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Full text of "Ninho de guincho"

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iU— Um liomem <te brios. 

41 <»Hemorifti de Guilhenne do 

AoDAnl. 
42, 43 • 44 — Mysteriot de Lit- 



4S • 46 — LiTio negro de ptdre 

Dinis. 
47e48 — OJttdea. 

49 — Dnai 4poots da Yida. 

50 — Eitrellaeftinestaa. ^..^.^ 

51 •— Lagrimai abeofoadf^ 



fNIVERmi OE H 



do de Fafe em Litboa. — 

Morgado de Fafe amoroso. 

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ooadas lagrimas I 
79— TmuTKo: IT — Ocondem- 

nado. — Gomo ot anjos se 

Tin^;a]n. — Entre a flauta e 

a Tiola. 
80 — Teeatm : V ~ O Lobis- 

Homem. — A Morgadinbe 



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8 — Esgotado. 
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10 — Esgotado. 
11— Esgotado. 

12 — Esgotado. 

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Panl Boujget. 

14 — Esgotado. 

15 — Esgotado. 

16 — Esgotado 

17 — Esgotado. 

18 — O ultimo amor, por Ohnet. 

19 — Um bulgaio, por Ivan Tour- 

gueneife. 

20 — Memoriae d'um euidda, 

por Mazime du Cam^. 



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— C»:/.i.^, ^v* O, ''/iiii'.T. 

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— <■>» r'tiJi fco tiV/fj, yjr A. 

— M«xrtff»«, yjry^ol Eoo/g^:. 

tiK Fnr»% J*!rt, 
« 3.'# — V.Ai^oU'1'j, 
■^ l'9j\%\'iuwt%*. , . , por H. Dai- 

lin(( Hum'tftind. 

— A c'fufiu^/ t\*i dtffAluA, 

— K«got»/J/>, 

— A nihilintft, yni*. h\*iiAhn. 

— Mortu d« nrri'/T, por DoJ^it. 

— .Jo«/> Sbogflr, por C. Ktt<lif;r. 

— VIa((«rrf •<;ritirri';otaly por 

— mlll»»io «Jo tio Jittclol, 
|ior Km lift Kicheboarf;. 
A i*A,t\\\n?Af) cJo urn rupaz do 






61— Ji 



>— K«gOt{Mlf|. 

-— nunUllo de I<onrpM, por 
•I. K. llavHiiiuiiH. 

— Amor do MiM, por J. Blain. 

— A t^'gru, por Luforoitt. 

— Colotiiha, por I*. Merim4«. 
-^ KhIU, por L. ToltttoL 

•*> Alma Hiiii|ilei, por I^o»- 
toittwtky. 



por Ar- 



62 
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87- 



zLSUx: SiiTtstre. 
£igot&dj. 

nt'.io. pcio g«LerAiTci;»!:g. 
Ki-Toag. 

A CM.. a 'i-i "icletas, pai 
F- Gaimar^cs Ficseca. 
66 — X em rod & C.*, poi 
Jorge OLcrt. 

Pris-Tia Gfe fa.:r.or. por Par 
Bonnhonr.e. 

Hiftoria d'nma n.::!hcr 
por Guy de Manpassant. 
70 — Educacao sentimen- 
Uu, por G. Fiiiulert. 
D«;poi9 do anior, por Ohn-t. 
A fava de Santo I;^acio, 
por Alexandre PoiLey. 
74 — herdeiro de lied- 
clyffe, por Mrs. Yougue. 
Uina ondiua, por Tbeurie' 
A f am ilia Laroche, pc 
Marguerite Sevray. 
- As ^andes lendas da hu 
manidade, por d'Humive. 
79 — A filha do Dr. Jau- 
fre, por Marcel rrevost. 
A daraa das camelia&, por 
A. Dumas, Filho. 
Dezeseis annos..., por P\ 
C. Philips. 

83 — O Dcsthronado, por 
A. Ribeiro. 

Ninho^d'amor, por A. Cam- 
pos. 

• liOdaR Ncgras, por Alma- 
chio Diniz. 

• Do amor ao crime, por Al- 
phonse Karr. 

> A ilha revoltada, por Ed 
Lockroy 



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COLLECCAO ANTONIO MARIA FEREIRA— 41' Yolnme 



NINH® ©E 6tIIN<5H(!) 



COLLECgAO ANTONIO MARIA PEREIRA 



ALBERTO PIMENTEL 



^JNlNHO DE 

VXUINCHO 




LISBOA 
^ARCERiA ANTONIO MARIA PEREIRA 

LIVRARIA-EDITORA 

Rua Augusta^ So^ fii e ^4 






LISBOA 

Typographia da Parceria Antonio Maria Pereisa 

Rua dot Correeiroiy 70 e 72 



6> 1X^0 1 



RAZAO DO TITULO 



A ave conhecida pelo nome de guincho caga 
durante a noite a provisao do seu ninho, que 
procura ter sempre bem recheiado. Por isso 
passa em proverbio o dizer-se metaphorica- 
mente — achou ninho de guincho — quando 
alguem descobriu um esconderijo de variados 
objectos. 

Este livro, pela diversidade dos assumptos, 
certamente mais sortidos do que valiosos, e 
um ninho de guincho, que eu fui abastecendo 
na minha afanosa lucta pela existencia, dia a 
dia, umas vezes alegre, outras triste, mas 
sempre conformado com a suprema direc95o 
de um mundo onde ha pessoas que vivem sem 
trabalhar e pessoas que trabalham para viver 
— sem que se possa dizer ao certo quaes sfio 
as mais felizes. 

Usboa — 1903, dezembro 



O PROPHETISMO E A RESTAURAgAO 



Uma das armas empregadas no interesse da res- 
taura^ao de 1640 foi o prophetismo: 6 esta uma ver- 
dade historica que merecia decerto ser largamente 
desenvolvida e demonstrada. Nao o podemos fazer 
n'uma simples notula; alguem, de mais firme pulso, 
o fard um dia. 

Quern principalmente manejou essa arma ? Foram 
OS jesuitas? O padre Jose Agostinho de Macedo as- 
severou categoricamente que nao entrou na revo* 
lu^ao nem um s6 fesuilay mas que os religiosos da 
Companhia, sempre dissimiilados e verdadeiros go* 
tos na melancolia e na caga, exploraram em pro- 
veito proprio o movimento revolucionario que pdz 
no throno D. Joao IV, fazendo acreditar que ellc 
era o promettido das prophecias populaces (*). Re- 
bello da Silva^ pelo contrario, assignala a interven- 
^ao, que reputa poderosa, dos jesuitas, na conspi- 



(^) Os sebasiianistas^ Lisboa^ iftio^ V^%* ^^* 



8 COLLEC9I0 ANTONIO MARIA PEREIRA 

ra^So restauradora de 1640 e na consolida^ao da 
djmastia brigantina. Recorda este illustre historiador 
a propaganda do padre Luiz Alvares, que n'um 
sermao pr^gado perante o cardeal Alberto se affbU 
tira a dizer: tSerenissimo principe! Levantaevos, 
tomae o fato e a cabana, e ide-vos para vossa ter- 
ra. .. ^ o que significam as palavras de Christo(^)». 
A cren^a de urn novo imperio do mundo, para glo- 
rifica^ao da coroa restaurada de Portugal , digno de 
figurar na historia universal depois dos iaiperios da 
Babylonia, da Assyria, da Grecia e de Roma, foi 
eloquentemente ati^ada pelo padre Antonio Vieira, 
como se sabe, na Historia do future. Mas jd entao 
a revolu^ao estava consummada. Resta saber se os 
jcsuitas, recorrendo d arma do prophetismo, e a 
outras nao menos valiosas, a prepararam. Eis o 
ponto que nao estd ainda nitidamente averiguado. 
D. Francisco Manuel escreve nas Epandphoras 
que OS padres da Companhia tacitamente contri- 
buiam d$ esperangas de alguma nouidade. Este tes- 
timunho i importante por ser contemporaneo do? 
factos. Nao obstante, a questao nao estd ainda suf- 
ficientemente esclarecida, posto que recentemente 
dois escriptores notabilissimos, Caaiillo Castello 
Branco e Oliveira Martins, esgrimissem denodada- 
mente sobre tao importante assumpto, deixando 
comtudo indecisa a victoria, porque ambos adduzi- 
ram argumentos ponderosos, o primeiro negando, 
em opposi^ao ao segundo, que a Companhia de Je- 



^J Muaria Je Partugai^ tome m, p»g. 440. 



NINHO DE GUINCHO 9 

sus tivesse intervindo pelo prophetismo na revolu- 
5ao de 1640 para fa\er de Portugal o Paraguay 
da Europa, segundo a phrase de Emilio Castellar 
proferida no congresso hespanhol em 1884. Camillo 
Castello Branco adoiittia que os jesuitas acceitassem 
D. Joao IV como sendo o EncobertOf mas s6 depots 
de realisada a revolugao de 1640; antes nao. Com- 
batia, portanto, oargumento de Oliveira Martins: que 
fdra por suggestoes jesuiticas que rebentaram . em 
Evora os acontecimentos de 1637, de todos conhe- 
cidos. O que i certo e que a questao, briihantemente 
tratada de parte a parte, nao ficou todavia bastante- 
mrente liquidada, de modo a nao admittir a menor 
duvida perante a critica historica, desapaixonada e 
imparcial. Pode ter-se uma opiniao, mais ou menos 
justificavel, e nao devemos occultar que nos inclina- 
mos d de Camillo Castello Branco; mas parece-nos 
ainda cedo para assentar uma convic^ao definitiva. 

Como quer que seja, o que i certo e que o 
prophetismo f6ra uma arma poderosa nas maos 
dos que favoreciam a restaura^ao, quer os va- 
mos procurar & Companhia de Jesus ou f6ra 
d'ella. 

O calls da amargura trasbordava; o prophe- 
tismo fortalecia os animos, pondo em vibra^ao a 
credulidade popular, para evitar que fosse exgo- 
tado exi as fezes. Na revolu^ao d'Eyora, emergira 
principalmente o elemento popular; o typo do Ma- 
nuelinho era uma synthese. O prophetismo apro- 
veitou aquelle- elemento, que sobrenadava a flor 
dos acontecimentos, .e explorou-o covv\ nw>x^'^^b^* 
Ws a verdadcm 



lO COIXEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Todos OS processos que podiam fazer vibrar a 
credulidade do povo foram utilisados. Recorda- 
ram se as suppostas pala/ras de Christo a Affonso 
Henriques nas cdrtes de Lamego, cuja authentici- 
dade foi, alids, combatida per Alexandre Herculano, 
como se sabe. O Filho de Deus haveria promettido 
ao primeiro rei portuguez a sua miraculosa interfe- 
rencia ate ao tempo em que florecesse a decima 
sexta gera(jao, usque in decima sextant generationem. 
Ora desde Sancho I atd D. Henrique, inclusive, 
succcdiann-se dezeseis gera^oes contadas de rei a 
rei. S. Bernardo teria escripto a Aftonso Henriques 
uma carta datada de Clara val, no anno de ii36, na 
qual diria que ao — areino de Portugal nunca falta- 
riam reis portuguezes, salpo se pela grave\a de cuU 
pas por algum tempo (Deus) o castigar; ndo sera 
por^m tdo coniprido o praso d'este castigo, que che* 
gue a termos de sessenta annosB. 

Como se ve, nao podia sermais artificiosamente 
explorada pelo prophetismo a corda da credulidade 
nacional. 

Mas ha mais. Aos vaticinios de origem rcligiosa 
accresciam os vaticinios de origem popular, fazendo 
suppor em iniima communica^ao a alma do povo 
com OS prophetas directamente inspirados por Deus. 
Assim, as prophccias de Bandarra foram interpre- 
tadas n'um sentido inteiramcnte applicavel A res- 
tauragao da independencia nacional pela acclama^ao 
de D. Joao IV. 

Na RestaurafSo prodigiosa de Portugal, com- 
posta em 1643 por um jesuita, o padre Manoei Es- 
cobaFf sob o pseudonytno de Gregorio de AVtrvevda^ 



NINHO DE GUINCHO 1 1 

as trovas do vate sapateiro de Trancoso sao ada- 
ptadas i epoca: 

J A o tempo desejado 

i chegado. 
Segundo firmal assenta, 
Jd cessaram os quarenta, 

Que se tmmenta 
For um douto jd passado, 
O rei novo e levant ado^ 

JA d^ braJCf 
Jd assoma a sua bandcira, 
Contra a grifa parideira 

Logoroeira, 
Que tees prados tem gastado. 
Saia, saia este infante, 

Bern andante. 
O SiU nome e D. Joam, 
Tire e leve o pendao 

E o guiSo, 
Poderoso e triumphanie, 
Vir-lhe-hao novas adeante, 

E n'um instante, 
D'aquellas terras presadas, 
As quaes esiao declaradas 

£ bfiirmadas, 
Tel-o por Key em deante, 

Inculcava-se, pois, que a dra de quarenta era pre- 
destinada para grandes prodigies. N'uma cgrcja de 
Alemquer haveria sido encontrada uma pedra com 
esta inscrip^ao, em leitras gothicas: 

Anno de vinte, quern te nao vira ! 
Anno de trinta, quem te passdr^l 
Anno de quartnia^ quem te gosdra\ 



12 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

De mais a mais, na Escriptura Sagrada qua- 
renta era um numero assignalado: quarenta dias 
estivera Moys^s no Sinai; quarenta annos guiou 
o Senhor ao povo de Israel pelo deserto. Ficava 
assim confirmada a phrase : segutido Jirmal as- 
sent a. 

Mas^ al^m da auctoridade da Biblin, havia a de 
S. Bernardo: que se emmentUy por um douto jd pas- 
sado. 

Quanto d expressao rei nopo^ nao podia haver 
duvidas: D. Joao IV era o primeiro monarcha de- 
pois de interrompida a serie dos reis portugue- 
zes. 

Saiay saiUj significava a ancia com que todo o 
reino pedia a acclama9ao de um soberano restaura- 
dor. 

Nao podia, de feito, ser mais feliz a exeg^se. To- 
davia, uma pequena difficuldade apparecera: a pro- 
phecia dizia: — Dom Foam, e nao Dom Joam. Desde 
o momento, por^m, em que se encontrasse uma 
explica(;ao verosimil para a troca de uma lettra, a 
prophecia ganharia foros de indiscutivel veracida- 
de. A desejada explica?ao encontrara-se, final- 
mente: a troca de um / grande por um F f6ra alte- 
ra^ao adrede introduzida pelos sebastianistas ; res- 
tava desfazer o que elles tinham feito, mudar o F 
em /. A espada de Alexandre cortara mais uma 
vez o nd gordio: Bandarra havia prophetisado D. 
Joao IV, 

E houve logo quem recordasse o testimunho de 
pessoas contemporaneas de D. Joao III, affirmando 
que Bandarra havia e£fectivamente cactvpto 



NINHO DE GUINCHO 1 3 



O teu nome 6 D. JoaiD) 

mas que — tao certo como dois e dois serem qua- 
tro — OS sebastianistas haviam adulterado a copia 
maliciosamente. 

D. Joao IV devia sorrir-se, para dentro, da cre- 
dulidade ingenua dos seus vassallos^ mas para nao 
inutilisar as armas do prophetismo, tao habilmente 
empregadas em seu proveito, nao punha duvida em 
declarar, perante os ferrenhos sebastianistas da 
sua corte recemnascida, que se D. Sebastiao vol- 
tasse, immediatamente Ihe entregaria o sceptro e a 
coroa. 

1 885 — Fevereiro. 



ii 



HISTORIA DE UM QUADRO 



Champfleury, no seu livro Les excentriqueSy da o 
logar de honra a um portuguez que se tornou no- 
tavel em Franca por muitas originalidades. Era o 
commendador Josd Joaquim da Gama Machado, 
conselheiro de lega^ao em Pariz, gcntil-homem da 
casa real de Sua Magestade Fidelissima, socio da 
Academia Real das Sciencias de Lisboa e de ou- 
tras muitas corporacoes litterarias. 

Pertencendo a uma familia originaria de Portu. 
gal, Machado foi para Pariz aos oito annos de edade 
estudar no collegio d'Harcourt, sob a direc^ao do 
abbade Coesnon. Concluida a aprendizagem littera- 
ria, Machado viajou largamente e, quando ]& or^ava 
pelos cincoenta annos, explodiu no seu espirito^ su- 
bitamente, um grande enthusiasmo pela historia na- 
tural. 

Desde esse momento, Machado tornou-se um mo- 
nomaniaco, um excentrico, que vivia mais para os 
passaros do que para os homens. 
Corria todo Pariz assestando as ^uas Ivitvetas de 



NINHO DE GTJINCHO 1 5 

ouro para as gaiolas dos passarinheiros, e tazia 
,grandes compras de aves, com as quaes almo^ava 
em estreita camaradagem todos os dias, depois de 
ter assistido ao banho de cada uma. 

Havia, na habita^ao de Machado, uma sala occu- 
pada por pequeninas thermas, onde os passarolos 
mergulhavam hygienicamente, duas vezes ao dia, 
sem que nenhum d'elles se equivocasse ao procurar 
a sua tina. 

Durante o almoqo, o coramendador prodigalisava 
dedicadissimos cuidados aos seus hospedes. 

— Se quero conservar a amisade de cada um 
d'elles, dizia Machado, preciso nao os enganar. O 
trabalho de gabinete exige menos fadiga do que a 
vigilancia que reclamam os meus pequenos compa- 
nheiros. So com incessantes cuidaJos se consegue 
preserval-os de enfermidades, e manter a paz no 
seio d'esta pequena familia, onde a harmonia, como 
entre n6s, nem sempre reina. 

Quando Machado viajava, acompanhavao inalte- 
ravelmente um-pgpagaio seu predilecto. Em mala- 
posia, em caminho de ferro, em paquete, por mar 
ou por terra, o papagaio favorito nao se esquecia de 
pedir o almo^o, dando um grito, sempre A mesma 
hora, com a precisao de um relogio de Genebra. 

Este papagaio correspondia aos carinhos com que 
Cra tratado pela coopera^ao que prestava ao com- 
mendador no tratamento dos outros passaros. 
Quando algum adoecia^ o papagaio avisava gri- 
tando. Era uma especie de irma da caridade, de 
enfermeiro officioso e solicito. Assim avisado^ M^r 
chado punha em acqao toAo o stM ^x^^^evsJS. ^^'^'^- 



l6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

peutico : applicava homoepathicamente a belladona 
para os casos de epilepsia, de que alguns passaros 
sao atacados ; e empregava os gtobulos de a^afrao 
na epoca melindrosa da mudan^a de penna. 

Foi depois de muitos annos de convivencia com 
as aves que o commendador Machado conseguia 
formular o seu systema da Theoria das similhancas^ 
baseado sobre os meios de determinar as disposi- 
56es caracteristicas de cada animal, segundo as ana- 
logias das formas, da cauda e das c6res. 

— A cor, dizia elle, e o verdadeiro piloto da na- 
tureza para o conhecimento do valor das suas pro- 
duc^oes, nos trcz reinos, animal^ vegetal^ e mine- 
ral. E' verdade que Bernardin de Saint-Pierre nao 
estava longe d'estas ideas. Nos Estudos da nature:(a 
diz elle que as cores dos animaes indicam, mais tal- 
vez do que se pensa, os seus caracteres, e que a 
c6r vird por ventura a ser o germen de uma verda- 
deira sciencia. As famosas analogias de Fourier 
partem do mesmo principio. 

A exemplifica^ao das analogias encontradas por 
Machado tomar-nos-ia grande espa^o. Deixaremos 
apenas indicado o assumpto, e transcreveremos al« 
gumas das maximas d'este portuguez excentrico, 
que dizem respeito aos animaes. 

«Os animaes nascem sabios sem passar pela edu- 
ca^ao, ao passo que os homens adquirem conheci- 
mentos d for^a de maus tratos.i 

cFalta ao macaco a palavra: este animal tem 
conscrvado a sua plena liberdade.i 

<A cor e o mobil dos costumes entre os ani- 
nuaes, 9 



NWHO DB GmUCHO I7 

c A natureza parece ter privtdo o homcm de $ enao 
commum e havel-o dado aos animaca.* 

Como ae vi, o commcndador Macbado ha?iil 
constituido para «i mesmo toda uma ^ociedade dt. 
pasaarps, na convivencia das quaes ia rebaixando o 
conceito que, por cstudos cooiparatiyoa^ fazia.do 
homem. 

Era preciso acceatuar estes tra^s exccntricos d« 
physionomia de Machadoi tal como nol*o apresenta 
Cbampfleury, para entrarmos na materia especial, 
que julgamos ser inteiramentc nova, d*este artigOf . 
^ Se o leitor quizer dar-se ao incommodo de visi- 
tar o museu nacional de bellas artes, no palacio das . 
Janellas Verdes^ ha de encpntrar na sala D um qua- 
dro a oleo, que tern o numero 868, e que, segundo 
a indica^ao do respectivo catalogo, i do seculo pas« 
sado. 

Quanto ao assumpto do quadro, diz o catalogo : 

cLoja de barbeiro. — Diversos macacos fasem of-^ 
ficio de barbeiro, barbeando gatos.» 

aLegado A academia.* 

. A* primdra vista, o qua dro numero 868 da sala 
D denuncia apenas a excentricidade de um artista,^ 
a phantasia piccaresca de um pintor que se occupou 
imaginando uma loja de barbeiro, em que os esca«^ 
nhoadores sao macacos e^ os freguezes sao gatos. 
O catalogo contenta-se com dar uma indica^ao vaga^. 
icerca da aquisi^ao do quadro : legado ^ k.c%$^- 
mia. E' pouco, e i false. 



1^ . COLLEC9 AO ANTONIO MARIA PEREIR A 

rO qaadro nad for legado A Acadcmia. . . mas d 
Camara dos «Pareft de Portugal. O teatador foi o 
commendador Gama Machado. E o quadro passou 
tAsis tarde da Caiiaara dos Pares para a Academia 
dt Bellas Artes^j comb ramos mo^trah 
<Em data de 12 deoutubro de 1861 6 testamen-- 
t6iro de Gama Machado partkipara i Gamara dos 
Pares o legado de trez quadros, e pedia que Ihe- 
fosse indicado o meio de envial-os. 
- Qaatro dias depois, o mesmo testamenteiro com- 
rauflicava que por aviso do presidente do tribunal 
civil estava auctorisado a entregar o legado. 
'A 8 de dezembrOy o testamenteiro participava ter 
etiviado o legado. 

A 25 de fevereiro de 1862 a Gamara dos Pares 
mandava officiar ao Ministerio do Reino pedindo 
que o legado Ihe fosse entregue, e a 12 de junho 
instava pela entrega. 

A Gamara havia resolvido que os quadros, logo 
depois de recebidos, fossem enviados para a Aca- 
demia. Por isso, o director da Academia officiou 
em 14 de junho, pedindo a remessa d*elles. 

Foi-lhe respondido que ainda nao haviam sido 
cntregues. 

S6 a 20 de dezembro foram^ recebidos na Gamara, 
dp que se lavrou o competente auto. 

Os trez quadros de que constava o legado eram : 
dois desenhos de Girodet, representando Galathea 
e. PigmaliaOy e o quadro dos macacos e dos gatos, 
pintado por Decamp — nada menos I 

Gomo se acaba de ver, a indica;ao do catalogo 
^ nSo so deBciente, mas tambem inexacta. 



NINHO DE GUINCHO 19 

A verdade 6 qu« o quadro de Decamp foi legado 
por Gatna Machado & Camara dos Pares. 

Seria este legado apenas uma excentricidade do 
diplomata portuguez, inteiramente vasia de sentido? 
Elle era intelligente de mais para nao pdr uma in- 
tencao qualquer no que fazia. 

E d'ahi talvez que o leitor, analysando o quadro, 
possa encontrar a inten;ao ironica do testador. 

Os macacos nao serao os legisladores ? os gatos 
nao ^erao os contribuintes ? 

Vao vSr, e digam depois. . . 

, I ?86— Janeiro. 



Hi 



UM PREDIO NOTAVEL 



A casa do Tateo do Tijdlo onde Pontes Perenra 
de Mello falleceu, tem^como sesabe, duas entradas, 
uma pela travessa do Conde de Soure, que commu- 
nica a rua Formosa com a rua da Rosa» a outra 
pelo Pateo d*aquelle nome que liga a rua de D. Pe«* 
dro V com a entrada nobre do palacio. 

N'este bairro, e principalmente n'este sitioy a re** 
fundi;ao de Lisboa tern sido profunda at^ nos nomes. 

A inevitavel chrisma municipal converteu a an- 
tiga rua do Moinho de Vento em rua de D. Pedro 
V. Porque ? Por coisissima nenhuma^ como diria um 
ministro lendario. Aquella rua tanto poderia ser de 
D. Pedro IV como de D. Pedro V, como de qual- 
quer outro homem notavel... que tivesse passado 
por ella algumas vezes. A unica denomina(;ao que 
ajustava d sua historia era a de — Moinho de vento^ 
porque, em verdade, ali houvera moinhos de vento 
— e bem trabalhados pelo vento deviam ser n'aquelle 
alto OS moinhos — quando ainda tudo por ali cram 
terras de semeadura, ao tempo do terrcmoto, co- 



miiiO DK GimiCHO 21 

mo iodicam os nomes mtis ou menos bucolico& das 
ruas circumjacentes. 

Estamos, de fitito, n'uma zona onde Ceres e Flora 
ttvcram seus dominios^ coma denunciam as designar 
f 6es de roa da VifAa^ travessa das Parreiras^ trar 
Tessa 4a Horia^ rua dos dtrdan, rua e travessa 
da PcUmeira, rua dos JasntinSf e, finalmente^ Prafa 
das Flores. 

A ri» da Roia hzj porem, excepfSo ; nSo deve 
enganar o lettor. Esta rosa nada tem que v£r com 
bucolismos e pastoraes, pois que nao ae trata da 
rosa dos prados, mas da Rosa... das pariUhas, 
uma demandista famoaa do seculo XV. 

N6S9 OS que vivcmos agora» jA nao vimos vele^ 
no alto de S. Pedro de Alcantara os tradictonaes 
moinhos de vento^ qoe apparecem figurados no Ur- 
bium proascipuarum mtmdi theatrum^ mas conhece**^ 
mos a ma do Mdnbo de Vento muito differentei 
ainda ha poucos annoa, do que i ho^e. 

O khor lefld>rarse por certo do renque de casas 
buottldes— at£ por signal bem mal habit adas. . .-* 
que corria desde a esquina da rua da Rosa at^ junto 
da Patriarchal Queiniada. . . perdao, da Pra^a do 
Prindpe Real. Demoliram-se essas casas, construi- 
ram-se no seu logar. as tojas de commercio que 
U vtmoa agora^edificaramse em frente bellos predios, 
ttlttmaaaente demoltu^se^ depots de idcendiado, o 
palado da familia Braaaicamp — que sempre teve 
a xak sioa de vtr os seus predios ificendiados — 
desiBotonou^se parte do solar dos Salema%>ikk^\^N^ 
se a rua, e ella ahi esti Vio\^ mh^o \xtaa. ^^». '^ft-- 
ItmatB lie Liabda* 



22 C0LLEC9A0 ANTONIO MAinA PEREIRA 

" - ~- - 

Mas a mudan^ de nome 6 que eu noo perddo 
nem desculpo. 

Todos n6s nos letnbramos ainda (k v6r, no Pa- 
teo do Tijdloj os restos (Ksformea do palacio dos 
condes de Soure, titulares que estao actualmeint^ 
representados, pelb casamento de oma ieiilK>ra^ na 
casa dos condes de Redondo. 

O visconde Julio de Castilho nao pdde rastew* a 
data da funda^So do palacio, inai fiarciceu-lfae/ea- 
xergar nas ruinas vestigios de uma construc^fio- do 
aeculo XVII. 

: Como quer que fdsse, ahi habitavam, n'aquelle 
seculo, OS Soures, cujo condado fdra em i652 con^ 
cedido a D. Joao da Costa, casado comuaiasenhora 
da casa Villa Verde. 

Ahi, nas proximidades do seu solar, esteve o pri* 
meiro conde de Soure para ser victima de uma ci« 
lada nocturna que Ihe armaram dots embu^ados a 
cavallo, e de que sahiu incoluine. 

Aconteceu que voltando de Inglaterra, tiui^, a 
rainha D. Catharina de Bragan^a, fora alojar^se nos 
pacos do Calvarto, d'onde se transferiu para o |ia« 
lacio dos condes de Redondo a Santa Martha, paai» 
sando depots d'ahi para o dos condes de Soure^ 
Junto aos Moinhos de Vento. 

Foi n'este predio^ onde, duzentos annas volTidos^ 
haviam de fallecer dois estadistas portuguezes, que 
D. Catharina de Bragan^a fez lavrar o seu testa^ 
men to, datado de 14 de fevereiro de 1699, no pa* 
lacio 5t7o ao Moinho de penio na cdrte e cidade de 
dListoa. . . . 

A rainha de Inglaterra nao se demoteia tnci\xc^<i 



MIHHO DE OmMCHO. 



por^m, no palacio dos cond^s de Souce;;inudo]i se 
para o dos condes de Aveiras, em Beletn. Anufai 
ahi naa ficou.. Em. julbo de iTtH comprou 3eu ir- 
mSo D. Pedro II terrenps,nia BmnptMa parajnah* 
dar-lhe coastruir o palacio qu^.hoje conhtcemos por 
jesta designagSi^ < i w.i 

A escr;iptura da compra vem publicada.no G^ 
binete kistorico de frei Qaudio da Gonceif^o e trati^ 
scripta por Camillo Castello Branco no i.^.Toluaip 
do Tomanct O fudeu. .. \/ 

A esse tempo o representante dos Soures em o 
terceiro conde do titulo. D* Joao Jos4 da Costa e 
Sousa que, certamente para deixar livre o palacio 
do Bairro Alto Irainha da Gran-Bretanha, iria ha- 
bitar o outro palacio da sua familiai & Penha de 
Franca. 

Habituado talvez A sua rcsidencia n'este butro 
palacio^ nao voltou o conde de Soure a occupar 
. o que D. Catharina de Bragan9a abandon&ra* 

Entao o palacio dos Moinhos de Vento« que n* 
nha hospedado uma rainha^ passou a ter inquilinagem 
menos nobre. Estabeleceu*se ahi um theatro de d« 
teres, theatro onde depois se representaram as far- 
^as do famoso/Wei/ Antonio 3os6 da Silva, proto- 
gonista do romance de Camillo/ ha pouco citado* 

Teve pois aquelle Batrro nada menos de trez thea- 
tros: este, o velho theatro do Bairro Alto, de ma- 
rionettes, aos Moinhos de Yen to; o theatro nopo^ no 
largo de S. Roque, Patea do Patrtarch0 (porqat 
foi no palacio dos Nizas que habitou o primeica 
patriarcha de JLisboa^ D. TWiimaLi di ^&KCi«i^i>v ^ 
no largo da Abegoaria a Academia de op^raxloV^oxia. 



COLLEC9AO ANTONIO MAIOX PEREIRA 



Outroi, de aJecundgria import«icia| haveria tal- 

-■ Dif^e tu |i que a famtlia Braamcamp fdra infit- 
lit com incendios. O pae do fallectdo coitielhetro 
Anselmo Braamcamp habiuva um grande predio 
no Terreiro do Pa^o entre a esquina da rua da 
Prau e a da hia dos Fanqueiros. Esse predio ar- 
-deu ahi por 1838, pois que o povd, depots de D NBr^ 
guel ter dado uma queda e de faliecer a rainha D. 
Cariota Joaquina (7 de Janeiro de i83o) cantava nas 
Tuas: 

Foi o fogo do BrasfDcamp 
Comets que snaunciou 
A morte ds mbelha m^tra, 
A qaeds do reichegmi. 

O Yasto predio que o sr. conselheiro Anselmo 
Jos^ Braamcamp habitava, no topo da alameda de 
S. Pedro d' Alcantara, ardeu tambem, creio que em 
1678, pelo que o finado chefe do partido progres- 
•ista comprou as ruinas do palacio dos condes de 
Soure, mandando aproveitar as parades mestras do 
cdificio. 

As obras de reconstruc^o come^aram em julho 
de 1879, e a refundi^ao do palacio fez-3e rapida- 
oaente, indo o sr. Anselmo Jos^ Braamcamp ha* 
bital-o com sua familia. 

Gomo se sd>e, foi ahi que o illustre chefe do par- 
lido progressists falleceu a i3 de novembro de i885, 
quatro annos depois de t^ abandonado a presi* 
dencia do conselho de ministrosJ(3S de mar^o de 



MINHO DE GVMGHO tb 



Meze9 depoisi o conspicuo estadista Antonio Ma* 
ria de Pontes Peretra de Mello, chefe do parddo 
regenerador, transferiu a sua residencia, do palaccte 
do largo do P090 Noto^ para o palacio do Pateo do 
TijdlO) propriedade dos hardeiros do sr. Braam* 
camp. • 

Esti atnda na memoria de todos que a morte fe- 
riu de tmproviso Pontes Pereira de Mello, na noite 
de 22 de Janeiro de 1887. 

Logo se notou a triste coincidencia de terem mor- . 
rido no roesmo predio', apenas com o intervallo de 
dois annoSy os dois chefes doa partidos monarciii- 
cos militantes. 

Mas o que muita gente ignorava^ e ignoraria tal- 
▼ez ainda hoje, t que alt estivera hospedada a 
rainha, viuva, da Gran-Bretanhai e que o mesmo 
predio passara depois a ser o relho dieatro do Bairro 
Alto. 

Aos esplendores da realesa, representada na pes- 
soa de D. Catharina de Bragan^ a, cuja vida em In- 
glaterra fdra uma tragedia de amarguras, succedfra 
a comedia personificada no infeHz judeu Antonio 
Jos6 da Silva. Seguiu-se urn dupb drama de morte, 
que cobriu de luto os partidos progressista e rege- 
nerador. 

Os dois estadistas nSo £slleceram, por^m, no mes- 
mo quarto. 

Subindoi da rua Pormosa, a traTessa do Gonde 
de Soure, a primeira janella do segundo andaf i a 
do aposento em que Pontes expirou. 

Quando este illustre estadista {ovt^iv&Tx^^n^^^ 
predio, os Aerdeiros do sr, Btaatcic^to!^ cot&j«^^- 



i6 COLLEC9io ANTONIO MARU PEREItA 

racn fechado, durante muito tempo, o quarto, tain* 
^ bem situado no segundo andar, em que elle tinfaa 
fallecado. : 

^ Estaram ainda ali alguns moveis, suppdmos 
ate que o leitO| os quaes foram depob remoVidM 
per ordem da familia Braamcamp« 

Da janella do quarto onde /alleceii Pontes tPe« 
:reira de Mello avista-se um dilatado panorama, que 
abrange grande parte da casaria do bairro ocddeti- 
tal, e o Tcjo. 

A mobilia do quarto de Pontes era modesta. En- 

trei ali na manha do dia 23 de Janeiro de 1887* O 

cadaver do illustre estadista, vestindo o seu uni- 

iorme de general, repousava sobre o leito. Rfetor« 

do me de ter feito reparo em dois ou trez moTeis, 

relegantesi mas simples: uma commoda moderna:e 

um guarda-fato; Nenhum requinte de commodidade 

opulenta ; nenhuma pompa de tape^arias, nem bibe* 

-Jois de pre90. Today la, no fundo da proviqcia, qUan- 

.tos nao imaginariam, com bda ou m& f^, queos 

aposentos de Pontes deviam ser principescos 1 

•^ A Coilheci Pontes Pereira de Mello em quatro pre* 

. dios differentes, na rua de S. .Bento, na travessa 

de Santo Amaro, no P090 Novo, e no Pateo do Ti- 

jdlp, mas em nenhum d elles a mobilia e os estofos 

das suas salas deslumbravam os olhos* 

1889 — Janeiro. 



IV 



PETRARCHA E CAMOES 



A obra de Petrarcha teen &ido copiosamente viil* 
garisada em frsineez. Citarei de passagem a traduc- 
^ao de Ginguene, que e estitna^el. Mais no ttxto 
original conhe^o a excellente edi^So de i34i por um 
exemplar que perteace hoje ao meu prezado ami^ 
conseiheiro Silveira da Motta, e que pertenceu 
outr'ora a Camillo Castello Branco, que o anno- 
tou. 

Adquiriu, pois, Silteira da Motta uma dupla pre- 
ciosidade bibiiographica, que Ihe pe^ Itcen^a para 
descrever. ' 

No reverso da i.* pagina, a lapis: 

Ex'perfeito. 

No verso da 2/, tambem a lapis: 

cEsta edi^ao sahiu no 2.® centenario da coroa^ao 
de Petrarcha em i54tp (Est a data estd fprtemente 
escripta a tinta). O commcntadot V^VVox^'^ ^ ^ 
mats apreqado dos antigpA \tvx«^x^\«^ . ^^ "^^^ 



)q COLLEG9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Creio piamente que Vale Luso foi prfmhtvamente 
um erro typographico, que at^ hoje cein corrido A 
revelia nas nunrierosas edi^oes em que as cpmedias 
de Caoides andam reproduzidas. O poeta escreve- 
lia certamente Vale chiuso. Toda a |;ente sabe que 
em Avinhao o tumulo de Laura e a fonte de^Pet^a^- 
cha povoam ainda hoje de memoriaa romanticas a 
paisagem de Valchiusa. Castilho, referindo-se na 
CHave do enigma A solidao do poeta n*aquelle er- 
rao, escreve na sua doje prosa tocada pcia suavi- 
dade de frei Luiz de Sousa: c Vaichiiisaj ou, como 
dizem, Voclusa^ onde Petrarcha passa tantos annos 
sonhando com o. especiro, primeiro de uma viva,, 
que nao vive para elle, e depois, de uma defuqta 
que nunca para elle morrerd, Valchiusa e para to- 
dos brenha alpestre, cavernosa, brava, despovoada, 
mas e vergel e universo para elle, e o casebre do. 
seu refugio, palacio oriental. » 
, Ate i533 o tumulo de Laura tinha por unico epi- 
taphio apenas quatro lettras: M. L. M. I. (Madonna 
Laura mortajacet)^ mas, n'aquelle anno, passando 
em Avinhao, caminho de Marseiha, Francisco I 
(que em materia de poesia e amor tinha soberana 
auctoridade) mandou levantar, em honra da beila 
dama, um rico tumulo de marmore, com epitaphios 
em differentes linguas, escrevendo elle proprio um 
em francez. 

Antonio Prestes tambem faz referencia a Petrar- 
cha, e por signal que tS curiosissima. Vem no Auto 
do desembargador. Trata-se de um boi, que tem o 
nome de N amor ado. 



NINHO DE GVIN€HO: 3 1 



' Commendador: 

Chamayam ao boi namurado; 
f vacca que vitse no arado 

Ihe fazia roil sonetos. 

Mofo: • ' 

Isso era Petrarcha boil 

Commendador: 

Qual Petrarcha! inda me aggravo 
do Petrarcha, mui mais bravo 
que dez mil Petrarchas foi. 

E o mais e que o Commendador do auto tinha 
razao. Em amor, Petrarcha foi uoi inoffensivo, urn 
platonico, que gastou o coraqSio em sonetos. Nada 
ha tao irrisorio comp dizer: a Laura de Petrarcha! 
A quern ella pertenceu foi a seu marido, Hugues 
de Sade, do qual houve onze filhos« Esta cabazada 
de fructos era bastante a esmagar prosaicamente as 
flores que Petrarcha metrificava em honra de Laura. 
Mas o poeta fechava-se na soiiclao de Valchiusa, ao 
p6 da fonte suspirosaj e gemia saudades pela mu- 
Iher de Hugues. 

Foi n'uma egreja, onde se ceiebrava a semana 
saniaj que Petrarcha a viu pela primeira vez, 
Tinha ella entao vinte annos, e uma belleza ra- 
diosa: 

Diz o soneto : 

Era '1 giorno ch'al al sol si scoloraro 
Per Id pitlA del suo Fattor i rai, 
Quand* i' fui preso, e non me ne guardai 
Cue i bei vostr'occhi, Dotitia^ tD\\e%%xo« 



$3 C0LLEC9A0 ▲MTONIO MAKIA PERElltA 

.*■ • ■ ■ . , , ^, . , ...1 .. 

A. Cam6es aconteceu outro tanto. Foi tambem 
n*uma egreja, e pela semana santa^ que elle viu 
pela primeira vez a datna que Ihe empolgou o co« 
ra^aoi fosse ou nSo fosse Catharina d*Athayde. O 
soneto que principia: 

O culto diviaal te celebrava 
No temple d'oade toda a creatura 
Louva o Feitor diviao, que a feitura 
Com seu sagrado saogue restaurava 

foi visivelmente caicado sobre aquelle de Petrar- 
cba, o que fez attribuii-o unicamente a espirito de 
imita^ao, a fanatismo petrarchiano. Mas o visccmde 
de Juromenha deu d estampa outro soneto de Ga< 
mSeSy que desfaz qualquer apprehensao: 

Totlat as almas trlstes se mostravam 
Pela piedade do Feitor Divine, 
Onde ante o seu aspecte benino 
O divme tribute Ihe pagavam. 

Mens sentides entSo livres estavam 
Que at^ hi fei centente e seu destine, 
Quande uns elhes de que eu nSe era dine 
A furto da razSe me salteavam. 

A nova vista me cegeu de tede, 
Nasceu de descostume a extranheza 
Da suave e angelica presen^a. 

Para remediar-me nSe ha hi mode. 
Oh! per que fez a humana natureza 
Entre OS nascides tanta differenfaf 



NINHO DE GUINCHO 33 



Diz a ienda que foi na egreja das Chagas que 
Luiz de Camoes viu pela primeira vez a dama que 
tanto veia a amar. Eu, segundo uma opiniao Jd an- 
tiga, pendo a crgr que fosse em Coimbra, onde, dil-o 
o propno poeia, cas suas maguas para nunca aca- 
bar se come^aram* 

Camoes tern, na sua biographia amorosa, muitos 
pontos de contacto com Petrarcha. Qualquer dos 
dois poetas resume toda a sua felicidade n'um so- 
nho: beato in sogno. Nenhum d'elles pode possuir 
a mulher amada, e ambos Ihe sobreviveram. Mas 
Camoes, n'um s6 soneto, Alma minha gentil que te 
parlisle, i muito superior em lucrimavel s iudade a 
PciPorcha nos varios sonetos que compoz chorando 
a mo le de Laura. Todo esse soneto, que i a pri- 
meira cxplosao da angustia, vale mais, pela sua do- 
^ura eiherea, que a longa ecloga escripta A morte 
dc D. Catharina de Athayde. Somente o lusitano, 
mcdindo se amorosamente com Petrarcha, acha 
que a sua dama sobrepujava em belleza a do ita- 
liano: 

E que toda a toscana poesia 

Que mais Phebo rebtaura, 

Em BeacnZ) ncm Laura nunca via. 



Camoes, o Trinca fortes, o Diabo, abatido aos 
pds do Nathercia — como Hercules aos pes de Om- 
phalc — nao se nos afigura hoje, por^m, tao piegas 
como Petrarcha. E um guerreiro (\ue a«\^^ ^ o^^ 
c])ora. Mas Petrarcha va\e-s(i vcvlYwcvoio%^tcv^'^\fc ^^ 



34 COLLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA 

recursosinhos capciosos, faz a Laura o seu presen- 
tinho de trufas, gaba-lhe o signo do Touro, 



Quando 1 pianeta che Histiague I'ore 
Ad albergar col Tauro si ritorna 



e a bella Laura, sempre desentendida, parece di- 
zer-lhe n'um silencio honesto: «Marra, bravo cora- 
fSoy contra a muralha da minha honra: nao a aba- 
lards. i» 

O Commendador do auto dc Antonio Prestes ti- 
nha razao. 



1889 — Fevereiro. 



V 



CHA PORTUGUEZ 



Strozzi cantou cT chocolate, Massieu o caftf. Nao 
me consta que algum poeta tenha cantado o chd, 
e todavia ha bons duzentos annos que a Europa se 
habituou a tomalo, guindandoo ds honras de um 
costume elegante. 

Foi ao que parece o padre Matheus Ricci, jesuita, 
missionario na China, quem pela primeira vez o in- 
dicou i Europa em iSgo. No seculo seguinte, ahi 
por 1610, OS hoUandezes introiuziram o cha na 
Europa, e a importa^ao cresceu rapidamente, a 
ponto que em i665 era quasi geral o uso do chd. 

Subsiste uma phrase iniicativa de que tomar chd 
foi desde logo um titulo de boa sociedade. De uma 
pessoa grosseira costuma dizer-se : Nao tomou chd 
em pequeno. E nao i porque o ch4 fosse recommen- 
dado como provcitoso para a saude das creancjas. 
Pelo contrario, o dr. Francisco da Fonseca Hen- 
riques, medico de el rei D, Joao V , ^cci^^Oisx^i. ^-j^^ 
sua Ancora Medicinal que &e xvao d^ Ocv^ ^^^^^ ^^nr-- 



36 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

ninos, por ser bebida quente e dessecante, contra- 
ria ao desenvolvimento do corpo. 

A rasao da phrase estd p-Ms, certatncntc, em ter 
sido o uso do chd adoptado pelas classes superio- 
res da sociedadc, gcneralisando-se depois por espi- 
rito de imita(;ao. Em Inglaterra foram dois lords, 
Arlington c Ossory, que o introduziram, sendo en- 
tao carissimo Ainda hoje ha na Inglaterra, e por 
copia n'outros paizes, incluindo Portugal, o elegante 
did das cinco horas. 

Assim como era de fina gentileza ofFerecer a ou- 
trem uma chavena de chd, o negal-a representava 
uma sovinaria grosseira. 

O bispo do Grao-Pard e«?crevia para Lisboa a 
uma freira, D. Antonia Xavier, que se Ihe queixdra 
de duas madres que Ihe nao ofTereciam do seu ch4: 
((Estimarei que esteja melhor de saude para que 
nao necessite do chd das amigas; quern nega uma 
chicara de agua quente 6 capaz de negar um pu- 
caro de agua fria, e tambem tern cara para negar 
uma diviJa- o ccrto € que ha creaturas tao indiges- 
tas, que todo o chd e pouco para ellas.» 

Dar mau chd era talvez um pouco mais ridiculo 
do que o nao dar. Tolentino diz na conhecida quin- 
tilha : 

Em bule chamido inglez, 

Que )A para pouco serve, 

Duas folhas hn^a ou trez 

Do can^ado chd que ferve 

Com esta a setima vez. 

E o Braz Carril, da AssembI4a de Gar^ao, ia ar- 
ranjar dinheiro a casa do diabo para tvao dd^Lat dt 



NINHO DE GUINCHO 87 

dar ds visitas sequilhos e chd condignos da prosa- 
pia de sua csposa a ex."** D. Urraca Azevia. 

Hoje o uso do chd firmou-se em todos os paizes 
da Europa, bcbem-n'o os ricos e os pobrcs, os saos 
e OS doentes, os adaltos e as crean^jas. Pcior ou 
melhor, entende-se. Nao estd jd divinisado peias 
lendas que corriam a seu respeito quando come^ou 
a ser importado. Dizia-se entao que Darma, filho 
de um rei das Indias, havendo adquindo o habito 
de viver solitario, passava as noites meditando no 
seu jardim. Gcrta noite, porem, entrou com elle 
um somno teimoso, e o principe, desesperado com 
essa exigencia animal, arrancou as palpebras, arre- 
messou-as i terra, onde ellas crearam raizes e pro- 
duziram a planta que dd o chd. Hoje jd nao correm 
esta e quejandas lendas, filhas da phantasia orien- 
tal ; mas, em compensa^ao, toda a gente tira das 
pequeninas e tcnras folhas do theh dos chinczes e 
do tsiaa dos japonezes, d'onde provavelmente veiu 
6 nosso vocabulo chd^ todo o partido possivel — 
praticamente. 

Diz-se que i bom o chd para curar as nevroses 
dos olhos ; sabe-se que e excellente para tirar no- 
doas. Ha golla de casaca que tern bebido mais chd 
talvez do que o dono da casaca. E e de bom con- 
selho tomal-o quando se estd indisposto, sendo jd 
um habito inveterado bebelo sempre, esteja-se in- 
disposto ou nao. 

Ninguem ha de dizer o trabalho que dao a co- 
Iheita e o preparo da folha do chd. Em trez opera- 
^oes distinctas, qua! d'ellas mais laborvo^^.^ %^ ^^\^ 
divjdir esse trabalho. Frei Leatvdto Ao ^^^^^^x:^^'^^^^^ 



38 COLLEC^S^O ANTONIO MARIA PEREIRA 

iilustre professor brazileiro, licenciado em philoso- 
phia peia Universidade de Coimbra, escreveu utna 
interessante memoria sobre o assumpto, c 6 de 
vSr o complicado processo que tem de seguir-se 
desde que se colhem os rebentos da planta at^ que, 
depois das folhas escaidadas, csmagadas, enroladas, 
torradas, peneiradas, se chega d ultima torrefacflo, 
que e a terceira operagao por que o chd tcm de 
passar antes de ir corner mundo. 

Sempre quero dizer ao leitor o motivo que tivc 
para me lembrar hoje do chd.,, Eu devia ter co- 
megado por isto. Nenhum assumpto quadra me- 
Ihor a um jornal que tem estado sempre na brecha 
a defender os interesses da instrucgao. do commer- 
cio e da industria. Foram as conferencias ultima- 
mente realisadas pelo sr. Jose Julio Rodrigues, no 
theatro de S Carlos, que chamaram a minha atten. 
cao para o chd dos Azores. Cha dos Azores I ez- 
clamard com extranheza o leitor, 

Tem razao para extranhar, porque e sestro por- 
tuguez despresar as riquezas que temos de portas 
a dentro. Pois o cha dos A(;6res 6 uma industria 
creada, desenvolvida nao. 

Foi em 1878, que na ilha de S. Miguel se fize- 
ram os primeiros ensaios da manipula^ao do chd. 
A sociedade promotora da agricultura michaelense 
mandou buscar dois chinezes, Lau-a-Pan, mestre 
manipulador; e Lau-a Teng, intreprete e ajudante, 
para procederem i fabrica^ao, que uma jd abun- 
dante cultura permittia. 

No dia 14 de mar^ d'esse anno colhiam-se as 
primeiras folhas nas propriedades do sr. 5os6 do 



NINHO DE GUINCHO ^9 

Canto, e entravam em exercicio os dois manipula- 
dores chinezes, que a principio pretenderam guar- 
dar certo mysterio sobre os processos da manipu- 
la^ao. 

Foi nomeado um fiscal dos chinezes, para que 
pudesse ir apossando se dos segredos do fabrico* 
Recaiu a escolha no sr. Raphael de Almeida, que^ 
por uma singular coincidencia, e hoje coUaborador 
d*este jornal, e residente cm Lisboa. 

Os chinezes, sempre disfar^ados, procuravana 
desorientar a pessoa que fora encarregada de vi« 
gial-os. Contradiziamse a cada momento nas ex- 
plicagoes que davam. Era preciso recorrer a meios 
imagmosos para arrancar-lhes a verdade, e lembrou 
um. Os dois fumavam opio, e emquanto fumavam, 
taziam inconscientemente revela96es importances. 
Sonhava um com o dinheiro que tinha ganho e es- 
condido a bom recado. Outro falava dos assumptos 
relativos i sua profissao, contava minudencias do 
fabrico, ria se talvez dos michaelenses que queriam 
arrancar Ihe o segredo da mais perfeita manipula^ao. 

Dizia o primeiro: 

— Com o meu dinheiro i que ninguem i capaz 
de dar. Tenho-o bem escondido debaixo d'aquella 
area maior que estd ao canto da casa. Eh! ehl 
quando me for d'aqui irei rico, e os de S. Miguel 
ficarao sem saber como i que se prepara o melhor 
chd. 

E o segundo, como que ouvindo vagamente o 
outro na embriaguez do opio, completava-lhe o pen- 
samento : 

— Eu explicolhes tudo ao conxtmo^ d^fe 1x1^^^^ 05^^ 



4^ COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

elles, em n6s indo embora, nao ficarao a ver chd, 
mas unicamente navies! Tao tolo seria eu que Ihes 
fosse revelar urn segredo da nossa ra(;a, que cons- 
titue uma das principaes riquezas do Celeste Impe- 
lio ! Esperae por isso, que tendes que esperar I 

O sr. Raphael d* Almeida ouvia-os, e no dia se- 
guinte dizia ao primeiro : 

— Lau a Teng, toma conta no teu dinheiro, 
que tens escondido debalxo da area maior, que 
estd ao canto da casa. Se t'o descobrem, podem 
roubar-t'o, e tu deixards de rir para ter muito que 
chorar. Sou teu amigo, e aviso te, impondo-te o 
dever de tambem seres meu amigo 

Lau-a-Teng arregalava os olhos, ficava surprehen- 
dido, attonito. 

Voltando-se para o outro dizia o sr. Raphael de 
Almeida : 

— Mestre Lau-a-Pan, tu 6 que sabes fazer o me- 
Ihor cha. Aqui o Lau-a-Teng nao percebe da missa 
a metade. Ora tu foste contratado para ensinar 
tudo o que sabes, mas procuras enganar-nos, fal- 
tando d tua palavra e ao contrato que fizeste co.n- 
nosco. Toma cuidado, mestre Laua-Pan, que tarn- 
bem nos A(;ores ha justi^a, e tu estds muito longe 
do Celeste Impeno, de modo que o Filho do Sol 
nao te poderd valer. 

Lau a Pan nao ficava menos assombrado do que 
Lau-a-Teng. 

— Este homem, diziam elies cochichando um com 
o outro e referindo-se ao sr. Almeida, tem poder 
aobrenatural : adivinha tudo I E' preciso respeital-o^ 
e obedecer-Jhe, 



NINHO DE GUINCHO 4I 

Foi assim, por este processo imaginoso, que a 
perfidia dos dois chinas pdde ser combatida e ven- 
cida. 

Na noite de 22 de novembro servia-sc no Club 
Michalense chd a^oriano, sem que os socios esti- 
vessem prevenidos do caso. Nenhum reclamou, 
porque nao havia motivo para reclamar. O chd de 
S. Miguel 6 excellente, foi analysado em Pariz pelo 
profjssor Schutzenberg, do Gollegio de Franca. A 
analyse dera o seguinte resultado : 

Cellulose. 

Resina, insoluveis, 64,3. 

Alumina. 

Materia gordurosa. 

Tcina 4,2. 

Tanino 1,1, soluveis 36,8. 

Materia gomosa 3o,5. 

Ora acontece que a maior parte do cha do com- 
mercio nao contem mais de 2 a 3 por cento de 
teiia, que e o principio activo do chd, ao passo que 
o de S. Miguel possue 4.2. 

Urn illustre par do reino a^oriano, que assistiu 
As conferencias do sr. Jose Julio Rodrigues, quiz 
que eu provasse o chd preto de S. Miguel. Fiquei 
encantado, nunca tao bom o tinha bebido. O chd 
verde i Ihe inferior, talvez porque Lau-a-Pan era 
menos perito em manipulal-o. 

Pensei entao no abandono a que n6s condemna- 
mos as industrias que podiam dar a Portugal uma 
grande prosperidade. Eu pro^puo tvmwc^ XNxicva. ^w- 



42 COLLECfAo ANTONIO MARIA PEREIRA 

vido falar do chd dos A9ores, e, todavia, quantas 
vezes o haveria tornado cuidando que estava be* 
bendo chd da China I E' que o chd preto de S. Mi- 
guel i incomparavcimente mais barato, e comtudo 
p6de bem passar por chinez. Assim succede tain- 
bem com as laranjas de Setubai, que, no pregao de 
qucm as vende, sao sempre da China. 

Dizia-me outro dia o sr. Jos^ Julio Rodrigues a 
respeito do chd: 

— Ha uma maneira facil de converter o chd n'unaa 
bebida deliciosissima. E' fazel-o com agua distilladai 
pondo no fun do de uma chavena trez ou quatro fo- 
Ihinhas e deixando-as abrir depois com a agua dis* 
tillada, tapando a chavena. 

Experimentc o leitor, e verd como o chd real- 
mente se transforma adquirindo urn sabor que ja« 
mais Ihe reconhecemos. 

Ahi fica, em breves trac^os, a historia do chd dos 
Azores. 



1891— Julho. 



VI 
A CRUZ DE BERNY 

(carta AO VELHO ROMANTICO DOM GASTAO) 

Entre os livros que maior scnsa^ao produziram 
n'essa ^poca, ]A longinqua, em que o romantismo 
litterario se traduzia n'uma forte corrente social, 
n'uma especie de dictadura psychologica a que 
todas as almas obedeciam, nao com repugnan- 
cia, mas com essa fanatica exaltacao que victtma os 
martyres de qualquer seita, os fieis de qualquer 
egreja, a Cru:{ de Berny^ romance escripto por qua- 
tro das primeiras celebridades francezas, Madame 
de Girardin, Theophilo Gautier, Mdry e Julio San- 
deau, obtevc um ruidoso triumpho, longamente re- 
percutido n*uma lenta resonancia de applausos. 

Em verdade, esse estranho livro, collaborado por 
uma pleiade de espiritos febriimente romanticoS| 
cheios-de imagina^ao, opulentos d'estylo, prodigos 
de vibra(;ao e colorido, nao era senao a addi^ao re- 
sultante da riqueza intellectual de cada um dos seus 
collaboradores, o conjuncto pV\3Ltaa^X\co ^'^ of^ax^^ 



44 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

sonhos extravagantes que se encontraram girando 
sobre um mesmo pensamcnto, como outras tantas 
rodas volteando vcrtiginosamente sobre um mesmo 
eixo. 

Tudo e inesperado, incerto, caprichoso n'essa fa- 
mosa novella, a comegar pelo tiiulo — Crw? de Ber» 
ny — que o enredo nao justifica e que o leitor, 
chegando ao fim do volume, nao sabc como expli- 
car. 

Este titulo, tao imaginosamante procurado, re- 
salta como sendo a primeira excentricidade do livro. 

Quando o gosto pelo Sport invadiu a Franca, 
copiado dos inglezes, um dos arrabaldes de Pariz, 
chamado Cro/AT de Bent/y foi o local escolhido para o 
steeple-chase^ que desde logo se tornou o diverti- 
mento elegante mais em voga. 

Foi n'essa occasiao que Madame Girardin, Gau- 
tier, Mery e Sandeau se propuzeram realisar uma 
especie de course liittvanaydQ steeple-chase romanti- 
co, galopando intellectualcnente no hypodromo de 
Berny, saltando barreiras, vencendo cbstaculos, lar- 
gando rddeas a imagina(;ao, como a um cavallo fo- 
goso, n'uma vasta pista accidentada. 

Tal a inesperada razao do titulo, razao que nin- 
guem 6 capaz de descobrir no romance, e que apenas 
muito vagamente, como se fosse um enygma, pode- 
vi suspeitar-sen'esta phrase final: v(Todosn6sfizemos 
uma course desesperada para attingir a felicidade ! 
S6 um chegou — mortoI> 

Como quatro jockeis muito destros e firmes (in- 
cluindo Madame Girardin que amava o travesti^ 
pois que no mundo das lettras era conhecida por 



NJNHO DE GUINCHO 48 

visconde de Launa/J, os auctores da Cru:{ dc Ber- 
ny guiaram galhardamente o corcel da sua phanta- 
sia, fazendo prodigios de imagina^ao, armanJo ao 
piitoresco e ao imprevisto, anitnando-se mutua e 
lealmente na corrida com o griio enthusiasiico que 
symbolisava a divisa de cada um: Mery, Pda India! 
madame Girardin, Pcla Mulher! Gautier, Por Cons- 
tant niopla! Sdndeau, 'Pelo amor! 

Se acompanhardcs o infatigavel siecple-cliase 
dos quatro, vereis que, effectivamente, atraves d'es- 
sas trezentas paginas eri(;adas de obstaculos e bar- 
reiras, Mery sonha com a India, queo encantou toda 
a vida, madame Girardin glorifica a mulher na ele- 
va(;ao do talento fcmin.no, Gauiier t o polychromo 
proJigioso que descrevcu Constantinopla, e San- 
deau poe mais uma vez a sua imagina^ao aventu- 
rosa ao serviqo do amor. 

Todos elles, histeando o scu motto, correm ao 
acaso para um desfecho a sensaiiony mas todos el- 
les giram como n'um can^uuself cm torno do mcs- 
mo eixo, a mulher romaniica, mtelligente e ca- 
prichosa, illustrada e insubmissa, que no mundo 
das lettras se chamava, por exemplo, George Sand, 
e no mundo da phaniasia tomava diffcrentes nomcs 
como a heroina do romance, agora Irdne de Cha- 
teaudun, a rica herdeira, logo Louise Gudrin, a 
operaria, sendo ali^s a mesma pessoa. 

O que 6, no fundo, este estranho romance ? 
Uma mulher. A mulher do romantismo, cntcnda se, 
um feixe de nervos aquecidos por um vulcao, a ca- 
becja, e guiados por uma estrella, o amor. Ho\e. o% 
Goncourts, Zola. Daudet, Hu^srcva^Yv^^ l^^w^^'^'^'^'^^ 



46 COLLECfAO ANTONIO MARIA PERBIRA 

chamar-lhe-iam uma nevrotica, uma hysterica, uma 
doente. N'aqaelle tcnpo diziase simplesmente a — 
mulher — porque toda a mulher era assim. 

Glorificada pela edade-media na castella que os 
trovadores c os cavalleiros cekbravam sacrifican- 
do se atd d loucura, a mulher tcvi a vertigcm da 
sua grandeza e, como era natural, arrastou comsi- 
go OS homens. Foi o romantisrao isso. Tudo era 
pela mulher n'esse tempo, como hoje tudo 6 pelo 
dinheiro. . . ate a propria mulher. Ao romantismo 
succedeu o capitalismo. Sonhava-se entao com 
uma aventura, como hoje se sonha com um syndi- 
cato. 

A heroina da Cr^oix de Berny^ amada pelo prin- 
cipe de Monbert (Mdry), nao acha n'esse amor ele- 
gantemente aristocratico a realisa^ao do seu ideal 
romaniico. Precisa correr os perigos de uma pai- 
xao cheia de mysterios e aventuras. O que Ihe tenta 
a phantasia nao e o amor calmo de um principe^ 
que a ama como quem e, mas a resolu?ao de um 
enygma, que avista da janella da sua antiga mansarda 
de Pariz, onde habitou emquanto foi pobre. O que ella 
ama nao e precisamente um homem, mas uma luz^ 
sim, uma luz, que todas as noites, quando vivia na 
miseria, via brilhar n*uma trapeira visinha. Ora 
essa luz allumiavao quarto de um aventuroso rapaz^ 
um D. Quixote parisiense, que, entre muitas heroi- 
cidades, praticdra a de se reduzir voluntariamente a 
pobreza para valer d desgra^a de um amigo. E' o 
conde de Villiers, isto d, Julio Sandeau. Ambos po- 
bres^ ella e elle, essa luz, para ambos mysteriosa^ 
^ o trago de uniSo que prende as sua^ a\mas. 



NINHO DE GUINCHO 47 

Fugindo ao amor do principe, como a uma pai- 
sagcm que i forga de ser serena se torna monoto- 
na, Irdne de Chateaudun disfarqa-se em operaria, 
interna-se na provincia, e ahi encontra um terceiro 
amor em Edgard de Meilhan (Gautier), que, louca- 
mente apaixonado, chega a abandonar o seu outVora 
tranquillo castello de familia. 

Acontece, pordm, que sao amigos os trez perso- 
nagens masculinos do romance e que uns aos ou- 
tros contam as peripecias da sua paixao pela mes- 
ma mulher, que com nomes suppostos os deso- 
rienta- E' finalmente o conde de Villiers, a qilem o 
amigo pagou tudo o que Ihe devia, que consegue 
desposal a, mas o principe de Monbert e Edgard 
de Meilhan, vindo a reconhecer a identidade de 
Irdne de Chateaudun, julgam-se ambos airaigoados 
pelo conde de Villiers, desafiam-n'o, e Edgard de 
Meilhan mata-o em duello. Irene, fulminada pela 
morte do seu noivo, morre de desgosto. 

Tal 6, muito em esbo^o, o enredo d'esta novella 
cheia de imagina^ao e de imprevisto, as vezes for- 
gadamente romanesca, em que as maiores excen- 
tricidades se acumulam e baralham, chegando ma- 
dame Emile de Girardin a vestir phantasticamente 
de turco Edgard Meilhan, certamente para lison- 
gear Gautieri que encarnava aquelle personagem, 
c que, como se sabe, adorava Constantinopla. 

E! & India, sua predilecta, que Mery vae buscar 
muitas vezes, n'este romance, como em tantos ou- 
tros, comparacoes brilhantes de pittoresco, como 
quando descreve o ciume dos tigc^^ tvo^ ^^tw^c^^'Sk. 

Julio Sandcau foi dos quatro o c\u^ trifct^o's. c<^^- 



48 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PERElRA 

borou, mas, em compensa^ao, quao vivo e imagi- 
noso e todo o IV capitulo escripto por ellc; quae 
palpitante de humorismo o quadro em que salva de 
urn incendio lady Penock, uma figura secundaria^ 
mas comicamente acceiituada-, quao dramatica a si- 
tua(;ao do sacnficio a que secondemnouo conde de 
Villic's em proveito do seu amigo Frederico ! 

Madame Emile dc Girardin vence triumphalmen- 
te a grande responsabilidade do seu papel de pro- 
togonista E'ella que esta sempre em scena e e ella 
que, para assslm dizer, nortea a coUaboracjao dos 
outros, dando Ihcs a deixa, como se diz no theatre, 
proporcionando Ihes o motivo qee dies a bel-prazer 
variarao nos capitulos seguintes. 

E por mais caprichosas e peregrinas que sejam 
as variacoes de Gautier, de Mery e de Sandeau^ 
ella, sempre com a mesma firmeza de pulso, apa- 
nha no ar as espheras de crystal com que elles sc 
entretiveram a fazer jogos malabares. 

Ha varias traduccjoes portuguezas da Dama das 
camelias, estd traduzida, emedi^ao de luxo, a Vtda 
de urn rapai pobre, nao posso explicar portanto o 
facto de nao ter sido nunca vertida para a nossa 
lingua a Cru\ de Bern/, que se pode considerar a 
torre Eiffel do romantismo, e que daria occasiao a 
que quatro escriptores portuguezes se medissem em 
duello litterario com as sombras gloriosas de outros 
tamos escriptores francezes. Uma tal traduccaose- 
ria duplamente interessante. 

Meu caro Dom Gastao, ia a dizer meu caro... 
(o seu nome, o seu verdadeiro nome) foi por con- 
seJJio sea que eu Ji a Crui de jBerny'^^^o\?»^m^\ia 



NINHO DE GUINQHO ' 49 



honra que eu escrcvo csta carta e escreverei por 
Tentura outras, procurando sempre urn assumpto 
nas recorda^Ses saudosas do romantismo, de que 
Voci i ainda hoje um representante impenitente. 



iSgi-^Setembro. 



vu 

ANDAR A FLAINO 
(Carta a Candido de Figueiredo) 

Meu caro Candido de Figueiredo : 

Reli agora com muito praser, e algum aproveita- 
Oiento, OS seus anigos sobre lingua portugueza, 
coordenados em livpo e em s^gunda edi^ao. 

Voce sabe que eu me dou i leitura d'estas coisas, 
a que muitos chamam desdenhosamente bagatellaSj 
e que o faqo desde o tempo em que Camillo Cas- 
tello Branco me emprestava os seus classicos, para 
que OS eu estudasse. 

O seu livro agradou-me principalmentecomopro- 
Icsio contra esta onda, sempre crescente, de inno- 
tadores estramboticos, galliciparlas epilepticos, que^ 
principalmente nos ultimos annos, teem posto a po- 
bre lingua portug^eza pelas ruas da amargura. An- 
da de rastos a pobre lingua, a pontap^s de mau sen- 
so e peior educac^ao litteraria. Heldsl (como agora 
)& se escreve d franceza) que miseria e que estragol 



NJNHO DE GUINCHO 5l 

Eu, meu caro Candido, sou, pelo que toca a lin- 
gua portugueza, e outras coisas egualmente portu- 
guczas, urn conservador moderado. 

Explicarei. 
" Acho que a lingua deve cncostar se tanto quanto 
possivi 1 d auctoridade da sua origem, e conservir 
OS seus bras5es de famjlia, como qualquer homem, 
nno seiido engeitado, conserva os appellidos de seus 
paes. 

Mas nao sou urn intolerante em face da natural 
e^oluqao de todos os organismos vivos Uma linsua 
cstd sujeita a modifica<;6es que o tempo acarreta 
inev'tavelmenre, porque o t:?mpo traz factos novos, 
de qualquer ordem que sejam^ a que necessarian 
merte hao de corresponder palavras novas. 

D'ellas, umas sao nacionalisadas pelo uzo, e ate 
pela necessidade de ad^p^ao, visto nao possuirmos 
termo equivalente. Outras, sao auctorisadas pela 
marca da fabrica com que nasceram, como alguns 
neologismos inventados por Castilho e Camillo. 

Nao pretendo que se escreva hoje como escre- 
via frei Luiz de Soiisn, mas nao consinto que se 
enxote brutalmente frei Luiz de Sousa, pelo facto 
d'elle ter sabido e escripto a sua lingua a primor. 

E* certo que nenhum de nos anda agora vestido 
de casaca, calj;ao e rabicho como n'outro tempo, 
mas d'lihi ate abandonarmos o mais opulento recheio 
da n>ssa lingua para cosinharmos uma indigesta mi- 
xordia de barbarismos acirrantes, vae uma grande 
difFeren<;a. 

Pols o que se vg 6 isto, a mixordia ncvatvl^v^- 
lada com uma extrangdrite p^tuVaxvx^^ o^^ c^^^ 



52 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

.... ..■■»• 

de escarros e salpica de latna a lingua portugueza. 

Pelo que respeita i syntaxe, que 6 o principal 
ponto de vista do seu excellente livro, o que ahi se 
vSy bem claramente visto, e que se faz gala de des- 
presar uma coisa que se tern aperfei^oado $ucces- 
sivamente desde o tempo de Femao de Oliveira, e 
que por isso ]& i antiga : a grammatica portugueza. 

Nao se trata de saber se tal locu<;ao i conforme 
ao genio da lingua ou pelo menos & razao, isto 6^ 
se pelo menos faz sentido, logicamente; nao se tra- 
ta de saber como em identidade de circumstancias 
OS bons mestres resolveram o caso e cortaram a 
difficuldade; finalmente, nao se investiga se no the- 
souro escripto dos diccionarios ou no thesouro oral 
do povo seria possivel encontrar uma locu^So na- 
cional equivalente ao estrangeirismo que se filou 
pelo gasnete n*um romance francez. 

Mas isto p6de ser escrever; nSo & porim artede 
cscrevcr, ou, se quizerem, escrever com arte. 

E' encher papel como se enchem chouri^os: en- 
sacar phrases dentro de phrases, para escrever c 
andar, como os caes de Nillo, que vao andando e 
bebendo. 

Admitto, e a consciencia me diz que o tenho feilo 
algumas vezes, que de longe a longe, por necessi- 
dade ou ainda por variedade, se aproveite uma pa« 
lavra extranha. E\ dei^e me assim dizer, um effeito 
de luz que o pintor parcimoniosamente procura. Mas 
recuso em absoluto o systema, que hoje vae sendo 
contagioso, de prescindir do portuguez para, com o 
fim de ter evidencia ou deacobertaraignorancia, ir 
acintosamente de encontro a todas os bou tvonnaa 



NINHO DE GUINCHO 53 

e a toda a disciplina grammatical da nossa lingua. 

Se isto pudesse ser assim, o melhor que tinha- 
mos a fazer era fechar a porta e liquidar, porque a 
lingua e seguramente um dos elementos constituti- 
▼OS da nacionalidade, e entao era certo que estava- 
mos a deixar de ser portuguezes. 

VocS, meu caro Candido de Figueiredo, protesta 
contra a enxurrada, erguendo na mao os melhores 
diccionarios e a obra dos mestres egualmente au- 
ctorisada como exemplar na pureza do dizer. 

Eu quizera tambem que Voce de quando em quan- 
do fizesse emergir i luz da publicidade os bons lu- 
sitanismosy que andam perdidos na linguagem das 
provinciasi onde a nacionalidade dos costumes e 
mais intensa e que vantajosamence podem supprir 
algumas frandulagens de contrabando. 

Ahi vae um exemplo. 

A pag. 209 do seu livro, diz, VocS, com indiscuti- 
vel verdade, que Jlanear ou flanar nao existe em 
portuguez. 

E' mais uma inven^ao dos francelhos, que nem 
sequer gripham o vocabulo, quando o empregam, 
obstando assim a que os incautos e inexperientes 
fa^am reparo na procedencia do tercno, e se acau- 
telem. 

MaS| meu caro amigo, sq Jlanear oujlanar e galli- 
cismo encruado, andar a Jlaino ou talvez ^amar 
auctorisa-se com o uso da linguagem popular falla* 
da na nossa provincia da Extremadura. 

A primeira vez que eu ouvi dizer andar a flainOy 
justamente na accep^ao do flamr frauctx^ I'^x ^^s^ 
Sctubal 



54 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Tinha-me sentado n'um banco do Passejp dp 
Bomfim, ao lado de um velho pescador^ que, co- 
mo eu, gosava a viracao suave do fim de uma tar- 
de de verao. 

Chegou-se ao pd de mim, a pedir me esmola, um 
rapasito malirapido, de olhos ladinos e rosio tri- 
gueiro. Dei-lhe dez reis— era ainda o tempo do di- 
nheiro — e o velho pescador, logo que o rapaz se 
aflasiou, dirigiu-me a palavra para commentar pou- 
co favoravelmente o meu acto: . . 

— Mai empregada esmola! Este rapaz i um va- 
dio, que anda a Haino, envergonhandD as barbas do 
pae. 

. Fez-me impressao o andar a flaino^ que, depois 
de interrogado o pescador, achei ser corresp nJenr 
te ao flaner francez, isto d, andar de um lado para 
outro sem fazer nada 

Paguei a dupla li^ao ao pescador, com quanto eilc 
so tivesse em vista ensinar-me uma coisa : que era 
mais necessitado que o rapaz. 
. Propuz-me logo a tarefa de procurar nas obras 
de Bocage a locucao — andar a flaino. Com traba.- 
Iho e paciencia tudo se consegue- Encontrei-a no 
soneto intitulado Fwta cores: 

Quando has de consennr, cruel fortune, 
Ao mag-o, de olho azul, de cor morena, 
O bem de andar a flainoy e d : ir d tuna f 

Ora i verdade que Josd Feliciano de Castilho 
suspeita que este soneto nao e de Bocage, entre ou- 
tras razoes peloemprego daexpressao^j/^iara //jiV 
^a, que o douto critico de a\gum modo cttv^uta 



NINHO DE GULNCHO bSt 



com esta pergunta : serd o anti-bocagiano gallicisoia 
flaner? 

Mas e justamente por causa do andar a flaim 
que eu attribuo a Bocage este soneto. : 

E' expressao da sua terra, que elle ouviria muir 
tas vezes em pequeno, e que relembraria com a 
mesma desvanecida saudade com que o grande Ca? 
millo empregava asexpressoes daprovincia de Traz» 
os-Montes, nobilitando-as liiterariamente com estn 
e quejandas notas: uEu leio muito pelo diccionario 
inedito do povo d'aquelias provincias, que sabe a 
lingua portugucza como frci Luiz de Sousa (O bem 
e o maly cap IIL) 

E jd que tornei a fallar em Camillo, recordareia 
VocS que elletambem empregou a palavra //a/«a vi- 
sivelmente no mesmo sentido de Bocage e do pes- 
cador de Setubal : 

a Manuel Vieira nao applaudia nem censurava as 
bandarrices e o flaino aparalvi'hado do seu collega.> 
(Demonio do ouro, i.^ vol., pag. 75.) 

Vem istOy e podiam vir ainda outras cousas por 
suggestao do seu livro, para dizer quen6s remenda- 
mos a lingua portugueza por irritante ignorancia 
do que temos de portas a dentro. Lemos s6 fran- 
cezes, e nao ouvimos portuguezes, os instruiJos e o 
povo, que tambem tem a sua linguagem secular nao 
menos nacional por ser humilde. 

Em boa hora venha o seu protesto, porque p6dc 
servlr de exemplo. Felicito-o, porque elle significa 
que Vocfi ama a sua terra, e o que e propriedade 
d'ella por direito de inventario. M^% V^^X\tcv^-^\\^ 
se continuar a querer coavenc^t o^ vav^^ti\\KC^^^\ 



56 C0LLEG9&0 ANTONIO MARIA PERBIRA 

que o sSo por systema, filho de uma commodidade 
muito aprasivel d ignorancia. Deixe-os em paz e vi, 
andando; aprenda cotno tem feito at6 hoje, paraen- 
ttnar depois. Nao veja notnes nemhomens, que^a 
minha philosophia; sake por cima <le vaidades e de 
conflictos, para honrar a necessidade de trabalhar 
com alguma cousa que seja mais prestadia do que 
lesponder bem aos que nos querem mal. Olhe que 
}A U disse Gil Vicente : 

Que vanas conversaciones 
No traen ningam provecho. 



1891 — ^Novembro. 



VIII 



IMPARQALIDADE POLITICA 
DE SANTO ANTONIO 



Os partidos politicos — no tempo cm que a po- 
Utica nao era um carranjo* de occasiao, mas um 
sacri6cio sincero e per vezes heroico — punham a 
sua f^ na protec^ao dos santos mais abalisados em 
cotacao milagrosa. 

Durante as ardentes pugnas entre constitucionaes 
e absolutistas, durante o cerco do Porto, os migue- 
listas contavam com o S. Joao do Bomfim, os cma- 
lhados» com o S. Joao da Lapa, e os primeiros re- 
publicanos portucnses, porque jd n'esse tempo os 
havia, como conta Garrett, confiavam no S. Joao 
de Cedofeita. 

Ora Santo Antonio, santo de casa, o mais popu- 
lar entre portuguezes, por ser tambem portuguez, 
nao podia deixar de inspirar a devoi^ao dos partidos 
militantes. E militantes eram em verdade, porque 
pugnavam com as armas na mao. Aquillo entao era 
a valer ; hoje 6 a fingir. 

Liberaes e miguelistas se a^t^aswiv cotx\ ^^\>x^ 



58 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Antonio. Uns e outros o traziam nas palminhas :— 
Men Santo Antouinho onde te porei? 

Mas o sanio, sendo portuguez, nao queria favo- 
recer abertamente uns patricios contra os outros* 
Comtudo nao Ihe parecia bem conservarrse absolu- 
tamente neutral, indiffcrente, visto que se tratava 
de uma questao de familia, e elle era da familia. 

Entao, como homem intelligente e illustrado que 
tinha sido, resolveu fazer favor para a direita e fa- 
vor para a esquerda, de modo que ninguem pudesse 
queixar-se de que um sanio portuguez se fizesse 
surdo a clamores de portuguezes, 

Os realistas contavam com elle. Os fradcs, prin- 
cipalmente, invocavam-n'o como um protector par- 
cial. Enganavam-se. Santo Antonio nao era por uns 
nem por outros. Era por lodos, porque uns c outros 
cram portuguezes, e elle tambem. 

Na sua cegueira parti Jaria, os miguelistas iam ati 
ao ponto de propalar que Santo Antonio algumas 
vezes fall^ra em favor d'elles. 

Ahi vai um exemplo. 

A Chronica Const itucional do Porto^ no seu nu- 
mero de i3 de agosto de ibSi, dava noiicia de que 
um piquete do bataihao de cacadores 3 encontrara 
no sitio da Ramada Aha setc gucrriihas do cxcrcito 
do visconde de Mont'Alegre, que andavam rouban- 
do OS casaes. 

Dos sete aventureiros miguelistas seis foram nior- 
tos pclos soldados liberaes ; o setimo fugiu ferido, 

Na algibeira de um dos mortos foi encontrada 
est a carta. 

irAleu Joao. Alembro-te que t\ao t^ tsc^^^a^ do 



NINHO DE GUINCHO 5g 

que te dissc o sr. Fr. Jose, que batalhasscs em 
defcsa de nosso Senhor Jesus Christo, de Sua Mai 
Maria Santissima, e do Sr Santo Antonio do Con- 
vento, que os herejes malhados querem desterrar 
de Portugal. Nao poupes malhado nenhum, porquc 
assim o disse o Sr. Santo Antonio A Maria Benta 
no dia da Percincia depois da Comnciunhao, e nol-o 
contou o Sr. Fr. Jose, que he urn Santinho, e me 
tern trazido sempre dinheiro para meu sustento e 
das crian^as. Poe sempre os olhos em Deus e 
quando saqueares o Porto traze-me algum cordao 
de oiro, um xaile e um vestido de seda, nao deixeis 
aos malhados uma paiha, porque os herejes nao 
podem possuir nada, e pela heresia, tudo fica sendo 
da Igreja que escomungao e do Santo Papa, que 
deo Bulla para nds ficarmos com o que Ihe tirarmos. 
Dcus te ajude como te deseja a tua — adeusinho — 
Rosa,> 

Mas como fosse tardanJo um milagre decisivo, 
abnram-se pouco a pouco os olhos aos miguelistas, 
Perceberam que Santo Antonio nao se queria com- 
promctter, antes viver bem com todos. Descobriram 
a tactica do thaumaturgo, e dizi^m entao, por ironia, 
aos malhados que se nao fiassem muito no santo, 
porque Ihes nao Valeria tanto que os livrasse de 
uma grande sova. 

Tambem exemplificarei este caso, soccorrendo- 
me ainda A Chronica Constitucional do PortOy de 19 • 
de setembro de i832. 

Transcrevo textualmente : 

iCerta Lesbia portuerise, que sempre foi exaltada 
liberal^ mas que, na nossa austnd^^ ^^ ^^€\cfia^ 



6o COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

(per nao perder tempo) d'um Alferes dc voluntarios 
realistas, recebeu ha dias uma carta do seu amante. 
O bravo voluDtario, que parece ser uma das boas 
columnas do altar e do throno, depois de rasgar 
muita ba£ta e de encarecer as penas que tern cor- 
tido pela ausencia do seu mats que tudo^ remata 
assim: cSou de parecer que por todos os modos 
possiveis te evadas da cidade, porque de duas uma: 
ou n6s nao podemos entrar no Porto, e n'esse caso 
nao fica pedra sobre pedra, pois que a nossa arti- 
Iberia ha de fazer o seu dever ; ou entramos depois 
d*uma refrega violenta, e entao o saque ^ de fi^ e 
OS excessos hao de ser inevitaveis. Em ultimo caso> 
pe^o-te que fujas do sitio por onde nos entrarmos, 
porque aos primeiros que se nos apresentarem neai 
Santo Antonio e capaz de valer.» 

((Temos por certo que nenhum dos membros 
d'este argumento bicorne chegari a realisar-se. 
Vejase entre canto quaes sao as inten^oes de tal 
gente. Sangue, roubos, saques, abomina^oes — eis 
o que entret^m a imagina^ao da canalha miguelista. 
Mas em a tropa e os guerrilhas se convencendo de 
que nao pode haver saque, porque as trincheiras 
nao se levam assim ds maos lavadas, e de que as 
bombas nao produzem estragos nem atemorisam 
ninguem, adeus Viscondes, adeus Capitaes-mores, 
adeus frades ! ! ! Levam tamanha sova que nem Santo 
Antonio d capa\ de Ihes paler. 9 

Estavam as coisas n'este pe, quando uma esper- 
talhona de Guimaraes, absolutista ate d raiz dos 
cabellos, se lembrou.de p8r em cheque Santo An- 
tonio obrigandO'O a cmamfesur*st«^ 



NINHO DE GUINCHO 6l 



E* ainda a Chronica Constitucional (de 24 de se- 
tembro de i832) que nos vae historiar o caso: 

cEis aqui uma anecdota que mostra, a um tempo, 
como teem procurado e conseguido illudir os povos; 
e quaes sao os sentimentos religtosos que desgra- 
^adamente Ihes teem inspirado. 

cCorreu em Guimaraes que o exercito miguelista 
entrava no Porto no dia 24 de agosto. A mulher 
do pregoeiro d'aquella villa (pessima mulher, com 
presumpgao de bcata), moradora d Torre dos Caes, 
come^ou a dizer em o dia 23 a toda a visinhan^a 
cque na sexta feira 24 se ia arrazar e queimar a 
cidade do Porto, e todos os malhados : e que elia 
havia de ouvir no mesmo dia a missa das almas, 
para que ellas ajudassem Caspar Teixeira e sua 
divisao a queimar tudo.» — Com effeito na sexta 
feira de madrugada, a boa mulher accendou uma 
vella a Santo Antonio, e partiu para a missa... » 

A beata da Torre dos Caes era esperta, mas 
Santo Antonio ainda o foi mais, o que alids nao 
admira. 

Apertado entre a espada e a parede, Santo An- 
tonio desentalou-se habilmente. 

Sabem o que acont'eceu ? 

Referindo-se d solerte vimaranense, continua a 
Chronica : 

c...passado pouco tempo vao os visinhos cha- 
mal-a para acudir ao fogo em sua casa ; e como all 
nSo tocam os sinos a fogo, ardeu-lhe tudo, sem poder 
salvar um s6 traste.» 

A li^ao foi mestra. A beata queria incendiado 
o Porto com o auxilio de Santo K.tvx.o\\\o\^ ^\sv^«i^ 



62 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

dio lavrou mas foi na sua propria casa. Toma ! Bern 
feito I 

Pena tern a gente, as vezes, de nao ser santo . • . 
para castigar assim. 



1895 — Maio. 



IX 



CHRYSANTHEMOS 



O chrysdnthemo, continuando na sua marcha de 
triumpho^ foi agora receber as homenagens dos 
portuenses, em plena glorifica^ao no Palacio de 
Christai. 

Parece uma cclebridade que faz a sua tournie^ 
come Sarah Bernhardt, como Novelli, arrancando 
applausos, conquistando ova^6es. 

E' um potentado do Oriente, um principe do Ja- 
pSo, ds vczes vestido de oiro, como ha Boule d'or^ 
outras vezes flammejado de purpura, como na Atda^ 
'Buas bellas variedades; adorado pela Imperairt\ 
JPrimavera^ biographado por Loti, um academico 
-de Franga, i a flor da moda na Europa elegante, 
^admirada pelas mulheres, cantada pelos jornaes. 
' E, comtudo, este maravilhoso principe do Orien- 
te tern em Portugal umas obscuras primas, burgue- 
^zaA e modestas, que vivem nos quartos andares em 
-Tasbs de barro e que apparecem nos passeios pu- 
-blicos misturadas com a charra hortensia^ a flor 
:patarata de rodos os arraiaes sa\o\o^. 



64 COLLEC9AO ANTONIO MARU PEREIRA 

Sao as meninas Despedidas de petao^ que, com o 
seu vestidinho de chita barata, e os seus brincos 
falsos, nem sequer ousam ir cumprimentar o ma- 
gestoso parente, que certamente as nao quereria 
rcconhecer. 

. Em Lisboa deu-se o caso notavel de estar o 
chrysdnthemo do Japao sumptuosamente hospedado 
no palacio da Escola Polytechnica, e das meninas 
Despedidas de verao^ suas primas, nao passarem do 
Jardim do Principe Real, onde eu proprio as vi 
n'um canteiro a contarem o numero de trens que 
passavam para o beijamao do seu augusto parente. 

Ha destinos bem differentes dentro da mesma 
arvore genealogica ! 

Ao passo que as Despedidas de verSo^ anemicaS| 
pallidas, rachiticas, parece terem nascido fadadas 
para viver n'uma trapeira ou n'um caixote de pinho, 
o chrys^nthemo do JapSo, magestoso e forte, beU 
lamente colorido, altivo e brilhante, veio ao mundo 
para ser admirado e para cingir uma coroa, a coroa 
do outomno, como diz Alphonse Karr, o cortezao 
das (lores. 

. Mas nao pdra decerto aqui a aha predestina<;So 
do chrys^nthemo, que, florindo no iim do estio, 
como que estava reservado para ser a flor symbo- 
lica de todos os amores tardios, que luctam entre o 
fogo de uma primavera extincta e o gelo de um in« 
vemo proximo. 

Aqui estd talvez a razao por que o chrysdnthemo 

encontrou t3o rapidamente uma acceita^ao univer* 

sal, no Levante e no Ponente, na Asia e na Euro- 

pa, prochmandO'SC rival da encantadora rosa, que 



NINHO DE GUINCHO 65 



i a flor da primavera, a divisa dos novos, o sym- 
bolo dos coracSes ricos de seiva e palpitantes de 
sangue vigoroso. 

Dividindo entre si o impcrio do amor, o chrysdn- 
themo e a rosa ficaratn symbolisando toda^a am- 
pla historia do cora^ao humano, representando a 
profunda psychologia das almas deliciosamente 
atormentadas pela tempestade de uma paixao ar- 
dente. 

A rosa, posta sobreo peilo dos novos, canta urn 
hymno de esparartqa, parecc brotar d'erttre cham- 
mas, como ife^'flbTis^^ na ifat^ra de Urn vulcao em 
actividade. 

O.chrysdnthcmo, ^enflorando a boutonnidre dos 
velhos, nasce de ,cinzas quentes, que solucjam a doce 
melodia da vaga ao expirar amorosa sobre a areic'j 
loira.. , 

A rosa perfuma os canlicos dos jovens poetas 
com a fina. ess^ncia capitosa, que parece ter sido * 
destinada para as estrophes e para os len^os, por 
igual rendilhados. 

'. Aqui'tenho eu, deante de mim, o livro de um no- 
vo, D Livro da minha alma^ de Luiz Guimaraes 
Junior; o successor de uma lyra de ouro ; e o aroma 
que se. exhala dVssas paginas em flor, cheias de 
niocidade e de ft, e o ^roma vivo, penetrante da 
rosa, que desabrocha em abril. 



^'Do tltaf do Am6r j^-rquito pouco disto.. 

Vejo na aurora 'qu0 4i»;n|tfbliaa encobrc, 
^-^' A doc4„^|da que er\tre os ceus avisto^ 

Quai Circe linda a cujo olhar roe dobrt. 



66 COLLECfAO ANTONIO BIARIA PEREIRA 



E € esse o premio que a sorrir coaquisto. . . 
Gosto da Infancia, tenho amor ao pobre, 
Mas fa((0 ainda este pedido nobre. 
Oh I meu sublime e incompr^hendido Christo 1 



Se ella soltar esta innocente queixa : 

Que eu nao a adoro e que a nSo amo... oh I deiza 

Sentir-lhe a voz de beijos sufTocadot, 



E nos seus olhos a brilhar incertos 
Ltr o que dizem quando estSo abertos, 
L€r o que peasam quando estio fechadot. 



E' a rosa do amor a florir e a cantar em plena 
primavera da vida sobre a batina de uni estudante 
de Coimbra, em cuja bocca um ligeiro bu^o de 
adolescente nao p6de encobrir sorrisos de felicidade^ 
nem abafar hymnos de esperan^a. 

Mas ainda ha poucas horas eiicontrei, no polo 
opposto, o chrysanthemo do outomno, vicejando 
sobre os destrogos de uma primavera longtnqua^ 
bello ainda no colorido da expressao, mas privado 
do aroma que perfuma a corolla, o pequenino bou^ 
dotr da rosa primavcril. 

E^ outro poeta que falla, mas triste e sofitario^ 
carpindose de que ]i vd tao adeanta4a para elle a 
estaqao invernosa, que 2Xi as crean^as, as rosas do 
jardim da infancia, a mSo da Fatalidade Ihe desfolha» 
para deixar apenas de pe o chrysdnthemo, que nas- 
ce tarde, na gleba esfriada f>elo gSlo. 

E' Bulhao Pato que, no Monte de Caparicai chora 



NINHO DE GUJNCHO 67 

a perda de uma crean^a querida, que todos os dias 
costumava ir cantar debaixo da sua janella uma 
mandolinata feita de gorgeios matutinos. 

Parece que os versos do poeta passam atravis 
de um chrysdnthemo de oiro, como a Boule dCor^ 
mas frio^ porque o inverno proximo o arrefece, e 
desprovido d'esse gasto aroma, que subiu alto, e se 
dispersou no azul, talvez perto das estreilas. 

Nao vis para a valla escura ; 
Vetn para o meu Curasao ; 
Vcm, que a*esta sepuhura 
De taatos sonhos pasaadoa, 
Inda OS mortcs adorados 
Vivem da minha paixSo ! 

Vivem da minha paixao, dos tempos idos em que 
a Paquita nascia, vivem em novembro como o 
chrysinthemo^ o chrysinthemo, a corda do outomno, 
a fldr symbolica dos amores tardios, que luctam 
entre o fogo de uma primavera extincta e o gSlo de 
um inverno proximo* • . 

Quern £ que nao teve no coragao uma rosa, em 
abril, na primavera da vida, na esta^ao do sonho 
e do idillio^ uma rosa de p^talas carminadas, res* 
cendente de inebrlante perfume ? 

Mas quem i, que nao encontrou jd tarde, entre 
as ruinas do sonho e os destro^os do idillio, um 
chrysinthemo outomni^o, o ultimo sorriso da vida 
desenhado no corolla de uma fljr retardataria ? 

Pierre Loti deu o titulo de Madame Chrysanlkimt 
a um dos seus livros. 



6S> COLLEC^Aa ANTONIO MARIA PEREIRA 

- Madame, estd certo, Nem; podia ser ode outro* 
IBodo. :?■:"-:■■• . ; . - '. , .■ .. -• ■• :-^ rr.>'.r^::j 

A' rosa cabc, porem, o tratarmnto d^mademm^i 
s^//e, porque nenhuma outra flor traduz meUior do 
que 'a rosa a alegria, a graga, a frescura^da moci-: 
dade* =-^H. v cv-,- -• -■■ .'-""■ ..-i 

^Ma(iame Chrysanth^me, sim, porque taoibena 
nenhuma butra flor traduz melhor do qaeochry^. 
sdnthemo o sonho de uma sdsta de amor, quando 
o sol ja vai alto, e as spmbras da noitQ come^am a 
descer do cimo de montanhas geladas. 

Que OS novos tenham paciencia, e fiquem espe- 
rando pelo regress^ da prima vera, porque aos no- 
vos nao deve ser penosb esperar/ visto que ainda 
ha pouco come^ssr^m a vivef. 

Agora, o momento 6 dos velhos, sao elles-que 
ccfeb^Sfe^A^ftsta'dd cKrysdhthemo com o'fenthtiSias- 
illo di^^^lieini- thegaildo ao quirito acto da^-ViduV'le-o 
cdrihljtii^qu^ ifts*"')ictWz6s db^ Seu tempo forittv nffi^ix 
Ihef es' encaBtacIorais, ' que ainda vialem uma pva^Sb. 5 

Vemahf^ Sieirah Bernhardt, que tambem decetto- 
tomard logar no cortejo do chrysanthemo. 

Quandb faa antlos ella esteve em Lisboa, mr. Ok- 
mdia tinha-lhe offerecido uma rosa, que a grande 
actHz^viu ^qUeirtiar-se no calor do seu proprio cora- 
^ao. "^ , . ' : . 

r 01 que fdi feito d'essa flor secca, ninguem sab'c. 
Mr;- Datitiala pai^tiu, nao sei para onde e, ao con— 
tfitnft d^s'&hdorinhas errantes, nao voltou. 

Sarah Bernhardt chega de novo a Lisboa, na 
^j^^Dt^d^chrysdntemos, e serd essa, provavelmente, 
a flor capaz de traduzir o que se passa no cora9ao ; 



NINHO DE GUINCHO 69 

de uma grande artista, onde a paixao resuscita todas 
as noites e um polvilho de neve come^a a cair ieve- 
mente, annunciando o inverno da vida. 

Pois bem. Enfeixemos um bouquet de chrysdn- 
themos para depor aos pes de Sarah Bernhardt. 



1S95. — Novembro. 



CONTRATOS DO COR\GAO 



Apesar de estarmos n'um periodo de penitencia, 
a dois passos das Endoen^as, o Amor, este eterno 
pagSo de todos os paizes, nao perde pitada. 

Ainda ha momentos li eu, n'um jornal do Alem- 
tejO) a pequenina historia d'uma galanteria amorosa 
implantada em Montem6ro-Novo no domingo de 
Ramos. 

E' a dos contratos do cora^ao. Sabem ? 

Vou transcrevei-a, que sao poucas linhas : 

FESTA DOS RAMOS 

ctA'manbS, na egreja Matrix, realisa-se esta tradicional 
festa, dedicada aos novos 

cN'este dia, i entrega do ramo bento, sao firmados os cht- 
mados contratos do cora<;So. 

•Quantas alegrias e felicidades se disfructa-n pelo fiel 
cumprimento d'essas escripturas ?.. . 

«£ qvantas desillus6es e miserias ? . . . 

€tMas. , . sSo costumes.* 



NINHO DE GUINCHO 7 1 

Naturalmente a troca de ramos estabelece entre 
um rapaz e uma rapanga um contrato de escravi- 
dao amorosa. 

Foi o ramo ofiFerecido e acceito ? Pois bem ! o 
contrato fica lavrado : devemo-nos reciproca leaida- 
de ; seremos fieis um ao outro — palavras tabellidas 
dos contratos de amor. 

Mas ds vezes, como acontece em muitos outros 
contratos, nao 6 respeitada a escriptura, e o peior 
6 que, no amor, o lesado nem sequer pode voltar-se 
para a Boa Hora, aggravar para a Rela^ao, recor- 
rer para o Su^ reiro. 

Se apitar, nao Ihe acudird ninguem, nem a poli- 
cia, nem a guarda municipal, ningue n. 

Por isso figuraram talvez cs antigos o anr.or n'ura 
menino alado. 

Comq a crean^a^ tern caprichos indomaveis, e 
quandobate as azas nao ha meio de Ihe deitar a mao. 
' A este respeito sintome lentado a contar-lhes um 
caso tao authentico como o diluvio universal e a 
guerra de Troy a. 
Era uma vez uma actriz. 
Chamava-se Leontina. 

Nao seria este o nome que Ihe puzeram na pia 
do baptismo. Uma coUega dizia malevolamente que 
o verdadeiro nome d*ella era Engracia de Jesus^ 
segundo resava a certidao de idade que manddra 
tirar por vinganqa de qualquer conflictosinho de 
bastidores. E Jquando fallava a seu respeito dizia 
sempre : a Engracia. 

Mas o cartaz, que fallava mais alto^ 9or<\\ie. C^U 
lava para todo^^ dizia : Leontina. 



72 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Engracia ou Leontina, o que e ccrto e que ella 
nascera mais para Leontina do que para Engra- 
cia. 

. E foi ella mesn>a a primeira a reconhecel-o, por- 
que lendo uma vez certo romance em voga, e encon- 
trando ahi o nome de Leontina, convenceu-se dc 
que esse nome Ihe ficaria tao bem como o ultimo 
chapeu que comprdra. 

No dia.seguinte, quando se foi contratar com o 
empr^sario, poz o chapeu de Pariz na cabe^a e p 
nome de Leontina na escriptura. 

Ficou encantadora, porque so urn nome bonito 
Ihe faltava para o ser completamente. 

Leontina lembrava o que quer que fosse de leoa... 
Ella tinha, eflfectivamente, alguma coisa de fera: 
despedacava coragoes, dilacerava peitos apaixona- 
dos, espesinhava illusoes e esperancas. 

Mas, tal como a leoa amorosa, as vezes tornava- 
se fera mansa, submettia-se, escravisava-se vo- 
luntariamente. . . por pouco tempo. 

N'essas occasioes deveria chamar-se antes Colum- 
bina. 

Accusavam-n'a de leviana. Na sua vida de actriz 
tinha sempre dois repertorios : o das pe^as e o dos 
amantes. E estes dois repertorios estavam appcn- 
SOS um ao outro : se mudava de peca, mudava de 
amante. 

Uma vez appareceu no camarim de Leontina um 
rapaz de familia ingleza, que Ihe fora apresentado 
e que Ihe offerecera uma rosa de estimaqao. 

Era tao correcto e pautado de maneiras, que da* 
ria d primeira vista a impressao de ^et ^i\o. 



NINHO DE GUINCHO yS 



Os seus amigos diziam-n'o um vulcao coberto de 
gelo, como os da Islandia. 

A rosa foi acceita por Leontina com um sorriso: 
estava lavrado o contrato, como os dos rapazcs e 
raparigas de Montem6ro Novo quando em domingo 
de Rair.os trocam flores na egreja. 

E* certo que a actriz apenas sorrira, mas os seus 
sorrisos eram rosas. . . caras. 

Havia n*esse rapaz, que talvez se chamasse John 
como todo o bom inglez, alguma coisa de novidade 
para Leontina : o seu caracter primoroso, as suas 
maneiras gentis. 

Os outros sempre mais ou menos davam pretexto 
a que ella se desfizesse d'elles. 

Para esses, Leontina encontrava facilmente uma 
phrase justificativa : 

— O sr. offendeu-me hontem. 
Ou entSo : 

— • O sr. nao ^ precisamente o homem que eu 
desejava ter encontrado. 

Equivalia a um mandado de despejo, que alguns 
parecia nao quererem comprehender. 

Mas Leontina, n'essas occasioes, constituia-se em 
tribunal: sentenciava, e o reo, ainda que estivesse 
innocente, tinha que submetter-se. 

E nao era ella mulher que seincommodasse muito 
com as cartas amargas que os despeitados pudes- 
sem escrever Ihe depois. 

Li as, rasgava-as e costumava dizer comsigo mes- 
ma n'um tom de profundo desdem : 

— Sempre o mesmo estylo! Hontem, um a^jai- 
xonado; hoje, um lacaio. 



74 COLLECfAO ANTONIO MARIA PERETRA 

John, entrincheirado na sua galanteria serena, 
muito britannica, pFcndcra Leontina por mats tempo 
do que seria de esperar. 

Era uma novidade na sua vida. 

Alguns dias assaltara-a, vagamente, a ideia de 
mudar de amor, pois que ja tinha mudado de cha- 
peu e de pe^a, quatro ou cinco vezes, sem mudar 
de amante. 

— Mas este homem nao me dd um pretexto ! ex- 
clamava Leontina, quando se reconhecia Bella deante 
do espelho. 

John chegava, offerecia-lhe uma flor, pousava-lhe 
um beijo na testa, como se se tratasse de uma pri- 
meira entrcvista. 

— Como hei de eu dizer a este homem, pensaya 
Leontina, que elle j^ alguma vez nao foi bastante 
delicado comigo ! 

Um bello dia, depois de ter comprado um cha- 
peu novo, Leontina sentiu mais que nunca a sug* 
gestao da novidade. 

— E' do chapeu ! disse ella de si para si, descul- 
pando-se. 

E o chapeu completou a sua obra revolucionaria 
convidando-a a mudar de rumo no amor, sem que 
ella tivesse comtudo a coragem de despedir official* 
mente a Gran-Bretanha. 

John veio a sabel-o. Em vez de recorrer a uma 
folha de papel, para despedir-se segundo o estylo 
dos outros, enviou Ihe uma linda rosa, tao bella 
como a primeira que ella acceitdra, e enviou lh*a 
com um cartao de visita em que escrevera estas 
simples pa/avras : 



NINHO DE GUINCHO yS 

cTenho a honra, Leomina, de Ihe ofFerecer a mi- 
nha ultima rosa » 

Quando Leontina a recebcu, em vez dc desfo- 
lhal«a, como teria rasgado uma carta, foi pdl-a n*uma 
pequenina jarra de Sevres, que Ihe tinham dado 
n'uma noite de beneficio. 
A rosa emmurcheceu, seccou, mas ficou ali. 
Era como um pequenino cadaver mumificado. 
Desde essa epoca, Leontina adoptou uma nova 
phrase para despedir cada amante que comc(;ava a 
aborrecer-lhe: 

— Ah I dccididamentc, John foi o homcm mais 
amaVel que tenho encontrado em toda a minha vida! 
Seguia-se, naturalmente, uma scena de ciume. 
E., . rua. 

Uma noite, Leontina, que nao entrava na pe^a, 
tinha ido para uma frisa. 

Rodeiavam-n'a quatro ou cinco dos scus adniira- 
dores. Conversavam, riam. Ella parecia triste. 

Depois do primeiro acto, John entrdra na pla- 
i€b. 

Procurou a sua cadeira: ficava proxima i frisa 
de Leontina. 

John viu a actriz, cumprinrrentou a gravemente, 
sentou se, e nunca mais tornou a volver os olhos 
para procural a. 

Leontina mudou de humor: ria por tudo e por 
nada. Mostrava se alegre, jovial, a ponto que um 
' dos seus companheiros de frisa Ihe dissera com aze- 
dume: 

— Estds ho;e nas tuas noitcs de •b6lha», Leoa- 
tinal 



76 COLLECgAo ANTONIO MAWA PEREIRA 

Ella pensou entao: 

— De tb61ha» ! Aquelle homem que ali estd nao 
seria capaz de me dizer islo, 

E Leontina continuou a rir, a rir muito, a rir 
sempre, por tudo e por nada. 

D'ahi a dois dias John recebeu este bilhete dc 
Leontina: 

(cEstou muito doente. Pedia-lhe o favor de vir 
ver-me. » 

John nao se fez esperar e encontrou Leontina 
muito aborrecida, sentada n'uma chaise-longue ^ com 
trez ou quatro romances postos sobre o gue'ridon^ 
como se todos quizesse ler e nenhum tivesse aberto 
ainda. 

— Ah! disse cUe ao vSUa. Folgo de que nao.es- 
teja tao doente como decerto imaginou, quando tevc 
a bondade de me escrever. 

— Doente, talvez nao, talvez sim, Aborrecidai 
muito, isso muito. Sabe que mais? 

• — Dir-me ha. 

— Faz-me falta um bom amigo. 

— Pergunte ao seu espelho, Leontina, §e cssa 
phrase poder^ ser verdadeira. 

— Faz-me falta. . . o senhor. 
-Eu!? 

— Sim, porque 6 o homem mais amavel que eu 
tenho encontrado na minha vida. 

— Nao seja lisonjeira, Leontina. 

N'este momento entrava uma amiga da actriz^ 
sua coUega de outro theatro. 

John ergueu-se, estendeu a mao a Leontina e 
d/sse com uma tranquilUdade glacial; 



/- ^ '^^iqii^HO DE GUINCHO 77 

— Desejo immensamente ^ continua^ao das suas 
mblhonis; mintia b6a Leontfna. 

Logo que elle voltou costas, a collega de Leohti- 
Da,''£rt>roxitilsmdOfSie*d'elIa, quasi a fallar-lhe ao ou- 
victe,. pergunfOU-4he :> 
= -^ Entfia ista reatoQ-se? 

Leontina suspirou,^ p6gou n'um livro, folheouo' 
distraidamente, e disse utn momento depois: 

— Para os cora^oes leaes o amor i uma coisa 
impertinentemente serial Este homem e tao ama- 
vel, que nao ousou recordar-me ainJa esta verda- 
de. Mas 6 certo que nao voltarA. 

— Tens razao, filha, os homens sao tao grossei- 
ros, que se nao podem aturar I O meu fez-me uma 
grande scena esta noitc. 

— Com razao? perguntou Leontina ironicamente. 

— Nao! nuncal 

Leontina ergueu-se da chaise-longue ^ estendeu os 
bra^os espregui^ando-se, e disse, perfumando a 
phrase com um sorriso triste : 

— No fim de contas, eu nao tenho motivo para 
queixar-me. John bateu as azas: e o que eu tenho 
feito muitas vezes. 

— Com razao? perguntou a outra pagando-se da 
ironia. 

— Com razao... desde que John me foi apre- 
sentado, porque nenhum homem o pode igualar 
ainda em gentileza de maneiras. 

Este case i uma ligao, um exemplo, alias confir- 
mado pelo jornalista alemtejano, que poz estas pa- 
lavras no seu jornalsinho: 

«E quantas desiJJusdes e misenas'i « « « 



78 COLLECfAo ANTONIO MARU PEREItA 

cMas. . . sao costumes. » 

E' que o mundo de Montcmdr i como o mundo 
de toda a parte. 

As flores trocadas na egreja em, domingo de Ra* 
mos, sao contratos que muitas vezes se rasgam. 

Pois bem ! 6 o que toda a gente tem feito alguma 
vez na sua vida : rasgar um contrato. 



XI 



A BROA 



Durante a semana apparcceram em alguns jor* 
naes epistolas tendentes a recommendar o uso do 
pao de milho como vantajoso para a alimenta^ao 
publica. 

Aii agora, o sul do reino chamava com certo 
desdem ^roeiros aos habitantes do norte do paiz, 
especialmente aos do Porto. A familia de Camillo 
Castello Branco, oriunda de Villa Real de Traz-os- 
Monies, recebeu a alcunha de Brocas posta em 
Goimbra a Domingos Correia Botelho, e cbem ou 
mai derivado, explicou o grande escriptor, o epithe- 
to brocas vem de brda.» 

Portanto a designa^ao de broeiros, que pretendia 
ser ridicula, galgou para alem do Porto, e alcan^ou 
todas as provincias septentrionaes onde o uso do 
pSo de milho estd tradicionalmente generalisado. 

Mas o que foi que determiciou o alM\x.t^ d<s^% ^^x^- 



8o COLLEC9AO ANTONIO MARIA. PEREIRA 

ctores d'aquellas epistolas? Toda a gente o sabe. 
Foi a insufficiencia do trigo nacional para o consum- 
mo publico; o elevado direito de importacao esta- 
belccido pelo govcrno sobre o trigo extrangeiro ; e 
a exorbitancia do premio do oiro com que este tri- 
go tem de sen pago nos paizcs exportadores, 

Entao lembrou o recurso ao pao de milho como 
salvaterio. E assim como um doente em perigo quer 
mudar de travesseiro, para ver se encontra algum 
descan(;o no leito, prete^nde-se que o paiz mude de 
alimentacao, para nao raorrer de fpme, por nao ter 
bastante trigo nacional, nem oiro para pagar a im- 
portacao do trigo extrangeiro. 

O sul, clamante e apprehensivo, voltase para o 
norte do paiz e pede que Ihe acuda com a sua br6a. 

Se o alvitreindicado fosse acceito pelos povos do 
sul, que nao seria facil de conseguir, teriamos que 
a mudan^a de alimentacao acdrretariaufiia trans-- 
forma^ao nos costumes, nas ideas e disposigoes do* 
paiz, porque, segundd o testemunho da sciencia^ a 
alimentjacao inffiie nos actos da vida pisychica ^elSi"* 
accao directa que exerce nos orgaos essenciacs & 
economia animal. 

O lisboeta, conhecido no norte do paiz pela desi- 
gna?ao ironica de alfacinha, passaria, se o alvitre 
pudesse ser adoptado^ a ^^tr'broeiro'cornoo minhd- 
to, 6 transmontano e o beirao, e d'ahi Ihe provi- 
riam certamente id^as, aptidoes e sentimentos dif- 
ferentes d'aquelles que teem ate hoje constituido a 
sua differencia^ao com os povos do norte do paiz. 

Mas o habito forma uma segunda natureza^, e' 
Lisboa, que csti habituada ao ^ao dk tngp^^tiao 



NINHO DE GUINCHO 8 1 

acceitard facilmente o uso da broa de milho, com 
que nao foi educada, a nao ser que Ihe seja impos- 
ta, n'um caso extremo, pela for^a da legislacao co- 
mo o caldo negro aos hahitantes de Sparta. 

E' certo que entre as familias gradas das provin- 
cias septentrionaes, o mollete^ pao molle, como \& 
chamam ao pao de trigo, \A ganhou terrene, sup- 
plantando quasi a br6a^ mas o povo d'essas pro- 
vincias continiia a alimentar se de pao de milho, e 
so n'um dia de festa se permitte, como gulodice» 
cravar o dente no «pao alvo», outra designacao 
vulgar do molUte. 

Jd no seculo XVI era tao raro o consummo do 
pao de trigo no Alto Minho, que o foral dado por 
D. Manuel d villa de Mon(;ao nao o considerava 
uma fonte de receita para o cofre do concelho; — 
por isso de cada fornada de pao bregado (talvez 
rala) e de callo (mistura) que se vendesse na pra- 
^a, mandava cobrar urn real ; aporque de pam moN 
l^te nao pagarao nada.v A base do consummo do 
pao era, pois, o milho, e por isso sobre elle incidia 
o respectivo imposto de real por cada fornada. 

Alimentado pela broa, o homem do povo no norte 
do paiz, cavador ou artifice, differe profundamente 
nos costumes e sentimentos do maltez ou do ope- 
rario das provincias meridionaes. 

E' forte, resistente, valoroso, e tao softredor que 
nao exige ter broa fresca para a sua alimenta(;ao 
quotidiana. Ordisariamente os operarios de cons- 
truc^ao, no Porto, voltam de casa na segunda fei- 
ra^ de madrugada, e trazem dentro de uni sacco a 
brda gue hao de comer durante toda. a ^^vcv^yv^,\^^ 



82 COLLEC9AO ANTONIO MARIA. PEREIRA 

taberna apenas gastam a sardinha assada e o caldo 
verde. Nos ultimos dias da semana o pao estd sec- 
CO, mas assitn mesmo o comem. E quando reco- 
Ihem a casa, no sabbado ao anoiiecer, vao encon- 
trar a mulher p'^eparando a nova fornada de que 
elles se hao de alimentar na semana seguinte. 

Tudo vae bem para o trabalhador do norte em- 
qunto o milho nao encarece. Quando este facto se 
dd, a fome amea^a-o, e o motim popular nao tar- 
da. Assim aconteceu no Porto, ahi por i855, quan- 
do a carestia dos cereaes alvorocou o povo, que 
largou a cantar em grande algazarra: 

Viva D. Pedro V ! 

Vinho a pataco e milho a pinto ! 

Que tempos aqueiles! 

O povo, ameaqado de perto pela fone, e tern en - 
do-a, revoltava-se, mas, na revolta, dava vivas ao 
rei. Hoje, o diccionario do povo nao tem palavras 
amaveis para exprimir a indigna<;ao e a ironia 

E' certo que o trigo, rico em gluten, possue pro- 
priedades alimenticias superiores ao milho, mas nao 
padece duvida que o trabalhador do norte do paiz, 
que s6 do pao de milho se aliment a^ € sddio e ro- 
busto, seja pelas condi<;5es da sua propria existen- 
cia ou por selec?ao de ra(;a, ao passo que o traba- 
lhador do sul, alimentado a trigo, se fizermos ex- 
cep^ao do cartaxeiro, que i um typo de robustez e 
actividade, Ihe fica muito inferior em faculdades de 
trabalho. . 
A alimentagao dura e parca enrift^ce o caracter, 



NINHO DE GUINCHO 83 



torna o homem forte para resistir ds tentacoes dis- 
pendiosas. O trabalhador do Douro e do Minho nao 
applica as suas economias senao ao ouro, porque 
euro e o que ouro vale. Nao compra fundos por- 
tuguezes, porque mudam de coiaqao. E' praiico. Se 
precisa vender o cordao ou as arrecadas de ouro, 
que sao da mulher, apenas perderd o feitio ; o 
peso nao varia como as cotacpoes dos fundos. Nao 
vai ao theairo, a nao ser de graqa, quando os m- 
:{eiros represeniam autos pelo Natal para se diverti- 
renn uns aos outros 

Que o pao de milho, por isso mesmo que possue 
materias gordas, satisfaz plenamente ^s necessida- 
des da alimenta(;ao, prova-o A evidencia o povo do 
none, que d'elle se nutre, e de pouco mais. 

So na doenca 6 que os lavradores e os operarios 
d'aquella regiao conciem molUte^ aconselhado pelo 
medico, por ser de mais facil digestao. Logo que a 
saude volta, volta com ella o regime da broa. 

Pode aff'oitamente dizer-se que todos os homens 
notavcis das provincias do norte jd hoje mortos ou 
velhos, foram educados na alimentaqao da brda, 
Passos Manuel, filno de urn lavrador de Bou<;as, 
nao comeu na infancia outro pao. E na sua legisla- 
^ao ha o que quer que seja de forte e salutar como 
o pao de milho, Na litteratura, Camillo, que foi . 
educado em Trazos-Montes e viveu no Minho, 
Arnaldo Gama, que residiu sempre no Porto, sao 
dois exemplares magnificos de que o estylo € o pao 
que se come. Camillo, se se Ihe toma o verdadeiro 
sabor, nero e o pao francez, nem o pao d^ ^^.^V^' 
5as, nem o moJIete naciona\; € o tovcXo di^X^xti^ 



84 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 



aperfeigoado n'uma cosedura habit, e cosido n'um 
forno bem quente \ Arnaldo Gama e a broa enco- 
deada^ mais dura, mas saborosa e nutritiva. 

Herculano, com ser alfacinha, nada e creado cm 
Lisboa, parece na rigesa do estylo e na solidez dos 
conceitos um escriptor educado a broa Isto tern 
explica^ao. Elle viveu alguns annos no Porto, onde 
foi bibliothecario, alem de ter comido o pao negro 
do CSrco desde i832 a i833. 

Se me fornecerem prosa de trez escriptores do 
Porto e de trez escriptores de Lisboa, occultando 
OS nomes dos auctores, aposto que vou dizer sem 
hesita^ao onde 6 que estd o trigo (ainda que o trigo 
tenha joio. o que frequentemente acontece por cA) 
e onde e que estd o milho, quaes escriptores sao de 
Lisboa e quaes do Porto. 

Pelo que respeita aos poetas, parece-me poder 
asseverar que no Firmamento de Soares de Passes 
se reconhece A primeira vista a farinha do milho 
que alimentou o poeta. Junqueiro, na satyra poli- 
tica, € um broeiro escodeando as institui^Ses para 
as mastigar melhor. Nos epigrammas e ironias de 
Tolentino ha um <palhinha» de dic^ao s6 compati- 
vel com a digestao branda do pao trigo em torra- 
das. A satyra do Juvenal lisboeta agrada ao pala- 
dar, mas derrete-se como a manteiga. E Garrett? 
perguntar-me-hao. Garrett era portuense, e quando 
comeu a brda dura no quartel dos Grillos, fez o 
Arco de San f Anna; quando digeria o pao alvo de 
Lisboa, escreveu as Viagens na minha terra. 

Ahi fica a resposta, sem cercear a nenhuma d'es- 
tas duas obras o seu valor real. 



NINHO DE GUINCHO 85 



A fabrica^ao da brda no Porto exige um pessoal 
sadio e robusto, alimentado por ella. Sao as cam- 
ponezas de Crestuma e Avintes que a padejam, 
passando noites inteiras ao calor do forno em cham- 
mas ; foram elias mesmas que fizeram a amassa- 
dura ; foram ellas, tambem, que conduziram, atra- 
ves dos montcs, o milho ao moinho; sao ainda ellas 
que remando os seus barcos, com uma esbelta so- 
lidez de movimentos, vao levar a brda ao mercado 
na cidade. 

Em Lisboa, as machinas de moagem farinam o 
trigo, que vai ser descarregado a porta do padeiro. 
Mas para amassar a farinha e forneal-a, para o tra- 
balho mais duro de toda a panifica<;ao, sao chama- 
dos OS beiroes, os transmontanos, os minh6tos, ra- 
pazes fortes como sovereiros, tao fortes e alegres, 
que depois do trabalho se divertem pulando com 
uma viola na mao. 

Ora OS alvitres propostos parecem-me illusorios, 
porque os habitos adquiridos pelo corpo tornam-se 
ainda mais tenazes que os do espirito. Seria tao 
difficil habituar Lisboa a comer a broa de milho, 
como acostumar o Porto a almoqar fava-rica ou 
burrie. Succede ate que o minhoto, se durante al- 
guns annos deixou de alimentar-se a pao de milho, 
ja nao consegue voltar a essa alimentacao. Os bra- 
:(tleiros do Minho, que foram creados com a broa, 
rejeitam-n'a quando regressam d patria. E' um fa- 
cto todos OS dias presenciado n'aquella provincia. O 
cpao nosso de cada diaD e nao so a mais urgente 
necessidade da alimentacao publica, mas tambem o 
mais jnrererado de todos os \\a\i\x.o^. 



86 COLLECgiO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Estou convencido de que pcdindo o «pao nosso 
de cada dia* cada um pede o pao que estd habi- 
tuado a comer, e nao outro. 

1896 — Dezembro. 



Meu caro sr. Trindade Coelho: Teve v. ex.* a 
amabilidade de me escrever cinco cartas sans voyel- 
ley como agora estao fazendo em Franca alguns lit- 
teratos engenhosos, com a diflferen^a de que a vo 
gal supprimida por v. ex/ era justamente. . . uma 
consoante. Refiro-me ds cinco variedades de pao 
transmontano, com que me presenteou, e nas quaes 
o amilho» era o cereal supprimido. Escuso dizer- 
Ihe que me regalou a sua amavel lembran^a, e a 
achei muito mais saborosa do que as epistolas sans 
voyelle com que o Petit Journal estd engenhosa- 
mente provando a existencia de uma litteratura «fim 
de seculoD. 

Pois, meu presado amigo, quando vi deante de 
mim OS cinco specimens de pao transmontano, ho- 
nestamente vestidos de burel, como v. ex.* disse 
com muita propriedade, entrei a crer que essa sin- 
gelesa de toilette e a face morena do pao do Mo- 
gadouro haviam for^osamente de crear homens 
muito difterentes, no pensar e sentir, dos que se 
alimentam com mimoso pao alvo de trigo fino. 

Porque a verdade e que ate o pao-trigo de Traz- 
os-Montes, solidamente enrolado em carolo, faz uma 
dlfferenga enormc do molldie que os nossos buro- 



NINHO DE GUINCHO 87 

cratas lancham ahi pelas reparti^oes, com recheio 
d€ linguiija. 

Seinpre os transmontanos tiveranv fama de va- 
lentcsy e nao admira. Pao duro, volto A minha, faz 
homens fortes e robustos. A popula^ao rustica de 
Traz-os Montes € capaz de, gingando um cacete, 
varrer uma feira. As damas que ao serao comem 
bolo de azeite em vez de bolacha Maria, sao floren- 
tes de boas cdres e boleiadas de formas esculptu- 
raes. Os escriptores alimentados a pao de. centeio 
e car61o de trigo, nao podem ter um estylo desner- 
vadoy nem uma linguagem molle. E a prova, meu 
presado amigo, estd em v. ex.^ mesmo. 

Nao sei se foram os provincianos do norte que 
puzeram aos peraltas alambicados de Lisboa a al- 
cunha diminutiva de paesinhos. Mas olhe que 6 uma 
deiinicao; uma synthese. Quanto is damas alfaci- 
nhas, que nao comem ao ch^ b6lo d'azeite nem ao 
jantar carolo de trigo, ahi as tem v. ex.* no Chiado 
para se desenganar de que florescem menos, no 
colorido e no boieio, do que as portuguezas de 
Traz-os Montes. 

Pelo que rcspeita A arraia-miuda, ao ZePovinhOy 
coiro dizemos hoje, olhe 1^ se elle ginga, nas desor- 
dens, um cacete. Qual! Mette na manga da ja- 
queia uma navalha, com um gesto certeiro puxa-a 
ate i palma da mao, segura-a entre os dedos, e 
crava-a d falsa fe. 

Admiram-se em Lisboa de que os faquistas de 
maior polpa sejam uns «fracas figuras». Pudera! 
Uma navalha peza pouco. E para dar um golpe nao 
i preciso ser valente; basta set cob^idi^. 



88 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Os transmontanos, que comem pao de centeio, 
OS minhotos, que cotnem pao de railho, ate na maU 
querenca sao leaes. Erguem o varapau d luz do 
sol, para que se vcja bem, fazem-n'o zenir.na es- 
grima, para que todos oicjam, e so depois se jul- 
gam auctorisados a desmiolar a cabe^a do adversa- 
rio. 

E' a for^a, a coragem, a nobresa do d^eljo: aqui 
vou eu; defende-te Id. 

Um amigo meu, natural de Lisboa, objectou-me 
que a minha asser^ao, de que o estylo e o pao que 
se come, naufragava no padre Antonio Vieira, que 
no escrever parecia creado a pao duro, sendo alids 
alfacinha por nascimento. 

E' verdade que sim; nrias uma excepgao confirma 
a regra. Comecei depois a procurar qualquer outra 
excepqao, e nao a enconirei. 

Ora o mesmo padre Vieira ligava ao pao tama- 
nha importancia, que chegou a d^zer do pulpito 
abaixo: eLan^ae os olhos por todo o mundo, e ve- 
reis que todo elle se vem a resolver em buscar o 
pao para a bocca.» Se para mim o pao e o estylo, 
para o grande Vieira era a vida. 

dQue faz o lavrador na terra, perguntava elle, 
cortando a com o arado, cavando, regando, mon- 
dando, semeando? Busca pao- Que faz o soldado 
na campanha carregado de ferro, vigiando, pele- 
jando, derramando o sangue? Busca pao. Que faz 
o navegante no mar, iqando, amainando, sondando, 
luctando com as ondas, e com o vento? Busca o 
pao.» 

E' certo que o padre Amouvo V\raa uasceu em 



NINHO DE GUiNCHO 89 



Lisboa e se creou a pao alvo, mas nao e menos 
certoque andou pela Europa e pelo Brazil comendo 
o cpao que o diabo amassou*. Nao pode haver pao 
mais duro. 

Dos habitantes do Minho, Douro e Beira Alta, 
que se alimentam a pao de milho, os que eu co- 
nhe<;o melhor sao os do Minho e Douro. 

Em pequeno, regalava-me de andar, no estio, por 
umas serras fragosas em companhia dos pastores 
da minha idade. Durante horas consecutivas co- 
miamos um naco de broa e uma cebola crua. Era, 
urn manjar! Perdao, eram dois manjares. Os pas- 
tores cantavam, nao tristezas a maneira de so- 
lau, que, como diz Bernardim Ribeiro, «era o que 
nas cousas tristes se acostumavai>, e ainda menos 
as melancolias chorosas do Fado, Nao, senhor! 

Pendurados sobre rochedos imminentes a cor- 
rente t6rva do Douro, lages escorregadias como 
Tarpeas, os pastores da minha idade implicavam, 
cantando improvisos dicazes, com os marinheiros 
dos barcos rabfillos. que do meio do rio, ao com- 
passo vigoroso dos remos, Ihes respondiam a ponto, 
em genitivo de injuria. 

Vida aspera, mas alegre, que se nao parecia 
absolutamente nada com a do proletario ou do va- 
did de Lisboa, pendido sobre a guitarra, ao fundo 
de uma taberna do Bairro Alto ou d'Alfama, a re- 
penicar o Fado entre decilitros de Torreano e bu- 
chas de pao trigo — com a navalha sempre na algi- 
beira, para o que der e vier. 

Os poYOs de Traz os-Montes e da Beira Baixa, 
que se aJimentam a pao de centdo (,^^no ^tev'Xx^x- 



go COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

os-Montes os da Regua e ainda os de Villa-Real 
que taqnbem comem pao de milho, o que v. ex.* 
explica, e a meu v€r muito bem, por estarem mais 
visinhos do Douro) conhe^o-os menos, mas sei Ihes 
da fama de valentes, e ahi temos visto em Lisboa, 
no parlamento, alguns exemplares de ra^a fina, que 
ate falando usam cacete oratorio, e empregem iro- 
pos rijos como arrochos. 

Nas provincias do sul predomina o thgo, e ve-se 
bem. O sul nao faz revolu<;6es; quando muito faz 
tumultos. Gomes Freire quiz implantar o constitu- 
cionalismo com homens do sul, e trope^ou. . . n'uma 
sentenca de morte. Foi do Porto que veio a revo- 
lugao liberal, posta em obra. Foi do Minho que veio 
a Maria da Fonte A Janeirinha e o «3i de Janei- 
ro* tambem vieram do Porto.. E no principio do 
seculo, o Junot, que entrou pelo sul, ficou; para 
expulsar de vez os francezes foi preciso varrel os Id 
de cima, com alma. 

No Alemtejo comese pao irigo, comquanio no 
disiricto d'Evora, por exempio, tambem se consum- 
ma algum pao de centeio. Os alemtejanos, salvo 
• algumas regioes sezonaticas, sao robustos e'sadios, 
porque a lavoira os fortifica. Mas sao indolentes 
para tudo o mais. Luctam frequenies vezes com as 
crises agricolas, e chiam pouco. Quando o anno 
corre mal, gemem na miseria, mas tao frouxa- 
mente, que raras vezes se fazem ouvir em Lis- 
boa . . . 

Para o duro trabalho das ceifas no Alemtejo e 

chamado, em refor^o, o beirao, o ratinhOy que desce 

das suas montanbas vestido de sara%oqa^ cheio de 



NINHO DE GUINCHO QI 

p6 e sol, com a cabala a tiracollo e a coiher de 
pau atravessada no chapeu. Vetn ceifar, vem talvez 
morrer asphyxiado pelo calor. Diz Fragoso de Si- 
queira, nas Memorias economicas da Academia^ que 
n^um s6 anno morreram em Elvas 400 ceifoes abra- 
zados pelo sol. E' a Beira Alta, ao pao de milho>, 
e a Beira Baixa, co pao de centeio>, acudindo, no 
trabalho mais violento do anno agricola, ao Alem- 
tejoy €o pao de trigo.» 

Os algarvios tambem se alimentam a pao de 
trigo, em certas regioes importado de Hespanha. 
Ora OS algarvios, que elles me perdoem, cantam 
muito,. e vae-se-lhes o tempo no cantar. Sao as ci- 
garras de Portugal. Estiveram annos e annos a pe- 
dir um caminho de ferro, que so muito tarde che- 
gou. E elles la se iam resignando com a sua alfar- 
r6ba. O norte, mais decidido, bateu o pe, e teve 
logo dois caminhos de ferro em vez de um : o do 
Minho e o do Douro. 

Sao factos, ou antes. . . ^ o pao. 

Jd vae longa esta carta, mas nao chega ainda a 
ser maior do que a minha gratidao para com v. ex.* 
A culpa foi sua, em me dar pSo e conversa. Mas 
agora me lembra que ainda esti no fundo do tin- 
teiro uma coisa que eu queria dizer a respeito do 
bolo de azeite. 

Sabe? Fez-me lembrar de uma supersti^ao popu 
lar do Douro, que ainda nao vi contada por ne- 
nhum dos colleccionadores de folk-lore. 

Quando uma crean^a anda desmedrada como se 
tivesse visto bruxa, dao-lhe a comer, atraz de uma 
porta, um boJo de milho amassado ^ta ^.x€\x^- \Svl- 



92 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

se Id que essa crean^a anda ougada^ «aguada]», e 
crSse que comendo o tal bob, que sabe tamo a 
azeite como a «bolacha» transmontana, comecard a 
medrar e a ter boas cores. 

Aguados andamos nos todos depois de certa ida- 
de. Por isso, quando cd apanhei o bole de azeite, 
que V. ex.* me mandou, metti-me atraz de uma 
porta, e mas'iguei o. 

Pode ser que fa^a bem; mal nao me fez ne- 
nhum. 

E, quanto ao mais, que Lisboa possa habi- 
tuar-se ao milho e ao centeio, sao lerias dos econo- 
mistas. 

Seria preciso comeqar por mudar o Chiado para 
a Serra da Estrella ou do Marao, e o Marao e a 
Estrella para o Chiado. 

Nao e facil. 

De V. ex.*, com a maior considera- 
gao litteraria e estima pessoal, 
agradecido camarada 

Alberto Pimentel. 
1896 — Dftzembro. 



XII 
VINHO NOVO 



Notava o Diario de Noticias que a noite de S. 
Martinho pass^ra este anno quasi despercebida. 

A culpa foi talvez da chuva, porque o vinho 
aguado nao presta. 

Conta-se o caso de certo borracho que, estando 
muito doentCy foi pelo medico "^ssistente intinnado a 
que deixasse de beber vinho. 

— Isso nSo pode serl respondeu convictamente o 
enferaio. Se deixar de beber vinho, morrerei mais 
depressa. 

— E' o que Ihe parece, porque gosta de o be- 
ber. 

— Conhe^o-me, doutor. E nao quero tazer a ex- 
periencia, porque receio vir a morrer antes de estar 
curado . . . 

— Mas entao beba menos e com agua. 

— Ah I isso pode ser. Mas que sacrificio ! 

— Resigne-s^y porque a outro doente nao consen- 
tiria eu que bebesse nenhum. 

— Como assim ? I 

— E' que OS medicos precisam uatvi\%vc \itc^ ^^m- 



94 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

CO com OS habitos adquiridos, que constituem uma 
segunda natureza. 

— Eniao, se a medicina 6 uma sciencia amavel, 
consinta que eu beba s6 vinho. . . por amabilidade. 

— Nem tanto ao mar. . . 

— Nao me falle d'agua^ doutor! 

— Deixe-se de gracejar, c faga o que Ihe recom- 
mendo, se quizer viver. 

— Com que entao agua e vinho? 

— Seguramente. 

— Ah ! doutor ! resignar-me-hei. Mas oihe Id. . . 

— Diga. 

— Em vez de agua e vinho, eu nao poderia beber 
vinho e agua ? 

— E' a mesma coisa I 

— Nao 6 tal. Dd-se o logar de honra ao vinho, 
que vai d frente, e eu devo-lhe essa considera^ao. 

— Pois seja. 

Quando chegou a hora do jantar, a mulher do 
doente levou-lhe vinho com agua. 

— O que foi que tu deitaste primeiro no copo ? 

— O vinho. 

— Ja estou arrependido de ter dito issol 

— Por que? 

— Porque o vinho ficou no fiindo e a agua € que 
estd ao de cima. Foi o que eu senti primeiro na 
bocca. 

E erguendo o copo, depois ter provado a bebida^ 
exclama o enfermo sentenciosamente : 

— Dizec-se que a uniao faz a for^a ! OIha p*ra 
isto ! 

Depoj's, romando um novo golo : 



NJNHO DE GUINCHO qS 

— O' mulher, tu dizes As vezes que e uma excel- 
lente bebida a agua 

— Eu bebo muita. 

— E eu acho que nao ha melhor bebida que o 
vinho. 

— Cada um falla por si. 

— Mas a verdade falla mais alto que todos. A 
agua 6 boa ? O vinho e bom ? Pols bem I juntar o 
vinho com a agua € estragar duas bebidas boas ! 

Ora assim aconteceu este anno na noite S. Mar- 
tmho : o vinho foi estragado pela agua, que era 
muita de mais, como diria o Garrett. 

Choveu a potes, e nao ha calor de vinho que re- 
sista a uma valente carga d'agua. 

Mas, na provincia, pouco importou que chovesse. 

O temporal nao conseguiu prejudicar a folia de 
S. Martinho, e, por U, ainda se conserva a tradi(;ao 
de fazer do dia 1 1 de novembro uma especie de 
ter^a feira gorda. 

Todas as liberdades e satyras sao permittidas 
n'esse dia. 

E a policia, se a ha, nao tern que dizer nada. 

E' o costume da terra. 

Ainda de tarde saiem para a rua alguns patus- 
cos da localidade, munidos de campainhas, choca- 
Ihos e caldeiros, fazendo um barulho infernal. 

Enchem-se as janellas de mulheres e creancas 
para ver passar a cirmandade de S. Martinho ». 

E' uma especie de bando burlesco, que annun- 
cia a grande solemnidade consagrada a Baccho. 

Percorre o bando todas as ruas da povoa(;ao ba- 
tendo a uma ou outra porta. 



go COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

— Estd cd o sr. Fulano ? 

E' a casa de algum sujeito conhecido por gostar 
de boa pinga. 

No caso de ser pcssoajJe boa fei<jao, v^m elle 
proprio falar ao bando : 

— Estou, sim, senhor. 

— Pois nos vimos aqui distribuir-ihe a cfira para 
a festa. 

A fcSra», velas ou cirios, sao palhas de centeio 
ou vimes. 

Uma troca pegada. 

E no acto da entrega da cera o rapazio faz ruido 
nos caldeiros, badaleja cpm os chocalhos e as cam- 
painhas. 

— Pois muito obrigado pela cera e podem contar 
que nao deixarei de festejar o nosso grande santo. 

Se o sujeito ^ de genio arrebatado, dd cavaco 
com a brincadeira. 

E entao pode ficar certo de que nao dormira toda 
a noite. 

Volta e meia o bando passa-lhe A porta, fazendo 
uma assuada enorme, capaz de accordar os mortos 
no cemiterio. 

— O' sr. Fulano, venha receber a cfira ! 

— Aqui estd o cirio ! 

— Jd sao horas de come9ar a festa ! 

— OIhe que os outros «irmaos» estao & espera! 

— Tome sentido, que vae sendo tarde ! 

E bumba ! pancadaria nos caldeiros, repiques de 
campainhas, dobres de chocalhos. 

De modo que o melhor que o sujeito tern a fazer 
J embebedarse logo para nao ouvir a algazarra in- 



NINHO DE GUINCHO 97 

fernal, que de momento a momento se repete cada 
Yez mais atroadora. 

Tambem i costume andar distribuindo por portas 
as listas para a elei^So dos mesarios, que devem 
gerir durante o anno os negocios da irmandade de 
S. Martinho. 

Em cada lista vem escripto o nome de urn bebe- 
dor cbnhecido. 

E deixa-selhe a lista em casa. 

Quando o sujeito tern gra^a, tira partido da situa- 
fSo: 

— O que?I Pois inscreveram-me? Nao p6de ser! 
Ha Outras pessoas mais qualificadas para esse cargo. 

— N6s € que fazemos a elei<;ao. 

— Mas se eu sou elegivel, tambem sou eleitor. O 
meu voto i a favor de Fulano. . . 

E cita um nome, que ds vezes tinha esquecido, e 
que 6 efifectivamente o de uma pessoa que nao. 
regatea sacrificios a Baccho. 

Este anno, segundo dizem de S. Joao da Pes- 
queira, eram onze horas da noite e ainda nas ruas 
da povoa^So andava o alegre bando tangendo cam- 
painhas e chocalhos, repenicando nos caldeiros. 

Um amavel correspondente d'ali, mandando no- 
ticia do caso i redac^ So do Popular^ commenta-a 
com esta considera^ao : 

cQuando codos os costumes tradicionaes tendem 
a extinguir-se lentamente, pasma-se ao ver o enthu- 
siasmo frenetico, a exalta^ao febril com que em 
muitas terras do reino, principalmente no norte, se 
festeja o S. Martinho ou antes o Deus Baccho^* 

Emquanto o rapazio se esfaUa a %\\xat ^^^^ 



gS COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

ruas, OS felizes que teem pipa em case, tratam de 
metterse na adega a tirar a prova do seu vinho 
novo. 

Os portuguezes antigos diziam : Em dia de S. 
Martinho, lume, castanha e vinho. 

Que, no fim de contas, o S. Martinho 6 uma festa 
agricola para celebrar a «novidade» do anno, e com- 
prehende se que nas regioes vinhateiras seja essa 
festa mais ruidosa do que nos logares aonde a tradi- 
cao pode ter chegado, mas onde a cultura da vinha 
e quasi nulla ou insignificante. 

No Douro e no Minho ha folia rija. 

A «novidade» do anno 6 desflorada no dia de S. 
Martinho, principalmenie d noite, em convivio de 
amigos e visinhos. 

E chovem os commentarios : 

— Boa anovidade >! 

— De se Ihe tirar o chapeu! 

Porque, a respcito de vinho, os lavradores pare- 
cem-se com os litteratos, no juizo que fazem da 
ultima produccao : 6 sempre a melhor. 

E nao e improficua a prova para o efifeito da ven- 
da, porque os visinhos e os amigos vao espalhar 
pela povoa^ao a fama do vinho novo que prova- 
ram. 

— Quem tem uma rica pinga este anno, e Fu- 
lano ! 

— Um nectar ! 

— Um balsamo ! 

Se e no Minho, estd claro que nao i precisamente 
um balsamo, mas um valsamo. 

— Este anno, o berde de ¥uVatvo € \i\tv vahamo! 



NINHO DE GUINCHO 99 

E estalejam com a ponta da lingua no ceu da 
bocca para dar a impressao de que ainda se nao 
fartaram de saborear o valsamo berde. 

O correspondcnte da Pesqueira acrescenta d sua 
intcressante informa^ao este pormenor : 

f Alguns dos que em sua casa tiram a prova do 
vinho novo, fazem n*o tao desastradamente, que 
adormecem nas adegas por nao atinarem com a 
cama ou Ihes parecer a noite muito quente e nao 
poderem supportar o calor que os cobertores Ihes 
causariam.* 

Mas quanto mais feliz e a vida da provincia do 
que a da capital — at^ na rapioca do S. Martinho! 

Na provincia pode uma pessoa embebedar-se na 
sua propria casa, dentro da sua adega, e adorme- 
cer ali. 

Em Lisboa tern de ir embebedar se ^ taberna ou 
ao restaurant e nao sabe o que succederd ate con- 
seguir dar entrada em casa. 

Conta-se de um alfacinha que na noite de S. 
Martinho, nao podendo equilibrar se, por ver andar 
d roda todas as casas, se sentdra no passeio da rua 
e ali se deixdra ficar. 

Veiu a policia. 

— O que e que faz aqui ? 

— Estou d espera que passe a minha casa para 
enfiar pela porta dentro. 

1 698 — Novembro. 



XII 



BONECOS E LOIGA DE BARRO 



Decerto viram nos jornaes a noticia de que es- 
tava actgalmente fazendo sensa^ao em Berlim uma 
exposi^ao de bonecos? 

E talvez ririam. . . 

Mas, que diabo! a Allemanha nao i precisa- 
mente urn paiz frivolo e futil, que dS importancia a 
ninharias ridiculas, 

A exposi^ao nao foi promovida por uma crean^a 
ou por um maniaco, senao que por uma iUustre 
dama, que tern na Europa uma evidente posi^ao 
social. 

A iniciativa deve-se a rainha da Romania, conhe- 
cida no mundo litterario pelo pseudonymo de Car- 
men Sylva. 

Quem deu execu^ So & ideia da iniciadora foi outra 
dama, de quasi igual evidencia na aristocracia eu- 
ropea : a princcsa de Wkde. 



NINHO DE GUINCHO lOl 

Devemos entao reflectir um momento n*esta sim- 
ples coisa : que nao se reuniriam duas senhoras dis- 
tinctas, intelligentes e nobres, para realisar uma 
empresa balda de qualquer pensamento alto e ex- 
pressive. 

Effecdvamente, os bonecos agora expostos em 
Berlim nao constituem um brinquedo de crean^as, 
uma enfantillage frivola, mas um facto de impor- 
tancia scientifica, de interessante valor ethologico, 
porque os bonecos representam uzos e costumes de 
varias epocas e paizes. 

A collec^ao mais admirada e a que pertence & 
rainha da Romania, composta de manequins vesti- 
dos com OS trages uzados na regiSo dos Balkans. 

N'esta cexpressaoi historica reside principalmente 
interesse da exposi^ao, d parte o valor artistico 
da esculptura, da pintura, e o valor material da ri- 
queza dos fatos. 

Eu fiquei contentissimo com a noticia d'esta ex- 
posi^ao, que infelizmente nao posso vgr. 

E d sombra d'essa empresa, iniciada e realisada 
per duas princesas, tratei de abrigar a minha anti- 
ga predileccao pelos bonecos de barro, que repre- 
sentam costumes portuguezes, e que, nas horas que 
eu passo trabalhando, me rodeiam alegremente em 
numero nao inferior a quatrocentos. 

Tem cada pessoa a sua mania, e se as manias 
nao molestam ninguem, sao dignas de absolvi^ao. 

A fallar verdade, pouco me importa que me 
absolvam ou condemnem ; sou assim, e jd agora e 
tarde para mudar de caminho. 

O honeco que mais me inittes^a ^ ^Tic^\v\a. '^ ^ 



I02 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

pequenino, de um decimetro de altura, ds vezes de - 
uma ingcnuidade de esculptura verdadeiramente pri- 
mitiva como obra de arte, mas tocado de uma certa 
expressao de naturalidade na physionomia e na atti- 
tude. 

Gonhego desde creanga os bonecos do Porto, que 
teem o triplo da altura dos de Lisboa, e que sao 
primorosos como obra de arte, sobretudo no apuro 
e perfeicao dos trajos. 

hi estao ainda expostos i venda na rua da As- 
sump^ao ou, como na minha infancia se dizia, atra^ 
dos Clen'gos. Lisboa conhece alguns exemplares, 
que apparecem aqui d venda n'uraa ou n'outra loja, 
e cujo preco vacilla entre i8 e 25 tostSes. Exceptufi- 
mos OS grupos, como o carro de bois^ que custa 
sete ou oito mil reis, e a procissao, que pode custar 
cinco ou seis libras. 

Conhego os bonecos da iiha da Madeira, em terra 
cotta, de que possuo apenas dois exemplares, que 
me enviou do Funchal o sr. cons^lheiro Sousa e 
Silva, quando ali era governador civil. 

Mas a minha sympathia foge para os bonequinhos 
de Lisboa, que ordinariamente se compram a cinco 
e seis vintens, e que representam a vida das ruas, 
a expressao caracteristica do nosso povo em plena 
actividade. 

Sim, coUecciono furiosamente esses bonequinhos, 
que algumas creangas despeda^am sem piedade, e 
que eu vou reunindo com dedicado empenho. 

Outras pessoas ha que pacientemente organisam 
collec96es de seilos, bengalas, pinturas, loi^as, crys* 
taes, leques, alfinetes, etc. 



NINHO DE GUINCHO I03 



Eu collecciono bonecos de barro e confesso com 
Cranqueza que e esse urn dos maiores regalos e pra- 
2eres do meu espirito. 

Como nasceu esta mania? Nao sei bem. Como 
nascem as paix6es e as doencas ? Quasi nunca se 
^abe ao certo. Urn dia, sem que me lembre ja onde 
^ quando isso foi, comprei os primeiros bonecos, 
<:ujo valor ethologico avultou aos meus olhos, apesar 
da imperfei^ao da esculptura. 

N'esse tempo, creio poder affirmalo, apenas as 
crean^as iam &s capellistas .comprar bonecos de 
barro, especialmente pelo Natal, em que teem maior 
procura as figuras de Presepio. 

Lembro-me de que uma vez, conversando com o 
lojisca Prior, na rua Augusta, Ihe perguntei se eram 
muitas as pessoas adultas que entravam no seu es- 
tabelecimento a comprar bonecos de barro. 

— Nao, senhor, respondeu elle. Apenas crean9as 
e extrangeiros. 

— Extrangeiros ? 

— :Sim, senhor. Quando toca algum paquete em 
Lisboa, muitos passageiros, especialmente allemaes 
c inglezes, aqui vem procurar os bonecos, que apre- 
ciam muito. 

— Pudera ! repliquei eu n'um afogo de cqlleccio- 
nador apaixonado. Isso comprehende-se. Sao pes- 
soas inteiligentes, que passando por um paiz, e nao 
podendo levar os homens e as mulheres que viram 
e representam os uzos e costumes d'esse paiz, com- 
pram como recorda^ao os bonequinhos que dispen- 
sam OS viajantes de estar copiando de afogadilho 
trajos e pbysionomias nas paginal do ^^\x ^Vc^>\\s^. 



104 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

E alguns nao saberiam desenhar, infeiicidade q^-^ ^ 
tambem me acontece a mim. Mas o boneco de hm^ ^' 
ro salva a situa^ao, porque tf, no fim de contas^ ^ 
miniatura de urn povo. 

Adquiridos os primeiros bonecos, comegou a pa^"^ 
sar me pelo espirito a ideia de que seria possiv^^ 
aperfei^oal-os. Entre os imperfeitos escolhi os mat ^^ 
perfeitos, e tratei de averiguar quern tinha sido ^^ 
oleiro que os produzira. 

Fui a sua casa, e por signal que dei uma boa ca-' 
minhada. 

Entrei n'uma mansarda que respirava pobresa ^ 
miseria. E encontrei urn doente postado deante de 
uma banca de pinho a fazer bonecos. 

Sentei-me, e mettendo a mao no bolso Ao paletot 
tirei um archeiro... de barro. 

Pul-o sobre a banca e disse ao obscuro artista: 

— Foi o sr. quern fez este archeiro? 

— Nao sr. Devia ser Fulano. 

Citou o nome de outro oleiro amador. 

Ora o archeiro que eu levava, era um mamarra- 
cho pintado a almagre e ocre, em barro cn^ com 
umas pantorriihas enfunadas, os hombros depremi- 
dos, OS bra^os pregados ao corpo, as maos incha- 
das de frieiras, e uma casaca de cheche. Nenhuma 
expressao humana, nenhum brio profissional, isto e, 
ausencia de pose e «caracter]» de classe. 

— Mas diga me uma coisa, tornei eu, nao se sen- 
te com for^as de fazer em barro cosido um archeiro 
melhor do que este ? 

O homem respondeu com convic^ao e desvane- 
cimento : 



NINHO DE GUINCHO I05 

^-Sinto, sim, sr. Mas nao vale a pena, porque 
^^ lojas pagam muito mal. 

-^Nao se trata de lojas; trata-se de mim. Sou eu 
^>icm Ihe cncommendo um archeiro, cujo pre^o nao 
^iscuiirei. 

— Pois bem ! Farei um archeiro de que o sr. ha 
^:]e gostar. Se quizer pagar bem, pode custar-Ihe um 
^rusado. 

— Conte com cinco tostoes, se sahir como eu de- 
sejo. Quando posso voltar ? 

— Para o fim da semana. 

— Adeus, atd sabbado. 

Nao faltei, c obtive um archeiro com expressao, 
bella pose^ um fatq^ bem pintado, uma alabarda 
de papelao prateado : uma figurinha que represen- 
tava um grande progresso na esculptura dos bo- 
necos de barro, se bem que as pernas deixassem 
ainda alguma coisa a desejar em verdade anato- 
mica. 

D'ali por deante comecei a encommendar outros 
bonecos ao mesmo artista, que se foi aperfei^oando 
successivamentef a ponto de produzir dez ou doze 
figuras que sao ainda hoje das mclhores da minha 
colleccao. 

Era eu que Ihe indicava os typos. E alguns, como 
o vendilhao ambulante, o padeiro, o fadista, sahiram 
magnificos; regalei-me de os ver. 

Pouco depois notava eu que nas lojas do Prior 
na raa Augusta e do Cardoso na Bitesga comc^a- 
vam a apparecer bonecos muito mais perfeitos, se 
bem que mais caros. 

Desvaneci-me de ter concorrido ^^i^ ^vs.^ ^^^- 



Io6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

gresso, e, para o animar, comprava os bonecos, 
embora os tivesse repetidos. 

Mas comecei a achar um novo encanto no facto 
mesmo da repeticao dos bonecos : o de ter deante 
de mim a historia da evolucao do boneco de barro 
como obra de arte. 

Ultimamente, no Costa da rua do Ouro e no 
Joyce do Galhariz, tenho comprado deliciosas figu- 
rinhas cheias de expressao e de verdade. 

Ainda ha poucos dias, estando presente o oleiro, 
encommendei na loja do Calhariz uma sopeira em 
colloquio amoroso com um soldado da guarda mu- 
nicipal. 

Quarenta e oito horas depois mostravam-me ali 
o specimen da sopeira em barro crii. Nao digo que 
seja uma maraviiha; mas tem verdade. especial- 
mente no trajo. Eu sou, indirectamente, o pae d'esta 
sopeira, o que e, talvez, a melhor maneira de ser 
pae. 

Que querem? Alegra-me, quando pela manha abro 
a janella do meu escriptorio, ver animar-se com a 
luz do sol todo esse mundo de figurinhas portugue* 
zas, que representam os uzos e costumes do meu 
paiz, e que do alto das prateleiras em que se ali- 
nham me dao a impressao de partir cada uma d'ellas 
para o seu destino, para o seu trabalho quotidiano, 
para as suas occupagoes diarias : o vendilhao e a 
varina para as ruas, o archeiro para o Pago, o offi- 
cial e o soldado para o quartel, o padre para a 
egreja, o operario para a fabrica, o cosinheiro para 
a ucharia, o engraxador para o seu vao de cs* 
cada. 



NINHO DE GUINCHO IO7 

E parece-me atd que algumas vezes trocamos pa- 
lavras de estimulo e conforto. 

— Vamos a isto, digo eu aos meus bonecos de 
barro, comeg ando a trabalhar. 

— Nos jd ci cstamos, respondem elles. VocS hoje 
levantou-se mais tarde, seu mandriao I 

Ha poucos mezes ainda, um dos meus bonecos 
faltou d sua apresenta<;ao matutina. Vi uma lacuna 
na collec^ao ; fui saber se algum d'elles teria parti- 
do para as suas occupagoes sem me haver dado os 
bons-dias. 

Entao encontrei cstatelado na prateleira um chefe 
de esquadra, que costumava ser muito pontual no 
servi^o. Tive um desgosto grande. Era o primeiro 
morto da minha collec^ao. 

De que morreria elle, coitado ? Alguma congestao 
cerebral, talvez ? Cahira, e partira pelo meio, como 
se tivesse quebrado... a espinha dorsal. 

Haveria crime ? Haveria suicidio ? Os outros en- 
trincheiraram-se n'um silencio impenetravei. E as 
investigagdes da judiciaria nao deram resultado. 

Pois era um bom chefe de esquadra, elegante, 
airoso, com certa attitude marcial. 

Nem sequer pude desejar que a terra Ihe fosse 
levc, porque .o deitaram no barril do lixo e foi d'ali 
para a carroga. 

A acquisicao dos bonecos trouxe me o desejo de 
estudar a sua fabricagao atrav^s dos tempos em 
Portugal. Dei-me a esse trabalho, e creio que ainda 
ninguem iria mais longe em recolher dados, porme- 
notes, minucias. Mas e um trabalho pesado o de 
emprehender a coordenagao de todo esse mare ma- 



108 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

gnum de apontamentos, e nao me sinto realmente 
em boa disposi^ao de espirito para realisal-o agora. 

Se ha tanto quem de animo ligeiro escreva a res- 
peito de tudo I 

. Para que hei de eu estar a cancar-me em ensinar 
OS outros, que m'o nao agradecerao? 

Contento-me com olhar para os meus bonecos, 
ouvil-os, conversal os, entendel-os e responder-lhes. 

Acreditem : 6 um grande prazer. 

Talvez os senhores duvidem de mim ? Pois vac 
perguntal-o d rainha da Romania e i princesa de 
Wiede. 

1S98 — Dezembro. 

II 

Se torno a fallar nas figurinhas de barro, nao e 
porque essa minha predilec^ao se vd tornando mo- 
nomania, nem porque eu ufanamente queira cele- 
brar o glorioso facto do boneco nacional ter ]i con- 
quistado o Chiado. 

Mas a verdade 6 que conquistou. Li estao na 
montre do B^nard algumas figurinhas, guarda avan- 
gada do exercito conquistador. Finaimente chega- 
ram d rua mais elegante de Lisboa, onde ate agora 
apcnas tinham accesso os bonecos francezes e al- 
maes. Subiram, treparam, aristocratisaram-sel Deus 
queira que se nao estraguem.\. de vaidade. 

Que, a fallar verdade, deve ser para endoide- 

cer o fragil barro de que e feito o boneco c. . .•o 

Jiomem, vir-sc f6ra da hum\\de lo\\nha de capella. 



NINHO DE GUINCHO I09 

^nde viveu tantos annos obscuramente, achar-se 
le um momento para outro em exposigao no Re- 
gent-Street de Lisboa^ dar nas vistas is senhoras do 
torn e aos janotas da ^/i7e, sentirse afidalgado deante 
do povo boquiaberto que certamente exclamari : 
cOlha quem elles sao! Conheci os laranjeira nas ca- 
pellistas de Alfama e do Bairro AIto!» 

Teve o B^nard, honra Ihe seja, a lembranga de 
fazer uma exhibigSo portugueza: um trecho das no- 
vas obras do porto de Lisboa. Sobre a muralha 
collocou alguns boncquinhos de barro, typos po- 
pularesi adquiridos no Centra Commercial^ ^g^i- 
cola e Industrial^ da rua do Loreto. Ficou uma 
linda montre^ que o povo nao se farta de admi- 
rer. 

E isso, em pleno Chiado, ja nao e pequena glo- 
ria para envaidecer os bonecos de barro. 

Quanto aos homens, que* segundo a Biblia, sao 
feitos da mesma massa, sei eu que entontecem de 
orgulho e tomam grandes ares de toleima quando 
se encostam a uma porta do Chiado. Muitos d'el- 
les nao valem um chavo gallego, mas 6 vel os ali, 
e acreditar, porque elles o acreditam, que valem 
um dobrao de D. Joao V. 

Quanto aos bonecos, tambem de barro, que ap- 
pareceram agora ali na monire do Benard, fizeram- 
me melhor impressao, achei-os menos irritantes e 
muito mais modestos do que os homens. Estao 
beml nem acanhados, nem arrogantes; nem timi- 
dos, nem philauciosos. Muito discretos, sem gauche- 
tie e sem pretensSo. Uma lindeza de bonecos i 

^•* Me eu rolto a fallar d'tVYw, k ^ ^xo^c^iws^ 



I lO COLLEC5AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

per causa dos Presepios, agora expostos ao publico 
nas egrejasque os possuem. 

Jd nao me quero referir As casas particulares, 
porque alim do Presepio que as crean^as organi- 
satn de um dia para o outro n'esta epoca do anno, 
com figurinhas compradas em qualquer loja de ca- 
pella, rara 6 a casa de familia antiga onde por esse 
paiz tora nao ha) a um Presepio de algum valor, e 
endoideceria quem se propuzesse fazer a sua re- 
senha ou descripgao. 

Todos OS conventos, de frades ou freiras, tinham 
seu Preesepio, obra aceiada, e atd conta frei Luiz 
de Sousa, na Historia de S. Domingos, que foi uma 
freira do mosteiro do Salvador em Lisboa quem, 
em consequencia de uma devota visao, mandou fa- 
zer o primeiro Presepio que se viu em Portugal. 

Seria assim ou nao seria. Mas frei Luiz de Sousa 
Id o diz, na chronica : «E d'aqui se comegaram a fa- 
zer por outras egrejas os presepios que hoje se fa- 
zem em quasi todas.t 

Tenho um montao de apontamentos sobre Pre- 
sepios que vi em conventos da provincia, e alguns, 
quantos! me terao escapado. Mas quero fallar, ain- 
da que seja rapidamente, de um s6, porque notet 
n'elle uma circumstancia digna de mengao especial. 
E' o do Varatojo. Como ainda hoje acontece em 
quasi todos os Presepios, ha n'esse um tocador de 
gaita-de-folles, que figura de cego, com uma borra- 
cha de vinho a tiracollo. E o mo^o do cego, apro- 
veitando-se da confusao, vae bebendo subrepttcia- 
mente o vinho da borracha. 

Tern graca. E' uma novidade \oco%^^ o^^ M\«. 



NINHO DE GUINCHO I { I 

xi'outros Prcsepios, e que de algum modo o anima 
e embrinca. 

Ramalho Ortigao, no livro O culto da arte em 
J^oriugalj chama tencantadorasD As figurinhas dos 
Prcsepios que sahiram das maos de Faustino Jos^ 
Rodrigues, de Antonio Ferreira e Machado de Cas- 
tro. Tern . razao. E' realmente um encanto para os 
olhos esse Undo Presepio da Se Patriarchal, que 
csti ainda completo — o que 6 raro — e que se en- 
contra na 3.* capella da charola, isto e, por detraz 
da capella-mor. 

As figuras foram modeladas pelo famoso Ma- 
chado de Castro, por encommenda de um benefi- 
ciado de appellido Oliveira, que depois as doou a 
SL 

Alem do Presepio da Se, Ramalho Ortigao falla 
dos da Madre de Deus, Coraqao de Jesus e mar- 
quez de Borba, que se destroqaram. 

Mas cumpre mencionar ainda o da Estrella, cujas 
figuras tambem sao de Machado de Castro (1775 a 
1800) e o de Belem. 

O da Estrella ^ decerto o maior de Lisboa. Tern 
figuras muito bem tratadas, posto que os anachro- 
nismos sejam em barda. Ha um bello gruposinho 
de judeus que estao jogando as cartas (as cartas 
santo Deus!) tao fejiz na expressao e tao perfeito, 
na esculptura, que jd por trez vezes o quizeram 
roubar. Outras figuras foram mutiladas pelas crean- 
^as que d'antes podiam aproximarse do Presepio, 
e agora nao. Bem entendido ; pena foi ser jd tarde. 

Tambem merece especial mencao o Presepio de 
Santo Antonio dos Capuchos, c\\it ^^%^\^^t£i ^\:ev^- 



1 1 2 COLLEC5AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

^ada de subir ao Campo de Sant'Anna para o ir 
ver. 

E' comtudo preciso estar de pe atraz com uma 
infinidade de figuras, quepor ahi nos inculcam como 
tendo sido feitas por Machado de Castro. Nos brie- 
d'bracSf quando apparece i vcnda algum Prescpio 
de casa particular, 6 sempre de Machado de Cas- 
tro— por formal E pedem por elles quiantias fabu- 
losas, que nao valem, porque de Machado de Cas- 
tro nao teem nada. 

E' certo que este artista, que morreu muito ve- 
iho, trabalhou muito, mas ainda que tivesse tido 
dobrada existencia, nao Ihe chegaria o tempo para 
todos OS bonecos que Ihe sao attribuidos. 

O sr. visconde de Castilho diz judiciosamente 
que o Presepio i o vestigio derradeiro do mysierio 
medieval. Farei comtudo uma observa^ao : vestigio, 
sim ; derradeiro, nao. Ainda hoje, por essas aldeas 
do Minho fora, se representam mysteries, de uma 
ingenuidade verdadeiramente medievica, e at£ na 
maior parte das vezes sao representados deante de 
algum Presepio. 

Mas nao padece duvida que a singela iconogra- 
phia dos Presepios tem o perfume das ultimas "fld- 
res s^ccas da idade-media^ cuidadosamente conser- 
vadas na tradi^ao popular. 

Muitos dos seus anachronismos sao deliciosos de 
ingenuidade, e demonstram, a meu vSr, a forga de 
resistencia da religiao christa. Os pleiros, segundo 
sua epoca, vao collocando no Presepio as figuras 
do seu tempo, e talvez ainda venham a apparecer 
ew torno da lapinha de BetVAtm ^tT^oti«.%<(Qs de 



NINHO DE GUINCHO ll3 



ohapeu alto descendo pela montanha, reis magos 
vestidos de generalissimos. Mas isso quer dizer que 
o christianisoio vae passando de gera^ao em gera- 
^aOy de moda em moda, sem se sentir defraudado 
na fi e cutto que inspira, como sendo uma religiao 
que resiste a todas as revolu<;5es philosophicas, in- 
cluindo a do chapeu alto . . . dco de philosophia. 

Nos Presepios portuguezes figuram os nossos 
pastores do norte ou os nossos saloios do sul, co- 
mo se Bethlem fosse uma terreola do Minho ou 
da Extremadura. 

Mas quanta c6r local n'essas figurinhas dos Pre- 
sepios I como ellas, em reiagao ao nosso paiz, sao 
verdadeiras no trage, na physiononbia, e na attitu- 
de f Perdoa-se-lhes o anachronism© pelo bem que 
parecem. E' uma vasta collect ao de figuras portu- 
guezas representando um grande drama que nao 
foi portuguez, nem pelo protogonista, nem pelo lo- 
cal da acf So. 

No Anaiomico jocoso vem descriptas algumas 
d^ellaSi que sao nossas, muito nossas, ainda hoje 
vivas. Querem vSr a saloia dos queijos ? Pois ella 

ahi yae : 

... a senhora 
saloia dos queijos, 
car a de tor an) a, 
olhos de morcego, 
gibSo de prestinas, 
collete vermelho, 
, saia debniada, 
manteo amarello. 

Ahi vem agora descendo para a lapinha a pas- 
tora de OdivcWds — outra sa\o\a ; 



1 14 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIBA 

len^o soqueixadoy 
manteo de parriiha, 
bota at^ o artelho, 
gibSo de pretiiias. 

E' o Presepio portuguez do sul em toda a sua 
verdade ethologica. 

Nos Presepios do norte as botas das pastoras sSo 
substituidas pelas soletas, os lengos da cabe9a pe* 
los chapeus redondos e pequeninos, os cabazes pe- 
las canastras, as capas dos homens pelas palho^as 
e o barrete de la pelo sombreiro de Braga. 

Deante de todas estas figuras do sul ou do norte, 
sente-se a vida simples, singela de Portugal, a al- 
ma boa e credula do nosso povo agricola, e perce- 
be-se que um Presepio, assim constituido, seja um 
forte trag o de uniao para reunir, na noite de Natal, 
todas as pessoas da mesma familia n*um serao de- 
licioso de intimidade. 

Mas o costume vae a acabar, especialmente no sul. 
Em Lisboa ha os theatros, os colyseus, as associa- 
96es de dar & perna, que dispersam as faroilias. No 
norte, ha ainda o Presepio, sempre o Presepio, o 
auto religioso ou mysterio^ a ceia de vinho quente, 
as rabanadas, os ovos mexidos, os bolinhos de ba- 
calhau e bolina, a congregagao da familia toda i 
volta da mesa, porque attf os filhos prodigos voltam 
n'essa noite d casa paterna e sao perdoados. 

Quando a invasao dos costumes modemos inun- 
dar as villas das provincias do norte, quando ceder 
o logar & guarda municipal ou i policia civil, ver- 
se hao dois policias de sentinella d lapa de Be- 
thiem, esquadr6es de lanceiros descendo a moQtanha 



NINHO DE GUINCHO Il5 

illuminada por candieiros de gaz, reporters de jor- 
naes tomando apontamentos d pressa, mas o Pre- 
sepio subsistiri, amoldado As circumstancias do 
tempo^ e com o Presepio triumphard, atravds de 
todas as idades, a recordacao do grande facto his- 
toiico, que se memora e commemora religiosamente 
. na noite de Natal. 

Se OS senhores querem ver urn Undo Presepio, 
que seja dtgno de ver-se, vao all & Sd ou d Es- 
trella, que hSo de dar o seu tempo por bem em- 
pregado. 

Mais passem primeiro pelo Chiado e parem um 
momento deante da montre do B^nard a observar 
as figurinhas de barro, que Id estao expostas, e 
que conseguiram aristocratisar-se a ponto de fica- 
rem entaladas entre duas lojas chicsj uma com ^a- 
iiota9 d porta, outra com viscondes dentro* <iy,] 

189s— DcMfflbro. ?( J 

™ i : 'W 

E' costume, nos Passos de Camide, os alumnos 
do collegio militar marcharem, atraz do pallio, 
muito garbosos e serios — com a consciencia de se- 
rem o exercito. . • do fiituro. 

Hontem, na Luz, vi a procissao, mas nSo vi os 
alumnos, que faltaram, dizia-se que por causa da 

chuva. 

Em todo o caso, na auseneia d'essas figurinhas 
vivas de jovcns militares, lembrou-me, nao sei bem 
dizer como, certa nota de FiWrvlo "E-Vj^vo ^x^^^5^\x^ 



Il6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA P^REIRA 

de uma antiga procissao que outr'ora se fazia na 
quaresma, em Lisboa,, e na qua! as imagens e os 
penitentes eram ainda mais pequenos, decerto, que 
OS alumnos do collegio militar. 

Eram de barro — eu amo as figuras de barro, jd 
sabem — e os estudantinhos da Luz tambem o sao, 
porque, Id diz muito bem o auctor dos Avisos do 
ceu: cmais barro, menps barro, tudo n'este mundp 
e barro. » 

Nao somos outra coisa. 

Chegando a casa comecei a folhear Filinto no 
cmpenho de encontrar a nota. 

— Pois voce tern em casa o Filinto ! que peste ! 
dird algum leitor mais sabio entre os sabios moder- 
nos. 

Tenho, sim, porque esse diabo de homem, que 
era um duro poeta, refractario A rima, tern um vo- 
cabulario tao seu^ e tao nosso, um geito de phrase 
tao pittoresco e luzitano, uma ironia tao funda e ao 
mesmo passo tao ingenua, que nao se pode pres- 
cindir d'elle n'uma livraria que valha alguma coisa. 

Sempre me ha de lembrar que o antigo profes- 
sor do Lyceu do Porto, o sr. Manuel Emilio Dantas, 
que foi meu mestre, me dizia uma vez no botequim 
da Aguia dCouro : 

— Nao se pode saber portuguez sem se ter to- 
rnado o gosto d traducgao de De rebus Emanuelts 
por Filinto Elysio. 

— Acha isso, sr. Dantas ? ! perguntei eu, que en- 
tao nao podia entrar com o bom do Francisco Ma- 
nuel. 

Prefena-lhe Soares de Passos, o dsrs tristezas, o 



NINHO DE GUINCHO II7 

doce poeta da morte, que era em poesia o meu 
evangeltsta. 

E nSo sei se ainda serd . . . porque nSo topei me- 
Ihor — nem maior. 

O professor Dantas desfechou-me na cara uma 
d*aquellas pyramidaes gargalhadas, que retumba- 
Vam quando Ibe sahiam dos labios como uma bomba 
de dynamite, e, descancando urn memento, disse 
entre alegre e auctoritario: 

— Nao trate vocfi de entender-se com o Filinto e 
queixc-se depots. 

Esse Dantas era bem meu amigo, e, alguns an- 
nos raais tarde, lembrando-me o seu conselho, se- 
gui-o. 

Entendi-me com o Filinto. 

Pols bem. Chegando a casa, d volta de Garni de, 
fiii procurar a nota. Deu-me algum trabalho a en- 
contral-a; mas encontrei. Eil-a aqui: 

fSe jd nao vem pela quaresma a Charola da 
A|uda dar um descante ao Divino, pelas ruas de 
Lisboa, necessario serd contar aos rapazes de agora 
a composicao d'ella. Pelo pouco que me recordo, 
, creio que era um andorsinho assentado em dois va- 
rapaus, cangado nos hombros de dois saloios, aco- 
bertado c'uma toalha de maos, como carro de roma-^ 
gem, com muitos senhorinhos dos Passos, muitos 
penitentes brancos, todos de barro pintado, e tudo 
per dentro allumiado com rolinhos de cSra; e em 
roda, por detraz, e por diante muito aldeao berrando 
certa lenga-lenga devota ; e pedindo muita esmola, 
que espalhadas pelas maos e algibeiras dos canto- 
res, e mais matula (porque a\\ tv'acs^^^ c^Tfe^\^ 



Il8 COLLEC9AO ANTONIO MARU PEREIRA 

todos sao thesoureifos) iam diminuindo pelas baia- 
cas, ate chegar & Ajuda, sem pdda.» 

Digam-n'o melhor, se sao capazes. 

Nao sao. 

E, parando deante da nota de Filinto, como d- 
nha parado deante da procissao de Camide^ come- 
cei a pensar na delicia que eu sentiria se possuisse 
alguns dos bonequinhos da charola da Ajuda e pu- 
desse dizer a mim proprio authenticando-os : 

— Sao OS mesmos de que falla Filinto! 

Nao tenho essa procissao, mas tenho outra, a 
dos Passos moderna, toda, completa, at£ com a 
guarda municipal, cuja banda me parece ir tocando 
as marchas do sr. yisconde de Oliveira Duarte, 
tanto vivem aquelles inanimados bonequinhos. 

E entao comecei eu a pensar n'uma noticia que 
tinha visto nos jornaes e que, ao ISr a nota de Fi- 
linto, me acudiu d lembran^a por assodagao de 
ideias. 

Que o Atheneu Commercial vae fazer uma expo- 
sigao de ceramica portugueza. 

Toma Id! 

O Popular jd disse, e com razao, que essa expo- 
si^ao era muito difficil de organisar e que^ mal feita, 
seria melhor nao fazer-se. 

Pois assim mesmo 6 que e. 

Uma exposi^ao d'esse genero, para corresponder 
inteiramente ao seu fim, deve abranger os bonecos 
e as loigas. Sao dois capitulos vastos —• especial- 
mente as loi^as. 

Querem uma ideia das difficuldades que terSo a 
veneer os organisadores d'essa ex^siqSo ? 



NINHO DE GUINCHO 1 19 

Ahi vae. Em Lisboa e em todo o paiz sao muito 
conheddas as bilhas de Estremoz, e hem o mere- 
cem, porque sao as melhores, mas em muitas re- 
giScs de Portugal se fabricam potes, cantaros, bi- 
IhaSy talhas, infusas, pucarinhas sui generis^ que an- 
dam at^ mendonados nos poetas antigos. 

Lembram-se d*aquellas lindas voltas de Camoes ? 

Leva na cabe9a o pote, 
O testo nas maos de prata, 
' Cinta de fina escarlata, 
Sainho de chamalote : 
Traz a vasquinha de cote, 
Mais branca que a neve pura ; 
Vae formosa, e nao segura. 

Tambem se h3o de lembrar da glosa de Rodri- 
gues Lobo sobre o mesmo assumpto: 

A talha leva pedrada, 
• Pucarinho de fei95o, 
Saia de cor de limSo, 
Beatilha suqueixada: 
Cantando de madrugada, 
Pisa as flores na verdura, 
Vae formosa e nSo segura. 

A's pucarinhas, que ainda hoje sao uzadas para 
guardar mel, se refere Gil Vicente no Auto da FeirUy 
quando chega ao tablado Branca Annes e diz fei- 
rando : 

Eu queria ua pucarinha 
Pequenina para mel. 

Pois em quasi todo o paiz se fabricam vasilhas 
de barro para agua e mel, nao ob^Vdxte. \^x ^ y^- 



I20 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

masia Estremoz, que e a bem dizer a cidade de 
Andujar portugueza. 

Os senhores sabem que a riquesa vital da antiga 
cidade de Andujar, na Andaluzia, e um barro leve^ 
amarello-pardaccnto, de que ali se fa^em as vasi- 
Ihas que teem o nome de — alcara:{as. 

Postas ao ar, refrescam e purificana a agua> como 
acontece com as bilhas de Estremoz. 

Trez quartas partes dos habitantes de Andujar 
sao oleiros. 

Isto e que nao acontece em Estremoz, onde ha 
apenas actualmente cinco casas que, verdadeira- 
inente em familia, fabricara bilhas c moringues. 

Uma d'essas casas e a de Antonio Guerreiro 
(Peixe), sexagenario quasi invdlido, que trabalha 
com dois sobrinhos, um de quarenta annos e doen- 
te; o outro, um rapaz de quatorze annos, cujo tra- 
balho, a bem dizer, sustenta o estabelecimento. 

Casa de Jose Gallego, homem de mais de cin- 
coenta annos, com um filho rachitico. 

Casa de Jose Feiticeiro, sexagenario. 

Estas trez olarias terao um movimento annual de 
500^000 reis cada uma. 

Casa de Jose Maria Firme, o qual jd completou 
cincoenta annos, e tem filhos, alids pouco aprovei- 
taveis para a industria. 

O seu movimento annual serd de 800^000 r^is. 

Casa de Caetano Augusto da Conceicao, conhe- 
cida pela designagao de Casa Alfacinha. Concei- 
cao nao e oleiro de origem, mas dedicou-se a esta 
industria, em que educou trez filhos e trez filhas, 
das quaes ji morreu uma. Aletn da familia^ traba- 



NINHO DB GUINCHO 121 

Iham na officina mais dois homens e cinco mulhe- 
res. Concei^ao exporta loiga para a Africa, Brazil 
e Inglaterra. Jd foi premiado por duas vezes, em 
1884 e 1890. 

O movimento annual d'esta casa orca por 
1:000^000 reis. Mas o proprietario lucta com a falta 
de capital, que Ihe nao permitie ter bons fomos. 

A industria em Estremoz estd decadente, quasi 
ame^ada de morte. Quando o Conceicao ali se es- 
tabeleceuy havia ainda i5 officinas; agora, apenas 5. 
Os donos d'essas olarias foram morrendo na po- 
bresa, sem deixar descendentes habilitados. Assim 
como desappareceu em Estremoz a linda loica 
branca, que ali se fabricava no seculo XVIII e ainda 
no principio do seculo XIX, a loica vermelha 
tende a desapparecer, e desapparecerd, se a Casa 
Alfacinha cessar por qualquer motivo. 

barro, em Estremoz, encontra-se a rodos, por 
toda a parte, abundando principalmente -nos ater- 
ros que em tempo se fizeram para as muralhas. 

As bilhas sao de duas especies. 

1 .* — Lavradas, com ornatos representando pas- 
saros, flores e fructas ; e pedradas, com embrecha- 
dos de calcareo muito branco. 

O famoso poeta Christovam Falcao, que era 
alemtejano e viveu no seculo XVI, descreve as bi- 
lhas de Estremoz quando diz : 

Ua coifa nSo lavrada, 
Antes sem nenhum lavor, 
E em cima, por mais dor, 
Ua talhinha pedrada 
Ou um pedrado ^tanoT. 



122 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREiRA 

Christovam Falcao escreve atanor, designando 
esta vasilha ; mas no portuguez antigo encontram-se 
quatro formas : atanor, atenor, tanor e tenor. 

2.^ especie: bilhas lisas, muito polidas, lustrosas; 
a simplicidade nao Ihes prejudica a bellesa. 

Em Andujar estd garantida a fabricacao das a/- 
cara^asy porque quasi todos os habitantes sao olei- 
ros. 

Em Estremoz, onde a loiqa e linda, comquanto 
OS bonecosy que tambem Id os fazem, sejam de- 
testaveisy a industria agonisa, morrerd talvez. 

Mas faz pena isto, v6r os poderes publicos, v€r 
principalmente a reparti^ao de industria, tratando 
de coisas grandes e problematicas, sem curar de 
acudir a uma pobre industria alemtejana, que de- 
finha ali em Estremoz d mingua de recursos. 

O governo lerd folhetins ? Talvez nao. Se lesse, 
eu abenqoaria a hora em que, principiando por vgr 
a procissao de Passos em Carnide, me lembrei da 
nota de Filinto e, depois, da projectada exposi(;So 
do Atheneu Conunercial, ate que vim parar, nSo 
sei bem como, na famosa loi^a de Estremoz. 

O meu dever i conversar com o leitor ; convcr- 
sei o que me lembrou. 

Se o leitor nao gostou, outra vez gostard mais 
— se gostar. 

1899 — Mar9o. 



XIV 



O SILENCIO 



Durante toda esta semana se fallou de mais. 

Um supposco assassino contou a um guarda-por- 
tfio a historia dos seus crimes. 

E desde entao toda a gente, imitando o guarda- 
portSOy comefou afallar, a fallar, a fallar... sem sa- 
ber ao certo o que dizia. 

Faz lecnbrar aquella linda can^ao popular da Gre- 
cian imitada por muitos poetas, segundo a qual dois 
Bamorados se beijaram tendo por unica testemunha 
o ceu brilhante. 

Mas cahiu n'esse momento uma estrella, que foi 
contar ao mar o que viu. Passava pouco depots 
um navio, e o mar — naturalmente recommendan- 
do sempre o maior segredo — contou ao leme esse 
terno segredo de amor que havia surprehendido. 
O leme nSo descan(;ou emquanto nao disse tudo 
ao piloto, que desembarcando o contou logo A sua 
amante, E d'ahi a pouco tempo toda a gente o sa- 
bia« Ati OS rapazes da rua cantavam a historia do 
beijo. 



124 C0LLEC9^0 ANTONIO MARIA PEREIRA 

Com razao disse o propheta Jeremias que o mai( 
castigo da humanidade, a morte, subiu pelas jane^ 
las. Ascendit mors per fenestras. 

Santo Ambrosio explica o que sejam estas janef - 
las, que se tornaram perigosas por terem estado 
abertas. 

E' que nossa mae Era abriu a bocca para con* 
versar com a serpente, a qual tambem de certo nao 
fechou a bocca para fallar. 

D*estas duas janellas imprudentemente abertas 
veio a maior semsaboria da vida : a morte. 

Foi como se entrasse uma corrente de ar, qucto- 
Iheu a humanidade inteira. 

Eu estou de perfeito accordo com o padre Ma- 
nuel Bernardes quando exclama: tVejase sc im- 
porta tapar bem esta janella, pois por ella mal ta- 
pada entrou a ruina de todos os filhos de AdSo » 

Li isto ha muitos annos e nunca mais me esque- 
ceu. 

A's vezes, quando me sinto tente^do afazer uma 
confidencia, obedecendo & indole expansiva de to- 
dos OS meridionaes, sinto umbra^oinvisiveltocar-me 
para me conter. 

Jd sei quern e Detenho-me. E oi^o entao a vor 
do padre Manuel Bernardes segredar-me ao 6u- 
vido: 

— Fecha a janella. 

E cerro a adufa. 

Nunca me arrependi de ter fall ado de menos, 
pelo .que estou intimamente convcncido da profun- 
da verdade d'aquelle proverbio oriental que diz : tA. 
e/oquencia 6 de prat a*, mas o sUetvcvo i de oilro.t 



.^^^ NINHO DE GUINCHO 125 

Y^ E se algum oiro possuo e ainda o silencio. Tarn- 
^«in jd nao ha outro. 

Conta-se que existiu um certo bispo, muito lido 
t)os Santos Padres, que tinba horror de fallar. 

Lembrava-se constantemente do apostolo S. Thia- 
go, que judiciosamente observou ter sido a taga- 
rellice de Eva uma pequena faisca de que se origi- 
nou o incendio de um bosque inteiro. 

O silencio constituira n'esse discreto bispo um 
habito inveteradOy de modo que se estava doente o 
constran^ muito ter de . responder ds perguntas 
do medico. 

Era uma s^ca. . 

—A Dorme bem, vossa ex.^^* reverendissima ? 

— Nao. 

. — E vontade de comer .? 
-p Ppuca. . 

— Uma grande apathia, nao e assim ? 

— Sim. , . 

— Bocca saburrosa ? 

— Muito. 

— Grande can^a^o ? 

— Bastante. 

For mais insigmficante que fosse a doen^a, o ques- 
tionario do oiedico era seq[)pre fatigante. 

A'a vezes ,o prelado dizia comsigo mesmo : «Quan- 
do eu tiver uma doen^a grande, como poderei atu- 
rar o doutor?9 

E esta ideia entristecia-o quasi tanto como o te- 
mor da eoferipidade. 

P»safy|n^ annos, acabrunhou-se-lhe a velhice, 
que & ji4e si mesma a maior das dot.Yv^^. 



126 COLLECfAO ANTONIO BfARIA PEREIRA 

O cora^ao, o figado, os rins come^aram a regu — 
lar mal, como um relogio que estd can^ado de tra- — 
balhar. 

Aconselharam sua excellencia reverendissima a^ 
que cbamasse um medico. 

— Valha-me Deus I dizia o bispo co^ando na ca— 
be^a. Os medicos fazem tantas perguntas ! 

Mas veio o medico, porqueos familiares do bispo 
assim o quizeram ; na casa dos grandes quern go* 
verna sao os pequenos. 

Realisou-se o que o prelado receiava : maior doen- 
qa, mator interrogatorio. 

Tao fatigado ficou o bispo com as perguntas do 
medico, que se lembrou de fingir que estava melhor 
sd para nao ter que aturar outra vez o doutor. 

Mas era preciso mentir, e a mentira repugnava-lhe. 

— Se eu pudesse fechar a janella. • • pensava o 
prelado. 

O medico voltava no dia seguinte e ^bria-a de 
par em par — ^vidra<;a e ponas. 

Se sentia aquillo? se sentia aquell'outro? se o re- 
medio fizera effeito ? se o havia tomado a boras ? 
se nao haveria engano nas d6ses ? 

Cena manha o bispo lembrou*se de que os irra- 
cionaes eram mais felizes do que os homens, por- 
que nao cinham que responder a perguntas nenhu- 
mas quando estavaoi doentes. 

Felizes brutos ! pensou o bispo, que se curam sem 
fallar! 

Sempre cogitando n'esta id^a, de consequencia 

em consequencia, lembou-se de que all ao p£ da 

porta do pago morava um aWevtar d^ ^raodtfama. 



NJNHO DE GUINCHO 1 27 

Chamou um dos famulos mais intimos e disse-ihe 
^^\2e desejava ser tratado pelo alveitar. 

Espantouse o fatnulo ; era a primeira heresia que 
^Inha ouvido ao seu prelado. 

— Fa^a o que Ihe digo, insistiu o bispo. E quero 
^ue elle me trate pelo systema das b€stas. 

— Meu senhor ! 

— Nao quero abrir a janella, nem que elle tam- 
l>em a abra. Ascendit mors per fenestras. Quando 
OS alveicares tratam as cavalgaduras perguntam- 
Ihes alguma coisa ? 

— Nao, meu senhor. 

— E nao as curam tantas vezes ? 

— Sim, meu senhor. 

— Os mudo» nao sao tratados d semelhan<;a das 
bfistas sem que ninguem Ihes pergunte coisa nenhu- 
ma? 

— Sao, meu senhor. 

— Pols eu, que nao sou mudo, desejo que o al- 
veitar me trate como irracional. O que pode aconte- 
cer de peior? Que me nao cure? Mas, ao menos, nao 
me teri ma^ado. 

Veio o alveitar muito em segredo, e bem Indus- 
triado pelo famulo : que nao dissesse nada mais e 
nada menos do que dizia ds bestas que tratava. 

Que sim ; que faria do mesmo modo, visto que 
era isto o que o senhor bispo queria. 

Entrou o f alveitar e sem dizer palavra apontou 
para o Icito, indicando ao prelado que se deitasse 
para aer examinado melhor. 

O biapo obedeceu em silencio. 

Entfio o alveitar, arremangatvdo ^ c^x£v\^^^ ^^- 



128 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

palmando as grandes maos calosas, come^ou a apal- 
par as costellas do bispo. 

Mas quando chegou a tocar-ihe no figado, q bis- 
po doeu-se tanto, que se contorceu violentamente. 

E o alveitar, proseguindo serenamente apostro- 
phou: 

— Cho I 

O bispo gostou muito, porque tinha encontrado 
uma pessoa que se propunha tratalo sem gastar 
mais que um monosyilabo. 

Nao ha em verdade maior delicia para b espkito, 
nem menos perigosa, do que a de estar entregue 
cada um aos seus proprios pensamentos. 

Sinto em mim duas costellas de frade cartuxo. 
E tenho reconhecido que o silencio triumpha muito 
mais que a iinguarice. 

O duque de Loul^ foi o presidente de conselho 
que menos tem fallado em Portugal. 

Batiamse contra elle os grandes oradores d'esse 
tempo, que foram os maiores do regime parlamentar. 

O duque levantava-se, sempre muito correcto na 
sua pose elegante, e dizia apenas duas palavras; 

Pois eram essas duas palavras que valiam.* 

Porque a camara, depois de as ter ouvido, sabia 
que o governo nao tornaria a fallar. . . 

E por ellas ficava orientada sobre o que Ihe cum- 
pria fazer. • ' -. f 

Conta-se que um anciao virtuoso, e vitinho da 
montanha que hoje se chama Bussaco, ia alt pas- . 
sar grandes temporadas no silencio do ermo. 

Negocios de sua casa obrigavam-n^o a *voltar ao 
povoado, maSf quando descia da motix^xvWvticida a 



NINHO DE GUINGHO 1 29 

gente pasmava que voltasse remo^ado, mais novo e 
guapo do que f6ra. 

Elle dava uma explica^ao do caso : 

— D'aquelle monte saco bus, 

Como se dissesse: venho saturado de silencio, 
que € uma coisa que faz muito bem i saude. 

Ou, segundo a li^ao do propheta Jeremias: «Fe- 
chei a janella emquanto 1^ estive.» 

Crfiem alguns que d'estas palavras saco bus veio, 
por caprichosa transposigao, a dizer-se — Bussaco. 

E assim o dava a entender aquelle monge do 
painel que estava A entrada da porta no mosteirinho 
da serra, e que nao sei se ainda \i est^, o qual mo# 
ge, com o dedo indicador erguido sobre a bocca, 
recommendava silencio. 

Uma vez encontrei em Mafra uma ingleza velha, 
ha muitos annos residente no Porto, que andava 
vendo o templo. 

Fui achal a no vestibulo parada deante da ima- 
gem de S. Bruno, o tundador da ordem dos cartu- 
xos, imagem que, pela expressao da physionomia e 
pela verdade das roupas, d uma verdadeira mara- 
vilha artistica. 

Essa dama ingleza, que logo trocou comigo a sua 
admiragao deante d'essa bella imagem, chamou par- 
ticularmente a minha atten^ao para o bem cinze- 
lado do habito, aqui apanhado, ali cahido, com uma 
verdade inexcedivel. 

— S. Bruno, respond! eu, nao precisaria talvez 
d'esta bella imagem para sua gloria. Bastar-lhe-ia 
decerto a de ter sido o fiindador da Cartuxa, cujos 
monges pensavam muito e fa\\a\ativ ^omco* 



l3o COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

A dama ingleza voltou a sua luneta para mim e 
fixou-me ironica dizendo : 

— Pois e um portuguez que diz isso?! 

Apanhei o piao A unha. Senti cabir em cheio so- 
bre mim um epigramma, que abrangia todos os 
meus compatriotas. 

Entramos na egreja quasi ao mesmo tempo. 

A ingleza dizia-me coisas, ia chamando a minha 
attencao para isto e para aquillo. 

Eu nao respodia nada. Fechei a janella para desaf- 
frontar o paiz. Quando nos separdmbs, a ingleza 
apertou^me a mao em silencio e foi almogar para o 
Mtel Moreira. Se a li^ao me tinha aproveitado, nao 
Ihe aproveitou menos a ella. 

Vinguei Portugal, mas o caso nao veio As gaze- 
tas e por isso nao cheguei a apanhar uma portaria 
de louvor. 

Silencio! gelosia da alma, defesa do espirito, que 
falta fizeste esta semana! 

A faisca, despedida da bocea de Eva, aiada agora 
estd abrazando o mundo. 

Fallou-se nas ruas e botequins a respeito do Bi- 
gode.(*) Fallou-se na camara dos pares a respeito 
do milho e do trigo. Cada par do reino fallou du- 
rante dois dias para mostrar talvez que um par do 
reino o deve ser em tudo — at^ nos dias que con- 
some fallando. - 



(^) Appellido de um individuo julgado e condemnado na co- 
marca de Aiinada como auctor da morte de uma mulher. 



NINHO DP GUINCHO l3l 



O propheta Jeremias been dizia do alto daclara* 
boia da sala : 

— Fechai a janella. 

Ah I bispol bispo I se tu pudesses resuscitar para 
dirigir este paiz, ha muito tempo que elle nao seria 
tratado senao por alveitares . . . 

E talvez ]& estivesse curado. 



1899 — Abnl. 



XV 



O FUNDADOR DO ASYLO 



Era um homem velho, mais de sessenta annos, 
nutrido, muito screno no andar e no fallar, sempre 
com um sorriso indulgente nos labios. 

A. expressao dos seus olhos, entre generosa e 
resignada, revelava uma infinita do^ura, calma e 
profunda. 

Rico, muito rico, tinha regressado do Brazil d 
sua terra natal, uma linda cidadesinha do norte do 
paiz, onde os salgueiros engrinaldam as margens de 
um rio que parece feito de crystal. 

A sua familia eram duas filhas, duas creaturinhas 
morenas e languidas, cujos olhos tinham claroes 
mais brilhantes do que longos. O olhar quebrava- 
se-lhes, a breve trecho, n'uma calmaria doce, que 
lembrava o apagar de um occaso. 

Eram conhecidas peias — brazileiras — c conside- 
radas ^os melhores casamentos de sete leguas em 
redor. 

O pae, tendo desposado a filha de um capitalista 

do Rio Grande, enviuvdra aos quarenta annos e, 

saudoso da patria^ escolhera paia vW^r a(\uella mo- 



NINHO DE GUINCHO 1 33 



desta terra de provincia, onde havia nascido pobre. 

NSo o deslumbraram as grandes capitaes da Eu- 
rope, onde a vida e alegre e faustosa. Procurara os 
montes e as arvores que primeiro amdra. Julgou 
nao precisar de mais nada para ser absolutamente 
feliz na opulencia. 

Das suas duas filhas, a mais velha principiara a 
manifestar symptomas de tuberculose hereditaria. 
A mae tinha morrido tysica no Brazil. E para sal- 
var a vida da filha, o bra:{ileiro da Pra^a^ como 
na sua* terra diziam, fSra passaralguns invernos na 
ilha da Madeira, porque n'aquelle tempo nao se 
fallava ainda em climas de altitude. 

Todos estes cuidados, dispensados a peso de 
oiro, apenas conseguiram retardar a marcha da 
doenqa. O bra:{ileiro vira morrer a sua primeira 
filha ao cabo de quatro annos de soffrimento, quan- 
do ji a outra revelava inquietadores signaes d'essa 
terrivel heran^a de familia. 

N'uma tristeza tranquilla, cheia de resignagao e 
de conformidade, o bra\ileiro dedicara-se ^ vida e 
d saude da sua segunda filha. 

Fizera largas viagens por mar, voltara a passar 
OS invernos no Funchal, n'uma bella quinta que s6 
tinha sido habitada por lords inglezes e principes 
russos. 

Mas a tuberculose seguira a sua marcha, e o bra- 
^ileiro perdera a segunda filha como jd havia per- 
dido a primeira. 

Ficara s6 no mundo, com o seu dinheiro que era 
muito, c que chcgava a pesar-lhe como uma coisa 
inutil de que a gente se esc^utct. 



l34 COLLECCAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Procurdra lenitivos na caridade, fonte inexgota- 
vel de resigna^ao. 

Mandou construir um vasto asylo para velhos e 
velhas e, desde pela manha cede at^ ao ficn da tar- 
da, elle proprio fiscalisava as obras, estimulava a 
actividade dos operarios gratificando-os, e indicava 
as altera^ocs que julgava preciso introduzir no pro- 
jecto do edificio para maior commodidade dos asy- 
lados. 

Concluida a obra, que levou muito menos tempo 
do que toda a gente imaginava, rapidamente se 
povoou o asylo com velhos e velhas, tque nao ti- 
nham familia.» 

Era esta a condi^ao unica, que ^lle impunha na 
escoiha dos asylados. 

Levantando-se ao romper da manha, o bra:{ileiro 
sahia logo do seu palacete na Praca em direc^ao 
ao asylo- 

la assistir d ora^ao, depois ao almoqo. Adoenta- 
do as vezes, nem por isso faltava. O mais solicito 
empregado nao pod^eria excedel-o no zelo e cari- 
nho com que elle tratava «os seus velhos e as suas 
velhas », quasi todos rabujentos, muitos d'elles jd 
dementes. 

A's vezes um velho, de olhar desvairado, parava 
deante d'elle a querer deter- Ihe os passos e a di-: 
zer-lhe : 

— E's o meu Ricardo, sim, es tu mesmb. . . Fos- 

te embora ha tanto tempo, e nao tinhas appareci- 

do. . . Ingrato ! . . . Nao me lembro bem como isso 

foi^ mas nunca mais tomaste a apparecer a teu pae. 

£ o ^ra;(t7eirOf em cujos olhoa s^ aVw^N^ \xi%\^ 



NINHO DE GUINCHO 1 35 

expressao calma de profunda do^ura, parava a ou- 
vil-o com bondadc, sem ousar dizer-lhe uma unica 
palavra, que pudcsse roubar ao pobre velho a illu- 
sao de ter encontrado seu filho ha muito tempo au- 
sente, e talvez ]A morto. 

Havia no asylo uma velha — eu mesmo a vi e ou- 
vi algumas vezes — que tinha urn odio profundo ao 
bra:(tlet'ro. 

Estava paralytica das pernas e passava os dias 
sentada na cama a regougar amea<;as, a cantar, com 
voz roufenha, cantigas de uma vaga nebulosidade 
apocaiyptica, que ninguem podia entender. 

Quando via o fundador do asylo, exaltava-se, ges- 
ticulava, fazendo men^ao de aggredil-o; tentava ar- 
remessar-lhe a almofada do leito. 

— Foi este mesmo, foi este monstro, bramia ella 
— que desgra^ou a minha Carlota. . . Estas n£s pro- 
fundas do inferno, monstro! Hei de matar-te um 
dia e mandar-te de presente ao diabo, que nao ha 
de ficar rico comtigo. 

O bra^ileiro passava rapidamente ao longo do 
dormitorio, fugindo para nao prolongar a exalta^ao 
da velha asylada. 

E ia dizendo: ccoitadinha! coitadinha!» cheio de 
ternura e de misericordia. 

E voltando-se para o fiscal que o acompanhava 
sempre : 

— Tratem-n'a muito bem, muito bem. E nunca 
procurem convcncel-a de que eu nao sou o homem 
que )ulga. Ao menos, assim, desabafa a sua ddr. 
Coitadinha ! coitadinha ! 

A^ porta da capella, sentada rf\]ircv <i^%x^M^ c^^'s* 



1 36 COLLEG9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

tumava pousar, esbaguando as contas do rosario, 
uma veiha que resava muito, que resava sempre, 
desde que se levantava at^ que adormecia. 

Quando o bra\ileiro passava, ella erguia-se do 
degrau, avancava para elle, detinha-o e dizia Ihe : 

— Resemos um Padre Nosso pelas almas do Pur- 
gatorio. 

E o bra:{ileiro resava tambem: 

— Padre Nosso, que estaes no ceu, santificado 
seja o vosso nome. 

Depois, muito satisfeita por ter conquistado mais 
um allivio para as almas do Purgatorio, a velha do 
rosario ia sentar-se no degrdu da capella e conti- 
nuava a rezar — Padre Nosso. 

Quando o bra\ileiro chegava d secretaria, de cu- 
jas parcdes pendiam os retratos das suas duas fi- 
Ihas, demorava o olhar nos retratos, e nunca os seus 
olhos pareciam mais doces do que n'essa occasiao. 

Depois, jd sentado na cadeira de couro tauxiado, 
que Ihe era reservada, dizia habitualmente : Goi- 
tadinhos! coitadinhos dMles, os meus velhosI> 

E examinava as contas^ as tabellas, os mappas, 
pagava aos fornecedores, dava instruc^Ses aos em- 
pregados. 

A's vezes, quando sahia, ouvia cantar a velha 
que o costumava insultar, e recommendava ao fiscal: 

— Nao a desilludam nunca, coitadinha ! coitadinha ! 

E jd na rua, se encontrava alguem: 

— Venho de ver os meus velhos, que sao a mi- 
nha familia. 

I goo — Julho. 



XVI 



O PAPAGAIO 



Entrou o inverno em scena — e a Duse tambem. 

Duas celebridades consagradas, ambas colossaes, 
porque uma 6 o vendaval e o trovao e a outra tern 
o que quer que seja de revolta tempestade de talen- 
to e de nervos . . . 

Ambas inimitaveisy porque a chuva e a trovoada 
no theatro ficam muito dquem da verdade da na- 
tureza, e a Duse nao pode ser copiada por ninguem, 
tSo compiicada e a sua organisa^ao artistica, tao 
carregados de electricidade vibram os seus nervos 
de actriz originalissima. 

Aiem do que, o inverno parece-se com os actores 
famosos, em nao mudar dc repertorio, visto que 
tanto um como os outros dSo a volta ao mundo sem- 
pre com o mesmo scenario e as mesmas pe^as. 

Assim, a Segunda mulher de Tanqueray e a Vrin- 
cesa George estalam de acto para acto em ribombos 
de ciume, mas a ^ama das camcUas ^ Q.ci\s\^ \otjl 



i?8 COLLECfAO ANTONIO MARIA . PEREIRA 

dia de sol romantico intercallado n'uma semana de 
temporal, o que ds vezes acontece e ainda esta se- 
mana aconteceu. 

Pelo que respeita a toilettes, sao rocagantes e ma- 
gestosas tanto as das grandes invernias come as das 
grandes actrizes. 

' Qualquer dia de cerracao, como os que temos ti- 
do agora, obriga a natureza a vestido preto constel- 
lado de gotas d'agua. 

Na Segunda tnulher de Tatiqueray, a Duse appa- 
receu tambem de preto, com perolas, parecendo 
que essa soberba toilette era realmente feita de nu- 
vens e de gotas de agua. 

Ha pessoas que gostam muito do invemo, dor- 
mindo melhor quando ouvem cahir a chuva ou as- 
sobiar o vento, e jantando vorazmente depois de te- 
rem apanhado uma formidavel molhadella. 

Do mesmo modo, ha quern s6 esteja deliciado no 
theatro quando ve em scena famosas celcbridades, 
embora representem n'uma lingua extranha, de que 
se perde pelo menos metade das palavras. 

Outras pessoas nao gostam senao dos dias sere- 
nos e inoffensivos, e dos actores que nao fa^am agi- 
tar muito os nervos. 

Quanto ao invemo, eu acho-o uma esta^So insup- 
portavel, a mais deprimente de todas para o orgulho 
dos homens. 

Vgr uma pessoa na rua, n'um dia de temporal 

desfeito, com as botas enlameadas, o paletot escor- 

rendo agua e o chapeu de chuva esfrangalhado, 6 

humiJhante para a nossa especie. 

Nao ha ce/ebridade que resvsta a wkv ^^%.c£v^. 



NINHO DE GUINCHO iSq 

Encharcados, todos 6s homens sao iguaes. Perdida 
a elegancia, o aprumo, aimpassibilidade gentil^real 
ou apparente, que uma pessoa affecta possuir quan- 
do sai de casa, nao fica mais que a «junca do bre- 
jo» a que se referia Herculano, uma coisa reles e 
mesquinha, o manequim desconcertado pelo vento, 
pela chuva e pela lama das ruas. 

Resta, 6 verdade, o recurso do trem. 

Mas se o trem tem o que quer que seja de trium- 
phal n'um dia de sol, quando parece que vae con- 
duzindo heroes e rodando para o Capitolio, n'um 
dia de chuva faz lembrar uma carruagem cellular, 
que transporta penitenciarios empilhados uns con- 
tra OS outros, dobrados sobre si mesmos, priva- 
dos de vSr a luz e de respirar livremente. 

Um exercito, ainda que marche victorioso, se o 
fizer n'um dia de temporal, perde todo o seu garbo 
militar, todo o seu brilho marcial, as bayonetas nao 
scintillam, as plumas nao fluctuam, a cdr das fardas 
nao vive. 

Quanto a celebridades de theatro, ha muitas pes- 
soas que nao dao um passo para ir vel-as. 

Tcem-Ihes medo como d tempestade e contentam- 
se de ler nos jornaes a noticia do espectaculo, como 
se se tratasse de saber onde foi que na vespera caiu 
uma faisca electrica, ou onde foi que a inundacao 
causou maiores estragos. 

Entram n'este numero as sr.^^ Germundes, que 
durante toda a semana nao puzeram pe no theatro 
D. Amelia e andaram passando as noites por casa 
de alg^mas das suas amigas, as quaes pensam do 
mesmo modo a rcspeito de celebrvdad^^ dta.Nxv^vvL^^* 



140 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Em que se entretiveram todas essas boas senho- 
ras nos serSes de tao calamitosas noites de invemo, 
como as que temos tido agora ? 

Nas mil bagatellas que podem entreter a conver- 
sagao n'uma sala, com alguns numeros de piano e 
alguns expedientes de phantasia para aligeirar as 
horas. 

Ter?a feira, noite em que as senhoras Noronhas 
receberam, uma d'ellas fallou do seu t6i6, que pa- 
rece ensinado por qualquer palha^o do Golyseu. 
Anda a pe, com as maos no ar, pdra, marcha, vol- 
teia, segundo as vozes de commando que Ihe dao. 

Veio d sala o t6t6 para fazer prova publica das 
suas habilidades, e todas desempenhou com notavel 
galanteria. 

Levantou-se, firmou-se, marchou, parou, volteou. 
Um encanto! 

Mas a D. Gabriella Germunde, que e a mais la- 
dina de todas as Germundes hystericas, nao se deu 
por deslumbrada com esta exhibi^ao maravilhosa 
do canito bailarino, e apregoou que o seu papagaio, 
que o padrinho Ihe trouxera do Pard, nao era infe- 
rior em habilidades e prendas. 

— Que fallava como o Jose Estevam ! affirmou. 
Movimento de incredulidade na assemblea. 

— Ora essa ! 

— Esta Gabriella tem exaggeros ! 

— O' menina ! por que nao fizeste deputado o teu 
papagaio ? 

A Germundesinha estomagou-se. 

— Nao acreditam ! Pois e certo que apanha um 
assumpto no ar e discorre \ogo sobve elle. 



NINHO DE GUINCHO 14I 

— Sobre o ar ? 

— Nao! sobre o assumpto. 

— O' filha! deves andar pelo mundo a mostrar 
essa irtaravilha de bicho. 

— Duvidam ainda! Pois como trouxemos o cria- 
do, vou mandar buscar o papagaio. 

As irmas gritaram logo : 

— Que tolice, Gabriella! deixa-te de creancices. 
Quando estas senhoras Id forem a casa, poderao 
v6r. 

— Ha de ser hoje, que eu nao gosto de estar sob 
a suspeita de mentir. 

As ouiras senhoras fizeram c6ro : 

— Isto nao e ponto de honra, GabWella! 

— Olha que nao vale a pena ! 

— Quando n6s Id formos. 

Mas a Gerniundesinha quiz liquidar a questao do 
papagaio e mandou o criado a casa buscal-o. 

Ghovia. Disserana-lh'o. Nao se importou. Contra- 
poz que OS criados nao faziam apenas ssrvi^o no 
bom tempo. De mais a mais moravam perto. 

Como era de suppor, o criado, quando soube que 
ia buscar o papagaio, aborreceu-se. 

Estava a namorar uma criada na cosinha das No- 
ronhas. Empregou argumentos para nao ter que 
sahir: que o papagaio podia constipar-se ; que Ihe 
faria mal perder o somno, etc. 

Mas a Germundesinha bateu o pe com auctori- 
dade : que fosse immediatamente. 

O criado foi. 

Quando elle entrou em casa das Germundes vo- 
ciferava : 



142 C0LLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA 

— Com uma noite d'estas mandam as toleironas 
buscar o papagaio ! 

O animal abriu os olhos no poleiro e mostrou-se 
espantado de que o fossem incommodar dquella 
hora. 

— Tem paciencia, meu bicho ! 

A cosinheira das Germundes perguntou ao criado 
o que tinha vindo fazer a casa para incommodal-a 
a abrir a porta. 

O criado continuou a vociferar: 

— Com uma noite d'estas mandam as toleironas 
buscar o papagaio ! 

E pegando no poleiro, muito indignado, desceu 
a escada resmungando. 

O guarda-portao, que ouviu bater com forqa a 
porta do segundo andar, accordou no seu cubiculo e 
perguntou : 

— O* sr. Jose ! que veio vocS cd fazer ? 
Teve logo a resposta: 

— Com uma noite d'estas mandam as toleironas 
buscar o papagaio ! 

E sahiu a porta com o poleiro abrigado debaixo 
do chapeu de chuva. 

Assim que a Germundesinha, em casa das Noro- 
nhas, ouviu tocar a campainha, correu ao corredor 
a esperar o papagaio. 

Estavam tomando chd, d roda da mesa, onde col- 
locou o poleiro. 

O papagaio parecia mono, dorminhoco. 

Mas foi excitado por Gabriella, que Ihe bateu as 
paimas, maneira habitual de o fazer fallar. 

Houve um momento dc espectaxwai ^i^ciosa- 



NINHO DE GUINCHO I4D 



Gabrieila insistia com repetidas palmadas e com 
4ilgumas phrases de animagao e estimulo: cFalla, 
meu loiro. Nao me deixes ficar mal, meubicho.» 

Finalmente, o papagaio fitoua muito sereno, re- 
solveu-se a fallar e disse de rijo : 

— Com uma noite d'estas mandam as toleironas 
buscar o papagaio ! 



1900 — Dezembro. 



XVII 



VILLA E FIDALGA 



No opusculo A vilanfidalga on aventuras e trans-^ 
formacoes dafilha de urn moleiro conhecida em Lisboa 
pela alcunha de D. Marianna Joaqutna Franchiost 
Roletn Portugal^ publicado em Lisboa (1840) per 
Luiz Caetano da Rocha, conta-se que esta D. Ma- 
rianna, famcsa aventureira, tinha uma filha cuja 
paternidade attribuia a D. Miguel de Bragan^a. 

Nao parece coisa lacii saber se D. Marianna cra^ 
eftectivamente, a mae d'essa creanca, pois que du- 
rante algum tempo a apresentou como sua afilhada, 
filha de uma mulher que Ihe fazia services, e de- 
pois a declarava sua filha e de D. Miguel. 

Tambem se dizia que era filha de um inglez, 

A propria D. Marianna, se realmente era mae da 
creanca, nao saberia dizer ao certo quern fosse a 
pae, tao variada e numerosa foi a galeria dos seus 
amantes. 

Uma coisa, apenas, parece bem clara : e que D» 
Marianna teve rela^oes intimas com D. Miguel, cu- 



NINHO DE GUINCHO 146 



jos aposentos frequentava dia sicn, dia nao, e cuja 
causa politica servia fazendo espionagem. 

Camillo Castello Branco encontrou no folheto 
de Luiz Josd da Rocha a mae e a filha, que intro- 
duziucomopersonagens no romance Ocarrascode 
Victor Hugo Josi Alves. 

Diz ahi, para conduzir a ac^ao da novella, que 
D. Marianna era a naesma dona da casa de hospe- 
des, onde o principe Lichnowsky se aposentou na 
rua do Corpo Santo, junto ao Caes do Sodr^. 

E' certo que D. Marianna teve uma hospedaria, 
mas enn outro local : ao pe da Praga da Figueira 
na rua dos Douradores. 

A pessoa a quern o principe Lichnowsky se re- 
fere nao se chamava Marianna ; era a Carlota dos 
pis grandes. cuja filha, sua e de D. Miguel, foi D. 
Maria da Assump^ao de Bragancja, que falleceu em 
Roma no mez de julho de 1897. 

Devo ao marquez de Vallada, que chegou a co- 
nhecer a Carlota dos pis grandes^ a informacjao de 
que ella fSra a mae d'aquella princesa bastarda, e 
de que tivera, ao Corpo Santo, a casa de hospedes 
onde Lichnowsky se aposentou 

Camillo urdiu phantasiosamente, sobre o folheto 
de Luiz Caetano da Rocha. o enredo do Carrasco 
de Victor Hugo Josi Alves. 

Apenas corresponde A verdade historica a iden- 
tidade de D. Marianna, cuja vida^ n'um impulso de 
vingan^a, o Rocha assoalhou cruelmente, se bem 
que ella tivesse sido uma aventureira que explorou 
o amor escorripichando, sedenta, os coracoes e as 
algtbeiras do proximo. . . mascul\t\o. 



\o 



146 COI.LliCfAO ANTONIO MARIA PERKIRA 

/ 

No romance de Camillo, a filha de D. Marianna 
e de D. Miguel, se e que o foi, chacna-se Maria Jos^, 
luveira estabelecida na rua Nova da Palma, depois 
condessa de Baldaque. 

A filha da Car lot a dos pis gt^andeSf que o roman- 
cista identificou imaginosamente com a filha de D. 
Marianna. viveu em Roma sustentada por uma pe- 
quena pensao do Instituto Portuguez de Santo An- 
tonio. 

A folha parisiense O Figaro, de 10 de julho de 
1897, dando noticia do seu fallecimento, dizia ter 
havido um momento em que D. Maria d'Assump^ao 
de Braganca esperou obter a situa^ao de princesa de 
sangue, mas que a morte de el rei D. Luiz impedi- 
ra que os seus desejos tivessem solu<;ao favoravel. 

Isto nao i verdade^ nem o podia ser, segundo o 
decreto de 18 de marqo de 1834 e a carta de lei 
de 19 de setembro do mesmo anno. 

O que e certo e ter o papa Pio IX querido reco- 
nhecer D. Maria d'Assump^ao como filha de D. 
Miguel de Braganca, e ter o cardeal Antonelli con- 
trariado este designio por se nao saber se relativa- 
mente A mae haveria algum impedimento canonico. 

Posto isto vamos n'um relance contar a biogra- 
phia de L). Marianna, a famosa aventureira, que teve 
intimidades com D. Miguel de Braganca. 

Esta mulher, segundo a versao do folheto A tn- 
Ian fidalga, € um typo completo de romance rea- 
lista. 

Precedeu Zola e todos os outros luminares da 
photo^raphia htteraria que reproduz em flagrante os 
costumes torpes. 



NINHO DE GUINCHO 147 



Foi baptisada aos 2 de novembro dc 1797 na 
freguezia da Santa Izabel em Lisboa, como filha de 
Euzebio Joaquim, moleiro em Azeitao, e de Ma- 
rianna Joaquina, recebendo o mesmo nome da 
mae. 

Muito nova ainda, fugiu ao pae com urn official 
de noarinha, que a trouxe para Lisboa, onde Ihe poz 
casa junto d Fundicjao 

Depois, rotas essas ligacocs, teve artes dc apanhar 
urn marido acommodaticio, Joao Lopes Gon^alves, 
natural da Covilha, sombreireiro de profissao, com 
quem casou em Villa Fresca de Azeitao a 25 de ou- 
tubro de 1814, tendo ella dexesete annos de idade. 

A breve trecho o marido fugiu-lhc, talvez por se 
desenganar de que Marianna era rebelde d rehabi- 
lita^ao canonica. 

De 1817 para i8i8 vamos encontral a em casa de 
madanne Ghapsal como criada de servir. 

Quatro annos depois, Marianna tinha achado me- 
Ihor colloca^ao como governante de um padeiro 
rico, Manuel Rodrigues, estabelecido na travessa do 
Secretario da Guerra e domiciliado n'um 1/ andar 
do pateo do Picadeiro a S. Carlos. 

A esse tempo, a aventureira assignava-se Ma- 
rianna Joaquina da Goncei^ao Elisia, nome plebeu, 
em que alids denunciava uma certa tendencia para 
futura aristocratisa<;ao. 

Marianna puxava-se aos Elisios. 

Ginco annos durou a cohabitaqao com o padeiro. 
Mas um bello dia Marianna passou-Ihe o pe, rou- 
bando*lhe anneis de diamantes, colhires de prata, 
dinbejro e roupas. 



148 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

O padeiro dcu querella em juizo, e Marianna foi 
pronunciada como ladra. 

Mas nao consta que fosse presa, certamente per- 
que a esse tempo jd dispunha de proteccoes valio- 
sas e. . . numerosas. 

Os valores subtraidos ao padeiro serviram-lhe 
para estabelecer na rua dos Douradores uma Jios- 
pedaria, destinada a fins occultos, e muito hem fre- 
quentada. 

Ahi encontrou Marianna Joaquina nao s6 fregue- 
zes, mas tambem apaixonados, que ella acceitava 
sem olhar a idades, e sem distinc^ao eritre paisanos 
e militares. 

Assim foi que teve por amantes Luiz da Motta 
Feo, o coronel de milicias Barrao, o tenente de ca- 
vallaria Antonio Sicard, um tal Rego cuja posicao 
social ignoro, e o desembargador Ferraz, a cuja 
casa, na travessa do Pombal, Marianna Joaquina ia 
todos OS dias. 

Foi com o auxilio do desembargador que ella co- 
mecou a aristocratisar-se. 

Largou a hospedaria e a rua dos Douradores, 
vindo morar para o largo do Carmo. 

Subia. Jd Ihe nao servia a Baixa. 

O desembargador Ferraz, cabelleira lamecha, ati- 
rou com a beca por cima dos moinhos, e entregou- 
se d'alma e vida aos encantos de Marianna Joaquina. 

Poz-lhe carruagem, e esteve por um triz a accei- 

tar a paternidade de um menino de que fora padri- 

nho e de que ella se dizia mae, o qual tinha sido 

baptisado como filho de pais incognitos na fregue- 

275 de S. Nicolau. 



NINHO DE GUINCHO I49 



A esse tempo ]& a famosa aventureira se intitu- 
lava D. Marjanna Joaqulna de Portugal, no que alids 
nao mentia, por ser effectivamente Marianna Joa- 
qulna, e de Portugal — por ser portugueza. 

O desembargador Ferraz morreu quasi de re- 
pente, e Marianna apoderou-se de um bahu em que 
elle tinha os seus papeis. 

A fim de que nao pudessem facilmente encon- 
tral-a, nem ao bahu, mudou-se furtivamente do 
largo do Carmo para o Paco do Boi Formoso. 

Cada vez mais audaciosa, tentou conseguir que 
o prior de S. Nicolau alterasse o assento de ba- 
ptismo do menino, de modo que figurasse como pai 
o desembargador, que por procuracao se havia feito 
representar como padrinho. 

Uma trapalhada. 

O prior resistiu a esta tentativa de suborno, e 
Marianna Joaquina teve artes de arrancar ao viga- 
rio geral do patriarchado uma ordem para que o 
referido parocho fizesse investiga<;6es sobre a pa- 
temidade authentica do menino. 

Foram ouvidas como testemunhas trez mulheres, 
indicadas por Marianna Joaquina, mas o prior de 
S. Nicolau surprehendeu-as em contradiccoes, que 
plenamente Ihe confirmaram o embuste. 

Finalmente, um pre to, de nome Jose de Faria, 
que aliemadamente tinha sido criado do prior e de 
Marianna Joaquina, poz tudo a claro : declarou que 
ella havia comprado o menino para o impingir ao 
desembargador, primeiro como afilhado, depois 
como filho. 

Aqui falhou aaudacia, porque atra^ac^xvlo^^^w. 



I DO COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Continuando a subir na escala da sua profissao, 
Marianna Jbaquina principiou a habitar predios ca- 
ros, nas ruas da Emenda e da Magdalena. 

Nao Ihe foi difficil captar as boas gracjas de D» 
Diogo de Menezes Ferreira d'Eca, terceiro conde 
da Louza, ministro e secretario dos negocios da fa- 
zenda em 1828, no governo do infante D. Miguel. 

Data d'esta epoca o valimento politico de Ma- 
rianna Joaquina, que principiou a explorar a indus- 
tria de protectora de pretendentes. 

De ministro para cima estava natural e logica- 
mente indicado o principe reinante : por isso Ma- 
rianna Joaquina tratou de enfeiticjar o infante D. 
Miguel, crescendo em audacia a ponto de Ihe que- 
rer impingir uma filha por o mesmo processo que 
tinha seguido com o desembargador Ferraz. 

Quando veio D. Pedro, D. Marianna Joaquina 
Franchiosi Rolem Portugal tinha-se naturalisado 
franceza. 

Diz Luiz Caetano da Rocha que seria para mais 
facilmente poder evitar que a policia liberal a per- 
seguisse como creatura de D. Miguel e dos migue- 
listas. 

A causa nao pode ter sido esta, porque um do- 
cumento, que o proprio Rocha publica, mostra que 
jd em 1 83 1, isto e, antes de vir D. Pedro, Marian- 
na Joaquina tinha adoptado o appellido Rolem, 
graphado d portugueza ; e que o moleiro de Azei- 
tao e a mulher, para favoreccrem a nobilitaqao da 
filha, haviam declarado perante um tabelliao que 
elles nao eram seus pais, nem parentes, mas que Ma- 
rlanna Ihes tinha sido confiadanaitvfatvda^ara crear. 



NINHO DE GUINCHO l5l 

Pendo a'crgr que a aventureira, estonteada pela 
convivencia do ministro da fazenda e do principe 
reinante, apenas pretendia aristocratisar-se, e que, 
para maior verosimilhan^a de uma origem nobre, 
inventou que nao era filha de seus pais e que sendo 
— de Portugal — nao era portugueza. 

Dignos pais de tal filha ! di^na filha de taes pais ! 

Em 1839, Luiz Caetano da Rocha, o auctor do 
folheto A villan fidalga^ qui/- fazer valer um titulo 
de divida que Marianna Joaquina Ihe tinha passado. 
Ella declarou em juizo que a sua assignatura havia 
side falsificada por elle. 

O Rocha foi processado, esteve 80 dias preso e, 
na audiencia para ratificacao da pronuncia, o juiz 
obstou a que o advogado do reo, o dr. Antonio 
Jos^ Dique da Fonseca, puzesse ao sol toda a vida 
. de Marianna Joaquina, lacuna que o proprio Rocha 
depois suppriu publicando o folheto em seu desag- 
gravo. 

O jury nao ratificou a pronuncia; e reconheceu 
ter havido dolo na querella 

O delegado do ministerio publico nao teve mao 
em si que nao censurasse fogosamente os jurados 
em pleno tribunal. 

Depois de 1840 perde-se a pista de Marianna 
Joaquina Franchiosi Rolem Portugal. 

Ella devia ser ainda uma bella mulher de 4*3 an- 
nos, cuidadosa e ciosa do seu. corpo, que tao lucra- 
tivos servigos Ihe havia prestado. 

E' de supp6r que causasse outros damnos e con- 
flictos, porque Ihe estavam na massa do sangue as 
manhas de aventureira seductora. 



l52 COLLEC9AO ANTONl(» MARIA PEREIRA 

E o que o berco dd a tumba o leva. 

Camillo explorou liberrimamente o opusculo de 
Luiz Caetano da Rocha, e em parte o contrariou 
fazendo supp6r aos leitores do Cati^asco de Victor 
Hugo Josd Alves, que Marianna Joaquina nao era fi- 
Iha do moleiro de Azeitao, mas sim quarta neta de 
uma filha de AflFonso VI. 

Uma filha de Affonso VI parece coisa inverosi- 
mil. 

Tanto mais que tenia nj^cido de uma Catharina 
Arrais, a qual havia fugido de Coimbra com um 
primo, Manoel Arrais, e com elle vivia quando Ihe 
foi violentamente arrancada dos bracos por ordem 
de Affonso VI. 

Para o effeito da paternidade acho que o Arrais 
seria mais apto marinheiro do que o platonico pi- 
loto que succedeu no throno a D. Joao IV e que, 
segundo reza a fama, naufragou sempre nos mares 
deleitosos do amor. 

Quer isto dizer que nao creio nada na historia da 
filha de Affonso VI, e que Marianna Joaquina nem 
foi neta de reis, nem mae de principes, mas ape- 
nas — o que jd nao e pouco — uma aventureira de 
trez assobios. 



1901 — Janeiro. 



XVIII 



A MENINA DOS ROUXINOES 

No dia I.*" de setembro de 1901 passei algumas 
deliciosas horas no logar de Argemil, concelho e 
freguezia de Santo Thyrso, onde una parente e 
amigo meu, Guilherme da Costa Leite, me offere^- 
ceu um jantar de familia e uma festa campestre. 

N'esse dia, que nao posso esquecer, por muitas 
vezes me acudiu ao espirito o nome de Garrett, e 
nao sei que vaga mas insistente lembran(;a das Via- 
gens na minha terra. 

Lsto ate certo ponto explica-se. 

Eu tambem andava viajando na minha terra, nao 
ao sul, como Garrett, mas ao norte, e n'uma pro- 
vincia, que Almeida Garrett conheceu e amou, onde 
residem pessoas que teem o seu appeilido. 

Argemil e um logar deleitoso, d beira do Ave, 
eapaz de competir em forraosura e amenidade com 
o Valle de Santarem, o antigo, que o actual estd 
muito mudado e dififerente do que era. 

Garrett pintou assim o Valle : tnao ha ah nada 
grandJoso nem sublime, mas ha \ittva cotwo ^^tw^- 



1 54 COLLECgAo antonto maria pereira 

tria de c6res, de sons, de disposicao em tudo quanto 
se vg e se sente, que nao parece senao que a paz, 
a saude, o socego do espirito e o repouso do cora- 
qao devem viver ali, reinar all um reinado de amor 
e benevolenciai. 

No tempo em que Almeida Garrett o visitou, era 
aquelle logar muito mais pittoresco do que hoje e. 

Toda a regiao de vinhos desde o Cartaxo ate ao 
Valle de Santarem can^ava pela sua monotonia, e 
uma aridez desolada extendia-se em vasta charneca 
ate ao ponto em que se encontrava o caminho do 
Valle. 

Era uma azinhaga onde a vegeta^ao crescia livre- 
mente. A um dos lados deslisavam as aguas de um 
arroyo claro. Lindo prologo do Valle, que finalmente 
apparecia, sempre bello, delicioso pomar de laranja 
onde, no tempo da flor, os aromas que se espalha- 
vam no ar eram inebriantes e suavissimos. 

Tudo isto preparava agradavelmente o espirito, 
dispondo-o para os devaneios da imaginagao. 

Facil foi, pois, a Garrett, a um tal homem como 
Garrett, poetisar a casa do Valle e encantar-se 
deante da janella onde uma cortina branca deixava 
entrevgr o vulto de Joanninha, a menina dos rouxi- 
noes e dos olhos verdes. 

Eu sempre estive capacitado de que Joanninha 
era a recordacao de uma pessoa querida na vida de 
Garrett, posta ali, n' aquelle entao formoso Valle de 
Santarem, como se poe uma tela de estimagao na 
melhor moldura que p6de encontrar-se, embora a 
tela tenha vindo de longe i procura de moldura 
condigna. 



MNHO DE GUINCHO l35 

Lancei os olhos para o passado do poeta, em 

busca de uma prima, de uma companheira e amiga 

de infancia, de uma creatura meiga e boa, talvez 

Bada formosHy que, annos volvidos, lembra de re- 

pcnte com profunda e doce saudade, n'um sitio em 

que a gente experimenta um grato bem-estar do 

cspirito no meio da paz e da harmonia da natureza. 

Disse isto uma vez ao dr. Carlos Guimaraes, 

genre de- Garrett. EUe nao repelliu esta hypothese 

e ficou de fazer uma revisao a toda a correspon- 

dencia intima do poeta, no empenho de encontrar 

algum document© que mc desse razao. Achou uma 

carta, de uma prima, que vivia na quinta da Car- 

reira, em S. Miguel das Aves, actualmente conce- 

Iho de Santo Thyrso, tambcm. 

E essa prima chamava-se cJoanna>, e na carta 
fazia recrimina(j6es a Garrett por a ter esquecido 
na vida tumultuosa de Lisboa. 

Gritamos : t Eureka !• Mas appareceu tambem um 
retrato da signataria da carta, e esse retrato— Deus 
meu! — abriria conflicto com a esthetica de qualquer 
poeta vulgar, quanto mais um poeta de tao fino 
gosto como Garrett. 

Nao ha duvida que as Viagens dizem a respeito 
da menina dos rouxinoes : tJoanninha nao era bella, 
talvez nem galante siquer no sentido popular e ex- 
pressive que a palavra tem em portuguez, mas era 
o typo da gentileza, o ideal da espiritualidade.i 

Eu nao vi o retrato, mas encontrou-o e viu-o o 
dr. Carlos Guimaraes, que o deve ter deixado no 
seu espolio; e foi elle mesmo, o genro de Garrett, 
que me disse e affiangou que a ipnra^ d^Q»"art^\t^> 



I 56 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

nao revelava nenhum tra^o de identificacao com ca 
menina dos rouxmoes.i 

Mas a carta li estava — e deve estar no espolio 
do dr. Carlos Guimaraes — e continha queixumes, 
lamentagoes da signataria por haver sido esquecida, 
talvez em razao de nao ser bella, nem sequer ga- 
lante como a menina dos rouxinoeSy e nem ao me- 
nos tao gentil e espiritual como ella. 

O que restava, pois ? Identificar a alma dedicada, 
leal e dolorida da t prima da Carreira* com a gentile- 
za, a gra^a, a physionomia e a figura de outra mulher. 

Ora isso e o que eu vou fazer. 

Tenho que fallar, portanto, de duas mulheres. 
Comecemos pela primeira, a prima. A boa logica 
manda come^ar pelo principio. 

A prima de Garrett tinha duas irmas : uma, An- 
tonia, que desposou Jose de Menezes, residente na 
Gollega \ outra, Maria Antonia, que parece ter sido 
freira professa em Aveiro. 

Sens pais chamavam-se Thomaz de Aquino e 
Almeida e D. Anna Lima Barreto. 

D'este consorcio tambem houve um filho : foi o 
conego Thomaz de Aquino de Lima e Almeida. 

Joanna deixou todos os seus bens a uma senhora 
D. Thomasia Maria Amalia do Amaral, creio que 
sua sobrinha. 

Foi esta senhora que por sua vez deixou em tes- 
tamento a quinta da Carreira a Alexandre Gar- 
rett *, irmao do poeta. 



^ Pai de Rodrigo, Jose Maria e Goncalo Garrett ; este ul- 
ti'mo e lente de mathematica naViuvveTS^^^^^, 



NJNHO DE GUINCHO 167 

'^--- '. m 

registo do testamento fez-se na administra^ao 
do concelho de Santo Thyso em 27 de abril de 
i838. 

A testadora deve ter fallecido n'essa occaziao em 
S. Miguel das Aves, solteira. 

A quinta da Carreira ficou pagando uma pensao 
i baroneza de Almeida. Quando esta titular falle- 
ceu, a pensao passou para sua irma D. Henriqueta 
de Menezes. Estas duas irmas eram mais proximas 
parentas de Joanna que os Garretts. 

Eis aqui o que eu pude averiguar d cerca da pri- 
ma de Garrett, segundo os apontamentos que me 
deu o dr. Carlos Guimaraes. 

Resta tornar a dizer que era feia, tando um boc- 
ca quazi defeituosa pela md implantacao dos. den- 
tes. 

Ma3 esta « prima da Carreira », que chorava sau- 
dades do primo, e que Ih'o dizia, chamava-se «Joan- 
nai, que foi o nome que Almeida Garrett poz A 
menina do Valle. 

O Carlos das Viagens era primo de Joanninha^ e 
Garrett era primo da menina da Carreira. 

Eu creio ainda que a Joaninha do Valle e a Joan- 
ninha da Carreira ao menos no nome, no parentes- 
co e por suave recordacao de infancia. 

Em tudo o mais/. . ha outra. Quem e? 

Procurei sabel-o por intermedio d'uma pessoa que 
conhecesse a preceito o Valle de Santarem. 

Essa pessoa appareceu, foi o meu illustre amigo 
e digno par do reino sr. Luiz Antonio Rebello da 
Silva, filho do fallecido e brilhante escriptor d'estes 
sppellidos. Tern casa noVa\\e,VveId^^l^^l^^^vJ^^^^ 



1 58 collec<;:ao antonio maria pereipa 



-#- 



desembargador ; casa que serviu de quartel gene- 
ral is brigadas que ali se acantonaram em 1810, 
i833 e 1846. 

O sr. Rebello da Silva, para me obsequiar, co- 
Iheu o depoimento de urn velho do Valle, Belchior 
da Costa, que tern perto de 90 annos, e toda a lu- 
cidez de espirito, ainda. 

Oicamos o que disse a tradi^ao oral colhida no 
Valle: 

O nonagenario Belchior da Costa crSquea tme- 
nina dos rouxinoesi fosse D. Maria Ritta de Oli- 
veira, tia de Rodrigo da Costa Alvares, senhora 
muito intelligente, instruida e sympathica. De mais 
a mais, tinha os olhos verdes. 

No tempo em que o visconde de Almeida Gar- 
rett passou no Valle, Rodrigo da Costa Alvares, 
residente na casa onde actualmente estd a.viuva 
Monteiro, trazia de arrendamento a quinta do Bico, 
onde, em pleno Valle, D. Maria Ritta ia passar 
muitos dias. 

Nao admira que Almeida Garrett a visse, e re- 
parasse na cor dos olhos, e conversasse a darha, e 
ficasse encantado com a sua graca e intelligencia. 
Nem tambem deve admirar que, por conveniencia 
social, Ihe occultasse o nome, e fosse buscar para 
ella o nome da aprima da Carreirai, ao qual viria 
presa alguma recorda^ao da infancia: assim tam- 
bem o verde frouxel do musgo vem preso ^ pedri- 
nha que se arrancou a um muro velho como recor- 
da^ao de algum logar. 
Nao se me dd de apostar que a tprima da Car- 
reira» term os olhos pretos, a c\ut G^tt^xx. oJcv^tsvoa 



NINHO DE GUINCHO \bg 



OS mais sinceros e leaes. Leaes e sinceros, porque 
aiuda o viam de longe, e choravam por elle. Con- 
fessa Garrett que cnasceu» na religiao dos olhos 
pretos. Mas uma unica ve\ na sua vida viu os 
olhos verdes, e encantou-se. Foi quando passou no 
Valle, e encontrou D Maria Ritta de Oliveira. 



1902 — Abril. 



XIX 



O PRIMEIRO TORMENTO DE UMA RAINHA 



Toda a correnteza de lindas salas, que constituem 
o pavimento inferior do palacio de Queluz, brilhava 
n'uma ardentia immensa de candelabros, talha dou- 
rada e espelhos, como se um polvilho luzente e pal- 
pitante cahisse do ar esvoagando n'um incessante 
adejo. 

As paredes, ouro e crystal. O chao em marmore 
de cdres e xadrez de madeira com phantasiosos em- 
butidos. Os tectos caprichosamente apainelados por 
notaveis pintores. O mobiliario sumptuoso e des- 
lumbrante : trem6s e cadeiras do tempo de D. Joao V, 
adquiridos pelo infante D. Francisco; grandes ta- 
Ihas do Japao, especialmente n'uma.das salas, a que 
deram o nome ; escabellos e tamboretes, branco e 
oiro, estofados de preciosas almofadas de Damasco 
azul ou vermelho', coxins e supeddneos de vclludo 
escarlate com altos relevos doirados; columnas de 
ebano torneado sustentando bustos e estatuetas; 
jarras da India guarnecidas de px^do^^'i ^oxt.'^ %t- 



NINHO DE GUINCHO ibl 



tificiaes manipuladas nos conventos de freiras; co- 
fres de madre-perola, de tartaruga, de xarao, de 
prata repouss^e^ alguns de oiro, crave j ados de pedras 
preciosas ; infinidade de cnstosos bibelots vindos de 
'onge por mlmo realengo e esparsos sobre os con- 
tadores e as misulas. 

Todas as portas, abrindo sobre o jardim, deixa- 
vam entrar a frescura da noite, o aroma das flores, 
murmurio da agua. 

Das arvores pendiam lanternas multicores, que 
esmaltavam a verdura e illuminavam os canteiros, 
riscados i italiana, as estatuas, os vasos de mar- 
more, as estufas, os lagos, os repuxos, os canaes e 
as pontes. 

A grande cascata, por entre Jorros de agua e de 
luz, liquefazia diamantes que rolavam cantantes e 
phosphorescentes sobre um fundo esculptural de 
marmore branco. 

No vasto terreiro, que se enobrece com a fachada 
do palacio, muito embrincada de ornatos, jonicos 
e doricosy ardiam fogueiras e cantavam saloias, ce- 
lebrando, sob o favor real, a noite tradicionalmente 
alegre do Precursor. 

Em Queluz podia haver serenins e opera em qual- 
quer noite do anno, distracc^ao predilecta da c6rte 
de D. Maria I, como jd o f6ra no tempo de seu pae : 
a pintura do tecto n'uma sala do palacio testemunha 
ainda hoje as aptid6es musicaes da familia real por- 
tugueza, guiadas sob a direc^ao do maestro David 
Peres. 

Mas as duas noites de maior brilho e anima^ao 

em Queluz, durante todo o anno, etam b^ di^^*^^^^^ 

w 



1 62 COLLECfAd ANTONIO MARIA PEREIRA 

por tradi<;ao popular, e a de S. Pedro, nome do 
marido da rainha, seu tio paterno. 

A' festa da corte, n'essas privilegiadas noiies, 
correspondia a festa da rua. Duplicava-sc o regosijo, 
fora e deniro do palacio; dir-se-ia uma obra com- 
posta em dois tomos e inspirada por uma alegria 
commum. 

Na corte resplandeciam ainda os ultimos fogachos 
de grandeza cez^rea, que D. Joao V requintdra com 
OS olhos posios em Luiz XIV, e que tendiam a apa- 
gar-se agora, como um sol no occaso A realeza, 
amparada pela frouxa mao de ucna rainha timida 
e excessivamente escrupulosa, decahia de antigas 
poir.pas e do fausto que a engrandecera. No pala- 
cio dos nossos reis ia se perdendo a alegria de vi- 
ver, a consciencia e orgulho do poder real. Era como 
se tivesse soado a ultima hora das magnificentes 
elegancias^ copiadas de Franca ; do esplendor dos 
saraus, das ca^adas e dos torneios; das aventuras 
amorosas de capa e espada ; e at6 d'essa polychro- 
mia estonteante dos estofos vivazes que revestiam 
as salas e os corpos n'uma opulencia de cores, que 
as duas cortes de Luiz XIV e Luiz XV haviam posto 
em moda. 

O cezarismo amdra as tintas claras, os tecidos 
luminosos, as joias rutilantes, as fitas e plumas 
variegadas. 

Era um symptoma inconsciente da sua propria 
vitalidade. 

Na rua, as festas populares reflectiam, ainda ao 
iniciar-se o reinado de D. Maria I, o brilho de que 
se opulentava o devocionino dos tds* 



NINHO DE GUfNGHO l63 



As de Queluz, no S. Joao e S. Pedro, eram rui- 
dosas e largamente subsidiadas pela munificencia 
f^gia; alem das fogueiras e descantes, havia urn 
:grandioso fogo de artificio, a que a familia real vi- 
nha assistir da ampla janella do pavilhao central. 

Na c6rte, o esplendor dos saraus tinha a alimen- 
tal-o nao s6 os ultimos vestigios do cezarismo mo- 
libundo, mas lambem a feliz coincidencia de haver 
em torno da rainha um grupo de princesas suas 
irmas, que, juntando-lhes todas as suas camareiras, 
damas de honor, donas da caniara e a^afatas, cons- 
tituiam uma interessante e graciosa constellacao 
feminina. 

E jd Francisco I, o mais entendido dos monar- 
<has em assumpios de galanteria, havia dito com 
^ande conhecimento de causa : que uma corte sem 
JDulheres e um anno sem primavera e uma prima- 
vera sem rosas. 

N'este requisito essencial, a corte de D. Maria I 
devia contentar os mais exigentes. 

A come^ar pela rainha. . . 

Quando sua magestade subiu ao throno tinha jd 
completado quarenta e dois annos de idade, e havia 
dezesete que estava casada. Era mae de seis filhos. 
HSlo fdra nunca um modelo de belleza, mas devia 
considerar-se um perfeito exemplar de ra^a fina. 
Aspecto nobre e insinuante, maneiras ao mesmo 
passo discretas e suaves : o que quer que fosse de 
auctoridade e brandura. 

Lord Beckford, tao sabido em coisas de cdrte, 
«xigente como estrangeiro e artista que era, viu a 
rainha de Portugal e achou-a xaVVv^d^ ^^\^ ^-^^^x^^^ 



164 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIUA 

o mando, porque ao mesmo tempo diffundia respeito 
e agrado. 

A infanta D. Marianna, pouco mais nova que a 
rainha, conservava nas suas linhas geraes o typo de 
familia ; era distincta, se bem que menos brilhante 
que as outras suas irmas. 

Faltava jd no grupb uma infanta, D. Maria Fran- 
cisca Dorothea, que a morte acommettera aos 
trinta e dois annos de idade. 

Mas a infanta D. Maria Benedicta, quarta filha 
de el-rei D Jos^, tinha belleza e prestig'o de sobra 
para compensar com sens encantos, n*esta florida 
corbelha de princesas, a perda de uma d'ellas, per 
mais estimavel que fosse 

Era agora princesa do Brazil, pois cas^ra com 
seu sobrinho o principe herdeiro D. Jose, rapaz de 
quinze annos apenas, mas ja de tao levantados es- 
piritos e graves maneiras, que toda a cdrte e todo 
o reino punham n'elle os olhos como na promessa 
de um grande rei. 

N'esta noite de S. Joao, do anno de 1777, esta- 
vam noivos de quatro mezes, adorando-se um ao 
outro como desposados felicissimos ; que a distinc^ao 
das mulheres attenua-lhes a idade no amor, e a 
princesa parecia ter tanta mocidade como o principe, 
comquanto se diffierengasse no dobro dos annos. 

A rainha, acclamada havia pouco mais de um 
mez, estava tranquilla e contente das alegrias de 
familia e do ligeiro gravame que Ihe da vam entSo 
OS negocios do Estado. 

Nao tinha desgostos como esposa, porque se ha* 
bituara /zonestamente 4 convivetida di^ Mm m^ridov 



NINHO DE GUiNCHO l65 

que, falho de dotes superiores, nao merecia pos- 
suil-a; e, mae e irma dedicada, estimava ver tao 
bem encaminhado o future do principe herdeiro, 
alliado ao de uma princesa que deveria felicitar o 
marido e o reino. 

Politicamente. a situagao parccia bem definida e 
calma ; dir-se-ia que todo o passado se apagdra com 
um sd golpe de penna, sem deixar vestigios. Os 
nobres e os jesuitas estavam satisfeitos, em caminho 
de plena rehabilitacao. 

O marquez de Pombal fora ja apeiado com um 
simples decreto, apparentemente honroso; os presos 
regressaram a suas casas e familias ; aos desterra- 
do8 mandou a rainha levantar o interdicto. 

O indulto geral serenara, no primeiro momento, 
OS animos; e a revisao dos processes, exigida pela 
nobreza, acabaria certamente por sentenciar a inno- 
cencia de vivos e mortos. 

Era o inicio feliz de um reinado, que se annun- 
ciava de clemencia e paz, tanto enganam as primei- 
ras boras nas grandes emprezas, e nao ha empreza 
maior que a de governar nagoes e acalmar odios 
antigos 

Cada aurora traz um sorriso de esperancja, mui 
tas vezes mallogrado, e n'aqueile mez de junho de 
1777 amanhecia sereno o reinado tempestuoso de 
uma rainha infeliz. 

Das festas de Queluz apenas poderiam blasphe- 
mar os amigos do marquez de Pombal, se elle os 
tivesse ainda. Mas onde costumam estar os amigos 
dos ministros decahidos ? Ninguem os viu, nem tem 
vistOf na hora da desgraca. 



l66 GOLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Toda a corte folgava, pois, e com ella a rainha^ 
e com a rainha o povo. 

Que o povo deixa-se embair como as crean^as ; 
recebe os golpes e nao os sente logo. 

Comegdra o sarau do pa^o de Queluz per utn 
serenim em que a princesa do Brazil brilhdra, como 
sempre, na interpretagao de uma dria de Jomeili. 

Depois viera a familia real & janella para ver quei- 
mar, entre sauda^oes e applausos populares, o fogo 
de artificio. 

Foi ahi que a camareira-m6r, D. Constanta Ma- 
nuel, marqueza de Tancos, principiando a nbtar 
certo constrangimento na rainha, Ihe perguntou : 

— Sente vossa magestade alguma indisposi- 
qaoi 

— Nenhuma, respondeu D. Maria I sorrindo com 
o nobre agrado que Ihe era peculiar. 

Se nao era indisposigao, o que poderia ser ? O 
povo estava contente, a c6rte :ambem. E a voz 
queixosa do marquez de Pombal, desterrado, nao 
podia ouvirse ali. . . 

Mas a rainha, para quern de perto a conhccia, 
tinha o que quer que fosse que a inquietava. 

Tambem a princesa do Brazil o notou, e o disse 
ao marido, que foi interrogar a mae. 

— Nada, meu filho, nao tenho nada que me afBija. 
E' apprehensao vossa. 

Mas o fogo de artificio ardera e a familia real re- 

gressou ds salas para dan^ar o minuete de Haydn, 

que era o epilogo obrigado de uma noite de festa 

pa}ac']ana. 

A rainha, a6 tomar assetvto t\o xVvcotvo, %s^ \».d<i 



NINHO DK GUINCHO 1 67 

de seu marido, viu o truao Falperra fazer duas mo- 
mices graciosas e, contra o seu costume, ficou in- 
differente. 

O arcebispo de Thessalonica, espirito alegre e 
desempoeirado, confessor da rainha, notou este facto 
e, subindo os degraus do throno» aproximou-se de 
sua magestade, fallando-lhe ao ouvido. 

D. Maria I respondeu-ihe tambem em muita con- 
fidencia. 

O arcebispo sorrira. Entre confessor e confessada 
nao havia segredos : elle tinha o direito de pergun- 
tar ; ella o dever de responder. Se era um escru- 
pulo que inquietava sua magestade, de pouca mon- 
ta devia ser, pois que o arcebispo tinha sorrido. Mas 
algum mysterio desvenddra elle, que tornou atraz 
para lembrar A rainha a humildade de Job no sof- 
frimento : 

— Levo um cilicio cosido sobre a minha pelle, e 
cobri de cinza a minha carne. 

O mestre-sala D. Antao de Almada bateu palmas 
e logo a musica da real camara deu o alamir^ do 
minuete. 

Organisaram-se os pares. 

A rainha mandou convidar para seu parceiro o 
velho duque de LafSes, agil e distincto ainda apesar 
de velho. A escoiha de sua magestade tinha eviden- 
temente um proposito politico. O duque, D. Joao 
de Bragancja, acabava de voltar do desterro a que 
o marquez de Pombal o havia condemnado. De 
modo que o bracjo da rainha, encurvando-se no mi- 
nuete para encontrar a mao do duque de Lafoes, 
era como um arcoiris, s\gna\ osxttvivso d^^ ^\^^^^^ 



1 68 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

que se desenhasse benigno entre a monarchia e a 
nobreza. 

El-rei D. Pedro dan^ou com a duqueza D. Hen- 
riqueta^ certamente por indica^ao da rainha, para 
tornar ainda mais evidente o alto significado politi- 
co da reconciliacjao. 

O principe D. Jos^ teve como parceira a sua noi- 
va, tao enamorados andavam aquelles recem-casa^ 
dos ditosos, a quern a lua de mel sorria promes^as 
de longa felicidade, que uma prematura catastro- 
phe mallogrdra. 

Teve este minuete algum tanto de beltamente 
mythologico, porque n'elle figuraram as Tre:{ Gra- 
fas. Assim eram designadas na corte as encanta- 
doras filhas do marquez de Mg^rialva : D. Maria do 
Carmo, marqueza de Louie ; D Joaquin a, marqueza 
de Lourigal; D. Henriqueta, duqueza de Lafoes. 

Entre as damas gentis, que em tao avultado nu- 
mero floresciam nas salas de Queluz, sobresahia 
tambem, n'um alto relevo de distinc^ao, a alegre e 
espirituosa duqueza de Cadaval, irma do duque de 
Luxemburgo. • 

Os penteados altos, toucados de perolas e mara- 
bus; as c6res vivas dos vestidos rocagantes; os 
pingentes, estrellas e coUares de pedras preciosas ; 
as rendas que pendiam em flocos de espuma al- 
vinitentc sobre os bracjos nus; e, mais que tudo 
isto, a belleza, a elegante plastica, o quid nobre das 
ragas finas, divinisavam todas aquellas lindas figu- 
ras de mulher, dignas de serem agrupadas n'um 
legue de Watteau. 
A rainha ostentava um rico \^s>x\do de. l^^niasco 



NINHO DE GUINCHO l6y 



azul claroy ricamente lavrado em iBioroes e lacarias. 
O justilhoy muito espartilhado, refulgente de estrel- 
las de brilhantes, rematava em angulo agudo sobre 
a cintura. Um decote modesto aflorava d*entre as 
rendas do coUo. Sobre os cabellos levantados, o 
diadema real. Nas orelhas, pingentes que se articu- 
lavam em duas phalanges de pedras raras. Nas 
maos, luvas bordadas, que subiam ate cobrir todo 
o ante-bra^o. Pendente de um cordao de ouro, uma 
ventarola de grandes pennas de avestruz, constel- 
lada de pequeninas esmeraldas muito vivas. 

Ao come^ar o minuete, a rainha nao parecia mais 
tranquilla do que no momento em que o arcebispo 
de Thessalonica Ihe recordou o versiculo de Job- 

Sofiria. Na sua face^ doce e grave, passava sub- 
tilmente uma contrac^ao dolorosa, que se repetia 
por vezea, e que sua magestade procurava disfar- 
^ar sorrindo. Bem quizera D. Maria I ser, n'essa 
hora de requintada elegancia, uma das rudes cam- 
ponezas que folgavam em liberdade no terreiro do 
palacio. Sua magestade parecia querer retrair por 
momentos a sua mao direita, que o duque de La- 
f6es segurava respeitosamente na ponta dos dedos. 

O minuete evolucionara n'um rythmo lento, cor- 
tado de cadencias mesuradas. Ouvia-se ^ marca^ao 
choreographica dos passos no marmore do pavi- 
mento. As plumas dos penteados baloi^avam em 
ondula^oes is6chronas, e os pares dan(;antes reque- 
bravam-se em meneios gentis, e successivas liexoes, 
pautadas e certas. Os espelhos enquadravam em 
sumptuosas molduras de talha dourada a reprodu 
cfao d'este minuete palaciauo, dw\divcv^o-o ^tcs. ^\i~ 



170 COLLECT AO ANTONIO MAKlA l»EREiRA 



pes, e dando assim maior destaque e mais brilho a 
cada par e a cada figura. 

A rainha viu-se de relance n'um espelho, e ella 
mesma reconheceu que a sua physionomia estava 
perturbada. 

Logo o versiculo de Job Ihe tornou a lembrar, e 
d*elle pareceu receber sua magestade um novo es- 
timulo de resigna(;5o e paciencia. 

Quando o minuete terminou, e com elle o sarau, 
a corte, esperando os coches no vestibulo do pala- 
cio, trocava rapidas impress6es sobre o dessocego 
da rainha, que a pouco e pouco se torndra evidente 
aos menos intimos. 

A nobreza mostrava-se apprehensiva, receiando 
I que sua magestade comecasse a enfraquecer subi- 
tamente na sua obra de restauracao politica. 

O marquez de Pombal ainda de longe assustava, 
esmagado. 

O que teria a rainha ? perguntava-se. 

Esta pergunta ficou sem resposta durante annos, 
e s6 a obteve quando jd nao inquietava. 

Por morte do arcebispo de Thessalonica appare- 
ceu no seu diario o seguinte apontamento referido 
ao anno de 1777 : uNoite de 6'. JoSo — Sua Mages- 
tade a Rainha, segundo ella propria me declarou d 
puridade, foi atormentada no sarau da c8rte em 
Queluz por uma pulga contumaz e raivosa*, que re- 
petidas vezes a mordeu, e muito a maltractou, sem 
que Sua Magestade pudesse acudir a este molesto 
incidente por ser contra a etiqueta retirar-se antes 
de termlnado o minuete. Deus ordena ds vezes seus 
grandes ens/namentos por internved[\o Afc tcMsa'^oi- 



NINHO DE GUINCHO I7I 

los objectos, mas a licao que vem do alto deve 
aproveitar-se serapre porque e portadora de philo- 
Sophia divina.» 

S6 entao se ficou sabendo que n'aquella noite de 
S. Joao, em Queluz, a divina philosophia tomou a 
f6rma de uma pulga. • 



1902 



XX 



O GALLO 



A feira estava na sua hora de maior bulicio e 
moviifiento. 

Havia um ruido atroador e uma ondula(;ao vio- 
lenta de guardasoes vermelhos, brancos ou verdes 
com que os grupos de camponezes se defendiam da 
calma intensa do sol. 

Palavras de amor, trocadas em verso no estylo 
da Maia, perdiam-se no c6ro immenso de outras 
vozes humanas, pregoes de vendedores, guinchos 
do rapazio, gargalhadas alvdres, assobios estridu- 
los. 

Por sua parte, os animaes dependentes do homem 
imitavam-n'o n'esta inferneira colossal, ingente : as 
gallinhas cacarejavam, os bois mugiam, os burros 
zurravam, os porcos grunhiam, e de vez em quan- 
do ouvia-se ganir um ca©, que os lavradores repel- 
liam a pontapes. 

De espa(;o a espa?o chegavam char-a-bancs enor- 
jnes, frageis charrettes pintadas de amarello, breaks 
repudiados pelos antigos donos. 



NINHO DE GUINCHO lyS 



Fez-me impressao um dos char-a-bancs, que en- 
trou jQa feira rodando vagaroso por entre os grupos 
para os nao atropellar e para nao espantar as rezes. 

Conduzia um homem e sete mulheres. 

O carro parou d porta da estalagem do Carneiro, 
despertando a atten(;ao de muitas pessoas. 

Logo ali se disse que o homem era o Brazileiro 
da Portella, com as suas sete mulheres. 

Um serralho ambulante ! 

Fiz entao maior reparo no sujeito. 

Teria 46 annos. Estatura mea, hombros largos, 
oeigos grossos, olhinhos pequenos, muito vivos. 

Trazia chapeu de paiha e collete branco, esses 
dois caracteristicos infalliveis do trajo de qualquer 
brazileiro minh6to. 

Foi elle que desceu primeiro. Apeiou-se e esten- 
deu a mao a uma das sete mulheres, que dispen- 
sou, sorrindo, a galanteria do macho. Aquella era 
a Favorita; logo ali disseram. As outras seis des- 
ceram umas atraz das outras, todas ellas saitando 
galhardamente, em pinchos acrobaticos, sem que 
o Brazileiro Ihes offerecesse o mesmo galante ap- 
poio. 

Trajavam saia de flanella, refegada, chambre de 
merino, lengo de seda na cabeca ; cal^avam meia 
preta e solfitas. 

Nenhuma tinha ainda trinta annos. 

Eram bons exemplares de mo?oilas do Minho, 
accusando robustas florescencias de sebo e cevo. 

Emquanto o aut6crata entrou na estalagem do 
Carneiro, a encommendar o almoco, as sete mu- 
Iheres ficaram & porta, cV\aT\^Ivdo ^Xfe^^tcsKe^XA^ 



174 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

n'uma familariedade muito intima, em que nao vis- 
lumbrava a menor reserva de ciume. 

Vi o Brazileiro a falar com a cosinheira da esta- 
lagem, que era uma rapariga(;a escarolada e sadia, 
e que parecia dizer-ihe n'um sorriso attractiva: tSe 
precisar da oitava, cd estou eu.B 

E elle, OS olhinhos mexendo muito vivos e ^aia- 
tos, respondia-lhe# n'um olhar demorado : «P6de 
ser. Gesteiro que faz um cesto, faz um cento. » 

Encommendado o almogo, o Brazileiro juntou-se 
ds sete mulheres e foram todos passeiar pela feira, 
onde ellas compraram len^os de Guimaraes, chai- 
les de casimira e anneis de cornalina. 

O povo abria passagem ao sultao da Portella e 
seu harem, dando mostras de respeito e acatamento, 
d'onde inferi que a gente do Minho nao sente re- 
pugnancia nenhuma pelos costumes turcos. 

Gontaram-me entao a vida do Brazileiro, sobre a 
qual eu lanco um veu discreto, comquanto elle, 
Brazileiro, trazendo o serralho a passeio, parecesse 
nao gostar de pudibundos veus, nem de areas en- 
couradas. 

Fazia jogo franco. 

Mas contarei apenas a historia do gallo vivo, 
symbolo heraldico da casa burgueza da Portella. 

O Brazileiro possuia um lindo gallo, muito alto 
e empennachado, opulento de c6res rutilantes, que 
era tratado com as maiores deferencias e attencSes 
por todo o serralho, porque uma cigana, lendo a 
sina do sultao, Ihe dissera que o seu destino era o 
mesmo do gallo e que ambos haviam de morrer no 
mesmo dia. 



NINHO DE GUINCHO ly.S 



O Brazileiro, pensando n'este vaticinio, encontrou 
facilmente uma certa rela9ao de semelhan9a entre 
as duas cxistencias, e, querendo conservar-se a si 
proprio, conservava o gallo. 

Achei originalidade n'este pormenor, que me nao 
•esqueceu durante um anno. 

Uma vez escrevi para a provincia, e perguntei : 
€0 gallo vive ?» Responderam-me : «Vivemambos.» 

A cigana continuava a acertar, apesar do descre- 
dito em que teem cahido as prophecias. 

Mas, passados alguns mezes, recebi uma noticia 
inesperada. 

O Brazileiro da Portella tmha morrido repenti- 
namente depois de uma ceia de orelheira e feijao 
branco, como um odre que rebentasse. 

Nao fez testamento, e o serralho ficou indjgnado 
com essa imprevidencia que o reduzia d miseria, 
porque appareceram logo sobrinhos do defunto, que 
tomaram conta do espolio, guardando todas as cha- 
ves das gavetas e do cofre. 

Ahi pelo meio dia ainda as sete mulheres nao 
tinham comido, e comtudo jd os herdeiros as ha- 
viam despedido, severamente, em nome da moral 
publica ultrajada. 

As raparigas, antes de abandonar a casa da Por- 
tella, lembraram-se do gallo, como de um salvate- 
rio unico. 

Deitaram-lhe a mao, amarraram-lhe o bico com 
um len^o, e levaram-n'o sonegado. 

Depois sahiram estardalhando gargalhadas e fo- 
ram cosinhar e comer o gallo na adega do Padrao que, 
tambem pertencia ao Brazileiro, e ftcava distante. 



176 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Foi um dgape formidavel de estroinice ; uma 
pandega rasgada. 

Todas ellas beberam verdasco & «saude do mor- 
toi) e da cigana. 

Depois, dispersaram-se d procura do.pao nosso 
das odaliscas. 

Dizem-me que umas foram para o Porto, outras 
para Braga e algumas talvez para a Turquia, visto 
]A estarem habitudas aos costumes ottomanos. 

• 

Minho— 1902. 



XXI 



O ClUME 



Dizia um jornal ha quatro dias: 

«Foi hontem presa uma mulher que se vestiu de 
homem para espionar o marido. 

•Aconteceuihe ter ido para o calabouco n.® 4, 
onde se conservou em travesti 2Xi que de casa Ihe 
mandaram vestidos proprios do seu sexo. 

•O ciume e negro, e o calabouco nao o i me- 
nos.i 

No amor tudo e negro quando deixa de ser c6r 
de rosa. 

Os meios tons sao proprios dos sentimentos que 
envelheceram: da amizade, por exemplo. E nao se 
diga que por ser antiga e apenas colorida a meias 
tintas.. a amizade vale menos. Nao. Ella i como o 
marfim, que se valorisa quando araarellece ligeira- 
mente ou como os monumentos archeologicos quan- 
do a pinna os reveste, pregoandoAVvt^^«i^^4^'&!t« 



178 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

O amor, se i verdadeiro, vae aos extremos : & 
confian^a ou ao ciume. Ou embriaga docemente 
como o champagne ou requeima doentiamente co- 
mo o absintho. E, como crean^a que €, segundo a 
figura^ao mythologica, tao depressa cr€ como des- 
crS ; agora confia, logo desconfia ; hoje sujeita-se^ 
imanha revolta-se. 

Acontece ds vezes que da amizade nasce o aknor, 
como da luz mdecisa da madrugada nasce o clarao 
brilhante do sol. Mas e menos vulgar isso do que 
degenerar o amor em amizade, empallidecendo nas 
tintas e fixando-se apenas no desenho. 

Havia dois primos. . . 

As historias de amor mettem or dinariamente pri- 
mos. 

Ella chamava-se Laura e elle Carlos. 

Tinham sido companheiros de infancia, vivido 
juntos, sem que entre os dois houvesse mais do que 
uma agradavel intimidade. 

Qualquer d'elles passdra algumas vezes ptlo Jltrt: 
ella com algum rapaz que encontrdra na sociedade; 
elle com alguma rapariga com quem dan9dra uma 
valsa. 

Os dois poderiam fallar de tudo um ao outro — 
menos de amor. 

A' mesa de familia, como dois casados velhos, 
tomavam o seu chd com torradas na companhia pa- 
triarchal dos respectivos tios. 

— O' Carlos, fazes favor de me passar os biscoi- 
tos de Oeiras ? 

— O' Laura, se me fizeses favor de passar aster* 
radas. . . 



NINHO DE GUINCHO I79 



Um bello dia, quando ambos andavam nos vin- 
te e dois annos, deram juntos um passeio ao 
campo. 

Ella, mignonne e graciosa', com um vestido claro 
e fresco, appareceu cal^ando as luvas. 

Carlos teve um deslumbramento inesperado a que 
pretendeu esquivar-se dizendo com os seus botoes: 
«Que tolicel Entao nao me estd parecendo hoje 
muito bonita a Laura ! » 

Ella, com a perspicacia de todas as mulheres, 
surprehendeu essa impressao. 

Partiram de carruagem para o campo com os 
paes: fallavam menos que de costume ; mostra- 
vam-se algum tanto sonhadores. 

A' noite, quando voharam, tiveram visitas e en- 
/trctivcram-se todos escrevendo perguntas enygma- 
ticas em bocadinhos de papel, que iam passando de 
mac em mao. 

Laura escreveu: cAmas-me, Carlos?* e passou 
o papellinho ao primo, que respondeu logo : <Des- 
de esta tarde.» 

Dentro de poucos mezes estavam casados. 

Estes casos sao, i certo, menos vulgares que o do 
incendio degenerar em rescaldo, o amor abrandar- 
se em amizade — o que constitue o pao nosso do 
coraqao 

VS-se todos OS dias. 

Mas o amor, no seu periodo de evdlu^ao, nao 
passou nunca por boa pessoa : e um doido que de 
tempos a tempos precisa coUete do for<;as. 

NSo usa robe-dechambre nem sapatos de trazer 
par casa, como a amizade. 



l8o COLLECgAo ANTONIO MARIA PEREIRA 

Nao poe ao acaso esta ou aquella gravata, co- 
mo a indifterenga. 

Se se julga feliz e confia, colloca na botoeira, 
nao uma s6 flor, mas Uma,ramalho<;a campanuda; 
se o ciume o desorienta, pisa a pes juntos a rama- 
lho(;a, rasga o fato, dilacera com as unhas o co- 
ra^ao. 

Achava-se certamente n'este periodo agudo a mu- 
Iher que ha diaflHf vestiu de homem para espionar 
o marido. 

Antigamente o ciume era uma paixao sanguina- 
ria. Foi isso nos bons tempos da C61chida« Medea 
era uma fera, que nem sequer poupava as crean- 
9as innocentes, como se pode ver em Euripedes ^e 
Gorneille. 

Hoje o ciume entrou no caminho mais pratico da 
surpreza e do ardil. Sem deixar de ser uma paixao 
violenta, que rasga o fato e o cora^ao, e comtudo 
menos brutal e feroz: jd nao estrangula crean(;as. 

Pelos processos do artificio, pela «habil!dade» dos 
tempos modernos, atiinge muita vez o triumpho, o 
que nao quer dizer que nao soffra is vezes desas- 
tres. 

Essa pobre creatura ciumenta, de que resa a no- 
ticia, errou o caminho, como a tragica Medea po- 
dia errar a punhalada. 

Querendo encontrar o marido, encontrou o cala- 
bou90. 

Adeus! 6 um desastre como outro qualquer. 

Os grandes syndicateiros da actualidade tambem 
^s vezes teem que fallir, e todavia ganham a par- 
t/da muitas outras vezes. 



NINHO DE GUINCHO l8l 

E* urn azar : ganhar ou perder. O jogo nao tem 
outra lei. 

Para contrapor a esta «particlaperdida», lembro- 
mc agora de um bello rober que foi ganho por 
certa dama no whist -do ciume. 

Quern p^rdeu foi o marido e. . . a outra. 

O marido tinha ucna amante com quem gastava 
rios de dinheiro. 

A mulher legitima veio a sabel-o por um acaso 
muito interessante. 

Tinha entrado n'um luveiro da rua do Ouro Es- 
cava escolhendo luvas, quando no espelho da loja 
viu passarn'um /aMiiai/uma mulher apparentemente 
loira. 

— Quem e aquella creatura, sabe ? 

O luveiro respondeu, dando informacSes para 
sc tornar amavel : 

— E' a amante de Fulano. 

A dama empallideceu. Ouvira o nome do marido. 
O luveiro continuou: 

'^Mora na rua de S. Domingos A Lapa, n'um pre- 
dio cinzento Vive com um estadao de princesa. Tem 
carruagem da Companhia e camarote em S. Carlos. 

E cal^ando d dama as luvas que ella tinha esco- 
Ihido : 

— Aquillo 6 pintura, porque ella nao 6 loira. 
A dama afiectando serenidade : 

— Sim?. . . Como todas. . . 

Escusado sera dizer que^ depois de tao fulmi- 
nante revela^ao, a esposa atraigoada foi d'ali A rua 
de S. Domingos d Lapa ver qual era o predio em 
que morava a amante de seu mmdio* 



1 82 COLLECgAo ANTONIO MARIA PEREIRA 

Nao podia chegar em melhor occasiao. A' porta 
de um predio cinzento pardra um landauyumei loi- 
ra^a apeiava-se. Era ella, a amante, a mesma que 
vira passar na rua do Ouro. 

Fixado o numero da porta, a esposa atrai^oada 
comegou desde aquelle momento a machinar o modo 
de dar cabo d'esse manage de contrabando* 

Fazer uma scena Wolenta, era deitar azeite no 
fogo. 

Todo o homem que ama tern trez costellas de 
cao : se o contrariam, morde. 

Era preciso recorrer a qualquer processo habili- 
doso ; mas importava que fosse efBcaz. 

Ora, ha uma Providencia, que vale por um con- 
selho de estado : € a dos que precisam achar uma 
ideia. Acode-lhes sempre. O caso e invocal-a com 
confian^a. 

Uma vez fui procurar & rua da Paz o illustre 
escriptor que se chamou Antonio Augusto Teixeira 
de Vasconcellos. 

Mandou-me entrar logo que me annunciaram. 

Encontrei-o em toilette de trabalho, deitado so- 
bre o leito, de papo para o ar, a fumar charuto. 

— Estd doente ? perguntei-lhe. 

— Nao. Estou a procurar dinheiro. 

— Como ? ! 

— De um modo muito simples. Quando preciso 
dinheiro, estendo me na cama, accendo um charuto 
e ponho-me a olhar para o ar. Ao cabo de algum 
tempo, comedo a vSr cahir dinheiro do tecto. 

Sorri-me. 
Ella acrescentou : 



NINHO DE GUINCHO 1 83 



— Ou a ver cahir alguma ideia, que vale dinhei- 
ro. E cai sempre. 

Acudia-Ihe a Providencia dos torturados, quando 
Tcixeira de Vasconcellos a invocava com firme con 
fian^a. 

Ora essa mesma Providencia acudiu i esposa 
atraigoada. 

D'ahi a dlas leu no Diario de Noticias um annun- 
cio que dizia: «Griada de quarto — Precisa-se uma 
na rua de S. Domingos i Lapa, n.®. . . i.® andar.» 

Era o andar da loiraga, no predio cinzento. 

Deixou sahir o marido, pediu emprestado o fato 
de uma das suas criadas, disse que ia jantar com a 
mae e partiu para a rua de S. Domingos d Lapa — 
toda afadigada, como quern tem pressa de chegar. 

— E' aqui que precisam uma criada de quarto? 

— E', sim. Tem informagoes? 

— Estive em casa da senhora marqueza de. . . 

Quando uma criada atira com o nome de um ti- 
tular e como se trouxesse attestado de bom com- 
portamento — em papel sellado. 

— Entre para se ajustar. 

A esposa encontrou-se em presen^a da amante, 
estando disposta a acceitar todas as condi55es. 

— O ordenado i tanto. 

— Sim, minha senhora. 

— Obrigacoes : ajudar-me a vestir, tratar do meu 
banho e do meu quarto, e servir o chd d noite, quan- 
do vem ^o senhor». 

— Greio que v. ex.* nao teri razao de queixa. 

— Pois entao estamos tratadas. Nao trouxe a sua 
roupa ? 



1 52 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

— Irei buscal-a amanha, se v. ex.* der licenqa. 
A's nove horas da noite, tocou-se & campainha. 
A cosinheira disse: E' «o senhor». 

A criada nova pediulhe: 

— Fa^a favor de ir abrir, por hoje, que eu vou 
arranjar-me d pressa. Gomo nao sabia a hora, nao 
estava preparada. 

A's 1 1 horas «a senhora» poz o dedo no timbre 
para que servissem o chd. 

A criada de quarto pegou na bandeja, parou 4 
porta do gabinete cor de rosa, pediu licen(;a para 
entrar. 

— E' o chd, minha senhora. 

O amante da loira^a, ouvindo aquella voz, deu 
um salto na cadeira e voltou-se rapidamente para a 
porta. 

A criada pousou serenamente a bandeja sobre o 
bufete. 

Fulminado pela surpreza, o marido reconheceu a 
mulher. 

— O' Clementina, disse elle para a amante, fa- 
zes favor de ir ver ao teu quarto se eu deixei \i a 
minha carteira hoje pela manha? 

— Estds inquieto ! 

— Julgo que a perdi. 

A loira^a levantou-se em boa fe, e foi procurar a 
carteira. 

Entretanto o marido dizia 4 esposa : 

— Quero que saias jd d'esta casa. Vem comigoe 
perdoa-me. 

., Quando a Joira<;a voltava sem a carteira, ouviu 
bater a porta da escada. 



NINHO DE GUINCHO l85 



Era o amante que tinha fugido com a criada, de 
bra^o dado. 

Foi uma li^ao salutar por ter sido bem succe- 
dida. 

Mas, para se triumphar algiima vez, e preciso 
correr o risco de fazer fiasco. 

Nao perder nunca de vista este principio fun- 
damental de todos OS jogos : que o meihor jegador 
6 o que joga mais serenamente. 

A mulher vestida de homem nao ganhou a par- 
tida, porque foi logo ds do cabo. 

Sendo mulher, vestiu se de homem: € o maior 
dc todos OS cabos para uma mulher. 

Pode-se-lhe chamar : das Tormentas. 

E foi. 



1899 — Maio. 



XXII 



A VESPA 



Meio dia. Cae uma calma suave, de estio mode- 
rado \ 6 o mez de agosto a chamar ]i pelo outono. 

Os velhos dizem que nunca se viu.coisa assim : 
estranham nao ter havido canicula. 

Toda a villa parece anesthesiada n'uma quieta^ao 
lethal. Janellas fechadas; portas entre-abertas. O 
silericio da rua e apenas quebrado pela vozinha in- 
consistente de uma rapariguita, que repete, dentro 
de casa, uma cantiga nova, de que todo o norte do 
paiz estd in^ado n'este momento : 

Ora vai tu, 
Ora Vai tu, 
Ora vai, vai, 
Que eu bem quero, 
Mas TiSLO posso^ 
Ai! Ai! 

As vSspas e as moscas, enganadas pelo calenda- 
rJo, procuram sustentar as irad^ot^ do atyX\%o n^- 



NINHO DE GUINCHO 1 87 

rao portuguez. Passeiam no ar, zumbindo, mais in- 
quictas do que nunca, porque Ihes parece qu^ o 
sol nao 6 bastante forte, o verao bastante quente. 
Acham-se roubadas. Que ^ feito do grande calor 
de agosto, que asphixiava outr'ora os passarinhos ? 
Nao sabem. Estd fajsificado; misturaram-lhe kaoli- 
no. E' um verao mixordia. 

E as vSspas e as moscas, desesperadas, aborre- 
cem-se no ar, zumbindo. 

As janellas estao fechadas; as portas apenas en- 
tre-abertas, em respeito i tradi^ao dos dias de agos- 
to ardentes. 

A rapariga continua cantando dentro de casa ; 

>'^ Ord vai tu, 

Ora vai tu. 

Mas para onde e que eilas hao de ir, as vespas e 
as moscas? 

Eis que uma vespa, talvez por ser mais supers- 
ticiosa que as outras, parece tirar bom agoiro das 
palavras da cangao, que a rapariga continua can- 
tando dentro de casa. 

AflFoita-se a percorrer toda a rua solitaria e morna. 

Procura uma porta aberta, bem aberta, por onde 
possa entrar sem receio de alguma cilada : entrar e 
sahir depressa se for preciso. 

Depara-se-Ihe uma unica, a do confeiteiro da vil- 
la, que tern na montre a sua fornada de bolos finos e 
de pao de 16 de Margaride, ainda quentes do fomo? 

Bem fez a vSspa em fiar-se no vaticinio da trova: 

Ora vai lu, 
Ora vai ta. 



1 88 COLLECiJAO ANTONIO MARIA PEREIFA- 

Foi, e encontrou um lauto banquete de gulodices 
exposto na mont re do confeiteiro. 

Gorre a dar aviso ^s outras vespas e, dentro de 
pouco tempo, um enxame enorme acampa sobre a 
vidraca, prompt© a realisar o primeiro assalto logo 
que tenha occasiSo de penetrar na montre. 

As moscas seguem o caminho das vSspas e poi- 
sam, contentes, na vidra^a, parecendo dispostas a im- 
p6r ds vfispas o dilemma do sapateiro de Braga: 
tOu havemos de comer todos ou ha de aqui haver 
moralidade.> 

Pobres moscas! Ellas nao estao ao corrente do 
direito internacidnal moderno: la force prime le 
droit. 

As vSspas, mais instruidas,ouvem a imposi(;ao das 
moscas e riem-se da sua ingenuidade politica. 

Passa na rua um rapazito commendo um bocado^ 
de broa. 

E' o pao que teem comido todos os grandes ho- 
mens do norte, desde Passos Manuel, grande pelo 
talento, ate ao conde de S. Bento, grande pelo di- 
nheiro. 

E quem sabe se aquelle rapazinho vird a ser um 
grande homem do norte? 

Pdra diante da montre a contemplar, cubi^oso, os 
fesuitas^ as ^aniacoes^ os pasteis de Santa Clara. 

Sente-se tantalisado pelo appetite: um d'aquelles 
bolos fal-o-ia feliz. 

Mas estd separado d'elles pela muralha da China 
de um vidro. 
Acha-se em frente do seu ideal, e nao p6de at- 
dngil-o. 



NJNHO DE GUINCHO 1 89 

Tetn acontecido isso tantas vezes aos grandes ho- 
mens. . . e aos pequenos! 

E elle 6 pequeno duas vezes, por ser creanga e 
por ser pobre. 

De repente parece encontrar um meio de acal- 
mar o seu appetite, resignando-se & pobreza. 

Esfrega o pao de milho pela vidra^a da montre e 
come-o depois. 

Sabe-lhe talvez a doce, por suggestao. 

Felizes as crean^as, porque, na sua mesma inge- 
nuidade, sabem achar um meio de enganar o seu 
ideal insaciado. 

Nao acontece sempre isso aos grandes, principal- 
mente aos grandes homens. . . 

E, satisfeito, o rapazito desencosta-se da montre, 
segue o rumo que levava, cantando como a creadi- 
ta, como toda a gente, como este Minho todo, 
agora : 

Ora vai tu^ 
Ora vai tu, 
Ora vai, vai, 
Que eu bem quero, 
Mas nao posso, 
Ai! Ai! 

Scnto-me no classico banco de pinho, dentro da 
loja do confeiteiro. Pego nos jornaes recem-chega- 
dos do Porto, e o seu noticiario afoga-me n'um di- 
luvio de falsifica^oes, pao falsificado, documentos 
falsificados, suicidio falsificado. Tudo falso... ate o 
o verao. Aborre^o me, pedindo mentalmente a re- 
surrei^ao d'aquelle famoso Epaminondas, que nem 
por gracejo /a/seava a verdade. 



igO COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Do que n6s precisamos e de muitos Epaminon- 
das. 

Chego a esta conclusao desoladora. 

Ponho-me a olhar para a vidra<;a da montre e ob- 
servo as vespas e as mdscas, em campo, luctando 
pela vida umas e outras. 

Gomo a vidraca se nao abre para Ihes dar entra- 
da, todas ellas precisam ir pensando em outra coisa. 

E entao as vespas pensam nas mdscas. 

La force prime le droit: a vfispa pode mais do 
que a mosca. 

Por isso se entret^m a dar-lhe caca, com uma fe- 
rocidade selvagem, que irrita os nervos do obser- 
vador. 

Ah! Deus sabe-muito bem o que fez. e porque o 
fez. Se a v£spa fosse maior, seria ate para o homem 
um inimigo terrivel. 

Quero ser o libertador das mdscas, e lan^o mao 
de uma toaiha para enxotar as vespas. 

O confeiteiro avisa-me dos perigos da empreza, 
dizendo : 

— Nao fa^a isso. A vSspa e vingativa e audaz. 
Se o homem a persegue, persegue ella o homem. 

E entao, assim avisado sabiamente, resigno-me 
a ver a hecatombe das moscas consumada pelas 
v€spas. 

Umas e outras esvoa^am sobre a vidraca. 

A vespa manobra como um pirata, capeando as- 
tuciosamente, para abordar a presa. 

Dd saltos acrobaticos: poisa aqui, poisa acold. 

Se encootra outra vSspa no caminho, tem com 
e//a um conHicto rapido. 



NINHO DE GUINCHO I9I 



Diz-se que o homem 6 mau para o seu semelhan- 
tc. Nem sempre e bom, realmente. Mas os outros 
animaes sao bem peiores para os da sua mesma es- 
pecie. A propria pomba, symbolo da candura, quan- 
.do investe contra outra pomba, nao tern nada de 
Candida, nem sequer nas pennas, que, ds vezes, fl- 
eam enodoadas de sangue. 

Depois de algumas investidas infructiferas, a vSs- 
pa consegue prear a mdsca. E' a forca opprimindo 
o direito : a diplomacia em acgao. 

O primeiro cuidado da v£spa 6 cortar as azas i 
mosca, para que nao possa fugir-lhe. 

Aqui nos encbntramos outra vez com um sym- 
bolo do ideal. 

Cortar as azas! Quantas vezes, buscando um 
ideal querido, nao se nos depara a v€spa trai^oeira, 
que nao quer de n6s outra coisa senao cortar-nos 
as azas ! 

Todos n6s alguma vez temos encontrado isso : a 
vSspa que nos assalta na lucta pela existencia. 

Emquanto a mdsca, perdidas as azas, se.agita 
ainda, a vSspa passeia-a sobre a vidra^a n um feroz 
triumpho. 

E logo que a victima ]i nao p6de libertar-se, a 
vSspa, convencida da seguran^a da conquista, altea 
o voo e vae, no seu favo, devorar a mosca, tran- 
quillamente. 

Para que e preciso por a gcnte o pensamento na 
Roma dos Cezares, nos combates do Golyseu, nos 
espectaculos terriveis dos gladiadores romanos ? 

Esta vidra^a de confeiteiro i tambem um Coly- 
seu. 



192 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Postos frente a frente o fraco e o forte, quein suc- 
cumbe i o fraco. 

Pois aqui se ve isso, sobre um vidro que resguar- 
d^ijesuitaSy :{amacoeSy pasteis de Santa Clara, ainda 
quentes, sahidos ha pouco do forno. 

O mundo e grande, e todo elie nao e senao isto: 
o combate da v^spa contra a mosca. 

O ideal e um sonho da imagina^ao, e as contra- 
riedades que o difHcultam podem bem representar- 
se na vespa cortando as azas d m8sca. 

A rapariguita, dentro de casa, continuava can- 

tando: 

Ora vai tu, 
Ora vai tu, 
Ora vai, vai, 
Oue eu bem quero, 
Mas nSo posse, 
Ai ! Ai ! 

Maus versos e boa philosophia. 
A mosca quer penetrar na monire; vae a vfispa 
e corta-lhe as azas. 
Ai! Ai! Gomo diz o estribilho da can^ao nova. 



Minho— 1902. 



XXIII 



O BIGODE POSTigO 



N'cstes dias de carnaval vai a pique a sericdade 
dc muita gente boa. 

E o diabo arma as coisas de modo, que sempre 
fica de f6ra o rabo do gato. 

Vem a saber-se tudo. 

Bern serio e grave era aquelle nosso Filinto Ely- 
sio, velho e triste, exilado c indigente, e comtudo 
elle mesmo conta n'uma das suas odes — talvez 
para fazer penitencia publica — o que Ihe aconte- 
ceu em ccrto dia de carnaval. 

Emborrachou-se. 

Se elle o nao dissesse, ninguem o acreditaria. 
Mas disse-o n'aquelle seu estylo, alids pittoresco, 
que cheira a rape ultra-classico : 

Uma noute do tres-loucado En^rudo, 
De alto barulho, e dan9atriz far6fia, 
De longo rabo-leva, e surriada, 
De p6s, talco, filh6s, peruns, carni^a; 
Eu co'a cabe^a quente^ e tk^Vs^Ao^ai 



194 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA 

Co*os vapores de Baccho ebri-festante, 
A redonda barriga ainda himpando 
Co*o saboroso-atola-dente lombo 
E certas trouxas de ovos comesinhas — 
Embrulhado na rede, em Casa aos passes 
(N5o mui seguros) punha a pontaria; 
E jd Morpheu, das pontas dos cabellos 
Se prendia, trepando-se d moleira, 
Para no leilo me baquear d*um golpe, 
Mai que os Penates curto saiidasse. 

Dispo-me a trancos do prolixo fato. 
Aqui me cai o len^o, ali se entorna 
A caixa do tabaco; — mal sostidos 
No bra^o da cadeira, se debru^am 
Os cal96es co*o relogio... 

Um classico em cuecas! Vejam se, f6ra do car- 
naval, seria possivel que o austero Filinto se exhi- 
bisse sem cal<;oes d tro^a de francelhos e gallici- 
parlas ! 

e da algibeira 

Pingam vintens, retinem no ladrilho, 
E v3o, em caracol, correndo; — o gato 
Pula dquem, pula diem; — co'a garra leve 
Dd-lhe um bof^te, os tomba e os atabafa. 
Dou pouco tino dos vintens rodantes 
Do subtil gato resonante presa; 
Antes durmo, sem ver, sem ouvir s6ca; 
Como quem faz focinho ao mundo inteiro 
Comparado c*um bom dormir machucho, 
Entre fofos colchoes aboborado, 
De mortaes barafundas esquecido. 

'Se isto nao 6 uma bebedeira, tvao sd o (\ue seja. 
Mas o bebcr e o dormir teem amda ^vxa d^^cvA- 



NINHO DE GUINCHO IQ5 



pa, porque os homens nao sao de ferro, incluindo 
OS classicos. Bern forte era o porto de Leixoes, 
feito de blocos enormes, mas porque ultimamente 
tomou grandes pan^adas de agua do mar, foi-se 
abaixo como Filinto. 

Ha escandalos peiores no carnaval, e para a 
gente descobrir alguns tern que suar o topete. 

Comtudo, quem redige gazetas chega a adquirir 
um tal ou qual faro de agente de policia ; com a 
vantagem de poder inventar quando nao chega a 
descobrir nada. 

D'esta vez, porem, puz em descanco a imagina- 
cao, porque descobri um caso verdadeiro, tao cer- 
to como o commendador Juliao Rainho ser casado 
com uma fresca dama quarentona, de lindas carnes 
e cores, mulher sisiida, que era conhecida no sitio 
do Arieiro pela designacao um pouco invejosa de 
— commendadeira. 

Muito amigos estes esposos, que passavam o dia 
na janella, conversando um com o outro na mais 
perfeita harmonia conjugal. 

Mas justamente porque fossem muito janelleiros, 
a visinhan^a. que os via cochichar i puridade, Jul 
gava-se criticada por elles : d'ahi a alcunha de — 
commendadeira, dada d mulher de Juliao Rainho. 

A's vezes o commendador sahia de casa para vir 
d Baixa tratar dos seus negocios, recebcr as suas 
rendas. 

De charuto ao canto da bocca, dizia adeus i mu- 
lher, jd da rua, uma e muitas vezes, acenando Ihe 
risonho com a ponta dos dedos. 

Ella, quando o via sum\r-s^ ao \oTv^<t^\^^^MNc^-^^ 



196 C0LLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA 

para dentro, e nao tornava a apparecer ate que elle 
voltasse. 

Os visinhos, as visinhas principalmcnie, davam 
se a perros por nao haver n'aquella casa um escan- 
dalo, que amarrotasse a indcpendcncia, a altivez 
fleugmatica do commendador e da mulher. 

Elle era considerado no Arieiro como um phos- 
phor© amorpho. . . antigo. 

D'antes, os phosphoros amorphos accendiam s6 na 
caixa ; agora, dcpois do monopolio, nem mesmo na 
caixa se inflammam. 

Perdeu-se uma bcUa comparaqao ! 

A commendadcira, que se chamava D. Thereza 
— unico pormcnor que os visinhos sabiam da sua 
vida — era, pois, a caixa do coracao amorpho de 
seu marido, n'aquelles bons tempos antcriores ao 
monopolio dos phosphoros. 

O que e certo e que os homcns da visinhanca 
davam razao ao commendador Rainho para gostar 
de sua mulher, que fazia Icmbrar ainda na frescura 
dos quarenta annos um morango do Porto. Ncm 
sequer Ihe faltavam, completando a comparacao, 
uns signaesinhos pretos pelo rosto, como os dos 
morangos. Coisa apctitosa para os entcndedores.' 
Que n'isto de mulheres o entender e tudo. Muitas 
se perdem por nao terem sido entcndidas nunca. 

O commendador, quando vinha d Baixa, via 

muitas mulheres magritas, esticadinhas, pessoasi- 

nhas de metter no bolso para trocos miudos. Nao 

gostava. Eram morangos de Cintra, que e cada 

um para a cova de um dente. Elle ticvha Id em casa 

um morango do Porto, de boa po\ipa, caiYvt.\it^xv<:.^ 



NINHO DE GUINCHO I97 

e signaesinhos pretos engra^ados, que pareciam 
postos a pincel. 

De mais a mais depositava plena confian^a no 
fundo de honestidade da mulher, porque n'aquelle 
tempo ainda podia haver confianca em quaesquer 
fundos portuguezes. 

Nao chegara a ter nunca uma suspeita, um re- 
ceio, a mais leve apprehensao sequer. Quando pre- 
cisava sahir, punha o chapeu na cabega, mettia a 
mulher no coracao, e vinha por ahi abaixo tao tran- 
quillo como se trouxesse a D. Thereza bem agar- 
rada pelo brago. 

Nao tinham filhos, o que estimava, porque os fi- 
Ihos tiram ao casamento o ar de namoro chronico. 

Dao-lhe horas de alegria e contentamento, e cer- 
to, mas roubam ao lar conjugal o que quer que 
seja de sonho, que e bom conservar sempre. 

O amor e de todas as coisas a que menos resiste 
d divisao. 

Tambem parecia ao commendador Rainho que 
fora bem feliz com a criada, uma rapariga de Santa 
Casa, que os dois esposos educaram a seu modo : 
nada de conversas com os visinhos, nada de par- 
lendas com os padeiros, indifiFeren(;a absoluta pela 
guarda municipal. 

Uma Vestal engeitada, que alimentava o fogo sa- 
grado ... do fogao. 

Mas o commendador Rainho ignorava de todo o 
ponto que o que perde as cosinheiras e a symbo- 
lica do abano. 

Quando ellas espertam o lume, lembram-se de 
que a monotonia da sua Vvda, o^t. ^ ^QaNj:> ^^s^s^- 



igS COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA 

dorra das brazas, despertaria se uma forte mao as 
abanasse tambem a ellas. 

E come^am a procurar um abano no amor. 

Depois um abano envelhece, gasta-se ; vem ou- 
tro, comtanto que se pare<;a com o antigo. 

E' por isso, talvez, que as criadas de servir nao 
mudam de tropa: ficam sempre na guarda muni- 
cipal. 

Derivava placidamente a vida do commendador 
Rainho na sua casa do Arieiro entre o charuto e a 
mulher, a janella e a mesa, a mesa e o leito. 

Nao havia ali perturba^oes domesticas, nem des- 
gostos intimos. 

E, para cumulo de felicidade, a rapariga da Santa 
Casa nao roubava quando ia i porta comprar as 
hortali^as e os legumes. 

O commendador e a mulher estavam convencidos 
d*isso — d'isso e d'outras coisas igualmente falsas. 

Mas, pelo que respeita A felicidade de cada fa- 
milia, n'uma hora cai a casa. 

Certa segunda-feira gorda, & hora em que o ra- 
pazio do Arieiro andava pelo sitio a tocar castanho- 
las, o commendador ficou depois de almoco, sen- 
tado n'uma chaise-longue da casa do jantar, a ler o 
Diario de Noticias. 

Tinha almocado bem, que e uma caracteristica 

das pessoas felizes. 

Nao sabe o que e ter felicidade completa na terra 
quern se levanta sem apetite e com a bocca sabur- 
rosa. 
O commendador Unha posto a charutcira ao pe 
de si, emquanto viajava menta\menx^ ^ot \A^\io^ 



NINHO DE GUINCHO IQC) 



atraves do Diario de Notictas, passando das noti- 
cias para os annuncios e de um bairro para outro. 

Deu um geito ao corpo para maior commodidade 
do estomago satisfeito, e a charuteira cahiu-lhe para 
traz da chaise-longue. 

Querendo apanhal-a, estendeu um brago, e en- 
controu no chao uma coisa ao mesmo passo as- 
pcra e molle, que nao era seguramente a charu- 
teira. 

Teve curiosidade de ^ er o que era, e viu um bi- 
gode postico. 

O seu primeiro pensamento foi de surpresa ; o 
segundo de terror ; o terceiro de colera. 

O inferno do ciume fizera a sua estreia n'aquella 
casa, accendera as fornalhas, puzera rubro o cora- 
cao do commendador. 

Elle nunca jdmais tinha comprado na sua vida 
um bigode postico, nem Ih'o haviam dado ou em- 
prestado. 

Como estava ali aquelle ? Quem o puzera ali ? 

Mysterio ! tenebroso mysterio talvez ! 

Em sua casa entrava decerto um homem, que 
vinha disfarcjado, e que alguma vez se esqueceria 
do disfarce deixando-o ali. 

Chamou a mulher gritando. Ella acudiu afflicta, 
porque s6 estava habituada a ouvir suas fallas bran- 
das e doces. 

— O que e isto ? ! perguntou elle truculento. 

— Isso o que ? Juliao! 

— Fa^a-se tola ! A senhora nao v6 ? ! E' um bi- 
gode ! 

— Um bigode ! Meu nao i corcv ctxv^x^. 



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