome Necodaa Soolor: & da quarta outro que íe dezía.Pambacal bujo,todos muyto bós,eapitaens, & muyto esforçados & práticos na guer ra, E fendo todos preftes, el Rey lhes fez outra falia de nouo, em que breuemente lhes tornou a trazer â

el Rey aly tinha comfigo, a que deu nouos títulos de nomes honroíos, a- companhados de mtiytas ôc grandes merces,que heo que cuítuma dar a- nimo aos fracos, Sc acrecentalos aos oufados. Os quatro capitães fe foraó logo nas coitas das íeis eípias que le- uauaò diante> ôc fe foraó ajuntar to- dos num lugar certo por onde auião

memoria a confiança que delles ti- de cometer os inimigos, & dando de nha para aquelle feito, Sc lhes certí- fupitó no corpo da gente co Ímpeto

ficou que em cada hum delles lhe hia o feu coração,& dentro nelle lhe ficauão os de todos os quacro capi- tães,^ juntamente os de todos os ir- mãos feus& leais vaílallos que com eíles hião. Após ifto, para os animar mais,& os confirmar no feu amor.to mou hum copo douro,& a todos deu de beber por lua mão,& aos que não deu,pedio por iflò muytos perdoes, com as quais palauras, Sc moftras do amor do leu Rey, ficarão todos tão animados, que femefperarem mais, fe vntaraõ os mais delles co minha- mundy, que he húa certa confeição de azeite cheirofo com que efta gen- te em tais cafos como eft.es cuítuma de íe vntar para remate de toda a de- terminação que leuao para morreré, Sc a eíles que fe vntão deita maney- ra,chama o vulgar da gente a amou- cos. Chegada a hora em que eftaua determinado que faiíTem,íe abrirão quatro portas de doze que auia na cidade,por cada húa das quais íahio hum dos quatro capitães com a fua companhia, mandando diante para eípiarem o campo féis ourobaloens dos mais esforçados ambarrajas que

que lhe eníinaua a determinação q leuauão5pelejarão tão esforçadamen- te,que em menos de huahora que a força da briga durou, os doze mil Paílaruoés deixarão mortos no cam- po mais de trinta mil dos inimigos a fora os feridos que foraó em muyto mãyor quantidade, de que defpois morrerão muytos, Sc foraó catiuos três Reys,& oito Patês que faó como duques, Sc o Rey da G,undacó que hiamos os quarenta Portuguefes, ef- capou com três lançadas,em cuja de- fenfaó morrerão os quatorze delles, ôc os mais foraó todos muyto feri- dos^ o arrayal efteue núa tamanha confufaó que quaíi efteue de todo perdido, & o Pangueyrão de Patê, Emperador de Demaa,foy atrauefla- do com hum zarguncho,& efteue no. rio meyo afogado fem auer que lhe pudeíTe valer, donde fe pode enten- der quãta força tem hum fupito de- ites com gente deícuydada, porque pnmeyro que eftes entraffem em ly, Sc os capitães pufeíTem a gente em or. dem,eítiuerão por duas vezes poíbs de todo em desbarato, Tanto q foy menham,em que fepode bem ver a

verdade

verdade deíle negocio, os PaíTaruoés íe recolherão á cidade muyto a feu faluofem perderem dos léus mais cj fósnouecentos, & dous ou três mil feridos, o qual bemafortunado luc- ceíTo criou defpois nos cercados níía tamanha oufania & confiança, que iíTo foy cauía de lhe acõtecerem def» pois algús deíaftres.

CAT. CLXXV.

Como o "Hej de Taffaruao com de^mil conjurados fahio fora con- tra os inimigos-, da peleja que : teue com elles& dojuc* cejjo delia.

Randemente ficou fen tido & enojado el Rey de Demaa co defaftre deíle dia,afsi pela afro ta que recebera dos de dentro,& pela perda dos feus, como por ver quão mal lhe íocedera o prin cipio deífe cerco, & deu por iífoal- guas vezes algos remoques,& outras vezes repreníoés claras ao noífo Rey da C,unda,porque fendo elíe general do campo,pufera tão ma vigia nelle, &a elle fomente punha a culpa da muytadefordem queouuera em to- dos. E defpois deíe prouer no reme dio dos fétidos, & em defpejar o ca- po dos mortos, mandou chamar a felho rodos os Reys, Sanguys de Pa- tês, & capitães afsido mar como da terra,& lhes diíTe que elle tinha feito voto foknne,&jurado num moçafo

Teregrinaçoes de

de Mafamede,que he o líuro da foi ley,de não deixar aquelle cerco até naó por a cidade por terra, ainda que por iíTo perde/Te todo feu eftado, pe- lo que lhes juraua a elles também c] fe algum por razão algua lho con- traria íTe5inda que IhepareceíTe o cõ- trario diíío que lhes dezia, o auia de mandar matar; o que gerou em to- dos os circunftantes hum tamanho medo, que nenhum delles oufoude lho contradizer, mas antes em tudo lhe louuarão aquella íua determina- ção. E com iíto mandou com muyta preíf eza fortificar de nouo o arrayal, com cauas & vallos, & muytos ba- luartes de pedra emfofia, guarneci- dos por dentro de feus terraplenos,& lhes mandou por muyta artilharia de bronzo, com que o campo ficou muyto mais forte que a mefma ci- dade, pelo que os de dentro dezião muytas vezes de noite aos de fora q vigiauão,que na fortaleza do feu ar< rayal fe enxergaua quão fracos de a- nimo elles erao,pois em vez de vire cercar feus inimigos como homes ef forçados,fe cercauão a fy mefmos co momolheres fracas, q,fe tornaífem para fuás caías,& fiaíTem nas rocas,& lhes feria mais proueitofoja que não preftauão para outra couíà, & com eftas afrontas,& outras muytas a efte modo,lhe dauão cótinuaméte muy- tas matracas, de q os de fora íe auião por muyto afrontados.Durando eíle «rco quafi três mefescontinuos,dé- tro no qual tempo fe derão cinco batarias de artilharia, & três afíàltos a cicalla viíta com mais de mil efea*

das

>ii

Femao Mende^ Tinto. 22?

las,(épre os de dentro fe defenderão da faida primeyra. E dando húa me-

io muyto animo como home* muy- o esforçados, fortificandofe porden- ro nos lugares caidos contramu- os éj fazião da madeyra que cirauáo las caias,de màneyra q todo aquelle grande poder do Pangueyraó,q era, orno acras di(le,de oitocentos mil iomens,inda q agora,pela perda paf. ada eftauajà algum tanto diminui- lo,nunca os pode entrar. Pelo qual 'endo o engcnheyro principal do ca- io, que era hum renegado Malhor- |uy de nação, que efte negocio não ocedia tanto a fabor dei Rey como he elle tinha metido em cabeça, de- erminou de o leuar poroutr» via lirTerente,& criou de nouo húa gran- [e ferra feita de entulho de terra & axina,forti ficada com féis ordens de igas, & fe veyo chegando com ella anto para a cidade que em noue dias ^breleuou por cima do muro quafí ifia braça,na qual ferra aíTeítou qua- enca peças de artilharia groíTa, & utra mayor íoma de falcões & ber- os,com que começou a varejar por ima toda a cidade, que aos de den- *o fazia muyto dano. El Rey enten- endo que eíta inuenção era o meyo -sais certo que podia auer de ília per içaó, alTentou com dez mil conji*- idos que para ifto íè lhe oíferece- i6,a que por titulo honroíopósno- ie de tigres do mundo, de comete- ;m efta ferra, o que logo quiferaõ ór por obra,& el Rey, para os mais aimar,quizyrpor feu capitão, ain- a que o pefo todo deite negocio fe ouernaua pelos quatro Panaricoens

nham quafí foi faido no rofto deita força onde toda a artilharia eftauaaf- fcftada, a cometerão tanto fem me- do,que em obra de dous ou três cre- dos,a mayor parte delles fe pòs enci- ma, & cometendo logo osinimigos,cj fenão mais de trinta mil, os desbara- tarão a todos em menos cie hu quarto de hora. O Pangueyraõ de Pate,ven« do o desbarato dos íèus, acudio eilé em peííba hu pefo de gente,& co- metendo íubir aferra com vinte mil amoucos q trazia diante, os PaíTar- uoés,por quem ella então eftaua, lha defenderão taõ esforçadamente que quafí faltaõ palauras para o declarar.' E durando afsi efta fanguinolenta briga atè quafí a vefpera, o PaíTar- uão, q entaója tinha perdida a ma-; yor parte dos feus,fe retirou para dé- tro dos muros íbbre q a ferra eftaua encoítada5masprimeyrolhe mãdoii pór fogo por féis ou fece partes,oquai ateado nos barris das moniçoés,de q neila auia hua grade quántidade^m pouco efpaço foy em tanto crecimé- to q a mais de tiro de befta não auia quem o pudeíTe efperar, de màney- ra que elle foy baftante para apar- tar então eftes inimigos,& o impedi- mento q tiueraõ para não poderem chegar mais hus aos outros, que foy caufa de a cidade efcapar por eíla vez do perigo em que efteue. Mas não cuftou ifto tão barato aos PaíTaruoés, que dos dez mil da conjuração não ficaíTem no alto da ferra os íeis mil E dos do Pangueyraõ fe affírmo? morrerão mais de quarenta mil, tíê FE conto

*Perigrínáçoes

do íê*dezia,muy to ferido. Epara certificar mais difto,mandou por z gúa gente em cilada em certos paíí por onde teuenouasque os coma caos auião de paliar com ouos,& g linhas,& outras couías que leuauác cidade para os doentes. Eftes que c le mandou para eífe efFeito, vier; aquella meima noite ao arrayal quafi menham , & trouxerão noi homens prefos, entre os quais viní humPortuguez;& defpoisqueosc to foraó efpedaçadoscom tratos,pi pararão o Portuguez (cjue acertou Ter o derradeyro) para lhe fazerei também o mefmo, o cjual parecer dolfce cjue pela confiíTaó de quem < ra poderia íer liure,ao primeyro tr; to difíè gritando cjue era Portugue ocjiialaté então não fabia nada d nos, nem nòs o conhecíamos por e fe, O noíTo Rey da C,unda quand ifto ouuio fez ceifar os tratos, & n< mãdou logo chamar para ver íè ei verdade o qaquelle home dezia, <

conto dos quais entrarão três mil eí- trangeyros de diuerfas nações, de q a mayor parte foraó Aches, Turcos, & Malauares, & doze Patês, & cinco Reys,& outra grande íoma de capi- tães Ôc gente muyto nobre.

CAT. (_LXXVl.

Qomo a cafo fe tomou aquy hum

cPortugue^Qetio,<&> da conta

que nos elle deu defy*

Oda aquella trifte noi- te fepaflou com allaz de prantos, gritas, & lamentaçoens de am- bas as partes, porque

em cada hííadellasouue muyto que

íèntir, & em toda cila não ouue que

pudeíTe ter algum repoufo, porque

todos, afsi os de dentro como os de

fora a gaftaraõ quaíi toda em cura*

rem os feridos, & lançarem os mor- tos ao rio. Ao outro dia tanto que > íeis de nòs os q menos feridos eftau;

foy menham clara, vendo o Pan- mos,fomos logo ter elle âfuaeíh

gueyraó de Patê quão mal até então lhe tinha focedido efta íua emprefa, & não baftando iíTo para querer por nenhum modo deíiftir delia como por algús dos íeus foy aconfelhado, mandou outra vez de nouo apare- lhar toda a gente para dar hum af- falto â cidade, parecendolhe que os cercados não podião ter forças para lha defenderem, pois tinháojá a mayor parte dos muros rafos co chão, as muniçoens todas gaitadas, muyta gente morta, & o Rey, fegú^

cia,onde chegamos aífazdeafrc ta Sc de trabalho,& vedo o homé,nc pareceo â primeyra vifta q era po tuguez, & proftrandonos todos a< peis dei Rey,lhe pedimos q nos qu íèíTedaraqlle homé,pondoihe dial as razoes que auia para fios fazer ; queila merce,pcis era Portuguez c( mo nós,& elle nolo cócedeo leueti te,pelo q d e nouo nos proibamos te dos por terra,& lhe beijamos os pei Daly trouxemos ehVhorné nofe ao lugar onde os nofíbs cópanheyrc

jazia

Fernão éMcndc? Tinto.

jaziao feridos, & lhe preguntamos fe na v erdade era Portuguez^orq ue tal vinha o tnfte que pela falia o po- díamos bem conhecer. E elle defpois qde todo acabou de entrar em fy, chorando muyta quantidade de la- grimas nos diíTe : Ru fenhores & ir- mãos meus,fouChriítão,inda que no trajo volo não pareça, & Portuguez de pay & mãy. natural de Penama- cor^ chamaóme Nuno Rodriguez*' Taborda,& vim do reyno na armada Marichal no anno de 151^. na nao S.Ioaó, de que era capitão Ruy Diaz Pereyra,& por eu fer hum home hó- rado, & q de mim dey fempre mof- trás di{To,Afonfod'Abuquerque que Deos tenha na gloria me fez mercê da capitania de bargãtim de qua« tro q inda iómente auia na índia na- quelle tépo,& me acheycó elle na to- mada de Goa,& de Malaca, & lhe a- judey a fazer Calecut, & Ormuz, & me achey preiéte em todos os feitos hórofos q íè fizeraó aísi em feu tépo, como no de Lopo Soarez, & no de Diogo Lopez de Siqueyra,& dos ou- tros gouernadores ate Anrique de Menefes,q focedeopor morte do Vi- Correy Vafco da Gama,q no prin- :ipio da íua gouernãça proueo a^Frã- :iícode de hua armada de doze yellas,em q leuaua 300. homés para Fazer fortaleza em C,unda,pelo rece- bo q então fe tinha dos Caftelhanos ^naquelle tépocótinuauão Maluco aela noua viagem q o Magalhães def :ubrira, na qual armada eu vim por :apicão em hirm bargantim q fe de- úi S. íorge com vinte ôi féis homés

-Xx„„„ 22 6

muyto esforçados, que partimos da barra de Bintão quando Pêro Maf- carenhasodeííruyo, & fendo tanto auantecomoa ilha de Lingua, nos deu tempo r»6 forte q não o po- dédo payrar;nos foy forçado arribar- mos â íaoa, onde dos íece nauios de remo q éramos fe perderão os feys, dos quais foy o meu por meus pec cados,porq vim dar â cofta aquy ne- íta terra em que agora eftamos,haja vinte & três annos,fem de todos os q vínhamos no bargantim efcaparem mais que fós três companheyros,dos quais eu agora fou viuo,&prouue- ra a Deos noíío Senhor q antes fora morto,porqíédo eu por muytas ve- zes cometido por eíles Gétios q qui- reíTefeguirfuas opiniões, onãoquiz fazer muyto tepojmas como a carne he fraca,& a fome era grãde,& apo- breza muyto mayor,& a efperãça da liberdade era perdida, a diífancia do mcímo tépo,& meus peccados foraó caufa de códecender a feus rogos,por ondeopaydeíleRey me fauoreceo íépre, &porq eu ontéfuy chamado de lugar em q viuia para vir curar dous homés nobres dos principais de fta terra,quiz "N. Senhor q me tornafc fem eftes perros,para o eu ficar fendo

menos,pelo q NSenor feja bédito pa ra todo lépre.Tão eípãtados ficamos todos difto q efte home nos diíTe,quã to o requeria a nouidade de tão eftra nho cafo;& confolãdoo então como nòsfoubemos,& as palauras q nos parecerão neceíTarias para o tépo em q eftauamos, lhe diífemos fe fe que- ria yr noíco para a C?unda, porq F F z dahy

tyerigrinaçoes de dahy fe iria para Malaca, onde pra- uintes o fegredd do feu peito,vos

zeria a noíTo Senhor que acabaria a vida chriftammente, & em feu ferui- ço,a que elle refpondeo que fy, porq nunca outra coufa defejara mais que e{Ta. E logo o prouemos doutro ve- ftido mais Chriftão que o que trazia, &otiuemosaly fempre com nolco em quanto durou o cerco.

CJT. CLXXll

(jmo el%ey de Vemaafoj mor- to por bum eftranho cajo^ <&• do mefocedeo defpois de fua morte,

çs| Ornando agora ao pró- poíito de que hiamcs tratando; íèndo o Pan- gueyraó de Paçfc Rey de Demaa informado pelos inimigos q os feus tomarão do fraco eílado em q a cidade eftaua, & da muyta gente que lhe era morta, & q as munições erão todas gaitadas, &q el Rey eítaua muyto ferido, fe lhe acendeo muyto mais o defejo de dar a cidade o aíTalto q tinha aíTen- tado,& determinou de o dará efcalla vifta,&cõ muyto mayorforçaquca primeyra,para o q no arrayaí íè fize- rão logo grades apercebimétos, & fe laçarão pregoes por porteyros de ma ças de prata a cauallo, os quais def- pois de fe tangeré muytas tróbetas, dezião em vozes a!tas,o Pangueyraó de Patê o fenhor das terras q cercão osmarespela potécia do q tudo criou, defcubrindo em geral a todos ospu-

da dizer,q de oje a noue dias eftejais todos preftes ânimos de tigres, & forças dobradas para aíTalto q determina de dar a cidade,& prome- te liberalméte muytas merces,aisi de dinheyro como de nomes hóroíos a os primeyros cinco q aruoraré guião no muro dos inimigos, ou fizeré fei- tos agradaueis a fua vótade,& os que ifto não cúprirem cóforme ao q fe ef- pera,morreraó por juftiça,íem fe lhe ter nenhú refpeyto.O qual pregão & ameaços íizeraó em todo o arrayal tamanho a bailo, & cauiaraó tama- nho medo, q os capitães começarão logo de fe aperceber de tudo o que lhes era neceííario paraoaíTako,íerri leuantaré mão de dia de noite,cô tamanho eftrondode tangeres, apu- pos^ gritas,q eracoufã de eípanto, E fendo deites noue dias paííàdos os fete,eftádo o Pangueyraó húa me nham em coníelho cos principaes fe- nhores do exercito fobre o modoõ feauia de ter no dardefte combate, como,quando,por onde, & a que té- po auia de fer, & outras coulas ne- ceííàrias, dizem que ouue entre todoí grandes debates, por auer muyta di- ueríidade nos pareceres, pelo qual c Pangueyraó quiz tomar os votos todos por eferito. Neíte meyo têpc pedio a moço pequeno feu page q eítaua júto delle, o betere, q faó húa! certas folhas como de tãchagé, q eliei cuftumão comer cótinuamente,porc lhes faz bafo,& purga as húmida- des do eftamago, & parece q quade o pedio ao moço;elle o não ouuio,<8i

efte

Fernão

cfle moco feria de doze até treze an- nos,& apótolhe aidade porq me pa- receo neceflario para o q ey de dizer- E tornado o Pangueyraó a cõtinuar a pratica em q eílaua, Te lhe fecou a boea a colera,& tornou a pedir o beterc,q o moço tinha nua boceta douro,o q também aquella íegunda vez não ouuio,porqeílauão então co fentido no q hús & outros fallauão,&: tornando el Rey a terceyra vez a pe- dir o betere,hú dos fenhoresq eílaua junto do moço,lhe puxou pelo verti- do^ lhe acenou q deífe o betere a el Rey, d q elle logo fez, & pondofe de joelhos diãte delle lhe oífereceo a bo ceta q tinha nas mãos,de q el Rey to- mou duas ou três folhas como antes cuílumaua,& tocãdolhe leueméte & íèm paixão cos dedos na cabeça, lhe diíTe,èsfurdo,ou como não ouues? & tornou a cõtinuar a pratica em q eílaua. Efta nação dos íaos he a mais opiniática que todas quantas ha na terra,& fobrc tudo muyto atraiçoada ôi deícon fiada, & tem por cume de todas as deshonras & injurias que íè lhe podem fazer, tocarélhe na cabe- ça,porondeaquelle moço tanto qel Rey lhe tocou cos dedos da maney- ra q diíTe,auédo q era aquillo no- tauel deíprezo q ficaua deshóra- do,eíleue impando hu efpaço nin- guê fazer cafo do q el Rey lhe fizera, nematétarporiflo, por fim do qual fe determinou em fe fatisfazer da- quella injuria q el Rey lhe fizera, & leuando de hua faquinha q por brin- co trazia na cinta, a meteo a el Rey pelo meyo da teta ezquerda, de que

MendezfPinto.

2lf

logo cahioi como morto, fem dizer mais q íomente,quita mate, ay q me matou, com a qual nouidade foy ta- manha a reuolta dosfenhores qeíla- uao prefentes,q não me atreuoapo- dela declarar. E defpois de fe quieta- rem algum tanto,fe proueo logo pri-« meyro q tudo na cura dei Rey,a qual lhe não aproueitou,poríèr a ferida pe lo coração, de que não viueo mais q duas horas. O moço foy logo prefo cometido a tormento por algúas lòí- peítas que fe tiueraò, porem elle não cenfeílou nada, nem diíTe mais íè- não que fizera aquillo, porque lhe vieraâ vontade, pelocó queel Rey lhe dera na cabeça erafeu defprezo, como íè fazia a qualquer cão quela- draua de noite pela rua, íèndo elle filho do Patê Pandor fenhor de Su- robayaa, porem o moço foy efpeta- do viuoem hum caluete de arrezoa- da grofíura, que lhe meterão pelo feffo, c3c lhe fahio pelo toutiço, & o mefmo fe fez também a feu pay, Ôc a três irmãos feus,& a feflenta & dous feus parentes, de maneyra que de toda íiia geração não ficou peítoa a cj fedeííevidajaqualjuíliçatão íbbe- jamente cruel & rigurofa, foy cauía de auer muyto grandes aleuanta- mentos em toda a Iaoa, & ilhas de Bale,Timor,& Madura, que faò eíla- dos muyto grades, em qué ha Vifor- reysque diíli novamente os goaefnEo com poder de mero & mHlo impe- rio,pela ordem antiga de feus gentí- licos cuílumes. Acabada de fazer efc ta juftiça fe deu logo ordé no que fe faria do corpo dei Rey,fobre q entre F F 5 todos

Teregrinacoes de

todos oune grades debates, dizendo por húa parte q fe o deixafsé aly en- terrado,era tanto como ficar caciuo em poder dosPafíaruoés, & por ou- tra,^ fe o leuaísé a Demaa,onde tinha o feu jazigo.de neceísidade fe auia de corrõper antes q la chegaíle, & q en- terrádoo aísi podre & corrupto, não podia fua alma yr ao parai lo, cófor- me â ley de Mafamede em que no- uaméte morrera. E coníultando to- dos entre íi no milhor talho q fe po- dia dar a iíto,vieraõ em fim a fe refoi uernoqhú dos noífos Portuguefes lhe acóíelhou,o qual cófelho foy de tãto proueito ao Portuguez q o deu, q lhe morou em mais de dez mil cru- zados*^ os fenhores aly logo lhe de- ráo dclfefmolla pelo íeruiço q enrão fizera 4o defunto,& o Portuguez não diiTemaisfenloqometeíré em húa arca cheya de cânfora & de cal, & o enterrarem em junco grande que foííe cheyo de cerra. E ainda q a cou faera tão fácil, foy boa ventura do Portuguez parecedhes a elles bem. E deita maneyra foy o corpo dei Rey até Demaa fem corrupção nem cheyro mao nenhum.

CAT. (LXXVllI.

T)o que mais foce deo ate esle exer- cito fer embarcado, Ede bua gran- de dtjcordta que em Demaa ouue entre dons homes principais da ci- dade^ es- do defauenturado fuccejfo que tem*

U Antoque o corpo de Reyfoy íenadoao ju co onde o enterrarão onoiToReyda C,úd; general do capo man dou logo embarcar a artilharia &m( niçoés,& porem recado toda' a reca- maradelRey,& todo o tifouroqeíf tauanas tédas,& quãtoifto fefe2 coda a preíTa ôc íilencio q cóuinha 1ÍT0 baftou para os inimigos dei xaré de fentir ô q elles fazião. E fain- do então o próprio Rey em peitos íos três mil da cójuraçao pafíada- cj por voto íblenne fe vntarão todos co Minhamundy para. amoucos,de- raó nos inimigos,q a efte tépoanda- uáooccupadosemdefpejaré o capo, & o> tratarão de maneyra,q em eipa çjo de meya hora q durou a forca da peleja, ficarão derrubados no campo doze mil homés,& dous Reys & cin- co Patês catiuos.com mais trezentos Turcos ,&Abexins,& Aches, & o feu caciz Moulana, dignidade fuprema na feita Mafometica,& por cujo con- felho o Pangueiraó aly tinha vindo, &foraó queimadas quatrocétas em- barcações q nefte tépo eítauãoabica- das em terra em q eftauão os feridos, de maneyra q todo o capo efteue q ua íi perdido^ tornãdofe a recolher a íeu íaluo fem perder mais q fós qua* trocétos dosfeus,osdeixou embarcar no mefmo dia,q foy a noue de Mar- cos quais deípois de embarcados co toda a preíTa pofsiuel, fe partirão logo para a cidade de Demâ, leuãdo cóíigo o corpo do Pangueyrão,onde chegado foi reeebido de todo o pouo

com gran-

Fernão

grandes gritas Ôc prantos que geral- mente fe fizeraò por elle. Ji logo ao outro dia fe fez reíTenha de toda a gcnte,parafe faberaqueera morta, ík íe achou que faltauáo ceco ôc trin- .ta mil homés,& dos Paflàruoés dif íe que falcaraó fomente vinte & cin- co mil, porque nunca eftas coufas cuílão taô pouco, por mais baratas que a ventura as venda, que os cam- pos não fiquem tintos do langue dos vencedores,quáto mais dos vécidos, aquém eftas coufas cuftumaó íem- pre de fermuyto mais cuftofas. Ne- fte mefmo dia fe tratou iogo de fa- zerem Pangueyraó, que, como jâaU gúas vezes cenho dito, he dignidade imperial fobre todos os Patês & Reys daquelle grande arcipelago,a que os efcritores Chins,Tarcaros, lapões, Ôc Lequiosnomcáopor Rate na quem dau,quequer dizer,peftana do mun- do,como fe pode ver num mapa, fe for verdadeyro na graduarão das al- turas. E como então do morto naó ficou legitimo fucceífor que herdaf- íbtda coroa, determinarão que fe fi- zefTe por eleito, para ocj logo por coníentimento de todos fe elegerão dezaíTeishomés como cabeças de to- do o pouo, os quais entre fy elegef- fem o Pangueyraó. Eftes fe recolhe- rão todos núa cafa, ôc fazendo quie- tar a cidade, eftiueraóju tos fetedias, .:fem em todos elles fe determinarem -no que auia de íer eleito, porque co- mo eraò oito os opoentes, Sc eftes e- raõ os principais fenhores do reyno, ouue entre os eleitores muytas diffe- renças nos pareceres, porque como

CKícnâezTinto. n 3

os mais delles, ou qtiafi todos erao parentes, ou parentes dos parentes delles oito, cada hum delles traba- lhaua por fazer Pangueyraó aquelie que lhe a tile mais cfipria. pelo qual vendo a gente do pouo & os folda- dos da armada efta tamanha tardan- ça, parecendolhe que efte negocio não teria conclufaó,nem aueriaju- ftiça que os caftigaífe, fe começarão a defauergonhar com tamanha foU tura &atreuiméto,& roubar os mer- cadores que eftauáo no porto3afsi na- turais como eftrangeyros,que em fós quatro dias feaffirmou que tomarão cem juncos, onde matarão mais de .cinco nvilhomés,a que o Rey de pa- naruca;& príncipe de Balambuaó, q era almirátedo mar daquelle impe- rio,acudio com muy ta preíTa, & dos delinquentes que íe acharão naquel- lefraganteco furto nas maõs, man- dou húa menham enforcar oitenta ao longo da praya para terror dos q os videm. O Quiay Anfedaa Patê de Cherbom,que era Gouernador da cidade,& muyto poderofo ncila, ve- do o que o Rey da Panaruca tinha feito, parecendolhe que o fizera em feu defprezo,pois não tiuera refpeito ao cargo que elle tinha,o tomou tão .maJ,& ficou tao defconfiado,q ajun- tando logo a fy féis ou fete mil ho- fnés, deu nas caías onde poufauao Rey de Panaruca, & o quifera pren- der por iíTo,mas o Panaruca lhe refi- ftio com os que então tinha comfi- go,& ceue com elle, fegundo fe diíTe, muytos cumprimentos ôc juftifica- ^oés,que o Quiay Aníedaa não íb- F F 4 mente

Terigrinãçoès de mente lhe não quiz aceitar, mas en- fogo a confumir de máneyra,que até

trandolhepor força em cafa, lhe ma- tou trinta ou quarenta dos feus, ao qual roydo fe ajuntou tanta gente q era coufa de efpanto, porque como ambos craó grandes fenhores,& muy to aparentados, & hum era almiran- te da frota, & outro Gouernador da cidade, teceo o demónio eíta difcor- dia entre ambos de tal maneyra,que fe a noite fe não metera no mevo, q fez apartar abriga^ por fem duuida tenho qaíy ouueraó de acabar quaíi todos. Poré não fe acabou por aq uy a deíauentura daquelle negocio,por- que vendo a gente da armada (que ainda a efte tépo feriáo mais de fei£ centos mil homés) que o ReydePa- mruca íèu almirante fora afrontado pelo Quiay Anfedaa Gouernador da cidade, querendofe fatisfazer de ta- manha injuria, fe delembarcaraô to- dos em terra naquella mefma noite, fem o Panaruca fer poderofo para lho eftoruar, com quanto niíTo tra- balhou quanto pode, & dando nas cafas do Quiay Anfedaa, o matarão com mais de dez mil homés q tinha com figo, & não contentes com ifto deraóemtoda a cidade por dez ou doze partes,& começando a matar & íàquear tudo o que achauão a trata- rão de tal maneyra, que em fós três dias que durou o faco,náo ficou nel- la coufa em q fe pudelTe pôr olhos, com húa vnião de gritos & choros tão efpantofos, que ao juízo dos ho- més parecia que íê fundia a terra,por fim do qual , por naos gaitar nifto mais palauras, a couíà parou em o

os aliceces tudo foy abrafado, em cj feaffirmouque arderão mais decé mil cafas,& fe meterão â efpada tre- zentas mil peífoas,& íe catiuaraó qua íi outras tantas,que fe leuaraò de ve* niaga para diuerfas partes, & fe rou- bou infinidade de fazendas muyto ncas,dequefóem prata & ouro feaf firmou que pafTara de quarenta con- tos douro,de modo que o defpojo to do por junto fe efmou em cem con- tos douro,& os mortos & catiuosem quinhentasmil pefíbas. E efte foy o fim que tcue o mao confelho de Rey moço criado entre mancebos,& gouernado por fua vontade íêm ter quem lha contradixeífe.

CAT. CLXXIX.

25* tudo o mais quefocedeo ate nos

partirmos para o porto da ^unda,

C> dahypara a (Jhina^ & da

defauentura que nesla

viagem tiuemos.

AíTados os três dias ^ durou efta tão cruel 8c taó efpantoíà reuolta, logo tudo ficou pacifi- co & pofto em quieta- çáo,temendoentaó os principais da- quelle motim, que tanto que foífe eleito o Pangueyraó recebeífem el- les o caftigo que merecião por tão graue crime, fe fizeraò logo todos â vella,antesde fe verem nefle perigo, õç fe partirão na mefma armada em

que

Fernão Mendc^ Tinto . 229

que eflauã embarcado?, fem o Rey gente,poder, & riqueza. Eâpos ifto

da Panarucafeu almirante fer pode- rofo para lho colher, antes efteue por duas vezes em rifco de íe perder por iflb com algús poucos que tinha da lua parte; & afsi em fòs dous dias fe deípejou o porto de todas as duas mil vellas que nelle eftauão, fem ficarem nelle mais que algús jurupangos de mercadores,ficãdo a terra toda abra- fada & confumida. Pelo qual ajun- tandofe elTes poucos fenhores q ain- da auia, aíjentaraõ de fe paíTarem á cidade de lapara, cinco legoas daly para a coita do mar medicerraneo,& logo o puí eraó por obra, onde paífa- dos de/pois de fe íbíTegar o tumulto dagéceplebeya,que ainda então era íèm conto,fe concluyo no eleger do Pangueyraó,o qual vocablo propria- mente quer dizer Emperador, & lo- go foy eleito hum Patê Sidayo prín- cipe de Surubayaa, que não foy ne- nhum dos oito poentes, porque afsi pareceo neceíTario para o comu, & quietação da terra, de que opotio todo ficou muyto fatisfeito,&logoo mandarão bulcar pelo Panaruca a hum lugar daly doze legoas onde el- le entaó eftaua,que fe dezia Pifàm- manes,oqtiâlveyo daly anouedias acompanhado de mais de duzentos mil homens, embarcados em mil& quinhentos calaluzes, & jurupangos, onde foy recebido de todo o pouo, com moftras de muyta alegria,&foy logo coroado com todas as cerimo- nias cuftumadas por Pangueyrão de toda a Iaoa,& Bale,& Madura, q Jie húa muyto grande monarchia de

ie paílòu logo a Demaa com funda- mento de a tornar a edificar de no- uo, & pola no eílado em que antes eítaua, onde a pnmeyra coufa em q entendeo foy em caítigar os que fe achaífem que foraõ culpados no ía- co da cidade, 8c entre híáa tamanha multidão delles, não fe acharão ja mais que cinco mil fomente, porque os outros todos eraó fugidos para diuerías partes,&a todos eftes deía- uenturadosem quatro dias que efta execução durou.fe deraó dous géne- ros de mortes fomente,hus éfpecaraó viuos em caloeces,& outros queima- rão nas meímasembarcacoens em q foraõ tomados, de modo que naò ouue dia deftes quatro em que não morreíTe muyto grande quantidade delles, de que todos os Portuguefes que ahy nos achamos andauamos co mo pafmados. E como então toda a terra 2ndaua reuolta fem auer quie- tação em coufa nenhua, pedimos li- cença ao Rey da C,unda*para nos ir- mos para o porto de Banca onde ef-*' tau a o noífo junco,pois a moução China era ja chegada, & era tempo de fazermos noíTa viagem,áqual nos elle deu muyto leuemente,& nos fez quita dos direitos de noíTas fazendas, ôc nos deu cem cruzados a cada hú, & aos quatorze q morrerão na guer- ra, deu a cada hum trezentos para feus herdeyros, que nos tiuemos en- tão por efmolla honrofa & de prín- cipe bem inclinado, & largo de con- dição, Õc de que todos ficamos muy- to contentes. Com ifto nos fomos

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Tcrígrwdçoes de

logo ao porto de Banta,onde nos de- tiuemos doze dias acabando de nos auiar para fazermos noffa viagem, & nos partimos para a China em có- panhia de outros quatro nauios que para la hiaõ, & leuamos com noíco o íoaó Rodriguez, que era o Portu- guez Gentio de que atras fiz menção queachamcfs em Paífaruão, o qual era Bramene de hum pagode por nomeQuiay Nacorel, & elle fecha- maua Guaxitau facalem, que quer dizer, coníelho de fanto. Éíte Ioaó Rodriguez d efpois q chegou âChina fe embarcou para Malaca, ondefoy de nouo reconciliado â noíTa fanta Catholica,& fe lhe deu por peniten- cia que feruiífe no hofpital dos incu- raueis hum anno,& elle o fez, no fim do qual tempo acabou fua vida, com mofíras de bom & verdadeyro Chri ftáo, por onde parece que podere- mos crer que noílb Senhor aueria mi fericordia com fua a|ma, pois a cabo de tantos annos de infiel o guardou para vir morrer em íeu feruiço, pelo 4jual elle fejalouuadopara todo íem pre. Chegados todos os cinco nauios quepartimos da C,unda ao porto do Chincheo,ondenaquelle tempo os Por tugu efes fazião feus tratos, ef- tiuemos nelle três mefes.& meyo aífaz de trabalho Ôc rifco de noílas peflbas,por andar a terra então toda reuolta,& os pouos amutinados,&: grades armadas por toda a cofta, por cauíã dos muy tos roubos que os ía- poés coíTayros tinhao feito nella,de maneyra que não auia quietação pa- ra fe poder fazer fazenda, nem os

mercadores bufauão a faytxle ííias ca fas, pelo que conftrangidos nós da necefsidade nos paífamos ao porto de Chabaquee, onde achamos furtos na barra cento & vinte jiicos, os quais defpois que tiueraó com nofco algua briga,nos tomarão dos cinco nauios os tres,em que morrerão quatrocen- tas peífoas Chriftãs, de que os oiten- ta ôc dous foraó Portuguefes. Os ou- tros dous nauios quemilagrofamen» te lhe efcapamos,nos fizemos na vol ta do mar, ôc não podendo mais fer- rar a terra por caufa dos ventos Le- ites que todo aquelle mês nos curfa- raó,nos foy forçado irmos deman- dar a cofta da íaoa bem contra noífa vontade. Eauendò ja vinte ôc íeis dias que trabalhoíàmente vellejaua mospornoíTa derrota, ouuemos vi- ftade húa ilha que fe dezia Pullo Condor,a qual nosdiftaua em altura de oito grãos & hum terço Noroefte Suefte coma barra do reyno Cam- boja^ fendo ja quaíi tanto auante comoella nos deu hum tempo do Sul de tormenta de ventos tãò im- petuofa, que de todo eítiuemos per- didos^ vindo correndo com elle a aruorefeca^imos a ilha de Lingua, onde atormenta nos faltou aLoes fuduefte com hum vento tão rijo de eícarceo Ôc mares cruzados, que por nenhum modo nos podíamos apro- ueitar de vella nenhuaj ôc receofos nòsdas reflmgas& baixos que nof demorauão por proa; pairamos co nauio de mar em traués até que def- pois de hum grande efpaço nos abrio pela fobrequilha de popajcom noue

' palmos

Fernão Mende^ "Tinto. z 5 c

palmos dagoa na primeyra cuberta, ficópanhia por nome Ruy de Mou

pelo q vedo nos a morte tão abra- çada com nofeo,nosfoy forçado cor- tarmos ambos os maftos, & alijar- mos toda a fazenda ao mar,com q o junco ficou algum tanto mais defaío- gado. E vindo afsi ao fom do mar o que reftaua do dfa,& algúa parte da noite, perrmtio Deos noíío Senhor pela inteireza da íuadiuínajuftiça,q íem íabermos como,né vermos cou- ía nenhúa varaflèmos por cima de hm reftinga de pedras, na qual o jíí- co fe fez em quatro pedaços, mor- te de feíTe ntaôc duas peíToas, E co- mo efte defauenturado fucceíTb nos tirou de todo o ientido & as forças, nenhum de nòs ouue q te lembraííe de procurar meyo nenhú de íua fal- uação,como fizeraó os Chins «jise le- uauamos no junco por marinheyros, queforão taõ induitriofos q antes q foíTe menham tinhão feito hua jan- gada dos pedaços de paos, & das ta- boas que puderão auer às maós,& as cordas das vellas as atarão de ma- neyra que quarenta eftauão encima bem á vontade, & como efte tempo eraaquelle pelo qual fe diííe, nem o pay pelo filho, nem o filho pelo pay, cada hum procuraua por íy fó, fem lhe lembrar outra nenhiãa couía, afsi Chins marinheyros, como eícrauos roííos, tanto,' que pedindo Martim Efteuez capitão & fenhorio do jun- co aos feus próprios moços que efta- uão na jangada, que o quifeííem re- colher comfigo,lhe reíponderaó que por nenhum cafo podia íêr, o q che- gando ás orelhas de hum dos da nof-

ra,náo podendo íbfrer a ingratidão & defeortefia com que todos nos tratauão,fe ergueo em do lugar onde jazia afiaz ferido, & nos fez a todos hua breue pratica, em que nos diííè quenoslembrafíemos quão a- frontoía &auorrecida era a couar- dia, & que viíTemos quão neceíTario nos era para noíTa íaluação trabalhar por tomarmos aquella jangada, ôc outras múytas palauras a efte modo, asqnaisdetal maneyra nosauiuen- taraóosefpritos, que determinados» todos num propoíito,com humno- uo esforço que nos então deuahò-

^q ra &aneceísid

ade, remetemos vinte

& oito Portugu-efes que éramos to- dos num corpo aos quarenta Chins que ja então eftauão na jangada, nòs com noífas efpadas, ôc elles com às machadinhás que tinhão nas maõs, & nos baralhamos hus cos outros de- maneyra, que em efpaço de três ou quatro credos os quarenta Chins fo- raõ todos mortos,& dos vinte & oito Portugueíes os dezaífeis, ôc os doze efeaparão aíTaz feridos de que ao ou tro dia morrerão quatro, couía certo nunca cuydada nem imaginada, & em que fe pode ver claramente a mi- feria da vida humana, porque auen- do menos de doze horas que nos a-' bracauamos todos, Ôc nos trataua- mos com tanto amor que morrêra- mos todos hús pelos outros,nos trou- xerão noftbs peccados a tamanho ef* tremo deneceísidade,qucfobrequa- tro pedaços de pao atados com duas cordas, nos matamos todos huns aos

outros

Teregrinaço&s de

.<*■' ■*

outros tanto fem piedade, como fe fôramos inimigos mortais, ou outra coufa ainda pior; mas também pare- ce que em parte uos defeulpa fer a necefsidade tamanha que nos forçou a fazermos tamanho defatino.

QAT. CLXXX.

T)o que nosjlcedeo de/pois que nos partimos de/la reslmga*

Efpois que ficamos fe- nhores deíla triftejan- gadaà cuíla de tanto langue, afsi noílb co- mo dos Chins, nos me- temos nella trinta &oito peífoas,das quais os doze eraó Portugueíes, & os mais moços noflòs, & algus mininos filhos de Portugueíes, & os mais de nos hiamos muyto feridos de que defpois nos morrerão quaíi todos, Ôc porfermos muytos,& a jangada muy to pequena hiamos nella metidos na agoa até o pefcoço. Com tudo deita maneyra nos deíamarramos deita trifte reftinga hum Sabbado dia de Natal do anno dei 547. & com hum pedaço de colcha nos fomos ao fom do mar para onde a agoa nos queria leuar,fé termos outra agulha, nem outra guia fenão íòmente a ef- perança que leuauamos em Deos noflo Senhor,por quem cótinuamé- te chamauamos com aíTaz de fufpi- ros ôc gritos enuoltos em muytaquã tidadede lagrimas. Deita maneyra nauegamos quatro dias, íem em to- dos elles comermos coufa algúa> ôc

quando veyo ao quinto pela menhã, forçounos a neceísidade a comermos de cafre que nos morreo, co qual nos íuftcntamos mais cinco dias,q eraó noue da noíía viagem,& em ou tros quatro dias que nos durou inda mais efte trabalho,não comemos ou tra coufa fenão os limos q achamos na bagugem da agoa, porque deter- minamos de nos deixarmos antes morrer, que comermos de nenhum Portuguez de quatro que nos mor- rerão. E indo nòs defta maneyra que digo, prouue a noíTo Senhor por lua mifericordia^ue ao dia de Reys vi- mos terra,a qual vifta, Ôc o aluoroço delia nos caufou húa tão mortal ale- gria.que cíTa baftou para dos quin- ze que ainda hiamos viuos, morre- rem logo fupitamente quatro, de q os dous foraó Portugueíes, de ma- neyra que das trinta & oito peíToas q nos embarcamos na jangada, não ef- capamos mais que onze, fete Portu- guefes,& quatro moços noílos. Che- gados em fim a terra, faimos em húa praya que nella fe fazia a modo de angra, onde defpois de darmos infi- nitas graças a noíTo Senhor por nos liúrar dos perigos domar,efperando nelle que também nos liuraria dos da terra que tinhamos por dauante, nos prouemos de algum mariíco que a- chamos pelos penedos.%E vendo q a terra era deíèrta de gente, ôc muyto pouoada de elifantes ôc de tigres, nos fubimos em húas aruores íilueftres, paranellas efeaparmos por então à grande multidão deites, & de outros a5!m?!s ^e aly tinhamos viftoj ôc

quando

Fernão MendeçTinto. 251

auando nos parcceo que podíamos a noíTa miferia & defefperaçao, nos

:aminharcom menos perigo, nos tor íamos a ajuntar,& nos metemos pe- la efpeílura do mato andado de nua parte para a outra com muy tos gritos ik grantos,fem íàbermos atinar com coufa que pudeíTe fer mcyo de noí - fa faluação; porem a diuina miferi- :ordia que nuca aparta os olhos dos íiecefsitados Ôc miferaueis da terra, ordenou então que por hum eíleyro de agoadoce que de dentro do ma- :o vinha demandar o mar, viOcmos vir húa barcaça carregada de madey- ra& de lenha, em que vinhãonoue negros íaos,& Papuas, os quais em nos vendo, parecédolhe que éramos diabos (como elles defpois noscon- Feflaraó) fe lançarão todos na agoa, 5c deixarão a embarcação erma fem ficar nella pefíba nenhúa, mas def- pois que entenderão que éramos gé- te perdida, íè feguraraó, ôc ficarão quietos no fobreíalto que primeyro tiueraó. Então fe chegarão a nôs, ôc nos preguntaraó por muytas coufas particulares, a que naturalmente faó muy to inclinados,âs quais refponde- mos conforme a toda a verdade, ôc lhe pedimos pelo amor de Deos que nos quifeíTem leuar cófigo para qual- quer pouoaçaõ que quiíeíTem, Ôc la nosvendeííempor feuscatiuos age* te que nos leuafle a Malaca, porque éramos mercadores, & lhedarião muy to dinheyro por nós, ou fazen- da quanta quifefTem. E como efta nação laoa hegrandifsimamenteco- biçofa, como lhe tratamos de feu in- tereíTe, conhecendo cambem em nós

foraõ dando de íy mais algúa coufa, com outras palauras ja milhor con- certadas,mais fauoraueis, ôc de mais eíperança para nòs de nos fazerem o que lhe pediamos,porem ifto foy até que tomarão a embarcação que ci- nhão deixado, porque tanto que íe virão dentro nella, íe puferaó de lar- go^ dando moftras de fe quererem partir fem nos tomarem,nos diííeraó que para elles ferem certos de fer verdade o que lhe deziamos, era ne- ceífario que primeyro que tudo lhe entregaíTemos as armas que tínha- mos, porq doutra roaneyra nos não auião de tomar inda que nos viílem ' comer dos liocs, pelo que^conftran- gidos da eílrema necefsidade era q nosviamos,& da defefperaçao de ter mos outro nenhum remedio',nosfoy forçado fazerlhe a vontade em tudo quanto quiferaó; ôc chegandofe a barcaça mais hum pouco a nós, nos diíferaó que hum Ôc hum nosbotaf- femos a nado,pois não tinháo man- chua que nos foíTe tomar,oq tambe determinamos de fazer,&; dous mo- ços Ôc hum Portuguez fe lançarão logo a nado para pegarem de hua corda que nos tinhão lançado por popa da barcaça,mas antes que che- gaílem a ella foraó comidos de três lagartos muyt(ygrãdes, fem de todos três aparecer mais que fomente o fangue,de que todo o rio ficou tinto, do qual fucceífo os oito que eftaua- mos à borda do rio ficamos tão paf« mados de medo,que por hum gran- de efpaço nenhum de nòs tornou em

feu

Terigrinapes de

feu acordo, de que os perros não ou- iierão nenhum de nos, mas antes batendo as palmas, dezião gritando com grandes rifadas, bemauentura- dos aquelíes três cjue fem dor acaba- rão feus dias. E vendo que os mais q ficauamosmeyos atolados na vafa não tínhamos força para nos poder- mos tirar delia, faltarão cinco delles em terra, & nos atarão pelos buchos dos braços, & a rafto nos leuarão até junto da barcaça, que ja a eíle tem- po eítaua bem chegada a terra, & nos meterão dentro com aíTaz de vitu- perios,afrontas, &mao tratamento. E fazendofe à vella nos leuaraó a húa aldeã q eítaua daly doze legoas, por nomeCherborn>onde nos venderão a todos oitOjfeis Portugueíes,& hum moço Chim,& outro cafre por tre- ze pardáos, que da noíTa moeda faó três mil & nouecentes reis a r)u mer- cador Gentio da ilha dos Selebres, em cujo poder eíliuemos vinte & féis dias,& nos traçou muytobem aísi de comer como de veftido, & defpois nosvendeo ael Rey de Caíapa por dezoito mil reis, o qual Rey vfou nofeode tanta magnificência que li- uremente nos mandou para o porto daQunda ondeeílauão três nãos, de Portuguefes,de que era capitão mor hum leronymo Gomez Sarmento, que a todos nos fez muyto gafalha- do,& nos proueo largamente de tudo o neceiTario,ate que fe partio para a China.

C av. clxxxi.

%

Como dejle porto deQundafuy

ter a Sião donde em copanhia dou*

trosTortuguefesfuycoel^y

a guerra do IJoiamay, &.

dofuccèfío delia.

Vendo quaíi hum mes que eftauamos nefíe porto da C,unda bem prouidos dos* Portu- guefes, como então era

ja chegada a' monção da China, as três nãos fe partirão para o Chin- cheo,fem ahy na terra ficarem mais Portuguefesquefósdous, que num junco de Patanefe foraó com fuás fa- zendas para Sião, em cópanhia dos quais me foy forçado irme eu tam- bem,porque me quiferaõ elles fazer o gaito da jornada,& me prometerão de me fazerem la algu empreftimo, com que denouo tornaíTe a tentara fortuna, a ver fe por importunação me podia melhorar com elja. Parti- dos nos daquy, dentro em vinte & fus dias chegamos á cidade de Odiâ quehe a metropoly deite império Sornau,a que o vulgar daquellas par- tes chama Sião, onde fomos bem re- cebidos ôc agafalhados dos Portu- guefes que ahy na terra achamos. E auendo pouco mais de hum mês que eítaua nefta cidade efperando pela monção da China para me yr para Japaó em companhia ck outros féis ou fete Portuguefes que para la hiao,

com

Fernão Alendc^Pinto.

222,

com cem cruzados de emprego, que osdous com que viera de C,unda me tinhao empreftadojchegou noua cer ta a el Rey de Siaó, que então eftaua pefta cidade deOdiaa com toda fua corte,que o Rey do Chiammay con- federado cos Timocouhós,cos Laos, & cos Gueos, (que faó quatro nações de gentes que contra o Nordefte fe- nhoreaó a mayor parte defte fertão, por cima do Capimper, & Pafsiloco, & faó todos fenhores abfolutos fem darem obediência a ninguem,muyto ricos & poderofo5,& de grandes efta- dos) tinhão pofto cerco â cidade de Quitiruão,& morto o Oyaa Capim- per fronteyro mor daquella arraya c5 mais de trinca mil homés. A qual noua fez em ei Rey tamanho abal- lo,qus fem efperar por coufa algúa, le paíTou logo aquelle mefmo dia â outra banda do rio,& fem fe querer apoíentar em cafa nenhua fe pòs no campo em tendas para que todos os putros fizeíTem o mefmo,& mandou lã^ar pregoes por toda a cidade, que todo*> homem que por aleijão ou velhice não fofíè efcufo de yr com elle a efta guerra,fe fizelTe preftes em termo de doze dias que para iíTo lhe daua deefpaço fomente, fo pena de morrer queimado com infâmia per- petua a todos feus decendentes,& íiícação de feus bees para a coroa, & a fora eftas penas pòs outras muytas muy to graues, tão efpantofas & me- donhas de ouuir,que a gente tremia de medo,& aos eftrangeyros de toda a nação que foíTem, que eftiueíTem em fua cerra njío efcufaua também

V

defta pena, ou fe foíTem fora do feu reyno em termo de três dias, de ma- neyra que todos andauão como paf- mados fem fe íaberem dar a coníè- lho, determinarfe no quedeuião de fazer,& aos Portugueíes a q fem- prenefta terra feteue mais refpeito, mandou rogar pelo Combracalão Gouernador do reyno, que volunta» riamente,por quem elles eraó,o qui- feflem acompanhar nefta jornada, porque defejaua muyto de lhe en- tregar a guarda de íua peíloa, por ter conhecido delies que eraò mais pa- ra iílò que todos os outros; aísi que a efflcacia defte recado,que vinha acó- panhado de muytas & largas pro* meíías,& de efperanças de grandes pagas, merces,& honras, & fobre tu- do,de dar licença para fe fazerê igrei jas no íèu reyno, nos obrigou de tal maneyra,que de cento & trinta Por- tuguefesque então ahy eftauamos, os cento & vinte aceitamos yr com elle. PaíTados os doze dias do termo, el Rey fe partio com hum exercito de quatrocentos mil homés, em que entrauão fetenta mil eftrangeyros de diuerfas nações, embarcados em três mil feroos,&laulees,& jangâs, &z aos nouedias da fua viagem chegou a húa villa que eftaua na arraya por no me Suropifem, dozelegoas da cie de de Quitiruão que os inimigos ti nhao cercada, onde fe deteue mais fetedias, eíperando por quatro mil elifantes que lhe vinhão por terra; dentro no qual tempo teue nouas q a cidade eftaua em grande aperto, af- íipela banda do rio que os inimigos

tinhão;

^Peregrinações de

tinhão tomado com duas mil embar* uallos^a dianteyra dei Rey de Sião caçoens, como pela da terra na qual auia húa grande íbma de gente de q o numero fe não fabia em certo, mas pelo q fe via delleíe efmaua em tre- zentos mil homens, de que íe affír- mauaque os quarenta mil eraõ de cauallo, mas que não tinhão elifan- tes, com a qual noua cl Rey fe deu muy ta preíla,& fazendo reílenha ge- ral de toda a fua gente fe achou com quinhentos mil homens, porq muy- tos felhe vieraó ajuntando pelo ca- minho defpois que paruo,& qua- tro mil elifantes, & duzentas carretas de artilharia de campo. E com efte exercito fe abalou deite lugar de Su- ropifem,& fez feu caminho paraQui tiruao, tomando as jornadas de íós quatro legoas por dia, & ao terceyro chegou a hum valle que fe dezia Si- putay,legoa & meya dóde os inimi- gos eftauão. Epofta em ordenança toda efta copia de gente & elifantes pelos meftres do campo q eraó dous Turcos & humPortuguez por nome Domingos de Seixas, feguio feu ca- minho para Quitiruão^onde chegou antesqueoíolfaiífe,& como nefte tempo os inimigos eftauão ja preftes, & fabiao por fuás efpias o poder & determinação que trazia efte Rey de Sião,o efperaraó no campo confiados nos quarenta mil de cauallo queti- nhaô:& tanto que ouueraô vifta dei- le,moueraò fechados em doze bata- lhasse quinze mil homêscada húa, todos muyto luzidos & bem corteer-

em que vinhaõ fefTenta mil de pé, em menos de hum quarto de hora a desbaratou com morte de três prin- cipesque nellahião, El Rey de Sião vendo o desbarato dos feus, lhe foy * forçado, como prudente, nãofeguir a ordem que primeyro trazia,mas fa- zendofe num corpo cos fetenta mil eftrangeyros & quatro mil elifantes, deu com tãto Ímpeto no campo dos inimigos, que logo nefte primeyro encontro o rompeo & desbaratou de todo com morte de infinita gente, porque como a fua força principal eftauanos cauallos, tanto que os eli- fantes deraó nelles, juntamente com a muy ta arcabuzaria da géte eftran- gey ra,& a artilharia das duzentas car retas,os confumiraõ a todos em me- nos de meya hora, & como eftes fo- rao desbaratados, todos os mais fe começarão logo a retirar. El Rey de Sião feguindo a vitoria, os foy leuã- do ate junto do rio, onde o inimigo, | de todos os que efeaparaó formou humefquadraó denouo em q auia mais de cem mil homens entre faós & feridos, os quais à fombra da fua armada eíriueráoaquelle dia fecha- dos todos num corpo, o que el Rey arreceou de cometer, pelo fauorque tinhão das fuás duas mil embarca- çoens,em que também auia grande quantidade de gente,porem tanto q a noite fe cerrou os inimigos marcha raõ feu paíTo cheyo ao longo do rio leuando a armada por coitas para ca

tados, ôc dando logo a fua dianteyra . minharem afsi mais a feu faluo de q em que vinhaõ os quarenta mil ca- ao Rey de Sião naó pefou nada,por-

que

"ernao

qu» tinha a mayor parte da Tua gen- te muyto ferida, a que de necefsida- àcfe auia de (ocorrer com a cura, como logo focorreo, em que íè ga- itou a mayor parte do dia & da noi-

te feguinte.

Cav. clxxxu.

T)o mais que esle Tigy de Siaofe^

atèfc tornar para ojeu reyno onde

a %aynbafua molher o matou

com peçonha,

Ste Rey de Sião def- pois que ouue eila glo- rioía vitoria, entendeo logo com mtiyta pre- íleza na fortificação da cidade,& em tudo o mais que era ne- ceííario para a feguranca della.E mã- dando fazer alardo da gente que ti- nha para faber a que perdera na ba- talha,achou que lhe faltauao fós cin- quenta mil homês,de q a mayor par te era a canalha.que conftrangida do rigor dos pregoes, hia forçada,& fem armas defeníiua*, & dos inimigos, íè fòube ao outro dia que morrerão ce- io & trinta mil. E tanto que os íèus Feridos conualeceraó, pondo aos lu- fares daquella frontaria a guarda cj lhe pareceo neceííaria, foy aconfelha do pelos íeus q foííe fazer guerra ao reyno de Guibem que diftauadaly quinze legoas adiante para a parte do Norte, porque a Raynha delle dera entrada ao Rey do Chiammay por fuás terras, & fora em confenti- mento dos males pafíados,& da mor«

^Kienàe^Pinto. 2fy

tedoOyaaCapimper, & dos trinta mil que morrerão com elle. E pare- cendo a el Rey bem eíle confelho,fe parcio deita cidade com hum campo de quatrocentos mil homens, & foy demandar hum lugar defta Raynha quefe chamaua Fumbacor, que fa- cilmente foy tomado & poftopor terra, & os moradores delle metidos todos a efpada, fem a nenhum fe dar ávida; & daquy feguio adiante por luas jornadas até húa cidade chama- da Guitor metropoly defte reyno Guibem, onde a Raynha então efla* ua,que era viuuaj& gouernaua o rey no por hum feu hího moço de noue annos, & lhe pôs cerco â cidade. A Raynha,porle não atreuer a reíiftir ao poder dei Rey de Sião, fe fez por concerto íua tributaria em cinco mil turmas de prata cada anno,que fa- zem da noífa moeda feífenta mil cruzados, & lhe fez logo pagamento de cinco annos dantemáo, & a fora ifto lhe entregou o Reizinho feu fi- lho por feu vaífallo, o qual el Rey leuou comíigo para Siáoj & com ifto leuantou o cerco, & paífou adiante contra o Nordefte, para a cidade de Tayíiraó, onde teué por nouas que o Rey do Chiãmay eftaua ja desfeito <Ja liga paíTada. E auédo féis dias q caminhaua pela terra dos inimigos, faqueãdo quãtos lugares achaua, lèm querer que fe defíe vida a macho ne- nhum5chegou ao lago de Singuapa- mor,a que o comum da géte chama do Chiammay,no qual íe deteue via te & féis dias, nos quais tomou doze lugares muyto nobres & ricos & bem

G G cercados

Terígrinaçoh de

cercados de muros & cauas com feus dias, no qual efpaço de tempo pro-

baluartes ao noflb modo, mas tudo de tijolo & de taipa fem auercoufa nenhúa de pedra &cal, por fe não cuílumar naquellas partes, nem arti- lharia,mais q fomête berços & moí- quetés de bronzo. E porq nefte té- po era entrada de inuerno, & auia ai- gíjs chuueyros, & a gente começaua a adoecer, el Rey fe veyo retirando para a cidade de Quitiruão, onde fe deteue mais vinte & três dias, nos quais a acabou de fortificar de mu- ros & cauas muito largas & fundas.E defpois de cudo fer prouido, & ella pofta no eftado q conuinha para íua defenfaõ,fepartio para Sião embar- cado nas três mil embarcações em q vierav E em noue dias chegou á cida- de de Odiaa principal de todo o feu reyno, & onde o mais do tempo re- fídiacom toda acorte,na quallè lhe fez hum muito cuílofo recebimento de diuerfas inuençoés em que o pouo gaitou muito de iuafazenda,q dura- rão por tempo de quatorze dias con- forme aos eftatutosdas íuas gétilicas feitas. E porq a Raynha fuamolher nefles cinco mefes que elle efliuera aufente lhe tinha cometido adulté- rio cô htí feu comprador que íe cha- maua Vquumcheniraadoqual a ef- te tépoq el Rey aquy chegou eraja prenhe de quatro mefes,arreceoiâ do q era razão q fe arreceafle, determi- nou,por íe íaluar do perigo em q ef- taua de matar el Rey íeu marido peçonha^ íem fazer mais detença lha deu logo em bua porcelana de leite,de q não viueo mais q fós cinco

ueo por feu teftamen to algúas coufas do reyno, & fatisfez as obrigaçoens doseftrangeiros, q o tinhãoferuido nefta guerra do Cbiammay,dóde ti- nha vindo auia menos de vinte dias. E tratando nefle feu teftamento dos Portuguefes que fomos elle aefta guerra primeiro q de todos os outros, pós nelle hua verba que dezia aísi: E aos céto & vinte Portuguefes que com lealdade vigiarão fempre na guarda de minha peífoa,daraó meyo anno do tributo da Raynha de Gui- bem,& liberdade em minhas alfan- degas por tempo de três annos,ferri lhe leuarem coufa algua por fuás fa* zendas, õc íeus facerdotes. poderão publicar nas cidades & villasdeto- doo meu reyno aley que profeífaó do Deos feito homem por laluação dos nacidos, como algúas vezes me tem affirmado. Eafsi diííe mais ou- tras muitas coufas á eíle modo.muy* to dignas de ferem aquy declaradas, que por agora não declaro porq ao dianteeíperodeo fazer mais larga- mente. E também pedio a todos os grandes que então fe acharão aly pre íentes, que para fua confolaçaõlhe aleuantaíTem logo feu filho mais vfl lho por Rey, o que logo fez com muyta breuidade. E defpois de fer jurado por todos os Oyaas,& Con- chalys, & Monteos,q faõ dignidades fupremas fobre todas as outras do rey no,o moftraraò de hua genella à mui tidão do pouo que eftaua embaixo noterreyro,peranteo qual lhepufe- raõ hua rica Coroa douro,a modo de

mitra

Fernão Mendez Tinto*

mitra na cabeça, & hua efpada nua na mão direita, & húas balanças na çzqucrda, por fer efte o feu cuftume antigo naquelle auto. E pofto o Oyâ Pafsiloco,que era o mais íupremo do reino, em joelhos diante delle, lhe diíTe quafi chorando em voz alta pa- ra que todosoouuiíTem. A ti mini- noíanto de tenra idade, cuja ditofa & altaeftrella foy feres agora eleito no ceo para gouernares efte império Sornau que Deos te manda entregar por mim teu vaíTallo,o entrego ago- ra com juramento de íempre o teres debaixo da obediência da fua diuina vontade, com guardares igualmen- te juftiça a todos os pouos, fem auer aceitação de peíToas entre alto nem baixo por oncle fe diga que não cum- pres com o quejurafte nefte fanto an to,porque torcendo tu por reípeitos humanos o que a razãojuftificadiã- :e do jufto Senhor, feras por iflb gra- tiemente punido na concaua funda da cafa do fumo, lago ardente de fe- Joreípantoíb, onde os maos&da- lados choraò continuamente, com :rifteza de noite efeura em fuás en- tranhas; & porque te obrigues a ifto i que efte cargo que íòbre ti tomafte :e eítâobrigãdo,dize xamxaimpom, :jue he como entre nos dizer, Amen. \ que o minino chorado diíTe,xam- caimpom, o que caufou em todo o )ouo hum horribilifsimo pranto,que lurou por hum grande efpaço. E fa- zendo quietar o tumulto da gente, Droíeguio o mefmo por fua pratica Jizendo,& efta efpada que fe te me- ie nua na mão, como cecroque te

x . ^ 234,

poder na terra para fogigares os re- beldes,tambem quer dizer que eftás por ella obrigado a fuftentares com tuâ verdade os pequenos & fracos, porque os inchados do poder mun- dano os não emborquem coaííbpro de fua foberba,que ante o Senhor he rao auorrecido como a boca do que blasfema do innocente minino que nunca peccou- E porque em tudofa- tis faças ao efmalte fermofo das eftrel las do Ceo,que he o Deos perfeito,& jufto,& bom, com potencia admira- uelfobre todo o criado, dize xam-| xaimpom, a que clle refpondeo di- zendo por duas vezes chorando, ma- xinau,maxinau,afsi o. prometo, afsi o prometo. E. d cor rendo o mefmo Oyaa Pafsijoco por outras coufas a efte modo, cm queo.mraino por fe- te vezes refpondeo xamxaimpom, acabou efta cerimonia da fua coroa* ção,ma&á derradeyra parte delia foy vir ainda hum talagrepo de dignida- de fuprema iobre todo o feu íacerr docio^por nome Quiay Pomuedee, o qual dezião que era de idade de mais de cem annos, & proftrado aos peis do minino lhe deu juramento nua charana douro cheya de arroz, & com ifto o recolherão para den- tro,pelabreuidade do tempo não fo-1 frer mais dilação, afsi porque ja o Reyíèu paycomeçauaa entrar no artigo da morte, como peio pranto do pouo fer taó geral em todos, que em todo o lugar & peftòa fe não via entaó outra coufa fenaó lagrimas & fuípiros,

GG 2

CAP,

Teregri

7) a trisle morte defte ^ej de Siaoy &* de ãíguas coupas illuslres qw eíiefe^ emfua vida.

AíTadodefta maneyra aquelle dia, & a noite feguinte, ao outro dia as oito horas da me- nham o trifte Rey aca- bou de eipirar de todo em prefença da mavor parte dos fenhores do rey» no, pela qualcaufa em todo o pouo íe fez hum tamanho fentimento de choros & gritas, que parecia couía alheya de todo o vío & razão natu- ral; & como elle era bom Rey, cari- dofo em dar efmollas, grandiofo & liberal em fazer merces,largo em ga- lardoar os feruiços» piadofo & bran- do para todos, & fobretudomuyto inteiro em fazer juftiça ôc caftigar os delinquentes,manifeftauão os feus tá- to difto nas lamentaçoens 5c prantos quefazião, que fe tudo o que elles dezião era verdade, podefe cuydar cjue foy o milhor Rey Gentio q nun- ca ouue naquella terra,& no í eu tem- po em nenhúa outra parte do mun- do; do qual não ouíarey de afôrmaT o q os feus neftes feus prantos dezião, porq o não vi & por ilfo não direy o q era,mas por alguas coufas que em meu tempo palfaraó,não duuid arey ferafsi, das quais contarey aquy três ou quatro fomente das muitas q lhe vi fazer do anno de 154 o. ate o de 1545. q continuey por mercancia vir

mações de

a efte reino. A primeira foy q no an- no de 1540. fendo Pêro de Faria ca- pitão de Malaca lhe elereueo el Rey dom Ioaõoterceyro da gloriofa me- moria húa carta, em q lhe mandaua &encomédaua muito q trabalhafíe todo o pofsiuel por refgatar Do- mingos de Seixas qeftaua catiuoem Sião auia vinte & três annos, por íct afsi muito neceífario ao feruiço de Deos Ôc ao feu, por fer informado q d elle maisqdeoutrem ninguépode ria faber a verdadeyra certeza das coufas daquelle reyno de q tãtas grã dezas lhe contauão,& q efFeituando- <fe o íeu reígatc o mandaíTe logo à Iit- dia ao Viforrey dom Garcia,a quem tinha eferito íobre elle, para q nas nãos daquelle anno lho mandaflfea efte reyno. Pêro de Faria vendo ae£ ficacia,& o encareciméto com queeí Rey lhe encomendada, mandou a Sião por embaixador hum Francifco de Crafto homem nobre & rico para tratar o refgate defte Domingos de Seixas, & de outros dezaiTeis Portu- guefes q também eftauão catiuos. Efte Francifco de Craílo foy ter á ci- dade de Odiaa no tempo que eu efta uanelIa,onde foy muyto bem rece- bido do Rey de Sião, & lhe deu a carca que leuaua para elle, o qual deípoisdealér, & de lhe preguntai por algúas coufas nouas & de curioíi- dade, lhe deu logo ali a repofta(c qual elle não cuíiumatia a fazer a outro nenhum embaixador) que foy efta , quanto ao Domingos de Sei- xas que o capitão de Malaca me mandajsedjr, apontãdome o muytc I ' goftc

Fernão éMende? Tinto.

goílo que el Rcy de Portugal terá fe lho mandar,o mefmo me fica a mim de lho conceder,&daquy lho ey por dado com rodos os mais q elle lâpn- de eíti traz comíigo, de que o Fran- ciico de Craílo lhe deu as gracaspro- ftrandoie três vezes com a cabeça no cháojcomo fe lhe cuítuma a fazer por fer Rey mais fupremo que todos os outrosj &tantoquc chegou o tempo de Ce poder partir o Frãciíco de Cra- ílo para Malaca, mandou vir o Do- mingos de Seixas da cidade de Gun- taleu onde entáo eítaua por frontey- ro mór daquella arraya com trinta mil homés de pé, & cinco mil de ca- uallo, & dezoito mil cruzados cada anno de partido, & em fuacópanhia fez também vir os dezaíTeis Portu- guefes q elle andauáo, & os entre- gou a todos ao Frãcifco de Craílo, o qual de nouo lhe tornou a dar asgra ças pela mercê q lhe fazia. E defpi- dindofe delle o Domingos de Seixas & os companheyros,lhes mádou dar mil turmas de prata, q faó doze mil cruzados da noífa moeda, & lhepe- dio ainda muitos perdoes por lhe dar tão pouco. Outra vez, no annode 1545. fendo Simão de Melo capitão da meíma fortaleza de Malaca, vin- do hum LuisdeMótarroyo da Chi- na para Patane,acertou por cafo for- tuito de vento traueíTaõ de dar com húa nao fua â cofia no porto de Cha- tir, abaixo de Lugor cinco legoas,on» de pelo Xabandar da terra lhe foy to mada toda a fazenda que o mar lan- çou fora,& elle foy prefo todos os mais que fe faluaraó,que foraò vinte

2}?

& quatro Portuguefes, & cinquenta ' moços & criãeas pequenas,^ ao todo erao fetenta & quatro peífoas Chri- flãs, Ôc a fazenda q fe faluou da nao montou quinze mil cruzados.E a ra- zão que para ifto deu o Xabãdar foy que tudo era feu pelo cuftume antigo do reyno,o que íabido por algus Por tugueíes que naquelle tempo eftauao na cidade,aos quais o Luis de Mon- tarroyo por húa carta dera conta de- ita íua defauentura, defpois de lhe mandarem a prifaó onde eftaua al- gum veílido de que tinha muyta ne- cefsidade, ordenarão entre fy de fa- zerem todos húa odiaa (que he pre- fente) de peças ricas que valeffe mil cruzados, ôi com ella fallarem a el Reynodiadoelifantebrãcoque vi«- nha daly a dez dias, no qual, por fer feita folenne,cuftumauaafazer muy- tas efmollas a todos os que lhas pe- dião,& muy tas mercês aosfeus.Che- gado efte folenne dia,a que elles cha- mão Oniday pileu, que quer dizer alegria dos bós, os Portuguefes to- dos, que ferião feíTenta o fetenta, íè puferaó num certo paífo de húa rua das noue por onde el Rey auia de paílàr com grande apparaco ôc ma- geílade, ôc tanto q elle emparelhou com elles,íe proftrarão todos por ter- ra, ao modo Siame, & relatandolhre hum delles que foy eleito para iífo todo o cafo do Luis de Montarro- x yo Ôc dos companheyros como paf-' íara, lhe pedio de efmolla a foltura daquelles perdidos , fem lhe tratar da fazenda que o Xabandar tinha to- mada , por fe não atreuer a tanto, C G 3 neta

lhe parecer razão. El Rey enten- dendo oqosnoíToslhe pedião,& do as lagrimas q algús dos noíTos der ramauão,mãdou ter o elifante bran- co em q então hia,& pondo os olhos em todos,& nas peças q algus delles cinháonas maôs, entendendo q lhas orferecíão, lhes diíTe,iíTo que me dais eu vollo ey por recebido, & vollo a- gradeço, porem efle dia não he de eu tomar nada, fenão de fazer mer- cês, pelo que vos rogo muyto pelo amor do voflb Deosde quem eufou muyto íeruidor, & ferey fempre,que repartais eíFas peças pelos que entre yòs forem mais pobres, porque mi- lhor vos fera ganhardes com ellas o premio deífa eímolla que por feu a- mor derdes, que o que vos eu poflb dar por ellas, que ante os feus olhos fou hum bichinho muyto pequeno. E quanto a cfks catiuos q me pedis,a mim me praz de vos fazer eímolla deíles,paraq liuremétefe poíTaóryr para Malaca,& mando q íe lhe torne toda a fazenda q elle-s diíferem que lhe tomaraõ,porq as coufas q fe fazé por Deos quando lagrimas fe pe* dem por elie,hão de fer feitas muy to mais largueza daquella com q as pede os necefsitados, A q os Portu- guefes fe lhe proftraraó todos por terra. E âo outro dia lhe mandou lo- go paffarhu formão para em termo de dez dias o Xabandar trazer á ci- dade os catiuos com tudo o que lhes tinha tomado, o que logo fe pòs por obra muy to inteyramente. E efta fa- zenda que fe faluou da nao montou paííàntede quinze mil cruzados, co-

*Perígrlnapes de

mo atras ja diíTe,dos quais el Rey lhe fez mercê: & toda a mais que vinha ha nao fe perdeo com eila na tormé- ta. Daly a dous ou três mefes, nefte meímo anno de t545.fendolhe muy to neceífario a<efte Rey de Sião acu- dir a hua entrada que o Rey dos Tu parahos lhe vinha fazendo péla par- te do Pafsiloco , deítruindo & íà- queando alguns lugares mais fracos daquella arraya, com propoíito de vir cercar as fortalezas de Xiuau Ôc Lantor, das quais pendia toda a íè- gurança daquelle eftado, determi- nou de yr elíe em peflba a efte ne- gocio, Ôc para ifto mandou pelo rey- no vinte coronéis a fazer hua certa quantidade de gente, aos quais man- dou que.em termo de vinte dias viefc fem com ella a aquella cidade de Odiaa, donde determinaua de partir, & lhes pòs a todos grauifsimas penas que não efcufaíTem nenhum homem que pudeíTe pelejar, tirando os doen- tes, ou os pobres, ou os de feífenta, annos para cima, & a cada hum de- fies coronéis foy íinalada a comarca em que auia de yr fazer a fua gente. A hum deites por nome Quiay Rau- diuaa homem nobre & esforçado, ôc de que el Rey fe feruia muy tas vezes coube yrà comarca de Banchaa, na qual os mais dos homens faó muyto ricos, afsi de dinheyro como de fa- zenda, & pela mayor parte dado ás delicias ôc regalos do corpo,& gaftão fempre o mais do tempo em ban- quetes^ jogos,& outras muytascoa fas agradaueis à vida, E querédoos o Quiay Raudiuaa conftranger a irem

a efta

Ferrão Mende^ Tinto. itf

a eíta guerra como lhe era mandado, diuaa,defpois que em publico o afrõ-

ellcs o tomarão muyto mal,& o ou ucião por hum jugo aíTaz pefado ôc contrario do trato & largueza com que viuião, pelo qual ajuntandofe os mais ricos que auia na terra, aumenta- rão de feliurarem deita ida por me- yo de húa groffa peita de muyto di- nheyro,© qual entre fy logo ajunta- rão^ leuaraó ao coronel. E como em todas as partes o dinheyro he tão poderofo que tudo arromba, ôc nadafe lhe defende, o coronel Rau- diuaa íê inclinou de mane.yra ao muyto que eftes homens lhe derão, que todos ficarão em fuás caías, pelo qual lhe foy forçado meter em feu lugar todos os doentes,aleijados,po- bres, & velhos, quamos achou pela terra, fem ter refpeito ao que porei Rey lhe fora mandado. E chegando eíta gente deita maneyra a Odiaa, deu lua vifta ella a el Rey como faziao todos os outros coronéis com a fua, El Rev quando vio de húaja- nella onde eftaua hús homes taò ve- lhos^ taõ pobremente vertidos, & muyros delles doentes, fem entre to

tou com palauras,o mandou atar de peis ôc de mãos, ôc mandando derre- ter cinco turmas de prata lhas man- dou lançar pela boca diante de fy,de que logo morreo, ôc deípois que o vio morto lhe diíle, fe cinco turmas baftaraõ para te matar, como te pa- recia que te nao matariaó cinco mil que tomafte de peita porefcuíàresos couardes de Banchaa? Deos te per- doe tua cubica, Ôc amymopouco caftigo que te dey por ella^ Ôc logo daly fem eíperar mais hum momen- to mandou a caía do morto, ôc lhe trouxeraõ as cinco mil turmas que tinha tomado de peita,& as mandou perante fy repartir por todos aquel- les velhos ôc doentes & pobres que o Raudiuaa trouxera que feriaõ mais de três mil, Ôc o dinheyro das cinco mil turmas montaua felTenta mil cru zados da noíTa moeda,& 05 mandou para f-uas eafas,encomendando?!hes q lhe rogáiTem a Deos pela vida-& aos efeufos que peitarão as cinco mii tur- mas,mandou veftircomo molheres, &os degradou para húa ilha queíe

dos ver hum (o em que pudeíTe por chamauaPullocar.ão,& lhes mandou os olhos, mandou vir perante íy tomar as fazendas como a fracos,pa

quatro que vio yr núafileyra, todos muyto velhos,& ao parecer doentes. E preguntandolhes pela idade que tinháo,& de que eraódoentes,& por que cauía vinhão taó pobremente vertidos, elles todos quatro por húa boca lhe contarão todo o negocio :omo pafTara em Banchaa, de que el Rey ficou aíTaz colérico, ôc mandan- do logo vir perante fy o Quiay Raia-

ra as repartir pelos que milhor pele- jaíTem naquella.guerra; &porqvio que hum Portuguez de cento ôc fefc fentaque então leuou comfígo, fica- ra hum pouco mais atras num come ti mento que os noíTbs fizeraó, em q ganharão a principal força que os inimigos tinhao tomada na cidade de Lantor, lhe mandou que le tor- nafle para Siaõ, pois não era como GG 4 os

Peregrinações de

os outros que com dle ficauaoA que diífe forao vinte mii;& tratando cos

em quanto ahy eftiuefíe não faiíTe fora de cafa, nem fe chamaíTemais Portuguez, pena de lhe mandar por iflb rapar a barba como aos ca- tfáfeS tos efcuíbs de Banchaa, pois na couardia era tal como elles, & a to- dos os mais que,como diíTe, eraò cé- & feííenta, pelo honroíb feito que lhes vio fazer mandou dobrar o Tol- do três vezes,& quitar os direytos de luas fazendas, & lhes deu licença q pudeíTem em qualquer lugar do feu reyno fazer igrejas cm que o nome do Deos Portuguez foíTe adorado, porque claro eftaua que era muyto milhor que todos os outros.E deitas coufas & de outras muytas deita ma- neyra que pudera contar,fe clara- mente quão grandiofo & bem incli- nado por natureza era eíte príncipe, inda que era Gentio.

tA?\ cLXXxmi

forno o corpo del%eyfoj queima- do& a cin^a leuada a bum pago* dej& de outras nouidades que foccederao no reyno.

Randifsima foy a dor & o fenti mento que todos os grandes do revno moítraraõ pelo feubomReyq diante de fy viao morto,& infinitas aslagri-» mas que por iflb derramarão, porem defpois que húa couíà & outra fez termo,fe ajuntarão todos osíãcerdo- tes daquelía cidade, que fegundo fe

principaes do reyno do enterramen- to daquelle corpo,. & das cerimonias com que fe auião de fazei* às fuás exéquias, fe ordenou que foífe logo queimado antes que a peçonha de q morrera lhe caufaífe algú mao chey- ro,porque fe o vieíTe a ter não podia a fua alma por nenhum modo íer fal- ua,conforme ao que íobrélflb era ef crito; pelo qual fe fez logo ajuntar muyta preíTa húa grande foguey- ra de fandalo,aguila,calambaa,& bei joim, & fe lhe pós o fogo com outra noua cerimonia,onde o corpo do de- funto foy queimado com hum ia- mentaueí pranto de todo o pouo, & a cinza delle foy metida em húa cai- xa de prata,& a embarcarão em húa rica laulee que íe dezia a cabizonda, a qual leuauão á toa quarenta íeroos eíquipados de talagrepos,que faó as íupremas dignidades do feu gentili- co íacerdocio,& a fora iíto hia acom- panhada de húa grande multidão de outras embarcaçoens,em que hia in- finidade de gente, & detrás de todas ellas hiáo cem barcaças grandes car- regadas de diuerfas figuras de idolo* em vultos de cobras, lagartos, lioés, tigreSjfapoSjferpentes^orcegos, pa- tos,bodes,caés,elifantes, abutres, ga- tos, minhotos, coruos, & de outros muytosanimaes,as quais figuras eraõ feitas ranto ao natural que todas pa- redão viuas.E todos os vulcos deites Ídolos hião por cubercos de peças de feda conforme ás cores de cada hum, os quais eraó tantos em tanta quantidade,que fegundo o efmó dos * que

que o viraõ, fe affirmou que fe ga- itarão mais de cinco mil peças de fe- da no com que efta multidão de diabos hia cuberta. Noutra embar- cação muyto grande hia o Reyde iodos eftes idolos,a que elles chamão íèrpe tragadora da concaua funda da cafa do fumo,em figura de hua mò- ftruofifsima cobra, da groífura de mais de hua pipa, enrofcada em no- ue voltas, que eftendidas parece que viriáoa íer de comprimento de mais de cem palmos, & co colo leuantado em alto. Dos olbos,& da boca,& dos peitos defta cobra íàh ião grandes eí- padanas de fogo artificial, que a fa- ziaõ taò medonha,& taõ mal aflbm- brada,que as carnes^remiaó de olha rem para cila. Num teatro de altura ao parecer de quaíi três braças,muy- to dourado Ôc rico, hia hum minino muyto fermofo de quatro até cinco annos deidade,todo cuberto de fios deperolas,& de cadeas ôc braceletes de rica pedraria,com húas afãs Ôc ca- belleyra de fio douro, afsi como entre nos fe pintão os Anjos, ôc com hum rico treçado na mão, dando a entender com efta inuenção que era anjo do ceo mandado por Deos a prender toda aquella multidão de diabos por não faltearem a alma dei Rey antes quechegafle aoapoíènto que na gloria lhe eftaua aparelhado por premio das boas obras quenefte mundo fizera. Com efta ordem che- garão as embarcaçoens todas a terra a pagode que fe chamaua Quiay Pontar,onde defpois que foy enter- rada á arca de prata em que hiao as

Fernão Mende^Pinto.

m

cinzas do corpo dei Rey, tirando o minino fora,íe pòs o fogo a toda a- quella multidão de Ídolos afsi como hião nas barcaças, hum tamanho eftrondo de gritas,brados,apupos, ti- ros de artilharia, ôc efpingardaria,tã- ger de finos,bacias,cornos>buzios, Sc com outras muytas maneyrasde dif- ferentes diífonancias que faziáo tre- mer as carnesj a qual cerimonia não duraria mais que hua hora fomente, porque como todas eftas figuras eraó feitas de palha, Ôc nas embarcaçoens hia muyta foma de breu Ôc refina pa- ra efte efFeito,fez iftoem muyto bre ue efpaço leuantar hum tamanho 3c tãoeípantofo fogo que quafi parecia hum retrato do inferrto,& as embar- caçoens com tudo o que eftaua nel- las ficou de todo coníumido. Acaba- do ifto com outras muy nas muençoés de couía? muyto naturais ôc cuítofas que não efcreuo por me parecerem fuperfluas Ôc defneceífarias, toda efta multidão de gente fe veyo parar a ci- dade^ fe recolheo cada em fua cafa,onde todos eftiueraõ com todas as portas &janellas fechadas, com q as praças ôc as ruas ficarão de todo deíertaspor tempo de dez dias, fem em todos elles aparecer couía viua, fenao fomente a gente pobre, que de noite com muytas lamentaçoens pen- dia fua efmolla. PaíTados os dez dias defte encerramento,as varellas,& pa- godes^ brallas\que faó osfeus tem- plos,amanheceraó todos orr idos de infignias dealegria,com muytos tol- dos,eftendartes, ôc bandeyras de íè- da} & com meias ricas em que auia

muytos

irmytos cheyros^ E aparecerão por todas as ruas homés a cauallo, yeftí- dos.de damafco branco, cjue ao fom de inítrumentos fuaues dezião cho- rando em vozes muyto altas; ouuy, ouuy, defconíolados moradores de- fíe reyno Siameo que fe vos notifica da parte de'Deos, & com coraçoens humildes & limpos louuay todos o feu fanto nome, por quão juftas íaó as coufas do íeu diuino juizo, & fahy alegres de vofíbs encerramentos,can- tando louuores de íua bondade, pois lhe aprouue damos Rey nouo temé- te a eile,& amigo dos pobres. Após eíle pregão fe tocarão muytos inítru- mentos, que homens a cauallo verti- dos de citim branco hiao tangendo com muyto concerto & fuauidade; aqual todos os ounintes proftrados cos roftos por terra,& as mãos leuan- tadas,como q dauão graças a Deos, em vozes muyto altas refpondião chorando, procuradores fazemos os anjos do ceo,para pornôsLouuarcm o Senhor continuamente. E íaindo então todos das cafas com muytos bados & feftas, fe hiáo oíFerecerao templo do Quiay Fanarei, deos dos alcgres,com orTertas de cheyros fua- ues,&os mais pobres com galinhas, & fruitas,& arroz para os íacerdotes comerem. E nefte mefmo dia deu o ;Rey nouo vifta de íy por toda a ci- dade com grade aparato, pela qual «caufa fe fizeraó grandes alegrias em todo o pouo. E por quanto o Rey eraminino de noue annos fomente, -ordenarão os vinte & quatro braca- loens do gouerno que a Raynha fua

tPerigrinâçoh de

mãy foííè tutora & íua aya, & preíl- dente fobre todos os que gouerna- uão.Correndo efte negocio aísi nefta forma por tempo de quatro mefes & meyo,em que tudo efteue quieto, & íem aluoroçonem alteração algúa,a Raynha veyo a parir hum filho do feu comprador, aqual afrontada da mâprefumpção que fe tinha della,af fencoucomfigo fatisfazer afeudeíe- jo que era cafaife co pay defte nouo filho pelo grande amor que lhe ti- nha} & paraiíto determinou de ma- tar o Reizinho, que era feu filho le- gitimo, por trefpaíTar a herança ao adulrerino.E deípois de inuentar pa- ra eífeito difto muytas dififeréças de maldades nunca ouuidas, nem ima- ginadas,de que aquy não trato,porq ey medo de as contar,em fim veyo a fingir que o grande amor que tinha ao Reizinho feu filho lhe fazia ter grandes ciúmes da fua vida. E hum dia tendo juntos todos os do íeu con fel h o' lhes diífe, que ja que não tinha mais que aquella fo pérola encaftoa- da no feu coração, não queria q por algum deíaflre fe lhe vieííe a defar- reigar do peito onde a trazia fnetida, pelo que lhe parecia bem,afsi para fe cila quietar deftes receyos, como pe- los males que o defcuydoem feme- lhantes calos alguas vezes cuítuma- ua a caufâr, que ouueíTc guarda no paço,&na peflba dei Rey. Efte ne- gocio foy logo tratado no confelho, & como a coufa em fy não parecia mal, lhe foy concedida. A Raynha vendo que lhe hia focedendo bem o feu deflenho, bufcou logo para ifto

a gente

Fernão AlendezJPinto.

a gente mais conueniente ao feu da- nado propofito, 6c em quem ella ti- nha mais confiança, 6c fez húa guar- da de dous mil homês de pé, & de quinhentos de cauallo,a foraaordi- naria da cafa, que era de feif centos Cauchins,& Lequios,daqualfez ca- pitão a hum primo daquelle de que tinha parido, chamado Tileubacus, para co fauor defte ficar mais fenho* rado que pretendia,& poder milhor cífeituar feu defejo, E confiada neíta grande força que tinha por reco- meçou a fe vingar dalgus grandes do reyno,porque faòia que a náo tinhão na cota que ella queria.E os primey- ros porque lançou mão foraó dous dos deputados daquelle gouerno, q fe chamauão pinamonteo, 6c Com- primuão, affírmando delles q fe car- teauãoco Rey doChiammay, para por íuas terras lhe darem entrada no reyno,& fo color de juftiça os man- dou matara ambos, 6c confifcarlhe os eftados,hum dos quais deu ao feu amigo, 6c o outro a hum feu cunha- do,que,fegundo fe dezia, fora ferrey- ro. É porque a execução deita juftiça foy feita com fobeja preíTa, &fem prouanenhua,foyreprédida da ma- yor parte dos fenhores do reyno,tra- zendolhe â memoria o merecimen- to dos mortos, 6c as qualidades de fuaspeiToas, 6c a nobreza &antigui- dadedo íèu real Tangue, o qual por linha direita decendia dos Reys de Sião; porem ella nenhum cafo fez di- fto,antes fingindo logo ao outro dia que eftaua mal difpofta, renuciou no confelho a prcíidencia que ella aly

tinha no Vcunchenirat,'que era o feu amigo,paraque afsi pudeíTe ficar fen- do fenhor fobre todos os outros; & deftribuyr liuremente as couías do reyno por aquelles que quifeíTem íer da íua parte, 6c afsi pudeíTe mais a leu íaluo vfurpar o cetro daquella co roa,& fazer íè fenhor abfoluto doim perio Sornau,que rendia doze con- tos douro, a fora o que podia dar, q era quaíl outro tanto. De maneyra que ella pòs tanto de íua parte por fazer o feu amigo R ey>& cafarfe com clle,^ fazer o filho que auia de entre ambos fucceíTor da coroa deite im- pério Sornau,que dentro de oito me íesqne a fortuna lhe foy fauorauel, com as efperanças que tinha de mais ao longe cumprir feu deíejo, matou todos os fenhores do reyno, 6c lhes confileou os eftados, & beés, 6c tifou- ros para fuá peífoa,de que fazia mer ce a outros que nouamente criaua pelos ter da fua parte, Ê como o Rei zinho feu filho era o principal impe- dimento difto que ella pretendia, nè* efte efeapou aefta fua defatinada fu> ria,porque também o matou pe- çonha. E feito iílo fe cafou co Vcun- chenirat que fora feu comprador, 6c. ofezleuancar por Rey nefta cidade a onze dias de Nouembro do anno de 154.5. 6c aos dous dias de laneyro do anno fègmntede 1546. foraòam bos mortos pelo Oyaa Pafsiloco, Ôc pelo Rey de Camboja,em hum cer- to banquete que eíles príncipes de- raó em hum templo que fe dezia Quiay Figrau, deos dos átomos do íol,cuja inuocaçaô fe celebraua aquei

le dia»

tperigrinações de le dia. E pela morte afsi defíes dons, foy leuantado por Rey,com hua no

como de todos os mais da íua parte, <jue também matarão com elles, fi- cou tudo quieto,pacifico,& fem per- juizo dos pouos do reyno, inda que ficou fem nobreza nenhúa da que ío- hia a auer nelle,porque ja a efte tem- po toda era morta,pelos fucceftòs & modos de que atras tenho tratado.

QAT. CLXXXV.

Qomo o T^ey do Uramaa empren* deo tomar eíle reyno Siao9 do quepaffou ate chegar a cidade de Odiaa.

Or quanto nefte tem- po, deípois da morte defta Raynha Ôc do feu amigOjfícara efc te império fem her- deyro nem íucceííor a que por linha direyta pertenceííe a coroa delle, or- denarão eftes dous íenhores o Oyaa Pafsiloco,& o Rey de Camboja (q nefte tempo era ainda mais que du- que) com mais outros quatro ou cin- co que ainda auia dos leais, que foíTe Rey hu religiofo chamado Pretiem, porque era irmão baftardo do Rey morto,marido que fora daquella ma Raynha, o qual auia trinta annos q cftaua metido em religião por tala- grepo de hum pagode que fe dezia QuiayMitreu. E aílentados neftes parecer, o Oyaa Pafsiloco o foy buf- car logo ao outro dia feguinte, & o trouxe comfígo, o cj uai entrou na ci - dade aos fete de Ianeyro,& aos noue

ua cerimonia de honra ôc eftado af- faz grandiofo, de que nãò curo aquy de dar conta, por me parecer efcuía- do,& algum tanto proluxoi(& por ter algúas vezes tratado de algúas cou- fas femelhantes a eftas. E deixando também a parte tudo o que mais fo- cedeo nefte reyno Siame, direy íò- mente o em que pararão eftas coufas todas,que aos curiofos cuydo q não deixara de dar gofto. Sendo informa- do o Rey do Bramaa,que nefte tem po reynaua tyrannicamente em Pe- gu, do trifte eftado em q eftaua efte império Sornaii; & como todos os grandes delle eraó mortos por caufa dosfucceíTos atras contados,& que o nouo Rey era homem religiofo, fem ter nenhum conhecimento das cou- fas da guerra, nem pratica alguadas armas, & de fua natureza pufíllani- mo,& fobre tudo muyto tyranno õc mal quifto do pouo,tomando confe- lho cos feus na cidade de Anapleu onde entaó reíídia/obre efte taó im- portante emprefa, lhe diíTeraó todos que por nenhum cafo a deixaífe, vi- fto fer aquelle hum reyno dos milha- res do mundo,afsi em riqueza como em abundância de todas as coufas, & o fauor que então tinha do tempo ôc da conjunção' lho eftauão prometen- do taó barato, que fegundo parecia não lhe podia cuftar mais tomallo q o rendiméto de hum anno,por muy- to que quifeíTe defpender dos Ceusú- fouros,& que tomandoo, fícaua fen- do com elle Monarcha dos Empera- dores do mUndo,& com a honra da*

quelle

Fernão Mende^Ptnto. 239

quelle fuprcmo titulo de fenhor do reyno de Pegu, El Rey fe partio de

clifante branco, pela qual califa ne ceíTariamente lhe auiao de obedecer todos os dezaíTete Reys do Capim- perquenelleprofeiTauão as leysdas fuás verdades; & por fuás terras,& fuás ajudas podia paíTar em dez ou doze dias a China,onde fe tinha por certo que eftaua aquelia grande ci- dade do Pequim, pérola íem preço em todo o mundo, & fobre a qual o grande Tártaro, & o Siammon, & o Calammhan tantas vezes íè tinhaõ poíto em campo com grofsifsimos exércitos. Ouuindo o Rey do Bra- maa todas eflas razoes Ôc outras muy tasque os feus lhe deraò nefte con« felho, pondolhe fempre em todas diante o interefle,que he hua força a que ninguém fe defende, fe determi- nou em tomar efta empreíà que os feus lhe aconfelhauão; & para effeito difto fe paíTou a Martauáo,onde em tempo de dous mefes Ôc meyo ajun- tou hum campo de oitocentos mil homés, em que auia cem mil eftran- geyros, dos quais os mil eraó Portu- guefes,de que era capitão Diogo Soa rez Dalbergaria que de alcunha fe chamaua o Galego, o qual fora deite reyno para a índia no anno de 1538. na armada em que foy o Viforrey dom Garcia de Noronha na nao Iun- <co,de que era capitão loaõ de Sepúl- veda de Euora, que hia prouido em capitão de Qofalla. O qual Diogo Soarezja nefte tempo, que foy no an no de 1548. tinha deite Rey Brarnaa duzentos mil crmados.de réda, com titulo de feu irmão,& gouernador do

fta cidade de Marcauão hum dia de Pafcoella fete dias do mes de Abril do anno de 1 5 48. com efte campo de oitocentos mil homés, dos quais íôs os quarenta mil eraò de cauailo, Sc todos os mais de pê, em q entrauão feíTenta mil arcabuzeyros, Sc leuaua cinco mil elifantes de dente, que faõ os com cjue neftas partes fe peleja, Ôc quafi outros tantos em que hia aba- gage,& mil peças de artilharia que a reuezes leuauão quatro mil juntas de bufaros& badas,a fora outras tantas de bois em que hiao os mantimen- tos. E deita maneyra caminhou tan- to ate q entrou pela terra de ei Rey de Sião, & auendojâ cinco dias que caminha.ua por ella,chegou a húa for taleza que fe dezia Tapurau,em que auia perto de dous milvezinhos,deq era capitão hum Mogor por nome Coge Taraó homem esforçado Sc muy to ardijoíb na guerra. E pondo- lhe o Rey Bramaa cerco,lhe deu três aíTaltos a efcalla vifta, cometendoa toda em roda com muytas efeadas q ja para ifíb trazia, Ôc não a podendo entrar daquella vez pela grande reíi- ftencia que achou nos de dentro, fe veyo retirando para a parte do rio, onde por confelho de Diogo Soarez, que era general do capo, Ôc por que feelle gouernaua, a bateo com qua- renta peças de artilharia groíías,de q a mayor parte tiraua ferro coado, Ôc derrubandolhe hum lanço de muro de doze braças, a cometeo corri dez mil eftrangeyros em que entrauão muy tos* Xurcos, Abexins, Mouros

MalàiUr

^Peregrinações de

Malauares,& os mais Aches, Iaos, & Malayos,&trauandofe entrehuns& outros húa afpera briga, em efpaço de quaíi meya hora os de dentro,que crão féis mil Siames,forão codos con- fumidos, fem nenhum dclles fe que- rer entregar,& o Bramaa perdeo dos feus quafitres mil, de que moílrou fentimento,-& para fe fatisfazer deite dano, mandou meter áefpada todas as molheres, que pareceo húa muito grande crueldade, E partindofe da- quy para a cidade do Sacotay^que e- ííaua daly noue legoas,defejofo de fe fatisfazer nellamais à fua vontade, chegou à vifta delia hum íabado qua fi íol poito,& fe alojou ao longo do rioLeibrau(que he hum dos três que faemdo lago do Chiãmay, doqual ja atras tenho feito menção) pro- poíito de fazer por aquella parte íeu caminho para a cidade de Odiaa q hea metropoly do império Sornau, onde tinha por nouasq o nouo Rey então eftaua, & que fe fazia preftes para pelejar com elle no campo,com a qual noua o Rey Bramaa foy acon« felhado que por nenhum cafo fe de- tiueíTe em lugar nenhú,afsi por não gaitar o tempo^omo por íe não def- fazer do poder queleuaua,viítoeftar ja toda a terra amotinada, & as for- cas que fe pretendião tomar tão for- tificadas, que feria pofsíuel deterfe tanto nellas,& cuítaremlhe taó caro; que ja quando chegaíTe a Odiaa le- uaria a mayor parte da gente confu- mida,& os mantimentos de todo ga- itados. O que parecendo bemael Rey r fe partio logo ao outro dia, &

fez feu caminho por matos muiro eí§ peflbs,emque osfeíTenta milgafta- dores que também leuaua, paíTaraó aíTazde trabalho em lhe aparelhar a* eftradas. E chegando a hum lugar que fe dezia Tilau, que he nas coftas- de Iuncalão paraapartedoSudueíle junto do reino QuedaajCento& qua- renta legoas de Malaca, tomou a ci- dade de iuropifaó, cujo capitão lha entregou a partido,& leuando ja da- quy guias q fabiaó a terra, em mais» noue dias de caminho chegou a vi- fía da cidade Odiaa, fobre a qual af- - fentou leu campo,& o cercou de tran queiras & vallos muito fones.

CAT. ILXXXVL

Qomo el %ey de "Bramaa deu o

primejro afialto a eíla cidade

Odiaa-) &> dofuccejfo

de/íe.

Vendo cinco dias q el Rey do Bramaa era chegado a efta cidade, em todos elles ouue afc íaz detrabalho,afsi no preparar das tranqueiras ôc vallos, como em prouer as mais coufas ne- ceifarias a efte cerco,& em todo efte tempo nunca os de dentro fízeraod fy nenhum mouimento. O que ven- do ©general do campo Diogo Soa- rez, & a pouca conta que os Siamês faziãode tamanho poder como aly era junto, não fabendo a que o atri- buifl^determinou de effeituar o pa- ra que aly era vindo, & para iík> da

mayor

*

Fernão Mende^Pinto. 24.0

imyor parte genre eftrangeira, q fogo tamanho eftrago nos defenfo-

podião íer oitenta mil homens, fez dous efquadroens feparados por fí, em cada hum dos quais auia oito ba- talhas de cinco mil homés cada húa. E com elles fe veyo marchando ao fpm dos feus inftrumentos para as duas pontas que a cidade fazia para a banda do Sul,por lhe parecera en- trada por aly mais fácil. E arremeté- do húa hora antemenham (que foy aos dezanoue dias de Iunho do mef- mo anno de 1548.) com todo efte po der aos muros,lhe aruorarão mais de mil eícadas; & íubindo por ellas aci- ma, os de dentro lhe refiftirão com tanto esforço que em menos de meya hora, de huns ôc outros morrerão mais de dez mil. El Rey,que a efte tépo andaua esforçando os feus, ven- do o mao fucceíTo daquelle cometi* mento,mandou retirar a eft.es, & de nouo tornou acometer o muro com a força dos cinco mil elifantes de guerra que trazia, poftos em vinte companhias,de. duzentos &cinqué- ta cada companhia, nos quais hiao vinte mil Moés, ôc Chaleus, gente muito efcolhida, ôc que tem as pagas dobradas. E dando efta força bruta aísi coda junta em todo o compri- méto do muro,que leria mais de três tiros de befta, o cometeo com hnm impeto tão eípantofo que quafi fal- tão palauras para o encarecerem, por que como todos leuauão caftellos de que tirauão mofquetes,t& lagartixas de bronzo, ôc muita quantidade de eípingardoés de dez doze palmos de comprimento, fez efta munição de

res, que em menos de três credos a mayor parte delles foy derrubada cmbaixo,& pondo os elifantes as tro bas nos padefes que feruiaò de ame- yascomqueos de dentro feempara- tião,os desíízeraó a todos de tal ma- neyra, que nenhum delles ficou in- teiro, pela qual cauía o muro ficou tão defemparadodeftadefenfaõque fazia aos feus,que nenhum delles ou- faua a tornar a fubir acima, com que a entrada ficou mais fácil aos de fora, os quais vendo efte fucceíTo,que- rendoíe aproueirar daoccaíiaó que tinhão prefente, tornarão aaruorar as efeadas que tinháo deixado, &fu- biráo por ellas acima íem contradi- ção algúa^ aruorarão no muro com grande eftrondo de gritas,hua gran- de foma de guioés & bandeiras, em final de vitoria, E querendofe os Turcos moftrar nifto mais parte q os outros todos, pedirão de mercê a et Rey que lhe deííe a dianteira,a qual lhe elle deu leuemente por confelho de Diogo Soarez, que defejoío de os ver apoucados, lhes daua fempreef- tes lugares mais perigofos.Elles con- tentes Ôc aflaz oufanos por efta mer- cê fer feita a elles mais que a outra nenhua nação das muytas que auia naquelle arrayal,fe determinarão em fàiremcomfua honra naquilloque tinhão pedido a el Rey. E formando hum efquadraó de mil ôc duzentos, em que entrauão algús Abexins, ôc Ianiçaros, fubirão com grande grita pelas eleadas acima ao muro, que nefte tempo eftaua, como difTe, pelo

Rey

V1

Terigrinaçoes de

Rey do Bramaa, & tinha muy ta gé- te paraque o Rey Bramaa quifeíte

te encima. E eftes Turcos, ou por mais atreuidcs,ou por mais mofinos, correndo pelo lanço do muro adian- te/e deceraó por hum baluarte abai- xo ao terreyro de dentro, com fun- damento de abrirem hua porta que nelle eftaua por onde el Rey entraf- fe, paraque com verdade pudeíTem dizer que elíes fós foíaó os que lhe derao a cidade principal do reyno Sião,& ganhaíTem o premio qdahy fe eiperaua, porque el Rey tinha dantes prometido de dar a quem lhe òtf^e efta cidade mil bicas douro, q na valia da noíla moeda íàõ quinhé- tos mil cruzados. Sendo os Turcos decidos todos embaixo no terreyro, ordenarão de quebrar as portas com duas vigas ferradas que para iíTo )euauâo,& eftando oceupados no ef- feito deita obra, confiados que elles fós au ião de fer os que ganhaíTem as mil bicas douro que el Rey tinha prometidas aquém lhe abriíTe as portas, derao nelies três mil Iaos a- rnoucos tão determinadamente, que em pouco mais de três ou quatro credos nem hum Turco ficou em péj&nao contentes com ifto, fubin- do logo acima ao muro com aquelle feruor com que eftauão, como todos hião encarniçados, & cheyos do fan- gue dos Turcos que deixauao mor- cos,deraó na gente do Bramaa que e- ftaua encima tanto fem medo, que nenhum oufou a lhe ter o rofto di- rei to,de maneyra que os que milhor então liuraraó foraó os que fe arre- medarão embaixo.Náo foy iftopar-

entao deíiftir daquelle aíTalto, mas querendoo intentar de nouo,parecé- dolhe que os difames por íy íós ba- ftauao para lhe fazer liure aquella entrada,fe veyo outra vez chegando para o muro. Ao rebate difto o Oyaa Pafsiloco,capitão general da cidade, acudio com muyta preíTa para aquel- la parte, acópanhado de quinze mil homés que trazia comfigo, de que a mayor parte eraó Lufoês,Borneos,& Champaas,có algúamifturade Me* nancabos,& mandou abrir as portas por onde o Bramaa pretendia fazer a emrada,& lhe mandou dizer,que el- le tinha ouuido que fua alteza pro- metera de dar mil bicas douro a que IheabriíTe aquellas portas, que clle lhas tinha abertas, que podia en- trar cada vez que quifeííe, com tan- to que cumprifle com clle fua pala^ ura como Rey grandiofo que era, co lhe mandar as mil biças,porque efta- ua efperando aly por ellas para as re- ceber, O Rey Bramaa entendendo a zôbaria deite recado, não lhe quiz refponder, moftrando que não fazia caio do Oyaa Pafsiloco, & mandou apertar o aíTalto com muyta fúria ' pelo qual a briga fe acendeo entre hus & outros de tal maneyra que era coufa medonha de ver, & com efte impeto & força durou mais de três horas, no qual tempo as portas am- bas foraó q uebradas, & a cidade por5 duas vezes entrada, o que vendo o nouo Rey de Sião, & auendo que tudo eftaua quaíí perdido , acudio muito depreda com toda a gente q

tinha

Femao Mende^Pinto. 24.1

tinha comfigo, q ferião quafí trinta de logo ao outro dia tornar a enten-

mil homens dos milhores q auia em coda acidade,com cuja vinda íeacé- deo abriga muyto mais do que antes era por outro efpaço demais de me- ya hora,da qual confeífo que mio me atreuo a faber dizer o como paíTòu, porque pela terra cornão nos de Tan- gue, o ar ardia em fogo viuo, a grita & a reuolta era tamanha que a terra parecia que fe fundia, o deíemoa-» mento, & a diíTonancia dos ibarba- ros inftrumentos, dos apupos , dos finos, dos tambores & feílros, o ef- trondo da artilharia, & eípingarda- ria, os vrros dos cinco mil elifantes mecião tamanho medo que quafí faziao perder o fentido, & o terrey- ro da banda de dentro da cidade (que eftaua pelo Bramaa) cuber- co todo de corpos mortos^ ôc com rios de íângue por todas as partes, era hum tão horrendo efpe&aculo, que a vifta delle nos trazia tão pafmados, que andauamos como fo- ra de nos. Porem vendo então Dio- go Soarez o terreyro outra vez per- dido, ôc muyta parte dos elifantes feridos, Ôc os outros tão amedronta- dos da artilharia, que por ne- nhum cafo queriao tornar ao mu- ro, ôc a milhor gente da com que cometera eíla entrada ja toda mor- ta, ôc o Sol fer quafi pofío, fe che- gou a el Rey, ôc lhe pedio que fe re- tiraííepara fora do muro, o que elle carregadamente lhe concedeo pelo ver muyto ferido, afsi elle como aos mais dos Portugueles que eítauão com elle,porem com determinação

der po que por então deixaua.

*&m. tLTÍXXVll

(jomo fe deu o derradejro afoito} & ofuccejjo delle,

Ecolhido elRey para l a fua eftancia, fe achou ferido de húa frechada q ouuera na briga da- quelle dia, q até então co feruor não tinha fentido,pelo qual não pode auer eíFeito a determina- ção q tinha de dar ao outro dia ou- tro aííalto, porque lhe foy forçado eftar doze dias na cama,porem pafíà- dosdczaíTete dias, dentro dos quais elle foy íàõ de todo,centou logo tor* naraprofeguir feu intento, ôc eífen tuaro q tinha determinado, que era nãoleuãtaraquellc cerco até não fer fenhor da cidade, ainda que nifío a- uéturaíTe a perder a vida ôc o eítado, ôc lhe deu logo outro aíTako quafí ao mefmo modo do primeyro, do qual cambem fe retirou com muyta perda da fua gente,com que feacen- deo mais nelíe o furor, Ôc felhe acre- centou a contumacia,íem o efpanta- réosmuytosqjá tinha perdido dos feus,& com ifto deu mais outros cin- co afTaltos também a efcala vifta, com húa muyto grande quantida- de de efcadas,& muitos ardis de guer ra q Grego engenheyro cada dia lhe Inuentaua, mas de todos fe reti- rou fempre com perda de muitos dos feus,de q moftraua andar muyto en- H H fadado,

Teregrinaçoes de

fadado,remocando por alguas vezes ya noite efcurâ,chutiofa, & mal afío-

. brada,oRey Bramaa mãdou defpa* rar por três vezes toda a artilharia do cápo,que,como cuydo qjâ diíTe,eraõ cento & feflenta peças groíTas, de q a mayor parte lançaua ferro coado, & outra muyta miúda de falcoens,beV ços,caés, & mofquetes, que paíTauao de mil & quinhentas, a qual defpa- rando três vezes toda juntamente, fez hum tão horrendo & medonho terremoto,que com verdade me pa- rece que poíío dizer q to no infern,o pode auer couía femelhãte a eíta,mas na terra não,porque por muyto que o entendimento difto imagine, fica fendo nada em comparação do que realmente paliou, porque nefte tem* po não fomente atirauão eiras peças de artilharia groíTa & miúda que te- nho dito, mas juntamente com cila defparauão também todos os rjros de fogo quantos auia de dentro & de fora de qualquer qualidade que fof* íem,que ferião quafí cem mil por to- dos,porq efte Bramaa, como ja diiTe, tinha feffenta mil efpingardeyros, & na cidade auia mais de trinta mil, a fora fete ou oito mil falcoens, & ber- ços, & roqueyros de ferro, pois, ver, como digo, tudo ifto defparar por efpaço de mais de três horas con- tinuas, juntarnentecos trouoens,cos relâmpados, & com a tempeftade da noite, era coufa nunca vifta, nem ounida, nem lida, nem imaginada, & quafí para ie não poder crer- de maneira que toda a gente andaua ne- fte tempo como fora de fy, hus arre- meftãdoíe cos peitos era terra, outro?

meten-

terfe arrependido difto que empren- dera. Nefte tempo auendojá quatro meies & meyo q duraua efte cerco, mandou fazer reflenha geral da íua gente,& achou q tinha perdidos cen- to & quarenta mil homés, de q a ma- yor parte fora de doença;& vendo o cftado em q eftaua, determinou por fim de tudo de dar outro aíTako,por outra maneyra noua,que erajao oi- tauodetodo efte cerco, & tudo ifto fez por parecer dos feus, os quais lhe aconfelharão que alTaltaíTe a cidade de noite, apontandolhepara iíTo al- guas razoes com q a efte tempo lhe ficaria o aíTako menos perigoío, & a fubidaaos muros mais fácil, & com eíia determinação mandou logo muita preíla fazer preftes tudo o que era neceíTario para o eíFeito difto, & emdezaftetedias foraò feitos vinte & cinco caftellos de vigas muito for- tes, armado cada hum delles fobre vinte & féis rodas de ferro,com mais de cem molinetes quelaborauãopor baixo, pelo que íícaua fácil o moui* meto de tamanho peio, & cada hum deftes caftellos era de dez braças de largo,& treze de cóprido,& cinco de alto, forrados de muitas fobreuitras guarnecidas de paftas de chumbo, os quais todos hiâo cheyos de lenha, & cada delles na face diateyra leuaua íeiscadeyas de ferro muico cõpridas por refpeitodo fogo.Por eftes caftel- los tirauao os gaftadores ao íbm de muitos tabores 8c finos, cujo efpãbfo & mal cocertado eftrondo Fazia tre- mer as carnes. E nua fefta feira à me-

metendofe em coua',outros efcondé- dofe por detrás das paredes, outros em poços,outros em tanques, & ou- tros mergulhados no'riocó receyo da multidão dos pilouros, que eraó tão baftos, q alguas vezes fe quebra - uáo no ar hús cos outros. Na mayor forca deita brauifsima,horrédiísima, & ardentifsima tormenta fe deu fogo aos vinte & cinco caftellos, que a efte tempo eftauão chegados ao mu- ro,com que a braueza defte -cleméta, ajudada daforça do vento.que então era grande, pegando na grande íoma de barris dalcotraó q achou junto có- íigo.caufou de nouo hu tão cfpátofo inferno (q efte nome fe lhe pode por fomente, porq .não hacoufana terra qcó razão fe poíTa cõparar)q atè os q eftauão de fora pafmauão de me do,quanto maisaquelles a q era for- çado efperar a forca delle,& com ifto fe trauou por todas as partes húa cruel & fanguinoléta briga. Os de fo- ra intétaraó logo fubir por força pe- las efcadas acima^poré os de détrojcj naò eftauão menos apercebidos de todas as coufas,lho defenderão hu tamanho esforço, q quaíi todos, afsi hús como os outros eftiueraõ alguas vezes de todo perdidos. Porq como a géte fe refreícaua muy tas vezes em, ambas as partes, & a contumácia do Rey Bramaa era grandifsima,andan- do elle mefmo em peíToa no mevo dos íèus, animãdoos muitas paía- uras,& promeffas de muitas mer- cês^ coufa foy em títo crecimeto, q de não meatreuer a dizer amenos parte do q aquy pafTou3deixo ao en-

Femao Mendex^Pmto.

iq%

tendimento de cada hu ímaginaro q podia fer.Paffadas mais de quatro ho ras defpois de meya noite,fendo en- tão ja os caftellos de todo queimados & rafoscochaó, com hum braíido tão brauo que a tiro de pedra não a- uia que o pudeífe efperar,o Rey Bra- maa mandou retirar os feus a reque- rimento dos capitães da gente eftráV geyra,por terem todos a mayor par- te delia ferida, na cura da qual ouue bem que fazer todo o dia íeguinte & parte da noite.

cât. cLxxxrm. .

ímo o "Rey "Bramaa aleuantou

ejte cerco por nouas que lhe vierao

de bum aleuantamento qneome-

ra no rey no de Teguu, & do

quefohre ijjofe^

Endo efte Rey Brami q ne as batarias da artn lharia q tinha dado â cidade,nem os aífaltos ' a eícalla vifta com tan- ta força de gente,nem aqueila inuen- ção dos cafteilos acõpanhados de tã- tos artifícios de fogo cm q elle tiuera tamanha confiança, lhe tinhão apro- ueitadopara elle erfeituar oq tanto defejara,defejofos ainda de não defi- ftirdeftaemprefaque tinha entre as mãos, chamou a cõfelho geral todos os capitaés,& bainhás,& príncipes, & fenhores q auia no exercito, & propõ do perãte,todos feu intéro & feu defe jo, lhes pedio q lhe deflem nifto feus H H 2 parece-

■A

pareceres, E defpois de fer o negocio bera coníultado & altercado entre elles,em fim vieraõ todos a concluir que por nenhum caíb fedeíiftiíTèdo cerco, vifto fer aquella emprefa a mais honrofa&a mais proueitofa de quantas então fe lhe puderáo offere- cer,& o muito cabedal que íe tinha metido nella, & que fe continuaííe cos aífaltos fem fe leuantar mão dei- lesatéde todofe enfecarem os ini- migos,porque claro eftaua, fegundo o que delles tinhão fabido, que naó tinhão ja poder que baftaífe a reíiftir a qualquer pequena forca q Telhes fizeíTe. El Rey affaz contente co que elles nifto aífentaraó, por quão con- forme era co íeu defejo, lho agrade- ceo muito, & lhes fez de nono mui* tas mercês de dinheiro, ôclhes jurou aly que fe tomafíe a cjdade, oS faria a todos fenhores no reyno,com títulos de muita honra acompanhados de grandes rendas & eftados. Tomada efta refolução, fe tratou logo do mo- do com que fe ifto auia de fazer, & porconfelho de Diogo Soarez,& do engenheyro, fe aíTentou que fe vieífe criando húa ferra de grandes entu- lhos de terra, & faxina que fobrele- uaíle por cima dos muros,& que del- ia com toda a artilharia fe bateíTem as forças principais da cidade,pois nellas eftaua a defenfaó dos inimi- gos,para o qual com muyta prefteza íe deu logo todo o amamento necef- fario; & trabalhando nefta obra os felfenta mil gafta-d ores que auia no campo„em doze dias puferaó efta fer rano eftado que conuinha ao inten-

Terigrinaçoes de

to dei Rey, E tendo aífeítadas nel- la quarenta peças de artilharia grof- fa,núa trinchea de doze beftioem ao modo Turquéfco,para o outro dia fe bater a cidadc,chegou hum correyo com cartas a el Rey do Chauferoo fenhor de Mouchão,em que lhe de- zia que no r eynode Pegu fe aleuan- tara o Xemimdoo, & matara quin- ze mil Bramaas,& tomara as princi - pais forças delle, a qual noua fez em el Rey tamanho abalo^uelogOjíem fazer mais nenhua detença leuantou o cerco, & fe retirou para hua ribey- raque fedezia Pacarou, na qual náo íe deteue mais que naquella noite,& o outro dia feguinte,em que recolheo aartilharia,& as muniçoens. E fazé- do pòr o fogo a todas as tranqueyras & eftancias do arrayaffe partio para a cidade de Martauao húa terça feira cinco dias de Oitubro do anno de 1548. & caminhando apreíladamen- te por fuás jornadas, en$ dezaífete dias chegou a cila, onde mais larga- mente foy informado pelo Chaiago- nim íeu capitao,de tudo o q era paf- fado no rey no, & do modo q o Xe- mindoo tiuera em fe fazer Rey,& to- marlhe o tiíouro morte dos quin- ze mil Bramaas; & q nas cidades de Digum,Surião,Dalaa, ate Danapluu tinha alojados quinhentos mil ho- mens,com tenção de lhe ímpidirco elles a entrada no reyno,com a qual noua o ReyBramaa fe achou muy to embaraçado, & perafufando comíi« go no modo que teria para remediar efta defauentura que tinha por dauã* te, fe deixou eftaraly em Martauao

mais

Fernão Mende^PintQ. 24.5

mais algús dias efperando pelo refta- chão duas lcgoas da cidade Peguu, o

te da ília gente que vinha atras, com propoíico de tanto q chegaíTe yr buí- car efte inimigo, & aueriguarfe com elle por batalha campal,& em Cós âo ze dias q aquy íè deteue lhe fugirão de quatrocentos mil homens q aquy tinha comíigo,os cento & vinte mil; porq como todos eraó Pegús, & to- dos deíèjauão de fe verem liures da lbjeiçãodos Bramaas, & oXemin- doo nouo Rey era Peguu como elles, & de condição muito grandiofo & li beralemlhes fazer muitas mercês, a fora as pagas ordinárias dos feus fol- dos, & alem difto era manfo Ôc afa- bel paca osíèus,& tão bem inclinado & largo para todos q nenhuacouíà lhe pedião q logo a não concedeííe, ifto tinha ganhado tanto as vota- des a todos,q nenhú auia q fe não paf faífe para elle. E temédo o Rey Bra- maa q efta falta q agora tinha da fua géte foíTe cada dia mais em crecimé- to/oy aconfelhado pelos feus q não re detiueííe aly mais hum dia,por- que entendido eftaua q quanto mais aly efperaíTe, tanto mais íe lhe auia de deminuyr o poder que tinha, pois 1 mayor parte da fua gente, ou quaíi :od.a eraPegua que lhe auia defer muyto pouco fiel. A el Rey lhe pa- receo efte confelho,& fe partio lo- ?o para Peguu, onde teue pornouas 3 o Xemindoo o eftaua efperando,o :jual fedo auifado da vinda dei Rey, :ambem fe fez preftes para o efpe- •ar,& chegados a vifta hum do outro uTencaraó ambos íèusarrayaes num :ampo muito grande q fe dezia Ma-;

Xemindoo com feifcétos mil homés, & o Bramaa trezentos Ôc cinqué- ta mil. Ao outro dia pela menham pondofeeftes dous exércitos na or- denança que conuinha para a tenção dum & do outro, fe vieraó a ajuntar húa quinta feira vinte «Sc íeis dias do mes de Nouembro do mefmo auno de 1548. às féis horas da menham, ôc vindo a rompimento de batalha,eihi foy pelejada tanto fem medo de am- bas as partes,que por efpaço de pou- co mais de três horas o exercito do Xemindoo foy desbaratado,có mor- te de trezentos mil dos íèus,& elle fu gio com féis de cauallo para húa fõr-« taleza quefe dezia Batelor, na qual, em hua hora que nella efteue, íè proueo de hua pequena embarca- ção, em que aqueíla noitefugiopelo rio de Aníèdaa acima.Porem deixe - molo agora yr que a feu tempo tor- naremos a elle, ôc tornemonos ao Bramaa, que eftaua aífaz contéte a vitoria que alcançara; o qual logo ao outro dia pela menham fe veyo marchando para a cidade de Peguu que eftaua daly duas legoascomoa- trasdiííe,a qual fe lhe entregou com lhe ficarem (aluas as vidas ôc as fa- zendas dos moradores, onde logo proueo em curar a gente ferida. E os que morrerão na batalha da parte do Rey Bramaa foraó feflenta mil homens, nos quais entrarão duzen- tos ôc oitenta Portuguefes, ôc to- dos os mais ficarão muy to feridos.

HH$

CÀP,

IA<P. QLXXX1X.

T>a muyta fertilidade do reyno Síào>& de outras particulari- ies delle.

Orquantoategoratra- tcy do fucceífo que te- ue efta ida do Rey do Bramaa ao. reyno de Sião,& do aleuantamé to do reyno de Pegú,pareceme q não virá fora de propoíito tratar aquy5 inda q breuemente,do fido, grande- za, abaftança, riqueza, & fertilidade q vy nefte reyno de Sião & império Sornau, ôc quanto mais proueitoío nos fora telo antes fenhoreadó que tudo quanto temos na índia, & com muy to menos cufto do q ategora nos tem feito. Efte reyno, como fe pode ver no mapa,tem por íua graduarão quafí fetecentas legoas de eofla, & cento & íeíTenta na largura do fertão. A mayor parte delle he de terras bai- xas em q ha muitas capinas lau radas, ôc rios de agoa doce, ôc por iíTo he muito fertil,& abaftadade mantimé- tos,& de carnes. Nas partes altas tem aruoredos-efpeíTosde muita madey- ra de Angelim,de q íe pode fazer mi- lhares de nauios de toda a forte. muitas minas de prata/erro^Ojchú- bo,eftanho, fali tre, & enxofre. Tem também muita feda,aguila, beijoim, lacre,àhil,roupas dalgodão,rubis, pa- riras, marfim^ ôc ouro, ôc difto tudo muy to grande quantidade. ISjos ma- tos da cqftatem muito braíil,& pao

Terigrinaçoes de

preto, de q todos os annos fe carre- gão mais de cem jíícos para a China, Ainão,Lequios,Camboja, ôc Chãpá, & mais muita cera,mel, Ôc açúcar. Rendião ordinariaméte nefte reyno os direytos reais cada anno doze co- tos doúro,a fora os feruiços q lhe fa- zião osíenhores delle, q também he outra muito grande quantidade. na jurifdiçaò dos feus íenhorios duas mil& feiícentas pouoaçoés aqelle*s chamaõ Produm, que íaó como en- tre nòs cidades & villas,não tratando de aldeãs pequenas, porq deíTasnão fazé cafo, Ôc a mayor parte de todos eftespouos não defeníaó nenhúa mais q fomente tranqueyras de ma- deyra,poronde muyto facilméteos pudera fenhorear qualquer pequena força que os cometera.Os habitado- res de todas eftas pouoaçoés, alem de por natureza ferem géte muyto fra- ca, não cuftumão ter armas defeníl* nas, A cofta defte reyno bebe emam bós os mares de Norte ôc de Sul, no da índia por Iuncâlão ôc Tanauça- rim, ôc no da China por Mópoloco- tajCuyjLiigorjChintabu, ôc Berdio. A metropoli de todo efte império he efta cidade Odiaa,deque ategora te- nho tratado, efta he cercada de muros de taipa, Ôc tijolos, ôc adobes* Affírmão algus q tem dentro em íy quatrocentos mil fogos,dos quais os cem mil faó de nações eftrãgeyras de muyto diuerfàs partes do mundo, porq como efte reyno he muyto rico emíi& de grãdifsimo trato para to- das as prouincias ôc ilhas da Iaoa,Bal le, Madura, Arigenio, Borneo, Ôc

Solor,

Fernão Mende^Pinto.

^olor, não ha anno que não nauegue de mil júcos para cima,a fora outros *• nauios pequenos de que todos os rios & portos eftão fempre oceupados. O Rey por inclinação de fua natureza não henada tyranno. As alfandegas de todo o reyno íaó dedicadas por efmolla de certos pagodes, por onde ficao fendo muito baratos os direitos que fe pagaó nellas,porque como el- les naó podem terdinheyro, não pe- dem aos mercadores mais qaquillo que elles boamente lhes querem dar -a modo de efmolla. Tem doze feiras gentílicas como osPegus, O Rey fe chama por titulo fupremo Prechau faleu, que em nolTa lingoagem quer dizer,membro íanto de Deôs, Não moftra de íi ao pouo mais que fós duas vezes no anno,mas ambas o faz com muito grande mageftade,aísi de riqueza,como de poder & grandeza. E com quanto lie efte que digo, co- nhece fuperioridade por via de vaf- íallagé & de tributo ao Rey da Chi- na,paraque com iífo poífa mandar os íeus juncos ao porto de Comhay, onde fazem fuás fazendas, Ha mais nefte reyno muita pimenta,gengiure, canella,canfora,pedrahume,canififtu Ia, tamarinho, & cardamomo em muyto grande quantidade, de ma- neira que bem fe pode dizer & affir- mar com verdade o que naquellas partes ouuy muitas vezes, que he efte hum dos milhores reynos que ha em todoomundo,&o mais fácil de to- mar &defuftentarq outra qualquer prouinciapor pequena queíeja. E realmente affírmo que de coufas que

244.

vy nefta cidade de Odiaa fomente pudera ainda contar muitas, mais par ticularidades do que contey de todo o reyno, mas deixo de o fazer por não caufar aos que ifto lerem a ma- goa que eu tenho de ver o muyto q por noífos peccados nefta parte per- demos, & o muito que pudéramos ganhar.

CAT. CXC.

T>o que maisfocedeò no rejno de

Tegú ate a morte do %ey do

*Bràmaa & defpois delia.

Ornado agora â hifto- ria de que hia tratan- do. Deípoisqueo Rey Bramaa oune em Pe- guaqtiejla grande vi- toria cótra o Xemindoo, como atras fica contado,com que ficou em pofíe pacifica de todo o reyno,a primeyra couíãemque entendeo foy em ca» ftigar os culpados no aleuantamento paftado, em que cortou as cabeças a hua grande quantidade de homens nobres)(Sccapitaés,& fenhores,& lhes confifeou todos os bees para a coroa, com que de ouro & de prata fomen- te fe affirmou que ouuera paífante de dez contos douro, a fora muyta pedraria & baixellasricas; onde,co- mo então geralmente fe dezia,paga- raõ muitos pelo peccado de hum lo. E continuando el Rey cada dia mais neftas crueldades & íem juftiças que níís & noutros executaua, a cabo de dous meies & meyo que fe oceupaiu H H 4 nifto,

yPerigrtnaçoês cie

nifto,foy certificado que a cidade de Martauao eftaua aleuantada mor te de dom mil Bramaas, & o Chala» gonim capitão delia declarado pelo Xemindoo. Mas paraque a caufa de- fte aleuantamento fique entendida dos curiofos, antes que mais por diante não deixarey de dizer breue- mente que efte Xemindoo foy hum religioíò Pegu de nação homem de geração nobre,& fegundo algús del- le affírmauão, muyto parete do Rey paftado,que efte Bramaa tinha mor- to auia doze annos, como acras fica dito, o qual Xemindoo fe nomeaua antes por feu próprio nome Xoripam íày,era de idade de quarenta & cin- co annos,& de grandes efpritos, & ti- do na opinião de toda a gente por homem fanto, & era muyto douto tios eftatutos & preceitos das fuás gé- tilicas feitas,& com ifto tinha muitas partes boas que o fazião íèr tão agra- dauelaosouuintes nos fermoés que fazia, que como fe íubia no púlpito, toda a gente fe prpftraua por terra di çendoacada palaura que ellefolta- ua, pitarul axinão dauocoo Quiay Ampaleu, que quer dizer, certo quç Deos he o que falia de ty. Vendofe pois efte Xemindoo tão acreditado co pouo, eftimulado do feu natural esforço,& da occaíiaõ que tinha pre- íènte, determinou de tentar fua for- funa,& ver ate onde podia chegarcô ella. Eafsi no tempo que o Rey Bra- ' maa foy febre o reyno de Sião,&pós; cerco à cidade de Odiaa, como atras fica dito,pregando o Xemindoo en- tão na varella do Comquiay de Pe-

gu, que he como $ee de todas as ou* tras,a tuinl grande conçurfodegep- te,lhe.tratou com muytas palauras da perdição daquelle reyno, da morte do íeu Rey natural, & dos grandes infultos,crueis mortes, & outros muy tos males que os Bramaas tinhão fei- to naquella nação Pegua, com tanto defacatamento & offenfa de Deos,q até ascafas ricas, inftituidas com as efmollas dos bons para templos de feu louuor,erão ja por eíles coda? a£» foliadas^ ppftas por terra. E as que eftauãp milhprtratadas,huas lhe íer- uião de eftrebanas, & outras de mfi- turos,& de lugares de fuás immundi- ciasj & profeguindo a efte modo por efta pratica, difle taqtas coufas, deu tantos fuípiros,& chorou tantas lagri mas,com que fez tanta impreííaó no pouo,que todo afsi junto como efta- ua o jurou aly logo por feu Rey na- tural,&p nomeou por nome íupre- mo fobre todos os oucrospor Xemin dpo,chamádofe elle antes Xoripam- íay. Efte, vendoíe aleuantado por Rey, aprirneyra coufa que fez, foy com aquelle impeco & feruor do po? uo,dar nas caías do Rey Bramaa,on- de eftauão cinco mil Bramaas, & os meteo a rodos â eípada,fem a nenhú delles fe dar a vida; &. o meímo fe$ defpois a todos os outros que eftauão alojados pelos lugares. importantes do reyno- Sc com ifto puue também â mão o tiípuro ç|el Rey,quenão era pequeno. Afsi que quantos Bramaas auia no reyno, que eraõ quinze -mil» foraó tpdos mortos,a fora as mplhe- res de todos eftes. E as forças q efta- uão

Fermo

uão por elles, foraó tomadas, & po- ftas por terra,& em termo defôsvin te & três dias o reyno ficou todo pe- lo XemindoQ,& elle ajuntou cjuinhe- tos mil honies para pelejar co campo do Rey Bramaa quando aciidiíTe a cite aleuantamento,donde focedeo o que atras deixo contado. E porque me parece que jfto bafta para decla- ração do que vou contando,me tor- no a meu propofito. Sendo (como eu difle) efte Rey Bramaa auifado do leuantamento da cidade de Mar- tauáo,&da morte dos feus dous mil Bramaas, proueo logo com toda a prefteza em mandar vir todos os fe- nhores do reyno com a gente que ca- ria hum tinha de fua obrigação, õc para iíTo lhes deu íbs quinze dias de termojaorque a neceísidade não íb* fria rmfyor dilação, & elle logo ao outro dia íè partio aforrado defta ci- dade Pegu,paraque os feusfizejírem o mefmo, & fe foy alojar em húa villa quefe dezia Moucham, com funda- mento de fe deter ahy todos os quin- ze dias do termo. Eauendojafeisou fete que aly eftaua, foy auifado que o Xeminde çatão,que era capitão de hua cidade defte nome, que eftaua daly cinco legoas.mandara em fegre- do húa grande foma douro ao Xe- mindoo, Sc lhe fizera menagem da* queila cjdade, co a qual noua o Rey Bramaa ficou algum tanto embara- çado^ cuydando comílgo no meyo que teria para atalhar aquelle mal q íe lhe apareihaua, mandou chamar q_Xemim de C,atão,que então efta- ua na cidade de que era capicão^om

Unto. 24?

propofito òt lhe mandar cortar a ca- beça^ qual deitandofe na cama, Sc fingindo que eftaua doente, lhe refc pondeo,que como fe pudeíTe leuátar elle iria logo, Sc fofpeicando, como homem culpado, o paraque ertf-má- dado chamar,deu conta defte nego- cio a dez ou doze irmãos de parentes feus que aly tinha comílgo, os quais aflentaraó todos que pois não auia outro meyo mais certo de fe íaluaré que matarem el Rey, que logo fem mais detença o puíelTem por obra, 8c ajuntando logo todos com muyto fe« gredo & preíía todos os feus apani- guados, fem lhes declararem o para que era aquella junta,ajuntaraô tam- bém outra algúa gente que trouxe- rão a íi com muitas promeífas q lhe fizerão,& de todos juntos fizerão húa companhia de feifeentos homens. E tendo por nouas que el Rey eftaua então apofentado nas cafas de hum pagode,deraó nellas com muito Ím- peto, em que a fortuna os fauoreceo de tal maneira que o acharão oceu- pado em húa neceflaria, onde o ma- tarão logo muito a feu faluo,& fe vie rao recriando todos juntos para hum terreyro que eílaua fora,no qual,poc quejâ a efte tempo auia aluoroço na gente da guarda, & a traição era fen- tida dos que vigiauão, tiuerão húa grade briga por efpaço de quafi me- ya hora,em que morrerão de ambas as partes oitocentos homes, de que a mayor parte foraó Bramaas; Sc reci- randofe o Xemim de G,atão obra de quatrocentos dos feus,fe foy mar- chando para hum lugar grande que

fe dezia

^Peregrinações de

fe dezia Poutel , onde logo fe veyo Dantre acjucllcs Bramaas que o XeJ

paia elle coda a gence daquella co marca, a qual fabendo da morte do Rey Bramaa, a quem todos tinhão grandifsimo odio,formou hu groífo corpo de cinco mil homés,& fe fahio em bufca de três mil Bramaas que o Rey aly trouxera , com figo, os quais jàaefte tempo andauão efpalhados por muitas partes,como pafmados & fora de íi,pelo qual facilmente foraó todos mortos naquelle mefmo dia, fem a nenhum ie dar a vida, entre os quais foraó também mortos oitenta Portuguefes de trezentos que Diogo Soarezaly tinha comfigo, o qual os mais que ficarão viuos fe entrega- rão a partido por não rerem outro remédio, & fe lhes outorgou a vida com condição &juramento que lhe derao,quedaly por diante feruiriaõ lealmente o Xemim de Qatão como a feu próprio Rey. PaíTados noue dias defpois defte aleuantamento, vendofe efte leuantado fauorecido da fortuna,& com muyta gente que lhe tinha acodido de toda aquella comarca,que em copia fe deziaque paílarião de trinta mii homens, fe le- uantou por Rey de Pegu,prometen- do de fazer muitas mercês aos que o íeguiíFem & acompanharem ate q de todo ganhaíTe o reyno,& lançafle os Bramaas fora delle. E com ifto fe recolheo para húa fortaleza que fe dezia Tagalaa com determinação de fe fazer nella forte pelo temor que tinha da gente porque o Rey morto eftaua efperando, de que ama no- uasque era abalada da cidade Pega,

mim de C,atao tinha morto,efcapou a cafo hum, o qual inda que muvto ferido fe lançou ao rio, & paíTando a nado á outra parte caminhoufem pa- rar toda aquella noite & a outra fe- guinte com medo dos Pegus, & ao terceyro dia chegou a hum campo que fe dezia Coutafarem pouco mais de hua legoa da cidade, no qual achou o Chaumigrem dolaço dei Rey alojado com hum exercito de cento & oitéta mil homés, dos quais fós os trinta mil eraõ Bramaas, & to- dos os mais eraò Pegus, & eftaua ja de caminho para fe partircomo que braífe a força da calma, que poderia fer daly a duas horas,& lhe deu con- ta da morte dei Rey, & de tudo o mais que era paíTado. O ^bumi- grem,inda que ficou aífaz foWefalta- do com aquella noua,todauia adiís> mulou por então com tanto esforço & prudência que ninguém enxergou nelie trouação algúa, mas veftindofe de húasveftiduras ricas decitim cra- mefim,broíladas douro,& com hum colar de pedraria ao pefcoço, man- dou chamar todos os capitães & fe- nhores daquelle exercito, & fem- brante alegre lhes diífe: Efte home que agora viftes vir tão apreflado, me trouxe efta carta dei Rey meu íe- nhor& voíToque tenho na mão, & ainda que nella me dàalgúas repren- foéspelodefcuydoda noíTa tardan- ça,efperoem Deosque miiyro cedo lhe ey de dar- razão delia, & fua alte- za nos ficará deuendo a todos o íer- inço que lhe niíTo fizemos. Etambé

me

Fernão MendeçJPinto. 240

meauifa que tem por nouamuyto defpidio de fy todos os cento & cin

certa que o Xemindoo reforma o ca- po com determinação de vir fobre Cofmim & Dalaa, & fenhorear pelo rio de Digum & Meydoo toda a co- marca de Danapluu até Anfedaa,pe- lo que me manda que com toda a breuidade proueja logo eftes lugares mais importantes com força baílan- te para reíÍ(tir#ao inimigo, & q olhe que íe não perca nada por meu def- cuido,porque me não ha de receber defeulpa nenhúa. Pelo qual me pa- rece bem & muy to neceííario ao feu feruiço q vòs fenhor Xcmim brum vos vades logo fem efperardes mais hum momento mater com a voíTa gente dentro em Dalaa, &voíTo cu- nhado Bainha Quem, cosfeus quin- ze mil homés em Digum, & o capi- tão Gibray, «Sc o Mompocafíer com trinta mil em Anfedaa & Danapluu, & oCiguamcão com vinte mil ho- més desde Xaraa ate Malacou, & o Quiay Brazagaraõ cos feus irmãos, cunhados, & mais parentes por fronteyro mor fobre todos, com hu campo de cinquenta mil homés, pa- ra comelles & com fua peflba prouer os lugares que tiuerem necefsidade. E difto que de fua parte vos notifico & vos requeiro, fe faça aíTento em q todos afsinemos, porque não quero eu que a minha cabeça pague a voíTainaduertencia ou o voffo def- cuido. E eftes capitães todos lhe obe deceraõ logo, & fem mais detença fe partirão daly todos, cada hum para onde lhe fora mandado. Ecomefte ardil taó fagaz & tão difsimulado,

quenta milPegiisem efpaço de pou- co mais de três horas, por íe temer q felheschegaíleanoua da morte deí Rey, deífem nos trinta mil Bramaas que aly tinha comíígo, dos quais ía- bia certo que não auião de deixar ne- nhum com a vida. E tanto q a noite fe cerrou voltando íobre a cidade q podia fer daly pouco mais de hua le- goa,recolheo muito deprefla todo o tiíouro do Rey morto, que fe afíir- mou q paífaua de trinta contos dou- ro, a fora a pedraria que não tinha preço, & as molheres & filhos da gé« te Bramaa,& as armas & muniçoens que pode leuar. E a tudo o mais que auia nos almazés mandou pòr o fo- go^ fez arrebentar toda a artilharia miúda, &agroíía, a que não pode fazer o mefmo, mandou crauar, 8c matou tdda a força bruta de fete mil elifantesqueauiana terra, fem dei- xar viuos mais que fós dous mil em que leuaua toda a fuabagage, &as muniçoés,& o tifouro,& tudo o mais foy cófumido do fogo de tal maney- ra, que nem dos paços em que auia caías cozidas em ouro,nem danbey- ra cos almazés & terecenas, em que auia duas mil embarcações de remo varadas em terra, ficou coufa q não foífe feita em cinza. E feito ifto,fe partio com muita prefla hua hora an temenham,& feguio feu caminho pa rao Tanguu,que era a fua própria pátria donde tinhaó faido auia qua- torzeannosa eonquiftar eíte reyno pegú,& diftaua daly pelo fertão den- tro cento & feífenta íegoas, & como

o medo

Peregrinações de

o medo cuflumã á dar afãs aos peis, efte os fez caminhar com tanta pref- fa, que em quinze dias chegarão ao lugar para onde hião. PaíTados dous dias delpois difto que tenho conta-» d?o,fouberaó os cento & cinquenta mil Pegus q o Rey Bramaa era mor- to, 6c como erão inimicifsimos defta naçao^azendoíê oscéto «Sc vinte mil num corpo voltarão muito deprefla em bufea dos trinta mil Bramaas, & jàquado chegarão á cidade auia três dias que eraó partidos;& feguindoos com toda a prefla que pu.deraó che- garão até hum lugar q fe dezia Gui- nacoutel quarenta legoas adiante, onde acharão nouas que auia cinco dias que eraó paíTados- pelo qual de- feíperando de erTeituarem Teu óefe- jo,que era fazelos a todos em poftas, fe corn&dó para donde tinhao parti- do. E tomando coníelho fòbre o q fariao de fy,aírentaraó,que pois não auia Rey natural, & a terra eftaua deípejadada gente Bramaa.de fe paf farem para o Xemim de C,atão, & afsio fizeraó logo,o qual os recebeo com muyto aluoroço & contenta- mento, & lhes prometeo muytas mercês, & muytas honras & acrecen- tamentos no reyno tanto que o tem- po defíe de fy mais quietação. E com ifto fe partio logo para a cidade de Pegu, onde dos moradores delia foy recebido com triumpho de Rey, & coroado por eflena varella do Comquiay,que he comoSee de to- das as outras.

QAT. l*Cl.

T)q quefocedeo no tepo defte £#^ Xemim de Ç^aúo, &> de hum ca- fo ábominauel que aconteceo a Diogo Soare^,

Vendo ja três meies & nouedia^ que efte ty- ranno Xemim de C,a« tão eftauapacificoRey nefta cidade & reyno dePegii,&femreceyo nem contra- dição de peífoa algúa, começou a di- ftribuir indeuidamente,& fazer mer- cê a quem queria*! os beésque eraó da coroa, donde íè recreceraó gran* des efcandalos,que foraò caufa de a- uerem muytas brigas & difeordias entre muy tos fenhores, os? quais por efta razão,& pela pouca juftiça que o tyranno tinha no que fazia, fe forao para diuerías terras, & reynos eftra- nhos,& outros fepaílàraõ para oXe- mindoo,o qual neíle tempo come- çaua a ter algum pequeno de nome, porque defpois de fugido da bata- lha paíTada com os féis de cauallo, como atras diíTe, foy ter ao reyno de Anfedaa,onde pela effjcacia dos íeus fermoés,& pela autoridade de fuapef íoa,aquirioa fy hua grande quanti- dade de gente,& com o fauor & aju- da deftes fenhores que fe paífaraô pa ra elle,ajuntou hum corpo de feíTen- ta mil homens,com os quais fe veyo chegando para o Meidoo, onde dos naturais da terra foy bem recebido.

E deixando agora de tratar do mais

cjue

Fernão

que aqtiynefta terra fez em quatro inefes que nella efteue, de que fe tra- tara a íeu tempo, me paííatey a hií eftranho caio que neíles breues dias aconteceo nefta cidade, paraque fe l<uba em que parou a profperidade do grade Diogo Soarez, gouernador que foy defte reyno Peguu, ôc o ga- lardão que o mundo em fim cuftuma de dar a todos os que o íèruem, & q fèfiãodelle por mais boas venturas que lhe moftre no começo. O qual foy defta maneyra. Auia nefta cida- de de Peguu hum mercadorchama- do Mambogoaa, homem rico & de nome na terra, o qual em tempo do Rey Bramaa paíTado, quando Dio- go Soarez eftaua na mayor força do íeu mando ôc valia,com titulo de ir- mão dei Rey,& fupremo em todo o gouernofobre todos os príncipes & íènhores do reynd, veyo a tratar de cafarhúa filha que tinha com hum mancebo filho de outro mercador honrado,& também muito rico, que fe chamaua Manicamandarim, E có- certados os pays dos nuiuosnos do- tes q ambos deraó a (eus filhos, que, fegundo deziao,foraõ trezentos mil cruzados, vindo o dia das vodas, fe celebrarão com muitasfeftas, &grã- difsimo faufto de riquezas ôc horas, a que foy junta grande parte da gen- te nobre defta cidade. E acertando neftemefmodiajaquaíi folpoftoa vir Diogo Soarez de cafa dei Rey com muita gente de que fempre an- daua acompanhado,alsi de como de cauaUo,paíTou pela porta do Ma- bogoaapaydanoiua, ôc ouuindoas

alMejide^Tinto. 2$7

grandes feftas ôc regozijos que auia na cafa,preguntou o que aquillo era, Ôc lhe foy refpondido q caíaua Mam bogoaafua filha. Elle então deten- do o elifante em que hia, lhe mádoti dizer que para bem lhe foífe aquel- le caíamento,& que Deos os deixaf» íè viuer ôc lograr muitos annos,& ou trás palauras a efte modo, Ôc lhe fez de íi muitos oferecimentos para o q dellelhecumpníTe, De que o velho, pay da noiua fe ouue por tão grande õc tão honrado, que não fâbendo que lhe pa^aíTe tamanha honra, pois a dignidade & grandeza dapêfiToaq lha fazia era quaíi tamanha como a do próprio Rey, defejofo de fatisfa- zer em parte o que em todo não po- dia, tomou a filha pela mão,acompa- nhada de muitas molheres nobres,& íe veyo com ella ate a portada rua onde eftaua o Diogo Soarez, ôc def- pois de fe lhe proftrar por terra com hum muito grande acatamento, lhe deu por feu modo as graças daquel- la mercê ôc honra que lhe fizera,& ti- rando a moca por mandado de feu pay hum anel rico que tinha no de- do,lho deu cos joelhos em terra, a q o Diogo Soarez em vez de lhe guar- dar o decoro que fe lhe deuia em ley de nobreza & de amizade, como era de condição fenfual Ôc deshonefto, eftendendo a mão,defpois de lhe to- mar o anefpegou rijamente nella zendo,nunca Deos queira que moça tão fermofa como vòs fe empregue em outrem fenão em mim. O pobre velho do pay vendo pegar taó rijo da filha,& com hum infulco tão afro

tofo,

tofo,kuantando as mãos & cos joe lhos era terra lhe difte chorando,pe- çote fenhor por reuerencia do gran- de Deos que adoras, concebido no venere da Virgem fem macula de pec cado algum, comoconfefTo &creyo fègundo. o que delle tenho fabido ôc ouuido,que me não tomes minha fi- lha,porque morrerey de paixão, & fe quileres o dote que lhe dey, tudo o mais que me fica em cafa,& a mim por catiuo,eu codarey logo,có' tanto que me deixes .minha filha fer mo- lherdeíeu marido, porque não te- nho-j*outro bem nefte mundo, nem o quero em quãto viuer, Ôc com ifto pegou da filha, Diogo Soarez,védo que o trifte do velho todo banhado em lagrimas pegaua de fua filha, fem lhe refponder a elle palaura,diíTe bra dando para o capitão da fua guarda, que era hum Turco,maca, mata efte perro,& arremetendo o Turco com hum treçado para o matar,o coitado do velho lhe fugio, ôc deixou a filha

toda efcabellada nas maós do Diogo Soarez. E porque também o mance- bo,efpofo da moça pegou nella cho- rando,© matarão logo aly a elle, & a feu pay com outros íeis ou fere pa- rentes íeus. Ia nefte tempo a gritadas molheres que eftauão na caía era ta- manha que metia medo,& a terra Ôc os ares tremiaõ,ou, por dizer miíhor clamauão a Deos do pouco temor da fua juftiça com que fefez efte ta- manho infulto & defatino. E perdoef feme não contar por extenfo as par- ticularidades que ouue nefte feyo ca- fo, porque o faço por honra do.no-

Terigrínaçoes de

me Portuguez,bafta que a moca fe a. fogou com hum cordão que trazia cingido antes que o fenfual Galego a pudeíTetercomfigo,deque elle difte defpois algúas vezes em pratica, que mais lhe pefara de anão conuerfar do quefe arrependera de a tomar. Deftediaemque ifto paíTou a qua- tro annos nunca ninguém vio o pay defta moça a fora de fua caía,mas pa ramoftraro feu grande fentimento, veftido num pedalo de efteyra rota, pedia efmolla aos feus mefmos efera- uos de que comia, debruçado co ro- fto no chaó. E afsi com muitas lagri- mas o continuou fempre até a hora cm que vio tempo & conjunção pa- ra pedir juftiça, a qual pedio defta maney ra. Vendo elle que então no reyno auia outro Rey, outros gouer- nadores,& outra juftiça (que faõ mu dançasqueotempocuftumaa fazer em todas as partes & em todas as cou fas) fe fàhio de fua cafa com aquelles pobres veftidos com que andaua, Ôc com hua grofta corda ao pefcoço, & com húa barba muito branca,& jaa efte tempo tão comprida que lhe da ua abaixo dos peitos, ôc fe Foy a hum templo que eftaua no meyo de hua grande praça,- por nome QuiayRn- tareu, deos dos affíigidos, ôc toman- do o Ídolo do altar onde eftaua,fe fa- hio com elle nos braços â rua, ôc def- pois de lhe fazer todas as fuás çum- bayas com todas as cerimonias cu- ftumadas ao modo gentilico,bradan- do por três vezes em vozes muyto altas paraque oouuiíTe todo aquelle concurfo de gente q então aly eftaua,

difte

Fernão Mende^Tinto. _ 24.8

diííe chorando: ò gentes gentes, que guntou o que queriaõ, a que todos a

com corações limpos & quietos pro- feffais a verdade defte deos da aflição que em minhas maó$vedes,fahy co- mo rayos por noite chuuoía a bradar com vozes & gritos taó altos que rò- paõ o Ceo,paraque a orelha piadofa do alto Senhor fe incline a ouuir nof. íbs gemidos,& íàiba por elles a razão que temos de lhe pedir juftiça defte eftrangeyro maldito que nunca na- cera,víurpador de noífas fazendas,& deshonrador de noflas gerações, & o que comigo não acompanhar a efte deos que tenho nas maós com cho- rara gemer hum crime tão abomi- nauel, a ferpe tragadora da concaua funda da caía do fumo lhe confuma os feus dias,& lhe efpedace as liias car nes no meyo da noite; as quais pala- uras fizerão nos ouuintes tamanho ef panto,& tamanha impreíTao,que em menos de hum quarto de hora fe a- juntarão aly elle mais de cinquen- ta mil peífoas, com tamanho furor & defejo de vingança, q parecia cou- fa fora de toda a razão, & recrecédo de cada vez mais gente, fe foraõ da* ly direitos a cafa dei Rey, com hum ruydo de vozes tamanho, que as car- nes tremiao com rnedo,& chegando deita maneyraao terneyro dos pa- ços reais,deraõ por féis ou fete vezes ília grande grita dizédo, fae Rey de de dentro onde eftâs a ouuir a voz do teu Deos,que pela boca defte po- bre pouo te pede juftiça. El Rey ou- uindoaquellas vozes & gritas, che- gou a húajanella, & efpantado da- quelia tamanha nouidade, lhes pre-

hua voz reípòderaõ com brados tão altos que parecia que rópião oCeo, juftiçajuftiça de hum maldito infiel, que por nos roubar noífas fazendas nos matou noflos pays,fil hos,irmãós, & parentes. E preguntàndolhes que eraaquelle,lhe reíponderaõ, he hum maldito ladrão, atraiçoado em fuás obras como a maldita ferpente que derrubou no deleitoíò prado o pri- meyro homem que Deos criou. El Rey ouuindo eftas palauras tapou lo go as orelhas a modo de eípãto muy to grande,& lhes diííe, & he pofsiuel que aja ahy coufa femel!'.mte a iífo que agora diífeftes? a que elles todos tornarão a refpondeíjeíle fomente o he mais que quantos fiaceraó na ter* ra,pelo que tem da fua maldita in- clinação & natureza. Pelo qual em nome defte deos da affliçaó te pedi- mos que as fuás veãs íèjão tão vazias de fangue, quão cheyo eftâ o inferno das fuás más obras. El Rey fe virou então para os que eftauâo junto dél- le,& lhes diííe, que vos parece que deuo de fazer nefte nouo & eftranho; caio? a que todos lhe refponderão/e tu fenhor duuidares do que efte deos da afflição te vem pedir, também el- le duuidara de te íuftentar na digni- dade em que eftás pofto. E tornàn* dofe então el Rey a virar para 0 tu- multo da gente que eftaua embaixo» terreyro,lhes diffe, que fe foífem para a praça do bâzar,& que ahy lho mandaria entregar para elles fazeré delleoquelhe pedião; & com iífo-1 defpidindo logo o Chircá da juftí

que

yPerigrindçoh de que era o fupremo nella fobre todos o que el Rey ime màhdà, cuja vonta-

os outros, lhe diíTe que de fua parte foíle, chamar Diogo Soarez,& o en- tregaíTe atado a acjuelle pouo, paraq fizeíTejuítiçadelleà íua vontade,por que temia muyto que fe não fizeífe efta juíliça a Faria Deos delle,

lAT. CXCíl.

Do mais que ptiffòu nefle cafo de *jDkgo Soare^

Chircà da iuftiça fe foy logo a caia de Diogo Soarez, & lhe diíTe que cl Rey o mandaua cha mar, o qual em vendo o Chircaa ficou tao.íobrefaltado & tão fora de fy q por grande efpa- ço lhe não pode refponder,como ho roem que de todo perdera o fèntido, porem defpois que paíTou a força da- quelle fobrefalto, & elle tornou em feu acordo, lhe diíTe que lhe pedia muyto que o qui feíTe por então efcu- íàrde yr com elle, porqfe achauaco grande dor de cabeça, & que lhe da- ria por ifío quarenta bicas douro,a q o Chircaa refpondeo, muyto pouco me das para eu tomar fobre mim ta- manha dòr de cabeça como eíTa que dizes que tés, por iííb.cré que has de yr comigo ou por bem ou por mal, que me obrigas a te falar a verda- de, Vendo Diogo Soarez que não a- uia remédio para fe efcufar a fua ida, quiferaleuar cóíigo féis ou fete cria- dos feus,mas nem iíTolheconíintio o Chircaa dizendo, eu não faço mais q

de he ires tu fó,& nao irem fete, porcj o tempo em que fobias andar tão a- companhado como te eu vy muytas vezesjja pafíbu,& ja fe acabou no dia em que morreo o tyranno Bramaa que era o cano por onde tu te enche- ílede tamanha foberba como pare- ce pelas tuas feas obras que oje te ef- tão accufando diante de Deos, Eto» mandoopela mão, o leuou fempre junto eomíigo, fechado no meyode húa companhia de mais de trezétos homés^ue a todos nos fez ficar aííàz confuíos. E caminhando afsi elle de ruaem rua, chegou aopaííeyuão do bâzar,que he a principal praça ou de fe vendem todas as coufas, onde veyo a cafo dar com elle de rofto Baltezar Soarez feu filho, que vinha de cafa de hu mercador, onde aquel- la menham feu pay o tinha manda- do arrecadar hum pouco de dinhey- roque lhe deuião, o qual vendo afsi leuar feu pay,fe apeou rijo do caual- lo em que hia, & lançandofe aos feus peis lhe diíTe chorando,que coufa he eítafenhor, ou porque vos leuão de- ita maneyra? a que elle refpondeo, preguntao a meus peccados,que elles to diraó,porq te affirmo filho meu,q vou ja de maneyra que tudo me pa- rece íonho. E abraçandofe ambos e* ftiueraó afsi por hum grande efpaco chorando hum co outro, ateque*o Chircaa mandou ao Baltezar Soa« rez que fe afaítafTe,porem elle o não fez, porque fe não podia defapegar deíeupay,masos miniftros o tirarão d&ly por força, & lhe deraó hum ta- manho

Fernão Mendè^into. 249

punho empurraÓ.qUe «ffoechurf mais do q te valeo o rouyto o.jroá

na cabeia, ôc fobre iííò lhe dei ao muytas pancadas,de que o pay cahio com híí vagado eímorccido no chão, & pedindo hua pouca de agoa lha não derao.ao q elle defpois q cornou em fy letiantando as mãos ao Ceo diflè com muitas lagrimas, Sr iniquir iates obJcruit»erisPomintf9Vomitte quis fuftinehh} mas confiado eu meu eter- no Deos no preço infinito do teu prc •cicio Tangue que por mim derrama- írenaCruz poderey dizer muytoa- foutamente, Mifcrkordits Domini in ttttrnum cantabo. E chegando com grande affliçaó â vifta de hum pago- de ondeei Rey o mandaua leuar,di* zem que quando vio tanta gente que palmou, & defpois que efteue afsi hum pouco rufpenfo, olhando para hum Portuguez, que lhe coníintiraó quefoíTe com elle para o animar & esforçar na lhe diíTe:Iefu,todos ef- t3s me accufaraò diante dei Rey? a q o Chircaa refpondeo, náo he ifto tempo de te lembrar iflb pois es dif- creto,& entendes qual he a condição dopouo defconcertado q fempre fe- gue o mal,a q naturalmente fe incli- na. A que Diogo Soarez chorando diíTe,bem o vejo, & bem entédo que cfie.fcu defeoncerto procede de meus peccados. Pois, fabe lhe tornou o Chircaa,q efte he o pago que elles & o mundo cuítumão de dar aos q na vida foraó taõ eíqueeidos do temor da juftiça diuina como tu foíte,& pra zaaDeosqtedè graça para q nefte pequeno efpaço de vida te arrepen- das do cj fizefte, ôc quiçá q. te valerá

agora deixas poç herança aquém porventura te manda matar. Aquy posDiogo.Soarez osjoelhos no chão, ôc os olbgsçno Ceo, & co muytas la- grimas difíh: Senhor íeín Chrifto pe- las dores da tua fagrada paixão te pe ço q permittas meu Deos por quem és,q na accuíação deites mil caens esfaimados fe íatisfaça em mim p ca- Tiigoda tua diuina juítiça,porque fe não perca o muito q naValuaçap minha alma de tua parte pufeííe ferri to eu merecerj&iubindo pelas efca- das do terreyro acima me affirmou efte Portuguez q hia elle q a cada- de grão beijaua o chão & nomeaua o nome de íefu três vezes.Tanto que chegou a todo cima o Mambogoaa, q tinha o idolo nos braços, incitando o pouo brados muito altos,lhç dif fe,o q por hora deite deos da aflição q tenho em meus braços não apedVe- jar eira ferpéte maldita, os miolos de feus filhos fe confumão no meyo da noite,porq bramindo por pena de ta- manho peccado fe juítifique nelles a direita juíliça do alto Senhor, Após as quais palauras foraò tatás as pedra das fobre o padecéte Diogo Soarez cj em menos de hu Credo ficou foter- rado debaixo de húa infinidade de pedras & feixos,os quais fe arremeda não tãto defatjno q muitos dos 5 as tirauão ficarão tabe efcalaurados. E daly a húa hora tirarão o pobre do Diogo Soarez debaixo das pedras outro tumulto de gritos Ôc voza- rias & o fizeraó em muitos pedaços, c] os moços, a cabeça & as cri-

1 1 pas

'Perigrlntiçoes de

** trazião arraftando pelas ruas,a 3 Bramaa, mas efta he a condição dos

toda a gete daua efmolla como a hua

obra muyto pia &; muyto fanta. El

Reymandandolhelogo dar na caía

para lhe tomarem a fazenda,foy ca*

tftónha a defordé pela cubica qleua-

uáó aquelles caés esfaimados, q nem

tel-hás lhe deixarão nos telhados, &

j>or fe não achar quãt© fe prefumia q

tinha,meteraó a torméto todos os ef

trauos& criados Teus com tamanho

txceíTo de crueldade que fícaraò aly

mortos trinta & oito em q entrarão

féte Portuguefesõ, innocentemête pa

dêceraó pelacouíà de q não fabião

parte. E em todo efte defpojo fe não

acharão mais que fós feifcentas bicas douro,q faó trezentos mil cruzados, fera mais outra coufa algúa, fe não pecas ricas Ôi mouelde caía, mas pe- draria nenhúa- por onde fe afíírmou q Diogo Soarez a efte tempo a tinha toda enterrada, de q nunca fe po- de íaber parte por mais exames que fobre iíTo fe fizeraó; porem, fegundo defpois íoube pelo dito de homés q algúas vezes lha viraõ no têpo q ellé eftauaem fua profperidade, íe affir- ma q pelos preços daly da terra va- lia mais de três contos douro. E des- fia maneyra acabou o grande Diogo Soarez cj a fortuna tanto tinha aleuã- tado naquelle reyno de Pégu q che- gou a ter titulo de irmão dei Rey,q he aly o mais alto & fu premo de to- dos,com duzentos mil cruzados de Téda,& fer capitão gerai de oitocétos mil homens, Ôc gbuernadôr fupremo

eros dos quacorze teynos cj entào0nhoreaua o Rey do

beês mundanos, principalmente dos mal aquiridos , ferem fèmpre meyo & caminho de defauenturas.

.;;:.. |.r»tríj

(AT. cxçiu.

■forno o Xemindoo vejo fobre o

Xemim de Qatão& o que

dabjfoceâeo.

Ornando agora ao Xe * mindoo de que haja muito q fe não trata. Crecédocada dia mais nefte tyrano & cubico* fo Rcy Xemim de Qataó as cruelda- des & astyrannias q vfauacó todo o género degéce, matado & roubando todos os dias toda a forte de homem que lhe parecia que tinha dinheyro, ou coufa de q fe pudeíTe lançar mio, veyoifto em tanto crecimento qle affírmou q em fós fete mefes q paci- ficamente poíTuhio efte reyno Pègú> matara féis mil mercadores & homés ricos, a fora fenhores antigos que a modo de morgados poiíuhião os bees da coroa. Pela qual caufaera tão mal quifto de toda a gete,c] a ma- yor parte dos que trazia comíigo Ih* íugiraõ para o Xemiodoo,o qual ne- ffte tempo tinha por fy as cidades de Digum, Meidoo, Dalaa, & Côu>- íão, ate os confins de Xaraa, das quais abalou a cercar efte tyrãno hum exercito de duzentos mil homês & cinco mil elifantes. E chegando vifta da cidade Péguu, onde pe lie 'então reíldiacom toda iua corte, a,

cercou

cercou toda em roda de tranqueiras & vallos muito fortes, & lhe deu ai- gús aíTaltos, mas não a pode entrar tão facilméte como lhe pareceo,pela grade reíiftécia q achou nos de den- tro. Pelo qual mudado o cófelho co- mo difereto q era,aftentou manhofa- mete tregoas co tirano por vinte dias com algíias condições, das quais íoy hua, q fe no termo deftes vinte dias lhe deíle mil bicas douro q eraó qui- nhentos mil cruzados, q deíiftiria da pretéfaò & direito q tinha no reyno, Sc tudo iíto,comodigo,manhofanjé- te,porq entendeo q por efta via,o ré- deria mais a íeu íaluo. Começado a correr o tépo das tregoas, ficou tudo quieto de húa parte & da outra,& os de dentro cos de forafe começarão a comunicar mifticaméte,& neííes dias deita quietação quádo vinha duas ho rasantemenháíé tocauao da parte do Xemindoo muitos eftrométos fua Lies ao feu modo, ao dos quais to- da a géte da cidade acodia acima aos muros a ver o q aquillo era,os de fo- -a então fazédo calar os inftrumétos e daua pregão húa voz muy to rífte & fentida por facerdote tido ia opinião de todos por home fanto, ) qual dezia: O gétes, gétes, a q natu- eza deu orelhas para ouuir, ouuy a oz deite capitão íanto Xemindoo, fpelho claro por que Deosvos ma- la reftituyr na liberdade primeyra evoftodefcanço,oqual a todos af- i como eftais vos amo efta & manda a parte do Quiay Niuandel deos as batalhas do capo Vitau.qningué luãte mão cócra elle, contra efte

Fernão Mende? Tinto.

íanto ajuntamento zelador do pouo Péguu, & irmão no fangue do mais pequeno de todos os pobres, fopena q o q for cótra efte exercito dos fer- uosdedeos,ou for em confentiméto defe lhe fazer algú mal, fera poriíío maldito, & feyo, & negro como os filhos da noite q na baba irofa da fua peçonha dão bramidos de raiua cruel,tragados nas ardentes genuínas

do dragão da difcordia,a quem o ver dadeyro fenhor de todos os deofes amaldiçoou perpetuaméteJE aosbé- auenturados q obedeceré a efte pre- gão,có obediência de Tanta irmáda- dQ,fc lhe outorga perpetua paz nefta vida acompanhada de muytos beés Sede muy tas riquezas, & defpois da morte fua alma íerâ tão limpa & a- gradauel a Deos como as dos fantos q paftaraó bailado nasrefteas do foi ao defeanço celefte do Senhor pode- rofo, E tornandofe após efte pregão a tocar de nouotoda aquellavoza- ria de inftrumentos, era tamanho o eftrondo Sc o medo que ifto fazia a os ouuintes, & tamanha a impreftaó que lhes fez nos coraçoens, que em fós fete noites que ifto íè cótinuou fe paftaraó para o arrayal do Xemin- doo paftante de feftenta mil peftbas, porque tanto credito dauão todos a aquillo que ouuiaó como fe lho di[- fera hum anjo que viera do Cco.Mas vendo efte tyrãno Rey cercado,q ef. tes pregoes lhe eraó tão perjudiciais que elles podião vir a íer a fua total deftruyçao, quebrou as tregoas aos doze diasj Sc tomando confelho cos feus fobre o q nifto fe deuia de fazei

n-2

lhe

'Wf!i í\

lhe aconfelharaó que por nenhú mo- do fe deixaíTe eftar cercado, porq fe- cundo a gente eftauajâ amotinada, em menos de dez dias lhe auia de fugir toda; pelo q o milhor ôc mais acertado confelho era pelejar co Xe- mindoo em capo antes q fe elle fizef. fe mais poderofo. E determinado ne fte parecer,fe fez logo preftes para o por por obra,& dahy adousdias húa antemenham fahio por cinco portas com oitenta mil homés q inda então tinha cófigo,& arremetendo aosini^ migos com grande fúria, Ôc grandes eflrondos de Vozes &gritas,elles?que nãoeftauâo defcuydados os vieraò receber muyto esforço,& entre to dos fe trauou húa briga taó cruel, ôc pelejada com tanta vontade,que em efpaço de pouco mais de hora Ôc me- ya q a mayor força delia durou,mor rerão de ambas as partes paífante de quarenta mil homés, no fim do qual tépo o Xemim de C,atao nouo Rey foy derrubado do elifante em q an- daua de húa arcabuzada que lhe deu hum Portuguez por nome Gonçalo Neto natural de Setuuei, pela qual caufa toda a mais gente fe acabou de render,& a cidade íê entregou apar- tido de lhe ficarem a todos faluas as vidas Ôc as fazendas; Ôc o Xemindoo entrou logo dentro nella, ôc no mel- mo dia íe coroou por Rey de Péguu na varella grande,hum fabado vinte ôc três dias de Feuereyro doanncrde 155 1. Eao Gonçalo Neto pelo que fizera mandou dar vinte bicas douro q faó dez mil cruzados, ôc aos mais Porcuguefefj que eraó oitenta, deu

^Peúgrinàçoh de

cinco mil cruzados, & lhes fez muy- tas honras,& deu miiytas liberdades na terra, ôc lhes quitou por três an- nos todos os direy tos de fuasfazen- das,que deípois fe lhesguardou muy to inteiramente.

CJT. CXClíil.

T)o quefe^o Xe mindoo deípois de

fer coroado por Tiey de Tègnu^

como o (Jbaumigre colaço do %ejy

do cBramaa veyofobre eÚe com hu

grande exercito £5» ctofuccej-

fo que teue,

Endofe ò Xemindoo coroado Rey em pé- guu,& íenhor pacifico de todo o reyno,etrou em differétes penfamé tos do q ti u era o Xemim de Catão quãdo íe vio no meímo eftado,porq eíle Xemindoo a coufa em q pnmey ra Ôc principalmente entédeo foy em trabalhar todo o pofsiuel por cófer- feruar a Republica em paz&juftiça húa tamanha quietação ôc intei- reza, q nenhú grande ouíaua a leuã- tar os olhos para nenhú pequeno po| muyco pequeno que foífe; & em tu* doo mais que tocaua ao gouernodc reynoguardaua húa tamanha virtu- de Sc verdade;q os eílrangeyros qu< enrão aly fe acharão, fe efpantauác muyro, porque confiderando bem í paz>quietaçaó1 & conformidade d( todo pouo, era para eaufar efpanto Correndo afsi eíle reyno nefte ditòí*

eftadí

eítado por efpaço de três annos& meyo/endo informado o Chaumi- grem colaço do Rey Bramaa que o Xemirnde C,atão matou, comoa- tras fica dito,q pelos aleuantamentos & guerras que defpois da íua vinda ouuera em Péguu, era morta a prin- cipal gente do reyno, & q o Xemin- doo que nelle então reynaua, eítaua muyto falto de todas as coufas necef farias para a defeníaó delle,determi- nou tentar de nouo a mefma empre- fa em q antes, pelo fuccelTo da morte do íeu Rey fe tinha perdido. E para ifto ajuntou com feu foldo hu groíTo campo de géte eftrangeyra de diuer- fasnaçoés,a que pagaua a tincal dou- ro por més,cj da noíTa moeda faó cin :o cruzados. E aos noue dias de Mar -o do anno de 1552. abalou do Tan- ;uu,q era a fua pátria, com hnm exer itode trezentos mil homés,dequc >s cinquenta mil íómente eraó Bra- naas, & todos os mais eraó Moés, -haleuSjCalaminh^Sauadis, Pam- rus,& Auaas: afsi que deitas féis na- oéseraamayor parte de todaefta ente,as quais habitaó pelos rumos e Lefte & Leínordefte o fertão de- esreynos,em diftancia de mais de uinhentas legoas,como íe pod# ver um mapa,fe a fua graduação eítiuer crdadeyra. O nouo Rey de Péguu emindoo tendo nouas certas defte )derque vinha fobre elle, fefez pre es para lhe fayr ao encontro, com •opoíitodelhedar batalha,& para :o ajuntou nefta cidade onde então bua hum groífo campo de noue- ntos mil homes, porem tudo gear

Fernão Mende^ Tinto. Zfl

te Pégua,que de natureza he fraca, & para muyto menos q toda a outra de que tenho tratado. E húa terça feyra quatro dias de Abril ao meyo dia, iendo auifado q o campo dos inimi- gos eítaua alojado ao logo do rio de Meleitay doze legoas daly,fe deu ta- tá preíla que naquelle mefmodia & noite íeguinte toda a gente foy poíta em ordenança, poYque como de mais tempo eítaua preit.es, & exerci- tada por feus capitaés,não ouue muy to que fazer em a ajuntarem, & ao outro dia âs noue hora? fe abalou to- do eíte poder,& marchando aofom de infinito? eítromentos de cruerra não muyto apreíTado, fefoyalojar aquella noite daly duas legoas junto do riodePontareu, donde nãoquiz paífar mais adiante, & ao outro dia á tarde húa hora antes do Sol poíto^ Bramaa Chaumigrem lhe veyoaly dar viíla deíy com hua ala de gente tão groífa que oceupaua quaíi legoa &mtya)emqueauiafetenra mil de eauallo, & duzentos & trinta mil de pè,& féis mil elifantes de pele/a.a fo- ra quaíi outros tantos em que vinha a bagage & os mantimentos. E por- que jânefte tempo era quaíi noite/e alojou ao longo da ferra,por ficar afsi mais feguro. Aquella noite fe paíTou com boa vigia, & grandes eítrondos de vozarias & gritas de ambas as par- tes,&quando ao outro dia amanhe- ceo,que foy hum íabadofetedias do mes de Abril do anno de 1552. âs cinco horas da menham, eíles dous exércitos fe vieraõ chegando para junto do rio com difTerentes deter- * 4 3 minaçoési

*P erigriwçoes de minaçoés, O Bratma para pafíar o do a alcance por fepaço de quafi me^

yao & pòrfe da outra banda do rio numtefo que a terra fazia junto de húa nbeyra,& o Xemindoo para lho defender; íobre a qual requeftaouue algúas efcarainuças em que morre- rão de ambas as partes, mas não que paíTaflem de quinhentas peílbas,& com ifto fe gaitou a mayor parte da- quelle dia todo. Porem o Chaumi- gjem ganhou o lugar que precendia, & nelle fe deixou eftar toda aquella noite com boa vigia, & com grandes luminárias de fogo; & tanto que ao outro dia foy menham clara, o Xe- mindoo Rey dos Pegus aprefentou batalha aos da parte contraria, os quais lha não refutarão, & trauando- íehus cos outros com a fúria q o cruel odio traz comíigo,as duas diãteyras, cm que vinha a principal gente de ambos os exércitos fe tratarão de ma neira, que em pouco mais de meya hora o campo todo ficou aíTaz acom- panhado de corpos mortos, com que ospégús começarão a moílrar fra- queza, vedo então o Xemindoo que os feus,por eftarem muyto feridos, hião perdendo muyto do cãpo,os fo- correo com corpo de três mil eli- fances, com que deu nos fetenta mil de cauallo canto fem medo, q os Bra maas cornarão a perder tudo o que tinhaó ganhado. Maso Çhaumigre como mais pratico na guerra, enten- dendo o por onde então íe podia ga- nhar, fingio q íe lhe hia retirando, a modo de vencido, o q o Xemindoo não encédeo, mas como defejofo da vitoria esforçando os feus,foy feguin

yo quarto de legoa, poré o Bramaa tornou então a voltar com toda fua. gente,&deu nelle com grandifsimo impeto,& com húa grita tão efpan- cofaquenão fomente fezcremer os homés,mas também a terra, & todos os outros elementos, com q a peleja fe tornou a renouarde tal maneyra que em muyto pequeno efpaço o ar íe vio ardendo em fogo, & a terra a- lagada em fangue,porque os capitães 6c fcnhores Pegus vedo feu Rey tão metido na força da batalha, Sc com moftrasjâ de vencido, abalarão fem ordem nenhúa para o focorrerem, o que o Panoufaray irmão do Bramaa também fez com quarenta mil no- mes^ dous mil elifantes, co qual en contro a fanguinolenta briga íè acé- deo de tal maneyra que não ha pala- uras q na verdade fe poíTa contar, & por iíío não direy mais fenãoque fendo pouco mais de meya hora de fol,o campo dos nouecentos mil Pè- guus foy de todo roto,com mo"te,fe. gundo ahy fe diffe, de quatrocentoi mil delles,& todos os mais, ou a ma yor parre deiles aflaz feridos,& o X< mindoo por cófelho dos feus,defàpa' rcceo de entre elles. E ficado então ( capo pelo Chaumigré, elle naquell< pequeno efpaço q ainda reftauad< dia íe coroou por Rey de Pègú, a meímas irííignias reais deeítoque,c< roa,& cetro q foraó do Rey Brama < o Xemim de C,ataó matara,& pori ja a eftc têpo era quaíi noite íe nã< entédeo em mais que na cura dos fc ridos,& na vieia do campo.

CAP

Fernão Menxíe? Tinto,

cjt. iXÇV.

*De bumgrojp) motim que ouue no

campo deíle nono TÇej ^ramaa,

& da caufa porque fe leuatou,

&> dofuccefío delle.

Amo que ao outro dia foy menham clara,to~ dos os vencedores Tol- dados, afsi os íaõs co- mo os feridos fe occu- parão no defpojo dos mortos,de que muytos ficarão bem ricos,& gran- diísima quantidade de peças de ouro Sc de pedraria, porque he cuftume defta gentilidade,como cuydo que ~jâ tenho dito,leuarem todos -comfigo á guerra coda»* as riquezas quantas pof íúem. E defpois que os Toldados fi- carão nefta parte bem íãtisfeitos, o nouo Rey defte mifero reyno abalou daly do lugar daquella vitoria para a cidade Pégu que cftaua daly pou- co mais de três iegoas, & naoqueré- do entrar nella aquelle meTmo dia por alguns reTpeitos que aquy Te de- clararão, Te alojou a vifta delia, em diftancia de pouco mais de meyale- goa, em campo que íe dezia Sun- day patir, onde deTpois de alojado promeo na guarda das vinte & qua- tro portas.mandando pòr a cada húa delias hum capitão Bramaa com qui- nhentos de caualío,& aquy Te deteue cinco dias Tem acabar de Te reToluer em entrar na cidade, pelo receyo q tinha do íaco que os eftrãgeyros lhe :'requerião, &a qlhe elle eftaúa obri-

gado por hum concerto que no Tarx. guu fizera com elles, & como he cu- ítume ordinário da gente da guerra queviuepor Teu íòldo não terref- peitoaoutra couía mais que ao in- terefie que eTpera,vendo eítas Teis na- ções efta dilação dei Rey em entrar na cidade, que ellas muyto mal io- frião,Te vieraó crés delias a amotinar, por conTelho de hum Portuguez que andauacom elles,por nome Çhriftc.. uão Sarmento natural de Barganca, homem de eTpritos altiuos, & muy- to bom capitão & esforçado de Tua peíToa; o qual motim fov em tanto crecimento que ao Rey Bramaa,por Te não perder de todo, lhe foy força- do retirarTe para hu pagode de gran- des officinas,óde fe fez forte cos Teus Bramaasare o outro dia as noue ho- ras que o negocio por meyo de tre- goas teue húa pequena de quietação, na qual el Rey lhes defeubrio Tua tenção, dizendo em altas vozes de ci- ma do muro paraque todos o ouuif. Tem. Muy to esforçados capitães & amigos meus, inda que não muyto conformes |a- paz que no Tanguu me juraftes, mãdeiuos chamar a efte lanto jazigo dos mo'rtos, para nelle com juramento foléne vos defeubrir minha tenção, da qual aquy em joe- lhos^ com as mãos aleuantadas ao Ceo tomo por teftemunha o Quiay Kiuandei deosdas batalhas do cam- po Vitau,& lhe peço que entre vos Sc mim Teja juiz defte caTo, & me tolha a boca Te vos mentir no que vos c- go. Muyto bem me lembra a pn. . mefla que vos fiz no Tanguu acerca II 4 do

^Peregrinações

do Taco deita definquieta cidade, afsi por cuydar que o voíTo esforço foíle miniftro da minha vingança, como por íatisfazer com voífa cúbica, a q fey que por natureza fois muyto in- clínados,pela qual promeíTa, de qvos dey por penhor a minha verdade,c5 feflb aue eftou muyco obrigado a cúprir mito minha palaura, mas quã- do me ponho a coníiderar nos incò- ueniemes que para iíio cenho, & na eftreica conca que diíTo ey de dar dia te da direyta & rigurofa juíliça do al- to Senhor,vos confeíTo q temo muy- to tomar fobre mim hum tamanho p'efo,pela qual çaufa a mefma razão me eíta dizendo que fique antes em falta cos homens, que em ódio com Deos,poisnio hejuílo que paguem os innocentes peio que deuem os cul- pados,dos quais eu eftouja bem (a- tfsfeito com a morte que fe lhes deu batalha paíTada,da qual vós todos foftes miniftros, Pelo que vos peço muyto como a filhos de minhas en- tranhas que auendo refpeito a eíta minha boa tenção, nao queirais atU çar efte fogo em que minha alma fe ha de queimar, pois vedesquao jufro he o que peço, & quão injufto fera íiegardefmo. E porque de todo não fiqueis íem a voíía paga, eu contri- buireyemtudooque vos a vós pa- recer razão,& vos íatisfarey parte de- ita falta com minha fazenda,peílba, reyno,& eftado. Vendo os capitaens deitas três nações amotinadas ajufti- ficação dei Rey, & as promeíTas que lhes fazia, fe lhes renderão todos, Ôc lhe prometerão de citarem pelo quê

elle quifeflejcom tudo lhe pedirão q fe lembraíTe do que os foldados da- quy pretendiáo, que era neceíTario teríe conta com elles, ao que el Rey lhe refpondeo que tinhaó razão, & q em tudofe conformaria co que lhes a elles bem pareceííe. E para fe èfcu- farem diíferéças, fe refumiraó todos em tomarem juizes neíte cafojpara o qual os do motim apontarão por fua parte q ouueíTe três juizes, & elRey apontou pela fua que ouueíTe outros três, que por todos auiaó de feríeis, porem que deites féis ou três auiao de fer religioíòs, Ôc os outros três de naçoés eítrangeyras,porque afsi fica£ fe o juízo mais fem íofpeira. Deter- minado ifto afsi entre todos, fe con^ certa raõloigo que os três juizes reli- gioíòs foíTem três menigrepos de hu pagqde q fe dezia Quiay Hifarom, deos da pobreza, & nos outros três juizes de naço«s eítrangeyras fe or- denou que felançafTem fortes entre el Rey & os amotinados, fobre qual dellesefcolheriahú ou dous por fua parte>& prouue a noífo Senhor que coube a el Rey por forte eícolheros dous,porque elle,por permiífaó diui* na os efcolheo ambos Portuguefes dos cento & oitenta que então eíta- uão na cidade, hum dos quais foy Gonçalo Pacheco feitor do lacfle dei Reynoílo Senhor, homem fidalgo nobre,& de muyco boa confciencia, &ooucro hum mercador honrado por nome Nuno Fernandez Teixei- ra,que eíle Rey conhecia do tempo do Rey paííàdo,& que deile era tido em muyto boa conta. E os capitães

do mq-

Femao éMendez^Pinto. 2?j

do motim efcolheraõ também logo que daquy refultou chegou a tanto>

outro cftrarigeyro que eu não foube quem era. E oócercado ifto defta ma- neyra,fe mandarão logo chamar os juizes louuados para erfeituarem efte negocio,porque temeo el Rey bulir- fe daly fem elle ficar primeyro con- cluído, para que afsi os pudeífe def- pidir a todos pacificamente antes q entraííe nacídade,porque arreceou q feelles entraífem lhe não manei - ueífem verdade. E para ifto,aquelÍa mefma noite á meya noite mandou el Rey hum Bramaade cauallo ao bairro onde poufauão os Portugue- fes,os quais eftauão com tanto rece- yo do íaco,& da morte de todos co- mo os rnefmos Pèguus. Chegado o Bramaa â cidade, ôc pregueando em voz alta (por fer afsi ira cuftume quando vem da parte do Rey) onde viuia o capitão dos Portuguefes,o le* uaraó afua cafa, lêm íè íaber o que podia fer ifto. E pofto o Bramaa an- te elle lhe diíTe, he tão próprio á na*" tureza do alto Senhor que crioU o fir* maniento de todos os ceos fazer ho- més bõs para remédio de- males, co- mo do aduerfario dragaò criar em íeu peito efpritos de motim inquieto para eftoruar a paz que nos conferua em fua ley. Hum mao homem da nação de voíoutros,botando hua faif ca do feu infernal peito, bafejada pe- la fornalha da maldita difeordia, a- motinou três nações eftrangeyras de Chaloés,Meleitais,& Sauadis, no ca-

que o capo efteuequafi de todo per- dido, cô morte de três mil Bramaas, & a peííoa real fe vio pofta em tanto trabalho &perigo,quelhefoy necef fario retirarfe para riu forte, no qual efteue três dias,& inda agora fica nel- le fem oufar de fe fiar de nenhúa na- ção eftrangeyra. E para remédio de- ita definquietaçao quizDeos, que he pay da fanta concordia,eípirar no pei to dei Rey que fofreffe efte mal co- mo prudente, paraque afsi fe pacifi- caíTe o tumulto & a reuolta deftas três inqui eras naçoçs que habitão no agro das ferras dosMoés, aos quais Deos maldiga entre todas as gentes, & para efFeito defta paz & quietação fe fez hum concerto entre el Rey ÔC os capitães dos amotinadosjurado de ambas as partes, que el Rey por liurarefta cidade do íàco q era pror metido aos Toldados lhes daria de fua fazenda, o que féis homés, juizes deputados para efta caufa, determi- naíTemporfua fentençajdos quais ós quatro ia eftão, ôc para a copia dos féis fer cheya não faltão mais que tu ôc outro Portuguez que el Rey efeo^ lheo por fua parte, cujo nome v£«ã eferito nefta carta;pela qual feras cer- to difto que te digo,& logo lhe me- teonamão hua carta que trazia do Rey Bramaa,a qual GonçalloPache co tornou em joe!hos,& a pós na ca- beça com huas cerimonias exteriores detãta cortefiaque c Bramaa ficou

podei Rey meu fenhor, de que foy ^ muyto latisfeito, ôc diífe, bem fabia caufa a maldade ôc a cubica do amu- el Rey meu fenhor quem tu és, pois tinador Ôc dos. amotinados, Ôc o mal te eícolheo por juiz da fua honra, ôc

da fua

tPerigrindçoes de da fua fazenda. GonçalloPacheco prefente de muytâs peças ricas para

leo logo acarta perãte todos os Por- tuguelês, que a ouuiraó em cos barretes nas mãos, a qual dezia afsi. Amigo capitão Gonçallo Pacheco, pérola roxa ante meus olhos,táo vir- tuofo no foííego da vida como o mais, fanto menigrepoque viue no matOjeu o antigo Chatimigrem no- no Rey dos quatorze eftados da ter-» ra,que por morte do fanto Rey meu fenhor Deos agora me entregou, te enuioorifòda minha boca, com te fazer tão agradauel a mim como a- quellesquenosdiasde fefta aflento comigo à minha mela, proíopus em minha vontade,pelo que de ty tinha fabido,feresjuiz nefte caio paraq te mando chamar,& o meu grade ami- go Nuno Fernádez Teixeyra paó de ouro limpo de muytos quilates^pelo qae cumpre virdes logo ambos ter comigo para fe erTeituar ifto quede vos fobre todos confiey, E do mais que toca aofeguro de voflàspeífoasi pelo receyo que fey que tereis da re« uolta paííada,porefta,jurada no pei- to de minha verdade,como Rey vn- gido por Deos, vos ey por feguros com todos os mais da voíla naçaõ,& crentes no Deos da voíla verdade. iLida efta carta com grande efpanto dos que a ouuimos,aíTentamosTodos que vinha do Ceo por permiífaó di- urna para no fia quietarão & fegtírã- .Ça de noífas vidas, de que até então eftauamos bem duuidofos. Goncallo

lcuarem a el Rey,& aquélla mefma noite feforaò em companhia do Bra maa que trouxera a carta, hua hora ante menham, porque o tempo & a preíTa de el Rey não fofri^o nenhúa dilação.

CAT. ÇXQVl

Vafentença que derao os féis jui- zes nesle cafo^ ç> da entrada que fe^o (Jiaurnigrem m cidade de Tèguu.

Ônçallo Pacheco & Nuno Fernandez cos anais Portugueíès che garaó ao arrayal hua hora de foi, & el Rey os mandou receber por Gibrai- daofèdaa fenhor doMeidoo, hudos principais capitães Bramaas que aly tinha comíigo, & de que muyto fe fiaua,o qual vinha acompanhado de mais de cento de cauallo, com féis porteyros de maças. Efte os tomou comfigo,& os leuou ao pagode onde el Rey eítaua recolhido,o qual os re- cebeo a todos com muyto gafalha- do,&ao Góçallo Pacheco & ao Nu- no Fernandez fez muyto lobe;a$ ho- ras: &,deípois de praticar cotnelles em alguas coufas de feu gofto, lhes tornou a refumir de nouo o impor- tante caio paraque os mandara cha-

mar^ lhes encomendou muyto que Pacheco & Nuno Fernandez mais ^fe inclinaíTem mais ao reípeito dos outros dez Portuguefes que para ifto capitães que ao feu, porque lhes affir foraò eleicos, ordenarão logo hum maua que leuaria ríiíTo muyto gofto,

&lhc

Fernão Mcnde^Pinto. i*>a

& lhe diííe outras palauras a efte mo- logo, & para mais fuperabundãncia,

do. E daquy os mandou logo leuar pelo mefmo Bramaa a húa tenda on- dejâ os outros quatro deputados el- tauao efperando por elles, co tiíou- reyro mór,& dous efcriuaens. E def- poisq fizeraó quietar todo o rumor que fazia a gente que eílaua de fora, fe começou detratar donegocio^a- raque aly forao juntos, fobre o qual ouue diuerfos pareceres em que fe ga ftou a mayor parte do dia, mas em fim todos féis vieraõa concluyr,que ainda que por húa parte el Rey, pela promeíTa que no Tanguu fizera a a- quellas naçoens eftrangeyras de lhes dar o faço dos lugares que fc tomaf» íem por guerra, lhes eftaua muyto obrigado a cumprir com ellas fem falta nenhua, todauia vifto também por outra parte como aquella pro- meíTa era em grande & notauel per- juizode innocentes, pela qual fefe ella cumpriíle & pufeíTe em effeito Deos feria muyto offendído. Iulga- uão por fenteca que el Rey pela pro- meíTa que fizera pagaíTe a todos mil bicas douro de fua fazenda de pefo, a contentamento dos Capitães de ca- da nação,& q elles logo em receben- do ó dinheyro íe paífaflem da autra banda do rio & fe foífem liuremente para fuás terras,mas que também pri meyrofe lhespagaíTe a todos tadoò que antes do motim lhes era diuido, & íe lhes deífe mantimento à todos baítantc para vinte dias . Pubricada e.fta fentença, foy aceitada de ambas as partes com grande contentamen- to, & çl&ey mandou q fe cumprifle

depois de lhe íer entregue toda á co- pia do dinheyro, fez outras muycas mercês de fora á todos os Capitães & officiaes das companhias, com q to- dos íe ouueráo por muyto íàtisfeitos. Defía maneyra fe deipidiráo eílas três nações do motim,porque el Rey nuca mais íe quis fiar delias, nem fer- uirfe dellas,porem também ordenou que náo foíle à gente toda junta, mas q fofle repartida em cabildas de mil homés cada cabilda,para q ue alsy ca- -minhaíTcm mais fem foípeita,&com menos força para poderem roubar os pouos por onde paílaífem , & neíla forma íè partirão logo ao outro dia feguinte, A Gonçallo Pacheco , Nuno FernandezTeixeira,por ferem os feas dous Iuizes nèfta íentéça m an- dou el Rey dar dez bicas douro,com que as efportulas,& ò prefente q lhe leuarao ficou tudo bem pago, â fora húa licença eícrita de fua lecra,para q todos or Portugueíes íe pudeílem yr liuremente para â índia cada vez que quiíeííem íem pagarem direyto ni- nhum de fuás fazendas,ò que elles ef- timarão mais que quanto dinheyro fe lhes puder a dar,porque auia três ahnos que à maneyra de reteudos nos detmháo os Reys paífados na quella terra,com aucxacoés Ôc tiranias muy- to grades,corrédo algúas vezes muy- to rifeo de noíTas vidas por caufa dos fuceíTos de que atras tenho tratado. E logo efta mefma tarde fe lançarão muy tos pregoes por homés à cauallo, em que fe notificou que ao outro dia auia el Rey de-entrar na Cidade pa*

cinca-

* '

tperegr

cificamente, pelagrande mercê que peJafua real condirão com grande cufto de fua fazenda lhe tinha feito, &com ameaços de cruéis mortes aos cjue contra ifto foííem. Logo ao ou- tro dia feguinte âs noue horas abalou daquelle pagode onde eftiuera reco- lhido,.^: as dez chegou a cidade, & entrando por húa porta que fe dezia Sabambainhaa,fov nella recebido de hum ajuntamento a modo de pro- çiílaõ de cinco mil íãcerdotes de to- das as doze feitas que ha nefte reyno, por hum dos quais, chamado Cabi- fondo,lhe foy feita húa falla,cujo in- tróito dezia afsi. Bemdito ôc louua- do feja aquelle Senhor que com ver- dade fe deue conhecer de todos por íenhor, de cujas obras íantas feitas por fuás diuinas mãos nos eftão dan- do teftemunho a claridade do dia, Ôc a pintura da noite,com todas as mais magnificências da fua mifericordia obradas em nósjo qual pelos effeitos da fua potencia infinita agradaueis a elle, foy feruido de te conjituyr na terra fobre todos os Reys que a go- uernão,& pois temos para nos feres tu efte feu mimofo, te pedimos íe- nhor que noflasculpas & erros palia- dos te não lembrem mais de oje por diante,porque efte teu trifte pouo fi- que confolado com efta promefla 5 por tua real condição agora lhe fize- res; & também os cinco mil grepos proftrados todos por terra,& com as mãos aleuantadas lhe pedirão ifto meímo,com hum efpantofo tumul- to de vozes,dizendo,concede fenhor &ReynoíTopaz& perdão a todos

nações de

os pouos defte teu íeyriô Péguu,por- que os não perturbe o medo de fuás culpas c|ue diãte de ty cófeflaó publi , camente; ôc el Rey lhes reípondeo q lhe prazia,& afsi lho juraua pela ca- beça do fanto Quiay Niuandel deos das batalhas do campo Vitau. Com a qual promeíTa o pouo todo íè pro- ftrou cos roftos por terra>& diíTe prof perete deos por termo fem conto na vitoria de teus inimigos, porque po- nhas teus peis íobrefuas cabeças. E tocandofe então moftras de gran- de alegria muytosinftrumentos ao íèu modo,inda que barbarifsimos & mal concertados, lhe*pos efte grepo Cabizondo na cabeça hua rica coroa douro Ôc pedraria a modo de mitra, com a qual entrou na cidade gran difsimo aparato ôc triumpho,leuãdo diante de fy todo o defpojo dos eli- fantes ôc carretas,& a eftatua do ven- cido Xemindoopreía por hua grof- fa cadeya de ferro, & quarenta ban- deyras a rafto,& elle hia em cima de hum poderofo elifante com jaezes douro,& quarenta porteyros de ma- ças^ todos ôs fenhores ôc capitães a feus treçados de chaparia dou- ro rica aos hombros, & hua guarda de féis mil cubertados,& três mil di- fames de peleja com, feus caftellos de diuerfas inuençoens, a fora outra muy ta gente que o feguia de ôc de cauallo que não tinha conto.

CAP;

Fernão CAT. ÇXCVll

Como foy achado o Xemindoo, &-

trazido ao cRey "Bramaa ^

mquepajjoucomelle.

Efpois de auer vinte & íeis dias que efte Rey Bramaa eftaua nefta ci- dade Pêguu pacifica-

mente, encendeo logo . primeyro que tudo em fe apoderar das principaes forças do feyno, que ainda a efte tempo eftauão pelo Xe- mindoo fem faberem da fua rota. E defpidindo para ifto algus capitaens, efereueo aos pouoS muitas cartas de amor, em que lhes chamaua por al- go as vezes filhos da minha alma,da- dolhe por ellas perdão do pafíãdo,& prometendo com juramento folen- ne que daly por diante os fuftentaria a todos em paz & quietação, &lhe* faria fempre juftiça em tudo fem lhes lançar nunca peita,nem lhes fazer ou tra òpreflaõ algúa,mas antes em tudo lhes faria: nouas mercês como aos próprios Bramaas que o feruiáo na guerra. Ecom ifto lhe dezia outras muytas palaurasmuy to acomodadas ao tempo, & ao que lhe a elle Com- pria,acreditadas pelos naturais da ci- dade com. cartas que também lheeí- creueraò,em que lhes relatarão lar- gamente as franquezas & mercês q el Rey fizera a todos. A qual coufa a- companhada do que a fama por todas as partes tinha diuulgado, foy de tamanho çfteito, que as forças to-

çJMende^Pinto. 25?

das íe lhe entregarão, Sc fe meterão debaixo da fua obediência, Sc o tnef- mo fizeraõ codas as mais villas, cida- des, eftadòs, ôc prouincias que auia no rey no» O qual fenhorio que efte Bramaa com noua conquifta agora tornou a ganhar, cuydoeu queheo milhor& mais abaftado Ôc rico de ouro,prata,& pedraria que fe pode- achar em muyta parte do mundo. Acabadas afsi eftas coufas tanto em fauordo Bramaa, mandou elíe logo com muyta prefteza por todas as partes muyta gente de cauallo em bufeado Xemindoo^que^omo fe dif íe,efcapara. ferido da batalha pafia- daj o qual foy tão mofino que foy co nhecido num lugar quefe chamaua Fancleu hua legoa da cidade Potem, que diuide a raya do reyno Arracão,. ôc foy trazido com grande aluoroço por hum homem baixo a efte Rey Bramaa,que por ifto o fez fenhor de trinta mil cruzados de rcnda;& man- dando© vir logo perante fy aísi pre- fo comotinha co colar de ferro ao pefcoço,& com as algemas nas mãos, lhe diíTe a modo de deíprezo,venhas embora Rey de péguu , bem podes beijar eíTe chão, porque te affirmo q nelle pus os peis, & por aquy verás quanto teu amigo fou pois te dou efta honra que tu nunca imaginafte, a que o Xemindoo não refpondeo palaura nenhua,& tornando el Rey a motejar do trifte Xemindoo que eftaua diante delle debruçado co chaõJhediíTe,quehe ifto? pafmaite de me veres a mim, ou de te veres a ty em tamanha honra? ou como nãa

fefpon*

TerígHnaçoesJe

re^ondesao que teçregunto? a que òpay &fenhorS: Rey meu,peçouos

o Xemindoo de afrontado, ou de eftar fora de (y refpódeo, íe as nuués do Ceo, & o Sol, & a lua, & as mais criaturas incapazes da falia que Deos para feruiço dos homés criou por pin tura fermofa do firmaméto, as quais nos encobrem os ricos tifouros da íua potencia, puderaó por natureza nozonidoterribel dos feus efpanto- íos trouoés declarar aos q agora me vem da maneira que me eu vejo diante de ty, a grande afflição que a minha alma padece, elles refponde- raó por mim,& moftraraó as caufas que tenho para fer mudo nefte lugar a que meus peccados me trouxeraó; & como tu difto que eu digo não po des,íer ojuiz, pois és a parte que me accufas,&o miniftro da execução de teudefejo, ey por efcufado refpóder por mim,como fizera diante daquel le benigno fenhor, que por muyto culpado que eu fora fe condoerá de liúa íó lagrima que lhe chorara. Ea- posifto caindo em terra de bruços pedio por duas vezes húa pouca da- goa,a qual o Rey Bramaa,para o ma goar mais,mandou que lhe deflè húa íua filha do mefmo Xemindoo que tinha catiua,a que dezião que o pay queria grandifsimo bem, & a tinha nefte tempo do feu desbarato ef. pofada co príncipe de Nautir filho do Rey do Auaa,efta moça em ven- do feu pay da maneyra que eftaua debruçado no chão, dizem que felhc lançou aos peis,& abraçanúofe com elle deípois de o beijar três vezes na face lhe diíTe banhada em lagrimas;

pelo muito que fempre vos quiz, ôc me quifeftes que me leueis afsi como eftou em braços com vofco,paraque nefte amargofo tranfito tenhais que vos conloie com hu púcaro de agoa, ja que o mundo por peccados meus vos negou o refpeito que fe vos de- uia, a que o pay cometendo alguas vezes a refponder dizem que nunca pode,porqxie o grande amor que lhe tinha lhe impidia a falia, & caindo outra vez de bruços no chão,onde en taoja eftaua aífentado, efteue efmo- rccido por hum grade efpaço, pelo q mouidosacopaixáodelle algíísda- quellesfenhoresqeftauao prefentes fe lhesarrafaraó os olhos dagoa, ò 5 vendo o Rey Bramaa5& que eftes fe- nhores erão Pèguus, que antes foraÕ vaíTallos defte Xemindoojdefconfiã, do de fuás lealdades, lhes mandou logo aty cortar as cabeças, dizendo com fembrante irado, ja q tanto vos doeis defte voftb Rey Xemindoo, Jde diate a lhe fazer as poufadas pre- ítes,& vos pagara ege amor q lhe tendes, & crecendolhe com ifto mais a cólera, mandou também Jogo aly matar a moça encima de feu pay porque a vio abraçada cóelle; cruel- dade certo mais que brutal,* mais 6 terina que quer ainda impedir os af- eitos da natureza. E não querendo também mais ver o Xemindoo, o mandou daly leuar ahúa eftreita pn*faó,onde boa guar- da efteue aquel- la noite,

CAP.

Fernão Mcnde^Pinto.

25<5

CAT. CXCF1II.

i

Va manejracom que tirarão apa- decor o-Xemindoor& da morte que lhe der ao.

Antoque ao outro dia foy menham clara, fe deraó por toda a cida- de grandes pregoes paV ra que todo o pouo íe achaíTepreíenteâ morte defte defa- uenturado Xemindoo, Rey que fora de pe^ú, & a razão porqo Bramaa ifto fez foy* porq vendoo elles mor- to acabaílem de defefperarde todo de o poderem ainda era algum tem- po ter por Rey, como todos geral*, mente defejauac&fe ptonofticauão, porque como elle era natural, & o Bramaa eftrangeyro,temião grande- mente quepudefle efte Bramaa por tempo vir aíer tal como fora o pai- fado,que o Xemim de Qatão mata- ra^ qual em quanto reynou foy ini~ micifsimo defta nação Pégua,& vfou elia húa tão defacuftumada cruel- dade,que nuca paííou dia q não mã- daíTe matar & degolar de quinhen- tos para cima, & às vezes quatro & cinco mil,& ifto por cafos muyto Ie- nes^ que por juftiça, fe fora verda- deyra, não merecião pena nenhua. Sendo ja quafí ás dez horas pouco mais ou menos tirarão o trifte Xe- mindoo da mazmorraem q eftaua, defta ■maneyra. Vinhaó logo diante por preparadores das ruas por onde auia de paflar, quarenta de cauallo

com fuás lanças nas maõs, & outros, tantos acras., com efpadas nuas nas mãos.bradando em vozes muyto al- tas^araqu^agente^ueera fem con- to,fizeíTe caminho, apôs eftes vinha húa companhia de homés armados, que,fegundo o efmo dos q os viraó, paííafiáo de mil & quin.hétos, todos arcabuzeyros, &cos murroés acefos. A pes eftes (a que elles eh amauão ti- xe lacauhos.que quer dizer,prepara- doresdaira doRey) vinhaó cento & feflènca elifãtes armados com feus caftellos,cubertos de toldos de feda, os quais todos por ordem de cinco a fileyra fazião trinta ôc duas fileyras. Detrás deftes pela mefma ordem de cinco a fileyra, vinhaó quinze de ca- uallo com bandeiras pretas tintas de fangue,que com vozes muyto altas,a mododepregaò, dezjao: Ouçáo as gentes niiferaueis catiuas de fome, a quem a aflição da. fortuna contino perfegue,o bramido da potencia do braço da ira, executado naquellesq offenderãó feu Rey, para que lhes fi- que na memoria o efpanto da pena que por iííb lhes dão. E detrás deftes vinhaó outros quinze pela mefma maneyra,veftidos núa certa maney- ra de veftiduras vermelhas que ;nas moftras de fora os faziaó allaz medo nhos& malaftombrados, os quais ap Tom de cinco pancadas que dauaó três íinos muyto depreíTa,dezião em vozes altas com tos taó triftes que fa- zião chorar os ouuintes. Efta rigurq- fa juftiça manda fazer o Deos viuo Senhor da verdade,de cujo fanto cor po faó peis os cabelloi de noíTas ca- beças

bc^qurmãda ique morra Xeri Xe- tes armados. É paflândo afs» pelas

mindoo por vfurpador dos eftados dograó Rey Brâmaa fenhordoTã- gnu: aos quais pregoens refpondia a turbamulta da gente que Iria diante com húa braneza de vozes taó altas que metião medo,dizendo, faxio tur que panau aconramidoo, que quer dizer,morra,fem fe ter piedade doq tal cometeo. Detrás deftes hia húa companhia quinhentos Bramaas decauallo. E detrás de todos vinha outra companhia de gente de pé, eípadas nuas & rodellas,& algús com coíTolletcs & fayas de malha,no mc- yo do qual f i.nka o padecente efcan- chado niím magro íindeyro em oíTo, & nas ancas o algoz q o trazia íobra- çado por cima dos ombros. O mife- rauel padecente vinha vertido tão pobremente que as carnes de todo o corpo lhe aparecião, & porprofun* difsimo defprezo de fua peíToa, tra- zia na cabeça húa coroa de palha co- imo barça de ourinol, guarnecida to- da por fora de cafeas de mixilhoens infladas em linhas azuis,& no peíco- ço por cima do colar de ferro com q vinha preío,trazia húa grande quan- tidade de refteas de cebollas; mas quanto vinha deita maneyra, & tra- zia a figura do roíto quafi mortal, não deixaua de moftrar no afpeito dos olhos,que de quando em quan- do aleuantaua,o fer de Rey, com húa brandura tão fèuera no rofto que fa- zia chorar a toda a peíTòa,& em tor- no deita guarda de que vinha cerca- do,hia outra de mais de mil de caual lo entreflachados muytos elifan-»

principaes doze ruas da cidade, em q

auia gente inflnita,chegoujâpor der- radeyroa hua que fedezia Sabam- bainhaa,que era a por onde elle fay- ra (como eu atras diíle) auia vinte & oito dias fômente,quahdo íè foy ver . em campo com eíte Brâmaa. A qual fâyda fez entaó 0 Xemindoo húa pompa 8c hum eirado tão grandiofo & rico, que fegundo o dito de todos os que o viraõ,de que eu tàmbe fuy hum,deuiade ler húa das mayores coufasdaquella qualidade quefe vi- rão em nenhúa parte5da qual de pro- poííto não quiz. dar relação, ou por não me atreuer a poder contar o co- mo paíTbuna verdade, ou por arre-' cear quefe o contaíTe pudefTe fazer algúa duuida na verdade das coufas que conto. Porem como eu vy por meus olhos ambos efíes fucceíTos ainda que encubry a grandeza âo pnmeyro,quiz declarara miferia do fegtindo, paraque neítas tamanhas dnferenças íocedidasem taó poucos dias entenda a gente quão pouco ca- ío ha de fazer das profperidades d^ terra,& de todos os beés que a in- conítante& mentirofa fortuna. Pal- iando o trifte padecente por eira rua doSabambainhaa chegou a cer- to paíTo onde eítaua o no/To capitão GonçalloPacheco,commaisde cem Portuguefesem fua companhia, en- tre os quais eítaua hum que era ho- mem de baixo fangue, & de entendi- mento muyto mais baixo,o qual pa- rece^egundo elle dezia,que fora rou- bado ama dous annos,no tempo qtíè

eíle

Femao Mendez^Pinto. 257

q efte padecentetfe£naua,& fazendo húa hora de vida,para confefTar a ex«

llaè elle queixume dos -culpados no f urto^não fora ouuido comoeHe.qui fera. Efte agora magoado airida di- fto,parecédolhe c} fe vingaua:ech fol- tar palauras necias 6c detneceílarias, tanto q o padecente emparelhou co lugar onde eftaua Gonçallo Pacheco com todos os mais portuguefès,difle vozes muyto altas q todos o ouui- rao, ò ladrão Xemindoo,lembrate quando te fuyfazer queixume dos cj me roubarão minha fazenda, de q me não fizefte juftiçaípois agora pa^- garâs o q tuas obras merecem, porq ainda oje ey de cear pedaço deíTa tua carne, q ey de conuidar dous cães q tenho. O trifte padecente ou- uindo eftas palauras defte homem defatinado, pòs os olhos no Ceo, 6c defpois de eftar hú" pouco como pen- íàtiuofe virou para elle c6 rofto fe- uero & lhe diífe, rogote amigo pela bondade do Deos eme] crés, que me perdoes iíTo q dizes q te fiz, 6c lem- brete ,q não he de-Chriftáo, em pâflb tão trabalhofo como efte em q agora vou,trazeresmeâ memoria coufas da vida paíTada,que a ty não reftauraó a perda q dizes, & amym dãomuyta dor & perturbação, Gonçallo Pache- co ouuindo o q efte homem diíTe lhe bradou q fe caíaíTe,& elle o fez logo, & o Xemindoo fembrante grauc deu a entender q lho agradecia,com q moftrou q ficauâ mais quieto, & pa receq por lhe agradecer també ifto com palauras jâq outra coufa en- tão não podia, lhe diífe, não quifera agora mais,íe Deos fora feruido,que

cellécia dafè em q vós outros credes, q fegúdo tenfiò ouuido algúas vezefc, o voíToDeosne o verdadeyro& todos os outros mencirofqs, O q ou- uindo o algoz lhe deu húa tamanha bofetada q d fangue lhe arrebentou pelos narizes, & acudindo o pobre padecente com as mãos afsi debruça do como hia, lhe diífe; deixame ir- mão aproueicar efte fangue, paraque te não falte em que frijas a carne*, £ caminhando daquy para diante na ordem com q*re vinha^chegouao lu- gar onde feauia de fazer a juftiça, & a efte tempo tão mortal que quaut não daua acordo de nada. Efubido cm hum grande cadafalfo que para ifto jáaly eftaua feito,o Chireâ daju* ftiçade cima de hum como púlpito em vozes miiytoalrasilheieoa kt\~ tença , cuja forma fe continha em muyto poucas palauras que deziao afsi: Manda o Deos viuo de noflas cabeças, fenhor da coroados Reys do Auaa,que morrão falíoXemifí^ dòo por amotinador dos pouos da terra, 6c mortal inimigo da nação Bramaa, 6c batendo nefte paftb iijo com a máo, lhe cortou o algoz a ca- beça de huim golpeio qual defpois que a moftrou a toda a genre,q era fem conto, lhe fez o corpo em oito cjuartos, a fora as tripas, 6c as mais partes de dentro, que íèparadas poç fy fe puferaó noutra parte,& cubrin-» do tudo com hum panno amarellocj entre elles hc do, efteue afsi até quafi íbl pofto que o queimarão da ma- neyra que logo fe dirá.

kk CAP,

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Terigrmaçoesde

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L QDÍJ

tei fe^aP morto iAemmdoo '"rejrw quilhe tontãrá^ & dd maneyra de qurWffiy ' ?ia,

S oito quartos q fe íi- zerão docorpo do Xe- .niindcoxfliuerão piífe- licamcte até ás três no- jeas defpoi.s: do meyo dia à viftade todo o pouojêj aly fe aju ^rainfinnovaísi pela pena q lhe fora fíoita^como por os feus facerdotes lhe nerem câcedido axiparaoj q he o feu jubileupleniísimo^lem reftituiçaõ de furto nenbú. E neíte cerripOjdefpois defe quietar. o tumulto & a vozaria da gente cos pregoes cj; íobre iíTo íè lançarão porhomés a çauallojaraea^ çandoos penas grauifsimas, fe ót- rao por cinco vezes quinze pancadas num fino,ao qual final fayraõ de áh trode húaçaíàde madeyra q eítauâ cinco ou íeis paíTos afaftada do cada- falfojdoze homés com veftiduras pre tas falpieadas de íangué, & cos roíbs cubertos^Sc todos com fuás maças de prata aos hombros>& trás eftes ou tros doze fâcerdores, que elles cha^ mâp talagrepos*, de que algúas vezes diííe q faó dignidades fupremas na- quella gentilidade, & tidos do pouo em reputaçãode homés fantos, após eftes veyo o Xeinini Pocafíer tio do Rey do Braniaa, homem ao q pare^ cia no roftojde mais de cem annos,& eífotambem cuberco de iníigniastri-

«3. -<

íleSj&dercado efe xtee rnininos/pç* quenó&i?camente **«fíidos, coifa (hw treiçakltasde chaparáa^os bomtbros^ o qualrde^)oisq -muitas cerimonias fe debruçou no chaó três vezes,aroo« do de acatamento grandiísimo,difle chorarido,como qíarlaua co defunto. O carne; lanta,de preço mai vgraue.q todos os Reysdo Auaa:perola bran- ca de tantos quilates quantos átomos fe vem nos rayos do Sol, pofto por Deos no cume da hora com cetro de

mando nos exércitos da potencia dos Reys;eu a menor formiga dacuadef penfa, apofentado em grande abun* dancia nos efquecidoside tuas niigar lhas, ôc. tão deífemeLhante ponbaif xeza diante de ty, que de muyjèajio queno quaG me não eqxergo,cíÍBpeí ço fenho? de minhajícabeça' pelo freíco/prádoxm qóe tuáí alma?agor& fe recreya,que me ouças coma&tuás magoadas orelhas pJ que a minha boca cediz nefte publico^, porque fi* quês fatisfeko da fem razão que na (erra fe víou comtigo. O Gretanau Chaumigrem teu irmão príncipe do Sauady & do Tanguu te manda pe- dir por. mim teu elerauo que antes que deita vida te partas lhe queiras perdoar o paífadp fe -por iíTo te deu algum defgoíto, & que logo jiefta hora mandes tomar poííe de toídend reynp,porque elle to larga todóíêtá auer neile.faka algua^ que prote* í!a por mym feu vaftallõ na renun- ciação que te faz delk não ter en- cargo de coofa algõa, &. as queixas que porifTo deres delle no Cepi não lerem ouuidas diante de Deos,

&que

Fernão

&q por pena dodefgoíloq delle ti- uefte aceita ficar no defterro deita vi- da por capitão & olheyro defte teu reyno Pégu, do qual te faz menagé, cójuraméto de fazer fempre na ter- ra o q de lado Ceo lhe mandares,có tanto q do rendiméto delle lhe faças efmolla para fua fuftentaçaó, porque doutra maneyra bem fabe q o não po de licitamente poíTuyr, os meni- grepos ocófintirão, nem na hora da morte o abfolueraó de tamanho pec cado. A q dos facerdotes q eltauão prefentes,q parecia fer de mais auto- ridade q todos os outros refpódeo,co moq fallaua em nome do defunto, q filho meu cófeíTas teus erros paf- fados,de q nefte publico ajutamento me pediíte perdao,digo q de coração te perdoo,& me praz de te deixar ne- fte reyno por paítor deíTe meu gado, taro q me não quebres a deíTe ju ramento, q íerâ peccado úo graue co moq agora me pu feras a mão fem li cença do Ceo, E todo o p.ouo lhe re£ pondeo entaõ húa eípantola voz de alegria, miday cutaraõ, dapanoo dapanoo,q quer dizer, aísi lho coce* de meu Senhor meu senhor. Após if- to fubindofe efte íacerdote no agrem q era o pulpito,diíTe ao pouo, daime daluiííaras parte das lagrimas dos voíTos olhos para minha alma comer por tão boa noua como efta q vos a- gora trago,q o noíTo Rey Chaumi gré fica na terra por võtade de Deos fem Ter em cargo a ningué de nenhúa reftituição,pelo q todos vos deueis de alegrar como bõs & leais, a q todo o cócurfo da gente fez tamanhas mo-

£\dendezTlnto. 258

firas de alegria q batcdo as palmas a modo de quem da graças dezião co bramidos terriucis^exirau opatuu,lou uado fejas Senhor. Acabado iílo, os facerdotes eíle feruor tcmaraõ lo- go todas as partes do defpedaçado corpo do morto Rey,& as leuaraó grade veneração ao terreyro debai- xo,on*de eítaua húa grade fogueyra de fandalos,aguila,& beijoim, couía q parecia de grande cuíto,& põdolhe encima o corpo morto as tripas ôc tudo o mais q de dentro dealefe tira- ra,íhe puíerao três facerdotes o fogo, & hua eftranha cerimonia lhe fi<« zeráó muytos íacrifícios, de q a ma- yor parte foy de carneyros degola- dos. O corpo ardeo toda aqíla noite atèo outro dia pela ménbá,& a cinza delle fe pós é húa caixa de pratà,em cj foy leuada hu folenne ájíiÉâ mérito de mais de dez mià íàcerdotes a hum téplo q fe dezia Quiay Lacafaa,cíeos de mil deofes,onde foy enterrada em hua rica charolla como capella toda cozida em ouro E eíle foy o fim que teue^íte grande & poderofo Xemin doo Rey de Pégu, taó venerado nos dons annos & meyo q reinou,quanto cuydo q o não foy outro nenhú mo- narcha,mas efte he o mundo.

Qomo desie reyno ^Pegu me embar queypara Malaca^ &> dabjpara fapady &- de hum eUunbo ca- fo queabyfoccedeo,

Kki

A morte

*P erigrmaçoes de Morte daquelle bom como de liberdádes,& nos embarca-

Rey de Sião,& o adul- tério daqllamà Ray- nha fua molher, deq atrás dey larga cota fo raó a raiz & o principio de tantas dif- cordiâí^ de caias & taó cruéis guer- ras quãcas ouue neftes dous reinos de Pégu c\ de Sião,as quais durarão três annos & meyo tanto cufto,afsi de fangue como de fazéda,como íe tem viílo no q ategora tenho cócado,cujo fim foy ficar o Chaumigré Rey do Brama lenhor abfoluto ido reyno de Pégu. Poré agora não tratarey mais delle,& daquy por diãte direy o que íocedeo noutras partes até o tépo em qeílemefmo Chaumigré Rey Bra- ma tornou fobre o teyno de Sião taõ groflb exercito de géte quãto outro Rey nenhú nuca ajútou na In* dia,q foy de hu ccko & fetecétos mil homés,& dezaífeis mil elifantes, no-, ue mil da bagage,& fete mil de pele- ja. A qualemprefa,fegundo me def- pois diíTeraó,nos cuílou a nós da nof, la parte duzétos& oiréta Porcijgue- fes,em.q entrarão dous frades de São Domingos q então andauão prega do. Mas agora me quero tornar ao meu propofito de q ha muyto que me apartey.Deípois q eftas reuokas q atras diíTe, foraó todas quietas,Gócal lo Pacheco fe defpidio delia cidade Pègu,có todos os mais Portugueíesq nella eftauamos,a quéeltenouoRey Brama tinha libertadora maneira q atras fica dito,mãdandolhe entregar liureméte fuás fazédas,& fazendoihe outras muitas merces^fsi de honras

mos todos os cento & feííenta Portu- guefes era cinco nãos q nefíe ripo ek tauão no porto de Cofmím, cidade das principais defte reyno, &nellas nos elpalhamos, como peregrinos cj fomos na índia, por diuerfas partes, onde a cada lhe parecia q poderia fazer milhor feu proueito. Eu ou- tros 26. cópanhey ros nos fomos para Malaca,óde defpois q chegamos,me detiue eu húmés íòméte, & me tor- ney a embarcar para lapão hu lor ge Aluarez natural de Freixo de eípa da cinta, q em húa«ao de Simão de Mello capitão da fortaleza hia para de veniaga, & auendo ja 26. dias q vellejauamos por noíTa derrota com mou^aó tendente de ventos bonan- cas,oi]uemos vifta de húa ilha q íe de zia Tanixumaa noue legoas ao Sul da primeira pótada terra lapáo,& podo a proa nelia, tomos ao outro diaíur- gir no meyo da angra, q he o furgi- douro da cidade Guanxiroo, onde o Nautaquim príncipe delia por íua cu rioíidade,& por vercoufanouaq nu ca aly vira,fe veyo logo a noíTo bor- do, & efpãtado do aparato & do vel- lame da nao,por fer a primeyraq fo* ra a aquella terra, moftrou q folgaua muito a noíTa vinda, & nos pedio por aigúas vezes q quifeíTemos ahy fazer fazéda elle, de q o lorge Al- uarez 6c os mercadores íe efcufaraó por caufa de não fer o porto íeguro pa ra a nao, íe lhe fobreuieíle qualquer téporai.E partindonos daquy aoou^ trodiaíeguinte para o reino doBú- go q diftaua daly para diante cem le- goas.

Femao Mende^Pinto.

goas para o Norte,prouue a noftb Se nhorq aos cinco dias da nolla viage (urgimos no porto da cidade Fuchco na qual do Rey,& da gente da terra fomos recebidos,& com muito fa- uor & franqueza nos direitos de nof- fas fazédas, & muito mais ouuera de fer. ainda, fe por noílos peccados o não matara nefte breue tempo qa- quy eftiuemos, hum feu vaííallo por nome Fucarãdono, príncipe podero- fo&íènhor de muitos yaíTallos, de muita réda & de grade eítado,o qual defeftrado cafo foy defta maneyra. Andauana corte defte Rey de Búgo no têpo q aquy chegamos mace- bo por nome Axirandono, fobrinho dei Rey de Arimaa, o qual por agra* uosq tiuera dei Rey feu tio, auia mais de anno q íè viera para efta corte,& fazia então ja fundameto de não tornar mais a fuaterra,mas foce- dédo por fua boa fortuna,fallecer ne- fte meyo tépo el Rey feu tio auer eué focedeííe no reyno, o declarou a elle por feu herdeyro. O Fucarãdono de q pouco ha fiz méção,védo quãto cfte principe lhe armaua para o caiar húa filha que tinha,pedio a el Rey de mercê q lhe quifeííè fer terceyro nifto,& tratar efte cafamento, o q lhe elle concede© leuemente. E paraifto cóuidou el Rey dia o príncipe pa- ra íè yr defenfadar a bofque daly duaslegoas,onde tinha muyta caça, & outros defenfadamétos.a q dezião q elle era muito inclinado, & o leuou cóíigo,& la lhe fallou no cafamento, & lhe moftrou q leuaria muyto go- fto de lho elle não negar. E o princi-

2S9

pc lho outorgou de boa võtade,de q el Rey ie moftrou grãdeméte fatisfei tO;& mandado logo ao outro dia cha mar o Fucarãdono a cidade, lhe diffe o q tinha feito no cafaméto de fua fi- lha co Rey de Arimaa, pelo q lhe era neceilario irlhe logodarasgraças,& grangeallo daly por diante como a filho mimofo para o fazer mais con- forme a fy, pois niíTo aísi elle como fua filha ganhauão tanto, porque lhe affirmauaem verdade de Rey que muitas vezes o cubicara para gero, O Fucarandono íè lançou aos peis dei Rey,& lhos beijou palauras cóue- nientes â obrigação em q lhe eftaua por tamanha mercê & honra como aquella que por feu meyo Deos lhe tinha feito. E daly fe foy logo para fuacaíà,onde grande aluoroço «Sc contentamento deu contado q paf- íàua afua molher, & a feus filhos & parentes,de q todos ficarão muyto a- legres3& íe deraó por iííb muytas ai- uiííaras hús aos outros,como entre el les íè cuftuma em defpoforios taó h5 jados como eftes. A may da noiua, que nefte gofto moftraua ter a mayor. parte, fe foy muyto contente a húa camará onde a filha então eftaua la- urando com outras moças nobres de íeu feruiço, & a trouxe pela mão à íàla onde o pay eftaua com todo a- quelle ajuntaméto deirmãos,& tios, & parentes íèus,& todos lhe deraó os parabés de tamanha honra, & lhe fallaraó por alteza como a Raynha q jàera do reyno de Arimaa,& deita maneyra fe paliou aquelie alegre dia em feftas & banquetes, & yiíitacoés kkj defe-

^Peregrinações de

de fenhoras, em q ouue muitas dadi- cuydado delia a foy bufcar ao lu<rar

uas de peças ricas. Mas como o béou mal dos negócios defta qualidade ef- mais no q defpois fe fegue nellcs, q no q nelles fe começa^ eftes bós & âkgres principies deftes defpoforios fe feguiraó defpois tamanhos males & defauéturas, que vieraõ a fer qua- fi iguaiscom aquellesde Sião de que acras tenho contado.E digoifto,por- q afsi o poífo affirmar com verdade, pois ambos eílfes fucceffos vy com meus olhos, & em ambos me achey pre.len.te com afTazde perigo meu. A- quelledia todofe gaftouem vifita- çoés dos nobres do rey no,& nefte ge- ral cõtentamento, íó a noiua eftaua defcontente,porqera em eftremo af- feiçoada a certo mancebo fidalgo filho de húq fe dezia Grpge Aarum, q he como baraó entre nòs,mas muy to differéte no fer,no eftado,& na va- lia,do Fucarãdono pay da noiua. pe- lo qual conftrangida ella do amor que lhe tinha, tanto que foy noite, lhe mandou dizer pela fecretaria de$ ftes feus negócios que logo em todo cafo a viefiè tirar de caía de íeu pay ajTtes;que fizefte de íy algum defati- no.: O mancebbo,q taambem não e- ftaua Lure defta afíeiçáojveyo tercó djaao lugar por onde cuftumaua de lV-.f aliar, ôíella o importunou de maneyra, q ajtlle lhe foy forçado ti- raía logo de caía de teu 'pay, & daly foy meter nura-mefteyro,de que era Abadeíla hua totia del^óde efteue- encerrada noue^dias íèm te faber par te decoufa nenhúa. Ao outro dia pm la menham cedo a aya que tinha

onde a deixara a noite dantes, «Sc não a achando nelle, entrou na camará de fua máy, parecédolhe que por fer dia de feita feeftaria la enfeitando,©!! outra coufa defta maneyra; & como também a não achou la, fe tornou a camará onde ella dormia, onde vk> hfia janella que cahia fobre hum jar- dim aberta, & hum lancei feito ,em tiras pindurado da grade, & hua al- parca fua embaixo no chaó, & ima- ginando o que podia fer, ficou de to- do fora de íy,& íem efperar mais foy logo dar rebate a fua mãy,que ainda nefte tepo jazia na cama, ella fobre* s faltada com efta noua, fe leuãtou lo* gocom muyta prefTar.&.bufcando com muyta diligencia todas as caías das molheres onde lhe pareceoqua podia eftar, a não achou, de que dizé que ficou tão pafmada que fupitai mente cahio no chaó com humaccf» dente de que logo morreo. O FucaU randono que inda até. então não fa- bia parte do que paííàuá, ouuindcTã grita & a reuolta das molheres, actk dio muito deprefTa a laber o q era,& íendo certificado da fugida de fua út lha,mandou logo recado a algús feus parentes, os quais eípancados da ééa urdade daquelle trifte íucccíTo & não efperado,vreraô logo tereomelle,& tratando todos entre íy do q então fe deuia de fazer naquellenegocio,aíse«* taraó de o ieuaré por todo o eftrcexo de rigor quáco foíTe pofsiuely& corre çãdo logo n&s molheres q é cafaauia> de cétoq eraó7não ficou étãonenhúa q não foífe degolada^ as principais

delias

Fernão

delias feitas em quartos, achaque de íercmfabedorasdaquella fogida. E lançando hús& outros vários juí- zos onde a moça podia eftar,lhes pa- receo bem a todos não fe fazer niílo mais diligencia algua,fem íe dar pri- . meyroconraa cl Rey da que pafíà- ua, o q logo puferaò por obra, èc lhe pedirão muyto que mandaífe buícar certas caías que lhe elles apontarão, de que el Rey fe eícufou, afsi por não afrontar os fenhores dellas,como por arrecear o motim que efte defraan- cho podia caufar- O Fucarandono a- grauadodel Rey porque lhe não fi- zera o que lhe pedira,íe tornou para fua cafa cos feus parentes,& aílentou com elies de por fy fazer tudo o q nefte caio lhe pareceííe que era fua honra; porque de gente fraca & que podia pouco erà requerer por juftiça o,que por íy não podia effeituar. E como eftes íapoés faõ muyto mais ambicioíos de honra que todas as ou trasnaçoens do mundo, determinou efte de leuar em tudo ao cabo feu intento,fem por diante inconuenien- te nenhum que fe lhe oíFereceíTe. E para ifto deu rebate a quantos paren-j tes íèus auia na corte,os quais fe aju- taraó todos com elle aquella noite,& dandolhe elle conta defta fua deter- minação,todos lhaaprouaraõ &ou- uerão por boa. E«fem fe deteré mais, deràò logo nas cafas daquelles onde lhes pareceo que podia eftar a moça efcondida os quais a efte tempo tã- bém eftauão prouidos de gente, pelo receyo que tinhão do que podia fer, onde a reuolta & a deíãuentura foy

(^MenclcçTinto. 260

demaneyra.qfó nefta pequena par- te q fícaua por pafiTar da noite fe ma- tarão de hús & dos outros paíTante de doze mil peíTòas. A efte deíman* cboacudrojâporderradeyroel Rey em peíToa com a guarda que tinha cóíigo a ver fe os podia pòr em paz, porem a coufaandauajâ tão acefa,& a elle o tratarão de tal maneyra que deípois de o defacatarem algúas ve- zes. íe veyo a voltar a fúria toda con- tra elle,& lhe matarão ritos dos feus que lhe foy forçado viríe retirando com muyto poucos para as fuás ca ías,porem nem iíTo então lhe apro ueitou, porque até ofeguiraõ,& nellas o acabarão de matar, & a toda a gente que nellas auia,que,íegundo fe affirmou, paíTaraó de quinze mií ptfíòas^m que entrarão vinte 8c féis Portuguefes de quaréra que íe acha- rão com elle. E não contentes ainda eftes miniftros de Satanás com efte ta manho defmancho>& co mal que ti- nhão feito, derão também nas caías dâRaynha, que então jazia doente na cama, &aly a matarão com três filhas fuas,& mais de quinhétas mo- lheres. E com a fúria & defatino que traziao puferaõ fogo á cidade por íeis ou fete partes, o qual ajudado do ve- to que então aííbpraua com muyta força,fe ateou de tal maneyra, qern menos de duas horas a mayor parte delia foy toda queimada. E nos os dezaífete Portuguefes que efeapa- mos nos recolhemos â nao muyto trabalho,na qual milagrofamétenos faluamos com largarmos as amarras, & fugirmos para o mar. Tanto que K^4 ame-

Terfgrinaçoes de

Z menham foy clara os aleuantados a elle,pois tinha ainda poder para if-

todos, que nefte tempo ferião ainda mais de dez mil, deípois de roubaré toda a cidade, fe diuidiraõ em duas batalhas, & fe vieraõ retirando para hum tefo que Te dezia Canafamaa, no qual fefizeraó fortes,com tenção <ie fazerem Rey que os gouernaiTe, porque nefte tempo o Fucarando- no era morto de húa lançada que lhe atraueífou a garganta,& afsi todos os mais feus parentes, que foraõ os que deraó principio a efte diabólico ale- uantamento.

CAT. CCI.

Do que fe^ o príncipe Jiího dei !í^>, tendo nouas da morte defeupay.

Aquelle mèfmodia fe deu rebate de tudo o q era paflado aoprinci- pe filho dd Rey, que naquelle tempo eftaua na íua fortaleza de Ofquy, fete le- goas da cidade Fucheo, oqualaííaz íolprefaltado com efta noua, defpois que lamentou a morte de Ceu pay, fe quifera vir logo meter na cidade c5 algus priuados feus que então fómen te tinha comíigo, porem o Fingein- de no íèu avo lho não conílntio, pó- dolhe diante muytas razoens q auia para o não fazer até fe não faberem os termos em que aquelle negocio então eftaua, porque de crer era que quem fe determinara a matar leu pay,não arrecearia matallo também

fo,& elle então para fe defender não tinha nenhutrij mas que com toda a prefteza ajuntaíTe logo toda a mais gentequelhe foííe pofsiuel, porque . com ella fojeitaria 5ç~caítigaria feus inimigos. Ao príncipe pareceo bem efte confelho, & defpois de proucr no mais necefíario conforme ao tem po em que eftaua, mãdou tocar o bu- zioâ chara íapaó,com todos os mais que tinha aly comíigo, com q a terra toda foy tão reuolta que faltão pala- uras para o encarecer. Eparaqiftofe entemla milhor, hafe de faber q por ley ou cuftume antigo defte reyno Ia pão,todoo morador de qualquer lu* gar que feja,do mayor até o mais pe^ queno,he obrigado a ter em fuacaíã hum buziOjOqual fograuiísimaspe- nas,nenhum tocará fenao em húa de quatro couías, as quais faó,arroi- do de brigas,fogo, Jadroés, & cafo de traição: & logo no tocar do búzio fe fabe o paraqueíe toca, porque para brigas ie toca húa vez fomente, para fogo fe toca duas,para ladroes três, & para caio de traição fe toca quatro -vezes. E tanto que o primeyro tocar o búzio, todos os outros que o ouui- rem faõ obrigados a tocarem logo os íèus fo pena de morte, & da ma? neyra que o primeyro toca,tocão tã- bem todos os outrQs, paraque íè íâi- ba diftintamente o que be,& não aja ahy confufaó. E porque efte final da traição não he tão ordinário como os outros, que cuftumáo a acontecer muytas vezes,quando a cafo aconce*? ce tocarfe, faz tamanho efpanto na

gente

Fernão

gente,què fçm fazerem* hum ío mo- mento de detença, largaó todos tu- do, & vaô correndo ao lugar onde fe tocou optimeyro buzio,& defta ma neyra corre efte rumor com tanta preífa, que dentro de hua hora íc a- pellidão mais de vinte lugares em roda. Tornando pois agora ao q hia dizendo, tãto queoprincipe proueo oefte negocio por efta via cora mo- ftras de grandifsirno animo, & de Capitão, fe recolheo para húa caía çlereHgiofos que eftaua no rneyodo bofque,na qual fe encerrou três dias, & tornou de nouo a lamentar a mor te de feu pay, & mãyv& irmãs com muytas lagrimas & trifteza, no fim cio qual tempo, por íer muyta a gente que era junta, fe defencerrou pa ra prouer no que conuinhá. a fegu^ rança dofeureyno,& aocaftigo dos çulpados,aos quais logo mandou to- mar os eftados, & alfaiar as caías pregoes tão efpantoíbs que tremiáo as carnes de osouuir. PaíTâdos íete dias défpois que aconteceo efte trifte caíb,porque então auia jáaly muyta gentejunta,&aquella terra era falta de mantimentos, foy aconíelhadoo paincipe que fizefle o que pretendia antes que os dez mil do motim fe ef- palhaífem por diuerfas partes,& elle íe partio deite lugar de Ofquy para a cidade com hum groffo campo de gente muy to luzida & bem armada, o qual foy eímado em cento & trin- ta milhomés,de que os dezaííete mil eraó de^apaUo, & os mais de pé, ôc todos gente para qualquer grande £eíco, E chegando á.cidide foy bem

McndezJIrintQ. 261

recebido de todo opouo, mais com moftras de muyta trifteza & fenti - mento pela morte de feu pay, & não fe quiz logo y r ás caías reais, mas afsi de caminho como hia fe foy decer ao pagode onde feu pay eílaua enterra- do.no qual lhe celebrou as exequias- com hum faufto & hua pompa fúne- bre de muyto cufto ao feu modo, q durarão aquell as duas noites feguin- tes,com infinidade de luminaria^on de por fim de tudo lhe foy moftrada a roupa que feu pay tinha veftida quando o matarão enfopada ainda em íangue.íobie a qual elle fez jurar, mento de não perdoar a nenhú dos culpadoSyinda que mil vezes íe fizef- fem bonzos,& queimar por eíla cau* fa todos os templos onde foííem a* chados,fe cuvdaílern de os tomarem por feus valhacoutos. Ao quarto dia da fua entrada foy aleuantado por Rey,com pouco faufto & cerimonia por razão da fua trifteza, & logo da- ly abalou com cento' & feífenta mil homens para o lugar onde os culpa- dos eftauão recolhidos,fobre os quais fe pós de cerco, & fechou a ferra to- da em roda paraque não pudeífem fugir,onde os teue poftos em muyto aperto por efpaço de noue dias,& ve- do elles que não tinhaó mantiméto, nem efperança de focorro algum,ou- ueraòpor milhor partido morrerem no campo como esforçados, qeftaré certados como couardes.E determi* nados todosn efte pare cer,deceraó do cume da ferra onde eftauão,por qua- tro partes, hua noite chuuofa & de grande efeuro, ôc dando no campo & det

*Perigrtndçoes de dei Rejvque ja a efte tempo eftaua zendas, nos fizemos í vella, & nos

todo pofto em ordenança por auifo que difto teue5a briga fe trauou entre elles de tal maneyra, & com tanto ódio & impeto de ambas as partes, q durando atè duas horas de dia, em fim fe veyo a aueriguarcom ficarem no campo trinta & íète mil mortos,

paíTamos a outro porto daly nouéta legoas,que fechamaua Hiamãgoo, na bahia de Canguexumaa, onde et tiuemos dous meies ôc meyo íem po dermos vender coufa nenhúa, porcj toda a terra cftaua taõ cheya de mer- cadarias da China, que fe perdia do

em qpe entrarão todos os dez mil a- próprio mais das duas partes)Porque leuantados, fem nenhum delles fe não auia porco,nera enfeada/nean

querer faluar,o que algús puderaõ fa zer,- das quais mortes el Rey fe mo- fíroumuytofentido,& recolhendofe logo para a cidade,a primeyracouía em que proueo foy na cura dos feri- dos emqueouue aíTaz de detença, por ferem, fegundo fe diíTe, mais de outros trinta mil, de que defpois in- da morreo hua grande quantidade.

tAT. (01.

Como nos pafíamos deita cidade Fucbeo^para o porto de Hia^ mangoo; c> do que nelle nos aconteceo.

Cabada efía reuolta tanto cufto de todas as partes,como a terra fi- cou toda aíTolada,& os mercadores eraó to- dos fugidos,& el Rey eftaua com de- terminação de fefayr da cidade, nós os poucos Portuguefes que ainda ahy eftauamos (porque como o tépohos deu lugar nos tornamos afurgir.no. porto da cidade)defconfiados de po- dermos ahy eftar íeguros, ôc deter- trios quem nos compraílê noíTas fa-

gra em toda efta ilha de lapaó, onde nãoeftiueífem furtos trinta quaren- ta juncos, ôc cm algúas partes mais decento,comofoy em Minatoo,Ta- noraa, Fiunguaa, Facataa, Angunee, Vbra,& Canguexumaa, de maneyra que naquelle anno foraõ da China a lapaó de veniaga paíTante de duas mil embarcares, ôc era a fazenda ta- tá ôc tão barata/ que o pico de feda quenaquelle.tempo fe compraua na China por cem taeis, fe vendia em lapão por vinte & cinco, vinte &ok to,& o mais a trinta, ôc ainda com muyta aderencia,& todas as mais for tes de fazendas tinhaónos feus pre- ços efta mefma baixa,pelo qual fica- mos de todo perdidos fem nos faber-

mos determinar o que fízefTemos de nos. Mas como D eos nolTo Senhor com feus oceultos juizos ordena to- das as coufas fuauemente por huns meyos que nos embaracão o enten- dimeto, permitio elle pela razão que ellejo entende, que com a lua noua de Dezembro,que foy aos cinco dias domes, fobreuieíTe húataó grande tempeftade de chuueyros ôc yento,q deitas embarcações todas nenhua fi- co" quenáo deífe a cofla,de manea- ra que

h

ra que achou que chegara a perda ój fez efta tormenta a mil & nouecen- xo&Sc íêtenta & dous juncos, em que entrarão vinte & féis de Portugue* rcs,em que morrerão quinhentos dei les,a fora rriais de mil peíToas Chri- f$5s;'& fe pettiferaó oitocentos mil ciítizâdos de emprego da, China, E dós Chins feáffirmou que alem das iriil & nouecentas & trinta & leisem- bnrcaçoens, íê perderão pafTante de dez contos douro,& cento & íeflenta rrul peíToas, Õéfte tão tòpioío,& tão nftferauel naufrágio íe não faluaraõ mais que dez ou doze embarcações,1 cfesCfúais foy-hâã aem queeu vinha, & ainda eííàs tnilagrofárriétè,as quais deipois venderão as fuás- fazendas a como quiféfaõ. Nos, defpois de ter-; mos feito noíTo emprego, & eftar- mos preftes para nos partirmos, nos qirtfemos fazer â vella hum dia de Reyspela menham,& ainda que por huâ parte bem contentes, porq fize- mos^aquy ta/itoprouèito que todos" arámos ricos;todauia por outra aíTaz Crt^es, por vermos que fora â cufta <& cantas vi'dSj$!& de tintas fazenda^' aísi dos noííbs naturais como dos eí- trangeyros. E eílando nòsjâ com as amarras leBâdajs,&: o traquete dado para feguirmos noíTa viagem, nos quebrarão ftípkamence as oftagas da vella grancje^Sç vindo a verga abai-. xqí íç feznps alcatrates^anao ém quatro pedaçõs,por onde nosfoy for cado tornarmos afurgirjác mandar- mos o batela terra a bufeir hua-en- tena,& carpiriteyros que nola apare- lhaíTem)& com ífío mandamos hum

Fernão Mende^ Timo. z 6i

prefentede peita ao capitão do lu- gar,paraque nosdeífe com brenida- de auiamenco do neceífario, de elle- nolo deu tão bom que naquelle mef- mo dia íe tornou a rtao a por no pri- meyro efbdo, & ainda milhor do q eftaua. E tornando nós outra vez a leuara amarra para nos fazermos â vella, nos quebrou pelo ourique da ancora onde eftaua talingada,& por- que nos não ficara na nao mais que outra fomente, nosfoy forçado tra- balharmos todo o pofsiuel pela não deixarmos, pela muyta necefsidade que tínhamos delia, & paraifto mã- damosa terra bufear margulhajdo- res,os quais por dez cruzados que lhe deraõ,rofaó logo de margulho onde eftaua a ancora, que êra em vinte & féis braças de fundo,& lhe guarne- cerão hum calabrete,com que coca- breftante a guindamos acima, inda q foycom aíTaz de trabalho, no qual todos andamos oceupados, & fe ga- ftou nelle a mayor parte da noite5 & como a menham efclareceo, nos pu- femosde Verga dalto para nos par- tirmos. E fendo a nao de todo Ie- uada^otfãquête mareado,& a velía grande disferida,nos acalmou o ve- to fupitamente, com que acorrêri&p da agoa,que era muyto grande, nos lançou jiSUto de huriv morro, onde-, nos vimos 'de todo perdidos fem no£ aprousitar todo o nO#o trabalho, ne toda a noíTa ditigerícia,pela qòalííos focorremos ao mil'hi>r & mais cè-rW remédio qtae foy chamarmos <ébmk muyta inftancia pélá:Virgem nofe S enhora- coitv cuj^o- íaUOr nos Wêtèv

mos

Terígrínaçoes de

mos daquelle perigo. No*meyo de- tartemos. E logo ãpos cííes vieraõ

fie trabalho & medo com que todos andauamos, vimos decer de cima do morro a grande preíTa dous homens de cauallo, os quais nos capearão húa toalha,& nos bradarão rijo que os tomaííemos, & como a nouidade do eafo nos pôs em defejo de faber o que aquiílo era^ fe mandou logo a manchua a terra bem efquipada, & porque aquella noite me tinha fugi- do hum moço meu com outros três, cuydandoeu que podia aquilloíer algum recado d elle, pedy a lorge Al- uarez Capitão da nao, que me man- daííe na manchua, & elle me man- dou com outros dous cópanheyros comigojôc chegando nos a praya on- de os dous de cauallo efíauão,hum delles,que parecia ícr o mais honra- do, me diííe,porque o tempo íènhor não fofre muy ta dilação, porque me temo de muy ta gente que vem trás mim, te peço pek bondade do teu Deos, que fem pores diante duuida ou inconueniente algum, me reco- lhas comtigo. Com as quais palauras eufiquey tão embaraçado que me: não ioubre determinar no que fizeíTe, mas porque dantes tinha eu vifto aquçlle homem por duas vezes na- cjuelle lugar de Hiamangoo em có- panhia de alguns mercadores, me mouyatomallo, & deípòis que os mety dentro na manchua a elle &a íèucompanheyro, aparecerão qua- torze de cauallo qxie vinhaò após el- le, os quais chegando com grande, grita à praya onde eu eftaua, me dif- feiaQ.dá efle tredro , êc fenão ma*

outros noue, de maneyra que fe ajuri taraó aly vinte & três decauallo^em homem nenhum de pé. Eu arreceo- fo do que podia. íer, me afaíteypara o mar hum bom tiro de befta, & de lhes preguntey o que queriáo, Ôt elles me refpónderaó, fe leuares eííc íapaó (fem fazerem contado feu có- panheyro) fabeque mil cabeças de outros tais como ty haó de pagar o que agora fazes. As quais palauras eu lhe não quis refponder, & vindo- me com elles ambos a bordo os.me- ty dentro na hao, inda que foy com aífaz de trabalho, onde ambos foraó bem prouidos pelo capitão & pelos Portuguefesque aly eítauão,de tudo. o que lhe era neceíTario para hua tão longa viagem. E fe me eu detiue a- goraem particularizaras miudezas deites trabalhos, foy pelo fuccefioq elles tiueraõ, de que efpero trataria adiante,paraque claramente fe vejão os meyos por onde noífo Senhor or<n dena fer louuado, & a fua fanta Fe exalçada, como adiante fe verá por eíle homem íapaó, cujo nome era Àngiroo.

CAT. cem

T)e huagrojfa armada q o TÇej do Achem neíh tempo mandou fobre Malaca^ do q niffofe^ o padre meBre trãàfco Xauier^ejtorda . Companhia de fefu nas par* tesdafndia.

Partidos

>K£

Sksí

33S?

Fernão

Artidos nós daquy de fte rio de Hiamangoo, & enfeada de Cangue xumâ, aos 16. dias de Ianeyro do armo de 1547. quiz nolTo Senhor que em qua torze dias de boa mouçaó chegamos ao Chincheo,hum dos celebres & ri- cos portos do reyno da China,íobre o qual â entrada do rio entáo eítaua bum famofo coílairo por nome Che pocheca quatrocentas vellasgrof- iàs, & feíTenta vancoés de remo, na qual frota tinha feíTenta mil homes, de que íos os vinte mil eraõ do ferui- ço dos nauios,& os mais de peleja, & toda efta grande copia de gente fu- ftentaua de Toldos & mantimentos com as prefas que fazia no mar.E te- mendo nos enr?o cometer a entrada do rio,porq eítaua por todas as par- tes tomado por efte coíTayro, corre- mos auante até Lamau,onde nos pro uemos de algús mantimentos q nos bailarão ate chegarmos a Malaca, onde achamos o padre meílreFran- ciíco Xauier Reitor vniuerfal dacó- panhia de Iefu nas partes da índia,cj auia poucos dias que chegarajde Ma luco, com grande nome de Tanto na voz de todo o pouo por milagres que lhe viraó fazer,ou, para maisacer- tado,que Deos noíTo Senhor por elle fizera, O qual tendo nouas deite la- pão que traziamos noíco, nos foy logo bufcar a lorge Aluarez & a mima caia de hum Cofmo Rodri- guez ahy calado,onde ambos pouía- uamos. \i defpois que gaftou com noko hum pedaço do dja em pre-

MendezfPintõ.

2*5

guntas curiofas, fundadas todas num viuo zelo da hora de Deos,& tomar de nós as informações do que preté- dia,ou do que moftraua que defeja- ua laber de nós,lhe diííemos,fem fa- bermos das nouas que elle tinha diík>,quealynanao traziamos dous lapoés, hum dos quais, que parecia fer homem de conta, era muito di£ creto,& muito entendido nas leys Ôc íeit-as de todo o íapaó, que fua reue- récia folgaria de ouuir. Elle moftrou aluoroçarfe tanto com ifto, que nos,. por ifto que neile vimos, nos fomos a naoySc trouxemos o Iapaó ao efprital onde elle poufaua; o qual o recolheo entáo comíigo, & o leuou daly para a Índia para onde eítaua de cami- nho, ôc defpois que chegou a Goa o fez Chriftaõ,& lhe pós nome Pau- lo de fanta Fé,o qual em pouco tem- po foube ler Ôc efcreuer,& toda a dou trina Chriftã conforme á determina- ção deite bemauenturaçlo padre,que era,tanto que vieflè aquella mouçáo de Abril,yr denunciarão barbariímo deita ilha Iapaò Chrrfto Filho de Deos viuo pofto na Cruz por pecca- dores,como elle cuftumaua dizer, ôc leuar efte homem comíigo para feri interprete,como defpois leuou ôc aor feu companheyro que também com elle juntamente fe fez Chriítio,a que o padre pós nome loanne, os quais ambos lhe foraó defpois muyto fieis em tudo o que cumprio ao fer- uiço de Deos,& por cuja cauíà o Pau lo de íanta defpois foy defterrado para a China, onde foy morto por hús ladroes^ como adiáce declararey

quando

quando fallar defte defterro. Partido efte fanto padre daquy de Malaca, para na índia effeituar com o Gover- nador efta ida a Iapaô,Simão de Mel k^que encao, como jádiíTe, era capi- tão da fortaleza.efcreueo delle o que naqueilas partes de Maluco fizera poraugmencaçãoda noíTa fanta Fé, & asmarauilhas que Deos noíío Se- nhor por elle obrara. E entre algíías eoufas de que deu conta ao Gouerna dor dom Ioaõ de Caftro,foy reftemu nhar de vifta o que por efpirito pro- fético efte fanto padre diííe eftando pregando na de Malaca, 'a cerca do milagre a que o vnlgar da gente la chamaua dos Aches. Eparaqueíe faibao que ifto foy, me pareceo íer neceííario contalo do começo^o qual foy deita maneyra. Húa quarta fey- *a noue de Oitubro do anno de 1547 ás duas horas deipois de meya noite, chegou ao porto onde as noííàs nãos eftauao furtas,húa grofta armada do Rcy do Achem,de íetenta lancharas, & fuftas,& galeotas de remo,na qual vinhao embarcados cinco mil ho- rriésde bailéu, a que nos chamamos depeleja,aforaa chufma do remo, & lançando parte da gente em terra, fe foraó logo, por íer a noite muyto efcura,cometer a cidade,com funda- mento de abalroarem a tranqueyra com húa foma de efcadas que para iíío traziáo, & porque a acharão a muito bom recado,permitióDeosq não ouue effeito o feu intento. A ou- tra parte da gente que ficou na arma- da,deu nefte mefmo tempo na ilha das naos,& pós fogo a féis ou fete na-5

TPerigfinaçoes de

uiosque eftauão rio porto, em que entroa húa nao r ande dei Rey nof- fo Senhor,queauia cinco dias q che- gara de Banda, carregada de noz ôc maça,a qual de todo efteue tomada. Ia a efte tempo a reuolta & a grita da gente era tamanha que náo auiaqué fe.entendefle, nem fe foubeíTe dar a confelho, porque como eftes inimi- gos chegarão de íupito fem feréfen- tidos, & a noite era efeura & muyto chuuoía,& os repiques & gritas foa- uão em muitas partes,cauíou ifto em todos os noílos húa cófufaó tão def- ordenada, que ninguém íe fabia de- terminar. Defpoisde efta reuolra du- rar h'um grade eípaço chegarão Ilus- tres balões q Simão de Mello tinha mandado a faber o que aquillo era, os quais certificarão ferem Aches. Nefte tempo começando de efda- recer a menham,fe enxergou da for 'taleza húa grande quanridade.de vel las de remo,com muitas bandeyras, & eftendartes de feda,& mandando* lhe o capitão atirar com algúas peças groíTasparaosaíTombrar, elíes afsi como eftauão em húa ala fechados, fe foraó retirando para a ponta da iíhadeVpe, que citaria daíy pouco mais de hum terço de legoa,o'nde fo- bolo remo efperaraó até quafía vef- pera,com eftrondos de gritas muyto grandes, como que ganharão algúa grande vitoria. Aconteceo pordef- dita quenefte tempoao mar delles andaua pefeando hum paraoo noíTo, em que eftauaô [ete homêsda terra, que nella tinhão molheres & filhos, os inimigos tanto que o viraó, man- darão

Fernão Mende^Tinto. 26^

darão a eMrotTcus baloés q traziaa capicaens da frota , como coufa que

muyto bem clquipâdDSfps quais-emi brene efpaço o tomarão & lho trou- xerão, & a todos os feeaique vinh&a Qel|e manejarão cornai' oiípârizes^ic as orelhas,& a algús jarrsetarpelos ar- telhos como por deíprezof •■& defta mapeyra os mandarão^ com húa car* ta para o capitão eferitaco faguedos Ksefmos triftes que a tiraziaó, a qual cteziaalsi» Biyayaa Soora, filho de Seribiyayaa^racamaaidcíajâ, q em- bocetas deouro traz guardada para íya hora o rifo do grande Soltão Ala radim^cafti^al compiuetesde cheyro da fanta caía de Meca, Rey do Ache , & da terradambos os mares, te faço faber>paraq afsi o dfg ap pàctt u Refj quenefte feumaremqueeíibu def^ cançado, aílombrandtíuGotr) meu bra mido eflà fua fortaleza, ey 'de eílat: pefcãdo afeja defpeito ôc múyto em qiíe lhes pés o tempo que^tric vier â vontade, Sc por teítemunhas-; difto q digo tomo a terra & as gentes q nel-r la habitaócó todos os mais elemean tos aíé o céo da !ua,& lhe certifico a todps,com palatiras ditas da minha, bpç^ que o teíi Rey fica vencido & fem honra nenhua,& as íiias bandey- ;a,s derrubadas no chaóypara mais aj.pQder leuãfar ícm licença?de que o venceo, pelo <].ue metida a íua ca- beça do doixnea Reyi como lè* nhor que a todos logiga, ;ficaíde oje por diante por feu eícrauo. E-psra te fazer coníeííar-ier verdade ifio q di- go, eu te deíàfio daquy donde eftau íè por fua parte mo quileres cõtradi- zej:. JEfta carta vinha afsinada pelos

fe fizera por confelho de todos, ôc chegando cíles fete coifados fem na-» rizes & fem orelhas alidade, foraó lc go .leuados â fortaleza ao capitão aísi enfanguentados &disformeseo? mo vinhão,& lhe derãp: a carta qtra ziaõ,a qual fe leo logo aly publica- mente perante todaa gente,deque o capitão com algús íetiScaeeitos efteué zombado '.com algus ditos corcefaõs & galantes. Neíte tempo chegou o padremeftre Fi ancifco,que vinha de noíTaSenhora do Qtiteyro de dizer. M.ifla como fem pre cuftumaua, & o capitão, feleuantou. em pé,& o íahio a receber dous ou três pálios donde eílauaafFentado1& lhe.difle forrindo como qmeiaão fazia <$&> da carta, q confelhbi me. dará yoíTareuerencia neíle deíaáo? pareceme que o ey de remetera mór alçada. como juiz pe?* daneo, qiem coufa crime apellapoí jáarte da juftiça, O padre-lhe refpon- deo^o meu parecer he-,jâ-que mo vof fa mercê pregunta, que não auia de paliar iílp tanto por graça,que íe não fízeíTe algumodo de armada fe fp£ poísiuei,que ao menos lhe foíTe la- drando nasepítas, paiaquenão cuy|- daíTem eftes Mouros de nós que de todoeílamos tão defaperçebidos.q lhe não poíramos fazer algum -nejo fe outra vez tornarem. A que o capitão lhe ,diífe,muyto bem me pa- rece ifíb fe por algúayia.; pudera ler, mas bem voíía renerencia da ma- neyra quenòs eflamps, que ;he com quatro pedaços de fnítas podres, em que não ha concerto,. & dado que

-

o ouue^

Teregr mações de

o ouuera,gaftaralTe nelle muito mais ficar aíTazírifte^ãpíitc toda muy-

tempo que em as fazer de nouo. E o padre lhe cornou, íe a coufa não eftâ cm mais que no concerto das iuftas, cu quero por honra de Deos & dei Reynoíloíenhor tomar efle Concer- to delias â minha conta, & yr, fe for neceflariojcm companhia deites fer- Uos de Chrifto & irmãos meus a pe- lejar com eíTes inimigos da Cruz. O queouuindoos que eftauão prefen- tes,quc era hua quantidade de gente muyto nobre, todos juntamente ref- ponderão,fe voíTa reuerenciaiíío fl* zer,que ha hy que dizer? porque af- faz de bem Ilide u fera oChriftãoq le eícufar de yr em jornada taó ían- ta. E com ifto fc leuantou em todo o pouo hum modo de motim íanto, com hum feruor tão animoíb & tão determinado em Deos,qUede todos le julgou por coufa fobrenatural, O capitão^ueeftaua então aííentadoà porta da fortaleza, íe pós logo em pè, aflàz contente de ver o animo & o feruor fantó de toda a gente,& toma- do o padre pela mão,íe foy á nbeyra, onde vib a armada que eftaua vara- da^ achou fete fuftas & hum catur pequeno,&aly mãdou logo chamar o feitor Duarte Barreto,& lhe diiTecj com toda a preíTa mandaíTe dar o neceflario para íè concertarem eftes nauios,& elle lhe refpondeo que na feitoria não auia nem hum prego, nem breu, nem eftopa, nem hum palmo de panno para vella^nem ou- tra coufa nenhúa das que eraó necef- farias para íè fazer o que fua merçc mandaua,de que o capitão moftrou

comais O padre então leuantando os olhos,& conuidando com fua boa fombra .todos os çircumftantes aos porénelle,lhcsdiíTe:Ora fus irmãos & fenhores meus, não vos entrifte- ça is, porque vos afflrmo que Deos noíTo Senhor hc com noíco,& de fua parte vos requeyro que nenhum fe negòe a yrnefta (anta jornada, porq elle nos manda que afsi o façamos.E quanto ao inconueniente que o fei- tor põem da falta do neceflario para o concerto da armada,não ha iflo fer baftante para nos fazer tornar atras do noíTo íanto propoíito,. E ifto pòs os olhos em fete dos que>e£< tauão à roda,que todos eraó capitães & fenhorios de nãos fuás, & homens ricos & honrados,^ nomeando a ca- da hum delies por feu nome, fe che- gou a elle,& com muytos abraços & a boca cheya de rifo lhe diífe, irmão meu cumpre à hora de noíTo Senhor Iefu Chrifto que vós,como feruofeu, tomeis a voílo cargo concertardes a- quellafuftaque aly eftà (ilnalando a cada hum a fua) com a mayor bre- cidade que forpofsiuel, porque tam- bém cumpre muyto a feu feruiço; & quanto ao premio do voíTo trabalho, eu vos fico què elle vos feja pago a cento por hum, & deita maneyra os correo a iodos fctey encomendando a cada hum delies o concerto de fua fufta;oque elles todos aceitarão hum feruor & hum zelo tão fanto, q logo aly fe diíle claramente que era ifto mais obra de Deos que dos ho- mens, & cada hum deftes fete fe en- carregou

Fernão Mende^Pinto.

carregou logo da fufta que o padre lhe finalara, &na mefma hora, íem fazer mais detença começarão todos a pòr mãos a obra, & era tamanho nelles o feruor & a in-ueja fanta, cjue andauaó a competência de qual o fa- ria milhor & mais depreíTa, & foy a confa de maneyra que o que pare- cia impofsiuel fazerfenum més, in- da que lhe fobejara tudo, íe fez em termo de fós cinco dias, porque em cada húa das fuftas trabalhauáo mais de cem homens. Em quanto efta ar- mada fe eftaua aparelhando, o capi- tão da fortaleza Simão de Mello,de- claroupor capitão mor deita empre- ía a dom Francifco Deeça fèu cunha- do, ÔC o padre meftre Francifco fe determinou totalmente em yr nefta jornada. E entendendo os irmaósda mifericordia efta determinação do padre, íe ajuntarão com todos os ca- iados que *uia na fortaleza, & le- uando comfígo o meímo dom Fran- cifco Deeça íe foraó todos juntos a elle, & lhe fizeraó hum requerimen- to em que lhe pedirão da parte de Deos,queja que aquejfra fortaleza eftaua tão ío, a não quifeíTe elle de- femparar com fua aufencia, porque fe aísi foíTe proteftauao todos de fe irem também com elle, ao qual re- querimento o padre ficou algum tan- to embaraçado fegundo fe nelle en- xergou, porque a fua nobre condi» ção & grande caridade lhe eftaua pedindo condecéder com eftes dous eftremos diíFerentes, o que não po- dia fer.E auendo fobre ifto confelho, cm que ouue diuerfos pareceres, &

%6t

muytas razoens de ambas as partes, em fim o meímo dom Frãcifco Dee- ça capitão mòr da armada, por en- tender que era afsi neceífario,tornou a pedir ao padre que fizeífe a vonta- de a aquelle pouo, vifto o bom zelo com que todos lhepediao aquillo,& lhe fazião aquelle requerimento, o que o padre lhe concedeo. E deípois que fe determinou em ficar na terra, os confolou a todos com húabceue pratica eipiritual, encarecendo nella a muyta razão que huns & outros ti- nhão de porem as vidas pòr hum tao bom Deos, que pelos remir fe pòs nua Cruz como todos tínhamos por fé,& confeiTauomos,efcarnecido,def prezado, açoutado, coroado deefpi- nhos, &por fim de tudo crucificado num duro pao, por nos crucificar a nòs no feu doce amor, & efmaltar noífas almas co feu fangue íem pre- ço, com que juftificaua noífo pouco merecimento diante do Padre Eter- no. E a efte modo difiè outras muy- tas coufas co feu feruor & deuaçao cuftumada,com que fez taman-ha im preííaó em toda a gente, que os ca-> pitaens & os Toldados que hiaó na armada proteftarão logo aly de jun- tos todos núa conformidade Ghri-/> ftam morrerem pela de noífo Senhor Iefu Ghrifto;

■V

LL

CAK

Terigrínaçoes de

d at. ceiín.

fD.o que aconteceo a nofia armada eslando para partir^ &- de duas fkslasque chegarão de nouo a fortaleza.

Endoja paísados oito dias em q na gente có- tinuc u fempre efte fer- norfanto, a nofsa ar- mada foy de todopre- fíes & aparelhada do necefsario, & pofta a pique para fe partir ao outro dia,a qual era de íète fuftas& hum ca tur pequeno para feruirde recados^

rores d efte mal 'o capitão & o padre meftre Francifco,&dizédo que elles totalméte mandauão entregar aquel la fraca armada aos Aches,de q efta- ua certo q não auia de efcapar home viuo,por ferem as nofias fuftas fete,& as dos inimigos feífenta, & os noíTos cento & oitéta homés, & os inimigos cinco mil, & efta defproporção lhes daua tanto credito ao q deziab, q to- do o conaú da géte concedia elles, fem o capitão nem a juftiça íer bafta te para os fazer calar por muyto que niíTo fe trabalhou. O capitãoSimão de Mello,& o capitão mor da arma- da dom Francifco Deeça afrontados

em que hiaó cento ôc oitenta bôsTtol deita diabólica vniaó,madaraÓ muy dados,cujos capitães eraó dom Fran- to deprefla chamar o padre a noíTa

cifco Dee^a,& dom íorge Deça feu irmaóA Diogo Pereyra,& Aftbnfo Gentil, Ôc Belchior de Siqueyra, Ôc Ioaó Soarez,& Gemes Barreto, & ca- pitão do catur era André Tofcano juiz dos orfaós,& ahy cafado em Ma laca. Ao outro dia, eítando todos embarcados & preítes para fe parti- rem,em o capitão mor dom Franca co Deeça disfenndo a vella gran- de regozijo Si grita de tocjos,afua frita- ie çoçobrou, fem fe íaluar delia enjão mais q;ue a gente, ôc ainda efsa com muy to trabalho, de que todo o pouo ficou tão confuíb ôc trifte, ôc os da armada cos; ânimos tão caydos q parecia gente palmada. Eit e mao fuc cefso foy caufa de fe defmandarem algúsna lingoa, ôc falkrera mais foi- to do que era razão, attribuindo efta ida a pura induílria do demónio em offenía graue de Deos,dando por *u-

Senhora do outeyro onde entaó cita dizendo Mi íía, ôc indo omenfa- geyro^tmvtyto depreíTa, o achou no palio denomine non fum d ignus, co Senhor nas*maós, Ôc naáfe fabendo determinar no que faria,fe deixou ef- tar ate que elle acabou de comungar, ôc entaó fe chegou a elle,& em abrin do a boca para lhe dar o recado,opa dre lhe acehbu com a mão paraque naó fallafíe, eu o naó perturbaíTe, ôc foy por diante a Miíla fem mof. trar trouação algúa. E defpois que defpidio do altar, diíTe ao homem, fem até então lhe ter dito nada, ida meu irmão, ôc dizey ao capitão que logo vou, ôç que fe não agafte fua mercê por coíiía nenhúa, porque nas mores prefiàs he o Senhor, ôc en- trando para a fancreftia tirou a vef- ti menta, ôc ie veyo por .em joelhos diante do altar, ^-fazeasdooraçaió^

imagem

Fernão Mende^Pinto.

imagem que eftaua nelle,lhe ouuiraó dizer com grande fulpiro, ò Iefu Chriílo amores de my anima,poéSe nhor meu os olhos em ty,& no efmal te de tuas preciofas chagas, & nellas verás o muyto a q tua diuina mage- ftade por nòs quis obngarfe, pois Deosmeu & fenhormeu, q te poíío ^umiferauel pedir ja agora q tu por qué és nos nao cócedaspara remédio denoílaaflicaó? E acabado eíias bre uespalaurasq diífe muycas Iagri- mas,íe veyo para baixo para a fona- leza,cmde achou o capitão & toda a géte muito triftes,& em prefsa de def ■alagaré a fufta^para faluaré a artilha- ria, cóalgúas armas q ainda íe acha- rão^ tanto q vio õ.padre dando féis ou fete paííòs o veyo receber, & quaíi afrontado dafolcura & da vniaó do pouo,lhe difse, q he ifto padre meu? ouça vofsa reuerécia o q diz efta géte & defeulpeme para ella, q não íou pode roíb para lhe tapar as bo- cas. O padre rofto feuero & fem- brãte alegre lhe reípódeo mãíaméte, Valhame Deos,& taó pouca coufa íè agafta voísa meree^aó feja ajsi,te- íihamosfirme no Senhor & em fua bmnipotécia, |p>rq elle terá cuydado de remediamôfèas faltas,& abraçado ifto todos os capitães ôc Toldados, Os efteue animado exéplos fantos da fagrada efci itura,& lhe encomen- dou muyto a firmeza primeyrado feu propoíuo,& ifto fe foy em cópanhia do capitão para a porta da fortáleza,q feria daíy quinze ou vin- te pafsoSjOnde fe afsétaraõ,& defpois <ieíé praticar no fuccefso da fuílaq

j3 ' •"

266

fe alaga ra,& da falta q ella fazia,qpor fera milhor de toda a frota íe em bar caua nella o capitão mor, quis Simão de Mello,por lhe parecer q iíTo ta- paria a boca aos praguétos na culpa q lhepunhaóem mandar por cófelho do padre aquella tão pequena arma- da a comecer húa frota táo groíTa, q fe tomaííe a refolução daquillo em cj então fe praticaua pelos pareceres dos cj aly eftauão prefentes, & fazendofe aílento do voto de cada hu por BaU tefar Ribeiro eferiuão da alfandega ôc da fcitoria,em preíéça de todos os offi ciais dajuftiça Ôc dafazenda,íe #8 fentou q era temeridade o q fe come- tia,fundãdo todas ás razoes &caufas qpara ifto dauão náquelle defaftre, dizendo q viera aquillopor permifc íàó diuina,porq quis Dèos atalhar ou tro mal muyto mayOr como fe ouoe- radefeguirfeointéto do capitão Ôà do padre-fora por diante, poré quan- do vieraõ a tomar nifto os pareceres do capitão rriór Ôc dos mais capitães &foldados q hião na armada diflerãor todos q ainda q viftem a morte d\zte dos olhos, fe não auião de defdizer do q tinhão prometido a Deos,& cj afsi o tprnauão de nouo a prometer & jurar.porq tãto mótauão féis fuftas? como fete, pois a copia da géte toda lua nas féis. E ifto deraó de mão ao aíTehto q o efcriuãô fazia, de que ao capitão, íêgundo fe difle, não pe- fou muyto, pela honra que efperauá que ganhaflem daquella idaaísi éãi geral todos os da fortaleza,eomo erh particular íeus cunhados Frãcifco Dee^a q hia^por capitão mor da ar- LI* mada,

Terigrmãfoês de

X

mada,& dom Iorge feu irmão q hia por feu fucceíspr.naqlle cargo. O pa- dre meílre Franciíco vendo a firme- za Ôc bom propofíto dos capitães Ôc dos Toldados, lho louuou rnuyto, ôc entre algúas palauras que em pratica lhes diise,foy q tiuefsem todos muy- ta confiança em Deos nbfso Senhor, porcj em lugar daquella fufta perdida elíe lhe traria aly muyto cedo duas, &q difso fofsé todos muytp certos, porcj afsi auia de feriem falta nenhúa naqlie mefmo dia. E todos osq eíta- uao prefétes lhe deraó muito credito pelo q ouuião delle,poré não faltarão també algús q palauras retorcidas, nacidas de ânimos incrédulos dauão a entender ój era aquillo inuéção q o padre o* queria coníolar pela tri» fteza q nelles via do mao fuccefso. Cêifto ferecoiheo Simão de Mello paradétro, &leuou cóíigo o capitão mòr,& os outros capitães da armada,

%> & os conuidou para játar, & o padre fe recolheo tãbem ao efprkal a curar os pobres como tinha por curtume, E fendo ja íobpla tarde> como todos tinháo os olhos no q elle tinha dito, inda q diiíerecçs animos,cóforme à q cada hu tinha, húa hora antes do íol pofto pouco mais ou menos,fe

fe deu rebate de cima do outeyro de nofsa Senhora q para a parte do Nor te a paredão duas vellas latinas,com a:qual noua :£oy tamanjip paluoroço no poíio,q er^çpufa de efpanto,o ca: f*káo Simão de Mello rrjàndou logo balão efquipado a faber o que çra>o qual trouxe recado q eraó duas fuftas em q hiáo lefsent;a, ^ortugue^

fes,de hua das* quais era capitão Dio- go Soarez o Galego ,& da outra Bal- tezar Soarez feu filho,as quais ambas vinhaódePatane, com determina^ ção de paliarem de largo para Pégu, para onde Seuauão fua derrota. Difto fe deu logo rebate ao padre q ja en- tão eftaua em noíTa Senhora, o qual fahio muyto alegre fora da ermida para ver o q era, ôc topando co capi- tão q a grande preífa o hia bufcar pa^ ralhe dar os agradecimentos dobo pronoftico, lhe diífe elle, vafse voíTa mercê fazer oração a noíTa Senhora, &rnandemelogo efquipar o balão, porq quero yr fallar Diogo Soa» rez antes q paífe de largo q leua a determinação que dizem. O capitão lhe mandou logo fazer preftes o ba- lão,<£ mandou o Alcaide do mar q o acompanhaíTe, ôc elle fepartio lo- go^ chegou ás fuftas com. húa hora de noite, & o Diogo Soarez o rece- beo com grandiísima fefta Ôc alegria, E dãdolhe conta do que paííaua, lhe pedio muyto por Deos noíío Senhor Ôc pelas fuás chagas q por honra fua quifelTe acompanhar a dom Françi/j- co Deeça infla romaria, porque 4? fe poderia yr maisá fua vonfa^íç para onde quifeflè, E Diogo áo^re^f lhe réfpondeô que elle vinha com determinação de não tomar MaJaca, porlke,í3ãoMÍazerem pagar direitos daqueJlarptQUca fazenda que leuaua, ja que ;mo. tinha outra coufa de^ue fe fufka?tai*a a i"y. Ôc aquelles foW^r dos^mas que pois fua reuerençia.i{lí<p pedia com tanta effícacia de paloy aras tio fantas , ôc tanto para fe

temer

Femao

temer a defobediécia dellas,vifto íer, como dezia , puro zelo da ley de Deos,de cuja parte o requeria, elie e- ra muito contétede lho cóceder.Po- rem q ficando elle aly, lhe era ne- ceftano tornar a arribar ao porto pa- ra fe aperceber das muniçoensnecef farias para â peleja, q fua reuerencia lhe auia de trazer hu afsinado do ca- pitão & dos oíficiais daalfandega,pa ra o não obrigarem a pagar direy cos do q leuaua,porq doutra maneyra,íè fua reuerencia não mandaíTe o con- trario,náo auia de entrar no porto, o q o padre lhe agradeceo muy to,& íè lhe obrigou a lhe fazer tudo quanto elle quiíefíe, & muytomais íe mais foíTe neceíTario, & ifto fe deípidio delleja quafi meya noite. Porem an- tes q pafle mais por diãte me pareceo q era neceíTario fazer aquy efta decla ração para fatisfazer aos curiofos, & não fazer duuida aos que lerem. Efte Diogo Soarez o Galego de q aquy fe' trata agora,he o mcímo de q eu dei- xo atras dito,q fora morto em Pégu pormãdadodo Xemim de C,ataó, poré efte fucceíío q agora vou cõtan» do foy muito tépo antes da fua mor- te^ fe eu tratey delia antes d efte fuc ceífojfoy porque afsi me foy forçado para a ordem da hiftoria que hia contando.

CJT. C(f-

T>o mais quefepafou ecom Diogo

Soare^&* ae como farúo a arma-

da& do que lhe aconteceo ate

chegar ao rio de Tarlès.

TMende^Pinto.

í

26j

Hegado o padre me- ftre Franciíco á Forta- leza onde Simão de Mello o eftaua efperã- do,lhe deu conta do q tinha acabado Diogo Soarez, pe- lo que era neceíTario mandarlhe fua mercê a prouiíãó q elle pedia,& o ca- pitão lha mãdoti logo paffarfem de - teça nenhúa, & a todos pareceo bem que lha leuaífe o capitão mor dom Francifco, para mais abaftança & fa- tisfação deDiogo Soarez,&elle íe par tio logo eila,& íendo menhã clara Diogo Soarez veyo furgir ao porto moftras de muyta alegria, & des- embarcando em terra achou o capi- tão q o eftaua efperãdo.onde foy mui to be recebido,afsi delie como de to- do o pouo,daly fe faraó logo a igreja mayor^ que agora he aSee,& nella ouuiraó MiíTado padre meftre Fran- ciíco q nefta ida íempre fe moftrou a principal parte, a qual acabada, íc foraó logo todos aílentar á porta da fortaleza, onde por hum eípaço gra- de tratarão do que conuinha para ta ida,&das coufas que eraó necef. farias para a peleja que efperauão ter cos inimigos,no q logo fe proueo co toda a diligencia poísiuel. Paííãdos mais quatro dias em q a armada aca- bou de fe fazer preftes de todo, o capi tão mor Frâciíco Deeça íe embar- cou na fufta de Iorge íèu irmão, porq a fua ficou alagada fe lhe po- der dar remedio,& afsi as noíTas vel- las foraó por todas oito fuftas & hum catur pequeno,em q hião duzétos & trinta homens todos foldados muy- L L 3 to efco-

*Perigrinaçoes de

to efcolhidos, Efta armada Te partio rão a fazer feu caminho, indo todos

do porto de Malaca húa íefta feira vinte & cinco de Qkubro do anno de 1547. & vellejando todos por fua derroca aos quatro dias chegarão a Pullo C,ambilão íeífenta legoas dó- de tinhaó partido. E porq o regimé- to q dom Francifcoleuaua fe não eí- tendia a mais que ate ly fométe, não oufou a paííar mais adiante,& aly fe deixou eftar por algús dias, fem em toda a coifa acharem peíloané em- barcação que lhe ioubeíTe dizer on- de os inimigos eraó lançados,fómete íè foípeitaua q feriaoja no Achem, para onde fe prefumia que leuauão fua derrota, Porto efte negocio em confelho,ouuenelle muyto differen- tes pareceres, & muyto cótrarios hús dos outros, & por fim de tudo o ca- pitão morfe refolueo em não íè ar- redar do regimento que leuaua, o qual era que não paíTafse daly, & fa- zcndoíe logo na volta de Malaca,or- denou noíío Senhor q aquella cõ- junçao da lua lhe deíTem de improui- ío ventos Noroeftes q lhe eraó pela proa,có q eftiueraó amarrados vinte & três dias fem poderem furdir paíío auante. E como à armada não leuara mantimentos para mais q pa- ra hum mês, & elles tinhão ga- itados trinta & féis dias de fua viagé, êc riefte tépo ja não tinhão coufa ne- nhúa para eomeré, lhes foy forçado iremno bufcar a íunçalão, ou a Ta- nauçarim,q eraó portos muyto diftã^ tes daquelle lugar para a cofia do rey no Pégu, & efta determinação íe abalarão donde eftauãoj & começa?

bem enfadados deites fucceífos, mas prouuea noífo Senhor autor de ■to- dos osbeés,que deu o tempo elles na coita de Quedaa, & entrando no rio Parles com fundamento de faze- rem nelle agoada,&feguirem adiãte por fua derrota, viraó de noite paf- lar hum paraòo de peícadores ao lo- go da terra, & o capitão moro man- dou bufcar para faber delle onde era a agoada; trazido o paraoo a bordo, cllefezgaíalhado aosóJ vinhaó nel- le,deque elles ficarão contentes, & preguntados por hu algúas parti- cularidades ncceílarias , reíponde- raó todos que a terra eílaua toda d e- ferta,& o Rey era fugido para Pata- ne,por caufa de hua groíla armada queauiarnés& meyo que aly eíla- ua daífento com cinco mil Aches fa- zendo húa fortaleza,& efperando as nãos dos Portuguefes que vieisern *de Bengala para Malaca, com fun- dameni:o?como elles deziaó,de a ne- nhum Chriftão darem a vida,& tam bem defcubnraó outras muytas cou- fas necefsarías a nofso propoíiro, de q o capitão mòr ficou taõ contenre,q feveflio de feita, & mandou embanj I deyrar toda a armada. E chamados os capitães a confeiho, fe praticou no negocio, & o parecer de todos foy q fe mandaíTem logo três balões efqui- pados pelo rio acima are a pouoação onde os inimigos eílauãoq era daly" doze Iegoas,& trabalhaíse por faberé a certeza de tudo ifto, 8c fabida fe tomafsem logo â armada, para fe de- terminar o modo q fe auia de ter na

" peleja,

Fernão

peleja, & que entre tanto Te fizeífem todos p refles para o que tinhaó por dauance,& não perdeíFem da memo» ria o que o padre raeftre Francifco lhes encomendara, que era interior- mente trazerem fempre Chriftoscru» cihcado em íuas almas,& no exterior moítrarem prazer & alegria com esrorco,porque com eftas mouras cie fora feanimaíTem os fracos que hião ao remo; ôc o capitão mor proueo toda abreuidade em tudo o que erà neceflario,& mandou que toda a ar- tilharia da armada fe defparaíse, & íè embandeirafsem as fuftas, & fe h% zeísem folias, & não ouuefse regra nos mantimentos,© que tudo íè eum- priomuyto inteiramente. E fendo preftes os três balões de todo o necef fario,com remeyros efcolhidos,& peitados, o capitão mor mandou no primeyro por capitão dosj outros a Diogo Soaréz, Ôc no fegundo a Bal- tezar Soarez leu h"lho,& no terceyro a íoaó Aluarez de Magalhães, & ca- da capitão deites leuaua dous íolda- dos do mefmo teor. Partidos os ba- loés pelo rio aci.ma}quiz fuá ventura que tendo andado cinco ou féis le- goas,foraó dar de rofto com quatro balões dos inimigos,& antes que hús Sc outros fe acabafsem de por em or- dem,os noflos lhe tomarão três dos feus, &o outro íe faluou a. força de remo, E porque os três balões que os nofsos tomarão eraó muyto milho- res que os em que hiaó,fe paísaraò a elles, ôc aos que deixarão puferaóo fogo,& fe tornarão logo para a nofsa armada grande aluoroço por efte

bom pronoflico, & © capitão mòros' recebeocom muy ta feita Ôc alegria. Dos inimigos que vrnhaó neltçs ba- lões que os nofsos tomarão, eícapa* raó fomente féis Aches viuos, que os- noísos trouxeraó comligo, os quais preguntados pelo. que releuaua^não refpcnderap outra coufa fenãò dize- rem todos com huacótumacia muy- emperrada,rmate mace quita fa- dulee, que, quer dizer, matainosma- tainos que não nos nadadifso,pe- lo CjUal foy.necefsano metellos a tor- ' mento,&- os começarão áiaçoutar Ôc pingar unto íem piedade que dous- delles morrerão logo,& outros dous atados de peís & de mãos for? o lan- çados ao rio, ôc querendofe'fazer o mefmo aos dous qoe ficauao viuos, elles com grandes brados pedirão ao capitão mor que os não matafsçm, porque elles JLirauáo de c onf eis arem- toda a verdade. O capitão.mòr man- dou que cefsafse o caffigo, ôc elles difseráoqueauiajá quarenta & dous dias que aqueila terra eflaua por lua, ode tinhão mortas duas mil pefsoas, ôc quaíi outras tantas catiuas, a fora pdefpojo de. pimenta ôc drogas, Ôc outras fortes de fazendas de que ja tinhaó mandado ao Rey do Achem- húa grande quantidade* E porque num dos capjtolos do regimento q o feu capitão mor trazia lhe mandaua; el Rey que aly naquelle rio efrkraf- fe as nãos de Bengala. Ôc de outras partes viefsem para Malaca, & as to- mafse todas fem dar vida a Portu- guez nenhun^nem a homem q foísc Chriftaójfe detiuera aly táto,& tinha L L 4 determi-

"Terigrmaç ots de

determinado de efperat ainda mais opofsiuel por leuarem bom nome

hum més;âté cjuede todo a mouçao foíTe gaitada,^ <^ue quando oauirão o tom da noíía artilharia lhes pare- ceo que as nãos eraójá chegadas, pe- lo que toda; a armada fe ficaua fazé- do prelles comigtande preítápara os virem logo buícar,pelo qws íern du- u-ída nenhúa ao outro dia virião aly ter. O capitão mor doinFranciíco efta informação que teue fe fez logo preíles como conuinha para receber os hofpedes que efperaua, trazendo fempre algús balões de efpia , q hião Sc vinháo fem defcaníarem.Ao outro dia que era domingo ás noue oras os noííos Balóes vicrâo fugindo muyto apreiTados,dizendo com vozes muy, to altas, preíles,preites,preftes,co no- me de Ieíu,que aqui temos os inimi- gos, com o qual rebate ouue grande reboliço em toda a armada. O capi- tão mór armado em húa coura de la- minas de citim crameíim com era- uação dourada, Sc com hum monta- tenas mãosíe meteo em hua máchua bem efquipada,& correo todos os na uios,animando a todos oscapitães,& foldados,& com a boca cheya de ri- zo Sc moflrasde grandifsimo esfor- ço os nomeaua por irmãos & fenho- res,& lhes trazia à memoria que eraój &o que lhes encomendarão padre meftre francifeoque poreíles eírana orandoconrinuamente a noíío Se- nhor.cujas lagrimas Sc orações auião deferouuidas 8c muyto aceitas dian- te de Deos-jpois elle era tão íãnco ê& mo todosLÍabião- pelo qual a todos lhes era neceíiano trabalharem todo

diante delle, pois aquella armada Sc os Toldados -delia íe chamauão do nome de Iefu, que era o nome que obemauenturado padre lhes puíera quando partirão, Sc outras coufas^a eíle modo muyto neeeíTarias ao tem po Sc á conjunção delle, as quais to- das fe ouuiraõ com muyta alegria, proteftando todos com grandes vo- zes de fem falta nenhúa morreré pot Chrifto como verdadeiros Chriftaos que eraÓ. E recolhido o capitão mor afuafufta, qnaíl que não era ainda bem dentro quando fe defeubrioa armada dos inimigos, os quais corri húa efpantofa grita,& com hum grã- diísimoeítrondode diuerfos iníW mentos vinhaó peio rio abaixo con- certados na ordem quefe fegue.

CAT. Qfjl

Vacmd batalha que os nojhs ti*

uerao cos Aches no rio cie Tar-

Iês?&- do Juccejjo delia.

A diãteyra deita arma- da dos inimigos vi- nhaó ti es galeoeas de Turcos em companhia da lanchara em que vi nha o Biyayaa Soora capitão mor da armada, q fe intitulaua Rey7 de Pee* dir,& apostilas quatro vinhàónòuè fileyras defeis a fileyra,de modo que às vellâs de remo que vinhaó naar- mada erao por todas cinquenta 5c óito,põrque as mais erao lancharas, & fuíHs que tirauão cameletés pot

proa,

Fernão ^MeniezJPinto.

proa,& algúas mcyas efperas Teus falcões na cuxia , a fora muytos ber- ços & outra artilharia miúda de que todas vinhaòmuyto bem prouidas. Ecomo o ímpeto da agoa vinha em íçliimior, & osnauios vinhaó bem eíquipados,& de voga arrancada, ao íòm de muytos inftrumétos de guer- ra, ifto, juntamente com as gritas da chuzma,acompanhadas de húa gra- de quantidade de arcabuzanXcauíà- ua hum tamanho terror, & hum taó deiacultumadoeípanto, que as car- nes tremião de medo. E deita ma- neyra,tanto que a dianteyra dos ini- 'migosdefcubrioaponta.de hum co- touedloque a terra fazia da banda do Sul,detrasda qualos noíTõs eftauão também pfeftes para os recebere, aprimeyra fileyra das três galeotas de Turcos & lanchara em que vinha o Biyayaa Soora, arremeteo à noííã ala dianteyra em que eítaua o capi- tão mor com duas fuílas, a íua no meyo,& de húa parte Diogo Soarezv & da outra Gomes Barreto fidalgo do Duque de Bragança, Ôc anticipan dofe os inimigos hum pouco no tirar da artilharia, prouue a noíTo Senhor que nos não fez nenhum dano, &a brigafetrauou logo entre ambas as dianteyras, em que os capitães mó* res íe encontrarão ambos^ pelejai do hús cos outros com muyto esfor- ço^ tanto íèm piedade quanto re- queria o ódio com qpelcjauao, quiz Deos que da fuíta de IoaóSoarez fe fez hum tiro de camello, o qualfe empregou taó bem que a lanchara cm' que vinha o Biyayaa foy logo

2ép

metida no fundo,com morte de mais de cem Mouros. As três Galeotas querendo com muyta preífa acudir aos que andauáo na agoa, & princi- palmente para tomarem o feu capH tão mor que fe não afogafíe, fe em- baraçarão todas três de tal maneyra que a íegunda ala co pefo da corré- te yeyo cayr fobre ellas, & após efta logo a outra,& afsi todas as mais, de maneyra que embaraçadas húas c5 as outras fizeraó hum ajuntamento confuíp queoceupaua toda a largura do rio,fobre o qual anofla artilharia toda empregou tão bem três çurria- das, que nenhum tiro foy embalde, com que lhe meterão noue lancha- ras no fundo,& as outras quaíi todas flcarap deftroçadas, porque os mais dosrioííos tiros eraó rocas de pedra. Vendo os noííòs aquelle bom iuccefc ío,& como Deos Ih ordenaua tudo em feu fauor, cobrarão tanto animo & esforç^que chamando pelo nome de Ieíu,arremeteraó a elles tanto fem medo,que quatro fuíta s noflas abai? roaraò féis das fuás, & lançandolhe após ifto muyta quantidade de pa- nellas de poluora, Ôc de pedradas, a fora muyta foma de efpingardas que tirauão continuaméte fem nunca cef- farem, o feruor deíia honrofa briga foy tamanho, que em meya hora foraó mortos deites inimigos quaíi dous mil. A fua chuzma com iíio cobrou tamanho medo, que fe laçou toda ao rio,porem a a>rréte& o pe- fo da agoa,que era muyro grande,os afogou quaíi a todos em muyto pe- queno eipaço. O que vendo os ou- tros

Terigrinâçoh de íros que aínáaficauão viuos,& como grandífsima quantidade de zargmv

cfte negocio lhes foccedia cada vez pior,defpois.de pelejarem esforçada mente hum bom eípaço, conhecen- do jâ claramente fua perdiç>áo,& que os noíTos os matauãoatodos com as efpingarda?, o q elles ja não podião fazer, neín aproneitarfe da fua arti- lharia,& fobre tudo "ferem a mayor parte delles queimados com a muy- $a foma das panellas de poluorajhes foy forcado, ou lhes pareceo miihor meyo de fua faiuação entregaréfe an tes á agoa do rio, que a quem ostra- taua taó mal como os noíTos, & lan- çandoíe todos ao rio, como então hiãomuyto feridos, & queimados^ cangados da bríga,& por iíío tanque brados das forças que a penas ppdião bulir os braços, todos logo fe afoga- w£râõ/em nenhum dellesjícapar viuo, |7Aj'_.eo.m^que os noíTos ficarão de todo deíafrontados delles^ & dando muy- v^tas gradas &muytos louuores a nofc *- fo Senhor pelo fucceíTò defta táo ^^glorioía vitoria,fe apoderarão de to- da a armada, que eraò quarenta ôc féis veilas, a fora as noue que no co- meço da briga fe meterão no fundo, fem efcaparem mais que fós três em que fe faíuou o BiyayaaSoora, Ôc fe- gundo fe diíTe,ferido de hua arcabu- zada,de que efteueá morte.Nefta ar- mada fè acharão trezentas peças de artilharia,de que a mayor parte eraó falcões & berços, em que entrauão feíFenta & duas as armas dei Rey nofíb fenhor,que elles em outro tepo nos tinhao tomado, & íè acharão mais oitocentas efpingardas, Ôc hua

y

chosjanças, treçados, arcos turquef- cos com muytas freehas,crifes & aza gayas guarnecidas d®uro, de q algús dos noífos ouueraõ bom quinhão. O capitão mòr mandou logo fazerrelTe nha da fua gente, & fe acharão mor- tos dos noííos vinte & féis, dos quais* os cinco fós foraó Portuguefes, & ó& mais forao eícrauos Ôc marinheyros' que nas fuftas hiaó ao remo, & feri- dos forao cento Ôc cinquenta, de que os íetéta íoraó Portuguefes,dos quais defpois falieeerão três, Ôc cinco fica- rão aleijados. A fama defta tão glo- rioía Ôc honrada vitoria correo logo por toda aquella terra, com q o Rey de Parles que a efte tempo eftaua fu-: gidonomatocom medo deftes ini- migos, ajuntou como pode obra de quinhentos dos feus,& deu na tran- queyra que lhe tinhaó tomado onde. eftaiiao todas as preíàs que tinhao. feito,em guarda das quais tinhaó dei? xado os doentes, que ferião .até du>; zentos,& matandoos a todos íem da- rem vida anenhum delles, tornarão a ganhar o defpojo, em que entrarão dous mil dos feus que efíauão cati* uos,mas tudo molheres, Ôc crianças, Ôc outra gete pobre, Ifto feito,o Rey veyo logo viíitaT dom Francifco, & lhe deu osparabés da vitoria^aleuan- tando por iííò muytas vezes as mãos ao Ceo,& prometeo com juramento- folenne ao feu modo de fer daly por diante vaflallo dei Rey nofíb fenhor com tributo de dous cates de ouro cada anno, que faó quinhentos cru- zados^ que lhe prometia táo pouco

porque

""

Fernão Mwde* 'Pinto. iy0

porq a fua pouca pofsibilidade não da deita noíTaarmad'a,paraque fe ve- podia abranger a mais, de -que. fe fez allenco em que afsinou o Rey com ajgys dos (eus. Dom Franciíco ie fez logo preftes para fe tomar para Ma-r liaca,& vendo que não tinha gence que pudeíTe marear tãtas vellas,lhes mandou pòr o fogo, & não trouxe comligo mais que lós vinte & cinco, em que entrarão quatorze fiiftas, & astresgaleotasem que vieraó os jjèfô fenta Turcos,que todos morrerão na peleja. Defpois difto fe tomou tam- bém hum paraoo em q vinhaó quin %t Achés,os quais metidos a tormé- to confeííaraó que na briga foraó mortos com a gente que fe afogara, paííarite de quatro mil homés, de q a mayor parte foy gente limpa fy criados do Rey do Achem,& os qui- nhentos delles eraõ Orabaloés de ma niiha douro.que faõ fidalgos,& mor- rerão feíTenta Turcos & vinte Gre- gos & Ianiçarosque auia poucos dias que em duas nãos eraó vindos de iu- daa a Faacern.

cmi.

CAT.

'Doãpaffouem Malaca emqua-:

to. não ouue nonas de fia nojftiar*

ínada-, & do que o padre meslre

francifco delia diffe eslando

bum domingo pregando.

Gora me cumpre dei- xar a armada,& tratar hum pouco nefte lugar do que paiíou em Ni a laca defpois da parti-

ja porque meyos noíío Senhor he ferindo de acreditar es feus feruos na terra, para coníufaõ da gente mú- dana,fria,& pouco firme na &có- fiança que fe deue ter nefte Senhor quequiz morrer por nos dará vida. Cuftumaua efte íanto padre meftre Prancifco de pregar ordinariamente duas vezes na fomana, ás fedas feiras na mil eriço rdia, & aos domingos na igreja maycr q agora heaSé, o qual em todos. dous meies contínuos, que foy o tempo em que os noílos puíe- raó desde que partirão de Malaca até que tornarão, fempre defpois do lermão acabado encomendaua que difleíTem hum Pater nofter, &húa Aue Maria a noíío 'Senhor lefu Chri fto que elle tiueffe por bem dar vito- ria aos noííos irmãos que eraó idos na armada a pelejar com aqueíles ini migos danoífa fanta fé,paraquepor efta vitoria o leu fanto nome foílè conhecido em toda a terra. O qual Pater noíler a gente fempre diíTe por efpaço-de quinze ou vinte dias, em q naturalmente -ihespàreceo que- ifto poderia ter erTeito, mas como paílou defte termo, vendo que por nenhua via fe íouberaó mais nouas da arma- da,aíTentaraó comfigo queiem falta nenhúa os Aches a cinhaó tomada. E o que lhes deu ainda mayor mori- uo para euydarem que eraifto (ái, foy hum.rumor de. no.ua? ialfas que os Mouros naquelle terepo lançarão por toda a terra, dizendo que huà lanchara que viera de Sà^gor, fal- lando com outra que hia para Binrlo

lhe

\

igrinaçoes de

lhe diisera que hum tal dia junto da dczia afsi. Esforçado Penhor capitão;

barra de Péra,enconcrandofe os ini- migos cos noíTos os desbaratarão, & Ibes tomarão toda a armada, & fem darem vida a nenhum homem leua-» raó as fuítas para o Achem, E afsi a efte modo emburilharaó hua mea- da,vrdida por eftes miniftros de Sa- tanás de tantas mentiras,que o capi- tão nunca pode, por mais que traba- lhou, vedar cftefalíb rumor, de mo- do que oude arrependido do que fi- zera,ou de enfadado diílo que fe de- zia publicaméte,ja não oufaua a fayr tantas vezes de cala comocuíluma- ua, porem os praguentos, como de tudo fazem .matéria de íèus peníãmé ros.notando também iftonelle, aca- barão de confirmar que totalmente era verdade o que fe dczia. E foy ifto em tanto erecimento que o Rey do Iátana filho que fora do antigo Rey de Malaca,que então refidia em An- draguiree porto feu na ilhaQama- tra,lendoauilado diftoque entrenós fe dezia,fe veyo logo com húa frota de trezentas vellas meter no rio Mu- har féis legoas danoíía fortaleza,dó- de defpidio algos balões de remo por toda a cofta.a faber a certeza diíto q fe foaua,eom tcnçaò de tanto que ti- uefse noua certa de fer verdade iffo que elle aíTaz defejaua,fe meter logo em Malaca,o que fegundo a coufa en tão eftaua de íy prometendo, parece que pudera fazer muyto facilméte, & curto de muyto pouco íãnguc; E para mayor diísimulaçaó defte feu penfaméto, mandou vifitar o ca- pitão^ lhe efcreueo hua carta que

eftando cu na erecta da lua em An draguiree com efta armada preftes para a mandar fobre el Rey de pa- tane, por algúas razoes que' me mo- ueraó ao caftigar,de que tu terás ai gúa noticia,fuy certificado das cruéis mortes que os Aches deraó áos teus, de que tiue tanta dor em meu cora- ção como fe todos foráô meus filhos, & porque fempredefejei de moítrar ael Rey de Portugal meu irmão o amorentranhauel que lhe tenho, tã- to que foube efta tritle noUa, eíque- cendome da vingança que pretendia de meus inimigos, me vim meter a* quy nefte rio;para delle, como bom amigo, te focorrercõ minhas forças, & gente,& armada, pelo que te peço muyto, & da parte de teu Rey meu irmão te requeyro que me dés li- cença para em feu fayor & ajuda yr furgirneífe porto, antes* que os ini- migos a teu defpeito o facão, como fou informado que querem fazer. Sepetuu de raja meu òurobalão te di ti por palaura o fobejo amor com q

defejo agradar em tudo a el Rey de Portugal meu irmão,& como feu ver dadeyro amigo eftou aquy efperan- do portuarepoíla>comaqualporey logo em erfeito ifto que defejo fazer, por elle. O capitão deípois que leo a carta, fingindo que não entendia a lua danada tenção, lhe refpondeo as graças neceísarias aos offerecimé- cosque lhe elle fazia,cncubrindo cm tudo fuás faltas,& moftrando que ao prefentenãoauiamiíter focorro ne- nhum.porque de tudo èftaua muytó

bem

Fmiao Mende^Pinto.

27 1

bem prouido. De maneyra que com eftes cumprimentos difsimnlados de bum & do outro, efteue efte inimigo metido aquy em braços com noíco vinte & três dias, dandonos em todos ejles bem em que cuydar, até q vie- tpò osfeus balões do reyno de Que- daaonde os mandara a fabemouas, os quais o certificarão da vitoria que Deos nos dera,de que ficou táoma- goado,que de nojo mandou matar o primeyro que lhe deu a noua, & fem e(perar aly mais, fe partio logo para Bintáo,fingindo que hia mal defpo- fto de febres,pelo qual em Malaca fe fizeraõ muytas prociíToés,dartdo gra- ças a Deos noflò Senhor por nos que rerdefaFrontar defte inimigo. Tor- nando ao padre meftre Francifco. Continuado ellefcmpre,como atras, difle^ em pedir no fim cta todos os feus fermoés hum Pater nofter & hua Aue Maria pela vitoria dos noíTos q cjály eraõ partidos,os ouuintes os dif fçraó todootempo que lhes pareceo q$0 podião aproueitar,q foraó quin- ze ou vinte dias,mas comopafsou ef- te limite que elies tinhaõ pofto ao çffeito defte negocio, & de tpdo co- ç^araó a defconfiar de poderem os nòílosferviuos, afsi pelas falfas no- uàa;que os Mmiros tinhao efpalhar; d>,como pelo muy to tempo q auia cj, ejfaõ partidos,fem até então fe ter ne- t&ivm recado delles, ouueraõ, pela fequiza da fua fé, que aquella en- «afciaendaçaô do padre era mais para Qôniprimento, que por lhe parecer q «taíainda necefsaria, pelo que todos; quaíi todos,- quando lhe. ouuião

ifto fe acotouellauão hus cos out ros com riíinhos & palauras retorcidas dizendo, bofe padre muyto milhor fora efse Pater nofter por fuás almas que por eíía vitoriaque vós dizeis,& de que Deos avos & ao capitão ha de pedir eftreita conta,poríerdesam bos caufa de fuás mortes, outros, por outro modo de zóbaria' dezião, def- fcs & dos vngidos ha hy tão poucos que não ha nenhús* Outros dezião tambera,fe os vos algúa hora virdes, bem vos podeis benzer delles. E ou- tros dezião outras coulas afsi a efte modo motejando do padre, de que defpois andarão aflaz corridos, & al- gusdosmaiidifcretos fe acharão alcançados, E a hum domingo íeis dias de Dezembro do mefmo anno, pregando efte bemauenturado padre âMifsado dia como fempre cuftu* maua,indojâno cabo do fermâo, virou para ò Crucifixo que eftaua en« cima no arco dacapella, & fallandq çom elle com húas deuotiísimas pa- la;Uras,enuokas em muytas lagrimas, de que todos os ouuintes cftauáo pafc mados,propos por figuras toda a ba* talha dos nofsos como pafsaua,& lhe pedio com grande efficacia que fe lembrafse dos feus,porqueainda que eraò peccadores,& muyto peccado* res,todauiaprofefsauaójComo fieis cj

craò/eu fanço nome, com protefta- ção continua de viuerem & morperç na fua fantafé Catholiçá,#e em muy tos pafsos apertando os punhos das maós,com hum feruorimpetuofo.& o rofto abrafiado dezia, o lefu Chri- fto amores de my anima,pelas dores,

da tua

^Peregrinações de

da tua fagrada paixão que nos naõ Pater nofter,& huâ Aue Maria pela'

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defépares,& a efte modo outras muy- tas palauras de que não íou bem lé- brado, em fim das quais inclinando a cabeça fbbre o púlpito como que defcançaua daquelle "trabalho, efteue quedo obra de dous ou três credos, «Sc rornandoaaleuantar, com rofto ale- gre & bem aísóbrado, difse aos que éftauão prefentes, dizey hum Pater noíter,& húa Aue Maria pela vitoria que Deos nofso Senhor agora deu a os noísos contra os inimicros da lua fantafé, com que em toda a igreija ouue muytò rumor de deuaçaõ & de lagrimas. Edalva féis dias que foy logo *a íefta feita feguinte ja quaíi íoi poíto, chegou' hum balão que fora» dos inimigos 'mvy to bem eíquipado, êm que vinha hum foldado por no- me Manoel Godindo a p^dir aiui£ faras ao capitão defta vitoria, o qual relatando enn publico todo o difcur* ío & o fuccefso delia, diííè què fora o domingo dantes âs dez horas do dia,que peia conta fe achou que fo- ra ria própria hora que o padre o dif- fe no púlpito, pelo que íern duuida tiueraó todos para fy, & o confefsa-' f publicamente, que Deos nofso Senhor lhoreUelara em efprito, co- mo íejà vira em outras' coufas que Jogo aly fe contarão perante todos q elle fizera & difsera, das quais huá foy que defpois de partido de Malu- Có,eftando hum dia em Amboyno,c] eraò daly fefsenta iegoas, dizendo Mifsà,deipois de ter dito o Cred^| antes que entraíTe no prefacio, difse aos que efíalíaòlna ígreja^izey hum

alma de nofso irmão foaó de Araújo q agora partiodefta vida;'& chegan- do daly a quinze dias as nãos que fi- cauaó a carga do crauo, entre alguas nouas que deraò,foy húa que era fal- lecido hum Gonçalo Daraujo (porq afsi me parece que fe chamaua) ôc q fora no próprio dia & hora que o pa dre o diíTera na eftaçaó cm Amboy- no. E outras muytas marauilhas fez noíTo Senhor por efte bemauentura- do padre,de que eu vy alguas, & ou- tras ouuy,de que agora naó faço

ção,porque ao diante efpero tra- tarde alguas delias.

CAT. Cd IH

Qomo o padre m$re Francfco> foj de Malaca Para fapao^

do.qtielapaifôft, í jj

Efpois de paffada cfta gloriofa batalha emf c} Peos npíío Senhos» quiz acreditar efte feuK Pf mauenturadô fèruaf afsi co qna armada primeyro fez,co> mo co que delia deipois difte, para Gonfufaó & arrependiméto dos mal- dizentes, por meyo dos; quais o iráu migo infernal tanto trabalhou pelo deíacredirar,elle fe partio defta cida- de de Malaca para a^ índia naquclk Dezembro feguinte mefmo ?an- no de 15^7. com determinação ã& por em efeito a fua ida ao lapacyS? leuóucomiigo o Angiroo que def- pois deChriftaó fe chamou Paul# ê&

fanta

Fernão

íànta fé, coimo ja diíTç, onde aquelle anno íc não pôde auiar para o eifeito •do que defejaua, por cauia das obri- gações do feu offício,cj era Reitor v- niueríal dos collcgios da índia da co- panhia de Iefu,& pela morte do Vi- forrey dom JoãodeCaftroque falle- ceo em Goa o lunho íèguinte do an- no de 1548. porem Garcia de Saa q lhe íocedeona gouernança,odefpa- chou o Abril do outro anno^le 1549 com prouifoés para dom Pedro da Syiua que entaó era capitão de Ma- laca,lhedar embarcação para on- de o Deos encarainhafíe. Com efte deípacho chegou o padre a Malaca o derradeyrodiade Mayodo mefmo anno de 49, & fe deteueahy alguns dias pelo maoauiamento quefe lhe deu, mas em fim deípois de paífar ahyem Malaca muy tos trabalhos, fe embarcou cm dia de S.Ioaò do mef- mo anno ao Sol pofto em hum jun- co pequeno de hum Chim, que fe dezia o Necodà ladrão, & ao outro dia pela menham íe fez á vella, & fe partio^a qual viagem também pai- Jou aífaz de trabalho, de que me ef- eufo dar relação, porque me parece deíneceflario eícreuer ífto taõ miu- damente, nem farey rrlais que tocar, breuemente o í|ue for mais impor- tante a meu intento conforme apou- ca pofsibilidade do meu fraco enge- nho. O padre chegou em dia daAf- fumpçaó de noífa Senhora,íme hea quinze dias do mes de Agoftoao porte de Canguexumaaem Iapaó,q era a patna deíle Pauio de fanta Feer onde foy beái recebido de. todo o

z5MenúezJPinto. 272,

pouo,& muytomilhor do Rey,por- que efte lhe fez muy to mais feitas q todos,acompanhadas de muytas Ôc grandes honras,& moftrou que leua- ua muy to gofto do bom propoíito com que entraua no feu reyno. E to- do o tempo que o padre aly efteue, que foy quaíi hum anno, fempre el Rey lhe fez muytos fauores, dos quai* os bonzos, que faó os feus fa- cerdotes,fe ouuerão poj^muyto afro- tados, & por muytas vezes lhe foraó à mão,pela larga licença que dera pa ra em fua terra fe pregar húa ley que tanto contrariaua as fuás. Ao que el Rey hum dia ja de muyto enfadado delleslhe refpondeo, fe a- ília ley vos contraria as voífas, contrariemlhe as voíTas a fua,com canto que feja eu o juiz deísa caufa, porque eu não ey de coníintir que a voííâ cólera o eícan- dalize, porque fie efírangeyro que íè. fiou em minha verdade, da qual re- pofta os bonzos todos íè eícandali- zaraó grandemente. Mas como o in- centodefte bemauéturado padre foy fempre augmentar o fantonomede Chrifto entre a géte mais nobre, por lhe parecerque dahy refultaria mais facilmente â cònueríaò do pouo min do,determinou deíepaísar daly a ai gus dias ao reyno de Èirando,que era adiante para o Norte cem legoas,co- mofez quando lhe pareceo tempo. E na companhia de oitocentas almas que coma fua doutrina aly conuer- tera> deixou o Paulo de íanta fee^a qual perfeuerou emasidòiabnnar poc efpaço demais cinco mefés que aly> efteue çq çíles, no fim«:dos quais, poií

fe ver

-

Terigrmapès de

íè ver muyto afrontado dos bonzos, fentoo íèu CubíiiScãírnãã que he

fe embarcou para a China, onde foy morto por hus ladroes que no reyno de Liampoo andauão ao lãlto. Os oi - tocentos Chriftaós quealy auia,inda que ficarão fem o padre, nem outro irmáo que os doutrinaiTe, permitio noíío Senhor que todos fe coníèrua- rão de maneyra na coma doutri- na que o padre lhe deixou efcrita,q em lete anno& que eftiueraò aly fós ícm ferem viíkados, nenhum delles tornou atras do feu fanto propoíito. PaíFados poucos mais de vinte dias deípois que o padre chegou ao rey- no de Pirando, lhe pareceo bem pal- par toda a gentilidade, para ver qual terra acharia mais acomodada a feu intento. Tinha elle então comfig-o o padre Gofme de Torres Caftelhano de naçaó, que pela via de Panamá, fendo foldado,fpra ter a Maluco em Liía armada que o Viforrey da noua Efpanha mãdaranoanno de 1544

fupremo no feu facerdocio, & com elle outras três dignidades qie fe in- titulão em Reys, das quais cada hua porfydiflintamente entende no go- ucrnodajuítiça, & da guerra, & no bem da Republicano qual caminho paífou muytos & muyto grades tra- balhos pela afperezaafsi daíerranias como do tempo em que foy que era no inuerno,& em clima de quarê- ta graos,ondc os frios.as chuuas, &os ventos faó de maneyra que não ha qué os pofla íofrer, Sc elle hia muy- to fako do que era neceíTario,afsi pa- ra iftojcomo para fuftentar a vida, & em alguns paííos que eítauao pelos' carninhos, em q os eftrangeyros não podiãopaíTarfem pagarem humcer to tributo, elle porque não leuaua queopagaíTe paíTaua por home de pede algum homem nobre que no caminho fe lhe offerecia, pelo qual lhe era neceíTario, para poder paflar

o qual por incitação & confelho do em faluo, aturar o andar da caualga padre meftre Francifco defpois em dura daquelle aquém acompanha--

Goa fe meteo na companhia,& def- pois o leuouporfeu companheyro, & a outro irmão leigo também Ca-' ílelhano natural da cidade de Cor- doua, que íè chamaua loaó Fernan- dez,homem muyto humilde & muy tovirtuofoi A efte|ldre Cofme de Torres deixou agora o^adre meftre Francifco nefte reyno & Cidade de Fi rando, & acompanhado deftoutro padre loaó Fernaadez fe partio para a cidade do Miocoo,que he no mais oriental de toda a ilha Iapaõ,porque foy informado queahy rêíidia daf*

ua. Chegado em fim a efta infígne cidade Miocoo,metropoli de toda a- quelia Monarchia da nação íapoaj fe não vio como quifera com efte Cu»> bumcamaa,por lhe pedirem poriíTa cem mil caixàs^que eraó íeifcétoscrii, zados,de que fe elle por algúas vezes moftrou muyto magoado de os não ter para effeituar rito que tanto defe- jaua. Aísi que em toda efta terra não fez nenhum fruyto^tamo pelas guer- ras & diíTençoés que naquelle tépo tinhaò hús pouos cos outros (que he couJa que entre elles ha ordinaria- mente)

Fernão

mente) como por outros muytos in- conuenientes largos de cotar, donde fe conhece claraméte cjuamanho pe- lar o inimigo da Cruz recebia difto q efte feruo de Deospretédia fazer ne- fta terra. E vendo o padre o pouco frnitoq fazia nella, por não gaftar o tepo debalde, fe paliou defta cidade do Miocoo para a do Sicay,q era da- ly dezoito legoas, & aly fe tornou a embarcar para o reyno de Firando onde deixara o padre Coime deTor res,no qualfe deteue mais algús dias poré eftes não os gaitou em deícãçar dos trabalhos paíTados^as em fe of- ferecer a outros mayores de nouo. No fim defte tépo fe paííòu ao reyno de OmanguchèjOndeconuerteo pafc íànte de 5000, almas em pouco mais de hu anno q eíleue na cidade, q foy ate 5.de Setébro do anno de i55i.por ^ entaó tédo nouas q ao reyno do Bu go era chegada hua nao Portuguefa, mandou logo la por terra q eraó 60; Legoas,hum Chriftão por nome Ma- teus, có hua carta ao capitão & mer- cadores deíla,q-deziaafsi. O amor & graça de Iefu Chrifto noíTo verda- deyro Deos ôc Senhor faça por Tua mrfericordia continua morada é Tuas alrnas,amen. Por algúas cartas daui- fo que vierão deíTa cidade,tiueraõ os mercadores deíla recado da boa che- gada de v. merces,mas porq efta no- uamenao pareceo tão verdadeyra somo em meu coração defejo, deter- miney de mãdar faber por eíTe Chri- ftão a certeza delia, pelo q lhes peço muyco q me mande dizer donde vé, Sc de q porto partirão, ôc em q tepo

éMende^Tínto. iy$

determinão tornar para aChina,por q queria/e Deos N.Senhor for diíTo feruido,trabalharo pofsiucl porpaf- far efte anno à índia, & de fy me ef- creuão por feus nomes, o da nao,& o do capitão della,& toda a mais certe- za da paz & da quietação de Malaca, & fe aparei hé,cò furta aos negócios nu pedaço de tépo,para examinarem Tuas confciencias,porq efta he a fazé* da em q o ganho eftà mais certo q na feda da China, por muy to q fe nella dobre o dinheyro, porq eu determi- no^ Deos N.Senhor for íeruido,íer la logo elles tãto q vir feu recodo, Chrifto íefu, por quéhe.nos tenha a todos de íua mão,& nos conferuc ne- fta vida por graça no feu fanto ierui- ço,amen. Defta cidade de Omangu* che, 01. de Setébro dei 551, Irmão

em Chrifto de voftas merces,Francif- co. O meníageyro efta carta che- gou onde nos eftauamos, ôc de todos foy tão recebido como era razão, «Sc lhe refponderaó logo por féis ou fete vias3afsi o capitão como os mer- cadores,em q lhe derão muitas nouas da índia ôc de Malaca,& q elles deter minauão de fe partiré daly a hu més para a China a fua nao,onde fica- nao três á carga q em Ianeyro auião de yr para Goa, em hua das quais ef- taua feu amigo Diogo Pereyra, com ^uéfua reuerencia iria muy to a fua vontade. efta repofta defpidirao logo o Chriftão q lhes trouxe a car- ta,© qual hia contétè pelo muy to q lhe deraó, &pelo bo gafalhadoco q foy tratado os dias q aly efteue, ôc em cinco dias de caminho chegou à M M cidade

cidade de Omanguche,onde o padre pela certeza da nao, & pelas cartas q lhe trouxe o recebeo grande aluo- roçoA daly a três dias fe partio para a cidade do Fucheo,q he a metropoly do reynodoBungo, onde nefta nao q tenho dito,q era de Duarte daGa- ma,eftauamos então trinta Portugue iesjfazendo noflas fazendas,& fa- bado chegarão a nòs três lapões Chri fíaòsq vinhão em fua cópanhia, pe- los quais o capitão Duarte da Gama foube q o padre ficaua daly duas le- goas em lugar q le dezia Pimla- xau com dòr de cabeça,& os peis in- chados das 6o. legoasde caminho q até ly unha andados& q lhe parecia, fegúdo vinha mal defpofto, que auia mifter algús dias para fe curar,& po- der acabar o caminho, ou hua caual- gadura em que viefle fe a quifefle a- ceytar.

CAT. CQX.

Qomo eSfe bemauenturado padre

chegou ao porto de Finge ondeef-

taua a nojfa nao^ ç> do quepajjou

atèjr ver el Itej do antigo a

cidade Fuchco.

Abédo Duarte da Ga- ma capitão da nao q o padre eííaua naquella aldeã de Pinlaxau tão ínal defpoílo como os treslapoésljhe tinhão dito, mandou logo recado aos Portugqefes q então eftauão daffento na icidade vendédo fuás fazendas, que era húalegoado

Teregrinaçoes de ]

porto ode a nao eftaua furta, os quais vierao logo com grande aluoroçjo>& praticando no que fobrc ifto fariaó, feaíTentou que o foliem buícar ao lugar onde ficara doente, o que logo puíeraõ por obra. E tendo nós anda- do pouco mais de hum quarto de lc- goa,o encontramos que vinha por caminho em cópanhia de dous Chri- ftaós que auia menos de hu més que fe tinhão conuertido â Fe, homés fi- dalgos principais daquelle reyno,aos quais por efte refpeito de fe fazerem Chriftáosel Rey de Omanguche ti- aha tomados dous mil taeis q tinhão de renda, que iaó três mil cruzados* E como todos hiamos veftidos de fe-> íta,& em bós eauallos, quando o en- contramos da maneyra que vinha,fi« camos muyto confufos, pelo vermos; vir a pècòhú fardel âscofíasem quê: trazia todo o neceflario para dizerf MiíTa,que eíles dous Chriítaós a re-< uezes lhe ajudauão a leuarjCoufa cer- to que nos confundio & entriftecea muyto: & não querendo elle aceytar nenhúa caualgadura,nos foy forçado acompanharmolo a pe, & bem con-f tra fua vonrade,de que os dous Chri- ílãos ficaraá muyto edificados. Che- gados ao rio de Finge,ònde a nao cl» taua furta,foy recebido nella com to* das as mofttas de alegria quantas fc lhe puderaó fazer, & fe lhe defpa- rou a artilharia toda por quatro vezes, em, que fe tirataó feííema Sc três tiros de ber^os,r<Sc falcoens, & camello^, &. todos, mais com pilourosvi& ro»cas, os quais, por cauík das cócauidadss que auunasfèiiialj

íizerão

Fernão Mende^Pinto.

flzerão hum grandifsimo eílrondo. El Rey que neíte tempo eílaua na ci- dade,quândoouuio aqueále eítródo tamanho,efpantado de coufa taò dei acuíhimada,& parecendolhe que pe- lejauamos com algúa armada de la- drocSjde que ja auia rebates na cida- de,mandou logo a grande preflà homem fidalgo a íaber o queaquil- lo era, o qual chegando a Duarte da Gama lhe deu hum recado da parte dei Rey,& lhe fez aigús offerecimé- tos conueniétes ao tempo. Duarte da Gama lhe reípondeo com a cortefia deuida ao recado, & aos orTerecimé- tosq lhe fizera, & lhe diíTe q fefteja- uamoS a chegada do padre poríer home Tanto, & a que el Rey de Por- tugal tinha muyto refpeito. O fidal- go tão eípãtado difto q ouuira, como do mais q tinha vifto, lhe tornou di- zendo, vou cófuío no q ey de dizer a el Rey,porq os noíTos bonzos lhe certificado q efte homem não he ían- to como voíbutros dizeis, mas q por vezes o viraó fallar cos demónios que tinha praçaria,& q por feitiçaria obrauaalguasmarauilhas de que os ignorantes fe efpantauão,& q era po- bre^ tão pobre, q até os piolhos de qandauacuberto auião nojo de lhe comeré a carne, pelo q temo q defta vezpercaoelles o credito cóelRey para nuca mais os ver ouuir, porq home por quem vos tanto fazeis,& a quem tanta honra feftejais deíTa maneyra,de crer heq na verdade hc o q vos dizeis,& não o q elles quife- raòperfuadirael Rey,OsPortugue- fes fe tornarão a retificar no q tinhaõ

274.

dito, &certificalo denouodaquillo em q elle ja tinha caydo,& o informa raõde toda a verdade, de qellefoy muyto eípantado, & íe tornou logo, & chegando á cidade deu conta a el Rey do cf paflaua, & lhe diíTe que a noíla artilharia q ouuira fora para fe ftejarmos a chegada do padre,coma qual eflauamos todos taó contentes, comofetiueramos a nao carregada de prata, pelo q eítaua claro fer tudo mentira quanto os bonzos tinhao di- to delle- & q affirmaua a íua alteza cj era home de roílo tão graue q nin- gué o veria q lhe não tiueíTe muyto acataroéto. A q el Rey relpondeo,té razão no que fazem,& tu muyta nif- fo que prelumes delle, & mandou lo* go viíitar o padre por hum moço fi- dalgo mtivto íeu parente, pelo qual lheefcreueohúafcarta que dezia ak fi. Padre bonzo do Chem ahicogim, a tua boa vinda â minha terra feja tão agradauelaoteuDeosquãtolhe fatisfaz o louuor dos feus íàntos, por Quamfio nafama, que mandey a eC- fa nao fuy certificado da tua chega- da de Omanguche a Finge,de que fi- quey tão contente quanto todos os meus de mim te diraó,pelo q te rogo muyto,ja q me Deos não fez dino de te poder mandar, q por fatisfazeres a efte meu defejo com que minha al- ma te ama, me queiras bater antes que venha a menham ao poftigo da eafa em que te efpero,ou me mãdes que eu te importune fem efquiuan- ça de brados, com pedir de joelhos proftrado por terra ao teu Deos.que eu confeíTo Ter Deos de todos os deo- MM; fes,

Terigrin

fes,&milhor dos mihiores,q viue nos çeos,q pelos gemidos da tua doutri- na manifefte aos inchados do tempo quanto pobreza lhe agrada a tua lama vida, paraq a cegueyra dos fi- lhos de nofía ~arne fe não engane c5 as falfas promeíTas do mundo, &de tua faude me mãda dizer paracj dur- ma contéte no repoufo da noite até q os gallos me efperté,& digão q vens por caminho. Efte moço q trouxe ci- ta, carta veyo em bua funee de remo do tamanho de híía boa galeota,acó- panhado de trinta mãcebos fidalgos, & home muito velho por feu avo, por nome Poomindono, irmão baf- tardo dei Rey de Minâto, o qual fe deípidio do pad re & do s mais Portu- gueles,q então eftauamos todos có.el le,& quádo fe tornou a embarcar na funee em q viera, a nao lhe fez falua de quinze tiros de artilharia, de q o tnoço ficou aflaz tente & oufano, & olhado para o ayo q eftaua junto delle,ihe diíTe,grãde deue fer o Deos defta géte,& íeus fegredos muito ocul tos a nos,pois permite q homem tão pobre como os bonzos affirmaõ a el Rey q efte era lhe obedeção as nãos dos ricos, & luas bóbardas manifefte bramidos taò grandes,q o Senhor fefatisfazcó mercadaria taó baixa & ião deíprezada na opinião dosq viué na terra,q parece peccado graue o péíamento q nifto ie occupa.A q o ve lho refpódeo,bé pode fer q aja efte a veniaga de fua pobreza por tão agra- dauel ao Deos q ferue, q em a fegujr por feurefpeito fique muyto mais ri- co q os ricos, do múdojinda q os no£

dpes de

fos bózos digâó taó oufadamente 0 cótrario difto aquê os ouue.Ghegãdo o moço á cidade,fe foy logo a elRey & o gofto q leuaua pela muita ho- ra q fe lhe fizera por tefpeito do pa* dre,lhe difte,conuéq voíla alteza não fale efte homem da maneyra q os bonzos lhe difieraó,porq lhe affirmo q fera grande peccado,né tenha voffa alteza para íy que he pobre, porq o capitão todos os mercadores me diíleraó, q fe elle quifefle a nao afsi como eftaua,lha danaó logo lem fal- ta nenhua. A q el Rey refpondeo,e£. tou confuíodiííoque dizes,& muyto mais do q os bózos mediíTeraó,rms eu te prometo q eu os tenha daquy por diante na cota q elles merecem. Ao outro dia tanto que foy menhã clara, o capitão Duarte da Gamacó todos os mercadores & os mais Por- tuguefes que vinhaó na nao íe pufe- raó em coníelho fobre o modo que fe auia de ter nefta primey ra vifta q o padre auia de ter com el Rey,& por rodos foy aftemadoque por hora de Deos elle fofie co mais aparato q.pur deíTè fer,porq cóúTo ficariaó os bon- zos por mentirofos no q tinhaó dito delle,porq claro eftaua q da maney- ra que o vi fiem tratado nefta conta o temo, & por ifto entre gente que naóçosheciaa Deos era muvtone- ceilàrió fer ifto como.éllesdeziã©. E ainda que eftarefoluçaõ foy em par- te contra o parecer do padre, toda- uia pelas razoes quefe derão lhe foy a elle forçado condecender cos pare- ceres dos mais.Com ifto nos fizemos logo todos preftes o milhor que ca- da hum

Fernão Mende^Tinto.

27í

dahumentaó pode, & nos partimos para a cidade embarcados no batel da nao,& em duas manchuas feus toldos & bandeyras de feda, & com trombetas & fráutas q de quãdo em quando alternadamente hiaó tangé- do,a qual nouidade caufou tamanho efpanto na gente da terra,q quádo chegamosao caiz não auia podermos defembarcar por nenhúa maneyra. Aquy chegou o Quamfy andono ca- pitão da Canafama por mádado dei R ey, & trouxe húas andas em q o pa- dre foíTe,as quais elle naõ quis acei. tar por nofíb refpeito, & daquy aba^ lou a para o paço acópanhado de muyta crente nobre & dos trinta Por* tuguefes todos,c6 mais de outros ta? tos moços noííos muyto tratados, & cg cadeas douro ao pefcoço, o pa- dre leuaua húa loba de cha.malote preto fem agoas híía fobrepeliz en cima, & húa eftola de veludo verde feu fauaftro de brocado, o noíTo capitão hia hua cana na mão como porteyro mór,& cinco dos mais hora dos & ricos, & de milhor nome leua^- uaó certas peças nas mãos como cria- dos feus, húleuauá liuro metido faço de citim brãco,outro húaschi nelas de veludo preto q entre nós ífe achara6,outro hua cana de bêgala caftáo douro,outro hum retabolo de N.Senhora enuoltoriio de da- mafeo roxo,outro íobreyro de pequeno,& afsi efta ordé & ef- te aparato paíTamos pelas principais noue ruas da cidade, onde auia tanta quantidade de gente, q ate por cima dos telhados tudo era cheyo.

CAT. (XX

T>as honras que elTieji de ^Bungo fez^ao padre me f ire Francifco eíte orimeyro dia queje vio com elle.

O m efta ordem que digo chegamos ao pri- meyro terreyro das cafas dei Rey,onde efc taua o Fingeindono capitão da guarda do paço com feifc centos homés de arcos, & lanças, Sc treçados bem guarnecidos, o que íe julgou por eftado de Rey grandioíb, E paíTando nos pelo meyodetoda efta getc,entramos nua varada muy- to comprida,onde os cinco que atras diíTe que leuauáo as peças, poftos de joelhos as offereceraó ao padre, de cj osfenhores que eílauão preí entes fí- zerão tamanho eípanto que deziaó hús para os outros, vaófe enforcar os noíTos bózos,& não apareção mais dunte da gente, porq efte home não he o q eíles. diíTeraó a el Rey, fenao coufa vinda da parte de Deos, para confuíaó dos inuejofos. Paliada efta varanda chegamos a húa grade caía, em que auia muyta gente nobre, altimasde citins & dedamafeosde muitas cores,có léus treçados de cha- paria douro,naqual eftaua mini- no de féis até fete annos de idade que velho tinha pela mão, o qual em chegando ao padre lhe diíTe,tua boa entrada nefta cafa dei Rey meu fe- nhor feja aty & a elle tão agradauel como a agoa q Deos manda do Ceo M M 3 quando

Peregrinações de

quando a lauoura de nofTos arrozes vafTallo a íèu Rey ou a íèu fenhor,

lha pede, entra feguro, & ifto ale- grr,porq te afflrmo em ley de verda- de q todos os bós te queré grade bé, & os mãos fe entriítecem como noite chiuiofa de grande efcuro.Ê reípon- dédolhe o padre por feu modo a eí- tas palauras outras lemelhantes,o minino íe calou, & defpois q .ouuio tudo o q lhe elle diíTe,lhe tornou di- zédo: grande deue de fer a tua vétu- ra, pois viefte do cabo do mundo a íer infamado nome de pobre em terras alheyas, & muyto mais grade íèm cóparação a bondade do Deos a que cita confufa opinião do mudo a- grada,de q os noííos bonzos todos e- fíaó taó alheyos q juramétos afíir- maó publicaméte,cj molheres po- bres não pode fer faluos por nenhum modo. A q o padre reipódeo, permi- tira o Senhor q viue reynãdo encima nos ceos,tirarlhe anuué.qté íbbre os olhos,& então conhecerão oerro da íua cegueyra,& quãdo Deos lhes dér efle lume,então lhe daria graça para fe deídizerem defla opinião falia q fegué. E indo afsi eíle minino prati- cando co padre em couías altas & de muytafuftancia,de q todos hiamos aífaz efpantados peia pouca idade q tinha ao que parecia, entramos nou- tra caía em q eflaua húa grande íò- ma de moços filhos dos fenhores do reyno, os quais em vendo o padre fe leuãtaraõ todos em pê,# defpois de fazerem feusgromenares, pondo por três vezes a cabeça no chaó, q he en-- tre eiles hua tamanha corteíia, que a naó faz íenaõ o filho ao pay, ou o

IhediíTeraódous delles como q falia- uão em nome dos outros, tua boa vin da padre bonzo fanto, feja taó agra- d^uel a el Rey noíTó fenhor, como o rifo do minino mimoío paraarnãy q o recrea no feu peito, porq te jura- mos pelos cabellos de noíTas cabeças q atè as paredes q ves com teus olhos nos roandaó q feftejemos tua entrada para gloria do Deos de q em Oma»- guche diíTefte tantas marauilhas quã- tas temos ouuido. E fazédo todos moítra de o quererem acompanhar, o minino q o leuaua pela mão lhes x- cenou q fe tornaflem a aíTentar». Dat- quy entramos em hua varanda rouy* to comprida que corria ao longo de húas larangeyraSj&paíTando por ella fomos dar noutra cafado tamanho das dtias primeyras, na qual eftaua o Facharandonoirmaõ dei Rey,q def- pois íocedeo em Rey de.Omãguche> a cjueo padre fez hum grande acata- mento,ao qual elle também reípon- deo as mefmas corteíias dizendo, cert-ificotepadre bonzo q hoje he o dia do prazer deita cafa, &.em que ei Rey meu lenhor Te ha por mais rico, q fe tiuera os trinta & dous tiíouros . da prata da China. Tua vinda a ella feja para itanco feu goíto fk hora tua, quanta tu pretendes por remate de teus defej!os.O minino q o leuaua có- íTgo lhoe tregou entãoa elle, &. [cdà xouiícar Ihú pouco atras,o qual nouo modo de corteíia nos pareceo muito bem. Daquy entramos noutra caía óde eftauíío muitos fenhores do rey- no q també lhe fízeraó muito grades

honras,

Fernão Mendc^ Tinto, 276

honras,& aquy fe deteue hum pouco geralmente todos dizem, & prouar

em pracicando com elle, até que de dentro de outra cafa veyo rejado ■queentraífeJ& entrando logo com a mayor parte daquelles fenhores de q eíbua acompanhado, chegou a hua muyto rica caía onde el Reyjâefta- uaempé, que em vendo o padre o fahio a receber cinco ou íeis paífos fo ra do lugar onde eítiuera aíientado. O padre fe lhe quis inclinar aos peis, mas elle o não conílntio, antes o le- •uou nos braços,& lhe fez por três ve- zes o gromenare,que he (como atras diííe) corteíia de filho a pay, ou de vaííallo a fenhor,de que todos os fe- nhores que eftauão prefentes ficarão muito efpãtados,& nòs muyto mais, & tomandoo pela maó,o íèu irmão, que ate ly o trouxera comfigo,fe dei xou ficar hum pouco atras, & aífen- tandofe no eftrado, aíTentou o padre igualmente comfigo, ôc a feu irmão mais abaixo hum pouco,&aos Por- tugueíes defronte junto dos fenho- res do reynoque ahy eftauão, onde fe fizeraò algús comprimétos de par- ce a parte,em que cl Rey fe moftrou ao padre muyto amigo, ôc o padre lhe refpondeo por palauras tão agra- daueis ao feu modo,que olhando el- le para íeu irmao,& para os mais fe- nhores que eftauão na caía diíTe em voz alta que todos o ouuirâõ, quem pudeíTe preguntar a Deos o por onde iftocaminha?ou qual hea caufa por- que permitio auer em nós tamanha cegueyra,ou nefte homem tamanha ouladia? porq por húa parte vemos nòs agora por nofTos olhos o cj delle

elle o que diz com húas palauras que não tem contradição, & tão próprias a toda a razão natural que quem coníiderar nefta marauilha le confun dirâ,& a não negara, mas antes, fe ti- uer bom juizo confeíTará fer verda- de^ por outra parte vemos os nof- fos bonzos tão embaraçados nanof- ía verdade,& tão defuairados naquil lo que prégaó, que oje dizem húV coula ôc a menham outra,de maney- ra que toda a fua doutrina para fio- més de juizo claro he confu(aó,& em partes duuida de faluaçaò.Hum bo- zó que eítaua preíente, corrido difto que el Rey dezia lhe refpondeo, não he iíTo matéria em que voífa alteza fe pofía refoluer tão depreda, pois nãoeítudou em Fiancima, ôc fe tem algua duuida preguntea, ou pregun- tema a mym.,& eu lha declararey, ôc então vera quão verdadeyro heoq pregamos, & quão bem empregado o que por iflò nos dão, a que el Rey lhetornou,poisotu fabcsdizeOj&ca larmeey. O Faxiandono então lhe propôs fuás razoes, & a primeyra dei lasfoy,quequãtoaos bonzos ferem fantos naó auia que duuidar,pois vi* uiaotoda a vida em religião agrada Liei a Deos,& gaftauão a mayor par- te da noite em rezar pelos q lhe dei- xauão o leu, ôc guardauaó perpetua caftidade, & não comião peixe fref. co,& curauáo os doétes,& iníinauaõ os filhos dos homes a bós cuftumes, ôc pacificauão os Reys em fuás difcor dias,paraque os pouos viuão quietos, dauáo cuchiíniacòs recambiados por M M 4 letra

m

Terigrinâfoes de

letra para o Ceo, para la todos os nos de me tocarem. El Rey forrin'-

dofe da íòberba do bonzo,olhQU pa- ra o padre, como que lhe dezia que te parece? & elle pelo aplacar lhe ref- pondeo, deixe voíTa alteza iflo para outro dia em que o bõzo efteja mais defagaftadoa que el Rey tornou,tés razão no que me dizes, & eu muyto pouca em o ouuir. E mandandoo le- uantar lhe difie, quando ouuerês de fallarde Deos não te juftífiques c5 Deos,que peccarás grauemente, mas com paciência por amor delle te pur- ga da cólera que trazes comtigo, & ouuirteemos. A que o bonzo comp afrontado virandoíe para os q efta* uãoprefenteSjdiísc, hiacataa paísiram figiancor pafsinaU^ que quer dizer, Rey que tal diz fogo do Ceo o abra- fe,& leuantandoíè com muyta pref- fa,íem nenhum modo de cortefia, Te foy roznando pela porta fora,de que osíenhores todos ficarão zombado, & dizendo alguas galantarias a feu modo com que el Rey fe abrandou, & ficou de todo fora da cólera que et nha tomado,& fe rio com goílo por- íeis ou lçte vezes. Após ifto, porque eraóji horas, lhe trouxeraó de co- mer,& pedio ao padre que quifeíle jantar com elle,de que elle fe eícuíou por três vezes com muyta corteíia, dizendo que não tinha necefsidade, a que el Reyrefpondep, muyto bem fey que naódeuesde ter fome*- -pois dizes que não tês necefsidade de co- mer,mas também entendo quejâfa* beras (fe ésiapaó como nós) quehe eíle oíferecimento entre os Reys o mais emo final de amor que íe lhe

pode

mortos ferem ricos, & terem muyto de fen,& fuftemauáode noite fuás efmolas as almas que chorando lhe pedião confelho nas aflições & trabá lhos que padeciaó por ferem pobres, & tinhaô grãos nos collegios doBã- dou*confirmados pelos Cubucamâs Ôí groxós do Miacoo, & fobre tudo eraó muyto amigos do Sol,das eftrel las& dos íantos do Ceo para fallaré fempre de noite com elles, & telos muytas vezes nos braços, & aefte modo diííe outros muy tos defatinos, em algús dos quais falou a el Rey tama cólera, que por quatro vezes lhe chamou foxidehuíã,que quer di- zer,peccador cego fem olhos. El Rey ficou tão corrido do que eíle bonzo lhe difle,& do defeoncerto daspala- uras com que lho diíTe, que olhando duas ontres vezes para feu irmão lhe acenou que o fizeíTe calar, o que o Facharandono (que afsi fe chama o irmão dei Rey) logo fez, & fazendo erguer o bonzo donde eítaua aíTen- tado,lhe diííe el Rey, íegíido temos ouuido na proua, & na juítificaçaó q quifeíle dar da tua fantidade, não ta queremos negar, mas também te cõ- feíso que a loberba das tuas deíèn- freadas palaurasnoseícandalizou de maneyra,que oufarey a jurar a meu íãluoque mais parte temo inferno em ty,do que ta tês nos ceos onde Deos tem fua habitação^ que o bó- zo lhe reípondeo, tempo virá em q me eu não quererey íeruir dos ho» mes,nem elles,nem tu, nem todos os Reys que agora gouernão feraó di-

Fernão Mende^Pinto.

V7

pode moílrar,'& porque eu tenho nefla conta, me ey por muyto hon- rado em te conuidar. A cjue o padre fazendo moílra de lhe cjuerer beijar o treçado que tinha na cintaa modo de lhe dar graças como entre elles fe cuítuma,lhe difse, Deos noílo Se- nhor,por cujo refpeito me iílò fazes, te comunique de lado Ceo tanto da fua graça, que por ella mereças pro- feíTar aíualey como verdadeyro fer- uo leu, paraque no fim de teus dias mereças poííuillo, A que el Rey lhe tornou,concedo niíTo que por mym lhe pedes,com tanto que tu de eu eíle jam os ambos jutos para praticarmos neftascoufas que agora paflamos. E orterecendolhe com a boca cheya de rifo o prato darroz que tinha diante de fy,lhe tornou de nouo a rogar que comeflTe, & o padre o fez logo, pelo qual nòs todos, afsi o capitão como os mais Portuguefes nos pujemos cos joelhos em terra por aquelia gra- de honra que publicamente & a def- pe.yto dos bonzos fazia aopadre,fem embargo de lho elles terem mixiri- cado.

CAT. CCW.

Como dcfpidindofe o padre delTZgy

p ara fe embarcar para a fjoina o

deúuemo mais algus dias, & de

alguas dif putas que teue cos

cBon^os.

Vareta & íeis dias eraò paíTados deípois que eíle bemauentura- do padre entrou neíU cidade £u«

cheo,metropoli,como ja diíTe,do rey no do Búgo na ilha lapaò, nos quais fempre entendeo tanto de propoííto na conuerfaó das almas, fem tratar doutra nenhúa coufa, que de mara- uilha Portugucz nenhum podia ter delíe híía hora,íenao fe era ás noi- tes em praticas e!pirituais,& nas me- nhãs nas confiíToés. E eftranhando- Ihe algúas vezes ifto alguns dos feus mais familiares, dizendolheqne pa- recia aquillo algum tanto efquiuan- ça,lhe refpondeo hum dia, peçouos irmãos meus em ChriftonoíTo Se- nhor que nuca ao jantar eíperejs por mim, nem me tenhais neíía parte em conta de viuopara me agaíalhardes, porque vos affirmo em boa ver.dade que receberey diffo muyto grande defgofto,porque fabey que o baque-» te em que mais me deleito, & de que tenho mais goíto he ver réderíe húa alma a quem a remio, & confeífar pela boca o que oje còfeísou Saquay giraò principal bonzo de Canafama~ o qual deípois de conceder o que an- tes negaua,fe pos em joelhos com as máosleuantadas no meyo da praça que eífaua cheya de gente, & peran- te todos diíTe chorando, a ty Eterno Jefu Chrifto Filho de Deos fe rende a minha alma,& confeíso aquy com a boca o que tenho fixo em meu co- raçaò,pelo que requeyro a todos quã tosmeouuem que digaò às gentes com quem fallarem que me perdoe por quantas vezes lhes preguey por verdade o que agora eftou vendo 8c entendendo que he falíidade ôc mea tira, E fabey certo irmãos, que efta

fanta

TerigrípJçoes de fanta confiííaõ deite nono feruo de preceito & perfuafaõ dos bonzos era?

Deos & irmão noíío fez tanto aballo em todo o pouo,que fe eu oje quifef- fe,fc bautizarião mais de quinhentas pefloas, mas cóuemtratar efte nego- cio com muytaprudencia,& não lho fazer tão leue por cada dos bonzos que Jhes aconfelhaó que jaque fe hão de perder com fe fazerem Chri- ftãos, que me peçao por iííomuyto dinheyro, & ifto porque lhes parece que não lho dando eu,poflo, por fer pobre,& não ter que lhes dar,perder o credito que lhe elles dizem que nas palaurasque me ouuem, mas o Senhor prouerá com íua mifericor- dianefte impedimenroque o aftuto inimigo da Cruz lhes procura. Et* Rey era todo efte tempo o conuerfou taó eftreitamente,& lhe deu tãto de fy, que em quáto aquy efteue nenhu bonzo teue nunca entrada com elle, antes enuergonhado com a confufaó das torpezas em que elles, fo color de virtude, o tinhaó inftituydo, deu de mão a muy tos vícios que tinha, dequeoprimeyro foy lançar de fy hum moço muyto íeu aceito com q tinha a nefanda conuetfaçaó fenfual. E fendo também antes,por preceito que os diabólicos bõzos lhe punhaõ, auarentiísimo para os pobres, veyo defpois,mouidopelo que efte feruo de Deos lhe prégaua,a fer tão liberal para elles,que quaíi íe lhe podia por nome de pródigo. E mandou tam- bém ío grauifsimas penas que daly por diante nenhúa molher pudefle matar criança que pariíTe, o q dates, na mayor parte delias, pelo meímo

muyto ordinário. E afsi defendeo mais outras três ou quatro couías da mefma maneyra deitas, dizendo aos feusmuytas vezes em publico, que no rofto do padre,como em hum ef- pelho claro fe eftaua enuergonhan- do & confundindo do que até então tinha feguido por coníelho dos bon- zos,pelo que nos pareceo fempre, fe- gundo o muyto diíro que nellevia- mos,que aueria pouco que fazer em fe elle conuerter áFé,fe efte bemaué- turado o cóuerfara mais tempo, mas como a tenção dei Rey eftaua poftá em fito muyto diíferente deftafaciy lidade em que o noífo juizo muytas vezes fe embaraça, não ouue effeito efte negocio de íua conuerfaõ até o dia de oje, mas o fegredo difto Deos oentende,que os homens nem raftejallo podem. Sendo entre tanto* chegado o tempo da nofla embarca cão, & eftando a nao preftes para fe partir, o capitão Duarte da Gama &os mais Portuguefes em compa- nhia do padre, nos fomos hua me- nhamdefpidirdelRey, ôc darlheas graças pelo bom tratamento que nos fizeraem fua terra, o qual.defpoisde nos receber a todos com íèmbrance alegre Sc bem aífombrado,nosdhTe> oonfeflbuos, que me fica magoa.no meu coração porque não poífo fer cada hum de vos outros, pela inueja que vos tenho da companhia que le- uais com vofco,deque eu fico tãoor fèõ,quantò â minha alma meeftá chorando,porque temo muyto que o não ey de veniuis nefta terra. A q

o padre

Fernão

o padre defpois de lhe dar ás graças pelo amor que lhe moftrau*a,refpon- deo,que fe Deos Ihedeffe vida, elle tornaria muycocedo a ver Tua alte- za: o que el Rey lhe agradecco muy* to. No meyo defta pratica & doutras que o padre teue com elle, lhe cor* nou de nouo a trazer à memoria aí- guascoufas importantes a fua falua* çaó em que antes lhe tinha tocado, & lhepedio muyto que lhe lembrai fequáo breueseraò os dias do ho- mem,& quanto em braços trazíamos fempre amorteço nofco, & que lhe affirmaua quefem falta nenhúa feria condenado para íèmpre todo o que não morreíft Chriftão, & que com o fer verdadeyramente,& períèuerar até o fim em fua graça, lhe fícaua au- ção jufta para o mefmo íefu Chrifta Filho de Deos o aceitar por filho feu, ôç o juftiflcar co preço infinito do feu precioío Tangue diante do Padre E? terno. E a efte modo lhe foy difcor- rendo por efta matéria no que tocaua a fua faluação coufas tão efpãtofàs de ouuir,que a el Rey fe lhe arraiarão por duas vezes os olhos dícgoa, que" a todos nos confundio muyto, & de q os íèus que eftauão com ejle fízeraó grande çaíb. Ia a efte tempo os bon- zoSjComo miniftros que eraó do de- monio,andauão vrdindo o q apren- derão delle, vendo que nas praticas pafTadas que o padre tiuera com elles os confundira & enuergonhara a to- dos com razoes, a que naó fouberao dar repoftaj pelo que õ pouo os come çauaa ter em menos conta que dan- tesco qual elles fe dauãoporjnuy*

éAdenâezT^tnto. iy%

to afrontados,& chamauao pormuy tas vezes a efte leruo de Deos ínoco- feem,cáo fedorento., & mais pobre q todos os pobres, piolhoío, &queco»- mia perçobejos, & carne humana da gente morta qdefenterraua de noi- te. E queaquellaspalaurascom que osembaraçaua, eraò mais por pura feitiçaria & arte do demónio que por virtude nem faber que tiueífe. E que el Rey pelo fauor que lhe daua,& pe- la fobeja honra que lhe fazia âuia de fer queimado de fogo, & perder o reyno, porque afsi o tinhaó deter* minado todos os quatro Fatoquis (q quer dizer deoíes de crença) Xaca> Ámida, Gizom, & Canom. E a efte modo deziáo outras muytas prâgaâ á el Rey ôc ao pouo por coníin tirem o padre na.terra,qtie era medo ouui- loSjde que nos os PortugUefes todos andauamos affaz âmedrótados, rnãS valeonos termos fempre el Rey de noífaparte,o qual, defpois de Deos, foy cauía de os bonzos não ouíãrem a íè determinar no que entre fy trâ- zião fuIminado,que era,fegundo def pois foubemos, ordenarem hum ar- ruydo feitiço em quemataífem o pa d & a nòs todos com elle. Quando viraó que por efta via não podião ef- feituarfeu intento, parecendolhes q o podiaõ fazer por via de diíputa, ôc de tal maneyra que o padre ficaffe de todo deíacreditado, determina- rão para ifto de fe valerem de hum grande bonzo que elles tinhaó* que era o cume de toda a fua fciencia, o qual eftauâ por maypral em hum té- plodaly dozelegoasjpor nom&Miay

gimaa;

w 0

Terlgrínaçoes de

gímaa. E com eíta determinado lhe cocara fe defpidir delíe antes que fe

ioraó pedir muyto que quifeíTe acu- dir pela honrados feus deofes. Elle parecendolhe que feria grande hon- ra & credito Teu vencer aquellede quem tantosforaó vencidos, acudio logo com muyta preíTa, acompanha- do doutros féis ou íete tais como elle de que fe quis ajudar, & chegou á ci- dade ao tempo que o padre, como difíe,eltaua em cafa dei Rey co noP fo capitaò,& cos outros Portuguefes defpidindonos delle para o outro dia nos fazermos á vella. Defejofo o bonzo dele lhe não yr das mãos a prefa que tinha por muyto certa, co- fiado no feu faber,porque tinha grão detundo nos collegios de Fiancima ondefe dezia que elle eftiuera trinta annos por lente de prima em húa fa- culdade que elles entre fy tem por fuprema como entre nos a fagrada Theologia,chegandoao paço a efte tempo que digo, mandou dizer a el Rey por hum dos bonzos q vinhaó com elle que eítaua aly o Fucarando- no,porque afsi íe chamaua elle, de cj el Rey ficou carregado, & com fem- brantetriftejpor lhe parecer que pela

foíTè,& iíío c6 húa prefumpçaó taõ foberba & inchada que logo nella pa recia fer verdadeyro miniftro de que o mandaua. E chegandofe para o pa- dre que o agaíãlhou junto comfigo, deípors de ter com elle algúas pala- uras de comprimentos, de que ordi- nariamente cumimão de fer muyto liberais,preguntou ao padre fe o co- nhecia^ elle lhe refpondeo que não porque nunca o vira,de que o bonzo a modo de eícarneo féz muyta feita, & diíTe para os féis de que vinha a- companhado,bem pouco ha que fa- zer nefte ja que me não conhece, cõ-' prando & Vendendo comigo nouen- ta ou cem vezes, pelo que parece cj naõ refponderá muyto a propoilto ao mais que fe lhe preguntar. E tor- nando a íallar co padre lhe difíe, tês inda daquellà fazenda que me ven- deíle em Frcnojamaí A que o padre tornou, naó refpondo a couíà q não entendo,poriírodeclarate mais no q dizes,& então te reíponderey a pro- poíito,porcjue fe eu nunca fuy ruer- cador,nem iey onde heFrenojama, nem falley nunca comtigo, como te

íua muyta íciencia podia embaraçar auia de vender fazenda? efquecertç- o padre com que ficafle perdendo a ha,lhe tornou o bonzo, pelo que

honra que tinha ganhado cos outros. O padre entendendo ifto em el Rey, lhe pedio muyto por mercê q o man daíTe entrado que lhe el Rey em fim veyo a conceder muyto pefadamen- te. Entrado ò bonzo, & feito feude- úido acatamento, lhe preguntou el Rey que queria,a que elle reípondeo quevinha veropadre do Chenchi-

parece que deues de ter ruym memo- ria. A que o padre refpondeojaque me a mym efquece, dizeo tu,' pois és mais lembrado,& olha qeftàs diante dei Rey, O bonzo então muyto co- fiado, & com afp.eito íoberbo lhe diífe,agora faz mil ôc quinhentos an- nos que me ven deite cem picos de feda,em queganhey de dinheyro,

O padre

Fernão Mende^Tinto. , 279

O padre com muyta feucridade & brado o quefez & paíTou nos outros

brandura pós os olhos em el Rey,& lhe pedio licença para refponder, & el Rey lhe diíTe que folgaria muyto com iíTb. Elle então deipois de lhe fazer a cortefiadeuida, fe virou para o bonzo,& lhe preguntou de quan- tos annos era, a que elle refpondeo q de cinquenta & dous: ora pois, lhe tornou o padre/e tu não és de mais que de cinquenta Ôc dous annos, co- mo he pofsiuel auer mil Ôc quinhen- tos annos que foíle mercador, ôc me compraíte fazenda? ôc fe também la- pão não ha mais deíeifcentos annos que he pouoado, como todos publi- camente pregais,como podeferauer mil Sc quinhentos annos q eras mer- cador em Frenojama, que naquelle: tempo,legund.o parece, deuiade fer terra deferta? Dircoey,diíTe o bonzo, ôc veras quanto mais fabemos das coulas paíTadas que tu das prefentes. Has de íaber,pois o não fabes, que o mundo nunca teue principio, nem os homens que nelle naceraó, poderão ter fim,mais que fomente acabarem eftes corpos em q andamos, no der- radeyro bocejo,paranelles a nature* za nos paíTar de nouo a outros milho res, como fe ve claro quando torna- mos a nacer de noíTas mays ora em machos, ora em fêmeas, fegundo a conjunção da lua em que nos parem, ôc defpois que fomos nacidos no inundo, fazemos por vários fucceílbs eílas mudanças, a que á morte nos iojeitos por parte da natureza fraca de que fomos compoftos,& quem boa memoria,, fempre lhe fica lern-

efpaçosda vida pnmeyra. O padre reípondendolhe a efte feu falfo argu- mento,lho desfez por três vezes com palauras & razoes taò claras Ôc eui- dentes,& por comparações tão pró- prias ôc naturais que o bonzo ficou cófufo,as quais aquy não ponho por efcuíar proluxidade, mas principal- mente porque não cabem no eftreito vaio do meu engenho* Porem o bó- zo com todas ellas íe não deceo da fuafalfa opinião, por não ficar tido em menos conta ôc reputaçaó,da em que lhe parecia que todos o tinhaõ* E correndo adiante por íeus ârgu- mentos,por moftrar a el Rey Ôc aos outros ouuintes quaó douto era nas eoufas das fuás leys, & fuftentãdo por parte dos bonzos o que o padre lhe contradizia, lhe preguntou, fazendo difto grade cafo, porque tolhia 0 vfo nefando aos lapoés? A efta fegunda pregunta lhe refpondeo também o padre com razoes tao darás & taó \i nas (as- quais também naó cabem na minha alçada) que el Rey ficou muy tofatisfeito,& obonzoconfufo, mas taò contumaz Ôc emperrado na fua brutalidade,que por nenhua mâney- raquis conceder em razaó que lhe <kííem por muito clara que fofse^até que os fenhores todos que eftauaó prefentes lhe difseraõ, íe tu vês para pekjar,vay.teao reyno de Omangu*' ché que eítâ agora de guerra, Ôc ia acharas com quem quebres a cabe»" ça,porquenos Deos fejalouuado, efi. tamos ca todos em paz, porem fe vês para argumentar ou fuítentar ou ne- gar,

Terigrindçoes de gar,fejYpor palauras manfas & quie- Pelo qual receofos nos os Portugue-

tas como vés que fazefte bonzo ef- trangeyro, q te não refponde a mais que a aquillo paraque tu lhe das licé- ^a,& íe afsi o fizeres ouuirteha fua al- teza^ íènao, jantará, porque fe vão fazendo horas. A iíto,cjue difTe hu daquelles fenhoresque alyeftauão, feípondeo o bózo com palauras taó mal concertadas, q el Rey deafron. tado, o mandou leuantar, & lançar pela porta fora, jura dolhe que íe não fora bonzo lhe ouuera de madar cor tar a cabeça.

CAT. CCXll.

T>o que cfiebemauenturado padre

paffòu cos Tortnguejes acerca da

embarcação^ &> da fegunda

difputa que teue co bon-

2$ Fucarandono.

Sta afpereza com que el Rey tratou o Fuca- 1 randono fez que todos os bonzos fe amotinai Tem contra elle,& con- tra todos os fenhoresdo reyno, por auerem que o fizera em defprezo das fuás leys,& por iíTb fecharão os tem- plos todos da cidade, íem quererem miniftrar ao pouo nenhum facrificio, nem aceitar delle efmolas nenhuas, pelo que foy neceíTario a el Rey pai- rar ifto com muyta prudência, para quietar a vniaó & motim da gente baixa,q jàcomeçauaa fe defenfrear, fem refpeito nem vergonha algúa.

fes que por ifto nos pudeíTe aconte- cer, o de que fempre nos tememos, nos embarcamos ao outro dia, hum pouco mais deprefía do que era ra- zão^ requeremos tambent ao padre q fizeíle o mefmo, pois aly nãoauia ja que fazer, de que elle por então fe efcufou. E tratando entre fy todos os que eflauão na nao fobre eíla efcuía do padre, fe afíentou que o próprio capitão Duarte da Gama o roíTeem pelToa logo bufcar a terra antes que aconteceíTe algum defaíírejO qual fe fez afsi. E chegando Duarte da Ga- ma a húa pobre caía onde o padre efc taua recolhido com oito Chriftãos, lhe deu o recado que leuaua da par- te de todos os Portuguefes, & lhe pos diante com muytas razoes quan to lhe conuinha embarcarfe logo, antes que lhe aconteceíTe algum de - faftre, como claramente parecia que auia de fer fe o não fízeíTe. Ao que el* le lhe refpondeo,ò irmão meu, quem fora tão bemauenturado que pudera merecera Deos noífo Senhor vir fo- bre elleefíedefaítrc de q vos receais, mas muyto bem fey que não fou di« gno de tamanha mercê, & quanto a me embarcar táodeprefla comoeP fes fenhores me pedem,& voíTa mer- cê também me aconfelha, não me cumpre agora fazello,porqué fera ef- candalo muyto grande,para eftes no- uamente conuertidosà Fé, & dar mo titio & occaíiao por méu mao exem- plo de elles poderem lançar mão por aquillo que o demónio por feus fe- quazes lhe procura. E ja que voíTa

mercê

""

Fernão Aíende^JPinto. - * 8 o

rnerce entende de mim efta verdade, traftes & inconueniétes que lhe elle*

podcíe yr muyto embora com to- dos effoutros fenhores,pois por feys fretes lhe eftâtáo obrigado^ porque também o eu eftou muyto mais 8c mais a hum Deos tão mifericordio- foque por meíaluar morreo prega- gado em húa Cruz. Com efte defen- ganole tornou o capitão para anão, tão confufo da efficacia com que ou- uira eílas palauras a eíle bemauen- turado,acompanhadas dealgúasla- grimas.que dei pois de cotar aos Por- tuguefeso que paíTaua, lhes diíTeq quanto á obrigação que lhes tinha de por feus fretes os tornar ao porco de Cantão donde partira, que ahy lhe emregaua & largaua a nao com toda a fazéda para fazerem de tudo o que quifeíTem, porque elle prote- ftaua de fe tornar a terra,& não dc- femparar o padre por nenhum cafo. Eíie fanto propofito do capitão pa- receo muyto bem a todos os merca- dores^ lhe concederão todo o tem- po que para iíTo lhe foíTe neceíTario. E concertados todos com zelo fanto nefte propoíito,fe tornou a por a nao no poufo onde antes eíliuera, de, que o padre ficou muyto coníolado & fa- ti*feito,& os Chriftaõs animados, -& os bonzos confufos 8c magòados,por verem que a pobreza que o padre fe- guia,&deque elles calumniauáo tã- to,era.mais por refpeito doferuiço de Deos,que por falta do neceííario como elles dezião. E porque fabião muyto bem que jâ«l Rey eítaua cer- tificado defta verdade,&que o padre decerminaua de efperar todos os có-

pufeffem,ao que elle dezia & prega- ua, tornarão a concluyr todos entre fy que todauia a difputa deite Fuça- randono.com elle foíTe por diante.E dando logo conta difto a el Rey, lho concedeo com certas condições contrarias as que elles punhao, de q a primeyra foy q ue não auia de bra- dar alto,nem fallar defcorteíías, a fe- gunda que auiao de conceder co que aos ouuintes pareceííe razão, a ter- ceyra que íè auião de accommodat ao que defpois da difpura íe deter- minaíTe por mais votos,a quarta que nãoimpediriãopor fy nem por ou- trem os que fe quifeíTem fazer Chn- ítãos,a quinta,que nas matérias de q fe argumentaíTe quando quifeíTem negar ou prouar, aueria juizes que o determinaiíTem,a feiíla que concede- ria© naquiilo que com razoes natu- rais íe prouaífe, & a que o juizo dos homésfe fojeitaíTe. O que elles to- dos contrariarão dizendo que não era honra fua fojeitaremfe a determt nação de juizes árbitros que não fof- fem bonzos como elles. El Rey to- dauia .infiítio no que lhe tinha apon- tado por lhe parecer razão, 8c elles lho concederão muyto pefadamen- tepor mais não poderem. Logo ao eutro dia veyo oFucarandono tun- do de Miaygimaa,acompanhado de mais de três mil bonzos que para eí- ta difputa fe ajuntaraò,porem el Rey" não quiz que delles todos entraíTem mais que fós quatro, dizendo que a fazja por eukar vnião; >ôp cambem porque não^era honra fu^^elies vi- rem

Teregrinaçoes de

rem três mil contra hum fó. E man- quais paredão ditas a modo de ef-

dando logo recado ao padre,a quem jade mais longe tinha auifadó difto, o capitão ôc os Portuguefes todos o acompanharão com muyto mayor faufto que o do primeyro dia que fe vio comei Rey,& os mais honrados & ricos o fernirão de criados com a- catamentograndifsimOjpondo a tu- do os joelhos em terra,& tendo fen> pre nas mãos as gorras, q craó guar- necidas de pérolas, & de muytas ca- deas douroj da qual vifta com tanta riqueza,tanta honra,& tanto faufto, o Fucarandono, & os outros bonzos feouuerão por muyto afrontados,& fe onxergou nelles grandifsima dor, &grandifsimoeípanto do que vião, porem el Rey Ôc todos os íenhores q eftauão na cala moftraraó teré muy- to gofto diflb,& dezião hus para os outros a modo de remoque contra ©s bonzos,afsi foíTem meus filhos po- bres como efte o he,& diíTeíTem dei- les quanto quifeíTem, porque a ver- dade todos a temos diante dos olhos, & a mentira dos que o contra- rio diíTeraó, he boa teftemunha de fuás inuejas.El Rey lançando as ore- lhas ao que os fenhores dezião, íor- rindoíe lhes diífe em noífo fauor, a mim me certificarão os bonzos com juramento que em vendo eu efte pa- dre arreueílaria de nojo,o que eu en tão cry pela autoridade dos que mo diíferaò,mas daquy por diante aue^ rey que fuás verdades podem fer tais como efta,d as quais palauras & paf- íàtempos que el Rey teue alto,& pe- rante todos, com eftes fenhores, as

cárneo & zombana,ficou o Fucaran- dono tão corrido & os outros bõzos que eftauão com elle, que não oufa- uão a leuantar os olhos, ôc tamanha foy a dor & a inueja difto em todos elles,que virandoíe o Fucarandono para dos quatro que eftaua mais perto dellejlhe diíTemanfo,peloque meus olhos agora tem vifto,& mi- nhas orelhas ouuido, a mim mepa- rece que nos iremos daquy hoje a honra deftoutro dia, & quiçá que mais afrontados hum bom pedaço. Quando o padre entrou da maney- ra que diffe, na cafa onde el Rey ef- taua, acompanhado de muytos fe- nhores ôc gente nobre, elle o agafa- lhou junto de fy, com honras auen- tajadas de todos os outros, & quaíl iguais as quefazia a feu irmão,&deí-' pois de ter com elle algua pratica; ôc fazer quietar a cafa, diífe ao Fucará- dono qne diífeíTe por parte dos bon* zosque razão tinhaõ para fe naó re- ceberem em Iapaõ aquella noua ley que aquelle padre eftrangeyro vinha pregar aos moradores daquella rida de? O bonzo, algum tanto mais brando 6c mais refreado na fuá fp- berba>ou contrafazendo a íba vil pro genie,& o baixo fangue dôde deziaõ quedé.cendia,lhe refrJondeo,que por que era ley inimrcifsima, ôc contraria de todas as fuas^Óc deshonra publica dos féruos de Déos, cpe lhe tinhaõ feito voto de religião, ôc nelía o ti- nhaó feruido comflimpeza devida, vedando com nouos preceitos aquil lo que osCubucamâs paííàdos lh«s

tinhaõ

Fernão Aíende^Pinto.

tinhão cócedido,& affirmãdo publi- camente em todos os ajútamçtos on- de íe achaua,q naquillo q elle lhes pregaua ôc dezia eftauaa faluaçaó dos homcsl& não cm outra coufa ne- nhúa,& q os fantos Fatoquins Xaca, Amida,Gizom,& Cano eílanão em pena perpetua na concaua funda da caía do fumo, entregues por direy to juizo da diuina juftiça â ierpe traga- dora da morada da noite, pelo q pa- recia q por razão de zelo íànto eráo todos obngados,a euitar efte mal de que tantos procedião- El Rey diííe então ao padre q reípondeíle a efta queixa que era gerada (si d efte como dos outros. A q o padre pondo os o- lhos noceo com as maósaleuantadas diiTcq mandaífe lua alteza ao tudo Fucarandono q apontaíTe garticular- méte as razoes q tinhaò elle & os ou tros bózos para íe queixaré do q elie dezia, & então lhe reípóderia a cada húa delias por fy, & q o q fua akeza niíTojulgaíTe,cõ todos os mais q aly eftauão prefentes,iíTo ficafTe determi nado íem o bonzo elie contradizc rem mais o q ellesdeterminaííem.O qael Reypareceobé,& aísi mãdou q fe fizeííc. E tornado de nouo a por íilencio nos ouuintes,o bonzo lhe dif fe,q qual era a caufa porq dezia mal dosfeus deofes? A q o padre refpon- deo qpor íerem indignos daquelle venerauel nome, q os ignorantes lhe punhaó,o qual não competia por ley da razão & de verdade íènão fomen- te ao altiísimo Senhor que formara os ceos & a terra, cují omnipotência & incomprehcníiueis marauilhas o

x8x

noílbentendimetonão era capaz de raftejar quanto méis entéder, & que por efte pouco q os noftos olhos nos moftrauão delleje julgaria ferelle o verdadeyro Deos,& não Xaca, nem Amida,nem Gizom, nem Canom, q não íorao mais que homens muyto ricos, como as fuás eícrituras conta- uão dellesj a efta repofta diíTeraó to- dos,parece qtem razão no que diz. E querendo o bonzo tornar a repli- car no que tinha arguydo,lhedifleel Rey q tracafle doutra coufa, porque aquelia eilaua cócluyda na opinião dos ouLnnçes,de q elle não ficou nada contente. E proíeguindo por feu in- tento adiante preguntou ao padre porq veda.ua paílarem os bonzos le- tras de cambio para o eeo,pois por el las as almas la eraó ricas* ôc fem iílò erão pobres fem nenhu remédio pa- ra poderem ,bufcar fúa vida? a q ref- ponjeo, que a riqueza dos que hião ao ceo não coníii^ia no cochumiacos que por modo de tyrannia os bonzos ca lhe dauáo,fenão nas obras que nefta vida fazião, Ôc q efta fé, peia qual juntamente com charidade fe merecia irem ao ceo, era aquella que lhes elle pregaua.queíe chamaua ley Chriftam,& que o dador defta fan ta & deita ley Chriftam fora icítt Chrifto Filho âc Deos que nefte mu- do fe fizera homem & padecera mor te de cruz para remir todos os pecca» dores que bautizados guardaílem feus mandamentos, & períeueraísem na fua fãta até o fim de íuas vida% a qual limpa,fanta,& per feira, não era tão auarenta que fizeííe exceíçao

KN de

Peregrinações de .

Àt pefíbas,como elles dezião,porque '^í íè acabarão por aquy as dií- náo impoísibilicauíi âs molheres te- *- putas do noíTo sãto padre cobó-

rem faluação, por fer género mais fraco por natureza, nem punha o re- médio que ellas nifto podiao ter, no muy to que lhe a elles defsem por if- fo,como lhe elles dauão a entender, por onde eftaua claro que as íuas leys erão fundadas mais no interefíe dos que as pregauao, que na verdade do Deos que criara os ceos & a terra, & obrara por fy, para a faluaçaõ tanto das molheres como dos homens, o q elles algúas vezes lhe tinhaó ouuido. A ifto refpondeo el Rey,tem muyta razão no q diz; & todos os mais q efc tauão com elle diíseraó o mefmo, de qo bonzo Fucarandono,& os outros q uatro ficarão aísaz confufos & en-. uergonhados, mas ainda tão contu- mazes como dantes nos feus erros. E ainda q me tenhão ouuido dizer al- gúas vezes q éfta nação íapoa.he a mais fojeita a razão que todos os ou- tros Gentios daquellas/partes, toda- uiaosfeus bózos,por húahaturalou- fania & prefumçáo que tem de fabe- rem mais que os outros,tomão muy to em cafo de honra defdizeremfe do que húa vez difseraó, nem concede* rem em argumentos que toque em feu credito,inda que por iífo auentu- r em mil v ezes as v i das.

T)e tudo o mais que opadrepaflou com eíles bonzos ate fe embar- car cara a China.

putas do nolio sato padi zo Fucarãdono, porq ajútando elle a fy outros féis em q tinha confiariça,o vieraò bufcar muitas vezes,& lhe pro punhão muitas queftoés, nas quais ar- guyão sépre muytas couíàs de nouo còtra a verdade q o padre lhes prega ua, & durarão nellas por efpaçó de mais cinco dias,nos quais el Rey íêm pre afsiílio em pefíoa, afsi por folgar de os ouuir por via de curiofídade,co mo pelo feguro que de fua palaura ti- nha dado ao padre a primeyra vez q fe vio elle nefta cidade Fucheo,co mo atras fica dito.E nefte tépo os bó- zosttodos, a fim de o embaraçaré, ou de odefacreditarélhe pregútaraõ por coufas q o entendiméto humano nu- ca imagiqou,& a voltas deitas por ou trás táofímplices, & tão facilès, que qualquer peífoa lhe pudera reípóder pouco trabalho. E alguas vezes tra tauão tãbem de matérias altas, & de muy to pefo, em q ouue muytas alter- caçoens de ambas as partes,das quais afsi como me ajudara minha rude- za,direy fomente três ou quatro que me parecerão de mais fuftanciajpor» q as outras tenho por efeufado tratar delias. E para ifto nos pedia muytas vezesonoÇTo fanto padre que o aju- daíTemos nofsas orações, porq nos certificaua q tinha muyta necefsitla^ de delias, afsi pela fraqueza do fêa engenhojcomo porq entedia que fal- laua o demónio naquelles feus mini- ítTos,perturbadores da ley do Sm&r. Defpois que os bonzos lhe propufe* raó alguns argumentos, lhe quiíeraó

prouar

Fernão Meneie^ Tinto . 2 8 Z

prouar por diabólica fllofofia q Deos tar; & aísi a cite modo propôs outras

era inimicifsimo de todos os pobres, dizendo, q pois lhe negaua os beés q dana aos ricos,final era q os naó ama- m. Effa falPa propoíição lhe contra- riou o padre razoes taó claras, tão aparétes,& tâó verdadeyras,q os bó- zos,inda q lhe replicarão duas vezes, toda via como a verdade naò te re- porta cj tenha efficaciajhe Poy força- do a peíar da Pua natural oufania & prefunçaó concederé no q lhe diííe o padre. Derrubado cíte^ Pe pós logo outro no capo, & ohegandoPe ao pa- dre lhe diiTe,q não tinha necePsidade de vir do cabo do mudo a meter em cabeça á gente q naley q pregaua,né em outra nenhúa Pe podia home hu- mano faluar, porque como ahy auia dous parayfos,o da terra & o do ceo, dos quais nu neceíTariaméte íe auia de gozar por preceito de Deos,híí pa ra trabalho,& outro para dePcãço,eP- taua claro q o parayíb do home era o da terra, pois todos os nacidos, cada por Pua via,Pe gíoriayão no dePcan ço della,os Reys por potéeia & mádo em toda a monarchia terteftre^s grã des q logo após elle,como íaô prin cipes,capitaés, poderoíos ôc ricos, na Pemjuftiça qvlauão cos mais peque^ nos,& a géte baixa nas deleitações & regalos da vida,de mancyra q todos ôc cada nu por Py eraõ juizes defta fé- -tença q cótra elles Pe auia de dar, ôc q asbeftaSj&osbois^orquenefta vida paílaraó Peus dias em affliçoés & tra- balhos, lhes ficaua auçãojuíla para pofluiré o ceõ q o home por inclina- -ção& eíFeito de peccado quisenjei-

muitas razoes tão befhais ôc tão defa- tinadascomo eiras, q tãbem o padre lhe cõtrariou muito Pacilméte. Difle- raómaisq não negauãoq Deos co- mo poderopo criara todas as couíãs quãtas auia no mudo para Peruiço do homé,mas q as q deitas déPpois pro- cederaótficaráo, pela Pojeição q ao peccado,taó imperfeitas em Pua natu reza,que de Peré amargoPas,duras, Ôc brauas,não tinhaõ em íy íuftãcia ne^»' nhúa,peloqúalfoy ne:eíTario para íè cilas reduzirei perfeição' do íeu pri- meyro Per nacer Âmida de todas .cl- las,a quaí tinhao q nacera oitocetas vezes,para dar Per perfeito a oitocen- tas efpecies de coufas qauia no mu-? do. Porq le aísi não fora,como na ver dade fora,íegundo por fuás eferituraí eftaua certificadora naó ouuera géte$ ne múdo.nem coufi âigúa cie qoãcas naceraó nelle; por ótk parecia razão q os horn-és deíPem tantos louuores a Àmida por efla coníèrUaçaó,conlo a Deos pelo beneficio da criação, Eíié arguméto,& falPa filoPofia lhe desfez o padre poucas palauras, por Per ã matéria em Py clara Sc de muyto poíi caPuftãciâ,porem as razoes q o padre lhe deu forão tais, q el Rey & todos os mais ouuintes ficarão muyto Patis- feitos delias. E como efta praçaria de todos efíes íete bonzos era negocea- da pelo infernal inimigo pay de toda adifeordia, nefte mePmo tempo íè vierão elles a dePconcertar entre Py de tal maneyra, ôc terem hús cos ou- tros tamanhas diíferenças, q por três ou quatro vezes ouueraò de vir ás bo NN2 fetadas

Terigrlnaçoes de

fetadas perante el Rey,de q elle fe a- porqefte padre eftà embarcado pa

gaitou muyto, ôc lhes diíTe q as cou- fasde Deosnãofe auião de difpucar punhadas,fenão cora fauor ôc zelo fundacb em maníidáo,porq no efpri to humilde & manfo fe agafalhaua Deospara dormir feu fono quieto.E leuãtandofe co ifto,íe foy algús da quelles íenhores de q eftaua acópa- nhado a ver hús jogos a caía da Ray- nha,& os bòzos fe foraó cada para liia parte, Ôc o padre o capitão ôc ©s mais Portugueíes íe foraó para a cafa dos Chriftaôs,onde dormirão a- quella noite. Ao outro dia a tarde el Rey em peíToa, fingindo q paíTaua a cafo pela rua; mãdou dizer ao padre fe queria yr ver o íèu jardim,onde ti- nha por noua q eftaua a caça efpe- rãdo por elle,& q fe armaífe bé,porq quiçá q ainda hoje derrubaria par de minhotos daquelles fete q ontem lhe qui feraó arrancar os olhos.O pa- dre entédendo a metafora,fahio logo á rua, ondeei Rey o eftaua efperãdo em pé,có íós três ou quatro pnuados feus comfigo,& tomadoo pela maó, & os Portuguefes pouco atras a- faftados,o leuou muyta hora por todas as ruas até fua cafa,onde os bo- zós já eftauao muyta íbmade gé- te nobre,& defpois q fe aífétou,& fez quietar a caía.os bonzos tornarão de nouo a mouer outras queftoés fobre a matéria do dia de antes,& moftra- yaó hum grande papel cheyo de re- portas,© qual el Rey não quis ver di- zendo,© quejâ fe julgou húa vez,não fe pode julgar duas como vos que- xeis, por 1ÍT0 fallay em outra coufa,

ra íepartir,& o capitão não vos deue tanto por parentefco por amizade q porvoíío refpeito queyra perder fua viagé,&poriflb lograiuosdelle eftes dous dias q aquy ha de eílar íe vosprouuer,ou vos tornai para Miay gimaa dõde vieftes, a q elles refpòdc rão q afsi o fariaò comoa fua alteza lhes mãdaua,porê jâq fe aly achauaó lhes ác(Te licença para praticaré hu pouco co padre em couías boas q de- fejauão de íaber delle em q naó auia de auer porfia nenhúa, porq todos vinhaó apoftados a iíTò. El Rey lhes outorgou licéça de boa vócade,& lhe rogou muito q afsi o fizeísé.tlles en- tão chegãdofe para o padre,lhe pedi- rão perdaò do paíTado>& lhe pregú- taraó muitas coufas curioíã » & boas q el Rey folgou muyto de ouuir, entre as quais húa foy, q fe a Deos por feu faber infinito tudo he preíente,afsi o paífado como o futuro,como não vio na criação dos Anjos o defmanchoq Lúcifer por fy & cos outros auiadç fazer em oííenfa fua, por onde foíTe neceflario,por razão da fua diuina juf tiça,ferécódenadosa pena perpetua? & fe© vio (como era de crer q veria.) como íe não moueo fua infinita miíè ricordia a atalhar a mal de q def- pois tãtos focederaó é ófíéfa iua?& fe lãbé o naó vio para ficar deiculpado, era logo fali© o q deita matéria pijb- licaua delle â^ente.O p=ádrerdefpois de eftar hum pouco a modo de pen- iariuocom efta pregúta,*ios bonzos, lhes declarou largamente a verdade diftojO que elles por vezes coníraria-

xaó

Fernão

rão huas razoes tao agudas,q o pa- dre virádofe para Duarte da Gama,q eíiaua ha pouco detrás delle, lhe dif- fe,note voifa mercê bem o q ouue,& verá q ifto q eftes faláo não delles, fe não do mefmo.demonio q os iníi- na,mas confio em Deos N. Senhor q elle refponderà por mim.E defpois q fobre efta matéria ouue algúas alter- i caçoes em qfe fez algua detéça,porq os bonzos não querião conceder nas razoes q lhe dauão,el Rey íe quiz fa zer niíTo terceyro,& lhes difle, eu, fe- gúdo o q tenho alcançado do q ate a- gora fe praticou nefta matéria, enté- do q o padre ràzaó no q diz,mas q a vosoutros vos falta para conhe- cerdes efta verdade,porq fe a tiuereis não o contradiffereis, & q vos elia falta para ifto,ajuday uos da razaõ co mo homés, & não ladreis como cães todo o dia híía pertinácia taó ob- ftinada & cheya de cólera q a baba Vbs corre dos beiços como gozos da- nados q morde a géte. A q os fénho- res todos q aly efrauão^aprouãdo o q el Rey dezia.derão húa grade rifada, de q os fete bózos íe queixarão muy to,&difíeraó para elRey,q como iintiá fua alteza quererem todos fer Reysem fua preféça? a ifto acudio o padre,& fe meteo no meyo,& fua jnterceíTaõ tornou a coufa a ficar qui ctacomo dãtes,& os bózos foraõ íuas pregutas por diãte por efpaço de rna&dè quatro horas,em matérias ai tas,como homens a q todauia não poíje negar q por natureza millíor ^nWridfmentoq os outros Gétiosda- cuellas partes,por onde parece q fera

éMende^Tinto. 28J

neftesdemaisfruito, & por iífo mi- lhor empregada a diligécia q fe pufer para os conuerteré à q nos Chinga lás de Comonm & de Ceilão,mas por iífo digo q neftoutros he mal em pregada fenão muyco bé. Defejoío ainda o Fucaradono, como mais dou to q os oucros,de leuar a fua auãte pregutas q embaraçaísé o padre, lhe veyo arguindo de nouo q porq razão punha nomes torpes ao Criador de todas as couías,& aos Sátosq no ceo

afsiífiãoemíouuoríeujinfamãdoode métirofo,poiselle,como todos criaó, era Deos de toda a verdade? & para q fe entenda dóde naceo a efte dizer ifto,fe ha defaber q na lingoa do ía- paõ fe chama a meeira diufa,& porq o padre qtiãcto pregauadezia q aqi- la ky q elle vinha denudar .era a ver dadeyra ley de- Deos, o qual nome elles pela groífaria da fua lingoa não podião pròtíúdàT taó claro como nos & por dizere Deos deziãò diús, da- quy veyo que 'eftes feruos do diabo tomarão motiuo dèVdizeré aos feus que o padre era demónio em carne q vinha infamar a Deos pódolhe no- me de menti rofo: mas a repoíta q o padre lhe deu a efte argumento,fi- carão os ouuintes muyto fatisfeitos, & diílèraó todos a húa voz, íitaa, íi- taa, que quer dizer, jã, já, já, co- mo quedezião, ja caymos no que dizes. E porque também fe faiba a razaó porque lhe efte bonzo dif- fe que punha nomes torpes aos fan- tos,foy,porque rinha o padre por cu- ftume quando acabaua de dizer mif . fa rezar com todos húa Ladaynba K N 3 para

para rogar a N. Senhor pela augmé- taçaó da Catholica, & neíla ladai- nha dezia fempre, como nella fe cu- ftuma,S*nfl* "íWe ora.pro nabisfSan- clefauleorapro nobi^Ôc afsi dos mais Sancos.E porq também eíte vocablo íanti na lingoa lapoa lie torpe & in- fame,daquy veyo arguyr eíte ao pa- dre q punha mãos nomes aos Sátos, mas logo lhe declarou a verdade do qnaquillo paflaua, q el Rey goftou muyto de entendér,& daly por diãte mãdou o padre q fe naó diíTeíle mais JanElefenzò beate Tetrefaate <Paule,ôc aisLaos outros Santos,porque dan- tes tinhaó os bonzos todos perante ej Rey feito peçonha difto. E profe- guindo ainda adiante por feus argu- mentos^naò com zelo de; fe conuer* tercmtnem depreguntarem para fá- berem,mas fomente afim de calum- niarem a lcy.de Deos, & perturbaré efte feu feruojhe difíèraó, q íê Deos, cj he fabtduria infinita, via q aquella obra q fazia em criar o homem auia de fer occafiaó gfande de offenfa fua, porq razaó naó aleuãtou a maõ deU la,çomo parecia claro q fora milhor, porefeufar o q defpois focedeo, a q tábemopadrefatisfez razoes taó taô claras & tão furficientes quanto bailarão para os confundir niílo co- mo tinha feito em todas as outras cou íâs.E das repoftas qfejhe deraó afsi a ifto como a tudo o mais de q tenho tratado,nao digoaquy nada pelafra quezado meu engenho q mny tas vezes tenho confeíTado,^ cabem por q vejoq não hc da minha faculdade metera mão nas matérias deííaqua-

'Teregrmaçoes de

lidade,bafía q foraó as repoftas fepre tais q todos os circunftantes ficarão muyto fatisfeitos delias. Com tu$Q os bonzos não deixarão de gaitarem algúas delias duas & três horas nas re plicas q lhe trazião^masem fim con* cedendo nefta derradey ra mnyto tra fua vota de tornarão ainda a dizer q jâq Deos defpois q Adão fora der- rubado pelaferpente, determina de mandar feu filho ao mundo para re* mir osdecendétes domeímo Adão* q porq caufa fe não dera tanta prefla quanta pedia a necefsidade? q fe elle por ventura dezia q a razão difto fo- ra por moílrar aos homés a graueza do peccado-, naó era razaò baftante para elle ficar fem culpa do defcuydo de tamanha tardança, A ifto lhe rek pondeoopadre da raaneyra q euf- tumaua,poré nefta queftão arguyraó muytas coufas dirTerétes, & eftiueraó taó duros em concederé nas razoens q lhe dauão,q el Rey de enfadado çía pertinácia cóq negauáo tudo o q o padre lhes dezia fe ergueo em di- zédo,os q hao de argumentar iobre ley taó fundada çm toda a raza© coi- mo eíta he,nãohaóde eílartaôipu delia como vos outros vindes, &:tot mando o padre pela maõ aç6panfea;> do de todos os grandes q eftau.PQ çq elle,o le-uou até a cafa dos Ghriftaoç onde poufaua, de q todos oSíbo$>zos receberão grandifsimo deígofto,&fi çaraó muyto enneçgonhaçios^&íter zião publjçaméte & em. altas -yíQges q fogo do Çeo viefie fobre el Rgy.£ois fe enganaua tão facilmenteípõirtoà fejticeyrojvadio/ern.nomç. :;P

CAÍ>.

C^v. ccxim.

2) a grande tormenta quepaffamos

indo de fapaõ para a (Jhwa, &•

como fomos liures delia por

orações desleferuo

de(Deos.

O outro dia pela me- nham defpois que o nofíofanto padre com todos os Portuguefès fedcfpidiodelRey,o qual neíta defpidida lhe fez as hon- ras & o gafalhado que fempre cuítu- mara^nos viemos embarcar, &nos partimos deita cidade Fucheo,& vel- lejamos por noffa derrota âvifta de terra atè húa ilha dei Rey de Minâ- coo chamada Meleitor,& atraueíTan do daquy com ventos de moução tendente, continuamos noflb cami- nho por efpaço de fete dias, no fim dos quais o tempo com a conjunção da lua noua nos faltou ao Sul, & a- meacandonos com chuacyros & mo firas de inuerno, veyo em tamanho crecimento,que no^foy forçado ar- ribar em fim de roda com a proa ao rumodeNornordeftepormar incó- gnito^ nunca nauegado de naçaó nenhúa,íèm fabermos por onde hia- <moí, entregues de rodo ao arbítrio da fortuna & do tépo, com húa taó hraua & taó excefsiuatormenta,qual os homés nunca imaginaraójqucnos durou cinco dias: & como em todos ,elles nunca vimos o Sol para o pi- loto íãber porque altura caminhaua,

i

Fernão Mcnde* Tinto. 284,

pela íua fraca eílimatiua, íèm con- ta de grãos nem de minutos, pouco mais ou menos foy demandar a-pa- ragem das ilhas dos papuaas, Sele- bres.& Mindanousque diítauaóda* iy íeifeentas legoas. No fegundo dia deita tormenta jàfobre a tarde, foy crecendo o mar de efearceo com va- gas tão altas cjue o Ímpeto da nao as não podia romper,peloqualfeaíTen- tou por parecer dos officiais que as obras- do chapiteo, & dos caftellos dauante fe arraíaíTem até o andar do conuès,paraqueafsi pudeííeanao fi- car mais afrontada, & obedecer aos lanços doleme. Feito ifto com toda a prefteza pofsiuel,porque todos fem ficar nenhum fe oceuparaó neitetra- balho,fe entendeo logo era fegu- rar o batel, ocjual com* aífaz de tra- balho foy atracado a bordo, & lhe guarnecerão logo hu ahuík de duas amarras de cairo-iaouas. E porque ja quandoeítâobra fe acabou a çarra- ção da noite era muyto grande, não foy pofsiuel recõlheríe á nao a gente que eítaua neitej' pelo que foy" força* do ficarem aquella noite todos, q foraó quinze, de que os cinco eraò Portuguefès, &*>s outros eferauos Ôc marinheyros. Em todos eftes traba- lhos & infortúnios nos acompanhou, íèmpre efte bemauenrurado padre afsi de noite como de dia,por húa par te trabalhando por fua peííba como cada hum dos outros, & por outra a* nimando & confolando a todos de maneyra,que defpois de Deos elle ío era o capitão que nos eaforçaua, ôc nos daua alento para de todo nos N N 4 não

Terigrmaçoh de

não rendermos ao trabalho, & nos nao tornou a furdir fobre a vaga do

entregarmos de todo â. vétura,-como -aigús quiferaó fazer algúas vezes, ie elienãofora. Sendojá quafi meya ' -noite, os quinze que hiaó no batel deraó húa grande grita de Senhor Deos miiericordia,& acodindo toda a gente da nao a faber o que aquillo era>viraõ ao orizonte do mar o batel yratra^efíadojporque lhe quebrarão os bragueyros ambos com que efta- uaamaríado. O capitão com a dòr daqueíle defaítre, íem coníideraçáo algúa^em attentar o que fazia,man- dou arribar a nao pela efteyra do ba tel,parecçndolhe que o poderia fal- uar,masí:omo cila era de gouer- no,& acudia deuagar ao leme,por caufa da pouca vclb de que era aju- dada, ficou atraueísada entre duas vagas, onde a encàpellou húa grande ferra por cima dapopa,& lhe lançou no conués tamanho pefo dagoa, que de todo a teue çoçobrada, a q a gen- te com húa grandegrita que rompia o àr chamou com muyta inftacia por noíTa Senhora que lhe valefTe. A ifto acudioopadre muytodcprefsa, que neítetempo;eít.aua pofto de joelhos debruçado fobre húa caixa na cama- rá do capitão,& vendo a nao da ma<- neyra que eftaua, & nos pelas amu- radas htífs fobre os o ucr os, eícalaura- ' dos os mais d eltes d as capoeyras do conués, leuantando as mãosaO Geo> diísealto: ó leíii Qhrifto amores de rhy anima, valenos Senhor pelas cíni- co chagas que por nos padeceftena aruore da veraCruZj&.logo naquel» le fereue iniftaate miiagtoíamence a

.mar, &1 acudindo logo com muyta prelTa a mareara moneta q hia guar- necida por papafígo ao do traque te,prouuea nofso Senhor que ficou direy ta,& logo mareada em popa,& o batel defapareceo de todo pela efc teyra da nao, de que todos ficarão chorandq,& rezãdopelas almas dos que hião nelle. Defta maneyra cor* remos tudo o que refraua da noite com aísaz de trabatho,& quando foy menham clara em todo omarquáto alcançaua a vifta de cima da gauea não aparecia coufanenhúa mais que fomente o efearceo da tormenta que arrebétaua em flory & fendo pafsado pouco mais de meya hora dedia, o padre que então eftaua recolhido na camará do capitão, fe veyoaocha* piteo onde eíkuãò o mefíre &opi» loto mais outros íeis ou fete por^- tuguefes,& deípoisde dará todos o$ bós dias com fembrante alegre ác quieto,pregútoii íe aparecia o batel, & lhe foy refpondido que nãoj& ro- gando ao mtftre que quifeíse mãdar hum mannheyro a gauea para que viíse íe aparecia de de cima* hum dosquealy eílauâo lhe diísc^qíue a> pareceria quando fe perdeísé omtfí, a que o padre, peíandolhe do que lhe ouuira,reípondeo, ó irmão Peio Ve- lho (queafsi íe ehamaua eHe^jniryto pequena hx eísa que tendes,. & c<v mo? aueis vóspor ventura jq^epiode fer algua coufa impofsiuel aDeos ne*f fo Senhor i rpois eu confio nelle^ & m. fãçratifsima Virgem Maria fua máy, a quem por elle lenJbo pi*©oietido

três

Fernão Meneie^ Tinto . 2 8 f

três mifías na fua bédira cafa do ou* ros. Eu então porque vy o padre bo-

teyro em Malaca, que ha de permi- tir que aqucllas almas que vão nelle- fe não percáo, de que o Pêro Velho ficou cc*rrido,& não falou maispala- ura nenhúa. Omejílre então porfa- tisfazer milhor ao rogo do padre,el- k em pefloa com outro marinheyro fe foraõâ gauea,& vigiando de de cima por efpaço de quaíi meya hora, diííerão que em todo o mar quanto Ihealcançaua a vifta, não aparecia coufa nenhúa,& o padre lhe reípon- deo,ora deceyuos pois nao haja que fazer, E chamandome então para o diapiteo onde elle eílaua, & ao pare- cer de todos bem trifte,me diífeque fe lhe queria mandar aquentar nua pouca dagoa para beber,porque tra- zia q eftamago muyto deíconfolado, a que eu por meus pec:ados não fa- tisfíz por não auer fogaó na nao, por que fe tinha lançado ao mar o dia dantes quando fe alijou o conués no principio da tormenta. E queixan- dofeme elle então que andaua muy- to eíuaido da cabeça, & com vaga- dos que lhe acudião de quandoem quando,lhe refpódy eu,nãohe muy- to andar voíTa reuerencia deffama- ney ra,pois ha três noites que nao dor me,& qtfiçà que nem comeria boca- do,porque aísi mo difíe hum moço de Duarte da Gama. A que elle rek pondeo, certeficonos que ey del- le,porquão defeonfoiado o vejo^por que toda efta noite defpois que íè perdeo o batel,nunca deixou de cho- rar por feu fobrinho Afonfo Caluo cj vay nelle com os mais companhey-

cejar muytas vezes lhe diiTe,vale vof ia reuerécia encoftar hum pouco aly naquelle meu camarote, & quiçá q repoufarâ.o que elle aceitou dizendo que foíTe pelo amor de Deos, ôc que me pedia muyto que mandaíTe ao meuChinaquelhefechaíTea porta, ôc Te não foífç daly, porque quando o chamaíTe Ihaabriíte, Ôc ifto podia fer das féis até as fete horas da me- nham pouco mais ou menos, ôc re* colhido no camarote,efteue nelle to* do o dia até quaíi foi pofto, ôc acer- tando eu nefte comenos de chamar o China que eftaua à porta da ban- da de fora paraque medeíTehum pu caro de agoa,ihe pregútey fe dormia ainda o padre, 3c elle me refpondeo, nunca dormio, mas eftá de joelhos chorando de bruços fobre ocatele,& eu lhe djíTe então que fe.tornaífe a aíTentar â porta, ôc que lhe acudiífe quando chamaífe. Deíla maneyra efteue o padre recolhido na fua ora- ção ate quaíl foi pofto,& então fe fa- hio do camarote, ôc fe foy acima ao chapiteo onde os portuguefes todos eítauãoaíTentados no çhaó por cau- fa dos grandes pendores & balanços quedaua a naO; ôc defpois de osfau- daratodos preguntou ao piloto fe aparecia o batel, & elle lhe refpódeo que por razão natural era impofsi- uel deixar de fer perdido com mares tão groífos como aquelles, ôc q pre- fupofto que Deos milagroíamente o quifeíTe faluar, nos fícaua ja mais de cinquenta legoas. A que o padre lhe tornou,afsi parece natura.lméte, mas

folgaria

Terigritiaçoes de

folgaria eu pilotoja que fe niflb não o batel afaftado da naó obra de hum

perde nada, que por amor de Dcos quifeííeis yr â gauea, ou mandar algum marinheyro que de deci- ma vigie todo o mar,paraque ao me- nos nos não fique ifto por fazer, & o piloto lhe diífe que elle iria de boa vontade. E fubindo acima, & o meftre com eUe, mais por fatisfazeré ao defejo que vião no padre,que por lhe parecer que podião ver algua Cou fa como parecia que eftaua em ra- zão/e detiueraõ hum grande ef- paço, & em fim affirmaraó que em todo ò mar nao viaõ coufa nenhua, dequeopadre,ao parecer de todos, ficou aflaz trifte. E encbftando a ca-

tiro de cfpingarda pouco mais ou menos, & efpantados todos de tão nòuo & defacuftumado cafo, chorá- uão hus cos outros como crianças, de maneyra que não auia quem fe pu- deíTe ouuir em toda a nao cos vrros da gente. Todos arremeterão então ao padre para fe lhe lazarem aos peis, porem elle o não confentio, ôc íe re- colheo para a camará do capitão, 3c fe fechou por détro paraque ningue lhe fallaífe. Os companheyros que vinhaò no batel forao logo recolhi- dos dentro na nao com aquelle go- fto ôc aluoroço que todos podem en< tender, & por iífo também deixo ago

beça no prepaodo chapiteo,efteue af ra de contar aquy as particularida- fi com aquella triftèza pouco im- des defte recebimcnto,porque faò el

pando como que queria chorar, & por derradeyro abrindo a boca, & romando o fôlego como que defaba fatia daquella triftèza que tinha, & leuantando as mãos a Ceo diífe com lagrimasjefu Chrifto meu verdadey roDeos& Senhor, peçote pelas do- res da tua facratifsima morte & pai- xão que ajas mifericordia de nós, & nos falues as almas dos fieis que vão naquelle batel, & tornando com ifto a reclinar a cabeça fobre o prepaòa queeftaua encoftadoíe deixou afsi eftar como que dormia obra dedòus ou três credos;quando hum minino que eftaua aíTentado na enxárcia co- meçou a gritar dizendojmilagre^i- lagre,que eysaquy ó noífo batel, a efta voz arremeteo toda a gente afsi como eftaua para a parte de bor- do onde o minino gritaua, & vio vir

las mais para fe cuy darem que para fe efcreuerem, Paífado afsi aquelle pequeno efpáço em que a noite fe* cerrou de todo,qúe podia ferde pou1 co mais de meya hora,mandou o pa- dre por hum minino chamar o pilo-í to, & lhe diífe que louuaífe a Deos noflb Senhor,cujas eraó aquellas o- bras, & mandâííe logo fazer a nao prcftes,porquc acjuelle contrafte não* duraria muy to,E fatisfazendofe corri toda a prefíeza pofsiuel,& com muy* ta deuação ao cjue o padre mandara, £touUea nofTo Senhor que logo de improuifovantes que a verga grande fòfle encima,& as vellas foliem ma- readas^ tormenta acalmou de todo, & nos íaltou o vento ao Norte, com O qual por mouçaó tendente íègui- %»0snoíTa viagem com bem de ale- gria & contentamento de todos, &

eftç.

Fernão Mènd&^Pinto.

eíle milagre que contey aconteceo a dezaíTctede Dezembro de 1551.

%)os vários çafos que acontecerão

a eíle bemauenturado padre ate

òegarà China , &• manej-

ra dajua morte.

Orrendo nos daquy deite paragem, onde Deos noffo Senhor por fua mi feri co rd ia, & pelas orações deite bemauenturado padre nos cjuis fazer eíla tão milagroíã mercê, em treze dias de nofía viagem lhe aprouue q chegafsemos aoréyno da China, & furtos no porto de Sanchão,onde na- quelle tempo fe fazia o noíso tratov quando ahy chegamos, por eaufa de fer muyto tarde não achamos mais que húa nao,de que era capi- tão Diogo Pereyra, Sc efta de ver - ga dalto para fe partir ao outro, dia para Malaca,na qual o padre fe em* barcou,porque a de Duarte da Gama em que viera de lapão lhe era ne* ceísario yr inuernara Sião, porvir aoerta pela roda de proa do grande ^rabalhoque pafsara na tormenta cj atras tenhocontado, & fe concer- tar & prouer de muytas coufas de.q tinha neçefsidade. Nefta viagem q o, padre fez da China para Malaca em companhia de Diogo Pereyra q. era muyto feu amigo, lhe deu conta dos termos em que ficauão as coufas da Chriílandade em lapão,& quão .im-

portante lhe era a elle trabalhar todo o poísiuel por ver fe podia ter entra- da na China,af3i para U diuulgar, Sc dar noticia a aquella gentilidade da leydeChrifto nofíb Senhor, como por acabar de tomar conclufaó cos bonzos do reyno de Omanguche,. os quais vendofe confundidos com as praticas Sc difputas que- tiuera com elles acerca da Fe,lhe refpondetaò por derradeyro,que Como da China lhe vieraó aquellas leys que elles pre gauão, & que auia feifcentos an- nos que tinhaó aprouadas por boas, fe não defdiriaó por nenhum cafo fe não quando foubeíTem que elle con- uencera oStChins com asproprias.ra- zoes com que a elles lhes fizera con- feíTarler efta ley boa Sc verdadeyra, & ferparaóuuir o que elle pregaua. Epor efta razão defejofo efte leruo de Déos,pelo grande zelo que tinha da fua honra, & da íuafe^e lhe naõ. ficar ifto por fazer, afsi pára acabar de tomar, conclufaó com hús> como para dar noticia defta verdade aos outros,fe partio para a índia» pen« íamento de dar conta de todas eftas coufas ao Yiforrey, Sc lhe pedir que o ajudaflè com todos os meyospof- fiueis, para o effeito defta fua deter- minação. Efte negocio pos o padre em pratica perante os mais entendi- dos que hião na nao,& lhe pedio nek le feus pareceres, p,or ferem homens q defta monarchia da China tinhaó muyto conhecimento Sc experiên- cia, Sc elles lhe refponderaõ que poí nenhum cafo era pofsipel ter o pa- ^|e ent|àc]a na China para aquelle

effeito,

Teregrindçoes de

effeito,fenao com o Viforrey da In- . & fanto prÓpoíito,& fc lhe offereceo

dia mandaria hum embaixador em nome dei Rey noíío Senhor para mais autoridade, Sc com hum gran- de prefente,orTerecendolhe fua ami- zade noua com palauras formadas ao modo com que fe lhe cuftuma falar. E porque para tamanha coufa como eíta auia mifter muyta fabrica, & preíente de peças muy to ricas,fe du- uidou querer o Viíorrey fazelo,de q o padre moítrou fentimcnto, por lhe parecer que era aquillp verdade, & porque também ponderaúa os in- conuenientes que o tempo & os tra- balhosdo eirado da Índia para iíío podiao trazer. Sobre efíe negocio fe praticou naquella viagem por muy- tas vezes>& o Diogo Pereyra fe of- fereceo tomar a cargo porferuiço de Deos,& pela amizade que tinha co padre,metelo naChina âcufta de íua fazenda, & fazer toda a deípefa que foífe neceífaria afsi do prefente co- mo de tudo ornais, oqueop-adrea- ceitou delle,& lhe prometeo por iíTo fati$faça6 dei Rey noíío Senhor. Ghe gados com eíta determinação a Ma- laca,© padre fe embarcou logo daly para a índia,& Diogo Pereyra ficou com a nao em Malaca para yr à C,u- dacarregarde pimenta, & mandou cm companhia do padre hum Fran- cifco de Caminha íeu feitor com trinta mil cruzados em almizcre Sc feda para fe comprar delles todo o necefíario. Chegado o padre a Goa, deu conta deflaíua determinação ao Viforrey dom Afonfo de Noronha, o qual lhe louuou muytoefte feu

para o ajudar nclle com tudo o que foííe pofsiuel. Elle contente aflaz efta boa repofía do Viforrey,fe amou o mais depreíTa que pode de tudo o que lhe era neceílario : & dandolbe o.Viforrey prouifoés para Diogo Pe- reyra yr nefta fanta jornada por em- baixador a el Rey da China, cometi- das a dom Aíuaro de Tayde que en- tão eftaua por capitão da fortaleza, fe tornou a Malaca, porem o capitão lhe naô quiz guardar as prouiíoens, porque ao tempo que o padre che- gou eftaua muy to de quebra com Diogo Pereyra por lhe não empre- itar dez mil cruzados que lhe pedira. E trabalhando o padre todo o pofsi- uel por íoldâr com fua virtude efta quebra, Sc eíta difcordia, nunca mais pôde; porque como ella eflaua fundada em ódio & cubica, & o de- mónio era o que atiçaua eíte fogo, em vinte 8c íeis dias em que fobre if ío fe fizeráo algúas diligencias nun- ca o Capitão quiz conceder no que o padre pedia, nem dar licéçâ paraque Diogo Pereyra o leuaíTeâ China,co mo da índia vinha ordenado, com hum grandifsimo gaito feito, dan- do em tudo nouos entendimentos ás' píôuifoés do Viforrey, Sc dizendo a modo de efcarneo que aquelle Dio- go Pereyra que fua fenhoria dezia era hum fidalgo que ficaua em Por- tugal^ não aquelle cj o padre apre- fentaua,que fora ontem criado de Gónçaílo Coutinho, Ôc não tinha par tespara yr por embaixador a hum tamanho monarcha como era o Rey

da

Fèrnao Mende^ Tinto*

da China. Pelo qual alguns homens honradoSjmoiudosdo zelo da honra de Deos, vendo que eíte negocio ca- minhaua fempre para pior,i'em o ca- pitão querer fazer nenhúa razão de íy,ncm ter reípeito ao que fe lhe pu- nha diante, fe ajuntarão todos húa menham,& lhe faraó -pedir que não quifeíTe tomar fobre fy hua couíãq tanto tocaua em detrimento da hon- ra de Deos,porque lhe feria tomada diíTo rouyto eftreita conta na outra vida,& que olhafíe também á vniao com que todo o pouo clamaua.dclle, por tolher a hum homem taó fanto como aqlle yr pregar a iey de Chri- ílo a aqueila gentilidade, por meyo do qual parecia que queria noflfo Se- nhor abrir hua porta ao feu Euange- lho,para faluaçaò de tãtas almas, ao que elle dizem que refpondeo,que ja era velho para lhe darem confelho,cj o padre queria tomar eííe traba- lho por Deos,que fe foíle ao Brafil, ou a Manamotapa que eraó terras onde também auia Gentios como na China, porque tinha jurado queem quanto eile foífe capitão, naõ auia Diogo Pereyra de yr a China,ne por mêrcador,nem por embaixador, & q lhe tomaflè Deos diíTo conta,porque

287

mal feita,& com ifto os defpidio. O veador da fazenda, & o feitor, 6c os officiais da alfandega vedo quão fo- ra de propoílto elle refpódera a eítes homeSjlhe foraó todos húa menham por parte dei Rey fazer hum reque- rimento, dizendo que naquella al- fandega eftaua hum regimento dos gouemadores paíTados, em que mã- dauão expreíTamente que por nenhu cafo que foííe fe tolhefle viagem a nenhúa nao que quifeíTe yrparafo- ia,obrigandofe a tornar ahy a pagar os direy tos, & q Diogo Pereyra lhes tinha feito hunuequerimento qaly trazião por efcrito, em que fe obrir gaua a dar a el Rey dos direy tos daquelía nao trinta mil cruzados pa- ra as necefsidades daquelía fortale- çamos quais logo daua a metade, ôc para a outra ametade fiadores depo* fítarios para, quando tornaífe, pelo q requerião a fua mercê que lhe não to lheíle a íua viagem, porque tolhen- dolha fem auer çaufa,como não auia^ elles proteílauão" por parte dei Rey de os auer fua alteza pela fazéda del- le capitão. A que elle refpondeo,que fe Diogo Pereyra fe obrigaua a dar a el Rey pelos direy tos da fuanao trin ta mil cruzados,como elles deziao,q

elle lha daria quando lha pediíTe,por > também elle fe obrigaua por aquel- que aquella ida que Diogo Pereyra le requerimétoque lhe fazião a lhes

queria fazer à fombra do padre para trazer cem mil cruzados da China, era mais propriamente fua pelos íèr- tiiços do Conde Almirante feu pay, que de hum criado de dom Gonça^ lo Courinho,aquem o padre,lem ter razão,queria fuftentar.em coufa tap

dar a todos trinta mil pancadas 39 cabo daquelía chuça, & arremeten? do a hum cauide para ò faz.çr:.1ellesjfe acolherão bem d.epreíTa. E deíla may qeyra fe pafíàraó vinre & íeis dias dif pjojs da noílã chegada,iem auer ccu- fa que pudeíTe abrandar efta contu- mácia

Terigfinaçoh de

macia do capitão, antes vfou co pa- Mas como fêu interno foy íèmpre

dre de algus termos mais afperòs do cjue era razão, & muyto alheyos do que fe deuia a fua autoridade & a fua virtude. Vcndofe efte feruo de Deos taó auexado,& afrontado com nomes infames,fofreo tudo ifto com muyta paciencia,fem íe lhe ouuir níí- ca outra palaura mais que fomente pondo os olhos no ceo dizer, ó ben- dito feja Iefu Chrifto, com tanta ve, hemencia como que lhe fahia da al- ma^ alguas vezes não fem muytas lagrimas. E afsi fe dezia publkamé* te em Malaca que feopadredeíeja^ ua(como fe prefumia delle) padecer martyriopor Deos^quebem roarty- refora naqúella perfíguição. E em verdade affirmo que quando me po- nho a cuydar noque yy por meus o- lhos das grandes honras que el Rey do BungOjfendo Gentio, fez em la- pão a efte padre, por lhe dizerem que era homem que daua noticia da ley de Deos,como atras fica dito,& o que defpoisyy em Malaca, fico paf- mado,& aísi creyo que o ficara todo e homem Gnriftão que vira hum & o outro. -E fem embargo do tudo if- to o padre fe embarcou nefta mef- ima nao parai £ China, mas bem dk> ferente do que ouuera de y r fe fora com Diogo Pereyra, mas elle, ficou cm Malaca,& a nao foy toda por co- ta do capitão & dos feiis apaniagua- *lòs1& co Capitão pofto de fua m ao, & o padre foy Íngreme, fem autori- dade nehhua, às cfmolâs do contra* meftreJ& fem leuar outra coufa mais que húa loba que leuaua veífela.

decer entre infiéis pela confeíTaó da verdade que lhes pregaua, não pu- nha de fua parte coufa que pudeííe fazer a iíTo duuidanem impedimen* to algum; & afsi fe quis embarcar â difpoíiçáo do que o tempo la deíTe de fyr Eftando a nao de todo pre- ftes para partir, o Concrameftre lhe mandou ás duas horas defpois de meya noite dizer por hum moço feu fobrínho a noíía Senhora do outey- roonde então eftaua, que fua reue- rencia fe embarcaflfe logo naqueíla manchuaquealy lhe mandaua, por- que a nao fe queria fazer â vella. O padre em tendo efte recado, fe fahio logo com efte moço pela mão, & co mais outros dous {cus deuotosque o acompanharão até onde anão efta- ua,que erâ junto da forraleza,& hum deftesdous que eraoVigayro íoaõ Soarez, que defpois efteue nefte rey- nonavillade Couiiham,védoo em- barcar com aflaz detrifteza & melan colia,derpidindofe delle lhe diíTe,de* uia voífa reuerenciajà que fe embar- ca para taó longe,de falar a dom Al- uaro, fe quer por tapar as bocas aos feusapaniaguados, que dizem qdíz elleque ílnrio vofía reuerencia ifto como de carne. A que elle, eftando quaíTcom hum na manchua ref pond<ro,prouuera a Deos, padre meu que fora eu tal que fintíra ifto por honra de Deos,como era razaò, mas nenhua imperfeição foy a caufa dií- fo, E quanto a falar a dom Aluaro como me dizeis,jâ nao pode fer,nem nefta yida nos veremos mais elle

&eu,

Fernão Mende^Pinto. 288

& eu,porem vernoCemos no valle de que o padre Vigayro loaõ Soarez,

Iofafat no dia da tremenda Magefta de, quando Iefu Chrifto Filho de Deos & Senhor noíftrvier julgar os VÍuos& os mortos, diante do qual efta remos elle & eu a juizo,& lhe fe- ra tomada conta da razão que teue para me tolher yr pregar a infiéis

também chorando lhe difle, como.3 efte apartamento he para femprejou porque nos deixa voffa reuerécia ta5 defconfolados ? pois, eu efpero em Deos noíTo Senhor que muyto ce- do o ey de tornar a ver nefta terra com muyto deícanço,& elle lhe rek

Chrifto Filho de Deos pofto na Cruz » pondeo,afsi prazerá à fua diuina mi por peccadores; & afsi vos affírmo q fericordia, &com ifto fe foy embar

muyto cedo, em começo de caftigo defte peccado,terâ algus trabalhos na -konra,na fazenda, Ôc na ; vida,& quan to ao de fua alma, Iefu Chrifto Deos noíTo Sewior aja mifericOrdia delia, &c pondo os olhos na porta principal da igreija que tinha defronte, fe pòs em joelhos, & leuantando as maós como que oraua por elle diíTe com hum tamanho Ímpeto de lagrimas q lhe impediaó a fala : ó Iefu Chrifto amores de my anima, pelas dores da tua fantifsima morte Sc paixão te pe- ço Deos meu que ponhas os olhos no que por nos continuamente apre- fentas diante do Padre Eterno, quá- dolhe moftras as tuaspreciofas cha- gas, Ôc o que por ellas para nos me- recefte,iflb cócedas para faluaçaò da alma de dom Aluaro, porque enca- minhado pela via da tua mifericor- dia feja perdoado diante de ty. E de- bruçandofeeo rofto no chaó, efteue aísi hum pouco fem fe lhe ouuir mais outra coufa.Defpois quefe leuantou, defcalçou as botas,& as bateo em ci- ma de hua pedra, como qtre lhe ía- cudia o pò.E embarcandofe na man- chua, fe defpídio dos dous que o a- companharaò com tantas lagrimas

car,& partindo a nao aquella madru- gada do porto de Malaca, em vinte & três dias de viagem foy furgir no porto de Sanchaõ, que he húa ilha vinte ôc féis legoas da cidade de Can- taójondenaqutlle tempo fe fazia o trato com a gente da tarra. Paffàdos algus dias defpois de a nao aquy eftar. furta, & os mercadores entenderem em fazerem fuás fazendas,& eftar tu- do pacifico,& a mercancia corrente, defejando efte feruo de Deos de ef- feituar em parte, o que naò pudera em todo^ tratou com hum mercador Chim dos honrados do porto;quefe chamaua Ghepocheca, que quando fefoíTeo quifeífe leuaf a cidade, ôc ainda que nifto ouue algus inconuc» nientes de vários pareceres dos Por- tugueíês^or verem que hia aísi tão delatado, ôc fem coufa que pudefte dar autoridade ao que diíTeíTe,toda- uia defpois de bem praticada híía coufa ôc outra, fe aflentou com efte mercador por efta maneyra, que o padre lhe dtfíb duzentos taeis, q fàó trezentos cruzados da noffa moeda, &que auia deyr daly da nao ate a cidade fempre cos olhos tapadospor que íe cafo foíte que por elle ler efc

trangeyro

'Perigrinaçoes de

trangeyro, a juftiça cntendefse nelle, a. fua infírmjdade era mortal, pedio como eftaua certo que auia de fer,& pondoo a tormento lhe difseelsem que cònfefsafse quem o aly trouxera, elleonãofoubeíse dizer, nem conhe ceíse quem o aly trouxera, porque fe temia que fe fofse defeubercolhe daísem por iíso cortar a cabeia, o qual o padre aceitou com todos eftes partidos, fem por diante receyo de coufa algúa, nem o eípantarem os medos que todos geralmente lhe pu- nhaõ,por eílar entendido delle quão defejolo eftaua de receber martyno por Deosnofso Senhor, porem co» ino o meímo Deos, cujos fegredos ninguém pock raftejar,não era ferui- do que elle entrafse na China,& a ra- zão porque elle fóa fabe, o deíuiou por hús meyos que naturalmente pa- recia© íer juftos, como o faó todas as iuascouías, os quais Foraô confefsar efte Gentio Chepocheca q elle efta- ua muyto fatisfeito do interefse que lhe dauão por efta yda,pórem que o feu coração lhe dezia que tal não fi- zeíse porque lhe auia de euftar a vi- da a^elle & a todos os feus filhos. ifto fe deixou o padre ficar dentro na nao ièm dar eíFeito a efta íanta obra que tanto defejaua. E como elle então andaua mal defpofto de febres & de camara^s de langue, ajuntando- fe a ifto a melancolia,& deígofto que tomara, fe veyo a doéçaa íenhorear. tanto delle, que crecendocada dia mais veyo a cayr na cama com faftio ' muyto grande,de que efteue muyto mal tratado por eípaço de quatorze dias,no fim dos quais conhecendo cj

que o leuaíTem a terra, Onde logo o leuaraó, & o puferaó em húa pobre cabana que aly felhe engenhou, cu- berta de eruas & de ramos, na qual efteue dezaffete dias, & fegundo me contarão três homés quefe acharão com elle,bem falto do neceíTario,afsi t por cuydarem algus que agradauão a quem lhes parecia que lhe não auia de pefar com iíTo,como tambem,ao que eu cuydo, porque quis noflb Se- nhor moftrar nefte deíemparo que permitioíjue^fte feu feruojiuelíena *erra nefta hora, quão conrinne efte feu tranfito era aos dos outros de qué temos por que agora reynãocom elle no Ceo. Paflados eftes dezaffete dias que digo,&ao que parecia,com aífaz pena & defconfolação fua"ex- terior conhecendo elle em eíprito, & pela fraqueza da carne em que efta^ ua,que a fua hora fe vinha chega- do,fe defpidiode todos com muytas lagrimas, certificandolhe que efíaua de caminho^pelo que lhes pedia cj lhe rogaíTem todos a Deos pela alma porque tinha diflb muytanecefsida- de. E mandando com ifto ahu rao« coque rinha cuydado delle que lhe fechaíTe a porta, porque o rumor dat gente lhefazia toruação, efteue afsi mais dous dias, fem a efte tempo poder leuar rcíoufa nenhúa, no fim dos quais, tomando hum crucifixo» nas mãos pos os olhos fitos nelle, fem fèlhe ouuir mais que de quando em quando a modo de fufpiro, Iefu da minhaalma,nocabode todo efte não podendo ja pronunciar palaura

nenhua

Fernão

nenhíía , lhe viraõ os que eíhuão elic ícgundo todos contarão, publi- caméte chorar algúas lagrimas com fourrrimpeto algum tanto mais esfoi? cado,& iempre cos olhos no crucifi- :xo,até q de todo deu a alma a Deop, <]uefoyhunrfabbado dous dias DezembrOjdo anno de 1552. â me- yanoite,cuja morte foy alíaz íênti- da & chorada de todos quancos aly íe acharão prefentes.

ic ,fi

Cat. axn

Da maneyra. de que foy enterrada efie defumo& traído a Mm

laca, & dahj a fndia.

Rocurãdofe logo o en- terramente deííe bem? auenturado corpo, fe pos em ordem todo o neceífario o milhor q

entaó pode fer cóforme â difpoíiçaó da terra em que eflauao, &aoDo-« mingo a tarde duas horas defpois da vefperaoleuaraõ ao lugar onde a coua eftaua feita, q podoria fer pou- co mais de hum tiro de pedra acima da praya,na qual foy enterrado com grande fentimento de todos, princi- palmente dos mais virtuofos & te- mentes aDeos, porem não faltarão algus em quem efte^ fentimento fe não enxergou de fora,fe de dentro o tinhão ou não,Deos o fabe,elle os jul- gue q fabe a verdade das couíàs, & as razoes dellas,mas o q fe foube pu- blicamente foy q daly a quinze dias efcreuendo hu homem, que por fua

éMcnâez^ Tinto. 2 89

honra não nomeyo-,hua caf ta a donx Aiuaro,emhum vancaó que partio da Ghina para Malaca, num dosca*- pitolos delia lhe diííeafsi fecamente, morreo meítre Franafco, mas na fifamorce-náo fez milagre, & jaz- enterrado nefta praya de Sanchaó os mais q-na nao faíleceraó,& quan. do nos embora formos,o leuaremos fe eíliuer para iíTo,porque não digaõ es praguentos de Malaca que naó fo- mos Chnftáoscomoelles. paíTados defpois diílo três meies & cinco dias, eífando a nao de verga dalto para partiras Pomiguefes ie forao a ter- ra^ mandarão abrir a coua em que fora entérradoo fanto defunto, com tenção de lhe leuarem os oíTòs para Malaca, fe eftiueílem paraiíío, &a- charãolhe o corpo todo inteyro fem corrupção nem falta algúa, tanto que nem na mortalha,nem na fobrepeliz que tinha- veífida acharão desfeito nem nódoa, mas ambos tão limpos &tao aluos como fe naquella hora os eníaboarão, & com hum cheyro íuauifimo, o que em todos cauíou tamanha admiração que confundi- dos algus co q vião por feus olhosjde- rão em fy muytas bofetadas pelo que antes tinhão dito, & dezião publica- mente cóm muytas lagrimas, ò ma- lauenturados daquelles que por com prazerem ao diabo quiferaó fer mi- hiítros feus na auexação que fe ;e fez em Malaca, fendo tu tão puro feruo de Deos como agora aquy vemos, & publicamente de ty conferíamos, ôc malauenturadosde nos que muvtas vezes te negamos noíías efmollas en- OO tendendo

cPerigrínaçoes de

tentado quão falto eftauas do ne- ma com birra; pan^o de brocados ôc

ceifado para fuftentaçaó da tuafan-. mmèú* Vaie enforcar o mundo & fuás mentiras, enforquece Malaca & fuás promeffas,que por defradey- rotulo bemauenturado és o que a?, ccrtafteemieruiresa Deos tanto de verdade quanto todos agora em que; nos pes^ para mais confulaô noífa, de, ty confeflamos. E afsi a efte modo derramando muytas lagrimas, & fe- íindofe nos roftós lamentauão feu er- ro paífado, de que noífo Senhor pe- los rogos defte feu feruo aueria mife- íicordia. O fanto corpo foy metido era bua caixa que pela medida delle aly logo fe fez>& o leuaraó â mefma nao em que veyo,na qual foy ate Malaca num camarote do piloto,on- de defpois que chegou, ao outro dia ás dez horas oprouedor da miferi- cordia com toda a irmandade, & o Vigayro,& todos os clérigos da igre- ja raayor, acompanhados de toda a gente da terra,faluo do capitão & dos íèus aceitos,o foraó bufcar á nao,& o leuaraó a irmida denoífa Senhora do outeyro, q era a cafa onde naquella terra fempre na vida fizera íua habi- tarão, & donde auia noue meies & vinte ôc dous dias q fe embarcara pa- ra a China. Nefta irmida foy enter- rado com muyta dòr Ôc fentimento cie todos,& ahy efteue mais noue me fes,q foy de dezaííete dias de Marco até onze do Dezembro feguinte de 1555. Nefte dia foydefenterrado ef- te corpo,& metido em outra caixa q Diogo Pereyra lhe mandara fazer forrada de damafco, cuberta por ti-

daquy defta irmida deN. Sen hora do OUteyro foy kuado em procuTaõ a- cópanhadode muyta géte nobre,atè o meteré em hu batel q eftaua pre- ftes,bé concertado alcatifas ricas^ & toldo de feda,no qual foy leua* doa húa nao de hum Lopo de Lo- ronha qeftaua para partir para a ín- dia-^ o. embarcarão nella,& forao cíledous irmãos dacópanhiade íe- íi^hum chamado Pêro Dalcaçjoua>& outro loãode Tauorac| defpois efte- ue no colíegio de Euora,os quais o a* companharãoatéa Indiavno qualca- miuho,q, be de diftancia de quinhé- tas legoas/e viraò algus. milagres e* uidentes, fegun,do todos os que na nao vinhaò defpois teftemunharaõ em Goaao Viforrey dom Afonlode Noronha, dos quais me efcufo dar lação por ferem muito notórios a to- da a gente, ôc por nao gaitar o tem- po em efcreuer o que íèy que outros efcreueráo,

QAT. iCXVll

Como ejle fanto defunto foy def

embarcado da nao em que viera de

Malaca, &> do aparato com q

chegou ao cae^de Çoa.

Nao em q hia efte fan- to corpo chegou aÇo- chim a treze dias de Feuereyrodo annode 1554. &porqja nefte tempo os ventos Noroefíes curfauao

Fernão Mendes Tinto.

por moucaõ tendente ao logo da co- ita^ a nao codas as mais q vinhaó de Malaca em fua cóferua, por o ve- to fer pontcyro,nãopodião furdir a- uante mais q fomente húa legoa ou duas por dia,bordejando às voltas co muyto trabalho, Ce adernou por pa- recer de todos os pilotos q o capitão mandafíe recado ao collegio de São Paulo deGoa,paracj os padres proucf fem dalgúa embarcação de remo em cj leuaíTem aquelle íànto corpo, pois a nao não podia yr ter a Goa fenáo de 25. de Março por diante, cj era o tépo em q naquelle anno cabia a ío- manafanta,& porq nella celebraua a Jgrcija (agrada a memoria da paixão do Filhode Deos, não íe podia en- tão fazer efte recebimento a popa Sc aparato q todos requerião.O mef- mo Lopo de Loronha capitão da nao quis íer o q leuaíTe efte recado,o qual fe partio logo,& chegado a Goa ao collegio de S.Paulo,deu conta ao padre meftre BeIchior,Reitor vniuer fal naquellas partes da còpanhia de Iefu,& fe tornou logo para a nao. O padre Reitor cóíultou ifto os mais padres do collegio,& entre todos foy aílêntado q o mefmo padre Reitor foíTe logo em peíToa dar conta difto ao Viforrey,&lhe pediíTe humeatur bem efquipado,o q afsi fe fez,& o Vi- íbrrey lhe deu logo húdeq era capi- tão hum Simão Galego q então efta- iia na cama muyto doente; mas em feu lugar fe lhe oífereceo hum deuo- to dofanto defunto, de q o Viíorrey moftrou leuar muyto gofto. O padre meftre Belchior com três irmãos, &

% . *,„„. 290

quatro mininosorfaós dos do colle- gio fe embarcou no catur,& fe parrio de Goa húa feguda feira pelamenhá, & â quarta logo feguinte encótrou a naojúto da barra de Batecalaa, com mais outras fete q eftauáo em calma-* . ria á vifla húas das outras/em pode- rem furdir auante, A naoconheccdo o cacur, porq hia enramado & com moftras de fefta,fez tabem o mcfmo. Chegando o catur a bordo da nao,o padre Reitor com toda a mais còpa- nhia entrou logo nella, & leuaua os mininos orFaósdiante capellas nas cabeças^ ramos nas maós, cantado Gloria in exceljts Deo,&c. & outras muycas cantigas em louuor de Deos. E defpois q todos foraó dentro,& recebidos do c^pitaó, ôç da mais cò- panhia^ irmão q trazia a feu cargo efte Tanto defútotomouo padre Rei- tor pela mao,& hua vella acefa o leuou abaixo â camará onde elle efta- ua, & o moftrou ao padre & a todos osq vinhaó elle,os quais em o ve- do íe puferaó todos de joelhos, & muitas lagrimas lhe beijarão os peis, & defpois de eftarem cos olhos nelle grande efpaço,o meterão no catuc cantandolhe o pfalmo 'BeneJiSíus Vo minus Deus Ifrae /,a q os circumftantes ajudauão .com não menos lagrimas que as dos padres,&defamarrado do bordo,onde todos ficaraódãdo mof- tras da deuacão q lhe tinhaó, a nao, com todas as fete que eftauaó à roda ao defamarrar do catur, lhe fizeraó hija efpantofa falua de artilharia, de que os Gentios eftauão pafmados, acudindo por todas as prayas a ver o O O 2 que

Terigtinaçoes q aquilloera. Partido o catur daquy uao mais outras dez ou doze embar.

da barra de Ancolaa,q era cinco le- ,goas abaixo de Batecalaa para Goa, chegou áquinta feyraâs onze horas da norte anofla Senhora <áe Reban- dar,que he meya legoa de Goa,onde foy deíembarcado eíle corpo,& leua. do â igreja,& pofto júto do altar mor, ;có'muvtâs todhas & cirios acefos, & o padre meítre Belchior,q então o trazia a leu cargo,o mandou logo fa- zer a íaber ao Viíorrey, por lho elle àfsi ter pedido, & mandou também aos padres do feu collegio que tanto que fotTe menham o vieííem efperar •todos ao cai z, porcj atèas oito horas feria ahy. Defpois que o padre Rei- tor proueo em tudo o q lhe pareceo q então era neceífario, & tomou hu pequeno de repouío^díiTe MilTa muy to de madrugada, â qual fe ajuntou ftoda agente q ahy ao redor mora- ua,afsi Portuguefa como da terra. Neíte tepo,começãdojá a eíclarecer o dia,vieraó da cidade íeis embarca- çoés,em*q vinhaó quaréta ou cinque- ta homésq na vida defte defunto fo- raó muytofeus deuotos, os quais to- dos trazião tochas nouas nas mãos, & os fe.us moços cirios. Eítes^ntran- ào todos na igreija,íè proílraraó dia- -te da tuba ou caixa onde elle eftaua, & oreueréciaraó muitas lagrimas, & quãdo òíolcomeçou a fayr, aba- larão para a cidade, <& no caminho eftauaDiogo Pereyra em batel muyta géte,có tochas & cirios acefos, q emo catur prepaífãdo por elles, fe proílraraó todos cos tortos no chaõ. <Blogo atras neíla mefma ©rdé efta^

caçoeSjde máneyra q quãdo chegou ao caiz iria acóparYhado de vinte em barcaçoés de remo,em q iriaó céto ôc cinquenta Portuguefes da China ôc de Malaca,géte toda muyto limpa ÔC rica,& eftes, como digo todos to- chas ôc cirios aoefost& os feustnoços, q feriaó mais de trezétos, com vellas grades como brandões, o qual auto- rizado ôc Chriítao aparato caulaua muita deuação em todos os q o viaó.

Cat. icxvm.

T)o recebimento tjm fe fe^ em

Goa a e§le Janto deftmto^&

domais que dhyfoeeâeo.

Hegado eíle catur em que vinha eír.e fanto corpo ao caiz da cida- de onde aula de átÇ- embarcar , achou jz. nelle o Viíorrey que o efratia-e" randocom feu eftado de porteyros com maças de prata, acompanhado de toda a fidalguia da India,com oti tra tamanha quantidade de gente do pouo que quatro Alcaides tinhaó bem que fazer em preparar o cami- nho, Eírauão aly também o ca- bido da See,& Oiprctiedor ôc irmãos *da>mifericordia,todos íuas ytrrií ôc cirios brancos nas maós;:& hííí tumba hu psno 'brocado fiou íu as franjas ôc guarnições douro, na qual não foy kuado,porque pare- ceo milhor que foífenaem que vie- ra de Malaca^os padres & irma?©$ífa

, foinpa*

1

Fernão Mcndez^Pinto.

*9\

companhia de íefn que eraõ muytos, *thegar,iòaocatur,q a efte tempo cfhuabem atracado com tefra,& la- cando mão da túbaq etlaua encima do toldo, apareceo crucifixo muy- to deuoto, q hua grande quantidade dernimnosorfaósdocollegiotinhaó cnberto,<S: começado delles a en- toar o plalmo de Beneditina Dominus í)eus //m/,refpõderaó todos os mais juntamente com ruía grita de muyto boas falas & concertadas tão de- nota 6c efpátofa q os cabellos fe arri- piaraó a todos os q a ouuiraó,& as la grimas & folluços foraó taó gerais •em todoaqUe innumerauel & Chri- ftão ajútaméto, q a vifta daquilio baftaua para todo o peccador fe con- líetter muito de verdade. Deite caiz abalou todaefta gente pofta em húa prociíTaó muito bécóccrtada,& o sã- corpo hia detrás metido na tuba em q viera de Malaca hu grande -pano de brocado por cima,& alguns tribulos de prata q o hiaó encenando ipot ambas as partes c6 cheyros fua* uiÍ5Ímos,&atúbadamifericordiahia diante a deftro.De maneyra q efte en terramétofe fez efte dia taco cufto & aparato por hora de Deos, & dçfte feu feruò,q os Gentios, & os Mouros da terra metião os dedos nas bocas pormoftraré o grade efpãto qtinhaó como hefeu cuftume. È entrado afsi pela porta da cidade, foy pela rua di- rey ta,a qual a efte tempo eftaua toda dalto abaixo muyto ricaméte concer- *tada,có muytas alcatifas & panos feda,& asjanellas muyto preparadas, &cheyasdas molheres & filhas de

todos os nobres, & por baixo às por- tas muytas inuençoés de perfumes & cheyros fuaues.E não íométe efta rua mas todas as outras por onde paíTou ate o coilegio de S.Paulo onde foy le* uado,eftauão defta maneyra,& ainda q o dia era fefta feira de Lazaro,efta- ua o cotlegio de fefta, frontais de brocado em todos os altares,&alam padas,& cafticaes,& cruzes de prata, & tudo ornais q fe via era correípõ- dente a ifto. Chegado afsi â igreija fe pos em depoílto juto do altar mór à parte doÊuangelho, onde fe diííe Miflàíblérie hu pontifical de bro- cado ,offimd a rpuy to boas falas, & muytos inílrumentos muíicos conformes, àfolénidade de tamanha fefta. E por fer muyto tarde,& a te eftar muyto deíejoía de ver o Unto defunto,nío ouue pregação. Acaba- da a Miíía, fe moftrou o íanto corpo a todo o pouo,q o reuerenciou af- faz de lagrimas,& porq a gete, como digo,eramuyta, & cada fui procura- ua pelo ver de mais perto, o ímpeto, & a força da muy ta géte foy de ma- neyra, q ás grades da capella, fere muyto groílas,foraó feitas em muy- tos pedaços. Vendo os padres q efte tumulto hia crecendo cada vez mais, & qfelhe não podia dar euafaó,tor- naraó a cubrir a tuba, dizendo q à tar de o veriaó mais a fua vontade,& co ifto fe recolherão todcs,poré defpois fe moftrou alguas vezes,& em algúas dellas,pelocócurío da géte fer muy- to grãde,ouue muitas gritas-& vnioes afsi de molheres como de .crianças cj eftjueraó a rifeo de fe afogaré.Nefte O O 3 melmo

Terigrinaçoes de mefmo dia á tarde chegou a efta ci* Portuga],parâcj efta minha terra a

dade.de Goa hG Pòrtuguez por nome António Ferreyra caiado em Mala- ca,còhú prefente de peças ricas para o Viforrey,que lhe mãdaua de Iapaó cl Rey do Bungo,com húa carta que deziaafsi. llluftre & de mageftade rinuyto rica íènhor Viforrey dos limi tesda India,leão efpantoío nas ondas do mar,por força de nãos & de bom- bardas groílàs, eu Yacataa andono Rey do Bungo,de Facataa,de Oman guche,& da terra de ambos os mares, fenhor dos Reys pequenos das ilhas daTofa,Xemenaxeque, & Miaygi- maa,te faço faber por efta minha car ta q ouuindo eu os dias pafíâdos o pa dre Frãciko Chenchicogim praticar da noua ley do criador de todas as coufas q ás gétes de Omanguche an- daua pregando lhe promety em fe- gredo fechado em meu coração q tor nado elleaefte meu reyno tomaria de Tua mão'o nome & a agoa do Tan- to bautifmo inda q a nouidade de ta manho abalo me pufeíTe em difcor- diacómeus vaíTallos,& elle me pro- meteo també q dandolhe Deos vida tornaria muyto cedo,& porq efta fua tardança fe eftédeo mais do q minha efperança cuydaua, quis la mandar efte home a íaber d elle & de voíTa fe- nhoria a cauía q lhe impede a fua vin da.Pelo q fenhor lhe peço,q em todo o cafo por fy & por mim lhe rogue, q os Reys da terra o não pode mã- dar, q íe venha logo nefta primeyia mouçaó, porq fua vinda a efte meu reyno fera de muito feruiço de Deos, & noua amizade co grande Rey de

iua íeja em amor fixo húa coufa^ os Teus*vaíTallos fejáo frãqueados em todos os portos & rios onde. furgiré, como no voflò Coochirnondeeftais. E vofía fenhoria me manda em que por amizade íirua a íeu Rey, porq o farey tão depreíla como a volta q o Sol dàdamenham á noite. António Ferreyra lhe dari húas armas que veney os Reys de Fiungaa & Xeme-

naxeque}& veftido nellas como o dia em q lhe dey batalha, obedeço por meu irmão mais velho a eíTe inuécr-

uelRey do cabo do mudo fenhor dos tifouros do grade Portugal. Efta car- ta moftrou o Viforrey Afonío ao padre Reitor meftre Belchior,& lhe * difíe q qual era a cauíà porq fe não partia logo paralapaó a eíFeituar hua coufa de tanto feruiço de Deos^&lc- uaua cõfígp todo o collegio de S.Pau lo de Goa? O padre lhe deu muytas graças pela mercê q lhe fazia naqúil». Iq,& lhe dííTe q pois fua fenhoria aísf lho aconfelhaua & mandaua,q elle fe hia logo fazer preftes para íe partir naquella moução. E o Viforrey lho louuou & lho agradeceo muyto por entéder que era húa coufa de muyto feruiço de noffo Senhor.

Como o padre me&re 'Belchior par tio da jndia paja fapão, &a caufa porque não pajjou tie Mar ,' laca^ &- do qne neiíajoce- deo nfj/te tempo,

ífPaa-

Femao

Afiados íiiaís quator- ze dias,que foy aos de- zaíTeis de Abril do ati- no de 1554. o padre reitor meftre Belchior fe partio para Malaca em húa nao em que hia dom António de Noro- nha filho de dom Garcia de Noro- nha Viíorrey que fora da índia,ã co- rnar pôíTe da capitania daquella for- taleza, porque o Viíorrey mandaua prender dom Aluarode Tayde ca- pitão delia, por lhe não obedecer a luas prouifoés,& por outras culpai q tinha delle,das quais tenho por efcu- fado tratar acjuy particularmente, porque não fazem a meu.propoíico. O nouo capitão dom António che- gou a Malaca a cinco dias domes de lunho,na qual foy bem recebido ôc leuado â igreijacom prociíTaó de Te 1)eum Uudamus, onác fe diíTe MiíTa, , 3c ouue pregação. E defpoisquefa- hío da igreija, que feria quafi âs on- ze horas,o licenciado Gafpar Iorge, Ouuidor geral da India,que hia Fazer efta diligencia, mandando tocar hu ííno fez ajuntar o pouo todo, & lhe moftrou as prouiíoés que leuaua do V"iforrey)& após iffo tirando hús a- pomamentos que leuaua de fora,fez porellesmuytas preguntas a do Al- uarode que fe fazia termo pordous ' eíeriuaés,nos quais ambos aísinauao com o ouuidor & capitaó,em que ou uemuyta detença. E no fim deitas preguntas dom Aluaro foy defpoílo <*fa cápitania,& prefo, & toda fua fa- zenda confifc a da, ôc o mefmofefez Métodos os da fua parcialidade que

£\dende^Tinto. 292.

o fauoreceraõ na priíao do Gamboa veador da fazenda,& no romper das prouifoés do Viforrey, & nos outros defmachosque nefte cafo fe fizerao, Ôc tudo ifto fe fez com tanto rigor & taò excdsiuo,queos mais dos fiomés fugirão para os Mouros, com que a fortaleza ficou taò íó & tão dei peja- da,cjueefteueem rifcode íè perder, fe o nouo capitão dom A ntonio não prouera niíTo com muyta.prudencia, dando a todos perdão geral, & ainda afsivinhaóde muyto vontade, Porque como porcauíà deftes inful- tos,& de outros cjue dom Aluaro rJ* nha cometidos, defpuferaó Malaca de fer cidade como antes era,6caca* mara ôc o gouerno delia foy todo desfeito com pregoes feos Ôc vergo- nhofos, caufou anouidade difto ta- manho efpanto $c terror em todos os moradores della,que largando,co- modigo,ascafas ôc as fazendas^ fe paílauão todos para os Mouros. De maneyra que neftas afrontas, ôc em outras muytas que fe fizerao a dom Aluarode vio bem claro quão verda- deyra íãhio a profecia do padre me- ftre Francifco quando diíTe a*b Vi- gayro Ioaó Soarez que cedo fe veria cercado de auexaçoés ôc de trabalhos na honra4na fazenda^ na vida, por~ q auanto a fua morte, coufa he muy- to fabida que falleceo elle nefte rey-

no andandofe liurando fobre fiança.

* > *

de alguas culpas de que foy accufa* do pelos procuradores dei Rey, Ôc a cauíã da fua morte foy hõa grande poftema que lhe naceo no pefcoço, com a qual fe veyo a corróper todo O O 4 por

I

Teregr mações de por dentro de tal maneyra, &còm metido eni huacafá,& aIy,fegundo

hum fedor tão incoraportauel que não auia quem ouíaíTe de chegara elle. E daquy por diante naõ tra- tarey mais delle, bafta que foy a lua morte muyto apreífadaguizos faó de

íe diíTe,foy defpido & atado húa corda de.peis & de mãos, & defpois de bem açoutado, & pingado com huas torcidas de azeite,de que efíeue para morrer.3lhelãçaraó hús grilhões

Deos que elle entende, Eftas reuol nos peis, & huas algemas nas mãos, tas êc exceíTòs da juftiça, com que a & hum colar no peicoço, & lhe de-

terra andaua toda amotinada, roraó caufaque o padre meítre Belchior com os mais da fua companhia não pudeííeaquelle anno paííàr a lapão como tinha determinado, pelo qual lhe foy forçado inuernar aquy em Malaca*até o Abril íeguinte de 1555- que foraõ dez meies. Nefte tempo continuando o Ouuidor Gafpar lor- ge pelas riguroías execuções que ca- da dia fazia nus & noutros^ieu moti no de muyto efcandalo em toda a terra, & não contente, com iíTo, con- fiado nas largas prouifoés que o VÍ- íbrrey lhe dera,fe quis entremeter na jurifdiçaó do capitão dom António, Sc k apoderou tanto de^a que ao ca- pitão lhe não fícaua mais que ío.-o iiome>& fer hum olheyro da fortale- za,© qual inda que elle o finda muy- 4:o,totlauia ocOmeçou a yr pairando com muyto foírimento, porem cor- rendo eítas demallas & íblturas do ©uuidor por mais de quatro meies, emqueouue muytosdefgofros, de q -âquy naó trato particularmente por fer proceííò infinito, vendo hum dia o dom António o tempo difpoíto ipara efFeituar o que ji dantes parece «que tinha determinado, o prendeo hua féíta na fortaleza,onde por algus <cjtiejá para iíTo eílauáo jprdtxs,foy

pennarão todas as barbas íem lhe fi- car hum cabello no roík>,& ihe fi- zeraó outras couías a efte modo, íp- gundo fe então diíTe publicamente, de maneyra que o pobre licenciado Ga!parlorge,queíe intitulaua Ouui- dor geral da India,prouedormòr dos defuntos & dos orfaós, veador da fa- zenda de .Malaca & das partes dp Sul porei Rev nofTo fenhor, foy por dom António tratado defia mai&ey- ra,íe he verdade o que fe diGe.E yjn- da a moução,afyi prefo em ferros íoy mandado â índia com hm fea de-uaf fa q;ue fe tirou delle, a qual os letra- dos da rolaçaó de Goa deípois anui* laraó,& mancarão tirar outra de no- no a Malaca, & ao dom António pe- lo que fizera mandou o Viíorrey dí> Pedro Mafcarenhas, que ja a efte m-

ípogouernauao eftado da índia, vir prefo,para eitar a juizo co Gafpar Ht

•ge,& diar razão do que lhe fizera;. 0

.qual dom António fe veyo logo à índia, ondeandandofe hurádo defte feito lhe mandarão na rolaçáo que dentro em três dias contrariaffe hum

;feyo libello com que o Gafpar íoíge veyo contra elle, & porque o dom António naturalmente era contrario deites termos judiciaisde replicasse treplicas, que fe deziagos jde/èjfo..

barga-

Fernão

bargadoreso queriao etifadar, pare- ce (ícgiindo então diíTerao os pia- guentos, porque eu não q yy, nem o fey de certo) que não quis gaitar em refpóder aplibello todos os três dias que lheforaõ dados de termo, mas dentro de vinte & quatro horas deu co Gafpar íprga em parte donde nu- ca mais fe letiantou, ôc íegundo tam- bém íe diíTe,cpm hum bom bocado que lhe deraó num banquetear on de efte negocio ceifou de todo, & o dom António por fentença foy íbko & luir.e,& que tornafíe a ieruir a fua capitania, para onde fe partio lego daly a hum mes, porem chegado a Malaca & metido de po.fle. não du- rou mais nella que sósdous meies & meyp,nofim dos quais falleceo de camarás de Tangue. E deita maneyra fe acabarão de aueriguar todas as dif cordias & enfadamentos que a triíte Malaca ceue naquelle tempo. ,

CAT. (JCXX.

Çqvho partimos de Malaca para

fapao^ & do que paffãmos ate

chegarmos à ilha de Qoampeyloo

na Cauchenchinai& do que

.nella vimos.

m 9

Hegada a moucaõ pa- ra o padre meftre Bel- chior poder proíèguir fua viagem,nos parti- mos de Malaca o pri-

.meyro de Abril do anno de 1555.

embarcados em hua carauelia dei

Mend-ezfpintQ. ZÇ?

Rey noíTo íenhor q?.ie dom António capiraó d^ fortaleza deu ao padre por hffa prouifaò que leuaua do Vi- lorrcy, E aos três dias da noíTa via* gem chegamos a húa ilha que fe de- ziaPullo pilaó quaíl na boca do eftreito de Sincaapura, onde o pilo- to,porfernQUo naquellacârreyra va rouenfunado na vella por cima de húa reftinga de pedras, com que de ,todo eftiuemos perdidos lem nenhu remedio.pelo q foy forçado^or con- felhode todos, yr o padre meftre Belchior em húa manchua pedir fo- corro de batel & marinheyros a Ku Luis Dalmejda que auia duas horas que emhumnauío tinha paíTadoa- uante,& eftaua furto daly duas legoas por refpeko do vento que lhe era contrario- .na qual yda & diftancia de caminho o padre dous irmãos ôc eu que com elle hiamos corremos aflTaz de rifeo Ôc trabalho, porque co- mo a terra toda eítaua de guerra,por que era do Rey do Iantana, neto q fora dei Rey de Malaca muyto noí- fo inimigOjQS.feusb^loês ôc lancharas que andauão ahy darmada, nos vie- raó fempre. ladrando com fundamé- to de nos abalroarem, mas permitio noíTo Senhor que o nãopuderaò fa« zer.Che.gados nos em fim ao nauio comaíTazde afronta ôc medo, o ca- pitaó.delle nps proueo ,tk batel & marinheyros, no qual nos tornamos , à carauelia toda a preíTa pofsiuel por lhe focorrermosâ necefsidade em que a deixáramos. E chegando, a ella ao outro dia, prouue a noíTo Se- nhor que a achamos liure daquele

trabalno

;

tperigrínâçoes de trabalho,mas com fazer muy ta ágoa gor & Siâo,& ãtráiíeíTando da barra

pela roda proa,que defpois fe lhe tomou em Pátane onde chegamos dály a fete dias, & eu outros dous deíembarquey em terra,& fuy verei Rey,& darlhe hua carta do capitão de Malaca, o qual nos recebeo com muyto gafalhado,& lendo a carta do capitão,por ella entendeo que a ten- ção com que aly vínhamos, era para comprarmos mantimétcs,& nos pro- uermos de alguas coufas que não tra- zíamos de Malaca, & profeguirmos noíía viagem â China, & dahy a la- pão, para ó padre com os mais que leuaua*comfigo pregarem a ley Chnítam a aquelles Gentios , pelo qualel Rey, defpois de eftar hfi pou- co penfatiuo, forrindofe para os feus lhes diíTejCjuanto milhor fora aeftes, jaque fe auenturaó a tantos traba- 3hos,irem â China fazerfe ricos, que pregarem patranhas a reynos efíra- nhos. E chamando o Xabandar que cftaua defronte delle, lhe diíTe, tudo o que eftes homens requererem lhe faze por amor do capitão de Malaca que mos encomenda aquy muyto, & lembrete què não mando â coufa mais que hua vezDefpedidos nos dei Rey contentes do bom gafalha- do que nelle achamos, fe entendeo logo ern fe comprar tudo o neceíTa* rio,afsr de -mantimentos como de to- do o mais de que vínhamos fâltos,& dentro de oito dias ríosprouemosde tudo em muyta abaftança, E parti- dos deite porto de Patane corremos dous dias ventos Sueftes de mou- rão tendente ao logo da cofta de Lu-

de Cuy para yrmos demandar Pui. lo Cambim,& dahy as ilfias de Can- tao,com fundamento de eíperarmos ahy a conjunção dalua noua,nos ío- breueyo hum temporal de ventos Oesfudiveftes (qife íaó os que ordina- riamente reynão nefta cofta o mais do anno) taõ tempeftuofo que de to- do eftiuemos perdidos,peloque nos foy fcrçado.arribarmos outra vez à cofta do Malayo, & chegando a húa ilha que fe chama Pullo timão,tam< bem nella corremos aíTazde perigos afsi de tormentas, como de tacões1 da gente da terra, Defpois de auer cincodiasque aquy éramos chega- dos^ eftarmos fem agoa nem man- timento algum, porque tudo tínha- mos alijado ao mar, prouue a noífo Senhor que vieraó huamenhamter com nofco três nãos de Porttígueícs que vinhãoda C,unda, com a vinda das quais nos ouuemos por remidos em noíTos trabalhos. O padre meftre Belchior praticou logo cos capitaens delias fobre o que faria de fy, & por parecer de todos foy aílentado que mandafTe a càrauella em que vinha para Malaca por naó fer embarca- ção fuffíciente para taõ lóga viagem como eradaly alapaó,0 qual fefez afsi,& o padre fe embarcou com hu Francifco Tofcano homem rico & honrado, que lhe fezogaftoem to- da a viagem, & muyta parte do tem- po que efteue na China a elle & a to- da a companhia que leuaua comíi- go. Defta ilha de Pullo timão nos fi- zemos à vella hua í efta fey ra fete dias

de

. Fernão Mende^Pinto.

delimhodomefmóanrio de 1555. & lhe ifto que vimos atrauefíandoaterra firme do reyno Champaa, vellejamos ao 4ongo da coita com ventos galernos de mou

*H

,i:

QA<P. CCXXl

cão tendente,& em doze dias mais fo mos furgirem húa ilha que fedezia Pullo Chapeiloo na enfeada da Cau- chenchina,onde rizemos noíTa agoa- da em húa muyto frefca ribeyraque decia do cume da ferrador entre húa grande penedia júto daqualemhúa Jagea muyto alta. eftaua efculpida húa Cruz muyto fermofa>có as qua- tro letças do titulo, & abaixo do pee oora de quatro dedos eftaua por alga rifmo era de 15 18. & húas féis letras que em breue dezião Duarte Coe- lho. Defta ribeyra para a parte do Sul obra de dous tiros de befta em huas aruores que eorrião ao longo da praya eftauão feíTenta ôc dous homés enforcados, a fora outros muytos q jazião no chaòja meyos comidos, coufa que parecia fer feita dalgús féis ou íete dias, em outra aruore eftaua húa bandeyra grande, com húas le- tras Chinas que dezião,todo o nauio ou junco que aquy vier faça muyto deprefla fua agoada & vaíTe Iogo,-cõ tempo ou fem tempOj fo pena de pa- decer por juftiça como eftes mifera- ueisaquemo furor do braço da ira da potencia do filho do Sol abrãgeo. A qual nouidade fe não íbube dar então nenhum entçndimento, mais que fofpeitarle que chegaria aquy al- gúa armada de Chins , Ôc achan- do eftes coitados, roubarennos co- mo ordinariamente cuftumáo fa- zer, Ôc ío color de juftiça fazerem*

Como defta ilha de Qbampetloofo mos ter a de Sancbaò, &dabya Lampacau>& dajfe conta d edom cajos defeslrados que acontece- rão na (Jbinaa duaspo- uoaçoes de T?or-* tuguefes.

Àrtidosnos defta ilha de Champeiioosfomoâ demandar as ilhas de Cãtão,& aos cinco diaâ de noíía viagem prou* ue a noflb Senhor que chegamos a Sanchaó,que era a ilha onde fora en- terrado o padre mefíre Franciíco,co- mo atras tenho dito, ao outro dia pe - la menham toda a gente da frota defc embarcou em terra,& nos fomos to- dos em prociílãõ ao lugar do jazigo doíànto padre, o qual achamos todo cuberto de eruas ôc de mato* aparecer delie mais que fos as pontas das cruzes de que eftaua cercado,po* rem logo por todos foy limpo & pre parado com muyta deuação, ôc após ifíb fechado com húas grades de pao fortes,& por fora fe lhe fez mais ou*, tra eftacada,& todo o chaó ao tcdot foy muyto limpo Ôc apranado?& to« daeftaobra em roda eftaua cercada de muyto bós vallos, â entrada dos quais eftaua húa cruz muyto alta ôc muyto fermoíà. Defpois que ifto foy preparado 4a maneyre que então

parecia.

parecia q conuinha, o padre meílre Belchior diífe MiíTa de feita, canta- da,que os mininos orfaõs & algus ho- rnés deftros no canto officiaraó com muyto boas falias, & com ornamen- tos de brocado, & com caftiçais &a- laropadas de prata,em que ouue íèr- mao breue apropriado à folénidade que fe feftejaua, em que fe tratou da vida& trabalhos do fanto defunto, & do grande zelo que fempre tiuera da honra de Qeos, & da augmenta- ção da Tua fanta fé,& da faluaçao das almas, Qc do fanto propofíto que entrara naquelle reyno da China, oh de noflò Senhor fora íeruido de o chamar para a Tua gloria, o qual íer- máofoy ouuído de todos muy ta dcua^ão^ não fem alguas lagrimas. Ao outro dia pela menham nos par- timos deita ilha de Sanchaó,& ao foi pofto chegamos a outra ilha que eítâ mais adiante feislegoas para o Norte chamada Lampacau, onde naquelle tempo os Portugueíes fazião fua ve- niaga cos Chins, ôc ahy fe fez fempre ate o anno de 1557-que os Mandarins de Cantaõ a requerimento dos mer-. cadores às terra nos deraó eíte porto* de Macao onde agora fe faz,no qual fendo antes ilha deíerta, fizeraò os noíTos húa nobre pouoaçaó de cafas de três quatro mil cruzados, & com igreija matriz em que ha Vigayro Ôc be»eficiados,& tem capitão & ouui- dor & officiais de juftiça, & taõ con- fiados &feguros eftáo nella com cuy darem que he noífa,como fe elia efti- tiera fituada na mais lêgura parte de Portugal, mas quererá noíTo Senhor

Teregrinaçoes de

pela fua infinita bondade & miíèri cordi3 que efta fua íègurãça íeja mai . certa & de mais dura do que foy a de Liampóo, que foy outra pouoaçaó de Portuguefes de que atras fiz lar- ga mençaó^uante deita duzentas le- goasparao Norte, a qual pelo def mancho de hum Poxmguez em muy to breue efpaço de tempo foy de to- do deftruyda & pofta por terra, na qual defauétura me eu áehey preíen- te,& nella ouue fyúaineftimauel per* da afsi de gente como de fazenda» porque tinha efta pouoação r/es mil vezinhos,deque os mil & duzentos eraó Portuguefes, & os mais gente Chriftam de diuerfas nações, & íegu- do feaffirmoupof dito de muy tose] bem o fabião,paíTaua o trato dos Por tuguefes de treá contos douro,de que a mayor parte era em prata de íapaó que auia dous annos que fe deícu- brira,& que íe dobraúa o dinheyro três ôc quatro vezes ern qualquer fa^ zenda que para la fe leuaua, Nefta po uoaçaó auia capitão que refidia na terra,a fora os particulares das nãos da carreya que hiáo & vinhaó^uia oui)idor,juizes, vreadores, prouedor mor dos defuntos Ôc dos orfaõs, ai- motaceis,efcriuão da camara,quadrN lheyros;rendeyrosJ& todos os mais offícios da Republica, & quatro ta- balliaes das notas, ôc íeis do judicial^ por cada hum dps.qúajs officios fe dauade compra três mil cruzados, Ôc outros ainda de muito mayor pre- ço. Auiaaquy trezentoseaíadoscorn ' molheres Portuguefas ôc miftiças, auia dous efpritais ôc çafa de miferi-

cordia

Fernão Mende^Pinto. i95

cordia em que fe defpendião cada marca, & os moradores delia fe fo-

anno mais de trinta mil cruzados, & a camará tinha íeis mil pe renda. De maneyra que fe deziâ geralmente q çraa mais nobre,rica, & abadada po- uoaçaó de quantas auia em toda a India,&doíeu tamanho em toda a Aíia,& quando osefcriuaéspaífauão algús precatórios para Malaca, ou os taballiaés faziãoalguas efe ri curas de- tião, nefta muyto nobre & íempre leal cidade de Liampoo por el Rey nofío fenbot. E ja que me cae agora tanso a propofíco, não quero pairar fem dar conta do como &-o porque Te perdeo efta taó infígné Ôc tão rica ponoação,o qual foy deftamaneyra* Auia alv hum homem hórado & de boa geraç^aójChamado Lançarote Pe reyrâ,natural de Pote de Lima,efl:e, dezião que dera hus mil cruzados em ruyns fazendas fiados a huns Chins homes de pouco credito, os quais fe lhe leuantaraõ com a fazenda, fem lhe maís darem o retorno della,nem elle ter mais nouas delles, pelo qual, querendofeellefatisfazer deite per- da nos que lhe não tinhaó culpa, a* juntou para iíTo hus quinze ou vinte Portuguefes ociofos & de ma con- feiencia^ quiçá de pior fífo, & deu húa noite em húa aldeã daly duas le- gaas, que fe dezia Xipatom, ôc rou- bou nella dez ©u doze lauradores q ahy viuiaó, & lhes tomou a todos as molheres & os filhos, com morte de treze peíToas fem razão, nem caufa algua jufta que para iííb tiuefTe.O re- bate defte tamanho infuko fe deu lo- go m outro -dia po* toda aquella co-

raô queixar difto ao Chumbim da juftiça, & tirandofe deuaífa do que paííauâ o efereueraó por petição de* clamor do pouo, a que elles chamao macalixau,ao Chaem dogouemo, q he o Viforrey daquelle reyno,o qual mandou logo hum Aitao, q ue he côr mo Almirante entre nos,com húa ar« mada de trezentos juncos, & oitenta vancoés de remo,em que hião feíTen ta mil homes, que fe fez preftesem dezaífete dias, a qual armada dando hua menham nefta delauenturada pouoaçaodos portuguefes, a cóuía foy de maneyra que certifico em ver- dade que não acho em mim cabedal nem de engenho nem de palaurãs para contar por extéfo o que aly paí- fou,imagineo o bom entendimento, fomente direy como tèftemunhade viftaque em menos cinco horas que durou eíle horrendo ôc efpanto- fo caíiigo da mão de Deos, ôc da po* tencia da fua diurna juííiça, não ficou coufaaquefepudeíTepòrnome,poff que tudo ficou abrafado Ôc pofto por terra,com morte de doze mil peflòas Chriftãs, em que entrarão oicocétos Portuguefes, os quais foraó todos queimados viuos em trinta $c cinco nãos, & quarenta Ôc dous juncos* & emprat^pimeta/andaiojçrauojma^ ça,noz,&; outras muytas iortes de far zendasfedííTe quefe perderão dous contos •& raeyo douro. E de todos eftes males & defauenturas foy cauk a confeiencia ôc pouco fiío de hu Portuguez cubiçofo.E. defte mal nos foçedeo inda outro mo pequeno, o

qual

^Peregrinações de

qual foy,ficarmostão defacreditados por muyto bom Chriftao. Tinha ef-

na terra,que nao auia quem nos qui- JeíTe ver,dizédo- que éramos nóshús demónios em" carne humana, gera- dos por maldição da ira de Deos pa- ra caftigo de peccadores. Eifto acó- teceo no anno do 1542. gouernando o cftado da Índia Martim AFonfo de Soufa,& fendo capitão de Malaca Ruy Vaz Pereyra Marramaque.Lo- go dahy a dous annos, querendo os Portuguefes tornar a fazer fua habi- tação em outro porto que fp chama- ua Chincheo no mefmo reyno da China legoas abaixo deite de Lia- poo, para terem nelle feus tratos ôc mercancias, os mercadores da terra pelo muyto proueito que diífo lhes vinha, acabarão cos Mandarins, por peitas muyto groíTas que por iíTo lhes deraõ, que difsimuladamente o confentiífem. Aquycorreoo nego- cio do tratd entre nos &os da terra quietamente por tépo de quaíi dous annos & meyo pouco mais ou me- nos,até que de Malaca por manda- do de Simão de Mello capitão da fortaleza veyo ahy ter outro quaíi da mefma eftofa do Lançarote Pereyra que fe chamaua Aires Botelho de, Soufa,o qual trazia prouifaó do capi- tão Simão de Mello para fer capitão: mòr daqlle porto Chincheov& pro- uedor dos defuntos, o qual, fegundo fe dezia, vinha tão defejofo de fer ri- co,que IheaíTacauao q lançaua mão por tudo fem ter refpeito a coufa ai- gúa. Nefte feu tempo acertou de vir aly ter hum eftrangeyro Arménio de nação, o qual de todos era julgado

te homem de feu como dez ou dote mil cruzados, & por íer eftrangeyro & Chriftão como nos, fe tirou de hu junco de Mouros em que vinha,& fe paífou para hua nao de hum Portu- guez por nome Luis de Montarro- yo, & auendo obra de íeis ou íete mefesque viuia aquy entrenós paci- ficamente, fauorecido & agaíalhado de todos?por fer,como digo, muyco bom homem,& bom Ghriftão, veyo a adoecer de febres de que morreo & fazendo teftamen to declarou que era cafado,& que tinha fua molher ôc feus filhos em hum lugar da Armé- nia que íe dezia Gaborem,& que dos doze mil cruzados que tinha de feu deixaua á fanta mifericordia de Ma- laca dous mil,com certas declarações de miífas poríua alma, ôc o mais pe- dia ao prouedor Ôc irmaõs da cafa q o tiucftèm em depoíuo em feu po- der até o fazerem entregar a feus fi- lhos^ quem mandâua que fe déífe,& fendo cafo q feus filhos foífem mor- tos, deixaua a mifericordia por fua herdeyra vniuerfal. Logocomoefte Chriftao foy enterrado, o Aires Bo- telho de Soufa prouedor dos defun- tos lhe arrecadou toda a fazéda, femj fazer inuentayro,nám outra algua di %encia,dizendo que era neceflàrio mandarenfe requerer os herdeyros na Arménia onde eftauão, que era daly mais de duas mil legoas a ver fe tkhão aigús embargos, para ferem ouuidos de íua juíriça. Nefte mefmo tempo vieraõ também aly ter dous mercadores Chins, que trazião três

mij

Fernão Mende^Tinto.

mil cruzados cm feda, peças de da< mafco, porcellanas, & almizcre, os quais fe deuião ao Arménio defúto. Eftes arrecadou também oprouedor & juntamente com ilío,dizendo que toda a mais Fazenda que ficaua aos Ghins,era também do Arménio de* funto,dizem que lhes tomou hús oito mil cruzados, ôc lhesdiíTe qfofiem a Goa requerer fua juftiça perante o prouedor mòr,porquc elle não podia deixar de fazer o que fazia, porq era obrigado aifTopor razão de feu offi> cio. Oe maneyra que para não ga- fiar muytas razoes em contar o que fobre ifto fe paffou,os dous mercado res fe tornarão para fuás cafas fem le* «arem nenhúacoufa do que trouxe- rao. onde fe forào logo ambos com molheres & filhos lançar aos peis dp GhaemA lhe relatarão por hua pe* tiçaò todo cfte cafo como paíTaua, & Ifie diíTeraó mais que éramos nos gente fem temor nenhum da juftiça de Deos. O Chaem querendo logo íàtvsfazer a eftes mercadores, & a ou* trots que ja também antes difto fe lhe queixarão de nós, mandou apregoar que nenhua pefloa nos communicaf- íe daly por diante fo pena de morte. E como ifto foy caufa de totalifsi- maméte fe nos fecar tudo, a falta dos mantimentos vey o entre nós a fer ta* manha^ue o que antes fe compraua por hum vintém, fe não achaua deí- pois por hu cruzado, pelo q foy ne- ceflario yrfe bufear por algúas aldeãs q eftauão ahy ao redor, fobre que ou ue grandes deímachos, donde naceo aleuantarfe a terra toda contra nos

296

com tamanho ódio & furia,que logo dahy a dezaífeis dias veyo húa arma da de cento & vinte juncos muyto grandes,a qual por noífos peccados nos tratou de tal maneyra que de tre ze nãos q eftauão no porto, nenhua ficou que não fofle queimada, Sc de quinhentos Portuguefes que na ter- ra ama fós trinta eícaparáo fem cou- ia que valeííe hum real. Afsi que deftes dous triftes fuçceíTos q tenho conta do,venho a inferir, que parece que as noíTas couíás que agora cor- rem na China, ôc a quietação & con- fiança com que tratamos com ella,a- uendo que eftas pazes que ella tem com nofco faõ firmes Ôc íeguras,não durarão mais que em quanto noflos peccados não ordenarem que aja al- gum motiuocomoos paííados para fe ella ai «jantar contra nòs, o qual noíTo Senhor não permuta pela iua infinita mifericordiâ. Agora tornai do ao propolito de que me apartey. Chegados nos ao porto áe Lampa* cau como atras dezia, furgimos nelle com todas as três nãos em que vié- ramos,^ defpois de nos não tardou muyto q não vieíTem furgir no mef. mo porto outras cinco nãos. E porq as fazendas da terra nao corrião en- tão como antes cuftumauáornáo ou- ue naquella moucão não algúa q fof- íe para Iapaó, pelo que foy forçado inuernarmos outro anno aquy ne- fte porto, com determinação de no Mayo fegLiinte, que era daly a dez meíes.feguirmos noíTa viagem como leuauamos determinado.

QÂK

'De- buas nouas que vieraÕaeHa ilha de humeftranbo cafo que acontcceo feia terra dentro.

Ntendédo o padre- me ftre Belchior que a-: quelie anno não podia paliara Iapaó,aísi por ler gaitada a mourão, como por outros algús inconuenien- tes que paraiíío auia, ordenou logo fazer em terra hum recolhimento em que fe agafâlbaííè com a mais cõ- panhia que leuaua comíigo, & tam- pem hum modo de igreija em que fe pudeííèm celebrar os officios diui- ros}& frequentarenfe os Sacramen- tos neceffarios a faluação dos homés, o que logo fepos por obra. . E neíte tempo que aquy eítiuemos não efti- uerão ociofos o padre meílre Bel- chior, nem os da íuá companhia, anr tes não deixarão fépre de Fazer frui- to nas almas, afsi com a mnyta fre- quentação que fempre ouue das con- fHToes,como com foltar dous Portu- guefes que auia cinco annos q efta- uao prefos na cadea da cidade de Cantão, cujafoltura cufíoumaisde dous mil & quinhentos cruzados,que fe tirarão de efmolas pelos fieis Chri- ftãos. E auendo féis mefes & meyo que aquy eftauamos, aos dezanoue dias do mes de Feuereyro do anno de 1556. veyo noua certa a efta cida- de de Cantão,qaos três dias do mef-

Terigrinaçoès de

mo més & anno Te fouertera a pro- uincia de Sanfy,por cí& maneyra.- Noprimeyro dia de Feuereyro tre- meo a terra das onze horas da noite atèa húa,& ao outro logo feguinte, da meya noite ate as duas horas, &■ ao outro da húa ate as tres;com hum grande & efpantolifsimo eftrondo de curiícos)& tempeítade,& arrebentan do toda a terra em borbolhoens da- goa que do centro dejla parecia que vinha feruendo^íe fouerteo fupita- mente diftancia de feíTenta legoa$ em roda,fem de toda a gente fe fal- uar mais que hum minino de fetè annos,que por efpanto fe leuou ael Reyda China. A qual noua quando chegou â cidade de Cantão, caufou em todos os moradores delia hum grandifsimo temor & efpanto. Ea- uendo os no fios- por impofsiuel ler i/to verdade, íe determinarão huns quatorze de feíTenta que então ahy nos achamos de o yr ver,& logo o p'u feraóporobra,os quais quando tor- naraó,afrirmaraó a noiià por muyto certa,& fe tirou diíTo Lum eftromen- to publico de quatorze teftemunhas de viíla todas conte(les,& todos Por- tuguefes,o qual eftromento Francif- co Tofcano mandou a efte reyno a el Rey dom íoaõ o terceyro que (an- ta gloria aja,por hum clérigo por na me Diogo Reinei, que foy hum dos quatorze que o vira5,.pelo qual cafo fe fizeraó nefta cidade de Cantão em todo o pouo eftranhos modos de pe- nitencia, & ainda que eraõ Gentios, nos confundiraó,a todos os que o vi- mos com Termos Chriftãos, porque

no pri-

FemSo Mende^Plnto. i$y

no primeyro dia q a noua chegou, fe facerdotes, que feriao mais de cinco

deraó âs duas horas deípois do meyo dia pregoes por todas as ruas princi- pais da cidade.q íeis homcs a caualo cubcrtos de veftiduras muyto cópri- das de do co aíTaz'trifte & lamctauel fom láçauáo,dizedo,ò getes miíera- ueis q cócinuamente ofFendeis o Se- nhor, ouuy ouuy o trifte caio degra- uedor & fentimento q no bramido chorofo de noflas vozes agora ouui- reis. Sabey cjpor peccados de todos nòs outros brãdio Deos a efpadada fua diuina juftiça fobre o pouo de Cuy & Sanfy,fouertendo agoa & fogo ôc curiícos do ceo toda a prouin cia do feu anchacillado delia fe fal- uar mais q hum minino q fe leuou ao filho do Sol. E dandofe com ifto três pacadas em fino, toda a gente fe proftraua por terra dizédo hua horrédifsima grita xipatoo yarocay, q quer dizerjufto he Deos no q faz. E recolhendofe logo todo o pouo a fuás cafas, a cidade efteue cinco dias taódefertaq peíToaviua não apare- cia por ella}de q todos os Portugue- fes que nos aly achamos andauamos comopafraados,porq é nenhúa rua fe via peflba que fe pudeflè faliam PaíTado efte termo dos cinco dias, o Chaemcos Anchacysdogouerno,& toda a gête do pouo (digo homês fométe.porq as molheres elles pa- ra fy q não faó capazes de Deos as ouuirpela defobediencia do primey ro peccado q Eua cometeo) rodeado hua eípantofaprociííaó as princi- pais ruas de toda a cidade, com cla- mores q rompião o ceo,dizião os íeus

mil,ó admirauel, ôc piadoío Senhor, não nos tomes cota de noíTas malda- des.porq ficaremos mudos diante de ty,a q todo o pouo outra efpanto* ia grita rcípondia, xaputey danacoo fanaragy paleu, que quer dizer, con- fefTamos Senhor noítòs erros diante de ty.E aísi profeguindo por feus cia morei? chegarão a fumptuoío té-» pio que fe dezia NacapiraUjój elles por Raynha dos ceos, como eu atras diíTealguasvezes. E daquy foraó o outro dia a outro por nome Vzágue nabor deos da iuftiça: & por efta ma- neyracctinuarao quatorze dias, nos quais fe fizeraó geralmente muytas eímolas,& íe foka.raõmuytos prefos, & íe fizeraó muytos facrificios de fu- mos cheyroíos de aguila & beijoim, ôc algos outros de langue, em que fe degoiaraó muytas vacas, veados, & porcos,q por e imola fe deraó áos po- bres. E aíái em todo o mais tépo que aquy eftiuemos,q ferião quaíi três me fes/e continuarão outras muytas o- bras pias de muyto cufto,q fe ajuda* dasdaFé de Chriílo fe fizeraó pora-j mor delle,creyo que lhe foraó muy- to aceitas. Affirmoufe també por ge- ral dito de todos,q neftes três dias em que ifto acóteceo em Sanfy, chouera fempre fangue na cidade do Pequim onde el Rey da China então relidia, pela qual caufa a mayor parte del- ia fe defpejou, ôc elle fugio para o Nanquim,onde também fe difTè que mandara fazer muyto grades eímol- las, Ôc libertar infinidade de prefos, no qual coto permitio Deos q foraó PP hús

Terigrinaçcès de

hus cinco portuguefes que auia mais gaa.E porq as agulhas ãquy nefte eli-

de vinte annos que eftauáo prefos na cidade de Pocaííer,os quais aquy em Cantão,onde vieraò ternos cótaraõ muy to grandes coufas,entre as quais nos affirmaraó q paflaraó as efmol- las q el Rey fez por efte cafo,de feifc cétos mil cruzados,a fora têplos muy to fumptuofos q edificou para apla- car a ira de Deos, em q entrou q íè fez nefta cidade por nome Hifati- cau,amor de Deos, caía muy to fum- ptuofa & de grande mageftade.

QAT. CCXXlll

Qomo chegamos ao rejno do TSun-

go> &• do quelapajfamos com

eIXey.

Hegada a mouçao em q podíamos fazer nof- ía viagê nos partimos deita ilha Lapacau aos 7. de Mayo do áno de 1556. embarcados em hua nao de q era capitão & fenhorio Francifco Mafcraenhasdalcunhao palha, q a- quelle anno ahy refidira por capitão mór^ cotinuando pornoíTa derrota por tépo de quatorze dias, ouuemos vifta das primeyras ilhas q eftão em altura de ?f. grãos, q por graduação demoraõ a Loesnoroefte da de Ta- nixumaa, o piloto então conhecédo á nauegaçáo queleuaua,fe fez na volta do Suduefte a demandar a p6- ta da ferra de Minatoo. E aferrada acofladeTanoraaj vellejamos íèm- pre ao logo delia até o porto de ¥m

ma nordeftearaó, & as agoaç corriaõ ao Norte,perdeo o piloto toda a ef- timatiuadanauegaçao,de maneyra, q quando conheceofeu erro,inda que por natureza marinhatica o não queria confeflar,tinhamos efeorrido o porto para onde hiamos íeíTenta legoas abaixo, pelo qual com aflaz de trabalho,por nos ficarem os vetos ponteyros,o tornamos a tomar daly a quinze dias,& com bem de enfada- mento, & nfco de noflas fazendas & vidas, porq toda aquella cofta eftaua leuantada contra o Rey do Bungo noííò amigo,& cótra os habitadores delia por ferem muyto amigos da leydo Senhor q os noflbs padres denuncião.Surtosnos pela mifericor dia de Deos na bahia da cidade Fq- cheo de que atras fiz menção muy. tas vezes, q he a metropoly do reyno do Bungo, & onde agora florecea principal Cbriftandade de todo o Ia-, paó,íe aíTentou,por parecer dos mais que foíTe eu á fortaleza de Ofquy, onde tiuemos por nouas que el Rey então eftaua, & ainda que eu algum tanto arreceaua efta ida,porque a ter ra a efte tépo eftaua aleuantada, to- dauia me foy forçado aceitala, por mo pedirem todos geralmente com muyta efficacia, & fazendome logo preftes com mais quatro cópanhey- rosquekuey coraigo,defpojs q rece* by hum prefente q dom Francifco capitão da nao mandaua a el Rey q valeria quinhentos cruzados,me par- ty da nao,& defébareãdo no caiz da «idade me fuy a caía do Quanfio an-

dono

Fernão Mendc^ "Tinto. 29 %

dono almirãte do mar, & capitão de nos agafalhou logo em hum pagode

Canafama,o qual me recebeocó mo ftras de muyto gafàlhado,q algú tan- to me defaliuoil do receyo qleuaua.. E dãdolhe eu cota do a q hia, lhe pe- dy q me mãdàlTe prouer de cauallos & gente q me leuaíTe onde el Rey eí- taua, o q elle logo fez muito mais lar- ■Vgãmétedoqlheeupedia.Partidoeu da cidade,cheguey ooutrodia âsno- ue horas a lugar q fe dezia Fingau q feria quarto de legoa da forta- leza de Ofquy,donde por dos la- pões qleuaua comigo mancley dizer ao Ofquim dono capitão delia çomp cu era aly chegado, & que trazia húa embaixada do Viíòrrey da índia pa- ra fua alteza; pelo que. lhe pedia mandaífe dizer quando queria q lhe fallafle; a q me elle refpondeo logo por feu filho, q a minha vinda a de todos os meus cõpanheyros fof- íe muyto boa,&qjâ tinha mandado recado a el Rey à ilha do Xeque pa- ra onde fora ante menham muyta gente a matar grade peixe, a quê íe não fabia o nome, q do centro do mar aly viera ter com outra grande foma de peixes pequenos,& que pelo ter cercado num cíteyro lhe pare- cia q não poderia vir ferião de noite, mas q do que fua alteza lhe refpon- deííe me mandaria logo recado, mas q entre tanto defcançafle noutras ca* fas milhores em q me mãdaua apou- fentar,onde feria prouido de tudo o necefíario, porque toda aquella ter- ra era tanto dei Rey de Portugal co- mo Malaca, Cochim, & Goa- E homem feu quejâ vinha para iíTo,

que íe dezia Amidamxoo, onde dos bonzos delle fomos banqueteados efplendidamente. El Rey tanto que teue auifo de eu fer chegado,defpidio logo daquella ilha onde eílaua no cerco daquelle grande peixe, três fu- neesderemo, & nellas hum feuca- mareyro muyto feupriuado que fe chamauaOretandono, o qualjâfo- bola tarde chegou ao lugar onde éu eífaua^ indo logo ter comigo, def- poisque porpalaura me difíe o aq el Rey o mandara,tirou do feyo húa carta fua, & beijãdoacom áscerirao"" nias & corteíias q entre elles fe cuflu* mãovma dcu,a qual dezia afsi. EíK- •do eu agora oceupado num trabalho de muyto meu goíta foube da tua boa chegada a eííe lugar onde eítis com os mais cõpanheyros que vem comtigO,deq tine tamanho conten- tamêtoq te certifico qfe não tiueraju rado de me" não yr daquy atç não matar hu grade peixe q tenho cerca- do,qifríuy;to depreíía por minha pef. íoa te fora logo bufcar,pelo q te rogo como amigo qúeja que poretta cauía não poilo y r,venhas tu logo nef fa embarcação q lámãdo,porq tu vires, & eu matar efte peixe fera meu gofto perfeito. Vedo eu efíacar- ta,me embarquey logo com todos os meus cõpanheyros na funee em que vinha o Oretandono,& os moços o preíente nas outras duas. E por fe- rem todas muyto ligeyras & bem ef- quipadas em pouco mais de húa hórà fomos na ilha queeftauadalv dv.a: ie goas&meya.E chegamos a ella a cé- P P 2 po que

Terígrirutfqês de

po q el Rey mais de duzentos ho- balça, atribuindo â elle o que os

niés todos fuás fifga.s andauão em bateis trás húa grande balea que na volta de grandifsimo cardume de peixe yiera aly ter, o qual nome de balea, & o meímo peixe em fy foy então entre elles muyto nouo & muy tp eftranho,porq nunca tinhaó vifto outra tal naquella terra. Defpoisq foy .morta, ôc trazida fora â praya, foy o prazer dei Rey tamanho, q a todos os pefeadores^ aly fe acharão, liber- tou de certo tributo q antes paga- uão}&lhcs deu nomes nouos de ho- mens nobres,& a algús fidalgos q aly eftauão aceytos a elle acrecentou os ordenados q tinhão, & aos guefos, q faó como moços da camará, mãdou dar mil taeis de prata, ôc a mim me recebeo com a boca muy to cheya de rifo,&mepregútoúmiudamçtc por muytas particularidades, a q eu ref- pondy acrecentãdo em muytas cou- íasqinepregútaua, por rne parecer q era afsi neceiíario a reputação da nação Portuguefa,& à conta em q até então naquella terra nos tinhao,por- q todos então tinhão para fy q o Rey de Portugal era o q verdade fe podia chamar monarca do mudo, afsi em terras, como em poder ôc ti- fouro,& por efta caufa fe faz naquel- la terra tanto çafo da noíTa amizade. Acabado ifto, fe partio logo deita §- 1 ha do Xeque para Ofquy)& chegou a fua cafa com húa hora de noite, onde foy recebido de todos os feus com muyta feita ôc regozijo ao feu modo,& lhe deraó os parabésde tão ho nrofo feito como foxa o daquella

outros fizeraó, que efte perjudicial vi- cio da adulação he taó natural das cortes & das cafas dos príncipes, que até entre o barbarifmo da gentilida- de lhe não faltou feu lugar.Deípidin- do então el Rey toda a gente que o acompanhara, ceou recolhido com fua molher ôc íeus filhos^ não quis que homem nenhum por então ofer uiíTe, porque o banquete era â conta da Raynha, porem aly nos mandou chamar a todos cinco a cafa de hum feu tifoureyro onde eftauamos a- pofentadosA nos rogou q por amor delle quifeflemos perante elle comer com a mão, afsi como fazíamos em noífa texra,porque folgaria a Raynha de nos ver. E mandãdonoslog© pre- parar a mefa muy to abaílada de h guarias muyto limpas ôç bem guifa- das, Ôc feruida por molheres muyto fermofas, nós nos entregamos todos no q nos punhaõ diante bem a noífo vontade, porem os ditos ôc galante rias q as damas nos dezião,$ as, zomr bariasque fazião de nos quando nos viraó comer com a mão, foraó de muyto mor gofío para el Rey & pa* ia a Raynha q quantos autos lhe pur deraó reprefentar, porq como toda efta gete cuítuma a comer com dous paos, como por vezes tenho dito, tépormuytèrgrádeçugídade fazelo coma maó como nes aiftumamosy Então húa filha dei Rey moça jade quatorze ate quinze annos ôc muyto fermofa,pedio licéçaa fua mãy para húa certa farça q féis ou fete querião fazer íobrea matéria de q fe traraua,

ôca

Fernão Mende^T imo. 29P

& a Raynha com coníèmimento dei q por meus peccados não pude veder

Rey lhaconcedeo. Entrando então cilas para dentro de outra cafa Cede* tiueraó hum pequeno efpaço,& as q ficarão fora fe defenfadaraó entre ta- ro bé :i noíía curta com muytas gra- ças & zombarias de q todos eítaua- mos bécorridos,ao menos osquatro, por íèrem mais noueis & não enten- derem a lingoa,porq eu em Tani- xumaa tinha vifto outra farça q íete- ue com Portuguefes femelhante a ef- ta, & por algúas vezes as tinha vifto també noutras partes^ Eítando nos no meyo defta afronta, poré fofrédo milhora zombaria pelo gofto que yiamos q el Rey & a Raynha tinbão della5 íahio de détro a princeíà muy- to fermofa em trajo de mercador,có hum treçado de chaparia douro na cinta,& tudo o mais muy to apropria- do ao que repreíèntaua, & pondofe de joelhos diante dei Rey feu pay co o acatamento deuido lhe diííe. Po- derofo Rey & íenhor,aindaqueeíte meuatreuimentofejâ digno degra- de caíligopela defigualdade q Deos cjuis que ouueíTe entre voíTa alteza & minha baixeza, a necefsidade em que me vejo me faz não pòr diante efte inconueniente de que me pudera te- mer, porq como eu fou velho, 8c tenho muytos filhos de quatro mo- lheres com que fuy cafado,& em mi- nha quantidade muy to pobre, defe- jando como pay que fou de os dei- xar emparados, pedy por meus ami- gos q me ajudaíTem com feus empre- ííimos,q algús me concederão, & fa- zendo eu emprego nua certa fazéda

em todo Iapaó,dcterminey de a tro- car por qualquer couíã q medeíTcm por ella. E queixãdome eu difto a al- gús meus amigos no Miacoo donde venho.me certificarão q voíTa alte za me pod ia agora nifto fer bõ, peloq fenhor lhe peço qauendo reípeitoa eílas cãs, & a ella velhice, & a ter eu muytos filhos & rrtuyta pobreza, me queira valer em < tu eu defeparo, porq niílo q lhe peço a mim fará grade ef- mola, & aos Chéchicos q agora vie- rão nefta nao grade mercê, porq efta, minha mercadaria lhe arma- a elles mais ó a outré ningué pela grade alei jão em q fe cónnuaméce.Em quã- to durou cila praticarei Rey Sc a Ray nha fe não podiaò ter rifo vedo q aquelle mercador taò velho, co tâtas cãs,tatos filhos, 8c tanta necefsidade, eraaprincefa fua filha muito moça, & muito fermofa.El Rey c5 tudo de- tendo o rifo hu poueo,lhe refpondeo muytá grauidade q mãdaíTe tra- zer a moftra da fazéda q trazia, 8c cj fe foíTe coufa q nos armafTe, eíle nos rogaria que lha comprafTemos,a que ella fazendo húa grade mifura>fe tor- nou a recolher para dentro, Nos até então eftauamos tão embaraçados co q viamos q não fabiamos determi- nar o que feria. As molheres que efc tauáo na caía, q ferião mais de iefihn* ta,fem auer aly outro homem mais q nos os cinco companheyros fomea te, íe começarão a confranger todas, ôc acotouelaríè huas com as outras,& fazer entre (y algum rumor com hum rifo baixo 8c calado, poré quie- P P 3 tandoíê

Teregrinâçoes de

tandofelogo efte,ó mercador tornou uoltorios q traziaõ, & deixarão cayt

afayrdedentro comas moftras da fazenda, as quais traziaó íeis moças muytq íermofas & muyto ricamen- te veftidas, em trajos de homés mer- çadores,com feus trepados & adagas douro na cinta, & de afpeitosgraues & autorizados, porque todas eraõ fi- lhas dos principais íenhores do rey- no q a princefa efcolhera para a aju- darem nefta farça que quiz reprefen- tar a el Rey & á Raynha. Eftas féis trazião aos hombros cada hum feu er>upltono de tafetá verde, & fingin- do todos féis ferem filhos daquelle mercador, vinhaó paíTando húa di- ca ao íèu modo muyto bem concer- tada^© íom de duas arpas & hua vio- la darco,& de quando em quado de- zião em trouas com falas muyto fua ues & piuyto para folgar de ouuir.al- to & rico Senhor da riqueza por que és te lembra da nofla pobreza.Somos miferaueis em terra eftrangeyra,defc prezados da gente por noíTa orfinda- de,códeíprezos & grandes afrontas, pelo q Senhor te pedimos q por que és te lembres da nofía pobreza. E aísi a cíle modojq na fua lingoa eraõ tro- uas muyto be feitas,diíferaó mais ou- tras duas ou tres,repitindo fempre no fim de cada húa delias, por quem és te lembra da nofia pobreza. Acaba- da a dança &a mufica/epuíèraõ to- dos de joelhos diante dei Rey$& def pois que o mercador com outra pra- tica muyto bem còcertada lhe deu as graças da mercê que lhe queria fa- zer de lhe fazer vender aquella fazé- da> os feys defímburilharaõ os en-

na cafa hua grande foma de braços depaocomoos que ca fe oíferecem a fanto Amaro, dizendo o mercador com muyta graça & com palauras muyto difcretas,que pois a natureza por noííos peccados nos fojeitara'a nos outros a miferia tão cuja q necek fariamente as noífas mãos auiaò fem- pre de andar fedendo ao peixe, ou â carne, ou ao mais que comiamos cp ellas,nos armaua muito aquella mer cadaria, porque em quãto nos feruif- femhúasmãos felauarião as outras. A qual couía el Rey & a Raynha fe- ftejaraó com muito riíb,& nós todos cinco eftauamos taó corridos, q eq- tendédooel Rey nos pediomuytos perdoes dizédó,qporq a princefa fua filha viíTe quamanho elle queria aos Portuguefes lhe dera aquelle pe* queno de paffatêpo,de q nos fométç como irmãos feus fôramos participa* tes. A q nos refpondemos q Deos nof fo Senhor pagaífe por nos a fua altc* za aquella honra & mercê que nos fazia, q nos cófeílauamos por muyto grade, & afsi o publicaríamos por tot do o mundo em quanto viueíTemos. Q q elle & a Raynha & a princefa ve- ílida ainda é trajos de mercador nos agradecerão muytas palauras ao feu modo.E a princefa nos diíTe,ppis fe o voíío Deos me quifeífe tomar por fua.criada,aindalhe eu faria ou- tras farças muyto milhores & de mais feu gofto que efta, mas eu con* fio que elle fe não efqueça de mym. A que nos todos poftos de joelhos^: beijãdolhe o queimáo q tinhavettido

refpon-

Fernão Mcndc^Pinto. }oo

refpondemos que afsi o efperauamos outro dia me mandou cjiamar,& me

nelle,& quefazendofeella Chriítam a auiaraos de ver Raynha de Portu- gal, de que a Raynha fuamãy & el- la ie riraó muyco. E defpidindonos por então dei Rey nos tornamos «à caía onde eftauamõsapofentados,& como foy menham nos mandou lo- gochamar, & fe informou miuda- mente da vinda dos padres, da ten- ção do Viforrey,da carta,da nao,das mercadârias que trazia, & de outras muytas particularidades em que fe gaitarão mais de quatro horas,& me defpidio dizendo que daly a íeis dias fe auia de yr para a cidade, & que la lhe daria a carta,& fe veria co padre, & reiponderia a tudo.

QA*P. CCxx^íl

*Da maneyra que ellfyy do Hun-

vo recebeo a embaixada do

Utforrej da fndia.

Afiados os féis dias, el Rey fe abalou da forta- leza de Ofquy para a ci dade Fucheo, acompa- nhado de muyta & muy to nobre gente em que cntraua húa guarda de feiícentos homens de & duzentos de cauallo que mof* trauao grande mageftade, onde che- gado,todo o pouo o recebeocó muy tas feftas & muytos regozijos,& far- ças & inuençoés ao feu modo muy- to cuftoías. Elle fe foy apofentar em hús paços que ahy tinha muyto no- bres^ muito íumptuofos. Logo ao

diííeque lhe leuaíTe a carta do Vi- forrey,porqtie a outra coufa não vie- ra fenáo a ilfo, & que deípois que a viíTe fallaria co padre meftre Bek chior no que mais releuaíie. Eu me torney logo para cafa, &mcfizpre.. ftes de-tudo o que conuinha,& tanto queforaõ as duas horas defpois do meyodiaelRey me mandou bufcar pelo Quaníio nafama capitão da ci- dade com outros quatro homes dos principais da corte,os quais acompa- nhados de muyta gente me leuarsõ ao paco,porem elles & eu os qua- renta Portugueíes,todos hiamos a por fer afsi feu curtume, & todas as ruas por onde paífamos,eílauão muy to limpas & bem concertadas, & tanta quantidade de gente, que os nautaroés.que eraõ porteyros ba^ floés ferrados,tinhaõ aífaz que fazer em nos fazerem o caminho. As pe- ças do preíênte leuauaò três Portu- gueíes a cauallo, & hum pouco atras delles hião outros dous ginetes muy- to fermofos com cubertas, & armas como de jufta. Chegando nos ao pri- meyro terreyro do paço, achamos nelle a el Rey que eftaua em bai- léu, ou cadafalfo que para iíTo fe mã* dara fazer, acompanhado de todos os nobres do reyno,& entre elles três embaixadores de reynos eílranhos, hum deel Rey dos Lequios, outro do Cauchim &ilha daTofa, dou- tro do- Cubucamá Emperador do Miocoo. E por fora quanto tomaua toda a grandeza do terreyro eftauão paíTance de mil arcabuzeiros, & qua- P P 4 trocentos

>

Terigrinaçóes de

trocemos homés em bõs cauallos a- chia deita grande terra, de que tama

cubertados,& a fora eftes a gente pouo que,como digo, não tinha con- to. Chegado eu cos quarenta Portu- gueíes que hião comigo ao bailéu on deel Rey eftaua, lhe fizemos todos as cerimonias ôc corteíias que em tal aiiío fe lhe cuftumão fazer. E euche- gandome a elle lhe dey a carta que leuaua do Viíorrey.a qual elle,pofto em pé,me tomou da mão,<5ç tornan- doíe aaísentar a deu ahú feu Quan- íio gntau,que he como fecretano, & efte a leo em voz alta paraque todos aouuiíTem. E defpois de lida,me pre guntou perante os três embaixado- res^ os principes de que eftaua acó- pari hado por algúas coufas que por curioíidad.e quis faber defta nofsa Europa, húa das quais foy quantos homens armados de todas armas, & em cauallos acubertados como aquel les punha el Rey de Portugal em campo? eu então arreceando mentir- lhe, confefso que rne embar acey na repofta, o que vendo hum dos meus companheyros que eftaua junto co- migo, tomando a maó lhe relpódeo que cento ate cento & vinte mil. De que,o Rey ficou muyto efpantado ôc eu muyto mais. El Rey èntaô, pare- ce que goftando das grandioías re- portas que eftePortuguez lhe daua, gaftou com elle em preguntas mais de meya hora, ficando elle & todos os que eftauão prefentes afsaz mara- íiilhados de tamanhas grandezas, & difse para os feus,certeficouos em ley de verdade que nenhúa coufa folga- ra agora mais de ver que a monar-

nhas grandezas tenho ouuido,afsi de tifouros como de multidão de na- uios no mar,porque com ifso viuera em minha vida fempre muyto con- tente. E defpidindome elle então,& âos outros que vinhão comigo me difse, quando te parecer bem podes dizer ao padre que me venha verj porque aquy me achara preftes pa- ra o ouuir, & a todos os mais que trouxer comíigo.

CJT. tcxxv.

Como o padre meflre 'Belchior vio cumelTley do Hungo^ c> do que paffou com elle, &• da repofta queel^ej me deu da embai- xada que lhe leuey.

Ecolhido eupara a ca- || fa onde poufaua dey c6 ta ao padre meftre Bel~ chior do gafalhado que el Rey me recebe- ra, & de tudo o mais que pafsara co elle,& de quão aluoroçado eftaua pa ra o ver,pelo que me parecia bem, ja que aly eftauão todos os Portugue- fes juntos Ôc veftidos de fefta, que o deuia de yr logo ver, o que lhe a elle pareceo bem ôc aos outros padres q ahy eftauão. E aparelhandoíe de al- gúas coufas exteriores neceísarias à reputação de fua peísoa, abalou da igreija acompanhado dos quarenta Portugueies todos muyto bem vefti- dos com feus colares ôc cadeas douro

grofsas

Femao Afende^JPmto. joj

grofTas a tiracolo, & quatro mininos nella de tudo o que conuínha. A que

oríaóscom lobas & chapeos de tafe- tá branco,com cruzes de feda nos pei tos, & o irmão Ioaó Fernandez para interprete do que fe auia de fallar. Chegando ao primevrç terreyro das caías dei Rey, o eftauao aly eípe- randoalgus lenhores, os quais com muytas corceíias & moílras damor o meterão em hua caía onde el Rey eítaua eíperando por elie, o qual coro íembrante alegre o tomou pe- la mao, & lhe ditíe, crede mim pa« dre eítrangeyro que a eíle dia pof- foCom verdade chamar meu, pelo grande gofto q tenho de te ver dian- te de meus olhos, porque me parece que vejo o padre Frãcifco fanto que eu queria como a minha própria pefc íba. E entrando com ellepara outra caía que eftaua mais adiante,& rica- mente preparada, o aílentou junto comíigo,& aos quatro mininos, por fer couía noua,& ríunca vifta naquel- la terra,fez também muyto gafalha^ do. O padre lhe deu as graças-con- formes ás muytas & grandes honras quedelle recebia, da maneyraq en- tre elies íe cuíluma,que o irmão loaó Fernandez lhe tinha iníihado, E após iíTo lhe tratou logo do principal intento da íua vinda, que era man- calo o Viforrey para o íeruir, & mo* ftrarlhe o caminho certo da fua fal- uaç-aó,que lhe el Rey cos meneos do roíto,& com a inclinação da cabeça moftrou que agradecia. E difcorren- do o padre adiante por hua íanta pra tica a modo de íèrmão que para if- ío leuaua eftudada, lhe ioy tratando

el Rey refpondeo, não fey com que palauras te encareça padre bemaué- turado,o muyto goíto que tenho de te ver neíla cafa,& aísi tudo o mais q minhas orelhas te tem ouuido,a que agora não refpòndo por eftar o tépo da maneyra que terás fabido, pelo q te rogo muyto que que te Deosa- quy trouxe queiras delcançardo tra- balho que por Teu feruiço tês leua- doj & quanto ao que o Viforrey me efereue a cerca do que lhe eícreuy por António Ferreyra, ainda agora me não defdigo, porem o tempo a- goraao prefente eílà de. maneyraq temo muyto que fe meus vaíTallos virem em mym algúa mudáça, lhes pareça bem o coníelho dos bonzos, quanto mais que bem fey que pe- los padres que aquy eíMo deues de ter fabido quão arriícado eftou nefta terra,pelo que aconteceo nosaleuan- tamentos paíTados,em que corry tã- perigo quanto outro homem ne- nhum correo, pelo que me foy necef fario por fegurar minha peííòa, ma? tar hua menham treze íenhores os principais do reyno, c5 dezaíTeismil da fua coníulta & conjuração, a fora quaíí outros tantos que deíl:errey>c3c me fugirão. Mas fe Deos algúa hora me der o que minha alma lhepede* não fera muyto condecender co que o Viforrey na fua carta me acófelha. O padre lhe tornou,que muyto íatis feito eítaua do íeu bom propoficos mas que lhe lembrafle que a vida não eítaua na mão dos homés, porq todos eraó mortais, & q fe elle acer-

taífe

Teregrinaçoes de tâíTe de morrer antes de o effeituar q foo moueraõ. Ajuntoufe também a

onde iria a fua alma? a que elle forrin dofe diíTe,Deos o fabe. Vendo o pa- dre que el Rey por então lhe não refpondia com mais que com boas palauras,& bós ditos, íem querer to- mar concluíãõ no que tanto lhe im- portaua,difsimulou com elle, &lhe fallou noutra couía de que enxergou nelle que tinha mais gofto. E palian- do aísi co padre hum grande peda- ço da noite em preguntas de couías nouasa que era muyto arTeiçoado, o defpidio com palauras honroíàs & bem concertadas, pondolhe a efpe- rança de íe fazer Chriftáo hum pou- co ao longe, de que a caufa ficou por então bem entendida de todos, Ao outro dia duas horas defpois da vef- pera o padre fe tornou a ver com el Rey, & deixando a parte o muyto gaíalhado que entaó lhe fez, como cuftumou íèmpre, no mais de que fe trataua com elle nunca fallou a prò- pofíto,mastornandofedaly da cidá^ de para a fua fortaleza de Ófquy, lhe mandou dizer que fe ficaíTc embora, & que lhe rogaua que não deixafie de o ver daly a algús dias,porque go- ftaua muyto de falar das grandezas de Deos,& da perfeição da fuá ley. Paliados mais dous mefes & meyo em que el Rey neftè cafo não deu mais de fy que fomente algúas efpe- ranças,acompanhadas às vezes de al- guas deículpas,que ao padre naõ fa- tisfizeraõ,lhepareceobem ao padre tornarfe para a índia, aísi para cum- prir com a obrigação do íeu cargo, como por outras razcTes que paraif;

ifto virlhe húa carta pela via de Firã- do,que hum Guilhelme Pereyra lhe trouxe de Malaca,pela qual teue no- nas que viera hum íeu irmão deíle reyno, por nome Ioaõ Nunez por Patriarca do Prefte Ioaó,o que tam- bém fez nelle hum grande abaío^or lhe parecer que indo com elle faria lana Etiópia muyto mais fruyro que aly,onde eftauajà defenganadóque por então fe perdia o tempo & o tra- balho; porem efte feu bom intento também não teue erTeitcpor fer o im perio do Prefte naquelle tempo íe- nhoreado dei Rey de Zeila com fa- uor do Turco,& elle fe recolher com poucos dos Teus as ferras de Tigre- mahom,onde morreo de peçonha q Mouros lhe deraó. Efocedendolhe neííe pouco que ainda lhe ficara do império hum feu filho mais velho q fe chamaua Dauid,fez Patriarca a Alexandrino que fora feu meílre o qual era cifmatico, & taô contumaz nos feus erros que pregaua publica- mente que elle naquella ley que feguiaeraoverdadeyro Chriftaó,& naõ oSummoPontifice,& deita ma- neyrafepaífaraó os cinco annos das gouer»ançás deFrancifco Barreto, & de domConftantinoem quenenhúa deitas coufas ouue erTeito, & os pa- dres irmãos morrerão ambos hum em Goa ôc outro em Cockim, fem ategoramais fe efFeituar coufa que tocaíTe á fduação dos Abexins, nem creyo que fe effeituara fe Deos noífo Senhor milagrofamente o não or- denar pelo mao vezinho que temos

no

Fernão Mendez Tinto.

no Turco náquellé eftreito de Meca. Eu vendo na cidade Fucheo andar o negocio dos padres neftes termos, Sc o padre meftre Belchior quafi em- barcado de todo nanao, me fuy a Ofquy ver com el Rey,& lhepedy a reportada carta que lhe trouxera do Viíorrey , a qual me elle logo deul porque a tinha ja feita, & por retorno do prefentelhe mandou htías armas ricas, & dous trepados douro, & cem auanos Lequios,a qual carta.quecrá feita por elle dezía afsi. Senhor Vifo- rey da mageftade honrofa, aífenta- do no tronados quefazéjuftiça por poderio de cetro, eu Yaretandono Rey áo Bungolhe faço faber, que a efta minha cidade Fucheo veyo a mim de feu mandado Fernão Men- dez Pinto com hua carta de Tua real fenhoria,&humprefente de armas & de outras peças muyto agradaueis a minha tenção, que muyto eftimey por ferem da terra do cabo do mu- do por nome Chenchicogim, onde por poderio de armadas muyto grof ias, & exércitos de gentes de diuer- fas nações reyna o liao coroado do grande Portugal, por cujo íeruidor & vaíTallo me dou de oje por diante com lealdade de amigo taó verda- deyro & doce como o cantar da fe- rea na tormenta do mar,pelo que lhe peço por mercê que em quanto o foi não difcrepar do efteito paraq Deos o criou, nem a agoa do mar deixar de fubir ôc decer pelas prayas da ter- ra, fe não efqueça defta menagem q por elle mando fazer ao feu Rey ôc ir mão meti mais velho,por cujo rcfpci-

to efta minha obediência fique hon- rofa^omo confio que fempre ferâ\& eífas armas que lhe mando, toma- rá por final & prenda de minha ver^ dade,como entre nós os Reys de la- pão fe cuftuma. Defta minha fortale- za de Ofquy aos noue mamocos da terceyra lua dos trinta &feteannos de minha idade. Com efta carta & prefente me torney á nao que eftaua furta daly duas legoas no porto de Xeque, onde acheyjâ embarcado© padre meftre Belchior com todos os mais da fua companhia, & dahy nos partimos ao outro dia q foraò 14. de Nouembro do anno de 1556 .

QAT. CCXXFI-

T>o cjuepajjey defpois q partimos de fie porto do Xeque ate che- gar a fndta, <& daby a eíle reyno.

Ellejado nos defte poi> to do Xeque por nofíà derrota vetos Norr tes demoução tende- te, chegamos a Lam- pacau aos quatro de Dezembro, on- de achamos féis nãos Portuguelas,de que era capitão mòr hum mercador que fe chamaua Francifco Martinz, feitura de Francifco Barreto que en- tãogouernaua o eftado da índia por fucceflaõde Pedro Mafcarenhas, & porque a efte tempo a monção da índia era quafi gaftada; não feza- quyo noífo capitão dom Francifco Maícarenhas mais detença que em

quanto

m

Terigrmaçoes de

quanto fe proueo de mantimentos fobejarmè a fatisfaçaÓ deíles £m

para a viagem. Deíle porto de Lam- pacau partimos a pnmeyra oitaua -do Natal, & chegamos a Goa aos de- zaíTete deFeuereyro,onde logodey conta a Francifco Barreto da carta* q lhe trazia do Rey de Iapaó, &elle me mandou que lha leu afie ao outro dia,& eu lha leuey com as armas, & treçados,& com as mais peças do pre fente que leuauâ. Eliedefpois cj efte- ue vendo rudo muyto deuagar, me diíTe,certeficouos em toda a verdade que tanto prezo eílas armas Ôc peças que me agora trouxeíles como a pró- pria gouernança da índia, porq com ellas, ôc com eíla carta de el Rey de Iapaó eípero de agradar tanto \ el Rey nofío íenhor q defpois de Deos ellas me liurem do caílello de Lif- boa,onde os mais dos que que go- ucrnamoseíle eílado himos defem- barcar por noííos peccados. E em fa- tistação deíle trabalho & dos gaílos que tinha feito de minha fazenda,me fezmuytosorTerecimétos que eu por então lhe não quiz aceitar,mas jufti, fiquey perante elle por eílromentos & teílemunhas de vifta quantas ve- zes por feruiçodel Rey noíTo Se- nhor eu fora catiuo ôc minha fazen- da roubada, parecendome que iílò bailaria paraqueneíla minha pa* fria fe me não negafíe o q por meus feruiços eu cuidey qúe me era deui- do. Elle me mandou paíTar hum ef- tromento de todas eílas coufas, &a- juntoua elle as mais certidões q lhe apreíentey, ôc me deu hua carta para fua alteza^om que me Fez taó chaó

uiços que confiado eu neftas cfperan- ças ôc na razão taò clara que eu então cuydaua que tinha por minha parte, me embarquey para efle reyno, ta5 contente ôc taó oufano cos papeis q trazia que tinha para mim q aquelle era o milhor cabedal que trazia de meu,porque ertauaperfuadido q me não tardaria mais a mercê q em quã- toanãorequereíTe. Proíiue a noíTo Senhor que cheguey afaluamentoâ cidade de Lisboa aos vinte & dous de Setembro do annode 1558. g0^ uernãdo então eílereyno a Raynha dona Caterina noíía Senhora ,q fan- ta gloria aja,a quem dey a carta què lhe trazia do Gouernador da índia, ôc ihe relatey por palaura tudo o que' mepareceo que fazia aobé do meu negocio: ellameremeteoao ofneial que então tinha a cargo tratar deites negócios, o qual com boas palauras ôc milhores efperanças, que eu então tinha por muyto certas,pelo q me el- le d ezia,me teue os triíles papeis qua- tro annos ôc meyo,no fim dos quais não tirey outro fruito fenão os tra- balhos ôc pefadumes que paíTey no requerimento, que não fey fe diga cj meforaómaispefadosque quantos paíTey no difcurfo do tempo atras. E vendo eu quão pouco me fundiaô afsi os trabalhos ôc feruiços paliados como o requerimento prefente, de- terminey de me recolher çóeíTa mi- feria que trouxera comigo, aquirida por meyo de muytos trabalhos & mrortunios,& que era o reíto do que tmha gaitado em feruiço deíle rey-:

no,&

Fernão ^MerjJe^Pmto. joj

no,& deixar o feito á juftiça diuina, manão as fatisfaçoés,inda que as ve-

o qual logo pus por obra,pefandome ainda porque o não fizera mais cedo, porque fe afsi o fizera quiçá que pou- para niíTo hum bom pedaço de fa- zenda. E nifto vieraõ a parar meus

zes por canos mais afFeiçoados que arrezoados) enxerguey fempre hum zelo fanto & agradecido,^ hum de- fejo larguifsimo & grandiofo, não fomente para galardoar a quem os

feruiços de vinte & hum annos, nos- ferue^manambé para fazer muytas quais fuy treze vezes catiuo, &de- mercês ainda aquém os não ferue

zaífeis vendido,por cauíados defaué- turadosfucceíTos que atras no diícur* fo defta minha tão longa peregrina- ção largamente deixo contados,Mas ioda que ifto afsi feja, jaão deixo de entender que ficar eu fem a fatisfa- çaó que pretendia por tantos traba- lhos & por tantos feruiços procedeo mais da prouidencia diuina que o permitio afsi por meus peccados, q de delcuydo ou falta algua que ou- ueffe em quem por ordem do ceo ti- nha a feu cargo latisfazerme, porque como eu em todos os"*Reys defte reyno (que faó a fonte limpa donde

daquy fe entende claramente que fe eu õc os outros tão defemparados co- mo eu ficamos fem a fatisfaçaõ dos noíTos fcruiços,foy fomente por cul- dos. canos. & não da fonte, ou an- tes foy ordem da juftiça diuina,em q não pode auer erro, a qual difpoem todas as coufas como lhe milhor pa- rece^ como a nós mais nos cumpre. Pelo qual eu dou muytas graças ao Rey do Ceo que quis que por efta via fe cumpriííe em mima fua diui- na vontade, & não me queixo dos Reys da terra pois eu não merecy mais por meus grandes peccados.

F I M.

EM LISBO A;

Gom licença do fantoOfficio,Ordinario,&Paç(>. Por Pedro Crasbecck. Armo 1614.

TAVOÂDÀ DOS CAPITVLOS

QVE se contem neste livro.

CAp.i.doquepaíTcyem minha mo- cidade nefte Reyno ate que me em oarquey para a índia. Foi. i.

Cap. z. Como defte Reyno me party para a índia, & do fuccelTo queteuc a arma- da ernquc fuy. I0J.2,

Cap. 3. Como de Diumeembarquey para o cftreyto de Meca,& do que paíTey nc- fta viagem. foi. 5

Cap. 4. Como daquy fomos a Maçuá,&: dahy por cerra à may do Prefte Ioão, à fortaleza de Gileitor. foi. 4

Cap.y. Como nos partimos do porto de Arquico>& do q nos fucedeo com tres vellas de Turcos que topamos, foi. f

Cap. 6 .De hum motim que ouue nefta ci- dade,&da caufa & dofucceíTodeIle,ôc porque via eu fuy daquy lettado para Ormuz. foi. 6

Cap. 7. Do que paíTey defpois que me cm- barquey em Ormuz acê chegar a ín- dia, foi- 7

Cap. 8. Do que nos fucedeo na viagem de Chaul para Goa, & do quo eu paíTey defpois que cheguey a ella. foi. 8

Çap.^.Doq Gonçalo Vaz Coutinho paf- foucomaRaynhadeOnor. foi. 9

Cap. 10. Como o capitão mor cometco queimar a Gale dos Turcos, & do que fobre ifíb parlou. foi. 9

Cap. n. Do que maisfucedeo ateo outro dia, que Gonçalo Vaz fe partio para Goa. foi. 10

Cap.12. DoqpaíTou nefte tempo ate Pêro de Faria chegar a Malaca. foi. 1 1

Cap 13. Como Pêro de Faria foy viíitado porhum Embaixadordo Rey dos Ba- tas^ do quepaíTou comelles. foi. 12.

Cap. 14. Do q mais paliou nefte cafo até Pêro de Faria me mãdaracfteRey Ba- ta^ doquevy no caminho, foi. 15

Cap.ts.DoqueemPanajúpalTey coRey dos Batas antes que fc partiíTe parao Achem. foi. 14

Cap. 16. Como cfte Rcy Bata partio de Turbáopatao Achcm,& do q fez def- pois que fc vio com ellcs. foi. 15

Cap.17. Do mais queo Rey Bata fez def- pois do fuceíTo défte dia. foi. 17 Cap. 18 Do mais q paíTey <:o Rey Bata ate que me party para Malaca. foi. 17 Cap.i^.Doque paíTey ate chegar ao Rey- no de Queda na cofta da terra firme da " Malaca,& do q ahy me acõteceo. f. 1 8

Cap. 2,0. Do q paíTey defpois q me party defte rio Parles ate chegar a Malaca, si da informação quedey a Pêro de Faria de alguascoufas. foi. 20

Cap. u Corno chegou à fortaleza de Ma- laca hú Embaixador dei Rey de Aaru, &do que paíTou nella. foi.

Cap. 22. Como me íuy ver com el Rey do Aaatu.&darlhe oquePerodeFaria lho mãdaua, & do que paíTey com elle. £2 2,

Cap.2.3. Do q me acontece© defpois que me party defte reyno de Aa ru. foi. 2j

Cap. 2 4. Do q mais paíTey ate ferleuado a cidade de Siaca, &do que nella mefu- cedeo. foi. 24

Cap.2.5. Do que mais fucedeo com efte mercador Mouro. foi. z6

Cap. 2.6 Da armada q o Achem mandou contra el Rey de Aarú,& do q lhe fuce- deo chegado ao riode Paneticáo. f. z 6

Cap.2,7. DamortedelReydeAaru, &: da cruel juftiça que fefezdelle defpois do morto. foi. 2.7

Cap.28. DoquepaíTounoreynode Aaru defpois da morte dei Rey, &de como a Raynha foy a Malaca. foi. 2.8

Cap. 29 Do recebimétoq em Malaca fe fez a Raynha de Aaru, & do que paíTou com Pêro de Faria capitão da fortale- - za. foi. z9

Cap. 30. Como efta Raynha de Aaru fo partio de Malaca para Bintao,& doque paíTou com el Rey do Iantana. foi. 30

Cap. 31. Da notificação qeTRey do Iãcana mãdou fazer ao Rey do Achem fobre o reyno de Aaru, & do que lhe elle ref- pondeo, foi. 31

Cap.32. Do que mais paflbu entre el Rey do Iantana,&do Aehemíobreo nego- cio delia embaixada. foi. 3 2

Cap>3>

1

r

••

Cap.33. Como indo eu de Malaca para o Rey no de Pao achey vince & três Chri- ftãos perdidos no mar. foi 33

Gap. 34. Comochegueyao reynode Pão com eftes perdidos, & do mais que ahy paíTey. foi. 34 -

Cap. 35. Comoel Rey de Pão foy morto, & quem o matou, & a razão porque, & do que então nos fucedeo a Tome Lobo & a mim. foi. 35

Gap. 36. De hum trifte cafo que na barra. deLugor nos aconreceo, foi. 36

Cap.37.D0 quepaíTamos os três com pa-.. nheyrosdefpoisque nos metemos pe- lo mato dentro, foi. 37

Cap.38. Quem eraeftamolher com que hiamos,& como nos mandou para Pa- tane, & do que fez António de Faria fabidaa noua da nofla perdição, & da fazenda que lhe tomarão. foi. 38

Gap. JS>. Como Antoniode Faria fepartio para ailhade Ainãoem bufcadoMon- ro Cojaacemj& do que achou antes q chegaíTe aella. foi. 39

Cap4o.Comodaquy nos partimos para

a ilha de Ainãoj onde auia' nouasque

eftaua o coíTario Coja acem, & do que

nosaconteceono caminho. foi. 40

Cap.41.Como António de Faria chegou ao rio de Tinacoreu, a que os noflos charoão Varella,&da informação que daquelle reyno lhe deraõhuns merca- dores, foi. 42.

Cap. 41. Do caminho que António de Fa-

; ria fez indo demandar a ilha de Ainao, &doquelheaconteceo nelle. foi. 43

Cap. 43. Do que efte homem refpondeo

- às prcguntasquelhe fez Antoniode Faria, & domais que ahy aconteceo.

foi. 44

Cap.44.Como Antoniode Faria chegou à bahia de Gamoy, ondeie faz a pefea- ria das pérolas dei Rey da China. £45

Cap.45.D0queb.um mercador aquy dif- fea António deFaria acerca das gran- dezas deftailhadeAinaõ. foi. 46

Cap.46. Do que Antoniode Faria paflou

- nefterio de Tanáuquir com hum cof- fario renegado por nome Ftancifco de

Saa.1 foi. 47

Cap. 47. Como eftando nos^furtos na pon ta de Tilaumera, vieraõ a cafo rer com nofco quatro lanteaas deremo,emque vinha huanoiua. fol.4S>

Cap. 48. Da informação que Antoniode Faria aquy téuedefta terra, foi. 50

Cap. 45» Do que António de Faria paf- íounefte porto co Nautarei da cidade fobte avendadèfôa fazenda. fohfi

Cap. so. Do que fucedeo a António de Fa ria atefurgirem Madel, porto da ilha de Aináo,ondefe encontrou com hum coíTario,&doque'paílbu elle. f,53

Cap. 51. Como António deFaria ouue a maõ.viuoo coíTario capitão do junco, & do que paflou com elle. f°l'54

Cap-ji. Do mais que António de Faria paíTou nefte rio Madel com a gente da terra, & do que fezdefpois que fahio

^delie. foUyy

Cap.53. Como nos perdemos na ilhados Ladroes. foi 5<?

Cap. 54. Dos mais trabalhos 'quepaíTa- mos neíta ilha, & da maneyra com quo milagrofamentenos íaluamos. foi. 57

Cap. 55. Como nos partimos defta ilha dos ladroes para o porto de Liampoo, & do que paflamos ate chegarmos a hnmrioquefedezia Xingrau. foi. 58

Cap 5 6. Como indo nos ao lengodaeof- tade Lamau, encontramos hum cof- farioChimmuytoamígode Portugue- fes, & do pa&o que António de Faria fez com elle. ío\,6o

Cap. f7-Como encontramos no marhua embarcação pequena de pefeadores em que bião oito Portuguefes muyto feridos, de da conta que ellcs deraõ a António de Faria daíua defauentura. rf@lr.lffi

Cap. 5:8. Do que António deFaria fez em Lailoo,onde íc apercebeoparayra pe- lejar com Coja acem. fo\.6)

Cap. 55» Como António de Faria pelejou co coíTario Coja acem, & do que com elle lhe fucedeo. foi. 64

Cap.6o. Do mais que António de Faria fez defpois que ouue efta vitoria & da

Tauóadit.

liberalidade que aquy vfoucom.os Por - tugueíes.de Liampoo. fol.tfj

Cap. 61. Como António deFaria fe par- tio dcftcrio Tinlau para Liampoo, & d'humdefauentutado fucceíTo que tc- u,ena viagem. foi. 67

Gap. £1. Domais trabalho & perigo em que nos vimos, & do íbcorro quetiuc- mos. foi. 6 8

Cap. 65. Como António deFaria teueno-

uasdos cine» Portuguefes queeftauão

«catiuoSr&doque fezfobre iíTo. f.£9

Cap 64. Como António de Faria efere-

ueo hua carta ao Mandarim de Nou-

day fobreo negocio deftescatiuos,&a

repofta que teue delia, & o que elle fez

i fobreiffo. fol^o.

Gap.íTj Como António de Faria come- çeoacidadedeNouday, & do que lhe fucedeo. foi. 71,

Cap.6<5. Domaisq António deFaria paf-

íouatè chegar âs portas de Liapoo. 72, Cap. £7. Do q fez António de Faria chega

doas portas de Liapoo, & das nouas ó; ahy teue do que paíTaua no reyno da

'China. ' foi. 75

Cap. 68. Do recebiméto que os Portugue- / fes fizeraô a António de Faria na po- voação de Liampoo. foi. 74

Gap 69. De q maneyra António deFaria foy leuado à igreja, & do q paíTou neila até a MiíTafer acabada, foi. 76

Cap. 70. Dobáqueteque ncfte dia fedeu, a António de Faria & a feus compa- nheyros. foi. j.j

Cap.71. Como António de Fatia fe parv tio de Liampoo em bufea da ilha de Calempluy. foi. 78

Cap. 71. Domaisq António de Faria paf- íou ate chegar ao rio de Patebenáo, & da determinação que ahy tomou acet- ca de íua viagem. foi. 79

Cap.73.D0q1.1e Antoniode Faria paiTou até chegar aferra de Gangitanou,& da disforme gente queahy falou. f.8o."

Cap. 74. Dos trabalhos que paíTamos ne- fta enfeada do Nanquim,& do q aquy nos fez o.Similau. . fol.82Í-

Cap 75, Gomo. chegamo^ * cila ilha de

CaIempJuy,&damaneyra,ordem,íirio, fabrica delJa. foi. 85

Cap 76. Como António de Faria chegou a efta ermida, & do que paiTou nella. fol.84

Cap. 77. Do mais que António de Farra parlou nefta ermida ate fe embarcar. fol.85

Ca p. 7 8. Como efta ptimeyra noite fomos íentidos,& porquecaufa, èc domais q fucedeo fobreiílo. to\..o6

Gap. 79 Como nos perdemos na enfeada do Nanquim, & do que paíTamos def- poisdiíTo. fol.J88

Cap. 80. Domais q nos fucedeo defpois defterhíferauel naufrágio. foi. 88

Cap. oi. Como chegamos a huaaldeaon-

deeftauaeftaalbergaria,& doquenella

paíTamos. foi. 89

Cap.8i. Como nos partimos defte lugar de Siiey]acau,-&do que nosaconteceo defpois de partidos delle. fol.91

Cap 83. Como chegamos a húaquintãde? hum homem fidalgo que eitaua muyta doente,- & do que pairamos com elle. foi 91

Cap.84. Como daquy fomos teravilla de Taypor,& de como ahy nos acon-

1 teceo íeimos preíos. fol.93

Cap 85. Como deite lugar deTaypor fo- mos leuadosá cidade do Nanquim, &C do que nella paíTamos. foi. 94.

Cap.Sí.Da caridade com que nefta pri- íaõfomps curados,& domais quedef- pois paíTamos. fol.^J

Gap.87.Como fomos remetidos porap- pellaçaõ âcidade do Pequim, fol.^o

Gap. 88. Como daquy partimos para a cidade do Pequim,& das grandezas da-1 cidade doNanquim foi. 97

Cap. 89. Do que mais vimos & paíTa- mos até chegarmos à cidade de Pocaf-. fer,& da grandeza dehumpagodequo ha nella. foi. 9 8

Cap. 90. Do que achamos por efte rio acima ate chegarmos a húa villa cha- mada Iunquileu, & do q nella vimos, & noutro lugar adiante delia. foi. 100

■',.,.-. . . . .

QC^ Cap.?!.'

7*,

Éèê

Cap 5>l. Como chegamos ahuacidadcq fe deziaSampitay, & do que paliamos com húamolher Chriftam que acha* mos nella. foi* 102

Gap.pi. Donde teue principio a origem & fundamento deite império Chim, & donde procederão os primeyros qo pouoaraõ. foi. 105

Cap. 93. Do que mais pafíbu nefte nego- cio defpois de o jejum ler acabado, & dofucceífoque ttue. fo!.io4

Cap. ^4. Quais fora© os fundadores das piimeyras quatro cidades da China,& dafc conra de algúas grandezas da cida dedo Pequim. fôl 10

Cap. 95. Qual foy o Rey da China que fez o muro que diuide os dous impé- rios da China & da Tattaria, &dapri- faõanejxa aelies. fol.iotf

Cap. 96. De algúas outras coufas que vi- mos ate chtgarmosa hum lugar onde eftaua húa Cruz, & da razão porque ellaaly eftaua pofta. foi. 1 08

Cap. s>7. Do que vimos defpois que fay- mos de húa cidade que fe dezia Iun- quinilau. foi. Ho

Cap 5>i>. De outras muyras diucríldades de coufas que vimos, & da ordem que fc tem nas cidades mouediças que fe fazem nos rios em embarcaçoens. foi. 111

Cap. $9. Das mais coufas que vimos ne- fta cidade, & de outras algúas que ha na China em outras partes, foi. 113.

Cap.ioo. Como chegamos à cidade do í Pequim,& da pníaõ em que nos mete- rão, &£ do que nella paíTamos. fol.nj

Cap.ioi. Do que mais pafíbu nefte nof- fo negocio atè ofeyíoyr coclufo fobre final. foi. ,1 6

Cap. 102. Do que nos refponderaõ eftes procuradores dos pobres, pedindolhe nòs que fallafíem por nos ao Chaem que tinha em fuamão o nofíb feito pa. ra o fentencear. foi. 117

Cap. 103. Como nos leuaraõ daquy â caía da judicatura do crime a ouuir- taos publicar a nofla fentenca, & do

appârâtor8rmagèftac!fl com que os of- ficiais eftão nefta ca fa,& das cerimo- nias que fe guardaõ nella. foi. 118

Cap. 104. Do que paíTamos cos Tanigo- res da irmandade, & do queelles flze- ráopornos. foi. 1 ir

Cap. 105. De algúa pequena informação defta cidade do Pequim ônde o Rey da Chinarefidcdeaílento. fol.ua

Cap. 1 o 6. Do regimento que fe tem no dar dos banquetes nas cftai3gens notaueis, & do eirado que traz o Chaem dos trinta & dous eftudos. foi. 12;

Cap. 107. De algúas coufas particulares notaueis que ha na cidade do Pequim.

foi. 12 5;

Cap.108. Da pnfaõ do Xinanguibaleu on de eftão íempreos degradados para o fetuiço do muro dcTartaria. fol.12.6

Cap. 10^. De outra cerca que vimosne» íta cidade por nome tifouro dos mor- tos,de cujo rendimento fe fuftenra efta prifaõ, &de muytas coufas notaueis q ha nella. foi 128

Cap. j 10. Doterceyro edifício ôj aquy vi- mos por nome Nacapirau. foi. 129

Ca. 1 1 1. Do quarto edifício íituado nome- yodorio, onde eftão as cento & treze capellas dos Reys da China. fol.i3i

Cap.112. Doprouimentoqucfetemcorn todos os aleijados &: gente defempa- rada. fol.1',2

Cap. 11 3. Damancyra q fe rem para auer em todo o reino celeiros para os pobres & qual foy o Rey qifto ordenou, f.133

Cap. 114. Do numero da gente queviuo nas cafas dei Rey da China,& dos no- mes das dignidades fuprcmasq gouer- não o reyno,& das três principais feitas quehanelles. foi. 154

Cap.115.C0mo fomos leuados para Qoá- fy a cõprirmos noflb dcgredoj& da de- fauentura que ahy tiuemos pouco tépo defpois que chegamos. fol.i3j

Cap. 116. Como a cafo achey nefta cida- de hum Portuguez, &do que com elle paíTamos. foi. 15*

Cap. 117, Como hum capitão Tártaro entrou com .gente nefta cidade de

Quanfy-

Tauoadd.

Quanfy,&do'quenelIa fez. foi. 13 tf

Cap. 118. Do aíTalto que o Nauticor de Lançame deu ao caftello de Nixiam- coo.dofucefTo que teuc&do mais que íiiccedeo dahy por diante. foJ. 139

Cap. 119. Do ardil que Iorge Mendez deu para fe tomar o caftello, & do af- falto que fe lhe deu,&dofuceíIodelle. foi. 140.

Cap. izo. Do caminho que o Mitaquer fez deite caftello de Nixiamcoo, até chegar ao arrayalqueel Rcy dos Tár- taros tinha fobre a cidade do Pequim, foi. 142,

Cap. Hi. Da maneyra que o Micaquer nos lcuou para nosaprefentaráelRey, &do que vimos & paliamos antes de chegarmos a velo. foi. 143

Cap. 121. Do mais que vimos atê che- garmosondeel Rey dos Taitaros.efta- ua,&do que paíTamos com elle. f.145".

Cap. 123. Como efte Rey Tártaro le- uantou o cerco que tinha pofto a ci- dade do Pequim, & fe foy para fua terra, &c do que fez ate chegar a ella. foi. 146

Cap. 1*4. Como efte Rey Tártaro fe paf- fou defta cidade de Lançame para a de Tuymicão, onde foy vifitado de muytos príncipes peíToalmente, & de outros :por feus embaixadores. fol.!48

Cap.uy. Como fomos leuados outra vez diante defte Rey Tártaro, &: do que elle paíTamos. foi. 145»

Cap. 12.6. Do caminho que fizemos de- fta cidade de Tuymicão ate chegar- mos ao terreyro das caueyras dos mor- tos, foi. 150

Cap. 127. Do caminho que fizemos atè chegarmos a cidade do Quanginau, &c do que nella vimos. foi I ji

Cap.128. Do caminho que fizemos defta cidade de Quanginau, atè a cidade do Xolor,&doquenella vimos, foi. 1^2

Cap. 12.9, Do que paíTamos defpois que partimos defta cidade de Xolor atè q chegamos onde eftaua el Rey da Cau- chenchina. foi. 154

Cap. 130. Do recebimento que el Rey da Cauchenchina fez ao Embaixador da Tartaria na villa de Fanaugrem. foi. 154

Cap. 131. Como el Rey fe paíTou de Fa- naugrem para a cidade de Huzanguee, & do triumphocom que nellaenirou. foi. 156

Cap. 132.. Como nos partimos defta ci- dade de Huzanguee, & do que nos a- conteceo acè chegarmos à ilha deTa- nixumaa, que he a pumeyra terra do lapão. foi. 157

Cap. 133. Como defembarcamos neftai- lha deTanixumaa,&: do que paíTamos co fenhor delia. foi. 158

Cap. 134. Da honra que o Nautaquim, fez a hum dos noftbi pelo ver tirar com hua efpingarda, & do que ahy fuece- deo. fol.ijp

Cap. 135. Como efte Nautaquim me mandou moftrar ao Rey de Bungo, ô£ do que vy & paíTey ate chegar onde elle eftaua. foi. 1 60

Cap. 135. De hum defaftre que neftaci- dadeaconteceoa humfilhodelRey, do perigo em q por iílo me vi. foJ.162,

Cap. 157. Do mais que paíTey no nego- cio defte moço, & como me embar-

. quey paraTanixumaa,& dahy para Lia poo,&do quemeaconteceo defpois q ahycheguey. foi. 164

Cap. 1 38. Do que paíTamos c(Tes que efea- pamos defte naufrágio defpois que, fo- mos em terra, foi. 166

Cap. 1 39. Como fomos leuados a cidade de Pongor, & apreíentados ao Bro- quem dajuftiça Gouernadordo rey no. foi. 166

Cap. 140. Daspreguntasquenos flzeráo, &; do que a cilas reípódemos,&domais queentãofucedeo. foi. 16^8

Cap. 141. Como elRey mandou eftafenté- ça ao Broquem da cidade onde eftaua- mos prefos,paraq a executaíTe, & do q niíTofuccedeo. foi. 169

Cap,i4z Comoeftadonzella deu a carta

à Raynha mãy dei Rey, & da repofta q

trouxe delia. foi. 170

QÇ>ji Cap. 14$,

T duoadd*

Cap.143.D0 que mais parTamos ate che- garmos a Liampoo, & da informação deita ilha Lequia. foi. 17 a

Cap. 144. Como de Liampoo me party para Malaca, donde o capitão da forta- leça me mandou a Martauão ao Chau- bainhaa. foi. 175

Cap. 145. Como chegamos a hua ilhaque le dezia PuJlo Hinhor.&do queoRey delia ahy paíTou comigo. foi. 17?

Cap.i4<S.Doque fucedeoaos noflbs con- tra os enemigos defte Reyzinho,& de hua grande vitoriaquehus Portugue- fes ouueraõ nefta cofta contra hum ca- pitão Turco, foi. vj6

Cap. 147. Do que mais paíTeyatê chegar ábarrade Martauão. foi. 178

Cap. 148 Deaiguascoufas particulares q aquy em Martauão fuecederaõ. f.179

Cap. 149 Da determinaçãoquetomou o Chaubainhaadefpois que entendeo q naõ podia fer focorrido dos Portugue- fes. fol.181

Cap. 150. De qmaneyrao Chaubainhaa fe entregou a el Rey do Bramaa, & da grandearrontaque os Portuguefes aly paíTaraõ. foi. 185

Cap. 151. Como a cidade de Martauão foy íaqueada & deílruyda,& da ordem queleuaraõ a padecer aRaynha&ou- trasmuytas molheres. foi. 185

Cap.152. De quemaneyrafe executou a juftiçanas cento & quarenta padecen- tes, no Chaubainhaa, naNhayCana- too,& nos feus quatro filhinhos. f.i86

Cap.1j3.Da defauenturtqueme aconte- ceo em Martauaô5& do que o Rey Bra- maa fez deípois que chegou a Peguu. foi. 187

Cap.154. Do que paíTou entre a Raynha do Prom, & o Rey Bramaa, do pri- meyro aíTalto que fedeu àcidade&o fucceíTo delle. foi. 189

Cap.iy y. Do mais que fucedeo nefte cer- co,& dos crueys caftigosque eftetyrã- nofcznos quetomou catiuos. f.191

Cap.ijtf.ComooRey doBrarnaafoy fò- breacidadedeMeleytay onde eftauao príncipe do Auaá com trinta mil ho«

mésj&do qfuceedeo nefta yda. f 192,

Cap.157.D0 que fucedeo a efte Rey Bra- maa atéchegarà cidade do Auaa,&do que ahy mais fez. foi. 19$

Cap.158. Do caminho que fizemos ate chegarmos ao pagode de Tinagoogoo. foi. 194

Cap.159.D0 fitio & fabrica defte pagode de Tinagoogoo,&: do grande concurfo de gente que a elle vem. foi. 195

Cap.ióo.Dagrande & fumptuofa procif- faõ que fe faz nefte pagode, & dosfa- crificios que fe fazem nella. f. 197

Cap. 161. De huns penitentes que vimos encima na fetra defte pagode, & da vida que fazem. foi. 198 .

Cap. 161 Do que mais paíTamos & vimos antes de chegar à cidade deTimplão. foi. 201

Cap.163. De que maneyra efte Embaixa- / dor do Rey do Bramaa foy recebido no ; dia de fua entrada, & da grande mage- ftade& apparatodas cafas doCalami- nhan. foi. 203

Cap.i6"4. Deque maneyra efte Embaixa- dor fallou ao Calaminhan, da refpofta , que lhe deu, &: como nefta cidade fe pregou anuguamente a ley Euange- lica. foi. 206

Cap. 16$. Em que fe larga informação defteimperiodo Calaminhan, &algúa do rey no de Peguu, & dos Bramaas. ; foi. 208.

Cap.166. Do caminho que fizemos ate a cidade dePauel, & da diuerfidade de ] gentes & naçoens que nella vimos, foi. 210

Cap. 167. Do mais caminho que fizemos ate chegarmos a Pegu onde eftauao Rey do Bramaa, & da morte do Roo- limdeMounay. foi, 112

Cap. 16 8. De que maneyra foy eleyto o no uo Roolim de Mounay fummo Tala- grepo defta gentilidade do Reyno de ; Pegú. foi. 214

Cap. 169. Da maneyra que efte Roolim foy leuado á ilha de Mounay, & meti- do nelladepoftedo feufupremoíânti- ' ficado. foi. 217

l Cap.170

Tauoada,

Cap.170. Do que efte Rey Bramaa fez defpois quecgegoua cidade de Pegú, & como mandou fobrea cidade Saua- dy,&doqueahy nosaconteceoaos no ue Pomiguefes. foi. 218

Cap.171. Do que mais paíTamos neíte ca- minho , &C do fucceffo que tiuemos nelle. foi- i2-°

Cap.171. Como da índia me fuy para a C,unda, do que la pafíeu num in- uernoque ahyeftiue. foi. 221

Cap. 173. Como o Pangueyraõ dePace Emperador da Iaoa foy com groíTb e- xercico contra o Rey de Paffaruáo, ôí do que fe fez defpois que la chegou, foi. 22a Cap. 174. Como da cidade fayrao doze miljamoucos, & do que fizeraõ contra os enemigos. fol« 2.2,3

Cap.i75.Comoo Reyde Paffaruãocom dez mil conjurados fahio fora contra os enemigos,da peleja que teue com el- les,& do fucceíTo delia. foi. 124

Cap. 176. Como a cafo fe tomou aquy hu Portuguez Gentio,&: da conta que nos elledeudefy. foi. 22 f

Cap. 177. Como el Rey de Demaa foy morto por hum eftranho cafo, & do que fuecedeo defpois de fua morte, foi 2 z 6 Cap. 178. Do que mais fucedeo ate efte exercito fetembarcado,&dehuagran . de difcordia que em Demaa ouue en- tre dous homés principais da cidade, & do defauenturado fucceffo que teue. foi. 22.7 Cap.i75>. Detudoo mais que fucedeo até nos partitmos para o porto da C,un>- da,&r dahyparaa China, & da defaué- tura que neítaviagem tiuemos. f.128 Cap.ioo. Do que nos fucedeo defpois q nos partimos deita reftinga. foi. 230 Cap. 1 81. Como deite porto de C,unda fuy ter a Sião, donde em companhia de outres Portuguefes fuy com el Rey à guerra do Chiammay,& do fucceffo delia. foi. 251

Cap. 182. Do mais que efte Rey de Siáo : fez ate fe tornar pata o íeu reyno, on:

de a Raynha fuamolher o matou com peçonha. fol.233

Cap.183. Da triíte morte deite Rey de Sião, & de algúas coufas illuftres quo clle fez em fua vida. fol.234

Cap.184. Como ocorpodel Rey foy quei m3do,& a cinza leuada a hum pagode» & de outras nouidades que fuecederaõ no reyno. foi. 236

Cap. 1 85. Como o Rey do Bramaa empié- deo tomar eítereyno de Siaõ,&doquo paffou ate chegar à cidade de Odiaa. fol.238

Cap.186. Como el Rey doBramaa deu o primeyro affalto a eíta cidade Odiaa, &c do fucceffo delle. foi. 1 3-9

Cap. 197. Como fe deu o derradeyro af- falto &: o fncceffo delle. fol.241

Cap.i88.Comoo Rey Bramaa aleuantou efte cerco pornouasquelhe vieraõ de hum aleuantamento que ouuera no reyno de Peguu, & do que fobre íffo fez. foi. 242

Cap.i8<?. Da muyta fertilidade do reyno de Sião, & de outras particularidades delle. foi. 245

Cap.i£>o. Do que mais fucedeo no reyno de Pegu até a morte do Rey doBra- maa &c defpois delia. foi. 244

Çap. 19 1 . Do que fucedeo no tempo de- ite Rey Xemim de C,ataõ, de de hum cafo abominauelque aconteceo aDio go Soarez. foi. 245

Cap.192. Do mais que paffou neítecafo de Diogo Soarez. fol.248

Cap. 193. ComooXemindoo veyofobrc o Xemim de C,ataõ & o que dahy fue- cedeo. foi. 249

Cap. 194. Do q fez o Xemindoo defpois de fer coroado por Rey de Peguu, &C como o Chaumigrem colaço do Rey do Bramaa veyo fobre elle com hum grande exercito & do fuceffo que teue. foi. 250

Cap.12j.De humgroffo motim queouuo no campo deite nouo Rey Bramaa, Sc da caufa porque fe leuanrou,&do fuc- ceffo delle. foi. 27 2

Cap.i?*. Da fentença que deraõ os feys

juizes

rife

Tanoaria*

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juizes n«fte cafo, & da entrada que fez o Chaúmigrem na cidade do Pegú. foi. 25 3

Cap. 197. Como foy achado o Xemin- doo,! &r.trazido ao RcyBramaa,& do que paíTou cora elle. fol.25j

Cap, 198. Da maneyra com que tirarão a padecer o Xemindoo, & da morre que lhe deraõ. foi. 2.5 tf

Cap. \99> Da reftituyçao que efte Rey Bramaa fez ao moiro Xemindoo do reyno que lhe romara; &: da maneyra de que elle foy enterrado. foi. 257

Cap. 200. Como deite reyno Peguu me embarquey para Malaca, & dahy para lapão, & de hum eílranhocaíb queahy fuccedeo. . foi. 25 8

Cap.201. Do que fez o príncipe filho dei Rey,tendo nouas da morte de feu pay. foi. 260

Cap.202.^Como nos paflamos defta ci- dade Fucheo, para o porto de Hia- mangoo, & do que nelle nos aconte- ceo. foi. 2^1.

Çap.2.03. De hua groíTa armada que o Rey do Achem ncfte tempo mandou íobreMalaca5&doque niíTofez o pa- dre meftre Francifco Xauier, Reytor da companhia de Iefu, nas partes da índia. foi. 262

Cap.204 Do que aconteceo a nofTa ar- mada eftando para partir, & de duas

' fõftas que chegarão de nouo á forta- leza* fol.2tfy

Cap. iof. Do mais que fe paíTou com Diogo Soarez, èc de como partio a ar- mada, & do que lhe aconteceo até chegarão rio de Parles. foi. 267

Cap. 106. Da cruel batalha que os noflbs tiueraõ cos Aches no rio de Parles, & do íucceíTo delia. foi. 268

Cap. 207. Do que paíTou em Malaca em quanto não ouue nouas defta noíTaar- mada, & do que o padre meftre Fran- cifco delia difle eftandohum Domin- go pregando. foi. 270

Cap.208. Como o padre meftre Francif- co foy de Malaca para Iapaõ, & do que làpaflbuv < foi. 271

Cap. 119. Como efte bemauenturado pa- dre chegou ao porto de Finge onde; eftaua a noíTa nao, &-do que paíTou ate yr ver el Rey do Bungo á cidade Fucheo. foi. 2.75

Cap.2i0.Das honras queelRey de Bun- go fez ao padre meftre Francifco efte primeyro dia que fe vio com elle, foi. 27 5

Cap. 2ir. Como defpedindofe o padre dei Rey para fe embarcar para a Chi- na o detiueraõ mais alguns dias, & de algúas difputas que teue cos Bonzos, foi. 277

Cap.2u*Do queefte bemauenturado pa- dre paíTou cos Portuguefes a cerca da embarcação, & da íegunda difputa que teue co Bonzo Fucarandono. foi. 27 9

Cap.213.De tudo ornais que opadrepafc fbucom eftes Bonzos ate fe embarcar para a China. t; foi. 281

Cap.214. Da grande tormenta que paíTa- mos indo de lapão paia a China,& co- mo fomos liures delia por oraçcés deite feruodeDeos. foi. 284

Cap.2ij. Dos vários cafos que aconte^ ceraõa efte bemauenturado padre ate chegar à China,& da maneyra de fua morte. foi. 18 tf

Cap. 21 tf. Da maneyra que foy enterra- do efte difunto,&: trazido a Malaca, & dahy à índia. fol.288

Cap. 217. Como efte fanto difunto foy defembarcado da nao em que viera de Malaca, & do apparato com que che- gou aocaiz de Goa. foi. 289

Cap.218. Do recebimento que fe fez em Goaa efte fanto difunto, & do mais q ahyfucedeo. ivd foi. 290

Cap. 219. Como o padre meftre Belchior partio da índia para lapão, & a caufa porque não paíTou de Malaca, &do q nellaíucedeonefte tempo. foi. 291

Cap.220. Como partimos.de Malaca pa- ra lapão, & do que paíTamos até che- garmos àilhadeChampeyloonaCau- chenchina,& do que nella vimos.

fol.2í>3

Cap. 1 24.

Tauoada.

Cap.zn. Como defta ilha de Champey- loo tomos ter à de Sanchaõ, & dahy a Lampacau,& dafe conca de douscaíos defaftrados que acontecerão na Chi- na a duas pouoaçoés dePoituguefes. foi. 194

Cap.tzi.De hiíasnouasquevieraõ deíla ilha de hum cílranho cafo queaconte- ceo pela cerra dentro. foi. 2,96

Cap.izj. Como chegamos ao reyno do Bungo, Sc do que paliamos com el Rey. foi. z^7

Cap.zz4.Damaneyra que el Rey doBu- go recebeo a embaixada do Viforrcy da índia. fol.joo

Cap.zzy. Como o padre meftre Belchior fe vio com el Rey do Bungo, & do quo paliou com elle, & da reporta que el Rey me deu da embaixada queJhe Ic-

"er , fol.300

Cap.ittf.Doqucpafley deípois que par- timos deite portodoXequeacèchegar á India,& dahy acfte reyno. fol.jo*

L A V S D E O.

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