"^ iv* '^^i^Èmié^ m. m ?mm mm. Presenteei to the USRAKYofthe UNIVERSITY OF TORONTO by Professor Ralph G. Stanton ^0 ííêS "> i E T H í C A, o u FILOSOFIA MORAL. HARMONIA DA RAZÃO, E RELIGIÃO, PARTE I. No que toca aos Dogmas da Fé, ou Theologia Natural. Oue faz o nono Tomo éa Recreação, HARMONIA DA RAZÃO, E DA RELIGIÃO, Dividida em duas Parter. PARTE I. Do que pertence aos Dogmas da nofla Fé, Que faz o nono Tomo da Recreação Filo- fõjicãy e he a Theologia Natural^ PARTE IL Do que pertence aos coílumc^ da noíTa Religião, Que faz o decimo Tomo da Recreação Fi- lofofica i e he a Filofofia Moral, ou £thica« RECREAÇÃO FILOSÓFICA Sobre a FILOSOFIA MORAL, Em que fe trata DOS COSTUME Sj Compofta , e offercclda A o príncipe regente SENHOR D. JOÃO POR T. A. D. C. O. TOMO X. LISBOA NA REGIA OFFICINA TYPOGRAFICA. Anno m. d c g g. »^ — . . .~ . . . * Com licença da Mezd do Defemhargo doPaio, e Prívilfgio âcaL ti. SENHOR H AFENDO eu depuhUcar a minha Filofolía Moral, ijio he ^ afciencia qm trata dos cojiumes ^ tendo-nos a Providen- cia pofio diante dos olhos em VÚSSA AL^ TEZ A REAL o modelo dos mais fantos coflumes , dos mais juftos , dos mais pru- dentes e louváveis , feria em mim hum grande crime fe eu deixaffe de corroborar a minha doutrina com tão brilhante , e tão efficaz exemplo ^ pondo logo no fronte/pi^ cio da Obra o amável Nome de FOSSA ALTEZA REAL ; porque ejle Nome at^ tràhird fuavemente a todos , para que me leião\ por quanto coftumão os olhos irgof^ tofos para ond^ o amor qs kva* ■ AUm 'Além àijjb tinha eu principiado ejla Ohm da Recreação Filofofica ha cinco- enta annos ^ debaixo da Protecção do Au- guflijjlmo Bifava de FOSSA ALTEZA REALj o Senhor Rei D. João o K ^ e era jufto que ejte Remate delia também fojje protegido por outro D. João feu fuc- cejfor ; JucceJJor digo , ,e Herdeiro , não fá do Régio Throno , mas muito mais da fua grande Religião , do zelo da honra de Deos 5 da inclinação d piedade , e da pro^ tecção dos bons coitumes ; os quaes yief- fes triflés , e calamitofos tempos tem taa •poucos Soberanos que os protejão, Efta parte da Filofofia nunca foi mais veceffaria do que agora ; por quanto a Doutrina dos Incrédulos , que tapão in- 'teiramente os olhos d luz da Religião , e também d da boa razão , forceja para ^tranjiornar as bafes dos bons coitumes, firmadas na Religião , na boa razão , nas Leis da Humanidade , e até nos inter effes folidos de toda a Sociedade : porém nada dijlo bafia^ porque a ouvir os ímpios Vol- taire ^ Rouffeau , VEfprit ^ Les Moeurs d^Alembert ^Diderot ^ e outros , nem a Re- ligião he freio parafubjugar afuriofa li^ ter- lertímgem, nem a razão he ouvida^ nem ò poder dos Soberanos hajla. He tão grande o empenho de foltar os de/enfreados coflumes , que para ijjò chegão a affeSlar hum ignominio/o paren^ tefco com os brutos , querendo que o ho^ mem tome ( como elles ) por guia dos feus coflumes o cego ímpeto das fuás paixões , que agora geralmefite canonizão como innocentes e jantas , ainda fendo as mais deprava- das. No titulo da fua Moral univerfal põem como epigrafe a louca fentença de Séneca , que diz : A luz da razão deve confultar , e ouvir a Natureza. Quem tal diria ! A Luz da razão , Guia celejle que o Creador deo ao homem para gover^ no das fuás acções y deve confultar a Na^ tureza depravada pela queda do primeiro homem , e bem dijferente do eftado primi^ tivo y em que fahio das mãos do Creador ! Efla Natureza ajfmi depravada fa- zem elles parenta em primeiro grão dos mefmos brutos ; e ha Filofofo dos feus , qtw confunde os homens com os Bugios , pondo claramente o grande Newton na cabeceira dos Bugios mais qftuciofos ; e ainda affnt qnerem que ejfa Natureza haja de gover-» nar fiar a Boa Razão : quem vio maior dif^ farate ! Contra ejles impios esforço quanto me he pojjlvel d hoa Filofofia ^ e d hiz da ra-^ %ão\ e pojlo que no entendimento ine acho fortalecido com o foccorro da Religião , prudentemente lhes occulto as fuás luzes , para evitar as irrisões com que defprezaa os feus Dogmas : e fome valho da ejpada da Razão j e da Experiência ^ que ião as úni- cas armas doFilofofo\ e com ellas me per -^ Juado que as faço precipitar nos maiores ahfurdõs , e manifeftas contradicções dos feus mefmos Principias. Para fazer a minha leitura mais amena , e os meus argumentos mais vivos , me valho do ejlilo de Dialogo , co7no fe- lizmente fiz no meu nono Volimie da Theo- logia Natural , a que dei o Titulo de Harmonia da Razão , e Religião. Nel- le revendiquei os Dogmas da noffa fun- ta Religião da impojiura de ferem contra a clara razão do homem íenfato; e ti- n)e a doce confolação de reduzir com elle '(^ajudado da graça fuperior) a hum oc- eulto 5 mas efludiofo Atheo ^ que lendo o pjeu Uvroyconfejfou ingenuamente y que el-r Je não tinha refpojla , e retideo o feu cora- ção 5 e entendimento d Santa Igreja , a quem pela nimia , e defordenada lição occulta- mente tinha negado a obediência. Se Deos também abençoar ejie meu trabalho , pode- rei efperar algum fruto, .. Confmta pois FOSSA ALTEZA 'REAL que o feu amável Nome appareça no titulo defla Obra , que parece fer útil d Igreja j útil aoEJiado ^ útil aos bons cof- tumes , de que depende a felicidade do Throno , e do Reino, Deos guarde a pre- ciofa vida de VOSSA ALTEZA REAL por mui largos , mui felices , e mui aben- çoados annos ^ como todos defejamos , e co- pio pede incejfantemente ao Ceo quem fi çonfola de fer PE VOSSA ALTEZA REAL Humilde VaíTallo Thçêdoro J« Almeida* T PROLOGO. ^Odos fabem que a Filofofia di- lata os feus Ramos por toda a parte; eque, fegundo a matéria fobre que difcorre , tem diveríbs no- mes que a caraftcrizao. Quando dif- corre fobre a Natureza das coufas vi- fiveis , íe chama Filofcfia Natural , ou Fylica 5 da qual tratámos nos primei- ros féis Tomos defta Recreação ; quan- do trata dos aftos do noflb entendi- mento, fe ch^mà Filofofia Racional ^ ou Lógica , a qual demos ao público no fetmio Tomo da Recreação. A parte que trata dos Princípios , e verdades geraes , e comnvuns a tudo o que tem íer, fe chama Filofofia transnatural ^ ou além e aíEma da Natureza , ou Me- tafyfica, a qual explicámos no oitavo Tomo da noifa Recreação, Seguio-fe D nono Tomo , que he da Theologia Na- tural j ou Filofofia de Deos , em que tratamos de Deos , quanto o Filofo- (o pódç conhecer e moftrar , deixan- do Prologo. do aos Th^ologos o que fe nao de* monftra pela boa razão (que hc fó o que pertence á Filofoíia) mas que fe prova pelas Divinas Letras. Faltava ef- ta ultima parte da Filofofia Moral , a que chamão Ethica ^ no que emprega* íTios efte decimo, e ultimo Volume. Poderá alguém queixar-fe da tar*' dança defta Obra , ha tanto tempo pe- dida edefejada; e também da ordem com que tenho conduzido os ânimos dos Leitores á fua inftrucção ; e refpondo que puz mais cuidado em fervir o pú- blico bem^ do que em fervillo deprejja. Forças curtas, fe querem trabalhar de- preíTa, nem fempre acertao; e he di- ftame mais prudente, e mui antigo o que dá Horácio fobre a demaziada pref^ fa de produzir as obras do entendi- mento. Agora quanto á ordem, já-mais de huma vez diíTe que tratar da Lógica logo no principio da inftrucçáo da mo- cidade , he conduzilla logo por huma cafa efcura , marrando com mil coufas que moleftao , fcm lhe fazer ver .na» da Prologo. áa que íigrade ; porque íem a Fyfica que lhe dê exemplos dedifcurfos, tu- do he ir ás apalpadelas, fem ver cou- fa que dê gofto. Por iílb introduzi o difcipulo logo pelo Jardim ameno da Fyfica , que agrada , encanta , e dá appetite de querer faber , alegra os ânimos 5 e convida a difcorrer. Depois diffo a Lógica ajudada da Fyfica e Geometria , tem neftas fcien- cias bons exemplos dos feus di£la- mes ; e então a Theorica cahindo fobre a prática , fe entende com fum- ma facilidade. A Meta fyfica tendo a bafe da Fy- fica, e da Lógica, voa com duas azas aflima da Natureza ; e com efle mef- mo voo vai a Theologia Natural co- nhecendo a Harmonia pafmofa , que tem a Razão , fua primeira condu- ftora , com o que depois a Religião enfina. Tendo já os meus difcipulcs a fua razão coftumada a paíTos feguros , e paufados , podem maduramente julgar no perigofo combate das Paixões , que tan- Prologo* taiito pcrturbão a Razão ^ quando dif- corre na matéria dos Cojlumes.. Em qual-^ quer matéria que feja, fempreha con- teftações, que no fim da contenda dei- xão duvidoía a verdade mais patente; porém nunca ha tanto receio defta defordem , como na matéria dos coftu- mes 5 em que as paixões são ataca- das nas fuás próprias trincheiras. Por* iíTo nefta matéria devemos ter mais madureza no difcurfo , do que viveza de engenho; mais prudência , e cau- tela. Eis-aqui porque da Filofofia Mo- ral fempre fe deve tratar mais no fim dos eftudos ; e eu a refervei para o fim da minha Obra, e talvez da minha vida , já bem cançada , por ter princi- piado a publicar cita Recreação ha cincoenta annos. Vale- Dl DIVISÃO DESTA FILOSOFIA MORAL, a que chamão ET H I CA Em trcs Partes príncipaes fe divide. PARTE I. Das obrigações , ou deveres do ho- mem para com Deos. PARTE 11. Das obrigações , ou deveres do ho- mem para comfigo mefmo. PARTE III. Das obrigações , ou deveres do ho- i mcm para com os outros homens. PAR- RECREAqÂO FILOSÓFICA D A PARTE I. FILOSOFIA MORAL. TARDE XVI. Das obns^ações do Homem para com Deos , tiradas do que E lie fez ne Univerfo para tem do Homem. §. I. Introduc^ão a efta Obra. Bar O' O EjAis h^m vindo , Chefalier , nsza. ^^ ás noíTas converlaçoes literárias , ^"-^quc fem vós não tem aquellc fal, que as fazia agradáveis algum dia; Tom.X. fii e t Recreação Filofojlca. c agora a voíTa aíTiftencia as fará mais inílruélivas , porque o voíTo eíliido , *e a communicação com muitos Cavalheiros inítruidos , que na guerra trataríeis , vos tenlo dado muitas luzes. ChevaL Minha Irmã, fe quereis que falía- mos em balas , aprochcs , ataques , arti-» Iheria , &c. poflb-vos fallar quanto qui- :zerdes ; porque quer no fítio de S. Ro^ que , quer no RuíTillon , diíto he que fem* pre fallavamos. Cada qual falia da fua profifsao ; o demais he impróprio. 'Baron. E de que hei-dc eu fallar ? ChevaL Eu vo-lo digo. De enfeites , de modas , de mufica , de jogos , veftidos-, diamantes, e tudo o mais com que afor- mofura fe augmenta , a galanteria fe af- íina , os louvores fe defafiao , os obfe- • quios fe multiplicão , as intrigas fe fb- mentão , &c. &c. &c. Baron. EíTes à" cateras multiplicados me dizem muito , e nao me parecem bem na voíFa boca a meu refpeito. Já vós fa- beis que o meu entendimento nao fe fa- tisfaz com ridicularias que lifongeão os olhos ; nem eu nunca fiz cafo das efti- maçoes que fe apoiavao em fittas , tra- pos , cabellos , e outras puerilidades. Chevslier , yós não pondes a mira nas vof- Tarde dezefeis» § / voíTas acqoes em que vos eftlmcm por andar aíTeado , que então eu ine envergo- nharia de vos tratar por Irmão j mas a hon- ra que eu recebo de vos ter por Irmão j vem de que no voíTo eíiado encheis to- das as obrigações de Cavalheiro , de Tol- dado , de honrado. Os veílidos , e mais adornos não valem nada : aílim fou eu. ChevaL Em mim eíTim he •, mas em vós , que fois Iiuma Senhora, em quem a ida- de florente, a bcllcza que deveis á Na- tureza, a graça que fe efpalha por tudo o que dizeis, e hum agrado geral que a todos certamente encanta ; a vós os en- feites são devidos ; e niílo eftá o ponto principal dos voíTos cuidados ; porquan- to eítes são ( na voíTa feminina guerra) as baterias , as balas , as armas que ferem , que rendem , que vencem , que proílrâo , ás vezes até os mais heróicos Conquiíta- dores , que coroados de louros fe deixão cativar de Senhoras felices que fouberão rendei los. Baron, Com que , meu Irmão , fendo nós Irmãos pela Natureza, vós fazeis huma bem injuriofa partilha entre nós ambos. O que he perfeição da alma , e obra do juizo, edas acções heróicas pertence ao Chevalier^ e áBaroneza, fittas, leques, B ii ua* '4 Recreação Vilofofica. trp.pos 5 pedras que luzem , mentiras, louvores jallbs , e o mais cjue perten- ce ao corpo. Bclla partilJia entre Irmãos ! Cheval, Eíla partilha he a ordinária j mas confeífo que vos he injuriofa. Baron* Meu Itmao , a alma nao reconhe- ce fexos : eu nao me contento com orna- tos do corpo 3 quero a minha ahna en- feitada , quero-a rica , e preciofamente ornada , e fiquemos niílo : para iíío te- nho fcmpre elbdado. E depois das in- ftrucçoes querccebiamos, vós, e eu , e o Barão do noiTo Meílre Theodofío fem- pre tenho cila dado 5 e agora elle me diíTe honcem que h aviamos de começar com a Ethica* ChevaL A Ethlca , que he a fciencia dos cof- , tumes 5 he muito importante ; mas , mi- nha querida Irma ^ não he Theodofio o ■ mais próprio Mertre para eíla fcieiKia* Acho-o mui Fiiofofo , c ( deixai-me di- zer aílim ) mui melancólico para a in- ítrucçáo de huma Senhora , que deve deí- frutar os belliíTunos annos da voíla idade e' formofura. Hoje ha livros pafmoíòs fobre os coítumes ^ que são mui diver- ' fos do que erao ix) tempo de nolTos an- tepaíTados. Baron* Bem eílimo iíTo^ porque conferin- -.:•: do Tarde dezefeis» jT do a fua doutrina com eíTa que vós dr zeis , ficarei mais inteirada do que fe de- ve leguir j evos contribuireis para a mi- nha inítruccao , que me deveis cfle feiTÍ- ço pelo amor que vos tenho. Ahi vem Theodoíio 5 que vendo-nos juntos , eílá zeloíb da nofih converfação : vinde , v.ân- de , Theodoíio , que jd tardáveis. Theod. Saudades entre irmãos que por tan- to tempo eftiveráo ícparados , são juílo objcclo da converfação nos primeiros dias. Baron, AíTim coíluma fer ; mas eu já met- ti o Chevaíier na converfação que tínha- mos projedado. ChevaL Theodofío , minha Irma diz que vós a quereis iníivmr na fcienda dos cof- tunies 5 acho'Vos razão j porque tendo-a inftruido , e muito bem na Iciencia .da entendimento , era juílo que lhe deíTeis também inílrucção na fciencia da vonta- de ^ pois que a Ethica feajuíla bem coin a Lógica. Mas acho , meu Theodoíio, que hoje a fciencia dos coílumes que an- da em voga , he mui diverfa da que nof- fos pais praticarão j e ou vós lhe haveis de dar huma doutrina rancofa, que já ninguém fegue ; ou haveis de fazer no animo daBaroneza huma mudança, que tal- 15 RecreaÇãQ Filofqfica. talvez efcandalize a quem tiver huma edu- cação 5 como a que noíTos pais nos demo, ^heod. Por amor diíTo mefmo defejo eíTa inftrucçâo na voíla prefença. Como aqui nao vale a authoridade politica , e a au- tboridade íagrada , a pomos de parte , nâo como quem a defpreza , mas como quem a refpeita , e poupa guarda ndo-a em ' rcíèrva para quando for precifa , fomen- te nos valeremos das armas da Razão ; porque eíFes authores de que vós fallais , lião reconhecem outra ; e eu dou a vaíla Irmã inftrucçâo como mero Filofofo. Af-? ' íim nao ha aqui doutrina que não fe de- va examinar , ç eftimar, fe for raciona-» vel. ChevaL líTo quero cu : cuidava que vós nos queríeis cnílnar com a authoridade da ^ Igreja 5 que eu venero fummamente; mas • para refponder a eftes livros modernos , queria doutrina da Razão meramente. Theod, Tella-heis como defejais. Eu tam-? bem tenho alguma inftrucçâo deflcs livros que vós eftimais ; e duvido que me fal- íeis em algum que me Icja inteiramente novo. Dos feus fyftemas vos direi alguma coufa , e vos citarei authores , e paginas ; porque eu não gófto de brigar com fantafr ínas , nem ja-mais fingi as doutrinas que Jiou- * Tarde dezefeis, ' f^ ' liouvefle de combater ; era precifo que primeiro eu foubeíTc que havia qucm'^as abraçai Fe. ChevaL Sendo iíTo aílim , já eílpu com apperite de vos ouvir, Tlieodoíio ; e vos peço que vos náo eícandalizeis ,. fe me elcapar alguma exprcísao alheia da voílh doutrina ; porque a communicação com ofticiacs de difièrentes Nações , e Reli- gião, fera a cauía defculpavel de alguma palavra imprópria, ou alheia de vós ^ e da Baroneza 5 que me eícape. Baron, Sereis perdoado fe fordes criniinofo. §. II. Da obrigação que todo o Homem tem de conhecer a J)eos, Theod* 7^ 11 Eu Chevalier , a primeira 1\ X parte da Filofoíia Morai tra- ta das obrigações do Homem para com Deos ; a fegunda das obrigações do Ho- mem para comíigo m.efmo ^ e a tercei- ra das obrigações do Homem para com os outros homefis : creio que concordais niílo. ChevaL Concordo, e fem repugnância. Barçn. Queira Deos que aífim feja até ao fiai. í Recreação Filofofica. fim, continuai , Theodofio, perdoal-me o interromper-vos, Theod* Ora a primeira obrigação do ho- mem para com Deos he fazer diligencia para o conhecer ; porque lendo iíTo a coufa mais natural a toda acreatura dif» curíiva , ha cfpiritos tão pezados , e hu-* mildes, e abatidos , que a maneira dos jumentos nunca tirão os olhos da terra, que com os fcus pés vão pizando ; nem levantão a cabeça para o Ceo , em or- dem a conhecer o principio donde lhes veio o íèr. Deos porém formando o Uni-, verfo 5 e prevendo eíla indigna condição deíles homens, femeou eíTa mefma terra que pizãOj de huns pequenos efpelhos , em 'que reverberão os fcus Divinos attribu-^ tos , de forma , que o conhecimento de Deos lhes entra pelos mefmos olhos , que elles teimavão em não tirar da terra que pizão. E porque he tão grande ás vezes a froxidão deíles efpiritos languidos , que nem querem reílcclir nas outras creatu- ras que o cercão , quiz que em íi mef- mo pudeíTe achar todo o homem, ou mu- lher retrato da DivincfaTic. A organiza- ção do feu corpo , a fabrica admirável deTcs mefmos olhos com que vê , dos ouvidos com que ouve , da mefma alma qu^ Tarde de^efeis. ' 9 que o anima , o niefmo entendimento com que difcorre , tudo são liuns como rerratos da fabcdoria , e da providencia do Creador ; Sabedoria , digo , em que naoacha limite. Então impaciente, eaf- ílifto de nao poder comprehender eíía pafmofa grandeza, volta em redondo os olhos por tudo que em roda o cerca , e tudo acha igualmente maravilhoío ; e bem como o naufragante , que meio íub- mergido. volta em roda os olhos para toda a parte no mar largo, enão vendo praia, fe deixa fubmergir defaniniado ; af- íim faz o homem que difcone, cie dei- xa abyímar no conhecimento da incom- preheníibilidade Divina : e deite modo vem a conhecer a feu Deos , quando me- nos niíTo cuidava. Barou, O cafo lie , que a maior parte dos homens não difcorrem , como dizeis, e tem o difcurfo tão ociofo , como tem es olhos quando dormem. Theod. Ahi he que eftá o feu crime. Rece- ber de Deos o corpo orgânico , os fenti- dos , a alma , e o entendimento , e não fe perguntar aíiméfmo, donde lhe veio tu- do iíTo que elle tanto effima. ChevaL Muitas vezes porque muito difcor- re o homem fe confunde de modo , quç nuQ to * Recreação Filofofica. não comprehendcndo como ascoufas sao em Deos , nada cré, difíb mefmo qi\c lhe parece que vê. Baron, Náo ha maior difparate. Huma cou- ia hc crer que a coufa he , outra hc co- nhecer o como he, Cheval. Náo deis , minha Irmã , fentença tao forte , que iílb hc o fyliema de hum grande homem. Theod. Bem fei , he João Jaques Rouf- feau no feu Emilio. Baron, Seja embora , digo o mefmo : he hum famofo difparate. Ora dizei-m.e , Chevalier, vós não goílais de figos ? ChevaL E muito ; e os que hoje me oíFe- receites erão excellentcs. Baron, Ponho embargos ao volfo goílo; porque vós não deveis crer que haja fi- gos ; porque nem vós , nem Filofofo al-^ gum me pôde dizer como da figueira fe formão os figos , tendo cada figo em íi dez mil granitos , e em cada hum delles a femente de huma nova figueira , como eíTa em que elles nafcêrão. O como fe formão os figos na figueira , e em cada hum delles dez mil figueirinhas pequeni- nas 5 que depois ca h indo na terra fe fa- zem grandes j nenhum Filofofo já-mais explicou , nem comprehendeo ; logo não ten- Tarde ãezefeis, ii tendes licença do voíTo Roufíeau para crer que haja figos aíTmi : logo não po- deis goílar de figos , porquanto hum ho- mem dejuizo, como vós, naopódegoí^ tar do qiie nao crê que haja. ChevaL Góíto , e creio. haron. Ora fe vós fem comprehender , mal nem bem , como poíla huma figueira dar figos 5 e os figos darem figueiras , cre- des iíTo que nao comprehendeis , como defculpais os voíTos amigos de nao cre- rem nos Attributos de Deos , porque os nao entendem bem ? Aliás fois obrigado a me explicar como he eíle myílerio das femcntes das arvores. Quem faz iílo ? di-^ zei-mo ? Chevãl, He a próvida Natureza, Baron, O' meu Irmão , por vida vofla en* finai-me onde mora eilk Madama , que \\\t quero ir fallar. Sem dúvida que a íua habilidade vence a de todos os homens juntos; porque fcrvindo-fe meramente do fucco da terra , e agua ^ e do calor do Sol, no meímo terreno aqui onde cahio hum figo ha de produzir figueiras , e cm cada huma mil figos , em cada figo dez mil granitos , em cada granito huma plan- tazinha pequena daquella efpecie , e com íal organização , que faia huma figueira graU' 12 Recreação Filofqflca. grande. E logo alli junto onde cahio hum caroço de pêcego , ha de fonnar hum bello pcccgueiro ; o qual tem conítrucçao totahriente diverla da figueira , nao ob- ítante nutrir-fe da mefma terra , e aguas , e calor do Sol. E eíTa arvore nao ha de^ dar figos , mas exccilentes pêcegos , for- moflíTimos na cor , cheiroíos , macios , goíloíbs , e cada hum com feu caroço, e na amêndoa delle hum novo embriíío • defla efpecie de arvore. Qjem faz ifto , meu Irmão, tem huma intelligencia paC- moía lòbre tudo ; quero ir fallar com el- la, dizei-me, onde a acharei? ChevaL A Natureza não falia , nem tem fciencia. Baron, Pois como comprehendeis vós qué tantas coufas maravilhofas , e delicadií- fimas fe facão fem huma caufa intelligen- te : dizei , comprehendeis iílo ? ChevaL Não me aperteis tanto , Baroneza ^ não entendo. Baron. Pois então não haveis de comer fi- gos 5 nem crer que os haja ; porquanto não comprehendeis como fe formem na arvore que os produz ; e diz o voílb Mef- tre que ninguém deve crer o que não comprehende. ChevaU Deixai-me fer amigo de figos , e pê- Tarde dezefeis* 13 pêccgos , e eu mandarei bugiar a máxi- ma de ílouíleau , fe pela feguir me haveis de condcmnar a tão cuílofa abílinencia. Baron, Logo nao fui eu gioílcira em cha- mar difparate a máxima de não crer na- da, que cu não poíía comprehender. Por confeguinte vede comiO por eíTe modo não pode ninguém livrar-fe das obrigações, qne todo o homem deve a Deos que o crecu. Perdoai , Theodoílo , a digreísao ; mas como eíle ponto de Fyfica vinha a propoíiro 5 e meu Irmão mt picou , foi precifo defpicar-me; que eu cm Fyfica . não liie tenho medo. ChevaL Eu o vejo ; mas vamos , Theodo- fio , ao que queríeis dizer. Theod, Eu fupponhoj, meu Chevalier, que dais por evidente que nós temos hum Creador que nos deo o fer ; porque ten- do nós exiítencia , e não podendo ter ex- iílencia por nós mefmo , alguém no-la havia de dar ; e eíle Pai , ou Avô , ou Biílivô de alguém havia de receber a exiílencia ., que não podia ter de fi mef- mo ; e vimos a parar n'um Creador, a quem chamamos Deos. ChevaL Ha homens tão efpeculativcs , que até dizem que não he evidente que ex- iílamos ^ nem que haja m.undo corpóreo y pnr- 14 Recreação Filojojtca. porque pódc fer que todos andemos Ib- nhando. Baron. Mas quem fonha também exifte. ChevaL Eftais mui adiantada , minha Ir*. maj mas nenhum homem dejuizo, meu Theodofio, duvida hoje de que haja hum Creador , hum Ente Supremo ^ que nos deo o fer. Theod, Logo deve o homem ter veneração , obediência , eamor aeíTe Deos , de quem recebeo o Ser , e que formou toda eíla belleza do Univerfo. Digo , que deve ter veneração , obediência , e amor ; por- quanto o feu Poder pede refpcito , e ve- neração ; a fua Superioridade pede obe- dieiicia ) a fua Bondade , e beneficência para comnofco pede amor : tudo nafce de hum principio , que he rcfleâ:ir no que Deos he , c tem fido para comnofco , e no que pouco a pouco iremos ponderan- do com odiícurfo. Ainda que vós, eu ^ c a Baroneza fejam.os catliolicos , e tenha- mos a luz da Fé , e Religião , apoiada nos fundamentos Divinos , com tudo , co-- mo tratamos eíte ponto em tom de Fi-* lofofos ; e vós , mai Chevalier, haveis de converlar com muitos de voíTos cá^ maradas , que não tem a vofla Religião ^ precifais de que nós o tratemos de mo- do. Tarde dezefeis, 15' do 5 que os poíTais convencer ; fe tiver- des com elles difputas ^ como voíTa Irma a cada paífo tem. ChevaL Approvo eíle methodo, que a to- dos ferve ; e ufemos fomente das armas da Razão, que he a única com que el- les iogão j e terei goíto de a manejar , de modo, que fique vencedor, c a ver- dade manifeíta. ^aron. Seja , ç nap percamos tempo, quç efta matéria he das. mais importantes que podemos tratar ; e góílo que yós , Cne- valier, que naturalmente haveis de com- municar com muitos incKcdulos , vades bem inítruido. ^Xheod, Quatro princípios pois me ocçor- rem agora, que obiigao o homem a ter rcfpeito , e amor ao ícu Creador j e são eítes : 1. As obrigações do Homem para com Deos , pelo que Deos fez no Ceo , fó para o homem. 2. As obrigações do Homem para com Deos , pelo que Deos fez na Terra , íb para o homem. 3. As obrigações do Homem para com Deos , pelo que Deos fez no corpo c humano, fó para o homem. 4. Ás obrigares do Homem para com \6 Recreação Filofojica, com Deos , pelo que Deos fez na noíTa alma , fó para o Jiomem. Em nada me va- lerei fenao das luzes da Razão , e da Fy- íica , que todos conhecem , ainda que fe- jão ímpios , c incrédulos. Deftes quatro artigos dimanao varias confequcncias ; e fe hoje nao pudermos tratar tudo , â manhã acabaremos o que não pudermos dizer hoje. Baron, líTo he que quero , Theodofio ; por- que pontos tão eflenciaes como eftes , não fe devem tratar á prcíTa, §.III. Das ohrigaçSes do Hemem para com Deos , pelo que Deos fez no Ceo , fomente para o Homem. Theod, A Qui brilhareis vós , Baroneza , JLjL porque vos fupponho lembrada do que vos enlinei na Aftronomia , e o Chevalier entendo que também não cita- rá efquecido. ChevaL Não me cfqueço das coufas mais notáveis , poflo que de números, e cál- culos eílcja efquecido. Theod, líTo nos baíta. Deixai-me agora fa* zçr huma pequena pintura deita grande Ca- iardc dezefeisi tf Cafa do Univerfo , que vemos feita pe- la mão do Artífice Supremo ; Cafa em que brilha tanto a fua Magnificência , Sa- bedoria , e Poder. Nada direi que não lèja hoje couía aíTcntada entre todos , ainda entre os ímpios, e incrédulos. Cheval. Fazeis bem niflb 5 porque á^íí^s acho eu no exercito muitos ; e quero fa- ber como hei de fallar com elles* V^heod. Eíle Globo terráqueo em que vive- mos , já fabeis que no feu Equador , ou Linha tem mais de 6 mil léguas de cir- cuito ( I ). Ora o Sol he hum milhão de vezes maior que ella ( 2 ) ^ e já com if- to o noíTo entendimento alarga muito os feios da fua comprehensao , para formar idéa do grande Poder de Decs que o for- mou 5 e que o confcrva (fendo huma immenfa fogueira ardendo , ) ( 3 ) c que o move 5 e governa , e faz obedecer a todas as luas Leis. Notai, Chevalier, ef. te ponto ; que eíTe Aftro pafmofo não tem intelligencia para faber as Leis de Deos ; e como eile em 6 mil annos não Tom, X. C tem ( I ) Léguas Portuguez^s de 18 ao gra'o , são 6.4S0. (2) Segundo as ultimas obfervações depois da ui« lima pafíagem de Vénus, he 1:435.02$. C O Tom. 111. CartuiVijpCQ-Mathtmât, pag.3 30. nZ Recreação Filofojica, tem deícrepndo delln*; , he evidente "que a Mao íupreina de Deos o governa.. Cheval. Dcfcançai , que eii não perco a mínima das voíTas palavras, e lhes dou todo o pezo. Thecd» Accrefcentai 5 que á roda dellc co- mo SãtelUtes 5 ou criados , faz Deos gy- rar Mercúrio em diílancia de 9 milhões de léguas ( i ). Vénus cm 18 milhões; e a nolTa Terra em 25" ; a qual , como já íabeis que eftá demonftrado fyíicamen- te 5 he hum Planeta. Baroíu Por íinal que bem me cuílou a crer iíTo , quando me cnfinaveis a Aílronomia ; mas citar o mar no Equador 6 léguas mais alto que nos Pólos , e lendo em to- da a parte a mefma agua , e cftar equi- librada cem a outra agua em toda a re- dondeza da Terra , me obrigou a crer , que no EqUvidor , e vizinhanças havia caufa que diminuiíTe a fua gravidade; o que não podia fer fenao a forca centri- fuga 5 procedida da iíia Rotação. Con- tinuai. Iheod. Muito mais longe do que a Terra . ..__ :.-,-.-.....-..-_._,_ fe ( i ) Filas diflancias e^lâo reduzidas' a léguas Por- tu^iuezas , que sáo inaiores que as Francezas ; porque eftcs sáo de 2$ ao grão , e as marinas de ao; e ás PortUgi^ezãs sã9 de iS. Tarde de&efeis. X^ fe eílende a jurifdicção do Sol , porque traz á roda de íi a Marte , não obílan- tc diítar delle 38 milhões de léguas ; e mais longe traz ( como cavallos na pica- ria á roda do Meítre) a Júpiter^ na diftancia de 130 milhões, :í Saturno ^ na diílancia de 238; e ultimamente ao Pla- neta novo Herfchel ^ ou Urano ^ quanto a mim na diílancia de 477 milhões de léguas 5 calculadas fobre o pcriodo ob- fervado de 8 2 annos ( i ). ChevaL Deílb nao fabia eu ainda; mas he pafmoía a attracçuo do Sol , ou a Gravi- dade de todos effes Aílros em tão gran- de diílancia , que cança a noíTa imagina- (jão para formar juíla idéa. Continuai* Theod, Ainda cança com mais razão, quan- do nós conhecemos que eíTes fugitivos Cometas , que ás vezes defappareccm por quinhentos annos , ainda lá neíTas Regiões , que parecera fora do Univerfo , não efcapão da jurifdicção do Sol ; porque queirão , ou não queirão , em todo eíle tempo de licença que tiverão , nao derão hum fó paílb fora dos limites que lhes prefcrevia o Sol com as leis das fuás or- C ii bi- — " - I ■ — — (1) Conforme a fegunda Lei de Keplçro , quo fe demonílra , os quadros de tempos periódicos são entre fi como os ctòos das diiiancias ao Sol. lo Recreação Tihfofica. bitas; cUe os faz vir ás fuás ordens no^ PeriheJios , quando he o tempo perfixo. A que immenfa diílancia vai logo a ju- rlfdicção do Sol , quando até nos Aphe- lios dos Cometas governa fem a mini- ma falência. Baron, Dizeis bem , que a imaginação can- cã quando quer formar huma idca pro- porcionada ao que a razão períiiade , e a experiência. Cheval, Mas o entendimento caminha tão feí^uro nos feus cálculos neíTas diftancias immenfas , como os Geógrafos nas medi- das que fazem íbbre a fuperficic da Terra. Donoe fe vê , minha Irma , a razão que Theodofio tinha quando na Lógica nos fazia ver a fuperioridade das Idéas do entendimento fobre as Idéas da imagi- nação ( I ). Theod. Ora efta immenfa vaílidão de Es- paços, que o entendimento he obrigado a confeíTar , he a cafa que o Creador fez fó para o Sol, e para a fua familia : vede como hc grande , magnifica , e efpaçofa ! Mas não he eíla a fala principal do Pa- lácio viíivel do Omnipotente. Baron, Que dizeis , Theodofio ! pois que ou- ( I ) Lógica Tarde 3*. §. i. . Tarde dezefeis. 21 outra fala dcfcubris com os olhos da Fi- lofofia ? que lá no que vai no Palácio invifivel, náo quero fallar. Theod, Já vosdifle, que eu como Filofofo não quero fallar fenuo no que os olhos vem , e até os do ímpio , e incrédulo. Ora tende paciência. Toda eíta vaíllílima fala deílinada para o Sol, eíiia familia, he hiimqiiaíi nada a reípeito do que nós alcançamos com os olhos ; porque haveis de fabcr que cada huma das Eílreilas he iium Sol, de cuja grandeza, nem da fua diílancia nada fe pede calcular. Os Ma- thematicos as repartem em leis claflcs, conforme a claridade da luz que nellas conhecemos \ porém as que chamáo da 6. claíle , ou magnitude , e na apparen- cia mínimas , talvez que fejao maiores que o Sol , porque a fua diílancia as pode fazer tão pequenas. Se todas eítiveííem engaíladas como diamantes neíTa aboba- da celeíle , então coníiderando-as na mef- ma diílancia , era fácil pela diverfidade da luz conhecer a da fua grandeza ; po- rém hoje fe labe que eífa idéa do vulgo he falfiíTima , e que eíTes efpaços celeíles cilão vafios. Com que , cada Ejirella he hwm Sol ^ que talvez terá fua particu- lar familia de planetas, como o Sol tem a tt Recreação Filofoflca. a fua ; mas iíTo he conjeélura de que fe nâo deve fazer cafo. Vamos ao cerro. ChevaL Acho-vos razão : não miftu remos coufas certas com meras conjeóturas. Theod. O Syrius ^ omQ^rdWáoCãogran-* de ^ que he huma conítellação mui co- nhecida, he a eftrella mais brilhante de todas (talvez por eftar mais perto) diz o Wolfio , que he ao menos loo vezes maior que o Sol. Baron, E como calcula elle iíTo ? Theod. Dcíle modo : Primeiramente falia da fua diftancia , e a compara com a maior que fc pode conhecer com inftru- mentos j que he tão enormemente gran- de 5 que o diâmetro da Orbita da Ter- ra 5 que importa em mais de 5*0 milhões de léguas, não he bafe feníivcl doTrian-^ guio viíivel , que vá a qualquer eílrella : e diz aífim : Syrius não cuá neífa dif- tancia ; porque então poderíamos conhe- cer nos inílrumentos , o que certamente não podemos \ logo cílá muito mais lon- ge. Ora fupponhamos que o noílb Sol fe affaftava para eíla diftancia máxima fen- iivel 5 como por outra parte fabcmos , que a luz diminue na razão inverfa do quadrado das diftancias , conhecemos quanto diminuiria a luz do Sol, fe eíti^ vef^ Tarde dezefeis. 2^ - veíTe neíla diílancia máxima fenfivel ; e achamos que feria muito menor que a luz que nos vem de Syrius : logo Syiius he muito maior que o Sol, pois que nos dl - luz maior que elie daria , íè lá cíliveíle. Barojí. Agora entendo. Theod. Ora ílippoílo ifto , que conceito de- vemos fazer defics infinitos Soes que ve- mos no Firmamento ? Flamíledio contou as cílrellas que fe podem ver com os olhos nus, iíto lie, fem Telefcopios, e achou ■ 3.004.; porém hum Aílronomo , não fei le he o Reàa , ufando de Telefcopios , fó no cinto de Orion , que vulgarmente chamáo os tj^-es Reis ^ achou duas mil. Além diílb na Fia lafíea , que o vulgo chama o Caminho de Sant-lago , e os '. antigos diziáo que era o Leite de Vénus entornado^ fó neífa parte do Ceo j en^u- ma Nubecula aujiral fe achao com os Te-" lefcopios eílrellas abfolutamente inmur.e- raveis. Ora fendo cada huma delias hum formoíiííimo Sol , cuja luz nos he quafi imperceptível pela enormiíTima diílancia : em que eítao , que conceito devemos fa- zer do Ceo ? Cheval. Sem dizerdes mais , confeíTo , Theodofio , que o meu entendimento forma dos Ceos outra idéa infinitamente 01a- Z4 Recreação Filofoftca. maior , c mais perfeita , do que d'anteí fazia. Baron. Vede , meu Irmão , que pafmofa lie a cafa viíivel de Deos ; pois que fó pa-» ra alumiar eíTa vaíliíTima loja do feu Pa- lácio, que tem debaixo de feus pés, ahi collocou tantos mil lampiões , fendo ca^ da hum delles como o Sol. Que grande he o Dono de Palácio fcmelhante ! ChevaL Nunca, minha Irma, nunca íiz do Ceo femelhante idéa. Baron, Nem também do Dono , e Sobera-* no Senhor, que nelle habita. ChevaL Tendes razão j mas continuai , Theodofio, Theod, Agora quero que deis attcnçao a huma pergunta que vos faço , como Fi- lo fofo : Para qUem fez tudo rjlo o Crea-. dor ? Seria acafo fem fim algum ? * ChevaL He injuriofa a pergunta. Baron. Pois feria acafo para recreação dos Anjos ? ChevaL Que loucura , minha Irmã , o di-? zer iíío ! Porquanto todos fabem que os Anjos não tem olhos corpóreos , que fe recreem com a luz , e objedos vifiveis. Offerecer cíTe belliílimo Efpedlaculo aos Anjos , era como mcftrar huma pintura de Rafael a huma paredç. Com que ^ Ba-r Tarde dezefeis. 25' Baroneza, não são os Anjos para quem Dcos fez efta bclliffima Arquiteftura lu- minofa dos Efpaços , c Corpos celeftes. Baron, Vós , Chevalier, olhais para mim! E eu ólho para vós : rcfpondei pois á pergunta de Theodoíio. ChevaL Vós , Tiicodofío , conduzis o nof- fo entendimento por hum tal modo, que nos não deixais liberdade , e fempre o levais ao voíTo fím. Não , não são os An- jos do Ceo os que Deos quiz recrear , quando ideou , e executou toda eíTa paf- mofiílima fabrica dos Ceos , que com os olhos citamos vendo ; fabrica tal , que jiem ainda vendo-a com os olhos, apo- demos affás comprehender, nem admirar. Theod, Logo foi Jó para recreio do Homem : porquanto os brutos, que Deos fez andar íèmpre com os olhos na terra , nenhum recreio podem ter nos aftros do Ceo. Com que , meus amigos , tudo o quç vos te- nho dito , e vós vedes , confeíTais que Deos o fez fó com o fim de recrear os olhos , e o entendimento do homem. Baron. Quanto deve o homem a Deos ! ChevaL Nunca ouvi coufa que mais me con^ fundiííe, e convenceíTe. Theod. Vede agora , amigo , com que rai- ya j e defprezp íç dçve ouvir , qúe na AP 26 Recreação Filofojica, AíTemblea de Paris houveíTe quem clara- mente perfuadiíle , que fe eílabeleceílein em Paris três cadeiras , em que fe cníi- naíTe o Atheifmo ^ para que os povos ^- calTem labendo que não havia Deos. Cheval, EíTa blasfémia , que os Francezes não podem negar, porque anda nos pa- peis públicos 5 fera huma nódoa indelé- vel da Nação Franceza , nefe frenefí em • que anda. Vamos adiante , Theodofio , e demos graças a Deos de lá não cílar- mos, §. IV. Do ref peito que deve o Homem aDeos^ vendo o que Deos fez no Ceo fó para o Homem* Theed. /^^ ^^ adiantemos mais o difcur- V-^ fo 5 torno a perguntar : Acafo o Supremo Senhor ( cujas obras são regu- ' ladas por jiuma fabcdoria , e reftidão lli- prema) faria eíla maraviihofa fabrica dos Ceos , fem ter fim algum ? Baron. líTo he impoíTivel. Nenhuma caufa • intelligente obra fem fim j e além diíTo , como pode haver harmonia, e proporção ' entre as partes de huma grande Máqui- na , fem haver hum Fim , o qual vá diri- gindo tudo? Theod. Tarde ãezefeis. S7 Theoã, Bem efti. Ora eíTe Fim feria acafo liíòngear meramente a viíta do homem , e recrear o leu entendimento , dando aos olhos hum tao brilhante, e kiminoíb ef- peftaculo , c ao juizo huma rao comple- ta Maravilha ? Seria eíle o Fim princi- pal deíla obra 5 em que parece queDcos empenhou a fua Omnipotência, e a fua fabedoiia fcm limite ? E iílo de forte , que havendo lifongeado o homem , ficaf- fe Deos fatisfeito , fem ter mais nada que efperar ? ChevaL EíTe fím feria tao vil como o ho- mem , a quem principalmente fe dirigia ; e nao feria hum Fim digno do Ser fu- premo. Theod, Dizeis bem. O Fim que o Creador teve neíla pafmofa fabrica dos Ceos , foi certamente muito mais nobre. Baron, E qual foi ? que certamente foi a noiTo refpeito. Theod. Eu o digo. Coftumão na Terra os grandes fenhores , e principalmente os Soberanos , fazer para fua habitação Pa- lácios mngniíicos , e pompofos , em que a grande fábrica de Pórticos , de Átrios , de Columnas , de Eftatuas , de Obelií- cos , e Torreões , &c. façao gerar na ca- beia dps povos 3 que IJies eftao fujeitos , a8 Recreação Filofofica. huma alta idéa da grandeza do Senhor, que ahi habita. E eíta idéa da Grande- za do morador não he huma vaidade ociofa , e inútil ; porquanto aos povos, que lhes eílao fujeitos , he neceílaria pa- ra a Obediência , e Sujeição refpeitoja , que depende da Grandeza , e Poder de Soberano. Ora eíla Grandeza , e eíte Po- der fe inculcão pela Magnificência , e pom- pa do Palácio. Outro tanto digo agora a refpeito de Deos , e de nós. Mas eu que- ro que me deixeis filofofar hum pouco nefta matéria. Baron, Difcorrei quanto quizcrdes , que vos ouvimos bem goílofos , e nao poupeis reflexão alguma. Theod. O coração do homem he natural- mente altivo ; ou feja porque Deos o creou fuperior a todas as demais creatu- ras corpóreas , dando-lhe dotes que a mais ningiicm deo; ou por outros principies, que agora não fazem ao ponto. Cuífa-lhe muito humilhar-fe , é abater-fe ; e dei- xai-me dizer affim , o homem natural- mente tem grande diíEculdade em dobrar opefcoço, e inclinar a cabeça. Ora Deos vê por outra parte que a fujeição no ho- mem he precifa , e indifpenfavcl ; porque não lie o homem o Ser lupremo y e aíTim de- Tarde dezefeis, 29 deve obedecer a Deos , e deve fujeirar- le ; e para que elle o faça fem cuílo , lhe poe diante dos olhos liuma tal magni- ficência do ieu Palácio , que ainda erguen- do muito o homem a cabeça da fua al- tivez , lhe fique muito inferior , e fe re- conheça vil 5 humilde , e pequenino á viP ta do leu Creador. 'Baron, Se pela Grandeza dos Palácios for- mão os homens idéa da Grandeza , e Po- der dos Senhores , que os formarão para fua habirac^ão , de que modo , m^eu Che- valier , podia Deos gerar em nós huma alta idéa da fua ineítavel Grandeza , fe- não dando-nos a conhecer a pafmofa fa- brica do? Ceos 3 que o noílb Meílrc nos tem moílrado ? ChevaL Eu confeíTo, que pela boa educa- ção que noílbs pais nos derão , e pela Pve- ligião que fempre profeffei , fempre fiz da Grandeza de Deos huma idéa cheia de refpeito ; mas tanto como agora , não, Baron. O mefmo confcíTo eu. Tbeod, Logo cora a idéa da Pompa ^ e Grandeza , e incomprehenfivel magnificên- cia deíTe Palácio celeíte , devemos unir a idéa da Grandeza do Creador , que o fa- bricou para fua morada \ e devemos per- fuadir-nos , que quando o Senhor poz o ho- go Recreação Filofojica» homem na Terra , com olhos para ver os Ceos 5 e entendimento para diícorrer no que nelles via , em certo modo lhe dizia : Olha para o meu Falado , para conhe^ cer de algum modo quem eu fou , ppjlo que me não pojfas "jer, Elle, meus ami- gos 5 foi o íim ( quanto ao meu parecer) que Deos teve em tanta belleza , e ma- gnificência. Que me dizeis ? Baron, Não pode haver difcurfo mais na- tural á razão humana , mais decente a Deos. ChevaL Vós, Theodofio , com ovoílb diP. curfo tendes pouco a pouco alargado os eftreitos feios da noíTa intelligencia , pa- ra formar huma idéa da Grandeza de Deos, que eu nunca efperci fcrmalla tão grande. Theod, Ainda vos não diíTe tudo. Não he cííb fó o Lim 5 que Deos teve na fabrica dos Ceos ; porque cila idéa da fua inef- hvcl Grandeza y e Poder deve gerar em nós huma natural inch*nação a render-lhc inteira Obediência \ porquanto nos caii- ía horror que hum vil bichinho da terra, que nada pode , fe atreva a refiílir ás or- dens do Ser fupremo , de cujo Poder, e Grandeza cílamos tão perfuadidos. Ahi tendes, Chevalier, outro fim ulterior, que he Tarde de ze féis, 31 he bem conforme á Razáo , c bem de- cente a Dcos. ChevaL Eu admiro , Theodofio , como o Creador foi conduzindo a noíTa vontade livre a eílk perfeita Obediência , fem to- car nem levilHmamente nos direitos da fi- dalguia de noíTo livre alvedrio. Quecou- fa táo bella , e tão nobre , e tão decente obrigar-nos a eíle rendimento , e obedi- • encia lem o menor conílrangi mento, nem oppreísao. Ah , Baroneza , que reflexões tão nobres 5 tao verdadeiras, e tíío úteis! Barofj. C^anto mais fóbe no noílb entendi- mento á idéa da Grandeza de Deos , c do feu immcnfo Foder , tanto mais pe- queninos nos achamos diante delle ; e já íicao mais íiexiveis os joelhos da noíla vontade ciltiva ^ conhecendo que a altivez he fummamente defarrezoada , e louca. Theod, Ora já que tão facilmente concor- dais comigo 5 e vós , Chevalier , eílais tão bem difpoílo para admittir as minhas inítrucqõcs , que talvez vos ferao na Tro- pa bem precifas, não quero occultar-vos nada do que o meu diícurfo conhece. ChevaL Não occulteis y vos peço ; porque no Exercito lido com miuitos ímpios , e convém fortificar-me para não fer venci- do. Theod. 3^ Recreação Filofofíca. Theod. Temos fallado no Fim que (c\^c o Creador , quando formou eíta admirável obra dos Ceos , que he dar-nos modo de form.ar huma idéa da fua Grandeza , c Poder \ e iíTo para que nós fem violência , nem menos-cabo do noflb livre alvedrio lhe rendamos Obedieitcia perfeita , e moí- tremos fumnia fujeiçao j mas não eítá dito tudo. Baron, Pois que mais ? O Chcvalier vo-lo pedio , e cu não o defmercço. Theod. O grande Fim das obras de Deos não he receber das fuás creaturas louvor, obediência, obfequios *, na minha Filo- fofia não he receber de nós y he Dar* Se- ja-me licito dar toda a liberdade ao meu génio fílofofico. Acho indigno áohífini- to y fazer obras grandes , e eftrondofas para o fim ultimo de receber das fuás creaturas. Que pobre fe mcílraria o mar, íc fizcíTe grandes diligencias , para que fe vafaílem nelle as fontes que dos aJtos montes vem atropelando feixes , c pedras até cahirem nelle ? A gloria do Infinito he Dar ; e querendo o Creador fazer o homem feliz , para ter pé e motivo de o fazer com redidão, e gloria do mef- mo homem , difpoe que lhe obedeça, e fe Ihefujeite, para então deíafogar nel- le Tarde dezefeis. 33 le (deixai-me explicar aflim) a Immen- fa Bondade, que tinha as riquezas inex- hauriveis dos léus Theíburos reprezadas j cm quanto não tiveííe creaturas a quem as dar ; e para iíTo fez o homem livre pa- ra poder merecer ; e moítrou-lhe de al- gum modo quem Elle era , para que lhe não cuítaíTc a fujeiçao , e preparou re- compenfás indizíveis ao feu merecimento. Vedes que deite modo o Fim ultimo deíTa paímofa fabrica dds Ceos veio a redun- dar na noíTa felicidade. Barón. Ah Theodofio , e que refpcito de- vemos a Deos ^ e não fó refpeito > mas at tenção , e amor ! Cheval, Que confusão he a nofía ! Que loucura ! Que groíTcria , quando em huma noite íèrena olhamos para o Ceo eítrelb- do 5 e em nada mais refleílimos que na fua brilhante bcllcza ! Baron. Ha muitos tempos que cu nao me contentava com iíTo ; mas induítriada por Theodofio , me applicava a conhecer os Planetas , reparar nos feus movimentos, &c. porém agora de outro género ha-de fer o meu contentamento, quando nas noites fcrenas eftiver lendo por cílb livro azul , em que com caradleres de luz , Deos me dá a ler a fua Grandeza , o feu Po- Tom. X D der. 34 Recreação Filofofica. ^ der ,' a fua Gloria , a fua Beneficência , e o direito que tem ás minhas adoraçoe? , obediência , e rendimento ; e ao mefmo tempo as fuás benéficas Intenções de me • fazer feliz , e premiar pelos meus cbfe- quios. Bafta ^ Thcodofio , dcíle ponto, que o meu entendimento cança. Eiperai- me hum pouco que vou a minha Mai , que peio que oujo preciía de mim : nao me demoro. §. V. Das obrigações do Homem para comDeoSy pelo queDeos fez na Terra ^ fomente para o Homem, Baron, O E tenho tardado , defculpai-me, O que não foi voluntária a aulen- cia , nem a demora. Continuemos j Tlieo- doíio. Theod. Já ponderámos , Senhora , as obri- gações que deve o homem a Deos pelo • que Deos fez nos Ceos fomente para o ,' homem. Vós vos admimílc? , e o Cheva- • lier. Náo caufa menor admiração a hum efpirito , que refle5 qual lhe dará a íignifxnçao que qui^ 5> zer , conforme o fyítema que tiver abra-^ jj çado. Alguns entenderão por eíta pa- 55 lavra huma Intelligencia increada , e j5 Omnipotente ; outros huma caufa cé^ » ga , da qual nós não conhecemos fe- 55 não os eífeitos , e da qual não pode- 55 mos adivinhar o caradter , nem as 55 qualidades. Mas dem-lhe o fentido que 5) lhe derem , eu tenho vifto que efta pa- 55 lavra Natureza faz hum bello eífeito í5 nos efcritos dos noílbs Filofofos. 55 Não diz mais nada. Baron, A primeira intelligencia he a de Theodofio , a fçgunda hç: a do Acafo , quQ 5^4 Recreação Filofofica. que vós , meu Irmão , já tendes por cou- fa irriforia. Continuai, Tlieodoílo. Theod, Crcdc-mc , Chevalier , que tenho meditado muito niíto , e lido baítíinte : fe por Natureza não entendem a Mão de Deos obrando ^ fegundo ofeu cojiume , na- da dizem que íe entenda. Qiiando Deos obra conforme o feu coílume , iíTo lie que fe chama Lei da Natureza, Quan- do obrar contra o coílume , he milagre y tudo o demais são palavras inventadas , para enganar efpiritos de crianças , que não profundão , e fe conrentao com as palavras fonoras , de InftinEto , Qualida^ de occulta^ Virtude fympatica ^ 'Propen- são nativa , Virtude attraãivaj Virtude repulfiva^ Virtude a^iva ^ &c. e outras femelhantes ; porque fe entenderem por el- las coufa cega , privada de intelligencia , eíTa não pode feguir leis conílantes^que não variem , variando as circumítancias , co^ mo he a Gravidade, &c. e já fe vê, que eíla caufa não pódc fazer es eífeitos confian- tes , que attribuimos a Natureza ; e fe en- tenderem caufa Inrelligente, para gover- nar todos os eíFeitos naturacs , conforme a variedade , e uniformidade das circum- ftancias , he indifpenfavel que tenha fum- ma Intelligencia , e fummo Poder ^ e iílo fó p ódc fer Deos. Che- Tarde dezefeis. jç ChcvaL Não poíTo refiítír ; mas também , meu amigo , parece-me coula indecente , para hum Ente Supremo , o eftar pela fua própria Mao obrando em todos 03 ef- fcitos naturaes. Vejo-me entalado entre duas difficuldades , que eu nao fei difíbl- vçr i e ( perdoai-mc , amigo ) nunca po- derei admirtir no meu entendimento hu- ma couía a que elle me efcá repugnan- do. E quanto mais foberano confidero o Ente Supremo ^ A uthor de todas eíTas ma- ravilhas incomprehcaíiveis , tanto mais indigno acho delíe que fe abaixe , e te- nha necelFidade de trabalhar com a fua própria Mão nos miniílerios mais humil- des. Não , meu Theodofio , não : fique- mos n'um honrado fepticiíino , e diga- mos que não fabemos. Theod, Ah meu Chevaiier , que vós ainda tendes algumas preoccupaqóes que vos fi- carão da infância : preoccupajões que tam- bém eu tive muitos annos , até que a Fi- lofofia me abrio os olhos : ouvi-me em ChevaL Com goílo : dizei o que quizer- des. Theod. Coíluma o vulgo attribuir a Deos todos os defeitos que achamos na natu-, reza dos homens. Cuidamos que Elle tam- bém. yó Recreação Filofofica. bem fe lia-de cançar com obrar em mui-, tos lugares ao mefmo tempo , ou que lhe ha-de entontecer a cabeça o eftar cuidando fcmpre em todas ascoufas que fuccedem no mundo. Ora vós nao cre- des que Deos lie Immenfo ? e que não ha parre no Unlverfo , na qual Elle náo ef- teja fyíicamente prefente ? Porquanto o Infinito fabeis que nao pode ter limites na fua preíènça. Nao credos que todo o Univerfo eftá fechado na fua Mão ? na- quella mefma Mao que o formou , e que o conferya ? Nao credes que o feu juizo he infinito , e que Elle quando a cada creatura dco ordem para o que faz nci- las a Bella Natureza , Elle he que as executa ? Porquanto as creaturas infenfír veis nem tem ouvidos para perceber eí- fas ordens , nem juizo para as entendc-r rem. Não credes , digo , que Elle na for- maçlo das creauiras he que eíleve em cada huma delias combinando os meios com os fins; eiíTo com tanto defafogo, e defcanço , como a perfeição de cada huma nos faz crer. Ora como quereis canfar o Infinito ? e enfraquecer o que Tudo pádc ? Deixai-me ufar de huma compara- rão fenfiyel , que me parece que vos ha- . '". de Tarde ãezefeis. yj de convencer. Canfar-fe-ha o Sol de ef- tar ao mefmo tempo alumiando todos os Planetas em tão deíiguaes diítancias , at- tendendo aos Satellites de cada qual , e também a nós cá na terra ? e iflb lèm deixar canto , nem recanto que nao illu- mine , com tanto defenfado , como fe na- da mais tiveíTe que fazer efle Monarca das luzes ? Lá eítá governando os Pla- netas lèm os deixar Icguír as Tangentes , como o íèu movimento appetecia. Lá eílá prendendo os Cometas fugitivos nos fcus Aphelios íummamente diftantes , fa-*, zendo-os voltar para junto delle acabada a licença que lhes dera. Lá fcm fe per- turbar faz gyrar a cada Planeta cxaéla- mente no tempo prefcripto a cada hum delles , fegundo a fua diftancia \ e neíTe mefmo tempo , cá na terra eílá confolan^ do o caracol , que fahindo em parte da fua cafca , fe eílá recreando com o feu benéfico calor ; cá eílá fomentando a nu- trição náo fó das arvores altas , e fion- dofas , que fe levantáo a receber os feus dourados raios , mas também da humil- de ortiga ^ que todos dcfprezao ', e nos jardins vai abrindo as flores acanhadas , que de noite, dobrando c encolhendo as rolhas ;, lhes feçhavãp a fua porta , que neir^ 5 8 Recreação Filofofica* nem alndn: á Lua queriíío abrir. A tu- do igualmente arrende o Sol ; de forma , que em todo o Orbe , em todos os cli- mas , e regiões , fem lhe efcapar nem o centro da Cafraria , nem os Certões da America , ou as Terras Auflraes defco- nhecidas , náo ha canrinlio em que o Sol não entre a liberalizar as luas luzes. Ide , ide ver fe o Sol fe efquece de confolar o pobre mendigo , que no recanto de duas paredes velhas efli remendando os feus trapos com .que de noite fe abriga. : Ide , digo , ver íè o Sol fe efquece dcl- le 5 por ter que governar a fua numero- fa familia celeílc. Se vos não julgais in- digno do Sol , tendo tantas , e tão im- portantes occupaçoes, o eftar defenfadado , cuidando em coiilas tão pequeninas , e de nenhuma importância ; e percebeis bel- Jamente como pode fem fadiga , nem atarantarão acudir a tudo : Deos que o fez, Deos que o tem na fua Mão, Deos que he o fupremo Ser , e Infinito , como não podeis perceber que fem indecencia cuide em tudo ! ChevaL Acho-vos razão. Sim he coufa in- digna, de hum grande Monarca terreno o cuidar , fe dão bom trigo ás gallinhas da fua capoeira , ou femelhante ridícula- riaj Tarde ckzefeis. yp ria ; porque quem occupa a fua cabeça com femelhantes cuidados , não a pode ter defembaraçada para os importantes negócios do governo dos feus Eílados : cabeça limitada quanto mais íe occupa com huns cuidados, menos lugar lhe fi- ca para os outros; porém Deos nao tem cabeça limitada , nem braços curtos , nem mãos débeis. Ora , meu amigo , confeílb que a minha dúvida tinha por bafe a pre- occupação do vulgo , que cuida que o Omnipotente tem a mefma fraqueza que fe acha nos homens. Baron» Quanto me alegro , meu Irmão. ChevaL Eu no meu Regimento , e nos empregos da Guerra não tenho o vagar para diicorrer como Theodoíio tem ^ nem o génio de verdadeiro Filofofo , que íèm- pre difcorre fobre princípios folidos , e não fobre máximas commuaSp ou autho- ridade de homens. Eílou convencido ; que mais quereis ^ Baroneza ? Theoã. He logo certo , meuChevalier, que Deos com a ília Mao he que eíteve en- feitando os paílarinhos, pintando as flo- res , aííazonando as frutas , perfumando humas , affermofeando outras , tudo em ordem a lifongear os fentidos do hom.era. Digo 5 do homem, porque nem os An- jos 6o Recreação Filofofica. jos comem fruta , nem os brutos a pro- váo , nem creatura alguma íc aproveita delias 5 íènáo unicamente o homem. Sim , ou não ? que dizeis , Chcvalier ? . ChevaL Que quereis que diga ? Sim , fim , fim. Theod. A^QYtó-YOs defte modo; porque os voUbs camaradas liaviao de dizer: Não y e mais 72 ão. Cbeual. Sem diivida; mas difcorrendo co- mo vós difcorrcis , haviâo de dizer co- mo eu , e como vós. Baron, Dou-vos , Theodoílo , o parabém defta vidloria fobre o entendimento de Chevalier ; porém eu ainda não vejo bem qual iêja o fim a que v()s dirigiíles eíla longa digrefsao , c goftofo difcurfo ; pof- to que na verdade nos lifongcia mu iro, ver que o Omnipotente cm^penliaíTe o feu Poder , e a fua Sabedoria em lifongear os fentidos deíle pequenino bicho da ter- ra , que chamâo Homem, Declarai-vos , Theodofio. Theoã. O fim a que eu tenho na hiinha mente conduzido todo eíle difcurfo, não foi lifongear o homem, mas pôr-lhe di- ante dos olhos a obrigação que elle tem de amar a feu De^s ; ainda prefcindin- 4o da Religião ; que cfle ponto deve tra- tar- Tarde dec^efeis^ 6l tar-fe a parte. Eu diícorro da fua obri- gação 5 meramente como homem. €heval. Diílo lie que fe trata no Artigo da Filofofia. Vamos a iíFo , Theodofio , que • góíto de vos ouvir. Ah minha Irma ^ que íois feliz em ter quem conduza o voílb entendimento com paíTos tão feguros , e ao mefmo tempo com hum archote tno luminofo 5 que encantando-vos com a ília hiz 5 vos certifica das verdades confola- doras que vos defcobre. Continuai ^ meu Theodofio. §. VL t)o amor que o Homem deve ao Creaâor y pelo que fez nefie Globo da Terra ^ fó para o homem. Baron. XT Unca vos vi , meu Irmão , tao X^ attento aos difcurfos de Tiíeo»- doíio como agora. ChevaL He porque o meu .entendimento acha nos fcus difcurfos huma clareza que recreia , e huma força que goílofamente me leva a verdade ; e nada ha que agra- de mais do que conhecella ; nada que en- cante mais do que abraçaíla. Tbeod. He logo verdade conhecida , que Deos eíleve de propofitu lifongeando os fen- 62 Recreação Filofojica, fentidos do homem , quando no princi- pio formou efte Globo terráqueo para clle. Baron. Perdoai-me, Theodofio, que ainda tenho hum efcrupulo , que por obfequio a meu Irmão quero declarar, e que fer- virá de illuftrardes mais a voíTa verdade. E náo faria o Creador iíío , não para li- fongear os íèntidos do homem , mas pa- ra íatisfazer meramente aos deveres da fua Providencia ? Porquanto fendo noíTo Pai , creando-nos , havia de fazer as obriga- ções de Pai, fuílentando-nos a vida que voluntariamente nos dera. Não pcdiamos dizer iílo ? ChevaL Confenti , minha Irma , que vos dê hum abraço , porque lie a primeira vez que vos vejo replicar a Thcodofio em meu abono. Baron» Ah meuChevalier, eílá-me dizendo o coração , que brevemente vos pagarei cíle abraço para vos levantar do chão, vcndo-vcs cahido aos pés do noíToMef- tre. Dizei, Theodofio. T^heod, E não reparais vós ambos na difFc- rença com queDeos alimenta os brutos, ao modo com que recreia os homens ? Aos brutos como Creador coníèrva a vi- da que lhes deo , fornecendo-lhes o fuf- ten- Tarde dezefâs. 63 tento nas hervas que a terra efpontane- a mente produz : e moílra niíTo por ven- tura o Creadcr a refpeiro dos brutos , aquelle cuidado em lhes pôr liuma ineza de tão delicadas iguarias , e tão varias, como já vos moftrei, que preparou para os homens ? Que immeníidadc de frutas, &c. Ah, que vós efquecei-vos do que ha pouco diílemcs. Dcos nada faz á toa , e fem fm particular em cada coufa que obra. Se Deos não tiveíTe outro íim no que creou neíle Globo , fenão o íuílen- t?.r-nos a vida , cílavamos na claííe dos animaes, que com a herva , e frutas ef- pontaneas vivem, e fe fuítentão. Mas a nós Chevalier. Não digais mais , Thecdo- íio ; porque a diveríidade de frutas cm lium pomar bem cultivado; a fua diver- fa cor em cada hum^a das efpecies , a fua figura , o feu perfum.e, o fabor, e graça inimitável ; e iflb fem que haja fruta in- teiramente femelhante á outra j o cuida- do de variar as fuás efpecies , conforme as diverfas fazocs do anno ; a providen- cia de fazer durar as laranjas dez m.ezes no anno , e os limões dcces em todo el- le \ o dar pomos que fó no fim do ou- . tono fe colhem , e por todo o inverno nos 64 Recrea,ção Filofófica. nos regalão , como sao os peros de mil elpecies , não havendo entre eílcs frutos hum que náo tenha feu íhl , fua galan- teria diverfa das precedentes, bem mof- tra que oCreador não olhou fomente ao noílb fuílento , m^as a lifongear os noP fos fen tidos. Não vos agradeço , minha Irmã 5 a réplica que me fizeíies , e vejo que foi mal merecido o abraço que vos dei. Bãron. Pois , meu Irmão , eu não quero nada mal levado ; eu vo-lo reíliruo com juros , porque vo-lo dou bem apertado , e iílb porque góílo de ver a candura do voiTo coração. Continuai, Thecdoíio, e perdoai-me a interrupc^ao , que coítum.ado citais a illb. Tkeod, Ora , meu Chevaíier ^ vós me ha- veis agora de illuílrar n'um embaraço em que citou : tendes juizo claro, e não vos levais cegamente da primeira apparencia das couías. O Omnipotente fez iílo que eítá ponderado ; e fello cm todo o or- be , fempre olhando para o commodo , utilidade , e deleite do homem : e feria eíte o ultimo fim de tão proporcionadas obras , (dcixai-me explicar aífim) tão eítudadas , e tão próprias de huma fabe- doria Divina ? Seria eíTa figurinha quaíi de Tarde dezefeis. 6^ de nada 5 que dumio Homem , oíím ul- timo a que olhaíle Deos , empenhando a fua fabedorida , e Omnipotência ? Con- fiderai bem , e refpondei. ChevaL Nunca tal pergunta íè me fez : que- ro penfar hum pouco . , . Nao acho que o regalo de homem íeja hum fim ultimo digno de femelhante empenho de Deos. Theod, Eis-ahi o embaraço em que eu ef- tava : embaraço (a fallar com lizura) para o dizer , nao para o entender. Che- valier, as obras de Deos íèmpre deveitl fer dignas de Deos , e os fins que Eile fe propócrn , quando faz alguma coufa , íempre devem fer dignos delle. Ora ter o homem goíto de comer morangos v. g. ou ouvir ospaíTarinhos, ou recrear-fe, vendo bellas flores , nao he fim ultimo digno de Deos. O íimples regalo de huma creaturinha , que diante de Deos eílá hum furo aíhma do Nada ^ não pode fer o fim ultimo dos cuidados de hum Deos , nem da fua Sabedoria , e Poder. Que fe- ja eíte o fim próximo , nao podemos ne- gar j porque a iífo vemos que eíTas obras em todas as fuás circunílancias fe diri- gem ; mas que Deos pare ahi , fem di- rigir qÇíz obfequio , e commodidade , c gollo do homem a mais algum fim , não ^om, X. F pó- 66 Re&eação Filofofica, ^ pódc kr. Era como íè fc abalaíTem ex- ércitos formidáveis , para que hum ho- mem tomafíe a moda de hum chapeo redondo , ou de três ventos. Dcos algu- ma coufa intentou , quando quiz obfequiar o homem , do modo que temos ponde- rado. ChevaL Bem vos entendo , Bnroneza , com efiè modo de olhar para mim: nao dei- xo de prever o fim que leva Theodo- fio nefta maneira de diícorrer, ^heod, P^allcmos claro , Chevalier , e de- mos ao entendimento de hum Fiioíofo toda a liberdade que elie merece. Atten- dei-me. Dcos concedeo ao homem hum livre alvedrio mui fidalgo , que níío con- fente prizao , nem goíla de preceitos , porque blazona da iiia liberdade ; e Decs que Jha deo , nao quer nem tirar-lha , nem levemente tccar nas fímbrias do fcu derpotiihio. A fua Drcina Razão llie diz 5 que o homem fendo ereatura racio- nal, e livre , deve amar o que he fum- ma mente amável : que cfte amor da par- te do homem a reíjpeito de Deos , tem duas bcllezas , huma he da Reóíidao , amando o que he amável ; outra he de " Gratidão j e reconhecimento, amando a quem lhe fez tanto bem. Para Deos con- fe- Tard^ dezefeis» 67 íègulr efte fíni , fem tocar levemente nos direitos da liberdade , vede o que faz ? Lifongeou o goíto do homem por todos os modos 5 regalando-o em todos os fcn- tidos 5 e fazendo-lhe todas as commodi- ■ dades ; para que o amor que elle teria a íi mefmo , e aos feiís commodos , e á liíbnja dos feus fentidos , o conduziíTc á ter amor a quem com tão grandes esforços da Omnipotência , e eíludos da fabedo- ria aílim o tinha regalado. Ora dizei- me , fe vos parece bem eíte meu difcurlb. ChevaL Nao ha modo mais nobre , nem mais decente , nem mais cfficaz para con- duzir hum coração hvre 5 a livremente amar o feu Crcador. Qiie diverfo con- ceito 5 Baroneza, fazemos das coufas, quando difcorremos de fangue frio ^ e em boa paz , daquellc que fazem os novos Filoíbfos 3 ouvindo de paílagem duas pa- lavras, interrompidas com outras tantas rizadas ? Baron* DiíTo fe queixa Thcodofio muitas vezes ; e antes que vieiTeis do RoíFiUon , lamentávamos o modo com quô hoje fc trata de tudo que pertence a Deos. Theoã, Logo deve o homem a Deos , nao fó hum grande rcfpeito , como já provei , mas hum refpeito cheio de amor^ por- F ii que 6Í Recreação Filofofica. que nSo dá hum pp.flb , que não receba ( deixai-me explicar aííim ) hum mimo re- galado 5 que Jhc manda o Ç^w Creador, porfaber que cUe havia dcgoílar de tal, e tal coufa 5 que agora o Senhor lhe met- te em cafa. iaron. Verdadeiramente hum Fifofofo que o he na realidade , e nao fó no nome, níío pode deixar de ter huma eílimaçao amoroía do feu Creador , que em tudo lhe andou adivinhando o goílo para lho pôr prompto. ChevaL Muito tenho goftado hoje da vof* fa converíaçao , Theodoíjo , baila por ho- je , que vou bufcar as ordens do meu General , que não fel íè á manha terá o meu Regimento de ter exercício j mas fe náo acabar muito tarde ^ continuaremos. Baroncza, adeos* TAR- I Tarde ãe^efete* ' (,^ TARDE XVIL JD^.r obrigações que temos para com Deos , deduzidas do que Deos fez no Homeni para commodo do Homem» g. r. Das obrigações que deve o Homem a Deos ^ pelo que Deos fez nofeu corpo orgânico j e primeiramente pelafenfaçao* Baron» T T Oje , meu Tlieodofio , não te- JTjI mos em caía oChevalier pa- ^ ra nos acompanhar na noíTa converfação ; • porém para que não fique infipida , por concordar cm tudo comvofco, parece-mç que feria bom convidarmos meu Primo o Commendador , que já chegou depois da perda da ília Ilha de Malta, Iheod, Como não o conheço , não poíTo di- zer fc he próprio para o intento. Baron. Eu tenho confiança com ellc para f me rir , fe o vir ir de narizes ao chão na difputa , porque he pouco mais ve- lho do que eu; ealémdiíTo, creámo-nos íimbos. E no que toca ás opiniões , p a fca cargo o corpo humano, ao qual eílá uni- da. Não felabe como, mas fabe-fe def- ta uniíío. Commend, Se não fe fabe como , já eu da^ qui proteílo que não aíTmo neíía união , porque citou na regra dosFilofofos illu- minados , de nada crer , quando Je nao pôde comprehender, Theod. Para nao deixar ir a converfaqao fem o fal da difputa , e diverfidade de pen- famentos , he que vós dizeis iílo ? Commend, Digo-o feriamente : fe ninguém entende como eíía alma , que he efpiritual , fe une ao coi^o, que he pura matéria , para que me quereis obrigar a crer o que não fei ? lífo não , Baroneza , os noiíos juízos não são parentes , cada qual figa o que quizer. Barôn, Ora mal fabeis , meu Commenda- dor 5 o gofto que me dá dizerdes iflb ; que não credes que a voíTa alma eíleja uni- da ao voífo corpo , porque vejo o que nun-^ 74 Recreação Filofofica. nunca cfperei ver. Ora dizei-me : Qiicm vos move a voíTa lingua para me fallar ? Commend. A minha alma. Baron. E quem diíTe á voíla alma que cu agora vos cílou fallando ? Vós , que me rcfpondeis a propofito , he íinal que a vofla alma fabe o que vos digo. Quem lho diíTe ? Commend, Os meus ouvidos , porque não lou furdo. Baron, Ora eis-aqui o que he bem novo. Dizeis que a voíla alma he qre move a voíTa lingua para me failardes , c que nao eftá unida ao corpo : dizeis que os voí- íbs ouvidos íizerao faber á alma que eu vos fallava ; mas que o corpo não eítá unido áalma. Ora eis-aqui o que he bem nova Filoíbíia. Meu Primo, quando di- zemos que a noíTa alma eílá unida ao corpo 5 queremos dizer que ella move o corpo quando quer ; e que como a alma percebe pelos fcntidos do corpo os obje- ctos que lhes tocão , eíli o corpo unido á alma. As minhas vozes tocarão nos vof- Ibs ouvidos 5 e a vofla alma as perce- beo ; a voíTa lingua refpondeo , e pro- nunciou as palavras que a vofla alma quiz que difleflcis. Logo eílão unidas eftas duas ilibftancias, corpo, e alma. ' . i _ Com Tarde de%efete^ yy Commend, NeíTe fentido íim. Baron. Mas não obítante efte cornmercio, que he notório , ningiicm fabe o como fe communiquem eílas duas fubílancias : mas a vós he que iíto pertence , Tlieo- doíio. Theod, A todos trcs pertence ; mas eu vou tocando nos pontos que provocao a nof- fa admiração. A feníaçáo íbmentefe po- de fazer por meio dos nervos , que cha- mão Sejtforios. Sem nervo não ha Sen- facão \ de fórma , que fe os nervos eílão ou ligados 5 ou impedidos , ou entupi- dos 5 que não poíla por elies communi- . car-fe o movimento defde o pé , ou mão , &c. até o cérebro , não pode a alma fen- tir nada , nem faber que toquem no membro exterior. Baron* Bem me lembro do que me eníinaf- tcs , e que por eífa razão quando temos hum pé dormente , não o íèntimos j ou quando ha paralyíia , também não ha iènfâção; de tudo iíTo me lembro ', efej que no movimento pelos nervos até ao cérebro he que eílá a fenfação. \rheod. De vagar ; não eílá ahi a fenfação. Eftá na percepção da alma , procedida deíTe movimento que veio pelos nervos. Çommend. Cuíla a explicar como fe com- mur 7^: Recreação Filofqfíca. mu nica dcfde o dedo do pé até á cabé- . ça clTc movimento , que muitos querem explicar com o movimento tremulo dvi corda de viola ; mas iflb nao me agra- da ; porque nem o nervo cíbi tezo , co- mo a corda que treme; neiív' de (embara- çado de corpos eftranhos , como cila. Era iim , he coufa bem difficil de explicar. Theod. Concordo comvofco; e além diíTo, a fibra que corrcfponde a hum dedo do pé, nâo lécommunica com mais nenhu- ma ; e tantas fibras de nervo vão ao cé- rebro 5 quancas partes ha no corpo hu- mano 5 que tenhão fenfaçao. E além diíTo , as fibras que vão a hum dedo do pé , em todo o caminho que dahi ha até o cére- bro, fenãotrocáo, nem confundem com as que vem de outro dedo íeu vizinho ; poi'que nós fen timos fe he nefte , ou na- quelle dedo xjue nos ferem. E tudo íc ajunta no cérebro, ícmque ahi haja con- fusão na fenfaçao. Barorz. E alii também íè ajuntao os nervos que vão aos olhos , aos ouvidos, e aos mais fentidos; e pafmo de ver que nos olhos pelo nervo óptico fe communica ao cérebro a cor do objeílo , a figura , e todas as mais circunftancias do obje- ão viíivel. Ora , meu Commcndador, que Tarde detefete: 77 que rayílerío nao he iíto ^ quando nos pof- tos íobre iiuma altura ^ dcfcortinamos por toda & parte Bofques , Caías , Tor- res , Palácios, Jardins, Rios , Pomares; c podemos dar conta de tudo que hc vi- íivel, paííando tudo defde a retina pelos noíTos nervos ópticos , fem confusão aié ao cérebro. Commend, Se nao ha gota ferena ; porque entáo , haja na retina a pintura que hou- ver, nada vemos. Tbeod. Aínmhe: e ainda heprecifo mais, para que nós vejamos , e a alma fe dê por entendida '<, e he , que nao haja Hi- dropezia de cabeça ; e que a alma não eíteja fortemente occupada com attençao extraordinária , porque então nada vê. Baro^u E não me deixeis o íentido do cii- ^ vir j porque he coufa que ainda nao pu- de entender ( ainda depois do que me en- íínaftes ) da conítrudura do labyriniho , e membrana efpiral do caracol , &c. por- que eu não íò percebo o tom de qual- quer fom ; mas fe eíTe fam he de corda de Cravo , ou de Harpa , ou da voz, ou de Boé ; porque batendo todos efles fons na mefma fibra , para íerem unifo- nos, eu percebo a difFerença nelles. Tbeod, Baroncza y nós não eítamos em Fy- fi- 78 Recreação Filofofica. íica 5 não corremos o fio do meu difcur- ío , baila por ora que eíta fenfação , que a alma rem por meio dos íentidos , íeja huma coufa paimoía , e inexplicável. CommencL Niílb concordamos todos : tirai dahi a coníèquencia que intentais. Thcod. Para a tirar , ainda vos faço outra pergunta ^ meu amigo. E quem fez efta fabrica em nós , que fendo em nós , e experimentando os íeus pafmofos effeitos , nao os podemos bem definir? Quem fez tudo iíto ? CommencL Já fefabe que foi afábia, e po- deroía Mao do Creador. Theod, E para que fim tanta fabedoria, tanta delicadeza , tanta harmonia , tanta confonancia com o deleite da noíla alma , quanta ella recebe continuadamente pelas lènfaçôes de todos os fentidos ? Para que ^ fim foi toda eíla fabrica pafmofa , e in- explicável ? Refpondei-me. Commend, Para que fim podia fer , fenao eíle que dilTeíles de dar ao homem neíta vida o gofto innocente , e o deleite na- tural das fenfações dos feniidos , vifta , ouvidos, gofto, &c. O fim eftd claro, vendo que eíTas obras maravilhofas nefte fim íè empregao , final de que a eilas íè dirigirão* Concordais, Baroneza ? Ba- Tarde dezefete. 79 Baroru Nem poíTo deixar de concordar n'u- ma ccufa tao clara. Theod, Logo muito deve o homem a Deos pelo que obra nos íèus fentidos corpo- ra es , com o fim de recrear o homem. Commend. Quem o pode duvidar ! Theod, QLicm o pôde duvidar? (dizeis) Todos eíles voílos Doutores , e Filofo- fos de nova invenção , que querem pôr em dúvida fe ha Deos ; ou quando o ha- ja , dizem que não fe embaraça cá com- nofco. Commend, Deixemos agora cíTe ponto , que não Ic p6de negar que hc hum difpara- tc i poíio que em muitas coufas eítes Au- thorcs não íejão para dcfprezar. Vamos adiante. Baron. Vamos , Theodofio , ao noíTo íim- §. 11. Trata-fe do Movimento no corpo orgânico* Theod J /''^ Ontinucmos em refleftir no que V^ todos fabemcs , poílo que não meditemos. A noíTa vida toda eftá nos noílbs movimentos \ e grande parte dos homens aíTentão que para nós movermos os membros do noíTo corpo 3 bafta ter- mos 8o Recreação Filofojíca, mos ahi a alma , que em certo modo os vivifica 5 e também os rege; e iflb bem como a mao que tem calçada luiraa lu- va 5 move os feus dedos como c quando quer; porém iílo he erro groíTeiro. CommencL Pois eu eílava bem pcrfuadidô diíío , que vós chamais erro : e eh ama r- Ihe groíTeiro , nao iei , meu amigo , fe he hum pouco temerário. Baron, Eu fou contra vós , Theodofio : per- doai-me. Sc a nofla alma eílá intimamen- te unida com o noílo corpo para lhe dar vida , também lhe ha-de dar o mo*- vimcnto ; e fe a alma eftá animando o meu braço , que mais he precifo para o mover , do que querer a alma mo- vello ? Theoã, Ora dizei-me vós-outros. E porque não movemos nós as orelhas, fe ahi ef- tá a noíla alma ? Que a alma ahi eftá pelo voíTo argumento , fois obrigados a confeííállo; porque ahi fente, iè alguém as mortifica : logo ahi eftá a alma ; e porque não as move a alma como quer^ e quando quer ? As beftas da vofta car- ruagem as movem com muita facilida- de, c conhecemos pelo feu movimento quando ellas temem , quando íe efpan- táp^, ou quando vão pacificas fcm temor ai' Tarde dezefete, 8i algum : nenhum homem tem eíTe privi* legio, nem o quereria ter. Commend» Eu não. Theod, Nafce todo o movimento de muf- culo próprio , que tenha qualquer membro para illb. Tanto aíTim ^ que cada dedo em cada junta tem dous mufculos , hum antagoniíla do outro; porque hum ferve para o dobrarmos , o outro para o cften- dermos ; aíFim em todos os membros ; e quando faltão os muículos , ou por na- tureza j como nas orelhas , ou por mo- leftia 3 como nas paralyfias , ou por ou- tro motivo 5 falta o movimento. lílo di- go cu ) não fó nos movimentos livres , como dos braqos , mãos , pés , cabeça , &:c» mas nos movimentos efpontaneos y como os do coração ^ refpiração , &c. Combinai agora a multiplicidade de mem- bros 5 e juntas , e partes orgânicas do - noífo corpo com a diveríldade de movi- mentos que ellas tem , e vede o número fem número de mufculos que são preci- fos para eíTes movimentos. Ora peço-vos que vos não admireis \ guardai a voífa admiração para o que vou a dizer. Todos eíTes muículos dependem cada qual do feu nervo , que vai ao cérebro ; e todos eiTes nervos , a que chamamos Mo- Tom, X G to- 8z Recreação Filofojica. - tores 5 como também os Senforios , que fervem áfenfaçáo^ feajuntão no cérebro; e quando o fuco nerveo , ou o que cha- mão tfpiritõs animaes , entra no nervo , o feu mufculo trabalha. Ora como pode a alma faber onde cílá a entrada deíTe mufculo , que ferve para mover a lingua , ' v, g. de modo que pronuncie cila vogal , ou aqueila; e juntamente onde eítá a en- trada dos mufculos para mover os labics para a confoante deOafylIaba ; eonde he a porta dos mufculos da garganta , que fe ha-de mover para a alpiíaçao do bo- fe, e os lábios da Ghtis , para lhe dar o tom d voz , e as mais articulações da voz para gargantear , c cantar ^ íegun- do os tons que diz a cantiga , e a letra que llie quereis accommodar , &c. como pôde faber iílo a alma de huma iàloia , que cantando vai vender a fua fruta á Cidade : como pode fazer illb ? Podeis comprehender iílo, meu Commendador ? Commend, Paliando com íinceridade , hc iílb hum myfterio '-, porque fabendo to- dos que o fazemos , nem o noflb corpo , nem a noífa alma fabe comiO o fa!z. Theod. He logo precifo que o Creador , que he fó quem fabe o que a alma quer • fazer , e fó quem íabe como o ha-de ia- Tarde dezefete, 83 fazer , que o faça pela fua Mâo fobe* rana. Commend, líTo lie mui novo para mim. Theod, O cafo he fe he mui verdadeiro na realidade. Amigo, as coufas iiao são, nem deixao de o íer , por ferem novas , ou já ouvidas , &c. São , ou deixao de fer 5 pelo qge ellas saò em fi , e nâo pe- la noífa intelligencia. Ora ide lá exami- nando bem cada huma das propofíçces, que vou dizendo* Pezai-as bem j e fe as não achardes evidentes , replicai logo. Barofí, He galante defafio ! Aqui eftou eu , meu Primo , para vos ajudar nas dúvi- das. Em me nao achando convencida, logo clamo , dizendo : Duvida* Theod, Seja : primeiramente ninguém faz huma coufa bem feita, como fe defeja, meramente pelo acafo. Commend, Certo. Thfod. Eftes movimentos de que tenho fatia- do , e outros deíle género , qucfempre fe fazem cqmò a alma queria , e conítante- mente, como ella queria, alguém os faz. Commend* CertiíTimo. Theod. Quem quer que feja que os faz bem feitos 5 e confiantemente, como a alma quer , tem intelligencia , e fabe como os lia-dc fazer , fegundo o que fc defeja. G ii Co7n* 84 Recreação Filofojica. Commefid. Nio fe pode duvidar. Theod. Ora a noíla alma nao fabe nada do modo com que os ha-de fazer ; porque a faloia iiíío fabe nada demufculos, nem Glotis 5 e mais anatomias , que sfio precifas para ir cantando. Se ainda o mais delicado anatómico não fabe o lu- gar década fibra ^ ou cada niufculo , &c. como ha-de faber a alma da faloia , e o modo de procurar eíles movimentos da lingua , garganta , lábios , &c. logo a alma nao fabe diífo nada. Commend. Concordo. Theod. Logo nao o pode fazer ; porque já me concedeílcs que quem não fabia fa- zer huma coufa , não a podia fazer bem feita femprc , e confiantemente , como íe queria : logo a alma não he quem diri- ge eíles movimentos* Commend. Não poffo negar. Theod. Pois fe nao he a alma , quem fera ? O vizinho mais chegado? O corpo em íi • não , porque não tem juizo. Não podeis fugir. Haveis de dizer que he oCreador, porque fó Elle fabe o que he precifo fa- zer para quadrar cora a vontade da al- ma ; e onde eítâo as teclas ( deixai-me ■ ufar deíla metáfora ) onde eílão as teclas neíle órgão anatómico , que correipondão ao Tarde dezefete. Sj ao efteito que íe quer? Ora o Creador obrando pela ília Mão , lègundo o fcu coílume , he o que fe chama Natureza. Agora refpondei. Commend. Digo o mefmo que diíTe : he pa- ra mim novo. Mas accreícento agora , que he verdade, e me dou por conven- cido. Baron, Agora vos eílimo mais , meu Pri- mo , porque vos vejo raciona vel. Porém , Theodofio , vós tocaítcs mui de paíTagem huma coufa , em que eu defcjava que vos demoraíTeis m.ais , que he a Muíica y por- que depois que me déíles as lições da Fyfica neíla tal e qual Anatomia queahi ■ pertencia , eu combinando as lições da Muíica com as da Fyfíca , fico fumma'- mente pafmada : demorai-vos , Theodo- fio, mais hum pouco nefta matéria. Theod. Sou obrigado a caminhar ligeiro , para nao fazer as rainhas reflexões enfa- donhas por ferem longas ; mas a fallar com finceridade , na Mufica tendes bem evidentes provas do que hia dizendo. He bem fabido que nos inftrumentos Mu- ficos , Cravo, Harpa , Viola, e os mais inílrumentos de cordas , quanto mais fe enteza huma corda , tanto mais fcbe de tom. Tam.bem he bem fabido que a voz hu^ 86 Recreação Filofofica, humana regularmente chega a duas oita- vas , e ás vezes a três, Também fe fa- be que cada oitava tem cinco tons , e dous meios tons ; que de hum tom a ou- tro ^ V. g. de Dó aRé , ou de Ré a Mi fe íbbe por nove Comas , ou degráos ; de forma , que no decurfo de duas oita- vas temos que. pode a voz humana fu- bir por 108 degpáos , ou Comas ; as quaes fe as quizermos fazer foar em hu- ma corda de hum tamanho , he precifo que tenhamios modo de a enfezar mais e mais com 108 gráos de entezar. Baron. Nenhuma aturava iífo fem eílalar, confervando-fc fempre o mefmo compri- mento da corda : certamente eftalava. Theod, Ora vós, que tão fortemente affir- mais iíTo , vos efqueceis do que vos en- finei , ehc^que quando vós fubis de tom cantando , o fazeis , porque cntezais mais os lábios da Giotis , que são huns cor- does elafticos , que defcubrio creio que Mr, Ferrei fí , os quaes fazem no leu tre- mor elaílico o que na viola faz o tremor da corda. Reflefti agora : Quando vós eftais com o papel na mão para cantar, não podeis mudar de tom , fem que os lábios da Giotis mudem de gráo de tenfidade ^ ou enttzarnento y evos de rer pcnr Tarde dezefete, 87 pente lhe dais aquelle gráo de entezar, que correfponde ao papel ^ e immedia- tamente outro , e outro gráo diíiercnte, para executardes o que deveis. Que me dizeis, Baroneza ? Baron, Sempre tive a Mufica vocal por hum grande divertimento , e prenda de huma fenhora \ agora a refpeito como hum myfterio paímofo , e inexplicável. Theod, Agora jaca he bem huma confequen- cia que hei de tirar ; mas ainda não con- vém 5 porque lhe quero fazer maior ba- íb j porquanto ha-de fer mui alta a co- lumna. Quero que noâ lembremos dos nof- fos movimentos vitacs , que são os do coração , e da refpiração , &c. Commend, Eu tinha prefumpçao de faber aíguma couía de Anatomia i mas vós me dais luzes novas no mefmo que ha mui- tos annos fabia. Continuai. Tkeod. Quero fali ar do beneficio que Deoá^ nos faz na continuação da noffa vida, que já fabeis que depende de muitas cou- fas. Qiiem fabe de quantas coufas depen- de a vida do homem , pafma de que pof- fa viver hum.a hora , fem que no mo-r vi mento contínuo de todos os órgãos vitaes fc defconcerrc alguma daquellas coufas de que a vida depende cíTencial- mcn- 88 Recreação Tilofojica, mente. Bafta confiderar no que trabalha o noílb coração , que fe por dous mi- nutos paraffe , infallivelmente morria o homem. Commend, Em cada minuto, regularmen- te fallando , fe vafa 70 vezes de fanguc , no que os profeíTores eh a mão Sijioles y outras tintas vezes fc enche no que cha- míío Diajioks'') que vem a fer 140 mo- vimentos em cada minuto j e outros tan-. tos movimentos tem zs aurictdas ^ ou dc- poíitos de efpera, em que fe demora o fangue antes de entrar no coração ; por- que quando elle fc vafa do fangue que tinha , não pode receber o que vem das veias nefle tempo , ficando deíle modo os Sijioks das auriculas cdiajloles delèncon-* trados dos do coração. Até-qui fei cu : agora vós ajuntareis as voífas reflexões filofofícas. Theod. Ainda vos falta refledlir nas fibras mufculofas , que causao cíTcs alternados movimentos do coração ; porque para va- far tem humas fibras efpiralmcnte enro- ladas á roda do coração ; e quando eC- tas trabalhão , íè eílreita de modo , que faz efguichar pelas artérias todo quanto fangue em fi tinha , e deíTe modo fica muito eílreito , e mui coipprido^ e bate nas Tarde dezefete, 89 nas coftellas , que he o que chamao pal- pitação. Pelo contrario quando o cora- ção lè faz redondo , mais largo , e mais curto 5 recebendo em íi o fangue , tem eíle movimento , porque trabalhão as fibras mufculares que o cercão da bafe até á cuG pidc. Eítas fibras mufculares nafcem do Cerebello \ e ora trabalhão humas fibras , ora outras alternativamente em cada mi- nuto, líto no elpaço de hum anno bota a doze milhões , ou contos , e 160 mil movimentos. Se em toda eíla quantida- de de movimentos fe trocão , ou emba- raçâo os efpiritos animaes que no Cere- bello hâo-de ir bufcar ora numa ordem de fibras , ora outra , fc fe embaraçao , lá vai a vida do homem. Pergunto ago- ra , meu amigo , quem dirige com tanto cuidado eíles efpiritos aniniaes^ osquaes nao tem juizo para ouvir ordens , nem pa- ra fem ella executarem com certeza eíles movimentos indifpenfaveis para a noíFa vida ? A' proporção difcorro de todos os mais rhovimentos efpontaneos , que não dependem do noíTo querer, ou não que- rer. Refpondei-me , amigo. Commend, Que quereis que vos refponda ? Theod. Tudo faz oCreador, ou manda fa^ ;zer para a noffa vida. Ba- 9o' Recreação Filofofica. Baron. Ou manda fazer ! dizeis : c por quem ^ Que criados tem o Crcadcr na claílb corpórea , que pofsao ouvir as fuás ordens , e executallas , fe elles não t,em percepção para as perceber ? Theod* Niflbeftou eu ; mas diíie iffo, para que a voffa mefma intclligencia vos obri- gaíTe a confeíTar que Deos obra pela fua Mão em tudo o que vulgarmente fe attri- bue á natureza. E para quem faz Deos eítas maravilhofas acções ? Baron, Para que viva o homem. neod* E de que matéria conílão eftasmá- quinas tão artifíciofas , que pofs^io fem erro trabalhar 70 annos , e mais ? Serão de aço , ou bronze ? Tudo he feito de pclles : de pelles são as veias , as artérias , as válvulas, &c. Nem bronze, nem aço podia aturar tantos movimentos fem fe gaftarem. Baron. Que me dizeis , meu Primo ? Theod. Não quero que o aperteis com cíTa jufta admiração ; mas fomente com a per- gunta , para que fez o Creador cfTas ina- ravilhas , fcnão foi para vosconfhrvar a vida a vós , e a mim f m mais de 5'o an- nos , e á Baroneza por 24 ? Que obriga* ções não devemos ao Creador por nos dar , e por nos confervar a vida ? Com- Tarde ãezefete. 91 Commend, Vós me confundis com as vof- fas reflexões. Baron. Mas goíloíamente nos confundimos , por ver que em noíTo beneficio aífim obra o noíTo Dcos. Commend. O certo lie que pouca gente dif- corre aflim , nem tem o vagar de ir ana- lyfando o que todos fabemos , para nos dcfentranhar outras verdades ^ em que nun- ca haviamos refledlido. Theod. Eílá vifto , meus amigos , o cuida- do , a Sabedoria , e ( deixai-me dizer af- fim) o eftudo com que o Omnipotente trabalhou para nos dar, econfervar a vi- da de que gozamos ; vida que a gover- ^ar-nos pela natural razão, nem hum dia poderia durar ; porquanto parece impoC- íivel que em tão complicados movimen- tos de todos os noíTos órgãos , não íè qucbralTe alguma das muitas peças defta prodigiofa máquina , ou ao menos que fe não defconcertaíTe de algum modo. Commend, Não fc pode negar que huma vida de 70 3 80, e mais annos hc hum prodígio da Omnipotência, que involve muitos mil prodígios, que nós não po- deríamos comprehender. Theod, Se a máquina do corpo orgânico fofle como os relógios de Inglaterra, fei- 5 2 Recreação Filofofica ta de aço , e de bronze , trabalhando e!- la 70 annos continuadamente fcm def- canço de dia , e de noite , não poderia aturar Tem algum defmancho, e no nof- fo corpo atura , e fe coníerva o homem muitas vezes com boa faude , fendo efta máquina feita de entranhas molles , c pe- les , e membranas froxas ; c aturao \ E para fe ver eftc continuado prodígio, comparai efte homem com faude , com todos os mais a feu lado , que por def- mancho de alguma pequena parte da fua organização adoecem , e morrem ; mas o Omnipotente fuílenta em feu vigor todas as peças da organização no homem fa- dio j íem que fraqueem , nem fe que- brem. Que prodígio não he efte ? Commend, Vê-íc , e não fe repara. Theod, Mas que fim bufcará o Creador em nós por eíles prodígios ? Obrará por ven- tura íèm ter algum fim ? ou fera meramen- te para que nos regalemos ? Será efte hum fim digno de Deos ? Commend, Refpondei , Baroneza , porque entrais mais do que eu nos penfamentos 4e Theodofio. Thèod, Eu refpondo. Deos não podia fazer ifto fenão com o fim de que o homem fizeflc o que a Razão eterna pede, ifto he. Tarde àezefete. 93 lie 5 que o homem empregue a fua vi- da 5 e todos os membros do feu corpo no culto 5 e gloria do feu Deos, Se achais outro fim que feja mais digno de Deos, c mais conforme á Razão Eterna , que a noíío modo dirige todas as obras de Deos, dizei-o. €ommend. Que havemos de dizer? Baron. ConfeíTar o que Theodofio diz ; pof^ que fó hum juizo cego ( que não he juí- zo) pode deixar de fe ver convencido. Theod, Eu não me valho para os meus ar- gumentos de principios duvido fos , nem me fundo em authoridade alguma. Bem vedes que dehuma parte eílá a experiên- cia que a Anatomia nos dá , de que nin- guém duvida; da outra a razão íimples, de que Deos quando formou tudo iíto com fumma proporção , com fumma har- monia , com eíludo 5 com fciencia , e com extrema vigihmcia , acudindo a todos os inconvenientes , dando providencia ás pre- cisões, &C4 teve algum fim ^ do que nin- guém pode duvidar ; e ultimamente que b fim de tanta fciencia , cuidado , pro- videncia , &c. ha-de fer fim digno de Deos , fim conforme á fua Razão Éter- 72a. Ora todos conhecem que eílc fim não pôde fer fímplesmente para nós vi- ver- 94 Recreação Filofofíca vermos 8o annos , &c. por confequen- cia fó pode fer para que o homem fe reconhefa obrigado ao feu Deos , rcípei- tando-o, fervindo-o , c amando-o como feu Bemfciíor contínuo. Deíle modo Deos nos leva a eílc nobre fim por conveniên- cia 5 quando nos nao baile a fimples luz da razáo , ainda fem ella. Commend, Tenho-vos inveja, minha Pri- ma , de terdes hum tal Meítre , que affim cultiva o voíTo entendimento. Sois mais feliz do que eu. Vamos adiante , Theo- dofio. §. III. Trata-fe da Nutrição no corpo orgânico. Theod. T? U tenho omittido huma circun- JUí ílancia fum ma mente pafmofa , que junta ás que tenho ponderado , faz a noílk organização muito mais admirável , e he a Nutrição , c augmento de todos os vafos orgânicos que temos no noíTo corpo ; porquanto todos pelo decurfo do tempo em vez de fe deítruirem com o trabalho contínuo , fe multiplicão , e íe reforçao, e engrandecem ; engrandecem, digo 5 não fó na figura total , e feníiveí de cada membro em quanto crefcemos, mas Tarde dezefete. çy mas no tamanho de cada minima parte do noíTo corpo. Ke pafmar o ver como hum menino de 6 annos , perfeito cm todos os feus membros \ fe nutre , e co- mo crefce até aos 20 annos , nutrindo- fe cada membro , e d proporção cada ór- gão fenfivel delle. Comparemos , meu Commendador, os orgaos deíle homem na idade de 6 annos com eiies mefmos na idade de 30 , que differcnça não tem ! até os o (Tos , que algum dia erao meras cartilagens , hoje são oííos perfeitos , com medula , periojieo , &c. ora com^o foi eí- te augmcnto ? Houve fem dúvida canaes , que levarão a cada fibra o fucco que con- vinha para que crefceíTe. O mefmo digo das veias , das artérias , das válvulas , femeadas por todos elles. O mcfmxO di- go do coração , dos mufculos , do cére- bro , e íeus ventrículos , da Medula ob- longada , e toda a ramificação dos ner- vos. Cada parte dcftas crcfceo, não por fe lhe ir amontoando matéria ; porque deíle modo os canaes fe entupião , bem como fuccede nos aquedutos com o fa- li tre da agua ; mas pelo contrario , cref- cem no comprimento , na groíTura , na largura e vão , ou capacidade de cada hum dos vafo?. Quem faz iílo , meu Commendador ? Co- 96 Recreação Filofofica Lommend* Mr. de Buffon explica bem iflb por hum fyftcma feu galante, dando ás partes homogenias , e da mefma nature- za huma attracçao mutua. Theod* Seja embora verdadeira eíTa fua ficção : iflb faz amontoar na língua v. g. muitaá partes próprias para a lingua ; nos olhos muitas partes próprias para os olhos ; mas quem forma mais fibras na lingua , maior diâmetro na pupilla dos olhos , c feu volume , mais fibras nervofas na re- tina , &c. Quando muito prova De-Buf- fon 5 que fe ha-de ajuntar mais matéria homogénea ; mas que fe ha-de fazer hu- ma fabrica mais cfpaçofa, iíTo nâo : que dizeis, Baroneza? Baron, Já li eíTe fyílema ; parece-me coufa mais de Poeta que de F/íico. Theod. Além de que, o fuítento do rapaz, feja qual for , fe converte cm Quilo ^ e dcíle fe vai nutrindo todo o corpo huma^ mo com todos os feus órgãos , e a hum tempo : do Qi^iilo fe nutre o eora(jáo j o cérebro, os oifos., as veias , a pelle, &c. que diverfidadc achamos na íubftancia de cada hum deites órgãos ; e tudo fahe da maíía áo Oiiilo, Ora coníidercmos como Filofofos efta nutrição : quem reparte ef- ta matcria á proporjão por todas quan- tas Tarde dezefetei 97 tâs partes orgânicas terá o noíTo corpo ? Quem dá a eíla matéria forma diíFeren- te á proporção do orgao , que ha-de nu- trir ? Podeis crer que he o concurfo tu- multuario das partes da matéria , que o rapaz. comeo, foíTe o que foíTe ? Pode if- to caber na intelligcncia de algum de vós ? Baron. Na minha não , nem também na de meu Primo. Conmiend, Adivinhaíles , Baroneza ; porque ifto não fe pode dizer , nem entender. Theod» Logo he a Mão fummamente in- duítriofa do Creadòr , que lá do modo que fomente EUe entende, o faz em ca- da hum de nós : e com eíla circunftan- cia pafmofa , que em chegando o homem a certa idade, come, bebe, dorme, &c. como até então ; mas os membros não crefcem como até alli crefciâo. Comniend, Em tudo fe perde o lume dos olhos , fe queremos com o entendimento efquadrinhar o modo com que íè faz em nós , o que nós todos os dias experimen- tamos* Theod, He logo a vida de hum homem hum prodigio , que comprehende milhares de prodigios ; porque o nutrir-fe cada ór- gão do corpo orgânico , fem fe entupir , Tom. X H nem ç8 Recreação Filofofica, nem ficar inútil pela concurrencia de ma- téria , e também o não fícar inútil pela diiripação natural que todcs es órgãos devem ter, íêgundo a continuada tianfpi- ração e perda no trabalho contínuo dos movimentos vitaes , são couías bem pai- mofas. Baron. Que differença vai, meu Primo, de ver cilas coufas com a reflexão quelheo- dofio nos foz fazer , a vellas de paíla- gem como o vulgo as coníldcra ! Theod, Falta-me agora tirar huma confe- quencia de tudo o que tenho dito nefte ponto ; mas eu quizera que vós-cutros a tiraíTeis , que eu irei armando as propo- ficòes em que ella fe funda, Baron, Seja embora : tomai vós , Com- . mendador , fentido para vei* fe as pro- poficóes vão bem ordenadas , e connexas com a conícquencia que houvermos de tirar. Commend. NiíTo cuidará bem Theodoílo. Theod, Siipponho que não duvidais que a noífa vida depende de todos os órgãos, que são precifos para o corpo humano ter as fuás funções ; e por confeguinte, que a vida não he como a dadiva de hu- . ma peça preciofa , que huma vez dada , eftá dada , fem que quem a deo continue cm Tarde dezeftte* 99 em acqão nenhuma precifa par a confer- var.. Creio que confeíTais que o Omni- potente , quando formOu para cada hum de nós ò leu corpo orgânico com tanta fabedoria e intelligencia , e ( a noíTo mo- do de fallar ) eítudo , qual convinha para vivermos , níío íó nos deo a vida , mas ' que a continua a dar eiii todos os dias que ella dura i pois que em cada dia ha novidade no noílb corpo , que com a fua Divina Mão fe repara, ou remedea. Baron. De nada diíTo duvidamos. Theod, Também creio que haveis deaíTen- tar , que o fupremo Senhor não fez iílo como tonto , fcm faber para que fim. A fua perfeição fumma o obriga a não obrar fem fím ; e fim digno da Obra , e digno do Artiíice fupremo. Para que fim pois Deos deo a vida ao homem com tanto cuidado, eíludo, e (deixai-me dizer aP- • fim ) empenlio e trabalho ? Seria para o homem fe regalar ? Bãron, Certamente não : não era eíTe hum fím digno de Deos. Theod» Logo o feu fim foi . . . dizei-o vós agora. Baron, Qiie hei-de dizer? Foi fem dúvi- da para que o homem empregue todos os dias da fua vida cm o fervir ^ a^^o- H ii ran- 100 Recreação Fiíojõfica, rando o Poder, amando a Bondade, obe- decendo á íua Lei. Tendes dúvida , meu Primo 5 nefta confeqiiencia que nós am- bos devíamos tirar ? CommencL Thcodolio tem arte para levar o meu juízo aonde quizer, íem eu lhe po- der refiílir. Theod. Não he arte minha , he fidelidade do voíTo bom entendimento , que em co- nhecendo claramente a verdade, por for- ça haveis de abraçalla. Commend, Ora, minha Prima , eu era até aqui Maltez , e foldado hum tanto li- vre , ou libertino ; porém agora as Filo- fofias me inclinao a fcr devoto. Baron. De muito vale o ter juizo ; e dei- xar difcorrer a razão com paz , íem pre- occupação 5 nem rizotes , nem zombarias , mas feriamente em coulas ferias, que he o que não fazem os voílbs Doutores. Theod* Já que concluimos eítc ponto, ^Ba- roneza , não vos eílejais mortificando. Vós ouvis no quarto de vofla Mãi vifí- ta de ceremonia , que he Monfieur *** a Gucm a voíla caía he obrigada \ não fera longa a vilita , porque he de cere- monia; depois delia continuaremos, que o Senhor Commendador me fará a honra e o gofto de paíTcarmos pelo jardim en- tretanto. Ba* Tarde dezefete, lor Baron» Acceito o favor , e pcço-vcs que vos nao aufenteis , que o meti coração aqui fica. §. IV. Das obrigações do Homem a Deos , pelo que o Senhor fez na fua alma : onde fe trata da fua Immort alidade , e Natu- reza. Earon, /^\ Ra já aqui eílou , não fe de- \J morou a vifita , aprovei temo- nos , meu Primo , antes que concorrão as coílumadas , que vem para o jogo , que he dia de Aííembiea j mas iíTo he iá á noite. Commend, Aqui eftou também : diga , Theo- dofio , a matéria do difcurfo. Theod, Continuemos , Baroneza , a tratar das obrigações do homem para com Deos, e feja pelo que Deos poz na alma do ho- mem. Como cila tem duas faculdades principaes , que são o Entendimento, c Vontade, tratemos de ambas ; mas pri- meiro que tudo fallemo3 da Natureza da alma. Commend, Com goílo vos ouvirei , que he matéria para mim , em que não tenho ou- vido difcorrer a meu goílo ; pofto que fupponho que vós fereis de mui diverfa opinião do que eu tenho lido. Theod. 102 Recreação Filofojica. Tieod. Eu alguma coufa tenho lido dos no- yos Filofofos 5 e de nada me liei-de ad- mirar. Dizei , amigo , o que tendes li- do 5 dizei o que vós íeguis , que fomos homens de razão , tudo fe tratará em paz ; e a verdade apparecerá a quem n quizer abraçar. Çommend, Primeiramente muitos íèguem , ?ue a noíTa alma he huma pura matéria coufa, que me parece hum difparatc) mas alguns o dizem. Baron, E provão elles iíTo que dizem ? Çommend. lífo não j provar nada: fallar, rir, e atirar com propofiçôes novas , que nunca fe ouvirão , iflp íim j mas provar , iíTo nenhum o faz. Baron* Bello , bello : iífo he fer Filofofo de nova invenção ; dizer , e não provar. Ora dizei , Theodoílo , o que vos parece. Theod. Como o Senhor Commendador tem JíFo por hum difparate , pouco baila pa-? ra moílrar que o lie. Nós não podemos trocar as idéas eífenciaes das coufas , que iíTo he loucura. Cada coufa tem íúas pro- • priedadcs , que nafcem da fua eíTcncia ; e íè as trocamos 5 trocamos as eíTenciaes , e fazemos humas quimeras inintelligiveis. Temos que os corpos , que pertencem aos olhos 3 tem ou çôr ., pu luz : huns são en- Tarde dezefete. 105 encarnados , outros azues , outros claros , e luminofos , outros efcuros , &c. Do mefmo iriodo os que pertencem aos ou- vidos tem fuás propriedades , liuma voz hc fonora , ou harmoniofa , outra diíTo- nnnte , eíla he grave , aquella jguda , &c. Pelo mefmo medo os corpos que perten- cem ao goílo, são ora doces , ora aze- dos 5 ora íaborolos , ora infipidos. E os do taélo ora são duros , ora molles , ora afperos , &c. Pegai agora , Barorieza , e trocai eítas propriedades , e vede o que fahe : achareis hum lòm encarnado ^ hu^ ma voz azul ^ hum a cor azeda , e ou- tros defpropoíitos fcmelh antes. Baron. Não poíTo conter o rizo, e vejo que fahem deíles cafamentos eílravagantes , quimeras nunca ouvidas. Theod, Tudo pomos darmos ahumascou- fas as propriedades das outras j e mais nos exemplos que eu puz , tudo são cor- pos feníiveis, poílo que perten pòi'que: quero ^ porque quero. t^ommend. Ninguém pinta mais ao vivo ' hiuna Senhora teimofa. BaroH, Teimofa íim ; porém Senhora, Ef- lè defeito moral , que eu não louvo , he perfeição fyfica , e real , porque prova hpm Domínio^ hum abfoluto De/potif- ' 7no da vontade humana fobre as fuás de- ' Jiberaçôes; e dcfte Defpotifmo abíbluto, r • confelfo a verdade , nos as Senhoras mu- lheres íbmos mais caprichofas. ^heod. Vós , Baroncza , com cíTa ultima reflexão poupallcs o que eu tinha que di- zer^ Tarde dezefete. ijr 7cr : porque a teima fim he imperfeição moral j mas he perfeição metafyjlca, O ter faculdade para poder teimar, femque força eílranha poíla difputar-Ihe o direi- to de querer , ou não querer , he hum a coufa Divina : de forma , que eíle Ihre Alvedrio he humia perfeição , que fomen- te a achareis na alma , e em Deos. Commend, Confeílb que he jóia precioíiíll- ma; e nunca liie tinha avaliado tanto a fua preciofidade pafmofa. Theod. E quem nos fez, meu amigo, eíle tão grande prefente ? Quem fenão o Crea* dor ? Que agradecimento lhe não deve- mos dar por hum tão grande benencio? Dar-nos olhos , e ouvidos , e os mais fentidos do corpo , quem duvida que he beneficio gfande , vendo nós tantos ce- gos 5 furdos 5 coxos , &c. Dar-nos enten- dimento , he graça muito maior, vendo tantos tontinhos, e mentecatos ; poréni dar-nos vontade inteiramente livre , e fenhora tal , que ninguém lhe pode dit putar o feu altodominio fobre o querer ^ ou não querer^ he coufa mais alta ; e por confeguinte que pede maior reconheci- mento , e gratidão maior. Baron. Pede j mas o peior he que Deos o não confegue da maior parte dos ho- K ii inens. 13^ Rt^creação niofofica mens , pelo que eu vejo. Tende paciên- cia 3 meu Primo , que não pude reprimir eíla reflexão , pofto que não tenha o ca- raíterde Pregador. ' Commend. He bem jufta* Theod, Mas agora faço eu outra reflexão fo- bre efta da Baroneza. Artendei-me. Deos quando deo ao homem a Liberdade de que temos faliado , também lhe deo a Luz da Razão , que Iheinfundio no en- tendimento, para que a dirigiíle em to- das as acções. Diílo não íe duvida. Commend, Não por certo. Theod, Ora bem. Vede agora a acção de Deos 5 a mais gcncrofa que jamais lem- brou a ninguém : íj Eu te dou (diz Deos) 5j eu te dou eíTa Luz da Razão ^ que 5> he hum pequeno raio da minha Ra- 99 zão Eterna , em ordem a que acer- ?j tes nos teus paflbs : e tam.bem te dou 55 o Dominio abfoluto fobre as tuas ac- 3) çòes : faze o que quizeres \ não te pren- » do 5 e dou-te o foccorro dos teus mem- » bros do corpo , e dos teus íentidos, 55 para executares o que quizeres ; c ain- 55 da confentirei que defprezes a minha 55 Luz da Razão , e os meus precei- 55 tos que nella te dou : tens liberdade 55 para os rejjpeitar , ou para os defpre* . . . , 55 zary Tarde dezefete. 135 55 zar 5 não obftante que /ejâo meus. Fa- ?) ze o que quizeres , que para iíTo te 5) faço fenhor. Agora quero ver o ufo 5j que fazes defla liberdade que te dou, J5 porque depois eu farei o que for juG- j) to : vai. M Não vos parece que iílo he o que fe paíla entre Deos , e o ho- mem 5 quando o manda a efte mundo ? Ndo vos parece efta falia digna dagran* deza de Deos ? Commend, -Eu quizera rcfiílir a eíTe difcur- fo , para mim inteiramente novo 3 mas não poíTo. Theod. Dar Deos ao homem plena liher^ dade até para não fazer cafo do que El- Ic lhe manda , he huma coufa abfoluta- mente palinoía. Baron, Que gcnerofidade ! Mas que agra- decimento pede iílo , meu Primo ? Çommend, Pede huma pontualiíTima obe- diência á Lei fuprema , que 'o Creador nos deo. Theod. Efta he a confequencia que eu que- ria tirar do que temos dito, meus ami- gos. Por iíFò mefmo que Deos he tão bizarro, e guapo, e generofo, que não quiz nem belifcar ncíIeDom da liberda-^ de que nos dava , nem exceptuar as ac- 5ÕCS que elle prohibia , obriga o homem tj-í" Recreação Filofojica, racionavel a íèr fummainente delicado na inteira obediência á fua Lei da Razão , que he Lei fuprema. Commend* Eftou convencido ; e tenho por abfurdo o que muitos dos meus livros querem perfuadir do contrario j e que Deos fe não embaraça cá com as noffas acções. Barofí. Meu Primo , vós difcorreis agora -em paz, e fem eílb efpirito de libertina- gem , c ligeireza , que brilha em todos «^ eíTes voíTos Filofofos ; e o que vos fuc- cede niílo ^ vos acontecerá em tudo o mais , )3orque a verdade tem muita força fobre lum animo cândido , e entendimento fem prevenções íiniftras. Vós bem vedes como Theodofio difcorre j não faz fenão mof- trar princípios certos ;, e deduzir confe- quencias naturaes. Commend. Mas tem huma tal arte , que prende , e quer hum homem queira , quer não queira , fica convencido. Va- mos 3 Theodofio , continuando ; e fe vos ^ parece, Baroneza , como poderão vir vi- íitas a voíTa Mãi , vamos paííear ao Bof- que , em quanto Theodofio não acabar , e depois voltaremos. ^aron. Approvo, e já vejo que goftais da converfação ccmnofco , mais do que das fem faborias de vifitas. Vamos , Theodo- fio, §. VII, Tarde dezefete. 135? §. VII. Que todo o homem deve ter Religião» Theod, O Entemo-nos aqui , que he fitio O abrigado , e ao melmo tempo ameno ; recreão-fe os olhos , c o enten- dimento focegado difcorre muito melhor. Baron, Eíta paímofa harmonia entre o cor- po , e a alma 5 faz que eftando huma deílas fubfiancias em focego , a outra tra- balha melhor. Que mais tendes, Thço- tíoíio 5 que dizer neíte ponto ? ^heod, Suppoíto o que eítá dito , tiro hu- ma coníequencia importante, e he, que todo o homem deve ter Religião. Parece efcufada eíta confequençia depois do que temos tratado ; mas convém tratar cíle ponto mais radicalmente, porque o Se- nhor Commendador ha-dc encontrar mui- tos dos feus Filoíofos , quç não concor- darão com o que aqui eílá aflèntado. Commend, Coitarei de levar armas para me defender. Mas haveis de dar licença pa- ra eu dizer francamente o que os meus livros dizem. Eu não digo que os íiga em tudo j mas fali ando agora aqui como cl^ ks fallão , verei o que vó? reípondcreis , í^6 Recreação Filofofica. e fico inftruido j e vós , Baroneza , não vos efpanteis, que eu não fou tao máo, como talvez vos pareça , digo o que os meus livros dizem. Baron, Sem fe defcubrir huma chaga, nao fc pode curar , dizei o que quizeides , que Theodoíio vos attende. Commend, Os meus livros dizem , que aíTim he que todo o homem àcvc ter Religião ':^ mas que eftâ Religião he reconhecer hum Ente fupremo , Creador de tudo ijlo que ' vemos \ o qual imprimio , como Theo- 'doíio diflc 5 na noíla alma a Lei natu- ral 5 que todos deveynos feguir , e que niíTo o devemos refpeitar , c adorar \ e nada mais querem. Baron, Bem barato vos fazem o caminho do Ceo. Commend, líTo lá do Ceo , minha Prima , he coufa entre elles de rifo; porque não querem que a aíma dure depois que o corpo morre ; poílo que diílb já eu eftou defenganadoj mas agora fó faílo pela bo- ca deHes. Baron. Mas eífà adoração do Ente fupre- mo , Creador de tudo o que fe vê , que caftá de culto pede , e que ceremonias ? Commend, Nada , nada : devemos adorar a eíTe Ser fupremo no noíTo coraçã^o ^ ador Tarde dezefete. 137 adorallo em Ffpirito , e Verdade, Lá as çeremonias externas não valem nada ; por- quanto adorallo como o Jiideo na Syna- goga , ou como o Mouro na Mefquita, ou como o Gentio no Pagode , ou como o Chriítãonalgreja, tudo heomefmo. Af- íim como no dia dcBcija-mão, tanto va- le levar hum veílido verde , ou azul , oii encarnado , com tanto que feja rico , e de gala 5 he o mefmo obfequio ao Soberano. Baron, O que ahi vai! U^heod, Meu amigo, convém ir difcutindo ellas coufâs pouco a pouco ; e para não elquecer cila comparação do veílido , ref- pondo : que a cor não faz nada ao ob- fequio do Soberano , o qual fomente quer eíla demonftração de alegria no dia dos feus annos , ou coufa femelhante. Mas fe hum neíTe dia de Beija- mão ora ob- fequiaíFe o Soberano, ora fizeíTe a Corte a hum Camariíla , ora a hum lacaio , ora a hum ladrão que ahi eíliveíTe , o Sobe- rano porventura goítaria ? ou fer-Ihe-hia o mefmo que lè osobfoquios foíTem fei- tos a elle , ou a qualquer outro ? Commend, Certamente não : os obfequios a qualquer outro lhe feriao huma grande oíFcnfa. Baron. Licença para rir;, meu Primo! eA 138 Recreação Tilofoftta. tais apanhado miferavelmente. Ora con- clui, Theodofio. Theod. O Jiidco abomina a Jefu Chrifto , que o Chriítão adora. O Gentio venera hum bode , quando o Chriítão adora o Deos 5 que creou os Ceos , c a Terra. O Mouro adora o feu Profeta, inimigo de Jefu Chrifto , &c. Logo como pôde fer indifferente para eíTe Ser fupremo , o adorallo a Elle, ou a hum bode •) ou ca^ hra 5 ou ao Sol , ou ás obras de fuás nãos, ou a íèus inimigos, fendo-lhe de- vida a Elle toda a adoração ! Com que vamos ao mais que vós dizieis , que á comparação do vefliido cftá refpondido plenamente. Baron. Com licença , meu Theodofio ; e como refpondeis vós , meu Primo , a pô- * rem os voíFos amigos fobrc o ihrono da Cathedral em Paris huma mulher de car- |ie, viva como qualquer outra , e diíTe- rem publicamente , vós fois Deofa \ e poucos tempos depois corta rem-lhe a ca- beça ? Também ifto he indiíFerente para o Ser fupremo ? E valem o mclino eflas facrilegas adorações a eíTa infame mulher, ou as que ahi fe davao antes ao Deos verdadeiro ? Confuhai os voílbs Filoib-» fos , e vede o (jue refpondeipt Covi^ Tarde dezefete. 139 Commend. Não nos lembremos diíTo : foi huma loucura , e frenezi. Vamos nós , Theodofio , ao que queríeis dizer. Baron. Peço licença. Antes de tudo que- ro que vós 3 Theodoíio , me expliqueis . claramente que entendeis vós por iíto que chamais Religião ? Theod, Entendo o culto , e adoração ao . Ser f ti premo. Ora eíte culto na Ice á^hum conhecimento da fua fuprema fuperiori- dade j e de hum reconhecimento da nof- fa obrigação. Vamos por partes. Primei- ramente para nós darmos culto a alguma coufa , he precifo crer que ella he fupe- riora a nós j por confeguinte fó crendo na infinita fuperioridade de Deos , Jie que lhe podemos dar eíle culto. Além diílb, hç precifo reconhecer em nós obri- gação a eíle Ser fupremo para lhe dar^ pios culto ; porquanto fe houveíTem por impolFivel dous Deofes , e nós peftenceC- femos a hum dellcs , haviamos de ter ef- timação do outro pela fua Divina perfei- ção ; mas como nao tinhamos nada com eile, não tinhamos obrigação de lhe dar culto 5 nem adoração \ logo , mçus ami- gos, iíto át Religião pede duas ccufas : liuma he crer em Deos huma fupericri^ dade ^ e perfeição Jumma\ outra he r^r CO" 140 Recreação Filofofica conhecer em nós o agradecimento , e ohri^ gação que lhe devemos: Quanto ao crer jliperioridade em Deos que nos creou , he efcufado perfuadillo , porque a noíla niefma exiftencia o perfuade ; porquanto o homem não fe podia fazer a fi ir.efmo. Ora quanto á obrigação de agradecer el- ta mefma exiílcncia queEllenosdco, he bem notório d Luz da Raz^ao , por pe- quena que ella íeja. Commend. He injuria do homem , e da fua razão o querer provar-Ihe ifio ; porque he fuppôr que ou o nega , ou o ignora. Theod» Vamos agora ao Culto que le lhe deve dar em Tellemunho da noíTa efti- niação j e agradecimento , e inferiorida- de, que a Luz da Razão prova. Commend* Ahi hc o cafo ; porque os meus Filofofos dizem que a Dcos nada diílb importa, por íerElIe infinitamente feliz, e ferem as noíTas adorações ridiculas por ordem á fua Grandeza infinita. Theod, Vou a refponder a iíTo. Dcos não quer os noíTos cultos , porque tenha pre- cisão diíTo. He feliz por fi mefmo , com felicidade infinita , e aíFim as noíTas ado- rações não lhe fervem a elle para lhe augmentar a fua gloria. lílb era fer El- Jc pobiiirinjo , fc çom os npírç)3 cultos (que Tarde dezefete. 141 ( que nada valem ) ellc crêíceíTe em glo- ria. Mas Deos quer os noíTos cultos , porque quer tudo o que he razão. -Nem pode deixar de o querer. Commend, E por que nao pode Deos dei- xar de querer tudo o que he razão ? Tam- bém fou eípeculativo : quero a razão de tudo. Theod. Porque a noíTa Luz da Razão pof- ta por Deos no noíío entendimento he hum raio da Razão Eterna de Deos* O Crcador não pode pôr no noíTo entendi- mento huma Luz , ou huma Voz con- traria ao que Eile quer , e approva. Era iílo huma grande imperfeição em Deos, A fua Razão Éter íía dizer huma ccu- fa, epôr-nos em nós huma outra razão, que diíTeíle o contrario , nao pode fer. Por iílb digo 5 que a nolTa Luz da Razão lie hum pequeno raio da Razão Eterna de Deos , a qual he fummamentc refta. Duvidais diíto ? Commend, Não duvido i mas quiz levar o ponto com todo o rigor. Continuai. Theod. Bem eftamos. Ora Deos nas obras maravijhofas que fez , nunca obrou como tonto , fempre obrou com feu íim i c por iflb em tudo proporcionou os meios com os fins que intentava» Fez os olhos para a luz , 14^ Recreação Filofofica. luz , c cores , e objcdlos viíivcis : fez os ouvidos para a voz \ a harmonia , e a Mufica , &c. E para que faria o homem com tanto apparato , como lemos trata- do , apparato nos Ceos , apparato nò Globo da terra , apparato no corpo or- gânico, e maravilholò , e íobre tudo pa- ra que fim lhe deo o Entendimento que conhccefie , e refleíliíTe nas coufas , e Vontade capaz de obrar livremente ? Pa- ra que fim feria tudo iílo ? Notai , que eíle fim havia de fer racionavel , e fim digno do Juízo de Deos. Ainda mais. Para que fim lhe deo no entendimento huma propensão para a Verdade ; e na vontade huma inclinação para o Bem , quer feja o Bem ahfoluto , quer feja o Bem de utilidade ? ludo iílo poz o Ciea- dor na alma do homem. Dizei agora , amigos , com que fim fez o Creador tu- do iílo ? Em todas as obras de Deos íè acha huma bclliíhma harmonia entre os meios j e os fins a que elies fe dirigido : tudo o que Deos fez he huma eípecie de Relógio , em que a mutua harmonia de peças com peças faz a formofura da obra toda , e o louvor do Artifíce : logo o mefino ha-de Jiaver neíta famofa obra da creação do Homem ^ para o qual (já vos mof- Tarde dezefete. 143 moílrei iíto) para o qual Deos tanto tem feito na Fabrica dosCeos, c na re- dondeza da Terra , e na conítriicçao ma- ravilhofa do noíío corpo, e dotes da al- ma. Acaíb obrou Deos fem fim n'uma obra de tanto eíludo ? ( permitta-fc efta exprefsao.) Seria acafo efte fim , para que o homem comeíTe, bebcííc, paílèaffe, e fizeíle de 11 o que quizeíTe ? Sem mais lei , nem ordem ? E para que foi o dnr- Ihe juizo para o conhecer a Elle , e ia- ber que da fua Mão lie que lhe veio tu- do ? E para que foi dar-lhe propensão na vontade para gcílar do Bem , e co- nhecimento da fua Grandeza , c Ferfei- ção , c fua Amabilidade , Generofidade ? &c. Sem dúvida que foi para que Elle adorafle a fua Grandeza , eítimaífe as. fuás Perfeições, amaíle a fua Bondade j mcreceflè a fua Generofidade ^ &c. Nao he eíte o fim único que faz harmonia com os meios que Deos poz nefta íua obra ? Não he cite fim fummamente conforme á fua Razão Eterna ? Não he bem di- gno de Deos ? Commend, Não o poíTo negar j porque ou havemos de dizer que Deos fez efta gran- de obra fem fim ; e iíío he hum ablurdo inadmlífivei ^ ou que Deos o fez cem elle ^ fim, ' Theod. 144 Recreação Filofòjíca, Theod, Logo o homem foi creado para a-»' dorar a Deos , obedecer a Deos, amar a Deos , e fervir a Deos. Ora iílo he que fe chama Religião. Baron. Vedes , meu Primo , como as cou- fas de que os voflbs Filofofos zombão, são as mais bem fundadas na Boa Ra^ zão ! Se os voflbs Filofofos foflcm ver- dadeiramente Filofofos 5 não ferião in- crédulos 5 nem ímpios , como ellcs são. Mas eu vejo que não .fe levao fenao de huns falfos brilliantes da primcin appa- rencia ; e fera mais reflexão partem , por- que lhes faz conta iflb que abração i mas fe refleftem. com finceridade , vem que nem tudo o que luz he ouro \ c que em lugar de hum diamante preciofo , íe achao com hum pedaço de vidro quebrado , que dando-lhe hum certo geito luzia , mas que em íi não vale nada. Comynend. Vós tendes efpecial geito para Pregador , minlia Prima j fe tomaflèis ef- íè emprego , muita gente converterieis. Eu era o primeiro que me não tirava dos voflTos pés, e ficava Jogo convertido. §.vin. Tarde dezefetti i4y §. VIII. Qjie a Keligião do Homem deve fer culto da Ejiima^ão , Rendimento ^ e Obe- diência. Thcod. Ç tJppoíte , amigos , que Deos tem i3 obrado em nós , e para nós o q«e temos dito , e com o fim de que lhe dcmo€ culto 5 convém entrar na indivi- duação deite CWZf^, e faber em que con- fiíle. As perfeições que Deos nos tem moílrado, que acompanhão a Tua Divina Natureza 5 nos obrigao o noíTo entendi- mento a huma Eítimaeao fumma. ( Re- parai 5 Baroneía , feefte difcurfo vai peio tom fiioíbfíco ^ de que vós goftais. ) Deos deo ao noíTo cntendimiento huma pro- pensão par*a goftar da Verdade , e appro- var o Bem : deo-nos na vontade huma propensão para goítat do Bem » e á nof- ia alma huma força para amar tudd o que he perfeição, Ifto fuppoílo , Deos faz ao noíío entendimento hum maravi- Ihofo apparato , e oílentação das fuás per- feições lummamente grandes , e pafmo- fas. Ora para que he iílo ? fenão pa- ra que ejiimemos nelle huma perfeição fumma. Tom. X L Bê*, .I4Í Recreação Fikfofica, Baroju Qiie cocfa mais evidente , meu Theodcíio ! Creou Deos a luz , pintou as cores , formou os noíTcs olhos *, e fe nós perguntarmos , para que fez ifto ? Quem haverá que duvide que fez ifto , para que os olhos viílem a luz , e as çorcs ; o mefmo dizeis vós no noflb V cafo. Conimend. Nao vos canceis mais nifto que he patente. fTheoã, Logo o Culto que devemos a Deos ht át fumma ejlimação, Comnie-dd, Concordo. tXhead^ Vou continuando. A Grandeza^ de ^ , Deos 5 ofcuPoder, e Magnificência fem < ■.limite, patenteando-fe á nofía alma , pa- -i^rt^. que he , fenao para lhe infpirar juh- mil são , e rej peito, Eíta grandeza de Deos e Poder nao he para nós coufa in- diffçrente , c que não nos obrigue a na- (]a, como íèria a hum Portuguez, v. g. ; B^um canto da Europa , a magnificência ».0'iS poder do Imperador da Ruffia na ou- .' tra extremidade delia; mas hc Foder^ e , ,,,Magnif,ceTícia , e Grandeza de quem nos • Di13reou, e do Senlior de quem depende a - no ria, confervação , e vida , &c. ' He im- .^..ppíllvel que a alma conheça ifto , e a KakãoEttrna deDeos lhe não diga que <^ ã ;í. . de- Tarde dezefeie^ 147 deve "Rendimejtto , fujeiçao , e obediência a quem lhe fez tanto bem , e de quem depende para tudo. Commeiíd. Vós levais o voíTo difcurfo com tanta eípeculaçao , e metafyfica , que eu me atrevo a fazer-vos réplicas , ainda que eu nao duvide. Iffo da obediência a Deos fuppóc que Deos poe preceitos ao ho- mem ; e como provais vós iíTo ? Theod. Èfta voz interna 5 que todo o homem fente em íi ; que ora o louva , approvan- do o que fez , ora o rcprehende , con- dcmnando o que tem feito , de quem he ? Dos outros homens , nao ; da noíla von- tade 5 náo ; porque nos condemna j rcpre- hende 5 e não ccíla de reprehender , por mais quie nós nos cancemos em a fazer calar \ grita , clama , condemna j e a pe- zar de mil difcurfos que fazemos para a convencer, he efcufado. Logo he de Deos , ou da Razão Eterna de Deos , cujo raio formou em nós o que chamamos Lu^ da Razão ^ (fegundo o que já tenho di- tOi) Logo fé efta Luz da razão he a 'voz de Deos ; e eíta Lííz da Razão nos man- da fazer , ou não fazer tal e tal acção , que dúvida pôde haver qtic o noíTo Crea- Gor nos tem dado Preceitos ; e que por . confeguintc o refpeito , e fubmifsao que L ii de- 148 Recreação Fílofofca. devemos ao noílb Creador Jie culto de Kef peito 5 e de obediência» 'Baron, Meu Theodofio , crede que meu Primo eftá convencido ; e fó para vos obrigar a difcorrer , he que quiz replicar. Commend. O que eu tomara que vós me provaíTeis he fe eííe Culto a Deos ( fe- ja, ou não feja à^ fujeição ^ e obediên- cia ) ha-de fer também Externo '•, por- quanto como Deos iicErpirito puro, pa- rece que fomente dcfeja adoração , cul- to y e obediência na noíTa alma , que tam- bém he efpirito. Aílim como dos Anjos - não quer fenão adoração em efpirito ^ e 'verdade, §. IX. Que a Religião do Homem pede culto externo a refpeito de Deos, Theod, f^ Oncordaria comvofco de boa V^ vontade , fe o homem foílb (co** mo os Anjos ) efpirito puro ; mas como no homem ha huma alma , que he efpiri- to , e também hum corpo fenfivcl , go- vernado pela alma, deve o homem render . vaílallagem a Deos com tudo quanto tem , porquanto tudo recebco da Mão de Deos. Vamos por partes. Effe texto que vos tocais da noífa Ef- Tarde âezefete\ ijfí) Efcritura , em que Dcos ( i ) diz, que aquelles que oadorao^ convém que o ado- rem em efpirito ^ e verdade , quer dizer que o Creador não fe contenta com ado- ração fem efpirito , nem com adoração mentirofa , como feria fe adoraíTemos a Dcos do modo que faudam.os os homens ; iílo he 5 por mero cumprimento , incli- nando diante delles o corpo, quando os defprezamos no noílo animo ; ou beijan- do talvez a mão ^ que defejariamos ver cortada \ e abaixando a cabeça a quem dejej ar Íamos ver por lerra. ífto he ado- ração mentirofa., e fem efpirito : eftas adoíaçoes não quer o Senhor : cora que Elle diz que as quer com efpirito ; mas não diz que as quer/í/ com o Efpirito. Fique pois iílo explicado. Agora vamos ao ponto da QueMo. Commend, EíTe he que eu defejo ver trata- do folidamente. Theod, O homem tem alma, e tem corpo: ambas eftas coufas são creaturas de Deos , dadas ao homem para feu ferviço , em quanto vive. Ora recebendo o homem de Deos eftas duas coufas , cada huma del- ias fummamentç eftimavel , como já vos mof- C I ) Joan. 4. 24. t^o Recreação Filofojica, moílrei , não vedes que lie bem confor-* me á razão que com ambas cilas o ado^ re 5 e reverencee , e lhe dê culto ? O Sol 5 a Lua , os Aftros , as Arvo- res , &c. devem obedecer ao Creador , fervindo-o nos minifterios para que Elle os creou , e poz no Univerlb ; mas efta obediência não he adoração, nem culto, porque são coufas inanimadas, intdligencia , nem vontade j o mefmo feria o noíTo corpo , fe clle foíTe fó , e não foíTe governado pela alma , que hç intelligente , c tem vontade \ mas a alm^ como recebeo o corpo para feu ferviço , e o recebeo de Deos, deve dar a Dcqs culto 5 vaíTallagem , e agradecimento com as fuás potencias, çom o entendimento, vontade , &c. e também com o corpo que ella governa, e dirige, e do qual fe lerve , bem como o cavalleiro que rece- be hum cavallo de prefente que lhe fa- zem , deve agradecello , fervindo-íè delle em obfcquio do bemfeitor. Baron, Meu Primo , vós eftais forçando o voíTo entendimento para rcíiílir a huma razão mui clara. Vós não admittis diffe-r íença do corpo do homem regido por huma alma intelligente ás pedras epáos, c mais corpos inanimados ? Os corpos i Tarde de&efete, 15't inanimados , que nem tem juizo , nem são governados por quem o tenha , não go» nhecem a Deos , nem o adorao , fenao em certo modo , fazendo o que Elle lhes mandou , fegundo as leis do Univerfoi mas o corpo do homem, governado pe- la alma , deve obedecer á alma , e a al- ma á Razão Eterna de Deos , ou á Ra^ %ão humana^ raio, ca efpelh o defta Ra- zão Divina , e render a Deos a devida vaílallagem. Commend, Nunca vi Senhora tao efpecula- tiva como vós. Theod, Além diíTo , meu amigo : O hom.cm vive em fociedade , e deve dar a Deos hum culro , que fcja vifivel aos demais^ homens^ Vós não podeis ignorar qué em toda a fociedade para bem delia , ha-de haver huma certa uniformidade nas leis , e nos coílumes. Ora eíla obrigação que cada hum dos homens tem de honrar a Deos , hò geral para todos ; e fendo ge- ral para todos , iie razão que o culto fe- ja viíivel a todos j o que nao pode fer fem fer externo. Baron. Perdoa i-me , Theodofio , que não poíTo ter mão no meu entendimento , que me eílá pulando para convencer meu Pri- xno. Oradizei-me, Primo : VoíTo Irmão , que 1;^ Recreaçãi) Filofojíca. que he o Governador de *** fc paíTan-' • do pela praça d'armas , vifle que todo o povo, e íoldados , e cavalheiros fica- vão immoveis : huns com o chapeo na , cabeça , outros de coitas , çonverfando com os feus amigos: outros paíTeando com muito dcfembaraço , fem que nin' - guem paraflc a feu relpcito , nem fe def- - cubriíTe , nem Ihç prefentaíTc as armas, nem fizeíTe alguma mudança na fua fDoftura , voíTo Irmão ficaria contente , fc he diíTeiTem ao ouvido que todos no Teu coração erão feus amigos ? Ficaria con* tente com eftcQbfcquio puramente inter- no ? Vós rides ! Commend, Rio-me dos argumentos que a voíTa viveza me faz. Mas refpondo que certamente não ficaria mui contente. Baron. Pois o mefmo digo no noíTo cafo ; nós vivemos em fociedade; convém que Deos receba do commum , e de todos a vaíTallagem , e obediência , e refpeito , que todos conhecem que fe lhe deve. Con- tinuai agora, Theodofio , e perdoai-me. Theod, As leis communs de huma focieda- de, meu amigo , devem fer obfervadas publicamente ; porque fendo a obrigação notória a todos , deve também fcllo á íà- tÍ3fa(^o deíTa obrigação, para que aXd da Tarde dezefete. 15' 3 , da Razão não grite efcandallzada. Que feria de qualquer fociedade , fe cada qual no fcu interior guardaíle ás efcondidas huma lei , mas no exterior ninguém o viíTe ? Poderia haver uniformidade nos coítumes , ou harmonia nos membros del- ia ? Sendo os homens coufa vifivel, fendo as leis geraes para todos elles , he de ne- ceífidade que todos as obfervem viíivel- xnente , alias indo cada qual para fua parte , que concerto , € que harmonia po- deria haver no todo 5 quando aada hou- veíTc de commum na obfervancia da lei geral ? Ainda mais. He precifo eítudar fobre a conílituiçao do homem, para re- gular as fuás obrigações para com Deos. As acções externas do corpo são úteis e convenientes para excitar no noíTo ani- mo os aíFeélos internos, e inviíiveis. ^aron. Dai-mc licença , meu Mcílre , que eu já percebo o voíFo argumento , e que- ro-me divertir com meu Primo. Vós, Commendador , quando tomais nas mãos o Retrato de voíTa Irmã valida, ou das peílbas que ternamente amais, com que ternura o vedes, com que aíFeílo ©che- gais ao peito, com que carinho vos ef* tais regozijando na belleza do feu roílo, na galantaria dos feus olhos, na graçio* fi. 15*4 Recreação Filofojica. fidade da fua boca , na fua encantadora formofura , &c. Que diíFerença fentis no voíTo peito, que alvoroço na palpitação do voiTo coraçlo , que fogo no voílò amor P E quem fez iílo , fenao o tomar na mão o feu retrato ? Muitas vezes baila o pegar n'uma fítta , que lervio no cabcl- Io da voíTa amada , ou em huma carta mal efcrita , mas do íèu punho , &c. já eílais mudado. Accrefcento , que fe vós lhe fallais , fe pronunciais o feu querido nome , fe lhe chamais a voíTa bella , &c. já todo o voffo interior cítá infíammado : e porque? fenão pela harmonia que ha entre os afFedos internos , e as acções ex^ teriores. Se vós pegais na pcnna nos dias de correio , e acabados os negócios , efcrc- veis á voíTa amada , e vos entretendes com finezas , cexprefsoes carinhofas , por vcn* tura o bico da penna bolio no voíío co- ração ? Nada diífo ; mas he que eítes mo- vimentos externos excitao os aífedos da alma. Logo fe iílo he na crcatura para outra crearura , não fera a mcfma filofo- fia no culto delias para com Deos ? A proílração no Templo , a elevação dos olhos para o Ceo , o bater no peito quan-» do fe pede perdão , o pronunciar pala* vras Tarde dezefete, ' i^^ vras de refpeito , de amor , de obediên- cia 5 que ternos aifeélos nao excitaono coração interno ? Logo eíTe culto exte- rior hemui precifo, e muito útil para o interior que todos confefsão que devemos a Deos. Commend. Oh minha Prima , parece-me que por alguma freíla obfervaíles o meu cora- ção ; pois que tão propriamente pintaf- tcs o qujC nelle fe paíTa a refpeito da mi- nha Irmã 3 que também vos deve pai- xão ! Theod, Meu amigo , eu nada fei do que diz aBaroncza, fallei cm geral j naomecon- demncis de maliciofo. Mas eu como Fi- lofofo quiz fazer reflexão fobrc a mutua dependência que tem a noífa alma , e o corpo 3 para mutuamente fe ajudarem hum ao outro nos aíFedtos , e movimen? tos \ tanto alPim , que até a fííionomia . do roíto indica os aíFcílos do coração ; c pelo femblante de cada qual eílamos vendo os affeílos internos, que rei não no feu animo. Quem ha que vendo de lon^ ge hum homem com a cor do roílomu-^ dada , os olhos accezos , os paíTos inquie- tos , os lábios trémulos , as acções vio- lentas, aboca efpumando , não diga que íem hijmg grande cólera ? Quem ha que T$6 Recreação Filofojlca. ■ encontrando hum homem com os olhosf efpantados , cor pálida , femblantc paf- mado 5 palavras mal pronunciadas , paf- fos inconftantcs , que ora vai depreda , ora pára , ora obferva os ares , ora me- dita na terra , não diga que eíTe homem eftá perto de enlouquecer ? Do mefmo mo- do difcorremos em outros calos. Baron. Ha peíToas fcliciíTimas em tirar pe- la íifionomia do rofto o caraílcr da al- ma de cada hum ; nefte conhecem o juí- zo , n'outro a patetice , nefte a malicia . refinada , naquelle a candura do coração : já faliando entre nós as Senhoras , logo ■ conhecemos quaes úo os cuidados de ca- da huma, V. g. fe tem paixão denmor, íc padece a queixa de ciúmes , fe tem faudades , fe tem coração frio ; tudo co- • nhecemos muito bem , e não fe podem encubrir os aíFedlos da alma a olhos fe- mininos. Theod. Ora ifto faz hum argumento evidentit íimo ; porque fe táo ligados cftão os affe- ftos da alma, e fentimentos do coração com as mudanças do corpo ; também para nós darmos ao Crcador aquelle culto inter- no que pede a fua eílencial Grandeza , e benefícios que lhe devemos , he razão aju- dar-nos dos movimentos ^ e acções do cor- Tarde dezefete. i^j corpo no culto externo que para o in- terno concorre. Commend» Acho-vos muita razão ; mas a mim fazia*me força para duvidar , antes que vos ouviíTc o que lia da Grandeza de Deos a refpcito da noíTa viliíTima mifc- ria. Cafualmente hontcm á noite me em- . prcftárão hum pequeno caderno , (i) em que fc combatia eíTe culto externo por hum modo que me fez grande impreísao»^ Farei por me lembrar das fuás razoes: ?j Deos he infinitamente fuperior ao )> homem , nem tem neceíFidade do nof- j> fo culto 'j porquanto a adoração e cul- 5J to deíla ridícula creamra , qual he o 5? homem , que lhe pode lá fazer á fua 3j gloria infinita ? Quem fomos nós Ato* 5j 77ÍOS vis a refpcito de fua ineífavel Gran- » deza , para que Elle do feu Altiflimo 5? Throno fe digne de olhar para nós, j5 e para fc inicreíTar nos noíTos abfe- 3? quios , e adorações ? Que neccífidade 5? tem lá dos noíTos cultos , ou que lhe 5) importão as noílas palavras , os nof- >j foscoílumes, as noílas obras ? Porven- j? tura podem ellas alterar a fua paz , j> diminuir a fua gloria , ou fazer a mi- » nima mudança na fua felicidade eílèn- ?5 ci- ^ 1 ) Hljiokc abrc^iit dcs Religions du Monde. 'TjS Recreação Filofófica. 35 ciai, &c. jj e outras coufas deíTc gé- nero ? ConfeíTo que cfte difcurfo ine fez imprefsão grande; e fiquei aíTentando que eíle commercio de adoração e culto en- tre Deos e os homens , era fruto da preoc- cupação que tinhamos defde a inenini- ce , caufada pelas mais , e amas. Perdoai , minha Prima , mas hc fallar com lizura. Theod. Mal fabeis, amigo, quanto vos he útil eíTa lizura ; porque defcuberta bem a chaga , fe pode curar facilmente. Vós fois homem de juizo: ora pegai bem na ba- lança , e ouvi a refpofta ; podo que nao feja com eíle ar enfático de perguntas , e * admirações , que nao he o mais folido , fendo o mais plauílvel. Baron, Meu Theodofio , quero a refpofta folida , deixcmo-nos de bellczas falfas. Theod. Todo eííc difcurfo, meu Amigo , fe funda n'um principio falfo , e que nin- guém teve jamais por verdadeiro. Commend, E qual he? eu nao o vejo. Theod, Vejo-o eu , e logo vo-lo moítrarei , ainda fem precifarmos de óculos , nem de Microfcopio. Funda-fe cm que o noP fo culto he precifo para augmicntar a glo- ria de Deos ; e tal nao ha. Bem louco . feria quem quizcíTe lançar as fuás lagri* mas no mar , para que crefceíTeiíi as liias mi- Tarde dezefete. i^r^ imrcenfas nguas ; pois ainda feria mais louco quem cuidaíle que os noííbs cultos erão prcciíbs , ou utcis a Deos , para lhe augmcntar a ília Infinita gloria. Digo que feria mais louco, porque as lagrimas, e o mar tem proporção de couía limitada com ccula limitada , que fempre he al- guma proporção; mas o noíTo culto , e a gloria de Dcos não tem proporção alguma , porque hc entre o Finito , e In- finito, Vós 5 Baroneza , já na Geometria eftudaíles as leis de Proporção ; e o Se- nhor Commendador fupponho que tam- bém as fabc. Commend, Até ahi chegarão os meus efíu- dos, Theod, Continuo pois. Deos não quer, nem manda eílcs cultos por ter neceífidadc dclles , iílb fazem os homens que andão mendigando louvores, e fecontentao (ain- da que lejao falíos) dos meros cumprimen- tos. EUes morrem á íede de louvores, porque de íi não tem gloria eílencial, c tudo o que ha de bem nelíes he limi- tado , tudo pode crcfcer , ou diminuir ; porém Deos tem de íi huma gloria infi- nita , e cila a tem na fua mefma EíTen- • cia , não lhe vem de fora; porque fora delle tudo he hum Átomo, invifivel-, ou hum Nada, A l6o Recreação Vilofofica. A razão pois porque Deos quer os noíTos cultos , he porque a fua Eterna Razão quer tudo o que he ordem , tudo o que hc Razão. Eu já vos difle que a noíTa Boa Razão era hum reflexo 5 que di- manava da Eterna Razão de Deos , e por confeguinte tudo o que a nofla Ra-^ zão claramente diz , também o diz a Eterna Razão de Deos. Ora pelo que tenho dito , meus amigos , que coula mais racionavel que louvar a creatura o feil Creador , que a formou , e que lhe deo todo o fer , e todas as perfeições que ella tem ? Que couía mais racionavel , que o homem tendo recebido de Deos o Entendimento , e tendo conhecido tudo quanto Deos faz para feuBem UQ^Ceos.^ na terra , no feu corpo orgânico , e na fua alma y fem que elle lho pediíTe, ou merecefle , ou eípcraíTe , tendo recebido alémdiíTo a fua //^fr^-í?^(f capaz de amar, ^ j o louvajje y o amajje ^ e ofervijfe , obe* " decendo a hum Ser Infinito em perfeição própria ; e além diflb fummamente be^ . nevolo para com o homem. Pode porven- tura haver coufa mais racionavel do que eíla? Commend* Não, não, não. IlTohedefum- , lua evidencia* | Theod. Tarde ãezefete. i6l Theod, Logo he impolTivel que Deos nao appronje , e queira , e mande efte amor do homem para com Deo? , eíle louvor dos homens para com Deos, cfta obedi^ encia dos homens para com D^os. . Commend. Concordo ^ e eílcii contente , e bem fatisfeito. Baron, Ora graças a Deos y que vos vejo concordes. Theod. Pois eu aiilda níío cftou fatisfeito, porque ainda tenho que dizer : ainda ha outra razào convincente , á qual tomara que os voíTos Filofofos refpondeíTcm. Baron, Dizei-a por quem fois , que a al- tivez; com que meu Primo fallou , mere- ce que deixeis bem por terra os feus i/f- temas. Theod. Aííim como Deos nao fez os olhos íenão para ver , nem os ouvidos fenao para ouvir, e a ilTo fe dirige a pafmoía fabrica de cada hum deftes fentidos ; nem haverá quem diga em todo o mundo , que Deos pondo tanto eíludo neíles orgaòs, não foíle o fcu intento que o liomem vif- fe 5 c que ouviíle \ aífim também pondo Deos no entendimento do homem huma propensão para a verdade , na fua alma huma propensão para querer o bem, hu- ma propensão . para amar o útil , tendo Tom. X M Deos ii% Recreação Filofojica. Deos cm fí a perfeição fumma , a bon- dade íuiiuna, a conveniência do homem funmia , he impoíTivel oue CjUando for- mou o homem não intenta ílç o íèu amor , louvor, e obediência; porque tanta prc- porçio tem os plhos para gozar da luz , cores 5 &c. os ouvidos para goílar da harmonia , ouvir as vozes , &c. como tem a noíTa ahna para amar a perfeição , gottar do que nos he útil , louvar o que he perfeito ; c por confeguinte amar^ e louvar , e obedecer a Deos ^ que he a fum- ma Bondade , Perfeição , e Conveniência, Ora refpondei-me , le podeis. ^aron, Qiie he iíTo , vós rides ! O rir nao he refponder ; ha pouco dizíeis , que as razões dos vcflbs Filofofos vos conven- cião ; e agora que dizeis ? Conimend, Theodoiío leva as couíàs com hurfí methodõ tão efpcculativo , pau fa- do , c folido , que íião fc lhe pode ref- ponder. ^won, Efqueceo-vos huma palavra , ver^ (íacleíro\ poílo que fein volve r,o falido ^ &c. Meu Primo , não ha çoylà mais fá- cil que he dai' á falfidadc huma côr bo- nita, viva, agradável, ufando de certas admirações, perguntas, einvcftivas gof- tofos, que põe a imaginaíâo em mt>vi- inen- 1'arde ãezefete: ííj mento , mas nada concluem. Quem quer conhecer a verdade , difcorre fòbre prin- cípios ceitos ^ e tira confequencias fe- guras. Commend, Mas quem tem cá paciência pa- ra levar as coufas com o rigor lógico , como Theodofio faz ? Baron, Refpondo : Quem quer acertar, e pôr o pé firme cm pedra folida , e não quer faltar , como dançador de corda, com perigo de quebrar pernas, e cabeça. Theod, Amigo 5 quando ò ponto fobre que fe diícorre he ferio , e de importância , nâo fêolha a que o difcuríb feja brilhan- te 5 vivo 5 enérgico , encantador , &:c. fo- mente fe deve olhar a ver fe he verda- deiro 5 fe he certo , ou perigofo , &c. E aííim difcorre todo o homem fefudo no ai ranj amento das fuás poíTefsões , no efta* beiccimento da fua familia , na acquifi- Çvlo dos feus lugares honrofos , e na ren- da da fua caía: então não fe querem ver- fos , enfazes , admirações , perguntas en- fáticas j mas contas ferias , juftas , e cla- ras 5 como quatro e três fazem fete. Ora defte modo nunca difcorrem os voíTos Fi- lofofos. Eu difcorro como vedes , vós bem o conheceis j julgai agora quem a- certa rá, M ii Ba- 1(54 Recreação Vilojofica, 'Baron» Ah meu Primo , que iinprudeflte, V e que Icuco he o modo com que eu ve- - jo que os voíTos partidários tratao citas matérias do culto que fe deve a Deos , e »-rputras femelhantes , as vezes he na meza , entre prato c prato, copo e copo; mas fe nefle tempo vem algum de ièus ren- ^ deiros a dar-lhes contas, ou fe elles são . chamados para negócios de importância, . mandão que venlião bufcar a reípofta em , outra occafião. Quem quer penfar feria- • mente, buíca lugar e tempo opportuno, e deixa que o cílomago nao trabalhe na digeftao , focega a familia , rctira-íe ao .. feu quarto , evita os eítrondos , nao ad- ► mitte recados , nem perguntas importu- nas : encofta na mao a cabeça , fecha os i:. olhos , e com focego eítá pezando na f. Imaginação as conveniências , e os peri- - gos , os dcfcontos , e as utilidades ; e fò- ,. mente aííim obra com prudência ; então -: toda a Lógica he pouca, toda a efpecu- r. laçâoutiL Mas os voílbs doutores fallan- ^ do deite ponto , que joga immediatamen- f. te com o Todo-poderofo , e com a noC- ., fa felicidade, ou dcfgraça eterna, fahem í com quatro verfos , quatro palavrinhas >r. galantes , hum rizo de zombaria , duas finezas a huma Madama , e huma }oco- fi^ I Tarde dezefete. " 16'} fidade nova, e eftes sao os meios de a- certar com a verdade. O' meu Prim.o, confeíTai que os voíTos Filoíbfos são lou- cos. Náo lho poílb fazer por menos. Vamos adiante , Theodofio. Comviend, Vamos , que já vou mui bem caíligado por minha Prima. "l BãTon. Não digais cafiigado 5 dizei enfi-- nado. Commend. Tudo he , eníinais o entendi- mento, e caítigais a vontade. Paílemos, Theodofio, a outro ponto. Sohre as DcmonJlraçStis do^ culto, externo* Theod, T7 Stabelecido éftc ponto éíTenci ai , H que o homem deve a íeu Deos não fó o culto 5 e veneração interna , mas culto , e veneração externa , he razão que fal lemos das Demonftraçoes , ou ce-^ remonias deíle culto. Commend, Iflb quanto a mim he arbitrário , e depende dos climas , dos tempos , dos coftumes , &c. Theod, Concordo comvofco ; porque até na Lei antiga , dada por Deos ao feu povo , vemos que o culto externo do Senlicr con- t66 Recreação Fihfqftca. confillia em facrificios de ovelhas , &:c, cm fumos de incenfos , em outras cerer inonias determinadas. Agora porém na Lei da Graça uiamos de outras ceremo- nias , que são a genuflexão , o ufo do Thuribulo , as proftraçoes , &c. ]Saron. Eu creio que eíTas cercmonias devem - fer accommodadas aos tempos , c climas ^ e outras circunftancias , como são as ce- -' remonias de civilidade entre nós , que são mui diverfas conforme as pcflbas. Huma Senhora entre nós faz a fua corr tezia , fazendo mui direita a fua mefura \ c o Cavalheiro ll\e refpondc com huma inclinação de meio corpo , e pé rapado . como dizem. Cçnimend, Se troca íTem , íèria objedto bem . ridículo 5 ver huma Senhora inclinada profiuida mente , rapando o pé ; e o Car . valheirp curvando os joelhos á moda de ' mefura , íèm dobrar a cabeça. paren» Os foldados fazem cortezia aos Ofr ficiaes , ficando com o chapeo na cabe- , ça, e prefentando a arma : ora fe algu- : ina mulher que me quizeíTc obfequiar, quando eu palTaíTe , ficando mui direita , . me prefcntaíTe o íèu kque em forma, de clr pingarda, quem não riria: os Chinas fa- < ;iexii as fuás cortezias a feu modo. Os Tarde ãezefete^\ lêy Tonquinezes cruzao os braços, e atifáo comfigo ao chão. Outros fazem ijs cor- tezias tirando es çaparos ; ernfim cada Paiz tem o fei ufo , e a fua partlculac' ceremonia para demonílrar a veneração que tem á pefíba a quem querem obfc'- quiar. Theoà, Pois omefmo fuccede no culto que damos a Deos , e o que n'um Paiz he nlb, n'ourro nao he. Sc he licito filofo- hx nefte ponto , que he tão diverfo Co- mo tendes viílo , eu lhe acho tal y ou qual principio a que íe devem alligar eflas cc- remonias ; e vem a íèr y moítfar a Alte- ia do objeclo a quem obrequiamos ; « para fazer ver que o reputamos grande, nos fazemos pequenos a feu refpeko : as Senlioras com a niefura profunda fe fa-^ zcm mais- pequenas i- os homens incUnain- do o corpo e cabeça , também fieão a-- baixo áo fujeito a quem querem honi^âr : o dobrar o joelho também nos faz mais inferiores ao fcberano a quem fademos eíTe obfcquio. Do mefmo modo o tirar o chapco já faz menor o fujeito que por iífo fica defcuberto : o proílrar-fe por ter- ra muito mais > e apeiar-fe do cavaílo , afahir da carruagem , eceremonias fcme- ■ Ih^ntes. Efla^ ceremomas cainto flos hz t^S' RecreaçSo Filofojica* a nós pequenos, como fazem grandes a noflb refpeito efles fujeitos a quem que- remos obfequiar. Comniend» He a primeira vez que vejo fi- lofofar em cumprimentos de civilidade, couíà que he arbitraria ^ e de mero cof- tume. Theod, Ora deíle mefmo modo deve o ho-. mem , que adora a Deos , ufar daquellas ceremonias , de que no ufo e coftume do fcu Paiz íignificão iiumildade da noíla parte , e Alteza da parte de Deos ; o ajoelhar , o proítrar- fc por terra , as in- clinações profundas, &c. Baron. Dai-me licença , Theodoíio , para vos contar huma coufa que me fuccedeo eftando eu cm Baiona em cafa de Mr. * * * * tinha-me efquecido o meu leque fobre huma meza do jogo , e pedi a hu- ma criada grave de Madama , que rao foílc bufcar , e ella polidamente mo trou- xe , e fe poz de joelhos com ambos el- les em terra, para que eulhepegafle. Era Portugueza , vinda de pouco para o fer- -viço da Madama , e todos le rirão da ceremonia ; eu perguntei-lhe : Se me aioelhais a mim \^ cpie guardais para Dsos ? Ella percebco o meu reparo , por- que yio quç todos fc riãp, e refpondeo À ^ mui Tarde dezefete. 169 mui dcfembaraçada : Refervo o bater 720S peitos. Todos celebrarão com rifo a refpofta , e ficarão deítiilpando a criada, por íer cíle o coílume do Paiz. Theod, Tanto querem os homens refinar os obfequios humanos , que pouco lhes faP ta para os equivocar com es Divinos. E nos obfequios a Decs , e dos Santos , também os abufos , e ignorância dos po- vos tem introduzido ridicularias. Anti- gamente o modo de obfequiar a Deos; era fazer facrificio de varias coufas , de cujo ufo nos privamos em obfequio do Senhor, e aqui fe reduziao os iacrifícios das rezes que fe degollavão , es hoiocauf- tos das rezes que fe queimavao , os Thi- miamos dos perfumes que fe evaporavão , e coufas femelhantes , privando-nos em obfequio do Senhor deífas coufas que fe - deílruião na fua prefença; e deftas cere- monias então fagradas paíTárao algumas para os Idólatras a refpeito dos feu ído- los 5 e dos falfos Deofcs ; porque quaíi todos tiverão origem no culto de Deoá' . na Lei antiga. l Commend, Pode logo cada qual dar a Deos o culto externo como quizer ; e poderei eu fazer para iílb o meu Ritual? Tbeod. Nao hc boa confequencia ^ e'xe& pon- f^o IRecreação FilofofUa, ' pondei-mc : nos voíTos criados , nos voA fos patticios 5 nos voiFos amigos pode* ri cada qual cortcjar-vos em público co- mo lá quizer? E poderá cada qual fazer a voiTo reípeiro a ícu ccremoniaJ ? Commend, Kão ; porque íc llie pareccíTc dar-me hum a bofetada por deiTionftraçiO de amizade ^ como íè foíle dar-ine hum - abraço , ou dar-mc hum oículo , leria bem galante eíla civilidade cm pública. Theod. Pois ahi tendes a rcfpí){b do que ■. ms diíTeílcs a reípcíto das ccremonias do ^ culto de Deos. Não he licito a cada hum . inventar novas cercmonias de obfequio, quando não efláo approvadas pelo ufo • coiTuniuTi do Paiz , ou da corporação em : que vive* E fbmpre fe devem preterir as que eftão legitimamente adoptadas , alias ; zombariao de nós a feu falvo, dizendo, • que no fka Ritual ofezereíJ-a ^ ouaquel- la acção y ainda a mais ridicuía , e inju- • riofa y ei'a o mefmo que abraçar-nos ^ ou í diai"-nos ofculos , ou coufa fenielhante. . €omm6Jul. Eílou bem perfiiadido- ^heod. Ora neíla parte da Filofofia Moral , r que: trata dos Deveres do hometn para> : - cora Deos y temos falkdo a-ffás \ convém $gora entrarmos na: pairte que trata dos - J)ev^rzs daboracai pana comfigo meiiiK?* * Tarde dezefete, ijx Commend. Ifib ha-de fer nnateria mais larr ga ; e he tempo de vós , Senhora , dar at tenção ás vifitas , que eu eílou íentindo no quarto de voíTa Mãi. A' manhã com gofto eo viria á Conferencia de que já gófto ; porém pcrfuado-me que não vi- ' rçi. Baron, Bem fei que para vós he dia affás occupado ; não queremos a voíTa viíita com incommodo voíTo, cem be razão. ; #^H* PAR- 172 Recreação FiJofofiba. ^ ^ /«v /ov /Sv ^ j^ ^ ^ i^s. /5^ i^ PARTE II. DA FILOSOFIA MORAL. ■ '■ " ■ II.. II , ^ TARDE XVIIL Das obrigações do Homem para comjígo mef?no* §•1. Do Amor jujlo que todo o homem fe deve ter a JL Theod. T TT Oje , Baroncz?! , havemos de I I tratar das obrigações que tem -*- -*■ o homem para comíigo mef- mo ; c em quanto nao temos companhia para a Conferencia , convidai voíla Mai , para que nos queira lionrar com a fua affiftencia ; porquanto no que for jufto , fe concordar comigo a doutrina , fará no voíFo animo maior imprefsáo ; e fe não concordar , a difputa pacifica fará que brilhe mais a verdade. Baron* Eu vou convidalla , porque não lin- ^Ãi i to r ' Tarde dezoito, -1'j:^ to Yiíitas ; e com goílo nos ha-de acom- panhar 5 e com o feu grande juizo nos ha-de entreter. Madam. Aqui eílou , Theodofio , que me quereis ? Theod, Eu tinha determinado continuar a Inftrucçao da voffa íiíha , ponderando as obrigações que todo o homem tem a reí- peito de fi mefmo i e como nos falta a companhia dos dias precedentes , a Ba- ■ roncza quiz que vós nos ajudaíleis a pon- derar as verdades uieis que niílo ha. Madanu De mim nada podeis efperar fe- nuo algumas reflexões íòbre o que vós differdcs , fe for coufa jque nao paíTe fo- ra da minha curta esfera. Começai , Theo- dofio. Thcod. Não ha coufa mais decente a huma creatura difcurfiva , do que defejar conhe- cer os princípios febre que deve eílribar o Regulamento das fuás acções. O vulgo, c a gente que nao penfa , coíluma que- rer o que commummcnte os outros que- rem , e aborrecer o que vê que os mais aborrecem j mas o homem difcurfivo de- ve fempre bufcar os principios folidos para regular o feu querer ^ e o feu abor- recer 5 erpecialmcntc nas acções que per- tencem a íi mefmo. , Ora como temos hu- ma 174 Recreação Filofojica. ma propensão innata para nos amarmos a nós mefmos : Toda a creatura djjcur^ Jiva deve examinar bem onde efiâ o feu folide interejpe , e verdadeiro bem para o bufcar, Baron, Pois como , Theodofio ! Nao he eíTe hum principio da Filofofia maldita , dos Filoíbfos da moda, que dão por li- cito (fegundo tenho ouvido) tudo o que nos faz conta ? Theod, Dizeis bem ; e quando Jiouvermos de tratar das obrigações do hom.em pa- ra com os outros homens , Ic difputará cíTe ponto. Sc tomardes eíle principio co- mo clles o tomão , he péíTimo , e caufa o maior efcandalo á Razão , á Religião , e á Humanidade j mas no fentido em que eu o tomo , e como eu o explico , he fummamente decente , além de fer ver- dadeiro. Vós haveis de reparar , que cu diflb o feu folido interejje y e não inte- reíTe apparente. Ma dam. Agora ceflbu o meu efcandalo , Tiíeodofio ; porque eu também fcmpre vi declamar contra o Amor próprio , e que o reputavão como a pcfte da focie- aade , e rtiina dos coítumes. Theod. E o caio he que dcclamão bem, e eu fou deíle mefmo fentimento ; mas , Sa- Tarde dezoito. 175: Senhora , Jia hum Amor próprio kgiti* mo j com o qual nós procuramos o nof- fo Bem verdadeiro , lolido, e durável; e ha outro Amor próprio bajlardo , que não olha para o Bem folido , e verda- deiro , mas fó para o bem apparentc , falfo , e paílageiro. Quando hum Bem prefente me procura hum fnal futuro ^ ou me arrilca a clle , não he hum Bem folido y e verdadeiro , como fuccede ao Lidrao que furta , levado da cubica do ouro a que lança a mão ; porque eíTe èem apparente lhe traz o crime , a for- ca, e a perda da honra, e da vida, Scc. Hum bem que Uie acarreta tantos ma- les , não he hum Bem verdadeií^o , nem folido, nem confiante. Ma dam. NeíTe fentido vejo que o voílo principio he racionavel , e bom. Theod, Eftc Amor legitimo foi plantado pelo Crcador na alma de todos os ho- mens ; e por iílb todos fentem no íèu co- rajão cíle defejo do próprio Bem ; poíto que muitos fe enganem no conhecimen- to delíe, tendo porhum£^;í^, o que vcr- . dadeiramcnte he hum maL Para iílc he que o Senhor nos doo o entendimento para comparar as utilidades do chamado Bem còm os defcontos que encontra- mos '17 6 Recife a cão Vilofofica- mos nclle , em ordem a conhecermos fe he Bem na realidade , ou vem a íèr hum grande MaL Baron* Emendo bem ; mas não vejo por- que elTe amor de nós mejmos feja plan- tado pela Mão do Crcadorna nofla alma. Theod. Sc nao o vqòqs , agora o vereis. Quando nós achamos cm todas as coti- fas materíaes huma geral propensão pa- ra ir para baixo, dizemos que a gravi- dade foi impreíTa pela Mao do Creador em tudo o que he matéria ; porquanto aquellas propensões, que são abíoíutamen- te gcraes , da Natureza he que vem , ou fallando com mais clareza , vem da Mão do Creador. Ora eíte Amor, que cada qual fe tem ^ íi próprio', he generaliílimo , e duvido que haja homem que eílando em fcu juizo deixe de defejar o feu Bem ; por confeguinre, de Deos nos vem efla propensão. Ora fingi que havia huns ho- mens de tão froxa natureza , que nenhum defejo tivefiem do feu próprio bem 5 di- zei que fariáo clles , não tendo eftimulo para acção alguma ? Madam. Eífe penfamento he quimérico , porque ninguém obra íem fim ; e o fim das noílas acções fempre he hum Bem^ ou verdadeiro, ou apparente, Theod. Tarde dezoito* 177 Theod. Logo o defejo deíTe bem he que move todo o homem a obrar ^ ora obrar para fc adquirir algum bem , he obrar por A7nor de fi mefmo , ou por amor proprioi Se o Bem he 'verdadeiro , o amor próprio he jufto e louvável , mas fe o Bem he falfo , ou mui contrapezado com defcontos, íica \\M\x\Mal\ então o Amor próprio he bajlardo , e reprehenfivel. Baron, Eílou perfuadida ; mas qual he a obrigação do homem para comifígo ? Theod. Refleâir lèriamente no que he hum folido bem para elle , e procurallo ', por- , quanto íó aííim he que elle fe ama a íi , conforme a lei da Natureza. Os que não crem na Immortalidade da alma, fe po- dem facilmente enganar , bufcando para a fua felicidade algum Bem falfo , que feja M^/ verdadeiro j iíto he, hum bem tranfeunte, que quando menos o homem o efpera ^ lhe deíapparece , e lhe deixa a alma em vão^ e faudofa do bem que lhe faltou ; ora com eílas más circunílancias já eíTe bem , que parecia que o era , fe converte em mal. Madam. DeíTe modo deixais o homem de- ièjofo de hum bem folido por lei e pre- ceito da Natureza ; mas de tal forma dif» correis que o pobre homem defcjofo da fua Tom. X. N fe- ^78 Recreação Vilofofica, ■ felicidade , a nao pódc confeguir nefta vi- da. Deixai-ir.e explicar aífim : Deixais o homem jogando ( como minha filha quan- do era pequena ) a cabra cega , andando por toda a parte com os braços abertos para topar com a fua felicidade , fem ja- mais a poder encontrar. Theoã. Senhora , ainda me nao declarei de todo. O bem que o homem deve bufcar para fi em ohjfèrvancia da lei do Amor próprio legitimo^ he o bem verdadeiro, ifto he 5 a ^virtude , ou a perlei ta har- monia das fuás obras com a fua lei da Razão. Eis-^qiú hum Bem f o lido y que nunca lhe ha-de fugir , fe o homem o buf- ' car ; nimca lhe ha-de faltar , fc clle feria- mente o quizer poíTuir. Eíta confonancia entre a noíía Lííz da Razão , e as nof fas obras he hum Bem fummamente fo- lido 3 e que traz huma indizível fatisfa- i ção á alma. Porquanto fabe que agrada - ao Supremo Senhor , que creou o Uni- vcrfo, e que lhe infculpio na, fua mente a Luz da Razão, ?5 Eíla Luz da Razão 5j (diz a alma) he huma voz do meu - » Greador, pela qual me ordena que fa- - 55 ça eíla acção , e que evite aquella. Se • 5? eu obedeço a iíto , neceiíariamente ha- , 5» de goítar de mim. Ora que maior con- 55 fo- Tatãe dezoito. T79 5? fiação que agradar eu ao Todo-po* 55 derofo ^ de quem tudo depende. 55 Po- de haver maior gozo, e íatisfaçâo ? Madam, Tendes bem razão ; como pelo contrario huma alma bem formada , quan- do depois de muitos crimiCs cahe emfi, e vê que a íuzLuz da Razão lhe con- demna as fuás acções ^ e que não pode negar que obrou mal , íente huma tal diíplicencia de li , hum aborrecimento a íi mefma , huma raiva contra a defordem de íua liberdade , hum aguilhão de pena de aííim ter obrado ^^ que intimamente fe afflige , e não pode coníblar-íè ; e como vê que a Voz da Razão a eílá fempre reprehcndendo , e que por mais que for- ceje, não fepóde deículpar, e que fe vê obrigada a dizer continuamente jFxr; mal^ como que fe eftá mordendo na íiia im- paciente defefperação j de forma ^ que ain- da que neíTa acção reprehendida tiveíTe, quando cegamente a fez , alguma confo- lação , depois he grande o remorfo , quan- do vê que eífe enganofo bem que bufcá- ra 5 foi hum verdadeiro mal que a ator- menta. Eu , Theodoíio , confeííb-vos que ás vezes he tal a afflicção de me ter dei- xado levar da paixão na primeira appa- rencia , que adoeço. Donde infiro ;, que ísí ii to- l8o Recreação Fikfajica. toda a peflba que quizer obrar comode- ve , ha-de procurar em todas às fuás ac- ções eíla harmonia com a fua Boa Ra- %ão. Tu, minha filha, es ainda mui ra- pariga 5 nao podes fentir , como cu , a crueldade defta contínua reprehensao da Luz da Razão , quando obramos mal. Baron» Eu confeíTo , minha Mai , que iíTo hc aíHm 5 e que regulando huma peflba as fuás acções por eíTe principio de pro- curar o feu folião bem , nao pode deixar de obrar muito louvavehnente. Porém em quanto fomos raparigas , parece que al- guma defculpa temos de nos contentar com o Bem a pp ar ente que lè nos mof- tra. Deixai-me , minha Mãi , advogar por hum pouco a caufa da gente moça, que eu vejo que vai condemnada á reve- ria : ainda que eu nao o farei deveras. Madam. Gabo-te , minha filha , o gofto de advogares huma coufa tão má. Deos te livre que o faças bem. Barojj, Ora , minha Mai , como ainda íbu moça, nao he eftranhavel que eu advogue a caufa das minhas amigas. Com que, vós quereis que todas as raparigas dei- ■ xem os feus divertimentos , e paflTatem- pos , e goílofas amizades , e intrigas de galanteria que tem como na mão! e if- fo Tarde dezoito. i8i fo fó pela efperança delia fatisfação me- lancólica que lhes virá na decrépita velhi- ce , ou ao menos na idade madura , e reflexão fílofofica ? Oh não , minha Mâi , não fejais para comnofco tao auítera na íilofoíia ; deixai que demos tempo ao tem- po, e á prim.avera da noíTa idade as flo- res quenella nos liíòngeao. Lá virá o ma- duro outono 5 em que penfaremos como Thecdollo ^ e como vós. Dai licença , que em quanto o mundo eítá rizonho para nós , também nós nos riamos para dle ; confenti que em quanto a natureza heviva, e eílá inquieta, e buliçofa, te- nha o feu defatrogo *, e que não larguem • as raparigas eíTe bem que tem na mao fó pela efperança defle outro bem , que pelo tempo adiante efperáo. Madam, Ah , tu riz-te ? Nâo fizefte tão mal o teu papel. Theod, Agora devo eu acudir , Senhoras, a eíTa voíTa pendência; porque não fuc- ceda que alguém que ouvio a filha , lhe tome a fua doutrina. Madam, Parece-me bem. Theod, A voíTa razão , Baroneza , he efta , que parece árduo largar huma peíToa ef- fe bera que poffue , e tem na mão , pela cíperança de outro bem futuro, que ain- da x82r Kecreaçao Filofoftca, da não vê. Ora dizei-me : Quando vós femeais as voífas herdades , não largais da mão o bem que tendes nos voflos cel- leiros 5 para lucrar hum bem que ainda não vedes ? c que vos arriícais a talvez a nunca o ver ; como v, g. quando fe jnallogrão as novidades ? Quando man- daftcs concertar os telhados do voílb Pa-- lacio , não largalles boa fomma de di- nheiro , que na voíTa mão tinheis , fó por* qiie efpcraveis hum bem futuro ? Não o podeis negar. Logo he coufa frequentif- fima largar hum homem o bem que vê , e que poíTue , para adquirir hum bem que nem pofliie , nem vê , nem tem a certeza total de o vir a alcançar. O meC- mo digo da Virtude \ porquanto a Luz da Razão nos manda trabalhar para confe-» guir eíta paz , eíle focego , eíla íatisfação da alma. Ora vós não podeis negar que ifto he hum grande Bem \ e Bem foli- do 5 Bem confiante , Bem que fempre acompanha a alma em quanto cila dura j Bem que não depende dos outros bens , não cftá fujeito á variedade, e capricho dos homens. Bem evidentemente fupcrior a todos os outros bens , com que a ida^ de 3 e as pakòes nos coftumão lifongear jia mocidade. Tarãe ^€zoito, j 8 3 Baren, Eíloii poriíío ; evos bem vieis que eu eílava brincando; e que o fiz porque a converlação entre trcs , concordando todos no mermo , perdia todo o fal que ccítuma fazella goílofa. TheccL Concluindo logo eíle ponto , temos que todo o homem pela lei innata da Natureza deve procurar o feu bem fo- lido 5 o que hc hum verdadeiro , e legi- timo Amor propício* Mãdam. Tomai lèntido , minha filha , que ha-dc fer hum Bem folido , e nao fomen- te na apparencia , como dizem os Filo- fofos da moda. Theod, Quando nós tratarmos das obriga- ções do homem para com os outros ho- mens j trataremos com algum dos noíTos Filofofos cíTe ponto de bufcar cada qual o feu intereíTe, a torto e a direito, (co- mo fe diz ) que he origem de defordens immcnfas ; mas do modo que eu digo , já vedes que não ha coufa mais fanta , nem mais conforme á Boa Razão. Madam, Eíle defcjo do bem da Virtude ^ ou da harmonia entre a nojja Boa Ra- zão 5 e as nojj^as obras , he a prova de nos amarmos deveras a nós mefmos ; co- mo pelo contrario o fyítema dos Filofo- fos da moda, de bufcarem o feu iriterefr fc tÍ4 Recreação Filofojica. fe na fatisfaçao das paixões, hehum re-* finadp ódio a fi mefmos , porque lhes acarréra afflicçóes indizivcis. Baila , TJieo- dofio 5 olhar para a geral experiência de todo o mundo; porquanto íempre a fa- tisfaçao das paixões que ao principio con« fola j traz pelo decurfo do tempo traba- lhos , e deígoftos. Podemos paflar a outro ponto, que cite eílá tratado o que baila, Theod. Vamos a tirar confcquencias deite principio que temos eilabelccido dolegi-» timo Amor próprio. Baron, lílb he que eu eílimo, Theodoilo, porque deíTa maneira íicão de modo en- cadeadas as verdades , que humas me conduzem ás outras , c não he fácil que me cfqueçao. Mudam, Com que vós , Tlieodoiío , hon- rais tanto o Amor próprio, que o fazeis bafe dos dicflames fobrc as obrigações do homem a refpcito de ii mefmo ! Theod, Já vedes , Senhora , que do modo com que eu o explico, eíTe Amor vem a íer obrigaçlo do homem , e preceito do Creador ; tanto aíHm , que quando Elle nos manda amar os outros como a nós mefmos , niiTo nos moilra a obrigação de n^ s a mar aios a nós. Maáam, Bem entendo , vamos adiante. §. II, Tarde dezoito. 185' §. II. Da Regra que deve o Homem ter no amor a fi mefmo, Theod, T? Ste Amor , Baroneza , que o Ji homem deve ter a fi mefmo , deve ter fuás regras para fer juíto , e Principio de acções louváveis j porquan- to fe elle for defordenado , e exceíTivo, em vez de fer Amor ^ ícrá odioy porque em vez de nos fazer bem , nos precipi- tará em muitos males. - Baron. E qual feri eíla Regra ? porque lie de fumma importância faber iíTo. Theod, Eu me quero explicar de modo que me entendais bem , e me fervirei de hu- ma comparação feníivel, Eíle Relógio de parede, que tem fido teítemunha das noíTas Conferencias , ago- ja ha-de fervir para nos illuftrar nellas. Nelle 5 como em todas as máquinas det te género , ha hum Principio que move , e ha outra peça , que modera eíTe movi- mento ', porquanto fe náo hoveíTe eíTe Mo- derador , o Principio que move , que he o pezo 5 cahindo com Hberdadc , de cada vez fe havia de accelerar , e todos os movi-* meu- ■ i86 Recreação Filofofica- mentos acabanão em ruína ; porque o pezo cahindo , cada vez iria mais ve- loz 5 e tudo feria precipitação. O meímo digo nos relógios de molla ; porque íeja qual for a caufa que move , lie irregular na força com que íè move. Para ifto o Relogoeiro ajunta a Pen-^ dula 5 que balanceando com regularida- de , cm cada movimento alterno deixa paíTar hum fó dente ; e deílc modo o movimento he regular , e confiante ; creio que me entendeis. Baron, E com facilidade. Theod, Ora no homem difpoz o Crcador o raefmo que acabo de dizer. Poz-lhc hum pezo, ou caufa que move, que he í o Aynor a Ji mef?no , pezo que he ca- - . paz de dar movimento a toda a Máqui- na moral ; porquanto eíla paixão que o Creador imprimio na noíTa alma , he de ordinário o principio natural das noílas acções , pela qual o commum dos ho- mens fempre fc move : porém eíla pai- xão fe nuo tiveíTe coufa que a rcgeííe , e modcrafle , iria fem freio , fem modo , fcm regra , c tudo feria no liomem def- ordem , e ultimairicntc ruina. Por eíla razão lhe poz hum Modera^ dor , ou caufa que regale os feus movi- men- Tarãe dezoito. 187 mentos , e he a Boa Razão ^ e as Leis fagradas que ella dicla. Em quanto o i Amor a h mefmo fe governa por eílas Leis da Boa Razão , Jie o Amor de fi jnefmo jufto , .e louvável , e princípio de acções boas ; mas tanto que o Amor hc tao forte , que defpreza as regras , e falta por fima dos limites que a Boa Razão lhe prefcreve , tudo he máo, he vicio, he crime. Madam. Então he, meu Theodofio , que em vez de obrar ^ Razão ^ obrão zs pai- xões. Theod, Senhora , eu concordo comvofco cm parte i mas deixai-me levar ascoufas mais radicalmente. Baron, Não deixeis nada que pofla contri- buir á clareza da Doutrina , nem á mi- nha completa inílrucçao, Tkeod. Eu chamo paixão todo o movimen- to que em nós fent imos , independente do difcurfo \ e por iíTo ha humas pai- xões boas , que depois a Razão appro- va ; c ha outras paixões más ^ que de- pois a Razão condemna. Ha humas pai- xões inatas , innocentes , e impreíTas pelo Creador no noíTo animo , ( aíTim co- mo o he a Gravidade impreíTa nas coii- fas matçriaes , e corpóreas ) , e caufa dos mo- i88 Recreação Fllofojica. movimentos fenfiveis. Eílas paixões que íentimos em nós antes que coníiiltcmos a Razão , ás vezes são boas e juílas , fe a Boa Razão , c as Leis da Razão as não condemnão ; tanto porém que efles fentimentos , e Ímpetos pafsão por fima dos limites que as leis da Razão lhes fi- nalão , já as Paixões são más e crimino- ^ fas : affim como no relógio , cm quanto o pezo 5 ou a molla real não facodem o governo , e moderação da Pêndula , vão os movimentos compoftos e reílos ; po- rém fe lhe tirarem a Pêndula , ou for a força tão extraordinária , que zombe do moderador , tudo he difparate , defordem , mina. Eis-aqui a idéa das Paixões ina- tas , e innocentes , porque forão planta- das pela Mão do Creador ; e também das Paixões de for denudas , que por ex- ceílivas , e fora das leis da Razão , são nocivas ; e nellas fomos culpáveis ^ por- que 3 fegundo nos enfina a Razão ^ devía- mos reprimillas. Baron* EíTa comparação do relógio me faz a doutrina mais clara / e me fegura a memoria. Theod, He logo obrigação eíTencial do ho- mem o governar pelas leis da Razão eíTe Ímpeto natural , e de íi innocente de fe Tarde ãezoitê. 189 fe amar a fi nnefino ,- em ordem a que não degenere eíTa paixão inata do Amor legitimo , que em fi he innocentc , cm Amor próprio hajiardo ^ e falfo^ o qual parecendo que nos procura hum bem , nos traz muitos males ; e fica converti- do o Amor a nós mefmos em verdadei- ro ódio 3 que nos arruina e perde. E já que as comparações vos agradao , e são úteis 5 eu também me íirvo deíla. Entregão ao cavalleiro hum cavallo são , e vigorofo , com fogo , e enfino , capaz de caminhar direito i mas cora tu- do deve o cavalleiro ufar do freio , ré- deas 5 cabeções , e do mais que ferve pa- ra moderar alguns cxceííos do bruto : a eílrada tem feus barrancos , e precipícios pelos lados , que são fora dos limites da eílrada Em quanto o cavalleiro ufando do freio ^ rédeas , e cabeções , modera o fogo do bruto, e reprime os feus movi- mentos defordenados , e não paíTa dos li- mites da eílrada, vai bem, tem louvor, e tem utilidade*, porém fc o cavallo ou efpantado falta , ou furiofo corre , ou manhofo fe empina , e faz corcovas , ou defefperado facode de fi o cavalleiro , em fim , fe toma o freio nos dentes , que po- de elle efperar fenão ruina? Aífim são em ^po Recreação Filofofica, em nós as paixões ; fe as leis da Razão as fubjugao , e fazem que não paíTem dos limites juílos , o homem he juílo , e me- rece louvor 5 e tem muitas utilidades ; mas fe froxo confente que as paixões faltem por íima dos limites que as leis da Ra- zão prefcrevem , tem crime , e fe faz a fi hum mal verdadeiro , talvez com a ap- parencia de procurar para íi hum hem faljo* Baron, Do que me dizeis , Theodofio , ve- nho a inferir, que quando z Boa Razão governa o Amor próprio , he virtude , e bom 5 e racionavel j e pelo contrario , quando o Amor próprio governa , ou vence , e defprcza a Boa Razão , he mui- to mao, e mui nocivo. Madam. He^ minha filha , como quando o cavalleiío domina , fnbjuga , c governa o cavallo , tudo he bom j e quando o cavallo deita abaixo o cavallciro , e o piza , e traz debaixo dos pés , elle fica perdido. Theod. Agora , Senhora , déftes á compa- ração o ultimo toque. Baron, Porém a mim parecc-me mui diiíí- cil , que hum hoir.em dotado de bom en- tendimento, eLuz da Razão clara, con- finta que as Paixões , e Amor próprio def- Tarde dezoito. 191 defcrdenado metta debaixo dos pés a Boa RazãO. Parece-me iílo mui diíEcil. Theod. Ah Baroneza , os voííos poucos an- nos vos defculpão eííe dito. Haveis de faber que a Bua Razão tem o íèu thro- no no Eiítendirnento j mas o Amor pró- prio , e as paixões que delle nafcem ^ re- íidcm na Vontade \ e por iflb muitas ve- zes pugnáo entre fi ; e ncíta luíla , ou pcleija a mais forte , mctte debaixo dos pcs a mais fraca. Qunndo as paixões sao débeis , e a alma eílá de fangue frio, como dizem , pega na balança da razão , e examina os motivos para abraçar oob- jeélo da contenda , e os motivos para o defpreznr \ e dá a preferencia aos que mais pézao j e refolve prudentem.cnte , fegundo lhe cnfina a Boa Razão; porém qunndo as paixões crcfcem , e accendem o fogo no coração, quer fejão de amor, quer de odio', quer da ambição, come- cão a impeUir a vontade para o feu em- penho , ainda que feja contrario ao da Boa Rcizão : efta clama pelo feu direito , e moítra á alma que não convém \ mas as paixões gritão cie modo, que aturdem os ouvidos da alma , e iá naô ouve bem as vozes da Razão : inventão , c acarre- tão motivos e mais motivos a favor do feu ipi Recreação Fihfbfica. feii empenho , a fim de que na Balança do entendimento preponderem eíTes mo- tivos aos que a Razão primeiramente al- Icgava a fovor do contrario empenho. A paixão dá muitos encontrões á alma , que quer examinar na fua balança o pezo das razoes de huma, e de outra parte j mas a balança lhe treme na mão , enada mof- tra com fegurança. Além diíTo , quando a paixão he forte _, accende no coração hum fogo 5 que faz ferver o fangue , que com febre ardente accommette o cérebro , que já não fe acha muito fenhor de íi , a cabeça anda á roda ; o fumo do fogo interno nada deixa ver como em íi he; huma vertigem interna tudo perturba , nem a alma pode dar paílb direito , e de ordinário dá quedas fobre quedas. Se olha para as coufas ^ tudo vé mui diffe- rente do que he, tem huma tcricta mo- ral , que a tudo dá cor eítranha j e as - acções mais feias rcprefenta como for- mofas 5 e os maiores difparates como ac- ções louváveis. Deos vos livre , Senho- ra , de que as paixões fe apoderem do voíTo coração , porque a Luz da Razão de ordinário não pode com ellas. Madam, _^Q tu, minha filha, tivefles viílo 110 mundo o que eu fei ^ e o que as hif- to- Tarde dèzúito. 195 tórias còntão , não havias de fallar do modo que falUfte. Baron, Agora já eftou com medo do que até aqui niío receava tanto. Porém he precifo , minha Mãi , que vós, e tam- bém Theodofio me deis alguns íinaes, para eu poder conhecer em mim o que he Paixão , e o que he Boa Razão, Madam. Minha filha , a quem refledle com madureza , he fácil diftinguir o que he Boa Razão 5 do que he paixão def ordenada j porque regularmente a filionomia, os o- lhos, ogeílo, a falia, os movimentos, o corpo todo dão íinaes da Paixão in- terna , quando he fofa da Razáo. Pelo con- trario â Boa Razão tem huma voz man- fa , em tudo moftra a paz , o focego do animo , o pezo , a moderação , o jufto equilibrio das coufas ; e então a paufa do animo annuncia a quietação^ da al- alma , e reflexão do entendimento. Po- rém Theodofio te ha^de dar íinaes mais feguros para diítinguires o que he Ra* zão , do que he Paixão, Theod. Não he iíTo , minha Senhora , tão fácil como parece ; porque todos os quô cítão cegos da paixão , eílão capazes de jurar , que o que fazem he muito Boa Razão , que tanta he a aftucia do Amor Tom. X. O pto- 194 Recreação Filofofca proprÍQ : faz que a alma não olhe por modo nenhum para as razoes contra , e que fomente olhe para as que sao a fa- vor. Ora olhando a alma fó para huma parte , e por modo nenhum para a ou- tra 5 como ha-de dar fentença Re^ta ? Eis- aqui a origem da c^ueira que as paixões causão, randa em pcíToas dejuizo. Madam. Juiz, que fó vê nos autos as ra- zoes de huma parte ^ e não as do con- trario 5 não pode julgar com reílidão. Theod, Contudo , eu vos darei , Barone- za 5 alguns íinaes para diftinguir a Ra" zão da Paixão, Baron^ E quaes sao ? Theod^ A Luz da Razão foi plantada na alma pela Mão do Creador , e não refpeita nação , nem clima , nem famí- lia j c por ilTo diz o mefmo em qual- quer paite que feja. Qiiando nós virmos que o noíTo parecer he geralmente con- forme a muitos de diverfo génio , ida- de, condição, &c. temos grande funda- mento para crer que he didlado pela ií^- . ' 6la Razão , que em todos he o mefmo. Pelo contrario fuccede nas paixões , que nuiKa são uniformes em peflbas de con- dições diverfas ; porquanto cada qual olha aos feus particulares intcreíles , ou preoc- cu- s Tarde dezoito. I95' Cilpaçoes , que fe diveríificao conforme os fujeitos. E' accrefce que fe a voz in- terna , que me eílá fallando , he conforme aos meus intereíTes , devo duvidar ^ pois que já fei que o Amor próprio^ que he glande letrado , e fempre a meu favor , ha-de advogar a fua caufa no tribunal da Razão, Agora fecfla voz, que no centro da alma ouço, he contraria aos meusin- tereílès , bem poiTo crer firmemente que he voz da boa Razão. Madanu Seguramente ; pois que he con- traria ás paixões, que todas nafccm.do Amor próprio, Theod, Outro finai temos , baila ntementjÇ fe- guro 5 e he, quando a voz interna, .que períuade huma acção, hevoz manfa , conf- • tantc , foccgada : porquanto na paixão todos os movimentos, e vozes coílum.ão trazer gritaria interna , perturbação , fo- go , inquietação , e movimentos miítura- dos, que trazem o entendimento a tom- bos. A voz daReãa Razão he m.ui di- verfa, porque não admitte bulhas, gri- tarias , e enfados. -Madanu Vós fallais fobre o que vos dida a experiência j e cila he que vos deo ef- fa regra que he admirável. -Iheod. Ainda vos jdarei outra. prova I?af- ^ . O ii tah^ jç6 Recreação Filâfojica tanremcnte fegura do que hcvoz daRc- fta Razão , eíTa que ouvimos no noílb interior , e vem a fcr efta : Pâr-me eu no lugar de outro , e olhar para o qiíe eu digo , como fe eu fojje hum efiranho \ porque deíTe modo facilmente conhejo a deformidade do meu fentimento, íe elle era aconfelhado pela paixão. Ponho-vos, Baroneza , hum exemplo. Os noflbs olhos eílão bem perto das feições donoíTorof- to 5 e contudo não as vemos tão bem como os outros que eftão de fora. Ifto pofto 5 quando nós queremos ver algum defeito na noíTa cara , tomamos na mão hum efpelho ^ e cíTe vidro faz que nós nos vejamos como humobjeíto mAii dif- dinílo de nós \ e deíle modo he que nos conhecemos como na verdade fomos. He logo precifo para nos não enganarmos com o fentimento da noffa Razão , que nós confideremos que eíTc voto não he nof- * lo , mas que o ouvimos da boca de ou- tro homem defconhecido ; e fc puder ler , ■ da boca de outro homem, de quem nós não goftemos. Se feito eíte aíluciofo en«- f^ano, ainda aíRm nos parece bem aqueU e fentimento j eeíTevoto, podemos def- çançar que he diítado pela boa Razão ; •-l'- porquanto fó lendo evidente a fua verda- de. Tarde dezoito. 197 de, lie que nos podia agradar, fahindo de boca eílranha , e talvez defagradavel. Madame Effe methodo , Theodofio , he ^- miravel , e náo feri fácil que o fentimen- to da paixão defordenada deixe de dar a conhecer o feu horror. neod. Ora ahi tendes , Senhoras , a regra para que feja jufto , e racionavel o nof- fo Aynor próprio* Por modo nenhum o deixemos governar pelas paixões , fó fen- do mui provadas , c apgrovadas pela Luz da Razão bem purificada. Baron, Eílou bem inílruida, Theodofio ,^ paflemos a outra matéria. Thcod* PaíFçmos. §. III. Da obrigação que o Homem tem decon* fervar afua vida, efaude. Tbeod. A Primeira confequencia , Barone* jL\ za , que devemos tirar do que ííca dito , he que todo o homem tem obri- gação de coníervar a fua vida , e por confe- guinte afuafaude, que joga com ávida, Baron, Que a conferve hc conveniência; mas que tenha diflb obrigação , não fei o porque ; porquanto fendo a vida fua , fendo fua a faude, me parecia que não pec- f pS Recreação Filofojlca. ' peccava contra a bo5 Filofofia , fè ex- puzeíTe ao perigo hiima deíTas coufas, ' OLi outra. ^adam. Não repareis , Theodofio , no que a Baroneza vos diz , porque he teima fua , que me tem cuílado muito a tirar-liia da ' cabeça: porquanto haveis de faber, que hc paixão dominante dos Bafcos o excr- *^ cicio da Dança j tanto aíTim , que rapa- ' rigas bem faudaveis , e de conftituiçao ^ robuíta fc eftragão com a Dança ; e noi- te ha em que dançao dezoito e vinte con-^ « tradanças ,> e ficão perdidas com a vio^ lencia deite exceflb. Bom trabalho tive com minha filha , até que fe moderou ; mas agora eítimarei que lhe façais ver a lou^ cura de que algum dia fe regozijava. J^dron. Ora para que nos deo oCreador si faude , o vigor , as forças, fenao para nos gozarmos delias em quanto a idade * ' o permitte ? ^adam. Tornas , minha filha, á tua tci- j * ma. Mas refpondo que o Creador nos dá 1 ' ávida, a faude, e ás forças , para ufar- mos deftes féus dons com juizo. Mas agora bem te entendo , minha fillia , que^ "rés que Theodofio te reíponda fcientifí-r ■|i ' càmentc. Tbeod, O furrizo da Baroneza nos dá aco-» ^'l nhe- Tarde dezoito. 199, nliecer que vós, Senhora, lhe adivinhaf- tes o penfamcnto. Ora , Baroneza , ha- veis de laber que ha dadivas que fedilo abfokitainente , de fórma , que quem as recebe pôde delias fazer o que muito lhe agradar; e ha dadivas, que fomente fe dão- para o ufo licito, o que nas Leis Civis íc chama fer ufo-fruíUiario ^ mas rao fenhor abfoluto da coufa doada. Af- fim faz Deos comnofco : coufas ha que EUe nos dá , de modo que nós as pode-^ mos dar de todo a quem muito nos pa- recer 5 fezendo-nos fenhores diíTo , como lie o dinheiro , os frutos da terra , &c. Outras coufas porém fomente as conce- be Deos , fazendo-nos ufo-fruEluarlos diífo que nos concede ; como v. g. são o corpo , os fentidos que nellc nos poz , a vida, a faude, e tudo o que eíli an- nexo á vida , &c. Deitas coufas náo po- demos nós difpòr; mas fim ufar, e por nenhum modo difpôr , nem dcílruir , nem privar-nos diílb. Que dirieis vós, Baro- neza , de hum homem , que fe vafaíle os olhos , ou íè cortaifc huma perna , ou fe mutilaíTe de outro qualquer modo .^ Bavõn, Diria que era louco. Theod^ E contudo , elle podia allegar que eíTes membros erao feus , c que cUe era soo KecreaçSo Filofoftca, fenhor de fe privar delles , aflim coma fe podia privar da fua bolfa , e dalla a quem muito lhe agradaiTe. Mas vós bem vedes que difcorria mal , e que obrava contra o Crcador , que dando-lhe cíTes membros para feu ufo licito , elie os de& truia ; quando verdadeiramente não era dono delles , mas fomente ufo-fruí\uario. lèaron. Agora entendo o que nunca enten-? di tão claramente. Theod* Pois o mefmo digo da faude, e da vida , com a qual a íaude eftá conncxa. Que coufà mais defordenada do que ef- tragar huma Senhora , ou hum Cavalhei- ro a fua faude em exceíTos de divertimen- tos , caçadas , e o que chamão funções de grande regozijo ^ e depois gaftarem fommas coníideraveis em remédios , e pa- decerem dores 5 nãofó pela enfermidade, mas também dores pelos remediou del- ias y e levarem os reftos da vida n'uma cama , ou n^uma tal fituajâo , que a vi^ da lhes feja penofa ! Madam, Seria o mcfmo que lè hum ho^ mem são e robufto cortaíTe por diverti- mento huma fua perna , para depois fc fervir de huma perna de páo. Não ha- veria quem não condemnaíTe por loucu-: ra rematada eíTa acfão barbara. Pois q mef-t Tarde dezoito. 201 mefmo difparate coníldero naquelle , ou naquella que por divertimentos eílraga a íúa faude bella e vigorofa, para depois comprar com muito dinheiro , e dores , ç defgoílos huma faude que nao preíla ; emíim tal que a deve eítimar fó por fer melhor do que a morte. Tu , minha fi- lha , vês em algumas das tuas amigas bem verificado o que acabo de dizer-te. Inda bem , que não te deixafte cahir neíte prccipicioj c tç emendaíle a tempo. Baron, Nunca vi tão claramente como ago-» ra o horror deíTa defordcm. Thod. Mas ainda vos não diíTe o que ra- dicalmente convence , que nós não fomos lenhores deíTes bens , de que o Creador nos deo fomente o ufo-fruto* O homem não pode prolongar os dias da fua vida por mais diligencia que faça , ou defpe- 2as que prepare. líTo he diligencia tão inútil, como fó quizeíTe augmentar a fua eílatura huma fó pollegada y ou aperfei-* coar os feus fentidos. Nem ainda he fe-». nhor de ter huma boa faude ; fó fim in- direftamente 5 privando-fe das defordens que a eftragão ; mas nem ainda afilm a tem na fua mão , porque enfermidades ha que por modo nenhum podemos pre- vçr^ nem evitar, Logo fe nós nSopode- OlOSÍ 20% Recreação Filofofica. mos nem adquirir , nem augmentar , nem confervar eíTas dadivas do Creador, lèguc- fc que delias nao fomos ícnhores para as dcftruir ^ mas Tó mente ufo-fruíluarios^ em quanto nos confentem na poHe delias \ e por confeguinte he cnme conti'a a Na- tureza 5 crime contra 9. Boa Razão , cri- me contra o Creador eílragar eíTes bens que para o ufo licito o Creador nos con- cedera. Baron, Eftou convencida, continuai. Mada}n. Já que eítamos neíle ponto bem importante, quero, Theodofio , que dif- corrais fobre o ufo licito dcíTes bens que o Creador nos concedeo *, porque eu não lo acho que he crime deftruir , ou cib'agar as dadivas de Deos , como também o íèr- virmo-nos delias para ufo differente 'da- quelle que intentou quem no-las concedeo. Theod. Vós me obrigais, Senhora, a levar a minha doutrina a hum ponto mais aper- tado , do que talvez goííâífe a Baroneza. Maãam, A Filofofia moral , meu Theodo- fio , he a que regula os coílumes pela Luz da Boa Razão ; qual he logo o motivo para mutilar efta importantiffima íciencia, cortando-lhe efte bello ramo , fó porque cita rapariga nao gofta : fiai mais do íeu - juizo, e da rçdlidão da fua alma. Tarde dezoito, 203 Baron, Se me amais , meu Meílre , não me defraudeis de coufa alguma que poíla re- gular os meus coílumes. Theod, Digo pois que nós devemos olhar femprc para os fins qucD^os teve quan- do nos concedeo eíTes bem da Natureza ;, vida 5 faude , forças , talento , &c. e els- aqui a minha razão. Supponde que hum Soberano mandava á Corte eftranha hum feu Embaixador para negociação impor- tante aos feus Eftados 5 e que para iíTo lhe apromptava a renda do coílume , e que o condecorava cora o titulo , ou ca- ra£ler proporcionado ; e que paíTados três annos era mandado recolher. Se o Sobe- rano lhe pediíTe conta da fua Embaixa- da 5 e ú\q lho. diíTeíle : >> Senhor , he ver- 5j dade que eu eftive neíTa Corte todo o 55 tempo da minha embaixada , e que me 9j tratei com todo o faufto , c efplendor ?) proporcionado á renda que V. Magef- ji tadc me coníignava : fiz muito luftro- >5 fa figura ; porquanto a minha meza 55 era a mais polida , as minhas carrua- ?5 gens exçedião ás dos meus companhei- 5? ros ; e nas minhas Aííembleas era o 95 concurfo numerofillimo , efpecialmente • ^^ nos dias de annos , em que todos paf- >> mavão dos feílejos com que eu ceie- ?j bra- 104 Recreafãâ Fihfefícoh jj brava o dia do Nafcimento de V. Ma- 5> geílade. Goftei infinito do Paií, e di- 99 verti-me muito bem. Mas no que to- » ca á negociação de que V. Alageíladc 5> me encarregou , confcíTo que não achei » occafião commoda para introduzir eíla íj prática; porque os convites ^osfeftins, )5 as obrigações da Corte me levavao to- j) do o tempo. » Ora que acccitaçáo vos parece qiie acharia eíle Embaixador no animo do feu Soberano ? Baron, Se llie mandaíle cortar a cabeça lhe dava o juílo premio, Madam. Olha , minha filha , que te con- demnas, Theod. Outro tanto deve fazer o Creador , quando vir que dando-nos elle a vida , a laude, as forças , &c, para os fins li- eitos , e úteis á Republica , e a nós meí^ mos 5 nós trocamos os fins do Creador pelos noíTos fins ^ e que fomente empre- gamos as dadivas do Author da Natu- reza nos divertimentos frívolos da mo- cidade. Madam, Não dizia eu , minha filha , que te condemnavas ? Ora refponde a eífe ar- gumento do teu Meftre, fe podes. Baron, Não meha-de efquecer a doutrina; e fico perfuadida que a obrigajão de hum bo' Tarde dezoito. 203^ homem racional he empregar as dadivas de Deos nos fins de Deos* Theod^ Agora convém paliar a outro pontOí, Madam. Ora eu ouço que rendes o Coro- nel lá em baixo , não ne máo para as vof- fas Conferencias ; mas eu não góílo dos feus cumprimentos, nem dos íeus lyíle- mas : retiro-me. Adeos, §. IV. Do jy/iema do Egoifmo , {fto he , de cui'^ dar cada hum fomente em fu Tiheod* A Gora , Senhora , convém tra- JljL tar de hum lyftema , que pa- rece filho do que temos dito , e na ver- dade he feu inimigo , e contrario* Nós temos obrigação de nos amarmos a nós meímos ; porém não deve fer de forte, que fó a nós mefmos amemos , o que cha- mão fyílema do Egoifmo , iíto he , de cui- dar cada qual fomente em fi , fem que mais nada lhe de cuidado algum. Mui- ta gente fegue praticamente eítc fyílema; e eu achei os dias paliados em hum li- vro a Deferi pçâo deífe fyílema , de modo que me fez rir, e tomei de memoria huns verfos que o pintavão bem ao natural. Cre- ^o6 Recreação Filofofica, Creio que ainda ine lembrarão , porque fiz reflexão nclles. Mas o Coronel en- tra. Coron, Que fegrcdos são tí^Qs , Senhora , com o voflb Meítie? Nunca haveis de admittir conrerftçao amena com quem vos eílima, efe regozija dasbellas pren- das com que recreais a Ibcicdade ! Vof- fa Mâi concede mais tempo do que vós aos direitos da urbanidade , e polidez graciofa ; e mais não tem os floridos an- nos que a voíTa mimofa idade vos con- cede. Vós já devieis eítar livre da fevera efcravidão em que vos tem pofl:o a peno- fa educação dos voflbs Meftr^s , que tra- tando de cultivar o entendimento , deixão defecar os corações mimoíbs , quando a natureza fe preparava para fazer brotar nelles os tcinos affedlcs do amor ; afFc^ ftos que são como a vida daquellas al- mas bellas, que de quando em quando apparecem na focicdade como fenómenos raros da Natureza. Baroji, Bafta , baila, meu Coronel , que me faz mal o fumo do incenfo. Vós ef- tais bem inflruido , e exercitado na lin- guagem da ociofa galanteria ^ mas eu pre- firo a eíTa outra linguagem mais impor- tante y e em quanto nao tenho ornada co- mo Tarde dezoito. 207 mo convcm a minha alma , nao me im- porta iflb que vós dizeis de bcUezas , e liíbnjas , e louvores do que perrcnce ao corpo. Meu Coronel, primeiro eítou eu do que os outros j e quero mais confo- lar-me com ver a minha alma ornada com fcicncias , e bel las qualidades do cfpirito, do que contentar os outros com eíía que dizem formofura do meu rollo , ou com httas , e ridicularias da moda ^ &c. Coron. Ah Senhora , que vós efrais no bello íyftema do EgGifmo ; porquanto vejo que «cuidais lo em vós, e nada mais vos importa. Agrada-me efle voíTo fyftc- ma ; até niíTo vos acho hum juizo que nao he feminino* Theod, Agora quando vós entraftcs, prin- cipiávamos nós a fallar deíTc fyílcma ; e a Baroneza me pedio que lho explicat fe \ e' eu começava a refcrir-lhe li uma Delcripção jocofa , que dellc tinha acha- do n'um livro. Coron, Pois eu , Senhora , nao quero re- tardar 5 nem impedir a voíTa judiciofa inftrucçao. Theod, Dizia pois, Baroneza, o Poeta que de fere vi a o Egoifmo deíle modo : queira Decs que me lembre. Eu 2c8 Recreação Filofojíca. Eu na molU Poltrona da Pregai^a minha vida ociofa e regaUda voujtajfando ; e jamais tenho cubica fenão fo do meu Bem , e de mais nada, Çlue arda o Mundo no fogo que fe atiça nas Campanhas de Mane ; e que abrazida veja a Terra ^ fe as chammas me não tocãò^ €u rirei vendo que outros fe fuffocãOd Coron. Não fc pôde pintar com mais pro- priedade ; e na verdade , Senhora , que eíle fyílema he o mais racionavel , e acer- tado de quantos fe podem imaginar. El- le he fundado no nofíb ^mor ffopno , paixão inata ^ e gravada pelo Creador no cenjtro do noíTo coração ; e tudo o que; he embaraçar-iios com fucceíTos alheios, vai a perturbar à ferena paz que tem o coração humano, quando fó lhe impor- ta o que he íèu. Para que me quero eu affligir com males alheios ? Para meu tormento baftão-me os meus. Se eu me intereífar com os bens e malçs alheios , cftou , Senhora , bem aviado , porque nunca me faltará que fentir. Baron, E aílentais vós , meu Coronel , que eíTe l/ítema he conforme á Boa Ra- zão ? Coron. Sem dúvida. Ba-* Tatde àezoito% 2oj^ ^úYon» Logo hc razão que eu o figa , e Tiíeodoíio , e todos os homens o abra- cem. Coron, Digo que fim , e fou cònftarite; Baron, Que bella figura farieis vós , meu Coronel , neíle mundo , fe todos os ho- mens feguiflem eíle fyítema ! Só , è def- amparado vos verieis no meio da gente , fcm que viva alma fe magoaíle dosVof- fos maleâ , e infortúnios , fe os tivefieis. Que me importa cá o Coronel? (diriíio todos os voffos conhecidos ) chore elle os feus males ^ que eu chorarei os meus; que debaixo do fcu cavallo gema , que grite, que arrebente , que eu cá eílóu to- mando o meu café mui defcançado. Nem os criados vos valeráó ; porque também sáo homens eomo vós j e também como vós devem feguir a mefma lei : clles tam-^ bem são obrigados a conformaf-fe com a Boa Razão , e eíla ( como vós dizeis ) àpprova o voíib fyílema de nos não im- portar nada dos outros. Que me dizeis ? CoroJí, Vós , Senhora , tirais humas confe- quencias bem funeftas. Baron, Mas mui juftas. Nem eu fci como vós podereis defembaraqar-vos deite ar- gumento* Os que vos ièrvcm, pelo feu commodo he que vos fervem; e por if- TonuX. ' P fo 2 IO Recreação Filofofíca* fo ranto que a roda da fortuna der vol- ta 5 de maneira que vós dependais do? ou- tros como elles agora dependem de vós , já vós achareis no meio das Cidades pc- pulofas 3 como fe foíTe n^um ermo , foli- tario , e fcm o mini mo foceorro nas voí- fas aíÔicções. Qiie bella fituaçao , meu Coronel ! Tendes-llie inveja ? Confiderai huma povoação de dez mil peílbas ; mas todas íèguindo eíle voíío fyíicma , e Ten- tados mJJ^a molle poltrona àa 'Preguiça \ que nada cuidaíTem cm vos acudir, ain- da que cíliveíTeis na maior afflicjao , e aperto; queraids viver ahi? Coron. Deos me livre. Baron.. Pois como condemnais nos outros o que em vós approvais ? Mas fallai vós , Theodoílo , que na vofla pfefença tenho feiro muito mal em querer difputar. Theoã, Quando vós difputais tao bem , he favor qiTC me fazeis , e não atrevimen- to. Sabei que as lettas do argumento, fendo defpedidas por mãos femininas , penetrão mais que fe foíTem fnhidas de arcos mais vigorofos nas mãos dos ho- mens. Coron, Aífim o moftra a experiência ^ mas eu quero-vos ouvir a vó» , meu Theo- doílo. Theod. i Tarde dezefete. 2,11 Theod. Meu amigo, O homem tem em Jl mefmo pela Jua natureza princípios de muitas afjii ecoes , miferias ^ e depen-^ dencias dos outros homens. Reparai bem no que vos digo \ porque he Principio certiffimo que cada qual experimenta em li mefmo, e ninguém o pode negar. Coron, Nem cu o nego. Theod. Logo na noíla própria natureza te- mos 5 Principio que nos obriga a valer-nos dos outros homens; pois que nós citan- do fós , e defamparados dos outros , não nos podemos valer nas afílicçoes ^ e tra- balhos. Coron, Quizera negar, mas nao poflb. Theod, Logo íe o Creador fez todo o ho- mem dependente dos outros homens , co- mo pode cada qual tomar o fyftema de fe não embaraçar com os males alheios ? lílb era privar-fe a fí de todo o íoccor- ro que os outros lhe pudelTem dar , por- que a lei deve fer geral. Se he juílo que vós façais o voflb coração de pedra , in- íbníivel a tudo o que he do« outros , . tam- bém approvais nos outros femelhante du- reza, e eftranheza. Vedes que difcorreis contra os voíTos commodos , e que ef- rabelcccis máximas oppoílas ao voíTo Amor próprio, o qual, como diíTeíles, P ii Deos 212 Recreação Filofofica. Dcos gravou no centro do voflb coríí'« cão ! Baron. Eis-aqui , meu Coronel , de cfic me iervem as converíac^oes com Theodoíio, que vós tanto criticais. Servem-me de me não deixar enganar com os bellos dif- curfos j como vós-outros me vindes per- fuadir os vofíbs erros. Oradizei-mc: Não vale mais a Baroneza com o feu enten- dimento illuftrado , concertado, direito , do que a Baroneza com erros por den- tro 3 e fittas , e jóias na cabeça por fóra ? Coron. Eu não condemno a voíTa applica- ção , mas fomente a aufteridadc com que o voíTo Mellre vos faz perder o gofto de recrear nas alíemblcas a fociedade que tanto fe intercíTa na voíTa companhia, Baron, Meu Coronel, vósfois mui inconf- tante nos voíTos fen ti mentos. Coron, Não me tinha neíTa conta. Baron* Pois vós ao principio pregáveis o amor que cada qual deve ter a fi mcf- mo ; confeílais depois diflb que eu valho mais , tendo o meu entendimento inftrui- do com boas máximas, e livre de erros vulgares , do que o roílo ornado , e enfei tado , e agora quereis que eu me prive a mim , da minha própria utilidade , e do que he próprio para me fazer mais eíli- Tarde dezoito. 213 eftimavel , e perfeita , e iilo para confo- iar quatro Cavalheiros ociofos , que aqui vem paliar algumas horas ! Quereis que çu para lhes dar eíla frívola confolaçáo, hic prive do meu bem folido , e do que certamente me faz mais perfeita , e mais eftimavel ! Ora concordai huma coufa com outra , fe podeis ; e fe nâo podeis , confcí- íii que íois inconftante no voflb modo de penlar , ou de fallar. Vamos , Theo- dofio, a outro ponto. §. V. Da obrigação que todo o homem tem de confervar a Jua honra , onde fe tra- ta dos Duéllos. Theod.y^T Kmos^ Baroneza, tirando mais V confequencias juílas dos Princí- pios que temos eílahelecido fobre o A- mor licito de nós mefmos. Baron, Quando os diverfos artigos da mi- nha Inftrucçuo vao ligados entre íi por eíTc modo , íico mais perfuadida , e fico também mais livre de que me hajao de eíquecer. Theod, A obrigação que nós temos de con- fervar a noíTa vida , c íaude , também fe eítende á noíTa honra , e bom nome. O- 214 Recreação Filofojlca. Coron, A reputação boa hc ainda mais pre- cioía que a vida \ porquanto muitas ve- zes lè perde, e muito mais fearriíca por caufa da fama , e reputação , como fe pratica nos Duéllos. Baron. Inda mal , que vós os Senhores Mi- litares tendes l/ítemas bárbaros neíTa ma- téria. Coron. Bárbaros lhe chamais vós ! quando todo o mundo póe neíTes pontinhos deli- cados a maior honra de hum Cavalheiro, Baron, Chamo bárbaro todo o fyftema , que he contra a Boa Razão ; pois que eíta \\t a única diíferença que ha entre gente barbara , e gente civilizada ; que eíta , e não aquella o conhece , e íè ferve da Boa Razão. Ora vós a pezar de ferdes Militar , não podeis livrar de barbarida- de eíTc modo de punir pela honra. Coron, Minha Baroncza , vós não podeis ne- gar que hum homem honrado , fe vê , que Ke offendido , deve punir pela fua honr ra , ou defafiando quem o infultou , ou acceitando o Duéllo , fe he defa fiado ; e bem claro hc que n'um Duéllo fempre a vida fe airifca , e muitas vezes fe perde. E nella máxima eftá toda a Nação civi- lizada ; e não poíTo fofFrerque condemneis de barbaridade efta máxima úq eftabe- lúcida. Ba- • Tarde dezoito. 215' Baron, Ainda eftou pelo iticfino , em quan- to me nao refponderdes ao que vós mèl- mo haveis de confeílkr que nc tirado da Boa Râzão y que eu para iíío nao pfe- cifo de outro argumento. Masnaó, nao quero , Theodofio , tomar o voílb lugí.r : vós manejareis o argumento, quejá m.ui- tas vezes vos tenho ouvido , com mais deítrcza, emais vigor do qué mííò femi- nina. Eu me calo por ora. Theodf Eu vos direi, meu amigo, fomen- te as razoes que a Baroneza queria alie- gar. Vós lòis homem de razão , haveis de entender a linguagem da Razão yQ pczar todo eíte argumento na balança da Boa Razão , e na balanja da Razão Eterna de De os, Coron. líTo lá da Balança da Razão Éter- na de Deos fica muito alta ; «ós de cá não podemos examinar • a movimento' dcM la, nem do feu Fiel, " ' •■ Theod* Pois vós não Góhçordais comnofco que a noíla Lu'^ da ]^azão nos foi dada por Deos ! Coron, Quem o duvida ? Theod, Logo iíTo que a noíTa Boa Razão nos diftar , he dito por Deos , e he o que diz ãR^azão Eterna de Deos, Olhai. Deos não nos pôde dizer a nós fçlá voz da zi6 Recreação Tllofofica. da Razão que plantou na noíTa alma o contrario daauillo que lhe diz alliaEcçr- na Razão. líTo feria mentir o Ente fum- inamentc perfeito ; entender que huma çoufa he máj e pôr-nos no nolTo enten- dimento huma voz, que diga queella he lx)a-j ou ás avéíTas. Aílim , meu amigo , quer queirais , quer não, haveis de dizer Íue O que a noíla Boa Razão condemna , )eos também condemna na fua Eterna Razão. Coron* Seja ; mas a nofla Boa Razão eftá diclando que hnm homem honrado de- ve punir pela fua honra a todo o cufto. Theod. Concordaria fe ilfo foffe punir pela Jionra , de forte que a honra ficaíTe fal- va y ou manifefta. Concordarei niífo. Ora para iíTo nada faz o Duéllo ; porque nem dá , nem tira honra. C^rofí, Ah ! não : he o único modo com |ue hum homem de bem , fe he aífronta- lo 3 defpica ^ fua honra. He o uqico meio. Theod, Ora , amigo , vós bem fabeis que o fucceílo dos Duéllos depende de huma de três coufas, da Força ^ àcL Dejlrez^ :, e da Cafualídaãe , concordais nifto ? (Joron, Concordo. Tbeod. Ora qpal dçftas çopfas prova (jue yog i Tarde dezoito* 217 vós fois honrado ? Qual prova que eftais injuftamente oíFendido ? Qual prova que o voflb contrario he criminoíb a voílo refpeito ? Se acafo quando vós tendes ra- zão , e fois verdadeiramente honrado , fempre ficaíTeis viftoriofo , linheis tal , ou qual defculpa ; porém todos confefsao , Gue a ponta do florete he cega, e nao decide da juílija , ou injuftiça dos comba- tentes. Muitas vezes o que mais razão tinha , fica no campo , e o criminofo ven* ce ; como he logo meio de averiguar a voíTa juftiça , e provar a ícm- razão do contrario, provocallo para humDuéllo? Pergunto mais ; E o defafiado acceitan- do o defafio , fica honrado , ou náo ? Coron* Se náo acceitar o defafio , fica vil , e não pôde apparccer entre nós. Se quer raoílrar que he honrado , deve acceitar o Duéllo promptamcnte. Theod. Eílá bem. Logo o Duéllo Igual- mente prova a honra do cjiie defaíia , ç do que acceita o defafio» Coron, Sem dúvida. Theod, Logo o Duéllo não prova nada em matéria de honra ; porque tanto ma dá a mim , como ao meu contrario. Que refpondeis ? Baron* Vós eílais apertado, meu Coronel. 21 o Recreação Filofojica, Corm* Senhora , os Militares tem lá fuás leis 5 de que nao fe podem cfcuíar. Entre ellcs nao ha filofoHas de animo pacato , nem os difcurfos frios da Boa Razão -^ tudo he fogo , fogo ; e mão logo ao flo- rete. Níio conhecemos lá eíTas leis da Razáo, Baron, Vifto iíTo a farda dá-lhes privilegio para obrarem como animaes , que não conhecem Luz da Razão. Coron. Coufas dizeis , Baroncza ! Baron. Eu nao digo fcnao o que vós aca^ bais de dizer. Dizeis que os Militares nao eítâo lá para ouvir a voz daRazáo, e que no feu fogo nao efcutáo os diicur- íbs frios do animo pacato : com que eu nao adiantei o difcurfo : repeti o que vós diflcíles. Corou, Senhora , quando hum Militar fe vê oífcndido , todo o fangue de repente lhe fobe á cabeça , e lhe ferve no cére- bro , o fogo fe lhe atêa no animo , a imaginação fumega , a honra grita , o co- ração falta 5 os olhos do entendimento na- da vem , o difcurfo cmmudece , a razão nao he ouvida , nem a Filofofia , porque o furor arrebata a alma , e fó lembra o dcípique , a vingança , e o defafio. B^ron, Torno a dizer , meu Coronel, lo« Tarãe dezoito. 219 , go as leis militares põem os feus alum- nos na claíTe de brutos, que não ouvem, nem entendem razão. Coron. Deos me livre , Theodofio , de ter Duéllos literários femininos ; porque a efpada de huma Senhora he mui íágra- da , não quero brigar com a Baroneza , quero-me antes comvofco. Theod, Havemos , amigo , de cílabelecer hum Principio fixo para diícorrer fobra clle. Vós haveis de concordar em que a Luz da Razão he innata , iíto he , pof' ía pela Mão do Creador na noíla alma , e • por confeguinte he incontraftavel , de for- te que ainda que todos os homens fe ajuítaílem a dizer o contrario do que diz ^ Foz da Razão ^ não apoderião emmu- decer, nem fazer quediíTeíle o contrario. Bem como fe todos os homens íè ajuí^ taífem a determinar que dalli por diante todos nafceílem fó com hum braço , cu com doLis narizes , efte louco e geral ajuíte nada mudaria na natureza huma- na. Ora deííe mefmo modo , digo , que todos os ajuílcs , e convenções dos ho- mens nada podem mudar na Luz da Ra- zão^ que Deos imprimio na noíla ahna; aífim como nada podem mudar na organi- zação do corpo. Co- lio Recreação Filofojica. Coron, Concordo , e rio ; porque vejo ao longe a fagacidade com que me quereis levar. Mas cila Luz da Razno manda, que todo o crime feja caftigado. Vede que me dais armas contra vós. Tbeod, Concordo que a Luz da Razão man- da que quem vos offendco feja punido, iílo lie , fcm dúvida j fó falra faber for- quem , e quando , e de que modo. Coron. Pela minha mão , le eu for oíFen- dido. Theod. Iflb he fuppondo que o fuccefib da pendência ha-de fempre fer a favor da Kazão^ e contra o voíTo oífenfor. Porém todos vem que o fucceíTo do Duéllo he mui vario , e ora fica morto o oíFendi- do , e bem innoccnre , ora o oíFenfor, que he o culpado. Com que, meu amigo, fe o DuélIo he com o fira de caítigar o voíTo contendor , e culpado , vos arrif- cais em cajiigar em vós mefmo o crime do vofjo adverfario. E achais iífo lá na voffa Boa Razão ? Bem vedes , amigo , que nao ha lyílema mais irracional , nem mais inútil , do que efía voíla lei dos Militares ; digo que he irracional , por- que expõe á pena ultima igualmente o innocente , e o culpado \ digo , que he inútil ^ porque não ferve de nada, pois não Tarde dezoito, 221 tóo declara quem teve razão , ou quem teve crime ; nao declara quem foi hon- rado, ou quem he falto de honra ] pois que já confefl*aftes que igualmente ííca coroado com os louros da honra o que defafía , e o defafiado ; igualmente o mor- to , q o matador. Ora fe iftò he aflim , então que fez cá oDuéllo, para moftrar que hum Militar era honrado ? Explicai- me bem ifto. Só fe pôde ferjuiz da hon- ra o mero Acafo ? Coron, Neíles lances já vos diíTc não fe olha a nada. Theod, Neíles lances aíllm he , nao fe olha a nada j mas agora citamos aqui todos três de fangue frio , e enrie nós três fe ha-de decidir , fe líío he hum defpropo- fito , ou fe he couíá racionavcl. Agora todos temos o juizo em feu lugar, ago- ra fe ha-de fentenccar eíla cauía. Coron. Pontos delicados de honra entre Mi- litares nunca forao fentenceados nem por Senhoras , nem por Filofofos. Biaron, Qiiercis dizer que nunca forao fen- tenceados no Tribunal da Boa Razao^ Coron. Eíles pontos , Senhora , fomente fc fentenceáo no Tribunal da Honra. Theod. Pois , amigo , os Filofofos também fe prézáo de fer honrados : appéllo pa- ra 222 Recreação Filofqfica* ra eíTc Tribunal, que entendeis vós por Honra ? • Coron, Eu entendo por Honra a pública ejlhnação nierecida» Theod. Approvo a definição que hejuftif- fima ; porque a eítimaçao fe he fó de duas, ou quatro peíToas , não he honra , he prin- cipio delia ; e também fe eíTa eílimaçao pública não for merecida , não he honra. Agora dizei-me : Como merece hum ho- mem oíFendido eíTa pública eítimaçao por meio de hum Duéllo ? Se he porque ma- tou na força da raiva , cego da cólera , iílb faz hum Touro picado pelo Cavai- Iciro ; iíTo faz hum Urfo , hum Tigre, hum doudo , hum bêbado : todos terão pela morte que fazem , igual titulo á ef- rimação pública : fe he porque morreo , então os dous contendores no Duéilo ^'' cão igualmente eílimados publicamente j e não vem o defafio a fervir de defpi- que, porque fícão os dous Contendores, ièja qual for a forte , igualmente honra- dos. He galante myfterio da Politica Mi- litar. Baron, Vós , Coronel , rides ! Tomara que rcfpondeíTeis com razões , e não com ri- zos urbanos , c frios. Theod. Ainda não diíTe tudo. O fucceíío do Tarde dezeito, 22:; cio Diiéllo já filheis que he incerto ; mas os máos efFeitos sao certos. He incerto o vós matardes , ou o íerdes morto *, aifini he ; mas hc certo que vofla mulher , vof- fos filhos 5 a voíTa cafa ficão perdidos. Se morreis 5 bem fc vê o perjuizo que faz a vofla morte a toda a vofla familia ; e íc matais , he precifo aufcntar-vos com hu- ma fuga precipitada , que também por ' outro modo vos priva da vofl^a cafa , e familia. Eílas confequencias são certas. Ora em que razão cabe caítigar hum ho- mem em fua mulher, cm léus filhos, e na fua familia que ama j cafl:igar , digo , até em fi mefmo o crime alheio ? Dizei- me , em que razão cabe iílo ? Baron, Reparai bem , meu Coronel , na- quelle argumento. Theod. Continuo : Quem vos defattendeo , foi criminofo , e ninguém mais. Ora aca- bado o Duéllo 5 feja qual for o feu êxi- to , vós ficais perdido , vofl^a mulher , fi- lhos 5 fãmJiia , cafa : não he iílo ficarem todos efíes innocentes cafl:igados , e iflb fomente pelo crime alheio , e ficarem caf- tigados pela vofla mão, e pela vofl^a pró- pria vontade ? Coron. Não poflb negar que iflb aflim he ; mas que quereis? Theod. 224 Recreação Vilofofica, Theod, Quero que me digais fe iílo mere^ ce efiimacão piíblica ^ porque fe verda- deiramente a nao merece , então não ha aqui Honra, Baran. ConfeíTai , Coronel , que eíTa má- xima dos Militares não tem nada de Hon- ra , porque lie hum difparate contra to- da a Boa razão j difparate que merece o público horror da Boa Razão. Mas o Coronel , meu Tiíeodofio , eílá canqado de brigar comnofco \ paíTemos adiante , demos-lhe defcanqo. Coron, Sempre he brigar com duas peíToas úo que não ha partido iguah Vamos a outra matéria. Thcod, Vamos a outro ponto j em que vós , Coronel , nos haveis de achar muita ra- zão. §. VI. Do defejo que todo ó Homem tem de coiu fervar a fua boa reputacaCk Theod, TVT 0's , meu Coronel ^ ja temos X^ provado que todo o homem tem a propensão inata impreíTa na alma pelo Creador de fe amar a fi mefmo , com os limites juítos da Boa Razão , qiie Dcos também ihe imprimio para regei*, c Tarde dezoito* 225' é moderar o iir.peto do Amoí* próprio. E também em virtude òq^q jujio Amor a fi mefmo , temos provado que deve confervar a fua vida , a faude 5 es mem- bros , &c. Agora íegue-le fallar do de- fejo que elle tem de confervar (já fe fa- be que por meios juftcs) a fua boa re- putação. Coron. Concordo , e de boa vontade : e porque motivo tenho eu difputado até agora juílificando os Duéilos? Theod, É porque motivo accrefcentei cu ago- ra aquella cíaufula jd fe fabe que por meios jujlos ? Eu de indultria a accref- centei á minha propofição. Coron. Náo difputémos fobre o que eílá mui difputado. Continuai. Baron. Eíle cuidado de ter bom nome íèm- pre o ouvi a minha Mai nos confelhos maternaes que me dava ; perfuadindc-me que era conlelho do Efpirito Santo. Ago- ra quero , Theodofio , que me expliqueis ifto filofoíicamcnte. Theod, Muitas intelligencias erradas dão al- guns a eíTe confelho que diíTeíles, que convém acautelar. Coron, A que cu dava no meu ritual Mi- litar, já vós reprovaíles ; quero agora ou- vir a interpretajão de ThcOdofio. Tí?w. X Q^ Theod. ^26 Recreação Filofoftca. Theod, Antes que eu vos declare a verda- deira , e louvável Intelligcncia deíle con- íelho , ou os meios íolidos de ter hum ' homem boa reputação , quero ponderar os meios errados de que muitos infeliz- mente le valem. Hum mui ordinário he quando muitos levados de hum cnthuíiaf- mo de adquirir grande nome, emprehen- dem acções heróicas , e querem voar fem ter azas , feitos ícaros delgraçados. Ora o Amor preprio , que íendo racionavel , e juílo he caufa de muitas acções boas , lendo demaziado , e fora da regra , noj acarreta muitas defgraças ; e quantos paí- fos nos obriga a dar , tantas quedas nos prepara , e tantas infelicidades nos cha- ma. Coron, Na Taftica , e Arte da Guerra o vemos a cada paíTo, porque muitos Ge- neraes ( fem tomar bem as medidas nc- ceifarias nas fuás emprczas ) per tenden- do fubir ao cume da Gloria no Templo^ da Fama , fe precipitarão nos abyfmo! do dcfprezo ; ainda depois de pagarem com a morte a fua temeridade. A nin- guém he tao neceífaria a moderação , c prudência nefte defcjo da boa reputação, como aos Militares, porque a cada paf- fo fe precipitão por imprudência. Ba- Tarde dezoito. %ij ^aron. ÍS^eíles noílbs tempos vlmôS aque- cia pníinoía , c total mina de B. •****, que quando fe reputava quafi Divindade , acclamado pelo clarim da Fama \ depois por emprchender acção nunca intentada , tem fido o rizo de todos , e a mofa até de gente vil. Mas deixemo-lo gemer. Theod, Outro fyílema tem alguns , levados dcíTe dcfejo da grande reputa çSo , que he dervanecei-em-fc , e gabarem muito as ' j>roprias acyões. Baron, Quando vem que ninguém os ga- ba 5 nem celebra , que remédio tem elles fenáo elogiarem-fe a fi mefmòs. ■Theod* Mas o efFcito nunca he como fe defejava ^ porque nada ha que geralmen- te ícja mais aborrecido , como hum me- tafórico N arei fo, que fedefvanece dafuát talvez falfa formofufa que reverbera nas aguas. lílo provoca os outros a que ce- lebrem os feus defeitos , e os critiquem , c os ponhão em contra-balanço dos elo- gios que eííe vaidoíb fe faz a íi mefmo. Baron. Deíla gente ha muita , e toda fica bem caftigada nas noílas aílembleas, por-» que nos dâo aíTumpto para rir. Theod, Outros tomão caminlio difFerente para terem boa reputação , e também er- rão. Síío como os que vivem çm cafas Ç^ii rat %2Í Recreação Filofofica- raftelras , e morrem por ficarem fobran* cciros aos demais; e naa tendo forças pa- , ra levantar o próprio edifício , querem í abater tudo em redondo; e como que re- baixão no terreno aJiíeio cm vez levan* ^ rar o próprio ; e aílim todo o feu em- penho he criticar ^ e desfazer nas obras ? alheias, em lugar de aperfeiçoar as fuás; como fe os defeitos alheios foífem per- feições próprias. Diílo ha muito ; e cui- dando elles de adquirir para fi boa repu- tação 3 porque desfazem em todos os de- mais y dão a conhecer a fua pobreza , e louca vaidade. Barojí, Pois então qual he a verdadeira in- telligencia daquelle confelho : Tem cui^ dado do bom nome ? Theod, He : nau querer denegrir o nojfo nome com mas acções, A razão diftohc, porque com o máo nome na matéria de . coílumes , fazemos hum grande mal a nós mcfmos ; e fazemos hum grande mal â fociedade em que vivemos. Nós aífim co- ino não podemos . licitamente fazer-nos - hum mal fy fico , cortando v. g. hum mem- bro 5 aíTim não podemos fazer-nos hum mal mor ai \ ora dando occafião a que â nolTa reputação fej a má, verdadeiramente ■ nos fazemos hum grande mal : o que he . ^i cri- Tarde dezoito» ixy crime grnnde contra a propensão que Deos poz na noíla alma de nos procurar o noí^ lo bem : bem íolido , e por meios juC» tos. Vós , Coronel , vos furrides í Eu vos percebo openfamento: fei que as máxi- mas dos voílbs Filofofos parecem fcr as mefmas que eu aqui eftabeleço ; porém quando nós tratarmos dos Deveres do homem para com os outros homens , ve- reis que as minhas máximas sao inteira- mente diverfas das fuás ; porém agora he fora de tempo averiguar eíla matéria. Coron. Aífim he que me parecia que vós abraçáveis os fyílemas que eu abraço , e os Filofofos que agora geralmente fe ef- timao; mas a feu tempo faliaremos. Con- tinuai. Theod, Eíla he a verdadeira intelligencia , Senhora , deíle confelho prudente j he cuidar em ter bom nome quanto aos cof- tumes. Agora quanto ds ícicncias, tam- bém eííe confelho tem huma boa intel- ligencia 5 que he útil , e he differcnte , conforme as idades. "Baron, Explicai-me iífo. Tòeod, Qiiando vós éreis de menor idade, e com voífos irmãos começáveis o eftu- do da Geometria , Fyíica , &c. não fei íc vos lembra , que eu vos excitava , c ef- $30 Recreação Filofofíca. eftimulava para o eíhido , com os mo- tivos da vaidade , ponderando varias eir- cunftancias que excítavao os defejos de louvor ; agora porém nefta inUrucçao que me pedis , nunca vos fallo nos volTos lou- vores 3 nem na boa reputação que ides Xendo. Devo dar a razão deíla diverlida^ de 5 e vem a fer cfta. Na idade menor eíle orgao da noíTa alma fó tem os ca- nudos de vozes finas , e mais altas , e ainda nao foao os canudos das vozes gra- ves, e mais fundamentaes. O deleite, e fenfaçóes agradáveis he o que faz im- prefsão nos poucos annos ; porém quan- do a idade amadurece , as razoes folidas que o entendimento propõe , movem mais a vontade do que o deleite dos fèntidos na idade tenra. Ifto fuppofto , quando íl Razão he fraca , e os íentidos vigorofos , convém eílimular a vontade pelos louvo- res , eílimação , e vaidade ; e quando a Razão já he vigorofa , convém eílimu- lar a vontade pelas razoes folidas , como cu vos faço agora ; e náo olhar tanto para ter os louvores , como para os me-- recer. E deíle modo o meio de adquirir o bom nome , e boa reputação , ainda nas artes , e nas fciencias , não he procurar os louvores, mas he fó o merecellos^ Hardc dezoito. Z31 Coron, He mui auílera a voíTa filofofia , ineu Theodoíio. Theod, O cafo eftá fehe verdadeira. AíTim ,- minha Baroneza , cuidai em ter , ou cm^ confervar a voíTa boa reputação , não por criticar os defeitos das voíías amigas y ou companheiras j porque defeitos aliíeios' não sáo prerogativas próprias \ n@m tam- bém vos deveis defvanecer de alguma coufa boa que tenhais ; mas fó deveis cuidar em merecer os louvores , efpeci- al mente nos coltumes. Vamos a outro ponto. CoTQih Senhora , o voíTo Meftre quer-vos pôr n\ima Região fuperior d nolla na- tureza. "BcTf^on, E íe elle o pudelle fazer , que mal me hia ? Vamos , Thcodofio , a algum artigo diíFerente. Theod* Seja eíle cafo funeílo que hoje fe publicou que fuccedeo a Millord F. * * * que fe matou com huma piítola ao ou- vido. Coron, Tem bemdefculpa; porque fe. a deC- graça o perfeguia por toda a parte , en- fadado de viver fe deo á morte. §. VII, jt33^ Recreação Filojofica. §. Vir, DoSuicidio, ou fe he licito niatar-Je hum a Ji mefmo j ou também expôr-fe á morte com algum motivo^ Theod. /^ Ra dizei , Coronel , o que pen- VVÍ3ÍS ncíle ponto. Coron. Eu temo efcandalizar os delicados ouvidos da Baroneza. Baron, Como na prefença de Theodofio não temo que me deixe enganar pelos voíTos argumentos , disfarçarei todo o hor- ror dos voíTos fyftemas. Coron, Direi pois francamente o que pen- fo. O homem deve bufcar a fua felici- dade: ifto hc hum principio certo j on- de quer que elle a veja , deve ir bufcal- la : fupponho que concordais ambos vós nifto que digo. Ora de ordinário nós bufi ca mos , e efperamos a noíla felicidade no Bem da vida \ mas quando a larga ex- periência tem moítrado a hum homem, que na vida fomente acha a Defgrafa ^ c que eíta maldita fúria o períegue em todos os paflbs da fua cançada vida , deve bufcar a fua felicidade na morte; porquanto fendo a morte o eílado op-r poílo á vida, eftando efta cheia de def- Tarie dezoito. 233 - graças , he natural que a felicidade fe encontre fó na morte \ e por iíTo louva- velmente hum fe dá a morte a íi mcfmo. Demais , que cada qual he fenhor dos ícus bens \ e lè elle voluntariamente ee^ der delles , nao faz otfenfa a ninguém. Ora que bem he mais próprio de cada qual, do que a fua própria vida? Se eu cedo delia , fe eu íou o que me privo delia , e iífo porque quero , quem fe pô- de queixar de mim ? Não poderei eu pro- curar o meu delcanço depois de muitos ■ annos de trabalho inútil ? Atrás da F-f- Ucidade ( diz hum deftes infelices ) tenho corrido deíde a infância , continuei na puerícia , não defcancei na adolefcencia , forcejei com todo o empenho na idade de varão; o juizo , as forcas, a pacien-» cia , a conítancia tenho empregado a ver fe a confígo \ mas tem fido em vão , e trabalho fempre inútil. Ora quero ao me- nos defcançar de tanta fadiga inútil ; por- que cafo que na morte não encontre a felicidade que me tem fempre fugido , ao menos ceifando a minha fadiga , adiarei o Bem do Defcanço. líto he o que dizem os que fe refolvem a tirar-fe a vida. Baron, O cafo he que tendes bcllamente . advogado huma caufa bem feia. 234 Recreação Filofofica, Coron, Eu não fei que feja caula má odcP- culpar hum prezo ferrolhado n'uma ef- cura mafmorra por muiros aiinos , annos cm que continuamente he atormentado \ defculpar , digo , o abrir a porta do leu cárcere para fahir aos Campos Eliíios da lua liberdade. E que mais tenebrofa maA .morra (diz o infeliz ) do que o meu cor- po doente , fraco , fyrannizado , afflidlo , atormentado pela maldita fúria da Def- graça , e teimofa forte , que me tomou entre dentes , como dizem : a mafmor- ra , digo , mais tenebrofa que ha , pa- ra a minha alma , nobre , género fa , li- vre, e fidalga ? Soltem-fe pois as maldi- tas prizões do corpo , e voe a minha alma para fupcrior esfera , em que refpirc. Baron, Sc aílim foRe ! Se elía voaffe á fu- perior esfera i Mas fe . . . Acudi , Theo* dofio , que eíle ponto nao he para difcur- fo feminino. Porém nao ^ nao, que atéa- qui chego eu. Eífe voíTo difcurfo , meu Coronel , me agrada , me convence , q me parece de huma evidencia notória , e tiro delle huma confequencia , e he , que eu cm vendo que a roda da fortuna del- anda a voíTo refpeito^ e que aíTim como as honras até aqui vos tem bufcado , vol- tão fobrevós os infortúnios e defgracjps, o Tarde dezoito. 335* o que não he de admirar na vida de huní Militar, em vendo, digo, que fois per- feguido da defgraça , vos mando dar hum tiro por algum de meus Irmãos ; e ifto levado da compaixão, para por eíTe mo- do vos foltar do inaldiro cárcere que ti- nha ferrolhado a voíla bella alma neíTa triile , efcura , e penofa mafmorra do corpo, E com que gofto fahiria o voílo eípirito para eíla bella , e encantadora P^egiâo dos voííos Campos Elifios ! Os vortos diflinélos merecimentos , que aqui são mordidos pelas malditas ferpentes da inveja , lá ierao coroados com os louros immortaes da merecida gloria ; e em lugar das calumnias com que de vez em quan- do a inveja talvez vos períbguirá , ouvi- reis com goílo que o clarim da Fama faz retumbar pelos orbes celcítes o lou- , vor 4o voíTo nome. Ah meu Coronel , vede que grande fervilho vos faz a minha attcnção , em vos tirar a vida > para não ferdes defgraçado» Coron. Vós , Baroneza , parece-me que vos eílais enfaiando para o meu elogio fúne- bre. Agradeço , e cedo de tamanha com- miferação. Barojí. E como! Pois o voílb efpirito, a- ()rindo-liie eu a porta > não quererá íahir 2^6 Recreação Filofqfica. da raafmorra cm que geme quotidiana- mente ! Não , não , meu Coronel ; vós ha- veis de dar-me licença para eíle obfe- quio devido á natural compaixão dos noffos femelhantes. Tendes orado tanto a favor dos que fe tirão a íi mefmos a vida , para nio ferem aqui infelices , que cu pcrluadida do voílb difcurfo vos de- jejo fazer eíTe obfequio de vos matar; coufa que, tanto louvais. Coron. Senhora, difpenfo o voíTo favor. Baron* Logo vós louvais huma coufa n'um momento , e hum minuto depois a re- provais 5 como fumma mente m,á ! Ah Coronel , que aleijado he o voflb efpiri- to , coxeando alternativamente ^^v:\Jim , e para não ! dizendo , e defdizcndo ; ap- provando , e reprovando iíTo mefmo que acabais deapprovar. Mas já ifto he mui- to para rapariga ; perdoai , Theodoíio , a minha viveza. Theod. Náo perdoarei por certo ; fó pro- mettendo vós que nunca vos haveis de emendar defte , e lemclhantes crimes. Neí- tc combate literário , quando o adverfa- rio accommette qual bravo touro com arrogância , e ar d'ante-mâo viftoriolo , vós tendes deftreza para lhe cravar o ro- jão tão felizmente , que do primeiro gol- pe Tafãe dezoito, -237 pe o profirais a vofTos pés. A mão da Senhora lem mais delicadeza e gcito , ainda quando não tenha tanta força. 'Baron, Não percamos tanto tempo : ref- pondei vós no voíTo tom , que eu já reí- pondi no meu. Theod, Sempre aíTentei , Baroneza , que ma- tar-fe hum homem a íi mefmo , por não poder íupportar os trabalhos da vida , era prova dehuma ahiia bem fraca, pois que voluntariamente fe deixava cahir de- baixo do pezo dos trabalhos \ que hc ac- ção feiílima , que fó pode acontecer na íbrça da defcfperaçao , quando hum ho- mem fechando inteiramente os olhos á Luz da Razão obra como bruto. Baron, Dai-me licença , Theodofio, não concordo. Pois jáviftes algum bruto ma- ta r-fe a ÍI mefmo ? Theod. Dou-me por convencido; vcnceftes, Senhora, e digo que iílb he obrar mui- to peior do que os brutos ; e o horror dei- ta acção vem de que a Vida he o maior bem que ha na ordem da Natureza; ea Morte violenta o maior mal. Ora tendo- nos o Creador dado a vida , e dado a pro- pensão natural para a noíTa confcrvaçao, c para nós defejarmos o bem licito , e ra- ciona vel , fazer-fe hum homem a íi o maior mal 238 Recreação Filefofica* mal he liiima fumma defordem , e def* correzia a rcfpeito do Crcador. Quem me havia dedefculpar. Senho- ra , le eu me cortaíTe hum braço , ou decepaíTe huma mão , &c. todos me coii- demnarião de bárbaro ; e não he muito peior tirar-me a vida , que hc privar-me não de huma couía que Deos me dera , mas de tudo? Demais , que a vida não he dadiva de Deos fimplesmente como lie entre os ho* mcns a dadiva de hum relógio , que hu- ma vez dado efti dado , e temos nós do- minio nelle , e he inteiramente noíTo , e podemos difpôr delle como nos agradar ; mas a vida não he aíFim. Deos ma dá cada dia, e a cada momento; e não he huma dadiva fó , mas he huma continua- ção de dadivas íiicceíRvas , indepen- dentes humas das outras ; ranto aílim , que eu não me poíTo íegurar nem htrfti dia de vida 5 nem prolongalla mais ^ nem huma hora. O Cre^idor pela ília mão ma vai dando em quanto quer , momento por momento ; e faz illo para que eu veja que eíta dadiva depende unicamente da fua mão ; e para que eu nunca feja íe- nhordiíTo que lo por momentos meda, c que eu não poíTo guardar de huma ho- ra Tarde dezoito. 239 ra para a outra. E daqui fe fegue , que a acção de matar-fe hum homem a íi mefmo , bem confiderada , he querer Deos dar-lhe eíta dadiva da vida , que fomente eílá na fua mao , e o homem atirar-lhe á cara com ôíle bem que lhe queria dar. Empenherr.-íè todos os Soberanos da terra , convoquem todos os fabios do mun- do 5 facão as mais extraordinárias defpezas para que eu viva hum dia mais da con- ta que me eftá taxada lá cm fima , he coufa inútil : donde fe vê que he huma dadiva , da qual fó o Todo poderofo tem a regalia de a poder dar a quem quizer , e como muito quizer. Que horror lerá logo fazer delia dadiva preciofa , e que os Soberanos todos não podem fupprir, nem huma pequena parte , fazer, digo, hum tal uefprezo que a deílruamos ? Baron. E aíFentando o homem na Im mor- talidade de fua alma , então he loucura maxim.a ; e fem a menor apparencia de deículpa. Coron, Senhora , os que fe matao nem at- tcndem á Religião , nem cuidao na al- ma , nem em coufa alguma mais que na lim deíefperação ; c nunca difcorrem íi- zudamente como nós agora fazemos. Paf- ► femos a outra matéria, Theod. a^o Recreação Filofoficd, Theod, Ainda ha que tratar neíle ponto ^ por fer matéria análoga. Convém faber fe lie licito a hum homem expôr-fc vo- luntariamente a perder a vida. Baron, Oh , iíTo certamente não ; porque o mefmo he iílb , que mílíiar-iei Theod, Não fejais , Senliora , tão prompta cm decidir , porque mais ha do que iíTo. Qi.iando hum íe oífcrece para ir defendef na guei ra ou a fua Pátria , ou o fcu So- berano 5 certamente fe expce volunta- riamente á morte , e vós não haveis de condemnar a voíTos irmãos que o fazem , e a todos os voílbs honrados Avós , que tingirão do feu gloriofo fangue os efcu* dos da fua Nobreza , e fidalguia. Baron. Confeíío que não me lembrava iC» fo* Difcorrcl vós , que eu quero faber nif* fo o que ha de verdade, c decência^ Theod, Que a guerra pôde fer coufa licita , fabemos nós , porque nos tempos anti- gos Deos a ap provava ; o cafo eítá em que os motivos fejão juftos. Suppondo pois que o Soberano tem motivos juftos para a fazer , o vaííallo pódc , e deve ex- por a fua vida pelo bem da Pátria , por- que na balança da Boa Razão prevalece o Bem de todos ao próprio Bem : fe os foldados não fe tiverem firmes ás por- tas Tarde ãtzoitd* 241 tas da Cidade a impedir a invasão in- julla dOs inimigos, no que certamente fe cxpoe a ferem mortos , ellcs entraráô, e defraiidaráõ os Cidadãos dos bens , das mulheres , dos filhos > da honra , c das vidas 5 no que todos perdem. Ora pondo hum homem, na balança da Boa Razão (Razão , que Deos lhe imprimio na alma para fcu governo ) pondo neíla ba- lança , de huma parte perder a fua pró- pria vida ) da outra todos os horrores 51 ue de invasão injuíta dos inimigos íe eguem , como ifto tem hum pezo indi- zivelmente maior, deve expôr-fe ao pe- rigo de morrer » pois que cilc deve amor c fcrviço á fua Pátria, á mulher, aos fi- lhos , e concidadãos j porquanto de to- dos elles recebe favor , auxilio , c foccor- ro no tempo da paz ; e iie de toda a equidade e juítiça , que quem vale ao militar em todo o tempo da paz , Icja foccorrido por elle no aperto , e anguf- tias da guerra. IBaron. Pois não he iíTo perder hum homem o bem míiximo da ordem da Natureza, quando elle fc deve amar a II por pre- ceito do Creador? VCheod. Sim , he perder o bem máximo da ordem da Natureza ; mas lic para não Tom* X R per- ^4^ Recreação Vilofofica. perder outro bem maior , de clafle multo mais alta. Baron. Não entendo. ThcGcl, Eu me declaro. O Creador pondo na noffa aíma a Luz da Razão para nof- ío governo , quer , e manda por efta fua voz que nos governa , que obremos co mo o Creador nos diz pela Voz, da Ra zão^ que he voz fua i fe o fazemos, for- ço famcntc lhe agradamos , porque obe decemos á fua Lei ; peio contrario quan- do nós obramos contra q^2í Voz Divina y que nos eíU dizendo o que devemos fa zer, neceíTariamenrelhedefagradamos ; c já iílo he hum Bem , c Jie hum Mal de • ordem muito fuperior aos bens da Na tureza. Ora fe hum homem perde ávi- da por fazer o que deve, c o que Dcos lhe m^mda 5 ganha o feu Jgrado e Be nevokncia^ que he hum Fem lummo, í evita o Hef agrado do Todo podcrofo, que he hum ilf^/fummo, peior que a mor te. Eis-aqui j Baroncza , porque efe pc rigo da morte não he contra a prope sáo licita do Amor a fi mefmo, Baron, Agora já entendo ; mas vós levais ascoufas com huma meta fyíica taofubtil, que não íei que vos digp. \ pois confeíTo vos que eílava neíle erro , poílo que não oufava a dizello. Thaod. Tarde dezoito. 243 Theod, O méfmo vos digo daquellès , que le* vades de hum amor heróico de fcus ir- mãos , fc dedicão em tempo de pcfte a cuidar dos enfermos , ou íeja por obri- gação da Medicina , ou por aíTiítcncia de humanidade. Todas eílas acções sao fum- mamcnre louváveis ; porque íèndo o ho- mem creado peio Ser fupremo para viver em íòcicdadc , tem obrigação de acudir não lo afi, mas também aos outros. Af- íim fe prefere a vida de muitos á fua, obra com fumma heroicidade, e merece muito louvor i porque também nabalan- iça da Razão Eterna de Deos péza mais íí vida de muitos que perigao j do que a vida de hum , que pode klvar a mui- tos j e deíle modo não procura o íèu mal , ainda que morra , porque cíTa morte he- róica agrada fummamentc ao íèu Crea- dor ; e nefte agrado e complacência do Summo Bem ganha mais do que perde na vida corporal que arrifca , c que ofFe- rece ás Leis Divinas da Humanidade. Baran» Vedes , Coronel , como Theodoíio vai coherente na applicaçao dos feus Prin- cipios ! Devemos confcrvar a noíTa vida 1 porque he o noflb maior bem natural que Deos nos deo ; e pelo amor que nós de- vemos a nósmefmos, o devemos confer- R ii var. "24^ Recreação Filofofica var. Mas quando na perda deíle Bem ha outro Bem de ordem fuperior , qual he concordar com a vontade e approvaçao do Creador , eíTe melino Amor , que nós devemos a nós mcfmos , nos conduz á perda da vida , por íer iííb meio de con- leguir os agrados do Omnipotente. Ago- ra paflemos a outro ponto, como o Co- ronel ha tempo deíejava, Theod. Paflemos. §. VIII. Da obrigação que todo o Homem tem de ganhar o ftu pão pelo trabalho , ou pela indujiria. %heod. /^ Uero agora adiantar a Filoíb- -;;Ti' \f fia moral a hum ponto que con- vem igualmente ao bem de ca- ^ da hum, c ao Bem do Público. 'Baron, E qual hc ? Theod, He que nós devemos cuidar em con fervar a nofl"a vida , não por qualquer mò do , mas pelo trabalho , ou pela induf tria ; cada qual conforme a fua esfera. Coron, Não admitto ella regra tão geral co- mo vós o dizeis ; porquanto aquclles , a quem a Natureza deo bens hereditários com a Tarde dezoito» í^f. com que pofsão paíTar a fua vida com decência , nao tem alguma obrigação^ nem do trabalho , porque iflb he próprio de outra gente; nem também da induítria. Tomara eu que os empregos militares em que me tem pofto , me não deílem tan- ta lida 5 que eu goftofo paííaria a minha vida em gozar deliciofamente dos bens da fortuna , ou da Natureza , como vós , Baroneza , tendes na voíTa cafa de Santo Eftevão 5 ou na de voíTos Pais. Eu acho razão a muitos , que dizem com grande fatisfação da fua alma : Oh que bella coufa he não fazer coufa alguma l Baron, E vós feguis iílb ? Coron» Não o figo , porque me não deixão , com bem pena minha. Baron. Eu vos deixo a Theodofío o im- pugnar cite fyítema comoFilofofo ; mas cu como Politica vos proteíto que o não poíTo foffrer , fcgundo o que tenho ou- vido a minha Mãi ( que já conheceis que fabe o que diz. ) Diz que eíla gente he a peftc da Republica , e fummamente da- mnofa a todos os que vivem emfocieda- de. Nada bom ( me diz cila , e bem in- ílammada) nada bom tu verás fahir de hum homem ociofo, no qual o jogo ^ a converfação , o fajjeio são o íeu tudo. Pri- ^4^ Recreação Tilofofica, Primeiramente os ociofos são o verdugo de íi mefmos ; porque em lhes faltando a companhia, íè moem, feconfomcm, fe entriftecem , fc matão. O ociofo traz p corpo nk)lle , os membros aíFemina- dos, ojuizo eftupido , o animo froxo, o coração inquieto. Na converfaçao a fua lingu'^ he inconfiderada , o difcuríò leve , o efpirito enredador, O ociofo (dizia) quaíi femprc anda melancólico, porque em íi meímo nada tem com que le poA fa entreter e divertir. O tempo lhe fo- beja , faminto de companhia , o dia lhe dura muito, as horas são compridas , e ,cftuda em como fe ha-de livrar do enfa- do que lhe dá o tempo j anda bufcandq como o ha-de paíTar, ao que cllc mefmo chama Pajfa-tempo, Tem a fua alma, (deixai-mc explicar aílim , como ferrugen- ta , porque ella não trabalha. Se nada ef- tuda , de nada pódc fallar com funda- mento , fó a memoria he que tem ufo ; mas hc de hqm modo nada útil ; porque Jie fó para dizer aqui o que puve alli , relatando a torto e a direito tudoquanr to lhe dizem. Gomo não tcni críxica , nem difcrição para feparar o bom do mio, o verdadeiro do falfo, o que con- ?çm do que he nocivo , tem fprtilTimas in- Tarde dezoito. 247 indigeílocs no entendimento, c tudo lan- ça fora em bem feios difparates, Nao fó he verdugo de fi meímo , mas também inimigo de quaíi todos com quem trata , porque os defgofta fallando muito , econ- fidcrando pouco ; náo confidera no que diz , e mencs ainda nas confequencias do que falia. He curiofo de profifsao , fal- . lador por officio , noveleiro porcoftumc, inimigo do fçgredo , faryrico por moda , mentirofo por devoção. Ora vede fe ef- tes homens nao são a pefte da Sociedade. Cúron> Vós fallais com hum fogo, que eu nunca vi çm Senhora alguma da voíía idade. ^aron, He cfFcito da boa educação que mç ideo minha Mai ; ç que eu tenho aper- feiçoado com a liçíío pelo livro mef- tre do Grande inundo \ pois cada dia cf- tou vendo que he verdade tudo quanto minha Mãi me dizia contra eíla maldi- ta peite de que muitos goftão. Mas vós , Theodoíio, deveis como Filolofo moC- trar os horrores defte vicio t'áo repugnan- te á Filofofia Morah Theod, Eíta he a minha profifsao, moftrar os dtfcitos deíle vicio pela diíTonancia com a Lei da Natureza. Coron. Dizei , Theodofio , o que niíTo tendes difçorrido, TkQd. ^4i Recreação Filofofica. Theod, He precifo reparar na dlverfa dif- pofição, com que o Creador fuftenta os íinimaes , c com que fuftenta o homem ; porquanto aos animaes , que não tem dit curfo para inventar nada de novo , lhes tem fempre a meza pofta , ou nas hervas do campo , ou nos frutos que a Natu- reza efpontanoamente produz ; mas não he aífim a Providencia a refpeito do ho- mcm 5 porque não lhe dá fomente os fru- tos efpontaneos , mas lhe dá no enten- dimento a faculdade de inventar novos meios que a fua induílria acha para pro- curar o alimento. Elle cava , femeia , cultiva e colhe ; c desfrutando o feu traba- lho diverfificado por vários modos , fe vale para o feu fuftento , regalo , medi- cina 5 ferviço, &c. E por iíTo o bruto fuftenta a fua vida , obedecendo ao cego inftin(fko , e propensão inata que o Crea- dor lhe poz para efta , ou aquella her- va , eftes ou aquelles frutos que ms^is lhe convém; mas o homem não, fiado no ' entendimento que Deos lhe deo , capaz dediícorrer , inventar , variar, e multi- plicar os modos do feu fuftento. Bem vc-» des que ha aqui grande ditferença. Baron, EíTa faculdade de inventar que nós temos 5 e não os brutos ^ he que nos obrigai á induftria, Tb^od. Tarde dezoito. 249 Sheod. Ora vamos a ver a obrigaçiío que todo o homem tem de fe valer delTa in- duítria , fe tem entendimento ágil ; ou das fuás mãos ^ fe tem faude, e forças pa- ra fuftcntar a fua vida. Coron, lílò he que queremos faber. Theod. Para que deo o Creador ao homem os membros, e fentidos do feu corpo? Seria acafo para mero ornato íèu, como deo as pennas aos paíTaros , ou leria fcm fim ? Por certo que não. O fim com que o Creador formou com tão delicada ef- truílura os noílbs membros, e fentidos , não foi fenão para os empregar no jufto / c moderado trabalho. E do mefmo mo- do fallo da induftria , e faculdade de in- ventar, que a alguns o Senhor concedco. Aílim , fe hum homem , tendo os membros sãos , os tiver inúteis , fcm os applicar ao jufto, c moderado trabalho , obra dia- metralmente contra a intenção do leu Creador; e niíTo faz mal, e tem crime. Dizei-me : Não feria crime contra o Crea- dor , fe hum homem fe cortaíTe a fi as mãos , ou os braços ? Pois porque , fenão porque fe privava dos membros que pa- ra fcu bem o Creador lhe concedera. Ora que differença tem hum homem , que não tem mãos , de outro que não ufa delias pa^ ayo Recreação Filof^fica, para o que Deos lhas concedeo ? Coufe ridícula , e irracionavel , ter o ociofo os feus braços cruzados em vão , lium fobrç o outro , e viver contente ^ e fe lhe deo liuma paralyfia nelles , gaftar muito di- nheiro cm diligencias, e Médicos , e re- jjiedios, fó para recuperar nelles o vigor, quç ellc fempre coítumava ter iem ulo algum. Do raefmo modo acho criminofos di^ ante do Creador todos aquelles , a quem as enfermidades fizeráo inúteis para o tra^ balho ordinário, le náo fe valem da in- duítria , procurando modos de aproveitar cffe tal 5 ou qual vigor , que ainda lhes refta. Obfervareis que em toda a vaítare^ dondeza da terra não tem Deos hum pal- mo de terreno , que não tcnlia fua tal , ou qual producção dcherva, ou mufgo , òu vegetal de alguma cfpecic. Lá eííão os telhados em que nada fe íèmeia ; lá çftâo os muros clcondidos e retirados , e inhabi caveis , dç que rodos feefqueccm, c os vereis ornados e veílidos com o \Tr- de mufgo , e ás vezes com florinhas bem engraçadas ; nada fez o Creador inútil : c foíFrerá ver no homem os feus membros ociofos, e engenhos bem inúteis ? SoíFre* Jrá^^vcr o entendimento fçm cultura , km '' frw- I Tarde dezoitê. 2^1 fruto , fem ter o menor ufo ? Não , mi- nha Baroneza , Deos não pode deixar de fe dcígoftar de femclhante deíordem. Coroa. Agora já vejo que a ocioíidade he mais criíninofa do que eu cuidava. Mas dai-me licença , que eu rctiro-mc , Barone- za 3 porque cílou chamado pelo meu Ge-? neral. Adeos, adeos. Baron. Com pena perdemos a voíTa com- panhia 5 que femprc nos he goftofa , e par ra minha inftrucção também útil. Adeos. Theod, Ora como ainda temos algum tem- po do que cílava dcílinado para as nof- iàs conferencias , façamos aqui hum Epir logo deita Segunda Parte da Filofofia mo- ral ; c feja-me licito reflecflir aqui man-r famentc c fem difputa ^ no que temos dito. jparon. Eftimo, porque nasdifputas deor-r dinario não fegue a alma a ordem mais própria para as verdades que aprende. Dizei , Theodoíio , que attenta vos cf- cuto. Theod. Sgpponho que vos lembrais do Prin- cipio de que nós nos valemos, para de- duzir as obrigações que a Filofofia Mo- ral impõe a todo o hom«n , que he o pro- curar o feu Bem folido , e licito, ever^ padeiro j porque fedeve amar juílamen- i$z Recreação Vilofofica. te a fi mefmo. Náo fallo das obriga- ções que vos impôc a Religião , que ef- las pertencem a outros Meítres. Eu fó tra- to agora das Leis que a Boa Razão vos impôc , que hc o mefmo que as Leis , c preceitos que Deós vos impõe como mero Creador. Baron. Graças a Deos que meus Pais , e os meus Parrocos não fedefcuidarão dif- fo 5 nem também vós , quando trataftes da Theologia Natural , ou Harmonia da Razão e Religião. ( i ) Theod, Mas agora fallando como mero Fi- lofofo , do modo que temos fallado até aqui 5 digo , que todo o homem racio- nal , ifto he 5 que não fe governa pelo Ímpeto cego de alguma paixão violenta, deve refleélir , que a origem folida , efe- gura de tudo o que lhe he felicidade , he agradar ao íêu Creador^ e Conferva- dor. Senhora , fcjamos filofofos para not fo bem 5 c difcorramos no que nos pô- de fer útil , ainda neftcs dias de vida de que gozamos: Vede fe me engano no dif- curfo que formo. O Grande Senhor do Univerfo , depois de fazer tudo com mui- to juizo , harmonia , e proporção neftc Uni- ( I ) R«creaçío Filofofica Tom. IX. Tarde ãe&oito. 2^^ Univerfo , náo fc tem defcuidado nacon- fervação da fua obra. Ellc deíla grande Carroça em que todas as crcaturas cami- nhão 5 cada qual ao íim que o Supremo Direéíor lhes intimou , fó Elle tem as rédeas na mão. Nem força alguma po- derá torcer-lhe o braço , nem quebrar Íor violência as rédeas do fcu Governo, íinguem dirá que perturbado com a multiplicidade das creaturas , ou que can- çado com a contrariedade que eílas te- nhao entre íi nos feus defignios , Elle ou ceda dos feus intentos , ou que fraquce no poder de executallos , ou fique venci- do das fuás creaturas. Baron. Certamente não. Theod. Logo tudo quanto fuccedc defde o mais alto dos Ceos até ao centro da ter- ra 5 e defde o maior Monarca até ao vil mofquito 5 que fe fuílenta da humidade, tudo fuccede fegundo os feus Divinos in- tentos. Negais iílo ? Baron, E como poíTo negallo fem liuma blasfémia contra a razão. Theod. Logo tendo o homem a felicidade de agradar a efte Senhor Supremo, tem •fegura a fua foiida felicidade. Porquan- to fe lhe agradar verdadeiramente , ou Deos que he a Razão fumma , c fum- mo •25'4 RecreaçHo Filofofica. mo Poder lia-de fazer infeliz huiri crea* tura faa , e creatura de quem gofta ; e iílo faz horror fomente a penfallo , ou ha-de difpôr tudo para a fazer ditofa^ Negais iílo ? Baron, Por modo nenhum. Mas como lhe ha-de agradar ? Theod. Conformando as fuás acç6es com a Luz da Razão , ou com o preceito que lhe poz , e gravou na fua alm.a quando a creou , e que continuamente llie intima pela voz interior que continuamente lhe perfuade o Bem , e reprime no mal. Eu agora explico iílo pelos termos de puro Filofofo, que por outros termos o expli- caria fe fallaílemos em Theologia, Barõn, Tem huma- forqa eíTa razão tão ve- hemente , que cativa o entendimento , e o rende ; e já fe vê , que nefta Segunda Parte da Ethica (como fízeftes na Pri- meira) Deos, que hc o Author da ver* dadeira Filofofia Moral, tomou afio dar ao homem Luz , e Regra para as fuás acções em ordem ao próprio bem do Homem* Theod. Diífeíles bem , Baronezâ , e talvez fem reparar na força deíTa exprefsão. Deos em todas as fuás acç6es bufcou a íiia Gloria 3 mas que Gloria ? não Gloria de rc- Tarde des^oitOi iyj' receber , que iflb he indigno para o In-^ íinito o mendigar das vis creatiirinhas migalhinlias de gloria ridicula para ajun- tar á fua infinita felicidade; mas Gloria de dar , que he próprio dojmmenfo, que íe defafoga em fazer as creaturas felices. Bem como o Sol , a ue bem longe cftá de receber augmento de luz com o reflexo qiíe encontra na terra , e nos Planetas, Mas le elle foíTe feníitivo , teria grande goílo 5 regozijo , e gloria em alumiar to- dos os Planetas , e corpos opacos , que os feus raios encontrão por efles immcn- fos efpaços. Aífim he Dcos , tem gloria em dar felicidade, e nuo abufca cm re- ceber. Baron, Concorda iíTo muito com o que a cada palfo vemos em ânimos grandes , e género fos j pois que não mendigando mi- galhas de ninguém , fazem timbre , e tem grande gloria de fazer outros felices. Va- mos agora ter com minha Mãi que eílá fó. A' manha , ou depois entraremos na Terceira Parte. Theod, Vamos j mas convém efpcrarmos pc- i lo Coronel. Baron. Eíperaremos. PAR- 2 5" 6 E^crêaçao Filofóficd, >e^ i^ /«k /ov jrov /^ PARTE m. DA FILOSOFIA MORAL. •rt • II I I I I II ■! I I ■ ^ I — TARDE XIX. Dos deveres do Homem para com os outros homens* §. I. Se o Homem foi crendo para vhrf em Sociedade* BaroHé ^^^\ Ra vinde , vinde ^ meu Co* I 1 ronel , que eu , e Theodoíio ^-^ temos neftes dias fentido a voíTa auíència para as noíTas literárias con- Verfações» Eu não fci que tem a voíTa preíença , que quando vós aííiítis á mi- nha Inftrucção , finto em mim que fico mais ilíuílrada , c mais folidamcnte per- fuadida das verdades fi^bre que difcoíré* mos. E além difib fempre a converfiiçao he mais goftofa , porque vós contribuis para iflb com as voíTas luzes. Coro». Muito me admiro ^ Senhora , do que Tarde dezenove. t$j que me dizeis; porque fendo as minhas opiniões de ordinário oppoílas aos vof- ibs fentimentos , e de Theodoíio , reeea* va eu que a minha prefença neíías dif* putas vos foíTe pezada , e enfadonhai Theod, A diverfidade de pareceres , amigo j não deixa de fazer a converfaçao mais amena , bem como o fal nas comidas , pois excita mais o appetite, edefejo de averiguar a verdade. E hoje particular- mente o defejavamos mais, pela matéria que tinhamos determinado^ Coron. Que matéria? Theod. Tendo nós tratado das obrigações do homem para com Deos, e das obri- gações do homem para comíigo mefmoi faltava tratar das obrigações do homem para com os outros homens. Coron, Matéria he bem vaíta , e em que nem vós , nem a Baroneza podereis ja- mais concordar comigo ; porque cu íigo máximas muito oppoílas ás voíTas. Tbeod. Como todos nos prezamos de ter juizo , vós nos direis as voíTas razões , e nós diremos as noffas ^ e quem as tiver melhores , vencerá. Baron, Eis-ahi huma coufa bem pofta na razáo* ' Theod, Mas antes que entremos cm difpu-, Tm. X S Uj ^j8 Recreaçaa Filofofíca. ta 5 convém tratar eíle ponto , fc o hc* mem foi creado para viver em Socieda- ^ de com os feus femelhantcs ; porque dahi nafcem outros artigos , que Ic devem exa- minar. Coron, íCáo falta quem diga , que efla pro- pensão que nós temos para viver em fo- ciedade , hc eíFeito da mutua convenção , e não etfeito da Natureza ; porquanto a Natureza nos creou no eíbdo de íèlva- gens 5 e não poz diíFerença alguma de nós aos outros animaes. Depois os hc mens por convenção he que quizerao viverem focie- dâde, por própria eleição. Efta opinião não • me defagrada , poílo que não a íigo. ^heod. Ora eu cílou perfuadido do contra- . rio, e creio que Deos creou o homem de propofito para viver em lòciedade \ e niííb í com diffcrença mui grande dos bruros. Coron. Não baila dizello : já que fois Fi- loíbfo de profífsão, convém dar a razão do voflb fen ti mento. Baron, Eis-ahi o de que eu gófto : fali ar por fallar, dizem que he próprio de mu- lheres ; agora iíTo de não dizer nada íèm dar a razão , he próprio de Filofofos* Fal- t laá , meu Meftre. T[heod, O homem logo no feu nafcimento ' tem circunftancias em- que diíFere dos bro- - tos. Tarde dezemvâ. ^^^ tos , e com mui grande diíFercnça delles ; o que prova a grande neccíTidade que cem de viver em fociedade. Nafcc o homem nu j quando os outros animaes nafcem já veítidos. Nos quadrúpedes a peliíe que em toda ávida os vefte, nafce logo com elles , c cora elles vai crelcendo , fempre ajuftada ao íeu corpo em qualquer ida- de que tenháo , ou corpulência , nem de verão lhes he pezada , nem diminuta de inverno. Pelo contrario o homem iogo na fua infância precifa que as manti- lhas o abriguem, na puericiá carece de veítidos , e cada dia crcfcendo no corpo , crefce na dependência, já do mercador pa- ra o panrto, já do alfaiate para que lho talhe; ecomo asfazôes doannó mudão, repete- fe a dependência dos outros ho- mens. Pelo contrario as ferpentes , e mais infeftos nafcem veftidos , e á Natureza lhes talha veítidos novos cada anno , tão juítos e proporcionados ao corpo , que nenhum Monarca o tem mais juíto, íem que dependa para iíío de coufa alguma. As aves logo poucos dias depois de naí^ cidas fe achao veítidas e enfeitadas. S(S o homem entre todos os animaes depen- de de alguém para andar cuberto , e de- fendido das inclemências do ar. --i S ii Ef* a 6o Recreação niofofca. Efta dependência do lionieiir não he fó i para o veíl/do , he para ludo o mais. ' As crianças tudo levâo a beca, e he pré- dio grande cuidado , para lhes in^.pedir que niiío fe facão mal , e perjudiquem. ISláo tenhais iredo que os bruics apenas nafcidos Je deixem morrer á fome , cu fe precipitem ; quando pelo conirario os ho- mens fe náo tiverem vig-lancia nos Jeus filhos , clLs morrerão á fome , e a cada paflo fe porão em perigo de vida. Mais. Os brutos nno precisão de Mef- tres que os enfinem para as operações próprias da fua eípccie. As andorinhas, que naícêrao na Europa , e não virão fa- zer, os ninhos em que ícus pais as creá- .rao, pafsáo no inverno immxeciiaio para a - Africa • e com.o Id não crião , não vem ij formar ninhos; mas vohão logo no ve- rão íèguinte á Europa , e formão (lèm ver exemplo ) Os nnihos femelhantes á- quclles em qiíe ellas nafcêrão. Ora qual nhc o homem que faria huma boa mora- da decafas como aquclla emquenalceo, fe não tiver medres que o enfinem , ou livros , c eílampas que o dirijao ? Ve- - des que não ha animal mais dependente •: dcfc' outro^ da fua elpecie do que o ho- mem :,Jonde iníiro que o homem já foi -13 for- Tarde ãezenove* 26 r formado pelo Creador para viver em fo- ciedadc. Baron. Meu Coronel , Deos nao faz nada á roa, e iem algum fim. Ponderai bem, que fim podia Deos ter em fazer o ho- mem , fingularmente enire tcdos os ani* mães , em rudo táo dependente \ tanto af- fim, que nao íè explicaria mal quem qui- zeíle definir o homein o Animal depen* dente , pois que o he fingularmente em tudo. Coron. Seria huma bem nova definição do homem. Comi nu ai , Thcodofio. Theod. Logo feDeos creou o homem com tanta efpecialidadc , dependente dos ou- tros homens , hc certiífimo que o creou de propofito para viver em fociedade. Alia? havemos de dizer huma de duas cou- fas bem abílirdas. Prim.eira : Que Deos obrou nijfo fem fim , abfiirdo indigno de Deos. Segunda : Q^ie Deos lembrando- fe com tanta miudeza das lagartixas, c infedos , e de todos quantos animaes produzio , de forte que lhes nao fízefife . nada falta , ío do homem fe cfqueceo em tudo. E notai que o Creador em tudo xnoftrou que o homem era creado com cfpecial beneficência , pois o dotou com dotes prccioflífimos que uão dera aos bru- tos j jrfjt Recreação Filofojica. - tos , como já ponderámos. Efte efquecí^ mento do homem por huma parte , e eíta : primazia, e efpecial ellimaçáo dçlle por , outra , não concordão em Deos , fcnáo ^ creando-o para viver em fociedade. Coron, Eu não duvidarei concordar comvof- co, cm que Deos creafle o homem para viver em íbciedade, Nem vós , Baroneza , me podeis niíTo arguir , porque eu nao diíTe que féguia o que alguns dizem , if- to he , que Deos igualmente crcára os ^ brutos como habitadores dos matos \ e o homem como fe houveílè de viver no eftado de felvagem. Com que , Senhora , - náo eílou vencido , nem convencido , por- que nunca diíTe o contrario de Theodo- . fio. Baron* Eftimo vcr-vos concordes. Ccron, Náo tereis eílè gofto em muitos ar- tigos eíta tarde , porque he matéria em que tenho eítudado muito, Th^oã, Melhor ; porque aprenderemos mais , fe concordarmos , ou Ic não houver eíTa concórdia , a difputa fará bem á caufa da verdade. Agora reíla faber que leis ha-de fegiiir o homem vivendo çm fo- ciedade. Cg^oíi. Vamos a eíle poqto, Tarâe ãezenove* 163 §. II. Dãs Leis que deve ohfervar o homem que vive em J ceie da de y e que não são as Leis da Natureza , nem das 'Paixões. Baron. Ç E o homem foi creado por Dcos O para viver em focicdade , Deos lhe ha-de ter dado algumas leis para iíTo, Coron, Claro eftw4 , as Leis da Natureza \ e nada mais. Theod, Procedamos , amigo , methodicamen* te. Eu digo que fe o Creador fez o ho- mem para viver em focicdade , lhe havia . de dar as leis mais próprias para o bem da fociedade. Eis aqui a minha ra- zão. Vedes , Senhora , que procedo co- mo Filofofo, dando Icmpre a razão do que digo? Baron, Se todos fizerem aífim , grande uti- lidade fe efpera da converfação. Vamos. Coron» Muita malicia tendes , Senhora , nos voíTos olhos , e nas voíTas palavras. Sim , Senhora, também eu me prezo deFilo- fofo y e darei fcmprc a razão do que dif- fer. Defcançai , Senhora , continuai , Theodofio. Iheod. 2^4 Recreação Tilofoficai T^heod. O Creador quando formou elle paA mofo Univerfo não fomente cuidou (a noíTo modo de fallar ) na perfei jao com que o formava 5 mas lhe deo taes leis de movimento , que trabalhando continua- mente todas as peças deíla grande Má- quina, fegundo as leis queEllc lhes pu- zera , fe confcrvaíTem no continuado mo- vimento para que as deílinára. O gran- de Newton ( illuítrado fem dúvida por Dcos) moítrou quaes erao eftas leis dos movimentos celeucs ; e demonftrou a fua íimplicidade na gravidade mutua , e ge- ral, e na força da Projecção , e incrcia dos corpos. De modo que creado o Uni- verfo , e pofto o Orbe em movimento , Deos podia (a noíTo modo de dizer) dcfcançar , deixando ir andando cfte pat mofo relógio ; pois que em fi mefmo ti- nha a corda para continuar o movimen- to, e nas leis eílabelecidas tinha a caufa da fua continuação , e perfeverança. ( i ) Ora do mefmo modo creio eu que fez o Creador neftc Univerfo moral, que cha- mou Homem, Não íòmen te cuidou na fua perfeição do corpo, e alma, que já ex- pliquei á Baroneza, mas lhe deo taes leis pá- ^ I ) Recreação Tom. VL Tarde àezenovs, 26^ para a vida moral em fociedade , que efta continuaíTe com perfeição nos movi- mentos moraes que lhe ordenava. Por- quanto Deos quando faz huma obra , fa^ que fe coníèrve ; e por modo nenhum poderá ninguém perfuadir-fe , nem que Deos fazendo o homem para viver cm fociedade o deixaflb íèm leis para iíTo , nem que lhe déíle leis para ella fe dcf- truir, e anniquilar. Coron. Quanto a mim, tudo vos concede- rei 5 com tanto que não me venhais cá com leis que fcjao contra a natureza do homem. Theod. Quando tratarmos delias com indi- viduação 5 então podereis impugnallas , fe vos parecer juílo. Baron. Pois agora em que ficamos ? Theod, Em que as leis para o homem vi- "ver em fociedade , devem fer próprias pa- ra ella fe confervar j e que devem fer úteis d fociedade. Baron, Cá vou aílentando effa Propofição como fundamental , fe vós , Coronel , concordais. Coron. Suppoílo o difcurfo deTheodofio , concordo. Theod. Vamos agora , meu Coronel , a exa- minar individualmente eílas leis , e já que 206 Recreação Filofofica, que vós tendes feiro eftudo efpecial nef- te ponto , faílai primeiro ; porque pare- ccndo-nos juílo, concordaremos, e fe pou- pa muita queílao. Coron, Eu fe vos diíTer tudo o que eu te- nho lido , e tudo o que eu figo , a Ba- roneza ficará efcandalizada. Baron. Como vós vos prezais deFilofofo, haveis de dar a razíío do que diflerdçs y e eíTa razíío me livrará da eílranhez. Po- deis dizer tudo , que eílando na compa- nhia de Theodofio , náo tçmo que me pcr- fuadais doutrina nociva. Coron. Eu julgo que não devemos eílabe- leccr leis para vivermos em fociedade , como fe vivefiemos na Republica de Pla- tão; mas fim para vivermos os homens que adlualmente vivemos , iílo he ^ de ^ carne e fangue , e paixões , &c. Ora eí^ tas leis acho eu que devem íer tiradas áo feio da Natureza \ porque tendo nós todos a mefma Natureza , cada qual fen- te em fi as mefmas leis que qualquer dos outros homens ; e aílim viviráó todos cm união 5 e em paz. O primeiro em quem achei efta dou-* trina he o grande Séneca , e -por antono- mafia o Filojofo moraL Trata elle da vida feliz , e diz que a Natureza he a guia Tarde dezenaoe. 267 guia que nos ha-de encaminhar para el- la '■) porquanto a Razão fempre eílá ob- lèrvando , e como efpreitando a Natu- reza. A Razão a confulta fempre , de forma , que viver felizmente hc o mefmo que viver conforme a Natureza ( i ). Da- qui creio que tirou hum bom Filofofo ( 2 ) a máxima , que a noíTa Razão tem precisão de que lhe demos huma guia, quál he a Natureza \ de forma , que não he a Luz da Razão a que nos de- ve governar , mas fim a Natureza he que deve conduzir a Razão , e governalla. Baron. Não fabeis , meu Coronel , como elTas doutrinas são para mim novas ! Theod, Não interrompais, Senhora, o diC- curlo : depois tudo fe ha-de examinar na balança do entendimento. Continuai , ami-? go , e declarai o fyítema todo. Coron. Aííim he melhor, para fe ver a fua belleza , c formofura. Eu vos proteíto. Senhora, que depois de me ouvirdes, to- do o volíb horror fe vo3 ha-de voltar eiit applaufoj porque como tendes juiz o cla- ro , 1.- — ( l ) Natura duee uienium e/l : hane Kátid ohfervat ^ hanc confuUt : idtm g/i ergo beate vivere , ac fecun á minha vontade: Com que ds paixões deve a Humanidade os feus ricios ; e também a maior parte das defgraças que fuccedem ; mas ellas devem f cr ref pei- ta das nos olhos do Univerfo, Ha contra- dicção mais evidente ? Coron, Em que eítá a contradicção ! As paixões são huma arvore , que dá frutoí máos , como são os Vi cios ^ e as iDef^ gra- ( I ) LEíjprit pag. J20. Tarde dezenove, 271 graças \ e tarabcm frutos bons, cjue he a Virtude fublime* Tudo sao frutos da Natureza , e a Natureza he íilha de Deos. Baron, Muito me cuíla fuíler o riíb , meu Coronel ; mas fallai vós , Theodofío. Theod, Já que tocaítes niíío , meu amigo , dai-me attençao. A noíla natureza he fi- lha de Deos, porque Deos formou o ho- mem ; mas quem vos diz a vós que a noíla natureza trouxe das mííos de Deos todas as defordens que ella hoje tem ? Tendes alguma certidão bem auihenti- ca , de que ella fahio das mãos de Deos como ella hoje eílá ? Vós tendes hum fi- lho ( o Cadete ) que ha dous annos por hum brinco , ou traveíTura perdeo hum dos olhos, e quebrou huma perna. Ora fc algucm vos diíler que íeus pais o ge- rarão deílè modo , ficareis contente , e crereis o que dizem ? O homem fahio á^ o aborrecimen- to do coração malévolo ^ &c. Eftas pai* xoes são inatas , c todo o homem as tem 5 e vierão do Creadon Agora as pai- xões defordcnadas , e contrarias d Lusi da Razão y nafcidas , e alimentadas com os vicios , c máximas erradas do jímêr pi^-opr io hã&^ráo y eíTas não são da Na- tureza como Deos a creou , mas fim da Na- tureza como os homens a dcfordenárao. Parece-me que tenho refpondido , meu Coronel , á voíTa Razão* Coron, Seja como for, vós não me haveis de mõítrar acção heróica , e virtude fu- blime em qualquer género que feja, fem luima Paixão vehcmente. Theod* Quando a Paixão he das que Deos poz na noíTa alma , e que naicêrao à% inclinação que Deos poz em nós todos ^ como V. g. para appeteccr a Verdade , e a Virtude^ &c. fe for ajudada pelo gé- nio 5 pelo difcurfo, pelo cftudo e refle-' , xão , coíluma fazer esforços maiores pa- 5,74 Recreação Filofofic^. ra vencer difíiculdadcs grandes ; e então fc chama Virtude htroica y o\\ Jublíme\ porque eíTa Paixão de génio , de eftu- do , dè diligencia , c ineditada delibera- ção , aílcnra febre a paíxáo inata e in- nocente da Natureza coirio lahio das inaos de Deos. Pelo contrario , le a bafe das acções extraordinárias he algiiir.a paixãa defordenada , que depois hc ajudada pe- lo gcnio , pelo coílume , pelas máximas erradas , e confclhos , então lie origem de vicios , de deigraças , c de tudo o máo ; e deíle modo fe pode explicíT o ' que dizia o Senhor Coronel , tirado lá - do feu livro. Baron. DeíTe modo bem. fe evita a contra* dicção, fazendo diílinçao de paixc-e/in- noccntes e inatas ás paixões defordc- nadas e adquiridas. Theoã, Como efta matéria he mui impor- tante e mui delicada , convcm , Senho- ra , que eu vos dê inftrucçuo mais pro- • funda. Baron» Nao me priveis de nada que me põf- fa dar a conhecer a verdade. Theocl Em nós lemos duas liibííâncias et ^' fenciâlmente d i verias , Alma e Corpo ^ ' mas de tal forma unidas c prezas huma ' Á outra, quefemprc trabalhão ambas; e ifto illo por hum modo que a experiência nos faz crer; mas que não fabemos explicar» ( I ) A alma entende , e quer , e são ef- tas operações próprias fó da alma \ mas fem quanto eftamos vivos , e a alma eftá unida ao corpo , nada pode cila fazer fem que efte também trabalhe ; de for- ma , que tudo que ou facilita j ou im- pede, ou perturba o trabalho do cére-f bro , facilita , ou impede ^ ou perturba as operações da alma. Supponde vós ^ meu Coronel , hum homem intclligente, e fizudo 5 dai-lhe hum pouco de ópio > ou muito vinho , ou coufa femelhante, comecja a dormir , ou a dizer dcfpropo* íitos, c fazer difparates próprios de hum bêbado : dizei-lhe agora que fallc com propollto , que ajulle hum calculo , que faça humas contas difficeis, que efperais delle ? Nada vos fará com acerto. Per- gunto agora : A alma bebeo o vinho, ou tomou remédio ? Certamente não. Baron. Ainda fem fer neíTcs cafos , bafta que hum homem jante com largueza; porque depois de jantar não eftá com a cabeça prompta para o mefmo que de manhã faria com muito acerto. T ii Theod. < i ) Recreação Tom. VIU. ^ 7 í Recreação Filofofica. Theoã, Ora a alma não come , nem bebe í donde vem logo , meu Coronel , que n'u- ma hora hum homem conhece as couías bem 5 governa as fuás acções com pro- poííto , e n'outra hora fahe furiofo , deC- compõe agente, diz mil difparates ? Vai de que o vinho, ou a comida larga, lhe ^ occupao , impedem , defordcníio os m.ovi- t mentos do cérebro , de fórnftâ que a al- ma não faz o que quer , nem entende ,, como entendia : creio , meu Coronel , que não duvidais defta Filofofia certiílima. Coron, E concorda iíío com endoudecer mui- tas vezes de repente hum homem de jui- . zo , por queixa que Ihefvcio ao corpo; c fomente ao corpo; e fupponho pelo que 5 me dizeis que he porque citando o cé- • rebro deíconcertado , não pode a alma fa- r zer o que fazia com cllc concertado. Baroju Cahe aqui bem , meu Theodoílo , a comparação do Cavalleiro , e feu ca- vallo , com que me tendes n'outro tempo explicado iíFo. TheocL Dizeis bem; porque quando o ca- vallo eítá manfo , e bem fuftentado , o • . Cavalleiro faz nelle o que quer ; porém fe eítá doudo , ou iic rebelão , ou manho- «'íò , ou o tem defefperado , então não pó- - de o Cavalleiro caminhar íizudo. Pois P ^'' Tarde ãezemve* 17^ o mefiiio digo da alma , e do corpo» A alma he oCavalleiro, o corpo hç o feu cavallo : em quanto eítao unidos , os mo» vimentos defconcertados de hum" íe com- inunicáo ao outro : fc o cavaUo he do* cil , e o Cavalleiro quer faltar, brincar, fazer cabriolas , &c. iílb he detcirdina- ção do Cavalleiro; mas fe o: cavallo he rebelão, e manhofo , as defordens vem do cavallo , a pezar da fizudeza do Ca- valleiro ; e fe elle não o fubjuga , poden- do, e vai a terra , a culpa he fua. Vamos agora ás paixões: Quando à Luz da Frazão domina , e o génio , o temperamento do corpo , e a vontade fe fujcitão , então as Paixões podem aju- dar a Razão , bem como o cavallo dó- cil ajuda o Cavalleiro; e neíTe ca fo tu- do vai bem , e pode a alma fazer cou- fas heróicas. Quando pelo contrario, as Paixões eftão furiofas , e não obedecem á Razão ; quando a alma fraquea , e não as fubjuga como Ihedifta a Razão, tem crime , e faz mil loucuras. Porquanto ( excepto nos cafos em que falta a liber- dade como nos doudos , ou bêbados , ou fariofos , c frcnetieos) fempre a alma tem forqa para domar as Paixões , pof- to que com cufto , fe são rebeldes) e fe O ty^ Re4:reacão Tilofofics. o nao faz , tem culpa ; porque a Razão femprc diz : Não vou bem, 'Béiron, Agora íim , agora tenho entendido bem ; porém antes que larguemos cíle ponto , dizei ao Senhor Coronel bem cla- ramente Q que devemos entender por et ta palavra Razão , e por cila palavra Paixão ; porque como vós dizeis que ha Paixões innocentes , nao quero que haja cquivocaçao neíla matéria. Coron, Fazeis bem , Senhora , levar as cou- fas com bem metafyíica. ^hcod. Góílo diíTo , Senhora. Eu por Luz da Razão entendo aquelle fentimento geral que os homens fcntem em fi ge- ' ralmente , c que quer elles queirao , quer nãoqueirão, Ihesapprova, oucondemna • as fuás acçlcs; ou também squclla Voz • interna que nós não podemos ftzer ca- lar , por mais que queiramos , c que conf- tantemente nos diz o mefmo : Eíla Voz , ou efta Luz he impreíTa na noíla alma pelo Creador \ porque he fuperior a jú- ri fdicçao dos homens i pois vemos que ou queiramos, pu nao queiramos, a Luz diz : Vãs mal , ou não faças , &c. Ef- ta Luz , digo eu , que he huma Luz Di- vina , fuperior a tudo , c como hum re- flexo de Luz Eterna de Deos com que ^ 9 W' TarJe ãet:^enovf. 279 o Creador nos quiz illuílrar, e conduzir para o bemj e por ilio a gravou na al- ma de rodos. Baron. Emendo. Agora pela palavra Pai^ xão , que hc o que le deve entender ? Jí mo. diíTeftes a mim; mas quero que o digais díancc do Coronel. Theod. Eu indo coherente ao que já vos diíTe, Qh?áwo Paòjçes a todos os movi- mentos que fcncimos na nolla alma, in* dependentes de conlliltar a Razão : cftes Ímpetos com que ora abraçamos , ora dereftamos huma coufa , antes que o diP» curlo nos diga : deves amar , ou pelo contrario : tu deves fugir dej[a acção. Ora deftas humas são boas , outras"* más ; e por iílb quando a Razão he confultada, ora diz (\\icjim , e approva ; ora diz que não , e reprova ; e daqui nafce que ha liumas boas , outras más \ ha humas fu-» riofas , outras manfas , &c. Baron, x^gora já entendo tudo, A Luz da Razão lie huma Luz pofta por Deos em todos ; e quando a pezar da infinita va- riedade de fentimeiítos dos homens , todos concordâo em goftar da verdade , amar a innocencia , deteítar a mentira 5 aborre-» cer o furto , deteftar a ingratidão , ap-» provar zfidelidadç ^ &c. he final que if- ta ttó Recreação FHofoJlca. to he a pura Luz da Razão. Pelo con- trario , quando nós fem confultar a Razão approvamos , ou deteftamos alguma cou- fa, he Paixão; e fuccede fer humas ve- zes inclinação approvada pela Razão, e boa ; outras vezes reprovada pela Razão , e má. Theod. AíTim he, vamos agora , meu Co-' ronelj a tratar eíle ponto, dequaes hão de fer as leis para o homem viver em fociedadc. Coron. Eu fupponho , Senhora , que vós me dais licença, para que eu francamen- te diga o que penfo ; c não pelo meu lèntimento e difcurfo , mas íim pelo que tenho lido cm bons Authores , dos que hoje geralmente feguimos. Baron, Dizei francamente. Coron. Eu aíTento que os homems nao te- • mos outras leis para nos governarmos fenão as Paixões ; e a minha razão he cila. As Paixões são filhas legitimas da Natureza , e a Natureza he filha legiti- ma do Creador : vede que nobre he a • Genealogia das Paixões j e aífim hejuíliíli- ma a minha opinião, que nós nos devc- ■ mos governar pelas noíTas paixões. E de* " mais, vós, Theodoíio, bem vedes que geralmente lodos as feguem, ^ . •^^ Theod, Tarde dâzenove» iSf Theod, Que geralmente as feguem, confcf- ■ fo ; agora fc as devem feguir he o pon- ' to que tratamos. Mas tornemos a atar ' o fio do difcurfo. ' Baron, líTo he o que eu eftimo , que a vòC- fa doutrina ^ meu Theodoíio , forme hum difcurfo feguido , porque eíTe me inítrue mais, e efquece menos. Theod. Eílá dito , meu Coronel , que Deos creou o homem para viver em focieda- • de. Também eftá dito que Deos crean- do o liomem para viver em íocicdade , lhe havia de dar leis opportunas para ef- fe fim : ora as leis das Paixões são pro- i'^rias para deílruir a fociedade , e a di- lacerar j e por modo nenhum para a con- fervar, nem lhe procurar o feu Bem. Coron. Crede 5 meu amigo, que vos cnga^ nais. A lei para unir os homens n'uma fociedade, convém que feja huma lei de que todos goítem , que todos admittao. Ora eíta lei das paixões a todos agrada. Theod. Conforme , meu Coronel. A vós agradão as voífas paixões , mas não agra- dão as paixões dos outros. Onde viíles vós contenda , e guerra , e diífensão ^jh' nao porque cada hum dos contendores, e litigantes fcguia a lei das próprias pai- xões ? oqueapprovão as paixões de hum, he t9% Recreação FilofoJTcét. he femprc defapprovado pelas paixões dd contendor ; e qiianro mais tenazmente (cada qual ícgue as fuás paixões , tanto mais rija , firme , e teimofa he a con- tenda. Ora que bella lei para o Bem da fociedade , eníinar que cada qual puxe Íara fi ! Eíla he a lei máxima para fazer uma defunião perpetua em todas as fo- ciedades ; e illo he iei para as deílruir , ou para a fazer fumma mente incommo- da, porque he çrear femprc huma gucr^ ra civil. Baron. Meu Coronel , fe no voflb Regi-» mento vós tiverdes Officiaes , dos quacs cada hum teime bem anfiofamcnte pela fua opinião , e que feja eíla a liia lei , grandes eíFeitos vereis dcíTa fua lei. Coron, A lei qucellcs hão-defeguir, hefó-r mente o que eu mandar. BaroH, Logo haveis de confeffar , que a querer feguir cada qual a lei das fuás paixões, toda a fociedade fe dçftroe , e fica perdida. Coron, Deos me livre de argumentos do Senhoras : vamos, Theodofio, a outro ponto. í' in. Tar^e dezenove» '"'' 2X3 §. III. Se a Lei d9 Próprio Interejfe pode fer Lai para os que vivem em foçiedade. Coron. /^ Ra já que eílamos na queftao, V^ não quero por fer cobarde per- judicar á rainha cauía. Quero explicar a minha Thcorica da Bondade moral ; e veremos , Senhora , fe me approvais , ou fc pelo menos me defculpais. Baron, Que goílo feria o meu , fe hum dia fahiílemos da Conferencia bem concor- des. Coron, Theodofio acaba de dizer, que as paixões inatas são innocentes, porque são íilhas da Natureza no eftado em que Deos a crcou. Ora a paixão mais inata , c por çonfeguintc a mais innocentc , he o Amor do nojfo Bem. Efte he o primeiro precei- to da Lei natural , que Deos gravou no intimo da noífa alma , de procurar cada qual o feu Bem. Eíle aíFeílo , defejo 5 e propensão he verdadeiramente natural \ porque não he procedido da perfuasão dos homens. Ifto fuppoíto , quando eu bufco n'uma Acção ( feja ella qual for) 9 meu interejfe , 9 meu commodo , b meu 2^4 Recreação Filofojtca, meu gojio , a minha utilidade , quer feja de honra , quer da condefcendencia com as minhas paixões , &c. obfervo eíle gran- de preceito que Deos poz na minha ná^ tureza quando me creou : bem como a f)edra cahindo para o centro obferva a ei , e preceito fyíico que Deos lhe poz quando a creou. Ora obedecendo o ho- mem á lei, e preceito que Deos lhe pu- zera , bem fe vê que obra juíta , c lou- vavelmente. Que me dizeis , Senhora ? fou Filofofo , ou não ? Parece-me que dou razão do meu dito. Baron. Digo que fe iíTo hc aíTim , então ef- tou louca , c fempre o eítive. Mas Theodofio he que ha-de refponder á ào\í^ trina tão eíTencial. *Iheod, Dizei , meu Coronel , tudo o que tendes que dizer, e depois eu refponde- rei a tudo. Coron, Eíla doutrina he feguida por boa gente, de fórma, que hum diz ( i ) em termos expreflbs : que a fenjlhilidade fy- fica 5 e o interejje pejfoal são os au^ thores de toda a Bondade ynoraL Vedes que he o que eu diíle ? Ainda mais. Ef- te mefmo Author , que he famoíiíTimo , diz ( I ) • L'Erprit pag, 90. ta Jcnf.hiUtè j^hyfique , e9! flntcret per/cntljont Ui Muthcurs éc toute já/iicc* ^arde d&s^^enove. 285" " diz que iílo que chamao Probidade de cofiumes^ nao he outra coufa mais que hum cojiume confiante do homem bufe ar nas fuás acCoes as coufas úteis. ( i ) Baron. Oh meu Coronel , bemavenrurados os ladroes que toda a fua vida furtarão ! porque são os homens da maior probi- dade que pode haver; porquanto íempre , ti verão o coílume de bufcar o que lhes ^^*- era util. Theod, Não interrompais , Senhora , deixai ouvir tudo. Coron, Tenho dito o mais fubílancial , e parece-mc que tenho dado razão do que diíTe. Baron. Dai-me agora licença , Theodoíio , que me ferve o fangue. Com que, meu Coronel , vós credes que toda a acção cm que cada hum buíca o feu interefle > o feu gòílo 5 o feu commodo , &c. hc acção jufta , e louvável , e boa ? Coron. Sem dúvida ; aíTmi o dizem bons Authores ; e aífim o creio , por fer iíTo mui conform^e á razão que vos diíTc. Baron.Tomird. eu que em quanto nós eílamos na boa companhia que nos fazeis , algum - difcipulo da voíTa efcola vos tiralTe os ca- ^ ( 1 ) L'Erprlt pa«',. 73. La p,oItité ncjl ^ue i' habi- índc de ehercar la chfts atilo. 286 Recreação Filefofíca* cavallos da voíTa carruagem , c que votf deixaíTe a pé em tão máo tempo \ por- quanto provando elle que o fizera pelo feu intereíTe , feu gollo e commodo , tí- nheis obrigação de o louvar. E a nao quererdes louvar eíla acção , que no voíTo lyftema he jujiijjima , como ha pouco diíTeíles , eílais obrigado a confcíTar que efla doutrina he huma rematada loucura* Coronel , huma de duas coufas fois obri-* gado a fazer, ou louvar eile roubo, ou condemnar a doutrina: Qiial efcolheis ? que eu quero rir á minha vontade. Que he iíTo, meu Coronel ? Vós tendes con-* vulsoes na garganta ? Quereis fallar , t não atinais com palavras ! Ai , vó§ ri- des ! então não tendes nada : pois já eí* tava com fuílo , porque vos via fem falia. Theod. Amigo , já vedes os abfurdos que fe feguem deíTa doutrina. Refpondendo agora aos Princípios em que ella fe fun- da , digo , que a propensão para defe- jar o noíTo bem , he hum deíèjo inno- cente. Se o Bem he hum Bem puro , é fem miílura alguma de mal ^ eíTa propen- são hc louvável^ mas ítQÍÍQBem he mif- turado com hum mal , eíTe defcjo he no- civo 5 e criminofo. O Bem que he alheio , fc eii o tOmo para mim , íica gS'q Bém mif- Tarde dezenove. 287 miílurado cem hum mal ^ que lie o fur* to \ que he \\ummaly ehum crime cen- tra a Lei natural que diz , e Jeu a fen dono. Deixai-me explicar iíto mais radi- calmente. Deos Senhor noíTo creando o homem , duas coulas poz na fua alma , huma foi a propensão para defejar o lèu Bem ; e outra foi zLíiz da Razão ^ quelhemof- tra o Bem jufto , e o Bern tnjujlo. lílo são duascouíaseílenciaes, huma que pu- xa para certos movimentos , ourra que as modera e regula (como já expliquei á Baroneza na voíTa auíència. ) Temos exemplo nos relógios em que fempre ha duas peças eíTenciacs : huma he o Fezo y ou Mola real , que obriga as rodas ao movimento ; outra he a Fendula , que regula elTe movimento , e não deixa que vá tudo a precipirar-fe. Porquanto a Pêndula em cada ofciíajâo deixa paílar fó hum dente da Koda cathcrina. ( i ) Tirado eíle Moderador j ou Fendula , tudo vai a tombos, e fe quebrão as pe- ças. Do mefmo modo rio homem , 011 Relógio moral, ha hum Principio, que move , c hc o defeco do Bem , do Com-^' mo- N ' — — ^ Ill - I 1^.^— -^ ( I ) Cartas F) ficas da Mecânica. ft88 Reicreação Filofoflcaé modo , do IntereJJe , &c. e ha outro Prirt* cipio que modera cíle movimento , e he a Luz da Razão : tirado efte Modera^ dor 3 o Principio que move , leva rudo com precipitação , e fucccdem todas as defordens , e defgraças. Coron. Os meus livros não Icvao iflb com tanta metafyfíca > nem querem lá eíTc go- verno da L^j3 da Razão y porque já vos diíTe a doutrina de Séneca , e de muitos modernos , que a Luz da Razão deve confultar, e attender aos Ímpetos da Na- tureza , íervindo eíla de guia á Luz da Razão (pag. 267.) como já ponderá- mos. Com que , íèndo o fentido dos nof* fos Filofofos efle que vós dais , ficavao os homens nelTa intolerável efcra vidão da Luz da Razão , que não faz fenão re- primir as paixões , e em certo modo def- truir a Natureza. Theod. Amigo , fede Filofofo racionavel , c não povo fHofoíico. Não digais nunca he porque o dizem os meus ; dizei , he for ejia razão. Se vós com os voíTos doutores já confeíTaftes que a eílas Pai- xões 3 que cegamente bufcao o feu interef- fe e com modo , deue a Humanidade os feus vicios 3 e a maior parte das def- „ graças (pag. 270.) como podeis da;: ef- Tarde dezenóvè. 289 icíla lei do InrcreíTe como lei para a boa fociedade ? Qiiando os vicios, € as dct graças que delia reíultão , feriao hum grande mal para toda a fociedadci Baron. Eu pelo menos , fe vós praticardes efla doutrina , pedirei a Deos que Võs nâo agrade peça alguma do meu Gabi- nete , ou Toucador ; porque vos poderá lembrar a regra da Probidade , e Lei dos homens honrados , que hc bufcarem os feus intereíTcs , commodo, ou appetitcs a todo o cuíto. Vós para ferdes homem de bem, que he o que fe chama Homem de Probidade j he precifo que vos coP tumcis lempre a praticar ac<^6es úteis, e búfcar íempre o voflb intereíTe. Ora co- mo vós me lifonjeais fempre , gabando- me os meus traftes \ dizendo que tenho hum goíto raro , delicado 5 e exquiíito em tudo , tçmo que fe vos rcprefente útil , c commodo a vós o tirailos , para obe- decer a eíTe preceito , que dizeis que ten- des do Creador , de bufcar ( feja como for ) o voflb Bem , ainda que feja tiran- do o alheio. E Deos me livre que vós cm minha cafa fejais Homem de Probi- dade. Mas náo ; eu me retrato , G|^ue aqui tudo o meu he voflb , c fem «Icrupulo podeis fervir-vos de tudo. Tom. X V Co- l^o Recreação Tilofojica. Corcn, Não poílb deixar de agradecer a voíTa cortczania. Baron. Mas (aqui para nós) não quizera que praticaflcis a voíla Filofofia em mi- nha cafa. Poílo que , meu Coronel , não poílb perfuadir-nsc que feriamenie ho- mem honrado figa o que dizeis. Theod, Eu eftava , Senhora , neíTa mefma idéa ; mas perdi-a em huma occafiao , que jantando em cafa de Mr. H*** meu difcipulo , depois do café, hum amigo feu me quiz perfuadir efic Principio da Bondade moral. E pondo eu o cafo prá- tico fobre hum lenço feu que na fua mão tinha 5 conccdeo que reprefentando-íè a mim que elle miC convinha , faria huma acção louvável fe lho tiraíTe ; e que elle também obraria bem fc mo tiraíTe depois a mim ; e que fc ambos com força con- tendeíTemos fobre quem o havia de le- var 5 fendo o lenço feu , ambos obráva- mos louvavelmente por fegnir cada qual a regra de moralidade , e o Principio da juíliça , iílo he, de rudo o que he juílo. Vós 5 Senhora , o conheceis ; e toda a farde difpután-ios fem fe dar por conven^ eido. Com que crede , Senhora , que ef- c tes Filofofos dizem de coração , o que exprefbão nos livros, > V Ba- Tarde dezenove^ 49 1 Bãrofí. Oh meu Coronel, que bellos Prin- cipies para liuma boa Sociedade ! eftaf cada qual certo que lhe podem furtar tiií* " do , fem que elle polia queixar- íè j pOr* que antes deve louvar a Probidade deP- fes fenhores ladroes, que moílrão ferem homens de bem , por terem eíTc honrado coítumc de tirar tudo o que lhes faz conta. Coron. Eu , minha Senhora , fó huma cou- fa eu vosdefejára roubar ^ e naõ me en- vergonho dé vo-lo dizer , e he o juizo que Deos vos deo. Baron, Invejai antes o de Theodòfio ^ que ficareis mais rico. Mas não ; pois feria iíTo hum crime grande no voflo moral ; porque eílb juizo vos privaria dos com- modos j dos deleites , e dá fatisfa jão das paixões quedefejais; eiíío feria hum cri- ' me. Não queirais ter o noíTo juizo , não. Pafíemos , meu Meítre , a outro ponto. Theod, Agora já hc tempo, meu amigo, de examinar quaes são as Leis fundamen- taes para o regimen de humia Sociedade» Coron. Quero-vos ouvir com gofto. 11 §. IV. 2^2 Recreação Filofõfica* Das primeiras Leis fimãamentaes para a boa Sociedade, Barofí. A Inda não poflb , meu Theodo- jLJifio, tornar a mim do efpanto cm que me tem poílo as máximas que acaba de nos declarar o noíTo Coronel, tirada& dos feus livros. A mim me fer- ve o fangue quando as ouço j mas náa era jufto que interrompeíTe o voíTo dif- curío folido, que me inftruia a mim, e o refutava a elle. Coron. Se o difcurlò folido de Theodofia me refutava ^ as voíFas razoes talvez que me convenceíTem mais do que todos os difcurfos de outrem^ porquanto no meu entendimento , que eftá ligado ao meu coração , as voflhs palavras tem Jiuma entrada mui particular , porque levao a- - diante de íi huma carta de recommenda- . ção , tal que aquelles que vos amão não lhe fabem refiítir. Huma grande máxima que nós os Filofofos feguimos (i) he , que o Deleite , e a Dor são as únicas caufas mo- (^\ ) L'Erprit pag. 3^c. he pUifir , CT la DottUuf, Jênt liff^uli mot€»n d« VUnivcn moral» Tarde dezenove. 293 viotrices defteUniverfo moral. Ora quan- do huma Senhora com as bellas qualida- des que vós tendes , vai primeiro pelo gabinete do peito fallar com as fuás ra- zoes ao entendimento do Filofofo , já le- va mui ra força de eloquência occulta pa- ra ©convencer. Dai-me vós quehumdif- curfo deleite bem , que eu vos feguro que convença. Porém não he jufto retar- dar-vos , Theodofío , com os meus ret peitofos obfequios a Baroneza. Theod, Eftes amenos intervailos , Amigo , não deixão de fazer a converlac^o mais fuave , e pela voíTa mefma razão mais util. A primeira Lei pois que he funda- mental , em que fe eítriba o bom regi- men de toda a Sociedade , creio que he eíla. Deve cada membro da Sociedade pre-^ ferir e Bem do commum ao feu próprio Bem, Já vedes , amigos , que as leis fun- damentaes da fociedade háo-dc fer para bem , e confervaçáo da mefma focieda- de. Ora fe cada qual não preferir ao feu Intereífe peíToal o Bem do commum, tudo eílá perdido , puxando cada qual fó para fí , gema quem gemer. Porquanto o mal do commum fempre redunda no mal de todos os particulares: aífim co- mo 294 Recreação Filojoflca. . mo a doença de todo o corpo pela fey . bre, pcrjudica a todos os membros; e defte modo o Bem que cada qual neíTe çafo vê 110 íèu Interejfe pejfoal ^ traz an- . nexo o mal que lhe redunda a elle meí. mo no perjuizo da fociedade , em qtie çlle vive. Por onde quem prefere o leu Bem particular ao commum, erra , bufcan- . do hum Bem que lhe acarreta hum mal ; e mal que de ordinário he muito maior do que o bem que bufcava. Baron- Eítá-me lembrando a loucura de Ncr ro 5 quando mandou pôr de noite fogo a B^oma , para ter o goíto de ver aquelle luminoío efpectaculo , e a infolita confu- são, e perturbação de todos os habitan- tes. Preferia aquelle coração damnado q íèu appetite ridículo de ver aquella def- graçada illuminação , ao bem e confcr- vação de toda a íua Corte. Theod» Para que còndemnais na face do nof- fo amigo huma acção que elle deve ap- . provar, e ter por louvável; porque buf- cava Nero o feu deleite , e o noíío Co- ronel difle , que ^ fenfibilidade fy/ica y e o intereffe peffoal ^ são os authoresde toda a juj}íça ( i ) , ifto he , da bondade mo- Çi ) L^Efjprit pag. 90. Tarãè dezenove, ipj ínoraly c laudabilidade das noíTas acções. r Hç peiiíi , meu Coronel , que eíTc voPib Aurhor c Meílre nao foíTe deííe. tempo , - para fazer o elogio fúnebre defie Impe- rador , e o juftiíicar nas fuás (^ mais que brutaes ) barbaridades. Baron, Seguindo os guardas da Cidade os principios da nova lilofofia , por iium car- tucho de moedas a entregarão aos feus inimigos. Theod. Náo falíeis dos guardas , que iíTo não admira : fallai dos Governadores, fali ai dos Commandantes das Tropas , fallai dos Chefes , e vereis na hiíloria do feculo prefente innumeraveis exemplos de quem pelo intercfíe peflbal tem vendido os povos innoccntes, a pátria, os Sobe- ranos. E o peior he que fe nâo enver- gonhão , quando fe podem pôr em fal-» vo. Ora quereis vós, meus amigos , pro» va mais palpável de fer precifa a Lei que acabo de eílabelecer ? Coron, Não vos cancci? mais, que he evi- dente; porque fendo nós todos membros da fociedade em que vivemos , redunda em bem próprio tudo o que he bem da fociedade y e o meu grande Meílre ( i ) p6e ( 1 ) L' Efptit pag. 8©, 1^6 Recreação Filofafica: p6e eíTc defejo ferio da utilidade pública por Principio de todas as virtudes hu^ manas. Theod, A fegunda Lei , que me parece fum-. piamente uril á fociedade , iie efta : Tu tratarás os outr»s homens , como tu de^ fejas fer tratado por elks. Efta lei he admirável , porque faz hu- ma pafmofa união entre os fcus mcm^ bros , e caufa huma grande utilidade dp commum, O amor próprio que cada hum fe tem a C , fé transforma por eíte mo- do no amor a cada hum dos feus con- cidadãos ; porque fe ellc ha-dc fervir , e ajudar a cada hum dos outros , como quer ' ler fervido , e ajudado por elles , ha-de ' amallos a elles, como feama a íi. Eque ' bella fociedade feria eíía , na qual todos " os membros praticaHjem efta Lei ! Baron* Seria tudo hum Paraifo terreal. Em virtude dciTa lei fomente, cada qual que viveíTe em fociedade , feria , ainda nos tra- balhos 5 feliciífuno *, porque acharia por to-' da a parte tantos amigos verdadeiros , 5 mantos homens encontraífe. Cada qual e aprcílaria a dar-Ihe foccorro nas em- prezas , confolação nos defgoftos , pro- tecção nos perigos, allivio nos trabalhos. Cada qual para as fuás juftas emprezas ÇOVr 1^ Tarde dezenove. i^j contaria tantos braços , qyantos houver- fem no género humano. Jamais hum ho- mem faria mal a outro homem , nem luílo teriamos de que lho fizeíTem. Que harmonia nas famílias ! Que paz nas cor^ poraqóes ! Qiie força nas emprczas com- muns ! Haveria íumma felicidade na ter- ra 5 fe efta fó lei fe praticaíTe. Theod, Pois cíTa he a Lei que a Boa razão nos didla , gravada no entendimento pe- la Míío do Creador ; e tão fortemente gravada , que nenhum malvado deixa de ouvir eíta voz no intimo da fua al- ma 5 que o reprchende , quando elle faz a feu irmão o que certamente não quere- ria que \\\Q fizeílem a elle. Ora fendo ef- ta lei generaliíTima , não pode deixar de fer pofta pela Mão do Creador , quando nos formou a natureza. Como o Creador he o que deo a cada hum de nós a na- tureza que tem, todos fomos igualmen- te feus filhos j e aílim não quer que por modo algum fe oífendão mutuamente, e por iiTo lhes infpira eíla admirável lei, de que cada qual trate os outros, como quer fer tratado por clles. Coron, Sabeis vós , meu Theodofio , como os meus livros explicão eíla lei ? Eu p digo. Procura o teu bem^ ainda que Je-» ipS Recreação Filofofica. ja com 0 menor mal alheio queteforpof-* fivel ( I ). E vai concordando com os meus princípios, que cada qual tem obri- ga jão de procurar o feu bem , feja como for. Baron, Oh meu Coronel , bello diílame para quem vive em fociedade ; porque eftá certo que vive entre tantos inimigos quantos forem os homens \ porque ne- nhum duvidará de Ihç fazer mal , íe iílb fe lhe reprefcntar commodo, ou util. Theod* Os dias paliados encontrei hum li- vro, em que fcglozava eíle Principio da moralidade com baílanic galanteria ( 2 ). ?) Qiianto a mim (diz eíle livro) cu qui- ?j zera que fe grava (Tc eíla máxima em j> todas as efquinas das encruzilhadas , e >5 em Codas as paredes das tavernas, e ■ >> caías de povo j porque todos aquelles , < >) que coílumão frequentar eíTes lugares V honrados , que muitas vezes são gcn- » tcs de faço e corda , poderiao á for- j> qa de ler , e de refleílir , c de fe jj communicarem as fuás idéas , achar y> meio de procurar o feu Bem com o » me- (O Difcourj fiir l'inegalité des conditions. Fait Í9n bicn avec le moioirc mal d' autrui qu il U fif^ poffíblc. (2) Diecion/iirc 4ti Philcfiphes pag. ^7, Tarde dezanove. 299 ^j menor mal dos outros que feja pofr- » fivel i no que a fociedade fem dúvir 5) da utilizaria ; porquanto então os af- n falimos e ladroes em lugar de matar 3> fe contentarião com lhes cortar a lin- j> gua, para que não fallaflem, eas mãos 5> para que não efcrevelTem ; e os ladroes » ie contentarião com furtar de modo ?5 que deílbm menos dam no , e não eí- >j truirião iíTo que não levavão. Os que » matão com veneno eftudariao modo » de o fazer com menos dores , &c. ?> E vós rides , Baroncza ! Também eu ri. Baron. Ah meu Coronel , muito tenho que rir com as minhas amigas acerca da voífa filofofia moraU porque em vós ap- j parecendo com alguma caixa de goíto, bi ainda que feja preciofa , alguma de nós vo-la ha-de pilhar-, fem efcrupulo, por- que eu lhes hei-de provar que vós lou- vais efte noOb furto. Com tanto ^ que cm lugar deíTa caixa preciofa vos metta- mos na algibeira huma de dez reis com o tabaco precifo para chegar a cafa ; por- que he procurar o noíTo Bem com o vof: fo míil , o menor que poíTa fer. Çoron. Não he precifo iíTo ; porque tudo o que for meu eílá ao voíTo ferviço , e deíTas Senhoras, que vós honrardes coni 9 300 Recreação Filof&fica, o titulo de voíTas amigas ; porque íèn- do-o , merecem os meus obfequios. Baron, Náo queremos dever iflb ao obfc- quio da vofla amizade; porque vos ha- vemos de tirar tudo o que vos virmos de bom gofto (porque em tudo o ten- des fingular) pelo direito que temos ao noíTo Bem ; o que faz cíTas acções mui íantas , e louváveis e juílas , de forma , que nao sao por modo algum crimino- fas. Coron, Indaaífim, não tos quereria tão fi- lofofas como iífo. Baron, Que maior gloria para hum Cava- lheiro galante , como vós fois , do que ter tão bellas difcipulas como as minhas amigas , pois que eu vos feguro que as efcolhi das mais bem prendadas que ha; e agora tomando nós a voíTa doutrina , e achando-nos convencidas das voíTas bellas razoes , toda a noíTa convicção ce- de em voíTo louvor; e nós íèndo voíTas difcipulas , contribuimos á voíTa gloria. Com que , meu Cavalheiro , vós ficareis com a gloria de nos terdes convencido , e mcttido na folida Filofoíia ; e nós com o intereífe de todas as bellas alfaias de bom gofto, de que eftais bem provido. Vós rides ! Mas eu infto, que ou haveis dej Tarde deíz^mvê. 30Í dei confeíTar que nós faremos ir.uito bem fe executarmos iílo i ou que vós defen- deis liuma doutrina tão abfurda , que vós mefmo , que a cnfinais , a tendes detcf- tado. Efcolhei. Coron. Vós , Theodofío , tendes huma dif- cipuh 5 que pôde pôr cadeira de Lógica , porque fabe argumentar com fubtilcza. Tòeod. Meu amigo , a Baroneza vos con- vence , nao tanto pela clareza do feu en- tendimento , como pela juftiqa da caufa que ella defende. Se no mundo fc eíta- belecer a voíTa doutrina , quem vivirá focegado ? Porque a voíla mitigação não nos livra de eftar certos que todos quan- tos nos vem , c nos tratao nos defcjão fazer mal ; poíto que os melhores fe con- tentaráo com nos fazer o menor mal , com tanto que lhes faça iíTo o feu Bem ; iíto he, ou o goíto 5 ou o intereíTe, ou a fa- tisfaçâo dos feus appetites. Mas eítamos cerros que todos eítao promptos para nos fazerem mal , fe iíTo fe lhes repre- fentar como útil. Coron. Amigo , vós vedes que praticamen-- re eíTa he a lei do mundo. Tbeod. He a lei dos mãos , e lei que elles praticão , mas que fcmpre disfarcão poi* lhes parecer horrenda. Mas que farão el- les 302 Recreação Filofoficd. Ics fe o fyílema Aq procurar o f eu Bem ^ gema quem gemer , ie approvar publica- mente , de tónna 3 que não ícja precifo efcondelio , ou delculpallo ? Então fran- camente todos os homens ferão velhacos fem vergonha. Ponde, amigo, duas ter-^ ras vizinhas , e iguacs no terreno ^ mas que n\ima íè figa a voíTa Filolbfia de caJa qual procurar o feu pejfoal inte^ rejje , ainda que feja com o mal alheio , e iílo licita e louvavelmente ; c a outra cuja lei feja, não fazer aos outros aquilo lo 5 que não querem que lhe façao. Em qual deitas duas terras querereis viver , meu Coronel ? Coron, Confeffo que na fegunda. Theoã, Logo he melhor para todos os mem- bros de huma fociedâde a Lei que Deos nos poz de tratar os outros como que- remos fer tratados por elks. CoiifelFais que he melhor que efta Lei fanta , do que a que a vofla nova Filofofia formou de procurar cada qual o feu interejfe a pezar do mal dos outros, Bar$n, Que refpondeis , meu Coronel ? O furrir não hé reíponder. Queremos y7wí ^ ou não. Coron. Não poíTo negar que eíTa vòíTa lei he muito melhor.- Ba- . Tarde àeztncn)é, 305 Barcn. ?ois diíTo he que tratávamos: das leis melhores para quem vive era focie- dade ; e com^o concordais cominofco ? Va- mos adiante, Thcodofio. Coron. Sempre me fica hum grande efcru- pulo i porque íc concordo comvoíco ( co- mo eu , minha Senhora , quizera) vejo que deito por terra a doutrina, c as má- ximas eítabclecidas por homens do maior, juízo q^ue ncíle Jccuio íe tem conhecido. Baron. L que hom»ens ^çao eílès , que má- ximas , declarai-as ? Coron, O meu Meílrc ( i ) diz que aílim como o Un/vejjo fyfico ejiá fn jeito ás leis do movimento , ajjim o Univerfo mo- ral não o ejid menos ds leis do inter ejje ; € que ifto he que fe devia fazer entender bem aos Legisladores , a necejjldade de fundar os Princípios da Probidade f obre a bafe da Inter ej]e pefjoal \ porquanto que outro motivo poderá determinar hum ho- mem afizer acções generofas ? Ora iílo concorda com o que eíle tinha dito n'outra parte ( 2 ) , que hetao impqfflvel que nós amemos o Bem fé pelo Bem , como que amsmo^ o ynal fó pelo maL Ora eu ten^ do íido creado com eíles principios , co-* mo poíTo jamais concordar comvofco ? ^ Theod. (1 ) L'Efprit pag. 2J2. (2)Pâg. 7J. 304 Recreação Fiiofojíca. Theod* Não vos efcandalizeis , Baronezá^ 5 [lie ainda o Coronel não diz tudo o qud abe da doutrina dos feusMeílres. Hum delles diz ( i ) ^ que não ha vícios , mm virtudes que ofejao em fi ínefmos \ nem ha bem , nem mal moral j que não ha coufa em fi jufla , nem injufta ; porque tudo he arbitrário , e depende dos ho- mens. Coron, Aílim he , também tenho lido iíTo ; poílo que lá me parece cíle modo de penfar hum tanto demaziado \ e ainda el- le accreícenta ( 2 ) , que quanto mais nós examinamos de perto a natureza do ho- mem ^ tanto mais ficamos convencidos ^ que as virtudes moraes são effeitos da Politica 3 que a lifonja , e foberba gera- rão. Eu mefmo confeflb que nãoappro- vo de todo efta doutrina. Theod. Nem podeis ; porque o VoíTo Mes- tre ( 3 ) diz expreíTamente 5 que a utili^ dade pública he o Principio de todas as virtudes humanas ; e que a ejle Princi^ pio fe devemfiacrificar todos os fentimen^ tos , até os fient intentos da humanidade* Coron* AíTim he ; aíTim o diz , e me con- fo- - ( 1) Difcoars fur la vie heureusc pag. lí, ( 3 ) O mefmo pag. j j, ( j ) L' Efptit pag. %Q4 Tarde det^enovè^ ' 30f iblei , quando ha pouco vos ouvi fôi" por primeira lei da fociedadè ^ quedeviamoá preferir o bem público aò noílb bem particular; alegrei-me, vendo que admit- tieis o meu Principio cftimádò. Tòeod. Ora agora j Senhora , prepàfai-vos para rir, vendo huma admirável contra- dicçáo deite grande Author ^ Meílre do nolTo amigo. Acaba de dizer ò que ou- viíks na ília p. 8o. na p. 361. ( i ) Mas diz que o Hêmem virtuofo não heaquel- le , que fãcrifica Gsfeus coftmnes ^ t af fuãs fortes paixões ao Inter ejje público , porque hum tal honíem he coufa impof" ^el que haja ; mus que o virtuojo he aquelle , cujas paixões fortes são de tal mio do conformes ào Intereffe geral , que he quafi fempre necefíptado a fer vir-- túofa. Ora pedi ao noílb Coronel que nos concorde citas doutrinas do feu Meílre , e ide rindo entre tanto^ Uron, Se eu rir em qUanto élle não con- cordar coufas tão oppoftas y muito tenho qué rih Coron, Concordo bdia mente , dizendo como cllcj que a virtude (quando a houver) ha-de fer de quem facrifícar ao Bem Tom. X. X pú- ■ — ' • " ' - 1 1 -• (i ) L'Efpiit pag. 3C1. *^o6 Ke^reaçãõ Pilofofíca. ' púhlico os feus fent intentos , até os da humanidade ( V Ejp* p. 80.) , mas que ' facrificar ao Bem público as paixões for^ . t es he impo (fiável \ e que fomente fe acha a virtude , quando as paixões fortes ., vcHcordão felizmente com o bem público, (UEfp. p. 3^J0 . Baron, Ah ! neííc cafo a virtude nao he merecimento ^ he fortuna de naíber com lium tdl temperamento que as paixões próprias concordem com o Bem públi- co ; e affim nem a virtude traz mereci- mento, nem por confeguintc o vicio he crime. O' meu Coronel , o voflb Mcf- •. rre tem garganta bem larga, que engo- le contradicçôes bem monftruofas. Se el- . le foíie fenhora, paíTaria melhor do que . fendo homem ; porque entíío lhe feria el- cufado ufar de pefcocinhos , nem gara- vatas. Theod, Vede , Senhora , que bella Filofoíia . para fe eílabelecer nas fociedades. DÍ2:er r que a virtude he a felicidade de nafcer com tal temperamento, que as próprias o paixões concordem com o bem públi* CO ; de forma , que. a Virtude fó he feli- • cidade, mas nao merecimento ; e o Vi^ , cio fó he defgraça, porém nao crime. E , como. poderão os Magiftrados premiar, ou I Tarde úezenovdi*'' 307 tu louvar a virtude, fe ella he fem me- recimento ? ou caftigar o malvado ^ íè el- le o he fem crime ? Que belios frutos, minha Senhora, fe efperão na fociedade com eíla doutfina ! Voron. Efta doutrina fera má ; mas fe ler-» mos as Hiftorias , acharemos que ( i ) os deleites dos fentidos nos podem inj-* pirar toda a cafla de ftntimentos , e de virtudes-^ dé forma, qu^e efta fatisfa- ^'áo das noílas paixões he ( 2 ) o meio mais próprio para elevar a alma ; e he à mais digna fecompenfa dos Hc^ < . roes .^ e dos homens virtuofos. Èaron- O* meu Coronel ^ eu creio que nos matos , onde os brutos fem freio algum le entregão á fatisfaçao das fuás paixões, c appetitcs , e procurâo fem medo algum o deleite dos fentidos, deve haver brutos bem virtuofos, e verdadeiramente herói- cos ; porque ( fegundo o voífo Texto) os deleites dos fentidos lhes podem inf- pirar toda a cajia de fentimentos , e de virtudes >. E além diflb tem hefta fa- tisfação das paixóes ò meio mais próprio para elevar as fuás almas \ e tem a mais digna recompenfa dos brutos vir^ X ii tu- ' ( I ) L'Efprit pag, )ó$. (2) L'Efprit paj. 361- 3o8 Recreação. Filofojica. íuofês. E*m fim tem tudo. ilTo que (le- gando a voíla doutrina ) faz os homens heroes ^ tvirtuojos. Também vós rides. Coronel! Coron, Dcos me livre, de argumentar com Senhoras. Baron, Ora dizci-me , Coronel : E vós cre- des neílas doutrinas que ahi tendes refe- rido ? Se vós as credes, então he preci- fo que reduzais os homens folidamentc . virtuofos , e verdadeiramente Jieroes á claífe de brutos, que fem o freio da ra- zão fe entregão cegamente á fatisfaçao das paixões, e deleite dos fentidos. Ifto he o que íè acaba de dizer. Ora meu Co- ronel 5 fingi huma íbciedade , cujos membros todos fígao cíTas doutrinas , que diíterença teria deflcs brutos indómitos do centro da Africa , ou America, dos Leões , Elefantes a Urços, Javalis, &c. ? Vós não podeis negar ifto. Ora dizei-me : E para que deo oCreador ao homem o ufo da Razão? No vofib fyílema não ha coufa mais inútil. Refpondei-me j que fois Fifoíofo, e eu não peço rifos obfequio- fos , quero reípofta de juizo* Eílè grande juizo , de que vós tanto vos prezais , por que motivo vos gloriais de o ter , íe não ha coufa mais inútil para a Virtude ^ o Tarde dez^mvif^^"^^^ 30^ ' Heroicidade ? A Ii meu - Cófó^tpl y ■ confef- fai que os voílbs Medres àlièm muita blasfémia contra a Bva Razão ; è fe vos prezais de Filo fofo, iíto lie ,: dc fabef a - força de liuína conlèquencia bem tirada, ou haveis de defdizer-vos dêfles Princi- pios que tanto eftimais , ou engolir monf- tros horrendos de confequenciàs , que nin- guém até agora tragou : náo ha remédio. Mas paliemos , Theodoíio , a outro po-n- to, que neíle já vejo quç o noíTo Coro- . iiel íe envergonha do que tem dito , e disfarça a força do argumento com COr» tezias obfcquiofas. §. V. Se entre os Homens que viwem emSocièda* de y pode haver hmia total Igualdade. Coron.^XT Cyiâi/Seiíhoíâ-^ deveis á Nât^- - V reza hum- tal vigor no enten- dimento , que eu nunca encontrei em Se- nhora alguma. Sevos eílivéífcis bem in- ftruida nos Princípios da noffa Filcfoíiâ ,> farieis admiráveis progreíTóis , c teríeis difcipulos fem número , porque eu nun- ca vi ajuntar tanta amabilidade no dizer, com tanta riveza no arguir, c tanta cla-« 3 ia Recreação Tllofojtca. reza, no penfar; e muitas vezes fallando com os Cavalheiros meus camaradas , me JamentQ de mie tendo tantas prendas da , ISíatureza , eítejais tão preoccupada com ^ certas velhices do tempo antigo , que ho -i mui difficil o deílerrailas do voíTo enten- dimento,-aliás capaz de voar ao conhe- cimento de verdades íublimes. Bar OH* Agradeço , meu Coronel , o elogio , ' ./ç a compaixão ; porém, como ainda Ibu ..rapariga , ainda cílou na idade de det -. aprender o velho , e aprender o novo , . :çom tanto, que tudo feja ■ na linguagern fia Boa Razão* Mas eu repnro que vós 0té agora com os voíTos Mcítres fó fal- lais çm FaixSes yfentimentos da Natu^ reza , heroifmo de amor , inclina ça o aos ^xdeleites y &ç. Nunca vos ouvi elogiar a, bellezà da Luz da Razão , de forma , quo fe vós houveíTeis de eníinarFilofofia aos -T,brutos, quevivem no? matos, p^^ra fazer., ^í^rnt os heróicos y e hem virtuofos ^ não --miidaricis nem huma fó palavra na voíía -rfrafç; e fcnao, vamos aos voíTos textos, Qorm» SejaUora , iílb nos levaria muito além ; ido voíTo intento , que he inílruir-vos com -nTheodofio. Vamos adiante. Qual he , ami- go , o outro ponto que vós tendes intento -.áe tratar oefta Jnftrucdo da Baroneza ? Tibeod. Tarãe ãezèíiove,'^' 3 Tl: 7heõd. Eu com goílo vos deixo lá difpu- t ar com a Baroneza, porque vejo que fe moftra bem fciente do que remo§ dipo. Agora quero tratar hum ponto , que lie r muito da voíla cítimaçno j e vem a íer : ' Se na focivdade ' de homens pôde haver ; huma total Igualdade j ou fe deve haver juperior, ■ Cçron, Nada nada de fupcrioiidade , meus amigos : os homens todos • nafcêrâo • iguaes ; e o mefuio Deos, que creou huns ,'^ ~ creou também os outros , e do mefmo barro nos formou igualmente a todos. Qiie fuperioridade dco o Creador ás Ar- vores , ou aos Brutos , ou aos Iníeétos , aos Peixes , aos Arbuílos , e ás Flores ? Cada huma deitas creaturas he fobera" na no fcu género , e exiíte fem ter dç- . pendência de outras creaturas , nem tam- bém fuperioridade, ou domínio fobre el- - las. Como Deos de todas ellas he Pai , conferva as fuás filhas n'uma toial igual- dade \ porquanto deíigualdades entre os filhos do mefmo Pai lèmpre forao ódio- • fas , por ferem nocivas aos filhos, e in- decorofas aos Pais. Para que he emendar- mos nós os homens as ol3ras de Deos ! • E no que faz o Creador com fumma igual- • • dade (que he perfeição grande ) pôrm.os t - íj nós ji X Recreação Filofofica nós odiofas defigualdades ? Acafo tòm ò homeal mais juizo do que quem lho deo ? Ou poderá dcfcubrir erros nas obras da Sabedoria infinita ? Nada , nada , meus amigos, de fuperioridade entre os homens y tudo, tudo hc igual,- porque o Creador • he Pai de todos , e de tudo. O contrario , Baroneza , he efcandalo da Razão , in-. juria da Natureza , e até offenfa da Di-. vindade. Baron, Santa Barbora , que trovoada \ Nunca ouvi roncos de trovões lao hor- rorofos. O' meu Theodofio , nós deve- mos converter-nos j porque naohe razão que daqui em diante obremos com t^fcan- 4alo da Razão ^ com injuria da Natu- rezi , c com offenfa do Creador , como nos, fenrcn:eou o noíTo Coronel. Mas eu , meu Coronel , para me converter de todo , fó tenho huma diiHcuIdade ; e he , que ha féis mezcs que me lifongeais com as vof- fas viíitas, c vps yejo lempre em çoehe com bons cavallos ^ e com lacaios riiui -.aíTeados, Ora como Deos he Fai de to- • dos , e de tudo , não fei como vós nao anviais ás fcmanas com os voíTos caval- los, e, lacaios ; porque vós devieis ( pa- . ra não oífendcr eíía lei fagrada da Igml- V ^ade) ora aadar na ta^oa, e qa almofa-s da. . V^arãe ãezenove. 313 da , c os lacaios dentro como filhos dç Dcos '-, e também ora puchando pelos pobres cavallos , que são voíTos irmãos por filhos domefmoPai, ora como cot- tumais, puchando elles por vos. O' meu Coronel j olhai que eíla defigualdadc he emendar a obra de Deos , que fez tudo com fum ma perfeição, e igualdade gran- de. Nada, nada, meu Coronel , não com- mertais crime tão horrendo contra o Su- premo Senhor , emendando com çfcan- .ijdaljo da Razão, da Natureza, c até da '.Divindade as obras da Sabedoria infinita. Coron, .Baila , Senhor^ , baila. Vós dais mui de rijo^ '■ ; Baron, M30S de Senhora nunca oífendom Cavalheiros galantes. Vós podeis-vos li- fongear de que tendes em mim huma dif^ cipula que tem boa memoria ; porque eu fomente repeti as voíTas razoes com fi- delidade , lem accrefcentar nem huma pa- lavra. Fallai vós , Theòdofío , e perdoai a minha viveza , que em matéria tão gra- ve devia prudentemente elperar- ^as .vofla$ razões. •.H ,,? <^^;f\ :>(. ?r;íjn^ Theod, O cumprimento novo , meu Coro- nel , que vos fez a JBaroneza de pôr lOs -cavallos do voíTo coche no gráo de vof- íbs rrmloB" por terem omefmoParxrfcrem jr4; Recreação Fikfojica. siÍ4beisi" que náo he tao efcandaloíb , co- 2c.tno parece á primeira vifta ; porque nos st^^voííos livros tendes quem deílie o homem ♦i^Aié i^ plíintas pòe a mefma natureza, i-fó com a diíFerença de mais,, ou menos -perfeição; e já tereis lido hum livro, que diz que o homem he huma Planta (i), -i E outro Doutor não adia confins que íe- - parem a natureza do homem da-dos bru- tos (2). Com que, podeis pcrdoar-Ihe a -rviveza. Agora no que roca á deffgualda- f-'de entre vós , e os voífos lacaios-, não fei que poíTais refponder, porque eíTa-he i. -claramente contra -o voflbvíyftema. Cormu He porque eu lhes pago a -elles, o nidies não me pagão a mim; porque xAoi^ ■i'tem com que, / . :^-; ■ Hm.\. ) lPi'eo(L Peior , meu Coronel ; porqiíe -fendo ij-VQs ç elles filhos de Deos, os bens e ri- -íiquezas fe devião repartir igualmente ; c -Hvós em confciencía lhes- d^Vtçis-- metade ií^das voíTas rendas. /.ii.íí;;'^' .'. Coron, Herdei-a"s de meus Avds. Th^úd, Perdoai , amigo , que q(icro que me inílruais bem neíla nova Filofofia* Sendo -ovoíTos Avós , irmãos dos Avós dos voílbs. 2olaisaíio$^ já':'ílfr i^uezas que lhes porten- -lov sh o-iTi ^rr c;nc'3 o'i.^. ^ oh rolu <;i- "fij Interprete de la Nature pag. jj. . ; Tarde dezeno^ejr^ ^1 31 5: - - cião a elles andao furtadas ha annos^ e • , clies não podem ceder do direito natu* ral da Igualdade; evos, que polTuis ef- fas riquezas herdadas em má fé, porque fabeis que tanto crão voíTas , como dos lacaios 3 fois criminofo , e deveis reíU- tuillas , íervindo-os a elles tanto 'tempo^* : como elles vos tem fervido avós. Nada,. ; nada, m.eu amigo, tudo ha-defer igual; , porque, como dizeis, Deos a todos fez jguaes ; -C não hç licito emendar o que Deos fez, Baronn Theodofio , fallal de manfo^ ; pòr- . que fe os lacaios do Coronel vos ouvi- rem, quando o Coronel fe fotmetrer na , carruagem ,. terão çomclle huma bem'' - fçia difp-uta , pedindo-lhc conta das ri-» quezâs que clle, e feus Pais e Avós lliçs tem furtado ha annos aos íèust "» ''>ít Coron. Coutados dellcs íc tiveflem o mini- • mo penf^mento contra mim, porque tél - nho á minha ordem todos os foldados do meu Regimento, e fabcria vingar a foa ' iníblencia, - . • •• >•; • ■ -T ]Sarm. 0\ meu Coronel -^ -vede que v;os • contradizeis. E que tendes vós , para quç , o voíTo Regimento vos dGfpibaíTe, fe v!Ós .fois -hum 'Ibl dado igual :a eíTcs que co- • jnçm c ibçbemi m .Taverna.. Nada ? nad^ '" ■: dQ 3i6 Recreação Filofofica. c de defiguáldnde, nem íuperiorid:rde , to- dos os homens são igiiaes ; e aíTun tan- to vos devem obedecer os voílos íblda- dos a vós ;, como vós aos voíTos Tolda- dos : tudo he igual , porque aíTim o fez o Creador. Çoron. Eu os farei obedecer por força. Baroji. Deixai-me rir. E quem vos deo a força a vós , fe vós em tudo fois igual a elks? Creio que não fallais da força dos braços, porque fois bem delicado, e os voílbs foldados sao membrudos , e forço- -fos. Creio que fallais da força civil, de- vida ao volto cargo. Porém todos eíTes cargos são abufos da tyrannia. Cêron. Torno a dizer , meu Theodoíio , que não quero argumentar com a Baro- neza ; não lhe eícapa palavra ! Paliemos nós cá , fomos homens , temos armas iguaes. Baron, As armas de homens devem fcr as Razoes ; eílimarei que em vós haja ar* mas iguaes ás de Theodoíio. Duvido. Theod. Eu quero fazer-me cargo das ra- zoes que vós diiTçítes , para lhes fatisfa-» zcr. Já provei que o homem pela fua na- tureza nafceo para viver em fociedade^ ' o que geralmente fe não prova dos bru^ tos j porque no homem ha huma. depen- dea- Tarde ãezenoue, 317 dencia máxima dos outros homens , e de- pendência para tudo j e iílo não ha nos animaes , aos quaes a natureza veftc , da domicilio j dá íciencia de edificar os feus ninhos , e caías , e procurar com fumma arte o feu Ihítento, fcm que venhão ou- tros ajudallos y ou enfinailos. O ufo da palavra que ha no homem , e nno nos outros animaes, também perfuade que a fockdade lhes he própria. E mais que tu- do , o Juízo , e Arte de dif correr para in- ventar couías novas , he próprio do ho- mem 5 e íò do homem ; porquanto de ne- nhum animal nos confta que tenha inventa- do coufa alguma , que os primeiros da fua cfpccie não tivcfiem já feito. O que prova manifeftamcnte que não he a indolc , c na- tureza do homem feita como a dos ani- maes 5 que fem mais \qi , nem regra , io pelo Ímpeto cego das luas paixões são levados aos fins que a natureza lhes pref- ere veo. Meu amigo Coronel , Deos não he tonto , nem faz as coufas fem fim , e fcm 3'azão. Sendo o hom.em , coíno já diíTc , twão differente de todos os animaes, Deos o bavia de fazer para lim mui diveríò do que poz aos brutos ; e aíTun não o for- mou com o fim de faciar as paixões , e fa- 3 to Recreação Ftlofoficá* fatisfazer aos appetires , como fe foíTe briitOi Barojik Dizei , Coronel : Para que lhe deo o Creador a Luz da Razão , fenao pa^ ra conhecer o Bem^ c o MaH E para que lhe deo a V07itadc livre , íenao para efcolher livremente o que quizeíTe ? Ora fendo o fim do homem a íociedade , ou os ha-de de deixar ir cada qual para a fua parte para onde lhes der no appeti- - te 5 e entíío onde vai o Bem da Socieda- de ? ou os ha-de conter com certas leis , qúaes são as da Razão ; e como íupe- rior as ha-de mandar executar ; e ahi te- mos a defigualãade, ThcocL Amigo , nós náo devemos como tontos andar detrás para dianre , e de diante para trás. Já concordámos que o Homem jiafceo para ziver emfociedade ; niílo aílcntâmos , níío tornemos a duvi- dar diíTb. Ora vivendo em fociedade , co- mo pode elle paííar fem algum fuperior, que cojltchha os mais nos deveres , e ac- ções úteis á fociedade ? Se cada qual fò cuidar no que convém ao feu appetite, quem ha-de cuidar no bem de todos , ií^ to he . na defenfa de feus inimigos , ou • çadefcník dos ânimos ferozes, como Lo- bos, Ur fos , Leões , &c* ? Como fe ha- de ' de ciildar no fuítento dos pequenos , nos remédios dps- doentes 5 no eaíHgo, dos malvados 5- na provisão dos viveres de longe , quando o Paiz próprio carecer dos frutos necéíTarios r* &c. Para nada dif- to baila hum homem fó , hepreciíòquc muitos fe unuo j e quem os ha-dc obri- gar, a unir-fe para a execução j fenao al- gum que tenha tal , ou qual authoridadc para iílb. A perfeita igualdade da huma certa independência dos iguaes , e eíla independência faz huma divisão , c mi- feria fumma ^ porquanto tendo cada qual f() o que tem no fcu bí aço , não tem na- da para o bem dos que lhe pertencem, por viv^r cm focicdade , com.o são filhos j mulher , pais já velhos , ^cc. Até nas abelhas , que são as que vivem em focie- ; dade, ha iiuma fnpericra, e deíigualda- de : domo poderá fem ella haver Ibcic- , dade nas outras ? Baron, Fingi , meu Coronel , quantos fyf* temas quizerdcs , nunca podereis unir jd^- ckdade com igualdade total ; porque a • neceíiidade do commum obriga á des- igualdade , e alguma tal e qual fupc- rioridade* Xheod, E aqui tendes , amigo ^ a razão por i que Deos poz igualdade nas arvores , e flo- i^gap Recreação Filofoficd. 80 flores 5 &:c. porque náo as fez pafá vi-» ^' verem em fociedade. Cada arvore , ou flor tem em íl tudo quanto precifa j e ò homem não. Coron, Já peicebo a grande diíFercnça. Baron» Com que , meu Coronel , em que - ficamos ? Vós fois igual aos voflbs lol- dados e lacaios , ou entre vós ha des- igualdade : efcolhel , fim , ou não , que eu quero ir cá alTencando as propoíijôes em que todos concordamos. Coron, A difFerença que ha entre liilm , e os meus foldados , ou os meus lacaios^ não he da Natureza » porque ncíTa todos fomos iguaes, he do meu Peito Militar , porque fou Coronel , e também do meu dinheiro, porque pago aos meus lacaios o íèrvijo que me fazem. O meu dinhei- ro, e o meu Poflo Militar são toda a minha differença a refpeiro delles* Baron, Ora deixai-me rir bem á vontade, meu Coronel , porque vos vejo convef* tido, e concorde com o que fempre dif- femos. Ninguém até aqui diíTe, que os homens deixaflbm de fer iguaes na Na-- iureza. Todos confefsão que a defiguaU daãe que ha entre tiles ou he dos bení da fortuna , ou dos feus pojlos , e digní^ dades. Com que, eífes voíTos Filoíofos não fc Târâe ãezen&vè. 31 í hão vem cá dizer nada que nno foubeíTc até aqui a minha lavandeira. Vedes , meu Theodoíio , a famofa . queda que deo o noíTo ícaro , que ha pouco fe remontava fobre as nuvens com o íeu fogo Filofo- fíco , e Enthuíiafmo poético ; e agora concorda comnoíco. Coron, Não concordo, Senhora , não me façais tãoinconftante^ que ora diga, ora dcfdiga. Digo , que aílim como todos os homens são iguaes na Natureza , aífim o devem íer em tudo o mais ; e não ad- mitto fuperioridade de hum homem a ou- tro homem* Eis-aqui o que diíTe ^ e o que digo , e o que dizem homens de grande juízo* Baron. Pois então , meu Coronel , já da* qui me convido , c a Theodoíio para á manhã , que ha-de haver moílra do voflb Regimento, a que quero aíTiílir; porque convidarei as minhas amigas para huma ícena bem nova , e bem galante. Eu te- rei prevenido hum tambor, para que quan- do o Regimento eítiver na forma , fe che- gue a vós , e vos diga : Amigo , chegou o tempo de conhecermos que todos fomos iguaes : vós o fentis ; e ajjlm jd foftes meu fuperior até aqui , agora JJgo^me eu , e quero commandar o Regimento : abai-^^ Tom. X Y X4 322 Recreação Filofofíca. xo do cauallo^ que quero montar nelle. Camaradas , ajudai-me , que vo r chega- ra o ToJJo turno : jd hajla de violência , e de ufurpação do nojfo direito de igual- dade. Vamos, Vós rides ! O cafo íèria bem triíle. Ora paílemcs , Theodolio, a outro ponto ^ que baila de rir. §. VI. Que para o Bem da Sociedade he necejfa^ ria alguma Superioridade, Theod. /^ VoíTo rifo , Baroneza , nao dei- V^ xa de fer Jnun argumento bem forte contra a Filoíofia da Igualdade. Ora eu accrcícenro , iivcu Coronel , que para o Bem da Sociedade hc indirpenfavel al- guma Superioridade ; porque lè nao a hou- ver 5 cada qual íó cuidará em íi , c fó poderá vorer-íc de fi ; e que he o que pô- de fazer hum liomcm fó ? Digo , hum homem fó\ porque nao havendo Superio- ridade , qiic mais razão ha para que fa- cão os outros o que eu quero , e nao faça eu o que querem os outros ? Sem Supe- rioridade, cada qual penfa como quer, e frz como penfa. Os rogos, e razoes ora ' são attendidos , ora deíprezados j porque a Tarde des:::eíiòve. 323 ti linguagem da razão poucos a enten- dem ; e ainda são menos os que íc dáo por entendidos. O alvedrio humano he miui diípotico nas fuás acções j fenuo ha fnbordinação legitima , zomba quando quer das mclhcres razoes. Coron, E quem nos lia-de pôr eíTa fubor- W^ dinacáo , fe Deos a não poz ? Refpon- W^ dei a iíto , Senhora , já que tanto me Hp: arguis. WÊ-Bíirôn. E quem poz aos voUos foldados a ~ fubordinaCjão que ellcs vos tem ? Coron. A convenção dos hooTcns; Baron. Bem , bem : logo os homens po- dem pôr aos voíTos foldados a fubordi- nação que Deos lhes nao poz. Refpon- dei , meu Coronel , já que tanto me dcf» afiais. Iíto são armas de mulher , não pafsão de agulhas. Theod, As agulhas também ferem. Mas In- do ao ponto , bem vedes , amigo , que no Militar he impoíTivel não haver fu- perioridade, c fubordi nação a hum Chefe. Coron. Os meus Filoíòfos dirão que não haja Militares ^ e que íè deixem viver os homens como quizcrem , e onde quize- I rcm ; e que o direito da Guerra he hum I direito bárbaro contra a humanidade \ e contra a Uberdade. Eíte he outro Dogma Y ii do '314 Recreação Filofofica, do noíTo Catecifmo , Igualdade , e Li- berdade. ^heod. Ora vamos a ver fe ilTo concorda com- o bem da Sociedade ; porque já re- mos 'hum Principio certo eftabeiecido , que Dcos creou o hcmem para viver em fociedade : ora iilo fuppoíto , ouvi-me. Dcos quando creou o homem para vi- ver em iociedade , e necelRtado a iílb , lhe deo a. Luz da Razão para buícar os meios conducentes para confervar a So- ciedade i aífim como a-eando-o para vi- ver na terra , lhe deo o appetite da fo- me 5 e da fede , que o obrigaffem a apro- veitar-fe dos frutos da terra , e confervar a vida. Até aqui , meu amigo ^ não ha queítão. Ora vamos agora a ver fe a So- ciedade fe pode confervar fcm alguma fubcrdinação , e Superioridade. Já no Mi- litar vós o confeílaítes ; mas negais qiie deva haver corpo militar. Ora dizei-me: O Bem da Sociedade não depende da con- fervaçao das vidas dos feus membros ? Coron, Sem dúvida. Theod, E não depende da coníèrvaçao dos bens de cada hum , das fuás herdades , e lavouras , &c. Coron, Não ha queftao* Theod. Ora como pode liuma coUecjão dq hq- Tarâe dezenove, 325* homens , que vivem juntes , impedir que venhão os vizinhos rouballos , matallos , , e fazer-lhes quantos males lè lhes repre- fentar agradável , ou commodo aos léus intereftes ? Segundo a voíla Filofofía , íè algum vizinho vir o voíTo pomar bem cultivado 5 e carregado de frutos , vendo que iíTo lhe faz conta , e commodo , c goílo ^ pode 5 e deve bufcar o feu pró- prio intereíTe , e vir huma noite apanhar os voíTos frutos. líto he doutrina voílk. E tambcm , fe lhe parecer , tomar a voíTa cafa , que lhe he commoda , e bem pre- parada, e por força lancar-vos fora del- ia , fera licito, porque em fim bufca 7 próprio Intereffe, Nifto nao ha nada que reprehender , fegundo as voíTas máximas. . Ifto pofto, como haveis vós de impedir eftes damrjos , íènao com a força ? Ora a força de hum homem não he nada, he precifo que os mais o ajudem ; e co- ino cada qual cuida em fí , precifp he que fe ajuftem a defendcr-fe todos dos inimigos ; e ahi tendes hum corpo de defenibres dos próprios terrenos , e ifta he o que chamamos Militares : pode if- to difpenfar-fe ? Fallai como homem de honra , que não brinca em coufas ferias» Coron* Vejo que iíTo he preçifo. TbeoiL ^20 Recreação Filofojíca. ^heoã, ^Pi!pnxú agora o que tendes dito. O bem da Sociedade piecifa de Jium corpo de força para fe defender dos inimigos ; pile corpo de força depende de hum Che- fe: logo o bem da Sociedade depende de hum chefe , ou peflba , que governe os outros com authoridade de huma parte , e fubordinaçáó da outra. Baron. Que quereis mais do Coronel , meu Theodofio r EJle no feu ameno furrizo moftra eftar convencido. Ifheod. Vamos ao Civil. A liberdade que Deos concedeo a qualquer homem , Li- berdade que vós adorais como hum pre- fente da Divindade, faz que em duzen- tos homens haja duzentas acções livres \ c humas ferao contrarias ás outras , hu- mas úteis ao commum , outras nocivas. O bem da Sociedade depende de que ha- ja miodo de impedir as acções nocivas; porque citas sao as que deítrocm a So- ciedade. Logo he precifo que haja quem caíligue os criminofos , e com o caftigo embarace que nos fajão mal. Que dizeis a iílo? ;-t''- Coron, Que hel-dc dizer ? Se a Baroneza me cila atraveíTando com os feus olhos, como quem diz : Vede lá o que di- zeis, Confeílb que para a paz , e tran-. qui- Tarde dezenovc, 327 quilidade dos povos he prccifo que haja medo dos caíligos de quem a perturbar com a maldade , ou de qualquer modo perjudicar a todos os curros. Ou tam- bém he precifo quem proponha prémios * a quem fizer bom fcrviço aos companhei- ros ; porquanto o premia , e o cajligo são os dous meios de que as nações ge- ralmente íc tem fervido para promover o Bem , e para evitar o mal , tanto o público 5 como o dos particulares. Theod. E quem ha-de detenninar o cafti- go , ou o premio , fenao alguém que te- nha authoridade , e Superioridade fobre os outros? Ou cila fuperioridade feja por convenção mutua , ou por premio de fer- viços grandes , ou por geração , íèndo , V. g. o pai de toda aquclla familia. Se- ja como for , havendo collecçao de ho- mens, quevivão juntos, he indifpenfavel a Superioridade n'um, e a fubordinaçao nos outros, Baron. Vós, Coronel, que certamente fois inítruido na hiítoria antiga, e moderna , não me direis onde viíles vós collecçao de homens fem eíla fuperioridade? Para que fazeis á força figura de ignorante do que vós fabeis melhor do que eu ? Vós não fabeis que defde o principio do jiS Recreação Filofqfica. inundo os Pais erao os que govcrnavao os filhos ? c como as idades erão longas , governaváo netos , e bifnetos ; e tudo obedecia ao velho, como ao cabeça de toda afamilia decincoenta, ou cem def- cendcntes. Sabeis que os que erao po- bres fe aggregavão ás famílias mais pof- fantes , como criados por feu eftipendio i fabeis que todos cafavao , e fe multipli- cavão , e por confeguinte fazivio povoa- ções mui numerofas. A terra então era franca, e cada qual quanto maior terre- no fabricava , maior terreno pofluia. Rc- partia-fe entre os filhos , e netos , e ter- ceiros 5 ou quartos deícendentes ; e co- meçou o 11 fo do meu q teu ^ e do mjfo e alheio. E nas queíloes todos recorrido 30 velho , que ás vezes já titubeava com a idade. Delegava elle cntv^o em quem tinha mais capacidade para o governo , e todos fe accommodaváo : até que crcf- cendo muito as povoações , e as preci- sões delias 5 elegerão chefes a quem fem- pre dcráo obediência. Ora fe eíta foi fem- prc a praxe de todo o mundo ; fe a Luz da Razã9 ( que vos não falta ) reconhe- ce a precisão deíla praxe , para que ef- tais regateando hum Jhn , em matéria que todo o género huniano civilizado tein Tarde ãezenove, 529 concordado, por quatro, ou cinco mil annos ? Coron. Seja embora , Senliora , fnn , fim , finti Theod, Viílo que o Senhor Coronel con- corda , ide efcre vendo no voíTo memo- rial eíla Propoíição , para fobre ella ir- mos difcorrendo , caminhando para dian- te. 'Baron. Cá efcrevo : Em toda a Sociedade de homens he indifpenfavel para o bem delia 5 que haja Superioridade , e fubor- dinacão ; por confcguinte , meu Coro- nel 5 eíTa voíTa famoía igualdade he fo- nho 5 quimera , e couía impoíTiveL Coron, Outro argumento podieis fazer con-» tra mim , a que eu nem poderia , nem cer* tamente quereria refponder. Baron, E qual he? Coron. He a fuperioridade que o voíTo en- tendimento tem fobre os outros , que ou queirão, ou nao queirao, vos ficao fujci- tos, e íubordinados. Baron, Meu Coronel , guardai para outras occafiões de civihdade ^ e galanteria eC- fes cumprimentos de aluguel , que ahi fe achão promptos a cada canto , para quandp sao precifos. Continuemos , Theo^ doíio, §. VII, jjo Recreação Filojofica. §. VII. Da Stiperioridãde natural que he a dos Pais a ref peito dos filhos , e do amor mutuo que ft lhes devem, Theod. T T Avendo pois neceílidade de al- xTIL guma luperioridade em [oda a humana fociedade , vamos a ver a pri- meira 5 e mais antiga origem deita fupe- rioridade. Já vós , Baroneza , o diíTeítes que era a que dava a Natureza pela ge- ração aos pais que nos derao a vida» Mas fe o noílb amigo quizer dizer o que di- zem os feus livros , vós , Baroneza , ou- vireis coulas bem eílranhas. Coron, Como me defaíiais , e puchais pela lingua , direi o que tenho lido em bons livros ; que nunca os eícolho máos. Baron, líTo le podia efperar do voíTo bom difcernimento. Ora dizei , meu Cononel , c pela doutrina deíTes fcnhores veremos fe os feus livros são bons , ou fe são máos \ que a eílas cenfuras fe expóe to- do o homem que imprime. Dizei , meu Coronel. Ccron, Hum dos maiores homens , que tem efçrito neftcs tempos , diz : Que o filho, de-- Tarde ãezenove. 331 deve reputar feu pai como hum refpei* tavel inimigo ( i )• Diz que hc inimn go , porque cm tudo o eíla corrigindo , opprimindOj c violentando , femlhecon- íentir que fatisfaça as íuas paixões nati- vas ; mas como por outra parte qWq he quem lhe deo a vida , lhe deve refpeito. É o peior he que o meu Cadete ícgue bem cila doutrina. Baron, Eu vos tenho lamentado muitas ve- zes ; porque fallando particularmente com elle 5 o acho fumaiiamente duro de cabe- ça, e de coração indómito. Elle protcf- ta que não tem maior inimigo do que vós j porque em pequeno lhe déíles toda a liberdade que elle queria , e agora o opprimis. Âs minhas paixões ( diz elle ) rebentarão com os annos , crefcêrão com a liberdade , tomarão forca com o tem- po ^ e depois quer meu pai reprimir-me y quando já he tarde ! não o pojfo foffrer : refpeitd-o civilmente ; mas não pojjo a- mallo , pois o tenho por meu inimigo. Muito vos tenho lamentado pelos def- goftos que vos dá. Coron, E mais , vós não fabeis tudo. Baron, Se lhe fallo do amor que vos deve por - ( i) Les Moeurs pag. 459, 332 Recreação Filofofica. por ferdes feu pai , refpondc que nós de- vemos amar a todo o homem ; c que co- mo vós ibis homem, fendo feu pai, en- trais neíTa regra ( i ) , e he o que baila. Vede o triíle fruto da voíla Filoíòfia. Theod, O pcior he que nao o podeis rc- prehender , nem criticar ; porque vós ap- provais os livros por onde elie aprendeo eíla infeliz doutrina. Coron. Não quizcra que a puzeíTc tanto em praxe : e não ouve eífe doudo os gritos da Natureza , que nos manda amar a quem nos deo o fer ! Baron. Logo confeíTais , meu Coronel , que a Natureza impelle a todos , e que a Razão a todos perfuade , que amemos os noífos pais. Coron. Seja como for , fei que o amor a noíTos pais he huma coufa tão natural , que quando alguém ofFende a feu pai , a Razão fe horroriza , e a Natureza clama contra o filho defattento. Theod. Eu tenho hum certo modo de ob- fervar os movimentos da Natureza \ que lic obfervar o que fazem as crianças ge- ralmente antes que lhes venha o ufo da Razão , e o que fazem geralmente todos os > m« I «, III .1 I ■ II I ■ I ■ I «^i— — ,— ^wi»^ I 1 1 n ( I ) Les Moeuts pag. 459, Tarde dezenove, 333 os nnlniaes que a não tem. O qne nós virmos geralmente em todos os animaes , e até cm nós na nolTa infanda , he cerra- inente voz da ^Natureza ; porque nenhu- ma outra voz ahi pode fazer-ie ouvir. O mefmo modo tenho para provar o que diz a Luz da Boa Razão, Aquillo que todos pensão , quando os não previno. a paixão 5 hc íèm dúvida voz da Razão. Ora deíle género hc o amor dos filhos aos pais. ^ A Baron. Como também o amor do pai pa- ra com feus filhos. He paíinar ver huma deitas Aldeans com o feu filho no colio , que leja elle como for , fe eítá toda re- vendo nelle , como encantada j tudo lhe acha bom , tudo lindo , tudo engraçado , não tem feição nenhuma cm que lhe não ache huma graça efpecial. Já na infaiicia lhe acha juizo , galanteria , cfperteza. Ora o chega ao peito , e abraça com ca- rinho , ora o retira hum pouco para o ver á vontade ; ora o torna a chegar para lhe dar mil ofculos. Humas vezes o le- vanta nos braços 5 outras o aílenta no coUo , e lhe faz tomar mil diíFerentes poíluras , repetindo a cada huma delias a doce palavra , meu rico filho ; parecen- do-lhe que todos lhe acharão a mefma ga- 334 Recreação Filofofica, galanteria que ella lhe cfti achando ; o , que certamente não he aífim ; porquanio .as vizinhas vem a meíir^a criança , e a olhão com indifFerença. Sinal de que tO; C dos aquellcs affeflos da mai nao sao mo- - vidos pela Razão , mas fim infpirados pela Natureza ao coração materno. Coron, Se vós , Senliora , nao folieis mai , não poderíeis pintar tão bem o carinho materno. Baroju Em nós , que temos educação poli- da, e mais inrtrucçao, podiáo eílcs cari- f.í nhofos aíFedlos nalcer á^ Razão ) porém nas Aldeans obra a pura e fim pies Na- ttíreza. Como também nos brutos : ver o cuidado com que huma gallinha traiA dos pintos que acaba de Fazer nafcer, em quanto elles nao tem força para fe governarem : como os chama , como os agazalha , como os cobre com as fuás azas. Se vê alguma ccufa que lhes pof^ fa fcrvir de alimento , efquecida de ^\ , lho vai metter no bico , aqui rapa com os pés a ver fc deícobre alguma coufa que lhes dê \ alli corre ligeira , íe ao lon-^ ge percebe coufa útil : íè vê que fe afFaf- tão, chama por elles , inquieta-fe, volve para mil partes , até os ver junto a fi^ rr recrcando-fe fe os vê efpertos , fatisfei* tos» Tarde ckzenove, 33^ tos 5 vigorofos. Nao ha figura mais vi- va , meus ninigcs , do que a Natureza infpira ás mais a rcfpeito de íeus filhos. Em quanto o pcíToal crime delles não faz eíquecer o carinho materno , aiíim es tratão. Thcod, Difcorreis bem , Senhora, ccíla ra- zão convence; porque eíteimpulíb , que geralmente Tentem os pais para com os léus filhos , nao he fomente obra da Ra- zão (como logo direi) n^as hc impulfo da mefma Natureza , o qual antes de ou- vir osiConfelhos da Razão, os move ao amor e carinho. Em todos o? climas, em todos os povos , em todas as Re- giões ha eíle amor, final de que oCrea- dor gravou eíla lei no centro dos cora- ções maternos , o que hc tão natural , qu-' ate nos brutos eítranhamos o côn- tnirio , íè acontece que alguma vez o ve- jamos. Até o amor próprio, paixão ina- ta em todos , nos imjelle a amar os pró- prios filhos , por ferem em certo modo • parte de nós miefmos. Baron. Niiío não vos canceis mais , Tlieo- dofio. Theod, Canqarei , porque quero provar que a noíTa Luz da Razão nos poe cíle preceito ., gravado na noíTa alma pela Mão 336 Recreação Tilofofica. Mao do Creador \ preceito que nenhum lyfteina de Fiiofofia poderá jamais illu- - dir. Baron, Ora dizei , que iíTo eílimo eu. Theod. Se eu provar que Dcos com empe- nho ( a nofib modo de fallar ) quer que - os animaes tenhao amor a Icus íillios , parece-me que tenho provado que tam- bém quer que nos homens haja eíle amor i porquanto os homens são obra das fuás mãos mais mimofa do que os animaes : ♦^ que me dizeis , Coronel ? Coron. Concordo. Theod, Ora deixai-me fer Filofofo á mi- nha vontade, e difcorrer íòiidam.ente em coufas bem pequenas. Que juizo, que difcurfo , que fagacidadc não hc preciía aos paíFarinhos para prepararem o berço aos feus futuros filhos ? Que voltas não dão , quando andão na lida de lhes for- marem os ninhos 5 em que hão de pôr os ovos 5 crear os filhos , e morar cem el- les' juntamente, e defendellos da chuva, c de todos os mais incommodos dcs tem- pos ? Deveis, amigos , reparar em tudo, e em tudo refleftir. As andorinhas an- dãO' no feu voo quafi arraílando fe pela terra ; mas he para que no vco por íima .'da agua molhem o peito, c que depois Í.M -VL ro- Tarde dezenove* 537 roçando pela terra façad o lodo de que fc ha-de formar a nova cafaj e nos pés e no bico levão as palhas , ou hervas que mais lhes fervem. Lá vão buícar as beiras dos telhados, ou o lugar commo- do para os crear fem o inconveniente da chuva. O Creador lhes dá cfte continuo cuidado na fadiga, que nada tem de agra- dável aos fentidos ( reparai no que digo ) nada tem de agradável aos fentidos da avejlnha , que padece niílo mil incommo- dos. Ora quem lhes ha-de dar a Planta para o novo edifício 5 para que nem fal- te , nem fobeje do com modo para a mãi , e para os filhos ; os filhos que ainda hap-» de vir ? Ella nunca vio fazer ninhos dt fua efpecie j e a obra ha-de íèr inteira- mente conforme ao coílume. Ora o ni- nho 5 em que ella nafceo , não o vio fa- v- zer, depois partio para a Africa, onde não crião as andorinhas ; e logo no ve- rão íeguinte quando aqui chegou , entrou nefta lida. Torno a dizer, quem lhe ha- de fazer a Planta? Quem lhe ha. de dar officiaes , e cnfinar a conftrucçao ? Nin** gucm. Mas lá tem no Creador o Arqui- tefto que lhe dê o rifco, o Meílre que lhe cnfína a tirar do feu peito , e debai- xo das próprias azas as plumas maffias ^ Sm. X. Z £a^ 33S Recreação Tilofofica, . pnrn forrar por dentro a cafa , onde feu^ filhos hao-de nafcer ; já tem oMellrequc . lhe enfine a incubar os ovos depci? de os pôr , e fazer com o calor contínuo ou do feu corpinho , ou do íeu confor- te , que os filhos fe vão formando den- tro da cafca, are iahirem : lá tem hum Mcftre que lhe enfine ccmoha-de ir buf- car alimento próprio para os filhos neí^ fa lenra infância, &c. e iíTo exaétamen- te , como he coítume na fua efpecie. E iílo quer feja em Portugal , quer em Fran- ' ça, quer na Polónia , ou qualquer outra parte. Ifto ha-de fer aílim infallivelmen- te. Ora dizei-mc , Coronel , quem he ef- te Arquitecto , e Meílre tãocuidadofa, c tão hábil , que fabe o que fe faz em toda a Europa , e o que fe fez em todos os feculos precedentes ? Quero que me digais quem he eílcMcflrc. He o Jícafo ? ou he caufa Jntelligente ? rcfpondei. Corou* Dizer que hcoAcaJb ^ he hum dií^ parate máximo ; porque no Acafo nunca houve 5 nem pode haver uniformidade ; e uniformidade em todos os feculos , e ro- dos os lugares he impoíTivel que feja do Âcafo, *Xheod. Logo he cauíà IntelJigentc , e de ^ -iabedoria, e de paciência iafinita. Ba* Tarde dezenove* 339 Baron. E accrefccntai o que já me tendes dito , Caufa prefente a iodos os tempos ^ e a todos os lugares ^ para faber o que • íè fez fempre , e em toda a parte* Coron, Caufa Intelligcnte , que eíleja pre- fente a todos os tempos , e a todos os lugares , quem pode fer fenão o Creador ? Theod, Pois fe o Creador eftá enfinando a . eíía andorinha , que por diante de nós anda voando, cníinando, digo, a tratar com tanto amor os fíUios que, ainda náo tem ; e o mefmo faz Deos a todos os c animaes , efquecer-fe-hia de dar ao ho* - mem a mefma ordem , e de lhe pôr ncíla '• Luz da Razão que lhe deo para fcu go- - verno , eíTa mefma inclinação quepozno í. chamado Injlinòle dos animaes r Será Deos menos Pai do homem que dos paA 'li: faros , e dos ratos , e dos mais vis in?» • , fedtos ? refpondei como Filofofo. Coron, Nao poílb negar que o voíTo difcur* fo convence. Theod. Logo temos que Deos como noíFo Creador poz na Razão humana eíTe pre- ceito de amarem , e cuidarem os pais de fcus filhos ; c que cíTa propensão natural que todos fcntem he preceito da Razão j por onde Deos manda que o homem fe governe. Z ii C que não fe tire ao homem a fua nativa , e eílencial Liberdade que lhe concedeo o Creador. ITheod. Defafogai , amigo , que eftais re- bentando. Dizei, dizei tudo o que neílc ponto pcnfais. Cõron, Eu nada penlb fenao o que he ho- je fenti mento de todo o género humana iiiuílrado , e dos que tem os olhos aber- tos para ter horror ás preoccupações com que nos tinhão creado velhas tontas na - infância , e Meítres ignorantes na ado- í Icfccncia. Graças a Deos que já o géne- ro humano tem refpirado , e aberto o» olhos. Baron. Ora feja-vos parabém , meu Coro- nel , eíla fatisfaqâo com que vos vejo. Até á faudç vos ha-de fazer bem. Ora COIU'* 343- RecrcâfHo Filofojíca. communicai-nos eíTa doutrina , para que ■ nós também participemos deíla felicida- de , porque também fomos do género humano. Dizei o que penfais. Coron. Sou obrigado a dizer o que enten* do , já que vós me dais eíTa liberdade. Eu, como já diíTe, não poíTo foíFrer eC ta eícravidâo , em que querem pôr os meus ' íèmelhantcs , e torno a repetir o meu ar-r gumento. Porventura poderá o homem emendar as obras de Deos , e fazer que fiquem melhor do que quando fahírao das mãos do Creador? Pois não he me-- nor attentado contra o Omnipotente que-» rer tirar ao homem a inata , e eíTcncial ' Liberdade que Deos lhe dera •, H herdade Sue he huma jóia precioíiíTima com que )eos o honrou , e fez femelhante a íí. Se o homem naíceo livre , livre ha-dc ícr até á morte ; o tirar-lhc a liberdade he huma maldade táo terrível, como fc lhe tiraíTem a vida ; porque vida fcm Ji- herdade não hevida. Quem deo aos ho-» mens authoridade para nos tirarem o que Deos nos deo ? Se nos quizeíTem ti- rar os olhos 5 ou cortar hum braço, to- - dos clamarião contra a barbaridade def- fes tyrannos : e que barbaridade não he © arraacar-aos a mais prççiofa dadiva do To. Tard(í ãezénove. 345 ToJo-poderofo , qual he a Liberdade} Em que razão cabe fazer-me Deos li- vre , e todos os outros tao livres como eu \ e quererem que hum homem , meu igual , me domine a mim , e nao quere- rem que eu o governe a elle ? Não , nao , minha Baroneza , fique rudo como Deos o fez , que não pódc ficar melhor». O contrario he huma execranda tyran- nia j que clama contra o Ceo. Barone- za 5 crede que o homem não tem fupe- rior fenão a Deos ; que tão fidalga he a íua natureza. Quem he o homem ( diz o paíinoío Voltaire ) quem he o homem , fantafma que dura hum momento , o ho* mem , cujo fer imperceptível he lá vizi" nho do Nada , para querer hombrear com o Omnipotente , e dar ( como fe fop fe também Deos ) feus preceitos aos ho-^ mens que Deos governa ? ( i ) ^ Baron. O' meu Coronel , eu eftou quaíi qua- ( I ) IVo fcu Poema fohre a Rdipão Naíaral , nê fim do Stgundo Canto » Que os preceitos e leis não tirão , antes effencialmente fuppoe a liberdade. Ide vós pôr hum preceito á pedra que caia para baixo, ou ao vento quefopre, ou ao fogo que queime, todos fe ririão dos voílbs preceitos ; porque eíTas coufas , a quem vós os púnheis não tem liber- dade : mandai ds aves que voem , aos peixes que nadem , ás lebres que corrão \ todos vos terião por mentecato, porque não tendo eílas coufas liberdade , erao incapazes de leis , e de preceitos. Logo ( reparai bem ) logo os preceitos não ti-» rão , antes fuppoem , e provao a liberda- de. Provão a liberdade, e fomente o que fazem he dirigilla. Com que, meu ami- go, os voíTos Filofofos são muito fracos Filofofosj porque trocão os nomes , c confundem as idéas das coufas, toman- do a direcção da liberdade por dejirui' cão delia, Coron» Sempre eífe dirigir a liberdade poi? meio dos preceitos , he em certo modo tirar , ou ao menos diminuir a liberdade que Dcos dera ao homem. Tkod. 5'48 Recreação Filofofica, Theêd. Outro erro (meu amigo) dos vof- Jos Filojofos , e erro palpável. Dizeis que os preceitos tirão , ou diminuem a li- berdade que Deos dera ao homem ; ora , qulnáo , meu amigo. Deos immediata- mente que creou o homem livre, logo lhe poz o preceito do pomo vedado; preceito com ameaço do caíligo de mor* te. Logo o homem nunca teve liberda- da , fenão dirigida com o preceito. Por confeguinte he erro dizer que as leis, e preceitos dos Soberanos diminuem a li- berdade que Deos dera ao homem; por- que Deos fó lhe deo eíla liberdade a- companhada , e dirigida pelos preceitos. Corou. Iflb foi lá a Adão , mas nós falía- mos de todos os homens ; e eíTes nao tiver.lo o preceito do Pomo vedado. Deos os deixou inteiramente livres. Theod, De vagar , meu amigo : outro qui- náo. A Luz da Razão , ou como outros eh a mão Lei natural (que o voíTo Vol- taire , c os mais fequazes confcfsão) ef- • ta lei natural quem a gravou no enten- dimento de todos os homens ? Suppo- nho que haveis de dizer que foi oCrea- dor. Ora efta Lei da Razão ^ ou Natu- ral , quantos preceitos involve ! Bem ve- áes que são muitos \ e todos ç&^ preceitos poz Tarde ãe^eneve. 349 poz o Creador a todo o homem que não hc fátuo. Logo o Creador nao deo liber- dade a peílba alguma a quem Elle meí- mo nao puzcííe preceitos. Vede que os preceitos, c as leis nao íe oppoem á li- berdade que Deos nos deo ; pois que Deos a ninguém jamais deo liberdade , femque lhe intimaííe preceitos. u>vi Baron» Vós diíTeítes bem , meu Theodofio , que os preceitos em vez de deflruir, pro- vavao a liberdade, porque elles fomente fe pòem para dirigir a liberdade; e oni ide a. náohouver 5 he coulh irriforia odi- ligillai e aíhm os Soberanos pondo leis aos outros hotnens , por modo nenhum lhes oífendcm a liberdade. Coron, Que Deos ponlia leis , e preceitos aos homens não impugno; porque hc .' Deos , e nao lhes deo outra liberdade, fenão eíla que eíiá ílijeira ás leis ; mas os homens nao tem a authoiidajdi2.^uc- ■ Deos tem. .r.-': |rn(T ■ T/jeod. Mm Coronel , ainda errais terceira * ' vez no" voflb difcurfo. Ora vinde cá : concordais comigo que Deos a todo. o 'homem-, por mais livre que foíTe , po^ todos os preceitos qiie :fe in volvem .na Lei naturâL Ora es Soberanos fó põem as leis qiu; eíláo efcritas', è são coofor- - . mes gyo Recreação Filofqfica, mes á Luz da Razão , e Lei natural \ logo fe todas as leis humanas íe fundão na Luz da Razão que Deos nos dco , nunca os preceitos humanos ofFufcao a liberdade que Deos nos dco ; pois que clles fó mandão com as fuás leis o que Deos tem mandado pela Lei da Razão. Baron. Grande aíFrontamento tiveíles agora , meu Coronel;, vós mudaíles de cor: vós não faílais! Foi ramo deefíupôr, ou cf- pafmo ? Coron. Não podeis , Senhora , perder eíle cfpirito de brincar , ainda na convería- ção mais féria ! Baron, Ah meu Coronel , vós padeceis con- vulsões de efpirito : cm que aperto fe não tem viílo o voíTo entendimento. Ora lalta para o ar com o efpirito Poético do volTo Voltaire , ora caiie no chão , fem faber parte deli. Muita compaixão me deveis, poílo que miílurada com rifo; que lie propriedade de rapariga dar huma rifa- da , quando nas danças altas vê algum ef- . tirado no chão depois de ter faltado co- (> mo vós com tanta arrogância. Coron, Vós em eílando ao lado do voífo .. Meílre fois intolerável , porque atacais V brincando, c com hum defdem engraça- do não dais lugar a reipoíla. Tarde ãezenove, 35*1 Baron. A refpoftas que não ha , como lhe hei-de cu dar lugar t Vamos , Thcodo- fio, a outro ponto. §. IX. Que a Soberania , e authoridade fohre 0:$ homens não pôde ejlar no Povo. Theod.^T Kmos ^ Senhora, deduzindo V confequencias juítas dos Prin- cípios eftabelecidos. Nós já remos mof- trado que os homens , não obílantc ferem livres por natureza , podem receber pre- ceitos 5 e leis dos Soberanos. Convém agora ajuítarmos com o Senhor Coronel , donde vem , ou cnde pode eftar efta Síj- berania fobre os homens. Coron. Dizei vós o que quiserdes, que eu tenho por coufa certa , e certillima que a Soberania, e Authoridade fobre os ho- mens fó pôde eftar no Povo , c hoje he coufa aílentada ( i ). O Povo , meus a- raigos , he o Soberano , que tem na fua mão toda a authoridade , e a dá a quem lhe pareCe , e quando lhe parecer , e lha pô- de tirar, c dalla a outrem. Ba- ( 1 ) Encyclopedia na palavra Àuihgridadt. ^f'i Recreação Filofofica. Baron. Ora explicai-mc bem iíTo , que hc ' míiteria muito importante ; quero ficar bem inílruida. Mas pergunto : Se o Po- vo he o Soberano , quem sâo os vaílal- Jos , ç fubditos deílè grande Soberano ? São os paíTarinhos ? Coron, Os outros homens , a quem £* nao dco a authoridade. > Baron, Mas eíTes homens, a quem vós cha- í' mais vaíTallos , são povo, e tem a inata Soberania , que vós lhes achais. Como he iíto ? ElTa gente são vaílallos , e So- ^' berano ao tnefmo tempo ? Explicai-me iílo que quero entender bem. Coron, Scnliora , eu explico. O Povo he o único Soberano que ha no mundo; mas como não podem go\'ernar todos os ho- mens que compõem o Povo , cedem os mais naqucile,. ou naquellcs que elegem ^ - c a ellcs vokintaria mente dão a authori- dade, até íobre quem lha deo ; mas de - forma que lha podem tirar , íe elle abu- far delia , e podem dalla a outrem. Baron, E neíle cafo do Povo tirar a autho- •'■ ridade a quem elle a tinha dado , por * não ufar bem delia , quem ha-de fer o Juiz delia caufa ? O Povo nao , porque he parte queixofa: o Soberano que era, também uãoy porque he a parle crimi-» . no- i Tarde de&eno*Vâ, jjg nofa. Quem ha-de logo fer o Juiz , que fentencee cfta grave caufa , e diga quem tem razão ? Confiderai > e depois refpon- dei. Coron, O Juiz ha^de fer a Força : porque não ha outro. Baron. O' meu Coronel , iíx) he fó no paiz dos Touros , ou na Região dos mariolas , j- porque ahi íb prevalece a Fcrça. Eu fal- lava na Região da gente , que tem cabe- ça , c Razão nella. Nos brutos prevale- ce a Força , nos homens a Razáo^ Mas iíTo era até aqui : agora os voíibs Filo* fofos tem o privilegio de parcntefco com os brutos , podem entrar na claíTe delles ^ para não ufarem da razão , mas fomen- te da Força. Perdoai , T heodofio , tomar cu o voílb lugar ; porém hc defeito an- tigo que já me conhecei s* fheod» Senhora > góílo da voíTa viveza ; e não queirais reprimilla , quando a Razão natural vos incita a fallar; porque a ar- ma da Razão não reconhece fexos. Va- mos nós agora , meu Coronel , a averi- guar eftc ponto» Vós dizeis que o Povo he que deo a authoridade aos Soberanos, porque os homens cederão a fua nativa authoridade n\im , ou em muitos que hou- veíFem de governar , fendo o feu gover- í>/^. X ^ ao 35'4 Recreação Filofofca. no ou de Monarquia , ou de Republica , &c. Ora dizei-me : Eíla authoridade,quc o Povo deo aoíobcrano, fe foi dada, co- mo lha pode ouiravcz tirar? Como pô- de rcaíluniir a fi , o que já muitos fecu- los antes tinha dado ? Se for porcrimiC, he precifo hum Juiz imparcial , para con- demnar o Soberano depois de provado o crime j Juiz, que , como diíle aBaronc- za , não feja parte. E fe he por autlio- ridade que o Povo confcrve para tirar o que deo , então ha muito que dizer. Coron, Eíta authoridade, que o Povo tem fará dar a foberania aquém quizer, he um Morgado 5 de que eJle não pode ce- der ; e ainda que por fcculos não ufaíTc • deílc poder que tinha , fempre tem direi- to a elle , porque he Morgado ; e pode ainda fem crime tirar, e arrancar 'o Sce- ptro da mefma mão onde o mcttêra, c dallo a quem quizer ( i ). Theod. Se iíFo he affim , meu Coronel , ve- de as bellas confequencias que dahi fc fcguem. NcíTa voíía doutrina o Povo não deo a Authoridade ao Soberano , mas fomente a dcpoíitou ^ e tendo-a elle co- mo - ; . ^ 1 ' ( I ) Encyclopedia na palavra Governp » e palavu Tarde det.eno*ve^ 55*^ mo em depoíito, a todo o tempo a pó* de ir bufcar , e dalla a outrem» Coron» Sem dúvida* Thecd. Bem eftá» Logo fe o Povo , fem maia direito que a íua primitiva authoridadç j pode tiralla do Soberano onde a tinha > e dalía a quem muito lhe parecer, pro* curando em tudo confervar o direito da Igualdade , poderá uíár da mefma jufti- ça contra os Donatários das terras , c Ca- valheiros , que deílès Soberanos receberão doaçóes de terras , e de governos , ainda em prémios de ferviços ; porquanto feo Soberano era hum tyranno , abulando da authoridadc que não era fua , mas do Povo , tudo o que elles tiverem dado aos voílbs antepaílados he nuilo ^ c abufo da tyrannia ; e vos irá o Povo tirar todos os voílbs bens hcieditarics ; porque todos elles 5 ou por hum , ou por outro modo vierao defie Soberano, que ufou mal da authoridade nelle depofitada* Coron, Náo : iíTo agora de me tirarem Of bens herdados dos meus antcpaíTados , e ha mais de cem annos , íiãopódc ferjuf* to. Theod, E como foi jufto tirar a Luiz XVI. a Coroa , herdada ha tantos feculos de -léus Avós , fem lhe provarem o menor Aa ii cri- jjó Recreação Filofoflca. crime ? E ifib íò pelo deltflo de ferSo* bernno ? Mais : os voíTcs Doutores dizem que não ha Jujliça, nem Jnjufiiça^ irais que a fenfibilidadefyjlcã , e o interejje peJJoaL (i) Logo toda a vez que o Povo lè per- fuadir que os voílbs bens hereditários cm vez de fe accumularcm n'uma familia , he mais útil fe fe reparrirem por elles , immediatamcníe faltao na voíTa cala , e vosdeixao defpojados de rodos osvoíTos bens : porque em fim o Povo he Sobe- rano, e para elle não ha jujlo , nem /»- jujio 5 mas fomente a conveniência. Co- mo eílc ponto he mui eflencial , convém levallo até o fundo j mas para ilTo que- ro primeiro que a Baroncza peça palavra de honra ao Senhor Coronel , de que ha- , de refponder ás minhas perguntas , lè- gundo o que na fua confcicncia entender. Baron. IfTo fará elle, porque lho peço. Coron. Ainda fem empenho o faria eu a Theodofío. Fallai , que vos dou minha palavra de honra , que vos refponderei como na minha coníciencia entender. Theod, Eílá bem. Vós não podeis negar que na multidão tumultuaria y ou na collec- ção (i5 i*'Efprit pag. )0. j Tarde ãezenove. 3^7 cao de todos os que vivem n'uma focie- dade , fempre os mãos são mais do qus os bons, Baron. Já percebo , Theodofio , o voíTo argumento, nao vos quero interromper: ah HKU Coronel , eíbis em grande a- perto. Coron. Pobre de mim : contra dous , e a hum tempo , como poderei defcnder-me? Sim , Senhores , na collecçao de todos os iiomens , que vivem na fociedade , fem- pre os máos sáo mais do que os bons. Theod, Também haveis de conceder, que também os ignorantes são mais do que os injlruidos. Corm. Também ifíb aífim he. Theod, Ainda quero mais : haveis de con- ceder , que a gente vil , e que ou vende as fuás acções por dinheiro, ou que vi- vem em baixa fortuna, são muito mais do que aquelles , que tem efpiritos no^ bres, ou sáo ricos, e abaítados. Coron, Tudo iíTo he innegavel, Theod, Ultimamente quero que me concc-^ dais que os máos , os ignorantes , os yís c groíTciros são regularmente os mais infolentes , e atrevidos. Coron^ ConfeíTo que aíRm he. Theod. Ora ajuntai agora todas eílas ver* dífc* 15'? Recreação Filofêfiea. dades que confcíTaftes , para ver o que delias ie feguc. Concedeftcs que no Po- vo são muito mais em número os mãos , do que os bons ; os ignorantes , do que os bem inftruidos \ os vis , c de baixa . fortuna , do que os gcneroíbs, e ricos, Os inf alentes , e atrevidos y do que 03 prudentes. Ora fendo _p Povo o Soberat po como quereis , ides mettcr o fceptro fupremô na mão dos malvados^ dos ig^ . nor antes , dos vis , e dos inf alentes , e atrevidos, Qiie bcUo Soberano para o bem da focicdade I Baron. Que diíTe eu , meu Coronel ? Que diíTe ? Coron, Senhora , deixai-me refpifar. Vejo , a minha honra empenhada ^ dai-mc tem- Tifeod. Ajuntai mais efta circunftancia mui attendivel: queneíTa revolução contra os , quegovernavao, os vis y e de baixa for- tuna são os que tem efperança de me- lhorar de forruna , e não podem perder ; . nias os outros não. Vede agora as con- fequencias certiílimas. Eftando a Ibbcra- nia na mão do Povo , e o Iceptro fu pre- mo, em qualquer refcluqão que haja de tomar-fe, ha-de prevalecer o número dos ^ indos^ dos ignorantes ^ dos vis , dos a- tre- Tarde dezemví. 3^^ trevulos , e dos que efperao ganhar, e jm» podem perder \ e nada podem fazer os poucos , que forem bons , prudentes , hem injlruidos , e ah afiados , que fó po- dem perder j^ e nunca ganhar. Que refo- luçoes efperais , meu amigo? Coníiderai , c refpondei-me , legundo a voffa honra. Baron, Terrível laço vos arraoii Theo- doíio. Coron, Senhora , he ponto que merece re- flexão madura , dai-me tempo , e refpon- derei. Mas agora fó digo que eíla dou- trina não he minha , mas fim dos maio- res homens que hoje conhecemos. Baron, E eíTes homens que agora a p pare- cerão de novo no mundo, quecondemnao tudo quanto por muitos fcculos fe tinha reputado por jufto , fanto , e útil ás fo- ciedades ; eRes grandes homens , digo, nao tem olhos para ver as funeíliíTimas conícquencias que dos feus Principios fe íèguem ? Confequencias , digo, funcftif- fimas , e infalliveis ? Ponde-vos , Coro- nel , de fangue frio , c refpondei \ não com .luthoridades de homens novos , mas com a razão natural que Deos vos deo» Já tendes idade para caminhar pelo voP- fo pé , c paíTaíles já do tempo da infân- cia , em que vos levavao com andado-^ 3 fio Recreação Filofojíca, res, como criança que temem que caia. Refpondei , fegundo o que o voíTo jui- zo vos diéla. Coron. Prometto j mas depois de confiderar no ponto. Baron. Ora vós nuo vedes , que em todo o governo , feja elle o mais jufto , e o mais prudente , fe podem ajuntar os ho- mens criminoíbs , e malvados , gente vil , pobre , perfeguida pchs juíliças , gente malévola, e hbertina , que nada tem que perder , para fazer li um bando ? Não ve- des que podem pregar eíTa foberania que clles tem , fendo parte do Povo que he o legitimo , e verdadeiro Soberano ? e alie* gar a liberdade que Deos lhes dera , a Igualdade nativa pela natureza ? Que he tyrannia a dos Soberanos , e que gran* des bens e fortunas fe elperao , fe bota- rem abaixo do throno os que nellc fe fentão , e levantarem para elle outros íèus companheiros que vivem na miferia ? fe lhes pregarem , fegundo os voíTos Dou- tores , que nada que faça conveniência he injujio ^ e que tudo o mais he quimera, .achais , digo , que efta pregação náo fa- rá grande numero de fequazcs ? e que vão tumulíuariamente tirar o fceptro da mao *oi: quem Q tinha , para o darem a quem : ma^ Tarde de&âfjovff. 361 mais lhes agradar ? Ora feito ifto , não vedes os eíieitos deíía doutrina ? Se os nao vedes, fois bem cego , porque tudo eíiá patente aos olhos ; e corro iíTo com a iriefina facilidade que fe faz hoje , fe fóde fazer daqui a hum mez, c dahi a um anno , e dahi a quinze dias , que inquietação nao faz iíto ás fociedadcs ? E quem poderá viver focegado em qualquer íyftema de governo que haja ? Relpon- dei , fegundo o voflTo juizo. Corõn. O' Senhora, porque nao pondes ef- cola de Politica ,. que tereis difcipulos fem número ? Mas fabeis vós o que dizem os meus Meftres ? Dizem que eíle efpi- rito filofofíco lic o Pacificador dos hf- tados ( I ). Theod. Bem fei : e o author delTe artigo da Encyclopedia eítabelece os Principios mais certos para as inquiet;^ções dos Ef- tados ; porque diz ( 2 ) que o governo dos Soberanos fomente he legitimo^ em quanto elle fe encaminha ao bem dos Po- lvos. Ora em fe ajuntando huns poucos de malvados , que ralhem de qualquer cou- fa do governo , ahi cílá já provado que não ( I ) V Ejprtt Phllcfophií^ue ejl le grand fuci/ica-. $iur dcí EJlati. EncyclopedJa na palavra F..n('tíJmo, (?) Jincydopedi» na palavra C»tivirnão'y e fe lhe deílroem a razão com ou- tra mais forte 5 a que elle por mais que lure 5 e forceje não pode refponder , diz cuidava que era ^ 7nas enganei-me ^ e di- go que nãohe. Tomai eíleconfelho, meu Coronel , e vamos , Theodofio ^ a outro ponto. Ccron, Náo me poflb gozar mais da voíTa converfação , porque me chega avifo que devo ir íèm falta a. caía do meu Gene-» ral : íè o negocio for breve , voltarei á noite. Baron* Com goílo vos veremos. §. X. J)onde procede originariamente o Poder [obre os homens, Baron. T? U eítimo , Theodoíío , cila au- HL fencia do Coronel por efte mo- tivo impreviílo , para fallarraos á vonta- de fobre eítes pontos tao importantes j e já convidei minha Mai para aíTiftir a noí- fa converfajão, o que ella acceitou com 1^ muito goílo; porque, fegundo o que el- jt la ouve defde o íèu Gabinete de quando tem quando , nâo tein^acicncia para atu- fc raros difparates doXoronel^ e por ou- R tra 3^4 Recreação Filofofica^ tra parte defeja inílruir-fe radicalmente n^uma matéria que importa , e em que tantos falíão fcm fundamento. Theod, í^izeílcs bem j porque as opiniões do Coronel qne convém rebater com for- ça , e com energia , cortão o fio do diC- curfo , que nós feguiriamos fe eftivefle- mos fós , ou cm boa paz. Madam, Eu me aproveito goHofa da oc- caíiao que nos dá aaufencia do Coronel \ porque eíla noite não efpero vifitas , c na prefença do Coronel não quero dif- putar , porque nem foíFro as íuas opi- niões , nem cllc na minha prcfença falla- rá francamente : e para a inftrucqao de minha filha convém que clle deícubra to- do o horror das chagas gangrenadas dá fua Filofofia. Aílim vamos , Theodofio , aproveitando o tempo ; porque fe o Ge- neral o não demorar muito , ainda torna. Barofj, Ha-de tornar mais manfo , porque levou eftocadas mui penetrantes , e bem conhecia a Razão i mas não queria con- feílajla. Vamos adiante , Theodofio. Theod, Eftá provado , Madama , que o ho- mem foi creado por Dcos , fingularmentc para viver em fociedade (Tarde XIX, §.i.) Depois continuamos, provando que as leis que Deos dco ao homem para ri ver cm Tarde dezenove» 365' cm íòciedade, não podem íèr as leis que a Natureza infpira pelas Paixões , conio o noíTo Coronel queria. (§.2.) Seguio- ie moílrar que também não podiao fer as leis do InrcreíTe Peíloal , que he hoje a máxima dos ímpios. ( §. 3.; Deílcrra- das eílas peítiferas opiniões , cftabeleci as leis fundamentaes de toda a boa iccieda- de 5 que são preferir cada membro da fociedade o Bem do commum ao Jeu próprio IntereJJe \ e a outra , que dei^e cada qual tratar os feus companheiros , como defeja fer tratado por elles, (§. 4.) Madam. Eílh he a lei áurea do Evangelho , que abrange todas quantas leis ha uceis á iòciedadc que fe pofsao imaginar. Theod, Entrámos depois diíTo na grande queílão j fe podia haver entre os mem- bros da fociedade huma total Igualda- de \ e fe demonílrou que efta total Igualda- de era coufa quimérica , c pcíTima para a fociedade, fe a pudeíTe haver. (§. c.) Continuei depois diíTo que convinha á fociedade, e que era indifpenfavel haver hum Superior que governaíTe. ( §. 6. ) Falíamos em confequencia da fuperiori- . dade que dá a Natureza , que he a dos pais a refpeito dos filhos , e do amor mutuo que deve haver entre elles. (§. 7.) E ^66 Recreação Fi/ofojica. E efta doutrina abrio o caminho para tratar dos fiiperiores civis , c dos deve- res de todo o membro das íbciedades para com os íeus legítimos Soberanos. (§.8.) Ultimamente íe tratou a queílão da moíia , iílo lie , fe a foberania , e au- thoridade fobrc os homens eílava no Po- vo 5 e delle he que nafcia j e o nolTo Co- ronel foi mui ferido na opinião que te- nazmeníte íeguia ; mas moílrou-fe-lhe cla- ramente o leu erro. Aladam. Sobre iíTo ouvi quafí tudo defde o meu Gabinete. Theod, Agora , Baroneza , convém tratar radicalmente donde vem originariamente o poder de hum hom.em fobre os outros homens. ^aron. Agora toda a doutrina que rne der- des aíTcnta bem. Theod. Deos ( lendo noíTo Creador , e o único Pai de todo o género humano ) íem Jobre os homens todo o Poder. So- mente Ellc o tem , e a quem Eile o qui- zer dar. A razão he , porque pela fua Mao Omnipotente tirou do abyílno do Na- da a noíla ahna , que he a pnrte princi- pal do homem ; e ainda a fabrica mara- Tilhofa do noílb corpo orgânico foi de- liniada inteiramente por Deos, como já X vos I Tarde dezenove, ^6j vos expliquei no principio deíla Filofo- fia Moral (Tard.XVII. §. 1.2.3. 4.5-.6.) Ora C07710 todo o Ser do homem origina- riamente fahio de Deos , tem o Creador todo & Foder fohre o homem ; bem como todo o artiíice o tem fobre a obra das ' fuás mãos j e nem cfte chega a ter tão grande dominio ; porque não deo o fer á matéria de que lorm.ou a fua obra.. Madam* Excellente Principio, meu Thec- dciio 5 vamos ás confequenciis que tirais dahi. Theod. Se fó Deos tem o Poder fobre a homem , fó Deos o pode delegarem quem muito quizer. Baron, Bem vos enteôdo 3 minha Mãi : vós com os voííos olhos gracioíbs cheia de gozo me cílais dizendo que não hacon- Icquencia miais evidente. E que luz va- mos recebendo por eíle modo. Continuai , Theodofio, que eílou períliadida que fo- mente Deos , que tem todo o Poder febre nós , he. que pôde delegar ejie Poder em quem muito lhe agradar, Madam^--QuQ bellamente concorda iíTo ,• meu Theodofio , com o que lemos nos livros Santos , dizendo S. Paulo , que tod^ o homem eftd fujeito a algum Po- der que fica ajfima delle \ porquanto to- do 368 'Recreação Filofqfica, \do B Poder vem deDeos, ( i ) Tanto af- íim , que os Potentados não sãojenao Mi- nifiros de Deos ; ( 2 ) e por efla razão quem refifte ao Jeu Poder , rejijle ás or^ dens de Deos, ( 3 ) E ainda eu acho mais forte o que Jeíu Chriílo diílc a Pilatos , Miniítro delegado dos Romanos , que elle não teria Poder algum Jobre Jefu Chrijlo , fe lhe nao fojje dado lá de JU 7na\ c com tudo, Pilatos nao cia homem íanto j mas confeíía Jeíij Chiiftc) que ain- da aííim o Poder que tinha civilmente, era dado peh Ceo, ( 4 ) Donde lè infere (quanto a mim bem claramente) que até os Potentados , e Miniílros civis , que sao máos ,. tem o feu Poder íobre os ho- mens dimanado de Deos. Porém vós , Theodofio , melJior do que eu tereis exa* minado o ponto. Theod, Tenho, Senhora, e meditado mui- to nelle. Digo pois, que como lo Deos tem todo o dominio , e Pod^r íbbre o homem , fomente Deos o pode delegar em ( 1 ) Omnti anima pcujlatibus fapohrihui Jubditê fii : mn enim c/i piftijias nifi a Deo. Rom. l. 1 ). (2) Dei enim Mifijier e/i Ubi m bcnum, C í ) ^"' rt/l(iit Poidlfitt ., Dei orámationi re/i/lH. ( 4 ) IVí)/i hahcfti pote/latem aãverfuM mt ultttm , hífi ubi daium e//ct dcj'up€i\ Joan. 19. ii. Tárie deten&vé. ^6^ tm quem muito quizer. Vamos agora a • ver em quem Deos o quer delegar* BaroH. Vamos a iilb» WJbeod, A voz do Senhor he a voz da Re-- ffa Razão ; digo ifto , porque aquella Luz da Razão , que todo o Iiom>em fen- tc em fi , quando eftá Jivrc de paixões > de intereíTes particulares , e de partidos j ^ - aquella voz , que todo o homem íenfato r ,. ouve no íeu interior , e que por mais , que ellè a queira fazer calar nunca ocon- • íegue; aquella voz , que todos ouvem em • qualquer clim^a que feja , não pode dei- .. xar de fer voz Divina. JMadam* Efla circunftancia quediíTeftes, de , que por mais que nós não a queiramos • ouvir, fempre no interior da noíía alma . grita 3 clama, teima, c reprehende , ne- : ceflariamente he voz Juperior a todês .- aquclks 3 a quem reprchende. Demais , • eita voz Jie geral , porque todos confef- ^ são que lhes fuccede omcfmo: logo fcn- ; do íuperior a todos os homens j lie voz ^ Divina. Niílo eílou certa ; e tu, minha " íilha, fem dúvida que cftás por ifto* Barofi. Eftou ; porque já Thcodofio me ti- • nha convenciao com èffe argumento, Con- ^ tinuai, Theodoíio. Tieod. Eílíi v-Qz-Divina pois da Refla Ra- 37^ R(^creâÇas Titofoflcâ. zão he a que quando os homens sao pou* cos em hum novo Paiz , manda que to- dos obcdeçao ao Vai de famílias i e quando multiplicada agente, c as famí- lias hum pai não pode vigiar fobre a fua , e fobre as alheias , manda a Boa Ra^ zão^ ifto he, Q^íídi Voz Divi?ía ^ que haja hum , que cuide nos intercífcs de todos , c utilidade de todos os membros da fo- ciedade \ c ncíTe cafo dâo a preferencia ou ao Conquijlador , ou ao Defcubridor , ou ão mais poderá f o 'y em fim áquellejque moílra ter círcunftancias para poder acu- dir a procurar o bem commum , e evi- tar os males communs , e que a todos pcrjudicão. Ifto manda a Boa Razão , ifto manda a voz de Dcos ; logo nefle lij- jeito he que Deos ( fuppofta as circun- ftancias) delega a fua authoridade. Ora cftabelecido huma vez o fyftcma do Go* verno , e principiando a praticar-fe em paz, manda Deos pela Voz da Razão , que o particular ceda do ièu parecer , ou intereíTe , ainda que fcja contrario ; por- que a Lei geral de toda a focicdade ( §.4.) manda preferir o bem público ao par-^ ticiilar interejfe. Ora o bem público de- pende da fujeição dos particulares ao fu- perior já cftabelecido 3 pois a Razão, e a â et{5ericncia tem moílradò qtie defta dcíunião , e rebeldia lè ícgiieiTi daninos graviíTimos. Logo ( reparai bem ) logo a voz de Deos manda aos homens que fe jujeitem ao feu fuperior ejiahelecido ^ ainda que feja mão ; poraiie no lugar que tem , faz ( como diz S. raulo ) o lu- gar de Minijlro de Deos, Eis-aqui em quem Deos delega o feu Poder. Eis-aqui como o Poder civil , que Pilatos tinha fo* bre a vida de Jefu Chriflo , lhe vinha lá de íima : Non haberes totefiatem adver^ fum me ullam^ nifitibi datum ejjlet de* fuper. Como nao eítá aqui o nolFo Co* ronel 5 fallo*vos ncíla linguagem das El* crituras. Ora defta doutrina vos podeis, Baro- neza, valer para as circunftancias particu- leres ^ aíTcntando que de Deos he que vem todo o Poder, e que o delega nos fupc- riorcs eftabelecidos ; porquanto ainda que foíTem ao principio mal eftabelecidos , por ferem , v.g* as cónquiftas injuftas , e vio- lentas > depois de eftabelecido eíTc tal , cu qual governo , prevalece a lei da Paz , ifto hc , do focego , que he bum Bem uni* verfal dos povos ^ ao particular juizo dcf- te , ou daquelle , que fe reputa vexado , ou injuftamente opprimido* As leis efta- Bb ii bc- 37^ Recreação Vilofojica, belecidas são as que governao , porque são as depoíitarias da Paz , c do geral focego. 2em coynmum , que todos devem preferir a tudo o que for iniereOe parti- ^ cular, fegundo a voz da Reíta Razão, ' que he, como diflemos , a voz de Deos* Mas ahi teaios outra vez o Coronel. Madam. Eu me retiro \ e ainda bem que levo eíla doutrina ião eílencial. Eu vos deixo. §. XI. Dos deveres do Homem para com as Leis civis. IBaron. T Nda bem que vindes , Coronel , JL que pela brevidade do tempo ve- jo que o negocio do General não feria cafo de Confelho de Guerra ; porque fcm- pre tenho fuílo quando fe fazem , pois regularmente fentenceais á morte os cii- minoíbs : que são terríveis as voíTas leis ' Militares. Coron. Mas sáo precifas: alias não pode- ria haver obediência na Trnpa. Baron, Eftimo que eílejais neíTa opinião; • porque agora Theodoíio queria inftruir- mc na obediência que todo o homem de- - * TC ter ás leis civis ^ e pelo que me di^ | - ze* Tarde dezemve. 375 izeis fupponho que concordareis comnofco, approvando a obrigação que todo o ho- mem tem de íe conformar com as leis civis, eftabelecidas no íeu paiz. Coron. Se eu fallar como Filofofo , naa poílb concordar com iíTo ; porque ainda que eu pratico o que mandão as leis Mi- litares , he fó por força do meu cargo de Coronel , mas não porque aflim o entenda como Filofofo. Hoje todos os homens illuminados feguem , que como Deos fez o homem livre , he huma ef- pecie de tyrannia tirar-íhes a liberdade, amarrando as fuás acçòes com leis fo- bre leis, fob pena de caíligos,, e de tor- mentos , fem que feja livre ao homem fazer o que elle defejava. Theod, Amigo , já vos moítiei que as leis não tiravao a liberdade que Deos nos dco , mas que fò fcrviao de a dirigir , c encaminhar j tanto aíTuii , que eíTe mef- mo Deos , que creou o homem livre , Jo- go lhe poz hum preceito do Pomo veda- do, com pena de morte ; além da Lei da Razão impreíTa na alma de cada hum , que femprc llic eílá dizendo : Faze ifio , ou não obres afjim , &c. E a eíta lei ne- nhum homem pode fechar os ouvidos > por mais que queira. Além de que ( co- 374 Recreação Tilofoflca. mo já vos difTc ) tanto hc certo que as leis não timo a liberdade, que antes hc huma provs de haver liberdade n'um fo* jeico o ver que fe lhe pôe leis \ pois 3ue ninguém porá hum preceito ás pe-» ras, aos paíTaros, &c. B^ron. Pelo que ouço n^o vos lembrais do que já eftá dito; e como a voíla teima vos faz efqueccr , por iíTo foi bom re- petillo. Corun, Lembro muito bem ; mas o meu entendimento nao fe rende de todo. Per-. doai , Baroneza , porque a minha vonta-» 4e eftá prompta a renderrfe aos voflbs acenos , mas o meu entendimento xúo\ porquanto elle não eftá fujcito aos im^ pulfos do meu coração, Baron. Como eftais fino ! E como eftais du» ro ! Pois que tratando ji eíTc ponto , vós não ti vertes que refponder aos argumcn-» tos que vos fazião ; mas nao convém tor-r nar a tratar o que já fica tratado ; que efta con ver facão não he para a voíla con- vicção , mas para mç inftruir a mim. FaU lai , Thcodoíio. Theoâ. Amigo , já diflTemos que creando Dcos o Jiomem para viver em focieda- de , Ilie havia de dar as leis mais pro-. piias par^ q Bem çmmum dçíEas focie^ d4' Tarde ãszenove. ^y^ dadcs. A Lei da Razão , imprefla pelo Creador na alma de cada hum , lhe eC- tá dictando que he precifo aue não fc governe cada qual pela fua caoeça ; por- que então n'um Povo de duzentos ho- mens , haveria duzentos pareceres divcr- fos , e tudo íeria huma defunião , c guer- ra civil , puxando cada qual para o que foíle feu appetiie ( eípecialmentc os que tivcíTem a acfgraça da voiTa Filofofía , c fyílema de ter por licito, c lanrotudoo que lhes íizcíle mais conta. ) Eíle incon- veniente falia aos olhos , e não ha ho- mem fenfato que nao veja que eíta def» ordem hc íummamente nociva á focieda* de. Qae dizeis ? Coron. Quizera negallo , mas não poíTo. Iheed. Eis- aqui o porque a Lei da Ra» zão pcríuade geralmente que convém a- juílarem-lè todos , e concordar no que hc útil ao Bem commum ; e que não fique ifto meramente na voz , e na tradi- ção ; mas que fe efcreva , e ponha cm lermos claros, para que todos os mais, c os vindouros fe accommodem , e cfte- jão pelo que eftá determinado. Eftas leis são hum Depofito público , em que to- dos puzerão as fuás vontades ; onde íè vê que a lei não impugna a minha von* 57^" lí^ccreaçao Fihfâjíci. tade livre ; porque neíFa lei todos puze^ rão , e declararão a fiia livre vontade. Coroft, Que o Povo deíTc tempo de^poíitaP» íe nas leis que eílabelecêrao as fuás von- tades, entendo eu; mas que ahi depofi-» taíTem também a vontade dos vindouros , não poflb entender; porque o Povo que fez eiFas leis já morreo ha muito tempo. ITheod, E quando morreo eíle Povo qtie fez as leis ? Podereis procurar-me huma cer^ tidão authentica do anno do feu óbito ? 'B^ron* Fav^or vos faz Theodolio em vos não pedir a certidão do dia , ç conten-^ tar-fe com a do anno do óbito. Theoã. Amigo ^ o Povo não lie peíToa quo morra ; nem jamais achareis documentos que diga : Nejie anno morreo o Povo ve-* íb(í 5 e nafceo outro Povo, Hum homem morre , e todos vão morrendo pouco a pouco , e outros tantos pouco a pouco vão nafcendo; mas o Povo he humaPeí- íba moral que nunca morre ; e alfim quan- do hum Povo depofita nas leis as fuás vontades , os prefentes , c os vindouros ahi as dcpoíirão. Aliás , a cada paíTo as leis fe derogarião , porque cada qual al- legaria, que defde o anno de tantos até ^gora hão-de ter falecido tantas pefioas, que já fazem falta notável no Povo que Tarde de ze nove, 377 cílabcleceo , ou acceitou cila lei ; por con- feguinte já fomos outro Povo , e dize- nios que mo eílamos pelo que os noflbs antepaííados quizeiao. Ora que funeílif- íiiiias confèquencias não fe Teguirião deíla doutrina , e filoíofia ? Perguntai-Ihe a ref- poíla , Baroneza. Cgrõn, Eu não poffo negar , Senhora. ( Níio me aíraveflcis com os voííos olhos tão vivos , que eu vos refpondo) Empcnhei- vos a minha palavra de honra *, e níío poíTo illudir a relpofta féria com algu- ma galanteria ^ como fe coíluma fazer nos aperios. Baron, Pois então que dizeis , fim , ou nao ? Coron» Confeííb que admittindo nós que o Povo íe muda , quando morre parte notá- vel dos primeiros queadmittírao as leis, fe fegue huma graviíTana perturbação na focicdade. Mas * • . , Baron, Mas que ? Coron* Sempre he huma coufa cruel , qu« nós 5 que fomos vivos , e nafcemos livres , nos achemos manietados por defuntos , que já não exiftem j cujos oíTos eílão mir- rados , CUJO corpo foi paíto de bichos, cujas almas Deos fabe onde eílão ; e que nós por noiTa própria vontade confeííe- inos que eftamos amarrados por cadáve- res , 378 Recreação Filofofica, res , he coufa cruel ! E o que mais ad- mira he , que vós fendo Senhora , íenten* ceais todo o género humano a efta fer- vidão ; e que obrigueis até as peffoas do voflb fexo , eíía deliciofa , e eítima- vel metade do género humano a fer ef- cravos de gente morta ; c que os con- demneis fob pena de caftlgOG a fazer o que elles mandarão neílas fuás leis que nos deixarão. Baron. Defcançai , que as Senhoras nao te- mem os caítigos , nem gemem com as leis ; porque com muita honra de feu fexo fc conduzem pela Lei da Razão'-, Lei que fomente opprime os malvados que fe entregáo ás paixões ; e paixões que vós-outros os Filofofos da moda ado- rais 5 (jorquc os voíTos Doutores as tem canonizado como fantas , ainda as mais efcandalofas. Mas quem fe governa co- mo nós pela Lei da Razão i quem por cila corrige as paixões , não teme as leis civis, que todas fe fundão na Lei da Ra- zão a que eftamos coílumadas. Defgra- çados daquelles que viverem entre vós- outros os Filofofos da moda ; porque forceiando cada qual para dar fatisfação aos feus intcrcíTes peíToaes , fem admittir inais leis cjuç as dos feus appetitcs , vivi* rãa Tarde dezenonje* 379 - úo como feeíliveíTem no mato entie of Urfos , Leões , e Serpentes. %heod, EíTe ponto, Baroneza, já eftá trata^ do ; agora convém que o Senhor Coro^ nei confeíTe que para o Bem da focieda- da he piecifo que haja leis, que unao as vontades de todos , nefíe ou naquclle pon-» to , que for útil á fociedade , em ordem ?L que todos trabalhem no que for útil a todos \ pois hum fó particular , ou doas nao podem acudir ás neceíTidades do commum. Sem huma lei confiante, que faqa unir as vontades de todos , nada bom lè pode fazer. Adverti , meu amigo , que hum fó particular íc tem máo coração, pode fazer muito mal á. fociedade; mas lendo hum fó , quç bem poderá fazer? He logo certo ^ e certilfimo que para q Bem da fociedade hie precifo que as Leis civis tfnão j e ajuntem em certos pontos as vontades de todos. Concordais nifto , ou não? Baron. Quer concordeis , quer não , cu, com vofla licença , cá vou aflentando efta Propoíição na ieric das que cfiuo prova-- das 5 que eu efcrcvo para minha inftrucçao, e meu governo, e não para outrem. Coron, Fazeis bem , Senhora , porque nâO| hkÇ razão que a rudeza do meu entendia 380 Recreação Filofqfica mento perjudique a voíTa inílrucção , e por iiTo não replico. Mas fempre me lie cuíloíb fujeitar-me ás leis , que eu nao acceitei, mas fó meus avós acceitdráo. Theod, De vagar , meu amigo , que tam- bém vós as acceitaftes. Coron. E como? Sem cu o faber , nem querer ! Não pode fer. Iheod» Eu vo-lo provo. Vós defdc que naf- 'ceítes , e tiveftes ufo da razão, vos ten- des aproveitado de todas as utilidades que vos trouxcrão as Leis civis; fempre cftimaftes , c acceitaftes goftofo os bens- contínuos que as Leis vos trouxer ao \ tan- to aílim , que mil vezes vos tendes quei- xado, quando os Magiilrados fe deícui- davão de as fazer obfervar, por não caf- tigarem logo as tranfgrefsoes. Ora ifto ]ie approvar , e acceitar eíías leis , de cu- jos bons frutos goftais , e cuja infracção condemnais. lilo he acceitar formalmen- te eíTas Leis. Refpondei-me , fe puderdes. Baron, Eu vos acudo , meu Coronel , que vos vejo ir ao chão de narizes : eu vos acudo ) e vereis que nem fempre fou con* tra vós. Dizei que tendes approvado , e acceitado as Leis naquillo que vos são commodas ; mas não nas coufas que vos não fazem conta. O- Tarde dezenove. 381 Coron, Vós , Senhora , zombais do meu entendimento. Pois cu poílb approvar as leis no que ellas me são commodas , e 3'eprovalias no que me são incommodas ! Eu bem conheço que aquíllo que me def- accommodaa mim, talvez accommoda 20 commum dos outros homens ; e íe eu ap- provar as leis no que ellas me são favo- ráveis 3 e commiodas a mim , também devo approvallas no que são comimodas aos outros j porque as leis nunca devem a t tender a hum lo particular , mas a to- dos ; ou ao menos ao commum , c mais ordinário ; e aílim. fe eu difier que accei- to as leis HO que ellas me tem fido com- modas , mas não no mais , digo hum dif- p ara te manifeílo. Baron. Acho-vos muita razão ; e vejo que iíTo era grande injuria do voíTo entendi- mento j mas eu não acho outra lahida ; c magoava-me de vos ver por terra fem vos poderdes,' levantar, opprimidodo ar- gumento de Theodofio. Agradecei -me a boa vontade de vos dar a mão. Çoron, Senhora , razões são razoes , cada qual as volta para onde quer j e vós , Se- nhora, com o volTo refpeito 5 eniais ain- da com a voíTa agradável viveza de en- genho , fois capaz de enredar o Filofofo . m^is circunfpedo. Ba-- I 381 Recreação Pilofojica. haron. Seja : in^s eu accreícenro em viN tudc do que eítá dito èíloutra Propoíi* cão 5 fe vós , Theodofio , concordais ; e he , que todo o homem que vive em focie-» dade ^ deve obfervar as Leis civis ejia-^ helecidas no feu Paiz> Theod, Efcrcvei , e governai- vos por ella í paliemos a outro ponto* §. xir. Que entre as Leis civis para o Bem da f l/cie dade he uttl a Lei da Religião, Baron, /^ Uaes são logo , meu Tlieodo* ' v/íio, as leis principaes úteis a toda a fociedade ? Theod, Os que formão a fociedade , ou o Soberano que a governa , he que devem eílabelccer as leis mais próprias , e mais úteis para clTes Eftados ; mas huma Lei , que eu creio de muita utilidade , he a lei da Religião. Cêron, Nada , nada , iT>eus amigos , iíTo Jião , por modo nenhum : até niíTo que pertence a cada qual , quereis vós que fe tire a liberdade ! Eu não vi igual em- penho ao que vós tendes em opprimir o gcnero humano. Deos nos fez livres, a Fi- Tarde dezencue, 3^5 Filofofia nos quer confervar cm fiiinma liberdade ; e fe eu concedo as leis civis 9 em ordem ao Bem da fociedade que del- ias depende , nunca poderei fofFrer lei de Religião, que nao tem nada com es in- tereíles da Sociedade. A Religião perten- ce fó á minha alma , e a Dcos; nada tem com os outros homens , que não vem o que tenho na minha alma. O culto que eu devo a Decs , e o modo de o adorar , hc coula fomente minha , os meus Concidadãos nada tem com iíTo. Man- dem as leis que eu nao minta , que não furte , que nao mate , que não engane a ninguém , que nao falte á minha pala- vra , &c. iíío íim 5 porque difíb depende o Bem público; mas que eu feja Atheo, ou Mouro 5 ou Gentio , ou Jiideo , hc coufa que nada importa aos outros ho- mens com quem vivo. Não acabareis de crer , Barcneza , que vós eftais cheia de prcoccupações , e de erros, que a vof- fa Aia vos mettia na cabeça , quando éreis Menina. Segui a Religião que quizerdcs , que iíTo lá toca á voíTa alnia \ porém no que toca á fociedade , fede vós civil , cortez, graciofa, afFavel, e galante, co- mo Deos vos fez , que niíTo fazeis á fo- ciedade o maior lèrvico que lhe podeis j84 Recreação Vlhfoftca. £ fazer : não arrendais a ourra Religião pa- t ra cíTe etFeito que as leis da amizade , e -' do amor, que neílas podeis fallar coino Senhora foberana de todos os corações que vos trarão. Baron. Que me dizeis , Theodofío , ao ca- radler do Coronel ? Quando eu ju!gava que eílaria efcandalizado de vós , e de mim 5 por fe ver convencido por nós , rompe agora, em cumprimentos , e lifon- jas 5 e exprefsces do mais fino , e ga- lanre Cavalheiro ! Vós , meu Coronel , tendes hum entendimento bem elaílico. Coron, Não entendo. Baron. Eu me explico. Nós na Fyfica cha- mamos elajlíca a qualquer vara , que com . o pezo , ou com qualquer forja dobra íiiaté ao chão ; e paíTado iílb íe levanta - para o ar como fe não tiveíle dobrado. O voflb entendimento he allim : quando vos vedes opprimido com o pezo , ou com a força dos argumentos, de 1 hcodoíio, repugnais; mas por. força dobrais, evos rendeis ; paífado iíTo , fahis vigoroíb , altivo, direito, como fenada tiveíTepaí^ fado por vós; chamo a ifto entendimen- to ela/tico, Refpondei vós , Theodoíío , ás razoes do Coronel , que elta matéria v he graviíTima , nvão hc para mim. Theod. Tarde dezenove» jg^ TCheoã. Vós , incu amigo , já concedeílcs que era o úteis as leis Militares , e pot* confeguintc lambem as eivís : dizei-mô agora , para que sao ellas úteis ? Coron. Para prchibir as defc.rdens ; para co- hibir Gs malfeitores cem onicdo dos caf- tigos; para refiear os mal intenciona- dos 3 em ordem a que deixem viver os homens em paz , &c. Theod, Ninguém diícorre melhor. Ora di« zei-me , amigo : E quem ha-dc cohibir os malvados , c maliciofos no coração , para que não commettão cscrim.es occul- tos ? Ha crimes que na aílucia bem miC* ditada dos criminofos , levão ^ fulvo con^ duelo dos caftigos ; e até da reprchen- sao , e cílranhez dos outros homensi O ódio 5 a traição efcondida , as intrigas do amor , que mieios inopinados , e idéas ^nunca viftas eílão inventando , para que ninguém faiba , nem fufpeite o crime,, ou ao menos o criminolo. Qiiem eítá exercitado no mal, emenda no íegundo ou terceiro lance a pcuca cautela que leve no primeiro : de forma , que pode dizer o que certo crimlnofo em França efcreveo n^uma efquina , quando fe tira* va rigorofa devaíla do £eu crime : , %Qm. X Ce líiâo 386 Recreação Filofofica, Não te cances de balde ^ meu Lmz\ Forque eu ejlava bem fó , quando ijlojis:^. QiJcm ha-de impedir fó pelas leis civis os ciimcs que fe commetrem, cíiando o criminofo lo ? Fica feguro que não ha teílemiinhas , nem acculador. Só o temor de Deos o pôde refrear , íò a íu a Reli- gião. E ainda que muitas vezes fe veiíi a defcubrir os crimes mais occulros , quan- tas vezes íe cfcondem de forma , que fomente Decs os ve. Coron, Bafta a experiência que moftra que fe ,podem defcubrir , para refrear rodo o homem prudente, e fazer que fenão ex- ponha. Theod, Homem prudente ! E que prudên- cia fuppondes vós em hum criminofo, exercitado em maldades que nunca fe llic deícubrírão ? Além de que, nunca houve BO mundo homem tão [ouço , que for- jando na cabeça modos de commettcr o feu crime ás elcondidas , nao fe períiia- diíle que havia de confeguir ooccukallo. Todos eípcrão confeguir que fe nao fai- ba. Ora todos eífes iòmenie pela Reli- gião , c temor de Deos he que fc re- freio \ porque das leis civis íempre a ^"- . , ^ iiia Tarde âerjcnovè. 387 fua aftucla lhes promcttc livrallos. A ex- pcricncia dcs que peníàndo que nunca os feus crimes Ic defcubririão , íè acha- rão convencidos , c caítigados , não baf* ta ; porque os que determinao , ou pen- são cm commetrer as maldades que fe Ihei antoja ^ nunca condcmnão os cri- mes que os outros fizerao ; mas fomente a pouca cautela que ti verão niííò ; e ef- fa reflexão não os cohibe do crime, mas excita a dcfcubir novos cítratagemas pa- ra CS occultar. Somente o temor de Deos > ■A quem nada fe pode. efconder, he que pôde fer freio , que tenha mão na malícia dos homens. Bâron, Ponde-vos , meu Coronel, em hu« ma povoação , em que ÍÒraentc fe tetnão as leis civis , para íe não commettercm crimes manifeílos , mas que ás efcondi* das pofsão fazer tudo o que quizerem, principahnente feguindo a voíta FiloÍQ* lia ( de que tudo o que lhes fizer commo* do he licito ) c dizei íinceramente fe vi-* virieis ícguro no meio de tantos inimi- gos occultos \ fallai como homem de bem : vi virieis defcançado ? Coron. Confeífo que não. Baroth Ora ponde outra Povoação , em que todos icnhão temor de Deos , e íigão d Ce U ver* 388 Recreação Filofofica. verdadeira Religião , não vivirieis mais feguro ? Vede que cu fou 2 que vos per- gunto. Coron, Senhora , confeíTo que neíTa gente viviria muito mais defcançado. Barofu Ora , Theodoíio , tirai vós a con- fequencia deftas propoíições que o noílò Coronel concede. Theod, A confequencia hc que para o hem da fvcieàaãe he muito melhor a lei da Keligião. Eíla propoficao he por fi meC» ma manifefta j porque nós eílamos tra- tando das leis que conduzem para o bem da Sociedade. Coron. Pois eílá feito, haja lei que mande que todos os Cidadãos tcnhao Religião, ieja embora ; mas fique livre a cada qual elcolher a Religião que mais lhe agra- dar, fejaPagão, ou Judeo, ou Mouro, , ou o que quizer. Baron. Mas não Chriílao ; porque reparo que niílb não fallaftes. Coron. Nada vos efcapa , Senhora ! Baron. Vós no que toca á noíla verdadei- ra Religião feguíítes a doutrina dos vof- fos FilofofoB neíles noíTos tempos, que confentião todas a? Religiões , e até o Atheifmo ; porém por modo nenhum os .n verdadeiros Chriftáos. Tarde dezenove. 38^ Theod, Ora , meu amigo , que bem efpe- rais vós de huma fociedadc , em que hum he Mouro, outro Gentio , outro Judeo, outro Incrédulo , outro que forma a Re- ligião á fua fantaíia ; pode haver união ,. pode haver harmonia , tendo huns por licitas hum as acções que outros con- demnão ? Qj^icbella lemenreíra dediícor* dias , e dilaceração da Sociedade 1 Coron. Deixemos , Senhora , eíle ponto. §. XIII. Das^ ehrigaçoes do Homem para com os malvados y e efcandalòfts. Efehc lícita a Vingança, Baron*'XT Amos agora, Theodofio, ap- V plicando as doutrinas geraes a alguns artigos em particular , v. g. o como fe deve o homem haver com os malvados , e efcandalofos ; poílo que a Filofofia do Coronel nos difpenfa de tra-^' tar eíle ponto. Coron, Porque razão dizeis que difpenfa ? çBaron, Porque fegundo a voíTa Filofofia > não ha , nem pode haver malvados , nem criminoíbs. Çgrm. Inda mal que os ha \ e hontcm me fe? ^po 'Kecreaçao VtUfofícá, ferirão os ladroes hum criado meu , e o roubarão \ e teve muito trabalho para cfcapar com vida. Livrem-fe elles de que cu faiba quem forão. ^aron. Coutados , fe o fizcrão pelo fcu pró- prio intcrcíTe, íizcrão muito bem; évòs os deveis louvar , fegundo a voíTa Fiio- fofia. 'Xheyd, Pois vós , amigo , ni5o vos lembrais do que nos tendes dito , e que publica- mente cnfinão os voflbs Doutores , que vós abraçais , ç feguis ? O fatisfazer as paixões 5 e o inter ej[e pe£eal são a ha^ rfc de toda a Jujliça. líto he do voflb grande Meftre {i)\ e outro Doutor vo f- fodiz, que o crime que nos parece mais horrendo , vem a fer louvável^ fe a ne- ' cejjidade obriga \ de forma , que hum Jui^ bem entendido , deve ds vezes caf tigar acções boas , fe for ao feitas com fins mãos ; e premiar o que fizejfe ac^ coes más com motivos de virtude. ( 2 ) Coron, E que motivo de virtude podião ter cíTcs ladroes em roubar , e ferir o meu criado? Baron, Eu o acho nas voíTas doutrinas (3)* Di- C I ) L' t Iprit pag. 90. Tards de$íenovf* 391 'Dizem que todo o homem ^ que he capaz de amar , he virtuojo ; e iíto hc Dogma vofib cíbbelecido no Catecifmo da Ga-' lanteria ^ fegundo já vos tenho ouvido n'alguinas converíaqóes. Ora talvez que cíles ladroes nao tiveíTem com que ga- lantear alguma Menina da fua affciçao, fenáo com o que roubarão ao vofib cria- do ; e alii tendes hum bem claro moti- vo de virtude , porquanto he cíFcito do amor. líto não tem refpoíla. Coron, Eu abomino , e dctefto femelhante virtude. Baron, Sc iíTo he aíTim , então abominais , e deteílais a doutrina dos voflbs Mcf* três. Tende paciência. Coron, Quando me não faz conta j não a figo. Theod. NcíTc voflb dito moftrais que a re- gra da voíTa Filofofía hc o voíTo com- modo i c que fe vos faz conta huma dou- trina , hc verdadeira ; fe vos nao faz con- > ta , he falia. Não ha coufa mais defenv , baraçada para viver á larga. Amigo, fe vós me promcttcis de deteílar toda a ; Filofofía que vos nao he útil , ou com- . moda , cu me obrigo a que detcíleis to- dos eifes fyílemas da nova Filofofía , que até agora tendes com tanto empenho cn- gran-» 39^ Recreação FiJofofea, grandecido ; porquanto níío ha doutrina: mais peíUfera , neip mais nociva a eíles meímos que efpeculativamenre a feguem ; vós bem vedes que ferve de louvar , c approvar, e canonizar os mais malvados Jiomens que tem havido. Eu vos cito os authores , e as paginas , em que clles tra-« zem cíTas doutrinas, capazes de canoni- zar os mais horríveis crimes. Além do que agora. difle a Baroneza , diz hum grande Filoíòfo dos voffos ( i ) : Que iodo o fentimento que nafce em nós , ou feio temor de padecer , ou pelo amor do ã'^ leite , he fentimento hgitimo , e con- forme ao noffo JnJiinBo, E outro, que também tem authoridade entre vós-outros , ( 2 ) diz claramente , que heprecifo cui- fiar no corpo antes de cuidar na alma \ € procurar ao feu corpo todas as com^ modidades y e não fe privar daqui lio que pode caufar deleite \ que havemos de dar ã Razão huma guia , que vem a fer a Natureza» Ora qual he o malvado cm todo o mundo que não feja^ capaz de amar:* Logo hevirtuofo, Qiial he o mal- vado , que não obre ou pelo medo dos trabalhos , ou por amor do deleite , lo-? ' '^ ( J ) L':'s ;Vioeurs pag %2. Tarde ãezenove. 395 go ohra fegundo o inJiinSlo da Nature^^ %a, Qiial iie o malvado, que não metta debaixo dos pés a Razão , e quer qiie cila íirva ás paixões da natureza ? Ora niíTo faz o que deve , fegundo a voíla doutrina. Vedes, meu Coronel, que vós livrais todo o mundo de malvados , e de criminofos ! Porque , fegundo a voíla Fi- lofofía, eíles que até aqui chamaváo mal- vados , sâo na voíTa opinião homens vir- tuofos , e que obrão como deve fer. Coron, Eítá feito : não he eíle o ponto que qiieriamos tratar , era fc os malvados de* vem fer caftigados , e como ^ porque niílb ha que dizer. Theod. A Juíliça pede que os bons fejão premiados , e os máos caíligados : ago- ra convém averiguar fe a vingança he li- cita , ou não. Coro». Dar bemporhem^ e mal por mal ^ he a coufa mais raciona vel que fc pòdd mandar. Qiiem recebeo o bem , pague com outro bem \ c quem recebeo o mal^ pague com outro mal líto, meuTheo* dofio , he o diélamè da Boa Razão. Baron, Nunca vos vi 3 meu Coronel , tão racionavel, ^heod. Senhora , nem tudo o que parece racionavel o he na realidade. Dizei-me , Sc- J94 Recreaçãd Filofoflca, Senhora , hum pai de famílias tem mui- tos íilhos, fc na íuapreícn^^a hum cffen- deo o outro , approvará o bom pai que o offeudido iè vingue dellc na ília prc- fcnça ? Baron. Nao certamente. Deve tomar a íl o caíHgo do delinquente , e a fatisfajão do ofFcndido. TheoíL Outro tanto faz Dcos comnofco, que todos fomos filhos de Deos. Quan- do alguém ofFende o fcu Concidadão , o Pai fupremo de familias deve caíligar o criminofo , e não confentir que o o& fendido fe dcfpique. Coron* Pois que ! Deve o malvado ficar impune! Tbeod, Nao , iíTo feria grande defordem^ . mas deve caftigalio o Juiz que tem au- thoridade pública fobre ellc , e nao o particular. Coron, Pois fe o Juiz, que não he o offendido , deve caíligallo j mais próprio he que o caíligue o mcfmo offendido , que tem pa- ra iflb direito. Theoà. Nao convém por modo nenhum. Ora ouvi-me com focego , e talvez que me acheis razão. Na vingança nunca pô- de o offendido obrar de fangue frio , e com a medida exadla da Juftiça. Quem ef- Tarde dezenoví. 395' eílá ofFcndido 5 ainda que pegue na Balan- ça dajiiíliça, nunca ha-dc rèr a mão tíío pacifica , e quieta que lhe não trema. O que eílá oífendido fempre fe fente . alte- rado 5 o amor próprio ferido grita , a bulha interior aturde a alma , que delTç modo nao pode ouvir a voz manja da Razão, Entretanto a paixão pega fogo , o fogo faz fumo, e eíle offulca os olhos do entendimento. Ora a alma , que nem vê bem , nem ouve a voz da Razão , como ha-de governar reílamente as fuás acções ? Deíle modo fcmprc o vingativo excede os limites que a Razão podia preí- crcver , c a vingança fica em parte ac- ção injuíta , e o criminofo fica injuíta-, mente oífendido. Eis-aaui porque a viu" gancã fempre fica injuíla. Quero , Se- nhora 5 pôr-vos huma comparação bem própria. Ponham.os n'uma fala dous con- tendores que lutem a braço : fe nós ti- rarmos pelo pavimento huma linha rc- íta , e dermos a cada qual o feu terre- no, c diítriílo além do qual não lhe fc- ja licito paíTar, feria poílivel que luélnn^ do cllcs , não paííaíTem ora hum , ora outro do feu diílriélo , entrando no a- Iheio? Pois o mefmo fuccede em todas as contendas : nunca fe guarda refpeito 39 5 Recreação Filofoficà. exaílamenre á linha que defigna os ter- mos da juftiça de cada qual '•, e por iíTo na força de luda , ambos coíhimíio ter fua razão , e ter fua feni razão \ por- que pafsao ambos mutuamente além do leu direito , e entrao injuítamcnte pelo terreno do contrario. Não deve ifto acon- tecer , quando o Juiz deíapaixonado julga do crime em que elie não foi otfendido , e determina ( fegundo as leis ) a pena que he merecida. Baron. Nunca entendi i^^o como agora ; e vejo a razão, porque as leis nunca per- mittcm ao particular ofFendido o direito de fe vingar a íi mefmo. i2oron. Vós , Theodoíio , neílas doutrinas que dais fuppondcs os homens de páo, e por modo nenhum de carne \ vós os fuppondes inalteráveis , infcnfiveis , cm fim como fe foílem de bronze , c fcm a menor paixão. Theod. QuerO'Os fcníiveis á Razão , que para iíTo he que são as leis. Vós como apadrinhais as paixões, tomais outro ca- F minho , algum ha-de errar. naron. Devemos logo aílbntar como coufa certa , que es malvados , c criminofos devem fer cafti gados , não pelo particular que foi ofFendido , mas pelo Juiz deputado par a eíTc fim pelas leis. thfod^ Tarde dezenove» 397 V^heod. Podeis aílentar iíTo no voíTo pecú- lio de verdades provadas. Agora falta dif- corrcr fobrc outro ponto , em que o Se- nhor Coronel nao concordará comigo i c hc fobre íè he licito , ou não dar aos criminofos a pena de morre* Coron, Eu difcorrendo fem paixão , digo que não ; fe obrar com elia , digo que fim. Eu dou a razão. Como Dcos lie o Author da noíTa vida , fó Deos he que a pode tirar a quem Elle a deo y e jul* go com bons Filofofos , que nunca ho- i iiiem deve tirar a vida a outro homem ; porque não he licito á creatura desfazer o que Dcos tem feito. Verdade he que iílo he frequentiílimo tirarem os homens a vida a quem íó Deos a podia dar ; mas rcfpondo a ifio , que fazem mal. Baron. Que eítranha doutrina em hum Mi- litar ! .Coron. Senhora , nós obramos fegundo a . praxe , e eítilo do mundo j porém as jnaximas efpcculativas de cada qual fó dependem do difcurfo de cada hum. Eu figo huiW coufa na efpeculajao ; mas na praxe faço como os outros. \Theod, Se Deos { que he o Author da vi- da ) não nos tiveíle dado as leis para a .. tirarmos aos criminofos , também eu Ic- , gui- 59? Recreação Vilofoftcét. guiria eíTa voíTa opinião , meu CoroncF; porém nós vemos que o Creador logo no principio do mundo ameaçou com pena de morte certos crimes que prohi- bia. Eíle foi fem.pre o feu caítigo mais ordinário , com ciue quiz cchibir os ho- mens de cerros crimes que vedava ; por- quanto praticamente fc conhece, que a morte he o único caíligo que refrea do mal o homem propenfo píua a maldade. Coron. Muitos outros caíHgos lia que são peiores que a mefma morte: firvanio-nos dcíTa? penas, e deixemos a vida a quem Dcos a deo. O deílerro para terras doen- tias , para paizcs faltos de viveres , c abundantes de feras : as galés por mui- tos annos , o cárcere per toda a vida são mortes lentas , e martyrios mais cruéis que ameíina morre. Qiiequer dizer hum tormento, que não dura íenao Jium mo- mento ? Huma bala ( fem que fe finta ) ncs mata ; hum golpe na garganta , quan- do começa a fentir-fc , já nos deixa in- capazes da menor afíiicçao. Amigo , o temer a morte he para almas rnífeiras , efpiritos da plebe, ânimos cobardes , cO'. rações femininos , &c. e ncs os Milita- res , que íbmos creados com efpiritos gc- nerofos , vamos para a batalha cantan- do; Tarde dezeJícv^, 599 do ; e quando vemos cahir os compa- nheiros ?.o noíTo lado, mais temos inve- ja á gloria militar daquelia morte hon- rada , do que medo , ou pavor , que sao aíFedos indignos de quem tem a noíla proHfsão. Agora fc nos viíícmos prezes , ou deshonrado na frente das tropas , iííò náo poderíamos tolerar. Com que , Ba- roncza , aíTenrcmos que a morte íó lie ' caíligo para gente vil ; e outros caíligos fcrão capazes de cchibir todos os cri- mes ; qualquer caftigo que toque na hon- ra , fará mais eíFeito. Deixemos a vida a quem Dcos a quiz dar. Baroíu Vós tendes fallado como Militar , e com eífeito , no principio de qualquer encontro bcllico , le aííim fallaífeis aos vofibs íòldados , os teríeis bem animoíbs. Mas lò tenho huma dúvida ncflc voílb dcfprezo da morte, e he, que o anno pairado vos vi bem deranimiado , quando vos annunciavao huma hvdropeíia de pei- to 5 que he quafi m.orte fem remédio. Eu vos via perdido de melancolia , e que fa- zíeis diligencias bem cuíloias para fazer vir Médicos de bem longe, em ordem a ver fe com cíFcito vos livrava da hydro- pefia ; e remédios bem cuílofos de fup- portar vos livrarão delia. Nao acho con- cor- 400 Recreação Tilofofica. concórdia entre tanto medo da morte cri* tão, e tanto defprezo delia agora. XJoron. A fallar a verdade, eu náo goílava dos annuncios que me fazião da morte; porém então fallava como liomiCm , e agora ccmo militar, ^Tihtod, E os criminofos que a fcciedade de- ve caíligar a que clafle pertencem ? á claiTe de homens, ou de Militares ? Se iâo militares , concordarei comvoíco, que n ais rcnfivcí talvez llies lerá delpiíem- Ihes a farda , e as inílgnias Militares na frente do Regimento , do que a mcrte occulta ; mas nao fe fuppoe que Mili- tares íejao criminofos , ( vá eíla lifonja ) fupponho que os criminofos são mera- mente homens , e eíles ( como vós ) de- vem temer a morte , mais que nenhum outro caftigo. Coron, Sendo os caftigos mui prolongados , certamente são huma morte lenta. Theod. Não obftante iíTo , o commum dos homens criminofos antes querem eíla mor- te lenta , que a outra violenta , e breve* He prova confiante que quando algum criminofo eílá fentenceado á forca , íè acafo por fer dia de annos do Príncipe, ou coufa femelhante, fe lhe perdoa a mor- te , e a trocão em galés , ou degredo per- TarJle âê&end^vei, 401 perpetuo para terras peílimas , fervem C nos feus companheiros os parabéns , as alegrias , es íeílejos ^ &e* final de que melhorou o criminofo da lentença. Baron, Sempre ouvi aquillo mcfaio , por mais cruel que fofle o degredo. Theod, Ainda mais. Certo Soberano , pou- cos annos ha , que levado da voíTa Filo^ fofia, tirou a pena de morte ^ e poz hu* ma lei que a ninguém íe déíTe ; mas íirft - trabalhar toda a vida nas obras públi- ^ cas , com taes , e taes penas , &c. líto foi no principio de íèu Governo ; mas - ferverão de modo os crimes , e infultos cm todo o fcu diílricto , que no fim íè vio obrigado a condemnar á morte, in- numeraveis vaíTallos , defcnganado que fó a morte he que pôde cohibir ânimos malévolos , e propenfos ao mal. IBaron. Com tudo iílb , meu Theodpílp ^ • fe eu foíTc Soberana , havia de ter gran- ^ de diíEcuIdade a condemnar á morte a criminofo algum. Tbeod. Senhora , vóá obraríeis eatao fcgun- do os impulíos d'a Natureza , mas não fegundo os diftames da Razão j e accref- cento que dáveis pfova de animo, cruel para com os voíTos vaíTallos. Baron, Provas de animo cruel ! Não entendo. Tom. X - Dd Iheod. 402 Recreação Tilofofíca, Theod* Ora íiipponde-vos Soberana, e que vos daváo parte que apparecino Urfos , ou Leões 5 que faziao grande eftrago, não fó nosrebanJios dos volTcs vaílallos, mas nas aldeias ^ matando mulheres , furtan- do crianças, delpedaçando os caminhan- tes , e que vós não confentieis que fe mataflem eíTcs lírios , e feras cruéis , fe- ria em vós piedade ? Baren. Deo? me livre de tão mal entendi- da piedade : era fer piedofa com os Ur- fos , e cruel com os meus queridos vaf- fallos , que erão filhos meus. Theod, Outro tanto digo agora. Os faltca- dores , e aílaífinos , &c. são Urfos dif- farçados com pelle humana ; poupar a - cftes criminofos feria fer cruel com as 5' pcflbas que elíes mataílem , ou feriíTem, ou maltrataífem. Supponde que perdoa- c vèis a hum deíTes criminofos, e que ellc •livre da morte, continuava nos léus de- pravados crimes, e que matava quatro, ou cinco pefibas , fobre quem carrega- vão eflas mortes ? Vós fe poupaíTeis a morte de hum Uríb , ou Leão , c cllc depois vos defpedaçaíTe alguma erfan- > ça, quem deixaria de vos criminar nef» ía morte ? pois que tendo eíía fera pre-* za^ e próxima a ler raprta , Jhe linheig por Tarde âe^a^enoije^ 405 por mal entendida piedade Concedido á vida. Baron. Então certamente eu me creria ho- micida. Tkeod, E no noflb cafo porque nao ? Deoá vos livre , Baroneza , de que abufaíTciá tanto da voíía inata piedade , porque era Jiuma crueldade verdadeira : e quem ac- commodaria os clamores do povo , ven* do que vós nao defendieis as vidas dos innocentes para poupar a morte dos cul* pados. Defde que hum hcmem intentou matar , ou fazer grave infulto aos léus concidadãos , íe declara inimigo disfar- çado de todos ; e cede por illo de todo o direito da fua vida. Eftais livre dcíFes apertos ; mas bem vedes que he hum:i verdadeira crueldade com os innocentes, a quG parece clemência com os culpados. §. XIV. Dos deveres do Homem para com 0^ amigos* I Tíeetd, A Gora efte ponto , Baroneza , I Jl\ vos pertence a vós mais que , a ninguém , porque vos tenho ouvido muitas vezes difcorrcr nas leis da Ami* Dd ii 2a« 404 Recreação Fikfofíca. zacle , c com boa »EiIolòfia : e demais, a matéria de amor iie própria de cora- ções femininos. ■■' Baron* A verdade he , meu Thcodoílo , que ncfta matéria tenho íiioíbtado m.uitd j e parcce-me que vós , Coronel , não eon- eordarcis comigo nos Principies cm que cu me fundo. Dizei vós primeiro o que dizem lá os voílbs Doutores , c depois cu direi o que pcnfo. Coron, Os nofios livros fallãodoAmor com fummo elogio ; e não fe pódc negar que cila nobre paixão os merece. Hum diz , que o fentiynento de amor he a única haft 5 em que fe podem firmar os funda^ mentos de huma moral útil ( i ). Outro ainda diz mais , porque tem efte Dogma : i Todoaquelle ^ que he capaz de amar ^ he '"'■ virtuofo j como também iodo o que for 'virtuofo he capaz de amar ( 2 ) : tan- to identifica eíle grande Jiomem o Amor com a Virtude, E alem diíTo accrefccn- ta , que não ha que temer que a paixão do amor faça perjuizo aos coftumes , porque fomente os pódc aperfeiçoar ; porquanto todas as virtudes fe dão mu- tuamente ds mãos \ ora a ternura do co- ração he huma virtude, -*:>••/ "* í ; Ba-- ■ (O L.'Efprit pag. âjO. (aJLesMotíurs pag, J9S. Tardt! ãèzendve, 40^ Baron. Que bcllo difcurfo , Theodofio 1 E não fc envergonha hum hoinem de dar huma prova táo ridicula para firmar hum fyítema táo abfurdo ! Theod. Nao vos admireis, Senhora , que nos homens a gangrena do coração paC-* fa facilmente á cabeça. E)Ie não pode ignorar que elTa paixão quando íe chega a apoderar do coração , não conhece termos 7 nem limites ; porquç nem as leis , nem a decência , nem os direitos da nature- za , nem o refpeito do fangue , nem os MÓS de amizade, nem o amor da Pátria, nem os intereíTes da Religião baftão pa-» ra ter mão nella. Nada diíío ignora quem vive no mundo j e não obftante iíTo , diz o que ouviítes» Corofí. Ainda diz mais , porque diz , que os homç7íS são loucos ^ quando fe per fua* dem ( I ) que he coufa louvável rejijiir d paixão de Amor \ e que he coufa ver-» gúnhofa o deixar-fe vencer delia \ porque o único meio de/e livrar da fua impor- t unidade he conceder-lhe todos os feus defejos, "B^ron, Baila , bafta , Coronel , náo vos aconteça o referir femeiliantc doutrina di- an- p ' " ' ' " ' j' 'I" •■ »i III iwiiiii I l' (1) Les M»eur$ pag. 73. 4o6 RecreaçXo Filofofica, ante de nenhuma Senhora ; porque o dc- ' coro que fe nos deve nío o confcntc : c iíTo chega a ler blasfémia contra o rcí- peito que nos he devido ; convém fem- pre refleítir no noíTo decoro. Çoron, Perdoai , Senhora ; mas eu o fiz obrigado do vollo preceito , que me man- dava referir a doutrina dos meus livros, . Não figo ifto , fòmentc refiro o que li. , ^aron. Vamos pois , Theodofio , a difcor- rer foli da mente. Theod. Senhora , antes que entremos no difcurfo 5 nós devemos d iítinguir amor de paixãa , e amor de ejlimaçao , que são coufas mui diíFerentcs. Dizei pois , Se- nhora , o que fentis de hum e outro amor ; porque neíTa matéria ( fegundo o que vos tenho ouvido ) podeis ler de cadeira ; c o Senhor Coronel çom mais goílo ha- de ouvir as doutrinas da voíTa boca , que da minha. Çoron. A Baroneza tem para comigo huma eloquência a que não íe pôde refiflir. Di- zei pois , Senhora , o que entendeis ncf- ta matéria de Amizade^ e Amor. BarofJ. NeíTa matéria confefiTo que fou he- rege , e herege bem refinada , porque na- da creio. Tenho humas idéas ião diife- rentcs do çpmmum , que forjofamente Tardíí dezcnnrve, 407 os meus fyílemas , e fentimentos hao-da fer oppoftos aos voílos j e por ilío quan- do me fallão em Amizade , e Amor ^ deixo paííar eílas palavras como as que nao íigniíicáo nada \ c nada creio. Coron. Fazeis injuria manifeíla a todos os que vos tratão , e vos conhecem i por- que depois de incrédula chegais a fer ingrata , titulo o mais ieio , e que não DÓde cahir n'uma Senhora, em quem a ! Natureza pródiga depoíitou todas asbcl^ as qualidades que vos fazem amável a todos que tem a felicidade de vos co- nhecer. Náo 5 minha Senhora , fcmpre foi o primeiro dever do homem amar a quem o ama. 'Baron. Eílais , meu Coronel , multo enga- nado comigo. Eu fou herege neíle pon- to , c quafi herefiarca ; porque defejo deC- enganar as minhas amigas do erro em . que vós-outros as quereis pôr. Ora di- zei-me : Huma Senhora bem prendada da Natureza , e do eftudo , formofa , viva ^ difcreta , engraçada , civil , attenta , &c, agrada geralmente a todos ? Ora pergun- to : E tem obrigação de amar a todos ? e amallos f oh pena de fer ingrata ? Ref- pondei-me. Ha-de ter coração de eílala- gem para accommodar tanta gente ? '4o8 l^ecreaçSo Filofojíca. Coron. Nunca me fizcrão pergunta que maií me embaraçaíle. Baron. Vede o que rcfpondeis. Sedifferdes - que ella tem obrigação de amar a todos os que goílao delia , que defgraçado he o coração dclfa creatura , que por infe- * licidade fua hc tão prendada ! Porquanto vendo fe obrigada a amar a todos os que goítáo delia ^ lerá obrigada a amar mui- tos tolos , muitos enormes , muitos vi- ~ cioíbs , muitos infolentes , muitos atre- vidos j- em fim a tudo. Não ha coração mais infeliz ! E ainda mais , e fob pena de fer ingrata ! Com que , meu Coronel , ajuítai-me eftas contas. A Senhora de quem fe trata he perfeitiílima j todos os -^ que a vem e tratão morrem por ella; -aqui entra tudo , homens feios , tolos , viciofos , ridículos , infolentes , em fim n. monftros , e a pobre Senhora na voífa -' opinião ou ha-de amar a tudo iílb, ou fer ingrata. Não ha mais infeliz alterna- : tiva. Theod. Ora , meu Coronel , reípondci-lhc. Corou, Nio poílb, Ba'on, Logo he falíiílimo o commumPro- - loquio , que he obrigação de toda a pef- pa^ o amar a quem a ama. Não ha lei mais cruel , e mais oppofta á Filofoíia do Tarde dezenove, 409 do coração humano. Se hum tolo, hum bruro , hum homem carregado de ví- cios 5 e hum coiTipendiO de defeitos me quizer amar, hei-de íer obrigada aamal- io ! Ainda que o meu entendimento re- pugne , o meu coração fe revolte , a m.i- nha alma o deteíle, e toda a peíToa de juizo o abomine! Alias fcu ingrata! Ah que Filoíbíia 1 a mais barbara que pof- fa haver. Coron, Senhora , nao me crimineis a mim , que eu feguia o Proloquio com mura que me cnfinárão. Báiroju Vós-outros os Militares nao íabeis a anatomia mxOral do coração de huma Senhora: os vofíbs corações são creados com pólvora , nutrem-fe de fanguc hu- mano , as feridas , as mortes , as batalhas, dez mil inimigos mortos são hum gran-. de pratinho para a meza de hum Gene- ral. As Cidades arrazadas , os campos talados, e tudo o que faz horror á Na- tureza , he o voflb regalo. Ora corações deíle género não entendem nada de amor. líib pertcncc-nos a nós , cuja alma mi- mofa não foíFre violência , nem conílran- gimento. líuma alma bem formada fá deve amar o que em fí for objetlo amã-» ^'^•7, Eíle he o meu Dogma fundamental. Aio Recreação Fi/ofajica. Coron, Mas as peíToas que vos amarem já niíTo tem merecimento , que as faz di- gnas da voíTa corrclpondencia. Baron, Meu Coronel , níío entendeis nada da Filofofía do coração. Reprefentai-vos lium lobo , correndo atnís de huma ove- lha por montes e valles , aqui fobe ao cume de hum monte , logo baixa á pro-? fundcza de hum valle ; aqui falta lium regato , lá fe fome por huma breni»a emaranhada ; aqui lhe atira hum caça- dor, li efcapa de outro, nada fe emba-r raça com os perigos , tudo por amor da ovelha, porque morre poreíla. Ora per- gunto : Eftará eíta ovelha, que ifto vê, obrigada a ter amor a elle lobo ? Coron, Por modo nenhum j a aboneccllo iílb fim. Baron» Pois que ! hum amor fó com outro amor fe paga ; fé o lobo morre de amor da ovelha , e faz por ella mil exceíTos , c fe expõe a mil perigos , ella fera in- grata fe não lhe tiver amor. Vós rides 1 Nao quero rifo , meu Coronel , quero ref- poila. Coron. E que refpoíla quereis vós , fe a não ha ? Baron. Por iíTo cu vos diíTc que vós-outros não entendeis a Filofofia do coração de Tarde dezrmve. 411 huma Senhora. Cliamais Amor , o que nao he , nem tem feir.elhança de An;or. O lobo goíta da ovelha , queria fortar- le da fua carne , que lhe hc faboroía , e tenra , &c. illo he amor de íí , mas não da ovelha. He paixão de amor do leu ventie , a pezar do cdio da mifcravel ovelha que lhe cahir nos dentes Ora não lie iílo hum retratQ do que vós chamais paixão de iVmor ? Será amor de fí meí- mo ; mas não do mifcravel objeflo que eífes lobos malditos peiíèguem. Ei^e mal- vado Zôpiro , que perlegue a honrada Ze- pohia , emi que mioílra o lèu amor ? fe lhe procura o feu maior mal ? Cego da pai- xão de amor para comíigo , não duvida íacriíicar a pobre , e defgraçada vidima á lua barbara psixão. Ifto he amor ? He hum refinado ódio , hc hum crime hor- rendo , he hum attentado efcandalofo , he huma infolencia imperdoável. Ref- pondei , fe podçis. Coron. Muitas vezes o fim de qiiçm ama huma bella Senhora , he fó o recrear-íè de cílar contemplando a fua belleza , e regozijando-fe das luas prendas ; e niílo fomente eílá cevando a fua paixão de amor. J^aron* De amor aíFim he , mas a^nor de 411 Recreação Vilofsfiea. At fi mefiTio 5 porque niíTo fe lifongea 4 íi. Ora fupponde que eíla Senhora po- lida c graciofamente attende a outro Ca- valheiro de quem elle nao gofta , ahi ten- des tudo perdido ; e talvez o amor fe volte em ódio : tudo ha-de ver ás avef- fas ; porque o afFefto primeiro nao era amor delia Senhora , era amor de íi mcfmo 5 e defcjo de fer ar tendido , c nada mais fóra do amor a íi mefmo. Meu Coronel , eu vos digo o meu fyílc- ma , que he quanto a mim fundado na Boa Razão. O aynor deve fegutr a ejii- mação 5 e a eJUmaçao o merecimento ; e aílim fe huma Senhora át juizo , e bem prendada apparece em huma aflemblea brilhante de Cavalheiros, em que ha de tudo 5 fe entre elles houver alguns de coftumes peífimos , difcurfos tolos , cx- prefsôes eiludadas , máximas erradas , pcnfamentos atrevidos, elles goílariô da Senhora , porque ell.i o merece ; e ella os aborrecerá a elles , porque elles o me- recem. Deíle modo dd-fe o fcu a feu dono. Quem merece eítimaçao feja em- bora amada ; e quem merece defprezo , feia aborrecido. lílo he o que pede a Boa Razão ; e he o que eu digo. Mas eu , Theodofio, tenho difcorrido com muito fo. Tarde ie^nove, 413 fbgo. Vós tratai o ponto com mais me- thodo , e fangue frio. Theod. Goftei que o Senhor Coronel vos ouvifle , e que admiraíle a vofTa Filofo- fia do Amor. Tratando pois o ponto qiíe pertence á noíTa Filofofia moral , e dos deveres de hum homem para com os íèus amigos 5 digo que convcm dar liuma idéa fixa do que he fcr amigo , porque muita gente troca os nomes ás cculas. Que entendeis vós , Senhora , por ami- go , amizade , amor , &c. Baron. Eu digo , que amar a hmna p^f- , foa he dejtjar^lhe feriamente o bem a ejja peJJ^oa^ E já vedes que deite modo condemno a maior parte das amizades, amores , &ic, porque defej ao o hem para fi , e nâo attendem ao hem dejja pejjoa a quem amcio» Theod, Approvo : ora Ifto poílo , vou a ex- plicar os deveres do homem para com os feus amigos. O amor de Paixão ^ ejid dito 5 que não merece corrofpondencia nenhuma* Ifto he hum Dogma infalli- vel j porque no Amor de. paixão cada qual que ama bufca o feu próprio inte- reílc, enao o bem do objedlo amado j e aílim nãõ he amor verdadeiro , he amor falfõ , c ás ve^es ódio verdadeiro* Do que 414 Recreação Tilofofica. que o mundo dá provas evidentes a ca- da paíío. Ora hum amor, que he ódio verdadeiro, e que por modo nenhum hc amor, que CGrreíÍ3ondencia merece? Baron, A correfpcndencia que merece he o defprezo , e o aborrecimento. 7heoã, Agora o Amor de ejUmaçao^ ilto he , amor com que fe dejeja o Bem ao objeílo amado , e não a fi próprio , me- rece retribuição , iílo hc, que eu defeje o bem a quem mo dcfeja a mim. Iílo pe- dc-o a Boa Razão. Baron. Mas com cautela , meu Thcodo- lio , que efta retribuição , e correfpondcn- cia he fomente para lhe dcfcar o bem, mas na o para a ajfeição arnorofa , íc ' ahi não liou ver merecimento para a cíli- mação. 7heod. Dizeis bem , Senhora ; porque he da eííencia de hum coração bem forma- do, o não amar fem eJUmaçrío \ e não cílimar fem merecmunto. Ora no cafo que vós 5 Baroneza , fuppuzeílcs (que he mui frequente) em que huma Senhora completa , cujas prendas de corpo e al- ma fejão raras , fe veja cortejada por in- dignos , miílurados brilhantemente com peíToas de merecimento : eíta Senhora de- ve íèr amada de todos , e hc juíto que to. dos Tarde dezemve, 415* dos lhe defejem o feu bem , c toda a fe- licidade ; e também ella deve defcjar a cada o^ual dos qne a cortcjao , o bem que lhes for proporcionado ; e iíto he verda- deiro amor de corrcfpondcnda. Mas aos indignos não deve tfiimaçao ^ e pcrcon- fequcncia não deve , nem pode ter amor de a ff ei cão , porque não ha merecimen- to fobre que caia. Coron, Vós-ourros tendes feito hum fyíle- ma para a Republica de Platão : são dou- trinas para corações imaginários , e não para os corações que ha neíle mundo de carne c fangue , que fó fabcm viver de amor. Baron, Coronel, crede que vós-outros não entendeis a linguagem da Razão. Vós {6 conheceis a linguagem da Paixão. Mas fiquemos niíto. Qt^iem quizer poíTuir o coração de huma Senhora ^ que ainda o eftcja de fi 5 e não eíleja preza e cati- va \ quem quizer poíTuir cite coração pu- ro 3 ha-de cuidar em merecello com pren- das cue lhe mereção a eíli mação , e nao íe contentar com incenfos de alu- guel , c obfequios de thcatro , onde quem quer os vai aprender , para os encaixar • na primeira occafião que haja. Meu Co- ronel, crede que nós conhecemos a lin- gua- 4 1 6 Recreação Filofojlca. guagem da Galanteria , e que fabcmoí mui bem que entre cem (^.avalheíros que nos obiequeao, talvez não haja nem hum verdadeiro amigo. Nós que trazemos as cabeças cnfeiíadas poríóra, não as temos calvas por dentro : ouvimos , falíamos , e cá por dentro zom.bamos ^ e rimos ; porquanto cremos que íc vós encontrais hum cento de Senhoras , a cada huma delias fazeis.os maiores obíèquios 5 e ven- deis as falias primazias , quevcsdiélao Ritual de Galanteria. Continuai, Theo- dofio 5 o ponto no cíliio que vos parece .. melhor* Theod. Para cumprir com o noíTo inteoto , digo que o amigo que 6. hc de verda- de , deve preítar ao leu amigo todo o ferviço que fe não oppce a obrigação maior. QÍucro dizer , que não fc cppoe a Deos , i alma , á Pátria , c aos pais naturaes , &c. porque eíla obrigação, hc mais forte , e nao deve ceder á pura amizade. Coron. Eu figo que fc a jímizade he ver- dadeira , deve prevalecer a tudo. Theod» Reparai que tambcm Deos he ami- go verdadeiro , também a Pátria , c os pais são amigos verdadeiros. Logo fc o direito da Amizade he na voíla opinião tão Tarde dezenoDâi ^if tão forte 5 que prevalece a tudo , deve pre-» vaiccer a Mniizade de Deos , a da Pá- tria 5 a dós pais , &G A obrigação que a Natureza nos impõe deve eftar pri- meiro que aquella que nós livremente to« ma mos. Ora o homem primeiramente foi creatura de Deos , do que amigo do feu amigo : primeiro foi filho da ratria^ e de íèu pai , do que foíTc amigo de nin* guem : logo deve eíTa amizade de obri- gação preferir á amizade de eleição» Paí» ícmos a outro ponto* %. XV. D&s deferes do homem para com os miferavsis* lèaron. I^T Ao vos efqueça) meuMeftre,' JL^I o inílruir^me nas obrigações que tem o homem a rcfpcito dos mife- raveis , porque quero faber a que eftou obrigada. Qiiero diílinguir a Generoji" dade ^ da Humanidade y e da Caridade. Wheod. Ncíla matéria , como em todas , hc razão que ouçais primeiro ò Senhor Co* ronel. Coron, E com gofto fallarci , do que os meus livros tanto nos recommcndao i c Tom. X Ee vos 41 8 'Recreação Tihfojica. vos feguro que nunca fe fizerão vafer tan^ to como na noíía Filcíbfia os íagrados direitos da Humanidade, Os novos "^i* loíofoã sao os que roais que ninguém lem cíludado , e publicado os Direitos in- contraílavcis do Homem \ pois nos fazem ver com a maior evidencia ;, que nós de- vemos confiderar a todos como irmãos , fi- lhos do mefmo pai, que heDeos, e da jnefma mãi , que he a Natureza. Eíle vinculo indiíToluvcI àc Irmãos gera hum candlcr harmónio fo de Igualdade nos piu- tuos direitos da Humanidade , que repu- gna á introduzida , e tyrannica diíreren- ça de Sêberania , Defpotifmo , Oppref- são , &c. Efta lei da Irmandade gera Igualdade y e dcíla nafce hum amor mu- tuo , terno ,^ fiel e confiante , com o qual tem o triiíeraveí , e affiiílo todo o foc- corro prompro em todos os homens j porquanto todo« o a mão como a irmião , e reípeitão como igual. Crede , Senhora , que nunca no mundo fe fez valer tanto como agora, eíle mutuo amor ào. homem para homem ^62l quem for , como na fyítema dos Filofofos novos. Baron, Nunca no mundo le apregoou mais , c nunca lè executou menos. (Veja-fe a Guilhotina num. 1512(^804.) Ora, meu . Iheo-j Tareie ãe renove. 41^ Theodofio 5 que me dizeis âo tom de apregoar pelo mundo eíla nova defcuber- ta: , e grande novidade de nos amarmos to- dos eomo irmãos ? He coufa bem nova ^ meu Coronel ! Ora o certo he, que de quando cm quando apparecem no mun- do coufas nunca fonhadas. O* meu Co^ ronel , os voPíbs Meftres fupponho que nao fabem cita novidade que vos vou a dar. Na Era de 2514 annos da Creaçao do mundo deo o Creador a Moyfés nó Monte Sinai, que fica perto do lílh mo de Suez 5 huma lei expreíla a todo o Jio* mem ; de amar os outros homens como a Ji mefmos \ e quando Deos veio ao mundo ha 1800 annos ^ mandou amar como â íi mefmos até os. noíTos inimi- gos. Bem vedes que ifto lie coufa nova ! Talvez que o Creador , e também onof- fo Rcdemptcr , aprendeíTcm dos voíTos Filofofos cila nova defcuberta! Ah meu Coronel ^ que efquecido eftais do Cate* ^ :; cifmo que na puerícia vos enfinárão ! Com que 5 ie nos quereis pregar eílè Sermão do Amor, do próximo , não efpereis ef-* mola da pregação , pcrqiie he Sermão mui velho , já o teínos ouvido muitas vezes. , M Corom Senhora , vós pegais fogo por qual- Ee ii 4juer 420 Recreaçãê Filofqfica. quer coufa. Nós cílamos em convcrfaçáo amena. Que dizeis , Theodofio ? ^heod. Eu eftou na maior confusão que fe pode dar ; porque tenho na memoria mui- tos dogmas da voíla doutrina , que defe- jo que vós me concordeis com efta lei do amor mutuo. DilTeftes os dias palia- dos que, conforme os voíTos livros , a Jen- jlhilidade fyfica , e o próprio inter ejje erão os dous ynotores do Univerfo mo^ rui. DiíTeítes que queyn bujcajjt o feu comymdo , ainda cmi perjuizo alheio y obrava louvavelmente. DiíTeíles que de- víamos bufe ar o nojjo bem ainda com perjuizo dos eutros ^ com tanto quefof' fe o perjuizo menor que ptidejje fer. Defculpaftes o furto , e outras violências , quando nos era commodo , e tínhamos ' intercíTe niíTo que faziamos , &c. Ora ^'' em tudo iílo bem fe vê que moftramos -'amor a nofibs Irmacs , e veneramos os fagrados direitos da Humanidade ^ e da ^''j Igualdade que clle tinha. Não he aílim, "^ meu Coronel ? Baron. Que tendes. Coronel , tarda-vos a • falia ! Tomai lá efte meu vidrinho : chei- rai , que vos ha-de aliviar. ' feron. Vós , Senhora , ainda nas matérias mais férias confervais o voflb ar jocoíb; Ora Tarde dí^encfve, 4tír Ora já diíTe o meu penfamento , dig;r Theodoíio agora o leu. Theod, Como ofimdeílas conferencias he. Senhora , a voíTa inftrucçao , devo di- zer-vos, que acommiíèraçáo comosnof- fos irmãos infelices he não fó preceito . de Deos , ma? também da Razão , que he também fer de Dcos por outro mo- do. Deos he Pai de todos , e os paia que derão a vida aos filhos , tem obri- gação de lhes dar alimentos , fe ellcs riao o podem procurar. Os bens do commum Pai ( tomai bem fentido ) eílão nefte mun- do ; e deílcs bens hão-de fahir os ali- tnentos dos filhos , porque a iíTo todos os bens do Pai eílão hipotecados. Sc et tes bens fe achão na mão dos ricos , tc- nhão paciência , dem ao miferavel o de que elle neceílita , que eíle encargo eílá nos bens , c não na peíToa. O pobre como he filho de Deos , tem direito aos feus alimentos , eílejao elles onde eftiverem : não lhos podem negar ; porque o Pai commum quando deo ao rico eítesbens, jâ lhos deo com eíle encargo de alimen- tar o pobre. Baron, Ora ahieíli huma doutrina clara que eu entendo ; e nella vejo que he mais obri^ gação que liberalidade o foccorrer omi«r fcravel, Theêd^ 4li Recreação Tilofojica. ^heod. Façamos niílo , Senhora, maior re- flexão. Deos creou a tudo que ha neílc Uni ver fo , e de todas as fuás creaturas cm certo modo he Pai , a todas deve fuftcntar, e a todas fuílenta. Suftenta as • aves no ar , as feras nas brenhas , os bi- chos nas tocas , e os peixes no mar. Não ha infe(ílo a quem Deos não tenha fem- pre poíla a meza neíle ou naquclle lugar , cm que lhes tem o alimento mais aná- logo e proporcionado ; e em todos cui- da a fua Providencia ; nenhum jamais percceo de fome. Só algum paflarinho nas gaiolas , porque eíTcs eílavao ao cui- dado dos homens : todos os mais que çftão ao cuidado dç Deos pafsão , e vi- vem. Ora tendo Deos tanto cuidado dos mais pequenos infeélos , e dando a to- dos alimento , não fe pode efqueccr do homem , que he a fua creatura mimofa. Mas onde eftao os alimentos do pobre, do enfermo , do cftropeado , que o não podem ganhar com o trabalho ? Onde ef- tão depofítados cíles alimentos , fenao nos bens do rico ? Logo em confcicn- cia deve dar o rico o alimento de que neceíUta o pobre. Iftohe o que mediéla a Boa Razão. Baron. E iíTo be o qiie çu entendo bem. -U4i^ 1, Nos Tarde dezenove^ 425 Nos noíTos Morgadco temos eíTa lei cm feu vigor. Mortos os pais , paíTa o Mor- gado ao filho mais velho , e eíle tem. obrigação de alimentar fcus irmãos , k proporção da forca da fua cafa , e da precisão dos filhos ; e aíTim fe julga por fentença *, e allim fe faz. Theod. Os avarentos fe defculpão da Ef- mola devida , dizendo que outros ricos ha : e que tem tanta obrigação como el- le de foccorrer o pobre, e fe defculpâo- Mas aqui ha mais que dizer : he fem dúvida que havendo na Cidade fete ri- cos V. g. , todos efies eftáo obrigados a foccorrer o miíeravel ; e quanto he de natureza , todos tem igual obrigaíjáo da eliiiola ; mas fe o pobre me pede a mim , tenho eu mais obrigação de lha dar, do que os outros a quem nao a pede; por- que elle (tendo direito á minha efmola) jna pede. Exemplo : Tendes vós , Baro- neza , íète rendeiros nas voíías fazendas ; todos elles tem igual obrigação de vosr pagar a renda convencionada ; mas fe vós a pedirdes a Francifco , e nao a pe- dirdes a Joáo 5 tem Franciíco mais obri- gação de vos pagar a renda ; porque vós tendo igual direito contra fere , por pe- dirdes a efte , tendes fobrç çlle o voíTo 424 Recreação Tilofqflca. direito mais forte , que fobre os ou- tros. Bãren, Se tendo o pobre igual direito á efmola de todos fete , e fe cada qual fc cfcufar , fica o pobie fcm foccorro , e todos diante de Deos cri mino fos de fur-» to ; porque obrão contra o direito que Deos deo ao pobre fobre os bens dos ricos. Eu não fei que goílo tem o ava- rento em juntar dinheiro e mais dinheiro. Coron. Sempre he o metal mais bonito que Deos creou. ^aroft. Pois regalem^-fe de o ver ; e para cíTe goílo baíta hum cartucho de moe-. dai : mas como nao vedes o que cftá fe- chado na arca , de que ferve o fcr metal bonito ? Ah meu Coronel ! que eíTes ri- caços não fabem que gofto tem ver mu- dar hum femblante affliélo em cara ale- gre. Eu conheci hum Inglez , homem verdadeiramente Filofofo , e por confe- guinte liberal, c de génio eíloico. Tudo fazia lá por certa razão , e nunca por coílume , ou paixão. Sempre a fua cafa citava provida fó com o neceflario , e tu- do o mais da fua renda era para outrem. Perguntado elle íè lhe baftarião duzentos mil cruzados de renda cada anno para AS fuás idcas ^ replicou fc crão bem fe-. gu^ Tarde dezemve. 42^ guros eíTes duzentos mil cruzados ; e reA pondendo-lhe que íim : calou-fe , c refle- flio 5 c depois de hum momento fahio, dizendo , que ao fegundo anno quebra- va infallivelmcntc. Cclebrou-fe com rifo a refpofta depois daquella coníideraçâo , e fatisfcz j dizendo i Eu fe me viíTe com duzentos mil cru- zados de renda bem feguros , não havia de confentir que dez léguas á roda da minha cafa houveíTc cara triílc; ora pa- ra remediar a todos , não bailava a minha renda; ç infallivelmente quebrava, e me perdia, Coron. Era verdadeiramente Inglcz. Baron* E verdadeiramente Filofofo ; e fa- bia avaliar o goíto que tem huma alma bem formada , quando acudindo ao mi- feravel , vê de repente nafccr no feu fem- blantc a alegria , e dcfapparecer a negra fombra da afflicíjão em que citava. Theod, EíTes génios aílim são humas bem próprias Imagens de Deos , que parece fazer goílo de nos enriquecer cada dia com os prefentes da fua Providencia. Coron. Ora , Senhores , trifte nova. Che- ga-me aviíb que á manhã deve marchar o meu Regimento , e não íèi para onde. Sinto perder o gofto de afliftir ás voíTas con- 426 Recreação Uilofofica* conferencias , Senhora , e de aprender do voíTo Meftre \ c devo rctirar-mc fem de- mora, Baron, He jufto , c fentimos o voíTo in- commodo. Adeos. Theod, Ora , Baroneza , vós tendes vifto como os ímpios diícorrem , e qual he o principio fobre que os feus fyílemas fem- pre rólao, que he franquear todos os di- ques das paixões, faltando por rodas as leis da Natureza , ou para fallar claro , do noíTo Creador ^ porquanto nunca os vereis contar com lei nenhuma , nem com a da Razão , nem com as leis civis, nem com as íeis da Religião. Baron* Eu tenho pafmado, que dos innu- meraveis fyílemas que elles publícao , nun^ ca nos dão fundamento folido, nem ra- zão firme. Theod, Que efcandalizado eftará o Crea* dor, vendo o máo ufo que cíles Filoíb^ fos fazem da Razão que Elle gravou nas fuás almas ! quando vir que fomente usão delia para forcejar a iiludir os feus pre-? ccitos ; e forjar outras leis inteiramente contrarias á fua Immortal, e Invariável Razão. Vós tereis obfervado que tudo quanto vos tenho enfmado , o tenho pro- vadp com a umplçs lei da Boa Razão y Tardi dezenove. 427 que ninguém pode ignorar , c ninguém a pode contradizer, Baron, Contradizer não , mas defprczar if" ío íim 5 c dizer quatro graças em con^ trario , e com iílb ir caminhando por on- de mais conta lhes faz. Tenho medita- do no diverfo modo com que vós dif- correis , e com que elles difcorrem ; e vejo que vós ícmpre ides bufcaro funda^ mento iEoa Razão y que Deos nos im- primio y e elles a liberdade , c ibitura das paixões. Mas ainda bem que eítamos li- vres do Coronel cíles tempos. TJbeod, E também as matérias principacs da Filofoíia Moral já cíláo tratadas. §. XVI. Pos deveres de hum Homem fenf^to para com os Libertinos. Baron. ^ 1 ^ Emos , Theodofio , tratado dos i deveres de hum homem para com os malvados , para com os amigos , para com os miferaveis , &c. mas ain- da me falta faber como mQ devo portar com eíTes libertinos , que a torto , c a direito querem arraílrar a gente para a libertinagem. ^f^dfid. ]ú. me tinjia lembrado iíTp, que he poqr 428 Recreação Filofojíca, ponto muito nccelTario hoje ; mas na prefença do Coronel níío fe podia levar difcurío feguldo i porcjue como havia de levar fuás cutiladaszinnas disfarçadas , e politicas , forçofamentc íè havia de doer , a dor faz dar gemidos , e ás vezes gritar , e o grito perturba a paz, e tira roda a amenidade da converiação : por ifib fui reíervando eíTa matéria para o tempo da fua aufencia. Mas pava que a fua caufa nao corra inteiramente á revelia , convi- dai voíTo Irmão o Chevalier , que he mais dócil , ou voíTo Primo o Commen- dador, e fallarcmos no ponto. ChevaL Que ajuftes sío eíTes comTheodo- íio fobre o Chevalier ? Vós em quanto cá eílava o meu Coronel não me convi- dáveis; e agora eftais contando comigo, pelo que cu ouvi da camará de noíTa mai ! Baron» Chevalier , não vos agaíleis , que fomos bons amigos : Eu fempre ouvi di- zer , que os fins de qualquer empreza de- vião concordar com os princípios. Vós aíTiftiíles ás primeiras lições que Theo- dofio me deo fobre a Ethica , agora que- ro que também aíTiftais ao remate delias. ChevaL Mas de que me ferve aíTiftir ao re- mate unicamente da voffa inítiucção, da qual Tarde dezenove^ 42^ Gual fomente ouvi ha dias o principio, iem ao menos t«r huma breve , c curta idéa do que nas voíTas converfaçces com Tiicodofio paíTaíles ? Theod, O reparo do Clievalier he juíliífi- mo , Baroncza ; e em poucas palavras cu vou a fatisfazer o que pede. Vós > Chevalier , aífiftiíles á conferencia cm que moílrámos quanto refpcito , c quanto amor devia o homem a Deos pelo que tinha feito nos Ceos para o homem uni- camente 5 c iífo fó faliando como Filo- fofo , que vê 5 e fabe obfervar ; c também pelo que Deos obrou na terra ÍÒmente para o homem. ChevaL DiíTo me lembro muito bem. Theod. Seguio-fe o tratar do que nós de- viamos a Deos pelo que o Creador ti- nha obrado no noíTo corpo orgânico , c ainda mais na nofla alma \ e com iíTo concluimos as obrigações do homem pa- ra com Deos, que era a primeira parte da Filofofia Moral. Paílamos á fegunda , que eríio as obrigações do homem para comfigo mefmo \ e eftabelecemos primei- ramente o jufto e louvável amor que hum homem fe deve ter a íi próprio , onde fe tratou do amor próprio legiti- mo c bom y e também do amor próprio dcf. 430 Recreação Tilofojíca, defordenado e baílardo : llguíráo-fe de- pois diíio como confcquencias de hum íblido principio , b condemnar o ridxu- lo fyftema do Egoifmo. Cheval, Dizeis bem , quando lhe chamais rl- diciilo , porque fómenie he tolerável na região dos PohrÕes : paíTemos adiante , porque cfle difparate nao merece a bonr ra de que feriamcnte fe impugne. Theod, Tirámos também por confcquencia a obrigação que todo o I ornem tem de confcrvar a fua vida , a fua honra, o fcii bom nome , onde fe moítrcu a loucura dos fenhores Dueliftas. Bíiron. Neíle ponto calai-vos , Chevalier , bem fabeis porque vos digo ifto.. ChevaL Sois mais velha , e além diflb , Se- nhora, obedeço. írèé'^^. Também diíTemos que cada qual de- via procurar a fua fubfiílencia pelo tra- balho , ou pela induftria , e pelos meios próprios do Teu eftado , caracl:er ^ &c* . De tudo ifto demos razão haftante, Ago- ' ra quanto á terceira parre da Filoíbfía Moral 5 que he do que refpeiía aos ou- tros homens, tratámos primeiramente da natureza do homem, quefoi creado para viver em fociedade: diíTemos depois que • ; o^ Greador lhe havia de dar leis ecmino-» -iob das Tarde ãezendve. 431 das para a confcrvaçao da focicdade , e que eftas leis devião de for tiradas da Boa Razão , e não das Paixões , nem do Interejfe Pejfoal , mas íim de preferir cada qual o Bem do comnium ao feu próprio Interejfe ; e de nao fazer aoí demais o que naogojlaria que lhe fizef- fem a elle, ChevaL Não ha leis maisfantas, nem mais racionáveis , pofto que bem fei que o Coronel liavia de repugnar muito. Va- mos ao mais. Theod, Seguio-fe o averiguar fe nas focieda- des podia haver huma rotal igualdade ; fe era indifpenfavel a fuperioridade de alguém ; e qual era o direito que tinhao a ella os pais de familias , os Soberanos cftabelecidos no Paiz de cada qual. De- pois examinámos fe a fuperioridade, e fobcrania eftava radicalmente no Povo, ou fe verdadeiramente vinha de Deos ; e ultimamente tratámos das obrigações da homem para com os malvados , para com os amigos , para com os milèra^ veis , &c. ChevaL Depois de tratardes tudo iíTo , que me reíla a mim , fenao dar-vos a vós, Baroneza , o parabém de ter recebido do nolToMeftre tâo abundante inítrucçâo. Ba- 43 i Recreação Tilofoftca. Baron, Ainda falta tratar hum ponto , e he, como íc deve portar humapcíToa de juizo cora eíles fenhorcs libertinos , que fem ferem chamados, nem provocados, procurâo infpirar-lhc todo o feu veneno, por mais innocentes que fcjao os coftu- mes que nella encontrem. Vós rides ! ChevaL Baroncza , eu devo falia r-vos em confiança , como Irmão. Sempre foi ma* xima dos perveríos , quererem engioílar o feu partido , juntando a elle muita gente. Baron, Parvoíce , meu Irmão ; pois a ver- dade triunfa como a força ? Nas coufas em que a força obra , attende-fe ao nume- ro dos braços que nclla trabalhão ; e o que dez braços não podem vencer , ven- cerão vime 3 ou trinta ; mas não he af- fim a Verdade : fe huma coufa cm fi mef- ma , e diante de Deos não he verdade, ainda que muitos teimem a dizer que he verdade , nem por iíTo ella o fera. Meu Irmão , não fejais povo , que crê aíFou- tamente tudo quanto íè diz , confidcrai nas coufas como são intrinfecamcnte , e vede fe tem , ou não alguma impoflibi- lidade; ou fe pelo contrario ha alguma razão intrinfeca , qiíe prove que he verda- de 3 c então ou approvai , ou reprovai. Aí Tarde cUí&€HOVe, '433 As vozes dos homens acafo podem mu-» dar ás couTas a íiia natureza ? Cada cou- fa he como o Creador a fez 5 c todos os homens conjurados a mudar-lhes a fua natureza , nada podem fazer neíTe ponto* Chevah Ainda aíTim os votos de muitos ^ iendo unanimes , fazem grande força pa- ra fe lhes dar credito. Baron. líío he nos factos hiíloricos , que prudentemente acreditamos apoiados íb- bre a fé humana ; porque todo o homem fe envergonha de mentir; e aílim hedif- íicil que muitos defprezem o juílo hor- roí^ que devem ter á mentir*.!. Nós fo- mente fiados neíia idéa , que he filha dá noíTa natureza , que repugna a julgar mal de muitos íein prova , he que vindo muitos a dizer que virão ^ nos animamos a crer , o que fiados em pouca gente nao crcriamos. Porém quando fe trata da Na- tureza das coufas , nada faz que muitoá digao que he , fe ella na realidade não for; porquarito por mais que fe ajudem os hom.ens em dizer que fim , nada póc , nem podem tirar na Natureza das coufas. Supponhamos que dez mil dos volTos . camaradas que forão (quando creis G?- - fahimiro real) fe ajuílaváo a dizer que a noiTa alma he mortal , e que morre com 2d;«. X. Ff o 434 R^crea§ãâ Filofofca. o corpo , como cu ouvi inuitas vezes ao noíTo defunto Tio i por ventura eíla una- nime fentença dos Militares faz que a al- ma feja mortal , quando Dcos (como fe pro- va evidentemente) afez immortal ? Que h^ logo ao ijílcma dos ímpios que eu figa ou não figa os feus difparates ? Dizei , meu Irmao j que intcrefle tem a caufa dos libertinos em que muitas Senhoras galan- tes a figão , fe iíTo nada faz , para que as coulas íejão como elles o dizem ? ChevaL Sempre os que crrao tem tal qual dclculpa 5 tendo companheiros nos erros. Baron. Eu não fallo da defculpa, fallo do erro ; e fe eu feguir hum erro eílencial, que toca immcdiatamente na minha feli- cidade 5 ou deígraça ; pergunto , fe efte erro he menor , eu fe a deígraça fe di- minue , quando fc aiigmenta o numero dos deígraçados ? Refpondei-me a iílo. ChsvaL líTo não : a defgraça íempre he a mefma , quer eu o feia fó , quer muitos deígraçados comigo. Sempre he o que he , e os ditos dos outros , ou a companhia dciles não tira , nem diminue o meu maL Baron, Logo que bem pode fazer á cauík dos libcrrinoR, que eu, ou as Senhoras, 3ue clles liíbngeão, figamos o íèu parti- o? Rçfpondci-mc. Che^ Tarde ãezenàije, 435: ChevaW^zo me aperteis tanto 3 refpondâo elles. Baron. Não lhes direis^ meu Irmão , que he loucura penfarem os homens que poír formarem os feus fyftemas hão de mu- dar a natureza ás coulas , e até á de Deos ? Mas já iílo he miuito para mim , faliai vós 3 Theodofío. Theod, EíTe argumento , que vós tendes fei- to j he o que eu naturahnente faria íè me lembraíTe ; porquanto verdadeiramen- te vai a atacar o principio furdo^ e co- mo bafe occulta dos feus procedimentos. Querem elles ver-fe foltos , e livres do freio que põem ás fuás paixões , e defor- dens 3 tanto á Luz da Razão , como á Lei Divina , como ás' Leis humanas : efte he o feu ponto cíTencial , tirar toda a prizão ; e começao por fe defembaraçar das leis humanas , e dizem que todas ellns são tyrnnnias. Eíla Proponçao nunca feouvio cm Paizes civilizados ^ mas como iílo lhes faz conta , p6e-íe nos livros , e papeis públicos 5 ajuntão muita gente que diga que fim , e promptamente fe perfuadem oue a coufa hc como elles dizem. O ca- le) he que o não provão , e que antes deíle frenezi todo o mundo dizia o con- trario > nem fe punha o ponto em dú- Ff ii vi- 43^ Recreação Filofojíca. dúvida 5 mas nâo importa , (dizem )/^i2* 7ios conta , he affini. Além diílo , hc frecífo (dizem ellcs) Uvrar-nos da Lei de Deos j e como ? ( i cA pondem) Nao admitamos que haja Lei alguma Divina ; e a'un:emo-nos muitos a dizer que Deos rao fe embaraça cd com as acções dos homens , porque iíTo não lhe eíía bem. Mas vós nao provais iíTo (lhes replicão) Nao importa (ccn- tinuão ) faz-ncs coma ( i ) : ajuntemos muitos homens que digao iTo ; e fica eílabelccido o noflb novo Decálogo ; e neílli fuppoíiçao pódc cada qual entregar- fe áè íiias paixóe>. Com eíla ientcnça íaltão tcdos de contentes. Mas fcrá iíTo aííim na realidade ? ( per- r guntará hum hon:em de juizo) Seja ^ ou ndo feja (reipondem) digamos iflb cem firmeza , digamcs quatro graças aos ve- ' lhos que diilerem o contrario , e com dous rifotes temos rcfpondiíio ás provas concludentes , que nos qucirão oppór , e fiquemos niíTo mais delcançados. Ainda mais : falta o dcfembaraçarcm-íê da Luz da Razão, que dentro de cada hum • ( 1 ) Uitcínnaire des Filo<'ophes , pag. 7. On n^ap» líorte point de preuves; mais n'importc, cetie iiar- dièíle me falisfaic. Tarde dezeitovf* 437 hum de nós clama que nao devemos v. g. fazer a hum irmão noíTo o que nós não quereriamcs que outrem nos fizefie. Efta voz he muitas vezes importuna^ e for mais que a queiramos fazer calar , nao e poíTivel o confeguilío, eaííim nos eC- tá embaraçando a fazer o quequeriamos» Ora eíles Senhores não podendo fazer em* mudecer efla voz fincera , manfa , e conC- tantc , íe querem aturdir com fyftemns, com ditos de outros 5 com certas leis for^ madas na caía de café , ou na aíTemblea de Pedreiros livre? , &c. e á força de cada hum fe dilTer a fi me imo nao he , não he , nao he , marcha defatfogado na carreira ázi paixões. Mas quando o vinho defta be- bedice moral acabar de ferver , fempre lá dentro diz a Razáo : Olha que nao vãs bem , e o remorfo refu feita. Aperta a Razão natural ^ e diz que o Ente Supremo náo fe accommodará ás leis de quatro amigos , que fe ajuílárao a dizer debaixo das bandeiras de Voltai- re , Alambert , RouíTeau, c Diderot , o que clles di-Tefiem. Deos certamente (diz a Razáo ) náo eílará pelas fuás doutrinas \ entáo o coração eftremece, e fe affufta; porquanto como cada hum depois da íiiorte fò ha-dc cahir nas mãos do Ente 438 Recreação Filofofica Supremo , e não nas dos Filofofos da moda , li lhes diz a Razão n'unia voz fubmifla, e meia abafada: E fe iffo for ejiau perdido l Para tirar eftcs cfcru pulos , vede Q que fazem : ( vós , Chcvalicr , fois tcílemunha pelo que tendes lido , e ten- des ouvido aos voíTos amigos) vede o que fazem : Pois não haja Deos* E pOr nhão-fe em Paris três cadeiras , em que publicamente feeníine que não ha Deos ^ e nunca o houve \ e que tudo ido que vemos no Univerfo íe achou feito , fem que caufa nenhuma o fizeíTc. Ora pode haver íentença mais louca? ÇhevaL Quanto a iílb íempre o tive por huma borracheira literária ; como fe a exiftenccia de Deos dcpendeíTe da licen- Ía que para iflb lhe deíTem os fenhores «"ilo fofos. ConfeíTo que muitos dizem iA lo ; mas os mais não chegap a tanto : conrentão-fe com que a alma dos ho- mens morra com o corpo , e que depois da morte nao tenhão que receber premio , nem ca (ligo do que fizerão ; e outros teimão em que Deos fe não embaraça com as obras dos homens , e que podem elíes cá no mundo fazer o que quizerem^ fem que o Senhor íè efcandalize , ncni dê por offendido. Ba. Tarde dezenove. 439 Baron. Eftes dous pontos , meu Irmão , já na voíTa aufencia eítáo bem debatidos ( I ) j c não creio que vós eítejais tão to- cado deíTa gangrena , que duvideis de artigos tão eííenciaes. ChevaL Não chega a tanto a minha tal qual adhesão a eíla moda, que entre os Militares iic a matéria da converfaçao. Thcod, Eu cuidei que vós diiíeíTeis que era a matéria da jua profunda meditação. Amigo 5 huns pontos , em que íe iníeret fa a nofla dcfgraça eterna , ou eterna felicidade , merecera huma ferie , e pro- funda confíderação ; e não meramente di* tos galantes , c zombarias de foldados, e irrisão de gente livre. Dizei-me, Che- valicr , íè fe trataíTe de anniquilar a vof- fa caía de Armçndariz , ou dç enfova- Ihar a voífa familia com algum çaíamen- to indigno , ou de vos prenderem n'u- ma torre , contentar-vos-hieis com dizer ?uatro graças na caía de café , lendo refcamente as gazetas ? ChevaL Não certamente. Theod, Pois a queftão da Immortalidade da alma , e das contas que devemos dar ao Ente Supremo que nos creou , e que nos deo ( I ) Tarde 17. §. 4. e Tarde 19. J. 2. 44<3 Remaçãâ Fihfofita. deo a lei da razão para governarmos aí noíTas acções , e a poíla vontade livre, jiao vos intçielsão, Chevalier, a vós, a mim 5 e a voíTa Irma , muito mais do que eíFas coufas que diíle ? Porventura o Ente Supremo que nos creou , e deo a vontade livre para obrar ^ mas o En- tendimento reílo para governar a vonta- de 5 conforme as luzes da Razão que lhe infundia, poderá ver com indifferen- ja que n'um convcnticulo retirado fe ajuí^ tão huns poucos de Filofofos da moda, e fern mais profundarem aseíTencias das coufas, e a natureza delias, dizem: jL/*» vremo-rms d^jle freio das penas futU' ras , e cantas a Deos , e digamos que tal não ha. Poderá Deos ver ifto com in- differcnça? ç depois quando pela morte lhe cahirem na mão eíles Filolofos , ou os feus fequazes , ficará Dços fatisfeito fe lhe diíTeiem : Senhor , os meus Mef- três yne dijferao que pela morte fe aca- bava tudo ^ ficará oCreador contente, e fatisfeito ? ÇhevaL Vós tendes bom geito para Mif^ íionario. BaroH. O cafo he íc tçm bom geito para Filofofo , e fe fabe difcorrer , e tirar de huma PropoCjão as confcqucncias devidas. Xheod^ Tarde dezenove* 441 2'heod. Eu 5 meu Chevalicr , feiripre vos criei 5 e acoítumei a ular do entendimen- to que Deos vos deo , c a não engolir contradicçóes manifeftas , efpecialmentc cm matérias que não são bagatelas , ou d,e brinco. Tudo vai , meu amigo , a pa- rar neíle dilcurío que çhamão MeJJre, l.° He precifo dar def afogo as nojjfas paixões, 2,^ Logo he precifo livrar a no ff a ijon^ ta de das leis que a reprimem, 3.0 Lego digamos quenãaéa taes leis, E aílinão todos , e fica eítabelecido que não iia leis que reprimão ai noílas pai- xões. Eis-aqui a bafe de toda a Filofo- íia da moda. ConfeíTai , Chevalier , fe no fundo do^voílò coração não entendeis que ifto lie verdade. ChevaL Que me eílais vós , minha Irmã , atraveíFando com os voílbs olhos ? Bem vos entendo. Eu não poíTo negar , Theo- doíio 3 que iíTo he aftim. "Baron, Pois então volto ao meu primeiro argumento , Chevalier. Acafo a conven- ção , eajuííe de huns poucos de homens, ou ainda de todos elles , podem mudar g Natureza das coufas ? Che^ • 442' Recreação Filofojica* Çheval. líTo nao : todos os hojncns diziao que o ar não pezava , e já neíTc tempo clle pezava tanto, como agora peza : to- dos aflenravao antigamente que náo ha- via Antípodas , e já neHe tempo os ha- via 5 como os ha agora. O ajuílc dos liomens nao tem nada com a ISJatureza das coufas , que os homens nao fízcrão , nem dependem da fua vontade. NiiTo di- zeis bem. Bflron, Eftimo que me acheis razão , c que na realidade he huma rematada loucura perfuadirem-fe eíTes difcipulos de Vokai» rc, Alambert, Rouffeau , e outros , que a noíla alma , e a vida eterna , c Jefu Chriílo 5 c o feu Evangelho dependem para íerem como Deos os fez , de que eíTes fenhorcs digao que fim ; e que alias devem proceder como fé oiada diíib fof- fe verdade. Dizei-me , Chevalier : Suppo- nhamos que todos os homens concorda^ vao que para melhor fymmetria dos nof- fos roftos 5 convinha que tiveífemos três clhos naiefta, como as mofeis, e dous narizes , e duas gargantas para nos li- vrarmos dos garrotilhos j e que iílo fica- va aíTentado geralmente por eíTa Junta , &c. Que fazia iílo para a natureza das coufas ? Por ventara ilTo fazia que dcíTe Tarde dezenove. 443 ajufte em diante naíceírem os homens de outro modo do que antecedentemente ? Vós rides ! Mais me devo eu rir de que ;as leis , e íyílcmas dos voíTos amigos mudem a natureza da alma , a natureza do entendimento , e Luz da Razão , a Natureza do Creador , a Natureza das fuás leis , &c. pois tudo iíTo iranftornao as máximas dos libertinos. Livrai-rvos , meu Irmão , de cahir em fcmelhantcs deípropoíitos : e quando quizerdes dizer iíto he 5 ou não hc , não vos fieis do que outros dizem , meditai nas razões intrin- fecas, que nafccm da natureza das cou- fas, para as acreditar, ou impugnar. Chcval. Cá levo effa lição , minha Irma : vós eftais no arguir mais adiantada do que no noflo tempo , em que Theodofio nos inílruia a todos quatro. Adeos, que fc he verdade que o meu Coronel parte , também eu devo partir , poílo que ain- . da não tive ordem. Baron, liío em breve tempo fc faberá , adeos. Mas vós , Theodofio , bem vedes que algum fruto fez no Chevalier eíla breve recapitulação da Filofofia Moral. V^heod. O Chevalier he baílantemente dó- cil 5 e tem juizo claro : a companhia dos putros he que lhe faz muito mal. VÓ5 / def. 444 Recreação Filofojica^ defcançai por ora , que cu também def- canço. E rerpondendo á pergunta de co-» mo Ic deve portar liuma peíToa fenfata com os libertinos , digo que fe devem tratar como hum enfeimo frene-ico , a quem as razões ferias xúo convencem \ porque nao eílá com juizo capaz de- as perceber , c muito menos de as ponde- rar para lhe conhecer o feu pezo. Elies de ordinário argumentao com difterios engraçados , com admirações cníaiicas, com inveílivas poedcas \ íe vos argumen- tarem neíta linguagem , rcfpondei-lhes nel- la ;■ ou dando-lhes hum rifo merecido , perguntando-lhes onde eftudárão a fua Theologia ? E dizei-lhes que cm quanta iiáo vos moítrarem Certidões authenticas do feu Doutoramento neífa Faculdade, não os reconheceis por Medres ; e tra- tai-os ncíle tom. Adeos, que voíFa mãi- vos efpera, pelo que ouço. Adeos, F I M. PRO# PROTESTAÇÃO DO AUTHOR. SE acafo ncíla Ethica , ou Filofofía dos coílumes , eícapou alguma fentença , ou doutrina , ou ainda palavra, ou fraíe, que defdiga não fó da pureza da Religião Ca- tholica Romana , Decência , ou Doutrina dos bons coíiumes , que a noíTa Thcclogia nos eníina , protcfto que a minha intenção hc, e foi 5 e íèrá fenipre não me affaílar delia n'um ápice ; e por iílo aqui me relrado, e defdigo de tudo o que tiver diíTonancia com a sã Doutrina da Cafholica e Roma- na Igreja 1 ^^ cujo feio fui crcado , e de- fejo morrer. Theodoro (P Almeida* IN^ índice Das Matérias, que fe tratao nefta Fi- lofofia Moral , ou Ethica. PARTE L Da Filofofa Moral. TARDE XVI. Das obrigações do Horrcm para com Dcos , tiradas do que Elle fez no Univerfo , para bem do Homem. §. I. T Ntroducção a eJlaObra, Pag. i. §. II. A, Da cbrigãçãG que ttm todo o Homem de conhecer a Deos, - - 7. §. III. Das obrigações do Homem para com Deos , pelo que Elle fez no Ceo^fó- medite para o Homeyn, - - - - 16. §. IV. Do refpeito que deve o Homem a Deos ^ vendo o que Deos fez noCeo^fé^ meitte para o Homem, - - - - 2Í. §. V. Das obrigações do Homem para com Deos 5 pelo que Deos fez na Terra , fú^ mente para o Homem. - - - - 34« §. Vi. Do amor que deve o Homem ao Cr e a dor pelo que fez no Globo da Ter^ Ta ^ fé para o Homem. * - - - 61* TAR- I N D í C E. TARDE XVII. Das obrigações que temos para com Deos ^ deduzidas do que Deos fez no Homem,, para com modo do Homem. §. I. T^As obrigações que deve o Ho-^ JL^ mem a Deos , pelo que Deos fez no carpo orgânico ; e primeiramen- te pela fensaçãg, ----- (5c^, §. II. Trata-fe do moviynento no corpo or-^ gãnico, 79. §. III.. Trata-fe da nutrição no corpo or- gânico, -- " - - - -- 94. §. IV. Das ohrigaçces do Homem a Deos pelo que o Senhor fez na fua alma : on^ de fe trata da fua Immort alidade ^ e Natureza. ------- 10 1. §. V. Do nojfo entendimento, - - 113- §. VI. Da nojfa vontade livre, - 1 28. §. VII. Que todo o Homem deve ter Rc" ligião. - - - - - - - - IBS'- §. VI lí. Que a Religião do Homem deve fer culto de Efúmação ^ Rendimento ^ e ' Obediência. - - - - - - -145'. §. IX. Que a Religião do Homem pede culto externo a refpeito de Deos, 148* §; X. Sobre as demonjiraçoes do culto ex* ' tisrno. -..----.-r- 165-. -Ji/,. PAR. I N D I C E, PARTE II. Da Filõfofia Moral. TARDE XVIII. Das obrigações do Homem para comligo# §. I. Tr\ O amor jujlo que todo o Ho^à Ju/ mem Je deve ter aji mef* mo. -^--.----- ij2é §. II. Da Regra que o Homem deve ter m amor a Jí mefmo. - - - - i85'* §. IIL Da obrigação que o Homem tem de confervar a jua vida e faude, 197* §. IV. Do fyjlema do Egoifmo, iflo he ^ de cuidar cada qual fomente em fi. 205'* §. V. Da obrigação que todo o Homem tem de confervar a fua Honra : onde fe trata dos Duelos* - - - - - 213. §. VI. Do defejo que todo o Homem tem de confervar a fua boa reputação» 224* §. VIL Do Suicídio 5 ou fe he licito ma^ tar-fe hum a fi mefmo , ou também ex* pórfe d morte com algum motivo. 232. §. VIII. Da obrigação que todo 9 Homem tem de ganhar o feu pão com o traba^ lho ^ ou indufiria. - - - - - 244. Tom. X Gg PAR- Índice. • ■■ «III IIMIII I* ■ ■ I II ■ II III ■ Mi PARTE IIL Da Filofofia Moral. TARDE XIX. Das obrigações do Homem para com ofií ourros Homens. Ç. I. Ç^E o Homem foi creado para vU O Der em fòciedaàe. - - 256. §. 11. Das leis que deve obfervar o Ho* mem que vive em fociedade : que não são as leis da 'Natureza , nem as das Paixões i ----.►-- 263. §. III. Se a lei do Próprio Intcreíle pode fer lei para quem viVe em fociedade. 28J» §• IV. Das primeiras leis fundamentaes para a boa fociedade. - - - 292. §. V. Se entre os Homens que vivem em fociedade pôde haver huma total Igual- dade. -----*-- 309. §. VI. Que para o bem da fociedade he precifo alguma fuper ior idade. - 322* §. VII. Da fuperioridade natural que he a dos Pais a ref peito dos filhos , e do amor mutuo que ft lhes deve, - 330* §. VI II. Dos deveres do Homem para com ê feu lentimo Soberano. - - * '^A^m §. IX. Índice. §, IX. Otíe a Soberania e Aushorídade fo- bre os homens não pôde eftar no pê- '^'o. - - - - 351. §. X. Donde prfi cede originariamente o po^ \ der f obre os homens. - - - - 363. §. XI. Dos deveres do Homem pura com as leis civis, - - - - - - 372. §. XII. Que entre as leis civis para o bem da fociedade he útil a lei da Religião, - - 582. §. Xlli. Das obrigações do Homem para cora os malvados , e ejcandalofos ; e fe he licito a vingança, - - - - 389* §. XIV. Dos deveres do Homem para com os amigos, -------403. §, XV. Dos deveres do Homem para com os miferaveis, - - - ~ - - 417. §. XVI. Dos deveres de hum Homem jen- fato para com os libertinos. - - 427. ERRATAS. Pag. i8. linh. ultima psg. 19. linh. penúltima pag. uj. linh. uhima erros emendas sáe sào quadros quadrados cabos cubos