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Full text of "Justiça"

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CAMILO CASTELO BRANCO. 


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JUSTIÇA 


CAMILO CASTELO BRANCO 


TEATRO 


Esta obra respeita as regras 


do Novo Acordo Ortográfico 


A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 do 
Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte do 
autor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita, 
o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a 
sua troca pot qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer 
circunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob o 


mesmo princípio, é livre para a difundir. 


Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital, visite-nos 


em: http://luso-livros.net/ 


LUSO LIVROS 


UMA NOVA FORMA DE LER 


PERSONAGENS 


D. INÊS 

D. MIQUELINA 

FERNANDO SOARES 

D. MARIA 

LUÍS DE ABREU 

PEDRO DA NÓBREGA 
ADMINISTRADOR DO BAIRRO 
MÉDICO 

ESCRIVÃO DA ADMINISTRAÇÃO 


E figuras que não falam 


À cena passa-se em Lisboa, num Hotel 


ACTO IT 


Uma saleta com porta ao fundo, para um corredor de serventia comum, e 


outra porta lateral para uma câmara. 


CENA I 


D. INÊS, LUÍS e PEDRO sentados, em final de jantar, em roda de uma 
mesa, aonde avultam garrafas com diferentes vinhos, frutas, etc. Inês toma do 
tabuleiro servido por um criado, uma chávena de café, com que retribui a que 
lhe é oferecida por PEDRO DA NÓBREGA. Entretanto, LUÍS, 
preguiçosamente recostado, saboreia um cálice de vinho, e fuma. Afeta os ares 


de uma meia embriaguez, e extasia-se nos rolos de fumo que lança do charuto. 


LUÍS 


Vejo tudo cor de rosa... A vida tem coisas bem boas, digam lá o que disserem 
os poetas de cemitério. Poucos são os que sabem tirar proveito desta sublime 
patarata que os tradutores em vulgar denominam sociedade. Achas que digo 


bem, Pedro da Nóbrega, meu ilustrado amigo? 


PEDRO 


Dizes o melhor que se tem dito sobre a matéria. Enquanto a mim, está 
provado que o mundo não é um vale de lágrimas, pelo menos no todo. Há 


certos pedaços do mundo aonde não há lágrimas. 


LUÍS 


Particularmente nos terrenos onde predomina o Malvasia, o Madeira, e o 


Champagne. 


PEDRO 


E o Porto. Faz favor de não esquecer o Porto. Eu sou patriota, e tenho 


minhas convicções a respeito do vinho do Porto. 


LUÍS 


Se me dás licença, dir-te-ei que és um imbecil. Os homens de paladar mais 
depravado são os ingleses: ora, o vinho mais querido dos ingleses é o vinho 


do Porto: logo o vinho do Porto é um vinho depravado. 


PEDRO 


Distingo... mas nós esquecemos que está aqui uma senhora, e a conversa de 


armazém decerto não lisonjeia o gosto de uma dama. 


D. INÊS, triste e ressentida 


Não importa: conversem no que quiserem. 


PEDRO 


Nada, minha senhora, o assunto é impróprio. 


LUÍS 


De acordo; o assunto é impróprio; mas uma senhora de boa sociedade eclipsa- 
se, logo que a razão dos convivas machos se vai eclipsando. Quando estoura o 
gás da primeira garrafa, é chegada a hora das expansões; e a mulher, que vive 
de brisas, e arroubamentos de alma, levanta-se, e recolhe-se ao santuário dos 


seus devaneios. 


D. INÊS, depõe a chávena 


Eu retiro-me, Luís... é isso que queres dizer? 


LUÍS, sorrindo e bebendo 


Es uma criatura inteligente, Inês... 


D. INÉS, vexada e oprimida 


Puderas-mo ter dito... Bem sabes que eu não estou no caso de observar todos 


os deveres de uma senhora de boa sociedade... 


CENA IH 


LUÍS e PEDRO 


LUÍS, sorrindo 


Não tem sal nenhum o remoque... (Pedro dá o braço a D. Inês, e condu-la à 
porta do quarto: Luís, reparando na urbanidade do conviva, solta um frouxo 
de riso). Estes homens, em vivendo na capital um ano, tornam-se cortesãos 
até ao ridículo... Sinto-me bem. Sinto descoserem-se-me os rofegos do 
espírito. Estou expansivo como um amante depois de jantar. Até me sinto 
poeta, Pedro da Nóbrega. A fonte dos poetas bárbaros era de água, e, se bem 
me lembro, chamava-se Aganipe. A coisa agora é outra. À água passou para a 
prosa aguada, e o vinho reassumiu toda a importância que lhe deu o velho 


Horácio. 


PEDRO 


Sinto quebrar o fio dessa eloquente baboseira, meu caro Luís de Abreu... 


Atende, tu tratas muito bem as mulheres... 


LUÍS 


Trato!? essa é boa! Como costumas tu tratar as mulheres? 


PEDRO 


Aposto que estás cansado de ser feliz!... Há quanto tempo a tiraste de casa? 


LUÍS 


Dois meses. Nunca sofri tanto tempo as consequências de uma loucura... 


PEDRO 


Se bem me lembro, não é esta a primeira loucura de tal género... 


LUÍS 


Pois aí é que está a sandice... Eu já devia saber como sou. À primeira mulher 
que subtrai às vigilâncias paternais era uma trigueirinha, chamada... chamada... 
acho que era Angelina... Casei-a com um calafate, vinte dias depois. Sou um 
homem honrado. Fiz da pequena urna esposa modelo, e uma mãe exemplar. 
A segunda era uma rapariga bem educada e chamava-se... chamava-se... acho 


que era Angelina... 


PEDRO 


Pois também era Angelina?! 


LUÍS 


Pois a primeira também era Angelina?! 


PEDRO 


Assim o disseste. 


LUÍS 


Disse?... Então não sei verdadeiramente o nome de nenhuma 


Celestina? 


PEDRO 


Eu sei cá...! Perguntas-mo a mim? 


... Seria ela. 


LUÍS 


Pois dou-te a minha palavra de cavalheiro, que não sei bem se a terceira é que 


é Angelina. 


PEDRO 


Já é a terceira! E que é feito da segunda? 


LUÍS 


A Angelina? 


PEDRO 


Sim, seja lá quem for. 


LUÍS 


Essa... acho que casou, e está numa quinta criando patos, e galinhas do 


Maranhão. 


PEDRO 


E a terceira? 


LUÍS 


A terceira é a Angelina”... 


PEDRO 


E a quarta é Angelina, e a quinta é Angelina... 


LUÍS 


Alto lá... quinta é demais: a quarta é esta rapariga que se chama Inês. 


PEDRO 


E quem é esta mulher? 


LUÍS 


Pois eu não to disse já? 


PEDRO 


Quando, se nos vimos, pela primeira vez, hoje em Lisboa, desde que, há dois 


anos, te deixei no Porto? 


LUÍS 


Eu te digo... chega cá essa vela (acende o charuto com dificuldade). Esta Inês 


é filha de uma beata, visita das minhas tias do Porto. 


PEDRO 


E que mais! 


LUÍS 


E tu que mais queres? 


PEDRO 


Como a seduziste? 


LUÍS 


A pergunta é tola! Pergunta a esta garrafa como é que ela eletriza as almas de 
guta-percha, e faz de um tupinamba um otador parlamentar, se ele tem a 


fortuna de ser elegível... 


PEDRO 


Prometeste casar? 


LUÍS 


Penso que sim... não minto... sou um homem honrado; mas, se prometi, não 
faltei ainda. Tenho o infinito como prazo; e, como não invoquei o céu por 


tabelião nem testemunha, a coisa passou-se entre nós... 


PEDRO 


Estás aborrecido, é o grande caso. 


LUÍS, abrindo a boca 


Muito aborrecido... Há dois meses... Dois meses, da maneira como agota se 
vive, são a vida de um homem. As eternidades dos amantes não podem ir 


além de três semanas. 


PEDRO 


E estudas o pretexto para te desfazeres da carga... 


LUÍS 


Parece-me que sim... Preciso ir à ilha de S. Miguel casar com uma parenta rica 
e velha, e não me lembra maneira nenhuma decente de tirar passaporte só 


para mim... Tu és homem de imaginação? 


PEDRO 


Sou uma desgraça a respeito de imaginação. Querias que eu inventasse a 


maneira decente de te remires do pesadelo? 


LUÍS 


Dava-te um beijo... Olha lá! que vinhas tu aqui fazer a este hotel, quando hoje 


te encontrei no pátio? 


PEDRO 


Vinha visitar um brasileiro, que me foi ontem apresentado no soirée do 


visconde de Cascais. 


LUÍS 


Que hipopótamo é esse personagem? 


PEDRO 


E um consumado cavalheiro, homem de muita instrução, muito simpático, e 


extremamente delicado. 


LUÍS 


Rico? 


PEDRO 


Fazem-lhe dois milhões de cruzados. 


LUÍS 


Não é má fatial!... Tem filhas? 


PEDRO 


Dizem que tem uma natural. 


LUÍS 


Em algum colégio? 


PEDRO 


Não sei: ele não fala nela. O visconde de Cascais deu-me a perceber que este 
homem se retirara de Portugal por causa de um rapto, e supõe que mudou de 


nome no Brasil. 


Voz de fora 


A chave do quarto nº 5. 


PEDRO 


E ele que pede a chave... Lá está parado, à espera, no corredor. 


LUÍS 


Diz-lhe que entre. 


PEDRO, para Fernando Soares no corredor 


Sr. Fernando Soares, enquanto não vem a chave, se V. Ex* quer entrar no 


quarto deste meu amigo... 


CENA HI 


Os mesmos e FERNANDO SOARES 


FERNANDO, tocando a mão com a de Pedro 


Pois não, Sr. Nóbrega... como passou? 


PEDRO 


Otimamente. Tenho a honra de apresentar-lhe o meu amigo e patrício Luís de 


Abreu. 


FERNANDO 


É do Porto este cavalheiro? 


LUÍS 


Sou do Porto... Tem a bondade (aproxima-lhe cadeira, que Fernando não 


ocupa). Serve-se de um cálice de vinho? de genebra? um charuto? 


FERNANDO 


Muito grato. 


LUÍS 


E brasileiro, ou português? 


FERNANDO 


Nasci em Portugal, e estou naturalizado no Brasil. Há vinte anos que deixei 


esta terra, e volto hoje a reconhecer os monumentos da minha infância. 


LUÍS 


Pois, senhor, querendo cartas de apresentação para o Porto, com muito 


gosto... 


FERNANDO 


Muito reconhecido ao seu favor. Tenho relações comerciais com o Porto, e 


estas são-me suficiente apresentação. 


VOZ DE FORA 


A chave do quarto nº 5. 


FERNANDO, faz menção de retirar-se 


Se me dá licença... 


LUÍS, apertando-lhe a nulo 


Meu cato senhor... 


FERNANDO, o mesmo a Nóbrega 


Sr. Pedro da Nóbrega... o meu quarto e o meu préstimo estão às suas ordens. 


Os meus senhores, boa noite. (Sai). 


CENA IV 


PEDRO e LUÍS 


LUÍS 


O homem parece fino! Tem um metal de voz insinuante. O que faz o 


dinheiro!... Ora, meu caro Nóbrega, vou tomar neve ao Suíço... queres vir?! 


PEDRO 


Vamos; mas vai primeiro ao quarto de D. Inês. 


LUÍS 


A quê?! 


PEDRO 


A pobre menina deve estar sofrendo horrivelmente... Diz-lhe duas palavras 


que te não custam nada, e poupas-lhe muitas lágrimas... 


LUÍS, rindo, e refletindo depois 


Vá lá... vamos ser piegas... (Vai, e pára no umbral da porta). 


PEDRO, aparte acendendo o charuto 


Chama-se isto um homem do grande mundo... 


LUIS, recuando, e voltando as costas para a câmara de Inês 


Temos choradeira!... Boas noites... Vamos, Pedro... 


D. INÉS, dentro com aflição 


Vem cá, Luís... (Luís, primeiro indeciso, fica, dando a Pedro sinal de sair). 


D. INÊS e Luís de Abreu 


D. INÉS 


Vem cá, Luís, por piedade! 


LUÍS, afabilidade irónica 


Não é preciso invocar a piedade. Aqui estou, Inês, dos melhores humores 
para ouvir a vigésima quarta lamentação: mas, se não ordenas o contrário, sé 
breve, que me está esperando no pátio o meu amigo. Vamos ao importante; 


porque choras, menina? 


D. INÉS 


Se não sabes porque eu choro, Luís... como to hei de eu dizer? 


LUÍS 


Aí está um enigma, superior à minha inteligência! Que te falta, Inês? 


D. INÉS 


Falta-me o teu amor, falta-me o que me deste para eu poder esquecer-me de 


que sou uma mulher... infame... 


LUÍS 


Infamel!... porquê?! 


D. INÉS 


Esta degradação... 


LUÍS 


Onde tocam jerarquias mais elevadas que a tua... 


D. INÉS 


Que resposta, meu Deus! 


LUÍS 


Não me lembro outra, e a mais acertada foi esta. Pois cuídas que se degrada a 


mulher que ama? 


D. INÉS 


Degrada, sim, quando o homem que ela ama... 


LUÍS, ressentimento contrafeito 


Sou eu»... Isso morde um pouco o meu otgulho... Quer a menina dizer que os 


homens como eu não enobrecem, aviltam a mulher que amam... 


D. INÉS 


Que amam! 


LUÍS 


Ou que amaram: entenda a frase como quiser. 


D. INÊS, suplicante 


Que maneira tão cruel de desenganar!... O Luís, que te fiz eu? Porque me 


aborreces assim? 


LUÍS 


Pois eu posso entender-te? Tens um génio esquisito e eu não sei amansar 


caprichos, ou não estou para isso. 


D. INÉS 


Caprichos!... quais, Luís? Será capricho perguntar-te a causa do fastio em que 
passas comigo duas horas por dia? Será capricho, oh meu Deus! chorar 
porque não posso sofrer, sem magoat-me, sem morrer, o prémio que me dás, 
ao cabo de dois meses... de dois meses!... Poucos dias depois que deixei minha 
mãe, já em ti não havia uma só palavra, um só carinho do homem que me fez 
esquecer mãe, honra, futuro, e Deus! Que alma tu tens, Luís!... Nem a 
misericórdia depois do amor! Oh! isto é muito!... eu não quero assim morrer 
vagarosamente... sozinha, naquele quarto, com a minha vergonha e os 


remorsos... 


LUÍS 


Que queres tu, Inês? Habitua-te ao meu génio, e verás que és feliz, como 
muitas outras, nas tuas circunstâncias, desejariam sê-lo. Desejas sair? 
Sairemos, e, quando os meus negócios me privarem de te acompanhar, sairás 
com o criado. Liberdade recíproca, sem ultrapassar os limites do honesto, é a 
minha máxima neste género de convenção que liga duas pessoas, de modo 
que as cadeias não sejam pesadas. Se queres os carinhos de outro tempo, dir- 
te-ci que não sou hipócrita, nem quero que me agradeças meiguices 
impostoras. O meu génio é este. Sou uma organização defeituosa, ou perfeita 


demais; como quiserem. O grande caso é que me não contrario, nem me 


reformo, porque não sei onde se refundem os homens que saíram defeituosos 


das mãos da natureza... 


D. INÉS 


Eras muito verdadeiro quando, há dois meses, me prometias uma eterna 


felicidade ao teu lado, como amante, e mais tarde como esposa? 


LUÍS 


Mas, minha amiga, ainda estamos dentro dessa eternidade que te marquei. Por 


ota, não faltei à minha palavra. 


D. INÉS 


Que zombaria! 


LUÍS 


Valha-nos Deus... não nos compreendemos... 


D. INÉS 


Eu compreendo, Luís... Abandonada, não é assim? 


LUÍS 


Por minha vontade, não. Amo-te... 


D. INÉS 


Amas-me? 


LUÍS 


Como te amei sempre; e oxalá que eu pudesse inspirar-te inteira confiança 


neste amor, pata... 


D. INÉS 


Diz, diz... 


LUÍS 


Para que tu voluntariamente anuísses a um plano de que podemos tirar 


resultados... pata... 


D. INÉS 


Para quê? 


LUÍS 


Para se realizarem muito depressa os meus desejos e os teus. 


D. INÉS 


Que é? 


LUÍS 


Eu preciso reconciliar-me com a minha família, indisposta hoje comigo pela 
tua causa... Sem reconciliar-me não posso alcançar uma posição social que nos 
dê uma subsistência magnífica e deslumbrante como eu quero dat-ta, minha 


Inês. E, para pacificar a guerra que a minha família me faz, é necessário 


convencê-los astuciosamente de que não caso contigo. Ota, para que eles se 


convençam, convém que tornes à companhia... 


D. INÊS, arrebatada 


De minha mãe? nunca! antes morrer... cala-te, por quem és... Vai, deixa-me 
que eu preciso desabafar esta aflição nas lágrimas... Es um homem feroz, 


Luís!... 


LUÍS, tomando o chapéu 


E tu és uma pomba de mansidão, Inês... Até mais ver... (Sai). 


CENA V 


D. INÊS, e depois D. MARIA 


D. INÊS, seguindo Luís 


Escuta... escuta, Luís! (Segue-o até à porta, e volta soluçando). Como vós me 
castigais, meu Deus! Eu não acreditava que o inferno é neste mundo... É, é... 
Isto é que é ser punidal!... Desprezada... abandonada!... Havia isto no mundo, e 
eu não tive quem mo dissesse... Perdida... A paixão e a inocência podem assim 
fazer desgraçada uma mulher.... Desprezada por este homem... é incrível... Oh 
minha querida mãe, se me perdoasses... (Ergue silenciosamente as mãos aos 
céus, e exclama depois com energia súbita). É uma inspiração, não é, meu 
Deus? Eu obedeço... (Aproxima-se da escrivaninha com resolução). Escrever 
a uma mãe quando se tem perdido tudo... Há corações que nunca 


ensurdecem. (Pega na pena). 


D. MARIA, com um jornal 


Dá licença, minha senhora? 


D. INÊS, enxugando as lágrimas 


Tem a bondade de entrar? 


D. MARIA 


O seu marido já saiu? 


D. INÊS, perturbada 


Luís?... saiu. 


D. MARIA 


Vinha fazer-lhe uma pergunta; mas pode ser que V. Ex? saiba responder-me. 


É do Porto, não é? 


D. INÉS 


Sou sim, minha senhora. 


D. MARIA 


Casualmente vejo neste jornal uma notícia copiada de um jornal do Porto. É 
um caso bem triste! Eu Leio, e V. Ex* poderá talvez esclarecer-me o que há de 
escuto na notícia. (16) “Haverá dois meses que um sujeito de boa família, mas 
de depravados costumes, natural do Porto, roubou a uma extremosa mãe a 
sua filha única, o seu amparo, toda a sua riqueza neste mundo onde o quinhão 
da amargura lhe tem sido abundante. Praticado o rapto, sem poder encontrar- 
se o infame nem a sua quarta ou quinta vítima, a infeliz mãe desapareceu. 
(Viva comoção em Inês). Pessoas afeiçoadas aquela digna senhora, 
diligenciaram encontrá-la mas inutilmente. Alguém disse que a viu passar aos 
Carvalhos, estrada de Lisboa; não há provas, porém, bastantes. E suposto que 
até hoje não tenham aparecido vestígios, é de crer que a desgraçada mãe se 


tenha suicidado...”? 


D. INÊS, cuja comoção tem crescido desapercebida a D. Maria 


Ahl... Jesus.... Jesus.... (Fica em letargo por momentos; convulsiva depois, é 


transportada por D. Maria a um canapé). 


D. MARIA 


O que fiz eu, meu Deus! (Toca uma campainha). Fu estou doida com 


semelhante acontecimento! (Toca de novo a campainha). Menina, não ouve? 


(para o criado que chega). Vem aqui ajudar-me a suster esta senhora... Sra. D. 


Inês... Que gelo! (apalpando-lhe as mãos). 


CENA VI 


Os mesmos, um CRIADO, e FERNANDO SOARES, no corredor 


D. MARIA 


Sr. Soares, faz favor de entrar? 


FERNANDO 


Que é? Está sem sentidos esta senhora? Que aspeto tão aflito! 


D. MARIA 


É uma desgraça... 


FERNANDO 


Isto é habitual ou foi algum desgosto? 


D. MARIA 


Uma surpresa, uma imprudência minha... 


FERNANDO, tenteando-lhe o pulso 


Penso que vai passar esta situação... Dar-se-ia um reflexo de sangue ao 


coração? Veja a velocidade das pulsações no seio... 


D. MARIA 


Parece que salta... 


FERNANDO 


O pior é uma congestão... espere... as pálpebras estremecem... 


D. MARIA 


Eu preciso dizer tudo como se passou... Não posso com a responsabilidade da 


minha imprudência... mas eu não podia prever semelhante coisa... 


FERNANDO 


Fale, Sra. D. Maria... 


D. MARIA 


Queira ler a notícia desse jornal que está no chão. 


FERNANDO, lendo e depois de uma abstração profunda 


E esta a pessoa de quem aqui se faia? 


D. MARIA 


Sim, senhor. 


FERNANDO 


O que a roubou é um homem que me foi apresentado há pouco, chamado... 


D. MARIA 


LUÍS de Abreu. 


D. INÉS, convulsiva 


Que é? 


D. MARIA 


Menina... olhe... não me vê?... Isto não pode assim demotar-se... um médico... 


já... (o criado saí). Que hei de eu fazer, senhor!? 


FERNANDO 


Que hei de eu aconselhar-lhe? E uma enfermidade que não obedece à 
farmácia improvisada das consolações... Seria uma felicidade se chorasse: não 
conheço outro desafogo para estas angústias... (reparando para o jornal). 


Como se chama essa senhora? 


D. MARIA 


Inês. 


FERNANDO, em sobressalto reprimido 


Como? Inês!? 


D. MARIA 


É o nome que ela deu... Conhece-a?! 


FERNANDO, com atribulada reconcentração 


Um favor importante, minha senhora. Queira deixar-me só com ela... É 
necessária muita energia de homem para romper a escuridade que neste 
momento cerra o coração desta pobre senhora. Eu sinto-me com vontade e 
força para fazer-lhe compreender que me interesso por ela... V. Ex* fia de 


mim esta senhora por alguns minutos... 


D. MARIA 


Eu... senhor... receio que esse homem entre... 


FERNANDO 


Não receie. Tomo sobre mim toda a responsabilidade do melindre... 
Conceitue-me como um homem de muita honra, Sra. D. Maria... (Inês ergue- 
se). Tem a condescendência de sair? (D. Maria sai. Fernando fecha a porta 


com a chave). 


CENA VII 


FERNANDO e D. INÉS 


FERNANDO, aparte 


Horrível experiência! (Para Inês). Queira sentar-se, minha senhora. 


D. INÉS 


Quem é o senhor? 


FERNANDO 


Um homem que, desde este momento, não pode ser-lhe indiferente. Eu 
também vi a notícia deste jornal, e V. Exº ouviu ler, sem reparar que se não dá 


nem ao menos como provável o suicídio da sua mãe. 


D. INÊS, reanimada 


Não? 


FERNANDO 


Decerto não: diz-se apenas que a sua mãe desapareceu. Pode ter desaparecido, 
procurando-a; pode a estas horas estar bem perto da filha que lhe foge; pode 
ter procurado esconder na obscuridade a sua vergonha. Tenho que fazer-lhe 
um serviço. Vou eu mesmo indagar o destino da sua mãe; empregarei para 
encontrá-la quantos esforços empregaria um filho. Em menos de oito dias, V. 


Ex* pode ter a certeza de que a sua mãe vive... 


D. INÊS, com efusão 


Bem haja, bem haja, meu benfeitor, mas depressa, antes que eu morra... 


FERNANDO 


Preciso, porém esclarecimentos. Já sei que é do Porto: onde é que motava no 


Porto? 


D. INÉS 


Na tua do Rosário. 


FERNANDO, agitado 


Desde quando? 


D. INÉS 


Desde que nasci. 


FERNANDO, sufocado 


Como se chama sua mãe? 


D. INÉS 


Miquelina de Campos. 


FERNANDO, deixando cair o jornal, e enxugando o suor na cara Miquelina... 


(silêncio). 


D. INÉS 


Basta saber isto? 


FERNANDO 


Basta, basta saber isto... Quantos anos tem? 


D. INÉS 


Vinte e dois. 


FERNANDO 


Vinte e dois... (aparte) E se a demência me surpreendel... Isto é morrer!... 


(Ergue-se a beber água de um copo de sobre a mesa de jantar). 


D. INÉS 


E possível saber-se, senhor? 


FERNANDO, aparte 


A última punhalada... (alto) Quem foi seu pai... este jornal não fala dele... 


D. INÉS 


Não conheci meu pai! 


FERNANDO 


Morreu? 


D. INÉS 


E um segredo da minha mãe... ainda que eu o soubesse não o descobriria. 


FERNANDO, com ira reprimida 


Para não desonrá-la? E a sua desonta não lhe importa que seja pública? 


D. INÊS, suspensa 


Que diz, senhor?! 


FERNANDO, mudando de tom 


Nada... E este homem prometeu-lhe ser seu marido? 


D. INÉS 


Não respondo a semelhantes perguntas feitas por um estranho... não sou 


obrigada. 


FERNANDO 


É 


FERNANDO 


Desculpe-me, minha senhora... A compaixão que me está inspirando faz-me 
sair dos limites de um mero estranho que lhe quer ser útil... Desculpe-me até 


por estes cabelos brancos... V. Ex” ama este homem? 


D. INÉS 


Amol!... pois não tenho eu dado uma prova bem segura de que o amo?! 


FERNANDO 


E amada? 


D. INÉS 


Que perguntas, meu Deus... Martiriza-me, senhor... Eu não quero as suas 


consolações. 


FERNANDO, colérico 


É amada por ele? 


D. INÉS 


O senhor aterra-mel... 


FERNANDO 


Ainda não sentiu bem dentro o horror da sua situação. Inês é uma mulher 


perdida! 


D. INÉS 


Senhor... 


FERNANDO 


Está a cair desamparada na extrema miséria... 


D. INÉS 


Oh! cale-se, por quem é! 


FERNANDO 


Matou sua mãe, e vai cada dia salpicar-lhe de lama a sepultura. Essa máscara 
de falsa vergonha que ainda hoje sustenta há de cair-lhe amanhã, e depois, 


Inês, hão de apontá-la ao dedo... é a devassa... a matricida, que vai passando... 


D. INÉS 


É horrível, meu Deus, é horrível!... O senhor... pelas chagas de Cristol... 


(ajoelha). Batem com estrondo na porta. 


LUÍS, fora 


Abre, Inês! 


D. INÉS, erguendo-se 


É ele... 


FERNANDO, retendo-a 


Ele... quem? (sorrindo). 


D. INÉS 


Deixe-me, que é Luís... (A porta é arrombada por um em puxão). 


CENA VHI 


Os mesmos e LUÍS DE ABREU 


LUÍS, serenamente, fumando 


Quadro interessantíssimo!... Não se assustem por quem são... Eu vi 
Desdémona ajoelhada aos pés do mouro; mas troco por um cálice de vinho a 


situação de Otelo. 


(Bebe). 


D. INÉS 


Luís... que julgas tu?... Diz-mo por misericórdia... 


LUÍS 


Eu não julgo nada que não seja deste patusco planeta, chamado terra. Esteja a 
san aise Sr.... Sr.... Sr.... já me esqueceu a sua graça... Sr. brasileiro. Eu sou o 
homem mais cordato, a alma mais ingénua que vive na crusta do globo. Não 


há maroteira que me espante... Nada de susto. 


FERNANDO, sorrindo 


Eu não estou assustado, senhor. 


LUÍS 


Ainda bem... Recolha-se ao seu quarto, menina, ou antes ao seu camarim; 
nobre senhora Maria de Rohan de contrabando... Então? Hesita? Eu já não 


mando aqui? 


D. INÉS 


Oh Luís... é bárbaro matar assim uma mulher que te pede de joelhos que a 


escutes... Estou inocente. 


LUÍS 


Eu abomino a caricatura... Recolha-se que eu tenho de falar com este 


cavalheiro... 


D. INÉS 


Não, não me erguerei dos teus pés, sem que... 


FERNANDO, imperioso 


Levante-se, mulher! (Ela ergue-se e retira-se) 


LUÍS 


Isso é que é intimativa, cavalheiro... E o caso é que ela obedeceul!... O negócio 
está mais adiantado do que eu supunha... Ora... sente-se aqui, meu caro 
patrício. O senhor, pelo que vejo, crê que a propriedade é um roubo... 
Comunismo! viva o comunismo! eu também sou da escola ilustrada... Parece- 


me que V. S* está tranquilo... 


FERNANDO 


O mais que se pode estar... não obstante recomendo à sua bondade a 


economia possível de palavras. 


LUÍS 


Eu também gosto do laconismo. O senhor deve saber que esta mulher não é 


minha mulher, nem é crivei que venha a sê-lo. Se 6 fosse, ou tivesse de o ser, 


V. S* a estas horas tinha passado à eternidade, com a sua reputação de 


milionário, e três balas na cabeça. 


FERNANDO, rindo 


O senhor é interessantemente cómico... Três balas!... 


LUÍS 


Ri-se? Pois valeul... levemos isto a rir. A grande questão é: gosta da rapariga? 


FERNANDO 


Quer trespassar-ma? 


LUÍS 


De mão beijada e dízima a Deus. Está incomodado? 


(Fernando ergue-se convulsivamente). 


FERNANDO 


São nervos... e uma moléstia que me ataca na Europa... Eu aceito o trespasse. 


LUÍS 


Fala seriamente? 


FERNANDO 


Muito seriamente... Por quanto vende o senhor a mulher? 


LUÍS 


Por quanto vendo? Eu não vendo... 


FERNANDO 


Então eu não aceito. 


LUÍS 


Ah! já entendo... O senhor não quer perder os hábitos do Brasil... 


FERNANDO 


Tenho escrúpulos em tal contrato se ele não for bilateral. V. S* há de aceitar- 


me uma indemnização qualquer... 


LUÍS 


O senhor é um grande esquisito. 


FERNANDO 


Eu saberei indemnizá-lo do modo mais delicado; mas V. Sº não há de recusar 
uma gratificação pela cedência que me faz. O segredo morre entre nós três; e a 


minha consciência, que realmente é célebre, fica tranquila. Quer? 


LUÍS 


Entrego-me à discrição. 


FERNANDO 


Que tenciona o senhor fazer para deixar-me livre o terreno? 


LUÍS 


Amanhã deixo Lisboa. 


FERNANDO 


É ela fica neste hotel?... 


LUÍS 


Bem claro... deixo-lhe carta de alforria... 


FERNANDO, sorrindo 


De alforria, justamente... é essa a palavra jurídica... e depois... 


LUÍS 


Como V. S* se entende perfeitamente com ela, cá fica... (Tropel, e vozes). 


CENA IX 


Os mesmos, D. MIQUELINA, D. MARIA, e depois D. INÊS 


D. MARIA 


Menina, menina, aqui está sua mãe! 


D. MIQUELINA, espavorida, erguendo o véu preto 


Minha filha, minha filha! (Terrível comoção em Fernando, que volta a face da 


luz) Onde está ela? (Vendo Luís) Senhor Abreu, onde está minha filha? 


D. INÊS, delirante 


Aqui, aqui estou, minha mãe (abraçam-se). 


FERNANDO, aparte a Luís 


E melhor sairmos. 


LUÍS 


Diz bem. 


FERNANDO 


Para o meu quarto. (Saem). 


CENA X 


D. INÊS, D. MIQUELINA e D. MARIA 


D. MIQUELINA 


Eu não venho amaldiçoar-te, filha... 


D. INÉS 


Não venha, não venha, minha mãe... A maldição... a sua maldição sobre tal 
desgraçada não agradaria a Deus... Poupe-me a essa tortura... que eu conheço 
todas as outras... Tenho o coração despedaçado... Abençoe-me, já que 


ressuscitou para mim... abençoe-me, que eu estou nas agonias da morte... 


D. MIQUELINA 


Não estás, meu anjo... quero que vivas... Deus não quer a tua morte e a 
minha... A tua mãe precisa de ti... Havemos de acostumar-nos à vergonha, se 
não há nada que salve dela... Viveremos, viveremos sem escandalizar ninguém 


com a nossa presença... (D. Maria retira-se). 


D. INÉS 


Mãe, não posso... 


D. MIQUELINA 


Inês... eu não te tirei nada do amor que te tinha... Ninguém sabe ser 


desgraçada, e ser mãe como eu sou... Inês, vive para meu amparo... 


D. INÉS 


Ail é impossível!... Eu, quando fugi dos seus braços, já sabia que não podia 


tornar a eles senão cadáver. Abrace o cadáver da sua filha, minha mãe... 


D. MIQUELINA 


Não posso nada sobre o teu coração infeliz? 


D. INÉS 


Pode muito... Porque não veio uma horta antes?... Se morrer assim, morro 
, 
perdoando... Pode morrer-se santa com o crime escrito na face... O mundo 


não sabe o que se tem passado na minha alma... Eu tenho chorado por mim e 


por todas as infelizes nas minhas circunstâncias... Não há ultraje que eu não 
tenha conhecido... Fez ontem dois meses que a deixei, mãe, minha santa 
mãe... Que dois meses!... Sentir ao pé de mim arrefecer minuto a minuto o 
coração do homem que amei, que amo, sem poder ver-lhe os defeitos... Ele a 
ferir-me com toda a sorte de desprezos, e eu... a cicatrizar com lágrimas, 
choradas no cotação, na alma, no amor próprio... Invocar a compaixão surda 


do céu, e as esperanças a morrerem! 


D. MIQUELINA 


Chora, chora, minha filha. 


D. INÉS 


Um dia era terrível, mas o dia seguinte era pior... Ontem longas horas de 
silêncio, hoje uma ironia, amanhã, um escárnio... Um encadeamento de 
crueldades novas para mim... Eu não pensei que se tinha alma para tanto... Se 
choro, consolam-me com uma zombaria; se mostro um sorriso de paciência, 
chamam-me alma de lama... Aqui tem a minha vida com este homem... há 


dois meses... 


D. MIQUELINA 


Alma, minha querida mártir... abandona-te a mim... Eu já chorei assim, 
contigo nos braços, criancinha de um ano... Mataram-me há vinte anos, e um 
milagre conservou-me de pé, ao teu lado, porque eu não podia fechar sobre 
mim uma sepultura, e deixar-te sozinha na terra... Paga-me esta dívida... não 
me deixes no fim da vida, porque eu te amparei no princípio da tua... vence a 


paixão e a vergonha com a tua mãe no coração. 


D. INÉS 


Não posso, não posso... é um segredo... há de ouvir-mo logo... e depois um 


confessor... 


D. MIQUELINA 


Oh minha filha... tu aterras-me com o maior dos crimes... Envenenaste-te? 


respondel... 


CENA XI 


As mesmas e Fernando Soares, embuçado. 


FERNANDO, parando ao pé do grupo 


Eis aqui uma mãe digna de tal filha. 


D. MIQUELINA, aterrada 


Que voz é esta? 


FERNANDO 


Quer muito a essa filha? 


D. MIQUELINA 


Se lhe quero!... 


FERNANDO 


Perdoou-lhe? 


D. MIQUELINA 


Virgem santíssimal!... isto é um delírio!... 


FERNANDO 


Perdoou-lhe? 


D. MIQUELINA 


Perdoei... 


FERNANDO 


Não sente na presença dela a vergonha escaldar-lhe o rosto? 


D. INÉS 


Que homem é este, minha mãe?! 


FERNANDO 


Está justificada a desonra da filha... vê-se que a desgraçada teve toda a 


liberdade para ser o que é... 


D. MIQUELINA 


Que posso eu fazer? 


FERNANDO 


Se não tem um braço capaz de cravar um punhal no algoz da sua filha, 


entregue-o ao cafrasco... 


D. MIQUELINA 


Mas ela ama-o! 


D. INÉS 


Sim... sim... 


D. MIQUELINA 


E eu queria que ele fosse seu marido... 


FERNANDO, rindo 


O seu marido! Não quero!... 


D. MIQUELINA 


Agora, sim, compreendi tudo... (com o rosto escondido entre as mãos). 


D. INÉS 


Que é, minha mãe... diga, diga... 


D. MIQUELINA, apontando, sem encará-lo 


Este homem... este homem é... 


FERNANDO, interpondo-se com a face somente visível a D. Miquelina 
Quem pode ser este homem, senhora? (Miquelina solta um grito, e Fernando, 


pondo o dedo nos lábios, obriga-a a calar-se). 


D. MIQUELINA 


Justiça de Deus!... (Vai cair perturbada sobre uma cadeira. D. Inês quer 
socorrer a mãe. Fernando coloca-se entre ambas, e aponta-lhe imperiosamente 


o quarto. Inês vai como arrastada por uma força invencível). 


FIM DO PRIMEIRO ACTO 


ACTO II 


O mesmo cenário do primeiro acto, exceto o aparato do jantar. E noite: a 


cena está apenas alumiada por uma veia. 


CENA I 


D. MARIA e o Médico 


D. MARIA, apontando o quarto de Inês 


É este o quarto, Sr. doutor. 


MÉDICO 


À que horas supõe a senhora que ela se envenenou? 


D. MARIA 


Hoje às nove horas, pouco mais ou menos. Tem tido agonias, suores frios, 
mas não quer deitar-se; conserva-se a pé, e parece que tem intervalos de 


descanso. (Vê-se no corredor Fernando Soares). 


MÉDICO, observando o relógio 


E meia noite... Aparece algum vidro ou boceta suspeita de veneno? 


D. MARIA, tomando-a sobre a mesa 


Esta bocetinha, com um resto de pó... 


MÉDICO, examinando 


Tornou arsénico, mas a dose foi' pequena... Vamos. (Entra com D. Maria). 


CENA IH 
FERNANDO SOARES 


Escuta à porta da câmara de Inês e vai sentar-se no mais sombrio da sala 


FERNANDO 


É esta a minha coroa de glória depois de vinte anos de luta!... Não cuidei que 
tinha alma para estes espinhos... Deceção tristíssima para um homem que vem 
à pátria, envelhecido no trabalho, tragando além todas as afrontas, abafando 
até os brados da consciência... matando todos os sentimentos bons do 
coração, pata salvar um só... a esperança de uma filha... uma amiga no fim da 
vida... um prémio a tribulações de vinte anos... Encontro a ignomínia, e a 
ignomínia que se não reabilita com dois milhões. A impotência do dinheiro!... 
Travei um duelo com os reveses... cuidei que o ouro era uma atma 
invencível... quebrou-ma nas mãos a desgraça... Que terrível combate de 
pensamentos nesta cabeça!... Não se endoudece de aflição e vergonha!... Ainda 
não tive uma verdadeira resolução de matar este homem... E que homem!... 
como ele dorme tranquilamente sobre o meu leito!... Há espantosas 
organizações! (Sorri.) Que importa? Nada o salvará... Alguma vez hei de 


triunfar desta zombaria infernal que me escarnece. 


CENA HI 


D. MIQUELINA, vindo de fora, com um criado do hotel, e depois Maria 


D. MIQUELINA, para o criado 


Muito agradecida... (o criado sai). 


D. MARIA, saindo do quarto de Inês 


Já de volta, minha senhora? Que se passou? 


D. MIQUELINA 


Com a carta do Sr. Fernando Soares fui logo recebida pelo governador civil. 
Tratou-me muito bem... Deu ordens imediatamente. Eu queria agradecer ao 


cavalheiro, seu hóspede, este serviço. 


D. MARIA 


Ele aparecerá. O médico está lá dentro... vou mandar já, já à botica... entre, 


entre... 


(Sai) 


CENA IV 


D. MIQUELINA e FERNANDO SOARES 


D. Miquelina encosta-se a um tremó, coma reanimando-se antes de entrar 


D. MIQUELINA, sem ver Fernando 


Tornarei eu a vê-lo, meu Deus?! Seria ele!... 


FERNANDO, meia voz 


Senhora D Miquelina. 


D. MIQUELINA, espavorida 


Quêl... 


FERNANDO 


É deste lado que a chamam... A hora é a dos fantasmas; mas tudo aqui é 


natural como a desgraça, e sensível como a dor das chagas que fecham. 


D. MIQUELINA, indo na direção da voz 


Carlos!... 


FERNANDO, erguendo-se 


Carlos, não. Esse homem está morto no coração deste outro que aqui vê... (ela 
ajoelha.) Que é isso? Nem na mulher que se amou pode tolerar-se uma 
posição humilhada... De pé, com a cata bem altiva, e o coração bem soberbo 


daquele nobre orgulho de pai. 


D. MIQUELINA, sem erguer-se 


Eu tenho direito à tua comiseração, Carlos... Eu não me engano... é impossível 


que não sejas... Tu não vens matar-me, não»... 


FERNANDO, levantando-a 


Matá-la! Quem lhe disse, senhora, que eu venho, sequer, infligir-lhe um 
castigo que as suas lágrimas pretendem suavizar? Eu não a acuso... nem issol... 
Peço-lhe só conta da minha filha... É aquela mulher desonrada que ali está 


dentro? 


D. MIQUELINA 


Não poderei eu morrer neste momento, meu Deus?! 


FERNANDO 


Não pode, porque todos temos um destino a cumprir... A Providência não 
derroga as suas leis. Falta-lhe alguma causa neste mundo, senhora... Pois eu 
porque vivo ainda? Toquei a margem de todos os abismos, e fiquei em pé. 
Não era bem natural que eu tivesse caído? O meu abismo era aqui... Um 
homem foi, o outro é hoje... O homem das alegrias, das esperanças passou; e 
o simulacro de homem, com cada fibra apertada numa tortura, ficou... É certo 
que o mau anjo venceu o bom; sinto o desconforto do céu; mas para alguma 
coisa o demónio me conserva. Só assim se explica a minha existência aos 
quarenta anos... Não se vencem, sem predestinação, as angústias que eu pisei 
debaixo do pé triunfante. Trabalhei vinte e dois anos para chegar a isto... (com 
ironia). Abençoado trabalho... Ora pois... é esta Inês uma criancinha que eu 
lhe deixei nos braços há vinte anos? Diga, diga, que eu estou sentindo em mim 


o homem do passado... 


D. MIQUELINA, soluçando 


FERNANDO 


Nunca lhe falou no seu pai? 


D. MIQUELINA 


Não... julgava-te morto... 


FERNANDO 


Julgou bem... Pudera ter-lhe dito: “O teu pai, filha, foi uma boa alma que eu 
amei muito. Eu era filha de um fidalgo, muito fidalgo, muito pobre, e muito 
desontado para manter o emprestado luxo da sua posição. Ele era um simples 
escriturário de um cartório; mas sem uma nódoa que refletisse desonra na 
memória dos seus avôs plebeus. Disse-lhe que me tirasse de casa, quando a 
tua existência, filha, vinha dar testemunho de um grande crime... Eu saí sem 
uma joia que valesse dez réis. O amanuense trabalhava dia e noite para 
alimentar-me. Adorava-me, obedeceu-me. O meu pai descobriu o raptor, que 
pôde salvar-se. A ele perseguiu-o em toda a parte, e a mim fechou-me num 


quarto sem luz nem at. O teu pai, fugitivo, teve sede, e frio, e fome: mas as 


esperanças aqueciam-no, e alimentavam-no, O desgraçado parece que tinha 
orgulho de sofrer por mim. Nunca teve um instante de arrependimento! O 
meu pai empregou a branda persuasão para dissuadir-me de tão monstruoso 
amor. Disse-me que era menos ignominioso ficar solteira e mãe que ser casada 
com um amanuense de tabelião. Os fidalgos meus parentes rodearam-me, e... 
convenceram-me. Acreditei-os... julguei-me infamada, vacilei, arrependi-me, e 
reneguei uma paixão indiscreta. Quiseram que eu te lançasse dos meus braços, 
filha do plebeu, vergonha dos meus avós; mas não pude tanto. Fui eu, se não 
expulsa, encerrada num a obscura casa, recebendo alimentos que o meu 
fidalgo pai me arremessava com desprezo... O teu pai era ainda perseguido... 
Uma noite vi-o ao pé de mim... foi a primeira e última vez que te viu... tinha-te 
nos meus braços, criancinha de três meses... “Foge comigo - disse-me ele... -; 
dirás a bordo do navio que és mulher do marujo Fernando...” “Não fujo... - 
respondi-lhe eu - meu paí amaldiçoa-me, e eu temo as penas do inferno.” O 
teu pai saiu... e depois... Fez bem não contar isto a sua filha... Não há mãe que 
se enobreça com semelhante história. Há fragilidades que honram uma 
mulher, mas não são estas... O conto assim não é edificante nem pela virtude, 
nem pelo heroísmo da paixão... D. Miquelina temeu então as penas do 


inferno... hipocrisia... penas do inferno são estas, não lhe parece? 


D. MIQUELINA 


São... são... O Carlos, porque me não perdoas? 


FERNANDO 


Pois eu condeno-a?! 


D. MIQUELINA 


Ajuda-me a salvar a nossa filha!... 


FERNANDO 


Como é que se salvam estas mulheres”... Não devo ouvi-la mais, senhora... 
ouço. passes... Absoluto silêncio ao meu respeito... Entre no quarto da sua 


filha... Vá vê-la morrer... (D. Miquelina entra no quarto de Inês). 


CENA V 


FERNANDO, e depois um CRIADO 


FERNANDO 


Como esta mulher foi bela!... Passaram só vinte anos... O que terá ido naquele 
coração pata que a face envelhecesse assim!... Vinte anos!... Chotra-se, quando 
se vê assim a mulher que se viu vaidosa da sua formosura, cercada de tudo 
que adoça a existência, e não deixa assaltá-la o pensamento da velhice 


desgraçada... Esta é que é uma Miquelina que eu ameil... A vidal... A vidal!... 


CRIADO 


O Sr. Luís de Abreu disse-me agora que fizesse sair as malas dele, sem que se 
desse fé; minha ama não quer que eu faça nada sem dar parte a V. S* e como o 


vi entrar para aqui... 


FERNANDO 


Vai dizer ao Sr. Luís de Abreu que entre nesta sala que eu estou aqui. (O 
criado Sai). Aproxima-se um terrível momento!... Que deliciosa existência 


esta!... Quem invejará os milhões deste homem!... 


CENA VI 


FERNANDO, e D. MARIA 


D. MARIA 


Pois estava aqui? Sabe as ordens do malvado? 


FERNANDO 


Sei. 


D. MARIA 


D. MIQUELINA falou com o governador civil... 


FERNANDO 


Sei tudo. 


D. MARIA 


Entrou no quarto da menina”... Sabe como ela está? 


FERNANDO 


Não sei... (D. Maria entra, levando um vidro de remédio, ao quarto de Inês). 


CENA VII 


FERNANDO SOARES e LUÍS DE ABREU 


FERNANDO, anda só 


Quem poderá compreender estas agonias? Muito forte é o homem, até 


desamparado da providência!... 


LUÍS, fumando e espreguiçando-se 


Estas trevas são românticas... Parece que desci à região das sombras... Sabe o 
senhor que acordei com um péssimo sabor na boca! Sinto uma desagradável 


preocupação no estômago... 


FERNANDO, sorrindo 


E admirável a fortaleza do seu espírito! Converte as tragédias em farsas 


admiravelmente! 


LUÍS 


Pois a vida sem isto pode lá sofrer-se!... Que me diz o senhor de novo? A mãe 
de Inês adormeceu, ou tem- feito bravuras? Naturalmente está lá dentro com 
a dona da casa... Sabe que mais? Palpita-me que não vai por diante a nossa 


convenção... 


FERNANDO 


Porquê? 


LUÍS 


À pequena cá pelos meus cálculos, vai para o Porto com a mãe, e o meu 
amigo segue-a, e espreita ocasião propícia para a tomar de assalto... E acho 


que faz bem... 


FERNANDO, risonho 


Linguagem técnica com que V. Sº* trata estas matérias! Afigura-se-me um 
homem prodigioso o Sr. Abreu! A minha vontade era estudar-lhe o interior da 


cabeça. 


LUÍS 


Achava uma cabeça perfeitamente organizada, segundo correm os tempos. 


FERNANDO 


E o coração? 


LUÍS 


O coração é um músculo oco, dizem os anatómicos. 


FERNANDO, solene 


Oco não... o seu está cheio... é o repositório de todas as fezes, a máquina onde 
se trabalham primores de arte de perversidade, de infâmia, de... (mudança de 
tom). Desculpe o vocábulo que é forte, meu respeitável senhor... (toca-lhe no 


ombro). 


LUÍS, rindo 


Palavra de honra... pensei que o Sr. ia formalizar-se!... Teria muita graça a. À 


sua austeridade, à última hota!... 


FERNANDO 


À última hora... diz muito bem... Queira dizer-me, Sr. Abreu: esta aventura 
decerto não é a primeira que desfruta?... Antes desta rapariga, algumas outras 


devem ter deixado um rasto de lágrimas para a. última que se segue... 


LUÍS 


V. Sº está sentimental! 


FERNANDO 


Não, senhor: é que falo sempre assim em linguagem de romance. 


LUÍS 


À Paulo de Kock?... Isso é da tragédia em cinco actos... linguagem de centro... 


FERNANDO 


Ora responda sério, cavalheiro: têm sido muitas as conquistas? 


LUÍS, com fatuidade 


Algumas... Tenho matizado a vida o melhor que pude; mas hoje sinto-me um 
pouco abatido, e voto de preferência por as delícias do estômago... Fiz o que 


poucos fazem. 


FERNANDO 


E não tem encontrado nunca um florete, uma bala, um punhal... 


LUÍS 


Nem receio disso. A sociedade está suficientemente corrompida para me não 
chamar a contas de moralidade. A virtude é contrabando entre nós. Se nos 
agarram com ela, perde o tempo, e os lucros. À corrupção mata a energia dos 
brios, e recebe todas as imoralidades como factos consumados. Quem puder, 
goze... “Os mortos vão depressa”, diz a balada; mas os vivos não vão muito 
devagar. Eu penso assim, e tenho cá as minhas razões... Je suis I'enfant de 
mon siécle... Os franceses é que sabem viver... Aqui é necessário educar esta 


sociedade... 


FERNANDO 


Sim!? não cuíidei que vivíamos no gozo de uma liberdade tão plena de 
ensinar... Por isso V. S* estranhou, sorrindo, a minha austeridade à última 
hora... Quem cá vier ensinar a doutrina. da honra, deve de ser bem ridículo!... 
Mas... quem sabe se o Sr. Abreu vive enganado com a sociedadel!... Pode ser 
que V. Sº tenha tido a ventura de encontrar as exceções... É impossível que a 
regra seja o que o senhor julga... Eu sou um frágil membro desta sociedade, 
tenho sentido o contacto de todas as pústulas, e não me sinto tão gangrenado! 
Posso até afiançar-lhe que, na posição desgraçada do pai dessa mulher que aí 
está dentro em agonias... V. S* a estas horas - deixe-me parodiar a sua frase de 
há pouco - tinha passado à eternidade, com a sua reputação asquerosa, e pelo 


menos uma bala na cabeça... 


LUÍS 


Essas excelente teorias variam muito na prática. É o inconveniente de todos 
os sistemas filosóficos. Um homem não se mata como quem mata um javali: é 
uma coisa muito séria matar um homem acordado... Mas, deixemo-nos de 
hipóteses fúnebres, meu estimável cavalheiro. Não estabeleçamos dialética de 
moral, visto que não há auditório. Eu entendo que o mais lógico na minha 
situação é retirar-me. Receio algum passageiro incómodo que possa dar-me a 


justiça, movida pela mãe de Inês. 


FERNANDO 


Quer retirar-se já? 


LUÍS 


À cautela... Uma boa retirada vale uma feliz batalha... É cá um dos aforismos 


da minha estratégia... Cada espécie tem o seu Napoleão. 


FERNANDO 


Então vamos saldar contas. 


LUÍS 


Contas?! Eu não lhe devo nada... 


FERNANDO 


Eu é que sou o devedor, o devedor honrado, meu amável senhor. Pois não 


ficámos em V. S* aceitar-me uma gratificação pela cedência? 


LUÍS 


Deixemo-nos de celebreiras, meu amigo... (Vai retirar-se: Fernando retém-no). 


FERNANDO, toca uma campainha 


Queira esperar. 


LUÍS, aparte 


Que quer dizer isto? Teremos asneira”... 


CENA VHI 


Os mesmos e D. MARIA 


FERNANDO, a D. Maria 


A senhora D. Inês que entre nesta sala. 


D. MARIA 


Está-se esperando o efeito do remédio... Está sofrendo muito... é impossível 


vir pelo seu pé. 


FERNANDO 


Que entre nesta sala, e só. (D. Maria entra no quarto). 


LUÍS 


Que quer o senhor fazer? À que vem Inês aqui? O senhor não responde?! Eu 


retiro-me... 


FERNANDO, voltando de fechar a porta 


Eu não fecho a porta com medo que o senhor se retire... é que não quero que 
nos ouçam. Pois V. Sº não quer ver os efeitos do veneno na face dessa mulher 


que aí vem!? E um estudo curioso... 


LUÍS 


Mas o que quer dizer isto?! 


FERNANDO 


Quer dizer que o Sr. Luís de Abreu não tem da sociedade em que vive um 
conhecimento perfeito... Esta sua última imoralidade não foi ainda recebida 


como facto consumado. 


CENA IX 


Os mesmos e D. INÊS 


D. Inês desfigurada, exprimindo sempre grande agonia; Fernando indica-lhe 


um canapé, e ela senta-se. 


D. INÉS 


Minha mãe não veio?! porque não está aqui minha mãe!? Ela disse que vinha 


comigo... 


FERNANDO 


Não está aqui, porque nem tudo se pode dizer diante da sua mãe... 


D. INÉS 


Pode... não tenho segredo nem desgraça que ela não conheça... Quero aqui 


minha mãe. 


FERNANDO 


Para quê?! Não lhe basta o amparo deste cavalheiro por quem trocou sua 
mãe?... Onde está o homem que se ama, estão resumidas todas as 


necessidades de uma mulher extremosa... 


D. INÉS 


Pois eu vim aqui para me escarnecerem?!... Deixem-me morrer... déem-me um 
confessor que quero salvar a minha alma... A zombaria comigo é uma 
crueldade que eu não mereço a ninguém, é muito menos a ti, Luís... 
(estendendo-lhe a mão) Adeus... Depois de tantas amarguras, de tantos 
aviltamentos... perdoo-te... (Ergue-se com transporte para tomar a mão de 
Luís, que não ousa fixá-la, e Fernando obriga-a a afastar-se com ímpeto 


colérico, e muda logo pata o sorriso). 


FERNANDO 


Pois tem a suspeita de que foi muito aviltada, menina? Reanime-se que vai ser 
feliz: eu vou cicatrizar as feridas rasgadas pelo ar. Luís de Abreu. Este 


cavalheiro acaba de fazer-me uma cedência amigável. 


LUÍS, colérico 


Senhor! 


D. INÉS 


Que ouvi, meu Deus! Uma? 


FERNANDO, tranquilo 


Fu menti, Sr. Abreu? Essa irritação é incoerente com o seu carácter franco... 


Nada de biocos de honra sobreposse. O segredo é de três. 


LUÍS, cerrando os punhos em ameaça 


Isto é uma covarde traição! 


FERNANDO, severamente 


Não é traição: é que sou muito acautelado nos meus contractos. Para provar- 
lhe que não falto à menor condição estipulada, e para que a minha consciência 
fique pura de escrúpulos, vou dar-lhe a gratificação prometida. (Abreu recua 


alguns passos. Fernando atira-lhe à face uma bolsa). 


D. INÉS, erguendo-se em fuga 


Minha mãe, minha mãel!... (Luís de A breu tira um. punhal e acomete-o; Soares 


uma pistola, sem recuar; À breu pára, e contemplam-se silenciosamente.) 


CENA X 


Os mesmos, D. MIQUELINA, D. MARIA e o MÉDICO 


D. MIQUELINA, saindo do quarto 


Filha, filha, que é? 


D. INÊS, com a face escondida no seio da mãe 


Morro!... ouvi, uma coisa horrível!... Desfaz-se-me o cotação... Agora sim... 


matatam-mel... 


FERNANDO, para Abreu 


Até que enfim encontrou um estotvo... A perversidade não lhe inspira nada? 
Tudo isto lhe parece um sonho desagradável... e nada mais? Acorde, e possua- 
se bem da majestade desta cena. Um conquistador da sua força deve ter 
espetáculos destes para contar. Feitos tais são os que fazem a reputação de um 
elegante... Dar-se-á o caso que o senhor esteja gozando voluptuosamente 
aquele quadro?! (aponta o grupo de mãe e filha). Olhe... e uma mãe penitente 
abraçando uma filha desonrada... Aquilo é triste... Chora o coração... São 


pobres. Aquela filha tem de mercadejar a subsistência da sua mãe... À caridade 


pública promete recebê-las a ambas num hospital. Quer V. S* por grande 
misericórdia lançar uma moeda de cobre no regaço daquela mulher? Barato 
lhe fica tamanho triunfo! (obrigando-o a encará-las). Porque não há de vê-las, 
senhor? São a sua obra... Reveja-se bem naqueles troféus... Vá agora cuspir na 
face de ambas... (com terrível reconcentração). Aqui tem o senhor um braço 
cuja energia a corrupção não enfraqueceu... Posso até asseverar-lhe que o 


catálogo das sua vítimas acaba ali. 


LUÍS 


Compreendo que o senhor é um assassino, e assassino por gosto... Ameaça- 
me com a morte, sem algum título nobre que possa desculpar esse 


procedimento. 


FERNANDO, quase ao ouvido 


Tenho a franqueza de querer justificar-me aos seus olhos, infame... O senhor 


sabe o que é ser assassino mas não sabe o que é... o que é... ser pai... 


LUÍS, assombrado 


O seu pai!... 


D. INÉS 


Que disse ele! 


D. MIQUELINA 


Sim, sim, teu pai! de joelhos... de joelhos, minha filhal... 


D. INÊS, como arrastada 


Não é possível... estou passando pelo delírio de uma febre 


D. MIQUELINA 


Não, Inês... é teu paí... ajoelha comigo... 


FERNANDO, severamente 


Afastem-se... 


D. INÉS 


... É O veneno... 


Que eu não morra sem o seu perdão... Estou envenenada... pouco posso 


viver... Não me amaldiçoe! 


D. MIQUELINA 


Carlos! tua filha que se ajoelha... escuta-nos... Ela morre sem ter ouvido do seu 


pai uma palavra de amor. 


FERNANDO, muito com pungido 


E eu sem ter merecido ao género humano uma lágrima de compaixão... 


D. MIQUELINA 


Salva-nos a ambas... salva-nos, Carlos. 


D. INÊS, muito angustiada 


Que nos deixe ao menos morrer abraçadas, abençoando o seu nome. 


MÉDICO 


Fui chamado para curar esta senhora de um envenenamento, e como médico 
declaro que esta situação não pode demotar-se. Ou vê-la motrer aqui, ou 


tentar o último esforço para salvá-la. 


FERNANDO, erguendo com ternura sua filha 


Vai... filha, vai... Se mortes, ou vives, não poderei salvar a tua reputação... mas 
vingar-te-ei, vingar-nos-emos... Doutor., salve-ma... (D. Inês é transportada 


ao quarto, nos braços do médico e da mãe. D. Maria sai pela porta do fundo). 


CENA XI 


FERNANDO SOARES e LUÍS DE ABREU 


FERNANDO, cruzando os braços em frente de Luís 


O senhor é um homem a quem não pode propor-se um duelo. Entre dois 
homens que se batem é preciso que o pundonor tenha sido reciprocamente 


ultrajado. 


LUÍS 


Eu não me recordo de o ter ofendido ao senhor... Ainda assim... se me propõe 


um duelo... entre cavalheiros... há certas formalidades... 


FERNANDO 


Eu não lhe proponho um duelo... Vergonha para mim se lhe desse gota do 
meu sanguel... o que o senhor quiser... É um capricho de assassino por 
prazer... que move a puni-lo por ter atirado à desgraça uma frágil mulher que 
não pode travar armas consigo... Eu sou o pai da sua vítima, senhor! Tenho 


dito tudo. 


LUÍS 


Eu não o conhecia como tal... 


FERNANDO, com serenidade 


Quer dizer que uma senhora, sem pai conhecido, pode ser arrastada pelos 
cabelos dos braços da sua mãe aos da prostituição, e dai às agonias do veneno, 
e do veneno à sepultura... E o mau homem que matiza com infâmias tais a sua 
existência, não é obrigado a descobrir-se perante a sociedade que lhe pede 
contas da mulher sacrificada a uma paixão feroz... A serenidade com que eu 


discuto, senhor... Bem vê que o estou estudando... 


LUÍS 


Há um meio pronto de reabilitar sua filha. 


FERNANDO 


Qual? 


LUÍS 


Não duvido casar com ela. 


FERNANDO 


Casar com ela!... O senhor pode porventura reabilitar mulher nenhuma!? Que 
pai lhe daria uma filha, homem três vezes infame!? Ofereceu-ma há pouco... 
cedeu-ma com o contentamento de um cigano que passa um péssimo cavalo... 
Miserável!... que tem ela agora que mais valha para ser mulher?... (Tira, 


convulsivamente, uma pistola. Tropel no corredor, e luzes.) 


CENA XII 


Os mesmos e o ADMINISTRADOR DO BAIRRO, ESCRIVÃO, D. 


MARIA e CRIADOS 


ADMINISTRADOR, lendo um ofício 


Qual dos senhores é Luís de Abreu, natural do Porto? 


LUÍS, aparte 


Estou salvo! (alto) Sou eu, senhor. 


ADMINISTRADOR 


Siga-me; eu sou o administrador deste bairro, e prendo-o por ordens 


superiores. 


LUÍS 


Prontamente. (Quer segui-lo). 


FERNANDO 


Esperem. 


ADMINISTRADOR 


Não sofre delongas a execução do mandado do governo civil. Este senhor 


tem de ser posto em custódia imediatamente. 


FERNANDO 


Esperem. (Para o administrador) O senhor sabe porque é preso este homem? 


ADMINISTRADOR 


Por um crime de rapto. 


LUÍS 


Eu provarei que se não rapta uma mulher que nos segue muito pela sua livre 


vontade. E de mais, eu estou pronto a casar com ela. 


FERNANDO, para a autoridade 


Diga-me: os infames desta ordem como são punidos em Portugal? 


LUÍS 


Note, Sr. administrador, que sou insultado vilmente por este homem... Estou 


debaixo da lei. 


FERNANDO, para o administrador 


Responde-me, senhor? 


ADMINISTRADOR 


O crime de rapto tem penas designadas no código penal segundo as 


citcunstancias. 


FERNANDO 


Poucas palavras a uma pergunta simples... Há uma forca? Um pai, rico ou 
pobre, pode levar à forca o malvado que lhe atira. aos pés o cadáver 


desonrado da sua filha? 


ADMINISTRADOR 


Isso decide-se nos tribunais, mediante um processo. 


FERNANDO 


E muito demorado esse processo? 


ADMINISTRADOR 


Tem os trâmites da lei, testemunhas, depoimentos, provas, um juiz enfim. 


FERNANDO 


Que provas, senhor? O que são aqui as provas? Quem vem depor ao tribunal 


contra este homem? E essa mulher que aí está dentro agonizando?! 


ADMINISTRADOR 


Não sei... o preso é amanhã entregue ao crime, e seja-lhe V. Sº parte. 


FERNANDO, engatilhando a pistola 


Eu não sou parte, sou juiz. (Abreu é ferido no peito, e cai sobre o canapé). 


CENA FINAL 


D. MIQUELINA 


Está salva! está salva!... 


D. MIQUELINA, atribulada 


Oh Carlos! que fizeste”... A nossa filha não morrel... 


FERNANDO, tranquilamente 


Pois que viva. Não terá de corar diante desse infame 


O preso sou eu, senhor. 


... (para o administrador).