' 4 que Moto o voos! e otnterara é emana o vs e qeat eva ra antas eus aereas cenese emesre Pra PRESS pve Wen cem abas Mars srs sc res nte Rea temer e ogia 705 IA am | SLELELASSAAAD: E A, à dotisit na é ERRA E Z j RSA Eri E VER EA ER Vea Em F PA y EU Espe A| E Mia - É f % o - É STO Museum |) “TRABALHOS DA MISSÃO SCIRNTIFICA DE EXPLORAÇÃO | INTRODUCÇÃO - RIO DE JANEIRO é “TYPOGRAPHIA UNIVERS SAL DE ia so Si Rua dos Invalidos, 61 B 1862 Discutido e approvado o projecto de uma commissão scientifica, composta unicamente de nacionaes, e destinada a explorar o interior de algumas provincias menos conhecidas do Imperio, forão logo esco- lhidos os chefes das cinco differentes secções, que a completavão ; mas “não lhe forão por então designadas essas provincias, nem o ponto de partida para o começo de seus trabalhos. Em consequencia disso os agentes do governo imperial, encarre- gados das compras do material indispensavel para transporte e estudos da commissão scientifica, se preparárão para a dupla eventualidade de uma expedição por terra e por agua. Nem faltavão boas razões que persuadissem a conveniencia de começar a expedição scientifica os seus trabalhos, navegando por algum dos nossos grandes rios, effectuando depois o seu desembarque em alguma das provincias centraes do Imperio, e d'ahi proseguindo por terra até voltar ao ponto de partida, ou ao termo que se houvesse com antecedencia limitado á sua jornada. | É certo que desde que a idéa de tal commissão foi suscitada no seio do Instituto Historico, apontou-se vagamente o norte como a parte do cs. 1 H PROEMIO Imperio menos conhecida é mais digna de ser estudada; mas de “modo tão duvidoso que bem poucos puderão suppór haver de ser a ci- dade da Fortaleza o porto do desembarque da commissão scientifica, ea provincia do Ceará aquella pela qual haverião de estrear. Foi isso comtudo o quese decidio, contribuindo não pouco para essa resolução a crença geralmente aceita de ser o solo do Ceará por ventura o mais metallifero de todo o Brasil. Em tempos antigos, a metropole o acreditára, nomeando no reinado da Senhora D. Maria o naturalista Feijó para examinar as suas minas tratar de explorar algumas dellas. O resultado correspondeu mal ás esperancas ; mas, como se tinha dado a tentativa do aproveitamento das lavras, a crença popular, longe de se desvanecer, foi creando novas raizes, por esse mesmo facto que de- veria contribuir para desvanecê-la. A obra de um escriptor de prin- cipios deste seculo, que não mereceu e mal merecia as honras da impressão, mas que existe no opulento archivo do Instituto Historico Brasileiro, mais talvez do que nenhuma outra causa concorreu para propagar-se aquella opinião entre os Cearenses e passar delles a todos os Brasileiros. O autor, * filho do Ceará, não soube achar nenhum outro meio de engrandecer a sua terra senão annunciando pompo- samente ricas minas, indícios de thesouros occultos — legados dos Flamengos — e curiosidades maravilhosas: cousas facilmente eriveis, porque erão mais proprias para ferir a imaginação do povo, do que para convencer a razão do homem reilectido. O caracter sacerdotal, de que se revestia, não daria pouca força ás suas asserções, principalmente communicando elle os seus roteiros a pessoas credulas, das quaes recebia em troca informações não menos assombrosas, que elle ia cuidadosamente registrando. Seja porém qualquer que fôr a origem desses boatos, de que não fazemos questão, a opinião de que existião grandes depositos de metaes preciosos no Ceará corria incontroversa ; e essa opinião forta- Jecia-se com existirem no musêo nacionalamostras, colhidas naquella provincia, de galena de chumbo, e uma dellas argentifera, de sul- * Padre Francisco Telles de Menezes Lima: Mappa curioso de novo descoberto, etc., MS. de 34 pag. in. 4º (1799-1806). PROEMIO HI phuretos de antimonio e de zinco, de molybdato de chumbo, deouro, cobree ferro, além de salitre, soda, potassa, pedra-hume, caparrosa e. schistos bituminosos. Pareceu portanto, e era acertado, verificar-se de uma vez por todas o que nisso haveria de real. - Partio pois a commissão para a capital do Ceará, composta de cinco chefes e dobrado numero de adjuntos; e pede a verdade que se con- fesse, que raras vezes se encontrará em tantos a abnegação, o desinte- resse, o amor de bem servir como nesses, que possuidos de louvavel enthusiasmo, apoiárão com calor a idéa de uma tal commissão, e sentirão-se honrados de fazerem parte della. Não esquecião, mas menosprezavão o perigo, com quanto soubessem que na quasi tota- lidade de expedições semelhantes, se bem que emprehendidas por estrangeiros, metade do pessoal de que se compunhão ficou por essas matas e rios em holocausto á sciencia. Não disfarcavão o amargor das privações por que ião passar, e conscios do que os aguar- dava, não se persuadirião tambem que pudessem ser acoimados de cupido interesse, quando sacrificando-se a seus commodos, sepa- rando-se de suas familias, do trato de seus amigos, da frequencia de suas relações e amizades, expunhão-se lá a todas as intemperies das estações, ao sol, ao relento, á chuva, á ausencia da sociedade, e á falta de abrigo, de alimento, e alguma vez até de agua. Lembramos estes penosos incidentes, porque nos regalos da côrte estamos mais que dispostos a duvidar de que haja quem os passe no Brasil, ou quem a elles se sujeite, senão movido pela ambição do lucro. Todos, mais ou menos, sofrerão, e alguns soffrem ainda de saude. Um delles expirou corajosamente sem abandonar o seu posto ; outro, sentindo mais aggravados os seus males com os penosos tra- balhos de que se encarregára, regressou á côrte para rematar os seus dias de modo deploravel. Outros emfim, é não poucos, retirárão-se por doentes, de modo que na volta a commissão scientifica contava cerca da metade do pessoal com que se tinha organisado . Não admira, era antes de prever que isso acontecesse a pessoas, que só por força de dedicação e boa vontade se sujeitavão aos inconve- mentes e privações de uma vida, para a qual não tinhão nascido e com que se não tinhão habituado. IV PROEMIO Admira, porém, que homens sertanejos, affeitos áquelle modo de viver agro, recuassem não poucas vezes ou se dispensassem do serviço por doentes, a tal ponto que um delles, natural de Mombaça, que acompanhava as secções geologica e ethnographica na sua primeira e mais longa excursão, falleceu no Crato, poucos dias antes que d'alli regressasse para. o seio de sua familia. Comtudo no meio das privações que passavão, e promptos para sujeitarem-se a maiores, quando fosse preciso, os membros da com- missão scientifica nunca se achárão em circumstancias de empre- hender gyro de mais larga duração que a de seis ou oito mezes ; mas nesse intervallo, apezar dos rigores da sêcca e caminhando pelos lu- gares mais assolados della, entrárão nas provincias do Piauhy, Per- nambuco, Parahyba e Rio-Grande do Norte. Quando forçados pelas circumstancias a circumscrever os limites de suas excursões, percor- rêrão a provincia do Ceará em todas as direcções, e estudarão-a em todos os seus aspectos. Fizerão sem duvida pouco, se se considera 0 muitissimo que tinhão a fazer; mas nós outros, os Brasileiros, nos temos reciprocamente em tão mão conceito, que esse pouco (afoita- mo-nos a dizê-lo) excederá, por ventura, de muito á expectação dos que mais affeiçoados e sympathicos se têm mostrado á idéa de tal com- missão, se não á escolha de seus membros. Por emquanto apresentamos um leve bosquejo historico da com- missão scientifica, seguido dos relatorios summarissimos dos trabalhos de cada uma das secções, que forão apresentados ao Instituto Historico “ e Geographico. Observaremos, porém, que a continuação não póde ter toda a regularidade, por não ser conveniente que a estudos desta natureza se dê a apparencia e o caracter precario de uma publicação periodica. Lá colligio-se, tomárão-se notas, fizerão-se observações, e pouco mais se pôde fazer do que isso. Resta agora o mais difhcil, o estudo das colecções, a consulta dos autores, a disposição das ma- terias, a revisão, coordenação e redacção das notas e observações, O que é negocio de meditação e de tempo. Uma commissão identica, organisada pelo governo austriaco, e que ha annos aqui esteve no Rio de Janeiro, na fragata Novara, viajando com outras commodidades , que não teve a commissão brasileira, e hoje de volta á Europa, habi- Sta er 2o MZ .. - v ] 4 ” ISF ondo de outros recursos, que estamos muito nes de PROBIO para isso quatro annos: e esse prazo minimo, reclamado pela ethnographica, a cargo do illustre Sr. Dr. ai e ruem pareceu excessivo. k pRonço affeitos a publicações desta fada, entre nós acontecerá elizmente o contrario. vise sbN Drag ac elle e poderiamos citar alguns outros exemplos. Pedimos venia para nos. conformarmos com elles. 4 Use k À Es ra a mais prompta execução apnesqntação de seustrabalhos, | + tado LIA ã btt dá ” Sad 414/05 y a vt Arma» 7: |, A JU abegina: fo! “ipaRA K1 | rábis q Les 4 ML 4 E t nã r Ha go ne) f E RR RR tdos auf bas o é PARTE HISTÓRICA Desde os primeiros tempos da colonisação do Brasil, quando só a violencia era capaz de abrir as portas desta colonia, tão ambicionada pelas potencias maritimas daquelles seculos, já acontecia que a terra de Santa Cruz era melhor estudada e apreciada nas viagens e relações dos escriptores estrangeiros do que nas memorias dos nossos antepas- sados. Lery, Thevet, Abeville, Ives dEvreux, Hans Staden, Baro e muitos mais, e posteriormente os escriptores hollandezes, como Piso, Marcgraff, Laet, Nieuoff, Barlous e outros dão testemunhos desta ver- dade e nos legárão valiosos documentos, cujo preço se irá cada vez mais elevando com a successão dos tempos, Franqueada a nossa communicação com os paizes civilisados de além mar, e começando 6 Brasil a ser procurado e visitado, não como presa de facil alcance, porque até então assim o tinhão considerado, mas por ser uma região tão pouco conhecida quanto digna de ser es- tudada, por ser uma fonte importante de productos variados e pre- ciosos, que se abria Ls primeira vez ao commercio e á apreciação do va PARTE HISTÓRICA mundo, aquelles factos que nos tempos coloniaes erão uma curiosi- dade notavel rematárão com a recusa do governo portuguez, intimada e recommendada aos seus agentes das governações do Brasil, para que não fosse permittido ao barão de Humboldt, nome então desconhecido, percorrer livremente o famoso Amazonas, já nessa época visitado al- gumas vezes; porém tão pouco estudado, mesmo sob o ponto de vista hydrographico, como ainda o é hoje à maxima parte dos confluentes, tributarios deste grande rio. Depois de Humboldt, porém, desde que o Brasil foi elevado á ca- tegoria de reino, e principalmente depois de constituido imperio, os estrangeiros têm tido, nem só ampla faculdade de visita-lo, pois não carecem de solicitar permissão para isso, como auxilio, recommenda- ção, protecção e favores do nosso governo; € dos particulares, quanto se póde obter de uma nação naturalmente generosa, franca e hospitaleira, posto que tantas vezes tenhão sido tão mal remunerados os seus obse- quios. As obras ácerca do Brasil, dos seus productos, dos seus pro- gressos, do seu futuro, têm depois desse tempo avultado em numero, assim como em importancia : mas aquelle facto singular que no prin- cipio assignalámos — de ser o Brasil mais e melhor conhecido pelos estranhos do que pelos nossos—se conserva no mesmo pé. Precisamos “estudar o Brasil nos autores estrangeiros, consultamos as suas cartas maritimas até na nossa navegação de cabotagem, e mesmo na apre- ciação politica dos acontecimentos remotos ou recentes da nossa his- toria o estrangeiro como que têm, na opinião publica, entre nós a primazia, e leva a palmaao nacional, bem que as mais das vezes escreva sob as inspirações deste ultimo. Comtudo, nem sempre aquelles, com quanto dedicados á sciencia. com quanto por amor della se hajão sujeitado a longas peregrinações e a fadigosas viagens, tinhão bastante rectidão e senso critico para nos julgarem sem prevenção, ou firmeza para se não deixarem levar de informações alheias da verdade, ou das primeiras impressões, que disparatavão com os habitos adquiridos e as suas idéas já formadas. Então o Sr. Varnhagen demonstrou com a sua Historia do Brasil como escriptores eminentes, mesmo Southey. apezar do incontes- PARTE HISTÓRICA IX tavel merecimento da sua grande obra, podião e devião ser em alguns pontos emendados. O erudito e consciencioso Sr. Joaquim Caetano da Silva, começando pouco depois, no seio da illustre Sociedade Geogra- phica de Paris, com as suas leituras ácerca dos nossos limites ao norte com as possessões francezas da Guyana, provou de modo evidente que o Brasil já possuia documentos de alto interesse para a nossa historia, que conheciamos perfeitamente os escriptores francezes que tratavão “dessa questão, e que os podiamos entender tão bem e criticar melhor do que os seus proprios compatriotas. O Sr. commendador Manoel Ferreira Lagos, por fim, fazendo no Instituto Historico uma larga resenha dos viajantes estrangeiros que havião percorrido o Imperio, fez sobresahir uma quantidade incrivel de factos mal estudados, de apreciações erroneas, de asserções pouco dignas de credito, cousas que lá fóra terão passado por muito curiosas, e que entre nós são verdadeiros disparates, mais merecedores de riso do que credores de séria contestação. Collocámos a analyse do Sr. Lagos no lugar de honra, não por suppor que corra parelhas ou mereça ser preferida ás obras eminentes dos Srs. Joaquim Caetano e Varnhagen ; mas, porque pelo assumpto que nos occupa e pela época em que teve as honras da leitura em algumas das sessões do Instituto Historico, foi a que mais de perto e mais directa- mente concorreu para ser adoptada a idéa da creação de uma com- . missão scientifica de exploração do interior de algumas das provincias pouco conhecidas do Brasil. E isto o que consta das actas e registros do Instituto Historico. Com aquelles e outros factos de igualimportancia, que iamos mencionando, se foi pouco a pouco enraizando e robustecendo no animo dos membros do Instituto a opinião da conveniencia de melhor conhecermos as nossas cousas, e de estudarmos e apreciarmos por nós mesmos ; porque se é de boa philosophia que o homem se conheça asi proprio, é de melhor politica que qualquer paiz trate de conhecer Os Seus recursos para saber o que possue, de os catalogar para saber onde existem, e de os aquilatar para saber quanto valem. A idéa pois de uma commissão destinada a explorar o interior de G. 8. 2 XxX PARTE HISFORICA algumas de nossas provincias menos conhecidas estava madura e a ponto de ser dada á execução. O Instituto a tomou a peito, como sempre que se trata do engrandecimento do paiz, e offereceu-a á elevada con- . sideração do governo de S. M. o Imperador. * Um homem illustre e cheio de patriotismo, que então se assentava nos conselhos da corôa, a quem já o Brasil deve muito, e a quem por fortuna deverá no futuro muito mais, o Sr. conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, então ministro e secretario de estado dos negocios do * Para o Exm. Sr. Ministro do Imperio. — Illm. e Exm. Sr.—Na ultima sessão do Instituto Histo- rico e Geographico Brasileiro, terminou o socio Manoel Ferreira Lagos a sua analyse da viagem do conde de Castelnau pelo Brasil, mostrando a urgente necessidade de fazer explorar o interior de algumas de nossas provincias menos conhecidas por uma commissão scientifica de engenheiros e naturalistas nacionaes, e apresentou em seguida uma proposta, a qual foi unanimemente appro- vada, para que o Instituto se dirigisse ao governo imperial, solicitando-lhe haja de realizar tão util, quão gloriosa empreza. , Transmittindo nesta occasião a V. Ex. a sobredita proposta, inclusa por cópia, espera O Insti- tuto que o governo imperial, possuido do mesmo zelo com que sempre tem favorecido todas as emprezas tendentes ao progresso intellectual e material do paiz, se apressará em organisar a mencionada expedição: e se me demorasse a demonstrar as innumeras vantagens, que de seus trabalhos se colheráô, faria uma offensa ao discernimento e reconhecidas luzes dos actuaes ministros da corôa. O Instituto confia igualmente que V. Ex., na qualidade de seu digno e prestante membro, lhe fará ainda o valioso serviço de activar a marcha do objecto de que trata este officio, e accrescen- tará mais este obsequio aos que já deve a V. Ex. Deos guarde a V. Ex.—Secretaria do Instituto, em 9 de Junho de 1856. —lllm. e Exm. Sr. conse- “Iheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, ministro e secretario de estado dos negocios do Imperio. (Assignado) VISCONDE DE SAPUCAHY, presidenie. Proposta a que se refere o officio supra apresentada ao Instituto Historico e Geographico Brasileiro pelo socio Manoel Ferreira Lagos, em sessão de 30 de Maio de 1856. Propomos que o Instituto Historico e Geographico Brasileiro se dirija ao governo imperial, pedindo-lhe haja de nomear uma commissão de engenheiros e de naturalistas nacionaes para explorar algumas das provincias menos conhecidas do Brasil, com à obrigação de formarem tam- bem para o musêo nacional uma collecção de productos dos reinos organico e inorganico, e de tudo quanto possa servir de prova do estado de civilisação, industria, usos e costumes dos nossos indigenas. Sala das sessões, em 30 de Maio de 1856.—(Assignados) Manoel Ferreira Lagos.—Joaquim Nor- berto de Souza e Silva. —Manoel de Araujo Porto-Alegre.—Sebastião Ferreira Soares. —Guilherme Schiúch de Capanema. — Visconde de Sapucahy.— Agostinho Marques Perdigão Malheiros. — Antonio Alves Pereira Coruja.— Antonio de Padua Fleury.—Claudio Luiz da Costa. —Conego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. —Conego Joaquim Pinto de Campos. —Dr. Francisco de Paula Me- nezes.—Ricardo José Gomes Jardim. —Francisco Manoel Raposo de Almeida.—Candido Baptista de Oliveira. —Carlos Honorio de Figueiredo.—Joaquim Manoel de Macedo. —Dr. José Ribeiro de Souza Fontes. PARTE HISTORICA XI Imperio, adoptou como sua a idéa do Instituto Historico, do qual é digno membro ; facilitou e acoroçoou a sua execução, conscio de que, se os resultados não correspondessem cabalmente aos desejos daquella associação e ás suas esperanças, ainda assim era não pequena gloria tental-o. Teve pois o Instituto Historico e Geographico ordem de indigitar as pessoas que julgasse mais habilitadas para tão ardua missão, de con- feccionar as instrucções pelas quaes estas se devessem guiar no des- empenho de suas obrigações e no decurso da sua longa peregrinação, e de as submetter, depois de revistas e consideradas por aquella illustre corporação, à final approvação do governo de Sua Magestade. A resposta do governo imperial foi prompta, porque mediárão apenas vinte e um dias entre a apresentação da proposta e a sua appro- vação. O Instituto, em ordem a obter os melhores resultados da projec- tada expedição, considerou quaes erão as materias que mais convirião que fossem estudadas, e dividiu-as em cinco classes ou secções, cada uma dellas a cargo de um chefe, com quanto, como era natural, ficas- sem todos na stricta obrigação de mutuamente se coadjuvarem. Para o desempenho destas cinco differentes secções forão propostos os Srs. conselheiro Francisco Freire Allemão, presidente da commissão e incumbido da parte botanica; Dr. Guilherme Schuch de Capanema, da geologica e mineralogica; commendador Manoel Ferreira Lagos, da zoologica; capitão-tenente Giacomo Raja Gabaglia, da astronomica e geographica; e Antonio Gonçalves Dias, da ethnographica e narrativa da viagem. Pedia o Instituto ao governo imperial que estes membros, no caso de que fosse a escolha confirmada pelo governo de Sua Magestade, indicassem os adjuntos indispensaveis para os auxiliar na sua espinhosa tarefa, assim como o desenhador, naturalista preparador e mais co- mitiva de absoluta necessidade para a expedição. Lembrando estes nomes ao governo imperial, o Instituto, segundo as suas expressões, «comprazia-se de poder lembrar a nomeação da- quelles individuos, não só pelo conhecimento que tinha da sua intel- ligencia e de se occuparem com predilecção dos ramos da sciencia XII PARTE - HISTÓRICA designados para cada um, mas ainda attendendo a que sua actividade e provado zelo pelo progresso do paiz erão garantias sufficientes do bom exito de tão ardua empreza. » Pareceu tambem conveniente que as instrucções especiaes para 0 re- gular andamento dos trabalhos de cada secção fossem formuladas por aquelles mesmos a quem teria de caber a sua execução; e nessa confor- midade os Srs. conselheiro Freire Allemão, Dr. Capanema e commen- dador Lagos apresentárão no Instituto Historico os seus respectivos pro- grammas, nos quaes aquelles senhores tanto provavão os seus conhe- cimentos nas materias de que ião ser encarregados, como a boa vontade de que se achavão possuidos para levarem a glorioso fim a em- preza, que tão corajosamente tomavão sobre os seus hombros. Houve comtudo uma excepção, filha das circumstancias. Os Srs. capitão- tenente Gabaglia e Gonçalves Dias se achavão por então em serviço na Europa, transformando-se os encargos com que alli estavão em outros, relativos á nova commissão, de que ião fazer parte. O Instituto, que tinha pressa de ver realizada a sua idéa, confiou por aquelle motivo a outros de seus membros 0 trabalho de organisar as instrucções para as secções astronomica e ethnographica. Coube a primeira dessas tarefas á vasta e profissional inteligencia do Sr. conselheiro Candido Baptista de Oliveira, e a segunda á habil penna do distincto Sr. Manoel de Araujo Porto Alegre, tão solicito dos es- tudos ethnographicos no Brasil que a elle deve o Instituto esta nova denominação. Apresentadas estas Instrucções ao governo imperial, forão plena- mente approvadas pelo Exm. Sr. conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, em data de 8 de Abril de 1857; e posto que taes instrucções já tenhão visto a luz da publicidade em differentes jornaes e perio- dicos, não será de certo inopportuna a sua inserção neste escripto, como em lugar que por direito lhe compete. INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA O INTERIOR DE ALGUMAS PROVINCIAS DO BRASIL Secção botanica. A secção botanica terá a seu cargo : 1.º O estudo dos vegetaes silvestres, particularmente o das arvores que fornecem madeiras de construcção, resinas, oleos, gômmas, ou outro qualquer producto util; e o das plantas que possão aproveitar na medicina e na industria. Indagará dos homens praticos do lugar o nome indigena e vulgar de cada vegetal, e seus usos populares. Das arvores, além dos ramos, flóres e fructos para estudo e forma- ção de hervarios, colherá amostras da madeira, resina, oleo, etc.: de tudo em quantidade suficiente para ser distribuido pelos musêos na- cionaes, e mesmo estrangeiros. Das plantas que tenham, ou se presuma terem uso na medicina e nasartes, além dos ramos, flôres e fructos, colherá de suas partes activas quanto chegue para analyse chimica e ensaios therapeuticos e indus- triaes. : XIV INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA De todos os vegetaes mais importantes colherá frutas perfeitamente maduras para sementeiras ou tentativas de cultura. De cada uma destas cousas, não se podendo na occasião colher exemplares ou productos, procurará que alguma pessoa do lugar se in- cumba de o fazer, indicando-lhe o modo de o praticar, e de remetter com segurança. Observará o aspecto geral do paiz quanto á sua vegetação primitiva ou secundaria, com relação á natureza do terreno e seus accidentes. . e ás condições meteorologicas ordinarias. Em cada localidade notará as especies que naturalmente ahi vege- tão, com o fim de concorrer para o delineamento da geographia bo- tanica do Brasil. Emfim, notará as matas mais ricas em madeiras de construcção naval, e em que seja facil a sua extracção para serem reservadas. 2.º Q estudo dos vegetaes cultivados, e o systema de cultivo adoptado no paiz: notando a qualidade das terras, as influencias atmosphericas, e quantos outros accidentes forem beneficos ou nocivos á lavoura. Secção geologica e mineralogica. No que respeita à parte mineralogica, convém colligir toda à especie de mineral que se apresente, quer em grandes massas, quer como componente de rochas. Quando sejão esses mineraes crystallisados, se deverá procurar o maior numero de individuos perfeitos, tendo em vista estabelecer a serie mais completa possivel das combinações crystallographicas. Se forem mineraes decompostos, investigar-se-ha as matrizes respectivas para obter os individuos na sua fórma e com- posição primitiva, estudando ao mesmo tempo as causas de que possa provir a decomposição actual. Do mesmo modo se averiguará, ao INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA Xv encontrar mineraes isolados, quaes os agentes que possam ter des- truido as matrizes, e se essa destruição foi geral, ou se é limitada uni- camente a certos districtos. HI] Mineraes isolados podem muitas vezes ser transportados ao longe, não só pelas aguas dos ribeiros, mas tambem pelas torrentes passa- geiras no tempo das grandes chuvas: estes mineraes devem merecer attenção muito especial, visto poderem ser indicios de vieiros ou de formação inclinada que aponta na superficie do solo, em um só ou poucos pontos. E no caso de se reconhecer esses mineraes como indícios de formação util, principalmente metallifera, serão as pes- quizas continuadas até que se encontre o tronco d'onde partirão. HI Descobertos jazigos metalliferos, se procurará determinar a sua possança, direcção, natureza da matriz, e quaesquer outras circum- stancias que possão ter influencia sobre a sua minerabilidade. Entre estas apontaremos as forças motrizes disponiveis, a quantidade e qua- lidade de combustivel que se encontre nas vizinhanças, distancias dos centros de população ou dos portos mais proximos, e meios de communicação : deve-se tambem attender ao abastecimento de man- timentos, que é uma das questões que mais poderáô influir sobre a explorabilidade de uma mina. | Considerações analogas se farão para as outras materias dignas de exploração, como marmores, cimentos, carvão de pedra, lenhitos, asphalto, schistos bituminosos que possão ser distillados para a pro- ducção de naphta, etc. IV Tambem devem ser attendidas as tradições reinantes nas diversas localidades sobre a existencia de mineraes, porque alguma lenda de ouro encantado, terrenos exhalando cheiro sulfuroso, estouros sub- terraneos, podem conduzir á descoberta de minas de pyrites em cir- XVI INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA cumstancias favoraveis para supprir de enxofre e de acido sulphurico, ou de pedra-hume, os nossos mercados, que hoje com dificuldade são fornecidos pelo estrangeiro, e trazem em dependencia muita in- dustria de grande vantagem. Importa examinar com especial cuidado todos os rios, lagos e ter- renos salgados, com vistas de achar salitre (de potossa ou soda), borax, soda, sal de Glauber, caparrosa, sal ammoniaco, etc., que valha a pena exportar sendo proximo ás costas; ou sal commum indispen- savel para o uso da população e para sustento do gado, sendo no interior. v No caso de existir mineração activa nos lugares que tem de ser visitados, ou exploração metalurgica, serão estudados minuciosamente os processos em uso, estabelecida a relação entre producto e forças consumidas, indicando-se os defeitos existentes e os melhoramentos applicaveis. vi Encontrando-se minas ou estabelecimentos metallurgicos abando- nados, serão indagadas as causas desse abandono, se dependem do empobrecimento do solo, ou de falta de gente habilitada para con- tinuar, casos frequentes na provincia de Minas, 5. João de Ypanema, ete,; e se estudará quanto fôr possivel a historia desses estabeleci-' mentos e a possibilidade de sua reanimação, fazendo um calculo approximado da producção que promettão para 0 futuro. vi Na parte geognostica ter-se-ha de proceder aos exames seguintes : 1.º A natureza das rochas, a sua composição, dimensões, direcção e fórma dos vieiros que possão conter, o rumo e a quéda que se- guem, principalmente quando stratificadas. 2.º No fendimento primitivo das rochas recommenda-se maior cui- dado em estudar como foi cheio, ajuntando todos os dados que sirvão para complemento da theoria das betas e vieiros. INSTRPCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XvIL 3º Achando-se rochas differentes, procurar-se-ha estabelecer os termos de sua superposição, e sua idade relativa. 4.º Deverãô ser reunidos todos os dados que possão fornecer es- clarecimentos sobre a destruição de formações que tenhão existido, segundo vestigios actuaes, e se os agentes destruidores forão lentos ou violentos, como aguas, erupções, terremotos ou acções chimicas locaes. 5.º Quala Ge. da decomposição presente das rochas, seus pro- ductos e por que agente é ella continuada; qual a vegetação cellular que primeira bebe sua existencia nessa decomposição, e se ella êxerce uma acção accelerante ou vagarosa; e qual é a vegetação substitutiva que se segue até a producção de uma camada suficiente para ali- mentar vegetação vascular capaz de mudar o aspecto do paiz. 6.º Os productos de decomposição deveráô ser examinados cuida- dosamente nas chapadas, nos declives, nas bacias e valles, debaixo - das aguas, porque póde-se dar o caso analogo á decomposição dos gra- nitos do Rio de Janeiro, que produzem argillas vermelhas, amarellas, azuladas e brancas, terrenos barrentos impermeaveis á agua, assim como areaes, tão differentes em apparencia, e no entretanto provenien- tes todos da mesma origem. 7.º Não se deve perder de vista a procura de fosseis de qualquer natureza que sejão, principalmente foraminiferos e infusorios, que muitas vezes representão um papel tão importante na petrographia de um paiz, além de caracterisarem perfeitamente as formações em que são encontrados. | 8.º Finalmente devem ser delineadas com cuidado as secções im- portantes do terreno, os contornos das montanhas, o maior numero de perfis. Rochas de aspecto caracteristico serão photographadas, e tambem se fará um nivelamento geologico, e um mappa, no qual se procurará marcar, com a maior exactidão que as circumstan- cias permittão, os limites das differentes formações, e os diversos Jazigos e betas que nelles se descubrão, ficando a cargo da secção astronomica fornecer as determinações geodesicas que se tornarem necessarias. C.s. 3 XVII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA vi Com referencia à agricultura, se procederá ainda a uma collecção dos differentes solos em quantidade sufficiente para que se possa determinar o seu gráo hygroscopico, de aquecimento e conservação das temperaturas, assim como as diferentes analyses chimicas. As amostras deveráô trazer as indicações seguintes: se mato virgem, capoeira, capão, pasto, alagadiço, etc., ou campo cultivado, e neste caso qual a planta que produz melhor nelle, se se acha esgotado para uma ou mais plantas, com quantas cultura se esgota, e que tempo leva a regenerar-se. Acompanharáô as ditas amostras uma porção de tronco, folhas e fructos dos vegetaes que elles de preferencia produzem, afim de que se possa analysar as suas cinzas, e determinar à priori, á vista de uma vegetação, quaes elementos se deverdô addicionar ao solo para produzir outra qualquer que se intente, servindo destarte o estudo geologico do paiz de guia ao agronomo que procure cultival-o. IX Póde dar-se o caso de haver em alguns lugares falta de agua, que sequem os rios, e seja consequencia disso a destruição da vegetação, mortandade do gado, e fome da população. Ahi deverá a secção geologica proceder a exames das localidades vizinhas, estudar todas as circumstancias que levem a suppor a existencia de agua, e então sondar o terreno para fornecimento de dados praticos para abertura de poços artesianos. Aproveitar-se-ha igualmente esse trabalho de perforamento para estudar as camadas sobrepostas do terreno, como tambem para determinar a sua temperatura em diversas profundidades, e achar a que distancia da superficie é invariavel o gráo do thermometro, e a rapidez com que o solo aquece e esfria. X Das aguas que assim forem obtidas, bem como das dos rios e fontes, se determinará a qualidade e quantidade de gazes que contenhão ; e se ellas mostrarem propriedades que mereção uma analyse mais INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XIX rigorosa, apanhar-se-ha porção sufficiente, que será concentrada com todo o cuidado afim de que se conservem os saes nellas existentes para ensaio ulterior. Nos lugares em que houver aguas mineraes se pro- cederá ás operações analyticas que indispensavelmente devem ser feitas na fonte, remettendo-se porção apanhada com as precauções necessarias para evitar perda de gazes, afim de que se verifique em algum hospital as suas virtudes medicinaes. XI Cumpre tambem determinar a quantidade de materia organica que contém as diversas aguas, e a quantidade e qualidade de materia inorganica que acarretão em suspensão em differentes épocas, para d'ahi poder calcular o volume de terras levadas annualmente pelos rios, e probabilidades que offerecem da formação de bancos ou de deltas. Attenta a difficuldade de obter essas observações em numero suffi- ciente, ou em circumstancias sempre propicias, o resultado necessa- riamente só será uma approximação á verdade, cujos limites se irão estreitando com o andar dos tempos; porém mesmo assim inexacto, póde fornecer muitos dados de grande utilidade à engenharia. XI E” conveniente estudar com cuidado a formação de bancos em rios e no mar pelas arêas transportadas pelo vento. Acontece que em alguns lugares pequenas lagõas, bebedouro de gado, são ás vezes comple- tamente obstruidas, elevando-se no seu lugar um cômoro d'arêa, e sendo este por sua vez removido deixa uma planicie sêcca, expondo assim as criações á sêde. Bosques mesmo e aldêas inteiras são ás vezes cobertas no correr de poucos annos, e uma tal destruição da vegetação e accumulação de um elemento esteril podem em curto espaço de tempo reduzir vastos districtos a inhospitos desertos. Com conheci- mento, porém, das leis a que obedece esse continuado movimento de enormes massas de arêa, se alcançará talvez impedil-o por meio do Do INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA plantio de arvoredo, como se tem praticado nas restingas do Baltico e da Hollanda, e como se tenciona mesmo ir invadindo o Sahara, á vista dos bons resultados que os primeiros ensaios produzirão. Hardy assevera que no fazer vingar as primeiras cem arvores está toda a dificuldade: á sombra e ao amparo destas as outras crescem, e com pouco trabalho. XII Nas lagôas entulhadas podem existir turbeiras que sirvão de com- bustivel, e se examinará se depositos de rios não formão lenhitos recentes. Secção zoologica. A zoologia não se limita a uma descripção simples e rigorosa dos animaes distribuidos sobre a superficie do globo terreste, grupando-os methodicamente; nem a conhecer a estructura do corpo e mecanismo de suas funcções physiologicas, seus habitos e indole, seu modo de viver e multiplicar, e transformação das especies: ella occupa-se tambem, e é o mais essencial, do proveito que as artes, a medicina e a economia domestica podem tirar das numerosas legiões de viventes que povoão o ar, a agua e a terra. Concebe-se assim quão immenso é o dominio deste ramo da historia natural, e as vantagens que resultão do seu estudo, entendido como deve ser. H Os animaes de qualquer paiz podem pois ser considerados sob dous pontos de vista: ou geralmente como objectos de historia natural, e deste modo classificados segundo algum systema particular; ou esta- tisticamente como manancial de riqueza, e apreciados segundo a sua / INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA xx1 importancia. Interessa que sejão estudados de ambas as maneiras, 0 que compete ao membro da expedição scientifica encarregado da parte zoologica. HI ; Terá portanto a obrigação de descrever exactamente todas as especies de animaes que encontrar, vertebrados ou invertebrados, com os seus nomes vulgares e synonymia dos scientificos, discriminando os exoticos dos indigenas. Notará a degeneração que no facies dos primeiros fez sofirer a transferencia do seu lugar natal, assim como as modificações relativas á côr, grandeza, costumes, etc., e o lucro que a industria tem obtido, ou provavelmente chegará a conseguir da sua acelimatação em maior escala. Quanto aos pertencentes á Fauna do paiz, averiguará o seu habitat peculiar, e a sua abundancia ou escassez, distinguindo com maior attenção os animaes imperfeitamente descriptos, ou de todo ignotos, dos que já estão conhecidos, e assignando áquelles pelos seus caracteres os lugares que lhes cabem no systema geral de Cuvier, ou outro preferido segundo a classe respectiva. IV O conhecimento dos seres organisados avulta de interesse quando se trata dos mammiferos, entre os quaes o homem encontra seus indispensaveis auxiliares, tanto pelo admiravel instincto, como e não menos pela força. A' frente deste primeiro grupo do grande typo dos vertebrados figura o proprio homem, tão semelhante áquelles pelo plano geral de sua organisação physica, mas tão superior por essa sublime intelligencia, que lhe faz contemplar orgulhoso a cadêa successiva da creação animal estendida abaixo delle até con- fundir-se na materia inorganica. Ficará porém o director da secção zoologica dispensado de tratar da anthropologia, visto estar privativa- mente sob a responsabilidade de outro membro a parte ethnographica dos trabalhos da commissão scientifica. E” entre os individuos enumerados pela mammalogia que se XXII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA “observão as mais estranhas variedades nas fórmas, bem como na estatura. Os grandes mammiferos estão quasi todos conhecidos; mas reina ainda muita incerteza quanto ás especies pequenas, e por isso abre-se um dilatado campo de descobertas a quem se dedicar ao seu exame. O estudo dos quadrupedes não se deve cingir unicamente á sua classificação methodica, como dissemos a respeito de todos os animaes em geral, pois hoje já se começa a comprehender que ella é um meio de facilitar a determinação das especies, e não constitue o fim absoluto das investigações da sciencia: importa averiguar os seus actos, as condições exteriores que se ligão á sua existencia, e a influencia que exercem sobre elles; tudo em um palavra quanto concorra a derramar novas luzes sobre a historia da sua vida. Mas entre todas as noções que se procurar adquirir, merecem primazia, por importantissimas, as que se referem aos serviços que os quadrupedes podem prestar, pois é a classe de animaes que permitte as mais numerosas applicações ás nossas necessidades : de uns nos utilisamos em quanto vivem, de outros só depois de mortos, e de muitos tanto vivos como mortos. Neste ponto bem longe estamos de haver aproveitado as riquezas que offerece o nosso fertil paiz: a somma dellas é maior do que suppomos. Não fallando dos productos unicos no seu genero, que os mam- miferos fornecem ás artes uteis e de luxo, é copioso o numero das especies selvagens que, domesticadas, augmentarião os nossos recursos alimentares. Lamenta F. Cuvier, e com razão, que a anta (Tapirus americanus) viva ainda errante nos bosques, accrescentando que quasi todos os pachydermes até hoje no estado de ferocidade tem propensão para os habitos domesticos: neste caso estão tambem todas as especies dos generos Cologenys, Dasyprocta, Cervus, etc., nos quaes se comprehendem as pacas, cutias e veados, sem fallar de outras mais ou menos apreciaveis. O mesmo se dá a respeito das aves: apenas algumas pessoas conservão, por curiosidade, em suas chacaras e quintaes, o Crax alector, e um ou outro individuo dos bellos generos Penelope, Tinamus, Psophia, etc.; mas ainda ninguem especulou sobre a sua criação em grande, imitando o que se pratica com as aves communs dos nossos mercados. Considerando nas modificações e a, = a sa eq. = E dl . INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXIII melhoramentos introduzidos pela acção do homem na organisação, funcções e habitos dos animaes domesticos, ficaremos convencidos que poucos quadrupedes mammiferos existem cuja domesticação não seja mais ou menos proveitosa. V Immediatamente após os mammiferos apparecem no extenso quadro zoologico as aves, talvez os seres animados que mais tem attrahido a attenção dos povos, já por seus costumes e maravilhoso instincto, já pela suavidade do seu canto, e sobretudo pela elegancia de suas fórmas, graça de movimentos e brilhante plumagem. A ornithologia brasileira deve por consequencia despertar a curiosidade do perscrutador da natureza, que será sempre indem- nisado com usura das suas fadigas por novas descobertas, a mór parte inesperadas. Descrevendo fielmente as aves de todas as ordens, não se olvidará de registrar quanto fôr relativo a seus habitos, sustento, reproducção, nidificação, incubação e criação da progenitura, tanto mais que os costumes da pluralidade dos passaros, maximê da America Meridional, são ainda um segredo para o homem. E como a nomenclatura desta segunda classe dos vertebrados se ache hoje bastante confusa, porque, sem fallar do abuso do neologismo, das distincções subtis nas especies e dos desmembramentos não motivados nos generos, differindo muito as aves segundo sua idade e sexos, os autores tem frequentemente tomado individuos da mesma especie por de outra diversa, dilucidar-se-ha grandes duvidas conseguindo reunir de cada uma, o que nem sempre será facil, o macho, a femea, e de ambos o novo, o adulto e o velho. A economia rural, as artes e 0 fasto pjem em contribuição e tirão grande partido de numerosas aves: é isto um assumpto merecedor de toda a ponderação para o commercio. | Com as especies que vierem preparadas é conveniente remetter, sendo possivel, os ninhos e ovos pertencentes á cada uma, que são objectos um pouco desprezados nos musêos, e todavia tão interessantes XXIV INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA para o ornithologista como as mesmas aves: é na construcção dos ninhos que ellas mais nos fazem admirar a sua industria e prevenção para que a prole não deixe de vingar. Quando na composição dos ninhos entrarem materias animaes, de que se servem certas aves, antes de guardados serão embebidos no licor de Smith, em uma solução de acido arsenioso ou de strychnina. A perfeita conservação dos ovos, principalmente dos pequenos, exige paciencia e delicadeza, e em varios autores se encontrão os processos a seguir. Nos gabinetes de historia natural a collecção de ovos não se deve restringir só aos provenientes das aves ; outrosim tem bom cabimento os dos Cheloneos. dos Saureos, dos Ophidios, etc.: é conveniente trazer isto em lembrança. Vi Entramos em outra parte da philosophia natural, bem fecunda em resultados interessantes, a ichthyologia, que tem por fito o conhe- cimento completo dos peixes, animaes muito variados, é tambem dignos em tudo de chamar a attenção do naturalista: diversidade de familias abrangendo grande numero de especies, muitas das quaes, a par dos mammiferos, das aves, nos abastecem de preciosas materias empregadas nas artes e na pharmacia; facil multiplicação em todos os climas, como está hoje exuberantemente provado pelas repetidas experiencias dos mais habeis piscicultores de França, da Inglaterra e da Allemanha; e sobretudo prodigiosa fecundidade dos individuos, a tal ponto que certas nações se alimentão quasi exclusivamente de peixes, sendo além disso o seu uso recommendado, entre outras, pelos dogmas da religião. Resalta do exposto que nunca haverá demasia de esforços tendentes ao progresso da ichthyologia, para o qual o Brasil muito póde cooperar, pois nossos mares e rios forão sempre afamados pela variedade de peixes que nelles vivem. Ás razões expendidas aceresce a não menos attendivel de achar-se o musêo nacional mui pobre neste ramo, e por isso convém formar uma boa colleeção de peixes, tanto marinhos como fluviaes, consultando na sua classificação os magnificos trabalhos INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXY de Lacépêde, de Muller, a obra monumental de Cuvier e Valen- ciennes, e notando o que se souber ácerca da abundancia daquelles animaes, do seu prestimo, maneira de procrearem, de tudo emfim quanto augmente a massa dos conhecimentos que já possuimos. Isto só se poderá obter satisfactoriamente inquirindo os melhores pescadores, fazendo o sacrificio de acompanhal-os em seus arriscados trabalhos, com preferencia depois das grandes e aturadas tempestades, e assistindo pessoalmente a essas guerras de paciencia e de astucias, tão ferteis de episodios, que, senhores dos mysterios do officio, elles dirigem contra os habitantes das aguas. Tornar-se-ha tambem indis. pensavel entreter uma correspondencia regular com pescadores de diversas paragens, principalmente das mais piscosas, dando-lhes as convenientes instrucções, e pagando com generosidade qualquer especie desconhecida que apanharem, afim de interessal-os a novas diligencias. Embora muitos peixes marinhos se encontrem por toda a parte, comtudo o maior numero pertence a certos golfos, angras ou praias; e as especies de peixes de agua doce differem, não só segundo os paizes, mas e não menos conforme os rios e lagos em que vivem. Constituindo a pescaria um avultado item na riqueza de qualquer paiz, importa observar o seu estado actual, as causas que empecem o seu progresso e os meios de removel-as, descrevendo igualmente os processos e instrumentos empregados para segurar o peixe, da mesma fórma adoptada por Duhamel e outros que escreverão sobre a pescaria pratica. A descripção desses processos e instrumentos, na qual se deverá ter em vista as quatro classes em que os dividiu Lacépéde, tornar-se-ha mais comprehensivel se fôr illustrada de desenhos exactos, ou ainda melhor acompanhada de uma collecção de modelos das diversas especies de curraes ou cercadas, redes, armadilhas, cestos ou cóvos, esteiras, etc. Com os modelos virãô tambem amostras das madeiras, cordas, fibras e outras materias de que são fabricados em ponto grande. Desnecessario é lembrar que os vegetaes usados pelos habitantes do interior, e principalmente pelos indigenas, para embriagar o peixe, serão contemplados na indagação deste assumpto, tão urgente na actualidade que o: governo imperial se acha autori- CS 4 XXVI INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA sado pelas camaras legislativas a promover a incorporação de compa- nhias para a pesca, salga e secca de peixe no litoral e rios do Brasil. vil Resta-nos fallar da quarta e ultima classe dos vertebrados, a qual comprehende os reptís, abundantissimos no Brasil, e divididos pelos erpetologistas em Cheloneos, Saureos, Batrachios e Ophidios. Recom- mendando em geral o estudo e uma collecção bem conservada de todos, lembraremos de passagem diversas particularidades relativas aos nossos ophidios. Ao horror e repugnancia que á maior parte da gente inspira a vista caapproximação das serpentes podemos attribuir a lentidão dos passos da ophiologia; mas esse horror que ellas excitão, longe de ser um motivo para nos afastarmos do seu exame, nos prepara Os mais extraordinarios espectaculos. Dificilmente acreditar-se-ha que ainda se não achão determinadas com certeza as serpentes venenosas do Brasil, cujo numero é menor do que suppõe o vulgo, no que concordão muitos observadores desprevenidos. A discrepancia dos naturalistas na classificação das serpentes bra- sileiras, assim como na'sua qualidade venenosa, procede quasi sempre da attenção dada aos nomes triviaes com que são designadas no paiz: por exemplo, appellidão indistinctamente cobra coral muitas especies bem diversas do verdadeiro Elaps coralinus: o mesmo succede a respeito da jararaca, surucucú, coninana, limpa-mato, urutú, e outras que se confundem ou varião de nomes segundo os lugares. Muito interessa a dilucidação destas duvidas, determinando rigoro- samente as especies, e juntando á cada uma a synonymia dos seus nomes vulgares. Tambem é de incontestavel transcendencia 0 conhe- cimento da força toxica das que a possuem, e não menos o dos antidotos apregoados como infalliveis para neutralisal-a. Outro ponto bem curioso, pelo qual se pronuncião a favor e contra grandes autoridades, vem a ser o decantado poder magico ou sobre- natural attribuido ás serpentes, que se acredita geralmente exercerem INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXVII em distancia uma especie de acção magnetica sobre os outros animaes que intentão prear, obrigando-os sómente com a vista a approximar-se pouco a pouco até precipitar-se nas suas fauces ; assim como o grão de fé que merecem os nossos psyllos, mandingueiros, ou curados de cobra, os quaes se jactão de possuir o segredo de brincar impunes com toda a casta de serpentes, zombando do seu veneno, e de fazel-as obedecer aos seus momos e assobios. A'cerca da fascinação dos ophidios é notavel o que se lê na Erpetologia geral de Duméril e Bibron, até hoje a mais accurada publicação sobre os reptís. Divergem tambem os autores tratando do maior comprimento a que chegão as nossas especies do genero Boa, entre as quaes sobresahe a gigantesca Sucury ou Sucuryú (Eunectes murinus, Wagler). Haverá talvez opportunidade de averiguar isto, recolhendo ao mesmo tempo as tradições reinantes entre os sertanejos relativamente a serpentes monstruosissimas, queelles attestão apparecerem em certas épocas, e de cuja força narrão prodigios dignos de exornar as viagens de Syndbad o Marinho das Mil e uma noites. Não se julgue futilidade o conhe- cimento dessas tradições teratologicas que a crença popular, sempre avida do maravilhoso, vai transmittindo de bocca em bocca: archi- vadas, quando mais não seja, servirdô de thema para a poesia brasileira. VII Passamos agora a tratar dos invertebrados, divisão vastissima que abrange os molluscos, crustaceos, arachnides, myriapodes, insectos, annelides, e termina nos zoophytos, subdivisão na qual se encontrão esses seres ambiguos, que nos trazem indecisos sobre o limite de dous reinos, esgotando a paciencia dos mais tenazes micrographos, que nelles intentão sorprender os primeiros rudimentos da molecula organica. A respeito dos invertebrados militão as mesmas razões expendidas para o estudo aprofundado dos outros animaes de organisação mais complicada : não repisaremos portanto o que fica dito, julgando ocioso especificar como se deve proceder quanto á malacologia, conchyologia, XXVIII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA helminthologia, etc. Exceptuaremos comtudo a entomologia, a qual, segundo o pensar de muitos, não é uma sciencia frivola e propria sómente para satisfazer uma vãa curiosidade, mas sim utilissima e digna de occupar os mais serios espiritos. As industrias alimentadas pelos productos dos insectos, escreveu Guérin-Méneville, dão trabalho a numerosas populações, rendem sommas consideraveis, e fazem eyrar immensos capitaes. Alguns exemplos tirados da estatistica 0 provaráô melhor : a cochonilhaindispensavel para as fabricas de França custa annualmente mais de oito milhões de francos ; e a seda dá tambem cada anno mais de 150 milhões de francos aos productores da materia prima, e uma somma mais que dupla à industria propriamente dita, pelas manipulações que necessita antes de ser entregue ao consumo. Resulta dos mais authenticos documentos, e das proprias palavras do relatorio do ministro da agricultura em 1850, que o solo francez não produz toda a seda necessaria para as fabricas, pois alli se importa por anno mais de 60 milhões só de seda desfiada, importação que tem subido prodigiosamente. Isto, e a enfermidade destruidora que tem soffrido na Europa a lagarta que prepara tão preciosos fios, explica os grandes esforços hoje empregados pela França para a acelimatação de especies exoticas de bichos da seda na Argelia. De sobejo temos dito para recommendar a indagação dos lepi- dopteros que produzem seda, devendo-se examinar qual a quantidade della fornecida por cada especie, de que vegetaes se sustentão os | bichos, qual a temperatura da provincia desde que sahem as larvas até á formação dos casulos, etc. Não se receie a prolixidade neste assumpto: convém escrever tudo quanto-se souber sobre a vida e costumes destes insectos, distinguindo as observações pessoalmente feitas das colhidas de outros individuos. O verdadeiro bicho da seda (Bombix mori, L.) não é o unico insecto que produz tão preciosa materia, como se sabe : o Dr. Chavannes publicou em 1855 o resultado de suas indagações sobre diversas especies de Saturnias, entre as quaes distingue a S. aurotae S. ethra; à primeira muito commum nosarrabaldes desta cidade, e a segunda na Bahia, fornecendo aquella uma porção de seda sete vezes mais consideravel que a do Bombix mori ou do Cynthia. INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXIX Além destas especies, possuimos outras conhecidas, e provavelmente por conhecer, de que a industria sericicola muito aproveitaria. Está hoje demonstrado que as raças de bichos da seda, como as dos outros animaes domesticos, são susceptiveis de melhoramento, e que depende da vontade do homem fazel-as dar mais seda, assim como se obteve que os bois, os carneiros e porcos dessem mais carne e gordura. Na colheita dos hymenopteros se deverá attender muito ás nossas especies de abelhas, que são numerosas, fornecem cêra em abun- dancia, e um mel mais ou menos perfumado; e com quanto se não possa avançar que.a qualidade de seus productos chegue a rivalisar com os da abelha commum (Apis mellifica), seria de desejar que se tentasse a sua exploração. Na ordem dos hemipteros existem diversos insectos do genero Coccus, que tambem produzem cêras, das quaes apparecêrão varias amostras na grande exposição geral de Paris, re- mettidas da China, e tão bellas como o spermaceti. Os insectos do sobre- dito genero são communs em todas as provincias do Brasil; já muitos curiosos tem fabricado velas com sua cêra, e isto presagia um novo ramo de comercio. Ha muitos outros insectos uteis, cujo exame não Julgamos necessario lembrar, como por exemplo as cantharidas; nem tambem o das numerosas familias prejudiciaes á agricultura, á horti- cultura, à sylvicultura e á economia domestica, que nos causão maior damno do que todas as outras classes de grandes animaes nocivos. O estudo melhor dirigido dos diversos ramos das sciencias physicas e sua applicação ás necessidades da agricultura tem produzido resultados de grande importancia, que nenhuma pessoa instruida contesta actualmente, e a entomologia é chamada a representar um papel indispensavel nas sciencias agricolas. IX - De todos as especies de animaes colligirá o numero de exemplares que entender (no caso de encontral-os em quantidade), segundo seu maior ou menor valor scientifico, tendo em vista que, além do musêo nacional desta córte, outros existem em algumas provincias, onde SEA INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA convém sejão igualmente depositados, servindo os que sobrarem para fazer-se trocas com musêos estrangeiros. Na preparação desses animaes, quer a sêcco quer mergulhados em alcool ou em outros liquidos adequados, conforme á sua natureza, cumpre que haja o maior cuidado, attendendo não só á futura con- servação, mas ainda evitando que se destruão ou deformem alguns dos caracteres exteriores, cuja falta difficultaria ou impossibilitaria depois a sua classificação. Não será muito avaliar em um quarto a perda resultante do mão methodo com que são preparados e acondicionados os objectos de historia natural. A Jnstrucção ar- ranjada pela administração do musêo de Paris, para os viajantes e empregados nas colonias, sobre a maneira de colher, conservar e remetter os productos naturaes, servirá de excelente guia; assim como, e em alguns casos melhor, o Manual do naturalista preparador de Boitard, e varios outros tratados modernos de Taxidermia, aos quaes se deverá seguir com as modificações que a experiencia propria e as circumstancias particulares do paiz aconselharem. Com quanto a chimica tenha descoberto processos infalliveis para prevenir que se corrompão e deteriorem os animaes destinados aos musêos de historia natural, todavia muitos delles, por exemplo peixes, reptís, etc., infelizmente perdem ou mudam algumas de suas bri- lhantes córes, logo ou poucas horas depois de introduzidos nos melhores liquidos preservativos, e mesmo apenas cessam de viver. Havendo certeza, ou desconfiando-se que as córes de alguns animaes viráô a alterar-se, é indispensavel fazel-os desenhar immedialamente com toda a fidelidade de colorido; e quando qualquer inconveniente 0 não permitta, recorrer-se-ha a notas por meio de uma boa escala chromatica. Se todos os viajantes naturalistas assim praticassem, mui- tas figuras de animaes, aliás de correctissimo desenho, que esmaltam as suas esplendidas publicações, não peccarião pelo lado do falso colorido, como se observa principalmente na classe dos insectos. Às estampas nas obras de historia natural não são requinte de luxo, como ha quem acredite; a iconographia quasi sempre economisa 0 tempo que pela simples leitura se perde em buscas enfadonhas e fatigantes, INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXXI e suppre muitas vezes a difficuldade de exprimir ligeiras differenças e caracteres, inexprimiveis mesmo com o soccorro da melhor termi- nologia. X Concordando todos os naturalistas na necessidade absoluta dos es- tudos osteologicos, muito mais depois que a paleontologia começou a confrontar os ossos das gerações perdidas com os das existentes em nossos dias, para mediante essa comparação simultanea inferir a que familias e generos de animaes 'pertencerão aquelles fosseis, não se desprezará a remessa de esqueletos inteiros, ou pelo menos os craneos e algumas outras peças mais importantes para as investiga- ções da anatomia comparada. Não carece que os esqueletos completos venhão armados, pois deste modo se embaraçaria sem vantagem a sua conducção, e alé mesmo nunca chegariam perfeitos; basta arru- mar em separado os ossos de cada especie differente, de maneira que não chocalhem dentro das caixas, e se damnifiquem rocando uns nos outros: este mal se corrige envolvendo-os em palha, musgo, ser- radura de madeira, ou outras substancias identicas. Uma collecção de visceras das mais essenciaes, preservadas em li- cores espirituosos, é complemento indispensavel e facil de executar- se. Não tanto nas fórmas exteriores, como na organisação interna, se deve procurar os caracteres genericos e especificos dos animaes, segundo ensina o immortal Cuvier. | XI Serão louvaveis todas as diligencias afim de que os habitantes do paiz apanhem vivos alguns animaes menos communs ou mais curio- sos, cujos habitos convenha indagar, e os remelterá para esta côrte em gaiolas apropriadas, dando aos seus conductores as instrucções competentes: entre estas se recommendará, como muito essencial, além das maiores precauções quando os animaes forem ferozes, 0 asseio das gaiolas; que se evite o excesso de alimentos, extremamente nocivo a viventes presos e privados de exercicio; e de maneira ne- XXXII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA nhuma se consinta que sejão instigados ou irritados. Quando o go- verno imperial não possa ainda realisar a idéa do digno director do Jardim Botanico, o Ex"* conselheiro Candido Baptista de Oliveira, de crear naquelle estabelecimento um parque de zoologia, á imitação dos existentes em outras nações cultas, onde melhor se sorprenda os costumes dos irracionaes das nossas florestas, e se faculte occasião de comparal-os com outros exoticos, serão esses animaes offerecidos á Sociedade imperial zoologica de acelima tação fundada em Paris, ou a algum outro nucleo do mesmo genero, lucrando assim a sciencia e a humanidade. vo xi E” da maior vantagem que o naturalista viajante lance cada noite em um livro as notas que houver tomado durante o dia, pois estas em papeis avulsos facilmente se podem extraviar. Além dos seus proprios apontamentos, transcreverá no referido jornal as informações que lhe ministrarem os habitantes do paiz, aos quaes consultará, segundo o conceito de veracidade que lhe merecerem. De continuo com a natureza diante dos olhos, elles tem occasião de observar os animaes em seu dominio, e por isso forneceráõ a respeito noticias apreciaveis. Nada omittirá de consignar por escripto, que de muito lhe servirão para o futuro as suas notas: são tantos Os objectos de que vai ficando sobrecarregada a memoria de um viajante observador, que não deve contar sempre com ella, por mais feliz que a tenha. Secção astronomica € seographica. Art. 1.º A secção da commissão exploradora, incumbida especial- mente dos trabalhos astrono.nicos e geographicos, os dividirá em duas classes distinctas; a saber : 1º classe. Esta classe comprehenderá as observações astronomicas o INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXXII e operações topographicas concernentes á determinação da posição geographica dos pontos mais importantes do territorio explorado : e tambem quaesquer exames e averiguações que se fizerem sobre ob- jectos, cujo conhecimento possa interessar directamente á geographia. 2º classe. Nesta classe entraráô os trabalhos de mera investiga- ção, que interessarem immediatarnente á physica geral do globo; e bem assim os que tiverem por objecto a suggestão de importantes me- melhoramentos materiaes, de que careção as provincias visitadas pela commissão exploradora, uma vez que tenhão elles alguma connexão com a natureza dos trabalhos incumbidos á referida secção. H “Especificação dos trabalhos da 4º classe. Art. 2.º Sendo que a commissão exploradora, no seu trajecto por mar, toque algumas provincias do Imperio, dirigindo-se áquella em que tem de encetar os seus trabalhos, convirá que a secção astro- nomica aproveite essa opportunidade para determinar a posição seographica das cidades adjacentes aos referidos portos, se fôr isso praticavel durante os dias que ahi tiver de demorar-se a expedição sclentifica. - Art. 3.º Nas observações concernentes á determinação da latitude convirá que, além da altura meridiana, outra se observe em qualquer posição da mesma estrella, antes ou depois da sua passagem pelo meridiano do lugar, e ao mesmo tempo o correspondente azimuth. A observação da altura meridiana basta por si só para determinar a latitude do lugar pelo methodo geralmente praticado, mediante o conhecimento da declinação da estrella observada. Recommenda-se porém a observação da outra altura, tomada fóra do meridiano, com a do azimuth correspondente, para o fim de che- “gar á determinação da mesma latitude, empregando os tres angulos dados pela observação, segundo a nova formula de C. Baptista, a qual dispensa o conhecimento da declinação da estrella. C. 8, [o] XXXIV INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA Este duplicado trabalho tem por objecto não sómente submetter a mencionada formula ás provas praticas, como tambem apreciar (pelas differenças que possão apresentar os resultados comparados de um e de outro processo) os effeitos da refracção astronomica, a qual de- verá affectar diversamente os elementos empregados nos dous diffe- rentes modos de operar, e talvez mesmo corrigir, em alguns casos, declinações pouco exactas, dadas pelas ephemerides astronomicas. Art. 4.º Para a determinação da longitude geodesica se fará uso dos chronometros, e das distancias lunares ao mesmo tempo, todas as vezes que estas possão ser observadas. | As longitudes assim determinadas serão referidas ao meridiano que passa pelo ponto culminante da rocha, que assignala a entrada do porto do Rio de Janeiro, denominada Pão de Assucar. A peculiar situação desse gigantesco monolitho, e mais ainda a circumstancia de achar-se elle descripto nos annaes maritimos de todas as nações, o fazem singularmente azado para indicar, por modo perduravel, a posição do nosso primeiro meridiano. Art. 5.º Afim de fixar a posição do ponto da observação, a que fo- rem reportadas a latitude e longitude determinadas, convirá oriental-o em relação a dous outros pontos notaveis, que se descubrão distinc- tamente no horizonte do lugar, pelos seus azimuths observados com o theodolito; ou, o que é a mesma cousa, pelos rumos a que de- morão aquelles dous pontos, em relação ao meridiano astronomico do lugar. Na falta dessas duas balisas naturaes, se fincaráô na-vizinhança do referido ponto da observação tres marcos de pedra tosca, de modo que apresentem a menor face rente com o chão, e sejão collocados em tres pontos quaesquer da circumferencia do circulo, cujo centro é o ponto da observação. Na direcção da vertical que passa por esse ponto, e na profundidade de cinco palmos pelos menos, se enterrará uma garrafa de vidro commum, fechada hermeticamente ao maçarico, depois de ser nella depositada uma nota escripta, contendo a expressão numerica da la- titude e longitude observadas, a variação local da agulha magnetica INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXXV de declinação, a temperatura e pressão barometrica médias do dia da observação. Esta nota será assignada pelo chefe da secção as- tronomica. Art. 6.º Uma vez chegada a commissão exploradora á provincia em que deverá encetar os seus trabalhos regulares, começará a secção astronomica por determinar, com a possivel exactidão, a posição geo- graphica da capital da mesma provincia, procedendo do modo acima descripto. “ Em todos os pontos da provincia onde houver de fixar-se tempora- riamente a commissão exploradora, a secção astronomica fará a deter- minação da posição geographicas dos lugares que o mereção na opinião della; com attenção a que taes determinações possão aproveitar para o futuro á construcção da carta geral do Imperio, ou venhão a servir de base ás operações topographicas, que forem executadas em obser- vancia da lei que decretou o tombamento das terras nacionaes. Art. 7.º Na escolha dos lugares, cuja posição geographica convirá determinar, a secção astronomica dará preferencia aos pontos situa- dos nas margens dos lagos e -dos rios, sem nunca preterir os que se referem á embocadura destes no Oceano, ou ás confluencias dos mesmos no interior do territorio. Estes trabalhos deveráô marchar de par com as averiguações rela- tivas á natureza do leito de cada um dos rios, ao volume das suas aguas, e á velocidade da sua corrente; ás condições da navegabili- dade, ou ao regimen do seu curso ; e bem assim pelo que respeita ás particularidades proprias dos lagos. dê A configuração das montanhas notaveis, ou das serranias do interior da provincia, assim como o accurado exame dos portos, bahias ou angras do seu littoral, serão objectos. comprehendidos no desenvol- vimento dos trabalhos regulares da secção astronomica. Art. 8.º Os trabalhos precedentemente especificados serão com- muns ás demais provincias, que forem visitadas successivamente pela commissão exploradora.: Entre as observações meteorologicas, conducentes a caracterisar 0 clima das diversas provincias exploradas, deverá merecer particular XXXVI INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA attenção á secção astronomica a apreciação da temperatura média e maxima local, em cada um dos mezes de regular observação. Para esse fim bastará observar o thermometro ás 9 horas da ma- nhãa, e ás 3 horas da tarde, em cada dia: visto que a média das indicações thermometricas, tomadas naquella primeira hora do dia, representa com approximação satisfactoria a temperatura média de cada mez; resultando d'ahi que a média dos dozes mezes é, sem erro apreciavel, a temperatura média annual do lugar. As indicações thermometricas tomadas ás 3 horas da tarde farão conhecer semelhantemente a maxima temperatura approximada de cada dia, a de cada mez, ea de todo o anno. O chefe da secção astronomica encarregará um dos seus adjuntos de descrever, em um livro apropriado para servir de jornal das ope- rações a seu cargo, cada um dos trabalhos executados, com a devida regularidade, e distinção das provincias a que dizem respeito, au- thenticando-os com a sua assignatura e a do referido adjunto. HI Trabalhos de investigação. Art. 9.º A secção astronomica, todas as vezes que julgar opportuno, fará uma serie de observações de alturas meridianas de um mesmo astro, em dias successivos ou interpolados, calculando a latitude geo- desica relativa a cada uma das alturas observadas por dous modos diferentes; a saber: 1º corrigindo a altura observada do effeito da refracção modificada pelas diferenças de temperatura e pressão ba- rometrica da occasião, em relação á temperatura e pressão conside- radas constantes na construcção da taboa de refracções astronomicas ; e igualmente da parallaxe, se fôr necessario, afim de deduzir desse elemento assim corrigido a latitude do lugar: 2º fazendo a dedue- ção dessa mesma latitude, sem a correcção devida ás indicações do thermometro e do barometro. A média das latitudes assim calculadas, em uma e outra hypo- INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXXVII these, fará conhecer até que ponto as variações da temperatura e da pressão barometrica poderdô influir nos resultados obtidos nas cir- cumstancias suppostas acima. Uma investigação semelhante poderá ter lugar relativamente a duas observações de alturas meridianas do mesmo astro, feitas em dous estados hygrometricos differentes da atmosphera, conservando- se proximamente constantes a temperatura e a pressão barometrica: o que fará conhecer, pelos resultados comparados, a connexão que possão ter as indicações hygrometricas com os effeitos da refracção astronomica.; se todavia a atmosphera mais ou menos impregnada de vapores exerce diversa influencia sobre o phenomeno da refracção, o que é contestado por experiencias physicas, que tem em seu favor a autoridade de homens competentes. Art. 10. A secção astronomica deverá tambem proceder a exames comparativos dos effeitos da refracção astronomica sobre as obser- vações de alturas meridianas, feitas na summidade accessivel de alguma montanha ou serra, e na planicie adjacente. E bem assim a respeito da lei do decrescimento da temperatura, em camadas diffe- “rentes da atmosphera, a par do decrescimento da pressão barome- trica, com o fim especial de verificar se em algumas circumstancias accidentaes tem lugar o facto observado por homens da sciencia, os quaes asseverão que a variação da temperatura nas camadas superio- res da atmosphera, para uma altura vertical dada, segue em alguns casos a marcha inversa da variação: da pressão barometrica; isto é, aquella crescente, quando esta decresce. Convirá por esta occasião comparar as differenças de nivel, dadas pela formula barometrica de Laplace, em differentes dias de obser- vação, com os resultados de operações hygrometricas feitas para esse fim : para assim determinar praticamente as condições em que a referida formula póde ser applicada com proveito, ou sem erro at- tendivel; o que não tem geralmente lugar quando é essa formula empregada para determinar differenças de nivel comparativamente pequenas. O extenso e accessivel plateau que corôa o cimo da serra do Ara- XXXVI INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA ripe, na provincia do Ceará, no termo da comarca do Crato, offere- cerá á secção astronomica as mais favoraveis condições talvez para levar a effeito os estudos comparativos acima indicados. Art. 11º. A secção astronomica fará observações regulares e accu- radas sobre as variações locaes da agulha magnetica, tanto pelo que respeita á agulha de declinação, em relação ao meridiano astrono- mico, como á agulha de inclinação, em relação ao plano horizontal do - lugar: determinando a grandeza média de cada um desses elemen- tos. os quaes, com a intensidade da força magnetica, deduzida das oscillações observadas, farão conhecer as condições magneticas do territorio explorado, e serviráô para verificar por outra parte os re- sultados da theoria physico-mathematica do magnetismo terrestre, em relação aos lugares da observação. Semelhantemente determinará a mesma secção o comprimento do pendulo simples que bate segundos sexagesimaes, nas differentes la- titudes em que possa ter lugar essa operação até o equador. Os re- sultados assim obtidos darão a intensidade da força da gravidade em cada uma daquellas latitudes, e farão igualmente conhecer a curva- tura do arco do meridiano, comprehendido entre o equador e o parallelo mais remoto em que se execulou a referida determinação. Art. 12º. Achando-se a commissão exploradora na provincia do Ceará. a qual sofre periodicamente o flagello de sêceas devastadoras, convirá que a secção astronomica, de accordo com a secção geolo- gica. faça alli os precisos exames de sondagem, afim de descobrir os indícios que possão servir de guia para tentar-se opportunamente a abertura de um poço artesiano, o qual (no caso de surtir effeito essa primeira tentativa) possa ser considerado como norma para a abertura de outros pocos. de que careção diversas localidades da provincia. Ha dous exemplos recentes de pocos artesianos abertos em terre- nos apparentemente analogos aos do Ceará, os quaes autorisão, pelos resultados obtidos, a que se proceda nesta provincia a tentativas desse genero; a saber. um no Esvpto e outro no deserto Sahara na Ar- gelia. Este ultimo. que fôra aberto até a pequena profundidade de INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XXXIX «cerca de 30 braças, fornece diariamente aos habitantes do lugar dous milhões de canadas de agua potavel, ou 10,000 pipas de 200 ca- nadas. Art. 13.º A secção astronomica fará finalmente, quando tiver opportunidade, um estudo accurado : 1ºsobre a conveniencia e pra- ticabilidade da abertura de communicações faceis entre os centros de producção do interior da provincia do Ceará e os seus portos; 2º sobre os melhoramentos de que carecem estes portos, para que sejão accessiveis ás embarcações que fazem o commercio directo com os paizes estrangeiros; devendo merecer-lhe particular attenção as pe- culiares condições que offerece a angra denominada « Porto de Jericoacoára » situada cerca de 30 leguas a O-N-O da cidade da Fortaleza. Secção ethnographica e narrativa da viagem. Os principaes elementos que servem para distinguir as rácas hu- manas são: a organisação physica, o caracter intellectual e me- ral, as linguas e as tradições historicas. Estes elementos diversos não tem ainda sido estudados, sobretudo relativamente aos indigenas do Brasil, de maneira a assentar em suas verdadeiras bases a scien- cia da ethnologia. Como é provavel que d'aqui a duzentos annos poucos selvagens existão no seu estado primitivo, torna-se muito pre- ciso que desde já se comece a recolher a respeito delles tudo quanto fôr possivel : até hoje isto se tem feito superficialmente. Além de que, o homem genuino americano póde ser chamado a compartilhar os bens da civilisação, e voluntariamente prestar-se á communhão bra- sileira, se empregarmos os meios consentaneos com a sua indole e constituição physiologica nos primeiros tempos. Não é necessario dizer mais para demonstrar quantas vantagens resultaráô para nós “do conhecimento perfeito dos autochthones do Brasil. XL INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA H Sendo o ponto mais importante da ethnologia, para o estudo do homem physico, o conhecimento do typo, só se poderá adquirir no- ções suficientes por meio de desenhos fidelissimos do todo, princi. palmente da cabeça, os quaes deveráõ ser tirados de face e de perfil, e mesmo de outras posições favoraveis á demonstração de certos ca- racteres proprios a distinguir um typo particular, tanto no homem como na mulher. HI Além destes estudos parciaes, importa fazer muitos e variados grupos, porque nelles melhor se comparardô as fórmas e suas varie- dades, as attitudes, as physionomias e as proporções geraes do corpo; e para mais segurança haverá o cuidado de medir grande numero de individuos adultos, assim como os seus angulos faciaes, procu- rando por essa occasião verificar se a maior abertura do angulo attesta maior inteligencia, como affirma Camper, e se a orelha inclinada para a parte posterior dá o mesmo indício, como querem muitos physionomistas. IV N Convém igualmente colligir craneos de todas as raças dos naturaes do paiz, e moldar no vivo algumas cabeças, para á vista de certos dados moraes poder verificar conjunctamente o que ha de mais posi- tivo no systema de Gall: se ha verdade nesta doutrina, a craneos- copia deverá encontrar notaveis modificações entre as diversas pro- - tuberancias do craneo do Indio selvagem e as do Indio civilisado ou do mestiço, conforme a raça predominante. V Ao tomar a medida da a!tura do corpo, será bom avaliar sua forca por meio do dynamometro, ou de qualquer outra maneira approxt- mativa, se não houver este instrumento. A attitude e a mimica do homem são indispensaveis, porque n'uma e n outra se revelam os INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XLI habitos sociaes e o temperamento individual. A posição da cabeça, dos braços e das pernas, seja no repouso, na locomoção ou no traba- lho, é muito significativa para um observador, porque por ella, pelos seus movimentos, pelo seu assento sobre o pescoço se conhece o individuo, assim como pelo modo com que move os braços, pelo que pende as mãos, e pela maneira e situação dos pés no caminhar : o ocioso tem attitudes bem differentes do trabalhador. A fórma da mão e dos pés é tambem de muito proveito no estudo das raças, e portanto deve-se moldar tambem em gesso muitos individuos, para mais placidamente estudar a differença que ha entre as fór- mas dos dedos primeiro e quinto, do calcanhar, do peito e arcada plantar, etc. vi Particularmente às mulheres, não se olvidará apanhar a fórma geral e constante dos musculos externos que revestem o sacro e a bacia, porque na fórma dos gluteos ha differenças notaveis nas raças, assim como na dos seios e sua collocação mais ou menos approximada ao sterno, e mais ou menos vizinha das claviculas: cumpre estudar as mudanças destes orgãos, que tem tão intima relação com todos os phenomenos da sua vida physica. vy Para alcancar os desenhos exactos acima recommendados, ha o excellente recurso da heliographia, que à sua presteza e fidelidade reune a vantagem de não ter prevenções favoraveis ou desfavoraveis, pois os seus resultados estão livres de toda a influencia de escola ou de maneira artistica: o instrumento produz tal e qual, e em seus desenhos se póde bem comparar as fórmas de ambos os sexos, as suas modificações nos differentes periodos da vida, nos diversos exer- cicios, e no aspecto geral da cabeça e das extremidanes, onde reside “quasi sempre o typo de uma raça. C. S. 6 XLII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA VII O estudo da lingua é um complemento necessario ao estudo dos caracteres physicos. As grammaticas e diccionarios que possuimos de algumas linguas dos indigenas, assim como varios vocabularios, ser- viráô de base nestas investigações de linguistica; e no caso de se encontrar alguma lingua nova ou dialecto extremamente profunciado, se diligenciará esboçar uma grammatica respectiva, tratando primei- ramente do verbo nos seus tres tempos fundamentaes, presente, passado e futuro, com as modificações das pessoas e do numero; de- pois do substantivo, com as variações de caso e numero, fazendo conhecer a concordancia do adjectivo com elle; os prónomes, as preposições com um ou mais regimens, e os adverbios com o verbo. Passar-se-ha após a indagar a filiação dessa lingua com outras, esta- belecendo tabellas comparativas quanto aos sons de todas as palavras que representão as primeiras necessidades da vida, o nome de todas as partes do corpo, o nome dos parentes, os que explicam os mais salientes objectos da natureza, e tambem os nomes dos numeros e a maneira de contar ; convindo exprimir os sons por não haver ortho- eraphia. Por esta confrontação de vocabulos, que representão idéas communs á especie humana, se chegará a obter alguns resultados. Muitas de nossas tribus, como por exemplo a dos Botocudos, tem uma lingua muito pobre, que contrasta com a riqueza da Guarany, possuidora de locuções para ambos os sexos IX Depois dos caracteres physicos e da linguistica se tratará dos cos- tumes relativos ao individuo e á familia em geral, estudando-o desde o seu nascimento até a sua morte: nas differentes phases da vida do homem selvagem se conhece a marcha de sua educação e o que elle é. No seu nascimento assistimos ás ceremonias familiares ; na sua infancia aos seus deleites e educação; na puberdade aos seus ensaios e inclinações; na virilidade ao seu consorcio, á INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XLIII sua vida interna e externa; e na velhice aos seus conselhos, repouso e funeral. E' mister apanhal-o em todos os seus passos, velo nos festins, na caça, na pesca, na guerra, na lavoura, e nos seus traba- lhos industriaes; assim como possuir seus cantos, suas nenias e epinicios; a fórma de todos os seus artefactos; a maneira dé fer- rar-se e pintar-se; o caracter de seus debuxos; a fórma dos seus moveis, dos seus ornatos festivos, e qualidade dos seus arrebiques. "X Não se esquecerá recolher quanto se puder ácerca de seus conhe- cimentos estrategicos, de fortificação, de medicina, de cirurgia, € de meteorologia; nem os habitos feminis em toda esta successão de cousas: são factos que ainda não forão methodica e satisfacto- riamente consignados. Procurar-se-ha igualmente o termo médio da vida do individuo de ambos os sexos, e se nos seus funeraes e inhu- mações ha differença entre o homem e a mulher. No estudo do indi- viduo está uma parte da vida social, mas esta necessita de um estudo mais amplo e desenvolvido: a planta e fórma de suas habitações particulares e dos seus aldeamentos; o arranjo de suas fortificações, o seu systema de segurança mutua, o seu commercio, os meios de que se servem para contar o tempo, e os que empregam em suas marchas para reconhecerem o caminho na volta, ou para orientar-se nas grandes emigrações. Tratar-se-ha de conhecer a extensão de sua agricultura, o modo por que a fazem, e as plantas mais usuaes de sua nutrição ; as farinhas e bebidas que dellas tiram, a qualidade destas bebidas, segundo as estações e as festas em que são usadas ; os meios que empregão na criação dos quadrupedes e aves, que os seguem por toda a parte: a este respeito ha cousas muito curiosas. XI Será curiosa a organisação de um codigozinho de todos os actos dos indigenas que se assemelhem a uma especie de direito publico ou internacional, para destacal-o do corpo de suas leis de relação domes- XLIV INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA tica ou social: nos povos analphabetos prevalece o direito consuetu- dinario. Occupando-se da parte respectiva ao commercio, cumpre avaliar pelas suas permutações qual o genero que serve de moeda ou unidade de um valor: neste ponto muito convirá saber o gráo da sua probidade commercial, porque desta se póde avaliar o seu estado moral. XI Será registrado tudo quanto se?conhecer a respeito de sua religião, crenças e superstições, procurando saber-se por que tramites passa 0 Indio que chega a ser Pagé, e se esta especie de sacerdocio é adquirida por alguma formalidade ou eventos da vida, ou se é transmittida como sciencia exoterica ou hereditaria. Outrosim interessa muito apanhar seus contos, lendas e allocuções diversas: talvez que a archeologia por meio das applicações de Vico e seus meios ordinarios possa desco- brir alguma cousa a respeito de sua origem, ou pelo menos de sua historia particular. E" igualmente de grande utilidade indagar qual a opinião em que elles nos tem, quaes suas queixas de receios fundamentaes, para estudar os meios de remover este obstaculo com o fim de chamar á industria tantos braços perdidos, e diminuir o numero de inimigos infernos. XI Além das descripções e desenhos, far-se-ha collecções de todos os enfeites, utensilios, instrumentos de musica, armas, de tudo, emfim, quanto possa servir de prova da industria, usos e costumes dos indi- genas, inclusivê suas mumias e sepulturas, reparando-se, entre outras circumstancias dignas de nota, na posição que ellas occupavam em relação aos pontos cardeaes. XIV - Quanto á parte narrativa da viagem, fará um diario circumstanciado e com toda a fidelidade, descrevendo tudo o que vir de curioso e INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XLV merecedor de memoria, durante o trajecto da commissão scientifica. No mesmo jornal irá tambem notando diariamente tudo quanto oc- correr de notavel relativo á expedição em geral, e mesmo a cada membro em particular. XV Em todas as cidades, villas ou povoações onde a commissão esta- cionar, diligenciará obter copias authenticas de documentos interes- santes á historia e geographia do Brasil, assim como extractos de noticias compiladas das secretarias, archivos e cartorios, tanto civis, como ecclesiasticos; e tambem copias de manuscriptos importantes sobre o mesmo objecto pertencentes a particulares, no caso de-lhe não serem cedidos os proprios originaes. XVI A tudo acima recommendado ajuntará, finalmente, o conhecimento do commercio interno e externo da provincia, de todos os dados estatisticos que puder, da fundação, prosperidade ou decadencia das povoações, procurando avaliar a superficie dos terrenos cultivados e incultos, e o valor das áreas occupadas ainda por florestas virgens, por capoeiras, pantanos, etc.; assim como chegar a uma probabilidade do numero de selvagens que habitam essas florestas. Palacio do Rio de Janeiro, em 8 de Abril de 1857. Luiz Penrerma po Couro Ferraz. XLVI INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA A estas instrucções para direcção de cada uma das secções juntou o governo imperial as seguintes, que servissem de regimento á com- missão durante sua excursão. Instrucções geraes para a commissão scientifica encarre- “gada de explorar o interior de algumas provincias do Imperio menos conhecidas. A commissão scientifica seguirá desta córte no vapor Tocantins, fretado pelo governo imperial para a conduzir até a provincia do Ceará, onde começarãõ regularmente os seus trabalhos; e como a demora nos portos intermedios traz augmento de despeza, é muito recommendada a sua abreviação. N é Na capital do Ceará serão, segundo as ordens dadas ao presidente da provincia, facilitados á commissão os meios indispensaveis para ella preparar-se a seguir nas suas explorações pelo interior da provin- cia. No mesmo sentido serão dadas pelo presidente da provincia ordens ás principaes autoridades dos lugares por onde tiver de passar a mesma commissão. HI A O presidente da commissão requisitará do da provincia as sommas necessarias: 1º. Para acquisição das cavalgaduras e animaes de carga indis- pensaveis ao transporte dos membros da commissão, das pessoas que os acompanham, e das caixas de instrumentos e bagagens, que deve comsigo levar: 2º. Para os alimentos e comedorias de todo o pessoal, comprehen- dendo não só as provisões que fôr indispensavel levar comsigo, mas à que tiver de despender nos lugares por onde passar ou estacionar. INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XLVIL IV “A conta das despezas realmente feitas com essas sommas será dada directamente ao thesouro nacional, acompanhada de todos os docu- mentos e dados que a justifiquem. V à o Aos chefes das secções compete escolher, por maioria de votos, não só os lugares que de preferencia a commissão deverá visitar, mas aquelles a que se deve dirigir junta, ou separadas as secções, segundo o genero de explorações a fazer nelles. | vi E” muito recommendada na provincia do Ceará a exploração mi- nuciosa de suas principaes serras, e sobretudo das extensas serranias da Hybiapaba e do Araripe, onde a tradição colloca ricas minas de metaes, e são fecundissimas nos reinos vegetal e animal. a Pe VII Da provincia do Ceará a commissão poderá atravessar, segundo fôr concordado, para quaesquer outras provincias limitrophes, cuja exploração lhe pareça mais conveniente, e para isso se expedirão as precisas ordens aos presidentes das provincias do Piauhy, de Pernam- buco, do Maranhão, da Parahyba, do Rio-Grande do Norte, de Goyaz, do Pará e do Amazonas, prevenindo-se deste modo o caso de a com- missão se dirigir a algumas dellas. VI Na occurrencia de circumstancias extraordinarias, não especifica- das nestas instrueções geraes, o presidente da commissão reunirá em conselho, ou ouvirá por escripto, se estiverem dispersos e isso parecer sufliciente, os chefes das secções para emittirem a sua opinião, podendo todavia, depois de ouvil-os, resolver como melhor lhe aprou- ver, sob sua responsabilidade. XLVII INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA IX As diferentes secções, podendo trabalhar independentes umas das outras, ficará comtudo sempre subordinados, quanto fôr possivel. os seus trabalhos á marcha geral da commissão pelo interior, e. seguirad as instrucções do presidente da commissão, tanto nos tra- balhos a executar, como na direcção que devem tomar nas explorações e pontos em que se devem reunir, datas dessas reuniões, e quanto seja possivel, o tempo a empregar em cada genero de exploração. X O presidente da commissão officiará mensalmente ao governo imperial, em dia certo do mez, marcado de combinação com a sahida do paquete, dando conta do que occorrer de interesse. Nenhum dos chefes das secções poderá ofliciar ao governo, nem fazer qualquer reclamação sobre objectos relativos á commissão, sem ser por intermedio do respectivo presidente, salvo caso: *extrordinario. XI E No caso de impedimento por qualquer motivo ou retirada do presidente da commissão, passará a fazer as suas vezes 0 chefe de secção mais idoso, quando ella estiver reunida, podendo este, no caso de se afastar do ponto marcado de reunião geral, delegar os seus poderes durante a ausencia ao chefe que estiver mais perto do sobredito ponto. XI ” “ Quando algum dos chefes se veja na necessidade de retirar-se provisoriamente, delegará os seus poderes a outro chefe para conti- nuar os trabalhos da secção ; e no caso de retirada definitiva, a commissão proporá ao governo o que julgar mais acertado a bem do serviço. INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA XLIX XIII 4 Nenhum membro da commissão poderá ausentar-se sem licença do presidente da mesma, o qual só a concederá no caso de molestia grave; e se de seu livre arbitrio o fizer, incorrerá nas penas de de- sobediencia á autoridade. O presidente da commissão necessita tam- bem da permissão do governo imperial para retirar-se. XIV Com quanto a commissão scientifica se ache dividida em cinco secções, cada uma incumbida de trabalhos especiaes, fica porém enten- dido que todos os membros se deveráô coadjuvar mutuamente naquilo que estiver ao seu alcance, e circumstancias particulares 'o requi- sitarem. * bio ii a Os adjuntos ás secções tem a restricta obrigação de se emprega- rem exclusivamente nos trabalhos que lhes forem designados pelos seus respectivos chefes, que são os responsaveis pelos bons resultados dasecção. k XVI Se nos pontos por onde passar a commissão apparecerem algu- “mas pessoas estudiosas, que queirão acompanhal-a, poderá ella an- nuir a esse desejo, quando entender poder fazer sem prejuizo dos trabalhos, e uma vez que com taes companheiros nada tenha a des- pender o thesouro nacional. Xv Jo A commissão poderá conservar em seu poder, até que regresse, os productos colligidos durante a viagem, ou remettel-os immedia- tamente para esta côrte, se o julgar mais acertado. Isto se entende G. s. 7 Lo INSTRUCÇÕES PARA A COMMISSÃO SCIENTIFICA porém sómente a respeito daquelles objectos, cujo conhecimento não interesse ser logo conhecido do governo ou do publico. XVII Sendo um dos principaes fins da commissão scientifica examinar todos os recursos naturaes dos lugares por onde atravessar, quer per- tenção ao estado, quer a particulares, a commissão se esforçará por conseguir que os particulares lhe não ponhão estorvos, antes con- sinfão nos exames necessarios em suas propriedades. Sendo porém estes do governo ou terrenos devolutos, nenhuma autoridade ou empregado do mesmo governo porá estorvos ás suas investigações, como se ordena na portaria annexa a estas instrucções. XIX Poderá a commissão obsequiar aos proprietarios de qualquer terreno explorado, fornecendo-lhes o resultado de seus exames respectivos, quando não haja algum inconveniente que aconselhe o contrario, do que dará parte ao governo imperial. XX Se por ventura a commissão descobrir alguma mina, cuja explo- ração seja vantajosa ao estado, com o maior segredo, sendo possivel, expedirá logo para esta córte um portador seguro, dando conta da descoberta, acompanhada de todas as informações que julgar ne- cessarias, e fará tambem ao presidente da provincia as participações ' convenientes a tal respeito. XXI Na triste hypothese de apparecer com intensidade o cholera, a febre amarella ou outra qualquer epidemia, em algum lugar onde esti- ver a commissão, ou mesmo em outro ponto da provincia em que haja falta de soccorros, cumpre que os medicos empregados na commis- são prestem todo o auxilio, não só com os seus conselhos, mas até. Tae E = Caco. sr PENAS l INSTRUCÇÕES PARA- A: COMMISSÃO SCIENTIFICA LI fornecendo gratuitamente aos indigentes os necessarios medicamentos que possão ter á sua disposição, e deveráô occupar-se dos enfermos, suspendendo todas as suas outras obrigações, se fôr preciso. XXII O presidente da commissão dará por findos os trabalhos da mesma quando consultando os chefes de secção, por maioria de votos elles concordarem. j O prazo porém de dous annos, que o governo imperial marca, poderá ser prorogado se a commissão, por intermedio do seu presi- dente, representar a necessidade dessa prorogação. XXI O presidente da commissão avisará com a precisa antecedencia ao presidente da provincia, donde tencione regressar á esta córte, assim como ao governo imperial, afim de que se possa providenciar para a sua conducção por mar, bem como das cargas que a acompanharem. XXIV “No regresso da commissão, o chefe da secção astronomica poderá separar-se della, e vir tocando em diversos pontos, afim de cumprir o determinado nas suas instrucções especiaes; e qualquer dos chefes das outras secções poderá tambem tomar igual arbitrio para fazer algumas averiguações e colheitas relativas a seus estudos. XXV Não aconselhando as circumstancias a medida do artigo antece- dente, o vapor que trouxer a commissão poderá demorar-se nos portos intermedios os dias indispensaveis á secção astronomtica para con- cluir as suas observações; e seguirá viagem logo que o presidente da commissão se entender com o commandante, e neste sentido serão dadas as competentes ordens. XXVI E E” finalmente desnecessario recommendar aos membros da com- missão scientifica que empreguem quanto estiver ao seu alcance para manter a disciplina entre as pessoas, que como artifices, trabalha- dores, arrieiros, tropeiros ou camaradas, levão em sua companhia, e | assim evitar qualquer motivo de desgosto, por mais leve que seja, dos habitantes dos lugares por onde transitarem. Palacio do Rio de Janeiro, em 25 de Janeiro de 1859. Sercio Teixeira DE MACEDO. Não bastava haver-se creado a commissão . Os seus preparativos, com que desde o principio se occupavão as pessoas que della já fazião parte, era assumpto de séria consideração, tanto porque o excesso seria um embaraço de mais em uma viagem porterra, como porque a falta poderia ser daquellas que não terião re- medio nos sertões do Brasil. O Sr. Lagos na córte se encarregára de comprar o que fosse de necessidade para o transporte da commissão, ficando o capitão-tenente Gabaglia e Gonçalves Dias incumbidos do mais que devesse ser preparado na Europa, onde ambos por então se achavão. Cabe aqui mencionar não só actividade desenvolvida pelo Sr. Lagos com a acquisição e acondicionamento dos objectos de seu encargo, mas principalmente o zelo, a inteligencia e o cuidado minucioso e previ- dente do capitão-tenente Gabaglia com a compra e verificação dos delicados instrumentos geodesicos e astronomicos, que já hoje estão servindo em outras commissões, ou vão ser depositados nos estabeleci- mentos nacionaes, a que se podia confiar a sua guarda e conservação. ai a MAR " “ ] PARTE HISTÓRICA LHI O capitão-tenente Gabaglia, Já conhecido e apreciado por algumas pessoas da Europa, dessas que fazem vulto na sciencia, obteve por essa occasião louvores, que lhe serão sobremodo lisongeiros pela compe- tencia das pessoas que lh'os dirigirão ; louvores que não forão inu- teis na Europa para 0 credito da commissão brasileira, porque assim deu ella uma idéa gantelosa do bem que comprehendia o desempenho de suas obrigações. * Isto foi negocio de tempo, e não era possivel abrevial-o sem incon- veniente. Preparado emfim tudo para o embarque, houve a idéa de que uma das canhoneiras da nossa marinha fosse posta á “disposição da com- missão scientifica para o seu transporte; porém surgirão dificuldades, ante as quaes foi preciso dar-se de mão a esse projecto, e adoptar novo conselho. O vapor Tocantins, da Companhia brasileira de navegação, expres- samente fretado para conducção do pessoal e transporte da bagagem da commissão scientifica, largou desta córte no dia 26 de Janeiro de 1859, e com prospera e rapida viagem, demorando-se apenas nos portos intermedios da Bahia e Pernambuco o tempo necessario para 0 embarque do carvão, fundeou em frente da cidade da Fortaleza a 4. do mez seguinte. Todo o pessoal da commissão se mostrava cheio de enthusiasmo com a idéa de que 1ão prestar um serviço relevante ao seu paiz, al- * Para não citarmos muitos exemplos : Baeyer, o distincto companheiro de Bessel em trabalhos importantes de geodesia e astronomia, e que naquella primeira sciencia pousão justamente, se não como creadores della, ao menos como autoridades de muito peso ; Baeyer, dizemos, dirigindo-se ao capitão-tenente Gabaglia a 28 de Junho de 1858, rematava a sua carta : « Le zêle louable que vous éprouvez, Monsieur, pour les sciences, notamment pour la géodesie, et les études profondes dont vous m'avez donné des preuves dans nos conversations, m'ont fait si grand plaisir, que je suis bien faché de n'avoir pas eu "honneur de faire votre connaissance plustôt ; voila pourquoi je me sens obligé de vous exprimer mon grand désir de rester avec vous en communication scientifique. Si vous vouliez de temps en temps me donner des nouvelles sur les opérations géodesiques de votre pays, vous me feriez grand plaisir, et si je pourrai à présent ou à Pavenir vous être utile dans vos travaux, vous me trouverez toujours prêt à vous servir de Rd ceeur et avec infiniment de plaisir. « J'ai Phonneur etc, — Baeyer. — Berlin, ce 28 Juin 1858. » LIV PARTE HISTORICA mejavão com veras o momento de entrar em exercicio, e confiavão não tanto em um possivel lance da fortuna que os illustrasse, como no zelo, na boa vontade, no amor patrio de que se achavão animados. Todavia essas esperanças e projectos se anuviavão com as noticias que grassavão no Rio, á partida da commissão, de que a provincia do Ceará estava nesse anno ameaçada da sêcca — noticias que se corro- borárão em Pernambuco. Fallava-se alli da intractabilidade dos caminhos por falta de aguas e de pastos, da carestia dos generos de primeira necessidade, e de animaes de carga, pela magreza e peste do gado, e outras desagra- daveis circumstancias, que a se realizarem, porião a commissão em sérias difficuldades para dar começo e proseguir na sua espinhosa tarefa. Por fortuna se forão desvanecendo aquelles receios: a chuva, que é o principal elemento da prosperidade da provincia do Ceará, começou a cahir apenas o vapor Tocantins chegava á altura do Assú, e continuou d'ahi por diante, regular e abundante, como nos melhores invernos. Com mais felizes auspícios não podia a commissão entrar na pro- vincia. Era Deos e o governo de Sua Magestade que se amerceiavão daquelle abençoado torrão ! Não convinha de nenhum modo demorar o vapor para não sobre- carregar os cofres publicos com mais essa despeza, quando por amor da economia não tinhão a secção astronomica e outras podido levar a execução à parte das suas instrucções relativa aos portos a que tocas- sem por escala. Apezar do mão tempo, nesse mesmo dia e nos dous seguintes se effectuou o desembarque do trem e bagagem transpor- tada pelo vapor, a qual se depositou em um dos armazens da praia, em quanto não era possivel transferil-a para a parte devoluta do edi- ficio do « Lycêo Cearense » onde havia local conveniente, espaço e commodos bastantes para os trabalhos das diferentes secções. Activou-se a descarga dia e noite, e tudo se achava concluido em tres dias. Esse desembarque, que em quaesquer outras cireumstancias não deixaria de infundir receios ás pessoas conhecedoras e praticas do porto PARTE HISTORICA LV da Fortaleza, tornava-se agora muito mais perigoso com a continuação das chuvas e ventanias, principalmente no dia 5, em que veio para terra a parte da carga mais melindrosa e de mais preço, que erão os instrumentos da secção astronomica. O proprio administrador da provincia tomou espontaneamente parte nesse afan, acudindo com a sua pessoa ao lugar do desembarque, dando as mais energicas pro- videncias, quaes cabião nos acanhados recursos da terra, e desvelan- do-sé para que este tentamen, começado com tão felizes auspícios, não viesse a naufragar sem resultados, de modo tão deploravel. Decerto que a commissão se dissolveria com o aniquilamento da sua bagagem, por não ser de presumir que o governo imperial se animasse a ordenar de novo tantos dispendios. Eraentão presidente do Ceará o Sr. Dr. João Silveira de Souza, cujo nome, por muitos titulos distincto, folgamos de mencionar nesta abre- viada relação. Homem de uma bella intelligencia, de estudos varia- dos, e, em objectos que proxima ou remotamente tocão á prosperidade do seu paiz, de uma boa vontade que não carece de ser esporeada, o Sr. Silveira de Souza despiu-se do seu caracter official, como quem não precisava delle para as attenções que lhe erão devidas, e recebeu a commissão scientifica como bom amigo e companheiro — de braços abertos, oferecendo a sua mesa a todos por alguns dias, e franca hos- pitalidade ao infeliz Gayoso, que tendo-se embarcado doente no Rio, chegára ao Ceará anda mal convalescente. Effectuado o transporte do trem da commissão— do armazem da praia, onde havia sido depositado, para a ala direita, então devoluta, do Lycêo Cearense, restava verificar se apezar das muitas cautelas tomadas na Europa e no Rio de Janeiro para o bom acondicionamento desses objectos, muitos delles frageis e delicados, não haveria uma ou muitas perdas irreparaveis a lamentar. Procedeu-se logo no Lycêo á abertura dos fardos e desencaixotamento dos effeitos que continhão, os quaes forão sendo distribuidos e inventariados nas secções a que pertencião. D'ahi resultou a certeza de se não haverem inutilisado senão vidros de pouco valor e alguns instrumentos meteorologicos. Este mesmo transtorno, porém, era pouco sensivel á secção astro- LVI PARTE HISTORICA nomica, incumbida de taes observações: porque o seu chefe trou- xera de prevenção sobresalentes em numero suficiente para ir sup- prindo as perdas que se darião de necessidade em longas viagens por terra. O pessoal da comissão scientifica, que desembarcou no Ceará a 4 de Fevereiro de 1859, se achava assim distribuido : Secção botanica, dirigida pelo presidente de toda a commissão, o Sr. conselheiro Francisco Freire Allemão, tendo por adjunto o Dr. Manoel Freire Allemão . Secção zoologica, a cargo do Sr. commendador Manoel Ferreira La- gos, tendo por ajudantes os naturalistas preparadores João Pedro Villa-Real e Lucas Antonio Villa-Real, além de poucos outros em- pregados de categoria inferior, como fossem caçadores, etc. , Secção geologica, a cargo do Dr. Guilherme Schúch de Capanema, sendo seu adjunto o capitão João Martins da Silva Coutinho. Secção astronomica e geographica, tendo por chefe o capitão-tenente Giacomo Raja Gabaglia, e por adjuntos os primeiros tenentes d'armada João Soares Pinto, Basilio de Siqueira Barbedo, e de engenheiros Cae- tano de Brito de Souza Gayoso e Dr. Agostinho Victor de Borja Castro. Secção ethnographica e narrativa da viagem confiada a Antonio Goncalves Dias. E além desses, o professor de desenho na escola de marinha, o tenente José dos Reis Carvalho, que acompanhou as secções zoologica e botanica nas suas excursões. | Um artifice trabalhador de metaes, em vez do concertador de ins- trumentos que o chefe da secção astronomica e geographica requisi- tára. ; : na E por fim, seis praças do corpo de artifices, exercendo diversas profissões mecanicas. | O pessoal da commissão scientifica se completou posteriormente com a vinda de mais dous adjuntos para a secção astronomica, OS Srs. capitão Antonio Alvares dos Santos Souza e 1º tenente d'enge- nheiros Francisco Carlos Lassance Cunha, com a do Sr. Dr. Francisco PARTE HISTORICA LVIT de Assis Azevedo Guimarães, encarregado de trabalhos especiaes e adjunto á secção ethnographica, e por fim com a chegada do chefe da secção geologica Dr Guilherme Schúch de Capanema, a 3 de Junho de 1859, nas proximidades da partida da commissão para o interior da provincia. í Quanto a estes dous adjuntos que accrescerão á secção astronomica, cabe ponderar que o Sr. capitão-tenente Gabaglia, ao receber a sua nomeação para dirigir aquella secção, e sendo-lhe perguntado na mesma occasião o de que carecia para a cabal execução de suas instruc- ções, pediu terminantementeoito adjuntoseuma canhoneira. Chegando ao Rio, foi-lhe ponderada a necessidade de resumir o pessoal de sua secção, e elle mesmo se convenceu da difficuldade de os obter no numero e nas condições em que os desejava. Contentou-se pois com os quatro, que embarcaárão no Tocantins, pedindo mais dous sómente, e insistindo pela remessa da canhoneira, como por vezes lhe aconte- ceu, depois disso, e ainda do Ceará em data de 12 de Marco de 1859. Copiamos o trecho do officio do chefe da secção astronomica, ácer- ca de tal assumpto. « Cabendo-me o dever de salvar no futuro minha responsabilidade perante o sabio e elevado conceito do governo impe- rial, venho reiterar as requisições supra designadas (dos adjuntos e canhoneira), cumprindo-me ponderar que quanto maior fôr a dilação na remessa dellas, não só mais demorados e dispendiosos serão os re- sultados colhidos pela secção astronomica e geographica, como tambem provavelmente elles terão de passar por modificações prejudiciaes. « Solicito como é o illustrado governo de Sua Magestade em favo- recer o desenvolvimento de toda a idéa util ao paiz, ouso esperar que se darão promptas ordens para fazer effectivas as concessões feitas , as quaes tenderáô principalmente a tornar exequivel a obtenção de dados indispensaveis ao estudo da hydrographia destas provincias, assumpto que envolve a discussão de questões essenciaes para sua de- vida prosperidade commercial, e para seu progresso industrial. - O que neste officio respeitosamente allegava o chefe da secção astronomica era de toda a exactidão : as reclamações que nelle se mencionavão, erão concessões Já feitas ; mas, se nunca se realizou a cs b g nd Ea o. oO LVHI PARTE HISTÓRICA remessa da canhoneira, * ao menos aguelles dous adjuntos já havião sido nomeados por decreto de 13 de Janeiro de 1859. O capitão Santos Souza, demorado na Bahia por motivos de molestia, só pôde seguir para o seu destino no ultimo paquete de Abril, e pouco mais tarde o 1º tenente Lassance. + O fallecido Dr. Francisco de Assis Azevedo Guimarães aportou ao Ceará em Junho (requisitado pelo Sr. Goncalves Dias). Este senhor, incumbido de uma das secções da commissão scientifica, teve como os outros seus collegas insinuação do governo imperial para indicar o de que precisasse, pessoal ou material, em ordem ao bom desempenho da sua tarefa. Na sua volta da Europa. e já de partida para o Ceará, levou elle ao conhecimento do governo que, não desejando de modo algum o augmento do pessoal da commissão, sem ser a isso levado pelos mais justos motivos, se abstinha por emtanto de fazer o pe- dido de um adjunto. Accrescentava porém que , se no começo de seus trabalhos se visse embaraçado por semelhante falta ; se a experien- cia lhe demonstrasse a indeclinavel necessidade de um adjunto, pedia = As duas instrucções, remettidas da Secretaria = Imperio a 10 de Maio mediante pedido dos membros da commissão, dizião assim: « 4º secção. — Rio de Janeiro. — Ministerio dos negoeios do Imperio, em 44 de Maio de 1859. — Em. additamento ao meu Aviso de 2 de Abril proximo passado, commanieo a V. S. que se está apromp- tando a canhoneira Ivahy destinada ao servico dos trabalhos hydrographicos da commissão scientifica de exploração, e que logo que estiver prompia seguirá para essa provincia. « Deos guarde a V. S. — Sergio Teixeira de Macedo. — Sr. presidente da commissão scientifica de exploração. » « 4 Secção. — Rio de Janeiro. Ministerio dos negocios do Imperio. — Communicando a vm. que Sua Magestade o Imperador foi servido nomeal-o adjunto á secção ethnographica e narrativa da viagem da commissão scientifica de exploração, tenho de declarar-lhe, para sua intelligencia e execução, que o mesmo Augusto Senhor ha por bem que nas oecasiões, em que não estiver occupado de trabalhos de sua secção, que lhe forem incumbidos por seu chefe, e sempre que lh'o fôr possivel, Ym. sob a immediata direcção do presidente da dita com- missão, se empregue em fazer preparações de anatomia comparada e em estudar as epizootias dos animaes domesticos, que durante sua excursão tiver occasião de observar, das quaes apre- sentará ao governo imperial, por intermedio do referido presidente, um relatorio minucioso sobre as circumstancias geraes & especiaes em “que ellas se tiverem desenvolvido, sobre os symptomas mais caracteristicos das enfermidades, sobre os meios therapeuticos mais geral- mente usados e que a experiencia houver sanccionado, descrevendo com a maior exactidão as plantas indigenas não conhecidas na materia medica da veterinaria, que forem empregadas com mais vantagem para debellal-as. Deos guarde a Ym. — Sergio Teixeira de Macedo. — Sr. Dr. Fran- cisco de Assis Azevedo Guimarães. (Copia conferida a 10 de Maio de 1859). » PARTE HISTÓRICA LIX a permissão de apresentar então esse pedido á consideração do gover- no imperial. Realizada a hypothese apenas instaurados os trabalhos da commissão seientifica, porque nesses primeiros tempos todo o seu expediente recahiu sobre o chefe da secção elhnographica, requisitou elle um adjunto, em officio de 23 de Fevereiro dirigido ao presidente da commissão, lembrando para esse lugar o nome do Dr. Assis. Foi transmittida essa requisição ao Sr. ministro do Imperio, eS. Ex. acquiesceu ao pedido ; mas lembrando que o adjunto nomeado, aliás pedido por indeclinavel necessidade do serviço, teria muitos momen- tos de folga, encarregou-o conjunctamente de trabalhos especiaes, sob a inspecção immediata do presidente da commissão. Deste modo se ampliou a idéa do Instituto com a creação de mais uma quasi secção, incumbida de trabalhos que naturalmente pertence- rião ás outras já creadas. A pessoa encarregada deste servico se achava tambem em uma posição, que se não era falsa, não tinha sido bem definida. Sujeito á direcção do presidente da commissão para o seu encargo especial, adjunto á secção ethnographica, e tendo posterior- mente de acompanhar a pedido do respectivo chefe em suas excursões a secção astronomica, á qual faltava um medico , o Dr. Assis, apezar do seu grande zelo e actividade, de que deu boas provas nos poucos mezes que lhe sobrárão de vida, ou faria muito pouco para o que tinha a fazer, ou havia de fazer tudo muito mal. | Posto que o pessoal da commissão scientifica se completasse com a chegada do chefe da secção geologica e dos tres adjuntos, de que acima fallímos, teve comtudo de soffrer tal qual córte em empregados de categoria inferior, que com ella se tinhão embarcado no Rio. A' sua partida, requisitára a commissão alguns artifices do arsenal de guerra, attenta a necessidade que haveria de seus serviços em uma viagem pelo sertão, e contando ao mesmo tempo com o respeito que a farda imporia nesses centros, onde, considerados como estrangei- ros, seriamos , como fomos, encarados com olhos desconfiados e sus- peitosos. O Ex”º Sr. ministro da guerra cedêra á commissão seis arti- fices mecanicos, dos oflicios de que mais utilidade se poderia espe- LX PARTE HISTORICA rar; e estes homens embarcárão a bordo do Tocantins, seguindo a commissão para o Ceará. Apenas chegados, porém, um delles com- metteu um furto, e verificou-se por essa occasião que elle era usei- ro de taes manhas. Foi pois recambiado , e pouco tempo depois , por descomedimento, os cinco restantes, de modo que se ficou na privação destes auxiliares, que ao principio se nos antolhára como utilissi- mos, se não indispensaveis. | Ha uma apparente contradicção entre a requisição e renuncia feitas pela commissão : mas este ultimo passo foi motivado , com 0 recambio do primeiro , pela necessidade de evitar extravios , que provavelmente terião lugar á sombra de um que ficasse sendo considerado o autor de todos os que se dessem ; e no dos outros, pelos desgostos que o seu comportamento menos regular nos poderia suscitar para com os ha- bitantes dos lugares por onde transitassemos ou pessoas que nos aco- lhessem. Livres destes empecilhos, que menos nos servirião de auxiho , do que serião occasiões de mortificações e vexames, não tratou a commis- são de se pôr logo em marcha para o interior, nem isso seria por então realizavel. As pessoas praticas do sertão , os vaqueanos como se dizna provincia, aconselhavão que se deferisse a jornada para mais tarde. Não era possivel tambem haver de prompto todas as cavalga- duras de que se necessitavão , motivo pelo qual o Ex”º presidente da provincia, contratando com os Srs. tenente-coronel Roberto Corrêa de Almeida e Silva e Manoel Joaquim Cavalcanti a compra de cem quartões de carga, marcou, de accordo com os fornecedores , todo o mez de Junho desse anno como prazo improrogavel para a sua entrega. + Este prazo foi estabelecido, não pela conveniencia de sahir a com- missão da capital do Ceará depois do mez de Julho, o que ia acontecer ; mas porque os fornecedores declarárão, com alguma razão, ser-lhes de toda a impossibilidade apresentar animaes em termos de seguir via- gem antes do tempo que pedião. Para a commissão pelo contrario, para o bom desempenho de seus encargos, conviria partir antes, se hou- vesse meio de transportar-se sem arriscar demasiado , porque de Maio PARTE HISTORICA LXI em diante nos annos regulares é o tempo mais proprio de alli se em- prehenderem ion demoradas pelo sertão. Era preciso não-só comprar a cavalhada, mas dar tempo a que el- la se pudesse refazer. Uma sêcca de mais de cinco mezes trazia em sustos os habitantes da provincia, pois que o inverno do anno ante- rior tinha sido escasso , e as fracas chuvas do mez de Agosto havião sido insufficientes para a criação de forragens. Em Janeiro, tambem costumão a dar alli chuvas, que oshomens do campo chamão de rama, ás quaes succede um pequeno intervalo de suspensão de aguas, mas que todavia bastão para fazer reverdecer os prados e cobril-os de rama para pascigo do gado, até que entrem as verdadeiras chuvas do in- verno , que são de Fevereiro e Março em diante. Estas então formão pastos dei immensa extensão e hervaçaes, que constituem e segurão por todo o resto do anno o sustento do gado. Ora, se naquelle anno de 1858 as chuvas de Agosto tinhão sido raras, as de Janeiro seguinte forão nullas : os pastos estavão em misero estado, ou autes não os havia senão em algum recanto privilegiado da provincia, onde mal se sentem os efeitos da sêcca. Comtudo a demora forçada que tiverão os membros da commissão scientifica na capital do Ceará não foi infructifera. Deu-se logo prin- cipio aos trabalhos, se não com toda a amplitude e desenvolvimento de que erão susceptiveis, ao menos de modo incessante, apezar das pri- meiras e enfadonhas dificuldades de installação e organisação do trabalho e aprestos de viagem, para a qual as secções se começárão desde então a preparar com excursões ás localidades mais proximas da capital, e que promettião estudos mais interessantes. A secção botanica entrára em exercicio logo nos primeiros dias da chegada da commissão ao Ceará : a quadra era favoravel aos seus estudos, porque assim pôde assistir ao magnifico espectaculo da trans. formação dos campos e do aspecto da natureza na provincia, quando depois de aturada sêcca sobrevém as primeiras aguas. Ao terreno solto, desolado e no parecer infructifero, dos arredores da Fortaleza, succedeu em poucos dias, e como por encanto, uma vegetação vi- rente e luxuriante. Os arbustos, queimados pela estação calmosa , LXI PARTE HISTORICA garranchosos, tristes, quasi mortos, rebentão em viço e vigor de modo admiravel, e se cobrem de abundantes e variadas flóres. A colheita botanica foi consideravel; porque em menos de oito dias, em her- borisações que não passárão de um quarto de legua em differentes raios da cidade, e apezar de ainda então não serem bem aprecia- veis os effeitos da chuva do principio daquelle mez, colligirão-se as amostras de cento e dez especies — herbaceas, sub-arbustivas e arbustivas, porém arboreas só duas. Mencionamos o facto para dar uma idéa do rapido desenvolvimento da vegetação no Ceará: a sua distribuição não deixa de ser curiosa. A vegetação que cobre as arêas da Fortaleza é toda arbustiva, e o matagal, cerrado em alguns pontos, n'outros se abre em raleiros. Encontra-se em certa extensão de terreno grande numero de indi- viduos de uma só especie , logo adiante substituídos por outros de especie diversa. Esses arbustos, chamados de mato carrasquenho, e cuja elevação ordinaria é apenas de dous metros , são aparrados e de fórma garranchosa, e ou se enterrão, deitão-se e alastrão pela arêa, ou se erguem frondosos e se subdividem em muitos ramos consti- tuindo cada arbusto uma semelhança de touceira, fórma que tomá- rão talvez pelos córles sucecessivos, mas que em muitos delles é na- tural. ] A” medida porém que o inverno se foi adiantando pullulárão as pro- ducções, que ao principio parecerão representadas por poucos indivi- duos, taes como os da familia immensa das gramineas, ou apparecerão novas, quando a secção foi dilatando o circulo de suas excursões para 0 sul até Mucuripe, onde está assentado o unico pharol desta costa, para o norte até Villa Velha, na foz do rio Ceará, hoje quasi obstruida , e para o centro até Pacatuba, nas faldas da serra da Aratanha, cinco legoas distante da capital. A vegetação dessa faxa ou zona de arêa, que cobre o litoral da provincia, perdura quando se caminha para o interior, até que a consti- tuição do terreno, modificando-se gradualmente, passa de arenosa a argilacea. Aqui mostrão-se já em maior abundancia as especies ar- boreas, os cajueiros, genipapeiros, oitiseiros, as perobas, que á seme- PARTE HISTORICA LXIL lhança dos ipés desfolhão pela sêcca para depois se cobrirem de flóres, emfim, as mimosas, acacias e arvores de capoeira, que parecem substituir a mata virgem primitiva. Ao chegar ao alto da serra da Aratanha a vegetação muda com- pletamente de aspecto com o apparecimento das piperaceas, me- lastomaceas, laurineas, fetos, heliconeas, bromeliaceas e outras. O chefe da secção astronomica, além do encargo da sua secção, tomou sobre si a penosa e enfadonha tarefa da promptificação do ma- terial preciso para o transporte da commissão. Teve com isso não pou- cas importunações, lutando com a falta dos mais simples recursos, como em terras pequenas acontece, e com a novidade do trabalho, que por desusado perturbava os operarios, rotineiros, como todos os nossos, e de um vagar e lentidão desesperadoras. Occupava-se com afan destas cousas, emquanto aguardava a che- gada dos dous adjuntos, que ainda lhe faltavão, e da canhoneira que lhe havia sido promettida, e pela qual insistia cada vez com mais ins- tancia ao passo que via decorrer o tempo se não inutilmente, ao me- nos não tão bem aproveitado, como desejava. Com tudo os afazeres da sua importante secção estavão longe de serem olvidados ou prete- ridos. Os seus adjuntos andavão destacados por differentes pontos, occupados com trabalhos topographicos, os quaes, sem o brilho das altas operações geodesicas, offerecerião no seu complexo, e quando terminados, mais utilidade pratica. Quanto porém ás observações astronomicas e meteorologicas, o capitão-tenente Gabaglia considerou que essas para serem regulares e exactas, e poderem servir de base segura a estudos ulteriores, re- clamavão que se preparasse em local conveniente uma construcção especial, bem que ligeira, transportavel e pouco dispendiosa. Resolveu pois a construcção de uma barraca de madeira, que ser- visse de observatorio, e depois de ter examinado os lugares mais ade- quados para uma primeira estação astronomica, fixou a sua escolha no morro denominado « Carauatá. » Este chamado morro é um co- moro de arêa revestido de escassa vegetação, o qual fica a um lado da cidade, e delle melhor que de qualquer outro ponto se descortina LXIV PARTE HISTORICA amplo horisonte sobre o mar, ao mesmo tempo que delle se avistão todos os cumes das serras visíveis da cidade da Fortaleza. Estas serras, em maior e menor afastamento da costa, como que cingem e con- tornão a cidade, bem que entre ellas medeiem larguissimos inter- vallos. ' Concluiu-se a obra do observatorio, e chegarão os adjuntos; mas na impossibilidade de executar quaesquer trabalhos hydrographicos, o capitão-tenente Gabaglia teve de modificar os seus planos, cir- cumscrevendo-os aos limites do possivel. O chefe da secção zoologica percorreu toda a provincia do Ceará, empregando-se não só em formar collecções de toda a qualidade de animaes, na conformidade das instrucções especiaes que lhe forão dadas pelo governo imperial, mas ainda em observar e reunir infor- mações de pessoas fidedignas ácerca da Fauna da provincia. Seus es- forços forão coroados de successo, pois além de varias especies de mammiferos, avultou a collecção ornithologica , cujo numero de exemplares excedeu a quatro mil, vindo todos empalhados, e al- guns mesmo já montados com perfeição, primando muito neste tra- balho com a sua costumada pericia o naturalista-preparador João Pedro Villa-Real. Das especies de aves obtidas algumas são raras, e quasi a metade não se encontravão no nosso museu nacional. A icthyologia, tão fecunda em resultados interessantes, mereceu tambem particular attenção do chefe da secção zoologica, bem con- vencido do quanto o Brasil póde cooperar para o progresso deste ramo da sciencia; e por isso, entretendo relações com os pescadores, alcançou preciosos dados relativamente aos peixes daquella costa e maneira empregada para obtel-os. Aos modelos das jangadas, de que usão nas pescarias, juntou os dos arrastões, rêdes, e outras ar- madilhas de que alli se servem. Quanto á erpetologia, transportou a secção mais de 80 especies de reptís, bem conservados a sêcco, ou em alcool, e alguns bastante curiosos. Na vastissima divisão dos invertebrados conseguiu reunir mais PARTE HISTORICA LXV de 12,000 insectos coleopteros, orthopteros, lepidopteros, hymenopte- teros, hemipteros, dipteros, etc., muitos de especies novas ou mal descriptas, obtidos pela mór parte nos Carirís, no Araripe e Hi- biapaba. Na classe dos hymenopteros convém fazer menção da va- liosa collecção de abelhas da provincia, em numero de 26 especies, das quaes não só colherão-se amostras dos individuos conservados para estudo, como do seu mel e cêras. Dos animaes obtidos tenciona 6 chefe da secção zoologica fazer a respectiva descripção, acompanhada de desenhos e das suas ob- servações : trabalho longo, que com o tempo irá successivamente dando á luz. | j O capitão João Martins da Silva Coutinho, na ausencia do chefe da secção geologica, o Dr. Guilherme Schúch de Capanema, fez com a mesma fortuna grande numero de excursões pelas circúmvizinhanças, colligindo variadas amostras geognosticas, estudando a natureza e idade do terreno, e tomando informações de minas, de cuja existen- cia se suspeitava na provincia ; viu-se porém obrigado a interromper os seus trabalhos durante dous mezes em que esteve doente. O chefe desta secção porém, o Dr. Capanema, até então demorado na córte por motivos ponderosos , de entre os quaes sobresahião as suas muitas e graves occupações publicas e privadas, desembarcou no Ceará no dia 3 de Junho de 1859. A sua viagem foi rapida, como de quem tinha pressa de chegar, e sabia que era anciosamente es- perado pelos seus companheiros : todavia demorou-se alguns dias na Bahia, fazendo rapidas excursões ás villas mais proximas daquella capital, como a Itaparica, Santo Amaro e Nazareth. Nesta sua demora e excursões pela provincia da Bahia, além de observações de grande alcance geologico, convenceu-se de que poderia bem não ser in- teiramente fabulada aquella tradição de ricas minas de prata an- nunciadas ao rei de Hespanha e Portugal pelo mineiro Roberto Dias, e ás quaes com quanto nunca fossem exploradas, nem averiguadas, deveu o marquez das Minas o seu tiulo, e além disso o Dr. Capa- nema reconheceu que se alteava o litoral do Brasil, o que influe seriamente sobre a questão dos portos. Na Parahyba e dentro da Co S 9 LXVI PARTE HISTORICA cidade achou calcarios com Íosseis, que desconfiava ser a continua- cão da formação que Gardner descobriu no Crato em 1841, o que elle pôde verificar nas proprias localidades , alguns mezes depois. Encontrou emfim outras curiosidades, fez observações de grande valor scientifico, como em tempo se verá do seu relatorio. Ao Ceará chegava o Dr. Capanema com os melhores auspícios , trazendo comsigo e distribuindo pelos lavradores da provincia alguns centenares de pés de cafeseiros de Bourbon e muitas mudas de can- nas das ilhas Mauricias. Por outro lado os trabalhos da sua secção promettião ser os mais importantes naquella provincia, onde o povo crê descobrir vestigios de minas em cada montanha, vê ouro em qualquer montão de tauá amarello, ouve roncos nas serras em certas estações do anno, e logo após observa os cimos que se inflammão, derramando ao longe um cheiro bem caracterisado de enxofre. Con- vinha ao paiz saber o que entrava de verdade nesses dizeres do povo, convinha-o sobretudo ao povo para se não deixar illudir com tanta faci- lidade, como ainda ha dous annos no Acarape, e para se convencer de uma vez que a sua inesgotavel California são aquellas terras, cuja simples inspecção denuncia immensa productibilidade sob a apparen- cia de completamente estereis. Que essas aréas e terras contenhão ouro, como em Baturité e em outros lugares, é isso de muito pouca vantagem ondese sente tanta carencia de agua; mas que contenhão tan- tos principios fertilisadores, que nellas dominem em tão justas propor- ções a argilla, a arêa, particulas mineraes e detritos vegetaes, é isso o que constitue a felicidade da provincia : é por isso que os seus filhos devem render graças á providencia. Nestes trabalhos se occupava a commissão ensaiando-se e pre- parando-se ao mesmo tempo para a sua viagem do interior. Nesse “intervallo houve apenas a distracção do adjunto da secção botanica o Dr. Manoel Freire Allemão, que, á reclamação do presidente da provincia o Ex. Sr. Dr. João Silveira de Souza foi, como me- dico, visitar a povoação do Acarape, então flagellada pela epi- demia das bexigas. O Dr. Freire cumpriu esta commissão com O zelo e pontualidade que costuma à desenvolver em objectos de ser- PARTE HISTORICA LXVIL viço : foi e voltou em poucos dias, apresentando um relatorio cir- cumstanciado do estado sanitario da povoação, dos meios por elle aconselhados para debellar o mal, e dos que no seu entender e em relação á epidemia cumpria que o governo fizesse em tal con- junctura. Salva esta excepção, que aliás plenamente se justifica por uma causa urgentissima e de alta utilidade publica, todos os outros mem- bros da commissão scientifica se conservavão no seu posto e anciosos por ouvir toar a hora da partida, que infelizmente já se ia demorando. Receberão-se as cavalgaduras em fins de Junho, e as secções mu- nirão-se de fundos para a sua despeza durante um semestre , tempo que duraria a sua excursão, segundo o acôrdo tomado a tal respeito e os orçamentos apresentados pelos respectivos chefes. Esse acôrdo, communicado ao governo imperial, foi por elle approvado , bem que em parte se afastasse das instrucções : versava sobre à conveniencia de marchar a commissão scientifica, não unida com toda a sua bagagem e pessoal, mas dividida em tres turmas differentes, marchando cada qual em sua direcção, afim de se en- contrarem depois em lugar e tempo determinado. Para esta resolu- ção attendeu-se á impossibilidade quasi absoluta de marchar conjunc- tamente tão numeroso pessoal, com tantas cargas, pelo centro de : um paiz arido, em tempo de sêcca, tendo de atravessar lugares des- providos de todos os recursos, e, por via de regra, até de agua es- cassos. Por outro lado a diversidade dos estudos de que se tinhão de oceupar as differentes secções da commissão scientifica acon- selhava a adopção do mesmo arbitrio. Os melhores pontos para observações astronomicas e trabalhos geodesicos não serião sempre os mais proprios para os encargos das outras secções. À secção geo- logica estava nas mesmas circumstancias. As tres ultimas é que bem se poderião combinar para progredir simultaneamente , se não hou- vesse vantagem em que as turmas não fossem por demais numerosas. Achou-se pois conveniente que a commissão scientifica marchasse para o interior, dividida em tres turmas principaes, em direcção ao Icó, Crato, e Serra Grande nos confins da provincia. LXVHI PARTE HISTORICA A primeira, composta das secções botanica e zoologica, seguiria pelas margens do Jaguaribe. A segunda, das secções geologica e ethnographica, se internaria seguindo o caminho de Baturité e Quixeramobim. A terceira, por ser a mais numerosa, proseguiria só, e além disso, “para dar mais desenvolvimento aos seus trabalhos, se subdividiria em turmas de adjuntos, as quaes progredirião em diversas direcções. O Dr. Assis acompanharia esta terceira turma, que não tinha facul- tativo, e contando numeroso pessoal, poderia de outra sorte achar-se no caso de lamentar a falta de um medico. Assim ordenadas as cousas, partirão primeiro do Ceará as turmas das secções botanica e zoologica no dia 16 de Agosto, caminho do Aracaty, demorando-se apenas nos povoados intermedios os dias ne- * cessarios para as suas colheitas e estudos. As secções geologica e ethnographica seguirão logo no dia seguinte, ficando ainda no Ceará a secção astronomica , cujo chefe, depois de providenciar ácerca das turmas de seus adjuntos, sahiu pouco depois da capital, na di- recção da Serra Grande, acompanhado dos primeiros-tenentes Soares Pinto e Barbedo. Todavia já nesse tempo (em Setembro de 1859) o pessoal daquel- la secção tinha soffrido um córte. O primeiro tenente Gayoso , sen- tindo-se cada vez mais enfermo , regressára de Mecejana, onde des- empenhava trabalhos topographicos com o levantamento da planta da povoação e seus arrabaldes, e pediu permissão de se retirar para a córte, afim de solicitar exoneração do cargo, que se achava impos-. sibilitado de continuar a servir. Embarcando-se no Ceará no dia 20 de Julho de 1859, obteve a sua demissão do governo imperial a 20 de Agosto, e no dia 3 de Setembro seguinte tinha deixado de existir. Não entraremos em minuciosidades, tratando desta primeira ex- cursão da commissão scientifica, porque nos seus relatorios apresenta cada um dos chefes o resumo do seu itinerario com o summario dos trabalhos executados por cada um na sua respectiva secção. Diremos aqui sómente quanto fôr bastante para-se ter uma idéa da marcha geral da commissão, e dos lugares que ella percorreu. as — PARTE HISTORICA LXIX A primeira destas turmas, depois de algum tempo de demora no Aracaty, seguiu Jaguaribe acima, visitando os povoados da margem deste rio, e demorando-se onde se lhe offerecia ensejo de colheita. Da ribeira de Jaguaribe tomou para o Icó, cidade importante do centro da provincia, entrou nos Carirís em viagem para o Crato, onde chegou em Dezembro de 1859. Estudadas as producções daquelles lugares, o conselheiro Francisco Freire Allemão e o Sr. Manoel Ferreira Lagos atravessárão o Ara- ripe, chegarão até o Exú em Pernambuco, donde regressárão para a amena villa do Jardim. Aqui se demorou o chefe da secção zoologica, em quanto o da botanica voltou pela villa da Barbalha para o Crato. Járentão começava elle a sentir as consequencias destas fadigosas ex- cursões, e como os seus incommodos fossem em augmento, entregou a secção ao seu adjunto, e apezar de ser no rigor do inverno, partiu do Grato pelo caminho mais curto para a Fortaleza, onde chegou em dias do mez de Abril. Dous mezes de licença (Julho e Agosto de 1860) permittirão-lhe vir á côrte tratar de seus negocios, até que se incor- | porou de novo á sua secção, a qual, nasua volta, se achava em Baturité. | Durante a sua ausencia, o seu adjunto o Dr. Manoel Freire Allemão, acompanhando a secção zoologica, entrou pelos sertões dos Carirís até Assaré, cujas serras percorreu. Do Assaré cortou pelo valle dos Bas- tiões, sertão e villa do Saboeiro, donde passou á villa de Tauá ou Principe Imperial, enriquecendo o seu herbario com as producções desta parte da Serra Grande. De volta do Tauá, separando-se do pes- soal da secção zoologica, o Dr. Manoel Freire Allemão desceu pelos sertões de Mombaça até Baturité, retirando-se em Agosto para a ci- dade da Fortaleza, depois de uma larga e proveitosa excursão. As secções zoologica e ethnographica que compunhão, como disse- mos, a segunda turma, seguirão pelo centro da provincia caminho de Pacatuba e Acarape, onde tiverão uma demora forçada de alguns dias por incommodos que sobrevierão ao Dr. Capanema: percorrê- rão em todos os sentidos a serra da Aratanha, e visitárão os ser- rotes do Jatobá e outros. No Acarape a secção geologica examinou [ORNE A (10) LXX PARTE HISTORICA as suas bellas serras de granito em decomposição, as caleiras, e as grutas calcareas da Igreja, o sino do Frade, e rochedos curiosos pela natureza da sua formação toda eruptiva. Em Baturité demorárão-se mais tempo com o exame da serra do mesmo nome. hoje de al- guma importancia pela cultura do café e canna de assucar, que alli se vão introduzindo: forão á Serra Aguda, á Serra Azul e ao sertão das Itans, e descambando para o outro lado da serra de Baturité vi- sitárão Canindé e as minas de ferro de Cangatí, já mencionadas pelo naturalista Feijó, posto que até o presente desaproveitadas. Regressárão de novo a Baturité, tomárão o comboi e proseguirão na sua jornada por Quixadá e Quixeramobim, onde tiverão demora de alguns dias pelas excursões que fizerão ásserras. Em Lavras exami- nárão a gruta thermal do Boqueirão, lugar notavel porque foi rom- pida a serra para dar passagem ao rio. Do Icó o Dr. Capanema e G. Dias seguirão até as proximidades da villa da Telha, em quanto o adjunto o Sr. Dr. Coutinho chegava até a serra do Pereiro. Do Icó, depois de ter dado descanso aos animaes , e reduzindo o seu comboi, porque muitos desses animaes não estavão em estado de seguir viagem por magros e cansados, seguirão as duas secções pela povoação da Cachoeira para o Crato, onde chegárão em Janeiro e se encontrárão com a primeira turma da commissão. Do Crato sahirão a visitar o Araripe, Brejinho, digno de estudo pelos seus cal- carios fosseis, e subdividindo-se neste mesmo lugar, o Dr. Capa- nema com o seu adjunto se dirigirão para o Exú na provincia de Pernambuco, em quanto nesse intervallo Gonçalves Dias retrocedia sobre o Crato afim de compulsar o seu archivo municipal, já estu- “dado pelo Sr. João Brigido dos Santos, autor dos apontamentos para a historia dos Carirís, e o ecelesiastico de Missão-velha , onde Bernardino Gomes de Araujo tinha restolhado algumas noticias para sua chronica. | Estavamos então na entrada do anno de 1860, e achavão-se . reunidas no Crato quatro das secções da commissão scientifica, fal- tando sómente a astronómica, que, pela natureza de seus trabalhos, não podia com vantagem executar tão rapidas viagens. PARTE HISTORICA LXXL Não erão animadoras as noticias que della receberamos. Quanto ao andamento dos trabalhos, o capitão-tenente Gabaglia lhe tinha dado todo o possivel desenvolvimento. Borja Castro caminhava na direcção da villa da Imperatriz, Santos Souza seguia pelo centro da provincia, Lassance , pelo sul della, acompanhava o Jaguaribe na direcção da villa de Russas. O capitão-tenente Gabaglia e dous de seus adjuntos, os primeiros tenentes da armada Soares Pinto e Barbedo, procuravão a Serra-Grande, donde passárão á villa do Principe Imperial, na pro. vincia do Piauhy , na qual, cumpre não esquecelo, se havião no- meado em diversos lugares commissões encarregadas de prestar todo “o auxilio de que pudesse ter necessidade a commissão scientifica quando ahi chegasse. As noticias pouco animadoras que recebemos desta turma não se referião pois á marcha de seus trabalhos, porém a outras cireum- stancias que a todos os mais dizião respeito, e os pozerão de sobre- aviso. | O capitão-tenente Gabaglia, como todos os chefes das outras turmas, » tinha recebido fundos bastantes para a projectada e Já quasi concluida excursão de seis mezes ; mas não se quéria arriscar ao transporte e perda de grandes quantias, nem mesmo o podia fazer, porque tendo os seus adjuntos espalhados por lugares distantes, carecia de determinar um centro a que elles podessem recorrer, quando care- cessem de dinheiro para pagamento de seus serventes e cargueiros. Deixou pois essas quantias depositadas na thesouraria da provincia, entendendo-se com o inspector della, e declarando-lhe que elle dessa verba iria reclamando por partes segundo as necessidades do serviço. | Apenas porém tinha partido da capital do Ceará, quando come- gárão a surgir dificuldades para a entrega das quantias, que o seu procurador , empregado da commissão, requisitava. Em Outubro o capitão-tenente Gabaglia, que se achava então na Serra-Grande, fez ao governo da provincia as mais justas e instantes reclamações; mas à thesouraria respondeu a 16 de Dezembro que essas quantias, dis- LXXI PARTE HISTÓRICA tribuidas em Julho desse mesmo anno, tinhão cahido em exercicios findos! Era evidente que o chefe da secção astronomica lutára com em- baraços pecuniarios para occorrer ás despezas da sua secção. sem interromper os seus trabalhos nos quatro mezes decorridos desde a sua primeira reclamação até a época em que o presidente da com- missão teve noticias suas. O que devia fazer a commissão em tal conjunctura? Era de toda a conveniencia descansar no Crato o tempo das grandes chuvas, dar folga aos animaes, rever as suas collecções , coordenar no que podessem os seus apontamentos e notas, e d'alli mesmo proseguir na estação favoravel, visitando o centro de outras provincias, como lhes era recommendado. A conveniencia do serviço teve neste caso de ceder o lugar aos conselhos da prudencia. Já em Novembro de 1859 o conselheiro Freire Allemão havia requisitado do presidente da provincia a quantia de 2:0004000 para despezas da commissão. A thesonraria da fazenda informou, como já havia feito a proposito da reclamação do capitão-tenente Gabaglia, que com a cessação do exercicio tinha caducado o credito concedido para taes despezas, e que assim não podião estas ser pagas sem con- signação de novos fundos. O presidente da provincia, não querendo tomar a responsabilidade da satisfação deste pedido, consultou o governo imperial, e recebeu essa autorisação por aviso de 2 de Janeiro de 1860. O conselheiro Freire Allemão , sem ter conhecimento dos emba- raços que apparecérão para a entrega daquella quantia, porque, em contínuas viagens, era-lhe diflicil sustentar uma corresponden- cia regular e seguida com a capital, requisitou novamente a 26 de Dezembro do presidente da provincia a entrega de pouco mais de 6:0008000 para as despezas da secção zoologica e botanica no tri-. mestre de Fevereiro a Abril de 1860, afim de poderem proseguir nas suas excursões. - O presidente da provincia respondeu-a 25 de Janeiro como já o fizera anteriormente, que não tomando sobre si essa responsabilidade PARTE HISTORICA j LXXIHI ia dirigir-se nessa data ao governo imperial afim de lhe pedir as suas determinações. Agora reunidas no Crato quatro das secções da commissão scienti- tifica, sem conhecimento de que ainda não estivessem removidos os embaraços pecuniarios, que tinhão surgido em relação á commissão, forão todos os seus membros de parecer que, a ser possivel, se apro- -veitasse o caminho já feito, pois que, tendo sido marcados dous annos para a existencia da commissão, era de necessidade empregar-se o tempo do melhor modo. Por isso se ofliciou ao presidente da pro- vincia, pedindo-se-lhe mandasse abonar ás secções as quantias suffi- cientes para as suas despezas ao menos durante seis mezes, se para mais houvesse difficuldade. Esse officio datado de 17 de Janeiro teve resposta negativa a 9 de Fevereiro seguinte. Nesse intervallo porém foi necessario que a commissão tomasse uma, resolução, porque só linha comsigo quanto lhe bastava para o seu costeio até o fim de Janeiro. A decisão da presidencia não era de presumir que fosse favoravel, depois da recusa da entrega dos 2:000g pedidos pelo conselheiro Freire Allemão, e das complicações e em- baraços sobrevindos á terceira turma da secção astronomica, de que tiveramos conhecimento no Crato. Reconsideradas pois as circumstancias, resolvêrão voltar quanto antes à capital da provincia, aproveitando o tempo no seu regresso como melhor pudessem. O chefe da secção botanica tinha concluido os seus estudos por aquellas cercanias, e retirava-se enfermo, dei- xando a secção a cargo do seu adjunto. A secção zoologica voltou pelo centro da provincia, depois da estada de alguns dias na villa do Principe Imperial; progredindo lentamente, como quem hesitava na esperança de uma decisão do governo, que lhe permittisse retroceder. Na segunda turma, Gonçalves Dias entregava o comboi ao Dr. Ca- panema por não poder, nem querer contrahir compromissos para occorer ás despezas da turma. O Dr. Capanema era de igual parecer. As suas cargas deverião pois partir do Crato sob as vistas do adjunto LXXIV PARTE HISTORICA da secção geologica, o capitão Coutinho, tomãr as collecções deposi- tadas no Icó, e descer pela-ribeira do Fagnaráio alé o Limoeiro, onde seria esperado. Entretanto aquelles dous, viajando escoteiros, dirigirão-se aoJardis a Milagres, ao lugar chamado « Cachorra morta » onde existia e acaso existirá ainda um resto de tribu indigena, e passando por Souza e Páo dos Ferros, nas provincias da Parahyba e Rio-Grande do Norte, vierão sahir no Figueiredo, onde este rio faz a sua juncção com 0 Jagua- ribe, no lugar por isso chamado a « Barra. » Do Figueiredo descêrão pela estrada que ladeia o Jaguaribe até o Limoeiro, e aqui souberão, com a chegada de suas cargas, que o capitão Coutinho por doente ficára no Crato em tratamento. Proseguirão depois por meio dos extensos e formosos carnaúbaes do valle do Jaguaribe até o Aracaty, e perto da foz do mesmo rio e d'aqui pela estrada do litoral se dirigirão á For- taleza, onde chegarão a 10 de Março de 1860. Esta excursão da segunda turma foi larga no gyro, incommoda pela estação, pois não tinhão ainda começado a cahir as chuvas e faltava o pasto aos animaes, e de certo teria sido muito mais provei- tosa a não ter sido feito tanto ás pressas. O valle de Souza, a mina de ferro de Cangatí, e sobre tudo com a probabilidade de carvão de pedra na vizinhança, os fosseis calca- reos do Brejinho merecião um estudo muito mais demorado, e exca- vações que não era possivel realizar senão com tempo e dispendio: mas as difficuldades pecuniarias com que se achavão a braços as - secções zoologica e botanica no Crato, aquellas com que desde Outu- bro de 1859 lutava o chefe da secção astronomica na Serra-Grande, e os proprios recursos desta segunda turma, que se tornavão escassos | desde Janeiro, não animavão a contrahir-se empenho de natureza al-- guma para demorar essa excursão, com quanto. como ponderámos, fosse isso sobre maneira conveniente. Chegadas estas secções á capital do Ceará, onde erão por dias espe- radas as outras, souberão que por aviso de 17 de Fevereiro havia 0 go- verno imperial providenciado ácerca de fundos para as despezas da commissão scientifica, não só dentro da provincia, como em outras PARTE HISTORICA LXXV por onde houvesse de transitar, declarando ao mesmo tempo ao pre- sidente que não elevasse a despeza acima das quantias votadas, Pouco depois chegarão mais dous chefes de secção, o conselheiro Freire Allemão. que precisava vir á côrte tratar de seus negocios, e o capitão-tenente Gabaglia, que vinha de Sobral a vêr o que se podia deliberar ácerca do novo itinerario da commissão, aproveitando o ensejo para entender-se com os adjuntos destacados da sua secção, e providenciar ácerca do andamento dos trabalhos de que estavão in- cumbidos, e para que na sua ausencia pudessem marchar sem tro- peços. Ao chegar ao Ceará, o capitão-tenente Gabaglia communicava á commissão o estado de seus trabalhos astronomicos, meteorologicos e topographicos, e o resumo do seu itinerario durante esta excursão. Dividira em grupos o pessoal de que podia dispór, e encarregára ao 1º tenente Lassance Cunha de avançar na direcção do Aracaly, pas- sando pela estrada que vai do Aquiraz áquella cidade. O 1º tenente Lassance, segundo as ultimas noticias, se achava em S. Bernardo das Russas impedido pelas chuvas, que já erão frequentes e copiosas, e pelas enchentes dos rios, de proseguir na sua viagem pelo Jaguaribe acima. Ao 1º tenente Borja Castro, já então enfermo e com permissão de se retirar para a côrte, de seguir até Sobral, passando pela villa da Imperatriz; o que elle fez, não indo além pelos motivos que o for- cárão a relirar-se da commissão. Ao capitão Santos Souza de proseguir na direcção de Maranguape, e d'alli por diante; mas depois da retirada do 1º tenente Borja Castro, parecia melhor que elle se transportasse ao Acaracú, e ligasse os seus estudos com os que já estavão feitos até Sobral. - Amnalureza dos trabalhos de toda a commissão, mas principalmente - Os da secção astronomica e geographica, assim como as difficuldades do transito e transporte de material delicado, erão obstaculos a mo- vimentos muito accelerados, a jornadas extraordinarias, que, segundo elle ponderava, poderião talvez infundir admiração, mas não trarião nenhuma utilidade real. Ainda assim, elle com a sua turma tinha podido effectuar uma LXXVI PARTE HISTORICA excursão relativamente extensa, pois que nesse periodo percorrêra por ventura mais de duzentas leguas entre diversos povoados. Sahindo da capital, acompanhado pelos seus adjuntos os primeiros- tenentes Soares Pinto e Barbedo, com todos os instrumentos da sua secção de possivel transporte, dirigiu-se á [apipóca, povoação que se acha na raiz da serra da Uruburetama, e d'aqui estendendo as suas excursões aos pontos dominantes das serras vizinhas, determinou as posições das villas da Imperatriz e S. Francisco, assim como dos po- voados de Santa-Cruz, Arraial e outros de menor importancia. Pro- seguindo depois na sua marcha para Sobral, passou por Sant Anna e S. Bento, e buscou a villa do Ipú, situada ao pé da serra da Ibiapaba. Na villa do Ipú dirigiu-se ao Campo-Grande e d'ahi viajando pela parte superior da Ibiapaba foi a S. Gonçalo, donde desceu para reco- nhecer as baixadas e o sopé da serra na altura do rio Poty, e cortando ao través do sertão, alcançou a villa do Principe Imperial no Piauhy, mais conhecida sob a denominação de « Piranhas. » Os temores de falta de recursos, e o accordo tomado pelos membros da commissão de se reunirem para tratar do seu novo itinerario, o forçárão a descer a serra, e vir á Fortaleza em Maio de 1860. Por esse tempo o pessoal da commissão soffrêra novo córte. O Dr. Assis, que deveria ter acompanhado alguma das turmas da secção as- tronomica, ás quaes como medico podia ser util, ao passo que se iria occupando dos trabalhos da secção de que era adjunto. e daquel- les que o governo particularmente lhe recommendára, comecou à soffrer em sua saude; e como não se pqupasse a incommodos nem a fadigas, foi indo sempre a peior até que no 28 de Janeiro dava a alma ao Creador, na povoação da Pacatuba, assistido nos seus ultimos momentos pela estimavel familia do Sr. Costa, da Aratanha. Moço es- tudioso e trabalhador, com conhecimentos não vulgares na sua pro- fissão, morreu medicando e esmolando aos pobres com um desinte- resse, abnegação e philantropia dignas de todo o encomio. A herança que legou á sua pobre mãi, moradora na villa do Penedo. a quem Deos parece que concedêra vêr seu filho doutorado para tornar mais PARTE HISTORICA LXXVII “dolorosa asua perda, foi uma divida de Rs. 147%, proveniente de me- dicamentos na sua enfermidade e gastos de enterramento. Outra perda, tambem sensivel, posto que não funesta, teve a com- missão com a retirada do 1º tenente Agostinho Victor de Borja Castro , então enfermo. Este senhor retirou-se do Ceará a 24 de Abril desse anno para na córte solicitar a sua exoneração , que lhe foi dada a 29 de Maio seguinte. Com estas perdas, a secção astronomica achou-se reduzida justamente á metade dos adjuntos que ella Julgára indis- pensaveis á execução de suas instrucções. Tomadas as providencias pelo supracitado aviso de 17 de Fevereiro acerca das quantias necessarias para as despezas da commissão, restava saber a quanto montava essa verba; porque só com essa informação se podia calcular o tempo para a nova excursão e determinar o itine- rario das turmas. Uma nota extra-oficial do inspector do thesouro, transmittida camarariamente pelo presidente da provincia ao conse. lheiro Freire Allemão, declarava haver ainda da verba consignada para taes despezas um saldo de 60 contos de réis, quantia mais que suficiente para uma nova excursão de seis mezes. A commissão , tendo seis mezes diante de si, tomou uma resolu- ção prompta, porque a maior parte das secções continuavão em exercicio, e não podião prescindir por largo espaço da presença e direcção dos respectivos chefes. Sem duvida era vantajoso fazer-se um gyro muito mais largo do que o antérior, de fórma que se não perdesse tempo em hesitações e incertezas, com idas e voltas, e á espera de providencias para proseguir na sua tarefa; mas para isso seria preciso ultrapassar o periodo de dous annos, marcado á com- missão, para um pedido de fundos mais avultado, representação para prorogar-se aquelle prazo, no que um ou outro poderia não concor- dar, e emfim a acquiescencia do governo de Sua Magestade. Fez portanto a commissão o que devia tomando a resolução mais prompta com attenção aos motivos referidos, e communicou ao governo em data de 15 de Maio que, salvo ordem em contrario, a provincia do Ceará ficaria nominalmente considerada como centro e deposito do seu material disponivel, que a excursão que de novo Cc. 3. (44) LXXVII PARTE HISTORICA ia emprehender duraria pelo menos até o fim de Dezembro, con- forme o pedido de fundos anteriormente transmittido ao governo imperial, e que as secções da commissão se poderião conservar den- tro da provincia, entrar ou internar-se pelas limitrophes como lhes permiltissem o tempo e os recursos á sua disposição. No entanto o Dr. Capanema, mal convalescido de umas terçãas fortes que o accommettêrão na sua volta, reclamava fundos para as despezas da sua secção durante-o espaço de dez mezes, tempo maximo que se podia gastar até que a má estação lhe impossibilitasse o trabalho. Motivando o seu pedido, escrevia elleao presidente da commissão em officio que, em data de 29 de Abril, se transmittiu ao governo imperial : « Esta medida é aconselhada pela experiencia passada. No Crato e na provincia da Parahyba deparei com lugares que exigião minu- cioso exame, e que pelas apparencias promettião resultados impor- tantes : mas tendo-se reclamado dinheiro, não se obteve em tempo, e a Incerteza em tão grande distancia forçou-me a regressar com a maior rapidez. « A natureza dos trabalhos a meu cargo torna inteiramente impos- sivel dizer de antemão qual a direcção que devo seguir: posso ver- me obrigado apenetrar muito mais para o intérior do que pretendo. A experiencia adquirida nas serras de Maranguape, Aratanha, Batu- rité e Quixeramobim, ensinou-me que me não posso fiar em infor- mações da gente da terra: por isso só me devo guiar pela natureza das formações geologicas que encontrar no meu itinerario. » Comtudo, apezar da resolução tomada, era bem de prever que as turmas da commissão scientifica não se verião nunca em circum- stancias de sahir da provincia, senão accidentalmente. O chefe da secção ethnographica, enfermo tambem como os seus companheiros de jornada, porque mesmo o capitão Coutinho chegára doente do Crato, escrevia no seu relatorio de 17 de Março, ao chegar do interior . « O estudo dos nossos indigenas é o que mais avulta nas minhas instrucções, de mais curiosidade para os outros paizes pelo que nesse estudo póde haver de scientifico, e de mais vantagem para o Brasil pelo que póde résultar do seu aldeamento , catechese e civilisação. We: PARTE HISTÓRICA LXXIX « A tal respeito porém lamento que os trabalhos muito mais importantes das outras secções lhes não tenhão permittido até agora sahir do Ceará, procurando as provincias do interior, nas quaes sómente se poderá fazer esse estudo com algum proveito. Receio mesmo que ao sahir d'aqui tenhamos de proseguir na nossa excursão com tal rapidez, que esse exame não possa ser feito senão de modo excessivamente superficial ; porque, baseando-se essencialmente no conhecimento das linguas indigenas, esse, apezar da melhor boa vontade e aptidão, só com o tempo se adquire. - « Sendo isto assim, e visto ter de reunir-se dentro em pouco a commissão para assentar no seu futuro itinerario, lembro-me de a preceder neste caminho, e de a esperar em algum ponto conve- mente aos trabalhos da minha secção, por onde mais tarde tenha de passar a commissão, em ordem a poder dar conta da honrosa tarefa de que fui incumbido. Á commissão caberá informar a V. Ex. do que a tal respeito resolver. » Urgia o tempo, tanto mais quanto a estação ia adiantada, e a commissão não podia dispôr de meios para uma excursão tão larga quanto era desejavel, o conselheiro Freire Allemão retirava-se para a corte, e convinha que as secções estivessem munidas de fundos para proseguirem durante a sua ausencia. Distribuirão-se as quotas pe- las secções astronomica, zoologica, geologica e botanica, ficando, ou suppondo-se que na ata ficava a que deveria caber á secção ethnographica, e uma sobra para as Snrdesperas eventuaes da com- missão. - Quando porém se requisitou a somma restante, a lhesouraria declarou oflicialmente, em data de 27 de Abril de 1860, que a verba destinada para estas despezas não tinha de saldo mais do que cin- coenta contos, quando na sua informação extra-official, sobre a qual a commissão baseára a sua deliberação, havia dado a existencia.de um saldo de sessenta contos e tanto. - À secção ethnographica, vendo-se por esta fórma sem recursos, aceitou o oferecimento de um conto de réis, que lhe fez graciosamente cada uma das duas secções botanica e astronomica, para pagar despe- LXXX — PARTE HISTÓRICA zas já feitas e transportar-se para fóra da provincia, como havia sido communicado ao governo de S. M. 1. Resolvido o novo itinerario da commissão, não segundo seria mais vantajoso, mas como era possivel nas circumstancias em que se acha- vão os seus membros, aconteceu nesse entretanto ageravar-se a enfer- midade do adjunto dasecção geologica, o capitão Coutinho. A ausencia do presidente da commissão, já por esse tempo no Rio, não permittia tomar-se resolução alguma, e não era bem que se desprezasse toda a contemplação para com quem, no seu estado de saude, nunca se furta- ra a privações e a incommodos, tratando-se de objecto de ser- vIÇO. Só depois da volta do conselheiro Freire Allemão é que o chefe da secção geologica pôde tomar uma deliberação a este respeito. Offi- ciou em meiados de Setembro ao presidente da commissão que o seu adjunto se achava enfermo, declarando formalmente o seu medico as- sistente que elle devia abster-se, pelo menos durante tres mezes, de toda a fadiga de corpo e de espirito. Não era possivel contemporisar por tanto tempo, nem por outro lado o chefe da secção geologica podia partir sem um adjunto, porque muitos dos seus trabalhos o não dispensavão. Requisital-o do Rio, era nova e talvez maior perda de tempo ; por- que podia muito bem dar-se a eventualidade, que era mais provavel, de não se encontrar pessoa que pudesse ou quizesse servir aquelle lugar. Para cortar delongas, o Dr. Capanema contractou um moço do Cea- rá, Numa Pompilio de Lovola e Sá, que embora não tivesse feito estu- dos alguns podia ajudal-o muito na parte material do serviço, por ser sujeito de habilidade para todos os officios mecanicos, e ter tal qual pratica e aptidão para concertos de instrumentos mathematicos. Apezar da urgencia das circumstancias e do util soccorro, então ainda muito mais precioso do que lhe foi o supradito contracta- do, nem por isso o Dr. Capanema o equiparou em vencimentos com os adjuntos, que pelos seus conhecimentos tinhão outra esphera de acção. A PARTE HISTORICA LXXXI * Dous dias depois, a 18 do mesmo mez, foi que o Dr. Capanemateve conhecimento da ordem do presidente da commissão para que no fim daquelle anno se reunissem os chefes de secções em ordem a delibe- rarem ácerca do regresso da commissão para o Rio, ou da convenien- cia de continuar alguma ou algumas de suas secções para concluir trabalhos comecados. A isto observava o Dr. Capanema que a sua derrota seria de todo in- certa, por depender o seu ilinerario da natureza das formações geolo- gicas, da sua direcção, extensão e transformações, e que portanto par- tindo, como pretendia, da Serra Grande, era provavel que tivesse de seguir até o centro ou extremos da provincia do Piauhy. Aventava tambem, por essa occasião, a idéa de ligar o estudo das formações do Ceará ás do Rio de Janeiro, e reservando-se realizar esse projecto se os seus animaes de sella e de carga estivessem em estado de supportar essa jornada, ese a estação não corresse por demais desfavo- ravel para isso, pedia permissão de regressar á côrte, embarcando-se no porto que lhe ficasse mais proximo, ou dando alguma volta por lu- gares que offerecessem interesse scientifico. Neste proposito partiu o Dr. Capanema, tendo antes disso a 8 de Outubro de 1860 solicitado do presidente da provincia ordem para o embarque do seu adjunto, o capitão Coutinho, quando elle o requi- sitasse e o seu estado de saude lhe permittisse seguir viagem para a córte, o que só teve lugar em fins de Dezembro desse anno. Achava-se a commissão scientifica espalhada por todo o norte da provincia, occupada com a conclusão da sua tarefa ou proseguindo no plano adoptado, quando pela secretaria de estado dos negocios do Im- perio se expediu o aviso de 10 de Outubro de 1860, o qualacompanha- va uma cópia da tabella dos vencimentos que os membros e mais em- pregados da commissão scientifica devião perceber desde o principio daquelle mesmo mez, data da promulgação da lei de orçamento n.º 114, de 27 de Setembro do mesmo anno. Era bem de vêr que além da reducção nos seus vencimentos ou honorarios, ficavão supprimidos todos aquelles lugares que a tabella não mencionava,'e ainda os pro- prios garantidos por contracto. LXXXII PARTE HISTORICA Esta communicação porém, demorada em Sobral pela incerteza do lugar em que se acharia o presidente da commissão, só lhe chegou ás mãos a 9 de Janeiro do anno seguinte, quando deveria estar em vigor antes mesmo de transmittida oficialmente á comissão. O conselheiro Freire Allemão representou immediatamente, a 10 do mesmo mez, que as despezas estavão feitas até essa data, que os chefes das secções andavão dispersos pela provincia, que era insuffi- ciente o pessoal marcado para o serviço da commissão, assim como à verba para forragens de animaes, e que, emfim, não se havia attendido a engajamentos feitos na córte, e na propria secretaria do Imperio, de individuos cujos serviços erão aliás indispensaveis. Com quanto o governo imperial, attendendo ás razões expostas, mandasse posteriormente, em data de 19 de Fevereiro de 1861, que a referida tabella só começasse a vigorar de Fevereiro em diante, o serviço das secções se transformou, e em grande parte se interrompeu. Com o torpor da marcha regular dos trabalhos da commissão todas as secções soffrêrão, mas o transtorno foi incomparavelmente maior para a de astronomia e geographia. Em primeiro lugar, reduzida á metade do numero de adjuntos que seu chefe requisitára desde o principio para desempenho das suas in- strucções, quando estas lhe forão transmittidas, era manifesto que uma partee não pequena do serviço, como elleo havia ideado, devêra ter- se resentido deste desfalque de pessoal. A parte hydrographica, importante para o commercio e navegação, foi quasi completamente abandonada por falta de uma canhoneira, e por não haver na provincia navio mercante que aceitasse fretamento para o serviço da secção, ou que estivesse em condiçõesdeser para isso fretado. Com isto teve tambem o capitão-tenente Gabaglia de deixar de parte o estudo minucioso dos rios, estudo que deveria reunir o complexo de elementos necessarios para se resolver a questão das sêccas, o que no futuro pouparia não pequenas sommas ao Estado. Forçado a modificar os seus planos, o chefe da secção astrono- mica já no seu relatorio apresentado ao governo imperial, em 12 PARTE HISTÓRICA LXXXHI de Fevereiro de 1860, tinha declarado de maneira bem explicita que, em consequencia das circumstancias da provincia e dos re- cursos disponiveis da secção a seu cargo, não podia fazer mais que limitar-se a reunir dados para uma carta itineraria da provincia do Ceará, e registrar as observações meteorologicas para o estudo do clima e resolução de problemas agricolas. A nova tabella veio acanhal-o ainda mais, e circumscrever o seu plano a limites muito mais estreitos. A” deficiencia do pessoal secun- dario que se marcára para o serviço da secção, accrescião a incerteza da remessa dos fundos necessarios em tempo opportuno , distan- cias, difficuldades de communicações, e embaraços que surgirão de todas as partes com a observancia da referida tabella, embaraços que era preciso remover com frequentes e demoradas correspon- dencias. Em circumstancias quasi semelhantes, posto que soffressem menos, se achavão todos os outros membros : faltos de operarios, esperan- do constantemente fundos, que lhes chegavão tardios e sempre in- sufficientes, sem tempo bastante para que a modificação dos trabalhos, que era força adoptar, trouxesse ou mostrasse alguma vantagem, a sua continuação se tornára impossivel. A commissão conservava apenas um simulacro de vida, que só servia para tornar mais grave perante o governo e perante 0 paiz a responsabilidade daquelles que a representavão, porque se achavão á frente de suas secções. Entretanto os chefes das secções, não tendo conhecimento da la- bella, e resolvendo-se a arrostar todas as difficuldades. com tanto que bastasse a boa vontade para as superar, se tinhão de novo posto a caminho. O capitão-tenente Gabaglia continuava com os seus estudos pelo norte da provincia, apressando-se para que não ficassem de todo incompletos. Depois delle, pois que nenhuma demora quasi havia tido na For- taleza, a secção botanica, achando-se em circumstancias de empre- hender a nova entrada no sertão primeiro que as outras, tomou no LXXXIV PARTE HISTORICA principio a mesma direcção que na sua excursão havia seguido a prin- cipal turma da secção astronomica. Sahindo da Fortaleza a 9 de Outubro de 1860, passou a serra da Uruburetama, demarou-se nas | villas de Santa Cruze S. Francisco, e cortando pelo valle. a Assú, chegou ao Ipú, no sopé da Serra-Grande. a ” Deste lugar vingou a serra, correu os povoados de Caiupo-Gibiidie; É de S. Benedicto e S. Pedro, descendo della novamente para visitar a gruta do Ubajarra, donde passou á Villa-Viçosa. O inverno, que já corria adiantado, não permittia largas excursões. Ainda assim, de S, Benedicto passou á fronteira do Piauhy, e voltando á provincia examinou a serra da Meruoca e entrou em Sobral. Aqui recebeu as communicações atrazadas do governo, que à serem, como forão, sustentadas no essencial, trazião comsigo a con- clusão dos trabalhos da commissão. Demorando-se pois o tempo necessario para expedir estas ordens ás outras secções, e entender-se com os chefes que por acaso lhe es- tavão proximos, permittiu alguma folga aos animaes de carga, e se dirigiu a Canindé e Baturité, donde regressou à capital pela estrada: de Acarape e Pacatuba. Chegou á Fortaleza a 3 de Março, depois de percorrido o espaço de mais de 160 leguas, e d'aqui continuou nas suas herborisações pelos taboleiros, serras de Maranguape e Aratanha, em quanto aguardava o regresso das mais secções. O Dr. Capanema, partindo pouco depois, em Novembro de 1860, percorreu a Uruburetama, onde cahiu enfermo pela quarta ou quinta vez depois da sua chegada ao Ceará, e ainda convalescente visitou a lagôa do Ripina, celebre pelos seus fosseis, passou a Mundahú. a Sobral, donde foi examinar as aguas thermaes da fonte do Pagé, e por fim a fertil serra da Meruoca. Por esse tempo, porém, e já antes disso a sua secção se achava sem ajudante, porque por aviso de 13 de Novembro de 1860 o go- verno imperial declarára não poder ter lugar o contracto feito com Numa Pompilio de Loyola e Sá, pornão haver margem na lei do PARTE HISTORICA LXXXV orçamento então vigente para despezas extraordinarias. Comtudo esse - ajudante não oceupava nenhum lugar novamente creado, e bem que "por lie “de conhecimentos não pudesse substituir ao adjunto, 0 inho, desempenhava um mister indispensavel nas circum- ifficeis em que se via a secção geologica, que achava nelle utã recurso que poderia ser precioso, e que o remunerava com venci- mentos reduzidos. O Dr. Capanema despediu portanto o seu ajudante ; mas isolado como se achava, viu-se obrigado a modificar tambem o seu plano de viagem, e communicou não poder d'ahi em diante executar tra- balho algum de exploração, cifrando-se o que podia fazer a uma simples excursão de reconhecimento, e isso o mais rapidamente que pudesse, por uma pequena parte da Serra-Grande. Á vista desta exposição, o governo imperial, por aviso de 19 de Fevereiro de 1861, tomando novo accôrdo, autorisava a contractar Numa Pompilio para acompanhar a secção geologica ; esse aviso porém só pôde chegar ás — -mãos do presidente da commissão em Março seguinte, e quando a A de “commissão não estava mais nem com animo, nem em condições de + "poder continuar, e quando por outro lado a secção geologica acabava de ser viclima de outros embaraços, que tornavão inutil este novo e agora extemporaneo favor do governo. Frustrado o seu plano de exploração na serra da Ibiapaba e via- gem que projectára ao Piauhy, vendo-se por falta de ajudante for- cado a attender a todos os detalhes do material da secção, sem quasi lhe ficar tempo para se occupar de outra cousa, dirigiu-se para a Granja. Já tinhão por este tempo começado as chuvas, estação em que os rios da provincia se transformão em torrentes: e elle, pela expe- riencia adquirida na sua volta do Crato, não querendo nem que o comboi soffresse demora, nem arriscar a sua bagagem e papeis em uma viagem enfadonha, e que no inverno não é de todo isenta de perigo, resolveu deixal-a entregue a um negociante, incumbindo-o de remettel-a com toda a segurança; o que este fez, mandando-a como melhor acondicionada em um hiate que do porto da Granja Cc. 5. (12) LXXXVI PARTE HISTORICA seguia derrota para o da Fortaleza, e no qual, tempos antes, a secção astronomica tinha, não sem risco, emprehendido alguns trabalhos. Effectuado o embarque de seus effeitos e dos de sua seeção , o Dr. Capanema, determinado a fazer, como promettêra, uma ida A excursão pela Serra-Grande, seguiu de Sobral em companhia do chefe A da secção zoologica. Visitárão Iboassú, as minas de cobre do Bary, Villa-Vicosa, a gruta do Ubajarra, e passando por S. Benedicto e Campo-Grande descêrão pelo Ipú, examinando o lugar donde, segundo é voz, se havião extrahido galenas argentiferas ; mas 0 rigor do inverno, a rapidez da sua marcha, a estreiteza dos meios da sua secção, não lhe permittião nenhuma exploração séria, e, como con- vinha, demorada. Além das mencionadas, não pôde tambem verificar as minas de Villa-Nova de sulphuretos de antimonio e de zinco, de molybdato e phosphato de chumbo, as de ouro de Juré e Santa Maria, os fosseis da lagôõa da Ripina, e tantas outras curiosidades ou precio- sidades de que abunda o norte daquella provincia, e de que já havião amostras no museu nacional. 2-8 Regressou emfim á capital, e ahi, como se tudo se houvesse cons-. pirado para lhe sahir ao revez, soube que o hiate Palpite, no qual se havia embarcado o seu trem, naufragára, segundo se suppõe, a 13 de Março, salvando-se apenas a tripolação em uma lancha. As providencias tomadas pela presidencia da provincia, a pedido da commissão, forão infructiferas, restando só a esta lastimar a irrepa- ravel perda dos importantes papeis da secção geologica. Hlrº e Exrº Sr. — Tendo-me chegado a noticia de que se perdêra no dia 13 do mez passado o hiate Palpite, no qual vinha a maior parte da bagagem do chefe da secção mineralogica da commissão scienti- fica, Guilherme Schich de Capanema, que a havia deixado na Granja para ser remettida para esta capital, e não constando como, nem onde se fez este naufragio, e nem se se salvou alguma cousa ou se haverá possibilidade de salvar-se; vou rogar a V. Ex. que se sirva dar as providencias que julgar necessarias para que as autoridades locaes procurem salvar, se fôr possivel, essa bagagem, pois nella se achavão Gra ki PARTE HISTORICA LXXXVII objectos de subido valor para a commissão, como são livros e registros das observações feitas no interior da provincia. “ Reiteroa V. Ex. os protestos da minha estima e consideração. — Deosguarde a f. Ex. — Ceará, 4 de Abril de 1861. Jr e Exmo Sr. Antonio Marcellino Nunes Gonçalves, presidente — daprovincia. Francisco Freire Allemão, presidente da commissão. N. 4.º Palacio do governo do Ceará, em 6 de Abril de 1861. Hlrº e Ex2º Sr. — Pelo officio junto por cópia, que me acaba de dirigir o capitão do porto, verá V. Ex. as providencias que forão dadas com o fim de salvar-se a bagagem do Dr. Guilherme Schuch de Capanema, chefe da secção mineralogica, que perdeu-se em o hiate Palpite, como V. Ex. reclama em officio de 4 do corrente. Reitero a V. Ex. os protestos da minha estima e consideração. Deos guarde a V. Ex. Hlrº e Exrº Sr. conselheiro Francisco Freire Allemão, presidente da commissão. O presidente, Antonio Marcellino Nunes Gonçalves. Communicação a que se refere o officio supra. > Jllrº e Exrº Sr. — Em virtude da ordem de V. Ex. em officio de hontem, acompanhando o do Sr. presidente da commissão scientifica, e que recebi pelas seis horas da tarde, dirigi-me logo á casa commer- cial de Pacheco & Mendes, proprietarios do hiate Palpite, e ahi fui informado que havia noticia, por carta que recebêrão de um indivi- duo da Granja, de ter naufragado aquelle hiate no dia 13 do mez passado, e que se tinha salvado a tripolação em uma canôa, aportando LXXxXVIN PARTE HISTÓRICA alli no dia 5; não constando como nem onde se fez este naufragio, nem se salvou-se alguma cousa do seu carregamento. Dando portanto as providencias por V. Ex. recommendadas, fiz imediatamente seguir a jangada do serviço desta capitania; com o pratico João Gomes Bastos, e quatro praças de sua tripolação, deter- minando-lhe que fosse até o porto da Granja, tocando-nos portos in- termediarios, afim de que, procurando obter noticias onde se deu o naufragio, empregasse a maior diligencia na salvação do mesmo | hiate e da bagagem do Sr. Dr. Capanema, chefe da secção mi- neralogica da commissão scientifica, e mais objectos de subido valor pertencentes á mesma commissão, que vinhão a bordo, conforme se vê daquelle citado officio. E porque semelhante trabalho dependesse da necessaria coadju- vação, ordenei aos capatazes das respectivas estações que prestassem - ao referido pratico todo e qualquer auxilio para o melhor desempenho do serviço de que o encarreguei. Reconhecendo-se quanto são diminutos os vencimentos que per- cebem as praças no serviço desta capitania, e por cuja razão vivem na maior penuria, tive de fornecer aos cinco individuos, que seguirão na jangada, carne sécca, farinha e dinheiro, perfazendo tudo a quan- tia de cincoenta mil réis, a qual rogo a V. Ex. se sirva de dar as suas ordens para me ser indemnisada pela repartição competente. Deos guarde a V. Ex. Capitania do porto do Ceará, 7 de Abnil de 1861. Hrº e Eme Sr. Dr. Antonio Marcellino Nunes Gonçalves, presidente da provincia. Rodrigo José Ferreira, capitão do porto. “Conforme. —Senival Odorico de Moura. PARTE HISTORICA LXXXIX Em meiados de Abril de 1861 achavão-se reunidos na cidade da Fortaleza as quatro secções que andavão na provincia; a deliberação não foi longa: missão deixára de estar em condições de tra- balho. Entendemos porém dever trasladar as communicações ofliciaes entre a commissão e o governo imperial, porque em outras sobre o - mesmo assumpto, sem duvida por brevidade do expediente, se omittia “uma circumstancia, que aliás não era indifferente: — o pedido da “commissão para ser chamada à córte. Eis a representação da commissão com o aviso que teve em resposta do governo imperial: Hr e Er Sr. — E do meu dever participar a V. Ex., afim de que se digne fazer chegar ao alto conhecimento de Sua Magestade o Impe- rador, que só hontem se puderão reunir nesta capital as diferentes secções da commissão scientifica, que se achavão dispersas pelo inte- rior da provincia; e em virtude do art. 22 das nossas instrucções pas- sámos a consultar sobre o destino da commissão, expondo os respecti: vos chefes o seguinte : tm As secções botanica e zoologica tem percorrido toda a provincia e feito as suas collecções da melhor maneira que lhes foi possivel, faltando sómente a esta ultima estudar a ichthyologia do litoral, da qual se vai occupar agora, trabalho em que poderá gastar de dous a tres mezes. | As secções astronomica e geologica não tem os seus trabalhos completos, e para isso necessitão ainda, não só de tempo, mas tam- bem de reformar o seu pessoal, e entender-se nessa córte com 0 governo imperial sobre os meios mais adequados de levar ao cabo a sua tarefa. Quanto á secção ethnographica, V. Ex. sabe que o chefe se acha actualmente explorando as provincias do Pará-e Amazonas, para onde seguiu em Agosto do anno proximo findo, visto esta provincia não lhe oferecer a materia mais importante dos estudos que lhe forão encarregados. Attento o exposto, se o governo de Sua Magestade o Imperador XC PARTE HISTORICA mandar que a commissão continue, será conveniente que os chefes de secção sejão autorisados para irem á côrte fazer uma exposição do estado de seus trabalhos, e dos meios de que carecem para ultimal-os. O governo imperial resolverá como melhor entendi Va - Reitero por esta occasião aV. Ex. os protestos da minha perfeita estima e subida consideração. -. Deos guarde a V. Ex. Ceará, 13 de Abril de 1861. —Ill”º e Ex” Sr. ministro e secretario de estado dos negocios do Imperio. — Francisco Freire Allemão, presidente da commissão. 4.º Secção. — Ministerio dos negocios do Imperio. —Rio de Janeiro, em 10 de Maio de 1861. “- Communica V. S. em seu officio de 13 de Abril ultimo, que no dia precedente, tendo-se reunido nessa capital as differentes secções da commissão scientifica, constou da exposição dos respectivos chefes que a secção botanica Já tinha feito as suas colleeções, que á z00- logica ainda faltava estudar a ichthyologia do littoral, que a astro- nomica e geologica não tinhão ainda completado os seus trabalhos, e para isso necessitavão não só de tempo, mas tambem de reformar oseu pessoal; e finalmente que a secção ethnographica estava actual- mente explorando as provincias do Pará e Amazonas, onde se achava a materia mais importante dos estudos que lhe forão incumbidos. E attento o exposto, consulta V. S. ao governo imperial se a com- missão deve continuar, em cujo caso será conveniente que os chefes das secções sejão autorisados para virem á côrte fazer uma exposição do estado de seus trabalhos, e tratar dos meios de que careção para ultimal-os. | Em resposta tenho de declarar a V. S. que o governo imperial julga que nas circumstancias actuaes à commissão não deve continuar ; porém regressar á gôrte, onde e depois de se entender ella com o mesmo governo se assentará na conveniencia de modificar o pessoal para completar os seus trabalhos, se fôr julgada necessaria a sua con- Unuação. - Cumpre pois que V.S. faça entrega ao presidente dessa provincia ck ae E; : — A a PARTE HISTORICA xcl Eae de todo o material do uso da commissão, e se entenda com elle ácerca dos meios de ficar bem guardado, afim de que, no caso de continuar ella mais tarde, Seja aproveitado tudo quanto existe. Previno outro- sima V.S. que nesta data. solicito do ministerio de agricultura, com- “mercio e obras publicas, a expedição das convenientes ordens para que se dê passagem de estado com comedorias, ou por conta do governo, aos ps da cormimissão para o seu regresso ao Rio de Janeiro. Deos guarde a VS. — José Antonio Saraiva.—Sr. presidente da commissão scientifica de exploração. e Q) presidênio? do Ceará, baseando-se no aviso que lhe fôra dirigido, escrevia, como foi publicado no expediente do governo da provincia : INT —Palacio do governo do Ceará, em 5 de Junho de 1861. Hire e Emo Sr, — Remetto a V. Ex., para os fins convenientes, o aviso do ministerio do Imperio de 10 do mez proximo passado, declarando que nas actuaes circumstancias a commissão scientifica não deve con- tinuar nesta provincia, devendo regressar para a córte. Renovo a V. Ex. os protestos de minha estima e distincta consi- deração. Deos guarde a V. Ex. — Ileº e Ex”º Sr. conselheiro Francisco Freire Allemão, presidente da commissão scientifica nesta provincia. — Manoel "Antonio Duarte de Azevedo. “O conselheiro Freire Allemão, apenas recebeu esta ordem do go- verno imperial, officiou aos chefes de secção que se recolhessem com toda a brevidade á capital da provincia, afim de regressarem para a córte. Entregou por ordem que para isso teve do presidente da pro- vincia, o Sr. Manoel Antonio Duarte de Azevedo, 91 animaes de sella e carga do serviço da commissão, e aos Srs. engenheiros Berthot e José Eduardo Barbosa todo o seu importante material; e no dia 13 de Julho de 1861 embarcou no paquete da companhia brasileira Cruzeiro do Sul, tendo tido pouco mais de dous annos e meio de demora na sua exploração. . 4 ] - +, ( 4 qe b pd. j E! hiial À o ç: tj DERIVAR | Dana LE - e 47d” o Pur du O E» Po sdgo PATOS & E Lud aghosii “ PN PR pr Tr TV UI | is m ' + 14 Us ahá | / 1 : > e » as Ji dsripnt ' A IA Ê | Ato? h sh | a | ; A » | k E Y y | à p ] E ad mi; 18 , j . 4 Neri, o pb Li, Cu DS À | o . És i o é o a PRA To Bat! | Í + az nad ] k ' Lip pes E É NO | | | q+ cê i ds É Ir MA pi ' | Et iá | dê , : vt: dit ( ins SPA ) rs . Ei , E * 4 w , 3 " ma É , x PRA Y a É « a RELATÓRIOS DOS MEMBROS DA (OMMISSA( LIDOS NO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO Secção botanica. Senhores. — Tendo eu hoje, na qualidade de chefe da secção - de botanica da commissão sctentifica, de dar conta do como aquella se houve no desempenho do seu encargo, desejaria poder fazel-o de uma maneira satisfactoria : o estado porém de suas collecções, que ainda se não puderão distribuir e classificar até 0 ponto de saber-se que-numero de especies encerrão, nem o que poderãô offerecer de novo á sciencia, e juntamente o desordenado de suas notas me inhabi- lita para isso. Limito-me portanto nesta occasião a uma exposição succinta do itinerario da secção, é a fazer algumas considerações geraes sobre a vegetação e industria agricola da provincia. Fallando das plantas, abster-me-hei de todo o apparato da nomen- clatura scientifica, e me conservarei na altura das generalidades para não causar enfado. Será pois este meu escripto de minimo Interesse, e carecido de verdadeiro valor scientifico; mas ha de servir, creio eu, para mos- trar que se não tivermos a fortuna de apresentar resultados, que bem correspondão ás vistas do Instituto e do Governo, puzemos ao menos diligencia para os conseguir. E eu ficarei contente se durante a sua leitura não desmerecer vossa attenção e benevolencia. XCIV RELATORIO PRIMEIRA PARTE Minerario. Sahindo a commissão deste porto em 26 de Janeiro de 1859, com prospera viagem amanheceu no dia 4 de Fevereiro em frente da cidade da Fortaleza. Nesse dia desembarcámos debaixo de repetidas pancadas de agua. Erão as primeiras chuvas do anno. E no Ceará, como nas outras provincias que estão em identicas condições, é um dia jubiloso o em que voltão as chuvas depois de haverem cessado por seis e sete mezes. São a esperança do criador e do lavrador. O aspecto risonho do paiz nos encheu de contentamento, é admi- rados contemplavamos o verdor de sua vegetação, por quanto na Bahia e Pernambuco haviamos notado que as plantas se resentião bastante da sêcca que reinava por todo o norte, e estava Já dando serios cuidados. Até Julho, em quanto durava o inverno, e em quanto não chegavão do sertão os animaes para transporte da bagagem, nos detivemos, na capital, empregando o tempo no exame de seus arredores. As secções separadas ou unidas, segundo permittia a natureza de seus estudos. fizerão excursões pela terra dentro, na distancia de cinco e seis leguas da cidade. A secção de botanica fez varias subidas á serra da Aratanha, e a outras de menor importancia. Era tempo da florescencia, e pu- demos colher bons exemplares de grande numero de especies, os quaes convenientemente preparados forão mettidos em caixas de folha de Flandres, soldadas e revestidas de madeira. Deste modo acon- dicionados, estes como os mais que se forão colhendo chegarão ao Rio de Janeiro em muito bom estado. Approximava-se o tempo da entrada no sertão, e, segundo as nossas instrucções, a commissão devia andar toda junta pelo inferior da provincia. Quando porém fomos informados das circumstancias do DA SECÇÃO BOTANICA XCv paiz, reconhecemos que era isso impralticavel, ou ao menos pouco prudente, visto principalmente o grande numero de animaes de carga e de sella que levavamos, os quaes devião não só entorpecer os nossos movimentos, mas até pôr-nos muitas vezes em grandes em- baraços pela falta de pastos e de outros meios de alimentação. Demais as secções occupadas, -cada uma em estudos diversos, ver-se-hião fre- quentemente forçadas a seguirem rumos menos convenientes a seu melhor aproveitamento , e a perderem tempo esperando umas pelas outras. Assim, ponderado o negocio, assentámos em o trazer ao conhecimento do governo imperial, que attendendo ás nossas ra- zões, permittiu-nos andar separados ou juntos, como mais conviesse. Então se concordou em que andassem juntas as secções de zoolo- gia e de botanica, as de mineralogia e de ethnographia, e a de geographia e astronomia ella só, visto que era em tudo mais nu- merosa que as outras. Concluidos os aprestos de viagem, em 16 de Agosto sahimos da cidade da Fortaleza, as secções de zoologia e de botanica, com des- tino à cidade de Aracaty, onde chegámos em 27 do mesmo mez, achando já ahi o Dr. Manoel Freire Allemão , adjunto da secção de botanica, que com o adjunto da secção de zoologia havia partido “alguns dias antes de nós, tomando caminhos um pouco diversos. Esta viagem avaliada em 30 leguas, feita pelos taboleiros arenosos do littoral, offereceu-nos minguada colheita. por ser a sua vegetação mui analoga á das vizinhanças da capital. Em Aracaty nos demo- rámos vinte e tres dias, que forão dados a explorações pelas cercanias, merecendo-nos particular attenção os vastos comoros de arêa á borda do mar, que nos apresentavão uma flora variada. E o solo em que assenta a cidade de Aracaty formado pelas allu- viões da gigantesca torrente denominada Jaguaribe, e tem uma vege- tação de transição entre as regiões do littoral e do sertão ; alguns montes ahi se levantão soltos e raros, que são antes penhascos amon- toados e fragosos, e a que a gente do paiz chama — serrotes —, sobre os quaes apenas medra uma vegetação escassa e enfesada. Aqui pois começavamos a familiarisar-nos com a natureza do sertão. XGVI “RELATORIO Em meiado de Setembro nos internámos, seguindo as ribeiras do Jaguaribe até Icó, e as do Salgado até Missão Velha, donde entrámos nos Cariris, fazendo caminho de 80 leguas, pelo computo dos habi- tantes. Foi esta viagem no rigor da sêcca; os leitos dos rios erão largos areaes; as matas estavão desfolhadas, e os pastos torrados ; mas em meio desta paisagem entristecida sobresahião algumas arvores, que a Providencia quiz que nunca se despojassem de suas folhas, e que fossem abrigo a toda a sorte de viventes. Taes são a oiticica, a marizeira, 0 joazeiro, etc. Mais notaveis se fazião outras que, abra- sadas pelos estos de Setembro, ainda sem folhas adornavão-se de vistosas flóres. Estas erão as caraúbas, os pereiros, os mulungús, etc. Emfim são as amplas margens do Jaguaribe, n'um tracto de 25 leguas mais ou menos, cobertas de verdadeiras florestas de carnaúbas, que sempre verdes alegrão aquellas paragens. Em 7 de Outubro estavamos no Icó, bonita cidade do sertão. Nella estivemos uns quarenta dias, que forão empregados no estudo das plantas sertanejas, que aqui, como na villa de Lavras da Mangabeira, onde gastámos doze dias, se nos offerecêrão em grande parte florídas. Deixámos a villa de Lavras em 3 de Dezembro, e no dia 8 entrámos no Crato. Estavamos nos celebres Cariris, verdadeiro oasis em meio daquelles desertos, e tinhamos á vista o monte Araripe, de notavel formação: em cima é uma larga e nivelada planura sêcca, mas to- davia revestida de uma vegetação especial, e com pastagens que se denominão —agrestes—: seus flancos sinuosos, corroídos, escarpa- dos, são chamados talhados: destes brotão jorros de agua limpida e perenne, que refrescão os contornos daquelle monte, impropriamente denominado serra. São essas aguas que mantém alli, em uma cinta de duas a tres leguas de largura, uma vegetação luxuriante, e a admiravel fertilidade desse abençoado torrão. Erão os Cariris, nos tempos primitivos, sombreados de alterosas matas, de que hoje alguns restos estão mostrando o que já forão. Em quanto o adjunto da secção ia colhendo e estudando as plantas do alto do Araripe, de seus talhados, e dos outeiros de roda da cidade, DA SECÇÃO BOTANICA XCVII eu e o chefe da secção de zoologia fizemos, em fins de Janeiro de 1860, uma excursão ao Exú, através do Araripe. Vista aquella parte dos sertões de Pernambuco, seguimos para a villa do Jardim, onde nos separámos, e eu voltei para o Crato, passando pela villa da Bar- balha, tendo feito um gyro de cêrca de 40 leguas. Era 4 de Fevereiro, havia já começado o tempo chuvoso, prose- guiamos no estudo da Flora destes lugares, e uma progressiva flores- cencia ia enriquecendo o nosso hervario. O clima porém do Crato me não convinha, e, sempre mais ou menos adoentado nos tres me- zes da minha estada alli, me vi obrigado a deixal-o. Em 8 de Março, separando-me dos meus companheiros, parti da- quella cidade, entregando-me a todas as contingencias do inverno, em estado de saude mal seguro. Desci ao Icó, e d'ahi tomando ca- minho mais curto, por veredas e travessias, cheguei á capital em 21 de Abril. Com uma viagem de 70 a 80 leguas, feita a pequenas jor- nadas, por pessimos caminhos, passando rios então caudalosos, apa- nhando copiosos chuveiros, cheguei todavia quasi restabelecido. Tal é a salubridade daquelles sertões! Negocio urgente me chamava ao Rio de Janeiro, e obtida uma li- cença de dous mezes, sahí do Ceará em fins de Junho, e em prin- cipios de Setembro estava alli de volta. O meu adjunto, que eu havia deixado no Crato com a secção de zoologia, achava-se nesse tempo em Baturité ; e sabendo da minha volta, desceu logo para onde eu estava, e apresentou-me a seguinte narração de sua viagem do Crato até Baturité : « Em 1860, no decurso do mez de Março e da primeira quinzena «de Abril, visitei differentes sitios da vasta mata, que cobre a parte «central e levemente deprimida da chapada do Araripe. Essas matas «são bem inferiores, em vulto e em variedade de componentes, ás que «revestem as encostas da serra, de onde nascem os arroios perennes «dos Cariris, e que são denominadas matas virgens das nascenças. - « Nas da chapada eleva-se pouco o arvoredo, e baixa quasi ao porte «do das catingas : em geral são os troncos de reduzida grossura, como « nas matas de substituição que se chamão caapoéras no sul do Im- Cc. s. 13 XCVIII RELATORIO « perio; e a variedade de plantas é substituida pela continua repetição « de individuos das mesmas especies, predominando as denominadas « batingas, uma das quaes fornece excellente material de construeção. « Esta fórma de vegetação é transitiva entre a de catingas e a das matas «virgens propriamente ditas, que os autocthones chamavão caa-eté. « Encontrão-se sitios botanicos da mesma natureza, fóra da cha- « pada do Araripe, nos terrenos baixos e arenosos do Cariú, no alto « das serras psammiticas do sertão do Assaré, e na segunda zona de ve- « getação da Ibiapaba. « Depois de completar a collecção botanica dos Carirís com a « acquisição de amostras das gramineas do Araripe, e dos ypús ou « brejos,-pela maior parte então floradas, no meiado de Abril partí da « cidade. do Crato para o sertão dos Inhamuns. Nesta viagem, em que «acompanhei os membros da secção zoologica, atravessei o sertão do « Cariú, derivado esse nome do rio que o fertilisa, segundo o costume «de repartirem os sertanejos naturalmente a provincia em tantas «ribeiras, quantas são as que percorrem valles mais ou menos bem « limitados. « Demorámo-nos alguns dias na povoação mais importante do «Cariú, a do Assaré, a 20 leguas do Crato: e visitei então as serras « proximas do Piripirí, Sant'Anna, e Araçás. A citada povoação é séde « da matriz de uma freguezia bastante populosa e productiva. Possue « bellos terrenos de cultura e excellentes catingas ou taboleiros pro- « prios para criação, pelo modo por que essas industrias se exercem no « Brasil. E cortada por grande numero de rios, cujas margens alar- « gão-se em prolongados baixios revestidos de viçoso arvoredo, e cujo « chão arenoso, mais ou menos fresco, é prestavel á cultura estival « denominada de vasantes. Muitas arvores, que vegetão por essas lezi- «rias, dão excellentes productos de forragem, e constituem o unico « recurso do criador na falta dos pastos naturaes. « No começo de Maio sahimos do Assaré,e depois de atravessarmos «o fertil valle dos Bastiões, percorrido pelo rio da mesma denomina- « ção que desagua no Cariú, entrámos no sertão do Saboeiro. A villa « do Saboeiro, sita á margem esquerda do Jaguaribe, é séde da matriz, DA SECÇÃO BOTANICA XCIX «e cabeça de uma das comarcas mais ricas do Ceará. Havião até então « sido tão escassas as chuvas semestraes que o rio não corria. Vestido «de catingas em quasi toda a sua extensão, arido e sêcco, o terreno « deste sertão está quanto á possibilidade de facil cultura em condições « bem diversas das da ribeira do Cariú, ou sertão do Assaré, em que se « encontrão frequentemente fechados baixios. Por isso só é exequivel « aqui a cultura estival de vasantes nos depositos frescos de areisco do «leito do Jaguaribe. « Perto da villa do Saboeiro o leito do rio é profundamente talhado «em pedra nua, e ahi se conserva agua por todo o verão. Nesses « depositos. quê chamão caldeirões, fazem-se grandes e frequentes « pescarias depois que o rio cessa de correr. « Do Saboeiro tomámos a estrada que sobe á margem do Jaguaribe «até à villa do Tauá. Chegámos a S. João do Principe em meiado de « Maio. Estava nossertões de Inhamuns; e, contra minha expectativa, «as fórmas de vegetação, que já conhecia de observal-as nos sertões «de Icó, Lavras, etc., não havião mudado: erão alguns taboleiros, « poucos baixios, e geralmente catingas em que abundava a estimulosa « Favella. « As nascenças do Jucá e Puiú na Serra Grande, achão-se os me- « lhores terrenos araveis desta parte da provincia, que são de terra « alluvial, vestida da vegetação dos cobertos ou baixios. Fóra desta «zona, que cinge a encosta da serra, só se encontrão catingas. « Parti logo de Tauá a visitar o sitio mais proximo da Serra Grande, « que limita por aquelle lado a provincia, e dirigí-me ás cabeceiras do « Puiú, que distavão da villa 18 leguas. Os talhados psammiticos da «serra tem all pouca altura e são mal guarnecidos de vegetação: o «chão da serra é ondulado, com depressões em baixadas, em que «vição os batingaes, constituindo a mata de chapadas; e em todos os « mais sitios coberto de carrascos, que já se mostravão mais ou menos « resequidos. As terras alli são lavradas exclusivamente para a cultura « da maniva, cujo producto é custoso ; pois que a falta de aguas nativas «no alto da serra impede que os cultivadores erijão as suas habitações «e fabricas nos mesmos sitios em que cultivão. A chapada da serra € " RELATÓRIO «é pois completamente deshabitada. A pedra, que constitue os ta- « lhados da serra, cava-se pela base em lapas onde ha nascença de « agua potavel, ou em grutas semelhantes ás que forão visitadas pela « secção geologica nos Carirís. Não ha porém arroios perennes nestes « sitios. | « De volta a Tauá parti para Baturité, separando-me então do pes- . « soal da secção zoologica. Na raia dos Inhamuns desci a serra dos « Guaribas, que separa aquelle do sertão de Mombaça, formando ao « primeiro uma sorte de socalco natural, do que resulta ser o seu nivel «médio mui superior ao do outro. As ricas matas das serras dos « Guaribas estão já mui taladas pelos plantadores dos Inhamuns, « que constituem a maioria de seus possessores. Nos seus terrenos se « fazem as grandes plantações vernaes de legumes, de cujos productos « vêm-se aperceber annualmente todos os criadores daquelle sertão. « São ainda mui ricas as matas da serra em balsamos, copahibas, «jatobas, jacarandás ou violetes, etc. «A! descida desta serra entrámos no sertão de Mombaça, que é todo « revestido dessa fórma de vegetação denominada de cobertos, ou matas « de cobertos. Estas matas de Mombaça, onde abundão a rabugem, o «violete, o pão branco cerneiro, etc., são semelhantes ás que se en- « contrão nas proximidades das serras de outras partes da provincia. « Todo o terreno, que ellas vestem, é facilmente cultivavel. A canna, « de introducção recente nos sertões, oceupa alli em sua cultura grande « numero de braços: é plantada ordinariamente nas revencias dos açu- « des, em cujas bordas frescas vegetão larangeiras, coqueiros, bana- «neiras, etc. Muito menos coberto que o precedente, raleado por «taboleiros, em que se formão todos os annos abundantes prados « naturaes, o sertão de Quixeramobim é, como o de Riacho do Sangue, « quasi exclusivamente criador. As suas melhores matas guarnecem «as bases de serros pouco elevados. Ambos estes sertões pertencem á «vasta zona dos Páos brancos, que abrange mais da metade da « provincia. ; « Continuei de Quixeramobim a minha viagem até á serra de Ba- « turité, onde cheguei em um dos primeiros dias de Junho. Ahi me a. Kd DA SECÇÃO BOTANICA ci « demorei até Agosto empregando esse tempo em visitar as quebradas «da serra, e os seus elevados e selvosos cimos, que alimentão hoje «uma população laboriosa, e as matas de coberto das suas abas, sitio «emque se acha plantada a florescente cidade de Baturité. D'aqui fiz «uma viagem de exploração ao sertão de Intans, a 10 leguas mais ou «menos, cujo terreno ondulado é de vegetação toda carrasquenha: e «uma: segunda á Serra Azul, a 18 leguas, na qual tem suas nascenças «orio Pirangi, Como as de Baturité, Uruburetama, Machado e Mattas, «a Serra Azul é nas partes elevadas coberta de floresta virgem, que «reverdece, por brotamento, de Setembro a Outubro, no entanto que « as de suas encostas pedregosas e aridas estão resequidas nessa época, « como os sitios do sertão. « Em Agosto parti para a Fortaleza. « Manoel Freire Allemão, adjunto da secção de botanica. » Algumas contrariedades retardavão os preparativos da segunda entrada no sertão, em direcção á Serra-Grande ; e como a secção de botanica se achasse primeiro que as outras em circumstancias de emprehender a viagem, sahiu ella só da cidade da Fortezela no dia 9 de Outubro de 1860. Desejando visitar a serra de Uruburetama, para alli nos encaminhámos fazendo um pequeno rodeio, e atravessando os sertões aridissimos daquella parte da provincia ganhámos as alturas da serra desejada, o que nos deu refrigerio e descanso. Tres dias passímos na antiga villa de Santa Cruz, hoje povoação decadente, fazendo herborisações. Descemos depois para a villa de S. Francisco, situada na fralda da mesma serra, e no dia seguinte continuámos nossa viagem através do valle do Aracaty-Assú, sertão sêcco, quentissimo, e de aguas salobras, é parámos na villa do Ipú, em baixo da Serra-Grande. O que no Ipú ha digno de ver-se é a cascata, que alli forma o peque- no rio Puçaba, que, lançando-se do tope da serra, quando engrossa- do pelas chuvas, dá um panno de agua estreito, mas de 600 palmos de altura ; agora porém que o vimos em tempo sêcco, formava apenas uma lata, que o vento dissipava em meio caminho. São as aguas Ci RELATORIO deste ribeiro, sempre constantes, que entretém uma bemfazeja hu- midade nestes sitios, dando-lhes continua verdura e fecundidade incansavel. Seis dias aqui consumimos em herborisações e outros estudos; e em 31 de Outubro subimos a Serra-Grande por uma escabrosa la- deira, como são todas as deste lado da serra. O nome de Serra-Grande havia creado em minha phantasia a ima- gem de uma serrania alterosa e revestida de magestosas malas : acendia-se-me o desejo de a ver, e para ella caminhava com certa sofreguidão ; mas todo esse alvoroço acalmou apenas a avistei de longe rasa como o Apodí e Araripe. Seus bosques, de que já não resta senão a lembrança, dizem que forão ricos em optimas madeiras. (O nosso modo barbaro de cultivar a terra deu cabo de tudo. A temperatura subiu, as aguas diminuirão, e os effeitos das séccas já alli se fazem sentir. Viajámos por cima da serra, passando pelas povoações de Campo- Grande, S. Benedicto, e S. Pedro, demorando-nos em cada um desses lugares 0 tempo que nos era indispensavel para estudar a sua vegela- ção. De S. Pedro descemos ao sertão para vermos à gruta da Ubajarra. Em o 1º de Dezembro entrámos em Villa-Viçosa, antiga missão da Ibiapaba, fundada pelos religiosos da Companhia de Jesus. Esta villa, que mostra 1º em caminho de prosperidade, está lindamente assen- tada sobre uma sorte de socalco da serra, que aqui toma um aspecto montuoso e severo, e permitte estender os olhos pela amplidão dos sertões. Na pintura destes lugares se exerceu tambem a penna de ouro do padre Antonio Vieira. « Da altura destas serras, disse elle, não « se póde dizer cousa certa, mais que são altissimas, e que se sobe, «ás que o permittem, com maior trabalho da respiração que dos « mesmos pés e mãos, de que é forçoso usar em muitas partes. Mas « depois que se chega ao alto dellas pagão muito bem o trabalho da « subida, mostrando aos olhos um dos mais formosos paineis, que por « ventura pintou a natureza em outra parte do mundo, variando de « montes, valles, rochedos, e picos, bosques e campinas dilatadis- «simas, e dos longes do mar no extremo dos horizontes. » DA SECÇÃO BOTANICA Cl O montuoso da paisagem, a amenidade do clima, as trovoadas entre 1e 3 horas da tarde, tudo nos lembrava o Rio de Janeiro. Estivemos nesta villa quasi todo o mez de Dezembro, herborisando por suas circumvizinhanças e pelos altos da serra : fizemos mesmo d'ahi uma excursão até traspassar as fronteiras do Piauhy. Em 29 de Dezembro descemos de Villa-Viçosa, dirigindo-nos para a serra da Meruoca, que subimos em 2 de Janeiro de 1861. Uma grande parte desta serra é admiraveimente apropriada para a plan- tação da mandioca, que a faz um celleiro daquelles sertões; em outra cultivão o algodão; certos lugares produzem o café; os generos ali- menticios vem por toda a parte. Suas matas primitivas forão de todo destruidas. O clima é assás fresco e salubre. Na pobrissima povoa- ção do mesmo nome estivemos seis dias. As chuvas porém, que neste anno sorprenderão a todos por antecipadas, nos incommodavão, e embaraçavão os nossos estudos, obrigando-nos a deixar esse lugar, que aliás nos ia offerecendo abundante e variada colheita. De Meruoca nos despedimos em 9 de Janeiro, e nesse mesmo dia entrámos em Sobral, cidade que se póde chamar a perola do sertão. Doze dias aqui passámos molestados pelos calores e tormentas da estação. De Sobral nos partimos em direitura a Baturité, indo em nossa companhia até a altura da serra do Pagé o chefe da secção de mineralogia. Andando rodeados de todos os inconvenientes da quadra invernosa, em 29 de Janeiro alcançámos Canindé, villasinha de aspecto risonho, á beira do rio que lhe deu o nome. Alli tomámos seis dias para descanso, principalmente dos cavallos, que tinhão de subir a serra de Baturité, cujo vulto grandioso estava á nossa vista. Em 5 de Fevereiro puzemo-nos em marcha, e no dia 6 estavamos em cima da serra, na insignificante povoação da Conceição. Tres dias aqui se passarão, e mal aproveitados pela insistencia das chuvas. Esta serra de Baturité, situada quasi no centro da provincia, é uma de suas preciosidades. Ar benigno, solo fertil e banhado por arroios de agua perenne. Soberbas matas formão seu manto de verdura, Já hoje em grande parte substituidas por lavras de café, que é de excellente qualidade. | CIy RELATORIO Descemos para a recente cidade de Baturité, antiga villa de Monte- Mór Novo, situada na raiz da serra, entre seus contrafortes, e que vai florescendo á sua sombra. O estudo da vegetação desses lugares nos reteve alli por dez dias. “ Nodia 24 estavamos em Acarape, e em 22 em Pacatuba, donde nos recolhemos á capital da provincia dez dias depois, fechando um cir- culo de 160 leguas. Aqui proseguiamos no estudo das plantas dos: ta- boleiros, em quanto esperavamos pelo regresso de outras secções, que | andavão ainda pelo interior da provincia. E fizemos mais uma nova excursão pelas serras de Maranguape e Aratanha, donde nos retirámos definitivamente no dia 17 de Maio. Em 13 de Julho embarcou a commissão para o Rio de Janeiro. Antes de deixar esta parte corre-me o dever de manifestar que por toda a provincia fomos bem aceitos. Na choupana do pobre tivemos abrigo hospitaleiro ; na habitação do rico acolhimento franco e cor- dial; e na administração, desde os altos funcionarios até emprega- dos subalternos todo o auxilio official; e particularmente, aqui fallo por mim, obsequios e attenções, de que me confesso penhorado. SEGUNDA PARTE Vegetação Póde-se considerar na superficie do Ceará tres regiões botanicas bem caraeterisadas, a do littoral, a das serras, e a do sertão, as quaes com- prehendem subregiões, cujo estudo não é para agora. As condições que assim limitão e modificão a vegetação, aqui como em qualquer parte, são : a composição mineralogica do solo, sua con- figuração e relevo, a latitude do lugar, e altura do sitio sobre o nivel do mar, a abundancia ou escassez das chuvas, etc. O Ceará, olhado por alto, oferece uma superficie rasa, largamente ondeada, semeada de montes e serrotes. Fecha-o no fundo a vasta DA SECÇÃO BOTANICA cv mole da Serra-Grande, que como um muro o separa do Piauhy e de Pernambuco ; e pelos lados da Parahyba e Rio-Grande do Norte limi- tão-no as serras do Camará e Apodi. Estas serras repartem entre as k provincias confinantes as suas aguas, que, engrossadas na proporção das chuvas, escasseão e desapparecem quando aquellas faltão. Destituido de grandes serranias, que em seu ventre accumulem , “largos depositos d'agua, o Ceará não tem um só rio que valha esse nome. Durante a estação das chuvas, copiosas e diarias, borbulhão por toda a parte innumeras ribeiras, que juntando-se dão lugar a cau- dalosas e medonhas torrentes; mas estas ao aceno do estio somem-se. “Só pelas serras permanecem pequenos arroios, que apenas descem ás vargens são absorvidos . Referirei aqui um phenomeno providencial, que se passa nos gran- des rios do Ceará. Quando elles seccão, deixão, como se prevê, de es- paço a espaço poços de tamanhos variaveis, cujas aguas são um grande recurso para o povo. Durão por muito tempo, e mesmo por toda a sêcca, se esta não excede os limites ordinarios; e não se corrompem por isso que de uns poços para outros inferiores se estabelece uma cor- rente occulta, e subarenosa, como já o havia notado o Dr. Pedro Thé- berge, distincto medico francez, que reside actualmente no Icó, e a quem eu communiquei esta minha observação. -E” esta corrente occulta"que dá agua por quasi todo o leito do rio, quando sêcco, fazendo-se-lhe pequenas excavações, que se chamão cacimbas. A agua destas cacimbas é má logo que se tira; mas guardada em vaso de barro um ou dous dias, torna-se pura, fresca e excellente. Nos annos regulares as chuvas deixão as terras bastantemente embebidas, para nos seis ou sete mezes de sêcca alimentarem d'agua a todos os viventes animaes e vegetaes. Farei ainda aqui uma observação. No sertão as arvores largão as folhas, seccão ; mas não morrem. E” que nesse solo arido e pedregoso não vivem senão as plantas, que por sua natureza podem passar, parte do anno sem folhas. A larangeira, o mesmo cafezeiro não vivem all. Sem duvida que a nimia seceura do ar do sertão accelera a queda; das folhas, e retarda o apparecimento de novas; mas quando isso não. Cs, 14 EvI "RELATORIO fosse, as arvores que alli vivem não deixarião de despir-se. O phe- nomeno é 0 mesmo que se passa nos paizes frios, e o mesmo que aqui tem lugar no nosso inverno legitimo ou astronomico. Nos bons annos apparecem algumas chuvas vagas, incertas, nos me- zes de Outubro e Novembro, a que chamão chuvas de cajú . Maso ver- dadeiro inverno, ou mais propriamente a estação das chuvas, começa em fins 'de Janeiro ou principios de Fevereiro, sua força é de Março a Abril, e acaba em Junho. Elle consiste em grossos chuveiros, quasi diarios, ás vezes repetidos, mas deixando sempre parte do dia livre para o trabalho: raro é o dia ou noite de chuva constante no Ceará. céo, de admiravel pureza e lucidez no tempo sêcco, vê-se durante o das chuvas quasi sempre carregado de grupos de densas nuvens dispersos ou condensados, e pejados de electricidade: e as chuvas são de ordinario precedidas de commoções electricas. Ao concurso destas circumstancias, e á composição e configuração de seu solo deve a provincia a sua fertilidade, e a bella vegetação que a cobre, ainda que não com igualdade por toda ella, o que depende das condições atraz referidas. Assim as montanhas granitico- argillosas, humedecidas por fontes perennes, como são as de Baturité, Maranguape, Aratanha, etc. estão cobertas de uma vegetação pomposa, sempre verde. Suas corpulen- tas arvores são em grande parte as mesmas das florestas flumifienses, principalmente nas alturas excedentes de 800 pés sobre a face do mar. Suas principaes arvores são: massarandubas, páos d'arco amarellos, pirauás, angelins, mamalucos, louros, jatobás, páos d'oleo, balsa- mos, jitós, canafistulas, coração negro, jacarandás, palmeiras, etc. Pelas fraldas das serras e lugares circumjacentes, cujo solo formado pelos detritos e alluviões, que vem de cima, nutre uma vegelação vi- gorosa e sempre verde, a que se dá o nome de matas de pé de serra, suas especies principaes são : cedros, páos d'arco rôxos, juremas bran- cas, angicos, camusés, pequeás, maniçobas, tatajubas, pajaús, paco- tés, páos d'oleo, almecegas, timbaúbas, mutambas, condurús, inha- rés, mororós, catandubas, genipapos, pequís, faveiras, visgueiros, catolés, etc. DA SECÇÃO BOTANICA CVH São estes bosques das serras, e de seus contornos, cheios de excel- lentes madeiras de construcção, os que constituem o que chamo região das serras. A região do sertão abrange quasi toda a provincia: seu terreno montuoso, pedregoso, arido, é revestido de matas denominadas ca- tangas. As arvores de catingas * são geralmente de pequenas di- mensões, e largão as folhas no tempo sêcco. Suas especies caracte- risticas são: sabiás, juremas, pereiros, imburanas, mufumos, catin- gueiras, etc. Estas formão massiços do meio dos quaes se levantão sobranceiras e dispersas muitas arvores de boa estatura, e de optimas madeiras, como são as seguintes: aroeira, pão d'arco rôxo, angico, gonçalo-alves, marfim, cumarú, violete, coração negro, braúna, pão branco, etc., etc. Se em certos lugares as condições do terreno empeiorão tornando- se elle mais pedregoso, mais arido, e mais sáfio que o das catingas, os vegetaes empobrecidos, tolhidos em seu desenvolvimento fazem-se anões, aparrados, garranchosos, e se desfolhão na estação sêcca, sendo os mais communs os seguintes: umarí-bravo, mufumo de carrasco, marmeleiros, ameixeiras, cannelas de veado, etc, etc. Esta éa vegetação chamada de carrasco, que com a decatingas cons- tituem a região do sertão; na qual se deve tambem contemplar a ve- getação dos cobertos e das ribeiras, onde, como já vimos, ha varias ar- vores, que conservão sempre suas folhas. * Toda a beira-mar da provincia (ao menos aquella que vi) é rasa, e na arrebentação do mar bordada de dunas movediças, para dentro das quaes se alargão mais ou menos taboleiros arenosos, e cobertos d'uma “vegetação baixa, rala, e sempre frondosa, e constando principalmen- te de: cajueiros, cajazeiras, mangabeiras, manapuçás, uvaias, mu- ricís, guajerús, cauassús, janagubas, barbatimão, lacre, embiriba, batibutá, candêa, jetahi, peroba, páo-ferro, paraíba, sambaíba, etc. Sobre ellas se revolve um grande numero de enrediças pertencentes * Palavra da lingua guarani, e quanto a mim não é composta de caa e tinga mata bran- ca, como se diz, mas de caã e tining mata sêcca. . CV RELATORIO ás familias seguintes : Leguminosas, Convolvulaceas, Delleniaceas, Apocyneas, Passofloreas, Bignoniaceas, Trigoniaceas, etc. E” esta a cinta de terra que constitue a região do litoral. De todas estas plantas e arvores de construcção, e de muitas mais, que não forão aqui mencionadas, se colherão ramos com flôr e fru- ta, e se tirárão amostras da madeira; das mais importantes se fizerão desenhos e descripções. : TERCEIRA PARTE Considerações geraes sobre a agricultura e seus productos industriaes. Não se deve esperar de mim que entre nesta parte em largas considerações de technologia agricola, para o que me faltão habi- litações em theoria e pratica. Ainda menos me entregare: a la- mentações estereis sobre o passado e presente da nossa lavoura. E digo da nossa lavoura, porque quanto eu tivesse de dizer a respeito da do Ceará, referir-se-hia á de todo o nosso paiz. Por todo elle a cultura é costumaria, e ninguem se arreda da trilha antiga sem grandes empuxões. Não ha aqui arguição, é isto da natureza das cousas, em toda a parte tem acontecido, e está acontecendo o - mesmo. O homem, se seu espirito não é cultivado a ponto de servir- lhe de guia e abrir-lhe novos caminhos, é por instincto aferrado ás noções que desde a infancia bebeu pelo exemplo. Ha mesmo nesta contumacia um sentimento de amor proprio, que difficilmen- te se vence. A grande necessidade é pois illustral-o, abrir-lhe os olhos sobre seus interesses, despertal-o de sua indolencia, e pôr suas forças e intelligencia em actividade util. Felizmente parece que vamos encetando esse caminho, e dado o primeiro impulso, a machina rodará por si. a No Ceará o aproveitamento das terras é de duas sortes, em criação DA SECÇÃO BOTANICA CIX e em lavoura. Quanto à primeira, só me convinha dizer alguma cou- sa a respeito dos pastos naturaes; mas reservo-a para quando me 0c- cupar do estudo das gramineas. A lavoura se emprega no beneficio das plantas de alimentação, e das que dão productos industriaes e mercantis. As plantas alimen- ticias no nosso caso são: a mandioca, o milho, o arroz e feijão. Mandioca. Desta ha no Ceará diversas especies e variedades. Faz-se a sua plantação no principio e no fim das chuvas. Dão-se admiravelmente nos taboleiros arenosos, nas terras de matas fres- cas, e nas montanhas, cuja altura em nenhuma das da provincia excede muito a 2,000 pés sobre o nivel do mar. Até mesmo nos sertões, melhormente nos rios que dão vasantes, se cultiva a chamada sulinga, que está madura em seis mezes. Em geral conservão-se bem na terra por muito tempo, em particular a denominada manipeba, que dura 12 e 16 annos no chão, e cria raizes enormes. Na capital me asseverarão que um pé desta mandioca deu tão grandes raizes, que fez a carga d'uma carroça, é o peso de 14 arrobas! A provincia póde pois ser abundantissima deste genero, se se empregar com mais aflinco em sua cultivação. Milho. Planta-se uma só vez no anno, em principio das aguas. Dá-se bem por toda a parte. Conservão-no perfeitamente na roça du- rante toda a sêcca, quebrando as hastes de modo a ficarem as es- Pigas voltadas para baixo; guardado porém em casa é depressa es- tragado pelo gorgulho. Arroz. Ha varias qualidades, que se plantão tambem no tempo invernoso, e só uma vez. E” bastante cultivado e productivo em al- guns lugares da provincia. Feijão. Cultivão-se por toda a provincia diversas especies e va- riedades deste legume, com excepção do preto e do branco. É costume plantar em commum, ou ao menos misturar as sementes dos feijões de varias côres. Raramente se acha á venda feijão que seja sem mistura. Me pareceu tambem que o povo do Ceará não preza muito esta sorte de alimento. Não precisa dizer-se que o modo de cultivação destas plantas é CX / RELATORIO de simplicidade primitiva. Neste caso toda a sciencia agronomica dos nossos lavradores cifra-se no conhecimento empirico dos ter- renos, onde vem melhor tal ou tal planta, e do tempo apropriado á sua semeadura. ? Além das plantas referidas ha muitas outras, que lhes são auxi- liares na alimentação popular, e as principaes são: giromuns, ba- nanas, mamões, inhames, batatas, côcos, etc. Giromuns (aboboras). São geralmente cultivados nas terras fres- cas, e nas vasantes pelos sertões, e fructificção abundantemente. Bananas. Sua cultura é muito commum nos lugares apropriados. São de varias qualidades, e mui boas. Mamões. E uma arvore preciosa, particularmente em alguns lu- gares da-provincia, onde o seu fructo faz parte da alimentação do povo. Inhames (carás). Dão-se bem nas terras de matas frescas; mas, segundo observei, não cuidão muito na sua cultura, Batatas. Sua cultura é tambem limitada. | “Côco da praia (côco da Bahia no Rio de Janeiro). Pelos tabo- leiros arenosos á beiramar estão estas arvores por todo o anno indefeclivelmente carregadas de grande quantidade de enormes fructos. Delles aproveitão, em quanto verdes, a agua ; seja para be- bida, seja para confeição de varios manjares e doces; e, depois de maduros, a substancia como alimento, ou para extracção do seu excellente azeite. Cultura pomareira. Nasserras, nos lugares de matas frescas, e nos terrenos humedeci- dos pelos açudes são cultivadas muitas plantas e arvores fructiferas. Farei menção só de algumas mais notaveis, como são: mangueiras, ateiras, larangeiras, abacateiras, jaqueiras, etc. Mangueiras. Estas arvores crescem aqui como em seu paiz natal, e dão abundantes frutas; mas em nenhuma outra parte da provincia vi mangas com tanta fartura, tão variadas.e tão boas como no Crato. DA SECÇÃO BOTANICA cxi “ Ateiras. (Fruta de conde no Rio de Janei ro). Dá-se bem esta planta nos taboleiros arenosos; sua fruta é grande e de exquisito sabor, principalmente a das vizinhanças da capital, onde a planta é muito commum, e seus pés adquirem ahi proporções de uma verdadeira arvore. “ Larangeiras, limeiras, limoeiros, ete. São cultivadas nas serras e | lugares de matas, assim como nos terrenos arenosos do litoral. As la- ranjas, de que ha pouca variedade, são grandes, succosas e de bom sabor quando bem maduras. Passão por melhores as de Jararaú, em Maranguape. Abacateiras. São estas arvores pouco cultivadas, mas dão bom fructo. Sapotizeiras. Vi nos jardins da Epil algumas destas arvores mui bellas, e dando fructos muito superiores aos que se obtém aqui no Rio. Jaqueiras e frutas de pão. São pouco cultivadas estas arvores, e dão-se bem na terra, principalmente a jaqueira, de que ha mais, e seu fructo é estimado. Videira. Parece que a cultura desta planta exige muitos cuidados, sem 0 que seria mais commum, pois me affirmaárão que dá alli muito boa uva e duas vezes por anno. Figueiras. São pouco cultivadas pelo que vi. -Melões. São plantados nos lugares frescos e arenosos de toda a provincia; mas principalmente nas vasantes dos sertões, onde as frutas são abundantes e grandes. Melancias. Plantão-nas em circumstancias semelhantes, mas não lhes dão o mesmo apreço. Abacaxis. Pelas vizinhanças da capital os ha excellentes. As frutas que acabámos de mencionar são todas devidas 4 cultura : referiremos agora certo numero das que o paiz produz espontanea- mente. , Cajazeiros (E o cajá-mirim do Rio de Janeiro) : são arvores vulgares e corpulentas, que dão fruta 'em grande quantidade, de bom sabor e estimadas para garapas. Cajueiros. São arvores de grossos troncos, copa vasta, e mui fre- EX RELATORIO quentes nos taboleiros arenosos; do fructo se está hoje fabricando uma sorte de vinho, que já tem estimação, e que talvez sendo me- Jhorado em sua manipulação e confeição, venha a constituir um bom ramo de industria na provincia. Genipapeiro. Arvore commum, cujo fructo é comestivel, princi- palmente se o ajudão com assucar. Delle se faz uma especie de be- bida com leite, que não é desagradavel, e se reputa saudavel. Tambem com elle se prepara um licor que denominão vinho de genipapo, que não é de desprezar-se. ; Pequizeiro. Arvore corpulenta, muito abundante na chapada do Araripe; seu fructo encerra uma substancia butyrosa e pipa e sua madeira é procurada para varias obras. Mangabas, maracujás, muricis. São frutas abundantes nos areaes do littoral. Goiabas e araçãs. Estas plantas não me parecem alli esponta- neas, pois só as vi pelos arredores das habitações, e não muito vulgares; seus fructos são muito grandes e muito bons. Horticultura. Ha grande descuido a este respeito no Ceará: com poucas excep- ções, limita-se o geral da gente a plantar no chão ou em girdos cebolas, alhos, tomates, coentros, ete.; alguma couve, quiabos, maxixes e pimentas, eis ahi tudo. Eu creio que com algum tra- balho e perseverança podião alli ter hortas abundantes e variadas, se não nas vargens, nas alturas das serras; mas O Cearense, prin- cipalmente o do sertão, é essencialmente carnivoro, como são todos os povos criadores. Nas melhores mesas do Ceará se vê pou- ca hortalica, e poucos guizados de hervas. Floricultura. Ha tambem a mesma negligencia quanto .ao cultivo das flóres. Não é que as senhoras as desprezem ; antes são por ellas apaixona- das: mas em um paiz em que seis e sete mezes no anno não chove . DA SECÇÃO BOTANICA CXHI o entretenimento de jardins é custoso. Demais a acclimação de certas flóres acha all dificuldades, que só com perseverança e paciencia se hão de vencer. As flóres porém que são de natureza mais doceis, como os jasmins, as rosas, os cravos, etc., são bastante communs. Cultura das plantas que dão productos industriaes e A mercantis. “Canna de assucar.—Fsta planta é conhecida e cultivada no Ceará desde tempos mui remotos. Barleu, que esteve no Brasil ha mais de duzentos annos, escrevendo a respeito do Ceará diz : « Sacchari cannas fert; sed molis nullis exequitur. » O uso dos molinotes ou torcedores, com que expremem o sumo da canna para garapa, aguardente e rapaduras, é já bem antigo na provincia; mas o fabrico do assucar é moderno, segundo me aflirmou gente do paiz; e o viajante Koster, que andou pelo Ceará em 1810, diz que ainda alli se não fazia as- sucar. Hoje, porém, além de um grande numero de molinotes e de engenhocas, muitas dellas com moendas de ferro, se está levantando muito boas fabricas de assucar. Actualmente o producto exportavel deste genero chega a muitas mil arrobas. Hoje geralmente cultiva-se a canna cayana, que o terreno produz com grande vigor pelos baixios do littoral, nos Carirís, em todas as serras, e mesmo nos sertões onde ha represas de agua. Algedão.—Esta planta era seguramente já cultivada pelos Indios antes da conquista, para suas grosseiras manufacturas. Foi tambem o vegetal que primeiro entrou a ser cultivado como genero de com- mercio no Ceará. Segundo um trabalho do instruido e laborioso padre Dr. Thomaz Pompêo de Souza Brasil, tomou incremento o cultivo do algodão de tempo do governador Luiz Barba Alardo- de Menezes no principio deste seculo. Pelos exames que eu fiz nos papeis do archivo da camara em Villa-Viçosa, vi que na serra de Ibiapaba no tempo dos padres da Companhia se cultivava alli bastante algodão para consumo do povo, e que havia na Missão não menos de cincoenta teares. O algodão é hoje cultivado por toda a provincia; mas principal- Criss 15 CXIV RELATORIO Ed mente nas serras de Uruburetama, Pereiro, Maranguape, Meruoca, etc. Segundo ainda o Dr. Pompêo, no anno de 1814 forão exportadas mais de 1,000 arrobas : decresceu depois a sua exportação por causa da baixa do preço no mercado, e pelo apparecimento de uma molestia que denominão mófo, e que ainda agora persegue o al- godoeiro ; mas actualmente vai prosperando, de sorte que no anno financeiro de 1856 a 1857 se exportárão só pelo porto da capital quasi 77,000 arrobas, e pelos de Aracaty, (Granja, Acaracú juntos deve pelo menos ter sahido outro tanto, isto é, ao todo 154,000 arrobas. A molestia, que tanto tem desgostado aos plantadores de algodão, deve ser remediada pela substituição da especie doente, ou dege- nerada, por outras vindas de fóra, e talvez pela do algodão herbaceo, que durando pouco tempo , póde mais facilmente ser reformada em pequenos periodos, como é conveniente. Café. —E tradição que o governador José Antonio de Castro Vianna tomara por sesmaria a serra da Aratanha com o intento de cultivar alli o café; que fizera abrir um sítio no alto daquella serra, e man- dára buscar sementes de café á Bahia; mas que fallecendo logo depois (1802) parece que nem tivera tempo de começar aquella cul-. tura. Em 1810 o padre Francisco Goncalves Martins levou da Bahia sementes de café, e as plantou no Crato em seu sitio Cabreiros. D'alli forão sementes para Baturité. Não pude saber quem nem quando fez aqui a primeira plantação; mas não ha duvida que em 1825 o tenente- coronel José Antonio da Costa e Silva, fazendeiro da Aratanha. obteve sementes ou mudas de um lavrador de Baturité. Antonio Pereira de Queiroz, e as plantou no seu sitio da Aratanha, donde bem depressa passou para o de Joaquim Lopes de Abreu Lage em Maranguape. A cultura do café vai-se hoje estendendo por toda a provincia, que o produz mui bem, e de excellente qualidade. Nos ultimos annos, por estimativa do Dr. Pompêo, o café exportado deve ter chegado a 200,000 arrobas annuaes. Fumo. — Outra planta, que se cultiva com felicidade em varios lugares da provincia, especialmente em Acarape, Telha e Lavras. Í DA SECÇÃO BOTANICA CXV Neste ultimo lugar asseverou-me pessoa d'ahi, bem informada, que a colheita annual do fumo regula em 8,000 arrobas. Além destas, que são produzidas pelos cuidados do lavrador, a provincia produz espontaneamente varias plantas preciosas por seus productos industries, como são : Carnaúbas. — São palmeiras preciosissimas; não ha uma só de suas partes ou de seus productos que não seja de utilidade ; mas tratarei agora unicamente da sua cera. O nosso distincto botanico, o Dr. Manoel de Arruda da Camara, mandou a outro tambem nosso e bem conhecido botanico, Frei José Marianno da Conceição Velloso, que então se achava em Portugal, “uma noticia desta palmeira, que foi publicada no Palladio Portu- guez. Nas Transacções Philosophicas de 1811 vem um trabalho do Dr. Brande sobre a cera vegetal do Brasil, que foi remettida do Rio de Janeiro a Lord Grenwil pelo conde das Galvêas, que a obteve do governador do Rio-(irande do Norte, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. * Conta-se que no (Ceará se começou a tirar cera da carnaúba por ensino de um Manoel Antonio de Macedo, que do RioGrande do Norte viera a Jaguaribe em 1843. Parece pois que foi no Rio-Grande do Norte onde primeiro se extrahiu a cera da carnaúba. E talvez que d'alli mesmo tivera co- nhecimento daquella operação o Dr. Arruda. Ha na provincia do Ceará leguas e leguas de terras cobertas destas palmeiras ; mas é principalmente no valle do Jaguaribe onde se faz colheita de cera para algumas mil arrobas. Quando, como devemos esperar, forem continuadas e melhor succedidas as analyses começadas pelo Dr. Brande, e a cera da carnaúba fôr melhorada em sua cór e consistencia, a provincia do Ceará terá mais um manancial de riqueza publica e particular. Gommarelastica. W' um producto fornecido no Ceará pela ma- niçoba, arvore do genero Jatropha, que vegeta espontaneamente por * Veja-se Koster, Viagem ao Brasil: tom. 2º no fim. CXVI RELATORIO quasi toda a provincia, mas particularmente nas matas baixas e hu- midas, e cujo leite dá tão bom caoutchouc como o do Pará. A grande procura desta substancia na Europa e nos Estados-Unidos, fazendo-a subir de valor, causou no Ceará um verdadeiro furor pela sua ex- tracção nos annos de 1855 e 1856. As matas forão invadidas, e as arvores em grande parte destruídas; mas, peior que tudo, a gomma colhida às pressas, sem cautelas, e cheia de impuridades, não sei por que cegueira ou imprevideneia dos negociantes era com- prada pelo mesmo preco a boa e a má. O resultado foi, como se devia antever, a falsificação dolosa e o descredito do genero, o pre- juizo dos compradores, e a cessação do commereio. Actualmente porém este parece querer reviver. É com effeito, se por meio de uma legislação conveniente fôr regulado o modo da extracção da gomma, em seu tempo proprio, e sem que cause a morte das arvores (de cujo plantio se deve an- tes cuidar), terá o Ceará mais um ramo de industria facilimo e rendoso. Muitas plantas nativas do Ceará dão principios corantes, que de- vem ser aproveitados. Amil. Uma ou duas especies /ndigofera crescem por toda a pro- vincia com muito vigor. Não pude ainda averiguar se são especies espontaneas, como parece, ou se forão importadas. O certo é que não consta que em tempo algum se fabricasse anil naquella pro- vincia como genero de commercio: nem a gente do paiz sabe ou quer tirar a tinta dessas plantas. Usão porém das folhas de uma ar- voreta do genero Eupatorium., a que chamão anil assú ou tassuna, para tingirem de azul seus fios e pannos, e por uma preparação mui simples. Consta-me que ha alli o axil trepador, que é um Gissus, mas tambem não é usado. Ora de todas estas plantas se póde extrahir o indigo com faei- lidade e pouco dispendio. Tatajuba. Esta arvore, que dá um principio corante amarello, já em outro tempo forneceu o seu lenho como genero de exportação, mas talvez pela inferioridade da sua tinta deixou de ser procurado, DA SECÇÃO BOTANICA CXVII e o seu commercio não continúa, ou se acha muito decahido. A arvore existe em todas as matas frescas; mas hoje não é já tão commum nas proximidades da capital, onde forão destruidas. Pereiro de tinta. E uma Rubiacea que cresce em um lugar cir- cumseripto dos Inhamuns, sua tinta é de um carmezim sujo e bas- tante fixo. | Papiranga. &” uma Bignoniacea trepadora, que vegeta no alto do Araripe e Serra Grande, e por suas encostas, e dá uma tinta en- carnada viva. | * Outros vegetaes ministrão oleos de varias qualidades, e que po- dem ter prestimos no fabrico do sabão, e em outras industrias ; por exemplo: A oticica, que é uma arvore corpulenta, frequente nos sertões, dá grande quantidade de fractos oleosos, mas de pouco se ser- vem pot ter o seu azette cheiro e sabor desagradavel. F' porém muito possivel que a chimica consiga depuralo. A maniçoba e outras Euphorbiaceas, que abundão na provincia, são mais ou menos ricas em azeites, que podem ter varios usos. O batibuti, que é uma arvoreta dos taboleiros, dá fructos oleosos. Palmeiras. — De muitas dellas se póde tirar excellente azeite. Emfim o ricino ou carrapateiro é cultivado em toda a parte, e dá tambem muito azeite. | Não são poucas as plantas que dão fios mais ou menos claros, mais ou menos resistentes : apenas mencionarei as Bromeliaceas chamadas vulgarmente curoís, e algumas palmeiras, como 0 tucum, a carnaú- ba, etc., etc. Em madeiras de construeção e de mercadoria é riquissima a pro- vincia do Ceará. Entre tantas nomearei : O angico. — Acha-se por toda a parte pelas matas e pelos sertões. São bellas arvores, cujo cerne póde competir com o do mogno. Os jacarandes. — Dão excellentes e lindas madeiras ; entre elles so- bresahe o violete. Basta o que tão incompleta e summariamente acabo de expôr para CXVIII RELATORIO ver-se quanto só em vegetaes tem de elementos de prosperidade e de riqueza a provincia do Ceará. Infelizmente alguns obstaculos naturaes vem muitas vezes contrariar o seu progressivo desenvolvi- mento, entre os quaes figura em primeira ordem a inconstancia e inclemencia das estações, já com grandes e intempestivas chuvas, já e muito principalmente com as sêccas, que quasi em periodos certos assolão a provincia, e causão-lhe verdadeiras calamidades. Em quanto os homens na sua imprevidencia olharem só parao céo, esperando tudo da misericordia divina , esses desastres se hão de re- petir, mais ou menos intensos. Baixem os olhos para a terra, cubrão o paiz de um systema de represas, facilitem o movimento dos gene- ros por meio de boas estradas, que Deos abençoará a sua obra. Então o Ceará, gozando de um clima saudavel, e de um terreno fecundo, habitado por um povo vigoroso e inteligente , entrará em compe- tencia com as suas mais florescentes irmãas. Terminarei apresentando o resultado a que por ora se tem chega- do na coordenação dos objectos colligidos pela minha secção ; e in- dicando como tenciono-regular a publicação dos trabalhos da dita secção, no caso. que isso seja da approvação do governo imperial. Pelo balanço que se está dando nas collecções chegou-se ao co- nhecimento do numero dos exemplares dos ramos sêecos, os quaes excedem de doze mil, faltando-nos uma caixa, que ainda não chegou do Ceará, e que deve conter obra de dous mil exemplares. Os que já forão contados e separados, achão-se incluidos em 110 fa- milias naturaes. Está-se agora cuidando na separação dos generos e especies. Logo que se houver chegado á conclusão deste trabalho, em- prehenderei a composição de um volume, que chamarei: Catalogo systematico das plantas colhidas no Ceará pela commussão scien- fica. | Nesse catalogo as plantas dispostas segundo as ordens naturaes serão designadas simplesmente por seus nomes de genero e especie, quando já forem conhecidas ; é as«que me parecerem novas ou mal! estudadas serão tambem nelle incluidas depois de classificadas e de- nominadas, e irão marcadas com um asterisco. or DA SECÇÃO BOTANICA CXIX Destas ultimas se fará outro volume, onde ellas serão descriptas por extenso, e acompanhadas de desenhos. Estes dous volumes escriptos em latim poderão constituir a Mora do Ceará, ou ao menos uma relação das plantas daquella provincia co- nhecidas até hoje; por quanto lhe ajuntarei um appendice contendo as plantas que eu não pude observar nem o meu adjunto, e que já es- tão estudadas e classificadas pelos botanicos. Proponho-me tambem a ir colligindo documentos e materiaes para um Estudo de geographia botanica daquella provincia. Quanto ás plantas medicinaes e seus usos therapeuticos, o Dr. Ma- noel Freire Allemão toma sobre si o trabalho de as estudar e disser- tar sobre ellas; e irá publicando o fructo de seus estudos, á proporção que os tenha concluido. Em fim está na minha intenção, e na delle, fecharmos os trabalhos da secção de botanica por uma narração circumstanciada fas nossas viagens pelo interior da provincia do Ceará. “Ric de Janeiro, 4 de Dezembro de 1861. s a Francisco FREIRE ÁLLEMÃO. Secção geologica. Parti para o Ceará em Maio de 1859, quatro mezes depois dos outros membros da commissão. Demorei-me durante o intervallo de um vapor a outro na Bahia, por me ter ordenado o governo que exa- minasse alguns pontos indicados pelo Sr. brigadeiro Frederico Leo- poldo Cesar Burlamaque, director do musêo nacional. O primeiro lugar ao qual me dirigi foi Nazareth, onde o Sr. c0- ronel Tinta deu-me guia e recommendações, que me facilitárão o exame de um deposito de manganez distante seis leguas dessa cidade; verifiquei a existencia desse mineral formando veios bas- tante espessos (de 30 palmos talvez) pelo que pude observar na su- perficie, pois para excavações não me restava tempo. e as chuvas repetidas erão obstaculo ainda maior. Segundo informarão os habi- tantes do lugar, d'ahi a nove leguas se encontra ainda continuação do vieiro. E' pois de importancia para a Bahia a existencia deste mi- neral á flôr da terra, podendo custar a arroba posta na capital 600 rs.: e no entretanto em 1855, em quanto lavrava o cholera, pagou-se a 328000! Regressei à capital, e de caminho observei a formação que em varios lugares se apresenta lavada pelas aguas do rio Nazareth, consta de largas cintas dioriticas que parecem romper pelo gnais : ellas são sulcadas em varias direcções por tenuissimas bêtas de pyrites e de ga- lenas. A mesma rocha encontrei nos Queimados na cidade da Bahia, e derão-me algumas pequenas amostras de cobre nativo extrahidas ahi mesmo, quando se fizerão as excavações para assentar as ma- chinas que supprem os chafarizes da cidade. Vi amostras da Cachoeira e de outros lugares da provincia, todas da mesma natureza, donde posso concluir que na Bahia serão ainda descobertos preciosos jazigos metalliferos. | DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXI Minha segunda excursão foi á ilha de Itaparica. Existem no musêo nacional pequenas amostras de cobre provenientes de Santo Antonio do Catú, para onde tive de navegar uma noite inteira em uma pe- quena canôa com vento pela prôa, supportando repetidos aguaceiros, e de manhãa cavalguei meia legua debaixo de grossa chuva até o lugar indicado ; encontrei uma excavação cheia d'agua e mesmo em parte entulhada, porém na cascalheira não havia o menor vestigio de cobre, e todo o terreno alli é gnais decomposto. Examinando a costa oriental da ilha, descubri as mais irrecusaveis provas de seu levantamento, importando em nove palmos ; se a costa se acha em movimento ainda ascendente ou se mergulha de novo não me foi possivel verificar. Limito-me em PRESA o facto, que é de summa importancia. No mesmo lugar apresenta-se em camadas cahindo cerca 30º para O. um schisto argiloso negro, ao qual dão o nome de taud; não des- cobri fosseis que pudessem indicar a sua posição geologica. Alter- nando com essas camadas existem outras de psammito muito duro, que encerra pequenos crystaes de pyrites e galena. Restava-me ir ao rio Camamú visitar os trabalhos da excavação que alli se estavão fazendo com o fim de descobrir carvão de pedra; ba- seavão-se para isto em betume e naphta que exsudava das rochas. Outro producto curioso daquelle lugar, e mesmo de alguma impor- tancia, se existir em grandes quantidades, é uma argilla muito porosa, amarellenta, embebida de betume. Não procedi a esse exame por falta de transporte na occasião, e á viagem a remo debaixo das chuvas, que continuavão, não me quiz aventurar. Aproveitei o tempo para o exame da costa perto da barra, onde é batida pelo oceano: nota-se alli uma formação de psammito, que ainda progride hoje, a rocha é arêa cimentada com calcareo, talvez proveniente das coralleiras, cujas ca- beças são destruídas á medida que emergem. Esta rocha, que é iden- tica á das praias do Peloponeso e das Antilhas, é mais uma prova da emersão do nosso littoral, pois sendo ella de formação submarinha, é quebrada acima do nivel das marés de lançamento ; em vez de docu- mentos paleontologicos, ella encerra alguns que attestão a re- Er E: (16) CxxXH RELATORIO centissima época da consolidação destas arêas: refiro-me a cacos de louça. Em Pernambuco pouca demora tive; encontrei em diversos lu- gares lavas, que se me disse serem provenientes do lastro de navios que voltavão da ilha de Fernando de Noronha ; é ounico ponto vulcanico do Brasil de que ha noticia vaga dada por Darwin, e creio que estão em relação com elle os terremotos que se tem manifestado por diversas vezes nas costas fronteiras do Rio-Grande do Norte e do Ceará. Os vulcões submarinhos ainda mais além mencionados por Ferguson e Krusenstern em 1734 e 1806 parecem formar elos de uma cadéa ignivoma que dorme, mas que de um dia para o outro nos poderá incommodar com inesperados e desagradaveis abalos. Eu quiz estudar esta questão com todo o cuidado, e para isso aguar- dava a canhoneira que tinha sido promettida á commissão para os trabalhos hydrographicos ; eu contava com ella por ter visto a ordem em que se a mandava pôr á nossa disposição, porém até hoje ainda não tivemos noticia della, donde resultárão inconvenientes graves. As lavas que achei em Pernambuco forão tambem algumas vezes alijadas sobre o Recife: d'ahi provém que observadores com pouca sciencia e ainda menos consciencia declarárão aquella rocha for- mação vulcanica ! Será conveniente que ninguem se illuda com taes informações, mesmo sendo officiaes. Na Parahyba aproveitei as poucas horas de demora do vapor para vêr as pedreiras das inmediações da cidade; achei alli marna, que poderia ser empregada com vantagem para fabrico de cimento hy- draulico, que hoje importamos da Europa; um crinoide pessimamente conservado me faz suppôr que aquella rocha pertence á formação cretacea, ainda até então desconhecida naquellas paragens. Apezar da chuva e do denso nevoeiro de maruhys procurei mais fosseis, porém não pude acha-los. Em Junho aportei ao Ceará, onde o adjunto á minha secção, o ca- pitão João Martins da Silva Coutinho, Já tinha procedido a excava- ções em diversos lugares para estudar a natureza do solo; e tambem já tinha feito excursões ás montanhas proximas á capital : infelizmente DA SECÇÃO GEULOGICA CXXIII não pôde desenvolver toda a sua actividade, porque esteve dous mezes doente. Procedi a alguns estudos nas vizinhanças da capital, inclusive á serra da Tacoára, onde se dizia haver uma mina de prata que foi lavrada pelos Hollandezes ; a excavação estava cheia d'agua, e creio que foi feita para este fim ; as cascalheiras de gnais não mostravão o menor indício de metal algum. Um velho, que nos servira de guia, asseverou que havia alli antigos fornos, porém por mais que elle e nós procurassemos, não foi possivel encontrar nem vestigios se quer. Com os preparativos de viagem nos demorámos até Agosto; separá- rão-se as secções em tres turmas para se internarem, a ethnogra- phica e a geologica seguirão juntas. A nossa primeira estação foi Pacatuba, onde estudei a Aratanha, vasto penedo de granito, elevando-se a cousa de 3,000 palmos, e surgindo da planicie como ilha coberta de verdura. Suas encostas ingremes compoem-se de terra muito misturada de arêa e fragmentos de feldspatho, só em poucos lugares ha o barro vermelho tão ca- racteristico das decomposições do nosso granito. A terra fórma camada bastante tenue, em alguns lugares chega até dous a tres palmos. A composição de todos os troncos de serras implantados como ilhas no sertão é com poucas variantes a mesma, só differe a grande cordilheira da Ibiapaba. * Na planicie fronteira a Aratanha, proximo ao serrote de Itatinga, apparece calcareo granular com alguma dolomita, principia igual- mente a apparecer alli uma modificação curiosa das rochas grani- ticas, que sempre observei nas immediações calcareas : a componente micacea desapparece, e em seu lugar vêem-se grossos crystaes de turmalina embutidos em quartzo e feldspatho; na Giboia tambem falta este ultimo elemento, e a turmalina já teve alli as honras de carvão de pedra. Uma erysipela prolongou mais do que eu desejava a estada na Pacatuba. | | CXXIV RELATORIO Seguimos para o Acarape, situado n'um valle em grande parte ni- vellado pelas alluviões do rio do mesmo nome, que nasce na serra de Baturité, atravessa-a em quasi toda a extensão para se precipitar na planicie, despenhando-se por cascatas sobre enormes calhãos e ro- chedos, cujas arestas já se achão arredondadas pela decomposição. Este rio, que no inverno chega a trasbordar e transformar todo o valle com seus cannaviaes em um vasto lago, durante o verão desapparece completamente menos de uma legua abaixo da povoação. Examinei as formações calcareas da vizinhança, sobretudo o Frade no Cantagallo : alli achão-se alguns penhascos de alvissimo marmore granular, que se póde prestar para estatuaria e ornatos: não acontece isso com toda a massa de rochedos, que são mais ou menos salpi- cados de crystaes amarellentos esverdeados de grammatito, o que não impede o seu emprego como excellente cal para construcções. N'um ramal de montanha proximo ao Acarape, o Riachão, encontrão-se provas evidentes da natureza eruptiva deste calcareo. No cimo da serra, e na Raposa perto de Baturité elle encerra crystaes de graphito, em Sobral este é substituido por chlorito de modo que o calcareo d'alh fórma um Cipolino. O) calcareo do Frade apresenta rochas escarpadas cobertas de uma crosta negra; do mesmo modo ainda o vi junto ao serrote do Ripina; nesse ultimo em uma caverna achárão-se esqueletos humanos de tamanho descommunal arrumados atrás de uma tosca parede. Nos outros lugares, como Canindé, S. Bento, Sobral, Santa Quiteria, Quixe- ramobim, Icó, etc., a mesma especie de rocha se encontra enterrada. Em Baturité corri todas as immediações; estudei a configuração desta serra, cujo cimo mais elevado (no brejo das Pedras) tem cousa de 4,000 palmos. A formação é toda granitica, apresentando-se do lado do sul quartzitos com bellissima estructura parallela. Observei alli no lugar chamado Labyrinto, uma exsudação, que sahia de um gnais extremamente micaceo, que ao seccar deixava uma efflorescencia de salitre, que os habitantes extrahião; deparei com o mesmo phenomeno na Uruburetama. Fizemos uma excursão ao Canindé, e fomos vêr os depositos de “ DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXV z ferro junto á serra das Guaribas nas margens do rio Cangatí, de que fallára Feijó em 1814; encontrámos realmente esta rica mineira, de todo desprezada. Parece que já a Providencia espalhára por aquellas paragens em distancias razoaveis este mineral nas condições de ser utilisado, pelo povo, com fundentes ao lado, e excellente material para combustivel, que são os sabiás e as juremas. Vi essa mesma pedra de ferro no Jaburú, perto de Quixeramobim, ao pé da serra da Me- ruoca, no Patamuté perto do rio do Peixe na Parahyba do Norte; desta provincia obtive amostras da Cachoeira pelo Sr. coronel Beau- repaire Rohan, assim como tambem do presidente da provincia do Rio-Grande do Norte. Existe tambem proximo ao Crato. O ferro consumido no interior do Ceará, do Piauhy e de Pernam- buco, é todo inglez e muitas vezes de pessima qualidade, transpor- tado a duzentas e mais leguas, em costas de animaes; em conse- quencia disto propuz ao goverao imperial que mandasse ensinar áquelle povo o meio de aproveitar a mineira de ferro para obter material, ao menos o necessario para as suas ferramentas de la- voura: industriosa como é aquella gente não tardaria a construir as pequenas forjas catalãs e fabricar o ferro e aço para consumo de cada districto. Objecto este de grande utilidade para aquelles lugares. rs Perto de Baturité existe um penhasco isolado de gnais denomi- nado Serra Aguda, donde as aguas trazem comsigo ao penetrar as fendas algum graphito. Na viagem para Quixeramobim passámos por grande extensão de sertão, terreno todo ligeiramente ondeado, formado por um vasto lagedo de gnais cujá decomposição superficial, uma tenue crosta, “é a terra que produz o pasto; e que por causa de seu leito de lages só póde conservar a humidade emquanto chove; não tem pois a propriedade de manter a vegetação durante os seis mezes em que não cahe uma gotta d'agua, não póde promover um resfriamento da atmosphera que possa sedimentar orvalho sequer, pelo contra- rio á noite a irradiação do calor recebido durante o dia impede que alguma nuvem pairando nas alturas desça até o chão. Nesse longo CAXVI RELATORIO intervallo de sêcca toda planta dorme sem folhas, sem um vestígio de verdura, toda força vegetativa está na mais perfeita quietação. Parece que a este estado desolador em apparencia se deve attribuir a prodigiosa fertilidade daquelles terrenos: penetrando os agentes atmosphericos por esta terra sêécca e porosa, contribuem podero- samente para a decomposição dos seus elementos, que servem de- pois de adubo. Em outros lugares com trabalho se revolve a terra, arando-a profundamente para expo-la á acção do ar; aqui a natu- reza encarregou-se disso por processo diverso chegando ao mesmo fim. As séccas no Norte são uteis debaixo de todos os pontos de “vista; não são ellas a causa das grandes calamidades, mas a im- previdencia da gente, que não sabe tirar proveito da abundante producção de seu sólo que as sêccas perpetuão. (O paiz em que os passaros vôão assadinhos e temperados pelos ares ainda está por ser descoberto. E questão que apresentarei em occasião opportuna de- vidamente desenvolvida. Deixámos a Serra Azul de um lado porque já tinha sido exami- nada pelo capitão Coutinho, atravessámos os seccos leitos dos rios Choró e Sitiá, nos quaes pudemos avaliar a enorme quantidade de arêas que elles transportão para o oceano, e destas concluir a massa de terra fertil acarretada annualmente, pois entre ambas existe uma relação: bastante constante. | No Quixadá o terreno muda de configuração, não se vião mais aquellas vastas pyramides graniticas que surgião do sertão. Atrás de nós agora deparámos com uma longa fileira de penedos syeniti- cos isolados com fórmas as mais phantasticas, contendo degrãos colossaes e excavações devidas á erosão das aguas. A' direita in- tronca-se a serra do Estevão, à esquerda uma Pq cordilheira de granito, a Serra Branca. Fomos a uma pedra donde minava estanho todos os annos, se- gundo se dizia; ainda na vespera eu tinha recebido do capitão Mi- guel Francisco de Queiroz um pedaço desse metal extrahido alli ! Suppuz que minaria algum amalgama, porém no lugar não havia o menor signal disso. Comtudo em alguns pedaços de rocha havia ' DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXVIL fragmentos que tem aspecto de mineral stannifero; só a analyse poderá solver a duvida. | Em Quixeramobim o terreno torna a ser todo de gnais; de- balde procurámos chumbo em um lugar onde fóra extrahido, e a supposição que alli havia da existencia desse metal no Banabuyú e Riacho do Sangue foi devida á geologia de diccionario pela tra- ducção do termo plombagine; ha realmente graphito nestes luga- res, e com bastante abundancia, porém impuro. No trajecto para o Icó o caraeter do terreno não apresentou va- riação, era o sertão secco que apenas servia para estudo de pas- tagens. Junto ao Icó passa uma formação de schisto silicoso que se es- tende até na Parahyba, e contigua uma outra de schisto argilloso perfeitamente estratificado, que apparece perto da villa da Telha : essas. camadas poderião servir de deposito naturaes d'agua, são po- “rém muito impinadas, e não permittem por isso accumulações em distancia e com pressão para obter alguma fonte artesiana. Procurei por toda a parte se haveria possibilidade de furar com * proveito o terreno para haver agua, porém todos os pontos da pro- vincia que visitei se negão a isso. No Araripe as camadas imper- meaveis estão horizontaes e tão elevadas que toda a agua de infil- tração despeja por cima dellas. As camadas da Ibiapaba mergulhão para o Piauhy; só lá portanto é que poderá haver alguma proba- bilidade de se poder brocar com vantagem algum poço artesiano ; depende isso porém ainda de exame do terreno. - Emquanto eu andava pelo lado da Telha destaquei o capitão Cou- tinho para à serra do Pereiro, elle levou comsigo um guia que, lhe foi indicado, e que o habilitou a explorar uma porção dessa cordilheira granitica que separa a provincia do Ceará da do Rio Grande do Norte, e que em um dos seus contrafortes do lado Oriental apresenta formação aurifera, circumstancia que se repete nas divisas de Pernambuco pelas. cabeceiras do Piancó. - Do Icó dirigimo-nos á villa de Lavras de Mangabeira, e demorá- mo-nos no Boqueirão, ponto notavel por ter alli o rio Salgado so- CXXVHI RELATORIO lapado um travessão de rocha silicosa, que corria perpendicular ao rio e servia de dique; com o tempo forão désabando aos poucos os fragmentos desageregados por numerosas fendas perpendiculares ao correr, e hoje restão duas faces verticaes com cousa de 1420 palmos de altura; e em meia altura na direcção das camadas desa- pegárão-se lascas, que pela decomposição erão esbroadas, e despe- adas no rio pelas aguas infiltradas na rocha, do que resultou uma caverna que se vai estreitando para dentro com 300 palmos de profundidade; nos dous terços do seu comprimento apagão-se as luzes; para poder penetrar até o fundo acendemos uma fogueira com capim secco, que o Dr. Gonçalves Dias ia continuadamente alimentando, e o clarão me permittiu progredir. Esta gruta em qualquer outro lugar teria sido aproveitada para cura de molestias, pois quem penetra nella tem de suar infallivelmente, a tempera- tura do ar no seu interior foi 38º, efóra estava abaixo de 30. a differença psychrometrica era apenas de 1º. Essa temperatura ele- vada nada tem que vêr com o calor interno da terra, o qual na- quellas paragens não excederia 27º, mas em varios pontos da pro- vinciao thermometro collocado sobre as pedras que tinhão sido batidas todo o dia pelos raios do sol, mesmo depois delle posto. ainda marcava 63º. —D'ahi é facil explicar a alta temperatura da agua de infiltração em tão pouca profundidade: e o que não deixará de contribuir para o seu augmento são as myriadas de morcegos que formão um tapete fechado nas paredes e nos tectos da gruta, aquelles afastados de oito palmos com altura e 12 no lugar mais quente.. Pouco além da villa de Lavras existem ainda as antigas escava- ções donde se tirava ouro, porém em pequena quantidade: poste- riormente apparecêrão dous Inglezes que formárão uma companhia e começarão a lavrar de novo, mas desapparecêrão repentinamente. e a melhor mina que tinhão descoberto forão as algibeiras dos accionistas. Perto de Lavras se acha amiantho de boa qualidade. Na estrada do Crato. no lugar chamado Riacho dos Porcos, a ve- getação muda subitamente de aspecto, e o solo deixa de sêr grani- DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXIX tico, deparámos pela primeira vez comas rochas arenosas, os psam- mitos, que agora só por curtos intervallos perdiamos de vista. Perto de Missão Velha, no lugar denominado Cachoeira, elles se apresentão muito rijos com fractura conchoide, vermelhos simulando jaspe. “As aguas, e o material que ellas acarretão, esmerilhárão esta rocha em todos os sentidos formando panellas, caldeirões, e algumas soccavas profundas, que passárão por cratéras de vulcões, etc. "Pouco antes de chegar ao Crato se descortinava adiante de nós a serra do Araripe, que já de longe tinhamos avistado como uma extensa linha perfeitamente horizontal, que fórma a aresta superior de sua borda; agora de perto viamos o extenso plano coroando paredes ver- ticaes com angulos salientes, e concavidades reintrantes quasi semi- circulares. E” uma enorme lage de psammito com 200 palmos pouco mais ou menos de espessura, com as suas bordas roídas pelas aguas e pelo tempo, ella representa uma esponja colossal que as chuvas imbebem, e que gotta a gotta despeja para os diversos canaes subterra- neos que em todo redor afilorão ao mesmo nivel e donde a agua sahe com temperatura de 26º tanto no Crato como em Pernambuco. O leito desse tronco de psammito é um calcareo stratificado em Jaminas de um millimetro para cima de espessura, e de parallelismo perfeito ; em Sant' Anna as camadas são mais grossas e prestão-se para pedra lithographica. Por baixo deste calcareo se acha uma camada de schisto foliaceo muito bitumoso, é uma especie de turba reduzida a carvão, ella só tem algumas pollegadas de grossura, por isso não se presta a ser trabalhada. “Segue-se immediatamente um barro azul, e ás vezes denegrido, en- tremeado com estratificações de psammito rijo, cinzento, contendo py- rites e galenas, exactamente a mesma pedra que encontrei na ilha de Itaparica, com a unica differença que lá ella formava camadas inclina- das, e aqui perfeitamente horizontaes: para baixo seguem-se outros psammitos, nos quaes o Dr. Gonçalves Dias encontrou madeira petri- ficada perto de S. Pedro, a duas leguas da villa de Milagres. Do Grato fomos ao Brejinho examinar a caverna á que davão sete e s. (47) * CXXX RELATORIO leguas de comprimento; não nos foi possivel dar com essa extensão, fomos para ella por um caminho onde poucos momentos antes passára uma onça, cujos rastos estavão muito frescos; uma grande cratéra d'abatimento era o primeiro indício das cavernas, depois roja- va-se de gatinhas entre duas pedras, e no fim desse apertado canal tivemos de descer por uma corda, cousa de 30 palmos, no espaço que se compunha de uma agelomeração de algumas abobadas per- feitamente hemisphericas, que todos os invernos descascão, e au- gmentão assim de capacidade até que o fecho se torna muito fraco e desaba, originando deste modo um funil com um cone de entulho no meio. E" este o processo de erosão da serra do Araripe, que annual- mente fornece consideraveis quantidades de arêa aos rios de Jagua- ribe e de S. Francisco ; deste modo é que se formárão esses saccos ou sinuosidades, que por todos os lados limitão aquella grande cha- pada. | No Brejinho encontrei aquelles ichtyolithos que Agassiz classificou, pertencentes á formação cretacea; eu não os vi em parte alguma no seu jazigo primitivo, estavão sempre em terras provenientes de desmoronamento e entulhos. Não parão só nisso os nossos achados, ainda uma porção de coprolithos, ossadas talvez de saurios, dentes de peixes, e uma planta de folhas imbricadas athrotaxites, que até hoje não se conhecião, tirámos do mesmo lugar; tive noticias de conchas e zoophytos fosseis na fronteira do Piauhy. Era pois uma rica colheita scientifica que eu tinha adiante de mim, e com prazer eu me atiraria a ella, pois creio que bons trabalhos scientificos feitos no paiz e por filhos da terra darião credito ao Brasil, manifes- tando a sua tendencia ao progresso, e um pouco de bom nome com- pensaria bem o não se descobrirem minas de ouro e diamantes, que além disso no Ceará talvez trarião, nas condições actuaes, males em vez de beneficio; a provincia não póde cuidar em mineração emquanto deixar perder os seus grandes recursos para alimentação. Não me foi possivel executar esses trabalhos, que terião segura- mente um bello resultado; mas um concurso de circumstancias imprevisto forçou-me a uma retirada a marchas forçadas: Estava- um ato de a t o DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXXI mos em Janeiro, e ao partir da capital da provincia tinhamos levado fundos que chegassem até esse tempo, e tinhão ficado nos cofres quan- tias suficientes para as despezas de mais oito mezes: sabiamos que existião as ordens para que nos fossem elles fornecidos quando os re- quisitassemos, á vista disso contavamos com dinheiro para mais tres mezes que se tinha mandado requisitar. Infelizmente, attentas as grandes distancias, disseminados como estavão os diversos chefes de secção pela provincia inteira, deu-se desencontro da correspondencia donde resultárão alguns equivocos, em consequencia dos quaes ficou a commissão sem dinheiro, e sem poder explicar os motivos desse con- tratempo, ainda mais ageravado pela mudança do presidente da provin- cia, que ainda não estava em dia com os negocios dacommissão. Da côrte escrevião-nos além disso que se ia tratar da nossa retirada. A'vista de tudo isto suppunhamos que se tratava de um adiamento da commissão, e nós teriamos de contrahir empenhos para os quaes não estavamos autorisados se quizessemos nos demorar; como o Dr. Gonçalves Dias e eu não nos queriamos arriscar a isso, tratá- mos de regressar para a capital da provincia, com a maior brevi- dade, porque as sobras do nosso orçamento não davão margem para demoras. Por isso na volta do Brejinho demos uma chegada rapida ás Tabocas e ao Exú na provincia de Pernambuco, cortámos a cha- pada do Araripe ainda em duas direcções para o Crato e a villa da Barra do Jardim, examinámos o que Gardner declarára serem restos de penedos de greda, no que se enganou, pois não é senão tabatinga ou silicato de aluminia. “Em S. Pedro não tivemos tempo de ir pesquisar o lugar onde se encontrára por acaso uma porção de zinco, ao qual se não ligou importancia por não ser prata! Tambem não pudemos ir aos rochedos de gesso fibroso, que tem importancia scientifica e pratica, nem tão pouco aos lugares onde afllorão saes de soda e caparosa, que os habi- tantes empregão para curtir. ! Em Milagres separámo-nos; o capitão Coutinho voltou para o CXXXIL RELATORIO Crato a seguir com o comboi pelo Icó, onde tinhamos deixado collecções, e pelo valle do Jaguaribe; marcámos dia para nos en- contrarmos no Limoeiro. O Dr. Dias tinha que ir vêr os restos de uma tribu indigena ainda numerosa em 1848 e hoje quintada, que se acha na serra do Salgadinho; para mim foi interessante essa ex- cursão, pois lá em cima da cordilheira de granito fui encontrar uns restos de psammito igual ao do Araripe, o que denota que aquella chapada vinha até aqui, e que o valle de Milagres por onde hoje corre o rio dos Porcos, e que tem quasi vinte leguas de largura sobre um comprimento de pelo menos doze, e uma altura de mais de 1,500 palmos, foi todo devido a erosão das aguas, e o seu material transportado pelo Salgado e pelo Jaguaribe para o oceano. Descemos para a provincia da Parahyba do Norte, de caminho para S. José tive de experimentar a rapidez do effeito erosivo das aguas; o rio de Piranhas, que estava quasi sêcco na vespera, tinha tomado agua durante a noite e ainda continuava; o lugar da passa- gem costumava dar vão, eu dei esporas ao cavallo, e apenas tinha dado um passo foi-se com o cavalleiro para o meio de uma corrente forte; o rio tinha cavado novo leito e transformado uma margem em ribanceira, mais abaixo o Dr. Dias, do qual eu me tinha desgarrado, teve de contramarchar uma legua para passar só meio molhado. Continuámos a nossa viagem passando pela Cajazeira, e proximo a Patamuté, donde trouxemos requissimas amostras de mineira de ferro, o terreno desde o pé da serra até alli era formado dos schistos silicosos e argillosos que já tinhamos encontrado no Icó. A cidade de Souza está collocada á borda do rio do Peixe na bacia psammitica com conglomerados que se assemelhão muito áquel- les que costumão cobrir os depositos de carvão de pedra, existem alli tambem calcareos estratificados, e nos disserão que perto havia um monte donde se tirava ouro, etc.; isso era por sem duvida ten- tador, porém em Milagres só tomámos provisões que chegassem até á proxima cidade de Souza, e nosso calculo foi exacto, porém não calculámos com o triste desengano que nos aguardava. Na cabeca da comarca de Souza os unicos generos alimenticios que os commissarios DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXXIT do governo encontrárão á venda forão bacalhão podre, um queijo fossil, e uma lata de sardinhas que nos foi vendida por especial favor ! Os nossos cavallos tambem não se achavão melhor, posto que ha- bituados a viver de pitadas de capim pulverisado, nem essas achavão entre as pedrinhas, a babugem ainda não estava de pegar. Tudo isso nos obrigou a ir em busca do Rio-Grande do Norte. As vinte leguas que nos separavão da villa do Pão dos Ferros constavão quasi exclusi- vamente de estrada naturalmente macadamisada com fragmentos de feldspatho duro de arestas muito aguçadas e quartzo da mesma fórma, viamos o momento em que os cascos das nossas cavalgaduras todas desferradas ficassem mutiladas, e nós tivessemos de medir o espaço a pé; o cavallo em que vinha o Dr. Dias já trazia os cascos mettidos em botas.de sola. Os nossos estomagos ás vezes digerião alguma galhi- nha, outras dependião do que as espingardas derribavão. Chegámos a salvamento em Páos dos Ferros, era tempo de jury e havia que comer. Todo o terreno era gnais e por cima delle corria o rio do Apodi, cuja agua ao meio-dia marcou 36º de temperatura ! Viamos a serra do Pereiro de um lado, no óutro a do Martins, e nó centro a do Apodi. Quizemos ir a Porto-Alegre e á Maioridade, de lá ao Olho d'Agua do Milho, e atravessar a inhospita extremidade da Catinga de Góes para o Limoeiro; precisavamos de novas cavalgaduras, as autoridades de- claravão-nos que tinhão ordens amplas para: nos auxiliar em tudo quanto estivesse ao seu alcance, porém nesse ponto estavão impotentes, por causa da má estação. Mudámos, pois, de intenção, e seguimos pelo valle do rio Figuei- redo, levando o ultimo pedaço de carne sêcca que o juiz de direito possuia na despensa. - Passámos junto ao morro do Cabello-não-tem, onde se costuma tirar ouro; considerações de toda a especie nos aconselhavão a passar de largo, e só começámos a'respirar livremente ao transpor a fronteira do Ceará; alli pelá primeira-vez, depois do Jardim, encontrámos leite e queijo na barra do Figueiredo, encontrámos conhecidos, bom aco- CXXXIV RELATORIO lhimento, e o Jaguaribe correndo, porém pasto ainda nenhum, era já Março ; as chuvas forão escassas ! No Limoeiro tivemos ainda de esperar pelo comboi, que chegou um dia depois do aprazado, as cargas tinhão tomado banho no riacho da Cachoeira, que estava de nado, e o capitão Coutinho as não acompa- nhou, ficára no Crato de cama; parte das cargas ficárão no Icó. os animaes não podião lrazel-as, estavão fracos, faltava pasto, e não se encontrava milho á venda. Seguimos para diante, á espera de melhorar de um pouso a outros deixei de examinar os calcareos fossiliferos perto do Limoeiro, estu- dei apenas a enorme alluvião do Jaguaribe, que depositou por muitas leguas os detritos do Araripe, e depois que levantou o terreno consi- deravelmente cavou o seu leito na arêa, e em muitos lugares o muda. Essa alluvião, as aguas transbordadas a cobrirão de limo, e a planicie de muitas leguas a perder de vista é revestida de carnaúbas. Em Russas e no Aracaty achámos alguns recursos, principalmente para as nossas cavalgaduras, e pudemos chegar á Fortaleza, deixando apenas tres animaes atrás ; fizemos a nossa entrada debaixo de um magnifico aguaceiro. Ao mesmo tempo chegava o vapor do sul, trazendo ao presidente da provincia ordem para que nos fornecesse os fundos que pedissemos, dentro dos limites do orçamento, que estava em vigor. Essa explicação chegou, porém tarde, perdi a occasião de executar trabalhos importantes no Carirí, e a minha cavalhada estava exhausta e impossibilitada para o serviço nos tres mezes proximos. Tendo chegado o presidente da commissão e o chefe da secção geographica, reunimo-nos e mandámos participar ao governo impe- rial quaes os trabalhos que ainda nos restavão, e como deverião ser executados, e no caso que fosse approvado o plano, pediamos provi- dencias para que não experimentassemos outra contrariedade como a do Crato. Eu, por essa occasião, declarei que-iria ao norte da provincia, seguiria a cordilheira da Ibiapaba, com excursão a Marvão pelo Cratiús e Inhamum até o Carirí, que de lá atravessaria para o Piauhy, Mara- “DA SECÇÃO GEOLOGICA CXXXV nhão, para descer pelo Itapicurú, ou irem busca do Tocantins e sahir no Pará. Roteiro certo: eu mesmo não podia apresentar com antece- dencia, pois a minha marcha dependia da natureza das formações que eu iria encontrando, e que me desviarião para um lado ou outro. Eu pedia fundos até Março seguinte. | Isto foi em Abril de 1860, esperei poder partir em Julho. - Emquanto aguardava a respota do governo, occupei-me a estudar o movimento das arêas na costa. Ellas não contém indicios que provem a sua proveniencia da costa d'Africa, porém hoje, depois de ter visto o Araripe, a sua erosão enorme e as massas de agua que os rios trazem em certas épocas, não preciso recorrer a uma origem es- tranha. Além disso, as arêas que vierão dos Carirís, trouxerão comsigo as sementes das plantas que ellas nutrião e. vierão creal-as nos lugares onde de novo se fixárão ; este argumento para o Ceará é forte, pois a vegetação alli é pouco andeja, ha poucas especies que requerem identidade de clima e de terreno, outras, porém, dadas estas cireum- stancias, não se movem; temos, por exemplo, o catolé abundante nas serras e sertões do sul da provincia, falta nos do norte, onde o clima e terreno são os mesmos; da mesma fórma a uricana, commum nos cimos de Maranguape e da Aratanha, busca-se debalde nos da Meruoca e Uruburtama, que são da mesma altura; o sabiá e o pão branco abundão no Ceará, e não penetrão no Rio-Grande ,- nem sobem o Salgado; naquelle o clima pouco influe, pois elle vai inva- dindo as serras á medida que o machado põe obstaculo ao crescimento das arvores primitivas; ainda poderiamos citar outros exemplos, porém estes bastão para provar que uma vegetação em massa, trans- portada de um lugar para outro, só o poderia ser com o terreno que “a creou. A unica differença geologica que se póde admittir em alguns casos, pelo aspecto da vegetação, é pela distribuição de arvores que perdem as folhas e outras que as conservão, aquellas só buscão decompo- sições graniticas, que se reseccão completamente, estas, ou as mesmas terras em lugares mais elevados que recebem humidade, ou CXXXVI RELATORIO os baixios areentos, que nunca seccão tanto como os barrentos ou argillosos. : A arêas trazidas pelo rios, são transportadas pelas correntes mari- nhas e lançadas sobre as praias, onde o vento as vai varrendo e accumulando em pequena distancia, com rampa suave do lado donde elle sopra e do mar, e escarpada do opposto, assim se amontoão col- linas, cuja altura chega ás vezes a 300 palmos. A natureza providenciou meios de fixar esses montes de material movediço, de dar-lhes consistencia e torna-los ferteis. O primeiro effeito de uma orla pouco levantada é filtrar as aguas que vem de terra, reter as materias solidas que contém, de modo a tornarem-se em pouco tempo quasi ifnpermeaveis, desta maneira formão-se lagõas muito á beiramar, sendo alimentadas pela resaca das marés: altas ahi desenvolve-se uma prodigiosa vegetação immersa, cons- tando principalmente de Charas, Naja, e Ruppia, cujos detritos dão a primeira camada de terra vegetal, que misturada mais tarde com novas arêas, torna-as aptas a alimentar vegetação; se a duna já é maior de modo que a agua salgada não a possa mais transpor, são detidas as aguas da chuva com toda argilla que trazem em suspensão como finissimo lodo, estabelecem-se lagõas, onde não tardão a vejetar Villarsias, Mayaccas, Niteilas e uma variedade extraordinaria de espe- cies de outras algas. Quando cessão de viver vão engrossar com seus elementos o lodo, o qual, sendo especificamente mais leve, penetra pelas massas de arêa que vem avançando e a duna impregna-se dessas materias, o effeito da capillaridade contribue igualmente para fazel-as subir. - Algum protoxydo de ferro existe no lodo e na mica trazida pelas arêas que vem de regiões graniticas, pelas decomposições passa á + peroxido e produz cimento, que transforma uma porção da duna em - psammito duro. O levantamento da costa influe igualmente sobre os depositos das dunas, o primeiro effeito é tornar-se mais larga a praia, ahi se accu- mulão, novas arêas, e assim tem-se novas dunas em formação, logo que ellas tenhão adquirido algum desenvolvimento, parão as primeiras DA SECÇÃO GEOLOGICA CXKXXVII e a vegetação não tarda a invadil-as, e torna-as collinas cobertas de mata, servindo de guarda-vento, que protege o crescimento de arvoredo mais alto, e de barreiras que impedem o escoamento das aguas infiltradas. Uma insignificante alga terrestre do genero Scytonema se en- carrega de fixar as arêas que o vento levára terra a dentro a dis- tancia de uma legua ; ella fórma na superficie um denso tecido de fios tenuissimos, o qual resiste ao vento e ás chuvas, e ao mesmo tempo serve de abrigo, debaixo do qual germinão as sementes de vegetaes mais perfeitos, e por fim contribuem para fertilisação das arêas. As dunas são longitudinaes se a costa corre parallela á direcção do vento, são atravessadas logo que esta é batida em cheio, então tornão-se ellas verdadeiros contrafortes, que impedem a formação de comoros a grandes distancias além. O movimento das arêas, combinado com o levantamento do litto- ral, tem por consequencia immediata a destruição de bons anco- radouros, levantar o fundo do mar, ete.; convém por isso haver grande cautela quando se tratar de construcções maritimas, como portos, diques, etc.: são obras dispendiosas e podem ficar inutili- sadas; é, pois, questão a estudar-se. No Ceará o levantamento foi consideravel; perto do Aquiraz ha um lugar onde o mar recuou de dez braças em 30 annos, ao que os habitantes não podem applicar a sua explicação favorita a accumulação de arêas, porque as bali- sas não forão cobertas. Ha tambem circumstancias que influem sobre a estabilidade das dunas, de modo que são destruidas em um lugar para serem recons- truidas mais adiante, estas cobrem matas elevadas, e quando des- manchadas deixão os troncos resequidos com a sua superficie coberta de lenhito. Durante algumas excursões sobre comoros debaixo de sol ardente, fui surprendido por aguaceiros, que tive de supportar por falta de abrigo, o que me valeu doença bastante prolongada; a este tempo o capitão Coutinho voltava do Crato ainda não de todo restabele- Gs. (48) CXXXVII RELATORIO cido ; elle planteou, nivelou e balisou uma porção de dunas para se poder avaliar no fim de algum tempo o seu crescimento, “Após de mim adoeceu meu companheiro de viagem, o Dr. Gon- calves Dias, que depois de restabelecido seguio para o Maranhão em busca de indigenas puros, que não encontrava no Ceará. Eu preparei-me a seguir para o interior em principio de Agosto, emquanto aguardava resposta do governo imperial. Mas de uma excursão que fizemos á Pacatuba voltou doente o meu adjunto ; esteve de cama um mez, no fim do qual attestou o seu medico assistente que ainda devia continuar em tratamento tres mezes, e que ainda então seria pouco prudente expôr-se ás privações de uma longa viagem pelo interior. Requisitar outro adjunto era cousa de grande demora: resolvi pois tomar um, hemem que tinha habilidade manual para concerto de instrumentos, esperei podel-o instruir em colleccionar rochas, fazer observações meteorologicas e photographar os objectos que eu encontrasse notaveis, e principalmente de vigiar o comboi e cuidar no tratamento das cavalgaduras, etc. ; pedi autorisação ao governo para podel-o engajar, não como adjunto, pois faltavão-lhe todos os estudos, mas sim como addido. Estavamos em Outubro, e o geverno não tendo ainda resolvido ácerca da viagem que tinhamos a emprehender, o presidente da provincia comprehendeu quanto era prejudicial a nossa inacção, to- mou sob sua responsabilidade de nos mandar adiantar as quantias de que precisavamos para despezas de viagem; eu parti só em prin- cipio de Novembro. Segui pelo Curú, onde encontrei um tronco de formação ba- saltica. Ê Percorri a Uruburetama em todos os sentidos, e a ascensão de al- guns montes, onde cheguei transpirando e sem o menor abrigo, derão comigo de cama no mais inhospito lugar que conheço. Ainda convalescente, fui á lagôa do Ripina, onde se encontrão ossos de animaes enormes; quando lá cheguei cahio uma violenta pancada de agua, principiava O Inverno, e em poucas horas encheu DA SECÇÃO GEOLOGICA CKXXIX é transbordou um açude que ha quatro annos não tinha sangrado, ficou frustrada a minha colheita de ossos, tinhão tirado d'alh um esqueleto inteiro e alguns ossos que indicavão existir ainda outro. No entretanto não foi baldada a minha viagem, pude verificar que já no tempo em que vivião aquelles animaes o clima do Ceará era o mesmo de hoje, que já havia então sêccas desastrosas. Deixei recommendado que se excavasse com cuidado os ossos ainda existentes na lagôa do Ripina, assim como os da lagôa de Socatinga e da do Limoeiro. Mais tarde retirei essas ordens, por não ter autorisação para dispôór de fundos que eu tinha em mãos. Fiz uma excursão ao Mundahú, onde me informarão haver re- sinas em quantidades extraordinarias de uma arvore especial; pelas amostras que vi não podia deixar de verificar um facto importante para a industria, fui iludido, apenas pude colligir alguma cousa .sobre os recifes e as dunas; a resina é a casca de uma Moqguilea, que enterrada resinifica-se, facto curioso debaixo do ponto de vista scientifico, e talvez venha a ter ainda algum alcance geologico. Segui depois para Sobral, em todo caminho, como na mesma Urubetama e nas margens do Curú, observei uma curiosa efflorescen- cia de sal commum nos gnais, sobretudo naquelles que se approxi- mão a micachistos, d'ahi resulta as aguas de muitos riachos, quando Já correm pouco, tornarem-se salobras. Igualmente contém grande quantidade desses saes as aguas ther- maes da fonte do Pagé ou Carnahú-pagé, onde se desprende em borbu- lhas continuadas uma corrente de gaz, na maior parte ar atmospheri- co. Concentrei 60 litros dessa agua, e colhi com todas as precauções uma porção de gaz, para analysar mais tarde. Perto de Sobral existe um penhasco de granito isolado e muito alto, que passa por vulcanico, houve duas erupções que mettêrão medo a muita gente, porém sem terremotos, nem outro apparato, que infallivelmente teria precedido qualquer manifestação da parte do calor central; fúi examinal-o, e um incendio de macambiras pareceu aos animos prevenidos um corrimento de lavas ! * Visitei a serra da Meruoca, que é outro systema isolado no meio CXL RELATORIO do sertão ; este, porém, differe de todos os mais pela sua compo- sição geologica, a rocha crystallina é quasi exclusivamente um bello feldspatho côr de rosa, pedra magnifica para obras e bella para monumentos. Em Sobral demorei-me algum tempo esperando pelo conselheiro presidente da commissão, que vinha da Ibiapaba ; havia oficios para elle, e eu precisava saber que resolução tinha o governo imperial, tomado a respeito da secção a meu cargo. Com effeito se tomárão providencias, que se podião considerar resposta á nossa representação de Abril, e erão as seguintes : em 10 de Outubro se officiou do Rio de Janeiro ao presidente da commis- são no Ceará que desde o 1º do dito mez fosse executada uma ta- bella, que acabava de ser votada pelo corpo legislativo no orçamento para o anno seguinte; essa ordem partio d'aqui em 23 de Outu- bro, e só pôde alcançar o presidente da commissão, que andava em viagem, no mez de Janeiro seguinte : já tinhamos, pois durante tres mezes, deixado de cumprir a lei, pela dificuldade das commu- nicações. Além disso, a tabella foi confeccionada sem se attender ás exigen- cias do serviço, marcou-se o numero de serventes que deviamos ter, era muito insufliciente; marcárão-se os jornaes que elles devião perceber, erão exagerados; marcou-se quanto os cavallos devião gastar diariamente, cousa que variava de um modo extraordinario, segundo as localidades. “ Representámos ao governo imperial que a tabella era inexegui- vel, e resolvemos reunirmo-nos na capital da provincia em Março. Já se vê que a minha exploração da Ibiapaba e viagem ao Piauhy estava completamente frustrada. De mais a mais se me ti- nha negado a autorisação que eu pedia para engajar o addido que eu havia proposto; eu estava só, sem adjunto, via-me forçado a occupar-me de todo detalhe o mais material: da secção, e não me restava tempo para outros trabalhos. | Isto me não convinha, nem convinha ao paiz. Dirigi-me portanto à Granja, e embarquei todas as colleeções que tinha com a minha DA SECÇÃO GEQLOGICA CXLI bagagem para a capital da provincia, emquanto eu iria para lá por terra percorrendo rapidamente a Serra-Grande. “Eu levava comigo todos os trabalhos e notas de quasi dous annos tanto meus como os do capitão Coutinho, e varios documentos im- portantes que pude obter, tinha todas as observações astronomicas, metereologicas, hypsometricas, todas as medições geologicas, os pontos que tomei para organisação do mappa geologico, as notas de uma porção de analyses de plantas medicinaes que fiz durante a estada na capital, e quatro volumes de photographias de todos os generos; levei tudo isto comigo porque a estação era invernosa, havia toda a certeza qué eu me veria obrigado a passar dias encerrado em casa, e essa occasião eu queria aproveitar para adiantar o meu trabalho final, como realmente o fiz. Voltando por terra para a Fortaleza a toda a pressa, prevía que teria de passar sete rios talvez cheios sem poder esperar alguns dias que elles baixassem ; e ainda tendo bem presente o como atravessei,o rio das Piranhas, e como vierão minhas colleeções do Crato, não quiz expôr a uma ruina quasi certa tanto trabalho pre- cioso, mandei-os de volta com alguns instrumentos, livros e algum dinheiro em massos volumosos de notas miudas. Quando cheguei á Fortaleza suppuz já encontral-os, e recebi pouco tempo depois a no- ticia que tinhão naufragado : pedi logo providencias, e a presidencia mandou sem demora uma jangada a vêr se podia salvar alguma cousa, esta porém tambem sossobrou, foi preciso ir outra, que nada conseguio, segundo parece. | Para mim foi o mais fatal resultado da referida tabella. De Sobral eu segui com o Sr. Lagos, o chefe da secção zoologica : “da Granja partimos escoteiros para a Serra-Grande , visitmos o Iboassú, na raiz havia o completo typo de vegetação do Araripe, e era o solo formado de detritos arenosos. Visitámos as minas de cobre do Ubary, é um schisto argiloso im- pregnado de malachita, contém bastante cobre, porém não em quantidade que valha. a pena para se fazer caminhos de ferro e outras emprezas que taes. | “Fomos á Villa-Viçosa, depois a 8. Pedro, onde visitimos a afama- CXLII RELATÓRIO da caverna da Ubajarra: ella se acha em grande penedo de calcareo granular, porém cinzento, por fóra não apresenta a côr negra do de Cantagallo, é de formação mais recente do que o psammito de que se compõe a Ibiapaba, o seu solo é uma boa nitreira. Em um dos riachos que lhe passão fronteiros achei no meio de fragmentos de psammito outros de schisto muito impregnado de pyrites esbranquiçada, o que já passou por prata. e em alguns fragmentos se vião vestigios de galena. Passámos S. Benedicto, Villa-Nova, descemos pelo Ipú ; o lugar onde se tinha tirado as galenas argentiferas estava cheio d'agua, não pude arriscar-me ao esgotamento porque a tabella não consig- nava margem para isso, nem fui estudar as minas de ouro do Juré e de Santa Maria pelo mesmo motivo. Não longe da Villa-Nova tirou-se sulfureto de antimonio, e amos- “tras de molybdato de chumbo existentes no musêo vierão daquel- las paragens; tambem vi amostras de sulfureto de zinco, que d'alh remettêrão ao Sr. general Bittancourt quando presidente do Ceará. A Serra-Grande é composta de camadas de psammito alternando com outras de conglomerados, que do lado do Ceará são cortadas perpendicularmente, mergulhão com suave inclinação para o Piau- hy; o cimento dessa rocha é argiloso, com algum oxydo de ferro na superficie, decompõe-se facilmente, e d'ahi provém a fertilidade do terreno que jaz quasi todo desaproveitado a ponto que exceptuando Villa-Viçosa, em mais parte alguma achámos milho para as nossas cavalgaduras. “A formação da Ibiapaba parece estender-se para muito longe, o Dr. Dias mandou-me amostras importantes do Codó, que confirmão essa opinião. | | Não me foi possivel fazer estudo algum sobre a Ipiapaba, mas pelo que vi não posso deixar de recommendar encarecidamente ao Instituto Historico que como iniciador da idéa da creação de uma commis- são scientifica tenha sempre em “vista uma exploração minuciosa daquella serra, a qual tem de produzir resultados importantes para a seiencia, é sobretudo de grande álcanice pratico para o desenvolvi- DA SECÇÃO GEOLOGICA CXLUE mento do commercio e industria na provincia do Ceará, e crear um recurso que possa contribuir. poderosamente para annullar os mãos “ effeitos das sêccas inevitaveis. Para executar essa exploração não ha necessidade de avultado pes- soal, póde mesmo ser feito o estudo geologico com os trabalhos topo- graphicos que ainda restão por fazer naquella provincia, o chefe da secção astronomica é pessoa muito intelligente e activa, que está per- feitamente habilitada para isso. Quando mesmo tenha outro indivi- duo de completar o serviço dessa secção, podem ser-lhe fornecidas instrucções detalhadas que facilitem a exploração geologica. Voltei para a Fortaleza, e all chegou-nos nova decisão do governo que mandava vigorar o antigo orçamento até Fevereiro, d'ahi em dian- te a tabella: com isso nada adiantámos, e resolvemos pedir ao governo que nos permittisse que viessemos ao Rio de Janeiro para combinar. sobre os meios mais proprios para concluir os trabalhos da com- missão, eu além disso precisava de descanso, pois tinha já repeti- das vezes soffrido de erysipelas, intermittentes, e dos olhos, e não podia continuar, a ponto que vi-me obrigado a pedir licença para me retirar por doente. Rio, 4 de Outubro de 1861. k GuiLHERME S. DE (CAPANEMA. Secção zoologica. Sengor! Obedeço 4 ordem de Vossa Magestade Imperial, apresen- tando desde já um relatorio succinto dos trabalhos em que me occupei como membro da commissão scientificaencarregada de explo- rar o interior de algumas provincias do Imperio menos conhecidas. Nomeado chefe da secção zoologica por decreto de 7 de Março de 1857, confiou-me logo depois o Exm. Sr. conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, então ministro e secretario de estado dos negocios do Imperio, a tarefa da acquisição dos objetos necessarios para a marcha da commissão, que se pudessem obter com mais vantagem nesta córte, quer em relação á sua melhor qualidade, quer ao seu preço; visto como uma parte dos preparativos, não só para o uso geral, mas ainda particular de cada secção, havia sido recomendada aos Srs. Drs. Giacomo Raja Gabaglia e Antonio Gonçalves Dias, que nesse tempo se achavão na Europa em serviço do governo. Desempenhei quanto melhor me foi possivel o honroso encargo, como minuciosamente expoz ao Instituto Historico, na sua sessão magna de 15 de Dezembro de 1857, o meu ilustrado collega e com- panheiro de viagem o Sr. Dr. Guilherme Schúch de Capanema; e por isso evito agora a repetição, não desprezando porém o ensejo-de responder a duas arguições injustas com que se abrio a longa série das successivamente feitas depois contra a commissão scientifica, movidas quasi todas por paixões particulares, ou por pouco conhe- cimento da materia. Versa a primeira dessas arguições, a que me refiro. sobre a vo- lumosa bibliotheca mandada vir pela commissão, e o material qualificado immenso e desnecessario, que ella tambem exigira e apromptára. A respeito dos livros deixemos fallar o Sr. Dr. Capanema: « Seu numero é bastante consideravel, diz elle, apezar de sómen- te pedirmos as obras indispensaveis e que se não encontrão nas to. A SE a ao RELATORIO DA SECÇÃO ZOOLOGICA CXLV “bibliothecas publicas desta cidade, levando mesmo em conta as pos- suidas por particulares, e de que temos conhecimento: por isso dei- xámos de pedir as esplendidas publicações de Humboldte Bompland, de Spix e Martius, de Pohl, de Saint-Hilaire e de outros autores, existentes na bibliotheca nacional e na do nosso Instituto ;e bem assim asobras de Reaumur, Olivier, Schoenherr, F abricius, Guérin-Méneville, Meigen, Macquart, Déjean, e muitas outras bellas monographias que possue 0 nosso amigo e companheiro de expedição o Sr. Dr. Lagos, em cuja | excellente bibliotheca se encontrão tambem as preciosas collecções completas dos Annaes da Sociedade entomologica de França, das Suites a Buffon publicadas por Roret, a Historia natural dos peixes por Cuvier e Valenciennes, etc., etc. Relativamente a jornaes sclen- tificos, poucos se pedirão, por ora, para não avultar a despeza ; porém as series completas de muitos são de absoluta necessidade, pois nellas se achão insertas numerosas memorias de importancia sobre a geographia e historia natural do Brasil, e cumpre que a commis- são esteja em dia com esses trabalhos para não dar o triste especta- culo de isolamento scientifico e ignorancia do que se tem escripto sobre o proprio paiz. » Relativamente ao immenso e desnecessario material occorre 0 se- guinte. Ninguem ignora que à commissão scientifica era composta de cinco secções, cada uma dedicada a estudos especiaes; e 0 trem de todas, inclusivê as bagagens de uso particular, pouco excedeu a. duzentas caixas, numero bem diminuto se o compararmos do volu- me acarretado por outras expedições de igual caracter. Sirva de pro- va um unico e recente exemplo. Lê-se no tom. 9.º do Cusmos, pag. 459: « O Sr. Piazzi Smyth, astronomo real da Escossia, emharcou no yacht Titama a 20 de Junho de 1856, para a sua expedição astronomica ao Pico de Teneriffe, conduzindo setenta caixões cheios de apparelhos perfeitamente em estado de servirem. » Ora, os trabalhos astronomicos e geographicos ordenados pelas instrucções especiaes dadas ao meu distincto collega o Sr. Dr. Giacomo Raja Gabaglia, chefe da respectiva secção, erão mais amplos e variados do que os requeridos do astronomo escossez, devião ser executados G. s. : 19 CXLVI RELATORIO numa área de centenas de leguas, e não em um ponto limitado ; mas apezar disso não avultou mais o numero de caixas conduzidas pela secção astronomica da commissão scientifica brasileira, tanto assim que o Sr. Dr. Gabaglia se viu varias vezes embaraçado pelo desarranjo de alguns instrumentos dos quaes não levára sobresalen- tes. Demais, nem todo o trem embarcado tencionava a commissão levar comsigo para o interior, que bem prevía ser uma dificuldade quasi invencivel, e que custaria enormes somas; era sua resolução, como effectuou, formar um deposito na cidade da Fortaleza, d'onde fosse tirando os objectos á proporção que delles necessitasse nas suas digressões pelo centro da provincia. Tanto prova-se ainda não ter havido superabundancia nos preparativos, que depois de estar no Ceará a commissão requisitou da córte varios objectos cuja falta reconhecêra. ; Refere-se a segunda arguição ao armamento de que foi munida a expedição scientifica. « Segundo parece (assim se exprimiu facetamente um orgão da imprensa do Ceará), a commissão vem de cangaço: vem armada da cabeça até os pés, e com algum piquete de cavallaria andante para livral-a dos ataques das feras, das tribus de anthropophagos, e de assassinos malvados, e talvez de moinhos de vento. A' vista de tal armamento de soldados, suppõe-se que é perigoso passear-se no «interior do Ceará, e receia-se que os nossos pacificos patricios do sertão sejão tão selvagens que incommodem os illustres sabios. E' um engano completo: os nossos sertanejos são hospitaleiros e paci- ficos, recebem os viandantes com agrado, e os obsequião quanto podem. A commissão só deve receiar as constipações. quédas e mosquitos nas montanhas, e no sertão a falta d'agua, o calor do sol, alguma cobrinha cascavel, algum novilho zangado, etc. » Nada avançou o susceptivel jornalista cearense, no seu provin- cialismo offendido, que a commissão ignorasse quando d'aqui sahiu. Resolvida a devassar os nossos sertões, já contava que teria de sup- portar muitas privações e passar por muitos perigos, d'entre os quaes collocava em ultima classe o encontro de assassinos e de anthropo- DA SECÇÃO ZOOLOGICA CXLVII phagos; que seria preciso velar quando quizesse dormir; soffrer continua fadiga quando o corpo lhe pedisse repouso ; tragar fome e sêéde quando appetecesse comer € beber; estacionar em um ponto, desejando estar em outro; que muitas vezes não encontraria onde abrigar-se do sol abrazador, do relento, da chuva. Nada disto porém lhe quebrou o animo, nem lhe fez abandonar a ardua, mas honrosa empreza, que aceitára sómente pelo interesse de servir a patria, privando-se de seus commodos, e separando-se de seus parentes e amigos, talvez com probabilidade de não tornar a vel-os. Assim re-. signada, partiu a expedição scientifica com 0 plano de um itine- rario, que a falta de tempo e outros motivos, cuja enumeração será feita em lugar competente, lhe inhibirão de realizar. Projectava, percorrida toda a provincia do Ceará, atravessar pela do Piauhy á de Goyaz, e alli embarcando-se no Araguaya seguiria até o Ama- zonas, descendo por este rio em demanda da capital do Pará, d'onde finalmente se recolheria á córte. Destarte decidida, resalta incon- testavelmente que era prudencia da commissão prevenir-se contra as insidias das hordas barbaras, que por certo teria de encontrar ef- “feetuando o roteiro concordado ; e só temendo essas se acautelou, e não por desconfiar dos sertanejos do Ceará, que é fama serem tão hospitaleiros como em geral o são os Brasileiros de todas as pro- vincias do Imperio, virtude apregoada unanimemente pelos viajantes estrangeiros que percorrerão o nosso territorio em varias de suas zonas, e até mesmo por aquelles que, desejando ostentar espirito, procurárão ridicularizar-nos com O intuito de fazerem rir á nossa custa os seus leitores. A commissão já sabia, e agora o certifica por experiencia propria, que hoje se póde viajar toda a provincia do Ceará sem receio de ladrões e assassinos. Justificada pois a commissão, passo sem mais preambulo a tratar -do objecto principal deste relatorio. Imitando o exemplo do meu sabio mestre e amigo o Sr. conse- lheiro Dr. Francisco Freire Allemão, presidente da commissão scientifica, no seu bem elaborado relatorio dos trabalhos da secção CXLVII RELATORIO ' botanica, fugirei de tornar-me fastidioso narrando minuciosamente a minha viagem, e evitarei tambem a profusão de nomes scienti- ficos, que não terião cabimento em um. ligeiro esboço, qual vou fazer, dos resultados obtidos pela secção zoologica por mim di- rigida. Partindo deste porto no dia 26 de Janeiro de 1859, a 4 de Feve- reiro seguinte chegámos á cidade da Fortaleza, capital do Ceará, nada se tendo podido fazer na Bahia e Pernambuco, onde o vapor Tocantins, que nos conduzia, apenas se demorou o tempo neces- sario para receber combustivel. Desembarcados e postos em ordem os objectos pertencentes á secção a meu cargo, poucos dias depois comecei a estudar a Fauna daquella provincia, não só formando collecções zoologicas, na conformidade das ordens especiaes que me forão dadas pelo governo imperial, mas ainda observando pes- soalmente e reunindo informações de pessoas habilitadas e fide- dignas. Em quanto os caçadores e preparadores, que comigo levára, se occupavão na caça e conservação dos quadrupedes, aves, reptis e insectos, travava eu relações com os pescadores que habitão nas praias proximas da cidade, sobretudo junto da ponta do Mucuripe, onde se acha colocado o pharol, guia dos navegantes que demandão o porto, e a poucos passos uma pita e aprazivel povoação de cento e tantas cabanas, construidas de carnaúba, dispersas com ir- regularidade symetrica pelo longo da praia entre elevadas e graciosas palmeiras, e occupadas por individuos, a mór parte e; raça indi- gena, que vivem exclusivamente da pescaria. Esta arte preciosa, tão lucrativa para o individuo, e não menos para o Estado, limita alli as suas operações ás balizas dos nossos mares territoriaes, e assim succede em todo o littoral do Brasil. Exporei resumidamente como se fazem as pescarias maritimas no Ceará. A força dellas é em jangadas, genero de embarcação incon- testavelmente bem proprio para resistir aos mares bravios daquella costa, os quaes são muito piscosos. Além da pescaria de linha, que é a usual nas jangadas, armão tambem curraes ou cercadas pelo seguimento das praias, e servem-se de varias especies de redes, E DA SECÇÃO ZOOLOGICA CXLIX algumas differentes das empregadas pelos nossos pescadores, quer no feitio, quer na largura das malhas, sobretudo a que chamão de ar- rasto, judiciosa e prudentemente prohibida pelas camaras muni- cipaes em consequencia do damno quecausão á criação : as mesmas posturas prohibem outrosim as tinguijadas em lagõas e poços de rios - por serem inteiramente nocivas ao publico, não só por matar a se- mente do peixe, como por inficionar as aguas; e igualmente pescar-se de rede ou tarrafa do mez de Agosto em diante até 'o principio do inverno nas ipoeiras, alagôas ou poços de rios d'agua doce que não secção de um a outro anno. Desnecessario julgo dizer que estas sabias prevenções não são litteralmente cumpridas, como por des- graça tambem aqui acontece em objecto identico. As Jangadas regulares são fabricadas de seis páos, e raras vezes de mais ; seu comprimento regula quarenta e cinco palmos, sobre sete a oito de largura : os pãos são importados de Pernambuco, onde existe grande quantidade das arvores que os fornecem. Todas as Jangadas tem um mastro, em geral de pequiá ou condurú ; o resto do apparelho é de cajueiro em algumas, porém na maior parte dellas é de cedro, pois vigora uma multa contra quem corta o cajueiro, por ser alimento da pobreza, e não só o vulgarmente chamado fructo, mas ainda a castanha verde, denominada matwri, a qual comem preparada de diversas maneiras. Os cabos são torcidos de gargaúba, de embiratanha, de pacotê, de carnaúba, das fibras da mesma jan- gadeira, e de outros vegetaes filamentosos, que em abundancia cres- cem espontaneamente na provincia, e serião por ventura excellente - materia para fabricação de papel : estas cordas são tintas com mangue de sapateiro ou casca de cajueiro. A fatexa de que se servem para fundear vem a ser uma pedra habilmente amarrada, á qual dão o nome de tauassi (itáassi?). Quando os pescadores se aventurão no mar, além dos apparelhos do seu officio conduzem dous barris, um com agua para beber, outro com sal para conservar o peixe, e mais uma mar- mita para cozinhar, e cabaça com farinha calculada segundo o tempo que contão demorar-se na sua tarefa. As jangadas afastão-se da costa muitas leguas a perdel-a de vista, e ás vezes só regressão no CL RELATORIO fim de uma semana e mais dias. Os jangadeiros, que nem de nome conhecem a bussola, guião-se no alto mar pela direcção do sol, dos ventos, das estrellas e da Via lactea, á qual denominão mancha. Nestas suas temerarias navegações não é raro serem sorprendidos por tempestades medonhas, que elles impavidamente arrostão, e das quaes safão-se quasi sempre bem quando não se voltaa jangada e | fica algum pelas custas. Tem-se dado tambem o caso de desappa- recerem jangadas com toda a tripolação sem nunca mais haver no- ticia dellas; mas elles encarão estes successos com indifferença, e como uma cousa natural ligada ao seu officio, e de que podem ser victi- mas qualquer dia, pois ninguem, assim dizem, sabe o genero de morte que lhe está reservado, e nem póde ir contra a vontade de Deos. O que fica dito corrobora a illação do presidente da provincia da Bahia, no seu relatorio de 1852, onde, quando trata da industria da pesca da garoupa em Porto Seguro, descobre nella — a admiravel disposição dos povoadores do nosso littoral para serviço da marinha, quer mercante, quer de guerra, entregando-se os pescadores em fra- geis garoupeiras por vinte dias a um mez ás ondas e aos ventos sem instrumento algum de navegação, cercados de abrolhos e perigos, e reduzidos á nutrição a mais mesquinha e insalubre. “As pescarias são com effeito a escola onde se formão os mais habeis marinheiros, e segundo Necker é uma occupação preciosa, que deve ser animada como a agricultura por augmentar muito os meios da nossa subsistencia; e como objecto particular de politica porque, amestrando marinheiros durante a paz, torna-se um meio de força durante a guerra. Seja-nos permittido traduzir aqui as palavras com que O celebre autor da Historia dos peixes, o conde de Lacépéde, descreveu com a sua habitual eloquencia as vantagens e Os recursos da pesca. « À pesca precedeu a cultura dos campos, é contemporanea da caça ; mas existe uma differença entre a caça e a pesca, à saber, que esta ultima convém aos povos: civilisados, e longe de oppor-se aos pro- gressos da agricultura, do commercio e da industria, ella pelo con- trario multiplica seus felizes resultados. — Se, na infancia das socie- DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLI dades, a pesca fornece a homens ainda meio selvagens um alimento sufliciente e salubre, se os habitúa a não temer a inconstancia das ondas, se os faz navegantes; ella offerece aos povos civilisados abun- dantes messes para as urgencias do pobre, tributos variados para o luxo do rico, preparações procuradas para o commercio longin- quo, estrumes fecundantes para as terras pouco ferteis : ella obriga a atravessar os mares, a affrontar os gelos do polo, a supportar os fogos do equador, a lutar contra a tempestade ; ella espalha sobre o Oceano florestas de mastros, prepara os marinheiros experientes, os com- merciantes audazes, os guerreiros intrepidos. — Mãi da navegação, vai sempre crescendo com esta obra-prima da inteligencia humana. À proporção que as sciencias aperfeiçoão a arte admiravel de cons- truir e dirigir as embarcações,ella multiplica seus instrumentos, es- tende suas redes, inventa novos meios de successo, angaría maior pessoal, penetra nas profundidades dos abysmos ; ella arranca dos mais secretos asylos, e persegue até as extremidades do globo os objectos de sua constante pesquiza. » Não copiámos debalde este trecho do illustre naturalista francez sobre tão importante assumpto, que mais tarde e em lugar competente tencionamos desenvolver. Quando se soube no Ceará que para alli partia uma commissão scientifica, encarregada pelo governo central de explorar o interior da provincia, a mór parte dos habitantes exul- tou de prazer, sonhando logo com a descoberta de minas de diamantes e de quantos metaes preciosos se conhecem, apezar de possuirem Já tres ricas minas inesgotaveis, mais lucrativas do que se fossem de diamantes, de ouro e de platina; e todavia não as lavrão proveitosa- mente, talvez por falta de quem lhes abra os olhos, dê impulso e direc- ção conveniente ao trabalho: fallo da agricultura, criação do gado e pescaria, que pelas circumstancias peculiares com que a Providencia dotou aquella fertilissima região, a podem tornar em poucos annos uma das mais abundantes provincias do Imperio. Eis porque de proposito me demorei fazendo valer a utilidade das pescarias, as quaes infelizmente no Ceará são apenas emprehendidas por particulares, assim como em todo o Brasil, sendo de lamentar que ELII RELATORIO | alli e em outros pontos se não haja incorporado companhias para ex- ploral-a em grande escala, pois nossos mares e rios forão sempre afamados pela excellente e maravilhosa quantidade de peixes que nelles vivem; e para prova de não haver exageração basta correr os olhos pela lista que Pison nos conservou dos peixes já conhecidos no seu tempo: por esta razão escreveu Claudio de Abeville, na sua lingua- sem figurada, ser (ão dificil particularisar todas as qualidades, como enumerar as estrellas do céo. E' verdade que o governo imperial, autorisado pelas camaras legislativas a promover à incorporação de companhias para a pesca, salga e secca de peixe no littoral e rios do Brasil, concedendo diversos favores às primeiras que se estabelecerem regularmente, por decretos de Agosto de 1857 approvou os estatutos de duas companhias, a Nereida nesta côrte, e outra no Pará; a pri- meira para exercer à industria da pesca e salga de peixe até os Abro- lhos, e a segunda para abastecer de peixe fresco e sécco 0 mercado daquella capital. Destas companhias a Nereida morreu, € da Paraense não se conhece o beneficio. Sem explicar as causas que produzirão tão mão resultado, insistimos pela formação de uma companhia pis- catoria no Ceará, a qual, sendo dirigida por pessoas habeis, enrique- ceria os seus emprezarios, e de muito valeria á provincia: sómente 0 camoropim, peixe grande e saboroso que abunda naquella costa, sem contar mais de duzentas outras especies, ajudaria muito o sustento da classe pobre, maximê nos annos em que à sêcca extingue o gado, além de constituir um avultado 2tem na verba da exportação. Cada peixe apanhado é uma moeda extrahida do mar, diz Franklin. Para não citar outros exemplos, os Hollandezes com a pescaria do arenque, em cuja preparação excedem a todas as nações, fazem subsis- tir um grande numero de pessoas de toda a idade e sexo, e tem adqui- rido incalculaveis riquezas. Attribue-se a um pescador de nome Beuckels, natural de Bierolet (Paizes Baixos), a invenção de salgar e metter em quartos os arenques, conservando-os em estado de pode- rem ser exportados para diferentes paizes: este notavel Hollandez, disse o imperador Carlos V visitando a sua sepultura, — foi mais util á sua patria do que se tivesse conquistado uma grande provincia. DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLII Entre nós mesmos, ninguem ignora o grande commercio que no Pará se faz do peixe-boi é do piraurucú, que substitue alli o bacalhão. Lê-se no relatorio apresentado em 1857 á assembléa legislativa do Ceará pelo respectivo vice-presidente, o Sr. coronel Joaquim Mendes da Cruz Guimarães, que no anno antérior se havião empregado na pesca 69 jangadas, sendo o termo médio do producto daquella in- dustria nos tres ultimos annós 13:500g: « Este facto mostra que ella não vai em progresso, acerescenta elle ; essa industria ainda se acha em seu estado primitivo, e não creio mesmo que ella possa prosperar sa- tisfactoriamente senão por incorporação de alguma companhia; mas essa idéa, no estado actual das nossas cousas, não póde passar de uma aspiração. » Quasi me ia esquecendo dizer que as jangadas pagão imposto, e se cobra dizimo do peixe. Do meu exame dos peixes principaes que alli vi resultou-me o co- nhecimento de que alguns se não encontrão no littoral do Rio de Janeiro, e outros, embora da mesma especie, apresentão modifica- ções mais ou menos salientes, e são diversamente denominados, como se dá tambem a respeito de alguns animaes de outras classes. Na dis- tribuição dos animaes marinhos succede o mesmo que na das especies terrestres: cada região cria os seus, e tem uma Fauna ichthyologica especial. Em identicas condições climatologicas e atmosphericas vivem especies analogas; porém raras vezes são em tudo iguaes, e oferecem quasi sempre um typo particular. Como bem raciocina Maury, a fórma e a composição das costas exerce grande influencia sobre a distribuição dos peixes, e juntão-se á natureza do clima, á pro- fundidade das aguas, á qualidade do fundo para modificar as condi- ções da natureza ichthyologica. Quando a constituição geologica do littoral é a mesma, e fornece aos animaes marinhos um alimento se- melhante e abrigos iguaes, os caracteres de seus habitantes approxi- mão-se, e reconhecem-se as mesmas especies. O grão de salgamento das aguas entra tambem em parte nas condições biologicas dos peixes, e o mesmo se póde affirmar relativamente á Fauna malacologica. Os lagos tem a sua população á parte, e ainda mais distincta do que a dos CG. Ss. : 920 CLIV RELATORIO mares, pois nenhuma communicação permitte ás vezes a troca de ha- bitantes, e o mesmo subsiste a respeito dos rios. Releva confessar que quanto aos habitos dos peixes e methodo se- guido para alcançal-os não nos satisfez o complexo de informações tomadas ao acaso, nem as descripções exageradas ou imperfeitas dos pescadores: para fallar magistralmente da sua arte conviria praticar por muito tempo, ou pelo menos assistir ás lutas desses homens intre- pidos contra as ondas, e aos artifícios que elles empregão para sor- prender os habitantes das aguas, afim de pessoalmente e com criterio, e á força de estudos e observações proprias, adquirir-se conhecimento exacto dos segredos da sua arriscada profissão, dos utensilios e meios postos em acção, segundo as localidades e as circumstancias. Suas redes e mais instrumentos, bem toscos ao aspecto, produzem effeito admiravel quando em exercicio, ao contrario desses bellos artefactos de pesca patenteados elegantemente nas vidracas das lojas, brilhantes pelas suas lustrosas côres e apparato, e que todavia estão longe de possuirem a facilidade e a solidez requeridas. Com quanto eu reservasse para depois de meu regresso do interior o demorar-me algum tempo no littoral para seguir os mais habeis pescadores nas suas excursões pela costa, e ainda, me sendo possivel e permittido, visitar os Abrolhos, tão ricos de pescado, não deixei apezar disso de reunir logo quantas informações pude, como já disse, e de mandar fazer modelos das redes e outros instrumentos alli em uso na pescaria, arrecadando igualmente amostras das materias de que são fabricados. Foi tambem adiada para a minha volta a collecção dos peixes marinhos, attendendo a chegarem aqui melhor conserva- dos, do que se ficassem por muito tempo em barris, onde juntos perdem mais ou menos as suas córes e brilho: para conseguir-se que ellas persistão é mister que cada individuo seja guardado separada- mente em bocal de vidro, com alcool de gráo mais ou menos subido segundo a natureza do peixe. Não se podia evitar este inconveniente quanto aos peixes dos lagos e rios do interior da provincia, que fui arrecadando á proporção que os encontrava. Antes de deixar este artigo, já talvez longo de mais, escreverei DA SECÇÃO ZOOLOGIGA CLY ainda que de meus entretenimentos com aquella boa gente, de uma credulidade illimitada, resultou-me o archivar, além das notas dese- jadas, uma curiosa compilação de contos mais ou menos divertidos, mais ou menos extravagantes, a respeito de successos occorridos no mar, da existencia de peixes monstruosos, de naufragios e scenas hor- riveis que se seguirão, de encontros inesperados na vastidão do Ocea- no, etc.; historias palpitantes de emoções, como as aventuras imagi- narias do Robinson de Daniel de Foé, proprias da penna do capitão Mayne Reid, e dignas de figurarem entre as ficções mysteriosas de Hoffmann, ou de esmaltarem com mais vivas córes os desenhos fantasticos de Gustavo Doré. Quando algum pescador veterano, en- canecido no officio, começa a narrar, os circumstantes attonitos e boquiabertos lhe prestão attenção igual á do Arabe do deserto escutando os prodigios da Lampada maravilhosa. Estas legendas forneceráô sem duvida amplo e novo assumpto ao eximio cantor das Brasilianas. Passamos a tratar da Fauna terrestre, e diremos primeiro das espe- cies bravias e depois das domesticas, começando pelos mammiferos, que em geral são os mesmos desta e de outras provincias do Brasil. Os grandes mammiferos sylvestres já se não encontrão perto das povoações, como é natural em toda a parte, e até mesmo vão desap- parecendo pouco a pouco da provincia do Ceará: em lugares onde não ha muitos annos era frequente seu encontro, hoje nem para amostra se achão, segundo me affirmárão os moradores, e a experien- cia propria o demonstrou; todos os meios postos em acção para obtel-os forão baldados. A serra da Aratanha, por exemplo, seis leguas distante da cidade da Fortaleza , junto da qual estiverão por algum tempo destacados os meus caçadores, foi afamada como valhacouto de onças, antas, capivaras, caitetús, queixadas, veados, tamanduás, etc. ; agora porém não se topão alli estes animaes, e menos nas serras de Maranguape e Jatobá, que lhe ficão vizinhas : por acaso apparece algum indivi- duo de tal veação. Nas faldas da Aratanha, do lado oriental da ser- ra, está assentada a povoação da Pacatuba, cujo nome lhe foi dado, CLVI RELATORIO como indica, por ter sido viveiro de pacas, e presentemente nem vestigios alli se vêem de Cologenys. Não só nos lugares apontados , ainda em todo o Ceará, a anta (Tapir americanus) é actualmente rarissima, e o mesmo acontece com o tamanduá bandeira (Myrmecophaga jubata); mas a especie cogno- minada mirim é commum. No genero Dasypus contavão-se cinco especies, a saber : tatú canastra, verdadeiro, péba, bola, e china ou molle : destes destentados o primeiro desappareceu, e parece que sahindo da provincia procurou refugio nas matas do Piauhy, no que foi imitado pelo tamanduá bandeira, o qual talvez désse o exemplo. No numero de mammiferos que alcançámos vivos havia um tamanduá bandeira, mas infelizmente morreu dous dias antes do nosso em- barque. O art. 11º das instrucções dadas á secção zoologica recom- mendava todas as diligencias afim de serem apanhados vivos alguns animaes menos communs ou mais curiosos, cujos habitos conviesse indagar, e remettidos para esta côrte, attenta a proposta do Exrº Sr. conselheiro Candido Baptista de Oliveira de crear no Jardim Bota- nico um parque zoologico, á imitaçãe dos existentes em outras nações cultas. Reconhecendo a utilidade do preceito, e cumprindo-o como mandava o dever, não poupei esforços, que derão em resultado, sobre- tudo nos Carirís, a reunião de mais de cem animaes, entre quadru- pedes, aves e reptís; e receiando entregal-os a individuos que del- les pouco cuidassem, tencionava conduzil-os pessoalmente quando regressassemos. Com bastante dôr, á vista de tanto trabalho perdi- do como derão, os vi ir morrendo successivamente durante a via- gem, e alguns mesmo depois de chegarem á capital, de maneira que poucos restárão, os quaes aqui por ordem do governo imperial entreguei ao Sr. Dr. Frederico Leopoldo Cesar Burlamaque, director do musêo nacional, donde forão passados, por falta de accommodação, para a chacara do Sr. commendador Antonio José Alves Souto : este ilustre cavalheiro , além de outros serviços prestados ao nosso paiz, não se tem poupado a incommodos e despezas avultadas afim de con- servar vivos os mais notaveis animaes, tanto exoticos como indige- nas, e apezar dos mil embaraços com que luta para satisfazer a sua DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLVIL louvavel paixão, sem lhe arrefecer isso o animo continúa sempre com ardor a proseguir na carreira encetada. Franqueando á curiosidade publica o seu jardim zoologico, o Sr. commendador Souto não se esquece tambem de remetter para o musêo nacional os animaes que morrem, e desta maneira vai lucrando aquelle estabelecimento pu- blico. Se os mammiferos de maior volume abandonárão totalmente varios pontos da provincia, e em outros se vão tornando escassos, como no- támos, em compensação as especies mais pequenas não tem deixado de procrear em muitos lugares, sem se sentir falta, apezar da guer- ra incessante que lhe fazem os habitantes para seu regalo , pois a carne saborosa de alguns daquelles animaes é digna de figurar nas mais delicadas mesas. Seria longa e fóra do alcance deste relatori uma enumeração circumstanciada de todos os quadrupedes espalk A dos pela provincia, trabalho reservado para outro lugar, e por ao nos cingimos a acerescentar aqui os nomes de mais alguns, qu”, cão: guaribas (Mycetes), micos (Cebas), preguiça (Bradypus), furãe »(Gulo), quatí (Nasua), paca (Cologenys), cutia (Dasiprocta), mocó (J £erodon), ouriço ou coandú (Histrix), cassaco ou gambá (Didel” phis), jari- tacaca ou maritacaca (Mephitis), guará e raposa (Cani 5), maracajá (Felis), ete. Dos generos referidos, sobretudo do * Pelis, existem: diversas especies e variedades. O Ceará é abun' ante de ratos , principalmente nas matas : os mais vulgares são € gmhecidos com os nomes de punaré, guabirú vermelho e catita. Tdos estes animaes estão já conhecidos e classificados, pelo que ",imitei-me a indagar de seus habitos naquella provincia, onde p'suco ou nada differem do que se acha descripto nos autores. Haveria muito que fazer na micromammalogia, mas para isso seria. mister demora e tempo, que não tinhamos á nossa disposição. À historia dos pequenos mam- miferos apresenta grandes dificuldades, e se acha muito atrazada dos outros ramos da zoologia, mesmo quanto ás especies da Europa. « Os pequenos roedores em particular, como pondera Pictet, ou por causa de sua semelhança geral, ou attentas as variações que existem muitas vezes entre os dous sexos e as diferentes idades, são ainda medioere- ELVHI RELATORIO mente conhecidos. Entre estes, o genero dos ratos é de todos o que pelo numero de suas especies necessita mais de estudos numerosos. e reflectidos. » Durante as noites volteão pelo sertão bandos incalculaveis de mor- cegos, causando estrago nas criações, e a dar-se credito á exagera- ção dos habitantes, muita gente mesmo tem perdido a vida em conse- quencia das feridas feitas por estes cheiropteros. No tomo XX (anno de 1857) da Revista trimensal do Instituto Historico e Geographico vem transcripta uma memoria do Rev. Joaquim José Pereira, onde descrevendo o melancolico e horroroso quadro da grande sêcca e fome que em 1791 e 1792 assolou aquelles sertões do norte , se exprime da seguinte maneira: « Ah! quem pensára que creaturas humanas havião de servir de pasto ás aves nocturnas amigas do sangue? Ellas pousavão nos seus proprios aposentos, e correndo pelo chão trepavão sobre as creaturas, que já estavão prostradas pela fraqueza, e á vista das mesmas pessoas que as cercavão lhes bebião o sangue, e naquel- le que derramavão pela terra se achavão nelle ensopadas aquellas tristes e desgraçadas victimas do acaso exhalando os ultimos espiri- tos da vida, sem que pudesse haver alguem que, pela fraqueza em que se achavão todos, vigiasse a reparar o lamentavel estrago que fa- zião sobre aquellas mesmas victimas o espantoso numero de mor- cegos. » Sendo o Ceará uma provincia cujo ramo mais importante de indus- tria consiste na criação do gado, é de lastimar que ainda alli esteja tão atrazada a zootechnia, conhecimento dos animaes applicado ás ne- cessidades do homem ; sciencia que nos ensina os meios de criar, conservar, multiplicar, melhorar e utilisar os animaes domesticos , apropriando-os melhor a seu destino especial, e tirando delles o maior numero deserviços e de proveitos. « A provincia do Ceará foi destinada para ser um paiz eminente- mente criador, como fundado na experiencia de muitos annos af- firma o ilustrado e laborioso Sr. Dr. Thomaz Pompêo de Souza Brasil na sua interessante Memoria estatistica: vastos sertões abertos, cheios de varzeas e taboleiros , que se cobrem todos os annos de pingues pas- DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLIX “tagens de mimoso, panasco e outras hervas de forragem, se prestão ex- cellentemente á criação dos gados, que em verdade se reproduzem admiravelmente. Dous males porém contrarião o seu progresso, as sêccas e epizootias, além de que os nossos criadores não tem procura- do melhorar o systema de criação, que ainda hoje é o mesmo que ensi- nárão os primeiros colonos, isto é, o da natureza. A especie do gado -não tem talvez degenerado, porque os pastos são excellentes ; mas nada se tem feito para melhoral-a. Alguns municipios crião melhor do que outros, devido isso aos campos e pastos. As ribeiras de Quixeramobim, Acaracú e Inhamum , são as mais afamadas. Apezar porém das séccas | e epizootias parece que o gado actual da provincia não é inferior em quantidade, nem em qualidade, ao de épocas anteriores. » Esta é tambem a opinião de todas as pessoas entendidas que viajárão a provincia, e tem sido partilhada pelos respectivos presidentes nos seus relatorios. Ainda ha pouco, em 1858 , o Sr. Dr. João Silveira de Souza assim se exprimia : « Os sertões da provincia com as suas ex- cellentes pastagens favorecem maravilhosamente, sobretudo nas ri- beiras de Quixeramobim e Inhamuns, a criação e producção do gado, quer vaccum, quer cavallar, e na do Jaguaribe a do gado miudo, que nellas seria prodigiosa a não serem varias causas pode- rosas de atrazo de uma e outra. A principal dellas são as sêccas, que assolão a maior parte dos districtos do interior, em periodos mais ou menos longos, e com maior ou menor intensidade, e que são sempre acompanhadas de grande mortalidade no gado, já em consequencia da falta d'agua , já das epizootias que principalmente nessas occasiões se desenvolvem e o acommettem. O espirito de rotina não tem sido uma causa menos efficiente do pouco ou nenhum aperfeiçoamen- to desta industria. As praticas e processos rudes dos seculos passados , ou antes o abandono completo do gado e de sua producção ás simples forças da natureza e do solo, são ainda os unicos , pouco mais ou menos, que prevalecem entre a generalidade dos nossos criadores : apenas um ou outro mais curioso , ou previdente, procura melhorar . seus estabelecimentos , e ainda assim, muito acanhada e parcial- mente. A maior parte delles contentão-se com os lucros immedia- ELX RELATORIO tos, sem aftenderem que as suas fontes vão progressivamente defi- nhando, e estão a todos os momentos em risco de aniquilar-se. » Posteriormente, em 1860, ponderava o Sr. Dr. Antonio Marcellino Nunes Goncalves: « A criação do gado, como se não ignora, com o ser ainda a principal riqueza da provincia, e cuja producção annua eleva-se a cerca de mil contos de réis, é tambem a mais precaria, “e por isso mesmo sujeita a incalculaveis variações. A” ella oppõe-se. como causas naturaes a ausencia de invernos regulares. quando não sêccas formaes, e as epizootias mais ou menos frequentes durante a estação calmosa, e como effeito da incuria dos homens a degeneração das racas, a falta de extensos depositos d'agua, e de pastagens suffi- cientes por meio de celleiros convenientemente preparados. a pouca attenção geralmente prestada á criação, etc. » O que fica dito basta para demonstrar a necessidade urgente de attender-se quanto antes a um objecto de tanta importancia para aquella provincia. como e não menos para o Estado em geral. Uma das principaes providencias vem a ser a abertura de grandes açudes. do que bem compenetrado o governo imperial mandou proceder á escolha dos lugares onde mais convenhão e seu melhor systema de construeção, trabalho que foi encarregado ao engenheiro Berthot. Tem sido tambem lembrado por vezes o plantio de arvores em vasta escala, adaptadas ao solo e á temperatura da provincia, conveniencia que com factos e argumentos demonstrou com a sua reconhecida erudição o já citado Sr. Dr. Pompêo no recommendavel opusculo que deu à luz em 1859 com o titulo de Memorias sobre a conservação das matas e arboricultura como meio de melhorar o clima da provincia do Ceará. Para attingir porém o fim desejado, e arredar os males que amea- ção, não basta sómente a construeção de açudese o plantio de arvores aconselhados : deve isto ser coadjuvado pela introducção de animaes das melhores raças, que por meio do cruzamento melhorem as exis- tentes; e não menos convém contractar nos Estados-Unidos ou na Europa veterinarios habeis, que estudem as epizootias e meios de pre- venilas e tratalas. DA SECÇÃO ZOOLOGICA - CLXI Destas enfermidades a mais mortifera no gado vaccum é a chama- da mal triste, que reapparece frequentemente nas fazendas, diziman- do-as de uma maneira cruel: o primeiro symptoma de mal triste que se manifesta nas vaccas é seccar-lhe o leite, o animal acabana as orelhas, arripia-se-lhe o pello, não quer comer, deita sangue pelas ventas, as ourinas tambem são sanguineas, começa a cambalear, até que cahe para nunca mais se levantar. Como remedio costumão cortar- Jhe as orelhas, applicão clysteres de carrapato ou ricino, fazem-lhe fumigações de catingueira, de folhas de angico, etc.; mas na maior parte dos casos tanto estes como os outros meios usados são infructi- feros. Além destas molestias o gado vaccum tambem soffre outras mais ou menos nocivas, e o gado cavallar igualmente é sujeito a males especiaes, por exemplo, o môfo, o treme, o rengue, etc. Seria boa occasião de aproveitar esses homens contractados, col- locando-os à testa de uma fazenda normal de criação estabelecida na provincia, onde elles ensinassem praticamente a cultura dos prados artificiaes, e os processos para converter-se em feno as melho- res dessas gramineas forrageiras que alli crescem espontaneamente, e que se perdem com as sêccas ou com as chuvas prolongadas. Ócioso é dizer que entraria neste, plano de ensino o tratamento do gado, quer no estado normal ou no morbido, e os meios de aproveitar todos os seus productos. No sertão é desconhecido o fabrico da man- teiga, que seria um genero rendoso de exportação; e os queijos, mesmo os mais afamados do Canindé, de Quixeramobim e de Sobral, deixão ainda muito a 'desejar. Creio termos exposto summariamente quanto basta para tornar sen- siveis o atrazo da criação do gado no Ceará e os obices com que lutão os criadores, que muitas vezes passão da riqueza á penuria. Nada porém os desanima porque a procreação é espantosa, e dentro de poucos annos recobrão o perdido, graças à fertilidade do paiz, que parece rivalisar com a Cayenna, onde tendo sido intro- duzida em 1763 uma manada de gado cornigero de 1,500 rezes, em 1769, isto é, apenas seis annos depois, ella se elevava a sete mil cabeças! C s.. 21 CLXI RELATORIO Será assumpto de uma memoria especial expender mais larga- mente as nossas idéas ácerca das diversas qualidades de gado que se cria no Ceará: vamos agora occupar-nos de outras classes de vertebrados. A justa observação feita pelo sabio chefe da secção botanica — de que a vegetação naquella provincia é muito abundante e vigo- rosa, mas as especies em pequena quantidade relativamente, mi- lita tambem a respeito das aves, cuja variedade está longe de equi- parar-se á desta e de outras provincias do Brasil. Por toda a parte, salvo pequenas excepções, quasi sempre as mesmas especies, com- pensada porém esta falta pela alluvião de individuos. Todos tem ouvido fallar das pombas de bando, que em certos mezes do anno, sobretudo no tempo da postura, alravessão o sertão formando lon- gas e successivas nuvens compostas de myriadas de volateis: mas só vendo se póde formar idéa da profusão prodigiosa de um pombal,nome dado pelos habitantes aos lugares onde aquellas pousão para depo- sitar seus ovos, os quaes são avidamente devorados por varias es- pecies de animaes, que nesse tempo fazem delles seu unico sus- tento, e tambem pelos sertanejos, que os apanhão quotidianamente em grandes porções. A esta cruel devastação ainda assim escapão milhões desses ovos; em poucos dias começão a nascer novas pom- bas, que ainda implumes no campo offerecem pasto facil e mimoso aos carnivoros, tanto volateis, como terrestres. Apezar da dupla guerra, muitas vingão e formão novos bandos. O estrago continúa nestas, em cuja caça se emprega muita gente, que com uma simples preparação fazem amplas provisões não só para seu sustento, como para venderem ás cargas. A Fauna ornithologica do sertão pouco varía da que se observa al- gumas leguas em torno da capital, sendo tal diferença relativa a novas especies, e não á modificação das mesmas. Excede a quatro mil o numero de exemplares de aves que trouxe a secção zoologica, todos preparados de maneira tal que nada deixão a desejar, trabalho devido á habilidade dos dous irmãos os Srs. João Pedro Villa Real e Lucas Antonio Villa Real; e muitos mesmo já montados perfeitamente em DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLXITI x diversas posições estudadas do natural. Quasi dous terços das especies obtidas não existião no musêo nacional, apezar de as haver aqui e em outras provincias, d'onde se deduz. que foi um bom incremento da sua collecção ornithologica, que aliás não é das mais pobres. Algumas aves vierão, sobretudo de rapina, abundantes no norte da pro- vincia, que ao primeiro aspecto me parecêrão novas ou ainda não bem classificadas ; o que com mais vagar e certeza decidiremos pos- teriormente, quando nos occuparmos da Fauna ornithologica cea- rense, a qual será acompanhada dos desenhos e descripção das especies mais notaveis, sem o que perde todo o interesse, e por isso não fazemos agora, como podiamos, um catalogo denomes triviaes: haveria ainda o inconveniente, se assim o praticassemos, de induzir em erro a quem o percorresse, porque muitos passaros são naquel- la provincia designados diversamente dos nomes que aqui lhe damos, embora da mesma especie. Esta divergencia de nomenclatura, que se dá alli não só a respeito das aves, mas ainda quanto a alguns ani- maes de outras classes, estende-se tambem ás demais provincias, do que resulta que muitas vezes um mesmo animal é differentemente appellidado segundo os lugares onde vive ; synonymia que acarreta confusão, e só com muito tempo poderá ser dilucidada, quando o permittir um estudo e comparação attenta de bons exemplares. Notei que mesmo no interior, e sem sahir da provincia, alguns animaes tem designação differente da que dão na capital a especies identicas. As aves domesticas do Ceará não tem soffrido modificação alguma comparativamente ás nossas, e por todo o interior ha grande criação da especie por nós chamada gallinha d' Angola (Vumida), alli conhecida pelo nome de Guiné ou Capote. Muitas aves porém existem em liber- dade, que poderião ser facilmente domesticadas, como depois provarei. Na classe dos reptís não foi a secção zoologica menos feliz, pois conseguiu oitenta e tantas especies, e algumas bem curiosas per- tencentes aos saureos e ophidios. Procurei obter quantas informações pude ácerca da cascavel, que se cria em abundancia no Ceará, bem como nas provincias limitrophes, onde sacrifição annualmente uma porção de victimas, e dizem que nos mezes de Junho a Setembro é CLXIV RELATORIO quando este horrivel crotalo se torna mais atrevido e perigoso, sendo então mui raras as pessoas mordidas que escapem da morte. Ainda hoje o Ceará lamenta o funesto passamento do estimavel padre José da Costa Leitão, vigario de Arneiroz, 0 qual mesmo no meio da praça daquella povoação foi picado por uma cascavel, e apezar da appli- cação dos antidotos conhecidos apenas sobreviveu vinte e quatro horas. Voltando de Sobral para a Fortaleza, em Junho de 1861, encontrei na estrada dous sertanejos mortos por cascavel no dia an- terior, e como estes se reproduzem alli muitos factos. Apezar porém do horror, que com razão inspira aos habitantes este ophi- dio, felizmente não se podem equiparar os seus estragos aos da vi- bora lanceolada (Trigonocephalus lanceolatus) nas Antilhas, e tanto mais que elle é muito indolente, só ataca os animaes ne- cessarios ao seu sustento, foge do homem, e differente da Borgia celebrisada pela historia só faz uso do seu toxico quando provo- cado e para defender-se: isto é attestado unanimemente. Nos Carirís, e até póde-se dizer que mais ou menos em toda a pro- Vincia, reina a crença de que a carne de todas as serpentes, e principalmente da cascavel, é poderoso antidoto contra a syphilis : Invenção talvez dos Jesuitas para ajudar a extincção deste repiil, como em outras partes puzerão em pratica, visando o mesmo fim, e recommendando a Tanajura como acipipe. É extenso o rol dos vegetaes que affirmãe neutralisar o veneno da cascavel: mas como quasi todos elles são quasi sempre administrados com aguardente, somos levados a acreditar de que seja esta o remedio, e tanto que em alguns casos chegados ao nosso conhecimento, ella por si só produziu a cura. Ha tambem alli muita gente que crê com toda a fé no poder sobrenatural de certos curandeiros— de restabelecer a saude aos mordidos por cobras venenosas usando de momos e rezas, efficazes igualmente para fazerem cahir os vermes das ul- ceras dos cavallos, embora estes se achem a muitas leguas de dis- tancia. Superstições populares identicas encontrão-se por toda a parte, até nos paizes mais civilisados, e neste ponto nenhuma nação póde rir de outra: leia Salgues quem duvidar desta nossa as- so DE o Aa A DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLXV serção. A cascavel no Ceará completa talvez os mil e um contos que se poderião escrever a respeito dos reptís conhecidos. Sua for- ça toxica não me pareceu todavia mais energica do que a de ou- tras serpentes das matas do Rio de Janeiro, como sejão a jararaca preguiçosa, surucucú, caninana, etc. Não nos descuidámos, segundo se recommendou, dos inverte- brados, sem dar igualmente o mesmo cuidado a todos os extensos ramos desta vastissima divisão do reino animal, a qual abrange os molluscos, crustaceos, arachnides, myriapodes, insectos, annelides e zoophytos. A vida de um homem, empregado exclusivamente no estudo de cada um desses ramos, seria mui curta :e no fim della, a infinitas questões que se lhe fizesse, responderia com Mon- taigne: Que sçais-je? Porque ao estudo destes animaes se applica especialmente a proposição geral de que « o livro da creação se compõe de milhões de paginas, das quaes o espirito humano ape- nas sabe soletrar algumas linhas: mas essas linhas sublimes, que revelão o poder infinito de Deos em seu mais brilhante esplendor, recompensão por meio de prazeres indiziveis o observador feliz e paciente que chega a comprehendel-as. » Disse um celebre viajante naturalista que se podia considerar 0 Rio de Janeiro como a terra de promissão da entomologia : outro tanto não divulgaremos de certo relativamente ao Ceará. A diligen- cia porém elevou a nossa collecção a mais de doze mil insectos, que chegárão em perfeitissimo estado de conservação, e alguns, obtidos principalmente nos Carirís, são de especie nova. Muitas vezes, an- dando á caça delles, me recordava das seguintes palavras do sabio Augusto de Saint-Hilaire: « Os naturalistas que formão collecções tem acarretado para a Europa a mór parte dos insectos pertencen- tes ao littoral do Brasil: com elles tem formado quadros dispostos com mais ou menos ordem, eos tem classificado com arte segun- do sua organisação ; mas ainda nenhum cuidou até hoje em estudar seus costumes tão variados, suas astucias, seus amores, e a America ainda espera um Réaumur ou um Degeer. » Foi rica a colheita de hymenopteros, servindo de prova o painel. CLXVI RELATORIO que figurou na exposição nacional ha pouca levada a effeito nesta côrte, o qual encerrava vinte e seis especies de abelhas, incolas da provincia do Ceará, acompanhadas de amostras do mel e cera pro- duzidas por cada uma; alguns desses méis são de sabor exquisito, e outros recommendão-se por gozarem de propriedades medicinaes. Cumpre advertir que no Ceará dão indistinctamente o nome de abelhas aalgumas vespas, que tambem elaborão mel, cuja doçura rivalisa ás vezes com o das verdadeiras abelhas, sendo de muita influencia nas suas propriedades a natureza das flóres d'onde é extrahido. Varios au- tores attestão com factos que o mel tirado de plantas narcoticas ou ve- nenosas produz nauseas, colicas, e até mesmo envenenamento com- pleto. Sabe-se que Augusto de Saint-Hilaire, viajando pelo Brasil, esteve delirante muitas horas por ter provado apenas duas colheres pe- quenas de um mel agradavel, colhido pela abelha Lecheguana (Charte- gus Brasiliensis, Blanch.) sobre uma sapindacea (Paullinia australis). A apicultura, que tanto podia florescer naquella provincia e pro- duzir bom lucro, não é alli explorada convenientemente, e apenas alguns individuos conservão cortiços por curiosidade ou para uso do- mestico : a cera indigena e o mel que se vende são quasi na totalidade apanhados nas matas. E” de desejar que seja imitado o exemplo do Sr. Francisco Alves de Lima, professor publico de Missão Velha, que no quintal da sua casa tem reunido uns 150 cortiços, em troncos de arvores, das especies de abelhas appellidadas canudo, mandaçaia, tubiba, moça-branca e cupira, cujo mel vende todo a 320 rs. a gar- rafa, aproveitando tambem a cera. Uma monographia das abelhas do Brasil será trabalho curioso e de importancia, não só para a sciencia, mas igualmente para o commercio, pois a bella cera de muitas além de satisfazer o consumo do paiz, libertando-nos do imposto que annualmente pagamos ao estrangeiro, poder-se-hia tornar ao mesmo tempo um genero de subida exportação. A criação e penso das abelhas foi ensaiada e vai em progresso nas provincias de S. Paulo e Minas- Geraes; mas é uma industria ainda na sua infancia, pois a pro- ducção está longe de fazer face ás necessidades daquelles povos. DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLXVI - Em quasi todo o Ceará encontrão-se uns insectos, a que o povo dá o nome de Papa-pimenta ou Pimentão, por causarem grande estrago nas pimenteiras e outras solaneas : estes insectos, de que ha abundancia, principalmente em alguns annos, possuem ener- gica propriedade epispastica ou vesicante, sem o inconveniente de acção especial sobre certos orgãos, como as cantharidas, ás quaes poderião substituir com vantagem. | - Indicando este poderoso agente therapeutico, occorre-me registar tambem na zoologia medica do Ceará as sanguesugas indigenas, que pullulão em muitos riachos, lagôas, brejos e açudes do interior, mórmente na força do inverno. Ha diversas especies ou varie- dades destes annelides, porém todas pequenas, inclusivê as do Crato e de Quixeramobim, que são reputadas como melhores. Tres ou quatro dessas hirudineas talvez mal produzão o effeito de uma das que empregamos vindas de Hamburgo: assim mesmo valem de muito naquellas paragens onde não se encontrão outras á venda, e até nem as do paiz, pois quem precisa manda apanhal-as na urgen- cia; de sorte que ás vezes durante o verão não é possivel achal-as, vendo-se o facultativo obrigado a substituil-as por ventosas ou san- grias de lanceta, ás quaes o povo, digamos de passagem, é bastante inclinado, e de que frequentemente usa ou antes abusa nos mais ligeiros incommodos physicos, em qualquer odontalgia, por exem- plo: d'onde nasce que no sertão topão-se sangradores e sangradoras ás duzias. E obvio portanto com que difficuldades lutará alli os medicos para combater certas enfermidades onde o emprego das san- guesugas seja reconhecido como o remedio heroico e prompto, e não possa ser supprido pelas ventosas, segundo as circumstancias : mas ainda nenhum se lembrou de fazer ensaios de hirudinicultura, tão faceis e pouco dispendiosos, sobretudo em pequena escala. Quando algum o tentar, lembro-lhe que consulte o curioso opusculo publica- do em Paris pelo Dr. Sauvé com o titulo: Experiencias e estudos physiologicos sobre as funcções e a hygiene das sanguesugas, feitas com vistas de conservar e de multiplicar estes annelides.. Volto aos insectos. Estende-se ao Ceará a crença vulgarisada em CLXVIIL RELATORIO outras provincias ácerca da Fulgora Getiranaboia, e da propriedade mortifera instantaneamente do seu appellidado ferrão. Além da Fulgora laternaria obtive mais dous exemplares muito curiosos do mesmo genero, mas de especie bem distincta e ainda não classificada. O primeiro me foi dado na Fortaleza pelo fallecido pharmaceutico Antonio Rodrigues Ferreira, que muitos serviços prestou á com- missão scientifica, e veio com a seguinte informação : « Este insecto alado é conhecido nos campos e sertões do Piauhy com o nome vulgar de Tiranaboia, e alli appareceu ha seis para oito annos, pouco mais ou menos, e agora nesta provincia nos sertões de Quixeramobim, onde fez algumas victimas entre os irracionaes. Este que conservo para amostra foi apanhado em 1856 : está um pouco estragado porque quem m'o mandou embrulhando-o em um papel lhe quebrou o pes- coço, que é esse tubo que sobe acima do tronco ; e tirárão-lhe tambem o ferrão ou estilete, arma mortifera e que mata instantaneamente a todo aquelle que toca! Parece fabulosa a descripção que fazem os sertanejos desse insecto. Dizem que é cego, e que tem no fim do pes- coço um ferrão agudo ; que quando parte ou vôa do lugar onde está é sem destino certo, e que o faz com uma velocidade tal que só se. sabe pelo rugido das azas, que apenas dá tempo ao individuo que o ouve a deitar-se no chão para livrar-se de ser encontrado e espe- tado pelo seu ferrão: elle vôa, como disse, sem destino até que cansa e cahe, ou encontra qualquer obstaculo onde bate com o ferrão, e onde mata ou morre; ou porque fica preso por elle, ou porque o quebra, e em ambos os casos morre : dizem mais que os animaes Já o conhecem, e o temem tanto que tremem e encolhem-se todos quando o ouvem ! » Donde nasceria esta tradição a respeito da Getiranaboia, que tanto voga no Pará, é attestada até pelos proprios Indios, que não se ar- receião de animal algum, mesmo das mais peconhentas serpentes, e todavia se horrorisão quando fallão daquelle insecto? Que verdade se occultará envolta neste mysterio ou enigma, cuja palavra ainda ignoramos? Em quanto esperamos um OEdipo será bom suspender- mos nosso juizo : e sem aceitarmos o facto como real por falta de DA SECÇÃO ZOOLOGICA CLXIX provas incontestaveis, apezar da sua inverosimelhança não lhe vote- mos desprezo absoluto, pois a incredulidade, que nada prova tam- bem, caracterisa 9s semi-sabios; e as tradições e historias fabulosas do vulgo tem sempre mais ou menos um fundo de verdade, e muitas vezes se procede mal rejeitando-as completamente. Não sirvão de corollario estas minhas palavras para induzir-se que eu pretendo authenticar a fabula da Getiranaboia; o que desejamos é achar quem nos explique a moralidade dessa fabula. Recebi em Sobral o outro exemplar das duas novas Fulgoras acima mencionadas : esta segunda foi apanhada viva em uma fazenda pouco distante daquella cidade, e cautelosamente mettida num cartu- xo de papel, através do qual o seu ferrão não teve força bastante para matar 0 imprudente que a encerrou, cuja coragem foi alli admirada por todos. Viva conservou-se em meu poder pelo espaço de dez dias, e durante as noites nem leves indícios apresentou da propriedade luminosa attribuida áquelles hemipteros por Mº Mérian e outros ob- servadores, e negada por varios naturalistas. Esta controversia, ainda por decidir, não será esquecida em uma revista das Fulgoras brasi- leiras, de que nos occupamos presentemente, € onde resumiremos as opiniões sobre a contestada phosphorescencia. Remato aqui o relatorio da secção zoologica, julgando haver dito - assás para ajuizar-se do como ella procedeu no desempenho do seu encargo. Esboçado a largos traços o quadro geral, resta prestar at- tenção particular a cada grupo, e ainda ás figuras mais salientes, que com tempo e estudo o fraco pincel do artista irá aperfeiçoando, em- bora não tenha á sua disposição as côres que desejava; mas na defi- ciencia de meios espera que se lhe lance em conta a sua boa vontade. Antes porém de largar a penna fique igualmente o Instituto preveni- do de que tomei tambem notas sobre varios assumptos alheios ao estudo “de que fui incumbido, os quaes reduzidos a pequenas memorias irei opportunamente lendo nas nossas sessões ; assim como vos apresenta- rei outrosim o itinerario minucioso da secção zoologica, ácerca do qual Cc. s. 22 Ea SN do a é cu 19; Dale 3 das CA MM tea — RELATORIO ,º “ " [67] * p Hg AO q o: ; ELE bia q REI a . E 2 EA faia deixei de fallar para não me fazer mais fastidioso, bastand adiantar que percorri toda a provincia do Ceará. Oxalá conceda o Instituto aos escriptos promettidos a mesma indulgencia com que. é. AAA semp colheu : nh tur e por ss 4 I / sempre acolheu as minhas leituras, e por isso me confesso mil vezes 4 grato. : (rá o gi . é | ra ati À F | Rio de Janeiro, 6 de Dezembro de 1861. A ne Ê : £ “» a . ' ck =» ' . ” . ' Ma f ar hd ” ” ao - 4 » o f Ta * Das * “ , ri» = a o > F Ro — 4 ] Us E > Cm r "é G - º ; de ”Y = 1 E Sn Vad a gi ns rende Pe PERENE nt nz PRC SP E NU PRE sema aprópenege € Ee E RR RA ve pres De rap adia md dad uma dm -» tuna an Pa ara ipi 53 4 arma a AD SD Te bra ce DAP trase RIP oq paço se Dera stent rio emennp santos pd Ar E d5 o =eã ciotepadetaça 0 40 ZA en ÃO 5 je a ópac ii 1 tes a : Je pie eco É as ; REM Ê ! o inbiná]o EO io Mi , é é RANA E i d era détma Ê . pio E e a Rd o hs v8559 1 : Re - “ ) ADA Dadas ay peapos ir ist 7 se E - f sisisrara fa a: nação mb Pope stacs qur a E EE j 3 EE Edo [a PÓ O A 5 Sora AGU aeb Part No PRE á E De assados nei de Ped a 707 vga Se MS EN DE . DEAR a ê aus -. E a É suar im o ese" gro reb aros 2 Zas"s pero a dg / Ra on PA Dada da ção Fis d a Dopsado u ve “e0 18 on 0 AD 05 am) ele ia fecho 2i5o DE EESTI a EPA É . - . Las DR Dag os 2 00 28 sabias ar a Pos ep Ex quado É : Ms ; & E egiabngo '» oho! à caniege . Epis E E : É, ! es E DR e o . aros P É EA ; k He E qro Ego oo Ea mm j0 DS do cup 6 UA pi cb edn ACE soa ' h a as é tem E hoo ro da data d prof? 20 020) u 00,07 EeNbe Vad LAT TA to - . E : a aRaB rh o tagede 90 5mia ad nvrda OrPPafordiSOAT (E a a da ' BEN; E, E e Ds sn do o Sa Da do Ad “a Mg ... mta gos - INS Ie god PoE ra ARE Dus: à Toe ao e ago - - Ea 4 ã E e E DE A e de TR TS o AS é Ro E 4 (À nado) ave ratos rseie 1) A E SAS ds i 42 5 E d Oo opntad cpa tns! EN te Apso . Es AAA . o raorafars'siado pro Vob Pisa za Fe ie RR a ADO x q ea s ' ; nO VA GUS Er au vo R e VESÍCÍCOD “8 7 estito . ER ts Rd o PORCOS DS, E, 4 E - nerd pin a e e SD dp Ara À ne ER Patad os : ê - ' Re: AR de 2d Pe oo TRA SS E nas dd e SS do de qu sito dy AR o PECA q 5 dd ar 2 ae ed Pr TT ca rt ER eee sos ga DS FDA Corp . E : do et RT ESET Lo An A Ar pls ho a “ . . , Ê Ds o bi A a de mr cd O dsá E rios gi to Jar A ' o $ pa int aa AE A rd car ope à . k E CAR, . p ; - Ra e mon Do AS PEJo CORIRANILS OSS CEE SAE A oa PriPea Ro nono fadado SÊ bi » 2 EM ' Pad Ti cio to ATT ÃO À oe jr O “ dope rafa ret Elias efe MU Re Sir ar E ES no seda penbwai oba is ropneoro pi de foi pos MT Rd Parts defi. ai du PTE à ae ê 4 , Sn o SD popa SPEA supre cbadap e vejo sor obeo es eb see : » a SUE ra A : ' É DP ni tel re 6 nd bi 0, DP 5a É ' TELÃO De GAR . EE ; A viados ore ei ndo! 4) era ranei do SRP or assar gare rd prata ias à [e Eai ta é a air É pesar Do origina 209 “4º era ne RC gpa Ta Jas pibia ro apo : pura EUR tT ado, , E DA . es FNE R É Te gre cvomsndoros 142 De acasess o ara > PER A mae ue o ERA . . Duo esonmraro ras mero preso PZ4 EM cepa pa Te Papa POPA ER ndo! DART er á 2 4 255 Pagos Pas 008 (59 pap bnbeço vo quarta ager En lato E ad EMA .. - - ; : ê Is AS A A aa por srim + os Aa nte . R . . E 4 j Pet PA Mae (dd A DA porca “ PR PIE iu o ; y - É q o Ad A A ida AA las cute e PET) . Papos pgepe ty PDR NS fo PA o np PA a E e AT A E dd dote .. “ Ro ' am Ebro Dado es Ko AS pardo for DE adebiatri 6 213 7 ua és Leo PR : nrdpos MIM ras | “ PT ) : É “ : a DE fd cito A EDS É dad App WA aco a sas Pre “oa . .s E x , pia ao pisa Por pori ses 15778 PAT Z ; é ac To vga / Opa os pe É Dj 0 EÊS Desterro 0 " ã ç ' ” arado eDr ia sr df 2v2m 60 Das" 220.8 ch 1 Rm Se tar ehaS 3 SIA DIOR | 1 DE to j & a Er: E petd AR Ddei AAA os Po rg E, g PSP A Sem A Adair! Per cus E 1 é E RoIaDo PN SIZSR PORN 22878 Jnim ca psro (à artes O 6 EE ATE ; 4 Ed Aridi pt TS A ab rice de , A 5 À b ii dedo des PE css de dd ie Mid A posa ' E! , k ' Ee DP e sede e apa Pod: “49 cet 14d E . a A O dido. AM ARA AAA becos pote Ri ED E RAS A nto RO ) E í Es id ” ssa s + des VÃO Su" DIA es pied oIQÃrIS do) MROo a Sia Há E] x Decidi adia AD IDO paid sd id a ea sopotos vidA nisRade FER E É É Ee DA a a ão pe ei de e ng MET ANTI $ ê a A A A RU MA a BD Zo2Wt es use SÍ 7 02h Des Den - O RE) E SRA! IPA NTIiD "A A AA ANÃS DE EA asd AMA A Ud r LE “ - e “ PA DD A id de sarro sono nacase w 0) PE dE . F, . Pr A A Sd CALMA ADA DO IS Pr A dd o ARIANA " . ATA N Do qe gde ráza cao POD E, Ds Auto a tr bd bo dis o Ja . tee : . E i Ed do rio os SEARA pa GR AT Ad o pesos Tr EU Pes ' ” ip Arte o E md cedo e o 3 “osinso sá dh p4:2/056 ; FOR Mio O o PRI SESI SNS E PITTA, messi atarãa (ARENA “ . És. E EPI A Aa AAA Desios 1o7 rem icado* “ do , à : . AC PE AAA ASA Doi vp Mens s . t 5 Pai e SRD PENAIS 2 PTP , ur é “4 RA Ea Ad do . E, . E Esp DIS NIVEA SA A Aa Ad A g = , JO 2507 pi AA pa po rapa Ta RODO Er . E dE ; E RE dci si Paises 404 + PR ADSL Vea Mostra MAO CL TRA v ' 4 » A ) A DS LT APAR Ie MA AA PP RA n ; BA MID OS epa TT a Sa amiosupioirretvraro er e Á . « “ a E 2228 NO ce eLOSI DIOS O PES DD apar ZA “ t SAIR 94 e pit ad am% é ga "4 LO GADO A IDA O DE E ciiieidd dos ,” 4 . . É ã E sai fd ASA OE Ti no aà : í ' Ae pda DA a psd gd ii Fila é DEM O TR citas Da do 17 AP Ati AoA “+ ç “a . . ERA do pe ti Id gde A RAN 7 é ' DADE 4 Pal Ae ca AAA A DE che cad ARAL A . des á DO A dada A ne AAA AAA Ad ASA , L 1 . pod intao (h 6 De pi dba pis praiei A j : ido hd Pa AAA A rica 972. o , til costa NO Dacia Ai À a ' X PA dt RETA dn ATA NA SS “ 4 5 DA ht A A AA MA Pai de dedi OD Rede AA AMA LA LA A AAA NÃO TN AAA , 2. DA Am Ada DA gas; "DE WTF “sy, ” Ago Lib . .. sa” Lido (ha NT tea a 14 F ' ADATA SAMA PENLO A As ARA ARAA 2 '. o do PARA a nie Ay ASAE AT A ada ) ; Ag dd dr NS WED FAS E: IT CL oo DM AA AdAd A PRAÇA . fispss PARA go gue 4 po IPO O PES ' f SS PMES NA Y . q h) +) OTIS TP RE 20 4 AAA EA 4 dor fg ee io DP ED fes va SR 6a va