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849.8^
•Hi
A 466912
'■ f^
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OBRAS D£ GAHILLO GASTELLO BRANGO
Edi(flo popular das suas prindpaes obras em 80 volumes
in-8.0y de 200 a 300 paginas
impressa em bom papel, typo elzevir
860 r^ia em broohora e 400 r^is encadernado
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...Tiv© om conclado Tambem
D altos caste los . . .£ta< |ant9i&ia»
Ex-LiBRlS
iU— Um liomem <te brios.
41 <»Hemorifti de Guilhenne do
AoDAnl.
42, 43 • 44 — Mysteriot de Lit-
4S • 46 — LiTio negro de ptdre
Dinis.
47e48 — OJttdea.
49 — Dnai 4poots da Yida.
50 — Eitrellaeftinestaa. ^..^.^
51 •— Lagrimai abeofoadf^
fNIVERmi OE H
do de Fafe em Litboa. —
Morgado de Fafe amoroso.
— CTultimo acto. — Aben-
ooadas lagrimas I
79— TmuTKo: IT — Ocondem-
nado. — Gomo ot anjos se
Tin^;a]n. — Entre a flauta e
a Tiola.
80 — Teeatm : V ~ O Lobis-
Homem. — A Morgadinbe
*>pre8.
CAMILLIANA
Camlllo Castillo Br%noo—Notas d margem em vorios It-
vros da sua biblioteca, recolhidas pox Alvaro Neves. — i vol,
br. 600 rs. ; enc. 900.
Camillo CasMlo Branco — THpos e episodios da sua gaU-
ria, por Sergio de Castro. — 3 vols., contendo inumeras trans*
cri^Oes da obra de Camlllo, br. 1I700 rs. ; enc. 2I400 rs.
Poasias disparsas da Camillo Castallo Branco — i vol.
de 247 pag. em papel de linho nadonal. Tiragem 4S ex., br.
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Hosanna I Por Camilk) Castello Branco. Fiel riepr(>jdu(2[o zin-
cografica da i.* edi(3o de 1852, hoje rarissima. Tiragem 60 ex.,
br. 2I500 rs.
Os pundonoras dasagravados, por Camillo Castello Bran-
co. Reprodu^o como acima da i.* edi^ao de 1845* Tambem ra-
rissima. Tiragem 60 ex., br. i|ooo
Prafacio da 1.* adi9fio do Diccionario da Azavado^ por
Camillo Castello Branco. — Fl. i|ooo.
COLLECgAO ECONOMICA
Volumes in-16.<* de 240 a 320 paginas
ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES
A 150 r^is o Tolnme
VOLUMES PUBLICADOS
1 — Aventaraa prodigiosas de
Tartarin de Tarucon, se-
guidas de Tartarin nos Al-
pes, por A Daudet.
2 — Esgotado.
3 — Sergio Panioe, por Jorge
Ohnet.
4 — Esgotado.
5 — Soror Philomena, por
Edmond e J. Goncourt.
6 — Esgotado.
7 — Osmilhoes vergonhosos,
por Heitor Malot.
8 — Esgotado.
— Esgotado.
10 — Esgotado.
11— Esgotado.
12 — Esgotado.
13 — Um oorft^ao de mulher, por
Panl Boujget.
14 — Esgotado.
15 — Esgotado.
16 — Esgotado
17 — Esgotado.
18 — O ultimo amor, por Ohnet.
19 — Um bulgaio, por Ivan Tour-
gueneife.
20 — Memoriae d'um euidda,
por Mazime du Cam^.
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« 3.'# — V.Ai^oU'1'j,
■^ l'9j\%\'iuwt%*. , . , por H. Dai-
lin(( Hum'tftind.
— A c'fufiu^/ t\*i dtffAluA,
— K«got»/J/>,
— A nihilintft, yni*. h\*iiAhn.
— Mortu d« nrri'/T, por DoJ^it.
— .Jo«/> Sbogflr, por C. Ktt<lif;r.
— VIa((«rrf •<;ritirri';otaly por
— mlll»»io «Jo tio Jittclol,
|ior Km lift Kicheboarf;.
A i*A,t\\\n?Af) cJo urn rupaz do
61— Ji
>— K«gOt{Mlf|.
-— nunUllo de I<onrpM, por
•I. K. llavHiiiuiiH.
— Amor do MiM, por J. Blain.
— A t^'gru, por Luforoitt.
— Colotiiha, por I*. Merim4«.
-^ KhIU, por L. ToltttoL
•*> Alma Hiiii|ilei, por I^o»-
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zLSUx: SiiTtstre.
£igot&dj.
nt'.io. pcio g«LerAiTci;»!:g.
Ki-Toag.
A CM.. a 'i-i "icletas, pai
F- Gaimar^cs Ficseca.
66 — X em rod & C.*, poi
Jorge OLcrt.
Pris-Tia Gfe fa.:r.or. por Par
Bonnhonr.e.
Hiftoria d'nma n.::!hcr
por Guy de Manpassant.
70 — Educacao sentimen-
Uu, por G. Fiiiulert.
D«;poi9 do anior, por Ohn-t.
A fava de Santo I;^acio,
por Alexandre PoiLey.
74 — herdeiro de lied-
clyffe, por Mrs. Yougue.
Uina ondiua, por Tbeurie'
A f am ilia Laroche, pc
Marguerite Sevray.
- As ^andes lendas da hu
manidade, por d'Humive.
79 — A filha do Dr. Jau-
fre, por Marcel rrevost.
A daraa das camelia&, por
A. Dumas, Filho.
Dezeseis annos..., por P\
C. Philips.
83 — O Dcsthronado, por
A. Ribeiro.
Ninho^d'amor, por A. Cam-
pos.
• liOdaR Ncgras, por Alma-
chio Diniz.
• Do amor ao crime, por Al-
phonse Karr.
> A ilha revoltada, por Ed
Lockroy
i^^mt^
COLLECCAO ANTONIO MARIA FEREIRA— 41' Yolnme
NINH® ©E 6tIIN<5H(!)
COLLECgAO ANTONIO MARIA PEREIRA
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LISBOA
Typographia da Parceria Antonio Maria Pereisa
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6> 1X^0 1
RAZAO DO TITULO
A ave conhecida pelo nome de guincho caga
durante a noite a provisao do seu ninho, que
procura ter sempre bem recheiado. Por isso
passa em proverbio o dizer-se metaphorica-
mente — achou ninho de guincho — quando
alguem descobriu um esconderijo de variados
objectos.
Este livro, pela diversidade dos assumptos,
certamente mais sortidos do que valiosos, e
um ninho de guincho, que eu fui abastecendo
na minha afanosa lucta pela existencia, dia a
dia, umas vezes alegre, outras triste, mas
sempre conformado com a suprema direc95o
de um mundo onde ha pessoas que vivem sem
trabalhar e pessoas que trabalham para viver
— sem que se possa dizer ao certo quaes sfio
as mais felizes.
Usboa — 1903, dezembro
O PROPHETISMO E A RESTAURAgAO
Uma das armas empregadas no interesse da res-
taura^ao de 1640 foi o prophetismo: 6 esta uma ver-
dade historica que merecia decerto ser largamente
desenvolvida e demonstrada. Nao o podemos fazer
n'uma simples notula; alguem, de mais firme pulso,
o fard um dia.
Quern principalmente manejou essa arma ? Foram
OS jesuitas? O padre Jose Agostinho de Macedo as-
severou categoricamente que nao entrou na revo*
lu^ao nem um s6 fesuilay mas que os religiosos da
Companhia, sempre dissimiilados e verdadeiros go*
tos na melancolia e na caga, exploraram em pro-
veito proprio o movimento revolucionario que pdz
no throno D. Joao IV, fazendo acreditar que ellc
era o promettido das prophecias populaces (*). Re-
bello da Silva^ pelo contrario, assignala a interven-
^ao, que reputa poderosa, dos jesuitas, na conspi-
(^) Os sebasiianistas^ Lisboa^ iftio^ V^%* ^^*
8 COLLEC9I0 ANTONIO MARIA PEREIRA
ra^So restauradora de 1640 e na consolida^ao da
djmastia brigantina. Recorda este illustre historiador
a propaganda do padre Luiz Alvares, que n'um
sermao pr^gado perante o cardeal Alberto se affbU
tira a dizer: tSerenissimo principe! Levantaevos,
tomae o fato e a cabana, e ide-vos para vossa ter-
ra. .. ^ o que significam as palavras de Christo(^)».
A cren^a de urn novo imperio do mundo, para glo-
rifica^ao da coroa restaurada de Portugal , digno de
figurar na historia universal depois dos iaiperios da
Babylonia, da Assyria, da Grecia e de Roma, foi
eloquentemente ati^ada pelo padre Antonio Vieira,
como se sabe, na Historia do future. Mas jd entao
a revolu^ao estava consummada. Resta saber se os
jcsuitas, recorrendo d arma do prophetismo, e a
outras nao menos valiosas, a prepararam. Eis o
ponto que nao estd ainda nitidamente averiguado.
D. Francisco Manuel escreve nas Epandphoras
que OS padres da Companhia tacitamente contri-
buiam d$ esperangas de alguma nouidade. Este tes-
timunho i importante por ser contemporaneo do?
factos. Nao obstante, a questao nao estd ainda suf-
ficientemente esclarecida, posto que recentemente
dois escriptores notabilissimos, Caaiillo Castello
Branco e Oliveira Martins, esgrimissem denodada-
mente sobre tao importante assumpto, deixando
comtudo indecisa a victoria, porque ambos adduzi-
ram argumentos ponderosos, o primeiro negando,
em opposi^ao ao segundo, que a Companhia de Je-
^J Muaria Je Partugai^ tome m, p»g. 440.
NINHO DE GUINCHO 9
sus tivesse intervindo pelo prophetismo na revolu-
5ao de 1640 para fa\er de Portugal o Paraguay
da Europa, segundo a phrase de Emilio Castellar
proferida no congresso hespanhol em 1884. Camillo
Castello Branco adoiittia que os jesuitas acceitassem
D. Joao IV como sendo o EncobertOf mas s6 depots
de realisada a revolugao de 1640; antes nao. Com-
batia, portanto, oargumento de Oliveira Martins: que
fdra por suggestoes jesuiticas que rebentaram . em
Evora os acontecimentos de 1637, de todos conhe-
cidos. O que i certo e que a questao, briihantemente
tratada de parte a parte, nao ficou todavia bastante-
mrente liquidada, de modo a nao admittir a menor
duvida perante a critica historica, desapaixonada e
imparcial. Pode ter-se uma opiniao, mais ou menos
justificavel, e nao devemos occultar que nos inclina-
mos d de Camillo Castello Branco; mas parece-nos
ainda cedo para assentar uma convic^ao definitiva.
Como quer que seja, o que i certo e que o
prophetismo f6ra uma arma poderosa nas maos
dos que favoreciam a restaura^ao, quer os va-
mos procurar & Companhia de Jesus ou f6ra
d'ella.
O calls da amargura trasbordava; o prophe-
tismo fortalecia os animos, pondo em vibra^ao a
credulidade popular, para evitar que fosse exgo-
tado exi as fezes. Na revolu^ao d'Eyora, emergira
principalmente o elemento popular; o typo do Ma-
nuelinho era uma synthese. O prophetismo apro-
veitou aquelle- elemento, que sobrenadava a flor
dos acontecimentos, .e explorou-o covv\ nw>x^'^^b^*
Ws a verdadcm
lO COIXEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Todos OS processos que podiam fazer vibrar a
credulidade do povo foram utilisados. Recorda-
ram se as suppostas pala/ras de Christo a Affonso
Henriques nas cdrtes de Lamego, cuja authentici-
dade foi, alids, combatida per Alexandre Herculano,
como se sabe. O Filho de Deus haveria promettido
ao primeiro rei portuguez a sua miraculosa interfe-
rencia ate ao tempo em que florecesse a decima
sexta gera(jao, usque in decima sextant generationem.
Ora desde Sancho I atd D. Henrique, inclusive,
succcdiann-se dezeseis gera^oes contadas de rei a
rei. S. Bernardo teria escripto a Aftonso Henriques
uma carta datada de Clara val, no anno de ii36, na
qual diria que ao — areino de Portugal nunca falta-
riam reis portuguezes, salpo se pela grave\a de cuU
pas por algum tempo (Deus) o castigar; ndo sera
por^m tdo coniprido o praso d'este castigo, que che*
gue a termos de sessenta annosB.
Como se ve, nao podia sermais artificiosamente
explorada pelo prophetismo a corda da credulidade
nacional.
Mas ha mais. Aos vaticinios de origem rcligiosa
accresciam os vaticinios de origem popular, fazendo
suppor em iniima communica^ao a alma do povo
com OS prophetas directamente inspirados por Deus.
Assim, as prophccias de Bandarra foram interpre-
tadas n'um sentido inteiramcnte applicavel A res-
tauragao da independencia nacional pela acclama^ao
de D. Joao IV.
Na RestaurafSo prodigiosa de Portugal, com-
posta em 1643 por um jesuita, o padre Manoei Es-
cobaFf sob o pseudonytno de Gregorio de AVtrvevda^
NINHO DE GUINCHO 1 1
as trovas do vate sapateiro de Trancoso sao ada-
ptadas i epoca:
J A o tempo desejado
i chegado.
Segundo firmal assenta,
Jd cessaram os quarenta,
Que se tmmenta
For um douto jd passado,
O rei novo e levant ado^
JA d^ braJCf
Jd assoma a sua bandcira,
Contra a grifa parideira
Logoroeira,
Que tees prados tem gastado.
Saia, saia este infante,
Bern andante.
O SiU nome e D. Joam,
Tire e leve o pendao
E o guiSo,
Poderoso e triumphanie,
Vir-lhe-hao novas adeante,
E n'um instante,
D'aquellas terras presadas,
As quaes esiao declaradas
£ bfiirmadas,
Tel-o por Key em deante,
Inculcava-se, pois, que a dra de quarenta era pre-
destinada para grandes prodigies. N'uma cgrcja de
Alemquer haveria sido encontrada uma pedra com
esta inscrip^ao, em leitras gothicas:
Anno de vinte, quern te nao vira !
Anno de trinta, quem te passdr^l
Anno de quartnia^ quem te gosdra\
12 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
De mais a mais, na Escriptura Sagrada qua-
renta era um numero assignalado: quarenta dias
estivera Moys^s no Sinai; quarenta annos guiou
o Senhor ao povo de Israel pelo deserto. Ficava
assim confirmada a phrase : segutido Jirmal as-
sent a.
Mas^ al^m da auctoridade da Biblin, havia a de
S. Bernardo: que se emmentUy por um douto jd pas-
sado.
Quanto d expressao rei nopo^ nao podia haver
duvidas: D. Joao IV era o primeiro monarcha de-
pois de interrompida a serie dos reis portugue-
zes.
Saiay saiUj significava a ancia com que todo o
reino pedia a acclama9ao de um soberano restaura-
dor.
Nao podia, de feito, ser mais feliz a exeg^se. To-
davia, uma pequena difficuldade apparecera: a pro-
phecia dizia: — Dom Foam, e nao Dom Joam. Desde
o momento, por^m, em que se encontrasse uma
explica(;ao verosimil para a troca de uma lettra, a
prophecia ganharia foros de indiscutivel veracida-
de. A desejada explica?ao encontrara-se, final-
mente: a troca de um / grande por um F f6ra alte-
ra^ao adrede introduzida pelos sebastianistas ; res-
tava desfazer o que elles tinham feito, mudar o F
em /. A espada de Alexandre cortara mais uma
vez o nd gordio: Bandarra havia prophetisado D.
Joao IV,
E houve logo quem recordasse o testimunho de
pessoas contemporaneas de D. Joao III, affirmando
que Bandarra havia e£fectivamente cactvpto
NINHO DE GUINCHO 1 3
O teu nome 6 D. JoaiD)
mas que — tao certo como dois e dois serem qua-
tro — OS sebastianistas haviam adulterado a copia
maliciosamente.
D. Joao IV devia sorrir-se, para dentro, da cre-
dulidade ingenua dos seus vassallos^ mas para nao
inutilisar as armas do prophetismo, tao habilmente
empregadas em seu proveito, nao punha duvida em
declarar, perante os ferrenhos sebastianistas da
sua corte recemnascida, que se D. Sebastiao vol-
tasse, immediatamente Ihe entregaria o sceptro e a
coroa.
1 885 — Fevereiro.
ii
HISTORIA DE UM QUADRO
Champfleury, no seu livro Les excentriqueSy da o
logar de honra a um portuguez que se tornou no-
tavel em Franca por muitas originalidades. Era o
commendador Josd Joaquim da Gama Machado,
conselheiro de lega^ao em Pariz, gcntil-homem da
casa real de Sua Magestade Fidelissima, socio da
Academia Real das Sciencias de Lisboa e de ou-
tras muitas corporacoes litterarias.
Pertencendo a uma familia originaria de Portu.
gal, Machado foi para Pariz aos oito annos de edade
estudar no collegio d'Harcourt, sob a direc^ao do
abbade Coesnon. Concluida a aprendizagem littera-
ria, Machado viajou largamente e, quando ]& or^ava
pelos cincoenta annos, explodiu no seu espirito^ su-
bitamente, um grande enthusiasmo pela historia na-
tural.
Desde esse momento, Machado tornou-se um mo-
nomaniaco, um excentrico, que vivia mais para os
passaros do que para os homens.
Corria todo Pariz assestando as ^uas Ivitvetas de
NINHO DE GTJINCHO 1 5
ouro para as gaiolas dos passarinheiros, e tazia
,grandes compras de aves, com as quaes almo^ava
em estreita camaradagem todos os dias, depois de
ter assistido ao banho de cada uma.
Havia, na habita^ao de Machado, uma sala occu-
pada por pequeninas thermas, onde os passarolos
mergulhavam hygienicamente, duas vezes ao dia,
sem que nenhum d'elles se equivocasse ao procurar
a sua tina.
Durante o almoqo, o coramendador prodigalisava
dedicadissimos cuidados aos seus hospedes.
— Se quero conservar a amisade de cada um
d'elles, dizia Machado, preciso nao os enganar. O
trabalho de gabinete exige menos fadiga do que a
vigilancia que reclamam os meus pequenos compa-
nheiros. So com incessantes cuidaJos se consegue
preserval-os de enfermidades, e manter a paz no
seio d'esta pequena familia, onde a harmonia, como
entre n6s, nem sempre reina.
Quando Machado viajava, acompanhavao inalte-
ravelmente um-pgpagaio seu predilecto. Em mala-
posia, em caminho de ferro, em paquete, por mar
ou por terra, o papagaio favorito nao se esquecia de
pedir o almo^o, dando um grito, sempre A mesma
hora, com a precisao de um relogio de Genebra.
Este papagaio correspondia aos carinhos com que
Cra tratado pela coopera^ao que prestava ao com-
mendador no tratamento dos outros passaros.
Quando algum adoecia^ o papagaio avisava gri-
tando. Era uma especie de irma da caridade, de
enfermeiro officioso e solicito. Assim avisado^ M^r
chado punha em acqao toAo o stM ^x^^^evsJS. ^^'^'^-
l6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
peutico : applicava homoepathicamente a belladona
para os casos de epilepsia, de que alguns passaros
sao atacados ; e empregava os gtobulos de a^afrao
na epoca melindrosa da mudan^a de penna.
Foi depois de muitos annos de convivencia com
as aves que o commendador Machado conseguia
formular o seu systema da Theoria das similhancas^
baseado sobre os meios de determinar as disposi-
56es caracteristicas de cada animal, segundo as ana-
logias das formas, da cauda e das c6res.
— A cor, dizia elle, e o verdadeiro piloto da na-
tureza para o conhecimento do valor das suas pro-
duc^oes, nos trcz reinos, animal^ vegetal^ e mine-
ral. E' verdade que Bernardin de Saint-Pierre nao
estava longe d'estas ideas. Nos Estudos da nature:(a
diz elle que as cores dos animaes indicam, mais tal-
vez do que se pensa, os seus caracteres, e que a
c6r vird por ventura a ser o germen de uma verda-
deira sciencia. As famosas analogias de Fourier
partem do mesmo principio.
A exemplifica^ao das analogias encontradas por
Machado tomar-nos-ia grande espa^o. Deixaremos
apenas indicado o assumpto, e transcreveremos al«
gumas das maximas d'este portuguez excentrico,
que dizem respeito aos animaes.
«Os animaes nascem sabios sem passar pela edu-
ca^ao, ao passo que os homens adquirem conheci-
mentos d for^a de maus tratos.i
cFalta ao macaco a palavra: este animal tem
conscrvado a sua plena liberdade.i
<A cor e o mobil dos costumes entre os ani-
nuaes, 9
NWHO DB GmUCHO I7
c A natureza parece ter privtdo o homcm de $ enao
commum e havel-o dado aos animaca.*
Como ae vi, o commcndador Macbado ha?iil
constituido para «i mesmo toda uma ^ociedade dt.
pasaarps, na convivencia das quaes ia rebaixando o
conceito que, por cstudos cooiparatiyoa^ fazia.do
homem.
Era preciso acceatuar estes tra^s exccntricos d«
physionomia de Machadoi tal como nol*o apresenta
Cbampfleury, para entrarmos na materia especial,
que julgamos ser inteiramentc nova, d*este artigOf .
^ Se o leitor quizer dar-se ao incommodo de visi-
tar o museu nacional de bellas artes, no palacio das .
Janellas Verdes^ ha de encpntrar na sala D um qua-
dro a oleo, que tern o numero 868, e que, segundo
a indica^ao do respectivo catalogo, i do seculo pas«
sado.
Quanto ao assumpto do quadro, diz o catalogo :
cLoja de barbeiro. — Diversos macacos fasem of-^
ficio de barbeiro, barbeando gatos.»
aLegado A academia.*
. A* primdra vista, o qua dro numero 868 da sala
D denuncia apenas a excentricidade de um artista,^
a phantasia piccaresca de um pintor que se occupou
imaginando uma loja de barbeiro, em que os esca«^
nhoadores sao macacos e^ os freguezes sao gatos.
O catalogo contenta-se com dar uma indica^ao vaga^.
icerca da aquisi^ao do quadro : legado ^ k.c%$^-
mia. E' pouco, e i false.
1^ . COLLEC9 AO ANTONIO MARIA PEREIR A
rO qaadro nad for legado A Acadcmia. . . mas d
Camara dos «Pareft de Portugal. O teatador foi o
commendador Gama Machado. E o quadro passou
tAsis tarde da Caiiaara dos Pares para a Academia
dt Bellas Artes^j comb ramos mo^trah
<Em data de 12 deoutubro de 1861 6 testamen--
t6iro de Gama Machado partkipara i Gamara dos
Pares o legado de trez quadros, e pedia que Ihe-
fosse indicado o meio de envial-os.
- Qaatro dias depois, o mesmo testamenteiro com-
rauflicava que por aviso do presidente do tribunal
civil estava auctorisado a entregar o legado.
'A 8 de dezembrOy o testamenteiro participava ter
etiviado o legado.
A 25 de fevereiro de 1862 a Gamara dos Pares
mandava officiar ao Ministerio do Reino pedindo
que o legado Ihe fosse entregue, e a 12 de junho
instava pela entrega.
A Gamara havia resolvido que os quadros, logo
depois de recebidos, fossem enviados para a Aca-
demia. Por isso, o director da Academia officiou
em 14 de junho, pedindo a remessa d*elles.
Foi-lhe respondido que ainda nao haviam sido
cntregues.
S6 a 20 de dezembro foram^ recebidos na Gamara,
dp que se lavrou o competente auto.
Os trez quadros de que constava o legado eram :
dois desenhos de Girodet, representando Galathea
e. PigmaliaOy e o quadro dos macacos e dos gatos,
pintado por Decamp — nada menos I
Gomo se acaba de ver, a indica;ao do catalogo
^ nSo so deBciente, mas tambem inexacta.
NINHO DE GUINCHO 19
A verdade 6 qu« o quadro de Decamp foi legado
por Gatna Machado & Camara dos Pares.
Seria este legado apenas uma excentricidade do
diplomata portuguez, inteiramente vasia de sentido?
Elle era intelligente de mais para nao pdr uma in-
tencao qualquer no que fazia.
E d'ahi talvez que o leitor, analysando o quadro,
possa encontrar a inten;ao ironica do testador.
Os macacos nao serao os legisladores ? os gatos
nao ^erao os contribuintes ?
Vao vSr, e digam depois. . .
, I ?86— Janeiro.
Hi
UM PREDIO NOTAVEL
A casa do Tateo do Tijdlo onde Pontes Perenra
de Mello falleceu, tem^como sesabe, duas entradas,
uma pela travessa do Conde de Soure, que commu-
nica a rua Formosa com a rua da Rosa» a outra
pelo Pateo d*aquelle nome que liga a rua de D. Pe«*
dro V com a entrada nobre do palacio.
N'este bairro, e principalmente n'este sitioy a re**
fundi;ao de Lisboa tern sido profunda at^ nos nomes.
A inevitavel chrisma municipal converteu a an-
tiga rua do Moinho de Vento em rua de D. Pedro
V. Porque ? Por coisissima nenhuma^ como diria um
ministro lendario. Aquella rua tanto poderia ser de
D. Pedro IV como de D. Pedro V, como de qual-
quer outro homem notavel... que tivesse passado
por ella algumas vezes. A unica denomina(;ao que
ajustava d sua historia era a de — Moinho de vento^
porque, em verdade, ali houvera moinhos de vento
— e bem trabalhados pelo vento deviam ser n'aquelle
alto OS moinhos — quando ainda tudo por ali cram
terras de semeadura, ao tempo do terrcmoto, co-
miiiO DK GimiCHO 21
mo iodicam os nomes mtis ou menos bucolico& das
ruas circumjacentes.
Estamos, de fitito, n'uma zona onde Ceres e Flora
ttvcram seus dominios^ coma denunciam as designar
f 6es de roa da VifAa^ travessa das Parreiras^ trar
Tessa 4a Horia^ rua dos dtrdan, rua e travessa
da PcUmeira, rua dos JasntinSf e, finalmente^ Prafa
das Flores.
A ri» da Roia hzj porem, excepfSo ; nSo deve
enganar o lettor. Esta rosa nada tem que v£r com
bucolismos e pastoraes, pois que nao ae trata da
rosa dos prados, mas da Rosa... das pariUhas,
uma demandista famoaa do seculo XV.
N6S9 OS que vivcmos agora» jA nao vimos vele^
no alto de S. Pedro de Alcantara os tradictonaes
moinhos de vento^ qoe apparecem figurados no Ur-
bium proascipuarum mtmdi theatrum^ mas conhece**^
mos a ma do Mdnbo de Vento muito differentei
ainda ha poucos annoa, do que i ho^e.
O khor lefld>rarse por certo do renque de casas
buottldes— at£ por signal bem mal habit adas. . .-*
que corria desde a esquina da rua da Rosa at^ junto
da Patriarchal Queiniada. . . perdao, da Pra^a do
Prindpe Real. Demoliram-se essas casas, construi-
ram-se no seu logar. as tojas de commercio que
U vtmoa agora^edificaramse em frente bellos predios,
ttlttmaaaente demoltu^se^ depots de idcendiado, o
palado da familia Braaaicamp — que sempre teve
a xak sioa de vtr os seus predios ificendiados —
desiBotonou^se parte do solar dos Salema%>ikk^\^N^
se a rua, e ella ahi esti Vio\^ mh^o \xtaa. ^^». '^ft--
ItmatB lie Liabda*
22 C0LLEC9A0 ANTONIO MAinA PEREIRA
" - ~- -
Mas a mudan^ de nome 6 que eu noo perddo
nem desculpo.
Todos n6s nos letnbramos ainda (k v6r, no Pa-
teo do Tijdloj os restos (Ksformea do palacio dos
condes de Soure, titulares que estao actualmeint^
representados, pelb casamento de oma ieiilK>ra^ na
casa dos condes de Redondo.
O visconde Julio de Castilho nao pdde rastew* a
data da funda^So do palacio, inai fiarciceu-lfae/ea-
xergar nas ruinas vestigios de uma construc^fio- do
aeculo XVII.
: Como quer que fdsse, ahi habitavam, n'aquelle
seculo, OS Soures, cujo condado fdra em i652 con^
cedido a D. Joao da Costa, casado comuaiasenhora
da casa Villa Verde.
Ahi, nas proximidades do seu solar, esteve o pri*
meiro conde de Soure para ser victima de uma ci«
lada nocturna que Ihe armaram dots embu^ados a
cavallo, e de que sahiu incoluine.
Aconteceu que voltando de Inglaterra, tiui^, a
rainha D. Catharina de Bragan^a, fora alojar^se nos
pacos do Calvarto, d'onde se transferiu para o |ia«
lacio dos condes de Redondo a Santa Martha, paai»
sando depots d'ahi para o dos condes de Soure^
Junto aos Moinhos de Vento.
Foi n'este predio^ onde, duzentos annas volTidos^
haviam de fallecer dois estadistas portuguezes, que
D. Catharina de Bragan^a fez lavrar o seu testa^
men to, datado de 14 de fevereiro de 1699, no pa*
lacio 5t7o ao Moinho de penio na cdrte e cidade de
dListoa. . . .
A rainha de Inglaterra nao se demoteia tnci\xc^<i
MIHHO DE OmMCHO.
por^m, no palacio dos cond^s de Souce;;inudo]i se
para o dos condes de Aveiras, em Beletn. Anufai
ahi naa ficou.. Em. julbo de iTtH comprou 3eu ir-
mSo D. Pedro II terrenps,nia BmnptMa parajnah*
dar-lhe coastruir o palacio qu^.hoje conhtcemos por
jesta designagSi^ < i w.i
A escr;iptura da compra vem publicada.no G^
binete kistorico de frei Qaudio da Gonceif^o e trati^
scripta por Camillo Castello Branco no i.^.Toluaip
do Tomanct O fudeu. .. \/
A esse tempo o representante dos Soures em o
terceiro conde do titulo. D* Joao Jos4 da Costa e
Sousa que, certamente para deixar livre o palacio
do Bairro Alto Irainha da Gran-Bretanha, iria ha-
bitar o outro palacio da sua familiai & Penha de
Franca.
Habituado talvez A sua rcsidencia n'este butro
palacio^ nao voltou o conde de Soure a occupar
. o que D. Catharina de Bragan9a abandon&ra*
Entao o palacio dos Moinhos de Vento« que n*
nha hospedado uma rainha^ passou a ter inquilinagem
menos nobre. Estabeleceu*se ahi um theatro de d«
teres, theatro onde depois se representaram as far-
^as do famoso/Wei/ Antonio 3os6 da Silva, proto-
gonista do romance de Camillo/ ha pouco citado*
Teve pois aquelle Batrro nada menos de trez thea-
tros: este, o velho theatro do Bairro Alto, de ma-
rionettes, aos Moinhos de Yen to; o theatro nopo^ no
largo de S. Roque, Patea do Patrtarch0 (porqat
foi no palacio dos Nizas que habitou o primeica
patriarcha de JLisboa^ D. TWiimaLi di ^&KCi«i^i>v ^
no largo da Abegoaria a Academia de op^raxloV^oxia.
COLLEC9AO ANTONIO MAIOX PEREIRA
Outroi, de aJecundgria import«icia| haveria tal-
-■ Dif^e tu |i que a famtlia Braamcamp fdra infit-
lit com incendios. O pae do fallectdo coitielhetro
Anselmo Braamcamp habiuva um grande predio
no Terreiro do Pa^o entre a esquina da rua da
Prau e a da hia dos Fanqueiros. Esse predio ar-
-deu ahi por 1838, pois que o povd, depots de D NBr^
guel ter dado uma queda e de faliecer a rainha D.
Cariota Joaquina (7 de Janeiro de i83o) cantava nas
Tuas:
Foi o fogo do BrasfDcamp
Comets que snaunciou
A morte ds mbelha m^tra,
A qaeds do reichegmi.
O Yasto predio que o sr. conselheiro Anselmo
Jos^ Braamcamp habitava, no topo da alameda de
S. Pedro d' Alcantara, ardeu tambem, creio que em
1678, pelo que o finado chefe do partido progres-
•ista comprou as ruinas do palacio dos condes de
Soure, mandando aproveitar as parades mestras do
cdificio.
As obras de reconstruc^o come^aram em julho
de 1879, e a refundi^ao do palacio fez-3e rapida-
oaente, indo o sr. Anselmo Jos^ Braamcamp ha*
bital-o com sua familia.
Gomo se sd>e, foi ahi que o illustre chefe do par-
lido progressists falleceu a i3 de novembro de i885,
quatro annos depois de t^ abandonado a presi*
dencia do conselho de ministrosJ(3S de mar^o de
MINHO DE GVMGHO tb
Meze9 depoisi o conspicuo estadista Antonio Ma*
ria de Pontes Peretra de Mello, chefe do parddo
regenerador, transferiu a sua residencia, do palaccte
do largo do P090 Noto^ para o palacio do Pateo do
TijdlO) propriedade dos hardeiros do sr. Braam*
camp. •
Esti atnda na memoria de todos que a morte fe-
riu de tmproviso Pontes Pereira de Mello, na noite
de 22 de Janeiro de 1887.
Logo se notou a triste coincidencia de terem mor- .
rido no roesmo predio', apenas com o intervallo de
dois annoSy os dois chefes doa partidos monarciii-
cos militantes.
Mas o que muita gente ignorava^ e ignoraria tal-
▼ez ainda hoje, t que alt estivera hospedada a
rainha, viuva, da Gran-Bretanhai e que o mesmo
predio passara depois a ser o relho dieatro do Bairro
Alto.
Aos esplendores da realesa, representada na pes-
soa de D. Catharina de Bragan^ a, cuja vida em In-
glaterra fdra uma tragedia de amarguras, succedfra
a comedia personificada no infeHz judeu Antonio
Jos6 da Silva. Seguiu-se urn dupb drama de morte,
que cobriu de luto os partidos progressista e rege-
nerador.
Os dois estadistas nSo £slleceram, por^m, no mes-
mo quarto.
Subindoi da rua Pormosa, a traTessa do Gonde
de Soure, a primeira janella do segundo andaf i a
do aposento em que Pontes expirou.
Quando este illustre estadista {ovt^iv&Tx^^n^^^
predio, os Aerdeiros do sr, Btaatcic^to!^ cot&j«^^-
i6 COLLEC9io ANTONIO MARU PEREItA
racn fechado, durante muito tempo, o quarto, tain*
^ bem situado no segundo andar, em que elle tinfaa
fallecado. :
^ Estaram ainda ali alguns moveis, suppdmos
ate que o leitO| os quaes foram depob remoVidM
per ordem da familia Braamcamp«
Da janella do quarto onde /alleceii Pontes tPe«
:reira de Mello avista-se um dilatado panorama, que
abrange grande parte da casaria do bairro ocddeti-
tal, e o Tcjo.
A mobilia do quarto de Pontes era modesta. En-
trei ali na manha do dia 23 de Janeiro de 1887* O
cadaver do illustre estadista, vestindo o seu uni-
iorme de general, repousava sobre o leito. Rfetor«
do me de ter feito reparo em dois ou trez moTeis,
relegantesi mas simples: uma commoda moderna:e
um guarda-fato; Nenhum requinte de commodidade
opulenta ; nenhuma pompa de tape^arias, nem bibe*
-Jois de pre90. Today la, no fundo da proviqcia, qUan-
.tos nao imaginariam, com bda ou m& f^, queos
aposentos de Pontes deviam ser principescos 1
•^ A Coilheci Pontes Pereira de Mello em quatro pre*
. dios differentes, na rua de S. .Bento, na travessa
de Santo Amaro, no P090 Novo, e no Pateo do Ti-
jdlp, mas em nenhum d elles a mobilia e os estofos
das suas salas deslumbravam os olhos*
1889 — Janeiro.
IV
PETRARCHA E CAMOES
A obra de Petrarcha teen &ido copiosamente viil*
garisada em frsineez. Citarei de passagem a traduc-
^ao de Ginguene, que e estitna^el. Mais no ttxto
original conhe^o a excellente edi^So de i34i por um
exemplar que perteace hoje ao meu prezado ami^
conseiheiro Silveira da Motta, e que pertenceu
outr'ora a Camillo Castello Branco, que o anno-
tou.
Adquiriu, pois, Silteira da Motta uma dupla pre-
ciosidade bibiiographica, que Ihe pe^ Itcen^a para
descrever. '
No reverso da i.* pagina, a lapis:
Ex'perfeito.
No verso da 2/, tambem a lapis:
cEsta edi^ao sahiu no 2.® centenario da coroa^ao
de Petrarcha em i54tp (Est a data estd fprtemente
escripta a tinta). O commcntadot V^VVox^'^ ^ ^
mats apreqado dos antigpA \tvx«^x^\«^ . ^^ "^^^
)q COLLEG9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Creio piamente que Vale Luso foi prfmhtvamente
um erro typographico, que at^ hoje cein corrido A
revelia nas nunrierosas edi^oes em que as cpmedias
de Caoides andam reproduzidas. O poeta escreve-
lia certamente Vale chiuso. Toda a |;ente sabe que
em Avinhao o tumulo de Laura e a fonte de^Pet^a^-
cha povoam ainda hoje de memoriaa romanticas a
paisagem de Valchiusa. Castilho, referindo-se na
CHave do enigma A solidao do poeta n*aquelle er-
rao, escreve na sua doje prosa tocada pcia suavi-
dade de frei Luiz de Sousa: c Vaichiiisaj ou, como
dizem, Voclusa^ onde Petrarcha passa tantos annos
sonhando com o. especiro, primeiro de uma viva,,
que nao vive para elle, e depois, de uma defuqta
que nunca para elle morrerd, Valchiusa e para to-
dos brenha alpestre, cavernosa, brava, despovoada,
mas e vergel e universo para elle, e o casebre do.
seu refugio, palacio oriental. »
, Ate i533 o tumulo de Laura tinha por unico epi-
taphio apenas quatro lettras: M. L. M. I. (Madonna
Laura mortajacet)^ mas, n'aquelle anno, passando
em Avinhao, caminho de Marseiha, Francisco I
(que em materia de poesia e amor tinha soberana
auctoridade) mandou levantar, em honra da beila
dama, um rico tumulo de marmore, com epitaphios
em differentes linguas, escrevendo elle proprio um
em francez.
Antonio Prestes tambem faz referencia a Petrar-
cha, e por signal que tS curiosissima. Vem no Auto
do desembargador. Trata-se de um boi, que tem o
nome de N amor ado.
NINHO DE GVIN€HO: 3 1
' Commendador:
Chamayam ao boi namurado;
f vacca que vitse no arado
Ihe fazia roil sonetos.
Mofo: • '
Isso era Petrarcha boil
Commendador:
Qual Petrarcha! inda me aggravo
do Petrarcha, mui mais bravo
que dez mil Petrarchas foi.
E o mais e que o Commendador do auto tinha
razao. Em amor, Petrarcha foi uoi inoffensivo, urn
platonico, que gastou o coraqSio em sonetos. Nada
ha tao irrisorio comp dizer: a Laura de Petrarcha!
A quern ella pertenceu foi a seu marido, Hugues
de Sade, do qual houve onze filhos« Esta cabazada
de fructos era bastante a esmagar prosaicamente as
flores que Petrarcha metrificava em honra de Laura.
Mas o poeta fechava-se na soiiclao de Valchiusa, ao
p6 da fonte suspirosaj e gemia saudades pela mu-
Iher de Hugues.
Foi n'uma egreja, onde se ceiebrava a semana
saniaj que Petrarcha a viu pela primeira vez,
Tinha ella entao vinte annos, e uma belleza ra-
diosa:
Diz o soneto :
Era '1 giorno ch'al al sol si scoloraro
Per Id pitlA del suo Fattor i rai,
Quand* i' fui preso, e non me ne guardai
Cue i bei vostr'occhi, Dotitia^ tD\\e%%xo«
$3 C0LLEC9A0 ▲MTONIO MAKIA PERElltA
.*■ • ■ ■ . , , ^, . , ...1 ..
A. Cam6es aconteceu outro tanto. Foi tambem
n*uma egreja, e pela semana santa^ que elle viu
pela primeira vez a datna que Ihe empolgou o co«
ra^aoi fosse ou nSo fosse Catharina d*Athayde. O
soneto que principia:
O culto diviaal te celebrava
No temple d'oade toda a creatura
Louva o Feitor diviao, que a feitura
Com seu sagrado saogue restaurava
foi visivelmente caicado sobre aquelle de Petrar-
cba, o que fez attribuii-o unicamente a espirito de
imita^ao, a fanatismo petrarchiano. Mas o visccmde
de Juromenha deu d estampa outro soneto de Ga<
mSeSy que desfaz qualquer apprehensao:
Totlat as almas trlstes se mostravam
Pela piedade do Feitor Divine,
Onde ante o seu aspecte benino
O divme tribute Ihe pagavam.
Mens sentides entSo livres estavam
Que at^ hi fei centente e seu destine,
Quande uns elhes de que eu nSe era dine
A furto da razSe me salteavam.
A nova vista me cegeu de tede,
Nasceu de descostume a extranheza
Da suave e angelica presen^a.
Para remediar-me nSe ha hi mode.
Oh! per que fez a humana natureza
Entre OS nascides tanta differenfaf
NINHO DE GUINCHO 33
Diz a ienda que foi na egreja das Chagas que
Luiz de Camoes viu pela primeira vez a dama que
tanto veia a amar. Eu, segundo uma opiniao Jd an-
tiga, pendo a crgr que fosse em Coimbra, onde, dil-o
o propno poeia, cas suas maguas para nunca aca-
bar se come^aram*
Camoes tern, na sua biographia amorosa, muitos
pontos de contacto com Petrarcha. Qualquer dos
dois poetas resume toda a sua felicidade n'um so-
nho: beato in sogno. Nenhum d'elles pode possuir
a mulher amada, e ambos Ihe sobreviveram. Mas
Camoes, n'um s6 soneto, Alma minha gentil que te
parlisle, i muito superior em lucrimavel s iudade a
PciPorcha nos varios sonetos que compoz chorando
a mo le de Laura. Todo esse soneto, que i a pri-
meira cxplosao da angustia, vale mais, pela sua do-
^ura eiherea, que a longa ecloga escripta A morte
dc D. Catharina de Athayde. Somente o lusitano,
mcdindo se amorosamente com Petrarcha, acha
que a sua dama sobrepujava em belleza a do ita-
liano:
E que toda a toscana poesia
Que mais Phebo rebtaura,
Em BeacnZ) ncm Laura nunca via.
Camoes, o Trinca fortes, o Diabo, abatido aos
pds do Nathercia — como Hercules aos pes de Om-
phalc — nao se nos afigura hoje, por^m, tao piegas
como Petrarcha. E um guerreiro (\ue a«\^^ ^ o^^
c])ora. Mas Petrarcha va\e-s(i vcvlYwcvoio%^tcv^'^\fc ^^
34 COLLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA
recursosinhos capciosos, faz a Laura o seu presen-
tinho de trufas, gaba-lhe o signo do Touro,
Quando 1 pianeta che Histiague I'ore
Ad albergar col Tauro si ritorna
e a bella Laura, sempre desentendida, parece di-
zer-lhe n'um silencio honesto: «Marra, bravo cora-
fSoy contra a muralha da minha honra: nao a aba-
lards. i»
O Commendador do auto dc Antonio Prestes ti-
nha razao.
1889 — Fevereiro.
V
CHA PORTUGUEZ
Strozzi cantou cT chocolate, Massieu o caftf. Nao
me consta que algum poeta tenha cantado o chd,
e todavia ha bons duzentos annos que a Europa se
habituou a tomalo, guindandoo ds honras de um
costume elegante.
Foi ao que parece o padre Matheus Ricci, jesuita,
missionario na China, quem pela primeira vez o in-
dicou i Europa em iSgo. No seculo seguinte, ahi
por 1610, OS hoUandezes introiuziram o cha na
Europa, e a importa^ao cresceu rapidamente, a
ponto que em i665 era quasi geral o uso do chd.
Subsiste uma phrase iniicativa de que tomar chd
foi desde logo um titulo de boa sociedade. De uma
pessoa grosseira costuma dizer-se : Nao tomou chd
em pequeno. E nao i porque o ch4 fosse recommen-
dado como provcitoso para a saude das creancjas.
Pelo contrario, o dr. Francisco da Fonseca Hen-
riques, medico de el rei D, Joao V , ^cci^^Oisx^i. ^-j^^
sua Ancora Medicinal que &e xvao d^ Ocv^ ^^^^^ ^^nr--
36 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
ninos, por ser bebida quente e dessecante, contra-
ria ao desenvolvimento do corpo.
A rasao da phrase estd p-Ms, certatncntc, em ter
sido o uso do chd adoptado pelas classes superio-
res da sociedadc, gcneralisando-se depois por espi-
rito de imita(;ao. Em Inglaterra foram dois lords,
Arlington c Ossory, que o introduziram, sendo en-
tao carissimo Ainda hoje ha na Inglaterra, e por
copia n'outros paizes, incluindo Portugal, o elegante
did das cinco horas.
Assim como era de fina gentileza ofFerecer a ou-
trem uma chavena de chd, o negal-a representava
uma sovinaria grosseira.
O bispo do Grao-Pard e«?crevia para Lisboa a
uma freira, D. Antonia Xavier, que se Ihe queixdra
de duas madres que Ihe nao ofTereciam do seu ch4:
((Estimarei que esteja melhor de saude para que
nao necessite do chd das amigas; quern nega uma
chicara de agua quente 6 capaz de negar um pu-
caro de agua fria, e tambem tern cara para negar
uma diviJa- o ccrto € que ha creaturas tao indiges-
tas, que todo o chd e pouco para ellas.»
Dar mau chd era talvez um pouco mais ridiculo
do que o nao dar. Tolentino diz na conhecida quin-
tilha :
Em bule chamido inglez,
Que )A para pouco serve,
Duas folhas hn^a ou trez
Do can^ado chd que ferve
Com esta a setima vez.
E o Braz Carril, da AssembI4a de Gar^ao, ia ar-
ranjar dinheiro a casa do diabo para tvao dd^Lat dt
NINHO DE GUINCHO 87
dar ds visitas sequilhos e chd condignos da prosa-
pia de sua csposa a ex."** D. Urraca Azevia.
Hoje o uso do chd firmou-se em todos os paizes
da Europa, bcbem-n'o os ricos e os pobrcs, os saos
e OS doentes, os adaltos e as crean^jas. Pcior ou
melhor, entende-se. Nao estd jd divinisado peias
lendas que corriam a seu respeito quando come^ou
a ser importado. Dizia-se entao que Darma, filho
de um rei das Indias, havendo adquindo o habito
de viver solitario, passava as noites meditando no
seu jardim. Gcrta noite, porem, entrou com elle
um somno teimoso, e o principe, desesperado com
essa exigencia animal, arrancou as palpebras, arre-
messou-as i terra, onde ellas crearam raizes e pro-
duziram a planta que dd o chd. Hoje jd nao correm
esta e quejandas lendas, filhas da phantasia orien-
tal ; mas, em compensa^ao, toda a gente tira das
pequeninas e tcnras folhas do theh dos chinczes e
do tsiaa dos japonezes, d'onde provavelmente veiu
6 nosso vocabulo chd^ todo o partido possivel —
praticamente.
Diz-se que i bom o chd para curar as nevroses
dos olhos ; sabe-se que e excellente para tirar no-
doas. Ha golla de casaca que tern bebido mais chd
talvez do que o dono da casaca. E e de bom con-
selho tomal-o quando se estd indisposto, sendo jd
um habito inveterado bebelo sempre, esteja-se in-
disposto ou nao.
Ninguem ha de dizer o trabalho que dao a co-
Iheita e o preparo da folha do chd. Em trez opera-
^oes distinctas, qua! d'ellas mais laborvo^^.^ %^ ^^\^
divjdir esse trabalho. Frei Leatvdto Ao ^^^^^^x:^^'^^^^^
38 COLLEC^S^O ANTONIO MARIA PEREIRA
iilustre professor brazileiro, licenciado em philoso-
phia peia Universidade de Coimbra, escreveu utna
interessante memoria sobre o assumpto, c 6 de
vSr o complicado processo que tem de seguir-se
desde que se colhem os rebentos da planta at^ que,
depois das folhas escaidadas, csmagadas, enroladas,
torradas, peneiradas, se chega d ultima torrefacflo,
que e a terceira operagao por que o chd tcm de
passar antes de ir corner mundo.
Sempre quero dizer ao leitor o motivo que tivc
para me lembrar hoje do chd.,, Eu devia ter co-
megado por isto. Nenhum assumpto quadra me-
Ihor a um jornal que tem estado sempre na brecha
a defender os interesses da instrucgao. do commer-
cio e da industria. Foram as conferencias ultima-
mente realisadas pelo sr. Jose Julio Rodrigues, no
theatro de S Carlos, que chamaram a minha atten.
cao para o chd dos Azores. Cha dos Azores I ez-
clamard com extranheza o leitor,
Tem razao para extranhar, porque e sestro por-
tuguez despresar as riquezas que temos de portas
a dentro. Pois o cha dos A(;6res 6 uma industria
creada, desenvolvida nao.
Foi em 1878, que na ilha de S. Miguel se fize-
ram os primeiros ensaios da manipula^ao do chd.
A sociedade promotora da agricultura michaelense
mandou buscar dois chinezes, Lau-a-Pan, mestre
manipulador; e Lau-a Teng, intreprete e ajudante,
para procederem i fabrica^ao, que uma jd abun-
dante cultura permittia.
No dia 14 de mar^ d'esse anno colhiam-se as
primeiras folhas nas propriedades do sr. 5os6 do
NINHO DE GUINCHO ^9
Canto, e entravam em exercicio os dois manipula-
dores chinezes, que a principio pretenderam guar-
dar certo mysterio sobre os processos da manipu-
la^ao.
Foi nomeado um fiscal dos chinezes, para que
pudesse ir apossando se dos segredos do fabrico*
Recaiu a escolha no sr. Raphael de Almeida, que^
por uma singular coincidencia, e hoje coUaborador
d*este jornal, e residente cm Lisboa.
Os chinezes, sempre disfar^ados, procuravana
desorientar a pessoa que fora encarregada de vi«
gial-os. Contradiziamse a cada momento nas ex-
plicagoes que davam. Era preciso recorrer a meios
imagmosos para arrancar-lhes a verdade, e lembrou
um. Os dois fumavam opio, e emquanto fumavam,
taziam inconscientemente revela96es importances.
Sonhava um com o dinheiro que tinha ganho e es-
condido a bom recado. Outro falava dos assumptos
relativos i sua profissao, contava minudencias do
fabrico, ria se talvez dos michaelenses que queriam
arrancar Ihe o segredo da mais perfeita manipula^ao.
Dizia o primeiro:
— Com o meu dinheiro i que ninguem i capaz
de dar. Tenho-o bem escondido debaixo d'aquella
area maior que estd ao canto da casa. Eh! ehl
quando me for d'aqui irei rico, e os de S. Miguel
ficarao sem saber como i que se prepara o melhor
chd.
E o segundo, como que ouvindo vagamente o
outro na embriaguez do opio, completava-lhe o pen-
samento :
— Eu explicolhes tudo ao conxtmo^ d^fe 1x1^^^^ 05^^
4^ COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
elles, em n6s indo embora, nao ficarao a ver chd,
mas unicamente navies! Tao tolo seria eu que Ihes
fosse revelar urn segredo da nossa ra(;a, que cons-
titue uma das principaes riquezas do Celeste Impe-
lio ! Esperae por isso, que tendes que esperar I
O sr. Raphael d* Almeida ouvia-os, e no dia se-
guinte dizia ao primeiro :
— Lau a Teng, toma conta no teu dinheiro,
que tens escondido debalxo da area maior, que
estd ao canto da casa. Se t'o descobrem, podem
roubar-t'o, e tu deixards de rir para ter muito que
chorar. Sou teu amigo, e aviso te, impondo-te o
dever de tambem seres meu amigo
Lau-a-Teng arregalava os olhos, ficava surprehen-
dido, attonito.
Voltando-se para o outro dizia o sr. Raphael de
Almeida :
— Mestre Lau-a-Pan, tu 6 que sabes fazer o me-
Ihor cha. Aqui o Lau-a-Teng nao percebe da missa
a metade. Ora tu foste contratado para ensinar
tudo o que sabes, mas procuras enganar-nos, fal-
tando d tua palavra e ao contrato que fizeste co.n-
nosco. Toma cuidado, mestre Laua-Pan, que tarn-
bem nos A(;ores ha justi^a, e tu estds muito longe
do Celeste Impeno, de modo que o Filho do Sol
nao te poderd valer.
Lau a Pan nao ficava menos assombrado do que
Lau-a-Teng.
— Este homem, diziam elies cochichando um com
o outro e referindo-se ao sr. Almeida, tem poder
aobrenatural : adivinha tudo I E' preciso respeital-o^
e obedecer-Jhe,
NINHO DE GUINCHO 4I
Foi assim, por este processo imaginoso, que a
perfidia dos dois chinas pdde ser combatida e ven-
cida.
Na noite de 22 de novembro servia-sc no Club
Michalense chd a^oriano, sem que os socios esti-
vessem prevenidos do caso. Nenhum reclamou,
porque nao havia motivo para reclamar. O chd de
S. Miguel 6 excellente, foi analysado em Pariz pelo
profjssor Schutzenberg, do Gollegio de Franca. A
analyse dera o seguinte resultado :
Cellulose.
Resina, insoluveis, 64,3.
Alumina.
Materia gordurosa.
Tcina 4,2.
Tanino 1,1, soluveis 36,8.
Materia gomosa 3o,5.
Ora acontece que a maior parte do cha do com-
mercio nao contem mais de 2 a 3 por cento de
teiia, que e o principio activo do chd, ao passo que
o de S. Miguel possue 4.2.
Urn illustre par do reino a^oriano, que assistiu
As conferencias do sr. Jose Julio Rodrigues, quiz
que eu provasse o chd preto de S. Miguel. Fiquei
encantado, nunca tao bom o tinha bebido. O chd
verde i Ihe inferior, talvez porque Lau-a-Pan era
menos perito em manipulal-o.
Pensei entao no abandono a que n6s condemna-
mos as industrias que podiam dar a Portugal uma
grande prosperidade. Eu pro^puo tvmwc^ XNxicva. ^w-
42 COLLECfAo ANTONIO MARIA PEREIRA
vido falar do chd dos A9ores, e, todavia, quantas
vezes o haveria tornado cuidando que estava be*
bendo chd da China I E' que o chd preto de S. Mi-
guel i incomparavcimente mais barato, e comtudo
p6de bem passar por chinez. Assim succede tain-
bem com as laranjas de Setubai, que, no pregao de
qucm as vende, sao sempre da China.
Dizia-me outro dia o sr. Jos^ Julio Rodrigues a
respeito do chd:
— Ha uma maneira facil de converter o chd n'unaa
bebida deliciosissima. E' fazel-o com agua distilladai
pondo no fun do de uma chavena trez ou quatro fo-
Ihinhas e deixando-as abrir depois com a agua dis*
tillada, tapando a chavena.
Experimentc o leitor, e verd como o chd real-
mente se transforma adquirindo urn sabor que ja«
mais Ihe reconhecemos.
Ahi fica, em breves trac^os, a historia do chd dos
Azores.
1891— Julho.
VI
A CRUZ DE BERNY
(carta AO VELHO ROMANTICO DOM GASTAO)
Entre os livros que maior scnsa^ao produziram
n'essa ^poca, ]A longinqua, em que o romantismo
litterario se traduzia n'uma forte corrente social,
n'uma especie de dictadura psychologica a que
todas as almas obedeciam, nao com repugnan-
cia, mas com essa fanatica exaltacao que victtma os
martyres de qualquer seita, os fieis de qualquer
egreja, a Cru:{ de Berny^ romance escripto por qua-
tro das primeiras celebridades francezas, Madame
de Girardin, Theophilo Gautier, Mdry e Julio San-
deau, obtevc um ruidoso triumpho, longamente re-
percutido n*uma lenta resonancia de applausos.
Em verdade, esse estranho livro, collaborado por
uma pleiade de espiritos febriimente romanticoS|
cheios-de imagina^ao, opulentos d'estylo, prodigos
de vibra(;ao e colorido, nao era senao a addi^ao re-
sultante da riqueza intellectual de cada um dos seus
collaboradores, o conjuncto pV\3Ltaa^X\co ^'^ of^ax^^
44 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
sonhos extravagantes que se encontraram girando
sobre um mesmo pensamcnto, como outras tantas
rodas volteando vcrtiginosamente sobre um mesmo
eixo.
Tudo e inesperado, incerto, caprichoso n'essa fa-
mosa novella, a comegar pelo tiiulo — Crw? de Ber»
ny — que o enredo nao justifica e que o leitor,
chegando ao fim do volume, nao sabc como expli-
car.
Este titulo, tao imaginosamante procurado, re-
salta como sendo a primeira excentricidade do livro.
Quando o gosto pelo Sport invadiu a Franca,
copiado dos inglezes, um dos arrabaldes de Pariz,
chamado Cro/AT de Bent/y foi o local escolhido para o
steeple-chase^ que desde logo se tornou o diverti-
mento elegante mais em voga.
Foi n'essa occasiao que Madame Girardin, Gau-
tier, Mery e Sandeau se propuzeram realisar uma
especie de course liittvanaydQ steeple-chase romanti-
co, galopando intellectualcnente no hypodromo de
Berny, saltando barreiras, vencendo cbstaculos, lar-
gando rddeas a imagina(;ao, como a um cavallo fo-
goso, n'uma vasta pista accidentada.
Tal a inesperada razao do titulo, razao que nin-
guem 6 capaz de descobrir no romance, e que apenas
muito vagamente, como se fosse um enygma, pode-
vi suspeitar-sen'esta phrase final: v(Todosn6sfizemos
uma course desesperada para attingir a felicidade !
S6 um chegou — mortoI>
Como quatro jockeis muito destros e firmes (in-
cluindo Madame Girardin que amava o travesti^
pois que no mundo das lettras era conhecida por
NJNHO DE GUINCHO 48
visconde de Launa/J, os auctores da Cru:{ dc Ber-
ny guiaram galhardamente o corcel da sua phanta-
sia, fazendo prodigios de imagina^ao, armanJo ao
piitoresco e ao imprevisto, anitnando-se mutua e
lealmente na corrida com o griio enthusiasiico que
symbolisava a divisa de cada um: Mery, Pda India!
madame Girardin, Pcla Mulher! Gautier, Por Cons-
tant niopla! Sdndeau, 'Pelo amor!
Se acompanhardcs o infatigavel siecple-cliase
dos quatro, vereis que, effectivamente, atraves d'es-
sas trezentas paginas eri(;adas de obstaculos e bar-
reiras, Mery sonha com a India, queo encantou toda
a vida, madame Girardin glorifica a mulher na ele-
va(;ao do talento fcmin.no, Gauiier t o polychromo
proJigioso que descrevcu Constantinopla, e San-
deau poe mais uma vez a sua imagina^ao aventu-
rosa ao serviqo do amor.
Todos elles, histeando o scu motto, correm ao
acaso para um desfecho a sensaiiony mas todos el-
les giram como n'um can^uuself cm torno do mcs-
mo eixo, a mulher romaniica, mtelligente e ca-
prichosa, illustrada e insubmissa, que no mundo
das lettras se chamava, por exemplo, George Sand,
e no mundo da phaniasia tomava diffcrentes nomcs
como a heroina do romance, agora Irdne de Cha-
teaudun, a rica herdeira, logo Louise Gudrin, a
operaria, sendo ali^s a mesma pessoa.
O que 6, no fundo, este estranho romance ?
Uma mulher. A mulher do romantismo, cntcnda se,
um feixe de nervos aquecidos por um vulcao, a ca-
becja, e guiados por uma estrella, o amor. Ho\e. o%
Goncourts, Zola. Daudet, Hu^srcva^Yv^^ l^^w^^'^'^'^'^^
46 COLLECfAO ANTONIO MARIA PERBIRA
chamar-lhe-iam uma nevrotica, uma hysterica, uma
doente. N'aqaelle tcnpo diziase simplesmente a —
mulher — porque toda a mulher era assim.
Glorificada pela edade-media na castella que os
trovadores c os cavalleiros cekbravam sacrifican-
do se atd d loucura, a mulher tcvi a vertigcm da
sua grandeza e, como era natural, arrastou comsi-
go OS homens. Foi o romantisrao isso. Tudo era
pela mulher n'esse tempo, como hoje tudo 6 pelo
dinheiro. . . ate a propria mulher. Ao romantismo
succedeu o capitalismo. Sonhava-se entao com
uma aventura, como hoje se sonha com um syndi-
cato.
A heroina da Cr^oix de Berny^ amada pelo prin-
cipe de Monbert (Mdry), nao acha n'esse amor ele-
gantemente aristocratico a realisa^ao do seu ideal
romaniico. Precisa correr os perigos de uma pai-
xao cheia de mysterios e aventuras. O que Ihe tenta
a phantasia nao e o amor calmo de um principe^
que a ama como quem e, mas a resolu?ao de um
enygma, que avista da janella da sua antiga mansarda
de Pariz, onde habitou emquanto foi pobre. O que ella
ama nao e precisamente um homem, mas uma luz^
sim, uma luz, que todas as noites, quando vivia na
miseria, via brilhar n*uma trapeira visinha. Ora
essa luz allumiavao quarto de um aventuroso rapaz^
um D. Quixote parisiense, que, entre muitas heroi-
cidades, praticdra a de se reduzir voluntariamente a
pobreza para valer d desgra^a de um amigo. E' o
conde de Villiers, isto d, Julio Sandeau. Ambos po-
bres^ ella e elle, essa luz, para ambos mysteriosa^
^ o trago de uniSo que prende as sua^ a\mas.
NINHO DE GUINCHO 47
Fugindo ao amor do principe, como a uma pai-
sagcm que i forga de ser serena se torna monoto-
na, Irdne de Chateaudun disfarqa-se em operaria,
interna-se na provincia, e ahi encontra um terceiro
amor em Edgard de Meilhan (Gautier), que, louca-
mente apaixonado, chega a abandonar o seu outVora
tranquillo castello de familia.
Acontece, pordm, que sao amigos os trez perso-
nagens masculinos do romance e que uns aos ou-
tros contam as peripecias da sua paixao pela mes-
ma mulher, que com nomes suppostos os deso-
rienta- E' finalmente o conde de Villiers, a qilem o
amigo pagou tudo o que Ihe devia, que consegue
desposal a, mas o principe de Monbert e Edgard
de Meilhan, vindo a reconhecer a identidade de
Irdne de Chateaudun, julgam-se ambos airaigoados
pelo conde de Villiers, desafiam-n'o, e Edgard de
Meilhan mata-o em duello. Irene, fulminada pela
morte do seu noivo, morre de desgosto.
Tal 6, muito em esbo^o, o enredo d'esta novella
cheia de imagina^ao e de imprevisto, as vezes for-
gadamente romanesca, em que as maiores excen-
tricidades se acumulam e baralham, chegando ma-
dame Emile de Girardin a vestir phantasticamente
de turco Edgard Meilhan, certamente para lison-
gear Gautieri que encarnava aquelle personagem,
c que, como se sabe, adorava Constantinopla.
E! & India, sua predilecta, que Mery vae buscar
muitas vezes, n'este romance, como em tantos ou-
tros, comparacoes brilhantes de pittoresco, como
quando descreve o ciume dos tigc^^ tvo^ ^^tw^c^^'Sk.
Julio Sandcau foi dos quatro o c\u^ trifct^o's. c<^^-
48 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PERElRA
borou, mas, em compensa^ao, quao vivo e imagi-
noso e todo o IV capitulo escripto por ellc; quae
palpitante de humorismo o quadro em que salva de
urn incendio lady Penock, uma figura secundaria^
mas comicamente acceiituada-, quao dramatica a si-
tua(;ao do sacnficio a que secondemnouo conde de
Villic's em proveito do seu amigo Frederico !
Madame Emile dc Girardin vence triumphalmen-
te a grande responsabilidade do seu papel de pro-
togonista E'ella que esta sempre em scena e e ella
que, para assslm dizer, nortea a coUaboracjao dos
outros, dando Ihcs a deixa, como se diz no theatre,
proporcionando Ihes o motivo qee dies a bel-prazer
variarao nos capitulos seguintes.
E por mais caprichosas e peregrinas que sejam
as variacoes de Gautier, de Mery e de Sandeau^
ella, sempre com a mesma firmeza de pulso, apa-
nha no ar as espheras de crystal com que elles sc
entretiveram a fazer jogos malabares.
Ha varias traduccjoes portuguezas da Dama das
camelias, estd traduzida, emedi^ao de luxo, a Vtda
de urn rapai pobre, nao posso explicar portanto o
facto de nao ter sido nunca vertida para a nossa
lingua a Cru\ de Bern/, que se pode considerar a
torre Eiffel do romantismo, e que daria occasiao a
que quatro escriptores portuguezes se medissem em
duello litterario com as sombras gloriosas de outros
tamos escriptores francezes. Uma tal traduccaose-
ria duplamente interessante.
Meu caro Dom Gastao, ia a dizer meu caro...
(o seu nome, o seu verdadeiro nome) foi por con-
seJJio sea que eu Ji a Crui de jBerny'^^^o\?»^m^\ia
NINHO DE GUINQHO ' 49
honra que eu escrcvo csta carta e escreverei por
Tentura outras, procurando sempre urn assumpto
nas recorda^Ses saudosas do romantismo, de que
Voci i ainda hoje um representante impenitente.
iSgi-^Setembro.
vu
ANDAR A FLAINO
(Carta a Candido de Figueiredo)
Meu caro Candido de Figueiredo :
Reli agora com muito praser, e algum aproveita-
Oiento, OS seus anigos sobre lingua portugueza,
coordenados em livpo e em s^gunda edi^ao.
Voce sabe que eu me dou i leitura d'estas coisas,
a que muitos chamam desdenhosamente bagatellaSj
e que o faqo desde o tempo em que Camillo Cas-
tello Branco me emprestava os seus classicos, para
que OS eu estudasse.
O seu livro agradou-me principalmentecomopro-
Icsio contra esta onda, sempre crescente, de inno-
tadores estramboticos, galliciparlas epilepticos, que^
principalmente nos ultimos annos, teem posto a po-
bre lingua portug^eza pelas ruas da amargura. An-
da de rastos a pobre lingua, a pontap^s de mau sen-
so e peior educac^ao litteraria. Heldsl (como agora
)& se escreve d franceza) que miseria e que estragol
NJNHO DE GUINCHO 5l
Eu, meu caro Candido, sou, pelo que toca a lin-
gua portugueza, e outras coisas egualmente portu-
guczas, urn conservador moderado.
Explicarei.
" Acho que a lingua deve cncostar se tanto quanto
possivi 1 d auctoridade da sua origem, e conservir
OS seus bras5es de famjlia, como qualquer homem,
nno seiido engeitado, conserva os appellidos de seus
paes.
Mas nao sou urn intolerante em face da natural
e^oluqao de todos os organismos vivos Uma linsua
cstd sujeita a modifica<;6es que o tempo acarreta
inev'tavelmenre, porque o t:?mpo traz factos novos,
de qualquer ordem que sejam^ a que necessarian
merte hao de corresponder palavras novas.
D'ellas, umas sao nacionalisadas pelo uzo, e ate
pela necessidade de ad^p^ao, visto nao possuirmos
termo equivalente. Outras, sao auctorisadas pela
marca da fabrica com que nasceram, como alguns
neologismos inventados por Castilho e Camillo.
Nao pretendo que se escreva hoje como escre-
via frei Luiz de Soiisn, mas nao consinto que se
enxote brutalmente frei Luiz de Sousa, pelo facto
d'elle ter sabido e escripto a sua lingua a primor.
E* certo que nenhum de nos anda agora vestido
de casaca, calj;ao e rabicho como n'outro tempo,
mas d'lihi ate abandonarmos o mais opulento recheio
da n>ssa lingua para cosinharmos uma indigesta mi-
xordia de barbarismos acirrantes, vae uma grande
difFeren<;a.
Pols o que se vg 6 isto, a mixordia ncvatvl^v^-
lada com uma extrangdrite p^tuVaxvx^^ o^^ c^^^
52 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
.... ..■■»•
de escarros e salpica de latna a lingua portugueza.
Pelo que respeita i syntaxe, que 6 o principal
ponto de vista do seu excellente livro, o que ahi se
vSy bem claramente visto, e que se faz gala de des-
presar uma coisa que se tern aperfei^oado $ucces-
sivamente desde o tempo de Femao de Oliveira, e
que por isso ]& i antiga : a grammatica portugueza.
Nao se trata de saber se tal locu<;ao i conforme
ao genio da lingua ou pelo menos & razao, isto 6^
se pelo menos faz sentido, logicamente; nao se tra-
ta de saber como em identidade de circumstancias
OS bons mestres resolveram o caso e cortaram a
difficuldade; finalmente, nao se investiga se no the-
souro escripto dos diccionarios ou no thesouro oral
do povo seria possivel encontrar uma locu^So na-
cional equivalente ao estrangeirismo que se filou
pelo gasnete n*um romance francez.
Mas isto p6de ser escrever; nSo & porim artede
cscrevcr, ou, se quizerem, escrever com arte.
E' encher papel como se enchem chouri^os: en-
sacar phrases dentro de phrases, para escrever c
andar, como os caes de Nillo, que vao andando e
bebendo.
Admitto, e a consciencia me diz que o tenho feilo
algumas vezes, que de longe a longe, por necessi-
dade ou ainda por variedade, se aproveite uma pa«
lavra extranha. E\ dei^e me assim dizer, um effeito
de luz que o pintor parcimoniosamente procura. Mas
recuso em absoluto o systema, que hoje vae sendo
contagioso, de prescindir do portuguez para, com o
fim de ter evidencia ou deacobertaraignorancia, ir
acintosamente de encontro a todas os bou tvonnaa
NINHO DE GUINCHO 53
e a toda a disciplina grammatical da nossa lingua.
Se isto pudesse ser assim, o melhor que tinha-
mos a fazer era fechar a porta e liquidar, porque a
lingua e seguramente um dos elementos constituti-
▼OS da nacionalidade, e entao era certo que estava-
mos a deixar de ser portuguezes.
VocS, meu caro Candido de Figueiredo, protesta
contra a enxurrada, erguendo na mao os melhores
diccionarios e a obra dos mestres egualmente au-
ctorisada como exemplar na pureza do dizer.
Eu quizera tambem que Voce de quando em quan-
do fizesse emergir i luz da publicidade os bons lu-
sitanismosy que andam perdidos na linguagem das
provinciasi onde a nacionalidade dos costumes e
mais intensa e que vantajosamence podem supprir
algumas frandulagens de contrabando.
Ahi vae um exemplo.
A pag. 209 do seu livro, diz, VocS, com indiscuti-
vel verdade, que Jlanear ou flanar nao existe em
portuguez.
E' mais uma inven^ao dos francelhos, que nem
sequer gripham o vocabulo, quando o empregam,
obstando assim a que os incautos e inexperientes
fa^am reparo na procedencia do tercno, e se acau-
telem.
MaS| meu caro amigo, sq Jlanear oujlanar e galli-
cismo encruado, andar a Jlaino ou talvez ^amar
auctorisa-se com o uso da linguagem popular falla*
da na nossa provincia da Extremadura.
A primeira vez que eu ouvi dizer andar a flainOy
justamente na accep^ao do flamr frauctx^ I'^x ^^s^
Sctubal
54 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Tinha-me sentado n'um banco do Passejp dp
Bomfim, ao lado de um velho pescador^ que, co-
mo eu, gosava a viracao suave do fim de uma tar-
de de verao.
Chegou-se ao pd de mim, a pedir me esmola, um
rapasito malirapido, de olhos ladinos e rosio tri-
gueiro. Dei-lhe dez reis— era ainda o tempo do di-
nheiro — e o velho pescador, logo que o rapaz se
aflasiou, dirigiu-me a palavra para commentar pou-
co favoravelmente o meu acto: . .
— Mai empregada esmola! Este rapaz i um va-
dio, que anda a Haino, envergonhandD as barbas do
pae.
. Fez-me impressao o andar a flaino^ que, depois
de interrogado o pescador, achei ser corresp nJenr
te ao flaner francez, isto d, andar de um lado para
outro sem fazer nada
Paguei a dupla li^ao ao pescador, com quanto eilc
so tivesse em vista ensinar-me uma coisa : que era
mais necessitado que o rapaz.
. Propuz-me logo a tarefa de procurar nas obras
de Bocage a locucao — andar a flaino. Com traba.-
Iho e paciencia tudo se consegue- Encontrei-a no
soneto intitulado Fwta cores:
Quando has de consennr, cruel fortune,
Ao mag-o, de olho azul, de cor morena,
O bem de andar a flainoy e d : ir d tuna f
Ora i verdade que Josd Feliciano de Castilho
suspeita que este soneto nao e de Bocage, entre ou-
tras razoes peloemprego daexpressao^j/^iara //jiV
^a, que o douto critico de a\gum modo cttv^uta
NINHO DE GULNCHO bSt
com esta pergunta : serd o anti-bocagiano gallicisoia
flaner?
Mas e justamente por causa do andar a flaim
que eu attribuo a Bocage este soneto. :
E' expressao da sua terra, que elle ouviria muir
tas vezes em pequeno, e que relembraria com a
mesma desvanecida saudade com que o grande Ca?
millo empregava asexpressoes daprovincia de Traz»
os-Montes, nobilitando-as liiterariamente com estn
e quejandas notas: uEu leio muito pelo diccionario
inedito do povo d'aquelias provincias, que sabe a
lingua portugucza como frci Luiz de Sousa (O bem
e o maly cap IIL)
E jd que tornei a fallar em Camillo, recordareia
VocS que elletambem empregou a palavra //a/«a vi-
sivelmente no mesmo sentido de Bocage e do pes-
cador de Setubal :
a Manuel Vieira nao applaudia nem censurava as
bandarrices e o flaino aparalvi'hado do seu collega.>
(Demonio do ouro, i.^ vol., pag. 75.)
Vem istOy e podiam vir ainda outras cousas por
suggestao do seu livro, para dizer quen6s remenda-
mos a lingua portugueza por irritante ignorancia
do que temos de portas a dentro. Lemos s6 fran-
cezes, e nao ouvimos portuguezes, os instruiJos e o
povo, que tambem tem a sua linguagem secular nao
menos nacional por ser humilde.
Em boa hora venha o seu protesto, porque p6dc
servlr de exemplo. Felicito-o, porque elle significa
que Vocfi ama a sua terra, e o que e propriedade
d'ella por direito de inventario. M^% V^^X\tcv^-^\\^
se continuar a querer coavenc^t o^ vav^^ti\\KC^^^\
56 C0LLEG9&0 ANTONIO MARIA PERBIRA
que o sSo por systema, filho de uma commodidade
muito aprasivel d ignorancia. Deixe-os em paz e vi,
andando; aprenda cotno tem feito at6 hoje, paraen-
ttnar depois. Nao veja notnes nemhomens, que^a
minha philosophia; sake por cima <le vaidades e de
conflictos, para honrar a necessidade de trabalhar
com alguma cousa que seja mais prestadia do que
lesponder bem aos que nos querem mal. Olhe que
}A U disse Gil Vicente :
Que vanas conversaciones
No traen ningam provecho.
1891 — ^Novembro.
VIII
IMPARQALIDADE POLITICA
DE SANTO ANTONIO
Os partidos politicos — no tempo cm que a po-
Utica nao era um carranjo* de occasiao, mas um
sacri6cio sincero e per vezes heroico — punham a
sua f^ na protec^ao dos santos mais abalisados em
cotacao milagrosa.
Durante as ardentes pugnas entre constitucionaes
e absolutistas, durante o cerco do Porto, os migue-
listas contavam com o S. Joao do Bomfim, os cma-
lhados» com o S. Joao da Lapa, e os primeiros re-
publicanos portucnses, porque jd n'esse tempo os
havia, como conta Garrett, confiavam no S. Joao
de Cedofeita.
Ora Santo Antonio, santo de casa, o mais popu-
lar entre portuguezes, por ser tambem portuguez,
nao podia deixar de inspirar a devoi^ao dos partidos
militantes. E militantes eram em verdade, porque
pugnavam com as armas na mao. Aquillo entao era
a valer ; hoje 6 a fingir.
Liberaes e miguelistas se a^t^aswiv cotx\ ^^\>x^
58 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
Antonio. Uns e outros o traziam nas palminhas :—
Men Santo Antouinho onde te porei?
Mas o sanio, sendo portuguez, nao queria favo-
recer abertamente uns patricios contra os outros*
Comtudo nao Ihe parecia bem conservarrse absolu-
tamente neutral, indiffcrente, visto que se tratava
de uma questao de familia, e elle era da familia.
Entao, como homem intelligente e illustrado que
tinha sido, resolveu fazer favor para a direita e fa-
vor para a esquerda, de modo que ninguem pudesse
queixar-se de que um sanio portuguez se fizesse
surdo a clamores de portuguezes,
Os realistas contavam com elle. Os fradcs, prin-
cipalmente, invocavam-n'o como um protector par-
cial. Enganavam-se. Santo Antonio nao era por uns
nem por outros. Era por lodos, porque uns c outros
cram portuguezes, e elle tambem.
Na sua cegueira parti Jaria, os miguelistas iam ati
ao ponto de propalar que Santo Antonio algumas
vezes fall^ra em favor d'elles.
Ahi vai um exemplo.
A Chronica Const itucional do Porto^ no seu nu-
mero de i3 de agosto de ibSi, dava noiicia de que
um piquete do bataihao de cacadores 3 encontrara
no sitio da Ramada Aha setc gucrriihas do cxcrcito
do visconde de Mont'Alegre, que andavam rouban-
do OS casaes.
Dos sete aventureiros miguelistas seis foram nior-
tos pclos soldados liberaes ; o setimo fugiu ferido,
Na algibeira de um dos mortos foi encontrada
est a carta.
irAleu Joao. Alembro-te que t\ao t^ tsc^^^a^ do
NINHO DE GUINCHO 5g
que te dissc o sr. Fr. Jose, que batalhasscs em
defcsa de nosso Senhor Jesus Christo, de Sua Mai
Maria Santissima, e do Sr Santo Antonio do Con-
vento, que os herejes malhados querem desterrar
de Portugal. Nao poupes malhado nenhum, porquc
assim o disse o Sr. Santo Antonio A Maria Benta
no dia da Percincia depois da Comnciunhao, e nol-o
contou o Sr. Fr. Jose, que he urn Santinho, e me
tern trazido sempre dinheiro para meu sustento e
das crian^as. Poe sempre os olhos em Deus e
quando saqueares o Porto traze-me algum cordao
de oiro, um xaile e um vestido de seda, nao deixeis
aos malhados uma paiha, porque os herejes nao
podem possuir nada, e pela heresia, tudo fica sendo
da Igreja que escomungao e do Santo Papa, que
deo Bulla para nds ficarmos com o que Ihe tirarmos.
Dcus te ajude como te deseja a tua — adeusinho —
Rosa,>
Mas como fosse tardanJo um milagre decisivo,
abnram-se pouco a pouco os olhos aos miguelistas,
Perceberam que Santo Antonio nao se queria com-
promctter, antes viver bem com todos. Descobriram
a tactica do thaumaturgo, e dizi^m entao, por ironia,
aos malhados que se nao fiassem muito no santo,
porque Ihes nao Valeria tanto que os livrasse de
uma grande sova.
Tambem exemplificarei este caso, soccorrendo-
me ainda A Chronica Constitucional do PortOy de 19 •
de setembro de i832.
Transcrevo textualmente :
iCerta Lesbia portuerise, que sempre foi exaltada
liberal^ mas que, na nossa austnd^^ ^^ ^^€\cfia^
6o COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
(per nao perder tempo) d'um Alferes dc voluntarios
realistas, recebeu ha dias uma carta do seu amante.
O bravo voluDtario, que parece ser uma das boas
columnas do altar e do throno, depois de rasgar
muita ba£ta e de encarecer as penas que tern cor-
tido pela ausencia do seu mats que tudo^ remata
assim: cSou de parecer que por todos os modos
possiveis te evadas da cidade, porque de duas uma:
ou n6s nao podemos entrar no Porto, e n'esse caso
nao fica pedra sobre pedra, pois que a nossa arti-
Iberia ha de fazer o seu dever ; ou entramos depois
d*uma refrega violenta, e entao o saque ^ de fi^ e
OS excessos hao de ser inevitaveis. Em ultimo caso>
pe^o-te que fujas do sitio por onde nos entrarmos,
porque aos primeiros que se nos apresentarem neai
Santo Antonio e capaz de valer.»
((Temos por certo que nenhum dos membros
d'este argumento bicorne chegari a realisar-se.
Vejase entre canto quaes sao as inten^oes de tal
gente. Sangue, roubos, saques, abomina^oes — eis
o que entret^m a imagina^ao da canalha miguelista.
Mas em a tropa e os guerrilhas se convencendo de
que nao pode haver saque, porque as trincheiras
nao se levam assim ds maos lavadas, e de que as
bombas nao produzem estragos nem atemorisam
ninguem, adeus Viscondes, adeus Capitaes-mores,
adeus frades ! ! ! Levam tamanha sova que nem Santo
Antonio d capa\ de Ihes paler. 9
Estavam as coisas n'este pe, quando uma esper-
talhona de Guimaraes, absolutista ate d raiz dos
cabellos, se lembrou.de p8r em cheque Santo An-
tonio obrigandO'O a cmamfesur*st«^
NINHO DE GUINCHO 6l
E* ainda a Chronica Constitucional (de 24 de se-
tembro de i832) que nos vae historiar o caso:
cEis aqui uma anecdota que mostra, a um tempo,
como teem procurado e conseguido illudir os povos;
e quaes sao os sentimentos religtosos que desgra-
^adamente Ihes teem inspirado.
cCorreu em Guimaraes que o exercito miguelista
entrava no Porto no dia 24 de agosto. A mulher
do pregoeiro d'aquella villa (pessima mulher, com
presumpgao de bcata), moradora d Torre dos Caes,
come^ou a dizer em o dia 23 a toda a visinhan^a
cque na sexta feira 24 se ia arrazar e queimar a
cidade do Porto, e todos os malhados : e que elia
havia de ouvir no mesmo dia a missa das almas,
para que ellas ajudassem Caspar Teixeira e sua
divisao a queimar tudo.» — Com effeito na sexta
feira de madrugada, a boa mulher accendou uma
vella a Santo Antonio, e partiu para a missa... »
A beata da Torre dos Caes era esperta, mas
Santo Antonio ainda o foi mais, o que alids nao
admira.
Apertado entre a espada e a parede, Santo An-
tonio desentalou-se habilmente.
Sabem o que acont'eceu ?
Referindo-se d solerte vimaranense, continua a
Chronica :
c...passado pouco tempo vao os visinhos cha-
mal-a para acudir ao fogo em sua casa ; e como all
nSo tocam os sinos a fogo, ardeu-lhe tudo, sem poder
salvar um s6 traste.»
A li^ao foi mestra. A beata queria incendiado
o Porto com o auxilio de Santo K.tvx.o\\\o\^ ^\sv^«i^
62 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
dio lavrou mas foi na sua propria casa. Toma ! Bern
feito I
Pena tern a gente, as vezes, de nao ser santo . • .
para castigar assim.
1895 — Maio.
IX
CHRYSANTHEMOS
O chrysdnthemo, continuando na sua marcha de
triumpho^ foi agora receber as homenagens dos
portuenses, em plena glorifica^ao no Palacio de
Christai.
Parece uma cclebridade que faz a sua tournie^
come Sarah Bernhardt, como Novelli, arrancando
applausos, conquistando ova^6es.
E' um potentado do Oriente, um principe do Ja-
pSo, ds vczes vestido de oiro, como ha Boule d'or^
outras vezes flammejado de purpura, como na Atda^
'Buas bellas variedades; adorado pela Imperairt\
JPrimavera^ biographado por Loti, um academico
-de Franga, i a flor da moda na Europa elegante,
^admirada pelas mulheres, cantada pelos jornaes.
' E, comtudo, este maravilhoso principe do Orien-
te tern em Portugal umas obscuras primas, burgue-
^zaA e modestas, que vivem nos quartos andares em
-Tasbs de barro e que apparecem nos passeios pu-
-blicos misturadas com a charra hortensia^ a flor
:patarata de rodos os arraiaes sa\o\o^.
64 COLLEC9AO ANTONIO MARU PEREIRA
Sao as meninas Despedidas de petao^ que, com o
seu vestidinho de chita barata, e os seus brincos
falsos, nem sequer ousam ir cumprimentar o ma-
gestoso parente, que certamente as nao quereria
rcconhecer.
. Em Lisboa deu-se o caso notavel de estar o
chrysdnthemo do Japao sumptuosamente hospedado
no palacio da Escola Polytechnica, e das meninas
Despedidas de verao^ suas primas, nao passarem do
Jardim do Principe Real, onde eu proprio as vi
n'um canteiro a contarem o numero de trens que
passavam para o beijamao do seu augusto parente.
Ha destinos bem differentes dentro da mesma
arvore genealogica !
Ao passo que as Despedidas de verSo^ anemicaS|
pallidas, rachiticas, parece terem nascido fadadas
para viver n'uma trapeira ou n'um caixote de pinho,
o chrys^nthemo do JapSo, magestoso e forte, beU
lamente colorido, altivo e brilhante, veio ao mundo
para ser admirado e para cingir uma coroa, a coroa
do outomno, como diz Alphonse Karr, o cortezao
das (lores.
. Mas nao pdra decerto aqui a aha predestina<;So
do chrys^nthemo, que, florindo no iim do estio,
como que estava reservado para ser a flor symbo-
lica de todos os amores tardios, que luctam entre o
fogo de uma primavera extincta e o gelo de um in«
vemo proximo.
Aqui estd talvez a razao por que o chrysdnthemo
encontrou t3o rapidamente uma acceita^ao univer*
sal, no Levante e no Ponente, na Asia e na Euro-
pa, prochmandO'SC rival da encantadora rosa, que
NINHO DE GUINCHO 65
i a flor da primavera, a divisa dos novos, o sym-
bolo dos coracSes ricos de seiva e palpitantes de
sangue vigoroso.
Dividindo entre si o impcrio do amor, o chrysdn-
themo e a rosa ficaratn symbolisando toda^a am-
pla historia do cora^ao humano, representando a
profunda psychologia das almas deliciosamente
atormentadas pela tempestade de uma paixao ar-
dente.
A rosa, posta sobreo peilo dos novos, canta urn
hymno de esparartqa, parecc brotar d'erttre cham-
mas, como ife^'flbTis^^ na ifat^ra de Urn vulcao em
actividade.
O.chrysdnthcmo, ^enflorando a boutonnidre dos
velhos, nasce de ,cinzas quentes, que solucjam a doce
melodia da vaga ao expirar amorosa sobre a areic'j
loira.. ,
A rosa perfuma os canlicos dos jovens poetas
com a fina. ess^ncia capitosa, que parece ter sido *
destinada para as estrophes e para os len^os, por
igual rendilhados.
'. Aqui'tenho eu, deante de mim, o livro de um no-
vo, D Livro da minha alma^ de Luiz Guimaraes
Junior; o successor de uma lyra de ouro ; e o aroma
que se. exhala dVssas paginas em flor, cheias de
niocidade e de ft, e o ^roma vivo, penetrante da
rosa, que desabrocha em abril.
^'Do tltaf do Am6r j^-rquito pouco disto..
Vejo na aurora 'qu0 4i»;n|tfbliaa encobrc,
^-^' A doc4„^|da que er\tre os ceus avisto^
Quai Circe linda a cujo olhar roe dobrt.
66 COLLECfAO ANTONIO BIARIA PEREIRA
E € esse o premio que a sorrir coaquisto. . .
Gosto da Infancia, tenho amor ao pobre,
Mas fa((0 ainda este pedido nobre.
Oh I meu sublime e incompr^hendido Christo 1
Se ella soltar esta innocente queixa :
Que eu nao a adoro e que a nSo amo... oh I deiza
Sentir-lhe a voz de beijos sufTocadot,
E nos seus olhos a brilhar incertos
Ltr o que dizem quando estSo abertos,
L€r o que peasam quando estio fechadot.
E' a rosa do amor a florir e a cantar em plena
primavera da vida sobre a batina de uni estudante
de Coimbra, em cuja bocca um ligeiro bu^o de
adolescente nao p6de encobrir sorrisos de felicidade^
nem abafar hymnos de esperan^a.
Mas ainda ha poucas horas eiicontrei, no polo
opposto, o chrysanthemo do outomno, vicejando
sobre os destrogos de uma primavera longtnqua^
bello ainda no colorido da expressao, mas privado
do aroma que perfuma a corolla, o pequenino bou^
dotr da rosa primavcril.
E^ outro poeta que falla, mas triste e sofitario^
carpindose de que ]i vd tao adeanta4a para elle a
estaqao invernosa, que 2Xi as crean^as, as rosas do
jardim da infancia, a mSo da Fatalidade Ihe desfolha»
para deixar apenas de pe o chrysdnthemo, que nas-
ce tarde, na gleba esfriada f>elo gSlo.
E' Bulhao Pato que, no Monte de Caparicai chora
NINHO DE GUJNCHO 67
a perda de uma crean^a querida, que todos os dias
costumava ir cantar debaixo da sua janella uma
mandolinata feita de gorgeios matutinos.
Parece que os versos do poeta passam atravis
de um chrysdnthemo de oiro, como a Boule dCor^
mas frio^ porque o inverno proximo o arrefece, e
desprovido d'esse gasto aroma, que subiu alto, e se
dispersou no azul, talvez perto das estreilas.
Nao vis para a valla escura ;
Vetn para o meu Curasao ;
Vcm, que a*esta sepuhura
De taatos sonhos pasaadoa,
Inda OS mortcs adorados
Vivem da minha paixSo !
Vivem da minha paixao, dos tempos idos em que
a Paquita nascia, vivem em novembro como o
chrysinthemo^ o chrysinthemo, a corda do outomno,
a fldr symbolica dos amores tardios, que luctam
entre o fogo de uma primavera extincta e o gSlo de
um inverno proximo* • .
Quern £ que nao teve no coragao uma rosa, em
abril, na primavera da vida, na esta^ao do sonho
e do idillio^ uma rosa de p^talas carminadas, res*
cendente de inebrlante perfume ?
Mas quem i, que nao encontrou jd tarde, entre
as ruinas do sonho e os destro^os do idillio, um
chrysinthemo outomni^o, o ultimo sorriso da vida
desenhado no corolla de uma fljr retardataria ?
Pierre Loti deu o titulo de Madame Chrysanlkimt
a um dos seus livros.
6S> COLLEC^Aa ANTONIO MARIA PEREIRA
- Madame, estd certo, Nem; podia ser ode outro*
IBodo. :?■:"-:■■• . ; . - '. , .■ .. -• ■• :-^ rr.>'.r^::j
A' rosa cabc, porem, o tratarmnto d^mademm^i
s^//e, porque nenhuma outra flor traduz meUior do
que 'a rosa a alegria, a graga, a frescura^da moci-:
dade* =-^H. v cv-,- -• -■■ .'-""■ ..-i
^Ma(iame Chrysanth^me, sim, porque taoibena
nenhuma butra flor traduz melhor do qaeochry^.
sdnthemo o sonho de uma sdsta de amor, quando
o sol ja vai alto, e as spmbras da noitQ come^am a
descer do cimo de montanhas geladas.
Que OS novos tenham paciencia, e fiquem espe-
rando pelo regress^ da prima vera, porque aos no-
vos nao deve ser penosb esperar/ visto que ainda
ha pouco come^ssr^m a vivef.
Agora, o momento 6 dos velhos, sao elles-que
ccfeb^Sfe^A^ftsta'dd cKrysdhthemo com o'fenthtiSias-
illo di^^^lieini- thegaildo ao quirito acto da^-ViduV'le-o
cdrihljtii^qu^ ifts*"')ictWz6s db^ Seu tempo forittv nffi^ix
Ihef es' encaBtacIorais, ' que ainda vialem uma pva^Sb. 5
Vemahf^ Sieirah Bernhardt, que tambem decetto-
tomard logar no cortejo do chrysanthemo.
Quandb faa antlos ella esteve em Lisboa, mr. Ok-
mdia tinha-lhe offerecido uma rosa, que a grande
actHz^viu ^qUeirtiar-se no calor do seu proprio cora-
^ao. "^ , . ' : .
r 01 que fdi feito d'essa flor secca, ninguem sab'c.
Mr;- Datitiala pai^tiu, nao sei para onde e, ao con—
tfitnft d^s'&hdorinhas errantes, nao voltou.
Sarah Bernhardt chega de novo a Lisboa, na
^j^^Dt^d^chrysdntemos, e serd essa, provavelmente,
a flor capaz de traduzir o que se passa no cora9ao ;
NINHO DE GUINCHO 69
de uma grande artista, onde a paixao resuscita todas
as noites e um polvilho de neve come^a a cair ieve-
mente, annunciando o inverno da vida.
Pois bem. Enfeixemos um bouquet de chrysdn-
themos para depor aos pes de Sarah Bernhardt.
1S95. — Novembro.
CONTRATOS DO COR\GAO
Apesar de estarmos n'um periodo de penitencia,
a dois passos das Endoen^as, o Amor, este eterno
pagSo de todos os paizes, nao perde pitada.
Ainda ha momentos li eu, n'um jornal do Alem-
tejO) a pequenina historia d'uma galanteria amorosa
implantada em Montem6ro-Novo no domingo de
Ramos.
E' a dos contratos do cora^ao. Sabem ?
Vou transcrevei-a, que sao poucas linhas :
FESTA DOS RAMOS
ctA'manbS, na egreja Matrix, realisa-se esta tradicional
festa, dedicada aos novos
cN'este dia, i entrega do ramo bento, sao firmados os cht-
mados contratos do cora<;So.
•Quantas alegrias e felicidades se disfructa-n pelo fiel
cumprimento d'essas escripturas ?.. .
«£ qvantas desillus6es e miserias ? . . .
€tMas. , . sSo costumes.*
NINHO DE GUINCHO 7 1
Naturalmente a troca de ramos estabelece entre
um rapaz e uma rapanga um contrato de escravi-
dao amorosa.
Foi o ramo ofiFerecido e acceito ? Pois bem ! o
contrato fica lavrado : devemo-nos reciproca leaida-
de ; seremos fieis um ao outro — palavras tabellidas
dos contratos de amor.
Mas ds vezes, como acontece em muitos outros
contratos, nao 6 respeitada a escriptura, e o peior
6 que, no amor, o lesado nem sequer pode voltar-se
para a Boa Hora, aggravar para a Rela^ao, recor-
rer para o Su^ reiro.
Se apitar, nao Ihe acudird ninguem, nem a poli-
cia, nem a guarda municipal, ningue n.
Por isso figuraram talvez cs antigos o anr.or n'ura
menino alado.
Comq a crean^a^ tern caprichos indomaveis, e
quandobate as azas nao ha meio de Ihe deitar a mao.
' A este respeito sintome lentado a contar-lhes um
caso tao authentico como o diluvio universal e a
guerra de Troy a.
Era uma vez uma actriz.
Chamava-se Leontina.
Nao seria este o nome que Ihe puzeram na pia
do baptismo. Uma coUega dizia malevolamente que
o verdadeiro nome d*ella era Engracia de Jesus^
segundo resava a certidao de idade que manddra
tirar por vinganqa de qualquer conflictosinho de
bastidores. E Jquando fallava a seu respeito dizia
sempre : a Engracia.
Mas o cartaz, que fallava mais alto^ 9or<\\ie. C^U
lava para todo^^ dizia : Leontina.
72 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Engracia ou Leontina, o que e ccrto e que ella
nascera mais para Leontina do que para Engra-
cia.
. E foi ella mesn>a a primeira a reconhecel-o, por-
que lendo uma vez certo romance em voga, e encon-
trando ahi o nome de Leontina, convenceu-se dc
que esse nome Ihe ficaria tao bem como o ultimo
chapeu que comprdra.
No dia.seguinte, quando se foi contratar com o
empr^sario, poz o chapeu de Pariz na cabe^a e p
nome de Leontina na escriptura.
Ficou encantadora, porque so urn nome bonito
Ihe faltava para o ser completamente.
Leontina lembrava o que quer que fosse de leoa...
Ella tinha, eflfectivamente, alguma coisa de fera:
despedacava coragoes, dilacerava peitos apaixona-
dos, espesinhava illusoes e esperancas.
Mas, tal como a leoa amorosa, as vezes tornava-
se fera mansa, submettia-se, escravisava-se vo-
luntariamente. . . por pouco tempo.
N'essas occasioes deveria chamar-se antes Colum-
bina.
Accusavam-n'a de leviana. Na sua vida de actriz
tinha sempre dois repertorios : o das pe^as e o dos
amantes. E estes dois repertorios estavam appcn-
SOS um ao outro : se mudava de peca, mudava de
amante.
Uma vez appareceu no camarim de Leontina um
rapaz de familia ingleza, que Ihe fora apresentado
e que Ihe offerecera uma rosa de estimaqao.
Era tao correcto e pautado de maneiras, que da*
ria d primeira vista a impressao de ^et ^i\o.
NINHO DE GUINCHO yS
Os seus amigos diziam-n'o um vulcao coberto de
gelo, como os da Islandia.
A rosa foi acceita por Leontina com um sorriso:
estava lavrado o contrato, como os dos rapazcs e
raparigas de Montem6ro Novo quando em domingo
de Rair.os trocam flores na egreja.
E* certo que a actriz apenas sorrira, mas os seus
sorrisos eram rosas. . . caras.
Havia n*esse rapaz, que talvez se chamasse John
como todo o bom inglez, alguma coisa de novidade
para Leontina : o seu caracter primoroso, as suas
maneiras gentis.
Os outros sempre mais ou menos davam pretexto
a que ella se desfizesse d'elles.
Para esses, Leontina encontrava facilmente uma
phrase justificativa :
— O sr. offendeu-me hontem.
Ou entSo :
— • O sr. nao ^ precisamente o homem que eu
desejava ter encontrado.
Equivalia a um mandado de despejo, que alguns
parecia nao quererem comprehender.
Mas Leontina, n'essas occasioes, constituia-se em
tribunal: sentenciava, e o reo, ainda que estivesse
innocente, tinha que submetter-se.
E nao era ella mulher que seincommodasse muito
com as cartas amargas que os despeitados pudes-
sem escrever Ihe depois.
Li as, rasgava-as e costumava dizer comsigo mes-
ma n'um tom de profundo desdem :
— Sempre o mesmo estylo! Hontem, um a^jai-
xonado; hoje, um lacaio.
74 COLLECfAO ANTONIO MARIA PERETRA
John, entrincheirado na sua galanteria serena,
muito britannica, pFcndcra Leontina por mats tempo
do que seria de esperar.
Era uma novidade na sua vida.
Alguns dias assaltara-a, vagamente, a ideia de
mudar de amor, pois que ja tinha mudado de cha-
peu e de pe^a, quatro ou cinco vezes, sem mudar
de amante.
— Mas este homem nao me dd um pretexto ! ex-
clamava Leontina, quando se reconhecia Bella deante
do espelho.
John chegava, offerecia-lhe uma flor, pousava-lhe
um beijo na testa, como se se tratasse de uma pri-
meira entrcvista.
— Como hei de eu dizer a este homem, pensaya
Leontina, que elle j^ alguma vez nao foi bastante
delicado comigo !
Um bello dia, depois de ter comprado um cha-
peu novo, Leontina sentiu mais que nunca a sug*
gestao da novidade.
— E' do chapeu ! disse ella de si para si, descul-
pando-se.
E o chapeu completou a sua obra revolucionaria
convidando-a a mudar de rumo no amor, sem que
ella tivesse comtudo a coragem de despedir official*
mente a Gran-Bretanha.
John veio a sabel-o. Em vez de recorrer a uma
folha de papel, para despedir-se segundo o estylo
dos outros, enviou Ihe uma linda rosa, tao bella
como a primeira que ella acceitdra, e enviou lh*a
com um cartao de visita em que escrevera estas
simples pa/avras :
NINHO DE GUINCHO yS
cTenho a honra, Leomina, de Ihe ofFerecer a mi-
nha ultima rosa »
Quando Leontina a recebcu, em vez dc desfo-
lhal«a, como teria rasgado uma carta, foi pdl-a n*uma
pequenina jarra de Sevres, que Ihe tinham dado
n'uma noite de beneficio.
A rosa emmurcheceu, seccou, mas ficou ali.
Era como um pequenino cadaver mumificado.
Desde essa epoca, Leontina adoptou uma nova
phrase para despedir cada amante que comc(;ava a
aborrecer-lhe:
— Ah I dccididamentc, John foi o homcm mais
amaVel que tenho encontrado em toda a minha vida!
Seguia-se, naturalmente, uma scena de ciume.
E., . rua.
Uma noite, Leontina, que nao entrava na pe^a,
tinha ido para uma frisa.
Rodeiavam-n'a quatro ou cinco dos scus adniira-
dores. Conversavam, riam. Ella parecia triste.
Depois do primeiro acto, John entrdra na pla-
i€b.
Procurou a sua cadeira: ficava proxima i frisa
de Leontina.
John viu a actriz, cumprinrrentou a gravemente,
sentou se, e nunca mais tornou a volver os olhos
para procural a.
Leontina mudou de humor: ria por tudo e por
nada. Mostrava se alegre, jovial, a ponto que um
' dos seus companheiros de frisa Ihe dissera com aze-
dume:
— Estds ho;e nas tuas noitcs de •b6lha», Leoa-
tinal
76 COLLECgAo ANTONIO MAWA PEREIRA
Ella pensou entao:
— De tb61ha» ! Aquelle homem que ali estd nao
seria capaz de me dizer islo,
E Leontina continuou a rir, a rir muito, a rir
sempre, por tudo e por nada.
D'ahi a dois dias John recebeu este bilhete dc
Leontina:
(cEstou muito doente. Pedia-lhe o favor de vir
ver-me. »
John nao se fez esperar e encontrou Leontina
muito aborrecida, sentada n'uma chaise-longue ^ com
trez ou quatro romances postos sobre o gue'ridon^
como se todos quizesse ler e nenhum tivesse aberto
ainda.
— Ah! disse cUe ao vSUa. Folgo de que nao.es-
teja tao doente como decerto imaginou, quando tevc
a bondade de me escrever.
— Doente, talvez nao, talvez sim, Aborrecidai
muito, isso muito. Sabe que mais?
• — Dir-me ha.
— Faz-me falta um bom amigo.
— Pergunte ao seu espelho, Leontina, §e cssa
phrase poder^ ser verdadeira.
— Faz-me falta. . . o senhor.
-Eu!?
— Sim, porque 6 o homem mais amavel que eu
tenho encontrado na minha vida.
— Nao seja lisonjeira, Leontina.
N'este momento entrava uma amiga da actriz^
sua coUega de outro theatro.
John ergueu-se, estendeu a mao a Leontina e
d/sse com uma tranquilUdade glacial;
/- ^ '^^iqii^HO DE GUINCHO 77
— Desejo immensamente ^ continua^ao das suas
mblhonis; mintia b6a Leontfna.
Logo que elle voltou costas, a collega de Leohti-
Da,''£rt>roxitilsmdOfSie*d'elIa, quasi a fallar-lhe ao ou-
victe,. pergunfOU-4he :>
= -^ Entfia ista reatoQ-se?
Leontina suspirou,^ p6gou n'um livro, folheouo'
distraidamente, e disse utn momento depois:
— Para os cora^oes leaes o amor i uma coisa
impertinentemente serial Este homem e tao ama-
vel, que nao ousou recordar-me ainJa esta verda-
de. Mas 6 certo que nao voltarA.
— Tens razao, filha, os homens sao tao grossei-
ros, que se nao podem aturar I O meu fez-me uma
grande scena esta noitc.
— Com razao? perguntou Leontina ironicamente.
— Nao! nuncal
Leontina ergueu-se da chaise-longue ^ estendeu os
bra^os espregui^ando-se, e disse, perfumando a
phrase com um sorriso triste :
— No fim de contas, eu nao tenho motivo para
queixar-me. John bateu as azas: e o que eu tenho
feito muitas vezes.
— Com razao? perguntou a outra pagando-se da
ironia.
— Com razao... desde que John me foi apre-
sentado, porque nenhum homem o pode igualar
ainda em gentileza de maneiras.
Este case i uma ligao, um exemplo, alias confir-
mado pelo jornalista alemtejano, que poz estas pa-
lavras no seu jornalsinho:
«E quantas desiJJusdes e misenas'i « « «
78 COLLECfAo ANTONIO MARU PEREItA
cMas. . . sao costumes. »
E' que o mundo de Montcmdr i como o mundo
de toda a parte.
As flores trocadas na egreja em, domingo de Ra*
mos, sao contratos que muitas vezes se rasgam.
Pois bem ! 6 o que toda a gente tem feito alguma
vez na sua vida : rasgar um contrato.
XI
A BROA
Durante a semana apparcceram em alguns jor*
naes epistolas tendentes a recommendar o uso do
pao de milho como vantajoso para a alimenta^ao
publica.
Aii agora, o sul do reino chamava com certo
desdem ^roeiros aos habitantes do norte do paiz,
especialmente aos do Porto. A familia de Camillo
Castello Branco, oriunda de Villa Real de Traz-os-
Monies, recebeu a alcunha de Brocas posta em
Goimbra a Domingos Correia Botelho, e cbem ou
mai derivado, explicou o grande escriptor, o epithe-
to brocas vem de brda.»
Portanto a designa^ao de broeiros, que pretendia
ser ridicula, galgou para alem do Porto, e alcan^ou
todas as provincias septentrionaes onde o uso do
pSo de milho estd tradicionalmente generalisado.
Mas o que foi que determiciou o alM\x.t^ d<s^% ^^x^-
8o COLLEC9AO ANTONIO MARIA. PEREIRA
ctores d'aquellas epistolas? Toda a gente o sabe.
Foi a insufficiencia do trigo nacional para o consum-
mo publico; o elevado direito de importacao esta-
belccido pelo govcrno sobre o trigo extrangeiro ; e
a exorbitancia do premio do oiro com que este tri-
go tem de sen pago nos paizcs exportadores,
Entao lembrou o recurso ao pao de milho como
salvaterio. E assim como um doente em perigo quer
mudar de travesseiro, para ver se encontra algum
descan(;o no leito, prete^nde-se que o paiz mude de
alimentacao, para nao raorrer de fpme, por nao ter
bastante trigo nacional, nem oiro para pagar a im-
portacao do trigo extrangeiro.
O sul, clamante e apprehensivo, voltase para o
norte do paiz e pede que Ihe acuda com a sua br6a.
Se o alvitreindicado fosse acceito pelos povos do
sul, que nao seria facil de conseguir, teriamos que
a mudan^a de alimentacao acdrretariaufiia trans--
forma^ao nos costumes, nas ideas e disposigoes do*
paiz, porque, segundd o testemunho da sciencia^ a
alimentjacao inffiie nos actos da vida pisychica ^elSi"*
accao directa que exerce nos orgaos essenciacs &
economia animal.
O lisboeta, conhecido no norte do paiz pela desi-
gna?ao ironica de alfacinha, passaria, se o alvitre
pudesse ser adoptado^ a ^^tr'broeiro'cornoo minhd-
to, 6 transmontano e o beirao, e d'ahi Ihe provi-
riam certamente id^as, aptidoes e sentimentos dif-
ferentes d'aquelles que teem ate hoje constituido a
sua differencia^ao com os povos do norte do paiz.
Mas o habito forma uma segunda natureza^, e'
Lisboa, que csti habituada ao ^ao dk tngp^^tiao
NINHO DE GUINCHO 8 1
acceitard facilmente o uso da broa de milho, com
que nao foi educada, a nao ser que Ihe seja impos-
ta, n'um caso extremo, pela for^a da legislacao co-
mo o caldo negro aos hahitantes de Sparta.
E' certo que entre as familias gradas das provin-
cias septentrionaes, o mollete^ pao molle, como \&
chamam ao pao de trigo, \A ganhou terrene, sup-
plantando quasi a br6a^ mas o povo d'essas pro-
vincias continiia a alimentar se de pao de milho, e
so n'um dia de festa se permitte, como gulodice»
cravar o dente no «pao alvo», outra designacao
vulgar do molUte.
Jd no seculo XVI era tao raro o consummo do
pao de trigo no Alto Minho, que o foral dado por
D. Manuel d villa de Mon(;ao nao o considerava
uma fonte de receita para o cofre do concelho; —
por isso de cada fornada de pao bregado (talvez
rala) e de callo (mistura) que se vendesse na pra-
^a, mandava cobrar urn real ; aporque de pam moN
l^te nao pagarao nada.v A base do consummo do
pao era, pois, o milho, e por isso sobre elle incidia
o respectivo imposto de real por cada fornada.
Alimentado pela broa, o homem do povo no norte
do paiz, cavador ou artifice, differe profundamente
nos costumes e sentimentos do maltez ou do ope-
rario das provincias meridionaes.
E' forte, resistente, valoroso, e tao softredor que
nao exige ter broa fresca para a sua alimenta(;ao
quotidiana. Ordisariamente os operarios de cons-
truc^ao, no Porto, voltam de casa na segunda fei-
ra^ de madrugada, e trazem dentro de uni sacco a
brda gue hao de comer durante toda. a ^^vcv^yv^,\^^
82 COLLEC9AO ANTONIO MARIA. PEREIRA
taberna apenas gastam a sardinha assada e o caldo
verde. Nos ultimos dias da semana o pao estd sec-
CO, mas assitn mesmo o comem. E quando reco-
Ihem a casa, no sabbado ao anoiiecer, vao encon-
trar a mulher p'^eparando a nova fornada de que
elles se hao de alimentar na semana seguinte.
Tudo vae bem para o trabalhador do norte em-
qunto o milho nao encarece. Quando este facto se
dd, a fome amea^a-o, e o motim popular nao tar-
da. Assim aconteceu no Porto, ahi por i855, quan-
do a carestia dos cereaes alvorocou o povo, que
largou a cantar em grande algazarra:
Viva D. Pedro V !
Vinho a pataco e milho a pinto !
Que tempos aqueiles!
O povo, ameaqado de perto pela fone, e tern en -
do-a, revoltava-se, mas, na revolta, dava vivas ao
rei. Hoje, o diccionario do povo nao tem palavras
amaveis para exprimir a indigna<;ao e a ironia
E' certo que o trigo, rico em gluten, possue pro-
priedades alimenticias superiores ao milho, mas nao
padece duvida que o trabalhador do norte do paiz,
que s6 do pao de milho se aliment a^ € sddio e ro-
busto, seja pelas condi<;5es da sua propria existen-
cia ou por selec?ao de ra(;a, ao passo que o traba-
lhador do sul, alimentado a trigo, se fizermos ex-
cep^ao do cartaxeiro, que i um typo de robustez e
actividade, Ihe fica muito inferior em faculdades de
trabalho. .
A alimentagao dura e parca enrift^ce o caracter,
NINHO DE GUINCHO 83
torna o homem forte para resistir ds tentacoes dis-
pendiosas. O trabalhador do Douro e do Minho nao
applica as suas economias senao ao ouro, porque
euro e o que ouro vale. Nao compra fundos por-
tuguezes, porque mudam de coiaqao. E' praiico. Se
precisa vender o cordao ou as arrecadas de ouro,
que sao da mulher, apenas perderd o feitio ; o
peso nao varia como as cotacpoes dos fundos. Nao
vai ao theairo, a nao ser de graqa, quando os m-
:{eiros represeniam autos pelo Natal para se diverti-
renn uns aos outros
Que o pao de milho, por isso mesmo que possue
materias gordas, satisfaz plenamente ^s necessida-
des da alimenta(;ao, prova-o A evidencia o povo do
none, que d'elle se nutre, e de pouco mais.
So na doenca 6 que os lavradores e os operarios
d'aquella regiao conciem molUte^ aconselhado pelo
medico, por ser de mais facil digestao. Logo que a
saude volta, volta com ella o regime da broa.
Pode aff'oitamente dizer-se que todos os homens
notavcis das provincias do norte jd hoje mortos ou
velhos, foram educados na alimentaqao da brda,
Passos Manuel, filno de urn lavrador de Bou<;as,
nao comeu na infancia outro pao. E na sua legisla-
^ao ha o que quer que seja de forte e salutar como
o pao de milho, Na litteratura, Camillo, que foi .
educado em Trazos-Montes e viveu no Minho,
Arnaldo Gama, que residiu sempre no Porto, sao
dois exemplares magnificos de que o estylo € o pao
que se come. Camillo, se se Ihe toma o verdadeiro
sabor, nero e o pao francez, nem o pao d^ ^^.^V^'
5as, nem o moJIete naciona\; € o tovcXo di^X^xti^
84 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
aperfeigoado n'uma cosedura habit, e cosido n'um
forno bem quente \ Arnaldo Gama e a broa enco-
deada^ mais dura, mas saborosa e nutritiva.
Herculano, com ser alfacinha, nada e creado cm
Lisboa, parece na rigesa do estylo e na solidez dos
conceitos um escriptor educado a broa Isto tern
explica^ao. Elle viveu alguns annos no Porto, onde
foi bibliothecario, alem de ter comido o pao negro
do CSrco desde i832 a i833.
Se me fornecerem prosa de trez escriptores do
Porto e de trez escriptores de Lisboa, occultando
OS nomes dos auctores, aposto que vou dizer sem
hesita^ao onde 6 que estd o trigo (ainda que o trigo
tenha joio. o que frequentemente acontece por cA)
e onde e que estd o milho, quaes escriptores sao de
Lisboa e quaes do Porto.
Pelo que respeita aos poetas, parece-me poder
asseverar que no Firmamento de Soares de Passes
se reconhece A primeira vista a farinha do milho
que alimentou o poeta. Junqueiro, na satyra poli-
tica, € um broeiro escodeando as institui^Ses para
as mastigar melhor. Nos epigrammas e ironias de
Tolentino ha um <palhinha» de dic^ao s6 compati-
vel com a digestao branda do pao trigo em torra-
das. A satyra do Juvenal lisboeta agrada ao pala-
dar, mas derrete-se como a manteiga. E Garrett?
perguntar-me-hao. Garrett era portuense, e quando
comeu a brda dura no quartel dos Grillos, fez o
Arco de San f Anna; quando digeria o pao alvo de
Lisboa, escreveu as Viagens na minha terra.
Ahi fica a resposta, sem cercear a nenhuma d'es-
tas duas obras o seu valor real.
NINHO DE GUINCHO 85
A fabrica^ao da brda no Porto exige um pessoal
sadio e robusto, alimentado por ella. Sao as cam-
ponezas de Crestuma e Avintes que a padejam,
passando noites inteiras ao calor do forno em cham-
mas ; foram elias mesmas que fizeram a amassa-
dura ; foram ellas, tambem, que conduziram, atra-
ves dos montcs, o milho ao moinho; sao ainda ellas
que remando os seus barcos, com uma esbelta so-
lidez de movimentos, vao levar a brda ao mercado
na cidade.
Em Lisboa, as machinas de moagem farinam o
trigo, que vai ser descarregado a porta do padeiro.
Mas para amassar a farinha e forneal-a, para o tra-
balho mais duro de toda a panifica<;ao, sao chama-
dos OS beiroes, os transmontanos, os minh6tos, ra-
pazes fortes como sovereiros, tao fortes e alegres,
que depois do trabalho se divertem pulando com
uma viola na mao.
Ora OS alvitres propostos parecem-me illusorios,
porque os habitos adquiridos pelo corpo tornam-se
ainda mais tenazes que os do espirito. Seria tao
difficil habituar Lisboa a comer a broa de milho,
como acostumar o Porto a almoqar fava-rica ou
burrie. Succede ate que o minhoto, se durante al-
guns annos deixou de alimentar-se a pao de milho,
ja nao consegue voltar a essa alimentacao. Os bra-
:(tleiros do Minho, que foram creados com a broa,
rejeitam-n'a quando regressam d patria. E' um fa-
cto todos OS dias presenciado n'aquella provincia. O
cpao nosso de cada diaD e nao so a mais urgente
necessidade da alimentacao publica, mas tambem o
mais jnrererado de todos os \\a\i\x.o^.
86 COLLECgiO ANTONIO MARIA PEREIRA
Estou convencido de que pcdindo o «pao nosso
de cada dia* cada um pede o pao que estd habi-
tuado a comer, e nao outro.
1896 — Dezembro.
Meu caro sr. Trindade Coelho: Teve v. ex.* a
amabilidade de me escrever cinco cartas sans voyel-
ley como agora estao fazendo em Franca alguns lit-
teratos engenhosos, com a diflferen^a de que a vo
gal supprimida por v. ex/ era justamente. . . uma
consoante. Refiro-me ds cinco variedades de pao
transmontano, com que me presenteou, e nas quaes
o amilho» era o cereal supprimido. Escuso dizer-
Ihe que me regalou a sua amavel lembran^a, e a
achei muito mais saborosa do que as epistolas sans
voyelle com que o Petit Journal estd engenhosa-
mente provando a existencia de uma litteratura «fim
de seculoD.
Pois, meu presado amigo, quando vi deante de
mim OS cinco specimens de pao transmontano, ho-
nestamente vestidos de burel, como v. ex.* disse
com muita propriedade, entrei a crer que essa sin-
gelesa de toilette e a face morena do pao do Mo-
gadouro haviam for^osamente de crear homens
muito difterentes, no pensar e sentir, dos que se
alimentam com mimoso pao alvo de trigo fino.
Porque a verdade e que ate o pao-trigo de Traz-
os-Montes, solidamente enrolado em carolo, faz uma
dlfferenga enormc do molldie que os nossos buro-
NINHO DE GUINCHO 87
cratas lancham ahi pelas reparti^oes, com recheio
d€ linguiija.
Seinpre os transmontanos tiveranv fama de va-
lentcsy e nao admira. Pao duro, volto A minha, faz
homens fortes e robustos. A popula^ao rustica de
Traz-os Montes € capaz de, gingando um cacete,
varrer uma feira. As damas que ao serao comem
bolo de azeite em vez de bolacha Maria, sao floren-
tes de boas cdres e boleiadas de formas esculptu-
raes. Os escriptores alimentados a pao de. centeio
e car61o de trigo, nao podem ter um estylo desner-
vadoy nem uma linguagem molle. E a prova, meu
presado amigo, estd em v. ex.^ mesmo.
Nao sei se foram os provincianos do norte que
puzeram aos peraltas alambicados de Lisboa a al-
cunha diminutiva de paesinhos. Mas olhe que 6 uma
deiinicao; uma synthese. Quanto is damas alfaci-
nhas, que nao comem ao ch^ b6lo d'azeite nem ao
jantar carolo de trigo, ahi as tem v. ex.* no Chiado
para se desenganar de que florescem menos, no
colorido e no boieio, do que as portuguezas de
Traz-os Montes.
Pelo que rcspeita A arraia-miuda, ao ZePovinhOy
coiro dizemos hoje, olhe 1^ se elle ginga, nas desor-
dens, um cacete. Qual! Mette na manga da ja-
queia uma navalha, com um gesto certeiro puxa-a
ate i palma da mao, segura-a entre os dedos, e
crava-a d falsa fe.
Admiram-se em Lisboa de que os faquistas de
maior polpa sejam uns «fracas figuras». Pudera!
Uma navalha peza pouco. E para dar um golpe nao
i preciso ser valente; basta set cob^idi^.
88 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Os transmontanos, que comem pao de centeio,
OS minhotos, que cotnem pao de railho, ate na maU
querenca sao leaes. Erguem o varapau d luz do
sol, para que se vcja bem, fazem-n'o zenir.na es-
grima, para que todos oicjam, e so depois se jul-
gam auctorisados a desmiolar a cabe^a do adversa-
rio.
E' a for^a, a coragem, a nobresa do d^eljo: aqui
vou eu; defende-te Id.
Um amigo meu, natural de Lisboa, objectou-me
que a minha asser^ao, de que o estylo e o pao que
se come, naufragava no padre Antonio Vieira, que
no escrever parecia creado a pao duro, sendo alids
alfacinha por nascimento.
E' verdade que sim; nrias uma excepgao confirma
a regra. Comecei depois a procurar qualquer outra
excepqao, e nao a enconirei.
Ora o mesmo padre Vieira ligava ao pao tama-
nha importancia, que chegou a d^zer do pulpito
abaixo: eLan^ae os olhos por todo o mundo, e ve-
reis que todo elle se vem a resolver em buscar o
pao para a bocca.» Se para mim o pao e o estylo,
para o grande Vieira era a vida.
dQue faz o lavrador na terra, perguntava elle,
cortando a com o arado, cavando, regando, mon-
dando, semeando? Busca pao- Que faz o soldado
na campanha carregado de ferro, vigiando, pele-
jando, derramando o sangue? Busca pao. Que faz
o navegante no mar, iqando, amainando, sondando,
luctando com as ondas, e com o vento? Busca o
pao.»
E' certo que o padre Amouvo V\raa uasceu em
NINHO DE GUiNCHO 89
Lisboa e se creou a pao alvo, mas nao e menos
certoque andou pela Europa e pelo Brazil comendo
o cpao que o diabo amassou*. Nao pode haver pao
mais duro.
Dos habitantes do Minho, Douro e Beira Alta,
que se alimentam a pao de milho, os que eu co-
nhe<;o melhor sao os do Minho e Douro.
Em pequeno, regalava-me de andar, no estio, por
umas serras fragosas em companhia dos pastores
da minha idade. Durante horas consecutivas co-
miamos um naco de broa e uma cebola crua. Era,
urn manjar! Perdao, eram dois manjares. Os pas-
tores cantavam, nao tristezas a maneira de so-
lau, que, como diz Bernardim Ribeiro, «era o que
nas cousas tristes se acostumavai>, e ainda menos
as melancolias chorosas do Fado, Nao, senhor!
Pendurados sobre rochedos imminentes a cor-
rente t6rva do Douro, lages escorregadias como
Tarpeas, os pastores da minha idade implicavam,
cantando improvisos dicazes, com os marinheiros
dos barcos rabfillos. que do meio do rio, ao com-
passo vigoroso dos remos, Ihes respondiam a ponto,
em genitivo de injuria.
Vida aspera, mas alegre, que se nao parecia
absolutamente nada com a do proletario ou do va-
did de Lisboa, pendido sobre a guitarra, ao fundo
de uma taberna do Bairro Alto ou d'Alfama, a re-
penicar o Fado entre decilitros de Torreano e bu-
chas de pao trigo — com a navalha sempre na algi-
beira, para o que der e vier.
Os poYOs de Traz os-Montes e da Beira Baixa,
que se aJimentam a pao de centdo (,^^no ^tev'Xx^x-
go COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
os-Montes os da Regua e ainda os de Villa-Real
que taqnbem comem pao de milho, o que v. ex.*
explica, e a meu v€r muito bem, por estarem mais
visinhos do Douro) conhe^o-os menos, mas sei Ihes
da fama de valentes, e ahi temos visto em Lisboa,
no parlamento, alguns exemplares de ra^a fina, que
ate falando usam cacete oratorio, e empregem iro-
pos rijos como arrochos.
Nas provincias do sul predomina o thgo, e ve-se
bem. O sul nao faz revolu<;6es; quando muito faz
tumultos. Gomes Freire quiz implantar o constitu-
cionalismo com homens do sul, e trope^ou. . . n'uma
sentenca de morte. Foi do Porto que veio a revo-
lugao liberal, posta em obra. Foi do Minho que veio
a Maria da Fonte A Janeirinha e o «3i de Janei-
ro* tambem vieram do Porto.. E no principio do
seculo, o Junot, que entrou pelo sul, ficou; para
expulsar de vez os francezes foi preciso varrel os Id
de cima, com alma.
No Alemtejo comese pao irigo, comquanio no
disiricto d'Evora, por exempio, tambem se consum-
ma algum pao de centeio. Os alemtejanos, salvo
• algumas regioes sezonaticas, sao robustos e'sadios,
porque a lavoira os fortifica. Mas sao indolentes
para tudo o mais. Luctam frequenies vezes com as
crises agricolas, e chiam pouco. Quando o anno
corre mal, gemem na miseria, mas tao frouxa-
mente, que raras vezes se fazem ouvir em Lis-
boa . . .
Para o duro trabalho das ceifas no Alemtejo e
chamado, em refor^o, o beirao, o ratinhOy que desce
das suas montanbas vestido de sara%oqa^ cheio de
NINHO DE GUINCHO QI
p6 e sol, com a cabala a tiracollo e a coiher de
pau atravessada no chapeu. Vetn ceifar, vem talvez
morrer asphyxiado pelo calor. Diz Fragoso de Si-
queira, nas Memorias economicas da Academia^ que
n^um s6 anno morreram em Elvas 400 ceifoes abra-
zados pelo sol. E' a Beira Alta, ao pao de milho>,
e a Beira Baixa, co pao de centeio>, acudindo, no
trabalho mais violento do anno agricola, ao Alem-
tejoy €o pao de trigo.»
Os algarvios tambem se alimentam a pao de
trigo, em certas regioes importado de Hespanha.
Ora OS algarvios, que elles me perdoem, cantam
muito,. e vae-se-lhes o tempo no cantar. Sao as ci-
garras de Portugal. Estiveram annos e annos a pe-
dir um caminho de ferro, que so muito tarde che-
gou. E elles la se iam resignando com a sua alfar-
r6ba. O norte, mais decidido, bateu o pe, e teve
logo dois caminhos de ferro em vez de um : o do
Minho e o do Douro.
Sao factos, ou antes. . . ^ o pao.
Jd vae longa esta carta, mas nao chega ainda a
ser maior do que a minha gratidao para com v. ex.*
A culpa foi sua, em me dar pSo e conversa. Mas
agora me lembra que ainda esti no fundo do tin-
teiro uma coisa que eu queria dizer a respeito do
bolo de azeite.
Sabe? Fez-me lembrar de uma supersti^ao popu
lar do Douro, que ainda nao vi contada por ne-
nhum dos colleccionadores de folk-lore.
Quando uma crean^a anda desmedrada como se
tivesse visto bruxa, dao-lhe a comer, atraz de uma
porta, um boJo de milho amassado ^ta ^.x€\x^- \Svl-
92 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
se Id que essa crean^a anda ougada^ «aguada]», e
crSse que comendo o tal bob, que sabe tamo a
azeite como a «bolacha» transmontana, comecard a
medrar e a ter boas cores.
Aguados andamos nos todos depois de certa ida-
de. Por isso, quando cd apanhei o bole de azeite,
que V. ex.* me mandou, metti-me atraz de uma
porta, e mas'iguei o.
Pode ser que fa^a bem; mal nao me fez ne-
nhum.
E, quanto ao mais, que Lisboa possa habi-
tuar-se ao milho e ao centeio, sao lerias dos econo-
mistas.
Seria preciso comeqar por mudar o Chiado para
a Serra da Estrella ou do Marao, e o Marao e a
Estrella para o Chiado.
Nao e facil.
De V. ex.*, com a maior considera-
gao litteraria e estima pessoal,
agradecido camarada
Alberto Pimentel.
1896 — Dftzembro.
XII
VINHO NOVO
Notava o Diario de Noticias que a noite de S.
Martinho pass^ra este anno quasi despercebida.
A culpa foi talvez da chuva, porque o vinho
aguado nao presta.
Conta-se o caso de certo borracho que, estando
muito doentCy foi pelo medico "^ssistente intinnado a
que deixasse de beber vinho.
— Isso nSo pode serl respondeu convictamente o
enferaio. Se deixar de beber vinho, morrerei mais
depressa.
— E' o que Ihe parece, porque gosta de o be-
ber.
— Conhe^o-me, doutor. E nao quero tazer a ex-
periencia, porque receio vir a morrer antes de estar
curado . . .
— Mas entao beba menos e com agua.
— Ah I isso pode ser. Mas que sacrificio !
— Resigne-s^y porque a outro doente nao consen-
tiria eu que bebesse nenhum.
— Como assim ? I
— E' que OS medicos precisam uatvi\%vc \itc^ ^^m-
94 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
CO com OS habitos adquiridos, que constituem uma
segunda natureza.
— Eniao, se a medicina 6 uma sciencia amavel,
consinta que eu beba s6 vinho. . . por amabilidade.
— Nem tanto ao mar. . .
— Nao me falle d'agua^ doutor!
— Deixe-se de gracejar, c faga o que Ihe recom-
mendo, se quizer viver.
— Com que entao agua e vinho?
— Seguramente.
— Ah ! doutor ! resignar-me-hei. Mas oihe Id. . .
— Diga.
— Em vez de agua e vinho, eu nao poderia beber
vinho e agua ?
— E' a mesma coisa I
— Nao 6 tal. Dd-se o logar de honra ao vinho,
que vai d frente, e eu devo-lhe essa considera^ao.
— Pois seja.
Quando chegou a hora do jantar, a mulher do
doente levou-lhe vinho com agua.
— O que foi que tu deitaste primeiro no copo ?
— O vinho.
— Ja estou arrependido de ter dito issol
— Por que?
— Porque o vinho ficou no fiindo e a agua € que
estd ao de cima. Foi o que eu senti primeiro na
bocca.
E erguendo o copo, depois ter provado a bebida^
exclama o enfermo sentenciosamente :
— Dizec-se que a uniao faz a for^a ! OIha p*ra
isto !
Depoj's, romando um novo golo :
NJNHO DE GUINCHO qS
— O' mulher, tu dizes As vezes que e uma excel-
lente bebida a agua
— Eu bebo muita.
— E eu acho que nao ha melhor bebida que o
vinho.
— Cada um falla por si.
— Mas a verdade falla mais alto que todos. A
agua 6 boa ? O vinho e bom ? Pols bem I juntar o
vinho com a agua € estragar duas bebidas boas !
Ora assim aconteceu este anno na noite S. Mar-
tmho : o vinho foi estragado pela agua, que era
muita de mais, como diria o Garrett.
Choveu a potes, e nao ha calor de vinho que re-
sista a uma valente carga d'agua.
Mas, na provincia, pouco importou que chovesse.
O temporal nao conseguiu prejudicar a folia de
S. Martinho, e, por U, ainda se conserva a tradi(;ao
de fazer do dia 1 1 de novembro uma especie de
ter^a feira gorda.
Todas as liberdades e satyras sao permittidas
n'esse dia.
E a policia, se a ha, nao tern que dizer nada.
E' o costume da terra.
Ainda de tarde saiem para a rua alguns patus-
cos da localidade, munidos de campainhas, choca-
Ihos e caldeiros, fazendo um barulho infernal.
Enchem-se as janellas de mulheres e creancas
para ver passar a cirmandade de S. Martinho ».
E' uma especie de bando burlesco, que annun-
cia a grande solemnidade consagrada a Baccho.
Percorre o bando todas as ruas da povoa(;ao ba-
tendo a uma ou outra porta.
go COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
— Estd cd o sr. Fulano ?
E' a casa de algum sujeito conhecido por gostar
de boa pinga.
No caso de ser pcssoajJe boa fei<jao, v^m elle
proprio falar ao bando :
— Estou, sim, senhor.
— Pois nos vimos aqui distribuir-ihe a cfira para
a festa.
A fcSra», velas ou cirios, sao palhas de centeio
ou vimes.
Uma troca pegada.
E no acto da entrega da cera o rapazio faz ruido
nos caldeiros, badaleja cpm os chocalhos e as cam-
painhas.
— Pois muito obrigado pela cera e podem contar
que nao deixarei de festejar o nosso grande santo.
Se o sujeito ^ de genio arrebatado, dd cavaco
com a brincadeira.
E entao pode ficar certo de que nao dormira toda
a noite.
Volta e meia o bando passa-lhe A porta, fazendo
uma assuada enorme, capaz de accordar os mortos
no cemiterio.
— O' sr. Fulano, venha receber a cfira !
— Aqui estd o cirio !
— Jd sao horas de come9ar a festa !
— OIhe que os outros «irmaos» estao & espera!
— Tome sentido, que vae sendo tarde !
E bumba ! pancadaria nos caldeiros, repiques de
campainhas, dobres de chocalhos.
De modo que o melhor que o sujeito tern a fazer
J embebedarse logo para nao ouvir a algazarra in-
NINHO DE GUINCHO 97
fernal, que de momento a momento se repete cada
Yez mais atroadora.
Tambem i costume andar distribuindo por portas
as listas para a elei^So dos mesarios, que devem
gerir durante o anno os negocios da irmandade de
S. Martinho.
Em cada lista vem escripto o nome de urn bebe-
dor cbnhecido.
E deixa-selhe a lista em casa.
Quando o sujeito tern gra^a, tira partido da situa-
fSo:
— O que?I Pois inscreveram-me? Nao p6de ser!
Ha Outras pessoas mais qualificadas para esse cargo.
— N6s € que fazemos a elei<;ao.
— Mas se eu sou elegivel, tambem sou eleitor. O
meu voto i a favor de Fulano. . .
E cita um nome, que ds vezes tinha esquecido, e
que 6 efifectivamente o de uma pessoa que nao.
regatea sacrificios a Baccho.
Este anno, segundo dizem de S. Joao da Pes-
queira, eram onze horas da noite e ainda nas ruas
da povoa^So andava o alegre bando tangendo cam-
painhas e chocalhos, repenicando nos caldeiros.
Um amavel correspondente d'ali, mandando no-
ticia do caso i redac^ So do Popular^ commenta-a
com esta considera^ao :
cQuando codos os costumes tradicionaes tendem
a extinguir-se lentamente, pasma-se ao ver o enthu-
siasmo frenetico, a exalta^ao febril com que em
muitas terras do reino, principalmente no norte, se
festeja o S. Martinho ou antes o Deus Baccho^*
Emquanto o rapazio se esfaUa a %\\xat ^^^^
gS COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
ruas, OS felizes que teem pipa em case, tratam de
metterse na adega a tirar a prova do seu vinho
novo.
Os portuguezes antigos diziam : Em dia de S.
Martinho, lume, castanha e vinho.
Que, no fim de contas, o S. Martinho 6 uma festa
agricola para celebrar a «novidade» do anno, e com-
prehende se que nas regioes vinhateiras seja essa
festa mais ruidosa do que nos logares aonde a tradi-
cao pode ter chegado, mas onde a cultura da vinha
e quasi nulla ou insignificante.
No Douro e no Minho ha folia rija.
A «novidade» do anno 6 desflorada no dia de S.
Martinho, principalmenie d noite, em convivio de
amigos e visinhos.
E chovem os commentarios :
— Boa anovidade >!
— De se Ihe tirar o chapeu!
Porque, a respcito de vinho, os lavradores pare-
cem-se com os litteratos, no juizo que fazem da
ultima produccao : 6 sempre a melhor.
E nao e improficua a prova para o efifeito da ven-
da, porque os visinhos e os amigos vao espalhar
pela povoa^ao a fama do vinho novo que prova-
ram.
— Quem tem uma rica pinga este anno, e Fu-
lano !
— Um nectar !
— Um balsamo !
Se e no Minho, estd claro que nao i precisamente
um balsamo, mas um valsamo.
— Este anno, o berde de ¥uVatvo € \i\tv vahamo!
NINHO DE GUINCHO 99
E estalejam com a ponta da lingua no ceu da
bocca para dar a impressao de que ainda se nao
fartaram de saborear o valsamo berde.
O correspondcnte da Pesqueira acrescenta d sua
intcressante informa^ao este pormenor :
f Alguns dos que em sua casa tiram a prova do
vinho novo, fazem n*o tao desastradamente, que
adormecem nas adegas por nao atinarem com a
cama ou Ihes parecer a noite muito quente e nao
poderem supportar o calor que os cobertores Ihes
causariam.*
Mas quanto mais feliz e a vida da provincia do
que a da capital — at^ na rapioca do S. Martinho!
Na provincia pode uma pessoa embebedar-se na
sua propria casa, dentro da sua adega, e adorme-
cer ali.
Em Lisboa tern de ir embebedar se ^ taberna ou
ao restaurant e nao sabe o que succederd ate con-
seguir dar entrada em casa.
Conta-se de um alfacinha que na noite de S.
Martinho, nao podendo equilibrar se, por ver andar
d roda todas as casas, se sentdra no passeio da rua
e ali se deixdra ficar.
Veiu a policia.
— O que e que faz aqui ?
— Estou d espera que passe a minha casa para
enfiar pela porta dentro.
1 698 — Novembro.
XII
BONECOS E LOIGA DE BARRO
Decerto viram nos jornaes a noticia de que es-
tava actgalmente fazendo sensa^ao em Berlim uma
exposi^ao de bonecos?
E talvez ririam. . .
Mas, que diabo! a Allemanha nao i precisa-
mente urn paiz frivolo e futil, que dS importancia a
ninharias ridiculas,
A exposi^ao nao foi promovida por uma crean^a
ou por um maniaco, senao que por uma iUustre
dama, que tern na Europa uma evidente posi^ao
social.
A iniciativa deve-se a rainha da Romania, conhe-
cida no mundo litterario pelo pseudonymo de Car-
men Sylva.
Quem deu execu^ So & ideia da iniciadora foi outra
dama, de quasi igual evidencia na aristocracia eu-
ropea : a princcsa de Wkde.
NINHO DE GUINCHO lOl
Devemos entao reflectir um momento n*esta sim-
ples coisa : que nao se reuniriam duas senhoras dis-
tinctas, intelligentes e nobres, para realisar uma
empresa balda de qualquer pensamento alto e ex-
pressive.
Effecdvamente, os bonecos agora expostos em
Berlim nao constituem um brinquedo de crean^as,
uma enfantillage frivola, mas um facto de impor-
tancia scientifica, de interessante valor ethologico,
porque os bonecos representam uzos e costumes de
varias epocas e paizes.
A collec^ao mais admirada e a que pertence &
rainha da Romania, composta de manequins vesti-
dos com OS trages uzados na regiSo dos Balkans.
N'esta cexpressaoi historica reside principalmente
interesse da exposi^ao, d parte o valor artistico
da esculptura, da pintura, e o valor material da ri-
queza dos fatos.
Eu fiquei contentissimo com a noticia d'esta ex-
posi^ao, que infelizmente nao posso vgr.
E d sombra d'essa empresa, iniciada e realisada
per duas princesas, tratei de abrigar a minha anti-
ga predileccao pelos bonecos de barro, que repre-
sentam costumes portuguezes, e que, nas horas que
eu passo trabalhando, me rodeiam alegremente em
numero nao inferior a quatrocentos.
Tem cada pessoa a sua mania, e se as manias
nao molestam ninguem, sao dignas de absolvi^ao.
A fallar verdade, pouco me importa que me
absolvam ou condemnem ; sou assim, e jd agora e
tarde para mudar de caminho.
O honeco que mais me inittes^a ^ ^Tic^\v\a. '^ ^
I02 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
pequenino, de um decimetro de altura, ds vezes de -
uma ingcnuidade de esculptura verdadeiramente pri-
mitiva como obra de arte, mas tocado de uma certa
expressao de naturalidade na physionomia e na atti-
tude.
Gonhego desde creanga os bonecos do Porto, que
teem o triplo da altura dos de Lisboa, e que sao
primorosos como obra de arte, sobretudo no apuro
e perfeicao dos trajos.
hi estao ainda expostos i venda na rua da As-
sump^ao ou, como na minha infancia se dizia, atra^
dos Clen'gos. Lisboa conhece alguns exemplares,
que apparecem aqui d venda n'uraa ou n'outra loja,
e cujo preco vacilla entre i8 e 25 tostSes. Exceptufi-
mos OS grupos, como o carro de bois^ que custa
sete ou oito mil reis, e a procissao, que pode custar
cinco ou seis libras.
Conhego os bonecos da iiha da Madeira, em terra
cotta, de que possuo apenas dois exemplares, que
me enviou do Funchal o sr. cons^lheiro Sousa e
Silva, quando ali era governador civil.
Mas a minha sympathia foge para os bonequinhos
de Lisboa, que ordinariamente se compram a cinco
e seis vintens, e que representam a vida das ruas,
a expressao caracteristica do nosso povo em plena
actividade.
Sim, coUecciono furiosamente esses bonequinhos,
que algumas creangas despeda^am sem piedade, e
que eu vou reunindo com dedicado empenho.
Outras pessoas ha que pacientemente organisam
collec96es de seilos, bengalas, pinturas, loi^as, crys*
taes, leques, alfinetes, etc.
NINHO DE GUINCHO I03
Eu collecciono bonecos de barro e confesso com
Cranqueza que e esse urn dos maiores regalos e pra-
2eres do meu espirito.
Como nasceu esta mania? Nao sei bem. Como
nascem as paix6es e as doencas ? Quasi nunca se
^abe ao certo. Urn dia, sem que me lembre ja onde
^ quando isso foi, comprei os primeiros bonecos,
<:ujo valor ethologico avultou aos meus olhos, apesar
da imperfei^ao da esculptura.
N'esse tempo, creio poder affirmalo, apenas as
crean^as iam &s capellistas .comprar bonecos de
barro, especialmente pelo Natal, em que teem maior
procura as figuras de Presepio.
Lembro-me de que uma vez, conversando com o
lojisca Prior, na rua Augusta, Ihe perguntei se eram
muitas as pessoas adultas que entravam no seu es-
tabelecimento a comprar bonecos de barro.
— Nao, senhor, respondeu elle. Apenas crean9as
e extrangeiros.
— Extrangeiros ?
— :Sim, senhor. Quando toca algum paquete em
Lisboa, muitos passageiros, especialmente allemaes
c inglezes, aqui vem procurar os bonecos, que apre-
ciam muito.
— Pudera ! repliquei eu n'um afogo de cqlleccio-
nador apaixonado. Isso comprehende-se. Sao pes-
soas inteiligentes, que passando por um paiz, e nao
podendo levar os homens e as mulheres que viram
e representam os uzos e costumes d'esse paiz, com-
pram como recorda^ao os bonequinhos que dispen-
sam OS viajantes de estar copiando de afogadilho
trajos e pbysionomias nas paginal do ^^\x ^Vc^>\\s^.
104 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
E alguns nao saberiam desenhar, infeiicidade q^-^ ^
tambem me acontece a mim. Mas o boneco de hm^ ^'
ro salva a situa^ao, porque tf, no fim de contas^ ^
miniatura de urn povo.
Adquiridos os primeiros bonecos, comegou a pa^"^
sar me pelo espirito a ideia de que seria possiv^^
aperfei^oal-os. Entre os imperfeitos escolhi os mat ^^
perfeitos, e tratei de averiguar quern tinha sido ^^
oleiro que os produzira.
Fui a sua casa, e por signal que dei uma boa ca-'
minhada.
Entrei n'uma mansarda que respirava pobresa ^
miseria. E encontrei urn doente postado deante de
uma banca de pinho a fazer bonecos.
Sentei-me, e mettendo a mao no bolso Ao paletot
tirei um archeiro... de barro.
Pul-o sobre a banca e disse ao obscuro artista:
— Foi o sr. quern fez este archeiro?
— Nao sr. Devia ser Fulano.
Citou o nome de outro oleiro amador.
Ora o archeiro que eu levava, era um mamarra-
cho pintado a almagre e ocre, em barro cn^ com
umas pantorriihas enfunadas, os hombros depremi-
dos, OS bra^os pregados ao corpo, as maos incha-
das de frieiras, e uma casaca de cheche. Nenhuma
expressao humana, nenhum brio profissional, isto e,
ausencia de pose e «caracter]» de classe.
— Mas diga me uma coisa, tornei eu, nao se sen-
te com for^as de fazer em barro cosido um archeiro
melhor do que este ?
O homem respondeu com convic^ao e desvane-
cimento :
NINHO DE GUINCHO I05
^-Sinto, sim, sr. Mas nao vale a pena, porque
^^ lojas pagam muito mal.
-^Nao se trata de lojas; trata-se de mim. Sou eu
^>icm Ihe cncommendo um archeiro, cujo pre^o nao
^iscuiirei.
— Pois bem ! Farei um archeiro de que o sr. ha
^:]e gostar. Se quizer pagar bem, pode custar-Ihe um
^rusado.
— Conte com cinco tostoes, se sahir como eu de-
sejo. Quando posso voltar ?
— Para o fim da semana.
— Adeus, atd sabbado.
Nao faltei, c obtive um archeiro com expressao,
bella pose^ um fatq^ bem pintado, uma alabarda
de papelao prateado : uma figurinha que represen-
tava um grande progresso na esculptura dos bo-
necos de barro, se bem que as pernas deixassem
ainda alguma coisa a desejar em verdade anato-
mica.
D'ali por deante comecei a encommendar outros
bonecos ao mesmo artista, que se foi aperfei^oando
successivamentef a ponto de produzir dez ou doze
figuras que sao ainda hoje das mclhores da minha
colleccao.
Era eu que Ihe indicava os typos. E alguns, como
o vendilhao ambulante, o padeiro, o fadista, sahiram
magnificos; regalei-me de os ver.
Pouco depois notava eu que nas lojas do Prior
na raa Augusta e do Cardoso na Bitesga comc^a-
vam a apparecer bonecos muito mais perfeitos, se
bem que mais caros.
Desvaneci-me de ter concorrido ^^i^ ^vs.^ ^^^-
Io6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
gresso, e, para o animar, comprava os bonecos,
embora os tivesse repetidos.
Mas comecei a achar um novo encanto no facto
mesmo da repeticao dos bonecos : o de ter deante
de mim a historia da evolucao do boneco de barro
como obra de arte.
Ultimamente, no Costa da rua do Ouro e no
Joyce do Galhariz, tenho comprado deliciosas figu-
rinhas cheias de expressao e de verdade.
Ainda ha poucos dias, estando presente o oleiro,
encommendei na loja do Calhariz uma sopeira em
colloquio amoroso com um soldado da guarda mu-
nicipal.
Quarenta e oito horas depois mostravam-me ali
o specimen da sopeira em barro crii. Nao digo que
seja uma maraviiha; mas tem verdade. especial-
mente no trajo. Eu sou, indirectamente, o pae d'esta
sopeira, o que e, talvez, a melhor maneira de ser
pae.
Que querem? Alegra-me, quando pela manha abro
a janella do meu escriptorio, ver animar-se com a
luz do sol todo esse mundo de figurinhas portugue*
zas, que representam os uzos e costumes do meu
paiz, e que do alto das prateleiras em que se ali-
nham me dao a impressao de partir cada uma d'ellas
para o seu destino, para o seu trabalho quotidiano,
para as suas occupagoes diarias : o vendilhao e a
varina para as ruas, o archeiro para o Pago, o offi-
cial e o soldado para o quartel, o padre para a
egreja, o operario para a fabrica, o cosinheiro para
a ucharia, o engraxador para o seu vao de cs*
cada.
NINHO DE GUINCHO IO7
E parece-me atd que algumas vezes trocamos pa-
lavras de estimulo e conforto.
— Vamos a isto, digo eu aos meus bonecos de
barro, comeg ando a trabalhar.
— Nos jd ci cstamos, respondem elles. VocS hoje
levantou-se mais tarde, seu mandriao I
Ha poucos mezes ainda, um dos meus bonecos
faltou d sua apresenta<;ao matutina. Vi uma lacuna
na collec^ao ; fui saber se algum d'elles teria parti-
do para as suas occupagoes sem me haver dado os
bons-dias.
Entao encontrei cstatelado na prateleira um chefe
de esquadra, que costumava ser muito pontual no
servi^o. Tive um desgosto grande. Era o primeiro
morto da minha collec^ao.
De que morreria elle, coitado ? Alguma congestao
cerebral, talvez ? Cahira, e partira pelo meio, como
se tivesse quebrado... a espinha dorsal.
Haveria crime ? Haveria suicidio ? Os outros en-
trincheiraram-se n'um silencio impenetravei. E as
investigagdes da judiciaria nao deram resultado.
Pois era um bom chefe de esquadra, elegante,
airoso, com certa attitude marcial.
Nem sequer pude desejar que a terra Ihe fosse
levc, porque .o deitaram no barril do lixo e foi d'ali
para a carroga.
A acquisicao dos bonecos trouxe me o desejo de
estudar a sua fabricagao atrav^s dos tempos em
Portugal. Dei-me a esse trabalho, e creio que ainda
ninguem iria mais longe em recolher dados, porme-
notes, minucias. Mas e um trabalho pesado o de
emprehender a coordenagao de todo esse mare ma-
108 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
gnum de apontamentos, e nao me sinto realmente
em boa disposi^ao de espirito para realisal-o agora.
Se ha tanto quem de animo ligeiro escreva a res-
peito de tudo I
. Para que hei de eu estar a cancar-me em ensinar
OS outros, que m'o nao agradecerao?
Contento-me com olhar para os meus bonecos,
ouvil-os, conversal os, entendel-os e responder-lhes.
Acreditem : 6 um grande prazer.
Talvez os senhores duvidem de mim ? Pois vac
perguntal-o d rainha da Romania e i princesa de
Wiede.
1S98 — Dezembro.
II
Se torno a fallar nas figurinhas de barro, nao e
porque essa minha predilec^ao se vd tornando mo-
nomania, nem porque eu ufanamente queira cele-
brar o glorioso facto do boneco nacional ter ]i con-
quistado o Chiado.
Mas a verdade 6 que conquistou. Li estao na
montre do B^nard algumas figurinhas, guarda avan-
gada do exercito conquistador. Finaimente chega-
ram d rua mais elegante de Lisboa, onde ate agora
apcnas tinham accesso os bonecos francezes e al-
maes. Subiram, treparam, aristocratisaram-sel Deus
queira que se nao estraguem.\. de vaidade.
Que, a fallar verdade, deve ser para endoide-
cer o fragil barro de que e feito o boneco c. . .•o
Jiomem, vir-sc f6ra da hum\\de lo\\nha de capella.
NINHO DE GUINCHO I09
^nde viveu tantos annos obscuramente, achar-se
le um momento para outro em exposigao no Re-
gent-Street de Lisboa^ dar nas vistas is senhoras do
torn e aos janotas da ^/i7e, sentirse afidalgado deante
do povo boquiaberto que certamente exclamari :
cOlha quem elles sao! Conheci os laranjeira nas ca-
pellistas de Alfama e do Bairro AIto!»
Teve o B^nard, honra Ihe seja, a lembranga de
fazer uma exhibigSo portugueza: um trecho das no-
vas obras do porto de Lisboa. Sobre a muralha
collocou alguns boncquinhos de barro, typos po-
pularesi adquiridos no Centra Commercial^ ^g^i-
cola e Industrial^ da rua do Loreto. Ficou uma
linda montre^ que o povo nao se farta de admi-
rer.
E isso, em pleno Chiado, ja nao e pequena glo-
ria para envaidecer os bonecos de barro.
Quanto aos homens, que* segundo a Biblia, sao
feitos da mesma massa, sei eu que entontecem de
orgulho e tomam grandes ares de toleima quando
se encostam a uma porta do Chiado. Muitos d'el-
les nao valem um chavo gallego, mas 6 vel os ali,
e acreditar, porque elles o acreditam, que valem
um dobrao de D. Joao V.
Quanto aos bonecos, tambem de barro, que ap-
pareceram agora ali na monire do Benard, fizeram-
me melhor impressao, achei-os menos irritantes e
muito mais modestos do que os homens. Estao
beml nem acanhados, nem arrogantes; nem timi-
dos, nem philauciosos. Muito discretos, sem gauche-
tie e sem pretensSo. Uma lindeza de bonecos i
^•* Me eu rolto a fallar d'tVYw, k ^ ^xo^c^iws^
I lO COLLEC5AO ANTONIO MARIA PEREIRA
per causa dos Presepios, agora expostos ao publico
nas egrejasque os possuem.
Jd nao me quero referir As casas particulares,
porque alim do Presepio que as crean^as organi-
satn de um dia para o outro n'esta epoca do anno,
com figurinhas compradas em qualquer loja de ca-
pella, rara 6 a casa de familia antiga onde por esse
paiz tora nao ha) a um Presepio de algum valor, e
endoideceria quem se propuzesse fazer a sua re-
senha ou descripgao.
Todos OS conventos, de frades ou freiras, tinham
seu Preesepio, obra aceiada, e atd conta frei Luiz
de Sousa, na Historia de S. Domingos, que foi uma
freira do mosteiro do Salvador em Lisboa quem,
em consequencia de uma devota visao, mandou fa-
zer o primeiro Presepio que se viu em Portugal.
Seria assim ou nao seria. Mas frei Luiz de Sousa
Id o diz, na chronica : «E d'aqui se comegaram a fa-
zer por outras egrejas os presepios que hoje se fa-
zem em quasi todas.t
Tenho um montao de apontamentos sobre Pre-
sepios que vi em conventos da provincia, e alguns,
quantos! me terao escapado. Mas quero fallar, ain-
da que seja rapidamente, de um s6, porque notet
n'elle uma circumstancia digna de mengao especial.
E' o do Varatojo. Como ainda hoje acontece em
quasi todos os Presepios, ha n'esse um tocador de
gaita-de-folles, que figura de cego, com uma borra-
cha de vinho a tiracollo. E o mo^o do cego, apro-
veitando-se da confusao, vae bebendo subrepttcia-
mente o vinho da borracha.
Tern graca. E' uma novidade \oco%^^ o^^ M\«.
NINHO DE GUINCHO I { I
xi'outros Prcsepios, e que de algum modo o anima
e embrinca.
Ramalho Ortigao, no livro O culto da arte em
J^oriugalj chama tencantadorasD As figurinhas dos
Prcsepios que sahiram das maos de Faustino Jos^
Rodrigues, de Antonio Ferreira e Machado de Cas-
tro. Tern . razao. E' realmente um encanto para os
olhos esse Undo Presepio da Se Patriarchal, que
csti ainda completo — o que 6 raro — e que se en-
contra na 3.* capella da charola, isto e, por detraz
da capella-mor.
As figuras foram modeladas pelo famoso Ma-
chado de Castro, por encommenda de um benefi-
ciado de appellido Oliveira, que depois as doou a
SL
Alem do Presepio da Se, Ramalho Ortigao falla
dos da Madre de Deus, Coraqao de Jesus e mar-
quez de Borba, que se destroqaram.
Mas cumpre mencionar ainda o da Estrella, cujas
figuras tambem sao de Machado de Castro (1775 a
1800) e o de Belem.
O da Estrella ^ decerto o maior de Lisboa. Tern
figuras muito bem tratadas, posto que os anachro-
nismos sejam em barda. Ha um bello gruposinho
de judeus que estao jogando as cartas (as cartas
santo Deus!) tao fejiz na expressao e tao perfeito,
na esculptura, que jd por trez vezes o quizeram
roubar. Outras figuras foram mutiladas pelas crean-
^as que d'antes podiam aproximarse do Presepio,
e agora nao. Bem entendido ; pena foi ser jd tarde.
Tambem merece especial mencao o Presepio de
Santo Antonio dos Capuchos, c\\it ^^%^\^^t£i ^\:ev^-
1 1 2 COLLEC5AO ANTONIO MARIA PEREIRA
^ada de subir ao Campo de Sant'Anna para o ir
ver.
E' comtudo preciso estar de pe atraz com uma
infinidade de figuras, quepor ahi nos inculcam como
tendo sido feitas por Machado de Castro. Nos brie-
d'bracSf quando apparece i vcnda algum Prescpio
de casa particular, 6 sempre de Machado de Cas-
tro— por formal E pedem por elles quiantias fabu-
losas, que nao valem, porque de Machado de Cas-
tro nao teem nada.
E' certo que este artista, que morreu muito ve-
iho, trabalhou muito, mas ainda que tivesse tido
dobrada existencia, nao Ihe chegaria o tempo para
todos OS bonecos que Ihe sao attribuidos.
O sr. visconde de Castilho diz judiciosamente
que o Presepio i o vestigio derradeiro do mysierio
medieval. Farei comtudo uma observa^ao : vestigio,
sim ; derradeiro, nao. Ainda hoje, por essas aldeas
do Minho fora, se representam mysteries, de uma
ingenuidade verdadeiramente medievica, e at£ na
maior parte das vezes sao representados deante de
algum Presepio.
Mas nao padece duvida que a singela iconogra-
phia dos Presepios tem o perfume das ultimas "fld-
res s^ccas da idade-media^ cuidadosamente conser-
vadas na tradi^ao popular.
Muitos dos seus anachronismos sao deliciosos de
ingenuidade, e demonstram, a meu vSr, a forga de
resistencia da religiao christa. Os pleiros, segundo
sua epoca, vao collocando no Presepio as figuras
do seu tempo, e talvez ainda venham a apparecer
ew torno da lapinha de BetVAtm ^tT^oti«.%<(Qs de
NINHO DE GUINCHO ll3
ohapeu alto descendo pela montanha, reis magos
vestidos de generalissimos. Mas isso quer dizer que
o christianisoio vae passando de gera^ao em gera-
^aOy de moda em moda, sem se sentir defraudado
na fi e cutto que inspira, como sendo uma religiao
que resiste a todas as revolu<;5es philosophicas, in-
cluindo a do chapeu alto . . . dco de philosophia.
Nos Presepios portuguezes figuram os nossos
pastores do norte ou os nossos saloios do sul, co-
mo se Bethlem fosse uma terreola do Minho ou
da Extremadura.
Mas quanta c6r local n'essas figurinhas dos Pre-
sepios I como ellas, em reiagao ao nosso paiz, sao
verdadeiras no trage, na physiononbia, e na attitu-
de f Perdoa-se-lhes o anachronism© pelo bem que
parecem. E' uma vasta collect ao de figuras portu-
guezas representando um grande drama que nao
foi portuguez, nem pelo protogonista, nem pelo lo-
cal da acf So.
No Anaiomico jocoso vem descriptas algumas
d^ellaSi que sao nossas, muito nossas, ainda hoje
vivas. Querem vSr a saloia dos queijos ? Pois ella
ahi yae :
... a senhora
saloia dos queijos,
car a de tor an) a,
olhos de morcego,
gibSo de prestinas,
collete vermelho,
, saia debniada,
manteo amarello.
Ahi vem agora descendo para a lapinha a pas-
tora de OdivcWds — outra sa\o\a ;
1 14 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIBA
len^o soqueixadoy
manteo de parriiha,
bota at^ o artelho,
gibSo de pretiiias.
E' o Presepio portuguez do sul em toda a sua
verdade ethologica.
Nos Presepios do norte as botas das pastoras sSo
substituidas pelas soletas, os lengos da cabe9a pe*
los chapeus redondos e pequeninos, os cabazes pe-
las canastras, as capas dos homens pelas palho^as
e o barrete de la pelo sombreiro de Braga.
Deante de todas estas figuras do sul ou do norte,
sente-se a vida simples, singela de Portugal, a al-
ma boa e credula do nosso povo agricola, e perce-
be-se que um Presepio, assim constituido, seja um
forte trag o de uniao para reunir, na noite de Natal,
todas as pessoas da mesma familia n*um serao de-
licioso de intimidade.
Mas o costume vae a acabar, especialmente no sul.
Em Lisboa ha os theatros, os colyseus, as associa-
96es de dar & perna, que dispersam as faroilias. No
norte, ha ainda o Presepio, sempre o Presepio, o
auto religioso ou mysterio^ a ceia de vinho quente,
as rabanadas, os ovos mexidos, os bolinhos de ba-
calhau e bolina, a congregagao da familia toda i
volta da mesa, porque attf os filhos prodigos voltam
n'essa noite d casa paterna e sao perdoados.
Quando a invasao dos costumes modemos inun-
dar as villas das provincias do norte, quando ceder
o logar & guarda municipal ou i policia civil, ver-
se hao dois policias de sentinella d lapa de Be-
thiem, esquadr6es de lanceiros descendo a moQtanha
NINHO DE GUINCHO Il5
illuminada por candieiros de gaz, reporters de jor-
naes tomando apontamentos d pressa, mas o Pre-
sepio subsistiri, amoldado As circumstancias do
tempo^ e com o Presepio triumphard, atravds de
todas as idades, a recordacao do grande facto his-
toiico, que se memora e commemora religiosamente
. na noite de Natal.
Se OS senhores querem ver urn Undo Presepio,
que seja dtgno de ver-se, vao all & Sd ou d Es-
trella, que hSo de dar o seu tempo por bem em-
pregado.
Mais passem primeiro pelo Chiado e parem um
momento deante da montre do B^nard a observar
as figurinhas de barro, que Id estao expostas, e
que conseguiram aristocratisar-se a ponto de fica-
rem entaladas entre duas lojas chicsj uma com ^a-
iiota9 d porta, outra com viscondes dentro* <iy,]
189s— DcMfflbro. ?( J
™ i : 'W
E' costume, nos Passos de Camide, os alumnos
do collegio militar marcharem, atraz do pallio,
muito garbosos e serios — com a consciencia de se-
rem o exercito. . • do fiituro.
Hontem, na Luz, vi a procissao, mas nSo vi os
alumnos, que faltaram, dizia-se que por causa da
chuva.
Em todo o caso, na auseneia d'essas figurinhas
vivas de jovcns militares, lembrou-me, nao sei bem
dizer como, certa nota de FiWrvlo "E-Vj^vo ^x^^^5^\x^
Il6 COLLEC9AO ANTONIO MARIA P^REIRA
de uma antiga procissao que outr'ora se fazia na
quaresma, em Lisboa,, e na qua! as imagens e os
penitentes eram ainda mais pequenos, decerto, que
OS alumnos do collegio militar.
Eram de barro — eu amo as figuras de barro, jd
sabem — e os estudantinhos da Luz tambem o sao,
porque, Id diz muito bem o auctor dos Avisos do
ceu: cmais barro, menps barro, tudo n'este mundp
e barro. »
Nao somos outra coisa.
Chegando a casa comecei a folhear Filinto no
cmpenho de encontrar a nota.
— Pois voce tern em casa o Filinto ! que peste !
dird algum leitor mais sabio entre os sabios moder-
nos.
Tenho, sim, porque esse diabo de homem, que
era um duro poeta, refractario A rima, tern um vo-
cabulario tao seu^ e tao nosso, um geito de phrase
tao pittoresco e luzitano, uma ironia tao funda e ao
mesmo passo tao ingenua, que nao se pode pres-
cindir d'elle n'uma livraria que valha alguma coisa.
Sempre me ha de lembrar que o antigo profes-
sor do Lyceu do Porto, o sr. Manuel Emilio Dantas,
que foi meu mestre, me dizia uma vez no botequim
da Aguia dCouro :
— Nao se pode saber portuguez sem se ter to-
rnado o gosto d traducgao de De rebus Emanuelts
por Filinto Elysio.
— Acha isso, sr. Dantas ? ! perguntei eu, que en-
tao nao podia entrar com o bom do Francisco Ma-
nuel.
Prefena-lhe Soares de Passos, o dsrs tristezas, o
NINHO DE GUINCHO II7
doce poeta da morte, que era em poesia o meu
evangeltsta.
E nSo sei se ainda serd . . . porque nSo topei me-
Ihor — nem maior.
O professor Dantas desfechou-me na cara uma
d*aquellas pyramidaes gargalhadas, que retumba-
Vam quando Ibe sahiam dos labios como uma bomba
de dynamite, e, descancando urn memento, disse
entre alegre e auctoritario:
— Nao trate vocfi de entender-se com o Filinto e
queixc-se depots.
Esse Dantas era bem meu amigo, e, alguns an-
nos raais tarde, lembrando-me o seu conselho, se-
gui-o.
Entendi-me com o Filinto.
Pols bem. Chegando a casa, d volta de Garni de,
fiii procurar a nota. Deu-me algum trabalho a en-
contral-a; mas encontrei. Eil-a aqui:
fSe jd nao vem pela quaresma a Charola da
A|uda dar um descante ao Divino, pelas ruas de
Lisboa, necessario serd contar aos rapazes de agora
a composicao d'ella. Pelo pouco que me recordo,
, creio que era um andorsinho assentado em dois va-
rapaus, cangado nos hombros de dois saloios, aco-
bertado c'uma toalha de maos, como carro de roma-^
gem, com muitos senhorinhos dos Passos, muitos
penitentes brancos, todos de barro pintado, e tudo
per dentro allumiado com rolinhos de cSra; e em
roda, por detraz, e por diante muito aldeao berrando
certa lenga-lenga devota ; e pedindo muita esmola,
que espalhadas pelas maos e algibeiras dos canto-
res, e mais matula (porque a\\ tv'acs^^^ c^Tfe^\^
Il8 COLLEC9AO ANTONIO MARU PEREIRA
todos sao thesoureifos) iam diminuindo pelas baia-
cas, ate chegar & Ajuda, sem pdda.»
Digam-n'o melhor, se sao capazes.
Nao sao.
E, parando deante da nota de Filinto, como d-
nha parado deante da procissao de Camide^ come-
cei a pensar na delicia que eu sentiria se possuisse
alguns dos bonequinhos da charola da Ajuda e pu-
desse dizer a mim proprio authenticando-os :
— Sao OS mesmos de que falla Filinto!
Nao tenho essa procissao, mas tenho outra, a
dos Passos moderna, toda, completa, at£ com a
guarda municipal, cuja banda me parece ir tocando
as marchas do sr. yisconde de Oliveira Duarte,
tanto vivem aquelles inanimados bonequinhos.
E entao comecei eu a pensar n'uma noticia que
tinha visto nos jornaes e que, ao ISr a nota de Fi-
linto, me acudiu d lembran^a por assodagao de
ideias.
Que o Atheneu Commercial vae fazer uma expo-
sigao de ceramica portugueza.
Toma Id!
O Popular jd disse, e com razao, que essa expo-
si^ao era muito difficil de organisar e que^ mal feita,
seria melhor nao fazer-se.
Pois assim mesmo 6 que e.
Uma exposi^ao d'esse genero, para corresponder
inteiramente ao seu fim, deve abranger os bonecos
e as loigas. Sao dois capitulos vastos —• especial-
mente as loi^as.
Querem uma ideia das difficuldades que terSo a
veneer os organisadores d'essa ex^siqSo ?
NINHO DE GUINCHO 1 19
Ahi vae. Em Lisboa e em todo o paiz sao muito
conheddas as bilhas de Estremoz, e hem o mere-
cem, porque sao as melhores, mas em muitas re-
giScs de Portugal se fabricam potes, cantaros, bi-
IhaSy talhas, infusas, pucarinhas sui generis^ que an-
dam at^ mendonados nos poetas antigos.
Lembram-se d*aquellas lindas voltas de Camoes ?
Leva na cabe9a o pote,
O testo nas maos de prata,
' Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote :
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura ;
Vae formosa, e nao segura.
Tambem se h3o de lembrar da glosa de Rodri-
gues Lobo sobre o mesmo assumpto:
A talha leva pedrada,
• Pucarinho de fei95o,
Saia de cor de limSo,
Beatilha suqueixada:
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura,
Vae formosa e nSo segura.
A's pucarinhas, que ainda hoje sao uzadas para
guardar mel, se refere Gil Vicente no Auto da FeirUy
quando chega ao tablado Branca Annes e diz fei-
rando :
Eu queria ua pucarinha
Pequenina para mel.
Pois em quasi todo o paiz se fabricam vasilhas
de barro para agua e mel, nao ob^Vdxte. \^x ^ y^-
I20 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
masia Estremoz, que e a bem dizer a cidade de
Andujar portugueza.
Os senhores sabem que a riquesa vital da antiga
cidade de Andujar, na Andaluzia, e um barro leve^
amarello-pardaccnto, de que ali se fa^em as vasi-
Ihas que teem o nome de — alcara:{as.
Postas ao ar, refrescam e purificana a agua> como
acontece com as bilhas de Estremoz.
Trez quartas partes dos habitantes de Andujar
sao oleiros.
Isto e que nao acontece em Estremoz, onde ha
apenas actualmente cinco casas que, verdadeira-
inente em familia, fabricara bilhas c moringues.
Uma d'essas casas e a de Antonio Guerreiro
(Peixe), sexagenario quasi invdlido, que trabalha
com dois sobrinhos, um de quarenta annos e doen-
te; o outro, um rapaz de quatorze annos, cujo tra-
balho, a bem dizer, sustenta o estabelecimento.
Casa de Jose Gallego, homem de mais de cin-
coenta annos, com um filho rachitico.
Casa de Jose Feiticeiro, sexagenario.
Estas trez olarias terao um movimento annual de
500^000 reis cada uma.
Casa de Jose Maria Firme, o qual jd completou
cincoenta annos, e tem filhos, alids pouco aprovei-
taveis para a industria.
O seu movimento annual serd de 800^000 r^is.
Casa de Caetano Augusto da Conceicao, conhe-
cida pela designagao de Casa Alfacinha. Concei-
cao nao e oleiro de origem, mas dedicou-se a esta
industria, em que educou trez filhos e trez filhas,
das quaes ji morreu uma. Aletn da familia^ traba-
NINHO DB GUINCHO 121
Iham na officina mais dois homens e cinco mulhe-
res. Concei^ao exporta loiga para a Africa, Brazil
e Inglaterra. Jd foi premiado por duas vezes, em
1884 e 1890.
O movimento annual d'esta casa orca por
1:000^000 reis. Mas o proprietario lucta com a falta
de capital, que Ihe nao permitie ter bons fomos.
A industria em Estremoz estd decadente, quasi
ame^ada de morte. Quando o Conceicao ali se es-
tabeleceuy havia ainda i5 officinas; agora, apenas 5.
Os donos d'essas olarias foram morrendo na po-
bresa, sem deixar descendentes habilitados. Assim
como desappareceu em Estremoz a linda loica
branca, que ali se fabricava no seculo XVIII e ainda
no principio do seculo XIX, a loica vermelha
tende a desapparecer, e desapparecerd, se a Casa
Alfacinha cessar por qualquer motivo.
barro, em Estremoz, encontra-se a rodos, por
toda a parte, abundando principalmente -nos ater-
ros que em tempo se fizeram para as muralhas.
As bilhas sao de duas especies.
1 .* — Lavradas, com ornatos representando pas-
saros, flores e fructas ; e pedradas, com embrecha-
dos de calcareo muito branco.
O famoso poeta Christovam Falcao, que era
alemtejano e viveu no seculo XVI, descreve as bi-
lhas de Estremoz quando diz :
Ua coifa nSo lavrada,
Antes sem nenhum lavor,
E em cima, por mais dor,
Ua talhinha pedrada
Ou um pedrado ^tanoT.
122 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREiRA
Christovam Falcao escreve atanor, designando
esta vasilha ; mas no portuguez antigo encontram-se
quatro formas : atanor, atenor, tanor e tenor.
2.^ especie: bilhas lisas, muito polidas, lustrosas;
a simplicidade nao Ihes prejudica a bellesa.
Em Andujar estd garantida a fabricacao das a/-
cara^asy porque quasi todos os habitantes sao olei-
ros.
Em Estremoz, onde a loiqa e linda, comquanto
OS bonecosy que tambem Id os fazem, sejam de-
testaveisy a industria agonisa, morrerd talvez.
Mas faz pena isto, v6r os poderes publicos, v€r
principalmente a reparti^ao de industria, tratando
de coisas grandes e problematicas, sem curar de
acudir a uma pobre industria alemtejana, que de-
finha ali em Estremoz d mingua de recursos.
O governo lerd folhetins ? Talvez nao. Se lesse,
eu abenqoaria a hora em que, principiando por vgr
a procissao de Passos em Carnide, me lembrei da
nota de Filinto e, depois, da projectada exposi(;So
do Atheneu Conunercial, ate que vim parar, nSo
sei bem como, na famosa loi^a de Estremoz.
O meu dever i conversar com o leitor ; convcr-
sei o que me lembrou.
Se o leitor nao gostou, outra vez gostard mais
— se gostar.
1899 — Mar9o.
XIV
O SILENCIO
Durante toda esta semana se fallou de mais.
Um supposco assassino contou a um guarda-por-
tfio a historia dos seus crimes.
E desde entao toda a gente, imitando o guarda-
portSOy comefou afallar, a fallar, a fallar... sem sa-
ber ao certo o que dizia.
Faz lecnbrar aquella linda can^ao popular da Gre-
cian imitada por muitos poetas, segundo a qual dois
Bamorados se beijaram tendo por unica testemunha
o ceu brilhante.
Mas cahiu n'esse momento uma estrella, que foi
contar ao mar o que viu. Passava pouco depots
um navio, e o mar — naturalmente recommendan-
do sempre o maior segredo — contou ao leme esse
terno segredo de amor que havia surprehendido.
O leme nSo descan(;ou emquanto nao disse tudo
ao piloto, que desembarcando o contou logo A sua
amante, E d'ahi a pouco tempo toda a gente o sa-
bia« Ati OS rapazes da rua cantavam a historia do
beijo.
124 C0LLEC9^0 ANTONIO MARIA PEREIRA
Com razao disse o propheta Jeremias que o mai(
castigo da humanidade, a morte, subiu pelas jane^
las. Ascendit mors per fenestras.
Santo Ambrosio explica o que sejam estas janef -
las, que se tornaram perigosas por terem estado
abertas.
E' que nossa mae Era abriu a bocca para con*
versar com a serpente, a qual tambem de certo nao
fechou a bocca para fallar.
D*estas duas janellas imprudentemente abertas
veio a maior semsaboria da vida : a morte.
Foi como se entrasse uma corrente de ar, qucto-
Iheu a humanidade inteira.
Eu estou de perfeito accordo com o padre Ma-
nuel Bernardes quando exclama: tVejase sc im-
porta tapar bem esta janella, pois por ella mal ta-
pada entrou a ruina de todos os filhos de AdSo »
Li isto ha muitos annos e nunca mais me esque-
ceu.
A's vezes, quando me sinto tente^do afazer uma
confidencia, obedecendo & indole expansiva de to-
dos OS meridionaes, sinto umbra^oinvisiveltocar-me
para me conter.
Jd sei quern e Detenho-me. E oi^o entao a vor
do padre Manuel Bernardes segredar-me ao 6u-
vido:
— Fecha a janella.
E cerro a adufa.
Nunca me arrependi de ter fall ado de menos,
pelo .que estou intimamente convcncido da profun-
da verdade d'aquelle proverbio oriental que diz : tA.
e/oquencia 6 de prat a*, mas o sUetvcvo i de oilro.t
.^^^ NINHO DE GUINCHO 125
Y^ E se algum oiro possuo e ainda o silencio. Tarn-
^«in jd nao ha outro.
Conta-se que existiu um certo bispo, muito lido
t)os Santos Padres, que tinba horror de fallar.
Lembrava-se constantemente do apostolo S. Thia-
go, que judiciosamente observou ter sido a taga-
rellice de Eva uma pequena faisca de que se origi-
nou o incendio de um bosque inteiro.
O silencio constituira n'esse discreto bispo um
habito inveteradOy de modo que se estava doente o
constran^ muito ter de . responder ds perguntas
do medico.
Era uma s^ca. .
—A Dorme bem, vossa ex.^^* reverendissima ?
— Nao.
. — E vontade de comer .?
-p Ppuca. .
— Uma grande apathia, nao e assim ?
— Sim. , .
— Bocca saburrosa ?
— Muito.
— Grande can^a^o ?
— Bastante.
For mais insigmficante que fosse a doen^a, o ques-
tionario do oiedico era seq[)pre fatigante.
A'a vezes ,o prelado dizia comsigo mesmo : «Quan-
do eu tiver uma doen^a grande, como poderei atu-
rar o doutor?9
E esta ideia entristecia-o quasi tanto como o te-
mor da eoferipidade.
P»safy|n^ annos, acabrunhou-se-lhe a velhice,
que & ji4e si mesma a maior das dot.Yv^^.
126 COLLECfAO ANTONIO BfARIA PEREIRA
O cora^ao, o figado, os rins come^aram a regu —
lar mal, como um relogio que estd can^ado de tra- —
balhar.
Aconselharam sua excellencia reverendissima a^
que cbamasse um medico.
— Valha-me Deus I dizia o bispo co^ando na ca—
be^a. Os medicos fazem tantas perguntas !
Mas veio o medico, porqueos familiares do bispo
assim o quizeram ; na casa dos grandes quern go*
verna sao os pequenos.
Realisou-se o que o prelado receiava : maior doen-
qa, mator interrogatorio.
Tao fatigado ficou o bispo com as perguntas do
medico, que se lembrou de fingir que estava melhor
sd para nao ter que aturar outra vez o doutor.
Mas era preciso mentir, e a mentira repugnava-lhe.
— Se eu pudesse fechar a janella. • • pensava o
prelado.
O medico voltava no dia seguinte e ^bria-a de
par em par — ^vidra<;a e ponas.
Se sentia aquillo? se sentia aquell'outro? se o re-
medio fizera effeito ? se o havia tomado a boras ?
se nao haveria engano nas d6ses ?
Cena manha o bispo lembrou*se de que os irra-
cionaes eram mais felizes do que os homens, por-
que nao cinham que responder a perguntas nenhu-
mas quando estavaoi doentes.
Felizes brutos ! pensou o bispo, que se curam sem
fallar!
Sempre cogitando n'esta id^a, de consequencia
em consequencia, lembou-se de que all ao p£ da
porta do pago morava um aWevtar d^ ^raodtfama.
NJNHO DE GUINCHO 1 27
Chamou um dos famulos mais intimos e disse-ihe
^^\2e desejava ser tratado pelo alveitar.
Espantouse o fatnulo ; era a primeira heresia que
^Inha ouvido ao seu prelado.
— Fa^a o que Ihe digo, insistiu o bispo. E quero
^ue elle me trate pelo systema das b€stas.
— Meu senhor !
— Nao quero abrir a janella, nem que elle tam-
l>em a abra. Ascendit mors per fenestras. Quando
OS alveicares tratam as cavalgaduras perguntam-
Ihes alguma coisa ?
— Nao, meu senhor.
— E nao as curam tantas vezes ?
— Sim, meu senhor.
— Os mudo» nao sao tratados d semelhan<;a das
bfistas sem que ninguem Ihes pergunte coisa nenhu-
ma?
— Sao, meu senhor.
— Pols eu, que nao sou mudo, desejo que o al-
veitar me trate como irracional. O que pode aconte-
cer de peior? Que me nao cure? Mas, ao menos, nao
me teri ma^ado.
Veio o alveitar muito em segredo, e bem Indus-
triado pelo famulo : que nao dissesse nada mais e
nada menos do que dizia ds bestas que tratava.
Que sim ; que faria do mesmo modo, visto que
era isto o que o senhor bispo queria.
Entrou o f alveitar e sem dizer palavra apontou
para o Icito, indicando ao prelado que se deitasse
para aer examinado melhor.
O biapo obedeceu em silencio.
Entfio o alveitar, arremangatvdo ^ c^x£v\^^^ ^^-
128 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
palmando as grandes maos calosas, come^ou a apal-
par as costellas do bispo.
Mas quando chegou a tocar-ihe no figado, q bis-
po doeu-se tanto, que se contorceu violentamente.
E o alveitar, proseguindo serenamente apostro-
phou:
— Cho I
O bispo gostou muito, porque tinha encontrado
uma pessoa que se propunha tratalo sem gastar
mais que um monosyilabo.
Nao ha em verdade maior delicia para b espkito,
nem menos perigosa, do que a de estar entregue
cada um aos seus proprios pensamentos.
Sinto em mim duas costellas de frade cartuxo.
E tenho reconhecido que o silencio triumpha muito
mais que a iinguarice.
O duque de Loul^ foi o presidente de conselho
que menos tem fallado em Portugal.
Batiamse contra elle os grandes oradores d'esse
tempo, que foram os maiores do regime parlamentar.
O duque levantava-se, sempre muito correcto na
sua pose elegante, e dizia apenas duas palavras;
Pois eram essas duas palavras que valiam.*
Porque a camara, depois de as ter ouvido, sabia
que o governo nao tornaria a fallar. . .
E por ellas ficava orientada sobre o que Ihe cum-
pria fazer. • ' -. f
Conta-se que um anciao virtuoso, e vitinho da
montanha que hoje se chama Bussaco, ia alt pas- .
sar grandes temporadas no silencio do ermo.
Negocios de sua casa obrigavam-n^o a *voltar ao
povoado, maSf quando descia da motix^xvWvticida a
NINHO DE GUINGHO 1 29
gente pasmava que voltasse remo^ado, mais novo e
guapo do que f6ra.
Elle dava uma explica^ao do caso :
— D'aquelle monte saco bus,
Como se dissesse: venho saturado de silencio,
que € uma coisa que faz muito bem i saude.
Ou, segundo a li^ao do propheta Jeremias: «Fe-
chei a janella emquanto 1^ estive.»
Crfiem alguns que d'estas palavras saco bus veio,
por caprichosa transposigao, a dizer-se — Bussaco.
E assim o dava a entender aquelle monge do
painel que estava A entrada da porta no mosteirinho
da serra, e que nao sei se ainda \i est^, o qual mo#
ge, com o dedo indicador erguido sobre a bocca,
recommendava silencio.
Uma vez encontrei em Mafra uma ingleza velha,
ha muitos annos residente no Porto, que andava
vendo o templo.
Fui achal a no vestibulo parada deante da ima-
gem de S. Bruno, o tundador da ordem dos cartu-
xos, imagem que, pela expressao da physionomia e
pela verdade das roupas, d uma verdadeira mara-
vilha artistica.
Essa dama ingleza, que logo trocou comigo a sua
admiragao deante d'essa bella imagem, chamou par-
ticularmente a minha atten^ao para o bem cinze-
lado do habito, aqui apanhado, ali cahido, com uma
verdade inexcedivel.
— S. Bruno, respond! eu, nao precisaria talvez
d'esta bella imagem para sua gloria. Bastar-lhe-ia
decerto a de ter sido o fiindador da Cartuxa, cujos
monges pensavam muito e fa\\a\ativ ^omco*
l3o COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
A dama ingleza voltou a sua luneta para mim e
fixou-me ironica dizendo :
— Pois e um portuguez que diz isso?!
Apanhei o piao A unha. Senti cabir em cheio so-
bre mim um epigramma, que abrangia todos os
meus compatriotas.
Entramos na egreja quasi ao mesmo tempo.
A ingleza dizia-me coisas, ia chamando a minha
attencao para isto e para aquillo.
Eu nao respodia nada. Fechei a janella para desaf-
frontar o paiz. Quando nos separdmbs, a ingleza
apertou^me a mao em silencio e foi almogar para o
Mtel Moreira. Se a li^ao me tinha aproveitado, nao
Ihe aproveitou menos a ella.
Vinguei Portugal, mas o caso nao veio As gaze-
tas e por isso nao cheguei a apanhar uma portaria
de louvor.
Silencio! gelosia da alma, defesa do espirito, que
falta fizeste esta semana!
A faisca, despedida da bocea de Eva, aiada agora
estd abrazando o mundo.
Fallou-se nas ruas e botequins a respeito do Bi-
gode.(*) Fallou-se na camara dos pares a respeito
do milho e do trigo. Cada par do reino fallou du-
rante dois dias para mostrar talvez que um par do
reino o deve ser em tudo — at^ nos dias que con-
some fallando. -
(^) Appellido de um individuo julgado e condemnado na co-
marca de Aiinada como auctor da morte de uma mulher.
NINHO DP GUINCHO l3l
O propheta Jeremias been dizia do alto daclara*
boia da sala :
— Fechai a janella.
Ah I bispol bispo I se tu pudesses resuscitar para
dirigir este paiz, ha muito tempo que elle nao seria
tratado senao por alveitares . . .
E talvez ]& estivesse curado.
1899 — Abnl.
XV
O FUNDADOR DO ASYLO
Era um homem velho, mais de sessenta annos,
nutrido, muito screno no andar e no fallar, sempre
com um sorriso indulgente nos labios.
A. expressao dos seus olhos, entre generosa e
resignada, revelava uma infinita do^ura, calma e
profunda.
Rico, muito rico, tinha regressado do Brazil d
sua terra natal, uma linda cidadesinha do norte do
paiz, onde os salgueiros engrinaldam as margens de
um rio que parece feito de crystal.
A sua familia eram duas filhas, duas creaturinhas
morenas e languidas, cujos olhos tinham claroes
mais brilhantes do que longos. O olhar quebrava-
se-lhes, a breve trecho, n'uma calmaria doce, que
lembrava o apagar de um occaso.
Eram conhecidas peias — brazileiras — c conside-
radas ^os melhores casamentos de sete leguas em
redor.
O pae, tendo desposado a filha de um capitalista
do Rio Grande, enviuvdra aos quarenta annos e,
saudoso da patria^ escolhera paia vW^r a(\uella mo-
NINHO DE GUINCHO 1 33
desta terra de provincia, onde havia nascido pobre.
NSo o deslumbraram as grandes capitaes da Eu-
rope, onde a vida e alegre e faustosa. Procurara os
montes e as arvores que primeiro amdra. Julgou
nao precisar de mais nada para ser absolutamente
feliz na opulencia.
Das suas duas filhas, a mais velha principiara a
manifestar symptomas de tuberculose hereditaria.
A mae tinha morrido tysica no Brazil. E para sal-
var a vida da filha, o bra:{ileiro da Pra^a^ como
na sua* terra diziam, fSra passaralguns invernos na
ilha da Madeira, porque n'aquelle tempo nao se
fallava ainda em climas de altitude.
Todos estes cuidados, dispensados a peso de
oiro, apenas conseguiram retardar a marcha da
doenqa. O bra:{ileiro vira morrer a sua primeira
filha ao cabo de quatro annos de soffrimento, quan-
do ji a outra revelava inquietadores signaes d'essa
terrivel heran^a de familia.
N'uma tristeza tranquilla, cheia de resignagao e
de conformidade, o bra\ileiro dedicara-se ^ vida e
d saude da sua segunda filha.
Fizera largas viagens por mar, voltara a passar
OS invernos no Funchal, n'uma bella quinta que s6
tinha sido habitada por lords inglezes e principes
russos.
Mas a tuberculose seguira a sua marcha, e o bra-
^ileiro perdera a segunda filha como jd havia per-
dido a primeira.
Ficara s6 no mundo, com o seu dinheiro que era
muito, c que chcgava a pesar-lhe como uma coisa
inutil de que a gente se esc^utct.
l34 COLLECCAO ANTONIO MARIA PEREIRA
Procurdra lenitivos na caridade, fonte inexgota-
vel de resigna^ao.
Mandou construir um vasto asylo para velhos e
velhas e, desde pela manha cede at^ ao ficn da tar-
da, elle proprio fiscalisava as obras, estimulava a
actividade dos operarios gratificando-os, e indicava
as altera^ocs que julgava preciso introduzir no pro-
jecto do edificio para maior commodidade dos asy-
lados.
Concluida a obra, que levou muito menos tempo
do que toda a gente imaginava, rapidamente se
povoou o asylo com velhos e velhas, tque nao ti-
nham familia.»
Era esta a condi^ao unica, que ^lle impunha na
escoiha dos asylados.
Levantando-se ao romper da manha, o bra:{ileiro
sahia logo do seu palacete na Praca em direc^ao
ao asylo-
la assistir d ora^ao, depois ao almoqo. Adoenta-
do as vezes, nem por isso faltava. O mais solicito
empregado nao pod^eria excedel-o no zelo e cari-
nho com que elle tratava «os seus velhos e as suas
velhas », quasi todos rabujentos, muitos d'elles jd
dementes.
A's vezes um velho, de olhar desvairado, parava
deante d'elle a querer deter- Ihe os passos e a di-:
zer-lhe :
— E's o meu Ricardo, sim, es tu mesmb. . . Fos-
te embora ha tanto tempo, e nao tinhas appareci-
do. . . Ingrato ! . . . Nao me lembro bem como isso
foi^ mas nunca mais tomaste a apparecer a teu pae.
£ o ^ra;(t7eirOf em cujos olhoa s^ aVw^N^ \xi%\^
NINHO DE GUINCHO 1 35
expressao calma de profunda do^ura, parava a ou-
vil-o com bondadc, sem ousar dizer-lhe uma unica
palavra, que pudcsse roubar ao pobre velho a illu-
sao de ter encontrado seu filho ha muito tempo au-
sente, e talvez ]A morto.
Havia no asylo uma velha — eu mesmo a vi e ou-
vi algumas vezes — que tinha urn odio profundo ao
bra:(tlet'ro.
Estava paralytica das pernas e passava os dias
sentada na cama a regougar amea<;as, a cantar, com
voz roufenha, cantigas de uma vaga nebulosidade
apocaiyptica, que ninguem podia entender.
Quando via o fundador do asylo, exaltava-se, ges-
ticulava, fazendo men^ao de aggredil-o; tentava ar-
remessar-lhe a almofada do leito.
— Foi este mesmo, foi este monstro, bramia ella
— que desgra^ou a minha Carlota. . . Estas n£s pro-
fundas do inferno, monstro! Hei de matar-te um
dia e mandar-te de presente ao diabo, que nao ha
de ficar rico comtigo.
O bra^ileiro passava rapidamente ao longo do
dormitorio, fugindo para nao prolongar a exalta^ao
da velha asylada.
E ia dizendo: ccoitadinha! coitadinha!» cheio de
ternura e de misericordia.
E voltando-se para o fiscal que o acompanhava
sempre :
— Tratem-n'a muito bem, muito bem. E nunca
procurem convcncel-a de que eu nao sou o homem
que )ulga. Ao menos, assim, desabafa a sua ddr.
Coitadinha ! coitadinha !
A^ porta da capella, sentada rf\]ircv <i^%x^M^ c^^'s*
1 36 COLLEG9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
tumava pousar, esbaguando as contas do rosario,
uma veiha que resava muito, que resava sempre,
desde que se levantava at^ que adormecia.
Quando o bra\ileiro passava, ella erguia-se do
degrau, avancava para elle, detinha-o e dizia Ihe :
— Resemos um Padre Nosso pelas almas do Pur-
gatorio.
E o bra:{ileiro resava tambem:
— Padre Nosso, que estaes no ceu, santificado
seja o vosso nome.
Depois, muito satisfeita por ter conquistado mais
um allivio para as almas do Purgatorio, a velha do
rosario ia sentar-se no degrdu da capella e conti-
nuava a rezar — Padre Nosso.
Quando o bra\ileiro chegava d secretaria, de cu-
jas parcdes pendiam os retratos das suas duas fi-
Ihas, demorava o olhar nos retratos, e nunca os seus
olhos pareciam mais doces do que n'essa occasiao.
Depois, jd sentado na cadeira de couro tauxiado,
que Ihe era reservada, dizia habitualmente : Goi-
tadinhos! coitadinhos dMles, os meus velhosI>
E examinava as contas^ as tabellas, os mappas,
pagava aos fornecedores, dava instruc^Ses aos em-
pregados.
A's vezes, quando sahia, ouvia cantar a velha
que o costumava insultar, e recommendava ao fiscal:
— Nao a desilludam nunca, coitadinha ! coitadinha !
E jd na rua, se encontrava alguem:
— Venho de ver os meus velhos, que sao a mi-
nha familia.
I goo — Julho.
XVI
O PAPAGAIO
Entrou o inverno em scena — e a Duse tambem.
Duas celebridades consagradas, ambas colossaes,
porque uma 6 o vendaval e o trovao e a outra tern
o que quer que seja de revolta tempestade de talen-
to e de nervos . . .
Ambas inimitaveisy porque a chuva e a trovoada
no theatro ficam muito dquem da verdade da na-
tureza, e a Duse nao pode ser copiada por ninguem,
tSo compiicada e a sua organisa^ao artistica, tao
carregados de electricidade vibram os seus nervos
de actriz originalissima.
Aiem do que, o inverno parece-se com os actores
famosos, em nao mudar dc repertorio, visto que
tanto um como os outros dSo a volta ao mundo sem-
pre com o mesmo scenario e as mesmas pe^as.
Assim, a Segunda mulher de Tanqueray e a Vrin-
cesa George estalam de acto para acto em ribombos
de ciume, mas a ^ama das camcUas ^ Q.ci\s\^ \otjl
i?8 COLLECfAO ANTONIO MARIA . PEREIRA
dia de sol romantico intercallado n'uma semana de
temporal, o que ds vezes acontece e ainda esta se-
mana aconteceu.
Pelo que respeita a toilettes, sao rocagantes e ma-
gestosas tanto as das grandes invernias come as das
grandes actrizes.
' Qualquer dia de cerracao, como os que temos ti-
do agora, obriga a natureza a vestido preto constel-
lado de gotas d'agua.
Na Segunda tnulher de Tatiqueray, a Duse appa-
receu tambem de preto, com perolas, parecendo
que essa soberba toilette era realmente feita de nu-
vens e de gotas de agua.
Ha pessoas que gostam muito do invemo, dor-
mindo melhor quando ouvem cahir a chuva ou as-
sobiar o vento, e jantando vorazmente depois de te-
rem apanhado uma formidavel molhadella.
Do mesmo modo, ha quern s6 esteja deliciado no
theatro quando ve em scena famosas celcbridades,
embora representem n'uma lingua extranha, de que
se perde pelo menos metade das palavras.
Outras pessoas nao gostam senao dos dias sere-
nos e inoffensivos, e dos actores que nao fa^am agi-
tar muito os nervos.
Quanto ao invemo, eu acho-o uma esta^So insup-
portavel, a mais deprimente de todas para o orgulho
dos homens.
Vgr uma pessoa na rua, n'um dia de temporal
desfeito, com as botas enlameadas, o paletot escor-
rendo agua e o chapeu de chuva esfrangalhado, 6
humiJhante para a nossa especie.
Nao ha ce/ebridade que resvsta a wkv ^^%.c£v^.
NINHO DE GUINCHO iSq
Encharcados, todos 6s homens sao iguaes. Perdida
a elegancia, o aprumo, aimpassibilidade gentil^real
ou apparente, que uma pessoa affecta possuir quan-
do sai de casa, nao fica mais que a «junca do bre-
jo» a que se referia Herculano, uma coisa reles e
mesquinha, o manequim desconcertado pelo vento,
pela chuva e pela lama das ruas.
Resta, 6 verdade, o recurso do trem.
Mas se o trem tem o que quer que seja de trium-
phal n'um dia de sol, quando parece que vae con-
duzindo heroes e rodando para o Capitolio, n'um
dia de chuva faz lembrar uma carruagem cellular,
que transporta penitenciarios empilhados uns con-
tra OS outros, dobrados sobre si mesmos, priva-
dos de vSr a luz e de respirar livremente.
Um exercito, ainda que marche victorioso, se o
fizer n'um dia de temporal, perde todo o seu garbo
militar, todo o seu brilho marcial, as bayonetas nao
scintillam, as plumas nao fluctuam, a cdr das fardas
nao vive.
Quanto a celebridades de theatro, ha muitas pes-
soas que nao dao um passo para ir vel-as.
Tcem-Ihes medo como d tempestade e contentam-
se de ler nos jornaes a noticia do espectaculo, como
se se tratasse de saber onde foi que na vespera caiu
uma faisca electrica, ou onde foi que a inundacao
causou maiores estragos.
Entram n'este numero as sr.^^ Germundes, que
durante toda a semana nao puzeram pe no theatro
D. Amelia e andaram passando as noites por casa
de alg^mas das suas amigas, as quaes pensam do
mesmo modo a rcspeito de celebrvdad^^ dta.Nxv^vvL^^*
140 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Em que se entretiveram todas essas boas senho-
ras nos serSes de tao calamitosas noites de invemo,
como as que temos tido agora ?
Nas mil bagatellas que podem entreter a conver-
sagao n'uma sala, com alguns numeros de piano e
alguns expedientes de phantasia para aligeirar as
horas.
Ter?a feira, noite em que as senhoras Noronhas
receberam, uma d'ellas fallou do seu t6i6, que pa-
rece ensinado por qualquer palha^o do Golyseu.
Anda a pe, com as maos no ar, pdra, marcha, vol-
teia, segundo as vozes de commando que Ihe dao.
Veio d sala o t6t6 para fazer prova publica das
suas habilidades, e todas desempenhou com notavel
galanteria.
Levantou-se, firmou-se, marchou, parou, volteou.
Um encanto!
Mas a D. Gabriella Germunde, que e a mais la-
dina de todas as Germundes hystericas, nao se deu
por deslumbrada com esta exhibi^ao maravilhosa
do canito bailarino, e apregoou que o seu papagaio,
que o padrinho Ihe trouxera do Pard, nao era infe-
rior em habilidades e prendas.
— Que fallava como o Jose Estevam ! affirmou.
Movimento de incredulidade na assemblea.
— Ora essa !
— Esta Gabriella tem exaggeros !
— O' menina ! por que nao fizeste deputado o teu
papagaio ?
A Germundesinha estomagou-se.
— Nao acreditam ! Pois e certo que apanha um
assumpto no ar e discorre \ogo sobve elle.
NINHO DE GUINCHO 14I
— Sobre o ar ?
— Nao! sobre o assumpto.
— O' filha! deves andar pelo mundo a mostrar
essa irtaravilha de bicho.
— Duvidam ainda! Pois como trouxemos o cria-
do, vou mandar buscar o papagaio.
As irmas gritaram logo :
— Que tolice, Gabriella! deixa-te de creancices.
Quando estas senhoras Id forem a casa, poderao
v6r.
— Ha de ser hoje, que eu nao gosto de estar sob
a suspeita de mentir.
As ouiras senhoras fizeram c6ro :
— Isto nao e ponto de honra, GabWella!
— Olha que nao vale a pena !
— Quando n6s Id formos.
Mas a Gerniundesinha quiz liquidar a questao do
papagaio e mandou o criado a casa buscal-o.
Ghovia. Disserana-lh'o. Nao se importou. Contra-
poz que OS criados nao faziam apenas ssrvi^o no
bom tempo. De mais a mais moravam perto.
Como era de suppor, o criado, quando soube que
ia buscar o papagaio, aborreceu-se.
Estava a namorar uma criada na cosinha das No-
ronhas. Empregou argumentos para nao ter que
sahir: que o papagaio podia constipar-se ; que Ihe
faria mal perder o somno, etc.
Mas a Germundesinha bateu o pe com auctori-
dade : que fosse immediatamente.
O criado foi.
Quando elle entrou em casa das Germundes vo-
ciferava :
142 C0LLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
O animal abriu os olhos no poleiro e mostrou-se
espantado de que o fossem incommodar dquella
hora.
— Tem paciencia, meu bicho !
A cosinheira das Germundes perguntou ao criado
o que tinha vindo fazer a casa para incommodal-a
a abrir a porta.
O criado continuou a vociferar:
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
E pegando no poleiro, muito indignado, desceu
a escada resmungando.
O guarda-portao, que ouviu bater com forqa a
porta do segundo andar, accordou no seu cubiculo e
perguntou :
— O* sr. Jose ! que veio vocS cd fazer ?
Teve logo a resposta:
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
E sahiu a porta com o poleiro abrigado debaixo
do chapeu de chuva.
Assim que a Germundesinha, em casa das Noro-
nhas, ouviu tocar a campainha, correu ao corredor
a esperar o papagaio.
Estavam tomando chd, d roda da mesa, onde col-
locou o poleiro.
O papagaio parecia mono, dorminhoco.
Mas foi excitado por Gabriella, que Ihe bateu as
paimas, maneira habitual de o fazer fallar.
Houve um momento dc espectaxwai ^i^ciosa-
NINHO DE GUINCHO I4D
Gabrieila insistia com repetidas palmadas e com
4ilgumas phrases de animagao e estimulo: cFalla,
meu loiro. Nao me deixes ficar mal, meubicho.»
Finalmente, o papagaio fitoua muito sereno, re-
solveu-se a fallar e disse de rijo :
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
1900 — Dezembro.
XVII
VILLA E FIDALGA
No opusculo A vilanfidalga on aventuras e trans-^
formacoes dafilha de urn moleiro conhecida em Lisboa
pela alcunha de D. Marianna Joaqutna Franchiost
Roletn Portugal^ publicado em Lisboa (1840) per
Luiz Caetano da Rocha, conta-se que esta D. Ma-
rianna, famcsa aventureira, tinha uma filha cuja
paternidade attribuia a D. Miguel de Bragan^a.
Nao parece coisa lacii saber se D. Marianna cra^
eftectivamente, a mae d'essa creanca, pois que du-
rante algum tempo a apresentou como sua afilhada,
filha de uma mulher que Ihe fazia services, e de-
pois a declarava sua filha e de D. Miguel.
Tambem se dizia que era filha de um inglez,
A propria D. Marianna, se realmente era mae da
creanca, nao saberia dizer ao certo quern fosse a
pae, tao variada e numerosa foi a galeria dos seus
amantes.
Uma coisa, apenas, parece bem clara : e que D»
Marianna teve rela^oes intimas com D. Miguel, cu-
NINHO DE GUINCHO 146
jos aposentos frequentava dia sicn, dia nao, e cuja
causa politica servia fazendo espionagem.
Camillo Castello Branco encontrou no folheto
de Luiz Josd da Rocha a mae e a filha, que intro-
duziucomopersonagens no romance Ocarrascode
Victor Hugo Josi Alves.
Diz ahi, para conduzir a ac^ao da novella, que
D. Marianna era a naesma dona da casa de hospe-
des, onde o principe Lichnowsky se aposentou na
rua do Corpo Santo, junto ao Caes do Sodr^.
E' certo que D. Marianna teve uma hospedaria,
mas enn outro local : ao pe da Praga da Figueira
na rua dos Douradores.
A pessoa a quern o principe Lichnowsky se re-
fere nao se chamava Marianna ; era a Carlota dos
pis grandes. cuja filha, sua e de D. Miguel, foi D.
Maria da Assump^ao de Bragancja, que falleceu em
Roma no mez de julho de 1897.
Devo ao marquez de Vallada, que chegou a co-
nhecer a Carlota dos pis grandes^ a informacjao de
que ella fSra a mae d'aquella princesa bastarda, e
de que tivera, ao Corpo Santo, a casa de hospedes
onde Lichnowsky se aposentou
Camillo urdiu phantasiosamente, sobre o folheto
de Luiz Caetano da Rocha. o enredo do Carrasco
de Victor Hugo Josi Alves.
Apenas corresponde A verdade historica a iden-
tidade de D. Marianna, cuja vida^ n'um impulso de
vingan^a, o Rocha assoalhou cruelmente, se bem
que ella tivesse sido uma aventureira que explorou
o amor escorripichando, sedenta, os coracoes e as
algtbeiras do proximo. . . mascul\t\o.
\o
146 COI.LliCfAO ANTONIO MARIA PERKIRA
/
No romance de Camillo, a filha de D. Marianna
e de D. Miguel, se e que o foi, chacna-se Maria Jos^,
luveira estabelecida na rua Nova da Palma, depois
condessa de Baldaque.
A filha da Car lot a dos pis gt^andeSf que o roman-
cista identificou imaginosamente com a filha de D.
Marianna. viveu em Roma sustentada por uma pe-
quena pensao do Instituto Portuguez de Santo An-
tonio.
A folha parisiense O Figaro, de 10 de julho de
1897, dando noticia do seu fallecimento, dizia ter
havido um momento em que D. Maria d'Assump^ao
de Braganca esperou obter a situa^ao de princesa de
sangue, mas que a morte de el rei D. Luiz impedi-
ra que os seus desejos tivessem solu<;ao favoravel.
Isto nao i verdade^ nem o podia ser, segundo o
decreto de 18 de marqo de 1834 e a carta de lei
de 19 de setembro do mesmo anno.
O que e certo e ter o papa Pio IX querido reco-
nhecer D. Maria d'Assump^ao como filha de D.
Miguel de Braganca, e ter o cardeal Antonelli con-
trariado este designio por se nao saber se relativa-
mente A mae haveria algum impedimento canonico.
Posto isto vamos n'um relance contar a biogra-
phia de L). Marianna, a famosa aventureira, que teve
intimidades com D. Miguel de Braganca.
Esta mulher, segundo a versao do folheto A tn-
Ian fidalga, € um typo completo de romance rea-
lista.
Precedeu Zola e todos os outros luminares da
photo^raphia htteraria que reproduz em flagrante os
costumes torpes.
NINHO DE GUINCHO 147
Foi baptisada aos 2 de novembro dc 1797 na
freguezia da Santa Izabel em Lisboa, como filha de
Euzebio Joaquim, moleiro em Azeitao, e de Ma-
rianna Joaquina, recebendo o mesmo nome da
mae.
Muito nova ainda, fugiu ao pae com urn official
de noarinha, que a trouxe para Lisboa, onde Ihe poz
casa junto d Fundicjao
Depois, rotas essas ligacocs, teve artes dc apanhar
urn marido acommodaticio, Joao Lopes Gon^alves,
natural da Covilha, sombreireiro de profissao, com
quem casou em Villa Fresca de Azeitao a 25 de ou-
tubro de 1814, tendo ella dexesete annos de idade.
A breve trecho o marido fugiu-lhc, talvez por se
desenganar de que Marianna era rebelde d rehabi-
lita^ao canonica.
De 1817 para i8i8 vamos encontral a em casa de
madanne Ghapsal como criada de servir.
Quatro annos depois, Marianna tinha achado me-
Ihor colloca^ao como governante de um padeiro
rico, Manuel Rodrigues, estabelecido na travessa do
Secretario da Guerra e domiciliado n'um 1/ andar
do pateo do Picadeiro a S. Carlos.
A esse tempo, a aventureira assignava-se Ma-
rianna Joaquina da Goncei^ao Elisia, nome plebeu,
em que alids denunciava uma certa tendencia para
futura aristocratisa<;ao.
Marianna puxava-se aos Elisios.
Ginco annos durou a cohabitaqao com o padeiro.
Mas um bello dia Marianna passou-Ihe o pe, rou-
bando*lhe anneis de diamantes, colhires de prata,
dinbejro e roupas.
148 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
O padeiro dcu querella em juizo, e Marianna foi
pronunciada como ladra.
Mas nao consta que fosse presa, certamente per-
que a esse tempo jd dispunha de proteccoes valio-
sas e. . . numerosas.
Os valores subtraidos ao padeiro serviram-lhe
para estabelecer na rua dos Douradores uma Jios-
pedaria, destinada a fins occultos, e muito hem fre-
quentada.
Ahi encontrou Marianna Joaquina nao s6 fregue-
zes, mas tambem apaixonados, que ella acceitava
sem olhar a idades, e sem distinc^ao eritre paisanos
e militares.
Assim foi que teve por amantes Luiz da Motta
Feo, o coronel de milicias Barrao, o tenente de ca-
vallaria Antonio Sicard, um tal Rego cuja posicao
social ignoro, e o desembargador Ferraz, a cuja
casa, na travessa do Pombal, Marianna Joaquina ia
todos OS dias.
Foi com o auxilio do desembargador que ella co-
mecou a aristocratisar-se.
Largou a hospedaria e a rua dos Douradores,
vindo morar para o largo do Carmo.
Subia. Jd Ihe nao servia a Baixa.
O desembargador Ferraz, cabelleira lamecha, ati-
rou com a beca por cima dos moinhos, e entregou-
se d'alma e vida aos encantos de Marianna Joaquina.
Poz-lhe carruagem, e esteve por um triz a accei-
tar a paternidade de um menino de que fora padri-
nho e de que ella se dizia mae, o qual tinha sido
baptisado como filho de pais incognitos na fregue-
275 de S. Nicolau.
NINHO DE GUINCHO I49
A esse tempo ]& a famosa aventureira se intitu-
lava D. Marjanna Joaqulna de Portugal, no que alids
nao mentia, por ser effectivamente Marianna Joa-
qulna, e de Portugal — por ser portugueza.
O desembargador Ferraz morreu quasi de re-
pente, e Marianna apoderou-se de um bahu em que
elle tinha os seus papeis.
A fim de que nao pudessem facilmente encon-
tral-a, nem ao bahu, mudou-se furtivamente do
largo do Carmo para o Paco do Boi Formoso.
Cada vez mais audaciosa, tentou conseguir que
o prior de S. Nicolau alterasse o assento de ba-
ptismo do menino, de modo que figurasse como pai
o desembargador, que por procuracao se havia feito
representar como padrinho.
Uma trapalhada.
O prior resistiu a esta tentativa de suborno, e
Marianna Joaquina teve artes de arrancar ao viga-
rio geral do patriarchado uma ordem para que o
referido parocho fizesse investiga<;6es sobre a pa-
temidade authentica do menino.
Foram ouvidas como testemunhas trez mulheres,
indicadas por Marianna Joaquina, mas o prior de
S. Nicolau surprehendeu-as em contradiccoes, que
plenamente Ihe confirmaram o embuste.
Finalmente, um pre to, de nome Jose de Faria,
que aliemadamente tinha sido criado do prior e de
Marianna Joaquina, poz tudo a claro : declarou que
ella havia comprado o menino para o impingir ao
desembargador, primeiro como afilhado, depois
como filho.
Aqui falhou aaudacia, porque atra^ac^xvlo^^^w.
I DO COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
Continuando a subir na escala da sua profissao,
Marianna Jbaquina principiou a habitar predios ca-
ros, nas ruas da Emenda e da Magdalena.
Nao Ihe foi difficil captar as boas gracjas de D»
Diogo de Menezes Ferreira d'Eca, terceiro conde
da Louza, ministro e secretario dos negocios da fa-
zenda em 1828, no governo do infante D. Miguel.
Data d'esta epoca o valimento politico de Ma-
rianna Joaquina, que principiou a explorar a indus-
tria de protectora de pretendentes.
De ministro para cima estava natural e logica-
mente indicado o principe reinante : por isso Ma-
rianna Joaquina tratou de enfeiticjar o infante D.
Miguel, crescendo em audacia a ponto de Ihe que-
rer impingir uma filha por o mesmo processo que
tinha seguido com o desembargador Ferraz.
Quando veio D. Pedro, D. Marianna Joaquina
Franchiosi Rolem Portugal tinha-se naturalisado
franceza.
Diz Luiz Caetano da Rocha que seria para mais
facilmente poder evitar que a policia liberal a per-
seguisse como creatura de D. Miguel e dos migue-
listas.
A causa nao pode ter sido esta, porque um do-
cumento, que o proprio Rocha publica, mostra que
jd em 1 83 1, isto e, antes de vir D. Pedro, Marian-
na Joaquina tinha adoptado o appellido Rolem,
graphado d portugueza ; e que o moleiro de Azei-
tao e a mulher, para favoreccrem a nobilitaqao da
filha, haviam declarado perante um tabelliao que
elles nao eram seus pais, nem parentes, mas que Ma-
rlanna Ihes tinha sido confiadanaitvfatvda^ara crear.
NINHO DE GUINCHO l5l
Pendo a'crgr que a aventureira, estonteada pela
convivencia do ministro da fazenda e do principe
reinante, apenas pretendia aristocratisar-se, e que,
para maior verosimilhan^a de uma origem nobre,
inventou que nao era filha de seus pais e que sendo
— de Portugal — nao era portugueza.
Dignos pais de tal filha ! di^na filha de taes pais !
Em 1839, Luiz Caetano da Rocha, o auctor do
folheto A villan fidalga^ qui/- fazer valer um titulo
de divida que Marianna Joaquina Ihe tinha passado.
Ella declarou em juizo que a sua assignatura havia
side falsificada por elle.
O Rocha foi processado, esteve 80 dias preso e,
na audiencia para ratificacao da pronuncia, o juiz
obstou a que o advogado do reo, o dr. Antonio
Jos^ Dique da Fonseca, puzesse ao sol toda a vida
. de Marianna Joaquina, lacuna que o proprio Rocha
depois suppriu publicando o folheto em seu desag-
gravo.
O jury nao ratificou a pronuncia; e reconheceu
ter havido dolo na querella
O delegado do ministerio publico nao teve mao
em si que nao censurasse fogosamente os jurados
em pleno tribunal.
Depois de 1840 perde-se a pista de Marianna
Joaquina Franchiosi Rolem Portugal.
Ella devia ser ainda uma bella mulher de 4*3 an-
nos, cuidadosa e ciosa do seu. corpo, que tao lucra-
tivos servigos Ihe havia prestado.
E' de supp6r que causasse outros damnos e con-
flictos, porque Ihe estavam na massa do sangue as
manhas de aventureira seductora.
l52 COLLEC9AO ANTONl(» MARIA PEREIRA
E o que o berco dd a tumba o leva.
Camillo explorou liberrimamente o opusculo de
Luiz Caetano da Rocha, e em parte o contrariou
fazendo supp6r aos leitores do Cati^asco de Victor
Hugo Josd Alves, que Marianna Joaquina nao era fi-
Iha do moleiro de Azeitao, mas sim quarta neta de
uma filha de AflFonso VI.
Uma filha de Affonso VI parece coisa inverosi-
mil.
Tanto mais que tenia nj^cido de uma Catharina
Arrais, a qual havia fugido de Coimbra com um
primo, Manoel Arrais, e com elle vivia quando Ihe
foi violentamente arrancada dos bracos por ordem
de Affonso VI.
Para o effeito da paternidade acho que o Arrais
seria mais apto marinheiro do que o platonico pi-
loto que succedeu no throno a D. Joao IV e que,
segundo reza a fama, naufragou sempre nos mares
deleitosos do amor.
Quer isto dizer que nao creio nada na historia da
filha de Affonso VI, e que Marianna Joaquina nem
foi neta de reis, nem mae de principes, mas ape-
nas — o que jd nao e pouco — uma aventureira de
trez assobios.
1901 — Janeiro.
XVIII
A MENINA DOS ROUXINOES
No dia I.*" de setembro de 1901 passei algumas
deliciosas horas no logar de Argemil, concelho e
freguezia de Santo Thyrso, onde una parente e
amigo meu, Guilherme da Costa Leite, me offere^-
ceu um jantar de familia e uma festa campestre.
N'esse dia, que nao posso esquecer, por muitas
vezes me acudiu ao espirito o nome de Garrett, e
nao sei que vaga mas insistente lembran(;a das Via-
gens na minha terra.
Lsto ate certo ponto explica-se.
Eu tambem andava viajando na minha terra, nao
ao sul, como Garrett, mas ao norte, e n'uma pro-
vincia, que Almeida Garrett conheceu e amou, onde
residem pessoas que teem o seu appeilido.
Argemil e um logar deleitoso, d beira do Ave,
eapaz de competir em forraosura e amenidade com
o Valle de Santarem, o antigo, que o actual estd
muito mudado e dififerente do que era.
Garrett pintou assim o Valle : tnao ha ah nada
grandJoso nem sublime, mas ha \ittva cotwo ^^tw^-
1 54 COLLECgAo antonto maria pereira
tria de c6res, de sons, de disposicao em tudo quanto
se vg e se sente, que nao parece senao que a paz,
a saude, o socego do espirito e o repouso do cora-
qao devem viver ali, reinar all um reinado de amor
e benevolenciai.
No tempo em que Almeida Garrett o visitou, era
aquelle logar muito mais pittoresco do que hoje e.
Toda a regiao de vinhos desde o Cartaxo ate ao
Valle de Santarem can^ava pela sua monotonia, e
uma aridez desolada extendia-se em vasta charneca
ate ao ponto em que se encontrava o caminho do
Valle.
Era uma azinhaga onde a vegeta^ao crescia livre-
mente. A um dos lados deslisavam as aguas de um
arroyo claro. Lindo prologo do Valle, que finalmente
apparecia, sempre bello, delicioso pomar de laranja
onde, no tempo da flor, os aromas que se espalha-
vam no ar eram inebriantes e suavissimos.
Tudo isto preparava agradavelmente o espirito,
dispondo-o para os devaneios da imaginagao.
Facil foi, pois, a Garrett, a um tal homem como
Garrett, poetisar a casa do Valle e encantar-se
deante da janella onde uma cortina branca deixava
entrevgr o vulto de Joanninha, a menina dos rouxi-
noes e dos olhos verdes.
Eu sempre estive capacitado de que Joanninha
era a recordacao de uma pessoa querida na vida de
Garrett, posta ali, n' aquelle entao formoso Valle de
Santarem, como se poe uma tela de estimagao na
melhor moldura que p6de encontrar-se, embora a
tela tenha vindo de longe i procura de moldura
condigna.
MNHO DE GUINCHO l35
Lancei os olhos para o passado do poeta, em
busca de uma prima, de uma companheira e amiga
de infancia, de uma creatura meiga e boa, talvez
Bada formosHy que, annos volvidos, lembra de re-
pcnte com profunda e doce saudade, n'um sitio em
que a gente experimenta um grato bem-estar do
cspirito no meio da paz e da harmonia da natureza.
Disse isto uma vez ao dr. Carlos Guimaraes,
genre de- Garrett. EUe nao repelliu esta hypothese
e ficou de fazer uma revisao a toda a correspon-
dencia intima do poeta, no empenho de encontrar
algum document© que mc desse razao. Achou uma
carta, de uma prima, que vivia na quinta da Car-
reira, em S. Miguel das Aves, actualmente conce-
Iho de Santo Thyrso, tambcm.
E essa prima chamava-se cJoanna>, e na carta
fazia recrimina(j6es a Garrett por a ter esquecido
na vida tumultuosa de Lisboa.
Gritamos : t Eureka !• Mas appareceu tambem um
retrato da signataria da carta, e esse retrato— Deus
meu! — abriria conflicto com a esthetica de qualquer
poeta vulgar, quanto mais um poeta de tao fino
gosto como Garrett.
Nao ha duvida que as Viagens dizem a respeito
da menina dos rouxinoes : tJoanninha nao era bella,
talvez nem galante siquer no sentido popular e ex-
pressive que a palavra tem em portuguez, mas era
o typo da gentileza, o ideal da espiritualidade.i
Eu nao vi o retrato, mas encontrou-o e viu-o o
dr. Carlos Guimaraes, que o deve ter deixado no
seu espolio; e foi elle mesmo, o genro de Garrett,
que me disse e affiangou que a ipnra^ d^Q»"art^\t^>
I 56 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
nao revelava nenhum tra^o de identificacao com ca
menina dos rouxmoes.i
Mas a carta li estava — e deve estar no espolio
do dr. Carlos Guimaraes — e continha queixumes,
lamentagoes da signataria por haver sido esquecida,
talvez em razao de nao ser bella, nem sequer ga-
lante como a menina dos rouxinoeSy e nem ao me-
nos tao gentil e espiritual como ella.
O que restava, pois ? Identificar a alma dedicada,
leal e dolorida da t prima da Carreira* com a gentile-
za, a gra^a, a physionomia e a figura de outra mulher.
Ora isso e o que eu vou fazer.
Tenho que fallar, portanto, de duas mulheres.
Comecemos pela primeira, a prima. A boa logica
manda come^ar pelo principio.
A prima de Garrett tinha duas irmas : uma, An-
tonia, que desposou Jose de Menezes, residente na
Gollega \ outra, Maria Antonia, que parece ter sido
freira professa em Aveiro.
Sens pais chamavam-se Thomaz de Aquino e
Almeida e D. Anna Lima Barreto.
D'este consorcio tambem houve um filho : foi o
conego Thomaz de Aquino de Lima e Almeida.
Joanna deixou todos os seus bens a uma senhora
D. Thomasia Maria Amalia do Amaral, creio que
sua sobrinha.
Foi esta senhora que por sua vez deixou em tes-
tamento a quinta da Carreira a Alexandre Gar-
rett *, irmao do poeta.
^ Pai de Rodrigo, Jose Maria e Goncalo Garrett ; este ul-
ti'mo e lente de mathematica naViuvveTS^^^^^,
NJNHO DE GUINCHO 167
'^--- '. m
registo do testamento fez-se na administra^ao
do concelho de Santo Thyso em 27 de abril de
i838.
A testadora deve ter fallecido n'essa occaziao em
S. Miguel das Aves, solteira.
A quinta da Carreira ficou pagando uma pensao
i baroneza de Almeida. Quando esta titular falle-
ceu, a pensao passou para sua irma D. Henriqueta
de Menezes. Estas duas irmas eram mais proximas
parentas de Joanna que os Garretts.
Eis aqui o que eu pude averiguar d cerca da pri-
ma de Garrett, segundo os apontamentos que me
deu o dr. Carlos Guimaraes.
Resta tornar a dizer que era feia, tando um boc-
ca quazi defeituosa pela md implantacao dos. den-
tes.
Ma3 esta « prima da Carreira », que chorava sau-
dades do primo, e que Ih'o dizia, chamava-se «Joan-
nai, que foi o nome que Almeida Garrett poz A
menina do Valle.
O Carlos das Viagens era primo de Joanninha^ e
Garrett era primo da menina da Carreira.
Eu creio ainda que a Joaninha do Valle e a Joan-
ninha da Carreira ao menos no nome, no parentes-
co e por suave recordacao de infancia.
Em tudo o mais/. . ha outra. Quem e?
Procurei sabel-o por intermedio d'uma pessoa que
conhecesse a preceito o Valle de Santarem.
Essa pessoa appareceu, foi o meu illustre amigo
e digno par do reino sr. Luiz Antonio Rebello da
Silva, filho do fallecido e brilhante escriptor d'estes
sppellidos. Tern casa noVa\\e,VveId^^l^^l^^^vJ^^^^
1 58 collec<;:ao antonio maria pereipa
-#-
desembargador ; casa que serviu de quartel gene-
ral is brigadas que ali se acantonaram em 1810,
i833 e 1846.
O sr. Rebello da Silva, para me obsequiar, co-
Iheu o depoimento de urn velho do Valle, Belchior
da Costa, que tern perto de 90 annos, e toda a lu-
cidez de espirito, ainda.
Oicamos o que disse a tradi^ao oral colhida no
Valle:
O nonagenario Belchior da Costa crSquea tme-
nina dos rouxinoesi fosse D. Maria Ritta de Oli-
veira, tia de Rodrigo da Costa Alvares, senhora
muito intelligente, instruida e sympathica. De mais
a mais, tinha os olhos verdes.
No tempo em que o visconde de Almeida Gar-
rett passou no Valle, Rodrigo da Costa Alvares,
residente na casa onde actualmente estd a.viuva
Monteiro, trazia de arrendamento a quinta do Bico,
onde, em pleno Valle, D. Maria Ritta ia passar
muitos dias.
Nao admira que Almeida Garrett a visse, e re-
parasse na cor dos olhos, e conversasse a darha, e
ficasse encantado com a sua graca e intelligencia.
Nem tambem deve admirar que, por conveniencia
social, Ihe occultasse o nome, e fosse buscar para
ella o nome da aprima da Carreirai, ao qual viria
presa alguma recorda^ao da infancia: assim tam-
bem o verde frouxel do musgo vem preso ^ pedri-
nha que se arrancou a um muro velho como recor-
da^ao de algum logar.
Nao se me dd de apostar que a tprima da Car-
reira» term os olhos pretos, a c\ut G^tt^xx. oJcv^tsvoa
NINHO DE GUINCHO \bg
OS mais sinceros e leaes. Leaes e sinceros, porque
aiuda o viam de longe, e choravam por elle. Con-
fessa Garrett que cnasceu» na religiao dos olhos
pretos. Mas uma unica ve\ na sua vida viu os
olhos verdes, e encantou-se. Foi quando passou no
Valle, e encontrou D Maria Ritta de Oliveira.
1902 — Abril.
XIX
O PRIMEIRO TORMENTO DE UMA RAINHA
Toda a correnteza de lindas salas, que constituem
o pavimento inferior do palacio de Queluz, brilhava
n'uma ardentia immensa de candelabros, talha dou-
rada e espelhos, como se um polvilho luzente e pal-
pitante cahisse do ar esvoagando n'um incessante
adejo.
As paredes, ouro e crystal. O chao em marmore
de cdres e xadrez de madeira com phantasiosos em-
butidos. Os tectos caprichosamente apainelados por
notaveis pintores. O mobiliario sumptuoso e des-
lumbrante : trem6s e cadeiras do tempo de D. Joao V,
adquiridos pelo infante D. Francisco; grandes ta-
Ihas do Japao, especialmente n'uma.das salas, a que
deram o nome ; escabellos e tamboretes, branco e
oiro, estofados de preciosas almofadas de Damasco
azul ou vermelho', coxins e supeddneos de vclludo
escarlate com altos relevos doirados; columnas de
ebano torneado sustentando bustos e estatuetas;
jarras da India guarnecidas de px^do^^'i ^oxt.'^ %t-
NINHO DE GUINCHO ibl
tificiaes manipuladas nos conventos de freiras; co-
fres de madre-perola, de tartaruga, de xarao, de
prata repouss^e^ alguns de oiro, crave j ados de pedras
preciosas ; infinidade de cnstosos bibelots vindos de
'onge por mlmo realengo e esparsos sobre os con-
tadores e as misulas.
Todas as portas, abrindo sobre o jardim, deixa-
vam entrar a frescura da noite, o aroma das flores,
murmurio da agua.
Das arvores pendiam lanternas multicores, que
esmaltavam a verdura e illuminavam os canteiros,
riscados i italiana, as estatuas, os vasos de mar-
more, as estufas, os lagos, os repuxos, os canaes e
as pontes.
A grande cascata, por entre Jorros de agua e de
luz, liquefazia diamantes que rolavam cantantes e
phosphorescentes sobre um fundo esculptural de
marmore branco.
No vasto terreiro, que se enobrece com a fachada
do palacio, muito embrincada de ornatos, jonicos
e doricosy ardiam fogueiras e cantavam saloias, ce-
lebrando, sob o favor real, a noite tradicionalmente
alegre do Precursor.
Em Queluz podia haver serenins e opera em qual-
quer noite do anno, distracc^ao predilecta da c6rte
de D. Maria I, como jd o f6ra no tempo de seu pae :
a pintura do tecto n'uma sala do palacio testemunha
ainda hoje as aptid6es musicaes da familia real por-
tugueza, guiadas sob a direc^ao do maestro David
Peres.
Mas as duas noites de maior brilho e anima^ao
em Queluz, durante todo o anno, etam b^ di^^*^^^^^
w
1 62 COLLECfAd ANTONIO MARIA PEREIRA
por tradi<;ao popular, e a de S. Pedro, nome do
marido da rainha, seu tio paterno.
A' festa da corte, n'essas privilegiadas noiies,
correspondia a festa da rua. Duplicava-sc o regosijo,
fora e deniro do palacio; dir-se-ia uma obra com-
posta em dois tomos e inspirada por uma alegria
commum.
Na corte resplandeciam ainda os ultimos fogachos
de grandeza cez^rea, que D. Joao V requintdra com
OS olhos posios em Luiz XIV, e que tendiam a apa-
gar-se agora, como um sol no occaso A realeza,
amparada pela frouxa mao de ucna rainha timida
e excessivamente escrupulosa, decahia de antigas
poir.pas e do fausto que a engrandecera. No pala-
cio dos nossos reis ia se perdendo a alegria de vi-
ver, a consciencia e orgulho do poder real. Era como
se tivesse soado a ultima hora das magnificentes
elegancias^ copiadas de Franca ; do esplendor dos
saraus, das ca^adas e dos torneios; das aventuras
amorosas de capa e espada ; e at6 d'essa polychro-
mia estonteante dos estofos vivazes que revestiam
as salas e os corpos n'uma opulencia de cores, que
as duas cortes de Luiz XIV e Luiz XV haviam posto
em moda.
O cezarismo amdra as tintas claras, os tecidos
luminosos, as joias rutilantes, as fitas e plumas
variegadas.
Era um symptoma inconsciente da sua propria
vitalidade.
Na rua, as festas populares reflectiam, ainda ao
iniciar-se o reinado de D. Maria I, o brilho de que
se opulentava o devocionino dos tds*
NINHO DE GUfNGHO l63
As de Queluz, no S. Joao e S. Pedro, eram rui-
dosas e largamente subsidiadas pela munificencia
f^gia; alem das fogueiras e descantes, havia urn
:grandioso fogo de artificio, a que a familia real vi-
nha assistir da ampla janella do pavilhao central.
Na c6rte, o esplendor dos saraus tinha a alimen-
tal-o nao s6 os ultimos vestigios do cezarismo mo-
libundo, mas lambem a feliz coincidencia de haver
em torno da rainha um grupo de princesas suas
irmas, que, juntando-lhes todas as suas camareiras,
damas de honor, donas da caniara e a^afatas, cons-
tituiam uma interessante e graciosa constellacao
feminina.
E jd Francisco I, o mais entendido dos monar-
<has em assumpios de galanteria, havia dito com
^ande conhecimento de causa : que uma corte sem
JDulheres e um anno sem primavera e uma prima-
vera sem rosas.
N'este requisito essencial, a corte de D. Maria I
devia contentar os mais exigentes.
A come^ar pela rainha. . .
Quando sua magestade subiu ao throno tinha jd
completado quarenta e dois annos de idade, e havia
dezesete que estava casada. Era mae de seis filhos.
HSlo fdra nunca um modelo de belleza, mas devia
considerar-se um perfeito exemplar de ra^a fina.
Aspecto nobre e insinuante, maneiras ao mesmo
passo discretas e suaves : o que quer que fosse de
auctoridade e brandura.
Lord Beckford, tao sabido em coisas de cdrte,
«xigente como estrangeiro e artista que era, viu a
rainha de Portugal e achou-a xaVVv^d^ ^^\^ ^-^^^x^^^
164 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIUA
o mando, porque ao mesmo tempo diffundia respeito
e agrado.
A infanta D. Marianna, pouco mais nova que a
rainha, conservava nas suas linhas geraes o typo de
familia ; era distincta, se bem que menos brilhante
que as outras suas irmas.
Faltava jd no grupb uma infanta, D. Maria Fran-
cisca Dorothea, que a morte acommettera aos
trinta e dois annos de idade.
Mas a infanta D. Maria Benedicta, quarta filha
de el-rei D Jos^, tinha belleza e prestig'o de sobra
para compensar com sens encantos, n*esta florida
corbelha de princesas, a perda de uma d'ellas, per
mais estimavel que fosse
Era agora princesa do Brazil, pois cas^ra com
seu sobrinho o principe herdeiro D. Jose, rapaz de
quinze annos apenas, mas ja de tao levantados es-
piritos e graves maneiras, que toda a cdrte e todo
o reino punham n'elle os olhos como na promessa
de um grande rei.
N'esta noite de S. Joao, do anno de 1777, esta-
vam noivos de quatro mezes, adorando-se um ao
outro como desposados felicissimos ; que a distinc^ao
das mulheres attenua-lhes a idade no amor, e a
princesa parecia ter tanta mocidade como o principe,
comquanto se diffierengasse no dobro dos annos.
A rainha, acclamada havia pouco mais de um
mez, estava tranquilla e contente das alegrias de
familia e do ligeiro gravame que Ihe da vam entSo
OS negocios do Estado.
Nao tinha desgostos como esposa, porque se ha*
bituara /zonestamente 4 convivetida di^ Mm m^ridov
NINHO DE GUiNCHO l65
que, falho de dotes superiores, nao merecia pos-
suil-a; e, mae e irma dedicada, estimava ver tao
bem encaminhado o future do principe herdeiro,
alliado ao de uma princesa que deveria felicitar o
marido e o reino.
Politicamente. a situagao parccia bem definida e
calma ; dir-se-ia que todo o passado se apagdra com
um sd golpe de penna, sem deixar vestigios. Os
nobres e os jesuitas estavam satisfeitos, em caminho
de plena rehabilitacao.
O marquez de Pombal fora ja apeiado com um
simples decreto, apparentemente honroso; os presos
regressaram a suas casas e familias ; aos desterra-
do8 mandou a rainha levantar o interdicto.
O indulto geral serenara, no primeiro momento,
OS animos; e a revisao dos processes, exigida pela
nobreza, acabaria certamente por sentenciar a inno-
cencia de vivos e mortos.
Era o inicio feliz de um reinado, que se annun-
ciava de clemencia e paz, tanto enganam as primei-
ras boras nas grandes emprezas, e nao ha empreza
maior que a de governar nagoes e acalmar odios
antigos
Cada aurora traz um sorriso de esperancja, mui
tas vezes mallogrado, e n'aqueile mez de junho de
1777 amanhecia sereno o reinado tempestuoso de
uma rainha infeliz.
Das festas de Queluz apenas poderiam blasphe-
mar os amigos do marquez de Pombal, se elle os
tivesse ainda. Mas onde costumam estar os amigos
dos ministros decahidos ? Ninguem os viu, nem tem
vistOf na hora da desgraca.
l66 GOLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Toda a corte folgava, pois, e com ella a rainha^
e com a rainha o povo.
Que o povo deixa-se embair como as crean^as ;
recebe os golpes e nao os sente logo.
Comegdra o sarau do pa^o de Queluz per utn
serenim em que a princesa do Brazil brilhdra, como
sempre, na interpretagao de uma dria de Jomeili.
Depois viera a familia real & janella para ver quei-
mar, entre sauda^oes e applausos populares, o fogo
de artificio.
Foi ahi que a camareira-m6r, D. Constanta Ma-
nuel, marqueza de Tancos, principiando a nbtar
certo constrangimento na rainha, Ihe perguntou :
— Sente vossa magestade alguma indisposi-
qaoi
— Nenhuma, respondeu D. Maria I sorrindo com
o nobre agrado que Ihe era peculiar.
Se nao era indisposigao, o que poderia ser ? O
povo estava contente, a c6rte :ambem. E a voz
queixosa do marquez de Pombal, desterrado, nao
podia ouvirse ali. . .
Mas a rainha, para quern de perto a conhccia,
tinha o que quer que fosse que a inquietava.
Tambem a princesa do Brazil o notou, e o disse
ao marido, que foi interrogar a mae.
— Nada, meu filho, nao tenho nada que me afBija.
E' apprehensao vossa.
Mas o fogo de artificio ardera e a familia real re-
gressou ds salas para dan^ar o minuete de Haydn,
que era o epilogo obrigado de uma noite de festa
pa}ac']ana.
A rainha, a6 tomar assetvto t\o xVvcotvo, %s^ \».d<i
NINHO DK GUINCHO 1 67
de seu marido, viu o truao Falperra fazer duas mo-
mices graciosas e, contra o seu costume, ficou in-
differente.
O arcebispo de Thessalonica, espirito alegre e
desempoeirado, confessor da rainha, notou este facto
e, subindo os degraus do throno» aproximou-se de
sua magestade, fallando-lhe ao ouvido.
D. Maria I respondeu-ihe tambem em muita con-
fidencia.
O arcebispo sorrira. Entre confessor e confessada
nao havia segredos : elle tinha o direito de pergun-
tar ; ella o dever de responder. Se era um escru-
pulo que inquietava sua magestade, de pouca mon-
ta devia ser, pois que o arcebispo tinha sorrido. Mas
algum mysterio desvenddra elle, que tornou atraz
para lembrar A rainha a humildade de Job no sof-
frimento :
— Levo um cilicio cosido sobre a minha pelle, e
cobri de cinza a minha carne.
O mestre-sala D. Antao de Almada bateu palmas
e logo a musica da real camara deu o alamir^ do
minuete.
Organisaram-se os pares.
A rainha mandou convidar para seu parceiro o
velho duque de LafSes, agil e distincto ainda apesar
de velho. A escoiha de sua magestade tinha eviden-
temente um proposito politico. O duque, D. Joao
de Bragancja, acabava de voltar do desterro a que
o marquez de Pombal o havia condemnado. De
modo que o bracjo da rainha, encurvando-se no mi-
nuete para encontrar a mao do duque de Lafoes,
era como um arcoiris, s\gna\ osxttvivso d^^ ^\^^^^^
1 68 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
que se desenhasse benigno entre a monarchia e a
nobreza.
El-rei D. Pedro dan^ou com a duqueza D. Hen-
riqueta^ certamente por indica^ao da rainha, para
tornar ainda mais evidente o alto significado politi-
co da reconciliacjao.
O principe D. Jos^ teve como parceira a sua noi-
va, tao enamorados andavam aquelles recem-casa^
dos ditosos, a quern a lua de mel sorria promes^as
de longa felicidade, que uma prematura catastro-
phe mallogrdra.
Teve este minuete algum tanto de beltamente
mythologico, porque n'elle figuraram as Tre:{ Gra-
fas. Assim eram designadas na corte as encanta-
doras filhas do marquez de Mg^rialva : D. Maria do
Carmo, marqueza de Louie ; D Joaquin a, marqueza
de Lourigal; D. Henriqueta, duqueza de Lafoes.
Entre as damas gentis, que em tao avultado nu-
mero floresciam nas salas de Queluz, sobresahia
tambem, n'um alto relevo de distinc^ao, a alegre e
espirituosa duqueza de Cadaval, irma do duque de
Luxemburgo. •
Os penteados altos, toucados de perolas e mara-
bus; as c6res vivas dos vestidos rocagantes; os
pingentes, estrellas e coUares de pedras preciosas ;
as rendas que pendiam em flocos de espuma al-
vinitentc sobre os bracjos nus; e, mais que tudo
isto, a belleza, a elegante plastica, o quid nobre das
ragas finas, divinisavam todas aquellas lindas figu-
ras de mulher, dignas de serem agrupadas n'um
legue de Watteau.
A rainha ostentava um rico \^s>x\do de. l^^niasco
NINHO DE GUINCHO l6y
azul claroy ricamente lavrado em iBioroes e lacarias.
O justilhoy muito espartilhado, refulgente de estrel-
las de brilhantes, rematava em angulo agudo sobre
a cintura. Um decote modesto aflorava d*entre as
rendas do coUo. Sobre os cabellos levantados, o
diadema real. Nas orelhas, pingentes que se articu-
lavam em duas phalanges de pedras raras. Nas
maos, luvas bordadas, que subiam ate cobrir todo
o ante-bra^o. Pendente de um cordao de ouro, uma
ventarola de grandes pennas de avestruz, constel-
lada de pequeninas esmeraldas muito vivas.
Ao come^ar o minuete, a rainha nao parecia mais
tranquilla do que no momento em que o arcebispo
de Thessalonica Ihe recordou o versiculo de Job-
Sofiria. Na sua face^ doce e grave, passava sub-
tilmente uma contrac^ao dolorosa, que se repetia
por vezea, e que sua magestade procurava disfar-
^ar sorrindo. Bem quizera D. Maria I ser, n'essa
hora de requintada elegancia, uma das rudes cam-
ponezas que folgavam em liberdade no terreiro do
palacio. Sua magestade parecia querer retrair por
momentos a sua mao direita, que o duque de La-
f6es segurava respeitosamente na ponta dos dedos.
O minuete evolucionara n'um rythmo lento, cor-
tado de cadencias mesuradas. Ouvia-se ^ marca^ao
choreographica dos passos no marmore do pavi-
mento. As plumas dos penteados baloi^avam em
ondula^oes is6chronas, e os pares dan(;antes reque-
bravam-se em meneios gentis, e successivas liexoes,
pautadas e certas. Os espelhos enquadravam em
sumptuosas molduras de talha dourada a reprodu
cfao d'este minuete palaciauo, dw\divcv^o-o ^tcs. ^\i~
170 COLLECT AO ANTONIO MAKlA l»EREiRA
pes, e dando assim maior destaque e mais brilho a
cada par e a cada figura.
A rainha viu-se de relance n'um espelho, e ella
mesma reconheceu que a sua physionomia estava
perturbada.
Logo o versiculo de Job Ihe tornou a lembrar, e
d*elle pareceu receber sua magestade um novo es-
timulo de resigna(;5o e paciencia.
Quando o minuete terminou, e com elle o sarau,
a corte, esperando os coches no vestibulo do pala-
cio, trocava rapidas impress6es sobre o dessocego
da rainha, que a pouco e pouco se torndra evidente
aos menos intimos.
A nobreza mostrava-se apprehensiva, receiando
I que sua magestade comecasse a enfraquecer subi-
tamente na sua obra de restauracao politica.
O marquez de Pombal ainda de longe assustava,
esmagado.
O que teria a rainha ? perguntava-se.
Esta pergunta ficou sem resposta durante annos,
e s6 a obteve quando jd nao inquietava.
Por morte do arcebispo de Thessalonica appare-
ceu no seu diario o seguinte apontamento referido
ao anno de 1777 : uNoite de 6'. JoSo — Sua Mages-
tade a Rainha, segundo ella propria me declarou d
puridade, foi atormentada no sarau da c8rte em
Queluz por uma pulga contumaz e raivosa*, que re-
petidas vezes a mordeu, e muito a maltractou, sem
que Sua Magestade pudesse acudir a este molesto
incidente por ser contra a etiqueta retirar-se antes
de termlnado o minuete. Deus ordena ds vezes seus
grandes ens/namentos por internved[\o Afc tcMsa'^oi-
NINHO DE GUINCHO I7I
los objectos, mas a licao que vem do alto deve
aproveitar-se serapre porque e portadora de philo-
Sophia divina.»
S6 entao se ficou sabendo que n'aquella noite de
S. Joao, em Queluz, a divina philosophia tomou a
f6rma de uma pulga. •
1902
XX
O GALLO
A feira estava na sua hora de maior bulicio e
moviifiento.
Havia um ruido atroador e uma ondula(;ao vio-
lenta de guardasoes vermelhos, brancos ou verdes
com que os grupos de camponezes se defendiam da
calma intensa do sol.
Palavras de amor, trocadas em verso no estylo
da Maia, perdiam-se no c6ro immenso de outras
vozes humanas, pregoes de vendedores, guinchos
do rapazio, gargalhadas alvdres, assobios estridu-
los.
Por sua parte, os animaes dependentes do homem
imitavam-n'o n'esta inferneira colossal, ingente : as
gallinhas cacarejavam, os bois mugiam, os burros
zurravam, os porcos grunhiam, e de vez em quan-
do ouvia-se ganir um ca©, que os lavradores repel-
liam a pontapes.
De espa(;o a espa?o chegavam char-a-bancs enor-
jnes, frageis charrettes pintadas de amarello, breaks
repudiados pelos antigos donos.
NINHO DE GUINCHO lyS
Fez-me impressao um dos char-a-bancs, que en-
trou jQa feira rodando vagaroso por entre os grupos
para os nao atropellar e para nao espantar as rezes.
Conduzia um homem e sete mulheres.
O carro parou d porta da estalagem do Carneiro,
despertando a atten(;ao de muitas pessoas.
Logo ali se disse que o homem era o Brazileiro
da Portella, com as suas sete mulheres.
Um serralho ambulante !
Fiz entao maior reparo no sujeito.
Teria 46 annos. Estatura mea, hombros largos,
oeigos grossos, olhinhos pequenos, muito vivos.
Trazia chapeu de paiha e collete branco, esses
dois caracteristicos infalliveis do trajo de qualquer
brazileiro minh6to.
Foi elle que desceu primeiro. Apeiou-se e esten-
deu a mao a uma das sete mulheres, que dispen-
sou, sorrindo, a galanteria do macho. Aquella era
a Favorita; logo ali disseram. As outras seis des-
ceram umas atraz das outras, todas ellas saitando
galhardamente, em pinchos acrobaticos, sem que
o Brazileiro Ihes offerecesse o mesmo galante ap-
poio.
Trajavam saia de flanella, refegada, chambre de
merino, lengo de seda na cabeca ; cal^avam meia
preta e solfitas.
Nenhuma tinha ainda trinta annos.
Eram bons exemplares de mo?oilas do Minho,
accusando robustas florescencias de sebo e cevo.
Emquanto o aut6crata entrou na estalagem do
Carneiro, a encommendar o almoco, as sete mu-
Iheres ficaram & porta, cV\aT\^Ivdo ^Xfe^^tcsKe^XA^
174 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
n'uma familariedade muito intima, em que nao vis-
lumbrava a menor reserva de ciume.
Vi o Brazileiro a falar com a cosinheira da esta-
lagem, que era uma rapariga(;a escarolada e sadia,
e que parecia dizer-ihe n'um sorriso attractiva: tSe
precisar da oitava, cd estou eu.B
E elle, OS olhinhos mexendo muito vivos e ^aia-
tos, respondia-lhe# n'um olhar demorado : «P6de
ser. Gesteiro que faz um cesto, faz um cento. »
Encommendado o almogo, o Brazileiro juntou-se
ds sete mulheres e foram todos passeiar pela feira,
onde ellas compraram len^os de Guimaraes, chai-
les de casimira e anneis de cornalina.
O povo abria passagem ao sultao da Portella e
seu harem, dando mostras de respeito e acatamento,
d'onde inferi que a gente do Minho nao sente re-
pugnancia nenhuma pelos costumes turcos.
Gontaram-me entao a vida do Brazileiro, sobre a
qual eu lanco um veu discreto, comquanto elle,
Brazileiro, trazendo o serralho a passeio, parecesse
nao gostar de pudibundos veus, nem de areas en-
couradas.
Fazia jogo franco.
Mas contarei apenas a historia do gallo vivo,
symbolo heraldico da casa burgueza da Portella.
O Brazileiro possuia um lindo gallo, muito alto
e empennachado, opulento de c6res rutilantes, que
era tratado com as maiores deferencias e attencSes
por todo o serralho, porque uma cigana, lendo a
sina do sultao, Ihe dissera que o seu destino era o
mesmo do gallo e que ambos haviam de morrer no
mesmo dia.
NINHO DE GUINCHO ly.S
O Brazileiro, pensando n'este vaticinio, encontrou
facilmente uma certa rela9ao de semelhan9a entre
as duas cxistencias, e, querendo conservar-se a si
proprio, conservava o gallo.
Achei originalidade n'este pormenor, que me nao
•esqueceu durante um anno.
Uma vez escrevi para a provincia, e perguntei :
€0 gallo vive ?» Responderam-me : «Vivemambos.»
A cigana continuava a acertar, apesar do descre-
dito em que teem cahido as prophecias.
Mas, passados alguns mezes, recebi uma noticia
inesperada.
O Brazileiro da Portella tmha morrido repenti-
namente depois de uma ceia de orelheira e feijao
branco, como um odre que rebentasse.
Nao fez testamento, e o serralho ficou indjgnado
com essa imprevidencia que o reduzia d miseria,
porque appareceram logo sobrinhos do defunto, que
tomaram conta do espolio, guardando todas as cha-
ves das gavetas e do cofre.
Ahi pelo meio dia ainda as sete mulheres nao
tinham comido, e comtudo jd os herdeiros as ha-
viam despedido, severamente, em nome da moral
publica ultrajada.
As raparigas, antes de abandonar a casa da Por-
tella, lembraram-se do gallo, como de um salvate-
rio unico.
Deitaram-lhe a mao, amarraram-lhe o bico com
um len^o, e levaram-n'o sonegado.
Depois sahiram estardalhando gargalhadas e fo-
ram cosinhar e comer o gallo na adega do Padrao que,
tambem pertencia ao Brazileiro, e ftcava distante.
176 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Foi um dgape formidavel de estroinice ; uma
pandega rasgada.
Todas ellas beberam verdasco & «saude do mor-
toi) e da cigana.
Depois, dispersaram-se d procura do.pao nosso
das odaliscas.
Dizem-me que umas foram para o Porto, outras
para Braga e algumas talvez para a Turquia, visto
]A estarem habitudas aos costumes ottomanos.
•
Minho— 1902.
XXI
O ClUME
Dizia um jornal ha quatro dias:
«Foi hontem presa uma mulher que se vestiu de
homem para espionar o marido.
•Aconteceuihe ter ido para o calabouco n.® 4,
onde se conservou em travesti 2Xi que de casa Ihe
mandaram vestidos proprios do seu sexo.
•O ciume e negro, e o calabouco nao o i me-
nos.i
No amor tudo e negro quando deixa de ser c6r
de rosa.
Os meios tons sao proprios dos sentimentos que
envelheceram: da amizade, por exemplo. E nao se
diga que por ser antiga e apenas colorida a meias
tintas.. a amizade vale menos. Nao. Ella i como o
marfim, que se valorisa quando araarellece ligeira-
mente ou como os monumentos archeologicos quan-
do a pinna os reveste, pregoandoAVvt^^«i^^4^'&!t«
178 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
O amor, se i verdadeiro, vae aos extremos : &
confian^a ou ao ciume. Ou embriaga docemente
como o champagne ou requeima doentiamente co-
mo o absintho. E, como crean^a que €, segundo a
figura^ao mythologica, tao depressa cr€ como des-
crS ; agora confia, logo desconfia ; hoje sujeita-se^
imanha revolta-se.
Acontece ds vezes que da amizade nasce o aknor,
como da luz mdecisa da madrugada nasce o clarao
brilhante do sol. Mas e menos vulgar isso do que
degenerar o amor em amizade, empallidecendo nas
tintas e fixando-se apenas no desenho.
Havia dois primos. . .
As historias de amor mettem or dinariamente pri-
mos.
Ella chamava-se Laura e elle Carlos.
Tinham sido companheiros de infancia, vivido
juntos, sem que entre os dois houvesse mais do que
uma agradavel intimidade.
Qualquer d'elles passdra algumas vezes ptlo Jltrt:
ella com algum rapaz que encontrdra na sociedade;
elle com alguma rapariga com quem dan9dra uma
valsa.
Os dois poderiam fallar de tudo um ao outro —
menos de amor.
A' mesa de familia, como dois casados velhos,
tomavam o seu chd com torradas na companhia pa-
triarchal dos respectivos tios.
— O' Carlos, fazes favor de me passar os biscoi-
tos de Oeiras ?
— O' Laura, se me fizeses favor de passar aster*
radas. . .
NINHO DE GUINCHO I79
Um bello dia, quando ambos andavam nos vin-
te e dois annos, deram juntos um passeio ao
campo.
Ella, mignonne e graciosa', com um vestido claro
e fresco, appareceu cal^ando as luvas.
Carlos teve um deslumbramento inesperado a que
pretendeu esquivar-se dizendo com os seus botoes:
«Que tolicel Entao nao me estd parecendo hoje
muito bonita a Laura ! »
Ella, com a perspicacia de todas as mulheres,
surprehendeu essa impressao.
Partiram de carruagem para o campo com os
paes: fallavam menos que de costume ; mostra-
vam-se algum tanto sonhadores.
A' noite, quando voharam, tiveram visitas e en-
/trctivcram-se todos escrevendo perguntas enygma-
ticas em bocadinhos de papel, que iam passando de
mac em mao.
Laura escreveu: cAmas-me, Carlos?* e passou
o papellinho ao primo, que respondeu logo : <Des-
de esta tarde.»
Dentro de poucos mezes estavam casados.
Estes casos sao, i certo, menos vulgares que o do
incendio degenerar em rescaldo, o amor abrandar-
se em amizade — o que constitue o pao nosso do
coraqao
VS-se todos OS dias.
Mas o amor, no seu periodo de evdlu^ao, nao
passou nunca por boa pessoa : e um doido que de
tempos a tempos precisa coUete do for<;as.
NSo usa robe-dechambre nem sapatos de trazer
par casa, como a amizade.
l8o COLLECgAo ANTONIO MARIA PEREIRA
Nao poe ao acaso esta ou aquella gravata, co-
mo a indifterenga.
Se se julga feliz e confia, colloca na botoeira,
nao uma s6 flor, mas Uma,ramalho<;a campanuda;
se o ciume o desorienta, pisa a pes juntos a rama-
lho(;a, rasga o fato, dilacera com as unhas o co-
ra^ao.
Achava-se certamente n'este periodo agudo a mu-
Iher que ha diaflHf vestiu de homem para espionar
o marido.
Antigamente o ciume era uma paixao sanguina-
ria. Foi isso nos bons tempos da C61chida« Medea
era uma fera, que nem sequer poupava as crean-
9as innocentes, como se pode ver em Euripedes ^e
Gorneille.
Hoje o ciume entrou no caminho mais pratico da
surpreza e do ardil. Sem deixar de ser uma paixao
violenta, que rasga o fato e o cora^ao, e comtudo
menos brutal e feroz: jd nao estrangula crean(;as.
Pelos processos do artificio, pela «habil!dade» dos
tempos modernos, atiinge muita vez o triumpho, o
que nao quer dizer que nao soffra is vezes desas-
tres.
Essa pobre creatura ciumenta, de que resa a no-
ticia, errou o caminho, como a tragica Medea po-
dia errar a punhalada.
Querendo encontrar o marido, encontrou o cala-
bou90.
Adeus! 6 um desastre como outro qualquer.
Os grandes syndicateiros da actualidade tambem
^s vezes teem que fallir, e todavia ganham a par-
t/da muitas outras vezes.
NINHO DE GUINCHO l8l
E* urn azar : ganhar ou perder. O jogo nao tem
outra lei.
Para contrapor a esta «particlaperdida», lembro-
mc agora de um bello rober que foi ganho por
certa dama no whist -do ciume.
Quern p^rdeu foi o marido e. . . a outra.
O marido tinha ucna amante com quem gastava
rios de dinheiro.
A mulher legitima veio a sabel-o por um acaso
muito interessante.
Tinha entrado n'um luveiro da rua do Ouro Es-
cava escolhendo luvas, quando no espelho da loja
viu passarn'um /aMiiai/uma mulher apparentemente
loira.
— Quem e aquella creatura, sabe ?
O luveiro respondeu, dando informacSes para
sc tornar amavel :
— E' a amante de Fulano.
A dama empallideceu. Ouvira o nome do marido.
O luveiro continuou:
'^Mora na rua de S. Domingos A Lapa, n'um pre-
dio cinzento Vive com um estadao de princesa. Tem
carruagem da Companhia e camarote em S. Carlos.
E cal^ando d dama as luvas que ella tinha esco-
Ihido :
— Aquillo 6 pintura, porque ella nao 6 loira.
A dama afiectando serenidade :
— Sim?. . . Como todas. . .
Escusado sera dizer que^ depois de tao fulmi-
nante revela^ao, a esposa atraigoada foi d'ali A rua
de S. Domingos d Lapa ver qual era o predio em
que morava a amante de seu mmdio*
1 82 COLLECgAo ANTONIO MARIA PEREIRA
Nao podia chegar em melhor occasiao. A' porta
de um predio cinzento pardra um landauyumei loi-
ra^a apeiava-se. Era ella, a amante, a mesma que
vira passar na rua do Ouro.
Fixado o numero da porta, a esposa atrai^oada
comegou desde aquelle momento a machinar o modo
de dar cabo d'esse manage de contrabando*
Fazer uma scena Wolenta, era deitar azeite no
fogo.
Todo o homem que ama tern trez costellas de
cao : se o contrariam, morde.
Era preciso recorrer a qualquer processo habili-
doso ; mas importava que fosse efBcaz.
Ora, ha uma Providencia, que vale por um con-
selho de estado : € a dos que precisam achar uma
ideia. Acode-lhes sempre. O caso e invocal-a com
confian^a.
Uma vez fui procurar & rua da Paz o illustre
escriptor que se chamou Antonio Augusto Teixeira
de Vasconcellos.
Mandou-me entrar logo que me annunciaram.
Encontrei-o em toilette de trabalho, deitado so-
bre o leito, de papo para o ar, a fumar charuto.
— Estd doente ? perguntei-lhe.
— Nao. Estou a procurar dinheiro.
— Como ? !
— De um modo muito simples. Quando preciso
dinheiro, estendo me na cama, accendo um charuto
e ponho-me a olhar para o ar. Ao cabo de algum
tempo, comedo a vSr cahir dinheiro do tecto.
Sorri-me.
Ella acrescentou :
NINHO DE GUINCHO 1 83
— Ou a ver cahir alguma ideia, que vale dinhei-
ro. E cai sempre.
Acudia-Ihe a Providencia dos torturados, quando
Tcixeira de Vasconcellos a invocava com firme con
fian^a.
Ora essa mesma Providencia acudiu i esposa
atraigoada.
D'ahi a dlas leu no Diario de Noticias um annun-
cio que dizia: «Griada de quarto — Precisa-se uma
na rua de S. Domingos i Lapa, n.®. . . i.® andar.»
Era o andar da loiraga, no predio cinzento.
Deixou sahir o marido, pediu emprestado o fato
de uma das suas criadas, disse que ia jantar com a
mae e partiu para a rua de S. Domingos d Lapa —
toda afadigada, como quern tem pressa de chegar.
— E' aqui que precisam uma criada de quarto?
— E', sim. Tem informagoes?
— Estive em casa da senhora marqueza de. . .
Quando uma criada atira com o nome de um ti-
tular e como se trouxesse attestado de bom com-
portamento — em papel sellado.
— Entre para se ajustar.
A esposa encontrou-se em presen^a da amante,
estando disposta a acceitar todas as condi55es.
— O ordenado i tanto.
— Sim, minha senhora.
— Obrigacoes : ajudar-me a vestir, tratar do meu
banho e do meu quarto, e servir o chd d noite, quan-
do vem ^o senhor».
— Greio que v. ex.* nao teri razao de queixa.
— Pois entao estamos tratadas. Nao trouxe a sua
roupa ?
1 52 COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
— Irei buscal-a amanha, se v. ex.* der licenqa.
A's nove horas da noite, tocou-se & campainha.
A cosinheira disse: E' «o senhor».
A criada nova pediulhe:
— Fa^a favor de ir abrir, por hoje, que eu vou
arranjar-me d pressa. Gomo nao sabia a hora, nao
estava preparada.
A's 1 1 horas «a senhora» poz o dedo no timbre
para que servissem o chd.
A criada de quarto pegou na bandeja, parou 4
porta do gabinete cor de rosa, pediu licen(;a para
entrar.
— E' o chd, minha senhora.
O amante da loira^a, ouvindo aquella voz, deu
um salto na cadeira e voltou-se rapidamente para a
porta.
A criada pousou serenamente a bandeja sobre o
bufete.
Fulminado pela surpreza, o marido reconheceu a
mulher.
— O' Clementina, disse elle para a amante, fa-
zes favor de ir ver ao teu quarto se eu deixei \i a
minha carteira hoje pela manha?
— Estds inquieto !
— Julgo que a perdi.
A loira^a levantou-se em boa fe, e foi procurar a
carteira.
Entretanto o marido dizia 4 esposa :
— Quero que saias jd d'esta casa. Vem comigoe
perdoa-me.
., Quando a Joira<;a voltava sem a carteira, ouviu
bater a porta da escada.
NINHO DE GUINCHO l85
Era o amante que tinha fugido com a criada, de
bra^o dado.
Foi uma li^ao salutar por ter sido bem succe-
dida.
Mas, para se triumphar algiima vez, e preciso
correr o risco de fazer fiasco.
Nao perder nunca de vista este principio fun-
damental de todos OS jogos : que o meihor jegador
6 o que joga mais serenamente.
A mulher vestida de homem nao ganhou a par-
tida, porque foi logo ds do cabo.
Sendo mulher, vestiu se de homem: € o maior
dc todos OS cabos para uma mulher.
Pode-se-lhe chamar : das Tormentas.
E foi.
1899 — Maio.
XXII
A VESPA
Meio dia. Cae uma calma suave, de estio mode-
rado \ 6 o mez de agosto a chamar ]i pelo outono.
Os velhos dizem que nunca se viu.coisa assim :
estranham nao ter havido canicula.
Toda a villa parece anesthesiada n'uma quieta^ao
lethal. Janellas fechadas; portas entre-abertas. O
silericio da rua e apenas quebrado pela vozinha in-
consistente de uma rapariguita, que repete, dentro
de casa, uma cantiga nova, de que todo o norte do
paiz estd in^ado n'este momento :
Ora vai tu,
Ora Vai tu,
Ora vai, vai,
Que eu bem quero,
Mas TiSLO posso^
Ai! Ai!
As vSspas e as moscas, enganadas pelo calenda-
rJo, procuram sustentar as irad^ot^ do atyX\%o n^-
NINHO DE GUINCHO 1 87
rao portuguez. Passeiam no ar, zumbindo, mais in-
quictas do que nunca, porque Ihes parece qu^ o
sol nao 6 bastante forte, o verao bastante quente.
Acham-se roubadas. Que ^ feito do grande calor
de agosto, que asphixiava outr'ora os passarinhos ?
Nao sabem. Estd fajsificado; misturaram-lhe kaoli-
no. E' um verao mixordia.
E as vSspas e as moscas, desesperadas, aborre-
cem-se no ar, zumbindo.
As janellas estao fechadas; as portas apenas en-
tre-abertas, em respeito i tradi^ao dos dias de agos-
to ardentes.
A rapariga continua cantando dentro de casa ;
>'^ Ord vai tu,
Ora vai tu.
Mas para onde e que eilas hao de ir, as vespas e
as moscas?
Eis que uma vespa, talvez por ser mais supers-
ticiosa que as outras, parece tirar bom agoiro das
palavras da cangao, que a rapariga continua can-
tando dentro de casa.
AflFoita-se a percorrer toda a rua solitaria e morna.
Procura uma porta aberta, bem aberta, por onde
possa entrar sem receio de alguma cilada : entrar e
sahir depressa se for preciso.
Depara-se-Ihe uma unica, a do confeiteiro da vil-
la, que tern na montre a sua fornada de bolos finos e
de pao de 16 de Margaride, ainda quentes do fomo?
Bem fez a vSspa em fiar-se no vaticinio da trova:
Ora vai lu,
Ora vai ta.
1 88 COLLECiJAO ANTONIO MARIA PEREIFA-
Foi, e encontrou um lauto banquete de gulodices
exposto na mont re do confeiteiro.
Gorre a dar aviso ^s outras vespas e, dentro de
pouco tempo, um enxame enorme acampa sobre a
vidraca, prompt© a realisar o primeiro assalto logo
que tenha occasiSo de penetrar na montre.
As moscas seguem o caminho das vSspas e poi-
sam, contentes, na vidra^a, parecendo dispostas a im-
p6r ds vfispas o dilemma do sapateiro de Braga:
tOu havemos de comer todos ou ha de aqui haver
moralidade.>
Pobres moscas! Ellas nao estao ao corrente do
direito internacidnal moderno: la force prime le
droit.
As vSspas, mais instruidas,ouvem a imposi(;ao das
moscas e riem-se da sua ingenuidade politica.
Passa na rua um rapazito commendo um bocado^
de broa.
E' o pao que teem comido todos os grandes ho-
mens do norte, desde Passos Manuel, grande pelo
talento, ate ao conde de S. Bento, grande pelo di-
nheiro.
E quem sabe se aquelle rapazinho vird a ser um
grande homem do norte?
Pdra diante da montre a contemplar, cubi^oso, os
fesuitas^ as ^aniacoes^ os pasteis de Santa Clara.
Sente-se tantalisado pelo appetite: um d'aquelles
bolos fal-o-ia feliz.
Mas estd separado d'elles pela muralha da China
de um vidro.
Acha-se em frente do seu ideal, e nao p6de at-
dngil-o.
NJNHO DE GUINCHO 1 89
Tetn acontecido isso tantas vezes aos grandes ho-
mens. . . e aos pequenos!
E elle 6 pequeno duas vezes, por ser creanga e
por ser pobre.
De repente parece encontrar um meio de acal-
mar o seu appetite, resignando-se & pobreza.
Esfrega o pao de milho pela vidra^a da montre e
come-o depois.
Sabe-lhe talvez a doce, por suggestao.
Felizes as crean^as, porque, na sua mesma inge-
nuidade, sabem achar um meio de enganar o seu
ideal insaciado.
Nao acontece sempre isso aos grandes, principal-
mente aos grandes homens. . .
E, satisfeito, o rapazito desencosta-se da montre,
segue o rumo que levava, cantando como a creadi-
ta, como toda a gente, como este Minho todo,
agora :
Ora vai tu^
Ora vai tu,
Ora vai, vai,
Que eu bem quero,
Mas nao posso,
Ai! Ai!
Scnto-me no classico banco de pinho, dentro da
loja do confeiteiro. Pego nos jornaes recem-chega-
dos do Porto, e o seu noticiario afoga-me n'um di-
luvio de falsifica^oes, pao falsificado, documentos
falsificados, suicidio falsificado. Tudo falso... ate o
o verao. Aborre^o me, pedindo mentalmente a re-
surrei^ao d'aquelle famoso Epaminondas, que nem
por gracejo /a/seava a verdade.
igO COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Do que n6s precisamos e de muitos Epaminon-
das.
Chego a esta conclusao desoladora.
Ponho-me a olhar para a vidra<;a da montre e ob-
servo as vespas e as mdscas, em campo, luctando
pela vida umas e outras.
Gomo a vidraca se nao abre para Ihes dar entra-
da, todas ellas precisam ir pensando em outra coisa.
E entao as vespas pensam nas mdscas.
La force prime le droit: a vfispa pode mais do
que a mosca.
Por isso se entret^m a dar-lhe caca, com uma fe-
rocidade selvagem, que irrita os nervos do obser-
vador.
Ah! Deus sabe-muito bem o que fez. e porque o
fez. Se a v£spa fosse maior, seria ate para o homem
um inimigo terrivel.
Quero ser o libertador das mdscas, e lan^o mao
de uma toaiha para enxotar as vespas.
O confeiteiro avisa-me dos perigos da empreza,
dizendo :
— Nao fa^a isso. A vSspa e vingativa e audaz.
Se o homem a persegue, persegue ella o homem.
E entao, assim avisado sabiamente, resigno-me
a ver a hecatombe das moscas consumada pelas
v€spas.
Umas e outras esvoa^am sobre a vidraca.
A vespa manobra como um pirata, capeando as-
tuciosamente, para abordar a presa.
Dd saltos acrobaticos: poisa aqui, poisa acold.
Se encootra outra vSspa no caminho, tem com
e//a um conHicto rapido.
NINHO DE GUINCHO I9I
Diz-se que o homem 6 mau para o seu semelhan-
tc. Nem sempre e bom, realmente. Mas os outros
animaes sao bem peiores para os da sua mesma es-
pecie. A propria pomba, symbolo da candura, quan-
.do investe contra outra pomba, nao tern nada de
Candida, nem sequer nas pennas, que, ds vezes, fl-
eam enodoadas de sangue.
Depois de algumas investidas infructiferas, a vSs-
pa consegue prear a mdsca. E' a forca opprimindo
o direito : a diplomacia em acgao.
O primeiro cuidado da v£spa 6 cortar as azas i
mosca, para que nao possa fugir-lhe.
Aqui nos encbntramos outra vez com um sym-
bolo do ideal.
Cortar as azas! Quantas vezes, buscando um
ideal querido, nao se nos depara a v€spa trai^oeira,
que nao quer de n6s outra coisa senao cortar-nos
as azas !
Todos n6s alguma vez temos encontrado isso : a
vSspa que nos assalta na lucta pela existencia.
Emquanto a mdsca, perdidas as azas, se.agita
ainda, a vSspa passeia-a sobre a vidra^a n um feroz
triumpho.
E logo que a victima ]i nao p6de libertar-se, a
vSspa, convencida da seguran^a da conquista, altea
o voo e vae, no seu favo, devorar a mosca, tran-
quillamente.
Para que e preciso por a gcnte o pensamento na
Roma dos Cezares, nos combates do Golyseu, nos
espectaculos terriveis dos gladiadores romanos ?
Esta vidra^a de confeiteiro i tambem um Coly-
seu.
192 COLLEC^AO ANTONIO MARIA PEREIRA
Postos frente a frente o fraco e o forte, quein suc-
cumbe i o fraco.
Pois aqui se ve isso, sobre um vidro que resguar-
d^ijesuitaSy :{amacoeSy pasteis de Santa Clara, ainda
quentes, sahidos ha pouco do forno.
O mundo e grande, e todo elie nao e senao isto:
o combate da v^spa contra a mosca.
O ideal e um sonho da imagina^ao, e as contra-
riedades que o difHcultam podem bem representar-
se na vespa cortando as azas d m8sca.
A rapariguita, dentro de casa, continuava can-
tando:
Ora vai tu,
Ora vai tu,
Ora vai, vai,
Oue eu bem quero,
Mas nSo posse,
Ai ! Ai !
Maus versos e boa philosophia.
A mosca quer penetrar na monire; vae a vfispa
e corta-lhe as azas.
Ai! Ai! Gomo diz o estribilho da can^ao nova.
Minho— 1902.
XXIII
O BIGODE POSTigO
N'cstes dias de carnaval vai a pique a sericdade
dc muita gente boa.
E o diabo arma as coisas de modo, que sempre
fica de f6ra o rabo do gato.
Vem a saber-se tudo.
Bern serio e grave era aquelle nosso Filinto Ely-
sio, velho e triste, exilado c indigente, e comtudo
elle mesmo conta n'uma das suas odes — talvez
para fazer penitencia publica — o que Ihe aconte-
ceu em ccrto dia de carnaval.
Emborrachou-se.
Se elle o nao dissesse, ninguem o acreditaria.
Mas disse-o n'aquelle seu estylo, alids pittoresco,
que cheira a rape ultra-classico :
Uma noute do tres-loucado En^rudo,
De alto barulho, e dan9atriz far6fia,
De longo rabo-leva, e surriada,
De p6s, talco, filh6s, peruns, carni^a;
Eu co'a cabe^a quente^ e tk^Vs^Ao^ai
194 COLLECfAO ANTONIO MARIA PEREIRA
Co*os vapores de Baccho ebri-festante,
A redonda barriga ainda himpando
Co*o saboroso-atola-dente lombo
E certas trouxas de ovos comesinhas —
Embrulhado na rede, em Casa aos passes
(N5o mui seguros) punha a pontaria;
E jd Morpheu, das pontas dos cabellos
Se prendia, trepando-se d moleira,
Para no leilo me baquear d*um golpe,
Mai que os Penates curto saiidasse.
Dispo-me a trancos do prolixo fato.
Aqui me cai o len^o, ali se entorna
A caixa do tabaco; — mal sostidos
No bra^o da cadeira, se debru^am
Os cal96es co*o relogio...
Um classico em cuecas! Vejam se, f6ra do car-
naval, seria possivel que o austero Filinto se exhi-
bisse sem cal<;oes d tro^a de francelhos e gallici-
parlas !
e da algibeira
Pingam vintens, retinem no ladrilho,
E v3o, em caracol, correndo; — o gato
Pula dquem, pula diem; — co'a garra leve
Dd-lhe um bof^te, os tomba e os atabafa.
Dou pouco tino dos vintens rodantes
Do subtil gato resonante presa;
Antes durmo, sem ver, sem ouvir s6ca;
Como quem faz focinho ao mundo inteiro
Comparado c*um bom dormir machucho,
Entre fofos colchoes aboborado,
De mortaes barafundas esquecido.
'Se isto nao 6 uma bebedeira, tvao sd o (\ue seja.
Mas o bebcr e o dormir teem amda ^vxa d^^cvA-
NINHO DE GUINCHO IQ5
pa, porque os homens nao sao de ferro, incluindo
OS classicos. Bern forte era o porto de Leixoes,
feito de blocos enormes, mas porque ultimamente
tomou grandes pan^adas de agua do mar, foi-se
abaixo como Filinto.
Ha escandalos peiores no carnaval, e para a
gente descobrir alguns tern que suar o topete.
Comtudo, quem redige gazetas chega a adquirir
um tal ou qual faro de agente de policia ; com a
vantagem de poder inventar quando nao chega a
descobrir nada.
D'esta vez, porem, puz em descanco a imagina-
cao, porque descobri um caso verdadeiro, tao cer-
to como o commendador Juliao Rainho ser casado
com uma fresca dama quarentona, de lindas carnes
e cores, mulher sisiida, que era conhecida no sitio
do Arieiro pela designacao um pouco invejosa de
— commendadeira.
Muito amigos estes esposos, que passavam o dia
na janella, conversando um com o outro na mais
perfeita harmonia conjugal.
Mas justamente porque fossem muito janelleiros,
a visinhan^a. que os via cochichar i puridade, Jul
gava-se criticada por elles : d'ahi a alcunha de —
commendadeira, dada d mulher de Juliao Rainho.
A's vezes o commendador sahia de casa para vir
d Baixa tratar dos seus negocios, recebcr as suas
rendas.
De charuto ao canto da bocca, dizia adeus i mu-
lher, jd da rua, uma e muitas vezes, acenando Ihe
risonho com a ponta dos dedos.
Ella, quando o via sum\r-s^ ao \oTv^<t^\^^^MNc^-^^
196 C0LLEC9A0 ANTONIO MARIA PEREIRA
para dentro, e nao tornava a apparecer ate que elle
voltasse.
Os visinhos, as visinhas principalmcnie, davam
se a perros por nao haver n'aquella casa um escan-
dalo, que amarrotasse a indcpendcncia, a altivez
fleugmatica do commendador e da mulher.
Elle era considerado no Arieiro como um phos-
phor© amorpho. . . antigo.
D'antes, os phosphoros amorphos accendiam s6 na
caixa ; agora, dcpois do monopolio, nem mesmo na
caixa se inflammam.
Perdeu-se uma bcUa comparaqao !
A commendadcira, que se chamava D. Thereza
— unico pormcnor que os visinhos sabiam da sua
vida — era, pois, a caixa do coracao amorpho de
seu marido, n'aquelles bons tempos antcriores ao
monopolio dos phosphoros.
O que e certo e que os homcns da visinhanca
davam razao ao commendador Rainho para gostar
de sua mulher, que fazia Icmbrar ainda na frescura
dos quarenta annos um morango do Porto. Ncm
sequer Ihe faltavam, completando a comparacao,
uns signaesinhos pretos pelo rosto, como os dos
morangos. Coisa apctitosa para os entcndedores.'
Que n'isto de mulheres o entender e tudo. Muitas
se perdem por nao terem sido entcndidas nunca.
O commendador, quando vinha d Baixa, via
muitas mulheres magritas, esticadinhas, pessoasi-
nhas de metter no bolso para trocos miudos. Nao
gostava. Eram morangos de Cintra, que e cada
um para a cova de um dente. Elle ticvha Id em casa
um morango do Porto, de boa po\ipa, caiYvt.\it^xv<:.^
NINHO DE GUINCHO I97
e signaesinhos pretos engra^ados, que pareciam
postos a pincel.
De mais a mais depositava plena confian^a no
fundo de honestidade da mulher, porque n'aquelle
tempo ainda podia haver confianca em quaesquer
fundos portuguezes.
Nao chegara a ter nunca uma suspeita, um re-
ceio, a mais leve apprehensao sequer. Quando pre-
cisava sahir, punha o chapeu na cabega, mettia a
mulher no coracao, e vinha por ahi abaixo tao tran-
quillo como se trouxesse a D. Thereza bem agar-
rada pelo brago.
Nao tinham filhos, o que estimava, porque os fi-
Ihos tiram ao casamento o ar de namoro chronico.
Dao-lhe horas de alegria e contentamento, e cer-
to, mas roubam ao lar conjugal o que quer que
seja de sonho, que e bom conservar sempre.
O amor e de todas as coisas a que menos resiste
d divisao.
Tambem parecia ao commendador Rainho que
fora bem feliz com a criada, uma rapariga de Santa
Casa, que os dois esposos educaram a seu modo :
nada de conversas com os visinhos, nada de par-
lendas com os padeiros, indifiFeren(;a absoluta pela
guarda municipal.
Uma Vestal engeitada, que alimentava o fogo sa-
grado ... do fogao.
Mas o commendador Rainho ignorava de todo o
ponto que o que perde as cosinheiras e a symbo-
lica do abano.
Quando ellas espertam o lume, lembram-se de
que a monotonia da sua Vvda, o^t. ^ ^QaNj:> ^^s^s^-
igS COLLEC9AO ANTONIO MARIA PEREIRA
dorra das brazas, despertaria se uma forte mao as
abanasse tambem a ellas.
E come^am a procurar um abano no amor.
Depois um abano envelhece, gasta-se ; vem ou-
tro, comtanto que se pare<;a com o antigo.
E' por isso, talvez, que as criadas de servir nao
mudam de tropa: ficam sempre na guarda muni-
cipal.
Derivava placidamente a vida do commendador
Rainho na sua casa do Arieiro entre o charuto e a
mulher, a janella e a mesa, a mesa e o leito.
Nao havia ali perturba^oes domesticas, nem des-
gostos intimos.
E, para cumulo de felicidade, a rapariga da Santa
Casa nao roubava quando ia i porta comprar as
hortali^as e os legumes.
O commendador e a mulher estavam convencidos
d*isso — d'isso e d'outras coisas igualmente falsas.
Mas, pelo que respeita A felicidade de cada fa-
milia, n'uma hora cai a casa.
Certa segunda-feira gorda, & hora em que o ra-
pazio do Arieiro andava pelo sitio a tocar castanho-
las, o commendador ficou depois de almoco, sen-
tado n'uma chaise-longue da casa do jantar, a ler o
Diario de Noticias.
Tinha almocado bem, que e uma caracteristica
das pessoas felizes.
Nao sabe o que e ter felicidade completa na terra
quern se levanta sem apetite e com a bocca sabur-
rosa.
O commendador Unha posto a charutcira ao pe
de si, emquanto viajava menta\menx^ ^ot \A^\io^
NINHO DE GUINCHO IQC)
atraves do Diario de Notictas, passando das noti-
cias para os annuncios e de um bairro para outro.
Deu um geito ao corpo para maior commodidade
do estomago satisfeito, e a charuteira cahiu-lhe para
traz da chaise-longue.
Querendo apanhal-a, estendeu um brago, e en-
controu no chao uma coisa ao mesmo passo as-
pcra e molle, que nao era seguramente a charu-
teira.
Teve curiosidade de ^ er o que era, e viu um bi-
gode postico.
O seu primeiro pensamento foi de surpresa ; o
segundo de terror ; o terceiro de colera.
O inferno do ciume fizera a sua estreia n'aquella
casa, accendera as fornalhas, puzera rubro o cora-
cao do commendador.
Elle nunca jdmais tinha comprado na sua vida
um bigode postico, nem Ih'o haviam dado ou em-
prestado.
Como estava ali aquelle ? Quem o puzera ali ?
Mysterio ! tenebroso mysterio talvez !
Em sua casa entrava decerto um homem, que
vinha disfarcjado, e que alguma vez se esqueceria
do disfarce deixando-o ali.
Chamou a mulher gritando. Ella acudiu afflicta,
porque s6 estava habituada a ouvir suas fallas bran-
das e doces.
— O que e isto ? ! perguntou elle truculento.
— Isso o que ? Juliao!
— Fa^a-se tola ! A senhora nao v6 ? ! E' um bi-
gode !
— Um bigode ! Meu nao i corcv ctxv^x^.
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