Full text of "Justiça"
CAMILO CASTELO BRANCO.
me . ' , Ea ; EranA qe e
Ҽ
+
JUSTIÇA
CAMILO CASTELO BRANCO
TEATRO
Esta obra respeita as regras
do Novo Acordo Ortográfico
A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 do
Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte do
autor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,
o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a
sua troca pot qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob o
mesmo princípio, é livre para a difundir.
Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital, visite-nos
em: http://luso-livros.net/
LUSO LIVROS
UMA NOVA FORMA DE LER
PERSONAGENS
D. INÊS
D. MIQUELINA
FERNANDO SOARES
D. MARIA
LUÍS DE ABREU
PEDRO DA NÓBREGA
ADMINISTRADOR DO BAIRRO
MÉDICO
ESCRIVÃO DA ADMINISTRAÇÃO
E figuras que não falam
À cena passa-se em Lisboa, num Hotel
ACTO IT
Uma saleta com porta ao fundo, para um corredor de serventia comum, e
outra porta lateral para uma câmara.
CENA I
D. INÊS, LUÍS e PEDRO sentados, em final de jantar, em roda de uma
mesa, aonde avultam garrafas com diferentes vinhos, frutas, etc. Inês toma do
tabuleiro servido por um criado, uma chávena de café, com que retribui a que
lhe é oferecida por PEDRO DA NÓBREGA. Entretanto, LUÍS,
preguiçosamente recostado, saboreia um cálice de vinho, e fuma. Afeta os ares
de uma meia embriaguez, e extasia-se nos rolos de fumo que lança do charuto.
LUÍS
Vejo tudo cor de rosa... A vida tem coisas bem boas, digam lá o que disserem
os poetas de cemitério. Poucos são os que sabem tirar proveito desta sublime
patarata que os tradutores em vulgar denominam sociedade. Achas que digo
bem, Pedro da Nóbrega, meu ilustrado amigo?
PEDRO
Dizes o melhor que se tem dito sobre a matéria. Enquanto a mim, está
provado que o mundo não é um vale de lágrimas, pelo menos no todo. Há
certos pedaços do mundo aonde não há lágrimas.
LUÍS
Particularmente nos terrenos onde predomina o Malvasia, o Madeira, e o
Champagne.
PEDRO
E o Porto. Faz favor de não esquecer o Porto. Eu sou patriota, e tenho
minhas convicções a respeito do vinho do Porto.
LUÍS
Se me dás licença, dir-te-ei que és um imbecil. Os homens de paladar mais
depravado são os ingleses: ora, o vinho mais querido dos ingleses é o vinho
do Porto: logo o vinho do Porto é um vinho depravado.
PEDRO
Distingo... mas nós esquecemos que está aqui uma senhora, e a conversa de
armazém decerto não lisonjeia o gosto de uma dama.
D. INÊS, triste e ressentida
Não importa: conversem no que quiserem.
PEDRO
Nada, minha senhora, o assunto é impróprio.
LUÍS
De acordo; o assunto é impróprio; mas uma senhora de boa sociedade eclipsa-
se, logo que a razão dos convivas machos se vai eclipsando. Quando estoura o
gás da primeira garrafa, é chegada a hora das expansões; e a mulher, que vive
de brisas, e arroubamentos de alma, levanta-se, e recolhe-se ao santuário dos
seus devaneios.
D. INÊS, depõe a chávena
Eu retiro-me, Luís... é isso que queres dizer?
LUÍS, sorrindo e bebendo
Es uma criatura inteligente, Inês...
D. INÉS, vexada e oprimida
Puderas-mo ter dito... Bem sabes que eu não estou no caso de observar todos
os deveres de uma senhora de boa sociedade...
CENA IH
LUÍS e PEDRO
LUÍS, sorrindo
Não tem sal nenhum o remoque... (Pedro dá o braço a D. Inês, e condu-la à
porta do quarto: Luís, reparando na urbanidade do conviva, solta um frouxo
de riso). Estes homens, em vivendo na capital um ano, tornam-se cortesãos
até ao ridículo... Sinto-me bem. Sinto descoserem-se-me os rofegos do
espírito. Estou expansivo como um amante depois de jantar. Até me sinto
poeta, Pedro da Nóbrega. A fonte dos poetas bárbaros era de água, e, se bem
me lembro, chamava-se Aganipe. A coisa agora é outra. À água passou para a
prosa aguada, e o vinho reassumiu toda a importância que lhe deu o velho
Horácio.
PEDRO
Sinto quebrar o fio dessa eloquente baboseira, meu caro Luís de Abreu...
Atende, tu tratas muito bem as mulheres...
LUÍS
Trato!? essa é boa! Como costumas tu tratar as mulheres?
PEDRO
Aposto que estás cansado de ser feliz!... Há quanto tempo a tiraste de casa?
LUÍS
Dois meses. Nunca sofri tanto tempo as consequências de uma loucura...
PEDRO
Se bem me lembro, não é esta a primeira loucura de tal género...
LUÍS
Pois aí é que está a sandice... Eu já devia saber como sou. À primeira mulher
que subtrai às vigilâncias paternais era uma trigueirinha, chamada... chamada...
acho que era Angelina... Casei-a com um calafate, vinte dias depois. Sou um
homem honrado. Fiz da pequena urna esposa modelo, e uma mãe exemplar.
A segunda era uma rapariga bem educada e chamava-se... chamava-se... acho
que era Angelina...
PEDRO
Pois também era Angelina?!
LUÍS
Pois a primeira também era Angelina?!
PEDRO
Assim o disseste.
LUÍS
Disse?... Então não sei verdadeiramente o nome de nenhuma
Celestina?
PEDRO
Eu sei cá...! Perguntas-mo a mim?
... Seria ela.
LUÍS
Pois dou-te a minha palavra de cavalheiro, que não sei bem se a terceira é que
é Angelina.
PEDRO
Já é a terceira! E que é feito da segunda?
LUÍS
A Angelina?
PEDRO
Sim, seja lá quem for.
LUÍS
Essa... acho que casou, e está numa quinta criando patos, e galinhas do
Maranhão.
PEDRO
E a terceira?
LUÍS
A terceira é a Angelina”...
PEDRO
E a quarta é Angelina, e a quinta é Angelina...
LUÍS
Alto lá... quinta é demais: a quarta é esta rapariga que se chama Inês.
PEDRO
E quem é esta mulher?
LUÍS
Pois eu não to disse já?
PEDRO
Quando, se nos vimos, pela primeira vez, hoje em Lisboa, desde que, há dois
anos, te deixei no Porto?
LUÍS
Eu te digo... chega cá essa vela (acende o charuto com dificuldade). Esta Inês
é filha de uma beata, visita das minhas tias do Porto.
PEDRO
E que mais!
LUÍS
E tu que mais queres?
PEDRO
Como a seduziste?
LUÍS
A pergunta é tola! Pergunta a esta garrafa como é que ela eletriza as almas de
guta-percha, e faz de um tupinamba um otador parlamentar, se ele tem a
fortuna de ser elegível...
PEDRO
Prometeste casar?
LUÍS
Penso que sim... não minto... sou um homem honrado; mas, se prometi, não
faltei ainda. Tenho o infinito como prazo; e, como não invoquei o céu por
tabelião nem testemunha, a coisa passou-se entre nós...
PEDRO
Estás aborrecido, é o grande caso.
LUÍS, abrindo a boca
Muito aborrecido... Há dois meses... Dois meses, da maneira como agota se
vive, são a vida de um homem. As eternidades dos amantes não podem ir
além de três semanas.
PEDRO
E estudas o pretexto para te desfazeres da carga...
LUÍS
Parece-me que sim... Preciso ir à ilha de S. Miguel casar com uma parenta rica
e velha, e não me lembra maneira nenhuma decente de tirar passaporte só
para mim... Tu és homem de imaginação?
PEDRO
Sou uma desgraça a respeito de imaginação. Querias que eu inventasse a
maneira decente de te remires do pesadelo?
LUÍS
Dava-te um beijo... Olha lá! que vinhas tu aqui fazer a este hotel, quando hoje
te encontrei no pátio?
PEDRO
Vinha visitar um brasileiro, que me foi ontem apresentado no soirée do
visconde de Cascais.
LUÍS
Que hipopótamo é esse personagem?
PEDRO
E um consumado cavalheiro, homem de muita instrução, muito simpático, e
extremamente delicado.
LUÍS
Rico?
PEDRO
Fazem-lhe dois milhões de cruzados.
LUÍS
Não é má fatial!... Tem filhas?
PEDRO
Dizem que tem uma natural.
LUÍS
Em algum colégio?
PEDRO
Não sei: ele não fala nela. O visconde de Cascais deu-me a perceber que este
homem se retirara de Portugal por causa de um rapto, e supõe que mudou de
nome no Brasil.
Voz de fora
A chave do quarto nº 5.
PEDRO
E ele que pede a chave... Lá está parado, à espera, no corredor.
LUÍS
Diz-lhe que entre.
PEDRO, para Fernando Soares no corredor
Sr. Fernando Soares, enquanto não vem a chave, se V. Ex* quer entrar no
quarto deste meu amigo...
CENA HI
Os mesmos e FERNANDO SOARES
FERNANDO, tocando a mão com a de Pedro
Pois não, Sr. Nóbrega... como passou?
PEDRO
Otimamente. Tenho a honra de apresentar-lhe o meu amigo e patrício Luís de
Abreu.
FERNANDO
É do Porto este cavalheiro?
LUÍS
Sou do Porto... Tem a bondade (aproxima-lhe cadeira, que Fernando não
ocupa). Serve-se de um cálice de vinho? de genebra? um charuto?
FERNANDO
Muito grato.
LUÍS
E brasileiro, ou português?
FERNANDO
Nasci em Portugal, e estou naturalizado no Brasil. Há vinte anos que deixei
esta terra, e volto hoje a reconhecer os monumentos da minha infância.
LUÍS
Pois, senhor, querendo cartas de apresentação para o Porto, com muito
gosto...
FERNANDO
Muito reconhecido ao seu favor. Tenho relações comerciais com o Porto, e
estas são-me suficiente apresentação.
VOZ DE FORA
A chave do quarto nº 5.
FERNANDO, faz menção de retirar-se
Se me dá licença...
LUÍS, apertando-lhe a nulo
Meu cato senhor...
FERNANDO, o mesmo a Nóbrega
Sr. Pedro da Nóbrega... o meu quarto e o meu préstimo estão às suas ordens.
Os meus senhores, boa noite. (Sai).
CENA IV
PEDRO e LUÍS
LUÍS
O homem parece fino! Tem um metal de voz insinuante. O que faz o
dinheiro!... Ora, meu caro Nóbrega, vou tomar neve ao Suíço... queres vir?!
PEDRO
Vamos; mas vai primeiro ao quarto de D. Inês.
LUÍS
A quê?!
PEDRO
A pobre menina deve estar sofrendo horrivelmente... Diz-lhe duas palavras
que te não custam nada, e poupas-lhe muitas lágrimas...
LUÍS, rindo, e refletindo depois
Vá lá... vamos ser piegas... (Vai, e pára no umbral da porta).
PEDRO, aparte acendendo o charuto
Chama-se isto um homem do grande mundo...
LUIS, recuando, e voltando as costas para a câmara de Inês
Temos choradeira!... Boas noites... Vamos, Pedro...
D. INÉS, dentro com aflição
Vem cá, Luís... (Luís, primeiro indeciso, fica, dando a Pedro sinal de sair).
D. INÊS e Luís de Abreu
D. INÉS
Vem cá, Luís, por piedade!
LUÍS, afabilidade irónica
Não é preciso invocar a piedade. Aqui estou, Inês, dos melhores humores
para ouvir a vigésima quarta lamentação: mas, se não ordenas o contrário, sé
breve, que me está esperando no pátio o meu amigo. Vamos ao importante;
porque choras, menina?
D. INÉS
Se não sabes porque eu choro, Luís... como to hei de eu dizer?
LUÍS
Aí está um enigma, superior à minha inteligência! Que te falta, Inês?
D. INÉS
Falta-me o teu amor, falta-me o que me deste para eu poder esquecer-me de
que sou uma mulher... infame...
LUÍS
Infamel!... porquê?!
D. INÉS
Esta degradação...
LUÍS
Onde tocam jerarquias mais elevadas que a tua...
D. INÉS
Que resposta, meu Deus!
LUÍS
Não me lembro outra, e a mais acertada foi esta. Pois cuídas que se degrada a
mulher que ama?
D. INÉS
Degrada, sim, quando o homem que ela ama...
LUÍS, ressentimento contrafeito
Sou eu»... Isso morde um pouco o meu otgulho... Quer a menina dizer que os
homens como eu não enobrecem, aviltam a mulher que amam...
D. INÉS
Que amam!
LUÍS
Ou que amaram: entenda a frase como quiser.
D. INÊS, suplicante
Que maneira tão cruel de desenganar!... O Luís, que te fiz eu? Porque me
aborreces assim?
LUÍS
Pois eu posso entender-te? Tens um génio esquisito e eu não sei amansar
caprichos, ou não estou para isso.
D. INÉS
Caprichos!... quais, Luís? Será capricho perguntar-te a causa do fastio em que
passas comigo duas horas por dia? Será capricho, oh meu Deus! chorar
porque não posso sofrer, sem magoat-me, sem morrer, o prémio que me dás,
ao cabo de dois meses... de dois meses!... Poucos dias depois que deixei minha
mãe, já em ti não havia uma só palavra, um só carinho do homem que me fez
esquecer mãe, honra, futuro, e Deus! Que alma tu tens, Luís!... Nem a
misericórdia depois do amor! Oh! isto é muito!... eu não quero assim morrer
vagarosamente... sozinha, naquele quarto, com a minha vergonha e os
remorsos...
LUÍS
Que queres tu, Inês? Habitua-te ao meu génio, e verás que és feliz, como
muitas outras, nas tuas circunstâncias, desejariam sê-lo. Desejas sair?
Sairemos, e, quando os meus negócios me privarem de te acompanhar, sairás
com o criado. Liberdade recíproca, sem ultrapassar os limites do honesto, é a
minha máxima neste género de convenção que liga duas pessoas, de modo
que as cadeias não sejam pesadas. Se queres os carinhos de outro tempo, dir-
te-ci que não sou hipócrita, nem quero que me agradeças meiguices
impostoras. O meu génio é este. Sou uma organização defeituosa, ou perfeita
demais; como quiserem. O grande caso é que me não contrario, nem me
reformo, porque não sei onde se refundem os homens que saíram defeituosos
das mãos da natureza...
D. INÉS
Eras muito verdadeiro quando, há dois meses, me prometias uma eterna
felicidade ao teu lado, como amante, e mais tarde como esposa?
LUÍS
Mas, minha amiga, ainda estamos dentro dessa eternidade que te marquei. Por
ota, não faltei à minha palavra.
D. INÉS
Que zombaria!
LUÍS
Valha-nos Deus... não nos compreendemos...
D. INÉS
Eu compreendo, Luís... Abandonada, não é assim?
LUÍS
Por minha vontade, não. Amo-te...
D. INÉS
Amas-me?
LUÍS
Como te amei sempre; e oxalá que eu pudesse inspirar-te inteira confiança
neste amor, pata...
D. INÉS
Diz, diz...
LUÍS
Para que tu voluntariamente anuísses a um plano de que podemos tirar
resultados... pata...
D. INÉS
Para quê?
LUÍS
Para se realizarem muito depressa os meus desejos e os teus.
D. INÉS
Que é?
LUÍS
Eu preciso reconciliar-me com a minha família, indisposta hoje comigo pela
tua causa... Sem reconciliar-me não posso alcançar uma posição social que nos
dê uma subsistência magnífica e deslumbrante como eu quero dat-ta, minha
Inês. E, para pacificar a guerra que a minha família me faz, é necessário
convencê-los astuciosamente de que não caso contigo. Ota, para que eles se
convençam, convém que tornes à companhia...
D. INÊS, arrebatada
De minha mãe? nunca! antes morrer... cala-te, por quem és... Vai, deixa-me
que eu preciso desabafar esta aflição nas lágrimas... Es um homem feroz,
Luís!...
LUÍS, tomando o chapéu
E tu és uma pomba de mansidão, Inês... Até mais ver... (Sai).
CENA V
D. INÊS, e depois D. MARIA
D. INÊS, seguindo Luís
Escuta... escuta, Luís! (Segue-o até à porta, e volta soluçando). Como vós me
castigais, meu Deus! Eu não acreditava que o inferno é neste mundo... É, é...
Isto é que é ser punidal!... Desprezada... abandonada!... Havia isto no mundo, e
eu não tive quem mo dissesse... Perdida... A paixão e a inocência podem assim
fazer desgraçada uma mulher.... Desprezada por este homem... é incrível... Oh
minha querida mãe, se me perdoasses... (Ergue silenciosamente as mãos aos
céus, e exclama depois com energia súbita). É uma inspiração, não é, meu
Deus? Eu obedeço... (Aproxima-se da escrivaninha com resolução). Escrever
a uma mãe quando se tem perdido tudo... Há corações que nunca
ensurdecem. (Pega na pena).
D. MARIA, com um jornal
Dá licença, minha senhora?
D. INÊS, enxugando as lágrimas
Tem a bondade de entrar?
D. MARIA
O seu marido já saiu?
D. INÊS, perturbada
Luís?... saiu.
D. MARIA
Vinha fazer-lhe uma pergunta; mas pode ser que V. Ex? saiba responder-me.
É do Porto, não é?
D. INÉS
Sou sim, minha senhora.
D. MARIA
Casualmente vejo neste jornal uma notícia copiada de um jornal do Porto. É
um caso bem triste! Eu Leio, e V. Ex* poderá talvez esclarecer-me o que há de
escuto na notícia. (16) “Haverá dois meses que um sujeito de boa família, mas
de depravados costumes, natural do Porto, roubou a uma extremosa mãe a
sua filha única, o seu amparo, toda a sua riqueza neste mundo onde o quinhão
da amargura lhe tem sido abundante. Praticado o rapto, sem poder encontrar-
se o infame nem a sua quarta ou quinta vítima, a infeliz mãe desapareceu.
(Viva comoção em Inês). Pessoas afeiçoadas aquela digna senhora,
diligenciaram encontrá-la mas inutilmente. Alguém disse que a viu passar aos
Carvalhos, estrada de Lisboa; não há provas, porém, bastantes. E suposto que
até hoje não tenham aparecido vestígios, é de crer que a desgraçada mãe se
tenha suicidado...”?
D. INÊS, cuja comoção tem crescido desapercebida a D. Maria
Ahl... Jesus.... Jesus.... (Fica em letargo por momentos; convulsiva depois, é
transportada por D. Maria a um canapé).
D. MARIA
O que fiz eu, meu Deus! (Toca uma campainha). Fu estou doida com
semelhante acontecimento! (Toca de novo a campainha). Menina, não ouve?
(para o criado que chega). Vem aqui ajudar-me a suster esta senhora... Sra. D.
Inês... Que gelo! (apalpando-lhe as mãos).
CENA VI
Os mesmos, um CRIADO, e FERNANDO SOARES, no corredor
D. MARIA
Sr. Soares, faz favor de entrar?
FERNANDO
Que é? Está sem sentidos esta senhora? Que aspeto tão aflito!
D. MARIA
É uma desgraça...
FERNANDO
Isto é habitual ou foi algum desgosto?
D. MARIA
Uma surpresa, uma imprudência minha...
FERNANDO, tenteando-lhe o pulso
Penso que vai passar esta situação... Dar-se-ia um reflexo de sangue ao
coração? Veja a velocidade das pulsações no seio...
D. MARIA
Parece que salta...
FERNANDO
O pior é uma congestão... espere... as pálpebras estremecem...
D. MARIA
Eu preciso dizer tudo como se passou... Não posso com a responsabilidade da
minha imprudência... mas eu não podia prever semelhante coisa...
FERNANDO
Fale, Sra. D. Maria...
D. MARIA
Queira ler a notícia desse jornal que está no chão.
FERNANDO, lendo e depois de uma abstração profunda
E esta a pessoa de quem aqui se faia?
D. MARIA
Sim, senhor.
FERNANDO
O que a roubou é um homem que me foi apresentado há pouco, chamado...
D. MARIA
LUÍS de Abreu.
D. INÉS, convulsiva
Que é?
D. MARIA
Menina... olhe... não me vê?... Isto não pode assim demotar-se... um médico...
já... (o criado saí). Que hei de eu fazer, senhor!?
FERNANDO
Que hei de eu aconselhar-lhe? E uma enfermidade que não obedece à
farmácia improvisada das consolações... Seria uma felicidade se chorasse: não
conheço outro desafogo para estas angústias... (reparando para o jornal).
Como se chama essa senhora?
D. MARIA
Inês.
FERNANDO, em sobressalto reprimido
Como? Inês!?
D. MARIA
É o nome que ela deu... Conhece-a?!
FERNANDO, com atribulada reconcentração
Um favor importante, minha senhora. Queira deixar-me só com ela... É
necessária muita energia de homem para romper a escuridade que neste
momento cerra o coração desta pobre senhora. Eu sinto-me com vontade e
força para fazer-lhe compreender que me interesso por ela... V. Ex* fia de
mim esta senhora por alguns minutos...
D. MARIA
Eu... senhor... receio que esse homem entre...
FERNANDO
Não receie. Tomo sobre mim toda a responsabilidade do melindre...
Conceitue-me como um homem de muita honra, Sra. D. Maria... (Inês ergue-
se). Tem a condescendência de sair? (D. Maria sai. Fernando fecha a porta
com a chave).
CENA VII
FERNANDO e D. INÉS
FERNANDO, aparte
Horrível experiência! (Para Inês). Queira sentar-se, minha senhora.
D. INÉS
Quem é o senhor?
FERNANDO
Um homem que, desde este momento, não pode ser-lhe indiferente. Eu
também vi a notícia deste jornal, e V. Exº ouviu ler, sem reparar que se não dá
nem ao menos como provável o suicídio da sua mãe.
D. INÊS, reanimada
Não?
FERNANDO
Decerto não: diz-se apenas que a sua mãe desapareceu. Pode ter desaparecido,
procurando-a; pode a estas horas estar bem perto da filha que lhe foge; pode
ter procurado esconder na obscuridade a sua vergonha. Tenho que fazer-lhe
um serviço. Vou eu mesmo indagar o destino da sua mãe; empregarei para
encontrá-la quantos esforços empregaria um filho. Em menos de oito dias, V.
Ex* pode ter a certeza de que a sua mãe vive...
D. INÊS, com efusão
Bem haja, bem haja, meu benfeitor, mas depressa, antes que eu morra...
FERNANDO
Preciso, porém esclarecimentos. Já sei que é do Porto: onde é que motava no
Porto?
D. INÉS
Na tua do Rosário.
FERNANDO, agitado
Desde quando?
D. INÉS
Desde que nasci.
FERNANDO, sufocado
Como se chama sua mãe?
D. INÉS
Miquelina de Campos.
FERNANDO, deixando cair o jornal, e enxugando o suor na cara Miquelina...
(silêncio).
D. INÉS
Basta saber isto?
FERNANDO
Basta, basta saber isto... Quantos anos tem?
D. INÉS
Vinte e dois.
FERNANDO
Vinte e dois... (aparte) E se a demência me surpreendel... Isto é morrer!...
(Ergue-se a beber água de um copo de sobre a mesa de jantar).
D. INÉS
E possível saber-se, senhor?
FERNANDO, aparte
A última punhalada... (alto) Quem foi seu pai... este jornal não fala dele...
D. INÉS
Não conheci meu pai!
FERNANDO
Morreu?
D. INÉS
E um segredo da minha mãe... ainda que eu o soubesse não o descobriria.
FERNANDO, com ira reprimida
Para não desonrá-la? E a sua desonta não lhe importa que seja pública?
D. INÊS, suspensa
Que diz, senhor?!
FERNANDO, mudando de tom
Nada... E este homem prometeu-lhe ser seu marido?
D. INÉS
Não respondo a semelhantes perguntas feitas por um estranho... não sou
obrigada.
FERNANDO
É
FERNANDO
Desculpe-me, minha senhora... A compaixão que me está inspirando faz-me
sair dos limites de um mero estranho que lhe quer ser útil... Desculpe-me até
por estes cabelos brancos... V. Ex” ama este homem?
D. INÉS
Amol!... pois não tenho eu dado uma prova bem segura de que o amo?!
FERNANDO
E amada?
D. INÉS
Que perguntas, meu Deus... Martiriza-me, senhor... Eu não quero as suas
consolações.
FERNANDO, colérico
É amada por ele?
D. INÉS
O senhor aterra-mel...
FERNANDO
Ainda não sentiu bem dentro o horror da sua situação. Inês é uma mulher
perdida!
D. INÉS
Senhor...
FERNANDO
Está a cair desamparada na extrema miséria...
D. INÉS
Oh! cale-se, por quem é!
FERNANDO
Matou sua mãe, e vai cada dia salpicar-lhe de lama a sepultura. Essa máscara
de falsa vergonha que ainda hoje sustenta há de cair-lhe amanhã, e depois,
Inês, hão de apontá-la ao dedo... é a devassa... a matricida, que vai passando...
D. INÉS
É horrível, meu Deus, é horrível!... O senhor... pelas chagas de Cristol...
(ajoelha). Batem com estrondo na porta.
LUÍS, fora
Abre, Inês!
D. INÉS, erguendo-se
É ele...
FERNANDO, retendo-a
Ele... quem? (sorrindo).
D. INÉS
Deixe-me, que é Luís... (A porta é arrombada por um em puxão).
CENA VHI
Os mesmos e LUÍS DE ABREU
LUÍS, serenamente, fumando
Quadro interessantíssimo!... Não se assustem por quem são... Eu vi
Desdémona ajoelhada aos pés do mouro; mas troco por um cálice de vinho a
situação de Otelo.
(Bebe).
D. INÉS
Luís... que julgas tu?... Diz-mo por misericórdia...
LUÍS
Eu não julgo nada que não seja deste patusco planeta, chamado terra. Esteja a
san aise Sr.... Sr.... Sr.... já me esqueceu a sua graça... Sr. brasileiro. Eu sou o
homem mais cordato, a alma mais ingénua que vive na crusta do globo. Não
há maroteira que me espante... Nada de susto.
FERNANDO, sorrindo
Eu não estou assustado, senhor.
LUÍS
Ainda bem... Recolha-se ao seu quarto, menina, ou antes ao seu camarim;
nobre senhora Maria de Rohan de contrabando... Então? Hesita? Eu já não
mando aqui?
D. INÉS
Oh Luís... é bárbaro matar assim uma mulher que te pede de joelhos que a
escutes... Estou inocente.
LUÍS
Eu abomino a caricatura... Recolha-se que eu tenho de falar com este
cavalheiro...
D. INÉS
Não, não me erguerei dos teus pés, sem que...
FERNANDO, imperioso
Levante-se, mulher! (Ela ergue-se e retira-se)
LUÍS
Isso é que é intimativa, cavalheiro... E o caso é que ela obedeceul!... O negócio
está mais adiantado do que eu supunha... Ora... sente-se aqui, meu caro
patrício. O senhor, pelo que vejo, crê que a propriedade é um roubo...
Comunismo! viva o comunismo! eu também sou da escola ilustrada... Parece-
me que V. S* está tranquilo...
FERNANDO
O mais que se pode estar... não obstante recomendo à sua bondade a
economia possível de palavras.
LUÍS
Eu também gosto do laconismo. O senhor deve saber que esta mulher não é
minha mulher, nem é crivei que venha a sê-lo. Se 6 fosse, ou tivesse de o ser,
V. S* a estas horas tinha passado à eternidade, com a sua reputação de
milionário, e três balas na cabeça.
FERNANDO, rindo
O senhor é interessantemente cómico... Três balas!...
LUÍS
Ri-se? Pois valeul... levemos isto a rir. A grande questão é: gosta da rapariga?
FERNANDO
Quer trespassar-ma?
LUÍS
De mão beijada e dízima a Deus. Está incomodado?
(Fernando ergue-se convulsivamente).
FERNANDO
São nervos... e uma moléstia que me ataca na Europa... Eu aceito o trespasse.
LUÍS
Fala seriamente?
FERNANDO
Muito seriamente... Por quanto vende o senhor a mulher?
LUÍS
Por quanto vendo? Eu não vendo...
FERNANDO
Então eu não aceito.
LUÍS
Ah! já entendo... O senhor não quer perder os hábitos do Brasil...
FERNANDO
Tenho escrúpulos em tal contrato se ele não for bilateral. V. S* há de aceitar-
me uma indemnização qualquer...
LUÍS
O senhor é um grande esquisito.
FERNANDO
Eu saberei indemnizá-lo do modo mais delicado; mas V. Sº não há de recusar
uma gratificação pela cedência que me faz. O segredo morre entre nós três; e a
minha consciência, que realmente é célebre, fica tranquila. Quer?
LUÍS
Entrego-me à discrição.
FERNANDO
Que tenciona o senhor fazer para deixar-me livre o terreno?
LUÍS
Amanhã deixo Lisboa.
FERNANDO
É ela fica neste hotel?...
LUÍS
Bem claro... deixo-lhe carta de alforria...
FERNANDO, sorrindo
De alforria, justamente... é essa a palavra jurídica... e depois...
LUÍS
Como V. S* se entende perfeitamente com ela, cá fica... (Tropel, e vozes).
CENA IX
Os mesmos, D. MIQUELINA, D. MARIA, e depois D. INÊS
D. MARIA
Menina, menina, aqui está sua mãe!
D. MIQUELINA, espavorida, erguendo o véu preto
Minha filha, minha filha! (Terrível comoção em Fernando, que volta a face da
luz) Onde está ela? (Vendo Luís) Senhor Abreu, onde está minha filha?
D. INÊS, delirante
Aqui, aqui estou, minha mãe (abraçam-se).
FERNANDO, aparte a Luís
E melhor sairmos.
LUÍS
Diz bem.
FERNANDO
Para o meu quarto. (Saem).
CENA X
D. INÊS, D. MIQUELINA e D. MARIA
D. MIQUELINA
Eu não venho amaldiçoar-te, filha...
D. INÉS
Não venha, não venha, minha mãe... A maldição... a sua maldição sobre tal
desgraçada não agradaria a Deus... Poupe-me a essa tortura... que eu conheço
todas as outras... Tenho o coração despedaçado... Abençoe-me, já que
ressuscitou para mim... abençoe-me, que eu estou nas agonias da morte...
D. MIQUELINA
Não estás, meu anjo... quero que vivas... Deus não quer a tua morte e a
minha... A tua mãe precisa de ti... Havemos de acostumar-nos à vergonha, se
não há nada que salve dela... Viveremos, viveremos sem escandalizar ninguém
com a nossa presença... (D. Maria retira-se).
D. INÉS
Mãe, não posso...
D. MIQUELINA
Inês... eu não te tirei nada do amor que te tinha... Ninguém sabe ser
desgraçada, e ser mãe como eu sou... Inês, vive para meu amparo...
D. INÉS
Ail é impossível!... Eu, quando fugi dos seus braços, já sabia que não podia
tornar a eles senão cadáver. Abrace o cadáver da sua filha, minha mãe...
D. MIQUELINA
Não posso nada sobre o teu coração infeliz?
D. INÉS
Pode muito... Porque não veio uma horta antes?... Se morrer assim, morro
,
perdoando... Pode morrer-se santa com o crime escrito na face... O mundo
não sabe o que se tem passado na minha alma... Eu tenho chorado por mim e
por todas as infelizes nas minhas circunstâncias... Não há ultraje que eu não
tenha conhecido... Fez ontem dois meses que a deixei, mãe, minha santa
mãe... Que dois meses!... Sentir ao pé de mim arrefecer minuto a minuto o
coração do homem que amei, que amo, sem poder ver-lhe os defeitos... Ele a
ferir-me com toda a sorte de desprezos, e eu... a cicatrizar com lágrimas,
choradas no cotação, na alma, no amor próprio... Invocar a compaixão surda
do céu, e as esperanças a morrerem!
D. MIQUELINA
Chora, chora, minha filha.
D. INÉS
Um dia era terrível, mas o dia seguinte era pior... Ontem longas horas de
silêncio, hoje uma ironia, amanhã, um escárnio... Um encadeamento de
crueldades novas para mim... Eu não pensei que se tinha alma para tanto... Se
choro, consolam-me com uma zombaria; se mostro um sorriso de paciência,
chamam-me alma de lama... Aqui tem a minha vida com este homem... há
dois meses...
D. MIQUELINA
Alma, minha querida mártir... abandona-te a mim... Eu já chorei assim,
contigo nos braços, criancinha de um ano... Mataram-me há vinte anos, e um
milagre conservou-me de pé, ao teu lado, porque eu não podia fechar sobre
mim uma sepultura, e deixar-te sozinha na terra... Paga-me esta dívida... não
me deixes no fim da vida, porque eu te amparei no princípio da tua... vence a
paixão e a vergonha com a tua mãe no coração.
D. INÉS
Não posso, não posso... é um segredo... há de ouvir-mo logo... e depois um
confessor...
D. MIQUELINA
Oh minha filha... tu aterras-me com o maior dos crimes... Envenenaste-te?
respondel...
CENA XI
As mesmas e Fernando Soares, embuçado.
FERNANDO, parando ao pé do grupo
Eis aqui uma mãe digna de tal filha.
D. MIQUELINA, aterrada
Que voz é esta?
FERNANDO
Quer muito a essa filha?
D. MIQUELINA
Se lhe quero!...
FERNANDO
Perdoou-lhe?
D. MIQUELINA
Virgem santíssimal!... isto é um delírio!...
FERNANDO
Perdoou-lhe?
D. MIQUELINA
Perdoei...
FERNANDO
Não sente na presença dela a vergonha escaldar-lhe o rosto?
D. INÉS
Que homem é este, minha mãe?!
FERNANDO
Está justificada a desonra da filha... vê-se que a desgraçada teve toda a
liberdade para ser o que é...
D. MIQUELINA
Que posso eu fazer?
FERNANDO
Se não tem um braço capaz de cravar um punhal no algoz da sua filha,
entregue-o ao cafrasco...
D. MIQUELINA
Mas ela ama-o!
D. INÉS
Sim... sim...
D. MIQUELINA
E eu queria que ele fosse seu marido...
FERNANDO, rindo
O seu marido! Não quero!...
D. MIQUELINA
Agora, sim, compreendi tudo... (com o rosto escondido entre as mãos).
D. INÉS
Que é, minha mãe... diga, diga...
D. MIQUELINA, apontando, sem encará-lo
Este homem... este homem é...
FERNANDO, interpondo-se com a face somente visível a D. Miquelina
Quem pode ser este homem, senhora? (Miquelina solta um grito, e Fernando,
pondo o dedo nos lábios, obriga-a a calar-se).
D. MIQUELINA
Justiça de Deus!... (Vai cair perturbada sobre uma cadeira. D. Inês quer
socorrer a mãe. Fernando coloca-se entre ambas, e aponta-lhe imperiosamente
o quarto. Inês vai como arrastada por uma força invencível).
FIM DO PRIMEIRO ACTO
ACTO II
O mesmo cenário do primeiro acto, exceto o aparato do jantar. E noite: a
cena está apenas alumiada por uma veia.
CENA I
D. MARIA e o Médico
D. MARIA, apontando o quarto de Inês
É este o quarto, Sr. doutor.
MÉDICO
À que horas supõe a senhora que ela se envenenou?
D. MARIA
Hoje às nove horas, pouco mais ou menos. Tem tido agonias, suores frios,
mas não quer deitar-se; conserva-se a pé, e parece que tem intervalos de
descanso. (Vê-se no corredor Fernando Soares).
MÉDICO, observando o relógio
E meia noite... Aparece algum vidro ou boceta suspeita de veneno?
D. MARIA, tomando-a sobre a mesa
Esta bocetinha, com um resto de pó...
MÉDICO, examinando
Tornou arsénico, mas a dose foi' pequena... Vamos. (Entra com D. Maria).
CENA IH
FERNANDO SOARES
Escuta à porta da câmara de Inês e vai sentar-se no mais sombrio da sala
FERNANDO
É esta a minha coroa de glória depois de vinte anos de luta!... Não cuidei que
tinha alma para estes espinhos... Deceção tristíssima para um homem que vem
à pátria, envelhecido no trabalho, tragando além todas as afrontas, abafando
até os brados da consciência... matando todos os sentimentos bons do
coração, pata salvar um só... a esperança de uma filha... uma amiga no fim da
vida... um prémio a tribulações de vinte anos... Encontro a ignomínia, e a
ignomínia que se não reabilita com dois milhões. A impotência do dinheiro!...
Travei um duelo com os reveses... cuidei que o ouro era uma atma
invencível... quebrou-ma nas mãos a desgraça... Que terrível combate de
pensamentos nesta cabeça!... Não se endoudece de aflição e vergonha!... Ainda
não tive uma verdadeira resolução de matar este homem... E que homem!...
como ele dorme tranquilamente sobre o meu leito!... Há espantosas
organizações! (Sorri.) Que importa? Nada o salvará... Alguma vez hei de
triunfar desta zombaria infernal que me escarnece.
CENA HI
D. MIQUELINA, vindo de fora, com um criado do hotel, e depois Maria
D. MIQUELINA, para o criado
Muito agradecida... (o criado sai).
D. MARIA, saindo do quarto de Inês
Já de volta, minha senhora? Que se passou?
D. MIQUELINA
Com a carta do Sr. Fernando Soares fui logo recebida pelo governador civil.
Tratou-me muito bem... Deu ordens imediatamente. Eu queria agradecer ao
cavalheiro, seu hóspede, este serviço.
D. MARIA
Ele aparecerá. O médico está lá dentro... vou mandar já, já à botica... entre,
entre...
(Sai)
CENA IV
D. MIQUELINA e FERNANDO SOARES
D. Miquelina encosta-se a um tremó, coma reanimando-se antes de entrar
D. MIQUELINA, sem ver Fernando
Tornarei eu a vê-lo, meu Deus?! Seria ele!...
FERNANDO, meia voz
Senhora D Miquelina.
D. MIQUELINA, espavorida
Quêl...
FERNANDO
É deste lado que a chamam... A hora é a dos fantasmas; mas tudo aqui é
natural como a desgraça, e sensível como a dor das chagas que fecham.
D. MIQUELINA, indo na direção da voz
Carlos!...
FERNANDO, erguendo-se
Carlos, não. Esse homem está morto no coração deste outro que aqui vê... (ela
ajoelha.) Que é isso? Nem na mulher que se amou pode tolerar-se uma
posição humilhada... De pé, com a cata bem altiva, e o coração bem soberbo
daquele nobre orgulho de pai.
D. MIQUELINA, sem erguer-se
Eu tenho direito à tua comiseração, Carlos... Eu não me engano... é impossível
que não sejas... Tu não vens matar-me, não»...
FERNANDO, levantando-a
Matá-la! Quem lhe disse, senhora, que eu venho, sequer, infligir-lhe um
castigo que as suas lágrimas pretendem suavizar? Eu não a acuso... nem issol...
Peço-lhe só conta da minha filha... É aquela mulher desonrada que ali está
dentro?
D. MIQUELINA
Não poderei eu morrer neste momento, meu Deus?!
FERNANDO
Não pode, porque todos temos um destino a cumprir... A Providência não
derroga as suas leis. Falta-lhe alguma causa neste mundo, senhora... Pois eu
porque vivo ainda? Toquei a margem de todos os abismos, e fiquei em pé.
Não era bem natural que eu tivesse caído? O meu abismo era aqui... Um
homem foi, o outro é hoje... O homem das alegrias, das esperanças passou; e
o simulacro de homem, com cada fibra apertada numa tortura, ficou... É certo
que o mau anjo venceu o bom; sinto o desconforto do céu; mas para alguma
coisa o demónio me conserva. Só assim se explica a minha existência aos
quarenta anos... Não se vencem, sem predestinação, as angústias que eu pisei
debaixo do pé triunfante. Trabalhei vinte e dois anos para chegar a isto... (com
ironia). Abençoado trabalho... Ora pois... é esta Inês uma criancinha que eu
lhe deixei nos braços há vinte anos? Diga, diga, que eu estou sentindo em mim
o homem do passado...
D. MIQUELINA, soluçando
FERNANDO
Nunca lhe falou no seu pai?
D. MIQUELINA
Não... julgava-te morto...
FERNANDO
Julgou bem... Pudera ter-lhe dito: “O teu pai, filha, foi uma boa alma que eu
amei muito. Eu era filha de um fidalgo, muito fidalgo, muito pobre, e muito
desontado para manter o emprestado luxo da sua posição. Ele era um simples
escriturário de um cartório; mas sem uma nódoa que refletisse desonra na
memória dos seus avôs plebeus. Disse-lhe que me tirasse de casa, quando a
tua existência, filha, vinha dar testemunho de um grande crime... Eu saí sem
uma joia que valesse dez réis. O amanuense trabalhava dia e noite para
alimentar-me. Adorava-me, obedeceu-me. O meu pai descobriu o raptor, que
pôde salvar-se. A ele perseguiu-o em toda a parte, e a mim fechou-me num
quarto sem luz nem at. O teu pai, fugitivo, teve sede, e frio, e fome: mas as
esperanças aqueciam-no, e alimentavam-no, O desgraçado parece que tinha
orgulho de sofrer por mim. Nunca teve um instante de arrependimento! O
meu pai empregou a branda persuasão para dissuadir-me de tão monstruoso
amor. Disse-me que era menos ignominioso ficar solteira e mãe que ser casada
com um amanuense de tabelião. Os fidalgos meus parentes rodearam-me, e...
convenceram-me. Acreditei-os... julguei-me infamada, vacilei, arrependi-me, e
reneguei uma paixão indiscreta. Quiseram que eu te lançasse dos meus braços,
filha do plebeu, vergonha dos meus avós; mas não pude tanto. Fui eu, se não
expulsa, encerrada num a obscura casa, recebendo alimentos que o meu
fidalgo pai me arremessava com desprezo... O teu pai era ainda perseguido...
Uma noite vi-o ao pé de mim... foi a primeira e última vez que te viu... tinha-te
nos meus braços, criancinha de três meses... “Foge comigo - disse-me ele... -;
dirás a bordo do navio que és mulher do marujo Fernando...” “Não fujo... -
respondi-lhe eu - meu paí amaldiçoa-me, e eu temo as penas do inferno.” O
teu pai saiu... e depois... Fez bem não contar isto a sua filha... Não há mãe que
se enobreça com semelhante história. Há fragilidades que honram uma
mulher, mas não são estas... O conto assim não é edificante nem pela virtude,
nem pelo heroísmo da paixão... D. Miquelina temeu então as penas do
inferno... hipocrisia... penas do inferno são estas, não lhe parece?
D. MIQUELINA
São... são... O Carlos, porque me não perdoas?
FERNANDO
Pois eu condeno-a?!
D. MIQUELINA
Ajuda-me a salvar a nossa filha!...
FERNANDO
Como é que se salvam estas mulheres”... Não devo ouvi-la mais, senhora...
ouço. passes... Absoluto silêncio ao meu respeito... Entre no quarto da sua
filha... Vá vê-la morrer... (D. Miquelina entra no quarto de Inês).
CENA V
FERNANDO, e depois um CRIADO
FERNANDO
Como esta mulher foi bela!... Passaram só vinte anos... O que terá ido naquele
coração pata que a face envelhecesse assim!... Vinte anos!... Chotra-se, quando
se vê assim a mulher que se viu vaidosa da sua formosura, cercada de tudo
que adoça a existência, e não deixa assaltá-la o pensamento da velhice
desgraçada... Esta é que é uma Miquelina que eu ameil... A vidal... A vidal!...
CRIADO
O Sr. Luís de Abreu disse-me agora que fizesse sair as malas dele, sem que se
desse fé; minha ama não quer que eu faça nada sem dar parte a V. S* e como o
vi entrar para aqui...
FERNANDO
Vai dizer ao Sr. Luís de Abreu que entre nesta sala que eu estou aqui. (O
criado Sai). Aproxima-se um terrível momento!... Que deliciosa existência
esta!... Quem invejará os milhões deste homem!...
CENA VI
FERNANDO, e D. MARIA
D. MARIA
Pois estava aqui? Sabe as ordens do malvado?
FERNANDO
Sei.
D. MARIA
D. MIQUELINA falou com o governador civil...
FERNANDO
Sei tudo.
D. MARIA
Entrou no quarto da menina”... Sabe como ela está?
FERNANDO
Não sei... (D. Maria entra, levando um vidro de remédio, ao quarto de Inês).
CENA VII
FERNANDO SOARES e LUÍS DE ABREU
FERNANDO, anda só
Quem poderá compreender estas agonias? Muito forte é o homem, até
desamparado da providência!...
LUÍS, fumando e espreguiçando-se
Estas trevas são românticas... Parece que desci à região das sombras... Sabe o
senhor que acordei com um péssimo sabor na boca! Sinto uma desagradável
preocupação no estômago...
FERNANDO, sorrindo
E admirável a fortaleza do seu espírito! Converte as tragédias em farsas
admiravelmente!
LUÍS
Pois a vida sem isto pode lá sofrer-se!... Que me diz o senhor de novo? A mãe
de Inês adormeceu, ou tem- feito bravuras? Naturalmente está lá dentro com
a dona da casa... Sabe que mais? Palpita-me que não vai por diante a nossa
convenção...
FERNANDO
Porquê?
LUÍS
À pequena cá pelos meus cálculos, vai para o Porto com a mãe, e o meu
amigo segue-a, e espreita ocasião propícia para a tomar de assalto... E acho
que faz bem...
FERNANDO, risonho
Linguagem técnica com que V. Sº* trata estas matérias! Afigura-se-me um
homem prodigioso o Sr. Abreu! A minha vontade era estudar-lhe o interior da
cabeça.
LUÍS
Achava uma cabeça perfeitamente organizada, segundo correm os tempos.
FERNANDO
E o coração?
LUÍS
O coração é um músculo oco, dizem os anatómicos.
FERNANDO, solene
Oco não... o seu está cheio... é o repositório de todas as fezes, a máquina onde
se trabalham primores de arte de perversidade, de infâmia, de... (mudança de
tom). Desculpe o vocábulo que é forte, meu respeitável senhor... (toca-lhe no
ombro).
LUÍS, rindo
Palavra de honra... pensei que o Sr. ia formalizar-se!... Teria muita graça a. À
sua austeridade, à última hota!...
FERNANDO
À última hora... diz muito bem... Queira dizer-me, Sr. Abreu: esta aventura
decerto não é a primeira que desfruta?... Antes desta rapariga, algumas outras
devem ter deixado um rasto de lágrimas para a. última que se segue...
LUÍS
V. Sº está sentimental!
FERNANDO
Não, senhor: é que falo sempre assim em linguagem de romance.
LUÍS
À Paulo de Kock?... Isso é da tragédia em cinco actos... linguagem de centro...
FERNANDO
Ora responda sério, cavalheiro: têm sido muitas as conquistas?
LUÍS, com fatuidade
Algumas... Tenho matizado a vida o melhor que pude; mas hoje sinto-me um
pouco abatido, e voto de preferência por as delícias do estômago... Fiz o que
poucos fazem.
FERNANDO
E não tem encontrado nunca um florete, uma bala, um punhal...
LUÍS
Nem receio disso. A sociedade está suficientemente corrompida para me não
chamar a contas de moralidade. A virtude é contrabando entre nós. Se nos
agarram com ela, perde o tempo, e os lucros. À corrupção mata a energia dos
brios, e recebe todas as imoralidades como factos consumados. Quem puder,
goze... “Os mortos vão depressa”, diz a balada; mas os vivos não vão muito
devagar. Eu penso assim, e tenho cá as minhas razões... Je suis I'enfant de
mon siécle... Os franceses é que sabem viver... Aqui é necessário educar esta
sociedade...
FERNANDO
Sim!? não cuíidei que vivíamos no gozo de uma liberdade tão plena de
ensinar... Por isso V. S* estranhou, sorrindo, a minha austeridade à última
hora... Quem cá vier ensinar a doutrina. da honra, deve de ser bem ridículo!...
Mas... quem sabe se o Sr. Abreu vive enganado com a sociedadel!... Pode ser
que V. Sº tenha tido a ventura de encontrar as exceções... É impossível que a
regra seja o que o senhor julga... Eu sou um frágil membro desta sociedade,
tenho sentido o contacto de todas as pústulas, e não me sinto tão gangrenado!
Posso até afiançar-lhe que, na posição desgraçada do pai dessa mulher que aí
está dentro em agonias... V. S* a estas horas - deixe-me parodiar a sua frase de
há pouco - tinha passado à eternidade, com a sua reputação asquerosa, e pelo
menos uma bala na cabeça...
LUÍS
Essas excelente teorias variam muito na prática. É o inconveniente de todos
os sistemas filosóficos. Um homem não se mata como quem mata um javali: é
uma coisa muito séria matar um homem acordado... Mas, deixemo-nos de
hipóteses fúnebres, meu estimável cavalheiro. Não estabeleçamos dialética de
moral, visto que não há auditório. Eu entendo que o mais lógico na minha
situação é retirar-me. Receio algum passageiro incómodo que possa dar-me a
justiça, movida pela mãe de Inês.
FERNANDO
Quer retirar-se já?
LUÍS
À cautela... Uma boa retirada vale uma feliz batalha... É cá um dos aforismos
da minha estratégia... Cada espécie tem o seu Napoleão.
FERNANDO
Então vamos saldar contas.
LUÍS
Contas?! Eu não lhe devo nada...
FERNANDO
Eu é que sou o devedor, o devedor honrado, meu amável senhor. Pois não
ficámos em V. S* aceitar-me uma gratificação pela cedência?
LUÍS
Deixemo-nos de celebreiras, meu amigo... (Vai retirar-se: Fernando retém-no).
FERNANDO, toca uma campainha
Queira esperar.
LUÍS, aparte
Que quer dizer isto? Teremos asneira”...
CENA VHI
Os mesmos e D. MARIA
FERNANDO, a D. Maria
A senhora D. Inês que entre nesta sala.
D. MARIA
Está-se esperando o efeito do remédio... Está sofrendo muito... é impossível
vir pelo seu pé.
FERNANDO
Que entre nesta sala, e só. (D. Maria entra no quarto).
LUÍS
Que quer o senhor fazer? À que vem Inês aqui? O senhor não responde?! Eu
retiro-me...
FERNANDO, voltando de fechar a porta
Eu não fecho a porta com medo que o senhor se retire... é que não quero que
nos ouçam. Pois V. Sº não quer ver os efeitos do veneno na face dessa mulher
que aí vem!? E um estudo curioso...
LUÍS
Mas o que quer dizer isto?!
FERNANDO
Quer dizer que o Sr. Luís de Abreu não tem da sociedade em que vive um
conhecimento perfeito... Esta sua última imoralidade não foi ainda recebida
como facto consumado.
CENA IX
Os mesmos e D. INÊS
D. Inês desfigurada, exprimindo sempre grande agonia; Fernando indica-lhe
um canapé, e ela senta-se.
D. INÉS
Minha mãe não veio?! porque não está aqui minha mãe!? Ela disse que vinha
comigo...
FERNANDO
Não está aqui, porque nem tudo se pode dizer diante da sua mãe...
D. INÉS
Pode... não tenho segredo nem desgraça que ela não conheça... Quero aqui
minha mãe.
FERNANDO
Para quê?! Não lhe basta o amparo deste cavalheiro por quem trocou sua
mãe?... Onde está o homem que se ama, estão resumidas todas as
necessidades de uma mulher extremosa...
D. INÉS
Pois eu vim aqui para me escarnecerem?!... Deixem-me morrer... déem-me um
confessor que quero salvar a minha alma... A zombaria comigo é uma
crueldade que eu não mereço a ninguém, é muito menos a ti, Luís...
(estendendo-lhe a mão) Adeus... Depois de tantas amarguras, de tantos
aviltamentos... perdoo-te... (Ergue-se com transporte para tomar a mão de
Luís, que não ousa fixá-la, e Fernando obriga-a a afastar-se com ímpeto
colérico, e muda logo pata o sorriso).
FERNANDO
Pois tem a suspeita de que foi muito aviltada, menina? Reanime-se que vai ser
feliz: eu vou cicatrizar as feridas rasgadas pelo ar. Luís de Abreu. Este
cavalheiro acaba de fazer-me uma cedência amigável.
LUÍS, colérico
Senhor!
D. INÉS
Que ouvi, meu Deus! Uma?
FERNANDO, tranquilo
Fu menti, Sr. Abreu? Essa irritação é incoerente com o seu carácter franco...
Nada de biocos de honra sobreposse. O segredo é de três.
LUÍS, cerrando os punhos em ameaça
Isto é uma covarde traição!
FERNANDO, severamente
Não é traição: é que sou muito acautelado nos meus contractos. Para provar-
lhe que não falto à menor condição estipulada, e para que a minha consciência
fique pura de escrúpulos, vou dar-lhe a gratificação prometida. (Abreu recua
alguns passos. Fernando atira-lhe à face uma bolsa).
D. INÉS, erguendo-se em fuga
Minha mãe, minha mãel!... (Luís de A breu tira um. punhal e acomete-o; Soares
uma pistola, sem recuar; À breu pára, e contemplam-se silenciosamente.)
CENA X
Os mesmos, D. MIQUELINA, D. MARIA e o MÉDICO
D. MIQUELINA, saindo do quarto
Filha, filha, que é?
D. INÊS, com a face escondida no seio da mãe
Morro!... ouvi, uma coisa horrível!... Desfaz-se-me o cotação... Agora sim...
matatam-mel...
FERNANDO, para Abreu
Até que enfim encontrou um estotvo... A perversidade não lhe inspira nada?
Tudo isto lhe parece um sonho desagradável... e nada mais? Acorde, e possua-
se bem da majestade desta cena. Um conquistador da sua força deve ter
espetáculos destes para contar. Feitos tais são os que fazem a reputação de um
elegante... Dar-se-á o caso que o senhor esteja gozando voluptuosamente
aquele quadro?! (aponta o grupo de mãe e filha). Olhe... e uma mãe penitente
abraçando uma filha desonrada... Aquilo é triste... Chora o coração... São
pobres. Aquela filha tem de mercadejar a subsistência da sua mãe... À caridade
pública promete recebê-las a ambas num hospital. Quer V. S* por grande
misericórdia lançar uma moeda de cobre no regaço daquela mulher? Barato
lhe fica tamanho triunfo! (obrigando-o a encará-las). Porque não há de vê-las,
senhor? São a sua obra... Reveja-se bem naqueles troféus... Vá agora cuspir na
face de ambas... (com terrível reconcentração). Aqui tem o senhor um braço
cuja energia a corrupção não enfraqueceu... Posso até asseverar-lhe que o
catálogo das sua vítimas acaba ali.
LUÍS
Compreendo que o senhor é um assassino, e assassino por gosto... Ameaça-
me com a morte, sem algum título nobre que possa desculpar esse
procedimento.
FERNANDO, quase ao ouvido
Tenho a franqueza de querer justificar-me aos seus olhos, infame... O senhor
sabe o que é ser assassino mas não sabe o que é... o que é... ser pai...
LUÍS, assombrado
O seu pai!...
D. INÉS
Que disse ele!
D. MIQUELINA
Sim, sim, teu pai! de joelhos... de joelhos, minha filhal...
D. INÊS, como arrastada
Não é possível... estou passando pelo delírio de uma febre
D. MIQUELINA
Não, Inês... é teu paí... ajoelha comigo...
FERNANDO, severamente
Afastem-se...
D. INÉS
... É O veneno...
Que eu não morra sem o seu perdão... Estou envenenada... pouco posso
viver... Não me amaldiçoe!
D. MIQUELINA
Carlos! tua filha que se ajoelha... escuta-nos... Ela morre sem ter ouvido do seu
pai uma palavra de amor.
FERNANDO, muito com pungido
E eu sem ter merecido ao género humano uma lágrima de compaixão...
D. MIQUELINA
Salva-nos a ambas... salva-nos, Carlos.
D. INÊS, muito angustiada
Que nos deixe ao menos morrer abraçadas, abençoando o seu nome.
MÉDICO
Fui chamado para curar esta senhora de um envenenamento, e como médico
declaro que esta situação não pode demotar-se. Ou vê-la motrer aqui, ou
tentar o último esforço para salvá-la.
FERNANDO, erguendo com ternura sua filha
Vai... filha, vai... Se mortes, ou vives, não poderei salvar a tua reputação... mas
vingar-te-ei, vingar-nos-emos... Doutor., salve-ma... (D. Inês é transportada
ao quarto, nos braços do médico e da mãe. D. Maria sai pela porta do fundo).
CENA XI
FERNANDO SOARES e LUÍS DE ABREU
FERNANDO, cruzando os braços em frente de Luís
O senhor é um homem a quem não pode propor-se um duelo. Entre dois
homens que se batem é preciso que o pundonor tenha sido reciprocamente
ultrajado.
LUÍS
Eu não me recordo de o ter ofendido ao senhor... Ainda assim... se me propõe
um duelo... entre cavalheiros... há certas formalidades...
FERNANDO
Eu não lhe proponho um duelo... Vergonha para mim se lhe desse gota do
meu sanguel... o que o senhor quiser... É um capricho de assassino por
prazer... que move a puni-lo por ter atirado à desgraça uma frágil mulher que
não pode travar armas consigo... Eu sou o pai da sua vítima, senhor! Tenho
dito tudo.
LUÍS
Eu não o conhecia como tal...
FERNANDO, com serenidade
Quer dizer que uma senhora, sem pai conhecido, pode ser arrastada pelos
cabelos dos braços da sua mãe aos da prostituição, e dai às agonias do veneno,
e do veneno à sepultura... E o mau homem que matiza com infâmias tais a sua
existência, não é obrigado a descobrir-se perante a sociedade que lhe pede
contas da mulher sacrificada a uma paixão feroz... A serenidade com que eu
discuto, senhor... Bem vê que o estou estudando...
LUÍS
Há um meio pronto de reabilitar sua filha.
FERNANDO
Qual?
LUÍS
Não duvido casar com ela.
FERNANDO
Casar com ela!... O senhor pode porventura reabilitar mulher nenhuma!? Que
pai lhe daria uma filha, homem três vezes infame!? Ofereceu-ma há pouco...
cedeu-ma com o contentamento de um cigano que passa um péssimo cavalo...
Miserável!... que tem ela agora que mais valha para ser mulher?... (Tira,
convulsivamente, uma pistola. Tropel no corredor, e luzes.)
CENA XII
Os mesmos e o ADMINISTRADOR DO BAIRRO, ESCRIVÃO, D.
MARIA e CRIADOS
ADMINISTRADOR, lendo um ofício
Qual dos senhores é Luís de Abreu, natural do Porto?
LUÍS, aparte
Estou salvo! (alto) Sou eu, senhor.
ADMINISTRADOR
Siga-me; eu sou o administrador deste bairro, e prendo-o por ordens
superiores.
LUÍS
Prontamente. (Quer segui-lo).
FERNANDO
Esperem.
ADMINISTRADOR
Não sofre delongas a execução do mandado do governo civil. Este senhor
tem de ser posto em custódia imediatamente.
FERNANDO
Esperem. (Para o administrador) O senhor sabe porque é preso este homem?
ADMINISTRADOR
Por um crime de rapto.
LUÍS
Eu provarei que se não rapta uma mulher que nos segue muito pela sua livre
vontade. E de mais, eu estou pronto a casar com ela.
FERNANDO, para a autoridade
Diga-me: os infames desta ordem como são punidos em Portugal?
LUÍS
Note, Sr. administrador, que sou insultado vilmente por este homem... Estou
debaixo da lei.
FERNANDO, para o administrador
Responde-me, senhor?
ADMINISTRADOR
O crime de rapto tem penas designadas no código penal segundo as
citcunstancias.
FERNANDO
Poucas palavras a uma pergunta simples... Há uma forca? Um pai, rico ou
pobre, pode levar à forca o malvado que lhe atira. aos pés o cadáver
desonrado da sua filha?
ADMINISTRADOR
Isso decide-se nos tribunais, mediante um processo.
FERNANDO
E muito demorado esse processo?
ADMINISTRADOR
Tem os trâmites da lei, testemunhas, depoimentos, provas, um juiz enfim.
FERNANDO
Que provas, senhor? O que são aqui as provas? Quem vem depor ao tribunal
contra este homem? E essa mulher que aí está dentro agonizando?!
ADMINISTRADOR
Não sei... o preso é amanhã entregue ao crime, e seja-lhe V. Sº parte.
FERNANDO, engatilhando a pistola
Eu não sou parte, sou juiz. (Abreu é ferido no peito, e cai sobre o canapé).
CENA FINAL
D. MIQUELINA
Está salva! está salva!...
D. MIQUELINA, atribulada
Oh Carlos! que fizeste”... A nossa filha não morrel...
FERNANDO, tranquilamente
Pois que viva. Não terá de corar diante desse infame
O preso sou eu, senhor.
... (para o administrador).