Ministério das Colónias
BIBLIOTECA E ARQUIVO HISTÓRICO
Populações
indígenas
de Angola
Por José de Oliveira Ferreira Diniz,
Secretário dos Negócios Indígenas e Curador
: : : Geral da Província de Angola ; : :
COIMBRA
Imprensa da Universidade
: : : 1918
■:"
POPULAÇÕES INDÍGENAS
ANGOLA
REPÚBLICA PORTUGUESA
MINISTÉRIO DA.S COLÓNIAS
POPULAÇÕES INDÍGENAS
DE
ANGOLA
FERREIRA DINIZ
Secretário dos Negócios Indígenas e Curador Geral da Província de Angola
smíthso^
Ju" 1 6 m?
COIMBRA
Imprensa da Universidade
1918
s
INTRODUÇÃO
lendo sido nomeado Secretário dos Negócios Indígenas da
Província de Angola, quando esta repartição foi creada a ins-
tâncias do governador geral Norton de Matos, por dever do cargo
que desempenhamos, desde logo nos mereceu especial interesse o
conhecimento dos usos e costumes dos indígenas como base pri-
mor dial da orientação a seguir na administração e política indí-
gena. f
Assim, julgamos ter correspondido, o melhor que pudemos, ã
confiança com que nos honrou aquele ilustre governador quando
nos entregou a direcção de um dos ramos de serviço mais impor-
tantes da colónia, e entendemos ter interpretado os interesses da
República Portuguesa, no respeito que votamos pela vida e di-
reitos dos indígenas e pela conservação dos seus usos e costumes,
das suas instituições sociais, e concepções morais e religiosas que
não prejudicam os princípios humanitários das sociedades civili-
zadas nem a nossa soberania.
Nessa ordem de ideias trazemos a publico o produto do atu-
rado e persistente trabalho que ha quatro anos temos desenvolvido
no estudo das populações indígenas de Angola, quer surpreen-
dendo de visu a vida das mesmas populações em diversíssimas
regiões da província, quer reunindo as informações que oficial ou
extra-oficialmente solicitamos de todos os que com autoridade
VI
no-las podiam fornecer, quer ainda coligindo, analizando e apro-
veitando valiosos elementos que se encontram dispersos em traba-
lhos desta natureza. Está longe de ser um trabalho completo e
não temos a pretensão de o julgar isento de inúmeras deficiências.
Ao elaborá-lo tivemos especialmente em atenção o estudo das
populações indígenas na parte que mais devem interessar ao seu
..governo e administração, isto é, sob o ponto de vista sociológico,
habilitando o Governo com os elementos indispensáveis para a
elaboração da legislação especial para indígenas.
Sobre outros pontos de vista deverão seguir-se outros trabalhos
mais completos e detalhados, atingindo o estudo antropológico.
Na primeira parte descrevemos os usos e costumes das tribus
da raça negra, fazendo-o para algumas separadamente e para
outras em conjunto atendendo a que as suas afinidades, pela
origem, quási completa unidade filológica e a inteira semelhança
de usos e costumes só nos levaria, separando-as, a fastidiosas re-
petições. Neste caso estão as tribus que reunimos sob a denomi-
nação de N Golas; as do distrito da Lunda; as do planalto de
Benguela ou Bimbundus; as tribus directamente descendentes dos
Herreros ou Banctubas e outras.
Na segunda parte apresentamos , o estudo das tribus da raça
Boschjman. Não nos cabe a honra deste proficientíssimo trabalho.
VII
Encontramo-lo feito pelo Sr. Br. Manuel Alves da Cunha, vigário
capitular da Diocese de Angola, e já impresso, em provas, na
Imprensa Nacional de Loanda. Como este ilustradissimò missio-
nário desistiu de continuar a publicação dos estudos etnográficos
que encetou, por motivos que não conhecemos mas que respeitamos,
lamentando que não continuasse o seu valiosíssimo trabalho,
obtivemos permissão sua para incluir na nossa publicação o estudo
feito sob a raça Boschjman.
Na terceira parte fazemos o estudo etnológico ou de compa-
ração das populações indígenas, procurando deduzir ao mesmo
tempo os princípios de legislação e administração que, mais
adequadamente, deveremos estabelecer para as mesmas populações.
Em Apenso incluimos uma série de projectos de legislação
especial para indígenas. Não pretendemos que todos sejam o
melhor que se possa fazer e apenas consideramos o seu conjunto
como um basilar ensaio da legislação para indígenas que com
urgência carece de ser definitivamente estudada e decretada.
Se alguns, como o Código de Justiça Indígena, carecerão de
ser melhorados, corrigindo- os das deficiências que o nosso imper-
feito conhecimento da sciência do Direito não soube evitar, outros,
como o projecto sobre o Registo do Estado Civil dos Indígenas —
Recenseamento da população — Direito de Petição por escrito —
VIII
Organisação Politica Indigena — Trabalho Indigena — Acidentes
de Trabalho — Repressão da Vadiagem — Colónias de Correcção —
e o de Concentração e Isolamento das Habitações Indigenas, são
orientados na experiência colhida no cargo que desempenhamos ',
baseiam-se nas necessidades da ad?ninistração da colónia e repu-
tamo-los de urgente aplicação, especializando dentre eles o último
que citamos, que se nos afigura fundamental para a boa execução
de grande parte dos outros.
PARTE I
ESTUDO ETNOGRÁFICO
DAS TRIBUS DA RAÇA NEGRA
\
N'Golas — Tipo de Loanda
Popul. indígenas de Angola, pág. 3.
.VFyrry* y, o
CAPITULO I
N'GOLAS
I. — Dos Caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos designados por irPgolas.
— Situação geográfica. — População.
Sob esta designação, incluímos os ambaquistas, golungos, ca-
biris e dondos, que habitam a grande zona entre o Cuanza e o
Lifune e o Zenza, e que se estende para o oeste na circunscrição
civil de Malange até os rios Cuiji, afluente do Cuango, e Gola
Luije, afluente do Lucala.
Procedemos assim porque, tratando-se de povos que não cons-
tituem uma tribu bem definida, e que são o producto da fusão de
várias tribus, onde a percentagem de sangue europeu é enorme,
nos parece mais conveniente reuni-los em um mesmo agrupa-
mento.
Para o definir, fomos buscar a origem da palavra Angola,
apelido que usava um parente do rei do Congo, que em épocas
remotas emigrou para Loanda, e que estendia os seus domínios,
pelo menos, em grande parte dos territórios que actualmente
habitam os povos que agora designamos por N'golas.
Os povos que actualmente ocupam a zona acima designada
tem variadíssimas origens, algumas das quais não é fácil deter-
minar. Além da gente do rei Ngola, que muitos autores consi-
deram como sendo os ascendentes dos Jingas, os quais deixaram
descendentes em Pungo Andongo, a grande maioria da actual
população que convencionamos designar por N'golas é, por vir-
tude de ter sido esta zona aquela onde primeiro e com mais
intensidade se exerceu a colonização, descendente dos antigos
i POPULAÇÕES INDÍGENAS
escravos, em que havia representantes de quási todas as tribus
da província.
A população, principalmente devido ao alcoolismo, à doença
do sono e ao cruzamento destes povos com europeus, em deter-
minadas regiões, como Cazengo, foi quási que dizimada; só
ultimamente, com as medidas tomadas sobre profilaxia sesoná-
tica e de tripanosomiase, se mantém estacionária na maior parte
da zona ocupada por estes povos parecendo tender a aumentar
em outros, como Icolo e Bengo e Golungo Alto, como se vê pelo
número elevado de crianças que o recenseamento da população
do ano de 1913 nos acusa:
Circunscrição
ou concelho
Loanda
Alto Dande . .
Icolo e Bengo
Cazengo
Golungo Alto
Ambaca
Ho-
mens
vá-
lidos
1:990
2:996
1:880
1:200
3:753
2:069
Mu-
lheres
vá-
lidas
3:900
3:636
2:303
650
6:562
2:342
Fopulação indígena
amamm
Crianças
Infância
Varões
900
523
3:295
408
1:670
1:551
Fê-
meas
1:500
645
3:690
825
1:920
2:000
Juventude
Varões
480
661
,2:785
629
1:129
1:902
Fê-
meas
790
770
3:082
785
1:287
2:300
Tnvá
Lidos
Varões
Fê-
meas
60
40
131
160
86
140
902
437
206
118
1:624
1:826
Total
9:660
9:492
17:261
5:836
16:645
15:614
Os povos que designamos sob o nome de N'golas são fracos e
pouco resistentes, o que contrasta com qualquer das tribus que
lhes são visinhas, e que tem ainda a sua explicação nas razões
acima expostas. Na verdade, tendo sido nesta zona onde mais
se fez sentir a nossa colonização nos primeiros tempos da ocu-
pação portugueza, os habitantes dela são já descendentes dos
mestiços, produto do cruzamento dos primeiros europeus que
ali se estabeleceram e dos povos que ali encontraram ou que
para ali foram escravizados.
Os N'golas são, em geral, de estatura regular, a coloração da
pele um preto avermelhado mais ou menos carregado, cabelos
curtos encarapinhados e de côr preta, olhos de forma oval e a
íris em geral amarelada, nariz largo mas pouco chato, as orelhas
normais; as mulheres tem os seios um pouco alongados, devido
à forma de traçar os panos.
N'Golas — Tipo de Loanda
Popul. indígenas de Angola, pag. á.
DE ANGOLA
Ê raríssimo encontrar entre os N'golas o bócio ou steatopígia.
Não é vulgar o albinismo; no entanto, em Pungo Andongo en-
Um caso interessante de albinismo
ena Pungo Andongo
contramos um caso curioso de albinismo, cuja fotografia jun-
tamos.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo — Vestuário ■— »
Habitação — Alimentação — Meios de
existência — Artes, sciências e faculda-
des intelectuais*
Merece-lhes pouco cuidado a higiene do corpo, usando o banho
nos rios, mais por divertimento do que por asseio. Outro tanto
6 POPULAÇÕES INDÍGENAS
não sucede com o asseio da boca, que diariamente lavam, em-
pregando alguns um pequeno pau, a que chamam muindo, com
que esfregam demoradamente os dentes.
Cortam o cabelo, tanto os homens como as mulheres, conser-
vando-o sempre curto, servindo-se uns da tesoura e outros de
faca, e usam as unhas muito cortadas igualmente à faca.
*
# #
É raro que estes povos usem como adorno, no próprio corpo,
a aplicação de cores, sendo frequente, no entanto, a tatuagem e
as cicatris étnicas. Em geral, só as mulheres tem por costume
usar colares, pulseiras e brincos de missanga ou de metal. Na
sua grande maioria, o vestuário usado é o pano, nos homens
preso pela cintura e nas mulheres traçados por cima dos peitos
e por debaixo dos sovacos. Os homens, na maioria, usam cami-
solas, camisas e casacos, e, quando não se servem deste vestuário,
adquirido no comércio, cobrem o tronco com um pano. As mu-
lheres vestem também uns chambres ou usam o pano para lhes
cobrir a parte superior do corpo. É raríssimo encontrar uma
mulher que use saias, mesmo entre as mais abastadas, as quais
trajam panos de melhor qualidade, e, além dos usuais — o traçado
por debaixo dos sovacos, aquele que deitam pelas costas e o
chambre — costumam pôr pela cabeça um outro pano preto,
cobrindo-as quàsi totalmente; algumas amarram a cabeça com
um lenço.
Entre os homens está muito divulgado o uso das calças, e os
mais abastados vestem em geral à europeia, usando de preferên-
cia a côr preta.
Os panos são confecionados por quem os há de usar, empre-
gando-se as chitas, riscados e outras fazendas de origem euro-
peia.
Nos homens, é vulgar o uso de calçado, bem como de chapéu
e bonés; as mulheres raramente usam calçado.
O tipo de habitação é a cubata, de forma rectangular, de
pau a pique, revestida de colmo ou barreada, e com cobertura
igualmente de colmo. Parecendo que, pelo seu contacto com os
europeus, estes povos deveriam cuidar mais da sua habitação,
assim não sucede, porque as suas cubatas são na maioria baixas
e sem janelas.
N'Grolas — Cicatrizes étnicas (Loanda)
PopuJ. indígenas de Angola.
(6]
DE ANGOLA 7
Escolhem de preferência para local da habitação os lugares
baixos e junto dos rios, não só porque os terrenos se prestam
melhor ás culturas, mas ainda por causa da água. Não há ce-
rimónias especiais para a construção da habitação, nem é cos-
tume ser consultado o feiticeiro.
A mobília consiste em uma tarimba, construída com quatro
paus a pique e outros atravessados, sobre os quais colocam uma
esteira, que serve de cama, e bancos feitos de troncos de mafu-
meira.
Usam para iluminação o azeite de palma, o petróleo e as
fogueiras.
A população está muito dispersa, e, a não ser na região de
Catete e Cassoneca, onde se encontram grandes povoações (san-
zalas), as cubatas encontram-se espalhadas ou agrupadas em
pequenas sanzalas. A distribuição das cubatas nas sanzalas é
em linhas mais ou menos tortuosas.
A base de alimentação é mista, predominando, no entanto, a
alimentação vegetal. A mandioca e o milho são as suas princi-
pais subsistências, a que se vem juntar a batata doce e o
dendem. O peixe fresco ou seco faz igualmente parte da ali-
mentação, onde o há, e a carne é manjar sempre estimado.
Além da água, as bebidas usadas são o vinho de palmeira,
(marufo) a aguardente, o hidromel e todas as bebidas fermen-
tadas de ceriais.
Entre estes povos é vulgar o uso dos fósforos para produzir
o fogo, sendo raro lançarem mão da fricção ou percussão.
A preparação culinária é feita pelas mulheres, usando como
tempero o sal, azeite de palma, jindungo, e algumas a cebola.
Comem crus: a batata doce, a mandioca e o dendem; os restantes
alimentos são cosidos ou assados.
Com a farinha, base principal da alimentação, preparam as
papas de farinha de mandioca, de milho ou de massango (funji)
que é prato obrigado, e que é acompanhado de um molho pre-
parado com azeite de palma. Para preparar o funji ou infundi,
como vulgarmente se denomina, é a farinha diluida em água a
ferver e mexida com uma colher ou mesmo um pau até tomar a
consistência de massa de pão.
8 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Para a preparação da farinha de mandioca são os tubérculos
desta postos em água até principiarem a fermentar, para serem
destruídos os princípios venenosos; são depois descascados, e
por fim secos ao sol. Só depois disto se reduzem a farinha por
meio de pilão. Esta farinha é ás vezes torrada para se poder
conservar.
Dos tubérculos da mandioca prepara-se uma outra farinha,
rolando estes e espremendo a massa para lhes extrair os sucos
venenosos, sendo depois seca e torrada, formando a chamada
farinha de pau, com que fazem o pirão.
A farinha de que se servem pode ser igualmente de milho ou
de massango, sendo também preparada por trituração no pilão.
A farinha é peneirada em uma espécie de cesto feito de tiras
delgadas de mateba, que se denomina kibando.
Na grande maioria, estes povos tomam duas refeições por dia
e em comum.
#
Uma das ocupações a que se entregam os homens, em algumas
regiões, mesmo com verdadeira paixão, é o caçar. Em parte
destes povos, como nos de Icolo e Bengo, os caçadores cons-
tituem uma espécie de associação ou classe privilegiada, e a
profissão de caçador não pode exercer-se sem que o candidato
tenha prestado um certo número de provas perante o chefe dos
caçadores, e muito principalmente lhe tenha entregado uma
determinada quantidade de aguardente. Usam para caçar espin-
gardas de espoleta e pederneira.
Exercem a pesca ao anzol, com rede nos rios e com sebes nas
regiões das lagoas, quando as águas destas começam a diminuir.
Pescam o cacusso, o bagre, o pargo, o robalo, etc, que em geral
secam ao sol.
Em Loanda, encontram-se bairros indígenas, como o da ilha
fronteira à cidade, o da praia do Bispo e o do Bungo, vivendo
exclusivamente de pesca, e que abastecem de peixe o mercado
de Loanda.
Não obstante serem estes povos os da província que maia
relutância tem pelos serviços agrícolas, a sua indolência não tem
um caracter tão exagerado como se afirma, dedicando-se em
geral à agricultura.
Álêm de cultivarem a mandioca, o milho, o massango, o feijão
N'Golas — Cicatrizes étnicas (Loanda)
Popul. indígenas de Angola.
DE ANGOLA 9
e a batata doce, tratam da palmeira e dedicam-se à cultura do
algodão, principalmente na região Catete-Cassoneca.
Não adubam nem regam os terrenos, e empregam nos traba-
lhos agrícolas a enxada, a catana e o machado. Em geral, os
terrenos são apenas capinados e a semente deitada à terra em
pequenas covas.
Na região planáltica, proximidades de Malange e Pungo An-
dongo, dedicam-se à criação de gado, principalmente à criação
de gado bovino; nas outras regiões, à criação do gado suino,
caprino e lanígero.
Entre outras indústrias que exercem, mais ou menos rudi-
mentarmente, mencionaremos a de olaria, principalmente em
Cabiri, a de cesteiro e cordoaria, e a de moagem, a que já tivemos
ocasião de nos referir. Em obras de madeira, existe uma indús-
tria muito importante, a de construção de embarcações, feitas de
mafumeira e duma só peça, desbastando-a e escavando-a para
lhe dar a forma.
Costumam algumas mulheres adquirir panos brancos, que tin-
gem de preto, metendo-os em uma infusão de tacula e barro negro.
Na maioria, os homens tem uma certa aversão a servir de
carregadores, sendo mesmo difícil, em algumas regiões da zona
por eles ocupada, angariar carregadores.
Em Loanda, encontram-se actualmente cozinheiros, criados
de meza e lavadeiras com relativa facilidade, não sendo neces-
sário recorrer ao tradicional creado Cabinda.
No que diz respeito à arte de escrever empregando sinais
convencionais que representem idêas, palavras ou sons, entre
estes povos não se encontram a não ser marcas ou sinais, que é
vulgar encontrar junto aos caminhos para indicar o trajecto
seguido aos que mais atrazados vem.
A língua falada é o Kimbundu (ki — linguagem, umbundu —
pretos), pertencente à família das línguas bantu, falada pela raça
negra.
Os substantivos ou nomes da língua kimbundu dividem-se,
segundo o seu prefixo, em dez classes.
1.» CLASSE
SINGULAR —PREFIXO Mu
Mutu — pessoa.
Muhatu — mulher.
Mukongo — caçador.
Munbundu — preto.
2
PLURAL — PREFIXO A
Atu — pessoas.
Ahatu — mulheres.
Akongo — caçadores.
Ambundo — pretos.
10
POPULAÇÕES INDÍGENAS
2.» CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Mu
Mukanda — carta.
Mutue — cabeça.
Muxi — pau, árvore.
Mukoko — coqueiro.
PLURAL — PREFIXO Mi
Mikanda — cartas.
Mitue — cabeças.
Mixi — paus, árvores.
Mikoko — coqueiros.
3.a CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Ki
Kimbanda — curandeiro.
Kialu — cadeira.
Kima — coisa.
Kinda — cesto.
PLURAL — PREFIXO
Imbanda — curandeiros.
Ialu — cadeiras.
Ima — coisas.
Inda — cestos.
Com os prefixos desta classe formam-se os aumentativos.
Ex. : kihatu — mulherona ; ihatu — mulheronas.
SINGULAR
4.» CLASSE
PREFIXO Ri PLURAL — PREFIXO Ma
Rilonga — prato.
Ribulu — coelho.
Ritui — orelha.
Ribitu — porta.
Riala — homem.
Ributi — ferida.
Riniota — sede (rinhota-ni soa
como nh).
Malonga — pratos.
Ma buiu — coelhos.
Matui — orelhas.
Mabitu — portas.
Mala (maala) — homens.
Mabuti — feridas.
5.a CLASSE
SINGULAR — PREFIXO U PLURAL — PREFIXO Mau
Mauanda — redes.
Mauta — armas.
Maulungu — canoas.
Uanda — rede, tipóia.
Uta — arma.
Ulungu — canoa.
O prefixo mau pode contrair-se em mo, por exemplo: mau-
lungu — canoas — molungu; mata — espingardas, por mauta.
O prefixo u serve também para a formação dos nomes abstractos.
Exemplos : haxi — o doente ; uhaxi — doença ; nzambi — Deus ;
unzambi — divindade.
6.a CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Lu
Lumbu — muro.
Lumuenu — espelho.
Lubambu — corrente.
Lukuaku — mão.
PLURAL — PREFIXO MalU
Malumbu — muros.
Malumuenu — espelhos.
Malubambu — correntes.
Malukuaku — mãos.
Maku (mais usado) — mãos,
, k% k J5f.- * *
N'Golas - Forma do conduzir os filhos (Loandai
Popul. indígenas de Angola.
(Hl
DE ANGOLA
11
7.» CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Tu
Tuji — escremento.
Tubia — fogo.
Tujola — tesoura.
PLURAL — PREFIXO MatU
Matuji — escrementos.
Matubia — fogos.
Matujola — tesouras.
Há nomes que começam por tu, e que não pertencem a esta
classe mas à classe xi, como tulu — peito ; jitulu — peitos ; fazendo
aquela sílaba parte do radical e não sendo um prefixo.
8:a CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Ku PLURAL — PREFIXO MakU
Kuria — comida.
Kunua — bebida.
Kuf ua — morte.
Kukutunga — costura.
SINGULAR
Ima— macaco.
Funda — acampamento.
Hoji — leão.
Imbua — cão.
Poko — faca.
Makuria — comidas.
Makunua — bebidas.
Makufua — mortes.
Makutunga — costuras.
9.a CLASSE
PLURAL — PREFIXO Jf
Jima — macacos.
Jifunda —Acampamentos.
Jihoji — leões.
Jimbua — cães.
Jipoko — facas.
Quási todas as palavras estrangeiras pertencem também a esta
classe. Exemplos : kabalu — cavalo ; jikabalu — cavalos.
Quando um nome tem por letra inicial i, este elide-se no
plural. Exemplos : inzo — casa ; plural : jinzo — casas.
10.a CLASSE
SINGULAR — PREFIXO Ka PLURAL — PREFIXO Tu
Kahoji — leãozinho.
Kahatu — rapariga,
Kamubika — escravazinha.
Tulioji — leõezinhos.
Tuhatu — raparigas.
Tumubika — escravazinhas.
DA CONCORDÂNCIA
Em kimbundu, tanto os nomes como os verbos e os adjectivos con-
cordam com o nome a que se referem por meio do genitivo, que se obtêm
acrescentando a partícula a ao prefixo de qualquer das classes. No
entanto, o que fica exposto não se pode tomar como regra, porquanto, se
há nomes, como os das classes l.a (no plural), 3.a, 4.a, 5.a (no singular), 6.a
(no singular), 7.a (no singular), 3.a (no singular), 9.a e 10. a, que formam o
seu genitivo juntando a partícula a aos seus prefixos concordantes,
12
POPULAÇÕES INDÍGENAS
outros há que, como os das classes l.a (no singular), 2.a e 5.a (no plural),
6.a (no plural), 7.a (no plural) e 8.a (no plural) formam o seu genitivo, res-
pectivamente, em ua, ua-ia, ma, ma, ma, e ma.
Quadro dos prefixos concordantes, segundo as classes a que pertencem,
e seus correspondentes genitlvos
Prefixos concordantes
Genitivos
Classes
.
Singular
Plural
Singular
Plural
1.»
mu
a
ua
a (a -f a = a)
2.a
mu
mi
ua
ia
3.a
ki
i
kia
ia
4.a
ri
ma
ria
ma (a + a = a)
5.a
u
mau
ua
ma (a -f- a = a)
6.a
lu
malu
lua
ma (a + a = a)
7.a
tu
matu
tua
ma (a -f- a = a)
8.a
ku
maku
kua
ma (a + a = a)
9.a
—
ji
ia
já (contracção de ji e a)
10.\
ka
tu
ka (a -\- a = a)
tua
EXERCÍCIOS
Muhatu ua mukongo — a mulher do caçador.
Mukanda ua mundele — a carta do branco.
Mutue ua muhatu — a cabeça da mulher.
Kinda kia makoko — o cesto dos cocos.
Rilonga ria kuria — o prato de comida.
Ribito ria inzo — a porta da casa.
Mauta ma mukongo — as espingardas do caçador.
Maku ma muhatu — as mãos da mulher.
Tubia tua mulogi — o fogo do feiticeiro.
Makuria ma mindele — as comidas dos brancos.
Jimbua ja funda — os cães do acampamento.
Kamona ka mahatu — o filhinho da mulher.
PRONOMES PESSOAIS
Eme — eu. Etu — nós.
Eie — tu. Enu — vós.
Muene — êle. Ene — eles.
PRONOMES POSSESSIVOS
Ami — meu.
É — teu.
Ê — seu.
Etu — nosso.
Enu — vosso.
A — seu.
N'Golas — Celeiros indígenas
N'Golas — Celeiros indígenas
Popul. indigc7ia<t de Angola.
(12)
DE ANGOLA
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14
POPULAÇÕES INDÍGENAS
PRONOMES DEMONSTRATIVOS
Os pronomes demonstrativos, segundo o grau de proximidade ou
distância tem três formas : uma para indicar uma pessoa ou coisa muito
próxima da pessoa que fala, outra uma pessoa ou coisa um bocado mais
afastada desta e outra para muito longe.
Concordância dos pronomes demonstrativos com os substantivos,
segundo as suas classes
Prefixos con-
cordantes
Exemplos
Hl
u
CD
Plural
Singular
Plural
6
Cfl
1.»
mu
a
mutu iú ou ió — esta pessoa.
> atu á ou iá — estas pessoas.
2.a
mu
mi
mukanda ó — essa carta .
mikanda oio ou ioio — essas
cartas.
3.a
ki
i
kinda kiná — aquele cesto .
inda iná — aqueles cestos.
4.a
ri
ma
rilonga eri ou reri — este
prato
malonga ama, mama ou
mona — estes pratos.
5.a
u
mau
ulungo ó — essa canoa . . .
maulungu orno ou momo —
essas canoas.
6.a
lu
malu
lumbu luná — aquele muro .
malumbu maná — aqueles
muros.
7.a
tu
ma tu
tujola otu ou tutu — esta
tesoura
ma tujola ama, mama ou
morna — estas tesouras.
8.a
ku
maku
kunua oko ou koko — essa
bebida ,
mukunua orno ou momo —
essas bebidas.
9.a
—
ji
polo eji ou iji — esta cara. .
jipolo eji ou jiji — estas
caras.
10.a
ka
tu
kahoji oko ou koko — este
leãozinho
tuhoji oto ou totó — estes
leõezinhos.
PRONOMES INTERROGATIVOS
Inii ? — que ? qual ?
Kuxi ? kikuxi ? — qual ? quanto ?
Lukuxi ? — quantas vezes ?
Luakakuxi ? —[qual vez ?
Ebi ? — onde ?
Nanii ? muhuanii (mukuainii) ? — quem ?
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N'golas — Preparação da farinha
Popul. indiffena-t cie Angola
(14)
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N'Golas - O pilão
Popul. indígenas de Angola
(14 a)
DE ANGOLA
15
NUMERAIS CARDINAIS
1 — moxi.
2 — iari.
3 — tatu.
4 — uana.
5 — tanu.
6 — samanu.
7 — sambuari.
8 — nake.
9 — ivua.
10 — kuinii.
11 — kninii ni moxi.
12 — kuinii ni iari.
13 — kuinii ni tatu.
14 — kuinii ni uana.
15 — kuinii ni tanu.
16 — kuinii ni samanu.
17 — kuinii ni sambuari.
18 — kuinii ni nake.
19 — kuiniivua.
20 — makuiniari
30 — makuinia-tatu.
31 — makuinia-tatu ni moxi.
40 — makuinia uana,
41 — makuinia-uana ni moxi.
50 — makuinia-tanu.
51 — makuinia-tanu ni moxi.
60 — makuinia- samanu.
61 — makuinia-samanu ni moxi.
70 — makuinia-sambuari.
71 — makuinia-sambuari ni moxi.
80 — makuinia-nake.
81 — makuinia-nake ni moxi.
90 — makuiniivua.
91 — makuiniivua ni moxi.
100 — háma.
200 — háma jari.
300 — háma jitatu.
400 — háma jiuana.
500 — háma jitanu.
600 — háma jisamanu.
700 — háma sambuari.
800 — háma nake.
900 — háma ivua.
1000 — kuinii ria háma.
Rianga — primeiro.
Kaiari — segundo.
Katatu — terceiro.
Kauana — quarto.
Katanu — quinto.
NUMERAIS ORDINAIS
Kasamanu — sexto.
Kasambuari — sétimo.
Kanake — oitaxo.
Kavua — nono.
Kakuinii — décimo.
VERBOS
Eme ngolobanga — eu faço, eu luto.
Eme ngabanje — eu fiz.
Eme ngabanjele — eu fizera.
Forma negativa
Eme ki ngibangami — eu não faço.
Eme ki ngolabangami — não estou fazendo.
Muene ki kabangie — êle não faz.
Ene ki kabangeria — eles não fizeram.
Ene ki ngakexiriami mubanga — eu não estava fazendo.
Enu ki muakexirienu mubanga — vós estáveis fazendo.
Eme ki ngondobadgami — eu não farei.
ADVÉRBIOS
Qualidade
Kiambote, kiauaba — bem. Kiaiiba — mal.
16
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Quantidade
Kiavulu, hionene — muito. Kiofele — pouco.
Número
U moxi — uma vez. MaVulu — muitas vezes.
Lelu — hoje.
Mungu — amanhã.
Maza — ontem.
Mumu — aqui (dentro).
Boba — aqui (sobre).
Kuku — aqui — (junto).
Momo — lá (perto) dentro.
Bobo — lá (perto) sobre.
Tempo
Lugar
Munguriná— depois de amanhã.
Mazariná — aníes de ontem.
Kindala — agora mesmo.
Koko — lá (perto) junto.
Muna — lá (longe) dentro.
Bana — lá (longe) sobre.
Kuná — lá (longe) junto.
interrogativos
Ebi? kiebi? kié? — como?
Muebi? buebi? — aonde?
Ene, exi — sim.
kana — não.
Afirmação e negativa
Kiene — é assim.
Ki kiene ê — não é assim.
INTERJEIÇÕES
Xé! é! — (para chamar a atenção).
E' ngana!-— ó, senhor!
ai! — dôr.
tatá! tatá
admiração.
VOCABULÁRIO
Ku amba — dizer.
Anga — ou.
Ku beka — trazer.
Ku enda — andar.
Ku haha — ofegar.
Ku jiba — matar.
Kahatu — rapariga.
Kiala — unha.
Ku kula — crescer.
Ku lamba — cozinhar.
Lelu — hoje.
Ku lundula — empurrar.
Makania — tabaco.
Maniinga — sangue.
Mazariná — anteontem.
Mbolo — pão.
Mueniu — vida.
Mungu — amanhã.
Ngandu — esteira.
Ku ongeka — ajuntar.
Poko — faca.
Ribata — choupana.
Ribengu — rato.
Ritui — orelha.
Sanji — galinha.
Ku sota — procurar.
Ku sunga — puxar.
Ku takula — lançar.
Ku texi — deitar fora.
Ku ambata — levar.
Ku bana — dar
Bokona — entrar.
Kufua — morrer,
langu — capim.
Ku jima — apagar.
Kalunga — mar.
N'G-olas — Reduzindo a mandioca a farinha
Popttl. indígenas de Angolt
(16)
DE ANGOLA
17
Kiba — pele.
Ku kusuka — estar vermelho.
Kimbamba — carga.
Lumbi — inveja.
Lusolo — pressa.
Makutu — mentira.
Mazá — ontem.
Nbiji — peixe.
Muebu — sobrinho.
Mulundo — montanha.
Ndemba — cabelo.
Nguzu — força.
Pangue — irmão.
Riala — homem.
Ribitu — porta.
Rigina — nome.
Rileçu — lenço.
Kusoma — carregar.
Ku sula — forjar.
Ku ta — pôr.
Tatá — pai.
Ku titila — palpitar.
Ku tona — acordar.
Ku tumaka — obedecer.
Ku tunga — construir.
Uoma — medo.
Uta — espingarda.
Xibulu — discípulo.
Xingu — pescoço.
Ku zangula — levantar.
Ku zuela — falar.
Kikumbi — noiva.
Ku tonesa — acordar-se.
Ku tumbuka — saltar.
Ualua — cerveja.
Usuku — noite.
Ku xala — ficar.
Ku xinga — insultar.
Xitu — carne.
Ku zola — amar.
Ku zuza — assar.
Kiselo — criado.
PROVÉRBIOS .
Muzueri uonene kalunguê — o falador grande não tem razão, cão que
ladra não morde.
Kima katariê ku mukila uê — o macaco não repara no rabo dele, ninguém
vê o argueiro no seu olho.
Tua rijia jipolo tua rijietu mixima — nós nos conhecemos pela cara, não
nos conhecemos pelo coração; pelas obras e não pelo vestido é o ho-
mem conhecido.
Kuba ki kutexiê kuenda ki kujimbiriFê — dar não é desperdiçar, andar
não é perder-se; fazer bem, nunca se perde, faze tu bem não cates a
quem.
ENIGMAS
PREGUNTA
Matari maiari bu tabu — pedras
duas no porto.
Zá riabu, ndé riabu — vem diabo
vai diabo.
RESPOSTA
Mele maiari bu tulu — Mamas duas
no peito.
Ribitu — porta.
Em quási toda a zona ocupada pelos N'golas se encontra
quem mais ou menos fale o português, e, em algumas regiões —
e destas principalmente iVmbaca — quem o escreva, por forma
que a portugueses às vezes se torna difícil compreendê-lo e lê-lo.
18
POPULAÇÕES INDÍGENAS
A dança, a música e o canto são as principais distracções e
o passatempo mais estimado destes povos ; no entanto, não tem
cantos guerreiros e de caça, como algumas tribus do sul da pro-
víncia, e as suas
danças constituí-
das por diversas
variantes do mo-
nótono e caricato
batuque, nada tem
digno de menção.
Como instru-
mento de música,
o mais vulgar é
uma espécie de
tambor, que tocam
percutindo com as
mãos.
Os N^olas não
se dedicam a cons-
truções de estradas
ou pontes, a não
ser que a isso se-
jam compelidos, e
sob a direcção de
europeus. Um
tronco duma ar-
vore, alcançando
as duas margens
do curso de água
a vencer constituo
uma ponte.
Em Loanda e
nas regiões atra-
vessadas por cur-
sos de água, há
homens que se de-
dicam à navega-
Um caçador de Cabiri
cão, que se faz nos dongos, a que já tivemos ocasião de nos
referir, e que são dirigidos com varas de palmeiras, a que cha-
mam mingas.
Como já tivemos ocasião de dizer, não gostam de serviço de
DE ANGOLA
19
transporte de cargas, mas, quando não podem deixar de o fazer,
as cargas são transportadas ao ombro e à cabeça. Em Catete
usam as mulheres uma forma de carregar que não vemos em
outras regiões desta zona, e que consiste em suspender a carga
nas costas por cordas ou fibras vegetais que firmam na testa.
Forma de carregar na região de Catete
Dividem o ano em três partes : Kusamanu, de Janeiro a Maio
Kixibu, de Junho a Outubro ; Kutanu, de Outubro a Dezembro
Entre estes povos estão ainda bastante arreigados os costu
mes de magia para tratamento das suas enfermidades. Encon
tra-se sempre entre eles quem deste facto tire partido para gosat
uma situação predominante e viver à custa dos desgraçados
clientes que se entregam às suas mãos.
20
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os kimbandas, assim se dominam os curandeiros indígenas,
empregam como preâmbulo das suas consultas um certo numero
de cerimónias de magia, com o fim de preparar o espírito do
cliente a facilmente crer nas suas curandices.
Para este fim, empregam mil e uma bujigangas e porcarias,
com que se servem e com que praticam umas scenas de presti-
N'golas — Construindo uma esteira (Ambaca)
digitação, e que variam segundo a região e o espirito inventivo
dos curandeiros.
Um celebre curandeiro de Icolo e Bengo vestia para as ceri-
mónias um roupão branco, uma espécie de túnica, presa à cin-
tura por uns cordões e um boné de fibras vegetais. Possuía
túnicas de vários tamanhos, e na cerimónia a grandeza da túnica
variava conforme o que o cliente pagava.
Depois de paramentado, o imbanda (singular de Icimbanda)
começava por adivinhar a doença e a sua origem. Para isso,
sobre um pedaço de pau fazia deslizar um outro menor, que
encaixava em uma caiba naquela talhada, e acompanhava os
movimentos por palavras cabalísticas. A determinada altura
fingia que o pau emperrava, e isso era o sinal de ter adivi-
nhado.
Uma olaria em Cabiri
Popul. indígenas de Angola.
(20)
DE ANGOLA 21
Usava outras pantominices, como fossem a de espargir água
benta duma velha panela assente sobre um tripé; e só depois
de ter bem preparado o cliente entrava no campo do receituário.
Do receituário podem distinguir-se os remédios que operam
por sugestão e os que são extraídos de várias plantas e vegetais
da flora africana.
Dos primeiros, enumeraremos os colares e pulseiras de fibras
vegetais e a suspensão ao pescoço ou em volta da barriga de
determinadas sementes, como a do dixima, para perservativo
contra a inveja ou contra determinadas doenças, pomada feita
com pós dum bocado de canoa partida pelo cavalo marinho,
que, aplicada nos braços e pernas, serve para curar os espíritos
que chamam Ngombo, escrementos de animais para benzer a
água, com que espargem sobre as crianças que tem almas do
outro mundo no corpo, fricções com pó das enxurradas dos
rios por ocasião das cheias, contra o reumatismo, etc.
Dos segundos, enumeraremos a fuligem, para tomar com
água contra as doenças do peito, beberragens de infusão de
folhas para as dores de barriga e lombrigas, fumigações do
anus queimando escremento de elefante com pós de tacula para
o tratamento do hemorroidal, etc.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casamento.
— A morte. — A família. — A religião, rito,
culto, divindade e sacerdócio.
, Não é costume fazerem festejos ou sacrifícios antes ou depois
do nascimento, nem tomam qualquer precaução para protecção
da mãe.
A mulher tem o parto onde reside, sendo ajudada pelas
mulheres velhas.
A duração do período de lactação varia muito, chegando a
durar três anos ; no entanto poucos dias depois do nascimento,
começam a dar às crianças recemnascidas comida, ao que se
deve o grande desenvolvimento do abdómen e o raquitismo de
que muitas crianças sofrem.
Não obstante os pais tratarem igualmente os filhos, quer
estes sejam do sexo masculino, quer sejam do sexo feminino,
parece que em geral ficam mais satisfeitos quando as mães tem
22 POPULAÇÕES INDÍGENAS
filhas. Tem a sua explicação este facto— pois que cada filha repre-
senta sempre uma quantia proveniente do presente de noivado.
Em geral, não cuidam da educação física, intelectual ou moral.
Conservam a maioria destes povos a prática da circuncisão.
*
O casamento consta de duas cerimonias : a doação da noiva
pela família e a aceitação pelo marido. Depois de pedida a
donzela, o noivo tem que dar à sua família um presente em
dinheiro, gado, fazendas ou aguardente de valor variável entre
10$ e 50$, a que se dá o nome de alambamento (palavra apor-
tuguezada de kulemba, presentear), presente que é retribuído
com outro de menos valor no dia em que a noiva é conduzida
ao lar conjugal.
A poligamia é o regime predominante do casamento ; o indí-
gena deseja ter um grande numero de mulheres, que representa
ao mesmo tempo um capital, uma riqueza de braços para o
trabalho das lavras, a esperança de ter mais filhos e um luxo
muito apreciado.
Entre estes povos, as mulheres são verdadeiras escravas do
marido, que as sustenta, variando a sua situação na vida do-
méstica, pois a mais antiga gosa de mais autoridade e respeito
por parte das outras e merece mais consideração da parte do
marido.
Existe o divórcio, sendo causas determinantes : a incapacida-
de procriativa do marido ; a ausência por longo tempo ; a este-
rilidade da mulher : a inaptidão da mulher para os trabalhos
agrícolas e a existência da deformidade física.
O adultério não é, em regra, causa do divórcio. As mulheres
adúlteras são quási sempre as mais estimadas pelos maridos,
que as incitam à corrupção para receberem as indemnizações
que os cúmplices são obrigados a pagar-lhes.
No caso do divórcio, o marido exige sempre à família da
mulher a restituição do alambamento e de todos os presentes
que dele hajam recebido. No caso da mulher se divorciar para
casar novamente, é o segundo marido quem tem de indemnizar o
primeiro do que este gastou com o alambamento.
Os filhos,, na grande maioria dos casos acompanham as
mães.
Popul. indígenas de Angola.
(2-2)
DE ANGOLA 23
# *
No tratamento das doenças e acidentes, consultam os curan-
deiros a que já tivemos ocasião de nos referir.
Entre estes povos não se usam práticas religiosas, danças ou
cantos nos últimos momentos do moribundo ; não sucede o mes-
mo com os funerais, que são sempre motivo para batuques, que
às vezes se prolongam por alguns dias : — os que transportam o
morto para o local onde ha-de ser sepultado, a meio caminho
voltam para traz, declarando que o morto ainda não quere ser
sepultado e deseja ser mais chorado.
JEm Loanda, no bairro denominado da Ingombota, depois do
morto ser sepultado, há o costume de reunir em casa do falecido
um certo número de indivíduos, havendo entre eles um ou dois
que contam umas historias, a que dão o nome de misósos. To-
dos os ouvintes devem conservar-se o mais atentos possivel, não
lhes sendo permitido conversar, rir, ou dormir. Aos que trans-
gridem semelhante preceito, é-lhes exigido pelo que conta a
historia um prémio. Acabado o misoso, o que contou a história
estipula por cada prémio que tem em seu poder uma determi-
nada quantia em dinheiro ou géneros alimentícios, que os pos-
suidores dos respectivos prémios tem que pagar. Reunido que
seja o produto dos prémios, entregam-se a uma desenfreada
orgia.
Tem vários cemitérios, uns escolhendo locais afastados das
povoações e ao longo dos caminhos, e outros sepultando os
mortos dentro da própria sanzala.
Como sinais de luto, nos menos civilizados é costume pintar
a testa com barro preto, e entre os mais civilizados é já costume,
principalmente entre as mulheres, o uso dos panos pretos.
Sobre as sepulturas é hábito colocarem garrafas, pratos e
outros objectos de uso do falecido, e supõem que assim proce-
dendo livram a familia de doenças e prejuízos.
Por virtude da assimilação europeia por que estes povos teem
passado, a familia, entre si, não constitue, como na maioria das
24 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tribus da província, uma instituição em que todos os membros
da família são considerados solidariamente responsáveis pelos
crimes cometidos por qualquer dos seus membros; entre os N'golas
não existe esta solidariedade.
Não se pode considerar como regra geral, entre os N'golas,
o parentesco pela. linha materna, porquanto, em grande número
de casos, o parentesco está estabelecido pela linha paterna. No
primeiro caso, a sucessão é colateral : os herdeiros são os sobri-
nhos, filhos de irmãs uterinas do autor da herança, e, não
existindo sobrinhos, filhos de irmãs uterinas, herdam os irmãos
uterinos do autor da herança. No segundo caso, a sucessão é
dos pais para os filhos.
O pai é chefe principal da família.
Os pais amam os filhos, e principalmente as mulheres tem
vivo o sentimento materno, criam-nos e teem-nos consigo os pri-
meiros anos, que passam às suas costas.
A constituição da familia, como acabámos de ver, devido a
transformação porque estes povos teem passado, não pode classi-
ficar-se duma maneira precisa, como sucede nas restantes tribus
da província.
Os N' golas, como as restantes tribus da família bantu, crêem
na existência duma força suprema, um espírito que se manifesta
pelo seu poder, que respeitam, mas que não representam mate-
rialmente por imagens.
A superstição preocupa a todo o momento as populações
indígenas,, vivendo em uma atmosfera de terror, terror de tudo
que o rodeia, e de desconhecidas divindades que lhes falam por
intermédio dos feitiços.
Daí os feitiços de toda a espécie, onde opera ou habita
a virtude dalgum espírito ou alma dos antepassados ou dos
feiticeiros, que podem exercer uma influência perniciosa, e
que para a não exercerem convêm aplacar com ofertas e sacri-
fícios.
Entre os feitiços de que publicamos afotogravura, encontra-se
um de Ambaca, a quem davam os nomes : Nganga Kazenda,
Ngola Lemba, Katulu Mbata, Kiondongolo e Muenexi. Este fei-
tiço deu lugar a que muitos crentes ficassem quási reduzidos à
miséria, porque os kimbandas só muito caro faziam a umbanda
El
I
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O
O
j Popul. indígenas de Angola.
(24;
DE ANGOLA 25
(magia, acto de curar) em o Nganga Kazenda. Este feitiço era
muito respeitado, e a pessoa que teimasse em vô-lo ficaria cega.
Um missionário da missão americana descobriu o local
onde tão precioso objecto se encontrava enterrado, e pôde
convencer os crentes das circunvisinhanças que o feitiço não
passava dum ferro gasto pela ferrugem que nenhum mal podia
produzir.
Entre os N'golas não existem cubatas reservadas a uma espé-
cie de templo, mas existem os feiticeiros e adivinhos, rendosa
profissão de que lançam mão os mais espertos, e que, impondo-se
pelas práticas de magia, passam a ser considerados como tal.
Consideram-nos como gosando dos poderes particulares ou sobre-
naturais, sendo por isso muito temidos e dispondo a seu belo
prazer das populações indígenas.
IV. — Da vida social
Espécie da vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Uma das manifestações do grau de adiantamento da raça
negra, e sobretudo dos N'golas, é a fixação à terra onde o preto
vai buscar o seu alimento, não levando a vida errante que cara-
cteriza a raça boschiman.
A organisação social dos povos, pela diversidade das suas
origens e principalmente pela acção das autoridades, perdeu o
característico que a maioria das tribus da província ainda con-
serva. No entanto, a organização soeial compreende várias clas-
ses, como sejam os chefes — nas regiões onde ainda eles exis-
tem — , os homens ricos e os que pela tintura de civilização que
adquiriram teem uma certa preponderância. Raro é encontrar
entre estes povos escravos, e é para notar que os raros casos de
escravatura que se tem constatado partem dos mestiços, que
não perdem a ocasião, sempre que a podem exercer.
A nossa colonização, principalmente a acção dos missionários
jesuítas, criou um tipo sui generis, que, por ser frequente em
Ambaca, se denominou ambaquistas, mas que se encontra entre
os povos de toda a vasta zona ocupada pelos N'golas, sendo vul-
garmente designados pelo nome de calcinhas.
3
26 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Vestido à europeia, esfarrapado, do casaco restando só quási
as mangas, meio calçado meio descalço, não dispensando um
chapéu ou um desbotado boné, entregando-se a uma doentia
ociosidade, e a quem o mascavado português, que fala e que
escreve só serve para burlar os seus ingénuos compatriotas com
reclamações e requerimentos, baseados na pinturesca interpre-
tação que dão à Constituição da Republica, o calcinhas é o tipo
do indígena semi-educado, semi-civilizado, um dos piores ele-
mentos da população indígena.
*
* *
Entre estes povos encontrámos, como na maioria das tribus
da província, uma organização política, com um chefe soberano
subordinado às leis tradicionais da tribu que representa. O
desprêso por estes chefes, o manifesto propósito de os desviar
da ingerência na administração dos indígenas e até de os hosti-
lizar, por parte das antigas autoridades administrativas, favo-
recido pela diversidade de origem destes povos, teve como resul-
tado a decadência e em grande parte a extinção dos chefes
gentílicos. Não se trata de qualquer progresso ou avanço dentro
do quadro da sua civilização, porque a sua primitiva organiza-
ção politica não se transformou ou não foi substituída por outra:
— foi extinta.
Assim é que, nesta vasta zona dos N'golas, só encontramos
autoridades gentílicas em Icolo e Bengo e no Golungo Alto. O
chefe, que se chama soba, pouca influência tem entre os seus
subordinados, e como a área de cada sobado ou estado é peque-
na, e nalgumas regiões como Icolo e Bengo se reduz a pouco
mais de uma povoação, o soba não tem necessidade de sobetas,
cercando-se dum certo número de homens de preponderância,
seus conselheiros, que se chamam macotas.
*
A propriedade pertence a quem a trouxe para o lar, sendo
no entanto administrada pelo homem. A mulher é em geral
quem dispõe dos bens mobiliários e dos utensílios da cosinha.
A propriedade é privada e assinalada por limites, não exis-
Popuh indígenas de Angola
(26)
DE ANGOLA
27
tindo, como em algumas tribus, logradouros públicos pertencen-
tes às povoações, e aproveitados em comum.
Estes povos fazem o contracto de troca, empréstimo, compra
e venda, sendo frequente aparecerem documentos, alguns muito
antigos, lavrados por ambaquistas, a que dão o nome de escri-
turas de venda mas que não
são mais que escritos parti-
culares de troca de arimos.
Quando as vendas ou
trocas são feitas a crédito,
dão sempre um fiador...
e por serem pessoas de mor-
rer e fugir, dou por meu
fiador F. . .
Não obstante o serem a:|
regiões ocupadas por N'go-
las aquelas onde mais difun-
dida e espalhadas e encon-
tra a moeda portuguesa, a
forma do comércio que ain-
da prevalece é a permuta.
Permutam os produtos
da terra por panos, macha-
dos, catanas, facas, camisas,
camisolas, etc. Os produtos
permutados variam con-
forme as regiões : uns desti-
nam-se à exportação e ou-
tros servem para consumo.
Dos produtos de exportação Um criad0
enumeraremos : o café, que constitue o principal género de per-
muta em Cazengo, nó Golungo Alto e em Ambaca ; o coconote e
azeite de palma, que constituem os principais géneros de permuta
no Dondo e Alto Dande ; o gado suino e bovino, aquele género per-
mutado em Icolo e Bengo, e este em Pungo Andongo e Quisenga,
Dos produtos para consumo, permutam-se, em grande escala, em
todas as regiões,, o feijão, a batata, o milho, a fubá, etc.
28 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como já dissemos, entre estes povos cofre a moeda portu-
guesa, principalmente a moeda de cobre e prata; de moeda de
papel, as notas que mais curso tem são as dum escudo.
Como .já acima referimos, estes povos fazem contrato de
troca, empréstimo, compra e venda ; o contrato é em geral ver-
bal, a não ser nos casos igualmente indicados de escritos parti-
culares; e quando são celebrados contratos de compra, venda
ou troca a crédito, o comprador ou permutador que recebe o
objecto entrega ao vendedor ou ao permutador uma cabra ou
um porco, com que fazem um pequeno festim, destinado a tornar
público o contrato, e cie que se guarda sempre a queixada do
animal como documento autêntico.
Outras vezes fazem cortes nas árvores para servirem de
provas do contrato celebrado. E' costume entre alguns destes
povos, quando precisam de recorrer ao empréstimo, mandarem
para a casa da mutuante um homem ou mulher para prestar
serviço até o espaço do reembolso. Em outros casos, o emprés-
timo faz-se mediante caução do objecto de valor superior, sem
juro, perdendo porém, o direito ao objecto empenhado se o
devedor não pagar no prazo estipulado O contrato de usura
não se pratica, e não deve confundir-se com este contrato o
facto dos mutuários exigirem o quádruplo ou quíntuplo do
valor do objecto, quando o mutuário não paga no prazo con-
vencionado.
Os N'golas não conhecem a prescrição.
Na grande maioria, a sucessão nestes povos é colateral, sendo
herdeiros os sobrinhos, filhos das irmãs uterinas do autor da
herança, e não existindo sobrinhos, filhos das irmãs uterinas,
herdam os irmãos uterinos do autor da herança. No entanto,
pela influência da nossa civilisação, é a sucessão já em muitos
casos de pais para filhos.
Não distinguem a responsabilidade civil da responsabilidade
criminal, sendo a simples contestação dum direito considerada
N'golas — Um tear indígena
Popnl. indígenas de Angola.
(28)
DE ANGOLA 29
como uma. ofensa que se desagrava pelo pagamento duma retri-
buição pecuniária.
Não existe uma lei ou um conjunto de leis definindo e classi-
ficando as infracções e estabelecendo penas ; a gravidade destas
é variável consoante a apreciação dos julgadores e principal-
mente segundo as posses do réu.
As provas subsidiárias são : a confissão das partes e o de-
poimento das testemunhas.
As provas judiciárias das bebidas envenenadas e ferro em
braza raramente se constatam entre estes povos, não sucedendo
o mesmo com a intervenção do feiticeiro, que tem grande peso
na averiguação dos delinquentes.
Os julgamentos, onde ainda existem chefes indígenas, são
por eles presididos com a assistência dos macotas, que, por
assim dizer, são quem resolve as questões, visto o pouco ou
nenhum prestígio que aqueles tem entre o seu povo.
Nas regiões onde não existem chefes indígenas, as questões
são resolvidas por uma espécie de tribunal, constituido pelos
mais velhos das sanzalas ou das famílias em litígio.
Não são vulgares como em algumas tribus da província, os
grandes julgamentos eternizando-se com as longas arengas dos que
intervém na discussão.
Aí EpT-iyfl yr-ffi- ,n,p
CAPITULO II
DOS DEMBOS
T. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos designados por Dembos.
— Situação geográfica. — População.
Por dembos designamos os povos de origem congolesa que
habitam a basta e acidentada região denominada dos Dembos
(jindembus, plural de ndembus, que significa potentado), que
fica compreendida entre os rios Dande, ao norte ; Bengo ou
Zenza, ao sul ; e o Lombiji, afluente do Zenza, ao oriente ; é
regida por potentados, que se intitulam também dembos, cuja
autoridade, segundo os sobas e os povos que lhe são subordi-
nados, é rial e absoluta umas vezes, meramente decorativa
noutras.
A banza principal de toda a região é a de Santo António,
centro das terras Caculo Cahenda, que, segundo a significação
deste nome — kakulo, mais velho; ka, prefixo concordante; e
henday amor — ; nos leva a crer seja o filho primogénito dos
antigos reis do Congo, gosando por este motivo de maior pre-
ponderância e prestígio do que os restantes chefes gentílicos.
Os povos de Caculo Cahenda são conhecidos por kakulos,
relativamente à tribu, e por mulumbis (filhos do Congo), relati-
vamente à terra.
Os potentados gentílicos desta região consideram-se em geral
irmãos, e, como o Caculo Cahenda, descendentes dos antigos
reis do Congo. São todos caracterizados por língua, usos e
costumes mais ou menos idênticos, mas, apesar disso, vivem
sempre em discórdias, devido a divergência de política por cada
32 POPULAÇÕES INDÍGENAS
um deles seguida e às relações em que se acham com as autori-
dades portuguesas.
A volta das terras sob o domínio do Caculo Cahenda, vivem
os povos kibaxes, naturais de Quibaxe Sui à-Mubemba ; os kazuas,
que obedecem ao potentado gentílico Cazuangongo ; os luangos
ou mubiris, notáveis pela sua velhacaria e intrujice, que povoam
os dembados do Zambi-Aluquem, Pango-Aluquem, Jimbo-Alu-
quem e o de Nbumba ; e os povos mahungòs, gente de índole
pacífica, de origem congolesa também, mas com usos e costumes
completamente diferentes dos outros povos, e dos quais tratare-
mos em trabalho especial, por nos parecer constituir uma única
tribu.
A constituição física dos povos que designamos sob o nome
de dembos varia duns para outros. Os kibaxes e os kazuas são
mais robustos e teem melhor aspecto que os kakulos e luangos
ou mubiris, que são raquíticos e pouco resistentes, devido não
só às agruras da fome por que constantemente passam, como
por se entregarem desde tenra idade às relações sexuais.
São todos em geral, covardes, pouco coléricos, muito pedin-
chões e exigentes, pouco dedicados, ingratos, e de caracter pouco
expansivo.
A côr da pele é preta nos que habitam ao norte da região,
sendo parte bronzeada nos do sul (caculos e luangos ou mubiris);
nas partes do corpo pouco expostas ao sol e ao ar, a pele é
menos preta.
São raros os casos do albinismo entre estes povos.
Os cabelos são encarapinhados e pretos, os olhos ovais, a
posição da iris é horisontal e de côr acastanhada.
É vulg-arissimo as mulheres terem os seios extraordinaria-
mente alongados, esféricos na base e sem bicos, e as nádegas
com acumulação de gorduras, que não desaparece pelo emagre-
cimento.
A população vai diminuindo sensivelmente, devido principal-
mente à prática de feitiçarias, que exercem em larga escala, ao
alcoolismo, à doença do sono, que muito se propaga entre eles
apesar da tzé tzé existir apenas nas margens dos rios e da maio-
ria do gentio habitar nos pontos elevados, e finalmente à fome,
porque não trabalham o suficiente para se sustentarem e são
capazes de vender por meia dúzia de garrafas de aguardente o
feijão e o milho que só as mulheres cultivam e que lhes podem
ser necessários para alimentação de todo o ano.
DE ANGOLA 33
É interessante a crença que entre estes povos existe, quanto
à sua árvore genealógica. A maior parte deles julga descender
do filho mais velho de Deus — o rei do Congo — ; os restantes
dizem ser descendentes do segundo filho de Deus — a rainha da
Jinga.
II. —Da vida material, e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, sciências e faculda-
des intelectuais.
Como as habitações estão, em geral, localizadas nos pontos
mais elevados, longe dos rios e regatos, e como deficiente é a
água de que se abastecem, estes povos não teem por costume
tomar banho, a não ser por um caso de força maior, quando
abundam as chuvas. Não se dedicam à natação por gosto ou
por desporto : nadam quando teem necessidade de atravessar
algum rio, colocando a carga, havendo-a, nas costas.
Pintam o corpo com tacula e azeite de palma, com o fim de
amaciar -lhes a pele, resguardando-a da sarna, e às vezes no
rosto fazem uns riscos com barro amassado.
Pouco cuidado lhes merece a higiene da boca ; não lavam
nem cuidam dos dentes, apresentando-os negros, maltratados e
cariados, o que contrasta com os povos das outras tribus da
província, que ostentam uma dentadura branca como a neve e
num perfeito estado de conservação.
Os Dembos teem ainda por costume cortar os dentes da frente
com uma faca e limá-los tornando os aguçados como os dos cães.
Os povos de Caculo Cahenda distinguem-se dos restantes por
usarem dois dentes incisivos da maxila superior limados até à raiz.
Usam furadas as orelhas, trazendo os homens umas argolas
de ferro e as mulheres travessões de madeira.
O nariz é furado somente pelos luangos ou mubiris, trazendo
no orifício um travessão de madeira idêntico, ao que trazem nas
orelhas mas mais pequeno.
A estes povos, devido certamente a trazerem continuamente
untado o corpo de tacula e azeite de palma, vêem-se-lhes cabelos
apenas na cabeia e debaixo dos sovacos.
As mulheres, para evitarem os parasitas, teem o cuidado de
trazer tosquiadas as partes genitais.
34 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Não teem uma forma única e determinada para o penteado,
vendo-se indiferentemente homens e mulheres de cabeça rapada
à navalha ou com o cabelo crescido e untado com azeite de palma.
As raparigas novas usam um risco ao meio e um cordel à
volta da cabeça, suspendendo na nuca um ramo de verdura,
semelhante ao mangerico ; os rapazes, uns trazem o cabelo rapa-
do, outros cortam-no com uma faca ou mesmo com um pedaço
de vidro, com desenhos diversos.
Algumas mulheres usam cabelos formando cordas ou tranças,
empastadas de azeite, que só se distinguem de perto, porque
não as trazem pendentes.
Não cuidam das unhas, trazendo -as sempre cheias de lixo.
Existe a tatuagem, mas só entre as raparigas novas, que a
praticam por meio de incisões ou golpes feitos ao acaso, no peito,
nos ombros e braços.
#
O vestuário dos dembos e dos sobas consiste num grande
manto feito de baeta, geralmente de côr vermelha e preta, ou
mesmo de couvre-pieds, ostentando a figura de feras, sob o
qual trazem uma saia feita de fibras, camisa, colete, casaco ou
alguma velha farda militar.
Usam botas, que descalçam longe da vista dos europeus.
Os dembos de Caculo Cahenda e do Pango-Aluquem, nas
suas recepções, aparecem cobertos por uma umbela escarlate.
Os sobas usam guarda-sol. Na cabeça usam barretes de fibra.
Os outros indivíduos sem categoria usam : os homens, um sim-
ples pano preso à cintura, trazendo os mais abastados, além do
referido pano que se estende até aos joelhos, um outro cobrindo
os ombros, um colete e um casaco. As mulheres andam tanto
mais nuas quanto mais vistosa é a sua plástica, com excepção
das muito pobres, que assim se apresentam por não terem outro
remédio. Estas, quando andam a trabalhar nas suas lavras,
chegam a não trazer vestuário algum, usando nas povoações
apenas dois panos, um pela frente cobrindo as partes genitais e
outro pela retaguarda dependurados num cordão amarrado à
volta da cintura. O pano da frente chega a não atingir um
palmo quadrado, sendo às vezes uma estreita franja, e o da
retaguarda terá dois palmos quadrados.
N'golas — Uma ponte gentilici
Popul. indígena? de Angola.
(34)
DE ANGOLA 35
Algumas mulheres usam mais um pano nos peitos, não com
o fim de os encobrir mas antes de os fazer sobresair, quando de
perfil, e tanto é certo usarem este pano para garridice, que
quási sempre o trazem a cobrir só o seio direito, deixando a
descoberto o esquerdo.
Às vezes, ou por causa do frio ou porque possam ser vistas
pelos europeus, envolvem-se num pano muito azeitado e carre-
gado de tacula.
As mulheres idosas usam panos que lhe cobrem mais ou me-
nos o corpo.
Aos homens é proibido usar calças, não lhes sendo permitido
usar barrete ou chapéu na presença dos sobas ou macotas e
atravessar as terras de potentados estranhos com a cabeça coberta.
Os filhos do dembo Caculo Cahenda vestem-se às vezes à
europeia, não trajando sempre como civilizados para não estra-
garem os fatos.
É costume entre os povos desta tribu trazerem diversos
adornos no corpo ; as mulheres luangas, além dos pausinhos que
usam nas orelhas e no nariz, a que já nos referimos, usam tam-
bém missanga no pescoço, nos braços, nas pernas e tornozelos,
conforme as posses do marido ou amante ; as mulheres do dembo
de Caculo Cahenda, quando se não enfeitam com os fios de
contas, usam uns cordéis duma espécie de palha, que atam nos
braços, logo abaixo dos sovacos, e nas pernas por baixo dos
joelhos, que além de servirem de enfeites, obrigam os membros
a umas certas curvas. As raparigas deste dembado usam nos
braços, nos pulsos, abaixo dos joelhos e nos tornozelos, bracele-
tes, pulseiras e anilhas de missanga, de fibras vegetais ou mes-
mo de metal. Também usam anéis. Na cabeça, usam algumas
um cordão encarnado, na disposição em que se toma medida
para um chapéu ; envolvendo os peitos ou a cintura, trazem
também umas contas de metal enfiadas em cordões.
Alguns homens usam em volta das pernas, acima do torno-
zelo, fios sucessivos de contas de latão, dependendo a abundân-
cia destes adornos das posses de cada um.
# *
Vivem, em geral, do que expontâneamente lhes oferece a
natureza, como a seiva de palmeira, dendem, folhas e frutas
36
POPULAÇÕES INDÍGENAS
silvestres, feijão e milho, que as mulheres cultivam em pequena
quantidade, e da caça. Alguns comem carne de porco, de chi-
bato e de galinha, apreciando imenso a carne de javali.
Na preparação das comidas empregam como temperos o
azeite de palma, a pimenta, jindungo e tomates.
N'golas — Circumcisão
Gostam de todas as comidas dos europeus, especialmente do
pão, peixe, sal, açúoar e de bebidas alcoólicas.
Os utensílios duma cosinha compõem-se de duas ou três pe-
dras com que arranjam o fogão, algumas panelas de barro e
um pau que serve para mecher as comidas quando estão ao lume.
Arranjam o lume juntando a uma pedra uns filamentos secos
de palmeiras (isca) e ferindo a pedra com um pedaço de ferro.
Fazem três refeições : uma ao romper da manhã, composta
DE ANGOLA
37
de mandioca e milho assado; outra ás 11 horas pouco mais ou
menos, de feijão e esparregado de folhas de várias plantas sil-
vestres, e outra às 16 horas aproximadamente, de farinha de
milho que é a principal de todas, visto coincidir geralmente
com o terminar dos trabalhos.
■■■■■■
N'golas — Rapazes tio campo de isolamento depois da operação
de circuncisão (Pungo Andongo)
Os alimentos são preparados exclusivamente pelas mulheres
que não comem juntamente com os homens, salvo se estes não
teem filhos ou outros homens que lhes façam companhia às refei-
ções.
Em regra, os pais comem juntamente com os filhos e as
mães com as filhas.
Bebem a seiva da palmeira (maluvo), que procuram muito
38 POPULAÇÕES INDÍGENAS
para se alimentarem e embriagarem, assim como bebem todas
as nossas bebidas alcoólicas que se lhes derem, como já dissemos.
Para obterem a seiva da palmeira, uns cortam-na e recolhem a
seiva numa vasilha (cabaça) ; outros trepam à árvore e furam-na.
Não consta serem antropófagos. Atribuem esta qualidade
somente aos povos de Cazuangongo, por espírito de os desacre-
ditarem.
Não há geofagia* propriamente dita nos povos desta tribu,
embora haja alguma gente que entretenha o seu estômago
comendo terra. Parece que esta alimentação não terá outra
origem a não ser o hábito adquirido pelas crianças indígenas,
as quais, abandonadas no chão pelas mães, começam natural-
mente a cavá-la com as mãos e a levarem à boca o que apanham.
Daí o hábito que lhes fica de comerem terra, e tanto isso é certo
que só o fazem os rapazes e as raparigas, pois que as pessoas
adultas reprovam semelhantes práticas, classificando de nocivo
tal alimento.
Não têm por costume conservar os alimentos facilmente dete-
rioráveis. Apenas conservam em sacos feitos de esteiras e de
folhas de bananeira (salalas) o feijão e o milho.
São as mulheres que costumam ir ao mato à busca das frutas
e da lenha. Por vezes, os maridos seguem-nas de perto com
uma espingarda, mas mesmo que estes não as acompanhem, é
raro o indígena intrometer-se com as mulheres que lhes não
pertençam.
Os alimentos vegetais mais procurados são a banana, uma
raiz semelhante à mandioca, o milho, abóbora silvestre, pepino
silvestre, o mamão e outros.
Os homens e as mulheres idosas fumam o tabaco e cheiram-no
moído, esfregando para esse fim o lábio superior com o pó de
tabaco e desenhando com êle uma espécie de bigode. Estes
povos fumam também folhas duma planta conhecida por liamba
ou riamba, vegetal conhecido na Europa por cânhamo, que
contêm princípios narcóticos.
A habitação tipo é a cubata, com uma área de seis metros
quadrados, dividida em dois compartimentos — quarto de entrada
que serve ao mesmo tempo de cosinha e o quarto de dormir.
Cada quarto tem a área de 1,5 por 1,5 a 2 metros. Passa-se
dum para outro quarto por uma porta interior. De noite, prin-
cipalmente no tempo do cacimbo, conservam o lume aceso no
quarto de dormir.
DE ANGOLA 39
A altura da cubata pouco excede à de um homem, e em
quási todas só se pode entrar curvando a cabeça.
A cobertura das cubatas é em regra de duas águas e de colmo,
e revestidas do mesmo material ou barreadas. A sua constru-
ção, simples na sua essência, não revelando arte nem estilo
algum, faz-se enterrando paus, varas ou estacas, segundo a
forma retangular e dimensões que se pretende dar. Ao meio
das faces laterais, que são as mais estreitas, colocam forquilhas
para receber a trave ou pau em que se hão-de apoiar os paus
transversais que formam a cobertura. Feito o esqueleto, amar-
ram-no com cordas de fibras vegetais, por todos os lados, às
ripas distanciadas um decímetro umas das outras. Forram-nas
finalmente de colmo, cosendo este ao esqueleto por meio duma
agulha de madeira, em que se enfia a fibra de certo arbusto.
As cubatas teem uma única entrada e às vezes uma janela. Quando
são barreadas, preenchem os espaços da taipa com pedras e
barro dando uma forma mais ou menos lisa.
As suas habitações são pequenas, não só porque satisfazem
as suas necessidades, mas ainda porque, sendo maiores, são mais
frias e mais facilmente destruídas pelo mau tempo.
Costumam construir também nas lavras cubatas mais simples
e mais pequenas.
A maior parte dos povos desta tribu não teem celeiros. Quando
os teem, o que é raro, ou ficam em qualquer canto da cubata em
que habitam, tendo os sacos empilhados uns sobre os outros, ou
nas cubatas que teem nas lavras.
Como já tivemos ocasião de dizer, o local das povoações é
determinado pelos pontos de maior altitude, certamente por serem
mais defensáveis e mais saudáveis.
Na construção das cubatas não obedecem a orientação alguma.
Uma passagem central e cubatas para os lados, ao acaso, de
modo que não se estorvem uns aos outros.
É muito irregular o número de cubatas que constitui uma
sanzala, que pode ser de duzentas, cem ou mesmo de vinte
cubatas.
Cada cubata representa uma mulher. Cada duas cubatas
podem representar um homem, duas mulheres, um rapaz e uma
rapariga menor.
Quando andam em guerra uns com os outros, estes povos
refugiam-se nas habitações fornecidas pela natureza, como são
as cavernas rochosas existentes nas matas de Cazuangongo.
40 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Gomo mobília, estes povos teein apenas um pequeno banco e
uma esteira que serve de cama. É raro haver quem possua uma
cama elevada meio metro acima do solo e onde se podem deitar
de lado apenas duas pessoas.
O dembo de Caculo Cahenda tem na sua vivenda seis cadeiras
grandes de sola, duas austríacas e outra grande de madeira, um
sofá, uma mesa, uma cama de madeira e vários outros objectos
de madeira e malas de ferro. Os sobas costumam ter duas ou
mais cadeiras feitas mesmo por eles.
Não é costume haver iluminação nas suas habitações, a não
ser a do fogo da cosinha ou do lume que os aquece. No entanto,
em certas sanzalas onde abunda o azeite de palma, improvisam
uma espécie de candeia, servindo-se duma lata onde deitam o
azeite de palma e dum bico metálico onde arde a torcida.
A residência dos dembos chama-se embala, que é uma cubata
como qualquer outra, feita de capim ou de barro, tendo somente
a mais uns quintais à volta, não vedados, e contíguamente uma
espécie de arena, com 50 metros de diâmetro, onde os dembos
costumam dar as suas recepções e festas. Não é permitida a en-
trada na arena ao povo e às crianças.
Algumas cubatas teem na rectaguarda um cercado ou curral
destinado aos animais domésticos, que, para não entrarem nas
habitações e sujá-las, trazem atravessado ao pescoço um pau que
os obsta à entrada.
Como vias de comunicação teem apenas carreiros e trilhos, às
vezes tão cerrados de capim e arvoredo que dificultam imenso
o trânsito. ■ A travessia dos rios Zenza, Lombiji e Dande faz-se
em muitos pontos a vau, e noutros, onde é possivel a navegação,
em canoas (dongos).
*
* *
Entregam-se à agricultura, de que se ocupam exclusivamente
as mulheres, sendo insignificante o auxílio que os homens lhes
prestam, cujo papel é vigiar as lavras, a fim de evitar a sua
destruição pelos animais daninhos. As alfaias agrícolas empre-
gadas são a enxadinha e a catana, artigos estes adquiridos no
mercado. Cultivam a mandioca, o feijão, o milho e o tabaco,
tratando cada família da sua lavra.
Vão à caça os homens e rapazes, ou individualmente, ou por
grupos de três ou quatro, acompanhados de cães.
DE ANGOLA 41
Para caça grossa combina m-se uns com outros, mas não a
procuram, esperam-na, com as suas espingardas muito ordinárias,
carregadas com zagalotes.
Alguns povos, alem de espingardas, usam umas redes para
caçar, bem assim uma faca, que trazem do lado direito da cin-
tura, numa bainha de couro, tudo adquirido no comércio. Caçam
corças,, javalis (quiombo), cabras do mato (bambi), pacassa, boi
bravo, seixas, buijes ou paca (espécie de leitão), quissaca (porco
espinho), macacos, lobos e diversas aves, tais como: bemba,
dimbe, (ave que rapina os pintainhos), banje (ave que rapina
galinhas, leitões e cabritos), cabunguloguto, etc.
Quando voltam da caça, apresentam toda a presa ao respe-
ctivo soba, que tira dela a sua parte e dá ordens para que a
dividam entre si.
Não se dedicam a pesca, a não ser os povos que habitam na
proximidade do rio Dande. Pescam ao anzol.
Dedicam-se a criação de porcos, cabras e galinhas. O gado
bovino, é muito raro, porque nos dembados de Caculo Cahenda,
Zambi Aluquem, .Ngombe Amuquiama, Cazuangongo e outros,
há uma planta que nasce entre o capim (cassaçau), que o dizima.
Esta planta, tocando no corpo do transeunte, irrita a pele e
provoca feridas.
Não' há alfaiates de profissão. Os fatos à europeia, que cos-
tumam usar, são adquiridos no comércio e os panos que usam,
tanto os homens como ás mulheres, cuja confecção pouca arte
exige, são feitos por eles próprios, sendo exclusivamente os
homens que se entregam a esse trabalho.
As mulheres empregam-se em obras de cesteiro, fazendo quin-
clas de palha, e os homens em olaria fabricando panelas de barro.
Em quási todas as povoações há forjas mais ou menos simples.
Em Caculo Cahenda concertam catanas, metendo-as ao fogo e
batendo- as com martelo.
No Pango Aluquem e Zambi Aluquem fabricam enxadas e
outros instrumentos simples, de ferros velhos ou de ferro com-
prado ao comércio. No Jimbo Aluquem o ferro é extraído do
solo, onde o encontram no estado bruto.
Não usam a moagem para reduzir o milho a farinha; empre-
gam a trituração pelo pilão, trabalho a que se entregam as
mulheres e raparigas.
Em obras de madeira, fabricam canoas, cavando troncos de
árvores, gamelas e colheres.
4
42 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Não fabricam cordas. Quando precisam amarrar qualquer
cousa, ou as compram no mercado, o que é raro, ou recorrem à
casca dum arbusto ou mesmo a qualquer trepadeira.
Não preparam peles de animais, senão as de corça, de que
os sobas e macotas fazem uma espécie de aventais, e as de cabra
para fazerem o instrumento do batuque.
Tingem os panos de seu uso com barro e especialmente
com tacula, que moem e amassam. Para tingirem os panos de
preto torram a argila numa panela, de mistura com folhas de
bunze.
Não se dedicam a extração de minérios; no entanto, em volta
das terras de Cazuangongo, onde abunda o ferro em bruto, o
gentio apanha-o para fabricar zagalotes e enxadas.
Os homens transportam cargas aos ombros e algumas vezes
na cabeça.
Para grandes distâncias serveimse de muambas, que impro-
visam facilmente.
As mulheres levam os fardos às costas, em quindas cónicas,
suspendendo-as numa faixa que lhes passa pela testa.
Não há torneios de luta.
Tem várias danças: a dança vulgar, denominada batuque; . a
dança de regosijo, pouco mais ou menos a mesma cousa que a
precedente, mas feita de dia com maior entusiasmo e concorrência ;
a dança. de honra, que se realiza quando é proclamado um dembo
e quando se dá um facto notável, como 0 foi quando da ocupação
da capital dos Dembos, em que todos os sobas dançaram em
honra do Governo na embala, ornados com os seus mantos,
tomando nela parte também o Caculo Cahenda (o maior de todos
os dembos), que se faz acompanhar por um cortezão, cujo papel
era cobrir o dembo com a umbela, e por vários outros indivíduos,
e a dança de guerra, em que tomam parte os sobas e os dembos,
simulando combates com feras, acompanhada de batuque e de
exclamações alusivas.
Tem divertimentos que correspondem ao carnaval, e em que
os dembos e macotas que neles tomam parte se desfiguram por
meio dumas máscaras de madeira. Chamam a esta festa, que
anualmente se realiza, mutendo.
O canto destes povos, em geral ao som do grande batuque
(goma), assemelha-se a uma ladainha, em que um canta e os outros
respondem em coro. Tem por tema assuntos funerários e sarcás-
ticos.
DE ANGOLA
43
Como instrumentos de música tem o tambor, o bombo, a puita
— uma lata velha, canas fendidas, ferrinhos, cornetins e uma
espécie de clarinetes feitos por eles, cujos sons equivalem aos
das gaitas de fole.
N 'golas — Farmácia dum curandeiro
Para convocar o povo usam uns uma corneta e outros uma
buzina.
Os dembos que teem maior charanga são o de Quibaxe e o de
Pango Aluquem.
Jogam quási exclusivamente o quela, jogo muito semelhante
ao das damas, e que consiste em mudar umas pedrinhas duma
cova para outra.
44 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os povos desta tríbu costumam contar o tempo pela lua nova
chamando ao período entre duas luas novas bege, que corresponde
a um mês. O ano ou o tempo das sementeiras é contado pelo
cacimbo, pela chuva, pela estiagem, etc. Ao período entre duas
chuvas ou duas sementeiras chamam muvo (ano).
Não conhecem os dias da semana, nem a numeração dos dias
do mês. Os secretários (macotas), quando precisam saber isso,
regulam-se pelas bandeiras dos fortes, que são hasteadas aos do-
mingos e quanto ao número de dias, alguns secretários teem uma
taboleta de madeira, com doze carreiras horizontais, cada uma
com trinta furos; um ponteiro de madeira, que mudam todos os
dias de um para outro furo, indica-lhes o número do dia, mas
mesmo assim enganam-se muitas vezes, porque não sabem quantos
dias tem cada mês.
São inúmeros os medicamentos usados pelos quimbandas,
quási todos pertencentes ao reino vegetal. Praticam também
pequena cirurgia, amputando e encanando pernas ou braços
fraturados. Há curandeiros que empregam uma série de panto-
minices para curar o mal dos feiticeiros, havendo indivíduos
especiais conhecidos, jpov chinguiladores, que se encarregam de
adivinhar a origem de certas doenças e de afugentar os feitiços
por meio de rezas, vários antídotos, sortilégios e amuletos. Quando
não curam um doente, atribuem a causa a um incidente qual-
quer fácil de se aceitar.
As doenças mais frequentes são : a hipnose, tuberculose, pneu-
monia, sarna, diversas úlceras, elefantíase e as causadas por
algum acidente.
Os feiticeiros ou bruxos, isto é, os causadores dos males
doutrem com os seus maus olhos, com as suas invejas ou com
alguma droga que dão a beber, são intimados a beber o jura-
mento. O juramento consiste em dar de beber ao presumido
feiticeiro uma caneca de água, na qual se lança um bocado de
casca duma determinada planta, conhecida dos quimbandas,
contendo princípios venenosos. Os efeitos que esta beberagem
produz no organismo dum indivíduo variam segundo a dose de
princípios activos que estão em dissolução na água e, natural-
mente, segundo a sugestão e a fraqueza do estômago do ajura-
DE ANGOLA 45
mentado (suposto delinquente), e daí as conclusões que tiram,
assim: aqueles que depois de beberem essa droga não mostrarem
sintoma algum de envenenamento e nada sofrerem, são conside-
rados inocentes; aqueles a quem sobrevenha a intoxicação, mas
de que não resulte a morte, são tomados por cúmplices; e, final-
mente, aqueles que teem morte instantânea ou depois de passado
algum tempo, são considerados como feiticeiros. Os macotas
encarregados destes juramentos, quando se querem ver livres de
certos indivíduos que os encomodam, tratam de carregar na dose
de substâncias tóxicas a diluir na água, chegando às vezes a
envenenar os próprios sobas ou dembos, quando estes gozem
pouca simpatia.
Alem da prova do juramento, que descobre se um individuo é
ou não feiticeiro, os chinguiladores, que já nos referimos, também
possuem o condão de o descobrir. f
Há feiticeiros que conhecem os contravenenos, de modo que,
quando bebem o juramento, ingerem acto contínuo esses contra-
venenos de que andam munidos, e cousa alguma sofrem passando
assim por inocentes.
Falecendo algum individuo que tenha sido submetido à prova
de juramento, quer seja homem quer seja mulher, a familia
abandona-o imediatamente e a sua habitação é incendiada. O
cadáver, depois de muito maltratado com cacetadas, e catanadas
é levado de rastos pela povoação e lançado às feras. Ao arras-
tarem-no, teem todo o cuidado em não tocarem, a fim de não
ficarem enfeitiçados.
Estes povos crêem no poder sobrenatural de certas cousas,
havendo rapazes que recorrem ao kimbanda para que este lhes
dê um certo remédio, que pode ser tanto um perfume como outra
cousa qualquer, de modo que ao passarem por qualquer rapariga
que desejem possuir, esta não lhes possa resistir.
A língua falada é o kimbundu, misturado com o fioto (língua
do Congo). Os povos luangos teem algumas palavras e pronun-
ciação diferentes, mas, no entanto, as diferenças da linguagem
não são de tal modo sensíveis que os povos vizinhos não os
compreendam.
46 POPULAÇÕES INDÍGENAS
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A morte. — A família. — Reli-
gião, rito, culto, divindades e sacerdócio.
O parto tem lugar à porta da cubata, ou mesmo em público.
Para esse fim, a parturiente senta-se numa pedra e é amparada
por uma mulher. O recemnascido é untado de tacula e azeite de
palma. Logo no dia seguinte ao parto as mulheres voltam ao
trabalho.
No caso de aborto, nada há de extraordinário.
Os nomes dos recemnascidos são escolhidos pela família. Ao
primeiro filho costumam dar o nome do avô e ao segundo o do
pai. São mais desejados rapazes do que raparigas, causando-lhes
tristeza quando teem filhos gémeos.
Cuidado algum teem para com as parturientes ou recemnasci-
dos. As relações entre os cônjuges cessam somente nos últimos
dias de gravidez.
Os casamentos realizam-se em uma idade muito juvenil. Aos
doze anos cada rapaz tem a sua rapariga, e, à proporção que se
vão tornando mais homens, maior número de mulheres vão adqui-
rindo, chegando a ter cada homem mais de cinco mulheres.
Os dembos teem tantas mulheres quantas desejam.
Quando o homem se aborrece duma mulher, despede-a; mas,
quando ela arranja outro homem, este tem por obrigação de
indemnizar o primeiro pagando o alambamento.
As mães teem por costume recomendar às filhas o maior sigilo
nos primeiros três períodos de menstruação, a fim de não per-
derem a sorte de terem filhos.
Os rapazes quando chegam à idade de doze anos, são circun-
cisados pelos kimbandas, operação que é feita no mato, num
recinto apropriado, quando termina a época das chuvas.
A circuncisão é obrigatória.
Os pedidos de casamento são feitos ã família, reunindo-se
para esse fim em conselho os seus membros, sendo a opinião dos
tios a mais respeitada e acatada.
Nos povos desta tríbu muito antes de chegar à idade da
puberdade, as raparigas praticam o coito, devido à liberdade
que teem.
'gola -Mulher de Loanda em tratamento por ter tido dois gémeos
Popul. indígenas de Angola.
(46)
DE ANGOLA 47
O sentimento do amor quási que nào existe, como não existe
o celibato e a continência.
São proibidas as relações com primos e outros parentes mais
próximos, sendo considerado crime grave, somente para o homem,
o ter relações com a irmã ou com a mãe.
A mulher não é incriminada pelo incesto.
Não existe a prostituição propriamente dita, nem o amor livre.
A mulher, sob o ponto de vista moral, não a preocupa o entre-
gar-se a qualquer homem. A única coisa que a coíbe é um res-
peito natural que tem pelo marido, entendendo que unicamente
pertence àquele que pagou o alambamento. É naturalíssimo entre
eles uma mulher entregar-se a um homem e depois confessar ao
marido a sua falta, que ela julga resgatada com a multa ou cas-
tigo que aquele paga ou sofre. Aquele que se mete com as
mulheres de macota, soba ou dembo, sofre grandes penas, sendo
destas a mais grave o ser vendido como escravo.
Os contratos de casamento são feitos da maneira seguinte : o
rapaz que pretende uma rapariga oferece-lhe imediatamente a
quantia de seis centavos. Se ela gosta do rapaz, aceita-os e vai
entregá-los ao pai, que por sua vez lhos devolve. O homem,
porem, pode contratar o casamento independentemente da von-
tade da mulher, e é o que em geral acontece.
Se a noiva morre antes da união, o pai restitue a quantia
ou os objectos recebidos. Se morre depois, o pai tem por obri-
gação dar ao homem uma outra filha, e, caso não a tenha, res-
titue o alambamento (presente do noivado).
O alambamento é por assim dizer a garantia de que uma
mulher será fornecida ao homem. Ao homem é permitido esco-
lher a mulher. Esta também pode escolher o homem, mas, se
antes disso alguém a contratar directamente com os pais, a
mulher tem que se entregar seja a quem fôr, novo ou velho,
feio, formoso ou aleijado. Quem determina é o alambamento
recebido, que tem o valor duma escritura.
A virgindade da mulher não é exigida, mas é estimada. As
próprias mulheres a tomam em consideração, porque quando são
desfloradas, vão mostrar o sangue às vizinhas e amigas. O homem
que encontra a sua mulher virgem presenteia a mãe desta com
duas peças de pano riscado, por ter guardado a virgindade da filha.
A união entre os dois sexos não se desfaz, a não ser quando
os cônjuges não se entendem um com o outro e o marido, já
aborrecido e farto da mulher, resolve entregá-la aos pais.
48 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Se um homem violar uma mulher virgem, é obrigado a pagar
aos pais dela duas peças de pano riscado ou a quantia de um
escudo e sessenta centavos, ficando assim liquidado o assunto.
O casamento é um perfeito acto mercantil. O homem compra
a mulher, quer esta queira ou não.
Uma mulher pode custar doze a sessenta escudos, conforme
a sua aparência e plástica, mas, para evitarem estes altos preços,
contratam-na geralmente quando criança, sendo a taxa estabe-
lecida de seis escudos, quantia de que o homem vai paulatina-
mente reembolsando os pais, em prestações de quipacas (cada
quipaca vale um centavo) e macutas (cada macuta vale três
centavos), de modo que ela, quando chegar a puberdade, está
paga pelo comprador, que se desforra do que por ela deu, fazen-
do-a trabalhar para êle andar à bôa vida.
Em geral, as crianças de 5 para 10 anos de idade, as mais
robustas e bonitas, já teem noivo.
Não usam o casamento por troca ; entre alguns povos é cos-
tume haver o de ensaio, em que o casamento se consolida só
depois do nascimento dum filho, passando neste caso a mulher a
viver definitivamente em casa do marido. Se, por acaso, a
mulher dá à luz uma criança cujo pai não é o marido dúvida
alguma tem ela de confesar o delito ao marido, que por este
motivo não a expulsa de casa nem a castiga. É devido a este
facto, talvez que estes povos ajuizadamente consideram os tios
maternos com mais autoridade do que os próprios pais.
O homem escolhe as mulheres ou na própria sanzala ou na
sanzala vizinha, esteja ou não subordinado ao mesmo soba ou
dembo; porém, não é permitido a união dos povos pertencentes
aos dembados de Caculo Cahenda, Ngombe Amuquiama e Qui-
baxe Quiamubombo com os povos Mahungos, Luangos ou Mu-
bires e os dembados de Mbula Atumba, como permitida não é a
união destes últimos com os primeiros.
Não há cerimónias especiais de casamento nem festejos; ape-
nas a sogra, em sinal de reconhecimento, costuma oferecer ao
genro, depois deste ter pago o alambamento, um porco e um saco
de fubá.
O crime de adultério é resgatado da seguinte forma : se o
adultério fôr surpreendido pelo marido ou se a mulher lhe fizer
a queixa, o adúltero paga ao marido: pela primeira vez, a quantia
de seis centavos; pela segunda, uma jarda de fazenda, equivalente
a dez centavos; pela terceira, vinte; pela quarta, trinta; e depois
DE ANGOLA 40
uma cabra ou um porco; e assim sucessivamente, vai subindo o
pagamento. Caso se suscitem questões entre o marido e o seu
rival é o respectivo soba que intervém e resolve o assunto.
Se a mulher pertencer a um macota, soba ou dembo, então a
falta é considerada mais grave, como já tivemos ocasião de dizer.
O homem que se mete com a mulher dum macota é preso e acor-
rentado até que a família o resgate por um porco e dez peças de
fazeilda, sem o que é vendido como escravo. Se se mete com a
mulher dum dembo, confiscam-lhe todos os bens e entregam-no
ao Governo, para ser degredado.
Quando o ofendido mata um adúltero, comete um crime punível
como qualquer homicídio voluntário.
A mulher, depois de casada e de haver tido um filho, passa
a fazer parte da família do marido, não perdendo, contudo, di-
reito a herança que porventura possa receber dos seus pais, da
mesma forma como os seus irmãos solteiros.
A mulher não pode ser emprestada nem trocada, mas pode
ser vendida, caso tenha cometido algum crime grave.
No caso de dissolução do casamento, os filhos acompanham o
pai e as filhas ficam com a mãe, e o produto das lavras, caso as
possuam, é igualmente dividido entre á mulher e o seu antigo
marido.
Os avós e os pais tem obrigação de educar os seus netos e
filhos, tendo estes o dever de os respeitar e obedecer, e bem
assim sustentá-los, como aos irmãos mais velhos, no caso de
doença. Na falta de pais ou avós, são os irmãos mais velhos que
os substituem em tudo.
As pessoas que entram na constituição duma família são os
avós, pais e filhos. Os filhos casados constituem sempre novo lar,
desde que tenham um filho. Quando haja filhos de várias mulheres,
os da primeira são mais favorecidos.
Os filhos estimam seus pais, e quando os encontram em
qualquer sítio dão-lhes os bons dias e as boas tardes, pegando-
lhes na mão e tocando-a na testa. Igual cerimónia praticam
quando encontram os tios.
O dembo é considerado pai de todos, e quando se pregunta
a um indígena de que terra é, responde : sou filho do dembo de
tal parte. Quando pertença ao dembado de Oaculo-Cahenda, é
então com grande orgulho que responde ser filho desse dembo,
visto aquele ser considerado pai de todos os dembos.
Estes povos quando falam ao dembo, ajoelham diante dele,
50
POPULAÇÕES INDÍGENAS
havendo alguns que para se mostrarem respeitosos, se curvam
até tocar com o queixo no chão, batendo em seguida as palmas.
O dembo fa'z uns pequenos gestos com a mão, como quem aben-
çoa, e, quando êle fala, todos se descobrem.
O indígena desde o mais chegado ao dembo até ao mais afas-
tado em categoria, compraz-se em mostrar o seu respeito pelo
Um funeral no bairro da Ingombota, da cidade de Loanda
dembo, especialmente perante os estranhos, não prenunciando a
palavra dembo sem primeiro se descobrir e tomar uma atitude
respeitosa.
Na embala do dembo, quando este dá alguma recepção, colo-
cam uma cadeira para êle se sentar, e, enquanto êle não ocupa
o seu logar, os macotas, ao passarem em frente da cadeira,
ajoelham e curvam-se como se êle representasse uma divindade
ou um objecto sagrado.
Qualquer homem do povo ou mesmo os macotas, para cum-
primentar nm dembo, ajoelham-se e fazem com a mão direita
um risco na terra e com a mão esquerda um outro, de maneira
que os dois riscos formem uma cruz ; seguidamente fazem os
DE ANGOLA 51
mesmos gestos por detrás do pescoço, o que quer dizer que o
dembo é senhor de lhe mandar cortar a cabeça; se o dembo lhes
estender a mão, levam-na imediatamente ao nariz e cheiram-na
com ruido, o que quer dizer que tomam a sua santa benção.
Quando um doente está moribundo, todos os membros da
família se juntam à volta dele e começam a chorar logo que o
moribundo acaba de expirar. Náo é costume haver nesta ocasião
práticas religiosas, danças ou cantos, nem costumam ser cha-
mados os quimbandas ou feiticeiros.
Os parentes e amigos do morto anunciam o falecimento,
quer seja de dia quer seja de noite, com tiros de espingarda.
Vestem ao morto um traje semelhante ao que usava em vida,
mas um pouco mais decente e rico. As vezes, e especialmente
nas terras do Zambi Aluquem, dá-se o curioso caso de um indí-
gena, que em vida nunca usou nem sequer conheceu o que fosse
uma camisa e muito menos ceroulas, depois de morto ser vestido
com esses objectos de vestuário, oferecidos pelos parentes e ami-
gos, que costumam também oferecer à família do falecido um ca-
brito, porco, vinho de palmeira, etc. Alguns, antes de vestirem
o morto, untam-no com azeite de palma e tingem-no com tacula.
O cadáver fica em exposição durante três dias, em casa,
sendo depois transportado numa tipóia, convenientemente co-
berta, até o local onde deve ser enterrado, e acompanhado de
todas as pesssoas de família e parentes que colocam sobre a
sepultura objectos de missangas, manilhas e quindas (cestos), se o
falecido era do sexo feminino ; barretes, pratos, garrafas, copos,
etc, se era do sexo masculino. Quando se trata dum soba ou
macota, em cima da sepultura colocam bastões, cadeiras e vários
outros objectos que não sejam muito vulgares entre eles a fim
de mostrar que o morto possuiu em vida todos aqueles objectos.
Em cima das sepulturas, afim de evitar que as almas dos
falecidos os façam morrer de fome dentro de pouco tempo, cos-
tumam colocar também várias comidas e bebidas, imaginando
que as almas se servem dessas ofertas, embora as encontrem
sempre intactas quando vão substituí-las por outras.
A família do falecido não se alimenta durante os três dias que
vão do óbito ao enterramento. Como sinal de luto, pintam o
52 POPULAÇÕES INDÍGENAS
rosto com azeite de palma e dendem carbonizado ; as mulheres,
àlêm desta pintura, usam um pano cobrindo-lhes a cabeça e
abstêm-se de ter relações sexuais, principalmente com extranhos,
durante quatro meses.
O luto é de seis a oito meses pelos pais, marido ou mulher;
quatro meses pelos irmãos e filhos maiores; três meses pelos
filhos menores e dois meses pelos filhos de peito.
Em Caculo-Cahenda, quando morre algum soba ou dembo, no
dia do funeral, o cadáver é transportado de casa para a embala,
onde fica em exposição, envolto em panos e estendido numa
tipóia. Seguidamente, os macotas dançam em volta do cadáver
e levam-no depois processionalmente em passeio pela povoação,
com acompanhamento do batuque, que chamam gica, e que
consiste em manejos de espada, simulando cortar as cabeças uns
dos outros. Nestas ocasiões, os dembos também costumam dançar
ao som de música, não em público, mas à porta das suas casas,
junto da embala, envolvidos nos seus vistosos mantos.
A frente do cortejo caminham os macotas e os sobas, com as
faces pintadas de preto, com uma touca feita de pano preto na
cabeça e trajando os seus vistosos mantos. Acompanham o cor-
tejo só até o términus da povoação.
Os cemitérios ficam junto das povoações, à beira dos cami-
nhos, e as sepulturas são cavadas muito fundas. São as próprias
pessoas de família do falecido que fazem as covas que hão-de servir
de sepulturas; o pai é quem marca o local onde deve ser feita a
cova para os filhos e é quem principia a fazê-la; na falta dele,
é a mãe quem o substitui, sendo os pais os primeiros a deitarem
terra no coval.
No dembado de Quibaxe, as mulheres costumam despedir-se
dos seus maridos lambendo-lhes o nariz e os dedos dos pés.
No dembado de Ngombe Amuquiama, os dembos são enterrados
num local onde antigamente existia uma Igreja.
Em alguns dembados é costume, quando morre um dos côn-
juges, o outro fechar-se no quarto com o cadáver e simular pra-
ticar a cópula, unindo os órgãos sexuais duns aos outros, e emfim
praticar tudo mais que em vida costumam fazer. Crêem que, se
assim não procederem, o cônjuge sobrevivente terá a mesma
doença de que o outro veiu a falecer.
Estes povos guardam o culto dos antepassados, afim de que
as suas almas não venham fazer mal.
Acreditam nas almas dò outro inundo, a que chamam matam-
DE ANGOLA 53
bóia, (as que andam de noite a gritar) e zumbi, entendendo que
elas pairam no espaço, não longe da terra. Respeitam-nas e
temem-nas muito, porque, se lhes é fácil desfazerem-se de um
feiticeiro, matando-o, outro tanto não podem fazer a um espírito,
a quem sacrificam um boi ou o que preciso fôr, se o chinguilador
disser que uma determinada alma quer comer e que, de contrário,
ela lhes fará mal. Matam, neste caso não só o boi como outros
animais que forem indicados pelo chinguilador, arranjando uma
refeição em que toma parte muita gente, associando-se a ela
também... a referida alma.
Quando um cão ou um gato andam acometidos duma doença
qualquer, julgam que esses animais estão encarnados dum espírito
maligno, mas nem por isso os veneram nem tratam de os curar,
antes são abandonados e dizem: «tem feitiço, não tem remédio,
esperemos que morram para s*erem enterrados».
Crêem na vida futura. Julgam que as almas dos que em vida
foram maus sofrem noutro mundo, onde podem regenerar-se e
tornar a morrer para acabar com os sofrimentos.
Não há proibição de comer certos alimentos nem a de tocar
em determinados objectos ou a de proferir quaisquer palavras,
a não ser a de tocar nos feiticeiros.
Não conservam a recordação de factos históricos, salvo a
dalgum facto com eles sucedido, mas perdem a noção do tempo.
O dembo Caculo-Cahenda possui algumas cartas patentes desde
o século xvn guardadas numa mala.
Os quimbandas costumam invocar, quando assim lhes solici-
tam, o espírito zumbi, que, passados alguns minutos, comparece
no local onde foi chamado, de modo que depois não é o quimbanda
propriamente quem fala, mas sim o espírito, pela boca do médium,
que é o chinguilador.
%
% *
Estes povos crêem na existência dum ser sobrenatural, uma
entidade inteiramente desconhecida para eles, que tudo pode e
tudo manda, a que chamam Deus e a quem atribuem todas as
fatalidades e desgraças que lhes advêm, salvo aquelas que lhes
parecem provir dos espíritos malignos e*dos feiticeiros.
Supõe-se que os dembos reconhecem dois deuses, o do bem e
o do mal, sendo este último o que dá poder aos feiticeiros e é
mais temido.
u
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Não adoram objecto algum ; alguma vezes se vê um ou outro
indígena com um crucifixo, mas não o usam como símbolo duma
religião, trazem-no unicamente como adorno.
Não existe o culto dos fenómenos físicos nem das forças da
natureza, apenas temem o raio,' recorrendo, por ocasião das
grandes trovoadas, aos quimbandeiros, a fim destes receitarem
um remédio que os resguarde das faíscas eléctricas.
N'golas — Uma variadíssima colecção de feitiços
Estes povos retraem se algumas vezes em fazer mal aos seus
semelhantes, não talvez porque possuam a noção do bem e do
mal, mas em virtude da crença que entre eles existe de que
aquele que fôr mau não só a sua alma sofrerá noutro mundo,
mas ainda neste, se a alma dos mortos, que em vida foram atin-
gidos pelas suas maldades, resolverem intrometer -se com eles.
Alem disso, estes povos teem remorsos dos males que praticam,
e, quando estes são graves, o remorso fá-los emagrecer de tal
modo que chegam algumas vezes a morrer.
A noção do pudor parece existir nos povos desta tribu. As-
sim é que, uma mulher que geralmente anda inteiramente nua,
BE ANGOLA 55
não se envergonhando de mostrar todo o corpo e algumas vezes
até o que naturalmente está oculto, quando passa a viver em
companhia dum homem civilizado, que lhe dê uns panos, não
mais se torna a apresentar nua como dantes, e envergonha-se
mesmo em ter a descoberto os seios, um bocado da perna ou os
braços.
Não tem a noção de caridade, o que teria sem dúvida a sua
explicação devido ao insignificante que a maior parte deles pos-
suem, e de que não podem distrair a mais pequena parcela para
distribuir pelos outros que levam uma existência miserável e
faminta, se não fosse o dos mais abastados repartirem o que
tem pelos outros, com mira de receberem destes também qual-
quer coisa em troca.
IV. —Da vida social
Classes e castas, — Organisação política.
— Propriedade. — Regime económico. —
Costumagens jurídicas.
Há três espécies de classes nos povos desta tribu : os macotas,
que são os conselheiros dos sobas e dos dembos, o povo, e os
escravos (muleques).
São eleitos macotas os indivíduos, já idosos, e os mais res-
peitáveis e ricos, perdendo imediatamente esta distinção no mo-
mento em que cometam algum delito grave.
Os escravos são aqueles que foram roubados ou dados em
pagamento para uma terra diferente. Andam livres e não fogem
porque se conformam com a sua situação.
Os dembos e sobas praticam desenfreadamente a escravatura,
vendendo ou trocando, sob o mais fútil pretexto, indivíduos do
seu dembado para outro. Mesmo em Santo António de Caculo
Cahenda, junto do forte, se faz comércio de escravos, mas muito
clandestinamente, porque sabem ser isso proibido pelas leis por-
tuguesas.
O escravo nunca se pode libertar ; tem por obrigação traba-
lhar gratuitamente para o seu senhor, para o qual representa
uma determinada quantia ou objecto que pode ser, por exemplo,
um boi.
A mulher pode ser vendida com os filhos e estes podem ser,
por sua vez, vendidos isoladamente.
56 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os escravos ou muleques, nome por que geralmente são
conhecidos, vivem em cubatas separadas e comem também sepa-
radamente.
Antigamente, estes povos estavam subordinados a seis dem-
bos; hoje há um grande número deles, não com a mesma auto-
ridade que os primeiros possuíram, mas como simples figuras
decorativas.
O dembo é considerado um ídolo. Os macotas que a cada
passo arranjam uma questão com êle, por causa de meio decili-
tro de aguardente mal distribuído, em presença de estranhos
mostram-se muito obedientes, ajoelham-se diante dele ou mesmo
ao passarem pela sua cadeira, e descobrem-se ao pronunciarem
o seu nome. Os macotas teem o poder de aposentar os dembos,
quando estes não lhes agradem. As vezes enfeitiçam-no. O
dembo aposentado continua a gozar uma certa consideração, mas
perde toda a autoridade, sendo apenas consultado em casos gra-
ves. O dembo é a boca que fala perante os estrangeiros e pe-
rante os sobas. O seu governo determina e êle sanciona, tendo
também o direito de veto.
Para a eleição dos dembos são ouvidos as macotas e os sobas.
Ao dembo é vedado sair da sua residência, sendo-lhe permi-
mitido apenas sair até a embala. Em Caculo Cahenda, o respe-
ctivo dembo já tem mais liberdade, devido em parte à constru-
ção do forte e ao predomínio da autoridade portuguesa, o que
deu em resultado aquele perder algum prestígio.
O Estado, assim se denomina o conjunto do dembo e seus ma-
cotas, reúne na embala para discutir as questões políticas da
região ou das suas relações com o Governo e povos vizinhos,
sempre que assim for preciso. Em casos de maior importância,
tomam também parte nestas assemblêas os sobas e sobetas, bem
como os dembos ou sobas aposentados.
O dembo não teem atribuições para tratar ou resolver um
assunto qualquer sem que previamente esse assunto seja discutido
em assemblêa.
Como oficiais inferiores, tem os macotas inferiores, denomi-
nados sargentos, por imitação das graduações necessárias na
guerra, mas, quando esta se trava, não há direcção superior
nem comando, sendo todos, indistintamente, soldados combaten-
tes. Em tempo cie paz, servem-se de meirinhos ou oficiais de
diligências para intimar qualquer indivíduo a comparecer perante
o dembo. Para esse fim, os meirinhos apresentam à pessoa,
DE ANGOLA 57
cuja comparência é intimada, o bastão do dembo, no qual a
pessoa intimada ata um laço como signal de que recebeu a inti-
mação e de que não pode faltar a esse compromisso.
A aldeia mais próxima da banza principal de toda a região,
representada pelos sobas e macotas, costuma reunir-se a esta,
a fim de impor uma ordem ou transmitir qualquer resolução às
aldeias mais distantes.
O sistema político parece ser uma monarquia absoluta ou
despótica, mas electiva. Há formalidades que parecem duma mo-
narquia constitucional, em que todo o poder reside no governo,
dependendo do chefe do Estado a sanção ou veto, mas, do meio
da indisciplina política que entre eles reina, deduzem-se dois
factos que se contradizem, a saber : os dembos e os sobas são
uns déspotas, com poderes descricionários para abusarem dos
seus vassalos; porém estão sujeitos aos macotas, que tanto lhes
podem outorgar a autoridade como retirar lha. Aparentemente,
o dembo é omnipotente, ocupando uma situação superior a
todos; intimamente, não passa dum simples ídolo convencionali
o cabeça falante.
Cada dembo tem sob o seu domínio uma ou mais sanzalas,
que tem por chefes os sobas e estes, segundo a sua importância,
tem debaixo de si sanzalas mais pequenas, cujos chefes são de-
nominados sobetas.
Além dos presentes que os dembos exigem aos sobas, seus
vassalos, não cobram mais nenhum imposto.
Na região dos Dembos, ainda hoje por submeter, e na maior
parte rebelde, os europeus pode-se dizer que são tolerados. Em
pleno coração dos Dembos, está construído o forte de Caculo
Cahenda, que convence os povos dessa região de que essas ter-
ras começam a passar da posse do Muene Congo (autoridade
gentílica) para a do Muene Puto (autoridade portuguesa).
Nas terras sob a jurisdição dos dembados de Casuangongo,
Mbula Atumba, Quilombo e outros, não é permitida a entrada
dos europeus.
Não há tratados de amizade; vivem quasi sempre mal uns
com os outros; no entanto, é fácil aliarem-se contra o inimigo
comum, como, por exemplo, os europeus.
As terras dos dembos são limitadas por linhas de árvores,
servindo de marcos, colocados pelas partes.
O dembo de Caculo Cahenda, além das cartas patentes a que
já nos referimos, possuo arquivados antigos documentos relati*
5
58
POPULAÇÕES INDÍGENAS
vos á demarcação dalgumas das suas terras, levada a efeito com
a intervenção da autoridade portuguesa.
Não há organização militar ; sendo necessário fazer alguma
guerra aos povos dum sobado, esperam-nos emboscados, e,
N'golas — Um terrível feitiço : O «Nganga Kazenda», de Ambaca
quando estes passam muito próximo, sobre eles desfecham à
queima roupa, atacando de preferência a cauda da fila ou da
coluna. Nas grandes lutas há um indivíduo chamado quilôlo,
que vai á frente a sacudir as balas inimigas, que passa por ser
invulnerável.
As mulheres não tomam parte nos combates. Os prisioneiros de
guerra são vendidos, salvo os sobas cujas cabeças são decepadas.
DE ANGOLA 59
Quando ficam vitoriosos, tomam conta da povoação inimiga
e das terras adjacentes, colocando aí um soba ou sobeta.
A população inimiga que prestar obediência aos vencedores
permanece na povoação.
*
O senhor das terras é o Estado, presidido pelo dembo que con-
cede todas as licenças, que cada um pede para grangear os terrenos
que quiser. No Estado há dois indivíduos especialmente conside-
rados donos das terras, e que teem os títulos de Samba e de Itandala,
ou conjuntamente o nome de Dumbi-Emulumbi (donos das terras).
Não existe um domínio público. O Estado pode ser possuidor
de casas, terras ou animais, que pertencem igualmente a todos
os macotas.
Todas as terras são do povo e cada particular pode usufruí-
las, segundo as suas necessidades. As propriedades são limitadas
por sebes ou outros sinais quaisquer.
Na vida em comum, o homem e a mulher são igualmente
proprietários dos objectos que estão em casa; porém, quando
se separam, a mulher leva as panelas, a sua quinda, a sua esteira
e sua colher, ficando o homem com a catana, com os pratos e o
banco. A mulher não pode comprar, nem vender, nem distribuir.
É-lhe vedado dividir o porco ou a galinha que matam para as
refeições da família, sendo o seu papel cosinhar as comidas.
A mulher não pode também ir à mala buscar um pano ou
outra cousa qualquer; o marido não lhe confia as chaves das
malas: é este que vai buscar ou arrecadar o que é necessário.
A mulher escrava só trabalha e come o que lhe distribuem.
O marido às vezes autoriza a mulher a ter uma galinha, se esta
lhe fôr dada pela sua família, a fim de ter ovos e criação.
Os bens imobiliários pertencem ao marido, inclusivamente as
lavras feitas pela mulher.
O direito da caça é livre, mas aquele que fizer caça grossa
(boi bravo, etc.) e não oferecer ao seu respectivo dembo ou
soba a cabeça e a parte trazeira do animal é preso. Aquele que
caçar, por exemplo, uma onça, deve apresentá-la ao dembo ou
soba, o qual começa a contar os pêlos do bigode do animal. Se
faltar algum destes pêlos, bem como alguma unha, o caçador é
preso, por suspeita de querer fazer feitiçaria com esses objectos.
Existe o direito da propriedade sobre achados, devendo,tno
60 POPULAÇÕES INDÍGENAS
entanto, ser devolvidos ao dono que prove pertencerem-lhe, sendo
presos aqueles que procederem do modo contrário.
Fazem comércio de importação e de exportação. Importam
fazendas, armas, pólvora e peixe seco e exportam café, que é
muito abundante na região.
Os povos pertencentes aos dembados de Caculo Cahenda e
Mbula Atumba negoceiam também em gado. A região de Ca-
zuangongo é das mais inúteis, comercialmente.
Em Santo António de Caculo Cahenda há uma casa comercial
de mercearia e permuta com o gentio.
Não há caravanas, nem feiras e cambistas.
As moedas são: uma mulher, equivalente a um boi; um boi,
que vale 20 a 40 escudos: um porco ou carneiro, que vale 3 es-
cudos ; fazendas e aguardente, dinheiro em cobre, que contam
aos 3 centavos (macuta) ou aos 6 centavos. Um homem escravo
(muleque) pode também ser permutado, tendo pouco menos
valor que a mulher.
Como medidas empregam : um saco ou um cestinho ; uma
peça de 8 jardas de fazenda; e a jarda, que contam desde o
centro do peito à estremidade da mão, estando o braço estendido
horisontalmente.
Quando fazem um contrato qualquer, os contratantes são os
que primeiramente emitem a sua opinão, depois são os avós dos
contratantes, depois os tios e depois os irmãos mais velhos, os
mais novos, os sobrinhos e, por último, os primos.
No caso de herança, os sobrinhos herdam dos tios e vice-
versa; não havendo tios e sobrinhos, herdam os membros da
família do falecido, do ramo materno.
A mulher, depois da morte do marido, é herdada pelo irmão
mais velho do falecido, e se este, a não quizer é o irmão mais
novo que com ela fica. Aquele que a recebe paga três peças de
fazenda à família da viuva. A este presente dão o nome de
tabaco. A viuva que se liga a outro homem, sem primeiro pas-
sar pelo poder dos cunhados, morre ela e aquele que com ela
casar.
Quando um indivíduo de certo dembado comete um crime,
como, por exemplo, o de assassínio, e a vítima pertence a dem-
bado diferente, se esse criminoso não é preso, será amarrada e
DE ANGOLA
61
pagará o crime a primeira pessoa que acharem à mão do derri-
bado do criminoso.
Andam constantemente em questão os povos dum sobado com
os do outro. Muitas vezes, lembram-se das questões entre eles
suscitadas há muitos anos atrás, e trazem-nas novamente à tela
de discussão.
N' golas — Grupo de amb aquistas
No caso dum crime ou dívida, quem responde primeirojé o
criminoso ; se este fugir, prendem o irmão mais novo do crimi-
noso ; se também este não se deixar prender, agarram o pai do
criminoso ; e se este também escapar à prisão prendem um tio ;
e, finalmente, se este último também fugir, o julgamento fica
pendente até morrer o criminoso e sua família, excepto a mãe
que nunca responde pelos crimes por outros praticados, a não
ser pelos seus próprios.
Como penhor duma dívida costumam dar um homem, uma
mulher, crianças ou quaisquer outros objectos.
Não emprestam valores a juros, más se o devedor se demora
a pagar ou não é amigo do credor, este exige o pagamento
aumentado.
62 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Não teem códigos nem leis que regulem a aplicação de pena.
As penas são quási sempre reguladas pelos crimes, mas aumen-
tam consoante as posses do acusado e do queixoso, pois os juízes
(macotas) não teem em vista fazer justiça, mas sim explorar,
visto que não vivem de outra coisa senão de exploração dos
crimes riais e imaginários. O queixoso embora tenha razão, se
fôr rico, paga também muito para os juízes.
Antigamente, antes da ocupação da região onde habitam
estes povos, existia entre eles a pena de morte por enforcamento ;
se o delinquente resistisse, fuzilavam-no. Actualmente, ainda
parece existir a mesma pena em lugares não ocupados pelas
autoridades.
As restantes penas gentílicas mais graves que ainda hoje
existem são : o ser vendido como escravo e o pagamento de
bois, porcos, fazendas, café, etc. Enquanto o delinquente não
cumprir a pena, este fica preso ao tronco duma árvore.
Existe o instinto de vingança muito pronunciado e com toda
a aparência de penas de Talião, mas os juíses (macotas) a isso
obstam, porque semelhante prática nada lhes rende, procurando
por isso julgar todas as questões.
A família do indivíduo que tenha sido vítima dum assassínio,
pode exigir do homicida o pagamento que quiser, mas não a
morte do criminoso. Na maioria das vezes, exige muitos mule-
ques, que o homicida tem de dar se os possuir ; no caso contrá-
rio, ficam o criminoso e a sua família como muleques.
Ao julgamento dos criminosos, se o crime é grave, quem
preside é o respectivo dembo, único que se senta na cadeira ; se
o crime não é muito grave, preside ao julgamento o Muene-
itandala, e na sua falta, o Muene-samba ; e se o crime é insigni-
ficante, são os macotas que presidem ao julgamento. Há um
secretário do tribunal, que assiste aos julgamentos sentado numa
esteira ao lado do dembo, mas que nada resolve nem escreve.
O tribunal é composto pelos macotas, pelo Muene-itandala,
Muene-samba, também intitulado 7ala-mujinga, que fica atrás
do Muene-itandala e Muene-samba ; atrás do Tala-mujinga ficam
o Mutôr-embaje, indivíduo encarregado de receber correspon-
dência, o Muene-lumbo, Muene-hapa Muene-se?ne, Muene-dumbe
Muene-sanje, Muene-cui 1.°, Muene-cui 2.°, Muene-unho, Muene-
sonze, Muene-cabalanga e muitos outros macotas, como são : o
manjor, o capitão, o brigadéro, o tinenti, o ealiféri, os sarigentos,
os cabos, o cornitéro e o porta-batuque.
DE ANGOLA 63
Os macotas inferiores raras vezes comparecem^ no tribunal.
O julgamento é público e apenas se vestem melhor o Dembo, o
Muene-itandala, o Muene-samba e o Muene-gombe, soba da maior
sanzala, que somente comparece quando se trata de julgamentos
de crimes gravíssimos. O Muene-gombe é considerado irmão do
dembo e a este substitue nos seus impedimentos ; pode usar botas,
mas quando está ao pé do dembo, descalça-as. O dembo Caculo
Cahenda é o que tem maior número de macotas. O réu e o
queixoso assistem aos julgamentos sentados, e ajoelham-se quan-
do o dembo fala. O réu só é preso depois de condenado. Quando
as testemunhas afirmam e o réu nega, este é submetido à prova
de juramento, a que mais atrás já nos referimos. Se o réu de-
pois de beber a droga, ficar aflito, e se é acusado de feitiçarias,
deixam-no morrer e praticam tudo o que fica dito quando tra-
tamos dos feiticeiros ; se não é acusado de feitiçarias, dão-lhe
um contra veneno e consideram-no criminoso.
O qiámbandeiro é chamado quando se trata de crimes de
pouca importância, o qual aplica ao réu um ferro em braza ;
se na verdade êle fôr culpado, esse ferro queima-o ; no caso
contrário é considerado inocente. Antes de aplicarem ao corpo
do réu o ferro em braza, a fim de conhecerem o grau da quei-
madura que êle pode produzir, fazem a experiência tocando
uma pena de galinha com o ferro.
E permitido indemnizar o prejuízo do crime, mas não dis-
pensam as formalidades do julgamento, a fim de os juíses não
perderem as custas.
Os macotas, ouvindo as partes e as testemunhas, discutem a
causa, seguidamente conferenciam com o dembo, que está sen-
tado a distância, depois ouvem a opinião do Muene-itandala e do
Muene-sambo e tornam a conferenciar outra vez com o dembo,
que profere finalmente a sentença.
Estes povos não assimilam por enquanto uma civilização
superior, mas teem consideração pelo indígena civilizado.
u
«ANGOLA-
18.000.000
Tribu MUCHIGONGO
M.áftfry*' fec r. vnp.
CAPITULO III
MUCHICONGOS
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos designados por Muchi-
congos. — Situação geográfica. — Popu-
lação.
Á tribu Muchicongo pertencem os povos cuja banza ou capi-
tal é Uénené-Congo, e que significa lugar onde habita o rei.
O território habitado por estes povos anda por nove mil qui-
lómetros quadrados, corresponde quási na totalidade à circuns-
crição de S. Salvador do Congo, é limitado ao norte com o
Congo Belga, ao sul com o rio Mbrige, a leste com o Luango,
desde a fronteira belga até às suas nascentes, seguindo em linha
recta até às nascentes do Lufundi, e depois o curso deste rio até
à sua confluência com o Mbrige, e a oeste com o Mpozo.
Os actuais Congos consideram-se parentes; dos habitantes
do Congo Belga que ao norte confina com a nossa colónia ; dos
povos habitando o que indevidamente, se costuma denominar
enclave de Cabinda; dos que estão estabelecidos ao sul do Zaire
e ao norte dos rios Lifune e Zenza ; e dos povos Jingas, Ma-
hungos, Holos e Mussucos.
Efectivamente, parece que, dos povos vindos da região dos
grandes lagos, algumas tribus não passaram àquem do Lubilaxi,
seguindo o rumo norte e vindo estabelecer-se na parte superior
dos afluentes do Cassai.
Segundo uma versão, em virtude de novas invasões, conti-
nuaram estas tribus a sua derrota para oeste ; segundo outros,
exploraram as terras de que lhes ficavam ao sul, onde, tendo
encontrado os povos que mais tarde vieram a constituir o estado
M
POPULAÇÕES INDÍGENAS
de Muat-Ianvua, uma parte fundiu-se com estes e outra tomou o,
rumo nordeste.
Não obstante a divergência, na forma de se contar a tradi-
ção dos povos de S. Salvador do Congo, não resta dúvida que
IPS;
§8<mÊm
%sws
Tipos Muchicongos
eles vieram da parte superior dos afluentes do Cassai, conside-
rando se por isso os actuais habitantes ainda parentes dos povos
que actualmente se encontram estabelecidos naquela região.
São regularmente constituídos e robustos, na parte norte da
região onde se encontram estabelecidos, e fracos, doentes e pouco
resistentes, nas regiões infestadas pela mosca tzé-tzé ; mais
cobardes que corajosos, bastante expansivos e tendo em elevado
grau os sentimentos de amisade, dedicação e compaixão.
DE ANGOLA
67
Os homens desta tribu dedicam-se à caca, pesca, e sobretudo
ao transporte de cargas, empregando-se as mulheres quási ex-
clusivamente no trabalho das suas lavras.
A população, nas regiões infestadas da mosca tzé-tzé, ao sul
• :? ff
Slí
SK :
Mucliicongo
da Circunscrição de S. Salvador do Congo, tem descrescido,
conservando-se nas restantes estacionária.
Os povos desta tribu são em geral de corpo bem direito, de esta-
tura mais que regular, sendo muito diminuta a sua força muscular.
A côr da pele é preta, pouco carregada nas partes menos ex-
postas ao sol e ao ar ; os cabelos encarapinhados e de côr preta ;
os olhos ovais, a côr da iris é preta e de posição horisontal.
E raro encontrar-se alguém com grande abundância de pêlos
pelo corpo ; o bócio é frequente.
68 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Habitação. — Alimentação. — Meios de
existência. — Sciências e faculdades in-
telectuais.
Os povos desta tribu usam a lavagem quotidiana com água
fria, empregando alguns o sabão ; só as mulheres fazem uso do
azeite de palma e óleo de jinguba.
São nadadores, não por divertimento, mas pela necessidade
que tem de passar os rios, onde não podem lançar mão de outro
meio que não seja a nado.
Parece não haver, como em algumas outras tribus se encon-
tra, um tipo de penteado característico da tribu. Entre estes
povos, os homens usam o cabelo, uns enrolado, outros entran-
çado e outros levantado em popa ; as mulheres usam o cabelo
entrançado, e em actos solenes costumam cortá-lo em sulcos,
formando vários desenhos. Para se pentearem empregam pentes
de madeira e as mulheres fazem uso do azeite de palma.
Não há torneios de luta, e, como passatempo, entregam-se a
diferentes jogos, de que passamos a descrever os principais : O
jimina, em que tomam parte homens e mulheres e que corres-
ponde à nossa cabra-cega. O badi, a que se entregam só rapa-
zes, e que consiste no seguinte : colocam-se os jogadores, muni-
dos cada um com o seu pau, em frente uns dos outros, em duas
filas paralelas ; á rectaguarda de cada fila, e a uma distância
aproximada de trinta metros, fazem um risco no chão ; o grupo
que, servindo-se dos paus conseguir, com uma bola entre eles
colocada, atingir ou passar primeiro o limite marcado ganhou o
jogo. Um outro jogo muito usual é o congo-dianchuica-kadi, a
que se entregam homens e mulheres, e que consiste em um dos
jogadores, colocado no centro dum círculo formado pelos restan-
tes de mãos dadas uns aos outros, procurar rompê-lo.
O tipo de habitação destes povos é a cubata com a forma
rectangular. Quem a constroe é o futuro morador, auxiliado
DE ANGOLA
69
pelos amigos, e as mulheres, que se encarregam simplesmente
de arranjar o colmo para a cobertura.
A sua construção é simples ; as paredes, de pau a pique,
ligadas por canas dispostas horisontalinente, que se revestem de
feno ; o telhado, em geral de duas águas, é feito de varas das
folhas de palmeira, a que vulgarmente se chama ^bordão, ser-
Raparigas Mucliicongos
vindo de barroteâ e canas, como fasquias, sobre que se assenta a
cobertura de feno, tudo ligado entre si e ao pau de fileira a
todo o comprimento, e apoiado Sobre três forquilhas, uma de
cada extremo e outra no centro.
As cubatas tem, na maioria, duas divisões, havendo-as com
três divisões, e algumas há em que a cosinha é no cercado ou
quintal.
Tem duas portas, uma de entrada e outra para serventia
pelo cercado, e nalgumas vêem-se já pequenas janelas.
Os locais escolhidos para construirem as cubatas são, em
geral e de preferência, os ventilados e elevados, próximos das
fontes, dos rios, em terrenos bons para culturas e mais ou
70
POPULAÇÕES INDÍGENAS
menos afastados dos caminhos frequentados, não se praticando
cerimónias preparatórias da construção.
A disposição das cubatas na povoação (sanzala) é, em geral,
em círculos mais ou menos imperfeitos, deixando ao centro ter-
renos comuns. Como dependências tem, no cercado ou quintal,
os estábulos em forma circular, e algumas as cosinhas.
Uma habitação indígena
As sanzalas não são cercadas por sebes, estacadas, cavas ou
qualquer espécie de defeza, e nelas existem cubatas reservadas
a forasteiros ou hóspedes; é costume construírem cubatas fora
da sanzala, reservadas para isolamento das pessoas atacadas de
doenças contagiosas.
Como mobília, usam apenas a cama, feita de bordões, em
forma de tarimba e apoiada sobre quatro forquilhas, a esteira,
bancos feitos de pequenos rolos de troncos de arvores e os uten-
silios de cosinha.
A iluminação faz se com os fructos da purgueira enfiados em
paus ou em canas, e o aquecimento com lenha.
DE ANGOLA
71
* *
Tanto homens como mulheres fazem uso de panos para se
vestirem, os homens prendendo-os, em geral, por meio de cinto,
um pouco abaixo da cintura, e as melhores traçando-os acima do
peito e por debaixo dos sovacos. Uns e outros usam um outro
ww
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Preparação da farinlia
pano pelas costas, principalmente quando estão doentes. As mu-
lheres costumam usar por debaixo do pano um mais pequeno,
cobrindo-lhe as partes genitais. Os panos são de algodão e ris-
cados adquiridos no mercado, sendo feitos em família. Não
usam calçado, salvo quando fazem viagem, em que usam uma
espécie de sandálias, por eles feitas de peles.
Não obstante na região se fabricarem chapéus duma graminea
muito fina e outros de fio de algodão, raros são os que usam
cobrir a cabeça, fazendo-o mais por luxo do que por abrigo.
A não ser a pele da onça, suspensa da cintura em forma de
72 POPULAÇÕES INDÍGENAS
avental, e as unhas do mesmo animal no barrete, que os sobas
costumam usar, não existe outro adorno ou enfeite que determine
a posição social.
Suspenso ao pescoço e aos cabelos, usam fios de vidrilhos e
contaria ; nas orelhas, brincos, argolas de metal de arame e paus ;
nos braços e tornezelos, anilhas de metal, arame e marfim.
Por ocasião de festas, enterros e casamentos, costumam pin-
tar o corpo, a cores, com tacula, carvão vegetal ve azeite de
palma.
Existe a tatuagem por picaduras e incisões: nas mulheres,
nas costas, no peito e na cintura ; e nos homens, no peito e nas
costas.
#
A base de alimentação é vegetal, fazendo, no entanto, parte
da alimentação a carne e o peixe. Os alimentos, uns, como a
carne, peixe, farinha e legumes, são cozinhados, e outros, como
as frutas, a mandioca e a jinguba, são ingeridos crus. Os ali-
mentos cozinhados são preparados, cozidos, guisados ou assados,
empregando, como temperos, o sal, o azeite de palma e a jinguba,
e como picantes, o jindungo e o gingibre.
Como bebidas existentes, usam o vinho de palmeira e seus
derivados e a garapa (fermentação de milho e de mandioca).
Tem duas refeições por dia, preparadas pelas mulheres, e não
são tomadas em família e em comum : os homens comem em um
grupo separado do das mulheres.
Os alimentos são preparados em uma das divisões da cubata,
quando não tem cozinha no cercado, no centro do qual se colocam
três pedras que constituem a lareira onde assentam as panelas.
Os utensílios de cosinha usados são : panelas de barro, quin-
das (cestos) cabaças, uma pedra lisa para picados, um chifre
para saleiro, pilão e peneira, e colheres de pau.
Não obstante alguns usarem os fósforos, em geral, o lume con-
serva-se sempre aceso, e quando necessitam fazer fogo obtem-no
por meio de isca colocada sobre uma pedra que ferem com
um ferro.
Não há celeiros públicos : cada família tem o seu celeiro de
pano ou fibras vegetais, onde conservam os cereais e a mandioca
depois de secos ; usam conservar a carne e o peixe por meio de
fumagem.
Muchicongos — Uma ponte gentílica
Popul. indígenas de Angola
(72)
DE ANGOLA 73
Não são antropófagos e não existe a geofagia propriamente
dita, apenas as mulheres costumam comer uma terra parda, a
que chamam Hmbnndun, quando andam grávidas, por a consi-
derarem estomacal.
#
Entregam-se á agricultura, de que se ocupam as mulheres
auxiliadas pelos homens, não sendo os trabalhos agrícolas feitos
em comum. Cultivam a mandioca, a jinguba, o milho, o feijão,
a batata doce, a ervilha, a cebola, etc.
Não usam adubar nem regar as terras, e empregam como
alfaias agrícolas a enxada e a catana. Preparam as terras em
setembro e outubro, as que se destinam ao milho, capinando e
dando-lhe uma cava ; as que se destinam a feijão, a ervilha e a
mandioca, são apenas capinadas. As sementeiras são feitas em
novembro.e dezembro, prolongando-se mesmo até março e abril.
As culturas são alternantes.
Alem da enxada e da catana, estes indígenas fazem uso do
machadinho para cortar madeiras, trazem sempre faca e alguns
espingarda de espoleta ou pederneira. A faca, a catana e a
espingarda adquirem-nas no comércio ; o machado é por eles
fabricado, e tem a forma de cunho com espigão, em lugar de
olhai.
Dedicam-se à criação de porcos, cabras, gado lanígero, gali-
nhas e patos.
São caçadores, exercendo a caça, em geral, por grupos e em
batidas. O possuidor da peça de caça é o primeiro que a fere,
ainda que a não tenha morto, cabendo a este só parte. Caçam
a onça, o veado, o javali, a corça, o búfalo, etc.
Os homens dedicam-se à pesca, quer por redes de fibras de
vegetais, por eles construídas, quer por tapumes ou sebes quando
baixam as águas depois das cheias. Pescam a bagú, a enguia,
o pargo e outros peixes de menor importância.
Costumam conservar, tanto a caça como o peixe, defuman-
do-o.
Os povos desta tríbu confecionam panos, para seu uso, dê
fibras de palmeira, a que chamam mabelas, servindo-se uns
6
74
POPULAÇÕES INDÍGENAS
de pequenos teares muito rudimentares e outros fazendo-os à
mão. A este trabalho entregam-se geralmente os homens.
Empregam-se igualmente, homens e mulheres, em obras de
cesteiro, fazendo, de gramíneas muito finas e fortes, cestos
(guindas) e esteiras, e de fibras de palmeira, peneiras, bem
assim como em cordoaria, fabricando cordas de fibras de imbon-
deiro (baobab), e atilhos de fibras de ananaz e de bananeira.
Serração de madeira na Missão de S. Salvador do Congo
Fazem trabalhos de olaria, tais como moringues, panelas,
cachimbos, etc, amaçando o barro, dividindo-o depois em por-
ções calculadas para o tamanho dos objectos a fabricar e assen-
tando-o sobre uma pedra bem lisa, onde lhe vão dando a forma com
o auxílio dum caco ; feito isto, expõem ao sol os objectos durante
um dia, sendo depois colocados em uma cova que se cobre com
terra e sobre que fazem uma grande fogueira, que em geral se
prolonga por meio dia.
Depois de cosidos, costumam alguns, para polir e dar brilho
aos objectos fabricados, esfregá-los com folhas de mandioca.
Fabricam machados, facas, setas, pipos de espingarda, argo-
DE ANGOLA
75
las, etc., com o ferro nativo, arcos de fardos das fazendas e
todos os ferros velhos que encontram, e que são trabalhados
pelo fogo e a martelo.
Em obra de madeira, fabricam pratos, colheres, pentes,
bocetas para tabaco, guisos, marimbas e dongos — barcos cons-
truídos de troncos de árvores e feitos de uma só peça.
Nestes trabalhos empregam-sè apenas o machado e a faca.
Preparam peles de onça, macaco, gazela, gibóia, etc, esten-
dendo-as ao sol, presas nas extremidades e deitando-lhes cinza,
dando a preparação como completa quando as peles estão bem
secas.
Para reduzir a farinha o milho e a mandioca não usam a
moagem, empregando a trituração pelo pilão, serviço que pres-
tam exclusivamente as mulheres.
#
Existe a linguagem por gestos, por apitos e tambores. A
linguagem falada é a congolesa, a sua estrutura é a mesma dos
restantes povos da província, pertencentes à raça negra, a vasta
família das línguas bantu. Como se pode verificar pelo vocabu-
lário que a seguir incluímos, a língua falada por esta tribu em
pouco difere do kimbundu, podendo mesmo dizer-se que é
aquele que mais se assemelha a esta.
NUMERAIS
1 - Kosi.
2 — Kole.
3 — Tatu.
4 — Ia.
5 — Tanu.
6 — Sambanu.
7 — Sambuadi.
8 — Nana.
9 — Vua.
10 — Kumi.
11 - Kumi ie mosi.
12 — Kumi ie zole. Etc
20 — Makumole.
21 — Makumole ie mosi.
22 — Makumole ie zole. Etc.
30 — Makumatatu.
31 — Makumatatu ie mosi.
32 — Makumatatu ie zole. Etc.
40 — Makumaia.
41 — Makumaia ie mosi.
42 — Makumaia ie zole. Etc.
50 — Makumatanu.
51 — Makumatanu ie mosi.
52 — Makumatanu ie zole. Etc.
60 — Makumasambanu.
61 — Makumasambanu ie mosi.
62 — Makumasambanu ie zole. Etc.
70 — Lusambuadi.
71 — Lusambuadi ie mosi.
72 — Lusambuadi ie zole. Etc.
80 — Lunana.
81 — Lunana ie mosi.
82 — Lunana ie zole. Etc.
90 — Luvua,
76
POPULAÇÕES INDÍGENAS
91-
- Luvua ie mosi.
900-
- Nkama e vua.
92-
Luvua ie zole. Etc.
1:000-
- Zunda.
100-
- Nkama.
2:000-
- Mazenda zole.
200-
- Nkama zole.
3:000 -
- Mazenda tatu.
300-
- Nkama tatu.
4:000 -
- Mazenda maia
400-
- Nkama ia.
5:000 -
- Mazenda tanu.
500-
- Nkama tanu.
10:000 -
-Kialj.
600-
- Nkama sambanu.
100:000 -
- Lundu.
700-
-Nkama sambuari.
1.000:000 -
- Fuku.
800-
- Nkama nana.
DIAS DA SEMANA
Domingo — Luminga.
Segunda feira — Kiezole.
Terça feira — Kietatu.
Quarta feira — Kieiia.
Quinta feira — Kietanu.
Sexta feira — Kiesambanu.
Sábado — Kiasabala.
ADJECTIVOS E ADVÉRBIOS
Bom — ambote.
Boa — auete.
Melhor — lundidi o uete.
Óptimo — lundidi o uete.
Mau — ambi.
Pior — lundidi o bi.
Péssimo — ambimbimbi.
Mal — ambi.
Lindo — abiza.
Bonito — amote.
Feio — aie.
Grosso — ampuena.
Grande — anene.
Pequeno — akete.
SINGULAR
Eu — mono.
Tu — nge, ngeie.
Êle, Ela — iandi.
Novo — ampa.
Moço — ansua.
Velho — anunu.
Direito — amonso.
Esquerdo — atikama.
Veloz — ansualu.
Feliz — akiese.
Enfadado — enkasi.
Alto — anda.
Puro — avelela.
Pobre — ansukami.
Rico — anvuama.
Delgado — akete.
PRONOMES
PLURAL
Nós — ieto.
Vós — ieno.
Eles, Elas — iau, zau, miau, mau,
tuau, vau e muau.
O CORPO HUMANO
Corpo — niito.
Cabelo — nsuki.
Cara — lose.
Cabeça — ntu.
Barba — nzevo.
Feições do rosto — mpolo.
Fronte — mbunzu.
Orelha — Kutu.
Olho — disu.
Nariz — zunu.
Língua — lubini.
Dedo — nlembo.
Barriga — vumu.
Fígado — kimoio.
Boca — nua.
Pescoço — nsingu.
DE ANGOLA
77
Unha — luzala.
Ossos — visi.
Pele — nkanda.
Dente — dinu.
Marido — nkaza (iakala).
Pai — tatá, ese.
Irmão — npangi, mbungi.
Filho — muana eiakala.
Tio — nguan kazi.
Primo — mbungi- ankasi
Avô — kuku.
| Garganta — elaka.
Perna — kulu.
Rim — nguba.
PARENTESCOS
Esposa — nkaza (nkento).
Mãe — ngua, ngudi, iaia.
Irmã — nsanga.
Filha — muanankento.
Tia — nkento ngundiansakila.
Prima — mbungi-ankento.
Neto — tekulu.
ALIMENTOS
Pão — mbolo.
Cerveja — garapa, mbanvu.
Ovos — maki, diaki.
Leite — kinvumina.
Figos — nsanda.
Azeite de palma — mazi ma ngazi.
Lebre, coelho — nlumba.
Carne — mbizi.
Gordura — mazi.
Sal — mungua.
Batata — kuá.
Vinho de palma — malavu.
Açúcar — nsuikidi.
Manteiga — mazi ma kinvumina.
Banha de porco — mazi ma ngulu.
Amendoim —nguba.
Galinha — nsusu.
Peixe — mbizi.
Guizado — muamba.
Farinha — nfunfu.
Pimenta — ndungu.
Fava — mambandi.
Ervilha — uandu.
ANIMAIS
Búfalo — mpakassa.
Leopardo — ngó.
Leão — nkosi.
Porco montês — ngulu a nseke.
Macaco — nkena, nkima.
Jacaré — ngandu.
Víbora — mpidi.
Rã — nsuamba.
Pássaro — nuni.
Morcego — lumpukunia.
Pombo — eiembe.
Borboleta — lumbemba.
Vampiro — ngembo.
Tartaruga, cágado — mfulu.
Sapo — e kiula.
Gaivão — kimbi.
Perdiz — ngumbo.
Pato — vuandango.
Formiga — mfitete.
Veado — nkai.
Sardinha — nzenzo.
Camarões — nsala-yimbiduiga.
Mosquito — mbú.
Camaleão — lunguenia
Tzé-tzé — vékua.
Rato — mpuku.
Gato — misi-bumba.
Hipopótamo — nguvu.
Elefante — nzau, nzamba.
Camelo — samo.
Chacal — mbulu.
Lagarto — ndiasila.
Cobra — meka.
Enguia — nkamba.
Caranguejo — nkala.
Pulga — déde-sambokéla.
Mosca — mbuanzi.
Barata — mpise.
Cão — mbua.
Papagaio — nkusu.
78 POPULAÇÕES INDÍGENAS
No que diz respeito à arte de escrever, costumam usar alguns
sinais convencionais, feitos por incisões ou a cores, em madeira e
em pedra. É vulgar também marcarem sinais no capim, indi-
cando aos que mais atrás vêem o caminho seguido, e outros
previamente combinados para se fazerem corresponder secreta-
mente.
- ■ * *
Não são dados muito à pintura, o que outro tanto não sucede
com a escultura, para que denotam uma certa habilidade, prin-
cipalmente em trabalhos de madeira e marfim. Os assuntos
geralmente empregados são : animais cabalísticos, figuras obsce-
nas e suplícios.
São muito dados à música, ao canto e à dança, havendo entre
eles quem tenha como profissão o seV músico. Dos instrumentos
de corda os principais são em forma de viola, rabeca, feitos de
uma cabaça, com o competente braço e tendo cinco ou seis cordas.
Dos instrumentos de sopro, usam cornetas de marfim e uma
espécie de ocarina. De percussão, têem tambores de vários tama-
nhos, que tocam com as mãos e dedos.
Teem danças de guerra, de caça e a que vulgarmente denomi-
nam batuque. A mais característica é a de guerra, em que se
desfiguram, quer por meio de máscaras, quer pintando-se, e
colocam na cabeça um penacho branco, dançando em círculo e
acompanhando a dança com exclamações alusivas. A dança ter-
mina por passarem sob uma corda à altura de 0,m30, aproxima-
damente, ficando interdito de ir para a guerra o que lhe tocar,
pois isso é indício de que vai morrer.
O canto, que é, em geral, acompanhado^por tambor ou ma-
rimbas, tem por tema assuntos amorosos, funerários e sarcás-
ticos.
#
* *
Quanto ao conhecimento das sciências : de astronomia co-
nhecem o sol (Tangua), a lua (ngonde), as estrelas (ntetembua) ;
de matemática, servem-se dos dedos, sementes, pedras, palha, etc.
para a contagem, que é de um a dez e múltiplos desta; de obra
de engenharia, fazem pontes de troncos de árvores, e trepadeiras
Músicos muchicongos
Popul. indígenas de Angola.
(78)
DE ANGOLA 79
servindo de cordas; de náutica, construem os dongos, a que já
tivemos ocasião de nos referir.
Dividem o tempo por ciclos lunares, e assim dividem o ano
em seis períodos :
1.° Massanje (Janeiro a Fevereiro);
2.° Cundi (Março a Abril);
3.° Quintumbu (Maio a Junho) ^
4.° Chive (Julho a Agosto);
5.° Piaza (Setembro a Outubro) ;
6.° Quiela (Novembro a Dezembro).
Como medicamentos, empregam folhas, r.aizes, azeite de
palma e gorduras de reptis. Como operações de cirurgia, enca-
nam pernas e braços partidos.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento.— A morte. — A família. — A reli-
gião, rito, culto, divindades e sacerdócio.
Com o fim de facilitar o parto, costumam ministrar à partu-
riente várias drogas feitas de infusão de certas ervas e raizes, e
praticam o esconjuro, de que dão conhecimento à família da par-
turiente, para que esta por sua vez faça o mesmo, afim de, se
alguém entender por qualquer forma prejudicar a mãe ou o filho,
ter morte certa.
Nos dois últimos meses que antecedem o parto, cessam todas
as relações com o marido. Contudo, a mulher não deixa de traba-
lhar, a não ser nas vésperas do parto, em que de todo lhe é im-
possível entregar-se a qualquer trabalho.
Não existe entre eles crença alguma relativa ao sangue mens-
trual; sabe-se unicamente que, quando a mulher se encontra
neste período, esta previne o homem e cessam por completo as
relações entre si.
O parto tem lugar ao ar livre, no quintal ou cercado da sua
casa ou na dalgum parente, o qual só podem presenciar as mu-
lheres, as mais idosas das quais, por serem as que mais prática
teem desse serviço, prestam o seu auxílio à parturiente.
No caso de aborto, a mulher é muito censurada pelo marido,
como pelos parentes e vizinhos, por não ter feito a diligência
possível em dar à luz um filho são.
80 * POPULAÇÕES INDÍGENAS
Depois do parto, as mulheres costumam untar o corpo todo
com tacula e azeite de palma, rapar o cabelo à navalha e tomar
banho durante um mês consecutivo.
É muito insignificante o «alimento da mulher na primeira se-
mana a seguir ao parto,- tornando-se depois mais farto e melhor,
que o marido lhe fornece com o fim de a engordar.
A criança é amamentada durante um ano, por entenderem
ser isso necessário para vir a ser robusta.
Diferença alguma existe no modo de proceder dos pais, se o
recemnascido é rapaz ou rapariga; quando há gémeos, reina na
família grande contentamento.
Não há a registar nos povos desta tribu casos de infanticídio,
e tanto isto é certo que, quando a mulher dá à luz um ser dis-
forme, resignam-se e lamentam-se, dizendo : Ncuide o malonga
mpuco cua Nzambi (Deus assim o quis).
Não costumam dar nomes secretos aos filhos. Ao primeiro
filho dão o nome do avô paterno, sendo filha o da avó paterna,
dando aos mais que se seguirem, indiferentemente, nomes de
quaisquer parentes.
Os pais são muito carinhosos e afáveis para com seus filhos,
não deixando contudo de os castigar se preciso fôr, mas não
brutalmente.
Diversas são as causas que limitam a população, áas quais se
destacam as seguintes: casamentos numa idade muito juvenil, ha-
vendo exemplos de se casarem aos onze anos; a poligamia; as
separações; a esterilidade; abortos naturais e, principalmente,
falta de cuidados higiénicos e doenças infantis contagiosas e epi-
démicas.
Nos nascimentos registam-se mais indivíduos do sex© mascu-
lino do que feminino.
Em certos pontos, os nascimentos ultrapassam os óbitos,
noutros dá-se o contrário, e, em geral, nos que mais infestados
são da mosca tzé-tzé, como na parte sul da circunscrição, onde
grassa com virulência a doença do sono.
Os esponsais e ajustes de casamento não teem uma época de-
terminada. Os pedidos de casamento são feitos por intermédio
das pessoas de família. Quando o pedido de casamento é feito
DE ANGOLA 81
directamente aos pais, estes nada resolvem sem primeiro consul-
tarem o tio materno da noiva, que é quem aconselha se os pe-
didos devem ou não ser aceitos e recebe os presentes de núpcias,
que na língua congolesa corresponde ao termo locau.
Os esponsais duram às vezes meses e anos, principiando por
ofertas aos tios maternos da nubente desde a sua tenra idade.
Não existe o sentimento do amor; o que guia o noivo na
escolha da noiva é apenas o interesse mútuo, tendo sempre em
atenção que ela não recaia numa pessoa estranha à família, e
sem que a existência ou não da virgindade da mulher tenha para
esse efeito a mais pequena importância.
Antes do casamento, as relações entre os noivos consistem
unicamente em troca de presentes desde muito novos até o mo-
mento de se casarem.
Na maioria dos casos, os noivos só se conhecem no próprio dia
do casamento, cujos contractos são feitos por pessoas de família,
o que, se acrescentarmos o pouco ou quási nenhum carinho que
o homem dispensa à mulher, considerada nos povos desta tribu
como escrava, mais nos vem confirmar a asserção já acima feita
de que o sentimento do amor lhes é completamente desconhecido.
Não são permitidas as relações entre primos do primeiro
grau, entre tios e sobrinhos e entre madrastas e enteados.
Há casamentos por troca, por compra ou alambamento — que
consiste no noivo ou seus parentes darem aos parentes da noiva
um presente de 25 ou mais peças de pano, o maior quinhão do
qual pertence ao tio materno da noiva, que é o principal inte-
ressado— e o casamento de ensaio, que só se torna efectivo
quando a mulher dá à luz uma criança. Os casamentos costumam
ser festejados, tomando neles parte parentes e visinhos.
Praticam a poligamia por mero interesse. Tanto mais rico é
considerado o homem, quanto mais mulheres possue, a mais
idosa das quais goza de maior autoridade, em nada mais se dis-
tinguindo das outras, porquanto aquela como estas teem idênticas
obrigações a cumprir e iguais trabalhos a executar. Os seus filhos
são tratados sem distinção alguma e gosam de iguais direitos.
O adultério do marido não é punido, mas o da mulher é, pa-
gando esta, como a sua família, pesadas multas.
Os esposos, se bem que habitem na nlesma casa, não possuem
direitos iguais sobre quaisquer bens que a mulher tenha trazido por
ocasião do casamento, visto que, como já se disse, aquela é conside-
rada como escrava e o homem exerce sobre ela poderes absolutos.
82 POPULAÇÕES INDÍGENAS
As relações entre o genro e a sogra, quando esta vive sob o
mesmo tecto, são as mais amistosas possíveis; como demonstração
de respeito mútuo, evitam quanto possível encontrar-se, pouco
falam e não comem juntos.
A situação da mulher, depois de casada, para com a sua fa-
mília é diversa da do homem. Este não fica fazendo parte da fa-
mília da mulher, ao passo que esta entra na família do marido,
sem todavia perder os direitos e regalias que antes de casada
tinha na sua própria família.
A dissolução do casamento faz-se nos povos desta tribu, umas
vezes por desavenças, outras pelo adultério e outras vezes ainda
porque, já por um defeito da natureza, já pela influência dalguma
causa mórbida, falta a um dos cônjuges a necessária força pro-
criadora. São as pessoas de família que interveem na separação,
e são elas que resolvem e estipulam o prémio de indemnização
que tem a pagar uma das partes. Dada a separação, a mulher
pode refugiar-se em casa de seus pais, levando consigo os objectos
que lhe pertencem. Quando a ideia da separação partir da mulher,
tanto esta como a sua família tem por obrigação devolver ao
marido o chamado alambamento, isto é, tudo quanto dele ou da
sua família receberam antes do casamento, ficando os filhos, em
regra, com a mãe.
As pessoas que entram na constituição duma família são as
seguintes: pai, mãe, filhos solteiros e casados, avós, netos, tios,
sobrinhos, primos e os que, não pertencendo à família dela, ficam
fazendo parte pelo casamento, mas sem que, por este facto, sejam
considerados como parentes.
Uma família tipo de S. Salvador do Congo é representada da
seguinte forma : pai, três mulheres e cinco filhos.
O pai é o chefe de família, e como tal goza de maior autoridade ;
tem por obrigação construir a casa, dar de vestir e comer às
mulheres e filhos. As mulheres cuidam da alimentação, dos ar-
ranjos da casa, criação dos filhos e fazem diversas culturas.
Os filhos, em se casando, formam sempre novo lar, e con-
tinuam a estimar e obedecer aos seus pais como antes de ca-
sados.
Os velhos, quando enfermos, são tratados e alimentados pelos
seus parentes e nunca maltratados ou abandonados.
A viúva passa à posse do irmão mais velho do falecido e con-
tinua a ter iguais direitos sobre os seus filhos; os irmãos vivem
em comum e sob a tutela da mãe enquanto não se casam.
Muchicongos — Uma sepultura
Popvl. indígenas de Angola.
m
DE ANGOLA 83
Em matéria de dívidas, de contractos e crimes, existe a soli-
dariedade familiar somente entre tios e sobrinhos e entre irmãos.
*
*
Não crêem na morte natural, atribuem-na sempre a feitiçaria,
muito corrente entre eles.
Os povos desta tribu costumam, em certos casos, quando um
doente se encontra a debater-se numa longa e penosa agonia,
tendo como certa e inevitável a morte, recorrer aos feiticeiros
ou bruxos, para que estes ministrem ao moribundo qualquer
droga, afim de produzir morte rápida, no intuito de acabar com
o seu sofrimento.
Além dos remédios e mesinhas, feitos de várias ervas, folhas,
cascas de árvores e azeite de palma, que os feiticeiros dão aos
doentes que a eles recorrem, dedicam-se também à cirurgia
quando se lhes apresentam casos de fractura de pernas ou braços,
servindo-se de talas feitas com hastes de folhas de palmeira e de
ligaduras feitas com fibras de bananeira, lancetando também
qualquer tumor ou abcesso.
As doenças mais frequentes são]: a doença do sono, a pneumonia
e a disenteria.
Ao morto costumam dar banho, fazer a barba, rapar o cabelo
e untá-lo com tacula e azeite de palma. Servem-lhe de mortalha
todas as roupas e fazendas que em vida possuiu, sendo conservado
em casa até o momento de o transportarem para o cemitério,
onde é enterrado. De casa ao cemitério, é acompanhado por
pessoas de família, parentes e por carpideiras, havendo elogios
fúnebres à beira da sepultura.
Em cima da sepultura costumam colocar todos os objectos
que pertenceram ao falecido, tais como : espingardas, facas, en-
xadas, segundo a profissão que exerceu, alimentos diversos e vinho
de palma, com o fim do morto se alimentar e ter sorte na caça.
Crêem na existência de um espírito análogo à alma, a que
chamam Ncuia, proveniente de indivíduos que em vida possuíram
poderes ocultos, tais como feiticeiros, curandeiros e bruxos, e
84
POPULAÇÕES INDÍGENAS
que, transformados em diferentes animais, lhes procuram fazer
mal.
Quanto ao culto dos antepassados, apenas conservam o dos
reis do Congo e seus conselheiros, guardando bem na memória
a boa ou má justiça que fizeram e bons ou maus conselhos
que, pelos conselheiros, lhes tenham sido dados ; os restantes são
completamente esquecidos.
Muchicongos — Indígenas civilizados
Os feiticeiros e curandeiros proibem aos povos desta tribu
comer certos alimentos, tocar em determinados objectos e indi-
víduos, e ver ou examinar qualquer objecto que por aqueles lhes
tenham sido indicados, sendo severamente punido todo aquele
que transgredir os seus conselhos e determinações.
Os feiticeiros e curandeiros não são escolhidos nem recrutados ;
dedica-se a esse, mister quem quiser, recebendo, para este fim,
apenas as instruções dos que são adestrados na matéria.
Não acreditam na existência da alma; julgam ver a sombra
dos mortos, mas somente a dos feiticeiros, que são considerados
verdadeiramente como mortos, quando os seus restos mortais são
reduzidos a cinzas.
Crêem num ente supremo, a que chamam Zambi (Deus) ;
DE ANGOLA 85-
havendo, além disso, uma hierarquia de outros deuses (feitiços),
aos quais recorrem em caso de perigo e flagelo. Para evitar o
fogo, é invocado o deus Mbuje-Nzaje contra as trovoadas e Ma-
congo para guardar a povoação. Além destes, há uma infinidade
de outros deuses, que variam segundo as famílias e aldeias onde
habitam.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Não existe nesta tribu vida nómada propriamente dita, visto
que a mudança do habitat, que em diminuto número de indígenas
se efectua, tem em geral por causa principal o procurar terrenos
virgens para a cultura ou ainda por motivo de feitiçaria.
Não se dedicam a pastagens, trabalham unicamente para
adquirir o indispensável para não morrerem à fome, levando
todos, em geral, uma vida sedentária.
Predominam quatro espécies de classes nesta tribu : a de ricos,
pobres, chefes (sobas) e homens livres ; todas, sem distinção, teem
iguais direitos e idênticos deveres a cumprir, a não ser os chefes
e seus macotas, que teem direito a maior consideração e respeito
e teem por obrigação defender os seus súbditos.
Não existem castas nesta tribu.
O chefe ou soba exerce a justiça e tem autoridade de intervir
em todas as questões que se suscitem entre os seus súbditos na
área do sobado onde exerce a jurisdição.
O chefe principal, que goza de maior autoridade, é o rei do
Congo, que estende os seus direitos e poderes não só sobre os
povos desta tribu como sobre outros que lhes são vizinhos. A
origem do poder é indefinida, consiste apenas na hereditariedade.
A mulher pode ser chefe da aldeia ou da tribu, e neste caso,
pode casar-se mas não pode praticar a poliandria.
Os anciãos e chefes de família reunem-se em assemblêa sob
a direcção dos sobas, a fim de deliberarem sobre assunto de
M POPULAÇÕES INDÍGENAS
interesse para o povo ou família. O papel do chefe das assem-
blêas consiste em emitir opiniões e resolver todos os assuntos de
interesse à comunidade.
Costuma haver associações secretas para a prática de relações
sexuais, sendo punidos todos os associados que se tornarem in-
discretos e traidores, para o que há penas estabelecidas. Podem
tomar parte nelas tanto os homens como as mulheres.
As relações com os indígenas de alêrn fronteira são muito
pacíficas ; são bem tratados quando hóspedes, e gozam das mesmas
liberdades e regalias que os naturais.
Nada há actualmente sobre as relações guerreiras. Nos tempos
em que faziam guerras, serviam-se das armas de pederneira, de
arma branca e de flexa.
Eram comandados pelos seus sobas e macotas, e pegavam em
armas todos os homens válidos. Previamente costumavam, ou
directamente ou com o auxílio dos intermediários, anunciar o
dia em que iam atacar o povo inimigo. * Estas guerras duravam
às vezes por mais de um ano.
Embora com dificuldade e morosamente, vão-se adaptando a
pouco e pouco aos hábitos dos civilizados, com quem privam.
Com o convívio dos europeus, aprendem a criar um certo número
de necessidades, que os faz inclinar até certo ponto ao trabalho
a fim de as poderem suprir.
O indígena que recebeu uma educação europeia é sempre mais
considerado.
Os mestiços, embora aparentemente sejam bem tratados e
vivam bem com eles, no íntimo, os indígenas desta tribu votam-
lhes um ódio ainda mais intenso do que aos próprios brancos.
#
* #
Como bens mobiliários existentes, podem citar-se os seguintes :
os utensílios da cozinha, as roupas, várias ferramentas, instru-
mentos de musica, os teares com que fazem os panos e animais
domésticos.
Os utensílios de cozinha, as alfaias agrícolas, os teares, e
outros objectos de trabalho, constituem exclusiva propriedade
da mulher. A casa e as plantações que constituem bens imobiliá-
rios pertencem, aquela exclusivamente ao homem, e estas a todos
os membros da família, colhendo cada um o fructo do seu tra-
S. Salvador do Congo — O Rei do Congo
Popul. indígenas de Angola.
(86)
DE ANGOLA
87
bailio. Da sua propriedade, dos seus próprios bens, pode cada
um dispor da forma que melhor lhe pareça.
A mulher, quer livre quer casada, e, neste último caso, consi-
derada como escrava, pode possuir em seu próprio nome quaisquer
bens, sendo-lhe permitido comprar ou vender qualquer objecto.
Não há limite de propriedade propriamente dito, a não ser
de sobado para sobado, podendo com tudo considerar-se delimi-
Uraa reunião presidida pelo rei do Congo
tada a propriedade individual, na parte cultivada, utilizando-se
de sebes vivas ou regos, como sinais de demarcação.
A propriedade não tem origem, pertence ao primeiro que a utili-
zar, podendo abandoná-la para utilizar outra que esteja disponível.
Cada aldeia tem terrenos reservados para um determinado
número de indígenas, que deles utilizam, trabalhando cada um
para si.
Existe o direito de caça, de pesca e de apanho de cera, e mel,
não havendo o de corte de árvores e da colheita de fructos.
Há o direito de propriedade, sobre achados de qualquer na-
tureza, devolvendo-os, porem, ao respectivo dono que prove
pertencerem-lhes.
88 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A propriedade do chefe de família, por morte deste, cons-
titui herança dos sobrinhos uterinos; a da mãe passa para a
posse dos seus filhos. Não havendo sobrinhos uterinos, que
possam herdar seu tio, nem filhos à sua mãe, são considerados
herdeiros todas os restantes parentes.
A viuva, por morte do marido, tem apenas um pano que lhe
é dado pelos parentes do falecido, caso não queira passar a
viver maritalmente com o irmão mais velho ou sobrinho do fa-
lecido; se passar a viver com qualquer deles, leva comsigo tudo
quanto lhe pertenceu na vida do marido.
Não é costume fazerem testamentos.
#
Costumam importar pólvora, armas, fazendas, bebidas, sal,
louça, quinquilharias e várias miudezas mais, e exportam em
pequena quantidade coconote, "borracha, marfim, jinguba, azeite
de palma, galinhas, cabritos e porcos.
O comércio é exercido exclusivamente pelos naturais, não
constituindo caravanas, feito por trocas e feiras (quitandas).
As feiras, com excepção das de S. Salvador do Congo, não
tem jurisdição.
Em todos os negócios há intermediários e auxiliares, não ha-
vendo hospedeiros nem cambistas.
Se bem que já conheçam e aceitem bem a moeda metálica,
ainda empregam nas suas transações, como moeda, as fazendas
e contarias. Medidas e pesos não conhecem.
Como vias de comunicação, servem-se apenas de trilhos, que
são limpos anualmente duas vezes, por ordem da autoridade. Não
há vias de comunicação fluviais.
Indústria familial não existe. Os produtos que fabricam,
vendem em proveito próprio, a troco de moeda, fazendas ou
outros productos, segundo o que mais lhes convêm, e os operá-
rios são considerados como fazendo parte da família.
Costumam fazer contractos de troca, empréstimo, estabelecôfl*
do-se cauções e fianças quando os contractos são feitos a crédito.
DE ANGOLA 89
Aqueles que, até o prazo estipulado, não saldarem as suas dívi-
das e não satisfizerem cabalmente os compromissos tomados,
perdem direito às cauções e pagam uma multa correspondente
aos prejuízos causados, e não ficam isentos de cumprir as suas
obrigações ou promessas, que subsistem ainda depois da morte,
transmitindo-se aos seus descendentes.
Não existem penas corporais, nem de prisão e prescrição,
havendo apenas as indemnizações. Dando-se um crime grave,
entregam o criminoso à autoridade administrativa.
Os crimes de pequena importância são julgados por um tri-
bunal composto do soba, que serve de presidente, e dos seus
macotas, que, como membros do tribunal e julgadores, não são
independentes do chefe, antes por este influenciados, na decisão
das causas. O réu pode defender-se por meio de testemunhas,
que por êle são apresentadas.
As demandas são apresentadas verbalmente expondo a causa,
e a instrução da lide é pública. A prova do crime é feita por
testemunhas, co-juradores, sortilégios, combate judiciário, e nos
pontos mais afastados da autoridade, por prova de veneno com
intervenção do feiticeiro.
Se o acusado é absolvido, o acusador é punido quando se
prove que fez falsas acusações. Não existe o direito de asilo.
-V.£V-y,T ya*' tirtp
CAPÍTULO IV
MUZOMBOS
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica datribu. — Sua origem.
— População.
Os Muzombos encontram-se estabelecidos ao norte da pro-
víncia, confinando com o Congo Belga, para leste de uma linha
que une os rios Fuleje, Mbrije e Luango, ocupando toda a cir-
cunscrição de Maquela do Zombo até ao rio Cuilo, limite oriental
desta, norte da capitania da Damba, indo até ao rio Nzadi e até
à região da Mlanda, no sentido sul.
Não resta dúvida que estes povos foram por muito tempo
incorporados no grande reino do Congo e que são descendentes
daqueles que invadiram a província pelo norte a que já tivemos
ocasião de aludir.
Fisicamente é imperceptível a diferença entre os homens da
tribu Muzombo, e da tribu Muxicongo ; não sucede o mesmo com
as mulheres que são de apresentação mais feminina, teem o rosto
bem desenvolvido, os ombros, as espáduas, os braços e as pernas
bem torneadas.
Os homens teem uma fisionomia insinuante, um ar inteligente
activos e desembaraçados, o que não se dá com as mulheres,
dotadas de uma crassa estupidez que se desenha nos seus traços
fisionómicos, onde não existe o menor vislumbre da mais rudi-
mentar expressão de sentimento ou de raciocínio, que é agravada
pela untura de tacula e de amendoim queimado que usam.
São de índole pacífica, vivendo de um comércio activo.
92 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação.
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes e sciêneias. — Facul-
dades intelectuais.
Nos cuidados dados ao corpo não se afastam dos restantes
povos da raça negra; não se preocupam com o aceio do corpo,
cuidam dos dentes e untam-se com tacula e amendoim torrado,
sobretudo as mulheres.
Não existem penteados característicos de tribu, os homens e
as mulheres usam, indiferentemente, o cabelo cortado rente.
A alimentação é essencialmente tirada do reino vegetal e
constituída pela mandioca, em farinha, crua, seca ou cozinhada.
O vestuário é constituido pela tanga ou pelo pano, como vul-
garmente é uso denominar-se na província. Entre os Muzombos
é a tanga comprida e feita de riscados ou fazendas de origem
europeia.
Gostam muito de casacos de veludo e em dia de festa acres-
centam ao seu vestuário um avental de pele de gazela.
Os Muzombos usam uma como habitação tipo a cubata assente
sobre o solo, distribuídas em povoações de forte densidade, onde
se reúnem famílias de parentesco mais ou menos afastado.
A sua principal ocupação é a agricultura, sendo um dos
povos que a pratica com mais esmero. A agricultura é exercida
em comum pelas mulheres de cada família, cultivando a mandioca,
o milho, o feijão, a batata, mas sobretudo a mandioca.
O que- caracteriza os Muzombos é a actividade comercial que
entre eles existe, e que é exercida pelos homens e mulheres em
mercados (quitandas).
As quitandas estabelecem-se em pontos elevados, em geral
próximo das povoações, à sombra de grandes árvores, onde
acodem milhares de pessoas levando ao mercado o que teem ou
o que produzem, para obter o que carecem, muitas vezes sem ser
para uma aplicação imediata, mas para servir em outra quitanda. m
Pelo papel preponderante que a quitanda tem na vida dos
Muzombos e pela forma colorida como o sr. José Cardoso, antigo
Governador do distrito do Congo, a descreve, que constitue um
interessante estudo dos seus usos e costumes, entendemos não
deixar de transcrever do seu relatório a descrição da quitanda.
DE ANGOLA 93
«Embora a primeira impressão, que a quitanda nos oferece,
seja a de um mar ondulante e ululante onde mal se distingue um
vislumbre de ordem ou de método, um exame mais detalhado,
facultado pelo passeio através da quitanda, mostra-nos o con-
trário, sendo até fácil ao freguês habitual do mercado dirigir-se
rapidamente para o lugar próprio onde encontra os géneros de
que carece.
Com efeito; estão agrupados por classes de géneros e de
mercadorias os vários negociantes, encontrando-se enfileirados a
um lado os vendedores de mandioca em raiz, em fubá, em farinha
e em quicuanga; a seguir, os vendilhões de verduras com mò-
lhinhos de folhas de hortaliça fiote, manchinhas de gimboa, de
folha verde de mandioca migada com que fazem o apetecido es-
parregado conhecido pelo nome de saca folhas, o feijão verde,
na vagem; mais adiante, como que os talhos, onde se vende o
cabrito morto, amanhado, a carne de porco, retalhada e a tripa
fresca, ainda recheada com os detritos da última digestão do anho
ou do suino sacrificado ao negócio, manjar tão apetecido pelo
preto para o seu afamado guisado conhecido pelo muzongué;
mais adiante, os vendedores de milho, um com êle em maçaroca
verde, outro com a maçaroca seca, umas descamisadas outras
por descamisar; acolá, o milho descarolado, mais àlêm o milho
pilado, depois o feijão seco e em vagem, o sal em pequenos
montes sobre folhas de bananeira, folhas de tabaco em rolos, o
rapé em pequenos tubos de bambu.-
Aparecem depois as fazendas de algodão de proveniência
europeia, os cobertores, os fatos feitos para mulheres segundo o
traje característico, casacos de veludo para homens, os aventais
de pele, as esteiras e quindas, a pólvora, o fulminante e as
espingardas.
Não faltam os vendedores de bebidas e petiscos, aqueles com
o frasco de genebra de preto e com as suas cabaças e sangas
repletas de vinho de palma fermentado, e por fermentar, a
garapa, estes com os seus guisados de feijão, e os pães de
infunde para satisfazer os apetites estimulados pelo ar fresco
das manhãs do Zombo, impregnados pelas apetitosas emanações
dos produtos da culinária local ; vende-se também carne cozi-
nhada, rato assado, peixe frito miúdo, espetado em enfiadas de
bambu.
A jinguba pelada e por pelar, crua e assada, o coconote, o
azeite de palma e as muambas já cozinhadas, também ali se
94 POPULAÇÕES INDÍGENAS
encontram com fartura, llá também vendedores do malunga
para homens e mulheres. E nao deixa de sor pinturesco assistir
ao enfiar duns adornos nas pernas das pretas, que passam um
ano de privações a fazer as necessárias economias para possuir
a jóia apeteeida eom que vão fazer o desespero da vizinhança
feminina ao regressarem da quitanda à banza a que pertencem.
As olarias, os feitiços e amuletos vários, alguns objectos de
utilidade doméstica e alguns de luxo eafreal, ali estão também
expostos à venda. Uma curiosa miscelânea da vida eafreal com
os cacos da civilização europeia.
Não e' raro aparecer o cura maleitas, o tira bichos, e os
prestidigitadores e domestica dores de macacos a amenizar aquela
seena da vida já de si tão animada pelas multiplicas combina-
eões de negócio que ali se efectuam, e para distracção dos ocio-
sos que vão à quitanda matar o tempo como simples mirones.
Em tempo, até os escravos estavam ã venda nestas quintadas ;
e, ou seja por pinturesco ou por verdade, dizem que até a carne
humana era vendida aos apreciadores, estando exposta ao pú-
blico a vítima, sobre o corpo da qual se ia marcando com gesso
a parte do corpo e a quantidade desejada, matando-se o sacrifi-
cado logo que tivesse compradores para todo o corpo.
E também nas quitandas que se espalham as notícias e se
desfiam as intrigas gentílicas, podendo ser um grande elemento
para as autoridades conhecerem do estado de espírito dos povos
pelo que se refere à tranquilidade pública, logo que disponham
de agentes hábeis que saibam aproveitar as comeragens das
quitandas e deles tirar todo o partido possível. E portanto da
maior conveniência manter essa instituição e aproveitá-la, já
pela actividade e espírito laborioso que desenvolve e mantém
no gentio, já como meio de informação na condução da politica
indígena.
No que diz respeito às indústrias que exercem inumeraremos :
o fabrico da kikuanga, uma espécie de pães de mandioca fer-
mentada cosida a vapor e envolvida em folhas; o carvão de
madeira ; o trabalho do ferro por meio de caldeação e forja,
com que fazem enxadas e catanas ; os trabalhos de olaria, cor-
timento de peles ; e o fabrico de esteiras finas e todos os conhe-
cidos objectos de cesteiro gentílico.
O ferro não é extraído, aproveitam os arcos de pipas, e os
aros de enfardar. Trabalham-no servindo-se de enormes blocos
de pedra rija, como bigornas, e empregando foles de seu fabrico,
DE
idênticos aos :ribus da raça Xegra, com-
postos por duas caixas circulares, feital oncos escav
tapados p lando uma e
la quando puxado à mão, realizar,
pressão do ar mdo essa espécie de 0 apertando-o
na mão quando se realiza o movimento de abaixamen: , .
Oi tubos do foi espingardas ou tnbo3 de barro
que estão reunidos na extremidade por um funil de barro que
dirige para o logar ente de ar.
A linguagem falada é o Kico:. .
:ante3 artes, os conhecimentos scientífic
faculdades intelectuais, nada ternos a acrescentar ao que deixa-
] sobre os Muxi:
IÍI. — Da vida familial e social
Tudo o que sobre a vida familial e social ficou exr. ;
tratar da tribu Muxicongo se pode generalizar à tribu Muzombo,
salvo no que diz respeito à organizaçã; . riste |ne
staci subordinados ao rei do Congo, e a organização
ica é caracterizada pela constituição de um grande número
de pequenos estados, i testa de cada um dos quais se encontra
um soba assistido pelo seu conselho.
Por serem deficientes as informações recebidas não incluímos
aqui o estudo - la tribu S ss - :.iada no distrito do
Congo a sul do rio Zaire nas ma- _ . rio Cuango.
ireri y<r + *mp
I
CAPITULO V
I
TRIBUS DA LUNDA (')
A origem comum das tribus Lunda, Bangala, Quioco, Luena,
Xinge, Songo, Minungo, Bondo e Holo, e consequentemente a
grande afinidade dos seus usos e costumes, aproxima-os de tal
forma que explica a razão por que enquadramos e reunimos
neste capítulo o seu estudo.
E, se dentre eles destacamos a tribu Bangala, para separa-
damente a estudar, tem esse facto explicação no parentesco e
relações que os Bangalas teem com algumas tribus do oeste, em
virtude da larga digressão que os seus ascendentes fizeram por
esta parte da província, e que acarretou algumas modificações
nos seus usos e costumes.
II
BANGALAS
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos designados por Banga-
las. — Situação geográfica. — População.
Sob a origem da palavra Bangala, nome da tribu de que
vamos tratar, parece haver dúvidas que não nos foi possível
esclarecer.
(l) Serviu de base aos estudos destas tribus as informações prestadas
pelo Superior da Missão Portuguesa de Malange.
98 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Henrique de Carvalho, no seu estudo sobre a etnografia dos
povos da Lunda, escreve :
«Os meirinhos, ou quem fazia a cobrança do tributo, acom-
panhavam os sobas levando na mão direita, como distintivo,
altas e grossas varas que terminavam em curva que denomina-
vam bengalas. Estas, muitas vezes, lhes serviam para baterem
nos tributados indefezos, que procuravam esquivar -se ao paga-
mento.
«Semelhante uso foi adoptado pelos encarregados de cobrança
de tributo, para a jaga, e daí veio o dizerem os Ambaquistas
que iam a Cassange negociar com os Ambanzas — vamos aos
jinbangala, que corresponde a aquibangala, como eles mesmos
entre si se alcunham.»
Assim a denominação que a estes povos se dá de Bangalas,
parece ser uma corrupção nossa de Bangala, porquanto eles
dizem quibangála um homem do seu povo, e aquibangala muitos
deles.
Segundo opinião do superior da missão portuguesa em Ma-
lange a palavra Bangala não tem significação na lingua do povo do
mesmo nome, tendo origem no nome dado à região pelos Peindes,
que outr'ora habitavam o território atual dos Bangalas.
O território habitado pelos Bangalas é limitado ao norte e a
oeste p#lo rio Lui, a este pelo rio Cuarigo e ao sul pelo Minungo.
Diz a tradição que os Bangalas são descendentes dos povos
da Lunda (Congo Belga) que habitavam a região alêm-Calambi,
constituindo o estado Muat-Ianvua.
Os povos que se estabeleceram entre o Cassai e o Lualaba,
vindos do norte e da região dos grandes lagos, formaram dife-
rentes estados, entre eles e dos Bungos e dos Lubas.
Um dos potentados dos Lubas, Mutombu Mukulu, reconhe-
cendo a sua decadência, aconselhou seus filhos a que procurassem
novas terras e constituíssem novos estados protegendo-se mutua-
mente, visto ele estar de avançada idade e dele nada poderem
esperar.
Seguiram o conselho do velho potentado dois de seus filhos,
Cassange e Canhinca, ficando em sua companhia os outros dois,
Ilunga e Mae.
O chefe dos Bungos, lala Maku, a quem estavam subordinados
os chefes das diferentes povoações, teve de sua mulher dois
filhos, Quinguri e lala, e uma filha Luegi. Como seus filhos se
entregassem à ociosidade e abusassem de bebidas fermentadas
vf.OVINC,4
«ANGOLA»
Escala -,- rt, j;
12000.000
Tribu BANGALA
MEtfç/a yav imp
DE ANGOLA 99
causando desordens e perturbações no estado, vexando e expo-
liando os povos procurou lala que lhe sucedesse um seu sobrinho
muito estimado. Seus filhos conhecedores desta pretenção e
embriagados, prostraram-o à pancada, deixando-o só quando o
viram sem fala e banhado em sangue, julgando-o morto. Todavia
pôde ainda o velho Xacala (assim o denominava o seu povo)
reunir todos os seus e pedir-lhe que reconhecessem sua filha
Luegi como única herdeira e que fossem seus conselheiros aten-
dendo á sua pouca idade.
Como tivesse morrido o Mutombu, o potentado dos Lubas,
tomou conta do estado seu filho Ilunga, que acompanhado de
seus amigos, se dispôs a explorar as florestas do sul, marginando
o Cajidixe, indo assim conhecer Luégi que por conselho dos
velhos parentes, já porque simpatizavom com Ilunga, já porque
desejavam cumprir as ultimas vontades de Xacala, o desposou
entregando-lhe o estado, pouco tempo antes de ter nascido um
filho a quem chamaram Noegi e a quem foi dado o título de
Muat-Ianvua.
Não se conformando Kinguri com o procedimento, de sua
irmã e receoso da gente de Ilunga, não obstante ter organizado
partido entre os parentes de sua mãe, deliberou com alguns
parentes afeiçoados abandonar as suas terras e irem organizar
um grande estado, para mais tarde virem destruir o de Muat-
Ianvua. Tomou o rumo W S W, atravessando todos os afluentes
do Cassai, e vindo passar o Cuanza próximo às suas nascentes.
Seguiu pela margem esquerda do Cuanza até ao Libôlo, onde
conseguiu travar relações de amisade com vários potentados,
com quem se aparentou.
Segundo uns, como Kinguri era um homem cruel, os seus
companheiros resolveram desfazer-se dele, para o que fizeram
um fosso muito fundo que cuidadosamente taparam com folhas
de árvore pondo por cima uma esteira. Chamaram em seguida
o Kinguri, que descuidado caiu no fosso, sendo aí mesmo enter-
rado.
Morto o Kinguri, e como deixasse um filho ainda criança
chamado Cassange, tomaram os macotas conta dele, e trataram
de saber quem tinha direito a suceder a Kinguri, pois que cada
um se achava com este direito.
Segundo outros, Kinguri não foi assassinado pelos seus
macotas, não se fazendo alusão ao Cassange.
Cassange, segundo os que contam a tradição como tendo sido
100
POPULAÇÕES INDÍGENAS
assassinado Kinguri, ou Kinguri, segundo a segunda versão não
se demorou no Libôlo, passando a vau o Cuanza acima de
Cambambe, mandou participar ao Capitão-Mór de Massangano
quem era e que vinha pedir terras ao Muene Puto para consti-
tuir um estado vassalo.
O Capitão-Mór mandou-os apresentar ao Governo Geral em
Loanda, que depois de os ouvir resolveu tirar partido deles nas
guerras da Ginga, prontifi-
cando-se a conceder-lhes ter-
ras e auxiliá-los se cuadju-
vassem as nossas forças
para bater os povos rebel-
des.
Aceitaram, venceram
N'gola-Kiluanje (rei dos Gin-
gas) e em recompensa dos
serviços prestados o Gover-
nador Geral deu à gente de
| Kinguri, ou à de seu filho
Cassange terras perto de
Loanda, mas como as pri-
meiras culturas não vingas-
sem, afastaram-se de Loan-
da, tomando o rumo nor-
deste e alcançando as sa-
. L_ I linas do Holo.
Segundo contam uns,
alguns dos de Kinguri (ou
Cassange) atravessando o Lui vieram dizer ter encontrado me-
lhores terras para se estabelecer, segundo outra versão, quem disso
veiu informar a gente de Kinguri, foram uns mensageiros que
Luégi tinha mandado ao seu encontro, temendo que eles lhe
viessem fazer guerra, e que tendo passado pelas terras dos Peindes
delas levaram sal, bananas, tabaco e azeite de palma.
Nestes termos resolveram abandonar o Holo e irem estabe-
lecer-se nas terras dos Peindes, entre Lui e o Cuango, necessi-
tando expulsar o soba da região Keta Camahachi Kikololo,
a quem fizeram guerra auxiliados pelo soba dos Bondos,
•N'Gonga Nebanda, por um soba do Libôlo, Calengero Ki-
lombo e pela gente que sob a direcção de Lui fora enviada por
Luégi.
Tipo Bangala
DE ANGOLA
101
Parece que mais tarde a estes povos se uniram outros da
Ginga, que descontentes vieram pedir-lhes hospedagem.
Daqui se conclue que os Bangalas são descendentes do Estado
Muat-Ianvua e teem parentesco com os Libôlos, com os Bondos,
com os Gingas e com os Peindes, antigos habitantes das terras
por eles hoje ocupadas, pelas mulheres com que lhes ficaram.
Cassange, filho de Kinguri, què tomou o título de Jaga, teve
um único filho a que
chamou Muanha Cassan-
ge, o qual teve duas fi-
lhas, Kibuma Kia Mua-
nha e Chiba Kia Muanha,
e um filho, Cambaia.
Por morte do Jaga Cas-
sange e em virtude da j
guerra entre os diversos
pretendentes ao jugado,
foi morto Cambaia, filho
de Muanha Cassange, fi- [
cando só as duas filhas
Kibuma e Chiba que são
os descendentes directos
do primeiro jaga de Cas-
sange e de Kinguri, pai
dos Bangalas.
* * Tipo Bangala
Os Bangalas, cuja população não tem aumentado, são caça-
dores e essencialmente comerciantes, e mais traiçoeiros que
valentes, não possuindo ou tendo perdido as qualidades guer-
reiras de que vinham precedidos.
Os Bangalas são de pequena estatura, em geral, o que não
quer dizer que se não encontre entre eles tipos de configuração
física explêndida, largos ombros, peito também largo e muscu-
loso, um pouco arqueado, as ramificações venosas cheias e
salientes, aparecendo em relevo sobre as pernas e braços.
Os Bangalas teem o nariz largo na base, chato ou grosso ;
olhos grandes ou rasgados e um pouco oblíquos ; as pálpebras
grossas; arcadas zygomáticas um tanto angulosas; testa elevada ;
cabelos abundantes e encarapinhados ; a boca grande ; os lábios
102 POPULAÇÕES INDÍGENAS
grossos e levemente revirados, sendo o inferior mais saliente;
os braços compridos em demasia ; as mãos relativamente peque-
nas ; as pernas delgadas, tendo a rótula bem definida ; e o pé
cumprido e pouco largo.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação.
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes. — Ciências. — Facul-
dades intelectuais.
Como todos os povos que habitam margens de cursos de
água, os Bangalas sabem nadar. Não encaram porém a natação
como medida higiénica ou como exercício físico e nadam porque
assim lhe exige a sua principal ocupação de pescadores.
Cortam o cabelo com uma navalha, deixando os homens no
alto da cabeça uma popa ou um entrançado. As mulheres usam
o cabelo cortado ou entrançado em forma de rede, servindo-se
na confecção dos seus penteados do azeite de palma e pente de
proveniência europeia, e na falta destes costumam fabricá-los
de uma madeira que chamam ndai com 9 a 12 dentes. É um
luxo, especialmente para mulheres dos sobas, o uso duma tira
de metal amarela, que vai de orelha a orelha.
Os Bangalas nas noites chuvosas deitam-se cedo e nas de luar
conservam-se até tarde, fumando e conversando os velhos em-
quanto os novos dançam. Levantam-se cedo e só dormem de dia
depois de uma grande marcha.
A base de alimentação é vegetal e representada pela farinha
de mandioca. Comem porém caça no tempo das caçadas e peixe
que abunda no Cuango e no Lui. Só no caso de milongas (ques-
tões gentílicas) ou de óbitos, matam animais domésticos para se
banquetearem. Entram ainda na alimentação dos Bangalas os
ratos, gafanhotos, cigarras, lagartos, algumas cobras, sendo o
seu manjar predilecto a carne de cão que muito apreciam. Fazem
muito pouco uso de azeite de palma e empregam o sal.
A carne de veado N'Golungo é proibida a todo o povo, bem
DE ANGOLA 103
como o leite; não podendo também comer galinha, pássaros e
ovos as solteiras menstruadas e as parturientes até a creança
que conceberam começar a comer. Além destas proibições há
a Kigila, imposta pelo soba, feiticeiros e curandeiros, que con-
siste em proibir esta ou aquela comida por um determinado
prazo de tempo.
Estes povos guardam os alimentos separadamente, cada fa-
mília em suas casas, pendurando o milho a ginguba e o feijão
nas árvores circumvizinhas, enrolados em feno. Alguns constroem
umas pequenas cubatas circulares para guardar a ginguba. Não
usam secar a carne; defumam e secam o peixe.
É raro o uso de vinho de palma.
Homens, mulheres, creanças fumam o tabaco e ás vezes o
cânhamo, em cachimbos por eles fabricados.
A antropofagia é de uso no estado, praticando-se ainda hoje
muito às escondidas nas cerimónias da posse de um novo jaga de
Cassange. Este para ser reconhecido por todo o seu povo como
tal, tem de comer com os seus macotas (ministros) o fígado e
o coração de um albino, cosinhado com uma galinha, um pombo,
um cão, um cabrito e carne de vaca.
A cosinha é das atribuições das mulheres e crianças, e é feita,
sempre que o tempo o permite, ao ar livre e junto das habitações.
Já é conhecido entre os Bangalas o uso dos fósforos, no en-
tanto conservam cuidadosamente o fogo, e quando este se apaga
acendem-no por percursão, ferindo uma catana com uma pedra,
indo as centelhas pegar fogo a isca de palmeira
O vestuário é como nas tríbus já estudadas, a tanga ou como
mais vulgarmente é conhecido, o pano. A matéria de que ele é
feito, a sua colocação e tamanho varia muito. Assim encontram-se
panos de origem europeia, alguns forrados com cores garridas,
e outros por eles fabricados de plantas textis, em geral franjados.
Usam-nos suspensos na cintura, homens e mulheres, e estas
também por cima do peito e por debaixo dos sovacos.
Os Bangalas usam habitualmente poucos adornos, e a não ser
as mulheres e as raparigas que costumam trazer missangas ao
pescoço e no braço, só por ocasião de óbito e prova de juramento
se pintam .com pemba branca. No entanto é uso trazer-se ao
104 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pescoço feitiços diversos : chifres de cabra, de veado, de palanca
(boi bravo), bonecos de madeira, dentes de onça, de jacaré, etc,
preservativos contra as doenças, acidentes, etc.
Entre os Bangalas existe prática de tatuagem nos braços,
no peito e no ventre.
A habitação é como nas tribus já estudadas, a cubata.
No entanto não nos dispensamos de para aqui trazer alguns
interessantes detalhes da sua construção e da variedade de tipos
empregados.
r~ Os Bangalas — e de resto grande numero de tribus de Angola
— costumam construir umas cubatas mais simples e rudimenta-
res, quer a título provisório, quando de novo se vai estabelecer
para um novo local, quer nos caminhos, e a que vulgarmente se
chamam fundos, para as comitivas pernoitarem.
Consistem os fundos em uma dúzia de árvores conservando
as ramificações e folhas, dispostas a formarem uma pirâmide
cónica, aproveitando-se os troncos que tenham forquilhas para
cruzamentos no vértice e firmando-se todos inferiormente no
solo. Outros troncos, dispostos entre aqueles a formar circun-
ferência, firmam-se igualmente no terreno sobrepondo-se às cru-
zetas das primeiras. Reveste-se tudo exteriormente com ramos
de folhas, e ainda por cima se cobre este revestimento com feixos
de colmo, que se colocam de baixo para cima, no sentido da
altura, como telha solta num telhado ; e o remate completa-se
com um feixo grosso do mesmo colmo, atado a um terço de
altura, e que curvado se enfia no vértice da construção de
modo que a parte mais alta fique para cima. Em um dos lados
da construção deixa-se um intervalo entre os dois troncos ao rez
do chão, que não revestem e que constitue a porta da habitação.
Um outro tipo de fundo é ainda mais simples, mas deman-
dando mais trabalho a sua construção : os troncos com que se
forma o esqueleto são varas mais delgadas e flexiveis que se
colocam espetadas no solo, fechando um recinto mais comprido
do que largo, arqueando-se depois as varas de sorte a ligarem-se
superiormente. Esta armação reveste-se como ficou dito em
cima, ficando igualmente com uma entrada baixa.
São estes os abrigos usados para as comitivas pernoitarem e
que mais bem construidos, com mais cubagem e com as estradas
£>E ANGOLA 105
protegidas por uma espécie de alpendres para não deixar entrar
a água das chuvas, constituem as habitações provisórias.
A habitação das povoações é de forma circular ou rectan-
gular e neste último caso o telhado é de duas e muitas vezes de
quatro águas.
A sua construção, em que se destaca a das paredes, daquela
das coberturas, é do seguinte modo : risca-se no terreno a base
que se lhe quer dar, abre-se com o machadinho um pequeno
sulco onde se vai espetando varas delgadas com pequenos inter-
valos, salvo no logar destinado para a porta que se deixa sem
varas. A partir do solo para cima atravessam-se horizontalmente
varas mais delgadas por fora e por dentro, que se atam às ver-
ticais com fibras, obrigando-as nos ângulos das paredes a do-
brarem, para continuarem a revestir a parede contígua até onde
possam chegar. Estas varas vão-se colocando paralelamente,
com intervalos pouco mais ou menos iguais aos dos prumos, até
a altura que se pretende dar às paredes, por onde se cortam as
varas verticais. Por fim reveste-se de colmo em pequenos feixos,
que se vão atando bem apertados uns aos outros e ao gradea-
mento no sentido da altura de modo a não haver fendas.
A cúpula é feita aparte, marcando-se na terra ao lado a base
da casa, no centro da qual se coloca depois um pau da altura
que se quere dar à cúpula para apoio das extremidades das varas
que hão de formar o vértice. Estas varas cortadas sempre, um
pouco para mais da grandeza que deveriam ter, pela distância
daquele apoio à base marcada, são dispostas equidistantes se-
guindo os riscos da planta no terreno. Ligam-se superiormente
as varas que servem de suportes do esqueleto, por meio de um
encanastrado de fibras. Entre aquelas varas colocam-se outras a
cobrir todo o recinto e ligam-se umas às outras por meio de fibras
a começar de uma certa altura do solo para cima. A cúpula é
então colocada sobre as paredes excedendo-as para o exterior,
liga-se a estas, porque as porções salientes dos prumos entram no
seu encanastrado, aparam-se as hastes para ficarem equidistantes,
e cobre-se tudo de feno a começar de baixo para cima.
Neste tipo de cubatas há bastantes variedades, em que se cons-
tatam alguns aperfeiçoamentos, tais como sejam: o revestimento
interior das habitações por feno ou esteiras ; a3 divisões interiores
quando a cubata é grande, uma espécie de teto que se aproveita,
para guardar malas e outros objectos; e a construção de va-
randas e janelas nas casas.
8
ÍÓ6 Populações indígenas
Como mobília não se encontram nas habitações mais do que
as tarimbas de pequena altura e toscos bancos.
As povoações são um agregado de habitações de famílias que
se construem, cercadas ou não, em redor da Kipanga ou recinto
reservado ao chefe.
A agricultura entre o povo Bangala é muito rudimentar en-
tregando-se as mulheres, em geral, à apanha dos frutos.
Os instrumentos empregados ordinariamente pelos Bangalas são
a enxada, a catana e o machadinho, na maioria por eles fabricados.
A principal ocupação dos homens é a caça e a pesca. A caça
exerce-se em geral no tempo seco por ocasião das queimadas. As
caçadas são levadas a efeito em grupo por sanzala. Na véspera
do dia designado para a caçada o soba que tem ingerência no
campo onde se vai fazer a caçada, faz sacrifícios, consulta os
feitiços e manda tocar o tambor para avisar as sanzalas vizinhas.
No dia seguinte, o designado para a caçada, os caçadores vão
para o local da queimada, e emquanto tomam posições deita-se
o fogo ao capim. A caça fugindo do fogo, às vezes meio cha-
muscada, é esperada pelos caçadores que a acabam de matar a tiro
e debaixo de uma gritaria ensurdecedora. O producto é depois
levado para a sanzala onde se procede à sua divisão : uma parte
pertence de direito ao soba; o resto é dividido por quem matou
e se tiver havido mais de um tiro, o animal pertence a quem deu
o primeiro tiro, devendo todavia dar uma parte aos caçadores
que lhe atiraram. Não é difícil calcular que, como resultado
desta forma de dividir a caça, um animal já morto recebe ainda
muitos tiros porque assim se habilitam a receber um quinhão, e
sobretudo que uma caçada é sempre motivo para uma série de
milongas ou questões.
A pesca é exercida pelos homens e pelas mulheres, em geral
por grupos, e no tempo das chuvas, em que fazem cerrados. O
peixe que ali entre, fica preso e é apanhado com a baixa das
águas. Empregam igualmente na pesca rede de fio, por eles fa-
bricadas, e no tempo seco em que diminue sensivelmente o vo-
lume das águas dos rios, refere o superior da Missão de Malange,
que deitam na água uma massa feita de folhas de uma planta
que se chama Hulu que tendo a propriedade de inebriar o peixe
se deixa apanhar à mão na superfície da água onde vem.
Í>E ANGOLA
10?
*
# #
Não obstante as noções rudimentares que os Bangalas teem
das indústrias, algumas mesmo desconhecidas, merece que men-
cionemos duas que maior desen-
volvimento teem, a de trabalhos [V ■ v^
em madeira, para o que pouco ' -
mais se servem do que da vulgar
faca, e os trabalhos de olaria.
O modo de fabricar os arte-
factos de olaria é muito rudi-
mentar servindo de formas os
fundos das cabaças e outros
frutos de casca grossa. Sobre
um estrado formado de peque-
nos paus estendem um bocado
de barro amassado com água,
neste assentam até certa altura
a cabaça ou fruto, cuja forma
querem reproduzir ; em seguida
vão juntando à mão pedaços de
barro amassado, continuando a
rodear a forma e tirando o
barro excedente da base, o qual
vão humedecendo com mais
água, aproveitando-o assim
para a continuação do traba-
lho. Outros já seguem outro
processo menos primitivo : so-
bre uma roda é que está disposta a obra a moldar, e esta vai
sendo afeiçoada à mão pelo trabalhador, que com a outra mão faz
girar a roda.
Não desejamos deixar de nos referir a uma outra indústria,
a da preparação de artefactos de ferro, que está averiguado foi
muito importante entre estes povos, não obstante sobre ela actual-
mente nada nos dizerem os nossos informadores.
Lunda — Tipos do Quissol
ióô
ÍPOPULAÇÔES INDÍGENAS
# *
A língua falada pelos Bangalas é um dialecto que pouco difere
do Kimbundo falado em Malange. Não ê difícil chegar a esta
conclusão, basta para isso reunir em um pequeno vocabulário
palavras do dialeto Bangala e daquele de Malange. E se levarmos
mais àlêm o estudo comparativo do dialecto falado pelos Ban-
galas, com aqueles falados pelos povos do Congo de Loanda, e
da Lunda, chegamos à conclusão que os dialetos falados pelos
povos da Lunda se aproximam mais do Kimbundo, do que dos
dialectos falados pelos povos do Congo, o que em parte vem con-
firmar as duas emigrações, a que se fez pelo norte e aquela que
veiu por nordeste.
Por aqui ficamos sobre este assunto, pois nos reservamos
para, depois de estudadas as tribus de per si, fazer o estudo
comparado dos dialetos.
Por agora resta-nos inserir um vocabulário do dialeto Ban-
gala.
Vocabulário do dialecto falado pela íribu Bangala
Abaixar-se — Kuhatama.
Abcesso — Kito.
Abortar — Kutxigumuna.
Abrigo — Kijima.
Abrir (porta) — Kuzulula.
Abrir (caixa) — Kutumuna.
Absurdo — Kiatóha.
Abusar — Kuzaka.
Acabar — Kumana-Kúhna.
Acender — Kulemuna tuia.
Aceitar — Kutaia.
Achar — Kumona.
Acordar — Kukasumuka.
Acrescentar — Kuhueza.
Adeante — Kupala.
Adivinhar — Kutaha ngombo.
Agora — Tinu-tinu.
Agonisar — Kukumbama.
Ainda não — Kange Kale.
Ajuntar — Kuongolola.
Algodão (planta) — Fulu.
Alheio — Kia beni.
Amargar — Kusasa.
Amendoim — Jiontze.
Ameaçar — Kukussa.
Andar — Kuenda-Kuia.
Antigo — Txikulu.
Aparecer — Kumoneka.
Apresentar — Kulokula.
Aproximar-se — Kusetuka.
Areia — Kisekele.
Avó — Kuku.
e
Bacia (prato) — Luenga.
Banhar-se — Kuritxila,
Banco — Kihuma.
Barbear — Kuhuta.
Barco — Natu.
Barriga ~ Novumo.
Barulhar — Kuzukuta.
Bater — Kututa.
Beber — Kunua.
Beira dum rio — Kungu.
DE ANGOLA
109
Bofetada — Lukoxi.
Branco (homem) — Njingu.
Branco (cor) — Nozela.
Bravo — Kulaka.
Brincadeira — Isemu.
Buraco — Bombo.
Buscar — Kutakana-Kukemga.
Cabaça de fumar — Mutope.
Cabo de enxada — Mubini.
Cabra — Kombo-pembe.
Cadáver — Kimbe.
Cahir — Kubua.
Calar-se — Kuhuena.
Calor — Muza.
Cama — Kiriri.
Cançar-se — Kuhonga.
Caneca — Pukulu.
Calças — Milambo.
Cantar — Kuhimbila.
Carne — Xito-Koma.
Caroço — Jimbale.
Carvão — Makala.
Casca — Kibaba.
Cassoar — Kusebessa.
Castrar — Kutúa.
Catana — Njangu.
Cego — Kifofo.
Cemitério — Mu Kimbinda.
Ceo — Hulu.
Chamar — Kutambeka.
Chegar — Kuheta.
Cheirar (bem) — Kupepa.
Cheirar (mal) — Kunuka.
Cheiro — Nzumba.
Cinza — Ulokota.
Colher — Luto.
Começar — Kuteleka.
Comida — Massa.
Coisa, Comum — Kia uingui.
Compaixão — Kenda.
Concertar-Compor — Kuhinla.
Confiança — Kizomba.
Contar — Kutamga-Kubala.
Conversa — Maka.
Corpo — MuiJa.
Cortar (capim) — Kusua muangu.
Cortar — Kukoka-Kubatula.
Costumes — Kifua.
Crer — Kutaia.
Crescer — Kukula.
Curar — Kusaka.
Cuspir — Kufila mate.
Dançar — Kukina.
Debates — Milonga.
Decidir — Kusopa.
Dedo — Muinhi.
Deixar — Kuhekia.
Demorar — Kunanga minangu.
Denominar — Kuluka.
Desatar — Kujitula.
Desapertar — Kuzoza.
Descançar — Kunhoka.
Descascar — Kuteta.
Descer — Kukulumuka.
Desde — Kufuma.
Desejar — Kusola.
Despir — Kuzula.
Devagar — Kimuanho.
Direita (à mão) — Ku Kadilu.
Distribuir ) Tr .
_. . > Kuhuana.
Dividir )
Duvidar — Kutenda pata.
Egual — Kusoka.
Embrulhar — Kupitchika.
Emagrecer — Kuhela.
Emigrar — Kucula
Encaminhar — Kudijika njila.
Enfeitiçar — Kuloua.
Enganar — Kutahesa.
Engulir — Kuminha.
Ensaiar-experi- ) T_ .
^ Kuteza.
mentar )
Entrada (da casa) — Munua.
Entrançar os ) Tr , . ,
. . Kubinda.
cabelos )
Entregar — Kuhetesa.
Escuridão — Kufuka.
Esfregar — Kutxikita.
Esperar — Kumenga.
Espinha — Musongue.
Esposo — Mununi.
Estragar — Kuzanga.
110
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Estrela — Tetemo.
Exceder — Kulanda.
Faca — Poko.
Fazenda — Lau.
Fazer — Kuhinla.
Feijão — Capakala.
Felicidade — Kubinduluka.
Ferir — Kunemeka.
Ferreiro — Musuri.
Flor — Kitemo.
Floresta — Tuto.
Fogo — Tubia.
Forjar — Kusula.
Foz (de rio) — Masangu.
Frio — Humu.
Frutificar — Kuhaka.
Frutos — Itundu.
Furtar, roubar — Kukaba-Kunha-
nha.
Fonte — Kibule-bule.
Fumo — Dixi.
Gafanhoto — Makoko.
Galinha — Súsua.
Gatuno — Kaba.
Gémeos — Ibi.
Gostar — Kuhabela.
Grão — Lumuma.
Gritar — Kukola.
Guardar — Kubaka.
Garganta — Minguinho.
H
Hábil — Kete.
Hálito — Kuhumena.
Hombro — Panga.
Hora — Kumbi.
Hóspede — Beni.
Horta — Honga.
Idioma — Mbimbi.
Ilha — Kisanga.
Implorar — Rulomba.
Incenso-resina — Muafu.
Inchar — Kujimba.
Indicar — Kudijika.
Injuriar — Kuxinga.
Interrogar — Kuhula.
Intestinos — Ikessa.
Joelho — Jipuna.
Juvali — Kiombo.
Ladrar — Kuboza.
Lagoa — Kizaga.
Lágrima — Massoxi.
Lança — NGumba.
Largar — Kuetxia.
Leão — Tabu.
Lembrança — Kujibululu.
Leopardo — Kulama.
Lepra — Kikuku.
Levar — Kuambata.
Lamber — Kulakata.
Lagarto — Munhanha.
M
Madeira — Mutxi.
Malcreado — Nabokumuka.
Mama — Mabele.
Manada — Tanga.
Mãe — Nguina.
Matar — Kuxia.
Mensageiro — Punga-mbangui.
Mentir — Kuzuela marimi.
Mercado — Kibengue.
Miolo — Uongo.
Mastigar — Kutxakuta.
Mole-doce — Katuala.
Mosca — Inji.
Mosquito — Jiomo.
N
Não — Loh! Buatxi.
Nadar — Kuzoa.
Naufragar — Kuboba.
Negar — Kuhena.
Nervo — Muxia.
Nó — Hurabu.
Nevoeiro — Bundu.
Nojo — Kuzeba.
DE ANGOLA
111
Nascente (de agua)— Txitu ia nguiji.
Nutrir — Kusassa.
Obedecer — Kutumuka.
Obscurecer — Kuma Kufuka.
Odiar — Kuzemba.
Ofender — Kuxingana.
Omitir — Kujimba.
Ofício — Ufunu.
Onda — Pfunza.
Origem — Kufuma.
Orvalho — Mami.
Outrora — Kutxiakmlu.
Ouvir — Kucona.
Ovo — Mai.
Pai — Xa.
Padecimento — Lamba.
Pagar — Kufuta.
Parar — Kusukamena.
Parecer — Kufuanha.
Parir — Kukita.
Partir (quebrar) — Kutolola-Kubu.
kula.
Passar (um rio) — Kuzanka.
Pasto — Makelu.
Pastorear — Kasebula.
Pau — Mutxi.
Pedir — Kulomba.
Peito — Tulu-mabele.
Peixe — Malenda.
Pentear — Kusamuna.
Perder — Kutexi.
Perguntar — Kuhula.
Pescar — Kutamba.
Piolho — Jona.
Peste — Dibebu.
Pólvora — Fundanga.
Ponte — Ualalu.
Porco — Ngulo.
Porta — Kijilu.
Possuir — Kuva.
Prato — Luenga.
Proceder de ... — Kuf unca.
Preço — Suilu.
Preparar — Kuinrika.
Preto (côr) — Buiela.
Proibir — Kujirika.
Prometer — Kuzuelela.
Pronunciar — Kutona.
Provar — Kulola.
Público (coisa) — Kia uingui.
Que? — Hike?
Quebrar — Kutoloka-Kubula.
Queimar-Kutxoka.
Questão — Milonga.
Rabo — Mukila.
Raiz — Miji.
Raposa — Mukengue.
Rasgar — Kukala.
Razão (ter) — Kulunga.
Recomendar — Kutendelela.
Recto — Kuhiaka.
Recordar-se — Kujibuluca.
Recusar — Kuhehua.
Região — Kifutxi.
Remir-resgatar — Kukula.
Remo — Kihandu.
Respeitar — Kuxila.
Respirar — Kuhuima.
Rico — Monhé.
Roupa — Bizualo.
Rir — Kuzola.
Saber — Kuijia.
Sacudir — Kuhumuna.
Sair — Kutuhuka.
Salina — Kangodia mungua.
Saltar — Kutuka.
Salvar — Kunuhulula.
Sangue — Manhinga.
Sede — Kuila.
Segredo — Mukoto.
Seguir — Kulandula.
Sepulcro — Mbila.
Sepultar — Kufunda.
Sol — Muanha.
Sombra — Kivuri.
Sono — Tulu.
Sonhar — Kulota.
Spfrimento — Lamba.
112
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Soprar — KUlemuna.
Suor — Semukina.
Suspender — Kuturika.
Tecer — Kuhota.
Tatuagem (acto de) — Kutua.
Testemunho — Urbangui.
Tio — Lemba.
Tirar — Kufissa.
Tocar — Kuxika.
Tossir — Kukohola.
Tosse — Kixinda.
Trazer — Kuncha.
Tremer — Kuteketa.
Triturar — Kútua-Kusuka.
Trovão-trovejar — Kunuma.
Tsé-tsé (mosca) — Tubulu-bulu.
U
Untar-ungir — Ku nassa.
Unha — Lumbunde.
Vaidade — Ukumbu.
Vala — Mulombe.
Vale — Honga.
Velhaco — Soxi.
Veneno — Uanga.
Vento — Pfunji.
Vermelho — Kusuka.
Vestir — Kuzuala.
Vida — Muenhu.
Vomitar — Kulussa.
Viuva — Kituri.
Como todos os povos da sua raça são dados ao canto, à dança
e à musica.
Em conhecimentos astronómicos os Bangalas dividem o tempo
em ciclo lunar — dois no ano : a estação da chuvas e a estação
seca.
Para contar empregam os dedos, sementes, pedaços de pau
e riscos.
III. — Da vida familial
Nascimento. — A educação. — O casamento.
— A família. — A morte. — A religião. —
Ritos. — Cultos. — Divindades e sar-
cerdócio.
Não temos conhecimento de práticas antes do nascimento e
do parto, bem assim como não conhecemos os cuidados dados à
mãe e à creanca. A creança recebe dois nomes, o comum e
porque é conhecido e um outro secreto só do conhecimento das
famílias.
Entre os Bangalas existe o infanticídio, quando a mulher dá
à luz um albino ou um monstro, ou dois gémeos. Quando tal
sucede são as creanças levadas para longe e aí enterradas, aban-
donando a mãe a casa onde deu à luz e tudo o que nela está.
Como nas restantes tribus da província as causas que limitam
o crescimento da população são: a poligamia e a edade muito
DE ANGOLA 113
juvenil em que as raparigas casam, agravada com a grande di-
ferença de idade entre marido e a mulher, pois não é raro ver
um homem de 40 e 30 anos tomar por mulher uma creança de
8 a 10 anos. Acresce a tudo isto o pouco cuidado dado à creança
que às costas da mãe sofre o ardor do calor e toda a espécie
de intempéries.
Os Bangalas não teem a menor ideia de qualquer educação
física, moral ou intelectual a não ser a de adivinho. Quem pre-
tende seguir aquela profissão dirige-se a um adivinho em exer-
cício, que mediante uma boa gratificação o habilita e industria.
Só o jaga de Cassange têm uma iniciação, especial, como igual-
mente só ele sofre a operação da circumcisão antes da posse do
estado.
No que diz respeito ao casamento o costume Bangala em
pouco ou nada difere do já exposto para outras tribus. Quem
dispõe da noiva, a quem se pede o casamento, quem resolve,
quem determina e recebe o dote é o tio materno; a noiva não é
tida nem havida, nem se lhe pede o seu consentimento.
Assim quem deseja tomar para sua mulher uma rapariga, vai
ter com o tio materno pedir-lhe o consentimento e dar-lhe o
Bundo, que pode ser uma cabra ou valor igual, e que constitue
o ajuste do casamento. Desde esse momento o homem considera
como sua, a mulher que pediu, no entanto ela fica vivendo com
a sua família e não vem para a sua companhia sem o marido
pagar o Kulemba que pode ser uma vaca ou igual valor, e que
constitue o penhor do contracto do casamento.
O homem que tiver relações com uma rapariga solteira ou já
com ajuste de casamento, tem de pagar ao tio materno ou ao
noivo, conforme o caso, o dobro da importância que é costume
pagar para o casamento.
O único impedimento de casamento é entre irmãos; o casa-
mento entre tio e sobrinha, e entre primos é permitido.
É permitido a poligamia. O adultério do marido não é pu-
nido, em compensação o adultério das mulheres é-o por uma
multa imposta ao homem com quem ela o cometeu.
114 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Existe o divórcio e até é frequente, tendo como causas as
mencionadas para outras tribus já estudadas. A mulher divor-
ciada não pode casar-se novamente sem que seja restituido ao
primeiro marido o penhor do contracto de casamento que êle
pagou.
Na família quem tem e exerce a autoridade sobre a mulher e
filhos é o pai, no entanto os filhos fazem parte do clan da mâe
e deles podem dispor o tio materno e à falta deste o primo da
mãe a quem devem obediência.
O pai, a mãe, os filhos, os avós fazem parte da família. Os
filhos casados formam uma nova família. A reunião das famílias
que contam algum parentesco formam uma, duas ou mais aldeias,
cada uma com o seu chefe chamado Banza. Vários banzas, apa-
rentados, formam um sub-estado com um chefe que tem o título
de soba e que toma sempre o nome do antepassado de quem
pretende descender.
Os Bangalas, não fazendo excepção à maioria das tribus da
raça negra, não admitem a morte natural, nem as doenças. Por
isso quando adoecem recorrem sempre ao adivinho para saber
quem é que enfeitiçou o doente. Depois desta consulta é que se
recorre ao curandeiro que, por magia e pantominices, procura
neutralizar os efeitos do feitiço que causou a doença e pelo seu
receituário o trata.
Nos últimos momentos do moribundo a família reune-se, toma
o agonisante nos braços e dão começo aos choros e cantos de
óbito.
Depois do falecimento unta-se o cadáver com azeite de palma
e amortalha-se com um pano. A seguir é o defunto exposto
fora de casa, e perante êle os membros da família cantam, dan-
çam e contam a sua vida, as suas viagens, enfim, os factos mais
notórios da sua existência. O cadáver é enterrado só depois de
dois dias e duas noites.
Se o defunto foi soba, o cadáver fica exposto seis dias e a
família tira-lhe um dente que dá ao seu sucessor. O herdeiro
tem de plantar no dia do funeral sobre o túmulo do soba um pé
DE ANGOLA 115
de cana brava, mas logo que tome conta do estado tem de voltar
à sepultura do soba, deitar nela um pouco de aguardente e
arrancar a cana brava que tinha plantado. A seguir é conside-
rado soba e começam as danças e cantos em sinal de regosijo.
O soba é sempre sepultado na sua casa; a aldeia muda de
local, e aquela onde foi sepultado o soba fica sendo o cemitério
da aldeia do novo soba.
O luto ou óbito dura quatro dias, dois dias e duas noites;
durante este tempo a vida da aldeia fica quási paralisada, não
se faz outra coisa que não seja cantar e dançar. O óbito^termina
sempre por se abater um boi e duas ou três cabras, cuja carne
é distribuída aos que dançam e cantam.
Para os Bangalas existe um deus poderoso e bom que creou
o ceu, a terra e tudo o que se vê e move no ceu e na terra; que
regula as chuvas, governa o sol e a lua, o trovão, o raio. Este
deus dos Bangalas é o Nzambi que lhe pode dar a riqueza a
saúde e o poder ganhar as questões. Além deste deus teem os
Bangalas culto pelo deus de geração o nganga-nzambi, pelo deus
da família o ngola, e pelo mahamba, prescritos pelos curandeiros.
Os Bangalas acreditam igualmente na existência de um espí-
rito que não morre, e que separado do corpo a que pertenceu
comunica com a família da pessoa falecida, por intermédio de
um dos seus membros. Assim, depois de um óbito, a família
chama o curandeiro para este conseguir que o espírito do falecido
fale na presença da família pela boca do membro intermediário,
que fica sendo o médium entre a família e o espírito. A este
recorrem t#dos os membros da família, consultando-o como se
fosse um adivinho.
Os Bangalas teem vários feitiços, Kiteka, que respeitam e
de que se servem para se precaver contra o mal e o bem. Assim
teem o que chamam Jivunji de que se servem para fazer mal
aos seus inimigos; Kangulungu igualmente para o mesmo fim, e
que para produzir os devidos efeitos, se tem de enterrar no logar
onde se costuma fazer fogo, e pronunciar o nome da pessoa
alvejada ; e os lupandu empregados unicamente entre os sobas.
Estes feitiços são figuras toscas e grosseiras, representando entes
sobrenaturais.
116 POPULAÇÕES INDÍGENAS
O culto dos Bangalas é particular e exercido em família, no
entanto algumas cerimónias públicas se praticam em que tomam
parte toda a aldeia, na ocasião do sacrifício que se faz para
pedir boas culturas e no sacrifício aos espíritos dos defuntos.
Qualquer destes sacrifícios se reduz em abater uma cabeça de
gado cuja carne é depois distribuída pelos habitantes da aldeia.
*
%
A vida dos Bangalas está envolvida como uma rede de
feitiços, adivinhos, curandeiros e feiticeiros que os aterra e preo-
cupa constantemente.
Consulta-se o adivinho por tudo e por nada. Se houve um
roubo, consulta-se o adivinho para conhecer o ladrão ; se uma
pessoa adoece recorre-se ao adivinho para saber a causa da
doença.
Não menos importante é a classe dos curandeiros, encarrega-
dos de tratar todas as doenças ou pseudo doenças. Os curan-
deiros àlêm do conhecimento de diversas plantas medicinais que
aplicam nos seus tratamentos, trata de neutralizar pela magia o
efeito dos feitiços. É profissão muito lucrativa, pois que o Ban-
gala paga sempre caro os bons ofícios do Kimbanda.
Àlêm do adivinho e. do curandeiro, ha o feiticeiro, sempre
desconhecido, a quem se atribuem todos os males, que por inter-
médio dos feitiços enviam as dopnças, a morte e tudo quanto
pode prejudicar o homem.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Os Bangalas teem vida sedentária. Como já temos constatado
em outras tribus, entre os Bangalas existem pelo menos três
classes : os chefes, os homens livres e os escravos.
Há diversas espécies de escravos : o escravo de guerra, cons-
tituídos pelos prisioneiros feitos ao inimigo, e que em gerai são
vendidos aos povos vizinhos; o escravo de dívida que trabalha
DE ANGOLA 117
por conta da pessoa que o tem como penhor, e pode ser resga-
tado pela família ; o escravo de compra que fica em casa do
dono nas condições do escravo de dívida e que é vendido só em
caso de necessidade; e finalmente o escravo que se oferece, um
fugido que por dívidas ou por crimes deixa a sua terra e
entrega-se.
Os escravos teem logar especial na família a que pertencem,
podem mesmo considerar-se como um dos seus membros; traba-
lham por conta dos seus donos que lhe dão de comer, de vestir
e mulher, podendo àlêm disso possuir as suas lavras. Como se vê
a escravatura entre os Bangalas — como afinal entre quási todas
as tribus da raça negra — tem um caracter bem diferente do que
muita gente boa supõe, e a situação de escravo, por certo, muito
europeu a desejaria de bom grado.
O escravo não se pode resgatar pelo seu trabalho, por si
mesmo, só o pode resgatar a sua familia.
A organização política não difere daquela dos outros povos
já estudados. Existe um chefe supremo — o jaga de Cassanje —
a que estão subordinados os chefes ou sobas das diversas aldeias.
Os chefes teem junto de si para os consultar e coadjuvar no
governo do estado, um certo número de ministros ou macotas.
O soba, jaga de Cassanje, tem sempre o título de um seu
antecessor, isto é um cie antepassado descendente do Kuin-
gury.
Os sobas dos Bangalas recebem o poder do jaga de Cassange
a que devem obediência e respeito, devendo igualmente presen-
teá-lo, presente que é quási um imposto.
Cada soba tem os seguintes ministros :
1.° O Cassanje-Kakanga, que é o secretário encarregado de
apresentar ao soba quem lhe deseja falar;
2.° O Ngola-mbole que é o ministro da guerra;
3.° O Muzumbu, encarregado da ordem da aldeia e dos bens
do soba;
4.° o Karianga, encarregado dos feitiços do soba.
O jaga de Cassanje tem dois Cassanje-Kakanga, um deles que
é sobrinho do jaga, que tem a sua aldeia afastada do jaga e que
toma conta dos bens do Estado e do património do jaga e um
118 POPULAÇÕES INDÍGENAS
outro que habita na aldeia do jaga, encarregado de receber os
rendimentos, os presentes do estado e de entregar ao primeiro
o que o jaga deseja conservar.
Além dos dois cassanji Kakanga, o Jaga tem os seus conse-
lheiros, chefes das aldeias (*) que convoca em casos extraordi-
nários. Na corte do Jaga há ainda um outro personagem cha-
mado Muene-Mutu, que é em geral o sucessor do Jaga. É o
Muene-Mutu que por morte do Jaga convoca os conselheiros e
faz-lhes os seus presentes para eles o nomearem Jaga. Se os
conselheiros por quaisquer motivos não gostam do Muene Mutu
podem nomear outra pessoa para Jaga.
As funções dos sobas são : tratar das questões ou milongas ;
cobrar dívidas; receber os hóspedes especialmente os europeus.
O herdeiro do soba é sempre o sobrinho, filho da irmã, não
havendo sobrinho em idade de governar o Estado, toma conta
do governo o irmão ou primo do soba falecido.
*
A propriedade não é individual, pertence à família e é admi-
nistrada pelo chefe daquela.
Para a resolução das questões ou milongas são convocados
os macotas, presidindo à reunião o soba. O acusado defende-se
por si mesmo ou recorrendo a testemunhas, e o acusador tem de
apresentar provas ou testemunhas da acusação.
Uma das provas usadas é a que vulgarmente se chama de
juramento e que consiste em dar a beber ao acusado uma bebida
venenosa. Se o acusado vomita a beberagem é reconhecido ino-
cente se não a vomitar é culpado. A dose do veneno aumenta
conforme a quantia a decidir e pode mesmo produzir a morte,
se o acusado não vomitar, quando se trata de feitiços, em outras
questões de menos importância, como por exemplo roubo, mesmo
que o acusado não vomite a beberagem não morre, apenas o
incomoda por algum tempo. As vezes a beberagem dá se de
beber a um cão pertencente ao acusado, e é o estômago daquele
que decide da culpabilidade ou inocência do réu.
(') Os macotas do jaga chamam-se: Panda, Sedonga, Mutxiangombe,
Kanguenga, Kambuiza, Kabetu, Kassimgo, Mzonzo, Casa Camukuhi,
Samba Cassangi, Bondo a Cassangi, Kiluange, e Cassela-Kituxi.
. . DE ANGOLA 119
O acusado não pode, sem confessar a sua culpabilidade,
recusar-sè a beber o veneno.
Quando se trata de questões de importância, recorre-se a um
soba extranho à aldeia do acusado e do acusador. Este soba,
assistido dos seus macotas preside aos debates, interroga as partes
e profere a sentença.
Se o acusado fôr reconhecido inocente, o acusador pagar-lhe há
o que êle teria pago se fosse reconhecido culpado.
III
QUIOCOS, LUENAS, XINGES, SONGOS, MINUNGOS,
LUNDAS, BONDOS E HOLOS
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica destes povos. — Sua
origem. — População.
Das dissidências na corte do Estado de Muat-Ianvua resultou,
como acabamos de vêr ao estudar os usos e costumes da tribu
Bangala, o destacar-se dele um grupo de descontentes que depois
veiu a constituir aquela tribu, e a que se seguiram outras dis-
senções que, estabelecendo-se nos territórios da Lunda, se foram
disseminando e deram lugar à constituição das tribus aqui em
estudo.
As tribus em estudo ocupam os vastíssimos territórios que
constituem a parte NE da província, para àlêm do meridiano 16.°
e até ao paralelo 13.° de latitude sul, salvo para a tribu Quioco
que actualmente se estende ao sul daquele paralelo. Entre estas
tribus encontram-se completamente isolados os Mussucos, prove-
nientes do Congo.
Como acima deixamos exposto a origem destes povos está
intimamente ligada com a tribu Bangala, visto os seus ascen-
dentes, como os daquela tribu terem pertencido à corte de
Muat-Ianvua, a cuja constituição já largamente nos referimos ao
estudá-la e que para boa sequência do estudo destes povos,
convêm lembrar a largos traços.
O Estado de Muat-Ianvua fundou-se pela união de Ilunga
120 POPULAÇÕES INDÍGENAS
filho de Mutombo, potentado dos LubaSj com Luegi, filha de
lalo Maku, chefe dos Bungos, de que houve um filho Noegi a
quem foi dado o título de Muat-Ianvua.
Kinguri, irmão de Luegi, não se conformando com esta união
e não se querendo sujeitar a um estrangeiro, deliberou com
alguns parentes afeiçoados abandonar a corte e virem organizar
um grande estado.
Como vimos foi Kinguri o fundador da tribu Bangala que
após várias digressões se veiu a estabelecer entre o Lui e o
Cuango.
Se entre alguns membros da corte havia descontentamento, a
partida de Kinguri veiu agravar a situação, dando lugar a dis-
cussões e comentários, uns a favor e outros contra Kinguri.
Na corte de Muat-Ianvua não reinava pois harmonia, os
descontentes não se sentiam bem, mas receosos não se manifes-
tavam nas audiências perante Luegi. Este estado de coisas não
passava desapercebido a Ilunga ; no entanto resolveu esperar que
os parentes de sua mulher se pronunciassem, antes de tomar
qualquer providência.
Não se fez esperar a oportunidade, pois que uma tia de Luegi,
de nome Cambamba, que capitaneava o grupo dos parentes
descontentes, abalançou-se a perguntar a sua sobrinha se havia
notícias de kinguri, lembrando a conveniência de enviar alguém
para lhe suspender a viagem e fazê-lo retroceder para ser cas-
tigado e acrescentando que ela Cambamba se oferecia para ir
com os seus em procura de Kinguri e convencê-lo a apresentar-se.
Lueji transmitiu o desejo dos seus parentes a Ilunga que lhe
fez sentir quanto seria para desejar para o socêgo do estado que
aqueles seus parentes seguissem o exemplo de Kinguri, evitando-se
que mais tarde com eles tivesse de haver procedimento mais
enérgico. Em nova audiência comunicou Luegi a sua tia que o
Muat-Ianvua aceitava a sua oferta, mas como todos ficassem na
espectativa, acrescentou que o Muat-Ianvua sabia bem que os
seus parentes estavam descontentes e que por isso a todos que
quisessem seguir o exemplo de Kinguri lho permitia, atribuindo-
se-lhe a seguinte expressão : aia oko kua Kinguri, «vão também
lá para Kinguri». Daqui a tribu denominar-se aioko, uma pessoa
dela xioco, caxioco, e para os da tribu Quioco.
Assim se fundou a tribu Quioco, cujos ascendentes, abando-
nando o estado de Muat-Ianvua, seguiram as pisadas de Kinguri
até ao Cassai, subiram este rio até às suas nascentes, alcançaram
DE ANGOLA 121
o Cuanza e vieram estabelecer-se junto das nascentes do Cuango,
elegendo entre si para chefe Amdumba, o mais velho do grupo.
Não tardou que no seio dos Quiocos se não dessem desavenças
e deles se não destacassem igualmente grupos. Foi o que suce-
deu com Kissengue filho de Cambamba que, por não se querer
sujeitar ao domínio de Andumba veiu constituir um grande estado
mais ao norte dos seus parentes^ já em terras de um tributário
de Muat-Ianvua, e Kimbundo.
As exigências de tributos fez com que aqui não ficassem as
dissenções, seguindo o exemplo de Kissengue outros descendentes
de Andumba, que descendo pelos rios, tomaram o rumo norte.
Os Quiocos valentes e audaciosos, ferreiros e caçadores, foram
assim irradiando para o norte, sul e leste submetendo todos os
povos que encontravam e cruzando-se com eles; na parte leste
deram origem a uma grande tribu, os Luenas, que se estabele-
ceram entre o Cassai e o Luena ; no norte escorraçaram os Lundas,
os Xinges e os Bangalas, apossando-se dos territórios e das mu-
lheres dos primeiros, que isolados em pequenos estados estão
condenados a desaparecer; no sul, estendendo-se até ao Bié e
regiões das Guanguelas e Ambuelas, teem conseguido estabele-
cer-se entre as tribus daquelas regiões e, com as suas qualidades
assimiladoras, a pouco e pouco teem modificado os usos e costumes
dos povos com quem teem privado.
Como era de supor Luegi e seu marido Ilunga, após as dis-
senções que se deram no estado de Muat-Ianvua, resolveram
engrandecê-lo, estendendo a sua esfera de acção, de fornia a
prepararem-se para qualquer ataque dos estados que se constituí-
ram com os grupos dos descontentes, deliberando mandar gente
de confiança conquistar terras para o seu estado.
Encarregados dessa missão foram enviados para leste um
primo de Lueji a quem deram o título de Capeada Muena Am-
bango e uma sua sobrinha a quem deram o título de Mona
Mávu-á-Combo.
Tendo morrido Capenda junto do rio Luachimo resolveram os
grandes do novo estado proseguir na sua derrota para leste, e
entregar o estado a Mona Mávu que escolheria de entre o seu
povo um homem de quem gostasse para a representar nas au-
diências e mais actos em que ela não pudesse comparecer, como
o tinha feito Lueji, não podendo porém ter mais que dois filhos
desse homem, tendo de a seguir, escolher outro com a mesma
condição, e assim sucessivamente.
9
122 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Nestes termos abandonaram aquele logar e vieram estabele-
cer-se junto do Cuango.
Envelhecendo Mávu, resolveu esta de acordo com os grandes
do estado, dividi-lo em três pelos seus três filhos que teve dos
seus três maridos, fazendo-os acompanhar respectivamente de
^ _ „ suas irmãs, afim de na sucessão
: . '':>| se observar o que a tal respeito
se praticara com ela Mávu.
Cada um dos estados assim
constituidos ficou designado
pelo título de Capenda.
H Durante muito tempo pro-
ÍÉ^«*^*" S cedeu- se na sucessão como a
1 1 jffi^fir* f ' praxe ou costume estabelecido,
mStSSÈ mas nao tardaram as dissen-
'f\íúfitoÊtrW Ç°es ^ue deram lugar a vários
grupos emigrarem para leste e
se confundirem com os Quio-
cos.
Destas dissenções a que mais
profundamente veiu alterar a
constituição dos estados de Ca-
penda foram as que se, deram
no estado de Massengo — título
ou nome de um dos estados de
Capenda que se constituiu mais
ao sul.
Neste estado parece que uma
das mulheres que governou,
xPo axinge Muholo-Angonga, tinha tido
um filho Quicálua, de um Bangala, circunstância que deu lugar
a que os Bangalas interviessem a favor da entrada no estado
do filho do seu patrício.
Deste facto e de novas intervenções dos Bangalas resultou a
constituição da tribu Songo, descendentes do estado de Massongo,
e a fusão dos dois outros estados de Capenda em um, que os
Bangalas alcunharam de Xinges por se alimentarem de ratos.
O Muat-Ianvua, no entretanto, continuava a obra encetada de
alongar os seus domínios, para o que enviou novas expedições ;
uma delas capitaniada por Xacambuje que tendo mudado de
rumo veiu a constituir pequenos estados de que actualmente o
DE ANGOLA 123
mais importante é o de Minungo e outra dirigida por Kimbundu
que veiu estabelecer-se onde se encontra Mona-Quimbundo, actual-
mente representada pelos Lundas, dispersos em pequenos estados
de que os maiores são os de Mona-Quimbundo e do N'zovo,
estabelecido ao norte da Lunda, entre os rios Utunguila e Cuango.
Resta-nos tratar da origem dos Bondos e Holos que, por assim
dizer, constituem um termo de transição entre os povos de que
temos vindo tratando e aqueles que descenderam dos que emi-
graram do Congo e entraram pelo norte da província.
Na verdade em todas estas tribus houve descontentamentos
e dissenções, e destas resultaram emigrações para oeste, àlêm
Cuango, que encontrando povos vindos do Congo com eles se
fundiram dando lugar à constituição de várias tribus de que as
mais importantes são os Holos e Bondos, em que predominaram,
no entanto, os usos e costumes dos povos de leste.
* *
De uma maneira geral, e salvo para a tribu Quioco, os povos
de que nos ocupamos teem sofrido uma acção depauperadora
que, se não fora contrabalançada pela facilidade com que a
mulher concebe e a sua grande procriação, teriam sucumbido,
extinguindo-se por completo algumas tribus. Para isso tem con-
tribuído a grande mortalidade das creanças, em parte devida à
pobreza do leite das mães, à escravidão, às crises de fome por
que teem passado, às grandes irregularidades nas refeições, quer
pela forma, quer pela quantidade e qualidade dos alimentos, às
doenças que os flagelam, principalmente a varíola que chega a
dizimar povoações inteiras, as uniões consanguíneas, etc.
Os Quiocos fazem excepção às outras tribus e teem conseguido
procrear uma robusta descendência, buscando as mulheres entre
os Lundas e melhorando-lhe a sua condição de vida, com respeito
a alimentação e estima, e subtraindo os seus filhos às condições
humilhantes de servirem para trocos, como é vulgar entre os
Lundas, adestrando-os na caça, nas culturas e negócio, até po-
derem constituir família e trabalharem para se sustentarem.
Como é de supor, impossível se torna pronunciarmo-nos de
uma forma precisa e categórica sobre a constituição e robustez
destes povos, atendendo à grande extensão ocupada por eles e à
variedade de tipos abrangidos. No entanto somos levados à
124 POPULAÇÕES INDÍGENAS
conclusão que os povos do planalto da Lunda vão decrescendo
em robustez à proporção que da maior altitude se caminha para
oeste ou leste, e em direcção do sul.
O mesmo sucede com a estatura, que varia com a alimentação,
temperatura e altitude, chegando a idênticas conclusões àquelas
que deixamos expostas sobre a robustez. Outro tanto se averigua
com relação à côr da pele que é mais carregada nos terrenos
baixos, ferruginosos ou lodosos ou encharcados, e mais averme-
lhada nas terras altas.
Esta mesma lei pode ser aplicada no que diz respeito ao en-
carapinhado dos cabelos, mais espesso, enrolado e emaranhado,
nas terras baixas do que nas mais áridas e elevadas.
Completando a descrição dos caracteres físicos destes povos,
de uma maneira geral, podemos afirmar terem o nariz largo e
chato, os olhos grandes, rasgados obliquamente, os lábios salientes,
grossos e um pouco revirados, as orelhas grandes, a cabeça
alongada, o pescoço curto, os braços delgados e compridos, as
mãos grandes, os pés largos e espalmados. Estes caracteres
gerais teem modalidades, como por exemplo os Xinges e povos
da margem direita do Cuango, com o nariz um pouco elevado, e
a cabeça um pouco maior.
Não obstante a mutilação dos dentes, não pode ser considerada
um caracter privativo de tribu, um ou outro indígena de qualquer
tribu, principalmente entre os Quiocos, praticam-na. A operação
è dolorosa e consiste em lascar com um pequeno ferro cortante
os dentes incisivos pelos ângulos, de um e outro lado, batendo-lhe
com qualquer objecto rígido que se preste à operação.
Todos estes povos usam mais ou menos furar o nariz e ore-
lhas para nelas meterem anéis ou pingentes, bem assim como
praticam a tatuagem (jimhaje). Esta é levada a efeito por meio
de agulhas ou estiletes de madeira molhados na seiva de uma
árvore (mupaxi), consistindo a operação em ir picando dois
pontos a um tempo sobre as linhas previamente desenhadas, o
que faz brotar o sangue que o operador estanca passando sobre
eles pó de carvão, às linhas assim obtidas adquirem um certo
relevo e põem em destaque os desenhos.
DE ANGOLA 125
II. —Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes. — Sciências. — Fa-
culdades intelectuais.
Nos cuidados dados ao corpo pouco ou nenhum interesse lhes
merece a limpeza deste, a não ser o preservarem-se com azeite
de palma ou óleos extraídos de plantas oleaginosas como das
sementes do rícino.
Os Quiocos vão porem perdendo este uso e o mais que em-
pregam são tintas na cara.
A lavagem dos dentes é dos cuidados o que mais atenção lhes
merece, no que não fazem excepção aos outros povos da raça
negra.
São variadíssimos os penteados usados, não podendo, nem
mesmo para cada tribu, apresentar um tipo, salvo para os
povos do oeste, Bondos e Holos, nos quais se pode considerar
como penteado tipo-, os jindingu, pequenas tranças caindo-lhes
do ocipital sobre os ombros, à semelhança das usadas pelos povos
da tribu Jinga.
Àlêm Cuango, os penteados ou melhor a forma de ornar a
cabeça, mais característica é de na testa e base do cabelo,
adaptarem um arco de latão amarelo, de forma a fazer rebaixar
o cabelo na frente, e elevando muito a gafurina para trás, ou
então colocando-o, tendo-se previamente rapado o cabelo adeante.
Algumas vezes cortam o cabelo rente àquele arco e adaptam
uma espécie de chino feito de cabelo ou mesmo de fibras textis.
*
O vestuário usado é a tanga feita de fazendas de origem
europeia, ou tecido de fibras textis por eles mesmo fabricadas,
ou ainda, se bem que raramente, de peles.
A tanga é em geral reduzida ao mínimo, salvo raras excepções
que se apresentam em geral nas autoridades gentílicas e nas suas
mulheres. Dois pequenos pedaços de pano suspensos nos quadris,
um na parte anterior e outro na posterior, constituem por assim
dizer o vestuário destes povos. Algumas mulheres, sobretudo
126
POPULAÇÕES INDÍGENAS
antes de chegar à idade da puberdade, suspendem igualmente
por cima do seio e com o fim de o encobrir, um pequeno pe-
daço de fazenda ou de tecido por eles
11 fabricado que em geral é franjado.
■j Alem disto é de uso suspenderem as
?. <• - «, Í mulheres os filhos nas costas por uma tira
de qualquer tecido amarrado sobre o seio,
uso que não é seguido pelas mulheres
* Quiocos, pois colocam os filhos sobre» o
\ quadril esquerdo, suspendendo-os por uma
faixa de pano, que passa pelas nádegas da
creança e hombro direito da mãe.
Este uso permite-lhes o conservar até
bem mais tarde um aspecto de mocidade
que não teem as mulheres dos outros
] povos, que segu- ^_ ■
ram a faixa sobre o
\ peito.
No que diz res-
peito a ornatos, usa- m '
j dos por estes povos,
são eles os mesmos \ ■■■
indicados, quando
estudamos a tribu Bangala. M
Tipo Massongo
A base de alimentação destes povos é
como na maioria das restantes tribus da
provincia, vegetal e constituida em primeiro
logar pela mandioca e a seguir pelo milho
massango, amendoim, e feijão.
Em geral a mandioca, o milho e o mas-
sango, são empregados na alimentação re-
duzidos a farinha com que prepara a massa
ou papas que constitue o seu prato de resis-
tência. No entanto consomem a mandioca crua ou seca, e o milho
e o massango cosidos em água ou torrados. Ainda entre os ve-
getais já mencionados e outros, encontram estes povos plantas
que lhes fornecem folhas, de que fazem uma espécie de esperre-
Tipo Massongo
DE ANGOLA 127
gado, e que cosem ou guisam. Empregam na alimentação àlêm
dos vegetais inumerados os cogumelos frescos ou secos, túberas
que extraem excavando as terras e consomem cosidas em água,
e frutos silvestres.
Toda a carne de caça mesmo em estado de decomposição, ou
peixe havendo-o, são manjares predilectos. Não é vulgar o uso
na alimentação das carnes dos animais domésticos, até mesmo
galinhas, que era geral reservam na esperança de os negociar.
Quási todos estes povos empregam na sua alimentação, os
ratos, os lagartos das árvores, os gafanhotos, as formigas, etc.
Algumas tribus procuram para suprir a falta do sal, o em-
pregarem os resíduos da queima de fenos e capins espaciais.
Usam as bebidas fermentadas do suco da palmeira, do milho,
do massango, do mel, etc, e apreciam a aguardente, preferindo-a
a qualquer outra bebida fermentada.
O número de refeições por dia varia com a provisão de que
dispõem ; em ocasião de abundância de caça conservada, costu-
mam ter mais de duas refeições no dia, enquanto não acabe a
provisão, no entanto o usual é uma refeição de manhã, em que,
para entreter a debilidade e muitas vezes para esquecerem a
fome, como eles dizem, usam beber qualquer das bebidas fer-
mentadas indicadas, e, sendo tempo de jinguba, costuma esta
constituir o lastro, e outra à noite, que só se deixa de fazer se
não há o mais insignificante recurso.
A habitação tipo é a cubata assente ao solo de base circular
ou rectangular.
Como é de supor em tão vasta região e tão grande número
de tribus, é impossível encontrar entre estes povos um tipo único
de habitação, no entanto predomina a cubata de base rectangular.
Sobre os diversos tipos de habitação e a sua construcção nada
temos a acrescentar ao que deixamos exposto para os Bangalas.
Das habitações destes povos as mais características e que
apresentam um fácies especial são as dos Quiocos. As paredes
da cubata do Quioco são baixas, mas a cobertura é muito elevada,
com grande escoante às águas, e descreve uma curva graciosa
ao assentar sobre os pilares que circundam a cubata.
Ainda é entre os Quiocos que se encontram cubatas com as
128 POPULAÇÕES INDÍGENAS
paredes barreadas, e algumas com portas e janelas de madeira,
por eles feitas.
As povoações, como em todas as tribus da raça negra, são
constituídas por um agregado de habitações de famílias.
Entre os povos destas tribus vai caindo o costume de cercar
as suas povoações por fortes palissadàs, com que as defendiam,
fazendo a entrada por uma única porta.
A disposição das cubatas nas povoações e a forma destas ainda
hoje se ressentem — principalmente entre os Lundas — da dispo-
sição e forma da antiga mussumba do estado do Muat-Ianvua.
De facto são as povoações dos Lundas que hoje se nos apre-
sentam em um estado de maior atrazo o que aliás se não dá com
a habitação e as povoações; os Lundas pelas situações anormais
por que teem passado, sujeitos ao Muat-Ianvua, constituem
actualmente uma tribu que tende a desaparecer.
Os Lundas abusando do poder absoluto do seu Muat-Ianvua,
ditaram a lei a todos os povos àlêm Cuango, foram batidos, per-
deram o ânimo para a luta, recuaram, abandonando aos ven-
cedores as suas terras.
Destas tribus aquela que na construção das suas povoações
mais se tem afastado da disposição da antiga mussumba, é a dos
Quiocos; ainda assim, as residências dos chefes são situadas
pouco mais ou menos no centro das povoações, e isoladas por
largas ruas.
O que não resta a menor duvida é que as povoações dos
Quiocos distinguem-se pela boa ordem e disposição das habita-
ções e cujas paredes são em geral barreadas.
No que diz respeito a móveis, o mais importante é a cama.
A cama é feita no recinto mais resguardado da cubata e junto
a uma parede. É ela constituída por forquilhas de troncos,
cravados no solo, sobre que assentam varas resistentes, longi-
tudinais e transversais, tudo ligado e bem apertado por meio de
fibras vegetais.
Sobre esta espécie de estrado, estende-se uma camada de
colmo, duas ou mais esteiras, e quem possue peles, põe-as por
baixo das esteiras.
Assim descrita constitue esta cama, aquilo que mais vulgar-
mente se encontra, havendo quem tenha melhor e mais perfeito.
Entre os móveis que usam, contam-se: as prateleiras, bancos
e caixas, mais ou menos imperfeitas ; o almofariz de varias formas
e tamanhos, em que podemos incluir o que serve para fazer a
DE ANGOLA
129
farinha da mandioca; as colheres, pratos, panelas e outras va-
silhas de variadas formas.
No que diz respeito aos misteres a que estes povos se entre-
gam, tem o primeiro logar a agricultura, tradicional e rudi-
mentar, mas de que tiram a sua
alimentação e o necessário para
a permuta de fazendas e outras
mercadorias de que carecem.
Os trabalhos agrícolas mais
pesados como sejam derruba e
limpeza dos terrenos destinados
às culturas são desempenhados
pelos homens, as sementeiras e
colheitas pertencem às mulheres
o que não quer dizer que entre
alguns povos, não sejam coadju-
vadas, mesmo noutros serviços
pelos homens.
As culturas principais são
as da mandioca, da jinguba, do
do milho, do massango, do ta-
baco e do feijão. Para a cultura
da mandioca preparam troncos
desta e em pequenas covas dis-
põe-nos inclinados, ajustando a
terra contra estes troncos com
os pés. Tratando-se de jinguba,
milho ou feijão, procedem à
sementeira, abrindo com os pés
pequenas covas onde deixam cair três ou quatro sementes, que,
igualmente com os pés cobrem de terra. No que diz respeito a
sementes miúdas como as do tabaco, massango e outras, lançam-
nas a eito à terra que previamente preparam com uma pequena
cava.
Quási todos estes povos mais ou menos se dedicam à caça,
sobretudo os Quiocos que na caça ao elefante tanto se distin-
guiram, batendo por assim dizer quási toda a região da Lunda
àlêm Cuango.
Tipo Lunda
130 POPULAÇÕES INDÍGENAS
De uma maneira geral estes povos caçam o cavalo marinho,
o javali, o boi bravo e diversas espécies e.variedade de antílopes,
o macaco, o mabeco, etc.
Não obstante a caça individual se exercer durante todo o ano,
facto é que o tempo próprio das grandes caçadas é ao terminarem
as chuvas na época seca. Antes da Caçada procede-se à cerimó-
nia da queima do capim, o que se pratica de forma a deixar
pequenas manchas, afim de servirem de sombra à caça que pro-
curará para alimento o capim tenro que a seguir cresce no ponto
que foi queimado.
Para dar uma ideia nítida das grandes caçadas passamos a
transcrever de H. de Carvalho uma dessas diversões venatórias
presidida pelo Muat-Ianvua :
«O Muat-lanvua, e em geral os potentados de lucano e miluina,
quando vão para as caçadas, se é para longe das suas residên-
cias, fazem-se acompanhar pelas suas comitivas, e estabelecem
acampamento no logar em que se determinou fazer a caçada do
ano, afim de se recolherem provisões para a época das chuvas.
Nas vésperas os caçadores tratam de fazer os chamados re-
médios, invocando os ídolos especiais, e isto denominam uianga,
para o bom êxito da caçada a que se propõem ir.
Estes remédios aplicam se apenas exteriormente ao corpo do
caçador, e deles usa também uma das suas mulheres predilectas,
que por esse facto fica sendo Na Caianga (senhora que participa
no voto).
Esta mulher não acompanha o caçador, mas se não resistir
a qualquer tentação que possa dar motivo a perturbar-se a paz
doméstica, isto é, se descura da mais insignificante causa que
possa interessar ao lar, se procura distracções sobretudo com
outros rapazes, embora essas distracções não passem de uma
dança ou de uma simples conversa, é certo, dizem eles, que o
caçador erra as pontarias, e passa por caminhos em que tem
andado a caça sem a ver.
Se o caçador volta em dias sucessivos e a sua infelicidade se
repete, está decidido, a culpa é da Na Caianga, e êle regressando
para junto desta, exige logo que lhe confesse tudo quanto fez na
sua ausência, quer de noite quer de dia; e se desconfia ou está
prevenido de alguma coisa que ela lhe não confessou, chega a.
amarrar-lhe as mãos atrás das costas até confessar tudo.
Daqui se originam questões importantes, chegando a haver o
repúdio e a venda mesmo da mulher, àlêm do crime que há a
DE ANGOLA 131
pagar se houve quem a tentasse. O crime consiste no prejuizo
da uianga e das peças de caça que o caçador perdeu por erro
da pontaria, ou das que deixou de ver, e de que havia indícios
nos caminhos em que transitou.
O ídolo é a mundele, figura tosca de madeira, que tem ao pes-
coço fiadas de missangas miúdas e que está dentro de umas pe-
quenas cubatas à entrada do mato e à beira de um rio ou riacho.
Veem-se algumas vezes dois destes ídolos, um de cada lado do
caminho que separa o rio.
Quem passa junto deles respeita-os, e aquele a quem mais
interessa o seu culto, se por casualidade tem de aí passar ou se
os vai procurar, leva consigo uma porção de fubá e uma porção,
de ginguba. Chegando ao pé do ídolo lança a fubá de modo a
formar uma cruz em que a cubata fica no centro, e sobre a fubá
põe a ginguba em montículos aqui e acolá.
O mundele do Muat-Ianvua está numa cubata grande e aos
cuidados de um guarda, havendo ali próximo três ou quatro
cubatas para aí residir o Muat-Ianvua.
Quando é chegada a época da queima dos matos, e o Muat-
Ianvua a anuncia em audiência cuinhi cuoxi uampata (queimar
as lenhas do mato), todos tratam de se preparar para a par-
tida, e o Muat-Ianvua nesse mesmo dia, depois da audiência, vai
para junto do ídolo, onde ninguém o vai perturbar, e só fala a
quem o manda chamar; mas a companheira que já o não deixa
até ao regresso da caçada, a Na Caianga, essa só fala com êle e
foge de ser vista por estranhos.
Considera-se log;o em malaia, isto é, não fala com pessoa
alguma senão com o Muat-Ianvua, e é tal o receio que se lhe
possa atribuir a mais pequena contrariedade, que prefere não
sair da residência cercada que se lhe destinou ao lado da que é
ocupada pelo Muat-Ianvua.
O Muat-Ianvua pela sua parte, durante todo esse tempo não
tem relações com outras mulheres, nem mesmo' com a sua muári,
e só recebe comida cosinhada pela Na Caianga, e a bebida que
ela lhe apresenta ; porque, para os indígenas é ponto de fé, e nisto
mais crentes são ainda os gentios, que os olhares de extranhos
sobre a sua comida e bebida podem transformar estas em veneno.
Assim se explica a razão por que se vêem alguns potentados, e
principalmente o Muat-Ianvua, abrigados da vista dos curiosos
quando comem ou bebem.
Costumávamos nós tomar as nossas refeições ao ar livre,
132 POPULAÇÕES INDÍGENAS
sempre que o tempo o permitia, porque o calor era insuportável
nas nossas barracas de lona, e isto em princípio causou bastante
impressão ao Muat-Ianvua, que muito particularmente foi pedir
ao nosso intérprete para nos prevenir de que comêssemos nas
barracas, pois o olhar dos curiosos sobre o que íamos comer nos
podia ser fatal, por que entre eles podia estar algum feiticeiro.
É só depois de estar o Muat-Ianvua alguns dias em oblações aos
ídolos que lhe merecem mais devoção, que volta à sua anganga,
e pelo toque do mondo faz anunciar a toda a corte o dia e hora
da partida para a excursão venatória. Como a ordem seguida
nas marchas é sempre a mesma, neste título fica compreendida
a que se segue para as jornadas, visitas, etc.
Lunda — Pescadores preparando as redes
Pouco se caça no tempo das chuvas, principalmente quando
os capins teem atingido a grande altura ; mas ainda assim há
caçadores felizes, que, por andarem sempre prevenidos com a
sua arma obteem alguma caça.
Há ainda quem use com vantagens das flechas e das maças
na caça ; porém apontam-se os que se teem distinguido com as
maças, pelo facto de serem curtas e ser necessário expôr-se o
caçador a lutar corpo a corpo com o animal, o que é deveras
perigoso, principalmente sendo animais ferozes.
É preciso haver muita certeza na pancada para o animal cair
logo, e poder o caçador tirar imediatamente partido dessa van-
tagem.
Com respeito às flechas, pode dizer-se que entre os povos
por mim visitados, pouco se usa hoje delas, a não ser nas arma-
t>E ANGOLA .133
dilhas; porém os Uandas teem ainda a flecha como a sua ida
(arma). A folha de ferro envenenada, uns dizem com um veneno
muito subtil vegetal, outros com peçonha de cobra.
Nos últimos anos os Quiocos deixaram de ir fazer incursões
aqueles povos, porque dizem eles que os Uandas colocavam entre
o capim pequenas pontas de ferro envenenadas que feriam os pés
dos expedicionários e de que resultava grande mortandade.
As flechas que os indígenas em geral usam nas armadilhas,
bem como a isca que colocam nas do peixe, são untadas com o
suco de certas plantas, que eles dizem venenosas para o animal,
mas cujo veneno se localiza na parte ofendida que eles reconhe-
cem pelas manchas e que deitam fora, comendo o restante sem
receio de que lhes faça mal».
Exercem a pesca por processos idênticos aos descritos para
os Bangalas.
Alem dos objectos de madeira por estes povos usados e já
indicados, fabricam igualmente a canoa (uatu) para a travessia
e navegação dos rios, empregando a mafumeira, que a machado
preparam, tirando-lhe a casca e escavando-a interiormente no
sentido do maior diâmetro, como já tivemos ocasião de indicar
para outras tribus.
Como os Bangalas entregam-se estes povos a trabalhos rudi-
mentares de cerâmica, sobre que nada mais temos a acrescentar
ao que sobre o assunto referimos ao tratar daquela tribu, a não
ser que são os Quiocos os que empregam os processos menos
primitivos da roda de moldar, igualmente usada pelos Bangalas.
Como tivemos ocasião já de dizer a grande maioria destes povos
usam tecidos por eles fabricados. Tecem-nos em um tear especial
em tudo semelhante ao que reproduzimos ao tratar dos N^golas.
O processo é muito simples. Sobre uma travessa colocada hori-
sontalmente ao alto e fixa, e sobre uma outra paralela inferior
e móvel, se dispõem os fios, uns ao lado dos outros, em toda a
largura que se pretende dar à fazenda, e a começar de baixo
para cima se vão dispondo outros fios transversais entre as duas
ordens de fio verticais, cruzando-se depois estes passando-os
entre elas uma régua de madeira com que batem duas ou três
pancadas sobre o cruzamento dos fios verticais com os transver-
sais e assim seguidamente até se tocar na travessa sempre fixa,
134 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Das fibras de plantas textis fazem esteiras, chapéus, cestos,
peneiras, bandejas, malas, sacos, bolsas, etc.
Neste mister são muito perfeitos, não tanto como os indígenas
ribeirinhos do Zaire, mas por certo depois daqueles os que na
província mais aptidões mostram para aquele mister.
Em trabalhos de metalurgia distinguem-se, não só entre as
tribus em estudo, como entre as restantes que habitam a pro-
víncia, os Quiocos.
Desde longa data que os Quiocos vêem precedidos da fama de
ferreiros exímios, fabricando as alfaias agrícolas tradicionais e
sobretudo toda a espécie de zagaia e ferros de lança, de varia-
díssimas formas e feitios, que se encontram espalhados e por eles
introduzidos em quási toda a parte leste do distrito de Benguela.
A profissão de ferreiro é sempre honrosa e os indivíduos que
a ela se entregam gosam sempre de prerogativas, em tudo seme-
lhantes aquelas, com que distinguimos os homens que entre nós
se evidenceiam pelo seu talento e saber.
Álêm dos misteres indicados, dedieam-se estes povos ao fabrico
de toda a espécie de cordas e atilhos que empregam em seu uso,
bem assim como as tribus de àquêm Cuango, onde existem sali-
nas, se entregam à sua exploração tradicional, levando o sal
misturado com terra, para o comércio da permuta com os povos
àlêm Cuango onde êle não existe e é considerado um produto de
grande estimação, atingindo preços elevados.
Como é de supor as tribus da Lunda ocupando vastíssimas
regiões da província, falam vários dialectos, um pelo menos, por
cada tribu.
Estes dialectos, tendo como origem comum a língua falada na
Mussumba do estado de Muat-Ianvua, diferenciam-se pelas mo-
dificações que a cada um dos povos que as falam trouxe o con-
tacto com as tribus com quem mais tem privado. Isso não é
difícil de constatar com os Holos e Bondos, cujo dialecto está
influenciado pelo Kicongo, os Massongos pelo dialecto de Malange,
e os Quiocos pelo Umbundu.
O estudo dos dialectos dos povos da Lunda, e sobretudo o
da tribu Lunda, que pelo seu isolamento, mais se deve aproximar
da língua falada no estado Muat-Ianvua, em que os prefixos das
DE ANGOLA
135
classes são idênticos aos dos dialectos do Kimbundu, mostra-nos,
mesmo que superficialmente feito com os nossos pouco profundos
conhecimentos da linguística destes povos, que podemos enquadrar
os dialectos da Lunda como pertencendo ao Kimbundu, ou melhor
que tanto os dialectos falados pelas tribus da Lunda, como aque-
les que são falados pelos Ngolas, Dembos, Gingas, Kissamas e
Libolos, são dialectos da língua falada no Muat-Ianvua que seria
o verdadeiro Kimbundu.
É esta a nossa opinião, sobretudo fundada na forma como se
deram as migrações e a influência que elas tiveram nas regiões
que actualmente constituem os distritos de Loanda e Cuanza.
Lundas — Fabrico de armadilhas de pesca
Para este interessante assunto chamamos a atenção dos que
mais particularmente se teem entregado a estudos linguísticos,
crentes que o estudo detalhado e profundo dos diversos dialectos
daqueles povos nos dará razão.
Como todos os indígenas da raça negra são dados à musica,
que é sempre mais ou menos melodiosa.
O canto é em geral composto de duas partes, a cantante se-
guida de um ou mais coros. A parte cantante é às vezes feita
por qualquer dos instrumentos de música por eles usados.
Entre estes instrumentos de música conta-se o Kissangi, cons-
tituído por uma pequena caixa de madeira a que muitos adi-
136 POPULAÇÕES INDÍGENAS
cionam uma pequena cabaça para aumentar a resonância, sobre
a qual está fixo um pequeno cavalete de ferro, disposto trans-
versalmente, e que serve de apoio a lâminas do mesmo metal e
de diversos tamanhos que constituem o teclado do instrumento.
Toca-se com os dedos polegares, passando todos os outros
dedos por baixo da caixa.
São igualmente de uso vulgar as conhecidas marimbas a que
já tivemos ocasião de nos referirmos tratando de outras tríbus.
No número das marimbas incluem um instrumento de ferro
em forma de ferradura e em que os ramos desta são dois vasos
estreitos e compridos, uma espécie de chucalhos. Suspendem o
instrumento por fios de fibra na mão esquerda, tocando-o com
a mão direita por percussão com uma varinha de ferro, que
percorrendo as paredes dos vasos de alto a baixo e ora num ora
noutro, produz todas as notas que encontram no kissanji e nas
marimbas.
Fazem em geral muito uso deste instrumento os Quiocos e
Lundas.
Usam uma espécie de flautim, tocado por uma abertura em
viez, aberta próximo de um lado, e com cinco orifícios, situados
aos lados e a meio, conforme faz mais geito para tapar com os
dedos de ambas as mãos.
Um outro instrumento de sopro é constituído por um cilindro
de madeira, que se pode furar com facilidade de um extremo
até próximo do outro, que fica tapado. A pequena distância do
fundo fura-se também de lado a lado, e os buracos que se obteem
no sentido oposto tapam-se alternadamente com o polegar e index
da mão direita, para produzir outros sons.
Teem uma grande variedade de instrumentos de pancadaria,
alguns adoptados como insígnias de estado, como era de uso no
Estado de Muat-Ianvua. Não obstante variarem no tamanho e
forma, são em geral estes instrumentos feitos de uma só peça,
um tronco de uma árvore resistente e leve, que excava interior-
mente e a que se adapta em uma das extremidades ou nas duas
uma pele.
Àlêm do canto, a dança é uma das diversões que mais en-
tretém estes povos.
A dança é monótona e quási sempre de roda, estando ao
centro dela os tocadores; consiste em movimentos cadenciados
mais ou menos rápidos do corpo, andando-se sempre de roda e
mudando-se de posição segundo a dança.
DÈ ANGOLA 137
No que diz respeito a conhecimentos scientíficos e faculdades
intelectuais destes povos, para aqui passamos a transcrever os
seguintes trechos de H. de Carvalho :
«Que o negro se não aperfeiçoa, que estacionou, ou que não
pode chegar a nivelar-se com o branco, são teorias que teem
encontrado prosélitos. Mas os seus artefactos, os seus usos e
costumes revelam já a quem atente devidamente nestes povos,
esquecendo o progresso da raça branca, ou que tenha em vista
as transições porque estes teem passado desde os primitivos
tempos, que há na raça de que me ocupo um aperfeiçoamento
devido às modificações que teem experimentado com o tempo e
pelo contacto que vão tendo com os povos civilizados. E ainda
mais se compararmos esses artefactos, usos e costumes entre
tribus, vizinhas mesmo, e virmos que se dão diferenças, aper-
feiçoamentos relativos devido à melhor compreensão das suas
necessidades.
Encaminhe-se essa compreensão e desenvolver-se há.
O sistema de numeração, por exemplo, que se encontra na
região de que trato é uniforme, e conta-se lá até mil. Talvez
que fora dos limites desta região para norte e sul se não tenha
conhecido sistema que vá tão longe. Se porém não se encontram
ainda os vocábulos correspondentes, quem pode afiançar que não
seja por falta de investigações?
Entre as tribus que conheço de perto, dá-se o seguinte caso:
Uma peça de fazenda é considerada equivalente a mil e duzentos
bagos de missanga grossa Maria-segunda, e a dois mil da fina.
Os massos vão dispostos das fábricas europeias aos fios,
contendo cada um de quarenta e seis a sessenta bagos, e os ne-
gociantes que os trazem para estas tribus, já os dispõem no ca-
minho como elas os aceitam para negócios, em fios de seis ou
dez bagos conforme a missanga é grossa ou fina, e reúnem cem
destes fios, unidade equivalente a uma divunga (um pano) ou
quatro bandos de fazenda (3m,52 a 4m,80).
Se teem de pagar vinte panos com aquela missanga entregam
vinte destes massetes — doze mil bagos da grossa ou vinte mil
da fina — e tudo é verificado pelo negro com a maior minuciosi-
dade, havendo às vezes reclamações por falta do número.
10
138 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os negociantes, sendo também negros africanos de outras
proveniências, é de crer que tendo o vocábulo para dez dezenas,
possam contar àlêm deste número.
Há quem afiance que entre certos povos africanos não exis-
tem vocábulos que designem as notas musicais, e que os que
designam as cores se limitam à indicação de escuro e claro ; mas
eu julgo que ainda se não fizeram as indispensáveis investigações.
As teclas das marimbas tanto de cabaças como de ferrinhos, de
que falei em outro capítulo, figurei-as com os seus nomes e por
aí se vê que destinguem as notas e as nomeiam.
Tratando-se das cores de missangas eles dizem claro como ceu,
escura como a água do Luembe, teem portanto a ideia do azul
claro e do azuloio; e da mesma sorte do verde, quando dizem:
claro como chiquengaele (folha da abóbora) e escuro como clitanda
(folha de mandioca) ; do amarelo : claro como mutenganhe abó-
bora), escuro como chissu?npe (cabaça para água), etc, e para o
vermelho já teem a palavra sunza.
Para o desenho encontramos nestes povos as mesmas aptidões,
mas em graus relativos de adeantamento de uns para outros, o
que se demonstra pelos seus artefactos, já riscando, já gravando
com estiletes ou pontas de ferro, já dispondo os fios a que dão
variadas cores nos seus tecidos, ,já distribuindo as missangas
segundo as cores e quantidades de que dispõem em objectos de
ornamentação, etc.
E é notável que fazem esses variados debuxos segundo o que
imaginaram, e sem ter um desenho à vista, havendo muita cer-
teza no que respeita à simetria.
Os desenhos na verdade são ainda muito rudimentares, por
que eles só tratam de imitar as formas do que lhes é dado ver,
e subordinam-se aos traços que à sua imaginação ocorrem.
É ainda na natureza que buscam os modelos do que lhes é
mais indispensável aos usos da vida, o que se nota mais e muito
principalmente nos objectos que fazem de barro para o que lhes
servem de modelo os fundos de cabaças de maiores ou menores
dimensões.
Não diremos que teem conhecimentos ou mesmo noções de
astronomia, porem é certo que distinguem alguns astros por
nomes especiais e deduzem consequências, pode mesmo dizer-se
leis, pelo exame do aspecto com que se lhes apresentam e da sua
situação relativa segundo as épocas em que os podem ver.
Assim no Luambata dizem em março os Lundas : Só quando
DE ANGOLA 139
o caçador no princípio da noite tiver passado o rio Luiza é que
se devem queimar os matos. Queriam dizer que terminada a
estação das chuvas.
Das três estrelas que constituem o grupo denominado Orion,
a mais setentrional, que segundo eles vai na descida, fugindo, é
nama (caça), a que lhe fica atraz, mas um pouco para lado,
cábua (cão) e a que a segue muata chibinda (o senhor caçador).
Ás estrelas mais distantes de mínima grandeza e muito unidas,
que se lhes apresentam à vista como poeira luminosa, chamam
tutúa missele (rapazes e raparigas que pisam os grãos de milho).
Uma estrela para eles é catumbo, e o seu plural tutumbo ; porém
para os planetas tem vocábulo próprio a cada um, de significação
especial, e os que pude apurar são : bamguebamgue, é Marte, e
gostam dele porque lhes anuncia que se aproxima abundância de
peixe e de caça, quando lhes aparece logo no começo da noite;
muíza muianda ou muíza enchia é Vénus, que sempre caminha
para o norte ou aparece de madrugada, anda sempre de cima
para baixo vendo a colheita das lavras, e ausenta-se para se
fazerem novas plantações; catumbo cá lucano é Saturno, estrela
com anel.
Á Estrela errante chamam chissongo, ao Cruzeiro do sul,
mua?nbo mu tutumbo; ao Escorpião, nhaca uã tutumbo, (cobra
de estrelas) ; à via Láctea, mucombele diá anzâmbi (caminho de
Deus) ; a quatro estrelas dispostas em quadro, embora irregular,
chipanga chia tutumbo (cerco de estrelas) ; se a lua está circun-
dada de um halo angonde uá tetame (a lua está na audiência);
e se um planeta está dentro do halo, esse é a muàri, que veiu
nesse dia acompanhar o Muat-Ianvua, designação que nesse caso
tem a lua.
Sempre que aparece a lua nova, visível antes do pôr do sol
ou logo em seguida ao seu ocaso, o primeiro que a vê dá logo
sinal nos instrumentos de pancada, e todos começam gritando e
tocando nos seus instrumentos para que o sol não enfeitice aquela
lua. Se a sua face iluminada se lhes apresenta pouco levantada,
é sinal para eles de que traz pouca chuva, o que umas vezes lhes
agrada outras não; se ela se apresenta deitada de todo, traz
muita chuva, mas pode vir acompanhada de frequentes descargas
eléctricas, o que também segundo a época, lhes pode ser vanta-
joso ou não.
Dividem o ano em duas épocas distintas : — a das chuvas, de
setembro a abril, e a das pescas de abril a setembro, ua lunvala
140 POPULAÇÕES INDÍGENAS
muva e chipo muva; porém a primeira subdivide-se de setembro
a janeiro musange uá anvula, de janeiro a fevereiro quianga uá
chiangala, de fevereiro a abril anvula asuégi.
As luas teem diferentes denominações, por exemplo : de boas
para lavouras, ou más, de infelicidade, de abundância de caça,
da qualidade de sementeira a fazer, etc.
É certo para eles, que havendo grande movimento de estrelas
cadentes, novidade má está para vir, como guerras, morte de
pessoa de importância ou fome.
í
Massongo — Aparelhos de pesca
A morte do Governador de Mataba em seguida ã morte do
Muat-Ianvua Muriba, em guerra contra os Quiocos, fora predita
por alguns em uma noite em que era grande o movimento dessas
estrelas.
Também notámos que fazem distinção entre amuletos e
ídolos. O ídolo é um ente imaginário e fazendo tudo que lhes
lembra e que podem' para contentá-lo, não conhecem o que mais
possa agradar-lhe para satisfação dos seus desejos; enquanto que
o amuleto representa para eles uma coisa real, e usam daqueles
que reconhecem de efeito para determinados fins, isto é, com a
virtude de afastar malefícios, doenças, acidentes, etc, que re-
ceiam. Admitem a possibilidade de um ídolo feiticeiro, porém
DE ANGOLA 141
negam a sua existência, e se alguém o quisesse representar é
porque era o próprio, ou tinha contacto com êle devendo logo
ser morto.
Na sua maneira de falar também se revela inteligência.
Os seus argumentos baseiam-se sempre em imagens com que
estabelecem as suas comparações para tirarem as suas conclusões,
que na realidade, são verdadeiros inigmas.
Para me justificarem, por exemplo, o motivo por que a gente
da Lunda fora esconder-se nos matos e no capim, abandonando
as casas e terras, quando vinham os Quiocos, e não tratava de
se defender, diziam : ancala batame, mema masuta (o caranguejo
esconde-se, a água passa) : o que eu interpretei : — contra a força
não. há resistência.
Queixando-me uma ocasião ao Muat-Ianvua, de que a sua
gente era muito impertinente, pois todos os dias me cercava a
barraca, e me tapava a porta, não me deixando trabalhar, ti-
rando-me o ar e a luz, respondeu-me: — murundanâmi, eiêmuana
mueinhe mulambúdi, chicumbo chia cutunguila muanjila ambanda
cussota acúmi — o meu amigo é a visita do Mulambúdi (passarinho
que canta muito) que faz a sua residência no caminho, porque
quer dez mulheres.
Queria êle dizer que dependendo de mim a saída da fazenda
e outros artigos de comércio para o mercado, todos me rodeavam.
Os artigos do comércio neste caso eram o canto do tal pas-
sarinho, e por conseguinte eu devia estar muito satisfeito, como
êle, quando era cercado pelas fêmeas, a quem êle atraía com os
seus gorgeios.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — A inicia-
ção. — O casamento. — A família. — A
morte. — A religião, ritos, culto, divin-
dades e sacerdócio.
Logo nos primeiros meses de gravidez manifestam-se os cui-
dados dos pais, principalmente pelas consultas aos adivinhos, e
pelos remédios administrados, de forma a encaminhar as coisas
para o bom êxito do parto.
Aparecendo os primeiros sintomas do parto, vêem para junto
da parturiente todas as mulheres, parentas e amigas que já pas-
saram por esse transe afim de assistir e indicar o que se deve
142 POPULAÇÕES INDÍGENAS
fazer. A parturiente coloca-se de bruços, segurando-se com ambas
as mãos a uma travessa de madeira, que para esse fim se coloca
atravessada de uma a outra parede da cubata, fazendo todos os
esforços para a creança nascer.
Fora da cubata, o pai com os adivinhos procedem às cerimó-
nias indispensáveis para com os respectivos feitiços, pedindó-lhes
que a creança nasça sem os braços e pernas partidas, com bons
olhos, que a mãe não fique aleijada, etc. Nestas invocações
fazem um barulho ensurdecedor que vai aumentando e que se
torna verdadeiramente infernal no momento crítico do parto,
principalmente quando este é difícil, porque então as mulheres,
abandonando a parturiente vêem para fora da cubata gesticular
e gritar, como que afastando o influxo do mau feiticeiro, que
está a prejudicar o parto.
Nascida a creança, dentro da cubata dão o sinal com palmas
para os de fora, que manisíestam o seu regosijo com assobios,
tiros e saltos ; a mãe repousa e o pai espera sentado à porta da
cubata que comecem a chegar os presentes dos parentes e amigos.
Logo que a mãe lhe dá de mamar recebe a creança o pri-
meiro nome, é o nome do leite.
Ao contrário do que sucede com outras tribus, não são os
pais que dão o nome aos filhos, mas sim estes que reúnem ao seu
nome do leite o da mãe.
As creanças mamam até muito tarde, dois e três anos, não
passando isto de uma guloseima, por quanto é rara a mãe que
ao fim de um mês não dá ao recemnascido caldos grossos de
amido da mandioca, ou não o faz chupar bolos feitos da massa
ou papas da mandioca.
Os filhos até aos seis anos estão entregues ao cuidado das
mães, desta idade em deante os rapazes começam a acompanhar
os pais, continuando as raparigas mais ou meuos ao cuidado das
mães.
Uns e outros são sujeitos a cerimónias e práticas, os rapazes
dos oito para nove anos e as raparigas pouco antes da puber-
dade.
Para os rapazes é a circuncisão, a que denominam cata mu-
gungue e para as raparigas, a cata quiuila, e que consiste na
ablação dos grandes lábios da vagina. Estas operações são feitas
DE ANGOLA 143
respectivamente pelo ganga especialista na circuncisão e por uma
mulher idosa para as raparigas, que em cubatas especiais operam
e conservam as pacientes até completa cicatrização, não podendo
durante o período de tempo que ali se conservam ter relações
senão com os respectivos operadores.
# #
O casamento é a maior ambição dos rapazes, ambição filha
não só de constituir família que os auxilie nos seus misteres,
como igualmente por esse facto lhes dar uma outra ostentação/
Para procurarem mulher ou se servem dos chefes gentílicos
ou dos chefes de família ou ainda, se bem que raramente, -pro-
curam sequestrar a sua futura companheira.
«O pretendente — escreve H. de Carvalho — tem de dar
sempre presentes de alimentos, de fazendas e outros objectos à
noiva, aos pais e aos potentados, que de algum modo hajam in-
tervido no seu enlace; e fazem-se as festas mais ou menos rui-
dosas nos primeiros dias de bodas, havendo sempre danças que
se prolongam durante a noite.
Se os pretendentes são indivíduos que teem posses, àlêm de
vestirem a noiva e pais, ainda vestem os parentes mais chegados e
mesmo os amigos, e nunca esquecem de contemplar os potentados.
Nos povos dentro da nossa província, são importantes essas
dádivas, porque fazem parte delas cabeças de gado e aguardente
em quantidade.
Entre os Quiocos, é da praxe nada se dar aos pais e parentes,
pois isso para eles seria escravisar a noiva o que de modo algum
eles querem que alguém possa pensar sequer.
No Lubuco também há a máxima liberdade no que respeita
ao casamento, e as festas só se realizam no dia em que a rapa-
riga é concedida ao rapaz que a pretende, sendo ela previamente
ouvida, e nunca obrigada a aceitá-lo.
Os presentes que fazem os pretendentes Lundas e de outras
tribus, até na província de Angola, teem alguns considerado
como compra da noiva; mas não devem assim ser tomados.
Faz-se venda só de mulher que pertence à classe inferior, ou
é serva na família, ou de mulher que o seu companheiro repu-
diou, e que passe aquela classe; mas essas vendas só se fazem a
indivíduos estranhos à povoação.
144 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Geralmente nas comitivas de comércio que vão à Lunda, vão
sempre indivíduos com o fito de encontrarem entre as mulheres
destinadas a passar como moeda nas transações, alguma que lhes
agrade para companheira, não obstante a terem já, e às vezes
mais de uma nas suas terras. É uma companheira que só tomam
para a viagem, mas resulta tomarem-lhe afeição e terem filhos
dela. Essa mulher, portando-se bem, passa pelo seu companheiro
a ser considerada, e se na terra êle já tiver uma, sempre que ela
saia, é aquela que o acompanha, e se a não tiver, passa ela a ser
senhora da casa ficando ela a governá-la na sua ausência.
As mulheres que se compram ao agrado do pretendente,
custam-lhe caras, regulando entre vinte e trinta peças, valor
superior a 20$000.
Os potentados Quiocos, ultimamente, fixaram como praxe,
para viverem em boa harmonia com os vizinhos Lundas exigirem-
lhes como tributo uma parenta para mulher deles. Os potentados
Lundas, que se teem prestado a tal concessão como por exemplo
o Caungula de Mataba com Muiocoto, Quimbundo com Quissengue,
e Muansansa com Quiniama teem vivido em boas relações.
Essas mulheres são muito estimadas pelos Quiocos e se não
são as suas primeiras mulheres teem consideração como estas.
Os potentados Quiocos, quando em resultado das incursões ou
mesmo de guerras com os Lundas recebem nas presas muitas
mulheres, reservam duas ou três para suas casas, e distribuem
o resto pelos rapazes da povoação, comtemplando em primeiro
logar os que não tenham nenhuma para companheira, sendo
também muito estimadas. Até agora os Quiocos entre o Cuango
e Cassai compram mas não vendem gente, o que já não sucede
com os de além do Cassai, que vão vendê-la ao sul.
O Quioco é muito cioso da sua companheira, e desgraçada
daquela que o atraiçoar. Desaparece não se sabendo como,
atribuindo-se a sua ausência a obra de feitiço.
As mulheres Lundas, que por vontade ou obrigadas se vão
ligar aos Quiocos, são muito bem tratadas por estes, e passado
pouco tempo, se voltam à tribu a que pertenceram, já se distin-
guem das suas companheiras, não só pela grande quantidade de
missangas que trazem sobre o peito, pelos penteados e pelo trajo,
mas ainda pela nutrição, hábitos que adquiriram, gestos e lin-
guagem. E tal é a superioridade que reconhecem ter adquirido,
que já falam com certo desprêso com aquelas que se destacam
DE ANGOLA
145
delas mais pelos seus modos humildes, gestos acanhados e formas
enfezadas!
Existe a poligamia que é comum aos homens de melhor
posição, mas fazem grande distinção da primeira mulher e alguns
da segunda.
Alguns homens destes povos teem raparigas, principalmente
se o local é concorrido por ca-
ravanas, para negócios pouco
lícitos, incitando-as a provocar
relações sexuais com os estran-
geiros, com o fim de apanhar
as dádivas que elas possam
colher.
«As raparigas vêem ao en-
contro dos negociantes, e mesmo
carregadores de uma expedição,
trazem-lhes fubá, carne ou
peixe, galinhas, hortaliças,
emfim todos os alimentos que
podem obter. Não lhes aceitam
pagamentos, dizem que aquilo
é por amizade; então eles admi-
tem-nas nas suas cubatas como
freguezas, conversam com elas,
dão-lhes tabaco para fumarem
e começam a fazer-lhes os seus
presentes de missanga, e daí
se originam relações amorosas
que são admitidas por parte
dos potentados e dos paren-
tes.
Se o acampamento é por
uma noite, elas exigem logo ao sair da cubata do indivíduo
onde dormiram, a retribuição da amizade; mas se é por mais
dias levam de comer ao seu freguês e este vai-lhes dando presen-
tes, com que elas lucram sempre, e por isso as relações amorosas
não se apagam, sempre na esperança de uma bôa lembrança de
despedida.
Tudo o que recebem apresentam aos seus potentados, ou
chefes de família, e estes tiram uma parte para si.
Com os Bangalas e Quiocos já isto se não dá. Para eles seria
Limda — Como se fazem transportar
as pessoas de maior categoria
146 POPULAÇÕES INDÍGENAS
um crime que praticaria qualquer das suas raparigas, se tal fizesse,
e o homem teria de pagar uma grande multa.
No Xinje usa-se assim, mas só com uma certa ordem de
raparigas, já para esse fim destinadas.
Estas raparigas, que andam para assim dizer ao ganho, são
aquelas a que os seus senhores chamam mucau, mas que são
consideradas tanto como as mais que vivem nas suas residências,
com respeito a tratamento. São só escravas para o efeito de
vendas».
«Mas se uma rapariga, sem consentimento do potentado a que
pertence, teve relações com um extranho, este tem de pagar o
crime (upcrnda), e ela muitas vezes morre à paulada, ou a golpes
de ferro, ou não mais se sabe o fim que teve.
O Suana Calenga Ambinji, num caso desta ordem exigiu um
grande pagamento ao rapaz e a ela; depois de a mandar varar
amarrada a uma árvore, fez-lhe cortar uma orelha e marcar com
um ferro acima dos peitos e das costas, obrigando-a depois,
enquanto vivesse, a levar todos os dias lenha e água para cada
uma das suas mulheres.
Queria que estas vissem constantemente nela o exemplo do
que lhes sucederia, se fossem culpadas de crime análogo.
Um dia, indicando-me a desgraçada que já estava reduzida a
uma múmia e que mal se podia ter em pé, contou-me o castigo
que lhe dera, terminando por dizer : — que ela fora uma bo-
nita mulher e que a estimara muito.
— Tenha então dó dela lhe retorqui, e deixe-a terminar os
seus dias descançados aí numa cubata; ela já não pode andar
todo o dia no mato e no rio, a transportar lenha e água.
— Se eu seguisse o que o meu amigo aconselha, replicou
êle, estava perdido; as outras raparigas conheciam-me fraco,
supunham que eu me arrependera e faziam o mesmo.
— Não pode ser, o potentado tem de mostrar que é forte.
— Eu estive muitos anos na mussumba, continuou êle por
causa do malvado Xanama, que entendeu vingar-se de meu tio
em mim e nos meus irmãos, que lá morreram, vi como procedia
com as suas raparigas, que eram apanhadas na upanda; ou as
matava logo com o seu cúmplice ou as vendia, e eu dizia comigo,
não é isso que eu faria no teu logar. Se um dia chegar a tomar
posse do estado do meu tio, e que tal me suceda, o castigo que
hei de dar há de servir de exemplo a todas as raparigas. Deu-se
DE ANGOLA 147
infelizmente o caso com uma mulher que sabia ter a minha
estima ; tanto pior, há de morrer marcada no serviço das outras.
Era inabalável a resolução deste homem, e seria baldado o
tempo em interceder por ela».
Existe o divorcio, tendo como causas determinantes, entre
outras: a incompatibilidade de génios dos casados ou das famí-
lias; incapacidade procreativa do marido; esterilidade da mulher;
etc. O adultério nem sempre constitue motivo para o divórcio.
A sucessão defere-se pelo ramo colateral sendo herdeiros os
sobrinhos filhos das irmãs ou os irmãos uterinos.
Daqui os sobrinhos dependerem e deverem obediência aos tios
maternos, que substituem o poder paternal logo que chegam à
idade da juventude.
A sucessão dos cargos do estado nem sempre é a colateral, e
sim de pais para filhos, mas este facto explica-se porque se dá
quando o chefe é do sexo feminino, o que teve logar ao fundar-se
o estado Muat-Ianvua com Lueji que tomou para seu marido
Ilunga e de cuja união nasceu o primeiro Muat-Ianvua.
Aqui como em casos semelhantes que se deram, por exemplo
na tribu Xinje, a sucessão na governação do estado passou de
pais para filhos.
Quando alguém adoece a família trata logo de mandar adivi-
nhar a causa da doença. O adivinho dá a sua opinião e a seguir
começa o tratamento pelos especialistas ou curandeiros que se
consultam consoante a classificação da doença feita pelo adivinho.
Além da parte de magia e sugestão empregada pelos curan-
deiros, o tratamento propriamente dito é constituido por infusões
e aplicações de folhas, cascas, raízes de várias plantas.
Quando a doença se supõe devida a feitiço, o enfermo des-
confiado mais ou menos de onde proceda o feitiço, comunica-a,
como é natural, a qualquer pessoa, e esta divulga-o, até chegar
ao conhecimento dos adivinhos, que para bem exercerem o seu
mister, teem de andar ao facto de todas as novidades afim de
tirarem todo o proveito quando lhes chegar a consulta.
148 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Assim o adivinho quando o procuram, está já sabedor do que
se passa, e a quem se imputa com mais ou menos fundamento o
mal de quem o consulta.
Depois do adivinho dizer em que consiste o feitiço, onde foi
apanhado, quem é o feiticeiro e quem é o curandeiro que deve
ser chamado, vem este como remédio que tem de ser aplicado,
em geral infusões para o doente beber e expelir o feitiço.
Se o receituário não produz o efeito desejado o curandeiro
declara que o adivinho não presta e então ou faz êle o seu papel
e apresenta outro curandeiro, ou consulta-se outro adivinho que
por seu turno indica curandeiro. E assim se continua até acertar
ou o doente morrer ou por se convencer que não está doente e
que nunca foi enfeitiçado, razão porque os adivinhos não podiam
curá-lo !
Sobrevindo a morte, a família, como na doença procura pelos
adivinhos saber a sua causa, ou para aplacar a ira dos feitiços
que lhe deram causa, ou para descobrir o feiticeiro afim de ser
julgado e pagar com a vida o seu crime.
Logo que morreu alguém, os parentes e amigos anunciam-o à
vizinhança e começam as cerimónias do nojo, que se prolongam
conforme as posses dos parentes do falecido, e que constam de
carpidações, danças e sobretudo comes e bebes.
Enquanto o cadáver não tiver sepultura, não se cozinha na
cubata do falecido e toda a família ali se conserva a chorar o
defunto. Os parentes mais próximos rapam o cabelo todo ou em
parte, substituem os seus panos e todos os seus adornos por
pequenos pedaços de tecidos de fibras grossas, cobrindo com
eles somente as partes genitais.
É variável a forma de dar sepultura aos cadáveres.
Entre os Quiocos, quando se trata de chefe gentílico, é o
cadáver depositado na cubata onde vivia, que se tranca, acumu-
lando terra em torno dela de modo a cobri-la e entremeando essa
terra com troncos e raizes cercando esta espécie de túmulo com
uma palissada feita de troncos; a povoação muda-se para local
distante, mas, de onde se veja a elevação que fizeram.
Tratando-se de pessoa que não seja chefe, os Quiocos cos-
tumam sepultá-la em logar afastado das povoações, abrindo uma
cova pequena e enterrando o cadáver na posição de sentado.
Os grandes pertencentes à tribu Xinje, Holo e Bondos, quando
morrem são depositados em leitos de pau feitos dentro das suas
cubatas e ali ficam, vigiados por uma rapariga que vai reco-
BE ANGOLA 149
lhenclo os vermes e pedaços de carne que caem da ossada, reu-
nindo por último todos os ossos que são lançados ao rio ou são
sepultados.
Estas cubatas são guardadas por vigias, encarregadas de
afastar os cães ou outros animais.
De uma maneira geral as sepulturas são fora das povoações
e junto aos caminhos, onde não á difícil reconhecê-las por eleva-
ções de terra, algumas cobertas de troncos e arbustos.
# *
Crêem e acreditam em um poder sobrehumano a que chamam
nzambi.
Os pais ensinam os filhos a ter respeito pelo nzambi, que vê
e ouve, sem que o possam ver.
Assim estão pois convencidos da existência de um poder
invisível, poder que não lhes é dado igualar, curvando-se todos
diante dos seus desígnios, não se lhes ouvindo uma imprecação
contra êle, ainda mesmo quando sofram grandes contrariedades,
ou quando mais exasperados pela maior desgraça que lhes possa
acontecer.
Crêem que as almas dos seus antepassados vagueam pelo
espaço, e quando não estão satisfeitas os prejudicam.
Daí o levarem uma vida atribulada, cheia de superstições,
atribuindo todos os seus males a perseguições e malquerenças e
a série de feitiços que arranjam como que materializando os
espíritos maus, a que oferecem sacrifícios para os trazerem satis-
feitos ou para lhes aplacar as iras.
Timoratos e ignorantes, tornou-se para eles a superstição um
sentimento religioso, e as causas de todos os seus males, ainda
os mais insignificantes, atribuem-nos todos à má vontade dos
seus feitiços ou aos malefícios dos feiticeiros.
Uma má pontaria, o cair-lhe das mãos qualquer objecto e que-
brar-se, uma qualquer contariedade, etc, tem por causa o feitiço.
Donde o poderem considerar-se como sacerdotes da sua reli-
gião os adivinhos, os curandeiros e os feiticeiros, quando lhes
não são atribuídas malquerenças.
Estas entidades teem grande prestígio entre os povos e fazem
tudo que lhes apetece, porque todos os receiam, a começar pelos
chefes.
150 POPULAÇÕES INDÍGENAS
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Levam estes povos uma vida mais ou menos sedentária, não
obstante as pequenas migrações principalmente por parte dos
Quiocos, que não podem ser levados à conta de vida nómada,
mas sim levados com o fim de procurarem melhores terras para
se fixarem ou do elefante, de cuja caça lhes advinha para o
comércio de permuta.
Actualmente, a não serem os Quiocos, que no distrito de
Benguela, continuam avançando e assimilando povos de outras
tribus, as migrações não se dão e as tribus fixaram-se nos ter-
renos que ocupam.
A base da organização social destes povos consiste no res-
peito e submissão tradicional de uns para com os outros pela
ordem hierárquica na família e na tribu.
Em sociedades os indivíduos podem considerar se agrupados
em três classes: a dos nobres, a dos homens livres e a dos es-
cravos.
À primeira pertencem os chefes e potentados. Os seus conse-
lheiros e dignatários; à segunda pertencem todos aqueles que
não sendo nobres podem dispor livremente das suas pessoas; à
terceira os prisioneiros feitos em razias, os que por dívidas ou
outras questões, por si ou por qualquer membro da sua família,
as saldam com a servidão. Mas a servidão está longe, ainda
assim, de se apresentar com os horrores da escravidão, como nós
a compreendemos, e se não fosse o comércio, decerto que essa
condição servil seria tomada na verdadeira acepção da palavra.
Só depois do comércio extranho ter entrado em África, é que
aparece a venda de indivíduos, e foi ainda do poder do mais
forte que derivou o direito do senhor vender a existência dos
que por nascimento, por conquista ou como pagamento de perda
de demanda, nunca a consideraram como sua própria.
DE ANGOLA 151
*
A organização política destes povos, foi durante muito tempo
a de grandes estados, governados despótica e autocratamente
por um potentado que dispunha a seu bel-prazer dos seus subor-
dinados e haveres, e a que estavam sujeitos sub-estados.
Era esta a organização política do estado de Muat-Ianvua e
daquele a que deu origem pelas dissenções que se deram na sua
corte.
Actualmente este estado de coisas não persiste, e os povos
destas tribus estão agrupados em pequenos estados mais ou menos
independentes.
A fragmentação em pequenos estados nota-se sobre tudo entre
os Quiocos, em cada povoação é independente de qualquer auto-
ridade ou soberania de outro qualquer, tendo direitos de soba o
indivíduo a quem ela pertença, pelo facto de primeiro haver aí
construído e por acordo entre si.
Assim como caíram os grandes potentados, com eles desapare-
ceram as scenas humilhantes e degradantes dos seus subordinados
e as suas numerosas cortes. No entanto, ainda existem os con-
selhos que assistem aos sobas, constituídos pelos mais velhos, de
maior hierarquia e de mais respeitabilidade e consideração,
conselho em que por assim dizer reside o poder, visto que, em
geral, raro é o soba que opõe o seu veto à sua opinião.
Os chefes dão audiências a que os Lundas chamam tetame,
anunciadas de véspera por meio do bombo especial (monda), e
que, em geral, são para a resolução de negócios de estado, para
a recepção de visitas ou para despacharem ou receberem porta-
dores.
Estas audiências revestiam no estado de Muat Ianvua um
cerimonial muito complicado, que actualmente só em parte os
Lundas seguem.
Tratando-se de resolução importante e como à audiência pode
assistir toda a gente, é em geral, o assunto estudado previamente
pelo chefe com os seus conselheiros em reunião preparatória.
O primeiro a chegar é o potentado que, montado em um
escravo, vem acompanhado dos seus dignatários e toma logar
sentado na sua cadeira ou banco no topo do local onde se faz a
audiência.
152 POPULAÇÕES INDÍGENAS
No estado de Muat-Ianvua antes de se tratar do assunto para
que foi convocado o tetame, o Muat-Ianvua, enquanto se iam
reunindo os indivíduos que a ela tinham obrigação de assistir,
entretinha o tempo narrando histórias sobre qualquer pretexto,
generalizando-se a conversa entre todos.
«Xa Madiamba, escreve H. de Carvalho, era para isso fértil em
expedientes e tinha fama desde que fora Suana Mulopo de seu
tio o Muat-Ianvua Muteba.
Entre eles era considerado bom orador, de uma grande remi-
niscência e sublime nas comparações.
Não era homem que encetasse logo o assunto de que queria
tratar: principiava por figurar o que se deu ou podia dar-se
entre indivíduos de génios, caracteres e forças diferentes na
situação que mais lhe convinha, numa caçada, numa guerra, em
questões domésticas, nas de mulheres, etc, e de dedução em
dedução, chegava ao ponto que lhe convinha, para então apre-
sentar o assunto que lhe interessava.
Procurava ir dispondo o auditório a seu favor, ainda nos
negócios que lhe podiam ser desfavoráveis, ou em que podia ter
dele oposição, e quando se conhecia senhor do auditório, já
convencido de que com êle podia contar, apresentava-lhe então
a questão, e se dependia de votação era certo tê-la unanime.
Num dos dias de jornada, a muári deu parte de estar doente
e não lhe ser possível andar, e êle fez anunciar que não se podia
seguir viagem naquele dia.
Soube que os representantes dos fidalgos da corte, que vieram
por mandado daqueles ao seu encontro para o acompanharem
para a mussumba, murmuravam contra o impecilho da sua com-
panheira, e que depois dele tomar posse do estado não consen-
tiriam que continuasse a ser sua muári por não pertencer à
nobreza. Na primeira ocasião que se lhes ofereceu ensejo de
estarem todos presentes, lembrou- se êle de contar algumas agruras
da sua vida durante os doze anos de expatriação, e pôs em relevo
os bons serviços prestados pela única pessoa que nunca o aban-
donara.
— Deixei as mulheres, deixei filhos, deixei tudo quanto tinha,
contava êle, e perseguido de dia e de noite e sem ter pouso
certo, nem sabendo como arranjar de comer e não podendo
andar senão escondido nos matos, sempre a meu lado tive uma
serva, que vendo que nenhum dos meus parentes se dispunha a
acampanhar-me, quis partilhar da minha sorte.
Dfí ANGOLA 153
Ela expunha a sua vida por mim, indo arranjar comida e
acarretar água e lenha, construir a cubata, vigiando até quando
eu dormia, com receio de que um malvado de um sobrinho meu
que de tempos a tempos vinha vêr-me me quisesse matar.
Eu já não era novo e ela era ainda rapariga ; mas prendam
um cão ao lado de uma cadela e deixem-nos sós por muito tempo,
embora as edades sejam diferentes, o que sucede?
Um cheira o outro, e passado algum tempo já não podem
viver sem a companhia que se costumaram a conhecer.
É o que sucede comigo e a minha muári. Eu hoje já não
posso viver sem esta boa mulher. A ela devo a minha vida.
Tudo quanto eu tive de sofrer sofreu ela também, e se alguma
vez estava resignado, se estava satisfeito, a ela o devo. De mim
que podia esperar ela? Nada. Para qualquer parte para onde
fosse, ainda nova como era estava sempre melhor do que comigo.
Não quis. Hei de ser eu, agora que me chamam para o estado,
que a hei de repelir ? Não posso, o meu coração não o quere.
Se V.cês vieram da corte com o encargo de me dizer que ela lá
não pode ser minha muári, voltem a comunicar aos senhores
que o Xa Madiamba quer continuar a viver no mato comendo
massesse (lagartas de árvores) com a sua boa companheira, e
nunca largá-la para ser Muat-Ianvua.
Antes de eu ser Muat-Ianvua. já começam com os mafefe (in-
trigas), que se hão depois desenvolver para me matarem; então
escolham outro Muat-Ianvua e deixem-me morrer descançado,
onde esta mulher que tem sido a minha única amiga me feche
os olhos e me enterre os ossos às escondidas da gente da Lunda.
A narração foi longa porque abrangia um grande número
de episódios da sua vida laboriosa, e do modo por que conseguira
desviar-se de todas as dificuldades que lhe sobrevieram, já criadas
pelos inimigos, já pela falta de recursos para se alimentar ; to-
davia êie alcançou um triunfo na atenção que todos lhe presta-
ram, e por último nas ovações que todos foram fazer à muári».
No tetame o chefe só depois de exgotado o assunto tem a
palavra, fazendo-o com diplomacia e concisamente.
Nestas audiências não falta a música, e naquelas cujo assunto
é de guerra ou de manifestações de valentia ou se concedem
honras a alguém, era de uso no estado Muat-Ianvua fecharem
com danças especiais, uma espécie de cerimónias à imitação das
que usavam os antigos gladiadores.
Muitos outros detalhes tinham estas audiências que hoje estão
11
154 ' POPULAÇÕES INDÍGENAS
postas de parte, mesmo até pelos Lundas, no entanto, ainda se
observam entre os povos daquela tribu algumas cerimónias ver-
dadeiramente deprimentes e que os Quiocos teem por completo
banido.
* #
Não existe a propriedade privada a não ser da habitação e
dos objectos de uso; a terra consideram-na propriedade do estado
de cuja posse dispõe o chefe em favor dos seus subordinados que
a usufruem.
«A permutação, escreve H. de Carvalho, dos diversos pro-
ductos naturais e dos fabricados pela mão do homem, existiu
sempre entre estes povos, desde que se agruparam para recipro-
camente ocorrerem às suas necessidades mais imperiosas, mas
não se pode dizer que as indústrias fossem um modo de vida
entre eles, porque ainda se vê, nos pontos onde existem os menos
favorecidos, a esteira substituida pelo capim e folhas de árvores,
os fundos das cabaças a suprirem os pratos, os crâneos humanos
devidamente preparados ou ornados servindo de copos, os ramos
de arbustos utilizados como vestuário ou melhor para cobertura
da parte do corpo que desejam proteger, os gafanhotos, as la-
gartas e hervas a servirem de alimento, etc.
O que fabricam a mais do que lhes é indispensável, tem
servido para a permutação do que carecem, e encontrem a mais
em casa dos vizinhos. Mas fabricar na esperança de imediata
colocação, isto é, trabalhar diariamente para viver do fruto
desse trabalho, pode dizer-se que só pensam nisso os que se
dedicam à agricultura e à caça.
Já se não pode dizer porém outro tanto com respeito à pesca,
porque logo que um peixe lhes cai na armadilha, contentam-se
com levà-lo para a refeição desse dia, e só quando lhes apetece
outros é que voltam a dispor o aparelho no rio.
Pertence a todos os indivíduos na tribu a liberdade de per-
mutarem entre si o que lhes pertence, sem que nisso tenha de
intervir a autoridade do potentado; porém de tribu para tribu
sem essa intervenção, ou antes sem a sua licença, a permutação
principalmente sendo a crédito, mesmo só por uma parte que
DE ANGOLA 155
seja do negócio de cada um, sempre correu o risco de falta de
garantia.
Outr'ora o comércio entre estrangeiros e a tribu era só feito
pelos potentados, porque estes se consideravam senhores dos
bens e vidas dos seus povos. Hoje pode dizer-se que isto acabou.
Depois do potentado ter feito o seu negócio com qualquer comi-
tiva de comércio, podem com ela negociar os indivíduos de mais
consideração na terra, e pouco depois os que queiram, porém o
potentado só garante os compromissos feitos com sua autorização,
do que tira uma percentagem.
As restrições que ainda existem, dão-se nos povos do Muat-
Ianvua e só relativamente à gente que se oferece em trocas,
porque tanto este como os chefes dos pequenos estados querem
ainda para si, unicamente, o direito de dispor dos seus súbditos
como propriedade sua.
Mas devo dizer que isto, mesmo hoje, só se faz sentir quando
o potentado ambiciona a posse de algum indivíduo, principal-
mente de uma mulher que por transação vae sair da tribu.
Há potentados ainda assim que resgatam, porém outros, cuja
ambição é correspondente ao despotismo com que se teem sabido
impor aos seus povos e vizinhos, mandam ou vão eles próprios
tirar ao negociante o indivíduo que lhes apraz, por não ter sido
vendido por eles.
Como este, há também outros casos que eles consideram de
comércio ilícito, e o negociante inexperiente pode ter prejuízos
se aceitou na permutação algum objecto roubado, e quando a
permutação não tenha garantia da autorização do potentado.
Não se conformam muitos negociantes, que vão ao centro da
África, com estes preceitos estabelecidos, e daí as falsas infor-
mações que nos trazem como respeito ao modo de negociar entre
os povos que visitam.
O Muat-Ianvua Noéji, e depois os que se lhe seguiram, logo
que chegava uma comitiva de comércio à mussumba, destinava-
lhe o logar em que deviam acampar, e depois de estabelecido o
acampamento ia visitar os negociantes levando-lhe cargas de
mantimentos de boca, e marcava o dia em que iria ver o negócio
que traziam.
Mandava apartar para si o que queria, e fixava-se o que
devia dar em troca, e só depois podia a comitiva fazer negócio
com quem quisesse. Esta porém não retirava, sem que êle fosse
vêr a gente que levava comprada, e saber quem a tinha dado em
156 POPULAÇÕES INDÍGENAS
negócio, e era certo que a maior parte da que não fosse oferecida
por êle, não seguia, ficava em seu poder.
Nem o Muat-Ianvua, nem em geral os potentados completam
o pagamento das transações que fazem, porém isto, dizem eles,
é com o fim dos chefes das comitivas com quem negoceiam lá vol-
tarem com mais negócio. Receiam que estes satisfeitos não voltem
mais, e por consequência fiquem privados eles de mais negócios
de fazendas, missangas, pólvora, armas e sal de que carecem,
sempre na suposição que quem vem de longe negociar é porque
ganha muito em cada objecto que vende.
E de facto se este sistema de comerciar não convêm ao homem
civilizado, devemos lembrar-nos que se observa entre povos da
mesma família e com cujos hábitos se coaduna bem, pois nele
encontram vantagens recíprocas.
Se o Quioco e o Bangala sofrem prejuízos neste modo de ne-
gociar com os Lundas, são estas as consequências do que fazem
sofrer a estes últimos quando eles vêem com negócio às suas
terras, e o mesmo se dá entre Quiocos e Bangalas.
Salvam-se assim os créditos segundo eles, nesta frase muito
frequente : — Então vossê é o esperto e eu sou o tolo ?
O peor foi a nossa intervenção indirecta pelos ambaquistas,
que querendo abusar da supremacia adquirida pelo nosso conví-
vio, lhes foram lembrar pretextos para as fraudes e a aplicação
da sua maneira de fazer justiça, reavendo de futuros negociantes
os prejuízos, débitos e expoliações, sofridos em qualquer tran-
sação.
O nosso antigo comércio reavia prejuízos de um credor,
caindo sobre outro a pretexto de que era parente deste ou da
mesma terra; os Bangalas semelhantemente levaram este costume
para o interior onde facilmente se generalizou, e daí os seques-
tros às comitivas e a falta de segurança nos caminhos».
«Negoceia esta gente entre si os productos naturais e mesmo
os que fabricam, segundo certas convenções, depois de alguma
discussão pelos valores estimativos ou por serviços, até tabaco e
sal por achas de lenha, pelo transporte de água, etc, preferindo
sempre artigos do nosso comércio, as mulheres fazendas e mis-
sangas principalmente, e pólvora os homens.
As unidades de medida são mui variadas de tribu para tribu
aumentando a unidade entre os Quiocos e tanto mais, quanto
mais se caminhar para o interior do continente.
DE ANGOLA 157
Os chamados grandes negócios de borracha e marfim, levam
tempo a concluir por causa das discussões, cada um puxando
pelos seus interesses. E é notável que nisto ninguém excede em
paciência e brandura os Quiocos, que de todos os povos que co-
nheci considerei como mais irascíveis.
Os Quiocos animados pelo comércio do sul dedicaram-se à
caça do elefante, mas terminando esta na região pelas persegui-
ções deste animal até ao 6o ao S. do Equador entre o Cuilo e o
Lulúa, passaram a ser os medianeiros de transações do comércio
que lhes oferecem no sul pelo marfim e borracha que obteem no
Lubuco.
É trabalhoso, e mesmo fatigante para o negociante europeu,
fazer negócio no sertão; tem de se revestir de muita paciência,
de sujeitar-se a muitas exigências e caprichos, e dispôr-se a
perder um, dois e mais"dias para fazer às vezes uma transação
insignificante, mormente se fôr com Quiocos.
Principia isto logo nos preliminares, em que há grande dis-
cussão, daí passa-se à escolha da fazenda e avaliação dela em
peças de lei; valor em que se faz o ajuste que corresponde a oito
medidas da unidade — a qual é só a jarda nos estabelecimentos
comerciais dentro da província — escolha das missangas, conta-
gem dos fios, selecção de armas, abertura de barris de pólvora
para verificar o seu estado e se estão ou não cheios, exigências
para que se encham completamente sem se importarem que da
sua proveniência viessem a peso.
Depois de tudo remexido, rejeitam parte do que escolheram e
principiam depois as trocas e nova escolha de artigos para sua
substituição.
É muito diferente o mesmo indivíduo, a fazer negócio em
terras portuguesas ou na sua. Aqui dá êle a lei, vai estipulando
as condições à medida que vai vendo os artigos ; não tem pressa
de concluir negócio, porque ganha em demorar o negociante a
fazer despesas no seu sítio. Compreende que é mais vantajoso
para o negociante dar mais alguma coisa do que desejava, a re-
tirar com as fazendas e outros artigos sujeitos a deteriorarem-se,
e a ter de sustentar o seu pessoal por mais tempo em marchas
para transacionar a sua factura.
O negócio não fica encerrado sem o malufo de quitanda,
costume péssimo que também existe na nossa província, mesmo
em Loanda, e que muitas vezes importa em cinco, seis e sete mil
reis a mais do ajuste — um casaco se há, alguns Quiocos até
158 POPULAÇÕES INDÍGENAS
calças e sapatos pedem, bacias de folha, pratos e canecas de
louça, espelhos, pentes, agulhas, linhas, facas, botões, camisas,
camisolas, chapéus ou barretes, etc.
Para negociar uma ponta de marfim por 60 peças de lei, dá
na verdade um grandíssimo trabalho ; o negociante tem de de-
morar a sua viagem por alguns dias o que lhe acarreta despesas
com que não contava.
Em negócios pequenos por exemplo : de carne, de peixe ou
bombos, enfim de comestíveis, é ainda o mesmo, quer com Quiocos
quer com Lundas. Ajusta-se, traz-se a fazenda, não querem essa
querem outra; mede-se e logo surge a discussão porque exigem
se lhes pague na conformidade do seu bando, que eles substituíram
à jarda, e o qual vai de um lado da cintura à mão do lado oposto,
tendo o braço estendido para cima e passando a fazenda a medir
pelo peito curvado para a frente. Noutras tribus o bando é menor.
Faz-se-lhe a vontade dando-se-lhes às vezes para unidade a
medida, que nos. homens altos corresponde de lm,30 a lm,40, mais
meio metro que a verdadeira jarda. Rasga-se a fazenda e depois
regeitam-na, pedem outra coisa, e se o negociante não está por
isso, largam a fazenda no chão e levam o seu negócio.
Para as transações de marfim e mesmo de gente, segue-se na
Lunda um outro sistema que ainda é peor. Cada potentado na
sua terra é um Muat-Ianvua, e como este, entende que pode
tomar para si o que pretende da pacotilha do negociante. Para
poder escolher com mais franqueza, principia por dar-lhe um
presente de amizade e por mostrar-lhe o marfim que tem guar-
dado para êle, um dos melhores dentes que possue e diz : —
Tenho tantos iguais a este.
O preço entre eles está já estipulado, tanto para o marfim
segundo a sua classificação e peso, tanto para a gente segundo
o sexo e idade, e nisso não ha grande discussão.
Os potentados logo na primeira escolha pagam só parte, e
visto o negociante ter de se demorar para transacionar, se não
toda, uma grande parte da sua pacotilha — dizem-lhe que irão
pagando a pouco e pouco o resto, de modo que quando queiram
retirar nas vésperas está embolsado.
Não pode o negociante reagir, porque se o fizer tem a cer-
teza de se lhe levantarem demandas todos os dias, as quais se vê
forçado a pagar, e por último no próprio acampamento ou já em
retirada, e mesmo antes do Cassai, tem de resistir a forças que
no trajecto procuram assaltá-lo para o roubarem. E na maioria
DE ANGOLA 159
destes casos, as maiores dificuldades são levantadas pelos próprios
carregadores, o que se conhece, ou pelo receio que teem dos
indígenas ou porque nisso vão interessados, estando com eles
combinados, não podendo contar-se com o seu auxílio. Muitas
vezes fogem abandonando as cargas, havendo-as já roubado em
parte, ou deixam-se aprisionar sobre qualquer pretexto para
depois serem resgatados, ou finalmente, o que é ainda peor,
procuram convencer o negociante sobre a conveniência que ha
em contentar os indígenas, satisfazendo as suas exigências para
não perderem as vidas. E à custa de grandes sacrificios o nego-
ciante cede para não ser expoliado de todo».
As causas ou questões são julgadas por tribunais presididos
pelo chefe gentílico a que estão subordinadas as partes em litígio
e de que fazem parte os conselheiros, ministros ou dignatários
que assistem ao chefe.
Desta forma quem se acha lesado ou quem tem provas para
acusar alguém de um crime vai comunicá-lo ao soba que, ouvindo
o arguido, convoca o tribunal para o julgamento.
No entanto, parece, que entre algumas das tríbus em estudo,
estes julgamentos tomam o caracter de audiências ordinárias rea-
lizadas todas as manhãs, onde o soba toma conhecimento dos
assuntos mais urgentes que dizem respeito aos negócios do estado
e das queixas que qualquer dos seus subordinados lhe deseja
apresentar.
Para aqui passamos a transcrever o que H. de Carvalho na
Etnografia e história dos povos da Lunda a este respeito es-
creve :
«As audiências ordinárias não comparece toda a gente, ou
vêem a pouco e pouco alguns, na maior parte com o propósito
de fazer os seus cumprimentos ao potentado. É na maioria dos
casos este quem chama um ou outro quilolo, a quem deseja falar
sobre qualquer negócio, ou que pelo correr da discussão na au-
diência tem de ouvir.
Estas audiências, que na maioria dos dias principiam dentro
dos cercados, já às sete horas teem de ser mudadas para a am-
bula, páteo à frente da residência, por causa da aglomeração do
povo.
160
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como potentado, o dono da terra como eles dizem, recebe
sempre de madrugada, é habito entre estes povos, apresentar-lhe
não só as questões que houve de véspera entre uns e outros,
como também as antigas de que nunca houve composição ; pois
é destas questões que vivem tanto os potentados como os seus
povos.
É o meio de adquirirem com que se manterem, pois, a não
ser um ou outro mestre de ofício que alguma coisa ganha pelo
seu trabalho, o resto está sempre na ociosidade ou pensando como
Massongo — Festa da circuncisão
suscitar questão com outro, e dele haver qualquer coisa que
sabe êle possui.
Por isto todos os dias é frequente ver-se um indivíduo, se
não são mais, depois de cumprimentar o potentado depositar
deante dele, sobre a pele em que se senta, uma braça de baeta,
ou um pano já feito de qualquer fazenda, ou uma caneca de
pólvora ou mesmo uma arma, ou se de mais modestas circuns-
tâncias, um ou dois pratos ou uma caneca; e como isto é da
praxe, vai depois para o seu logar esperar que o potentado lhe
conceda a palavra para tratar da sua queixa.
Alguns, principalmente sendo quilolos, depois de se sentarem
tiram o seu cinto ou do penteado um chifre, que espetam deante
de si, e isso é sinal de urgência para a resolução de questões
que desejam apresentar para julgamento.
DE ANGOLA , 161
Logo que o pretendente obtêm a palavra faz a sua represen-
tação ou queixa, ouvida a qual, se manda chamar o acusado se
o há, a quem se dá parte da queixa contra êle e se lhe ouve o
que tem a alegar em sua defeza.
É costume, quando o acusado é avisado de que há uma mi-
longa (demanda) contra êle e que vai julgar-se, apresentar-se na
audiência com o seu lemba (advogado) para o defender.
O potentado em seguida dá a palavra a um quiloio, que es-
colhe entre os velhos parentes, para este fazer uma espécie de
relatório e dar o seu parecer.
Os outros ou apoiam ou fazem as suas observações, e todos
mais ou menos se pronunciam a favor daquele a quem acham
razão, e então o potentado retira por um pouco, determinando
aos seus conselheiros que resolvam de modo a fazer-se inteira
justiça; e quando volta depois de ouvir o que votaram, pronun-
cia a sentença dizendo ao que perdeu a questão o que tem a
pagar, do que êle vem a receber proventos, assim como do que
solicitou a resolução da pendência.
Entre os Quiocos, estes proventos são sempre mais avultados,
e por isso mesmo os pagamentos por tais questões são muito
onerosos.
Em Cassanje, no Xinje e no Lubuco também há estas au-
diências; porém no Lubuco as questões que se apresentam são
de natureza diversa, são consideradas superiores, ou por causa
de feitiçaria ou por casos de morte, que se dão geralmente de
algum homem contra a sua companheira, porque são muito
ciumentos. Por ninharias e mesmo furtos, poucos julgamentos
teem logar.
Nos outros povos, estas questões são frequentes, e por qualquer
pretexto, pois constituem por assim dizer o seu modo de vida, e
muitas são alimentadas pelos próprios potentados que também
delas vivem.
Os Quiocos sobre qualquer pretexto fazem uma milonga,
apreciam muito quando as podem levantar com pessoas extra-
nhas ás suas povoações.
Os vendilhões procuram comitivas de comércio já de caso
pensado, e dirigem-se a indivíduos dessas comitivas afim de
ganharem milonga, que eles já vão projectando pelo caminho
como hão de promover. E alguns estão já tão habituados à
chicana, que nem se dão a esse trabalho, esperam que o ensejo
se lhes ofereça.
162 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Hoje com todos estes povos sucede o mesmo; porém os
Quiocos estão em primeiro logar, e depois os Bangalas torna-
ram-se distintos no modo de arranjar a milonga, de forma a
ganharem-na, e por isso mesmo são considerados como os mais
espertos, isto é, os mais precavidos e cautelosos.
Um vendilhão Quioco apresenta a sua carga, pequena ou
grande que seja, a quem procura para negócio, e acocorado ao
seu lado principia a discutir sobre preços, quantidade, quali-
dade, etc, e já de princípio é preciso muito cuidado.
Uma pouca de farinha que se entorne, uma panela, cabaça,
ou qualquer coisa que tombe ou se quebre, uma questão de
palavra tomada em sentido diferente, o pegar nos objectos a
negociar antes de os ter pago, etc, são casos para o vendilhão
abandonar a carga ao indivíduo com quem esses casos se deram,
arbitrando logo ao dano um preço fabuloso, e aquele ainda tem
de ir sustentar a demanda perante o potentado, que também se
há de pagar por bom preço».
Como provas subsidiárias usam a prova testemunhal, mas
não podendo por estas e por outros indícios apurar a verdade,
lançam mão do juramento, o último recurso dos que pretendem
mostrar a sua inocência. O juramento usual, empregado por
estes povos, consiste em fazer ingerir ao arguido uma bebida
preparada na ocasião, na qual entra a casca da muave (Erythro-
phloeum Guineense), que contêm princípios tóxicos.
Parece que estes princípios actuam por forma diferente con-
soante a percentagem em que é empregada a casca, e que uma
grande dosagem produz vómitos, não chegando a dar se o enve-
nenamento, ao passo que uma pequena dosagem nao produz
aqueles efeitos e dá logar ao envenenamento.
Aproveitando as propriedades da casca do muave, os indí-
genas empregam-na como juramento, sendo considerado inocente
aquele que vomitar a bebida e culpado o que não vomitando
começar a apresentar os primeiros indícios de envenenamento.
Se o paciente é acusado de crime que classifiquem de grave,
não chega a morrer pelo envenenamento, porque os assistentes
ao julgamento ali mesmo e à paulada o acabam de matar; se o
crime não é grave e o arguido possui haveres, administram-lhe
um vomitório que o pode livrar da morte, mas que o não isen-
tará de ser expoliado do que tiver e às vezes do que possa a vir
a adquirir.
Actualmente já alguns povos se satisfazem, dando a bebida a
DE ANGOLA 163
cães ou galinhas. Cada um traz o seu cão ou galinha, que o
vem representar, e se o animal morre, indica que o representado
perdeu a .causa.
Esta prática é seguida pelos Quiocos, mas mesmo entre estes
está sendo posta de parte, visto que o seu forte é discutir, e
quem melhores argumentos tem é quem vence.
Os crimes desagravam-se pelo pagamento de uma indemni-
zação à vitima, salvo os de roubo, alguns de adultério, e os de
feitiçaria em que àlêm da responsabilidade civil implica igual-
mente a responsabilidade criminal.
Os roubos não se apresentam como entre nós revestidos de
aparências enganadoras. São simples furtos ou espertezas; mas
os apanhados em flagrante a roubar as lavras, são amarrados
com os braços atraz das costas e apontados à execração pública
durante dias consecutivos.
«Se qualquer indivíduo — escreve H. de Carvalho — cometeu
uma falta ou um delicto, o ofendido não chama este à responsa-
bilidade da acção não o persegue, deixa-o mesmo retirar em boa
paz. O agravo seja qual for, é sempre considerado como dano
ou prejuízos, que eles apreciam a seu modo ; há de pois indem-
nizar-se e com usura, quando a ocasião se proporcionar.
O agravo pode ter logar mesmo por causas inverosímeis,
como por exemplo : um individuo de passagem, ter conversado
com uma mulher, de modo a ser notado, e por acaso ter esta
adoecido no dia imediato ou mesmo dois dias depois dele se
haver ausentado ; ter desaparecido ou ter morrido uma cabeça
de gado cabrum ou ovelhum que seja, depois de uma pendência
com um extranho à tribu a que este tenha sido condenado; ter
um indivíduo que foi hóspede retirado da residência ou da tribu
sem se despedir de quem o hospedara ou do dono da terra ;
haver um extranho raptado uma rapariga que também podia ser
hóspeda e que com êle quis ir viver; etc. »
Tudo isto para eles tem um certo valor, de que se hão de
compensar, e sob qualquer pretexto o extranho, às vezes anos
depois, vem a pagá-lo, e esse que se vá entender com o verda-
deiro delinquente.
V Fq-r/a f t
CAPITULO VI
MAUNGOSí1)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos designados por Maun-
gos. — Situação geográfica. — População.
Segundo o sr. Nascimento Pegado, os povos que nós desi-
gnamos por Maungos dão a si próprio o nome de Sosso e os seus
vizinhos do norte e W.N.W., atribuem-lhe respectivamente os
nomes de lacas e Quilue. Qualquer destes nomes são próprios e
sem tradução.
A história da origem destes povos está intimamente ligada
com as dos Muchi-congos e os restantes povos da margem sul
do Zaire, descendentes das tribus oriundas da região dos lagos
que se vieram estabelecer entre o Cassai e o Lualaba, e que em
logar de seguirem o rumo dos ascendentes dos povos que for-
maram o estado de Muat íanvua e portanto daqueles que entraram
na nossa Província de Angola por N.E. e de que descendem as
tribus Bangalas, Quiocos, Luenas, Xinges, Songos, etc, da Lunda,
seguiram o rumo oeste até encontrarem o Zaire e descendo por
êle vieram dar entrada em Angola pelo norte.
Com efeito parece que estes povos descendem do potentado
Mutombo Muculo do estado dos Lubas, cujos filhos a conselho
seu procuravam novas terras e melhor fortuna, uns como Ilunga
para o sul, que casando com Luegi filha de lala potentado dos
Bungos deu logar à informação do estado Muat íanvua, e outros
(!) Serviu de base ao estudo desta tríbu um trabalho elaborado pelo
sr. Manuel do Nascimento Pegado.
166 POPULAÇÕES INDÍGENAS
como Cassongo que, pelo norte dos territórios que constituem o
nosso distrito da Lunda, alcançaram o Zaire e por ele desceram
até quási à sua foz, internando-se na Província pelo norte.
Com relação à história destes povos o sr. Nascimento Pegado
reproduz, nas informações que prestou, uma lenda por eles con-
tada que se em absoluto não concorda com a história dos povos
vizinhos, pelo menos nas suas linhas gerais, vem afirmar o que
acima deixamos exposto.
Eis a lenda tal qual a conta o sr. Pegado :
«Mua Ianve da Lunda foi informado por um seu vassalo
Quimbimda Mutoquetese, intrépido caçador, que em uma das
suas excursões venatórias encontrara no Baixo Cuango e Hamba
vestígios de pegadas humanas. Indo na sua pista deu com uma
sanzala cujos habitantes assustados a êle se submeteram condi-
cionalmente.
«Regressando à Lunda, contou a descoberta à sua senhora
que nomeou um outro seu vassalo de nome N'Zovo, para ir efe-
tivar o domínio da descoberta. Este porém, em vez de proceder
ao necessário reconhecimento e cingir-se ás ordens de Mua Ianve,
fixou a sua residência nos terrenos entre Cuango e Huamba,
arvorando-se em seu dominador. A Mua Ianve desesperada com
esta notícia, mandou para lá o seu próprio marido que se fez
acompanhar de um dos filhos maiores, chamado Mutemba, e
outros. Tomando esta expedição o mesmo caminho seguido por
N'Zovo, veiu encontrar este na margem esquerda do rio Huamba
em plena paz e socêgo. O N'Zovo logo que se inteirou do plano
desta gente, opôs-se tenazmente à sua marcha, dizendo que dela
estava encarregado, e não consentia por isso que outros lhe
tomassem a vanguarda. Nada, porém, conseguiu porquanto os
novos comissionados, não só o não atenderam, como se dispunham
a degolá-lo pela sua falta de cumprimento às ordens dadas pela
Mua Ianve. Os da nova missão seguiram a sua marcha, percor-
reram todas as regiões habitadas, cuja ocupação foram realizando,
deixando em cada centro de população um dos membros da sua
comitiva, como chefe. A expedição seguiu a sua derrota até
Quipeche ou Cábila, região onde se acham situadas Boma e
Matadi e onde o chefe da expedição morreu; mas o filho, seu
imediato, retrocedendo veiu fixar residência no sítio N'Ganga,
fazendo-se proclamar Quianve Cassongo ou Muene Puto Cassongo,
sem contudo se desligar da autoridade de Mua Ianve, sua mãe.
«Acerca do nome de Muene Puto que se dá ao Cassongo,
BE ANGOLA 167
convêm apresentar um esclarecimento, é que em vez de Muene
Puto deve ser Maputo Cassongo, nome que lhe foi dado por uma
vez o Cassongo se queixar ter sido um dia mordido por maputo
(carrapato), e de maputo mordeu Cassongo, prevaleceu o nome
de Maputo-Cassongo, degenerado em Muene-Puto-Cassongo».
Esta lenda vem pois afirmar que os ascendentes dos Maungos
entraram pelo norte da Província* em tudo concorde com a his-
tória dos povos^ da Lunda e do Congo e parece indicar que o
fundador da tribu é o mesmo Muene-Puto-Cassongo, neto do
velho Mutombo Maculo — o potentado do Luba — e filho de Cas-
songo, que, veiu estabelecer-se pouco mais ou menos na região
habitada actualmente pelo» Maungos.
#
A tribu Maungo ocupa largos territórios do sul do rio Cuglua
e a este do rio Cuilo-Kua-Sosso.
Os Maungos, aparentemente bem constituídos, mas na essência
fracos, são pouco resistentes à fadiga, são dotados de caracter
mais expansivo que triste, são concentrados, corajosos, coléricos
e impulsivos, e pouco dedicados.
São de estatura regular, côr de pele de um negro abronzeado,
salvo nos logares muito expostos ao sol e ao ar que é mais
negra, olhos ovais e cabelos pretos e encarapinhados.
Como deformação artificial usam extrair os dois dentes inci-
sivos médios da maxila superior em ambos os sexos.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação-
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, sciências e faculda-
des intelectuais.
Não teem estes povos por costume tomar banho, a não ser
por caso de força maior, e, quando o corpo necessita limpeza,
untam-no com uma massa feita de pós de tacula, água e azeite
de palma, esfregando-o depois com um pano até que êle tome
um aspecto lustroso.
Os cabelos são cortados à navalha até à altura do parietal;
168 POPULAÇÕES INDÍGENAS
para cima usam-nos crescidos e reunidos em trança no alto da
cabeça. Os cabelos cortados à escovinha, é sinal de luto rigoroso,
o que é usado no caso de morte dos pais ou de um dos cônjuges.
As mulheres, ao contrário dos homens, não cortam os cabelos,
antes os trazem sempre bem crescidos, entrançados e divididos
em duas partes, uma caída nos ombros, e outra segura no alto
da cabeça, mas disposta em forma de um bico, e que é enfeitada
com missangas e contas.
Tanto as mulheres como os homens não fazem uso do pente
para se pentearem, empregando para este fim apenas o óleo de
palma.
As unhas são cortadas rentes, as pestanas aparadas e as so-
brancelhas cortadas à navalha.
A duração ordinária do sono durante a noite é de 8 horas,
sendo raro dormirem de dia.
Raros são os que não sabem nadar, principalmente os que
vivem nas margens do rio Cuilo, Cugluo e Sosso. Não se entregam
à natação por sport, mas simplesmente porque isso lhes é útil e
vantajoso para a pesca ou para quando haja necessidade de
transportar gado duma margem para a outra dum rio.
Desconhecem a equitação, sendo para eles motivo de admi-
ração vêr um homem a cavalo.
Não há torneios de luta. Quando duas pessoas se enfurecem
uma contra a outra, abraçam-se e apertam-se fortemente, pro-
curando uma derrubar outra, para o que, aquela que mais firmeza
tiver nos pés enrosca o seu pé direito no esquerdo do antagonista,
e com um impulso prosta-o ao chão. Uma vez assim subjugado,
o outro adversário finca-lhe o joelho sobre o abdómen enquanto
com a mão direita o vai socando e com a esquerda apara as
agressões que o vencido lhe dirige. Muitas vezes sucede que,
ao levantarem-se, cada um se serve de uma espingarda ou arma
branca que tiver mais à mão, agridem-se mutuamente e de um
modo mais ou menos funesto.
Há um jogo muito vulgar entre estes povos, denominado
Mabulo, em que tomam parte somente rapazes dos doze aos vinte
anos, que consiste no seguinte: os jogadores divididos em dois
grupos colocam-se em linha a uma distância de 30 a 40 metros
uma da outra ; cada um dos jogadores está munido de uma corda
fina de metro e meio de comprimento, tendo presa nas duas
extremidades uma espiga de milho ; um arco feito de uma pe-
quena vara é arremessado ao ar por um dos jogadores de um
DE ANGOLA 169
dos grupos ein direcção aos do grupo contrário; os jogadores
deste grupo procuram então atingir esse arco com as cordas de
que estão munidos, o qual, enrodilhado pelas cordas, cai por
terra. Acto contínuo, todos os jogadores do mesmo grupo correm
à porfia em direcção ao arco e desembaraçando-o das cordas
procedem de maneira idêntica para com o grupo contrário e
assim sucessiyamente passam horas e horas divertidas e na mais
completa satisfação.
A base da sua alimentação é vegetal constituída pelo quipati
(infundi) feito de farinhas de mandioca e de milho, e que é
acompanhado, algumas vezes, de carne. Apreciam imenso o
feijão, abóbora e suas pevides, milho, inhame, banana e gin-
guba.
Na preparação das comidas empregam, como temperos, o sal,
a pimenta dungo e uma herva muito aromática denominada
condi ou chaula.
Comem, crus, a banana e a ginguba; cosidos, a carne, feijão,
abóbora, inhame e tubérculos congéneres.
As comidas são preparadas pelas mulheres. Os homens só
em viagem é que preparam a sua refeição.
Arranjam o lume de dois modos, ou esfregando um no outro
dois paus diferentes, chamados mucala e muiaia, ou servindo-se
do fuzil e isca.
Os utensílios de cosinha são constituídos por algumas panelas
de barro, a cujo fabrico se dedicam as mulheres, umas colheres
de pau e o muco, vareta que serve para mecher as comidas que
estão ao lume.
As refeições são três ao dia e tomadas em comum por toda a
família, comendo os homens em separado.
Das bebidas enumeraremos apenas a conhecida por maluvo,
extraída da palmeira com o abuso da qual frequentemente se
embriagam.
Sobre antropofagia não podemos afirmar que ela se não
exerça clandestinamente, principalmente entre os feiticeiros.
Conservam alguns alimentos, como o milho e a ginguba, em
celeiros fabricados com fibras de palmeira e forrados de colmo.
12
170 POPULAÇÕES INDÍGENAS
O vestuário mais usual dos homens consta de um pano preto
era volta da cintura e que se extende até abaixo do joelho. Nas
ocasiões solenes, usam panos vistosos e caros, que çobrindo-lhe
a cintura se estendem até aos tornozelos. Alguns costumam tra-
zer um outro pano nas costas.
O vestuário da mulher é constituído tanto pela retaguarda
como pela frente por uma tira de pano de um e meio a dois
palmos de largura, abrangendo a cintura e seguro a um fio que
serve de cinto, tendo as nádegas quási sempre nuas. As mulheres
idosas e de categoria superior vestem-se relativamente bem, tra-
zendo um pano à semelhança do dos homens.
Não fabricam tecidos de espécie alguma para vestuário, nem
existem entre eles alfaiates de profissão, todavia todos sabem
coser os seus panos.
O calçado é usado na ocasião das queimadas para preservar
os pés da acção do fogo. O seu fabrico é tão simples que todos
o fazem. Tem a forma de alpercatas e é feito da ramagem do
bordão entrançado; também se fazem de coiro de pacaça (boi
bravo) ou da palanca.
Quási todos trazem a cabeça coberta com uma espécie de
toucado feito de fazendas ou mesmo um chapéu adquirido no
mercado.
Os que ocupam entre eles uma posição de destaque, como os
sobas, usam a Caginga, uma espécie de barrete fabricado na
Ginga, e trazem nos braços argolas de metal.
Estes povos costumam arrancar os dois dentes da frente da
maxila superior e pintar a cara com as cores branca e vermelha,
nas ocasiões das queimadas e de batuques.
Nos braços e nos tornozelos usam argolas (malungas) ocas e
macissas de chumbo e de estanho e no pescoço uma corrente de
arame.
. #
O tipo de habitação é a cubata, de páu a pique com o teto
arqueado.
O material empregado pelos povos desta tríbu na construção
das cubatas, consta de bordão, colmo, alguma madeira e junco
DE ANGOLA 171
Depois de junta a porção de madeira, conforme a capacidade
que se quer, é aberto um cabouco com dois palmos de profun-
didade, onde são cravados os troncos ou varas. Estes troncos
são agarrados por uma rede de bordão rachado às tiras aper-
tados entre si com filamentos de cipó e junco. Feito isto são
colocados nos dois topos as forquilhas sobre que assenta a
cumieira. Ao alto das paredes e ^apoiadas a umas outras forqui-
lhas, juntas aquelas de cada lado exterior, assentam-se frechaes
sobre os quais igualmente se apoia uma porção de bordão del-
gado e verde que dum e doutro lado vai encontrar-se ao alto da
cumieira, juntando-se a ponta de um ao corpo do outro. O bor-
dão assim colocado e mui basto, serve de barrotes e é entre si,
ligado por meio também de tiras de bordão assentes pelo lado
exterior e amarradas cóm junco. Por cima do tecto assim prepa-
rado é posto colmo em camadas amarradas cada uma de per si,
bem assim como se revestem as paredes. Em seguida são levan-
tados os compartimentos cuja construção obedece a arte das
paredes. Todas as habitações são de duas águas e construídas
pelo homem. As habitações teem geralmente uma divisão, e as
janelas são substituídas por uma portinhola no fundo que rarís-
simas vezes se abre.
A mobília consiste essencialmente num móvel à semelhança
de mala feito de madeira que se coloca na sala e o leito, uma
tarimba assente sobre forquilhas da altura de 30 a 40 centímetros,
sobre as quais se assentam travessas chamadas Midiqaite, por
cima delas se coloca o luando, as. esteiras ou cousa semelhante.
Substitui o travesseiro um tronco de madeira de 4 decímetros de
diâmetro e de comprimento igual à largura da cama. Assentam-se
de preferência em peles ou esteiras e as cadeiras raríssimas, são
feitas de bocados de bordão colocados em quadrado uns sobre os
outros e pregados com uma parte desse mesmo bordão; mezas
não existem, havendo em seu lugar tarimbas para arrumação de
objectos caseiros.
A iluminação faz-se por meio de caniços em feixe e o aque-
cimento por meio de lenha em combustão.
A situação das cubatas, sem ordem, aglomeradas num só
grupo, constitui um verdadeiro labirinto.
Não há dependências a não ser os celeiros a que nos referimos
e os estábulos para as cabras e carneiros que são umas cubatas
em ponto pequeno com um terraço ao meio e cujo soalho é feito
de bordão rachado e espaçado de modo a dar vazão aos escre-
172 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mentos. Os edifícios religiosos consistem em uma espécie de
pombal, onde se guardam os objectos venerados. Edifícios pú-
blicos e comuns não existem. Não se abrem caminhos nem ruas,
sendo estes e os carreiros, feitos à força do trilho e cuja conser-
vação é sustentada unicamente pelo trânsito.
Entre estes povos pratica-se a agricuítura por processos ru-
dimentares, exercido pelos homens, os trabalhos mais violentos,
como os derrubos, e os mais moderados pela mulher.
Não usam adubar ou estrumar as terras, bem assim como não
usam a rega, e os trabalhos agrícolas não se fazem em comum.
Cultivam em especial a mandioca, o milho, a ginguba, o feijão,
o inhame e outros tubérculos para consumo próprio. As culturas
não são alternadas, salvo para o milho.
As alfaias empregadas na agricultura são a enchada, a catana
e o machado.
Os trabalhos agrícolas consistem na capinação, amanho de
terreno e lançamento de semente à terra em pequenas covas.
A caça constitue uma das principais ocupações destes povos e
é exercida individualmente durante o ano, e em comum por
ocasião das queimadas, o que constitue uma das diversões mais
apreciadas.
Chegados os meses de julho e agosto, quando o capim se en-
contra bem seco, o proprietário ou proprietários dos terrenos
onde se vai proceder à caçada, previnem os visinhos com um dia
de antecedência de que no dia seguinte se realizará a queimada.
Logo pela manhã é o terreno cercado por uma fila de caçadores,
meia hora depois lança-se fogo ao capim principiando por barla-
vento.
Os caçadores, a passo, seguem a linha de fogo com a maior
atenção e cautela, não só para não serem alcançados pelas laba-
redas, como para evitarem a fuga repentina de alguma peça de
caça que saia do seu esconderijo, por não poder mais suportar
o calor mortífero das chamas.
DE ANGOLA 173
No entanto, as línguas de fogo vão tomando proporções gi-
gantescas e assustadoras, formando como que uns grandes rede-
moinhos de fogo, e, à medida que estas avançam, seguindo it
direção que o vento dominante lhes imprime, os caçadores acom-
panham-nas. A caça, num desespero, supremo, não podendo mais
conter-se numa tão crítica situação, rompe as linhas de fogo,
umas vezes incólume e outras fortemente chamuscada vai acabar
de morrer às mãos dos caçadores. As linhas de fogo vão-se
apertando como a dos atiradores até chegar à Gumba ponto
onde se concentra. Ali, a caça, ou morre sob a ^cção do fogo
ou por milagre inexplicável escapa deste e constitui perigo para
os caçadores que, na cegueira de dispararem sobre ela, disparam
às vezes sobre os seus próprios companheiros do lado opostos
estabelecendo-se então uma confusão resultante dos gritos de
cessar fogo daqueles que, arrojadamente se internam nas densas
nuvens de fumo para apanhar a caça.
Os proprietários do terreno onde se realizou a queimada
tratam de juntar toda a caça que é dividida entre os donos de
terreno e os caçadores, cabendo a melhor parte de carne, os lombos,
chamados kigongote, àqueles que lançaram fogo ao capim.
Entre estes povos há pescadores de profissão que exercem
individualmente o seu mister em qualquer época do ano, e
aqueles que exercem em grupo no princípio das chuvas. Por
esta época exerce-se a pesca por armadilhas, uma espécie de
tapumes ou redes de bordão, que fecham as valas de comunicação
dos rios para as lagoas que se formam no tempo das chuvas,
feitas pouco antes dos rios começarem a vasar. Pescam a bagu,
o pungo, o cleape e várias outras espécies próprias de água doce.
Dedicam-se à criação de gado em grande escala; o bovino é
mais abundante, conservando-o abandonado nos campos. Existem
manadas tam grandes que para os donos reconhecerem as ca-
beças que lhe pertencem^ se servem de sinais convencionais,
como o corte de uma orelha ou da cauda.
A tecedura é função exclusiva da mulher que a exerce ser-
vindo-se de uma vara em guisa de roca; a costura e confecção
do vestuário é da atribuição do homem.
A industria de cesteiro encontra-se muito desenvolvida entre
estes povos; fabricamos chamados muniendes, espécie de gigo, es-
treitos e fechados no fundo, com junco, e os mucundas, mais ou
menos do mesmo formato daqueles, mas construídos de bordão.
Os primeiros servem para transporte de lenha e mantimentos,
174 POPULAÇÕES INDÍGENAS
teem uma corda que passando debaixo do antebraço a fixam nos
ombros, ficando ao longo das costas do condutor; os segundos
servem para acondicionar os mantimentos de consumo diário.
Exercem a indústria de olaria, fabricando panelos para uso
culinário, para o que empregam uma terra especial que chamam
tuma a que misturam um pó feito de cacos de panelas velhas.
É trabalho exclusivo da mulher.
Trabalham o ferro, empregando forjas por eles construidas,
modelos das usadas por algumas tríbus do planalto de Benguela.
A forja é constituida por uma grande pedra com a face supe-
rior lisa, onde se faz a combustão, e um fole feito de um tronco
grosso, desbastado, em que uma das extremidades tem duas
excavações semelhantes aos pratos de uma balança em comuni-
cação por um pequeno furo com uma outra que tem a forma de
ventas de porco. A cada uma das referidas excavações se adapta
uma pele muito macia que as cobre como se fossem válvulas, e a
que está ligada uma pequena vara que, pondo em movimento a
pele, produz o efeito do fole. A outra extremidade é ajustada
à boca de uma campânula de barro cuja parte mais extensa se
mete no carvão.
Empregam na industria de trabalhar o ferro, o malho, o alicate
e a lima a que chamam respectivamente, zundo, maha e cuanga.
Trabalham a madeira, construindo canoas, inalas, portas e
manipanços. Fabricam cordas de fibras de palmeira e de outras
plantas textis.
Preparam peles esticando-as e expondo-as à acção do sol a
fim delas se extrair todos os resíduos de carne que lhes estejam
aderentes, curtindo-as depois com uma massa de azeite de palma
e tacula. Das peles de corça, veado e seixa fazem assentos e bolsas.
A moagem é feita com o já conhecido pilão a que chamam
muisso e a farinha peneirada no mussualo. É trabalho que
pertence à mulher.
Da farinha de mandioca fazem o quipati e da de milho qui~
patidi, constituindo qualquer delas a sua principal alimentação.
Não possuem maquinas que facilitem o trabalho manual.
# *
O dialecto falado é o Sosso que se assemelha mais aos dia-
lectos do Gongo que aos da Lunda e ao Kimbundo.
DE ANGOLA
175
Damos a seguir um pequeno vocabulário :
Vocabulário do dialecto falado pelos Maungos
Adultério — izunba.
Comer — Kutafuma.
Contar — kubala.
Conversação — nambo.
Casar — kubonga.
Demanda — mucano.
Faca — bele.
Fato — izuato.
Fogo — kapia.
Folha — rifuto.
Fumo — muixi.
Hiena — igo.
Ilha — risago.
Irmão — pagi.
Lagoa — kisoga.
Lança — kisokolo.
Leão — kogi.
Língua — rika.
Mão — koko.
Montanha — mogo.
Morte — mufi.
Namoro — quitoco.
Negociar — kutita.
Noite — usuku.
Olho — risu.
Orelha — ritui.
Ovelha — koko.
Pelejar — kunuana.
Perder — kulala.
Pássaro — muni.
Pedra — riné.
Peixe — zongi.
Rio — jigi.
Sal — mongua.
Soba — fumo.
Senhor — ka.
Seta — mufala.
Sol — muana.
Velho — m'buta.
Os Maungos são dados à música e à dança, havendo músicos
de profissão.
Os instrumentos mais usados são ò mucanjo e o quissangi. O
mucangiri é uma espécie de órgão em que as peças são substi-
tuídas por umas aduelas de madeira (gungo), assentes nas ex-
tremidades em uma caixa de madeira (mungiieia) e que por
debaixo tem umas cabaças, suspensas por fios de peles. Este
instrumento é de precursão e toca se com dois pequenos paus
que na extremidade teem umas bolas de borracha. O quissange
consiste em uma pequena caixa de madeira sobreposta por umas
lâminas delgadas sobrepostas por umas lâminas de metal que se
tocam com os dedos polegares.
A dansa principal e aquela que estes povos se entregam com
maior prazer, é a conhecida por dança de amor. Tomam parte
nela homens, mulheres, raparigas e rapazes. Em actos solenes,
ou ainda, quando por qualquer acontecimento de regosijo vão
dançar para uma sanzala vizinha, pintam a cara com terra
branca e adornam o pescoço, punhos e tornozelos com missangas.
São duas as formas como se pratica esta dança : uma consiste
em cada um dos sexos formar um círculo, e, ao som do instru-
176 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mento da música chamado Muangui ou mesmo do batuque, umas
vezes avançam as mulheres em direcção ao círculo dos homens
e outras, estes ao daquelas, abraçando-se mutuamente, indo ao
ponto de partida gesticulando de uma forma obscena e uma vez
ali chegados separam-se, regressando aos seus respectivos logares.
A outra, em que tomam parte somente as mulheres e raparigas,
consiste em dansarem inteiramente nuas, de noite, cantando e
batendo palmas. Não há entre estes povos dansas propriamente
de guerra.
De astronomia conhecem o sol, a lua e as estrelas, a que
chamam, respectivamente, tungo, guede e tomo-timo.
Quanto à matemática, sabem contar regularmente até cem mil.
Os habitantes das margens do rio Chugo, Cuale, Cuilo e
Sussa, nas partes navegáveis, são dextros timoneiros. Todas as
embarcações são do tipo das canoas (dongos) e só em caso de
necessidade é que se improvisam jangadas de bordão. As jan-
gadas fazem-se ligando uns aos outros, por meio de cordas, quatro
ou cinco feixes de bordão de 60 a 70 centímetros de diâmetro.
O transporte de cargas por terra é feito em muanbas, como
já tivemos ocasião de dizer. A muanba é feita de dois ramos
de palmeira ou bordão entrelaçados entre si com as respectivas
ramagens, e para as tornar resistentes adapta-se-lhes dois paus
delgados em todo o seu comprimento.
As mulheres transportam as cargas em muendes, suspensas
nas costas, por cordas que passando por debaixo dos sovacos se
fixam nos ombros. $
Não conhecem o ciclo solar nem o lunar.
Dividem o tempo em dias, meses e anos. O dia é desde o
nascer ao pôr do sol; o mês conta-se de lua a lua, e o ano, o
intervalo compreendido entre duas épocas de chuvas.
Os remédios empregados pelos curandeiros a que chamam
Gangas, são na maior parte de origem vegetal e aplicam-se sob
a forma de cataplasmas, emplastros, injecções e beberragens.
O curandeiro quando é chamado para socorrer algum doente,
DE ANGOLA 177
a fim de imprimir ao acto uma feição misteriosa, procura suges-
tiona-lo pela magia, pintando a cara e vestindo-se com panos
de mabela (filamentos tirados da folha de bordão) e matando na
presença do doente algumas galinhas ou cabras.
Para a aplicação dos remédios torna-se inprescindível a de-
claração do adivinho, pois ninguém adoece sem ser por virtude
de um feitiço ou da acção dos feitiços.
Os curandeiros gozam entre estes povos duma grande consi-
deração e respeito.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A re-
ligião, rito, culto, divindades e sacer-
dócio.
Não há festejos ou outras cerimónias a observar, antes ou
depois dos nascimentos.
O local do parto é geralmente a própria habitação, a não ser
que o facto venha surpreender a parturiente fora da morada, o
que aliás não é raro acontecer, porque as mulheres até ao último
dia da gravidez andam por toda a parte, tratando das suas
ocupações habituais.
A posição da parturiente é sentada, encostada à pessoa que
a ajuda ou à parede da habitação com as pernas abertas.
No caso de aborto, a mulher é rodeada de um certo número
de cuidados, como sejam a aplicação no ventre de umas papas de
ervas odoríferas e ministrando-se-lhes beberragens feitas com
raízes de determinadas plantas.
As creanças são amamentadas durante dois anos aproxima-
damente.
Não há diferença de modo de proceder dos pais, se o recem-
nascido é rapaz ou rapariga ou no caso da mulher dar à luz
gémeos.
Sendo um ser disforme, a creança é imediatamente enterrada
no lodo, pois o seu nascimento é atribuído à má vontade do fei-
tiço Quita, o mais venerado de todos. Fora isto, não se registam
outros casos de infanticídio, pois que as creanças constituem a
maior felicidade do lar.
Os nomes são dados pelo pai, e são escolhidos dos seus ante-
178 POPULAÇÕES INDÍGENAS
passados os de pessoas amigas, não obstante a creança depois da
circuncisão tomar outro nome de seu gosto.
A creança pertence ao tio que tem o direito de dispor da sua
vida como lhe prouver.
Os pais pouco cuidado teem com a educação dos filhos. Desde
o dia do nascimento até aos doze anos são tratados pelas mães,
daí em deante pelos pais com quem vão a caça, e que acompanham
nas viagens de longo curso a fim de fazer a permuta de géneros
produzidos na sua região.
A educação moral é ministrada pelos pais em palestras fami-
liares, ensinando-lhes os deveres de honra e de urbanidade, e .o
seu porte perante as pessoas de jerarquia superior e seus seme-
lhantes, e finalmente o que lhes cumpre fazer para adquirir for-
tuna.
Com respeito às filhas, esta missão é exercida pelas mães. A
educação, repreensão e punição, designam-se indiferentemente pelo
nome de Mulongui.
Os sacerdotes são educados nas duas únicas seitas, a de
Mybumba e a de Quita, e a forma como são instruídos é difícil
de se descrever, porquanto a este respeito se guarda o maior
sigílio. Sabe-se contudo que os iniciados nestas seitas estão en-
cerrados numa casa construida expressamente para esse fim longe
da povoação, onde permanecem um mês e mais e que à saída há
festejos. Parecem umas associações secretas onde apenas são
admitidas pessoas de uma certa categoria e jerarquia. Aos que
professam a seita M' bumba dá-se-lhes de comer como preceito
indispensável um bocado de carne humana, uma só vez e ao ini-
ciar-se.
A educação dos adivinhos consiste em uma série de pantomi-
nicas a que imprimem uma feição divina. Manifesta-se o adivinho
sobre uma forma de uma doença semelhante a um ataque de
loucura para o que se consulta um adivinho antigo que acaba
por concluir que o neófito tem o feitiço de adivinho. A seguir é
o novo adivinho aperfeiçoado na arte e só depois disto é consi-
derado como mestre.
A educação do feiticeiro a que se chama N'doqui, é desco-
nhecida, pois ninguém sabe positivamente que estes o sejam
senão depois da sua morte.
DE ANGOLA 179
Aos curandeiros é ministrada a sua especial educação por
profissionais e por meio de prática durante um certo tempo.
Eis o que existe entre estes povos no que diz respeito a edu-
cação.
E muito vulgar a prática da circuncisão, cerimónia que dura
de um a seis meses. É uma ocasião em que melhores regalias
goza o Maungo, visto que lhe são satisfeitas pela família todas
as vontades, ainda as mais extravagantes, porquanto estes exi-
gem dos pais tudo quanto a sua imaginação inventa, embora saibam
que a satisfação de tais exigências lhes acarreta muitos sacrifícios.
Depois de se encontrarem curados, realiza-se a apresentação solene
na sanzala, assistindo ao acto a maior parte ou toda a sua família,
as pessoas de amizade e as de suas relações, reinando em todos
o maior regosijo. São presenteados pelos pais, e tomam então os
nomes porque passam a ser conhecidos.
A circuncisão é indispensável para um homem poder mudar
de estado, mas não é considerada morte seguida de nascimento,
tendo como consequência o iniciado aprender tudo de novo.
*
O casamento é imposto à mulher muito antes da idade da
puberdade, salvo raras excepções.
Os esponsais ou ajustes de casamento fazem-se em qualquer
época do ano desde que o homem atinja a idade da puberdade,
por intermédio dos pais ou dos tios. Tanto aquele como este,
podem pedir mulher para o filho ou sobrinho, mas cumpre a um
deles dar conhecimento do facto ao outro para evitar um casa-
mento com pessoa cuja família seja de maus precedentes ou com
quem se não esteja em boas relações.
A duração dos esponsais é indeterminada, varia segundo as
posses do homem.
Se o homem morre a mulher fica pertencendo para todos os
efeitos, ao sobrinho ou ao irmão do falecido, conforme os casos.
Para o casamento não é exigida a virgindade da mulher.
Usam os casamentos por troca, que são raríssimos, e que só
em casos especiais são admitidos; os casamentos de ensaio, que
só se tornam efectivos com o nascimento de uma creança ; e final-
mente os casamentos por dote ou penhor, que são os mais geral-
mente adoptados.
180 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Apesar das famílias se estimarem mutuamente, a mulher nunca
vai a casa do homem sem este pagar na integra o preço por que
foi ajustado o camalongú ou dote.
O homem pode ter muitas mulheres, todavia, a primeiro
chamada Cabanda é que lhe fica imediatamente subordinada no
governo da casa. Ha, pois, a poligamia ao passo que a poliandria
não existe. Todas as mulheres que o homem tem são legítimas,
tendo a primeira mais direitos que as outras. A monogamia é
acidental e rara, e só a pode determinar, em maior parte dos
casos, a pobreza. As mulheres pertencentes a um único homem,
vivem cada uma em sua cubata.
Não há festas de espécie alguma por ocasião dos casamentos,
nem intervêm nestes qualquer autoridade.
Em alguns casamentos a família da mulher é obrigada a sub-
stituir esta tantas vezes quantas sai da casa do marido ou morre.
São causas de impedimento de casamento a inimizade entre
as famílias e o grau de parentesco muito chegado.
Entre estes povos existe o sentimento do amor e o beijo
(quitoco).
O marido tem na casa a supremacia sobre a mulher em casos
puramente domésticos, mas não tem direitos alguns sobre os bens
que a mulher possue e sobre aqueles que ela possa vir a adquirir
na constância do casamento.
O marido não entra para a família da mulher, onde no entanto
é tratado com muita deferência. O adultério do marido não é
punido ; o adultério da mulher é punido por meio de multa paga
pelo homem com quem ela o pratica, correspondente ao cama-
longo que o marido pagou.
Existe o divórcio cujas causas principais são : mau comporta-
mento, indolência, reincidência no adultério, falta de respeito a
família do marido, maus tratos, impotência, etc.
O divórcio não tem efeito sobre os bens dos cônjuges por isso
que estes são distintos. Quanto aos filhos, só teem direito aos
bens da mãe, porquanto os do pai pertencem aos sobrinhos.
O divórcio importa a restituição do dote ao marido.
* #
As pessoas consideradas como fazendo parte da família, são :
pai, mãe, irmão, sobrinho, avós, os filhos e bem assim os servi-
DE ANGOLA 181
cais. Os irmãos de sangue são considerados como família como
acaso de nascimento.
Deve-se ao pai obediência completa. A êle é presente o pro-
duto da caça e da pesca cuja distribuição se faz segundo as suas
indicações, consultando-se sobre todos os assuntos que respeitam
os mínimos detalhes da vida de cada um, nada se decidindo sem
a sua aprovação.
Os filhos casados formam novo lar podendo este estabelecer-se
no mesmo grupo ou sanzala ou noutra como ao filho convenha.
É muito notável o respeito pelo pai, mãe, filho mais velho,
avô idoso e pelo irmão da mãe, podendo mesmo dizer-se que na
observância deste preceito rivalizam com gente de mediana edu-
cação. Os deveres de chefe de família consistem na educação e
protecção da sua prole, tanto quanto caiba na esfera da sua
acção e posses, procurando promover o seu bem estar e prover o
seu sustento.
Entre os membros da família e imediatamente ao pai está a
mulher a quem se recorre nos casos de divergência.
Os doentes são assistidos pelos curandeiros e em caso de
morte, alem dos remédios que lhes ministram, fazem cercar o
doente de um grande número de manipanços a fim de afuguentar
os feitiços. Quando se reconhece que os esforços do curandeiro
são inúteis para salvar o doente, fazem-se práticas religiosas em
volta do enfermo para apressar a sua morte.
O cadáver é atirado à cova de forma que a cabeça fique
voltada ao nascente e sepultado na posição em que ficou.
Os ritos funerários consistem na recitação de uma arenga à
beira da sepultura, exortando o espírito do defunto para que
fulmine o feiticeiro que o matou, terminando pela cerimónia de
depor em cima da sepultura manipanços.
Ainda é de uso depor sobre as sepulturas, como oferta, pratos,
canecos, garrafas, panos, chapéus, etc, para significar a estima
que os parentes teem à sua memória.
Em geral a viuva casa com o sobrinho ou irmão do falecido,
passando os órfãos a respeitar, obedecer e servir o padrastoi
embora pertençam ao tio materno.
Existe o testamento, porquanto muitas vezes o Maungo se v§
182 POPULAÇÕES INDÍGENAS
irremediavelmente perdido reúne toda a sua família, e verbal-
mente dispõe dos seus haveres, determinando partilhas e indicando
até os indivíduos que devem tomar conta das suas mulheres.
*
#_ *
Os Maungos crêem na existência dos espíritos que sob várias
formas podem influir na sua vida, e que transmitem os seus
desejos ou necessidades pela boca de uma pessoa viva, para o
que se realizam práticas especiais, em tudo, conforme como o já
descrito para outras tribus.
Adoram as representações materiais dos seres sobrenaturais,
os manipanços, cuja construção é das atribuições dos feiticeiros
benignos ou sacerdotes, a que já nos referimos.
Não teem uma noção exacta da alma humana, nem teem pa-
lavra que a signifique.
Teem a noção do bem e do mal, do remorso e da caridade.
Gomo manifestação exterior da religião costumam trazer ao
pescoço amuletos e não comem carne de galinha ou de rez morta
no mesmo dia e preparada em uma só panela de que se serve
muita gente.
Existem entre estes povos duas espécies de ritos, os oficiais
e os particulares.
Os oficiais são o quita e o m'bumba, cujos fins são muito
semelhantes e em que se iniciam as pessoas nobres, comprome-
tendo-se entre si ao auxílio mútuo, à igualdade nos deveres e
obrigações e ao trato social; o que em muito se parece com a
organização da nossa maçonaria.
Os ritos particulares de cada família a que se chama penates,
e que são : o raio (ragi nome indígena) que tem por missão ful-
minar os inimigos da família ; a fortuna (quibuca) que proporciona
a abastança; o gonga-zumba o elo que une os membros da família,
que muitas vezes vai descobrir parentes nas mais longíquas pa-
ragens.
Os templos são as próprias habitações a um canto da casa
que serve geralmente de alcova.
Sobre o sacerdócio acima tivemos já ocasião de nos referir,
acrescentando que os sacerdotes não teem posição social especial,
sendo, contudo, considerados por gosarem de poderes particu-
lares.
DE ANGOLA 183
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
O facto de os Maungos se dedicarem à creação de gado
em grande escala não nos pode levar à conclusão que eles levem
vida nómada ou pastoral. Os Maungos teem uma vida bastante
sedentária.
Existem, como nas tribus que já estudamos, diversas classes:
chefes, guerreiros, curandeiros, anciões, artífices, comerciantes,
escravos libertos e escravos.
No que respeita a escravatura existem escravos de guerra,
escravos de dívida, de crime de homicídio ou, outro de igual
gravidade e escravos por compra. Não ha escravos voluntários.
Os escravos são tratados como filhos e obedecem aos seus amos
como se o fossem.
# *
4
Não existe uma organização política distinta do grupo familial,
visto que as diversas aldeias ou sanzalas, que elegem os seus
chefes, são agrupamentos de famílias mais ou menos aparenta-
das.
O chefe chama-se fumo; os seus direitos e funções consistem
em ordenar e ser obedecido em tudo o que se refere à segurança,
bem estar físico e moral da aldeia em que tem autoridade. O
seu poder vai até ao ponto de, em caso de infracção ou desobe-
diência, impor multas e decretar a expulsão, a venda e mesmo a
pena de morte.
O chefe é eleito pela família ou grupo de famílias que constitue
a sanzala ; nunca é imposto, porque para o ser, era mister que
algum potentado mais poderoso tivesse autoridade sobre a tribu.
São hereditários e a sucessão é de irmãos para irmãos e de
tios para sobrinhos, podendo, no entanto, ser deposto, abando-
nando a sua gente o local onde a sanzala estava estabelecida.
Na falta do chefe governa o decano da sanzala.
Ha reuniões e assemblêas de anciões, nobres, chefes, homens
184 POPULAÇÕES INDÍGENAS
livres e escravos maiores e conceituados. Convoca-as e dirige-as
os decanos, resolvendo-se nelas o declarar a guerra, o estabelecer
relações políticas e económicas com as tribus vizinhas.
Como complemento da organização política dos Maungos,
acrescentaremos que os diversos grupos ou sanzalas, governa-
dos pelos seus chefes se encontram reunidos, formando uma
sociedade política mais extensa e forte.
* *
No que diz respeito a propriedade de bens móveis, pertencem
ao homem as armas as malas e as roupas; pertencem à mulher
as panelas e o restante que constitue o seu trem de cosinha, e
parte dos mantimentos, sobre que tem direito absoluto, e os
panos e ferramentas agrícolas sobre que é restrito o seu direito
e de que não podem dispor, pois lhe foi oferecido pelo marido
para os seus usos domésticos. A mulher livre e casada pode
dispor livremente do que é seu.
No que diz respeito a bens imobiliários, em geral o seu pro-
prietário é o homem que deles dispõe a seu belo prazer. Consi-
deram-se como bens imobiliários as casas, pois que a terra é
considerada como propriedade colectiva, a terra é para todos
como o sol e a água.
O direito à propriedade ou melhor à sua exploração advêm
da ocupação e da sua valorização. Existem terrenos e rios cuja
valorização compete a todos os habitantes da aldeia.
O comércio é exercido por caravanas que aos centros comer-
ciais vão permutar os géneros da terra que em geral são : a
borracha, o marfim, e o gado bovino, pelas mercadorias de
que necessitam: os panos, o sal, as armas a pólvora e a cute-
laria.
As unidades de medida são, a jarda para as medidas liniares;
o muzengi (pouco mais ou menos do tamanho de uma chávena
de café) para as medidas de capacidade; e a bola do tamanho
de um ovo de pomba para as de volume.
DE ANGOLA 185
*
Os contractos teem sempre um caracter religioso, pois são
celebrados na presença dos feitiços ou manipanços, a quem se,
promete o seu integral cumprimento.
O contracto uma vez celebrado, o seu cumprimento é impres-
cindível, sob pena de indemnização, porem em casos de força
maior, devidamente verificados, chega-se a um acordo no sentido
de o modificar.
Não ha prescrição, ao dono o direito é inextinguível.
Existe o empréstimo que se faz em geral sem juros, mas com
caução.
Os actos comerciais são livres, mas os devedores quando não
pagam são presos e muitas vezes são-lhes sequestrados os bens.
O casamento, sendo um contracto como qualquer outro, só se
dissolve pela restituição do Çamalongo ao genro.
A tutela implica responsabilidade ao tutor, traduzida pelo
bom trato, sustento e apresentação dos tutelados quando exigido
por quem de direito.
A sucessão é colateral feminina, os herdeiros são os irmãos
ou os sobrinhos filhos da irmã.
São livres as doações e irrevogáveis, desde que sejam feitas
por pessoas com capacidade de se governar.
O testamento é permitido mas a sua execução não fica ga-
rantida, porquanto a parte dele que vá de encontro aos interesses
da família não é posta em execução.
Existe um conjunto de costumes e regras estabelecidas defi-
nindo e classificando as infracções e estabelecendo as penas. No
entanto a aplicação da pena tem de ser aprovada pelos julgadores
e pode por eles ser atenuada ou agravada. A pena mais geral-
mente aplicada é a indemnização; os castigos corporais são
raros; a pena de Talião só é admitida em casos de flagrante
delito; não usam a mutilação, mas a prisão é frequente para
apressar o pagamento da indemnização.
Para averiguação e julgamento das questões reúne um tribunal,
constituído pelos homens bons e probos da região, que presidem
ao julgamento e aos debates e outros de menor ou igual nomeada
por estes convidados para fazerem parte do tribunal. O chefe
da sanzala não faz parte do tribunal e fica inibido de intervir
13
186 POPULAÇÕES INDÍGENAS
se as partes em litígio pertencem ambas à sua sanzala, caso
contrário intervêm.
Uma questão intenta-se dirigindo-se o queixoso ao homem de
bem que prefira expondo-lhe as causas determinantes, o que êle
transmite ao arguido que por sua vez contesta, combinando-se a
seguir o dia e hora da reunião.
A instrução da causa é pública e a prova do crime é feita por
testemunhas e na falta destas pela prova da beberagem de ipe-
cacuenha, dada aos cães dos indivíduos em litígio, sendo dada
razão àquele cujo cão primeiro vomite.
No caso de absolvição do arguido, o acusado é punido com
uma indemnização paga ao arguido e ao reembolso das custas
que as partes, antes do julgamento da causa, depositam nas
mãos dos julgadores.
Escala =12000000
Tríbu MUSSUCO
i
M / V ttíl f* » 1- f. np
CAPÍTULO VII
MUSSUCOS (<).
T. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica da tribu designada por
Mussueos. — Sua origem. — População.
A tribu Mussuco habita a região do mesmo nome, situada no
distrito da Lunda e limitada ao norte pelo rio Utungila, ao sul
pela tribu Maxinje, a leste pelos Lundas do Nzovo e a oeste pelo
rio Kuango.
O nome de Mussuco poderá ser derivado de kissuko ou ussuko
que significa noite; no entanto, os indígenas não conservam nas
suas tradições qualquer lenda que desse origem ao seu nome,
nem tão pouco repararam no calembour.
Os Mussueos dizem-se emigrados das proximidades de S. Sal-
vador e parentes dos Reis do Congo, bem assim como da tribu
Bá-iáca do Congo Belga e da dos Mahungos, e afirma-se que
conservam religiosamente escondido um sino que, na sua vinda
do Congo, trouxeram de S. Salvador. Pela história que fazem,
parece ser relativamente recente o seu estabelecimento na região
que ocupam, onde se instalaram com permissão do grande Muata-
Ianvo da Lunda e a quem pagaram durante muito tempo tributo.
Recordam ainda as guerras que os seus ascendentes tiveram com
os Maxinjes e com os Lundas de Nzovo nos primeiros tempos
depois da sua chegada.
(*) Prestou a sua colaboração no estudo desta tribu, coligindo todas
as notícias que poude obter sobre os Mussueos, o Administrador sr. As-
sunção Teixeira.
188 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os Mussucos são de fraca e pouco resistente constituição
física ; caracter assas expansivo, mas dissimulado, pouco corajosos
perante o perigo, de compaixão e sentimento raro, e polidez
convencional.
A população tende a diminuir, pelas razões indicadas no es-
tudo de outras tribus: poligamia, ligações conjugais precoces,
pouca higiene e péssima escolha dos locais onde se estabelecem.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Habitação. — Alimentação. — Meios de
existência. — Artes. — Ciências. — Facul-
dades intelectuais.
Nenhuns cuidados especiais de higiene ou de cultura física,
por exercícios corporais, praticam; lavam-se ou tomam banho,
apenas acidentalmente, quando tenham que atravessar qualquer
curso de água.
O seu traje habitual é a vulgar tanga de riscado impregnada
de óleo e tacula que os homens usam cobrindo-os da cintura aos
joelhos, e as mulheres desde o peito até à mesma altura.
Ambos os sexos penteiam o cabelo em tranças de 6 a 15 cen-
tímetros de comprimento que deixam cair sobre as orelhas e a
nuca, enrolando algumas tranças, que apartam também para
cairem sobre a testa.
O homem traz sempre consigo a competente faca gentílica de
pequenas dimensões, metida em uma bainha de couro e suspensa
dum largo cinturão, a que não falta a conhecida patrona, ornada
de pregos amarelos.
As mulheres enfeitam os cabelos com missanga encarnada e
azul e com umas chapas de latão polido, talhadas em forma de
cruz ; adornam-se com variados colares de missanga ao pescoço
e voltas de latão ou ferro polido, nos pulsos e tornosêlos.
Nas festas e danças, as raparigas enfeitam os peitos com mis-
sanga e os homens suspendem ao pescoço uns pequenos embrulhos
contendo pólvora, carvão e um osso, ou só um chifre de corça,
um dente de jacaré ou unha de onça. São os feitiços protectores*
DE ANGOLA 189
Alguns apresentam-se com o chamado feitiço Ngola — muito
estimado — que consiste em duas chapas de ferro adornadas de
pedacitos de cobre polido, colocando uma nas costas e outra
sobre o peito, por meio de cordas, com que as suspendem ao
pescoço.
Para o soba — desde que esteja na posse das insígnias do
sobado — é obrigatório o uso do cabelo completamente rapado e
da clássica kijinga, feita em tecido de fibra de palmeira e com
dois enfeites aos lados, em forma de chifre, voltados com as
pontas para baixo. Aos macotas pertence o uso da malunga
(pulseira de ferro ou latão) e também da kijinga, mas sem en-
feites.
A tatuagem é praticada habitualmente pelos dois sexos na
adolescência, por incisões e picaduras, na testa, nariz e no ventre.
Os desenhos preferidos são: cruzes, losângulos e tartarugas.
*
Estabelecem-se em sanzalas desprovidas de qualquer defeza
guerreira constituídas por pequenos agrupamentos de cubatas,
correspendendo, em média, 40 cubatas, com uma população de
120 habitantes, para cada sanzala. Quando acontece ocorrerem
muitos óbitos em pouco tempo, reputam o local habitado pelos
espíritos (mukumbi) e tratam de mudar a povoação para outro,
ainda que próximo. O local de eleição é, no geral, as proximi-
dades dos rios onde abunde o peixe, sendo previamente discutido
e definido pelo chefe e pelos macotas.
A cubata usual dos Mussucos é de configuração rectangular,
com telhado de duas águas, esqueleto de paus delgados, revesti-
mento de caniço e cobertura de colmo. A única abertura que se
nota na habitação é a porta de entrada, sempre feita no extremo
de uma das maiores faces; mas em sentido oposto, e à maior
distância da porta de entrada, lá está sempre a competente
portinhola, melhor ou peor disfarçada, por onde os moradores
se possam pôr em fuga em caso de necessidade.
Interiormente, comportam duas divisões : a cosinha (muanza)
e o quarto (fulu). Neste, uma ou duas camas feitas por uma
grade de pequenos paus de bordão, coberta com esteiras de
mabre (papyros) e assente em quatro forquilhas que a levantam
do solo cerca de meio metro, e nenhum outro móvel.
190 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Na cosinha as três pedras, torrões de morros de salalé, ou
panelas velhas de barro cheias de terra, onde assenta a panela
que se quere pôr ao fogo, e nada de bancos ou mesas. Em ambos
os compartimentos se vêem suspensos das paredes e do tecto,
vários cestos e embrulhos com mantimentos e diversos objectos.
As casas dos chefes, quando estes são importantes, são de
forma quadrada; na madeira do caixilho ou engradamento da
porta, tem, abertos em relevo, vários desenhos figurando jacarés,
tartarugas e kijingas ; no alto da porta : uma espécie de taboleta
de madeira com um desenho semelhante a dois pontos de inter-
rogação, voltados horisontalmente com os respectivos pontos
voltados para a extremidade da taboleta.
A habitação do soba tem anexo um grande recinto fechado,
onde se encontram as cubatas das suas numerosas mulheres, no
qual não é permitida entrada a homens. As casas dos macotas
e dos homens versados em feitiçaria teem um pequeno quintal,
de cerca de quatro metros quadrados, onde se encontra a pe-
quena cubata dos feitiços; os menos importantes constroem esta
casa, sem resguardo algum, em frente da casa de habitação.
Os principais géneros de alimentação dos Mussucos são: a
mandioca, de que fabricam a fubá, o milho, a batata doce e os
produtos da pesca e da caça. De ordinário comem em família,
e só o soba come sosinho.
Como bebida excitante, usam o sumo fermentado da palmeira
a que dão o nome de malafo, e uma espécie de cerveja de milho.
Não é permitido olhar-se para o soba emquanto estiver bebendo.
Cada família tem o seu alimento animal proibido, a kigila,
que lhe é imposta pelo feiticeiro ; ao soba e às mulheres não lhes
é permitido comerem ovos ou galinhas, mas esta imposição parece
fundar-se mais num critério de exemplar economia do que num
preceito fetichista, visto que é transgredida frequentes vezes.
A geofagia é habitual, sendo a terra escolhida uma espécie
de greda muito branca, a que dão o nome de kikela.
Não são antropófagos por hábito, mas afirma-se que em certos
actos solenes, como à investidura dum soba no poder, ou a
iniciação de um feitiço, praticam alguns actos de antropofagia
a ocultas e como cerimónia.
DE ANGOLA 191
As principais ocupações deste povo são a agricultura, a pesca
e a caça; dedicam-se um pouco à extracção da borracha e exercem
rudimentarmente, apenas para a satisfação das suas necessidades,
os misteres de ferreiro, cesteiro e cordoeiro.
Só o soba e os macotas possuem currais de gado bovino e
muito poucos se dedicam à criação de gado de outras espécies.
Homem e mulher fazem a sua lavra à parte, tratando sepa-
radamente dela desde o preparo inicial da terra até à época das
colheitas, sendo estas então feitas pela mulher e entrando para
o celeiro comum da família.
São de exclusivo cuidado do homem: a colheita dos frutos
silvestres no mato, o corte dos cachos de dendem e a extracção
do malufo.
As lavras do soba são feitas pelo povo, em dias previamente
designados pelo chefe, costumando este gratificar os trabalha-
dores com um boi ou com uma cabra, conforme a importância
do serviço feito.
Para o amanho das terras e tratamento das lavras, empregam
a vulgar enxada gentílica, e para a preparação da fubá e escolha
dos legumes e do milho, servem-se do conhecido almofariz de
madeira a que chamam kino e de diversos crivos e cestos que
denominam mussalo e kolo.
A pesca do bagre, do liange e do tseme é feita ao anzol e com
armadilhas de verga (biono), semelhantes aos covos usados pelos
nossos pescadores.
A caça, sua ocupação predilecta, é praticada individualmente
desde tenra idade pelo homem em qualquer época do ano; cole-
ctivamente, fazem as grandes caçadas da época das queimadas
(agosto e setembro) para as quais se reúnem os moradores de
uma ou mais sanzalas por determinação do chefe a que pertencem
os capins a queimar. Na véspera e na manhã do dia designado,
rufa o tambor (muendu) e à hora aprazada, reunindo os caçadores
no local escolhido, encarregam os rapazes e um ou outro velho,
ainda entusiasta, de lançarem fogo em volta do terreno indicado,
(kitumbo), enquanto os caçadores vão avançando atrás do fogo
até aos pontos onde a caça acossada por êle é obrigada a refu-
giar-se. 4o soba pertence sempre uma determinada porção de
192 POPULAÇÕES INDÍGENAS
carne, proporcional aos resultados da caçada, e ao caçador que
fere em segundo lugar o animal, cabe -lhe como parte uma espádua.
*
Revelam pouco engenho e génio artístico nos objectos que
fabricam, sendo mesmo muito mais imperfeitos nas suas grosseiras
esculturas de figuras humanas, de jacarés e de tartarugas, do
que os seus visinhos Lundas, Pakas e Holos, que pretendem
imitar.
São dotados de boa memória e desenvolvem muito regular
raciocínio, acompanhado de hábeis argumentos de apoio, em
defesa dos seus interesses, nas questões que entre si e com as
tribus visinhas teem de derimir.
# %
O dialecto dos Mussucos tem mais afinidades com o kikongo
do que com qualquer das outras línguas do grupo bantu faladas
na Província, o que vem, em parte, confirmar a sua vinda do
Congo. É certo que usam bastantes vocábulos dos dialetos do
Xinge, Holo e Paka, mas naturalmente adoptados das relações
comerciais com estes visinhos.
No canto, como em diversas cerimónias, tais como a do
Ngiri (iniciação das raparigas), e várias práticas de feitiçaria,
empregam uma língua especial que todos compreendem, mas
para os feiticeiros consagrados, há uma linguagem secreta só
deles conhecida.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A reli-
gião, rito, culto, divindades e sacerdócio.
Quando se aproxima a época do nascimento fazem-se as ceri-
mónias de esconjuro — munjilrixe — para afugentar os espíritos
malfazejos, acompanhando estas cerimónias com várias danças.
A grávida ata ao pescoço umas cordas a que chamam —pataki;
DE ANGOLA 193
— toma o — muanvo — remédio com que pretendem facilitar o
parto; corta as relações com o homem, e abstêm-se de entrar
nas covas onde costumam extrair o barro para o fabrico da
louça e outros usos.
O parto realiza-se fora ou dentro da cubata, em qualquer
local fora da vista dos homens, a quem é vedado presenciá-lo,
tomando a parturiente logar numa. esteira, assentada, e assis-
tida por outras mulheres reputadas peritas no mister de par-
teiras.
Findo o parto a parturiente fica recolhida na cubata, onde
é obrigada a permanecer durante 5 dias; se Oste foi feliz feste-
ja-se o nascimento da creança matando uma cabra.
Se o recemnascido vem aleijado ou disforme não é amamen-
tado, e na maioria dos casos é lançado logo ao rio.
O período de lactação vai de 2 a 3 anos e emquanto a creança
não estiver crescida a mãe não pode comer ratos.
A creança pertence ao tio materno e recebe dois nomes,
sendo um secreto.
#
Não se preocupam com a educação física ou intelectual das
crianças que só é dada, com fins especiais, àquelas que são des-
tinadas a serem feiticeiros, curandeiros ou sobas. Como educa-
ção moral, coíbem-nas da prática de actos que são contrários
aos seus usos e costumes, repreendendo-as, e aplicando-lhes às
vezes castigos corporais, porem sempre brandos.
Ambos os sexos recebem uma iniciação geral — que para o
masculino consiste na circuncisão (mukundá) e para o feminino
na mutilação dos órgãos genitais (ngiri).
Repete-se esta operação periodicamente, cada 7 ou 8 anos, e
nela entram, todos os que tendo entre 7 a 16 anos, ainda não
tenham sido iniciados.
A operação, e as cerimónias da circuncisão, duram de ordi-
nário entre 3 a 4 meses. Para elas constroem uma cubata no
mato, — oculto entre o capim e longe das sanzalas, — onde os
rapazes permanecem nús, e inibidos de se avistarem com outras
pessoas, àlêm do operador e duma mulher velha que auxilia a
operação e os curativos. Durante a operação essa ajudante ani-
ma-os com uma cantilena cheia de expressões lúbricas e promes-
sas de futuros gosos sexuais.
194 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Ao nascer e pôr do sol entoam todos os dias, em coro, um
hino àquele astro.
Feita a completa cicatrização do local operado e ultimadas
as cerimónias e preparativos para a volta às suas cubatas, os
rapazes, vestem-se com uns trajes (espécie de dominós com capuz)
feitos de fibras vegetais, e regressam à sanzala vindo o mais
velho a tocar apito.
A sua chegada as raparigas fogem e escondem-se. Seguem-se
depois várias cerimónias com danças e cânticos para festejarem
o acontecimento.
*
* #
A moralidade desta tribu proíbe as relações sexuais antes e
fora do casamento, mas nem por isso a virgindade acompanha
sempre os noivos quando casam, nem também, deixam de apare-
cer casos de prostituição (maseka) embora esta seja condenada.
É frequente a masturbação (mutngila) e ainda que raramente,
dão-se casos de sodomia (kindumbu) que são severamente puni-
dos, passando à condição de escravos ou a novo senhor, aque-
les que os praticam.
Existe o beijo (kudimuka) como manifestação de sentimento
de ternura, respeito e sensualidade.
O casamento considera-se geralmente como ligação por toda
a vida, mas existe o repúdio e o divórcio por determinadas cau-
sas e mediante condições estipuladas.^
Casam com os indivíduos da mesma tribu ou de tribus dife-
rentes e que estejam considerados na mesma classe social. A
idade própria para a mulher casar, começa desde que apareçam
os sinais de puberdade; para o homem, costuma ser só depois
dos 20 anos.
O casamento é ajustado quando a mulher é ainda muito
nova.
Para o ajuste o pretendente entende-se primeiro com a mãe,
depois com o tio materno e finalmente com a rapariga, cuja
opinião pouco decide no assunto.
Aceites as pretensões do noivo, oferece este, três presentes :
o primeiro (kijika) à mãe, cujo valor orça pelo de 4 metros de
riscado; o segundo {mabomdá) ao tio, geralmente uma cabra; o
terceiro (bipahu) que costuma ser um boi, é oferecido também
ao tio. Se o noivo morre depois de ter recebido o presente, a
DE ANGOLA 195
rapariga tem de casar com qualquer dos seus irmãos, ou então,
o tio, é obrigado a restituir no dobro o que recebeu (ponda).
Chegado o dia, ou antes, a noite combinada, a mulher depois
de adornada com missangas, pequenos guisos, pulseiras de latão
e vários outros adornos, e de bem besuntada com óleo e tacula,
é coberta por um único pano e levada às costas de um homem
até casa do noivo. O carregador da noiva pede pagamento pelo
seu serviço prestado, recebe-o, retira-se e a mulher entra então
para o seu novo lar. Desde o momento em que ela entra em
casa do noivo efectivou-se o casamento, suceda o que suceder, e
o noivo tem que presentear também o soba.
Para os filhos do povo as cerimónias são assim simples e a
festa limita-se aos membros da família, mas para os filhos dos
grandes da tribu acompanham-se de manifestações festivas tra-
duzidas em danças e comezainas.
A poligamia é permitida e o número de mulheres só é limitado
pelos recursos económicos de que dispõem os homens.
Assim, o Kiambanda tem sempre avultado número de mulheres
(o actual tem tido sempre entre 50 a 70) e os sobas e outros
homens ricos, teem 6 ou 10 e mais, enquanto os pobres se con-
tentam com uma.
A primeira mulher (mubanda) é considerada como a legítima
e a dona da casa. As outras são consideradas como concubinas
e recebem o nome de bakama.
Vive cada uma em sua cubata, dando-se contudo explendida-
mente.
A poliandria só é permitida às mulheres sobas; nesta tribu,
só gosa essa regalia a N'guria-kama que ainda assim não abusa
dela, pois, pouco vai além, oficialmente, do príncipe consorte, o
Muene-Mussunda.
Os filhos da Mubanda são os mais considerados e esta não
pode ser cedida nem mesmo vendida senão como castigo por
adultério.
O marido tem pouco poder sobre a mulher e o casal conserva
sempre maior ligação com a família da mulher do que com a
dele.
O adultério tanto do homem como da mulher, é punido.
Quando praticado pelo homem, a mulher tem o direito de aban-
donar o lar, mas deixando ao marido todos os haveres; quando
praticado pela mulher, pode ela ser pelo marido expulsa do lar,
tendo então que refugiar-se em casa dos pais, c restituindo ao
196 POPULAÇÕES INDÍGENAS
marido o valor de todos os presentes que a família recebeu,
quando queira novamente casar com outro.
Sobre o amante é que incidem sempre as grandes penalidades,
pela falta da adúltera.
#
A morte, como as doenças, nunca é julgada casual; tudo é
atribuido aos feitiços.
Quando alguém se encontra doente, recorre ao feiticeiro
curandeiro; este intervêm procurando sempre inutilizar a acção
perniciosa dos feitiços malfazejos, opondo-lhe de reforço com
varias drogas que vai aplicando, muitas vezes com certa eficácia,
as competentes práticas de feitiçaria que também não deixam de
ter sua utilidade como terapêutica sugestiva, em alguns casos.
Quando a morte não sobrevêm subitamente, o muribundo é
é assistido pela família e pelo feiticeiro que lhe vai fazendo en-
cantações com kitekas (chifres de corças) e vários amuletos para
que não volte à tribu a fazer mal aos seus parentes.
Nenhuma outra cerimónia praticam nos últimos momentos
do muribundo.
O cadáver depois de untado, com óleo e tacula, é vestido com
os seus melhores panos, adornado com missangas e outros enfei-
tes e depositado na cubata cerca de 24 horas, durante as quais
se lhe fazem as cerimónias fúnebres, que consistem no choro das
carpideiras, elogios fúnebres, toques de tambor e tiros de espin-
garda.
Findo o cerimonial o cadáver é então enterrado, colocando-
se-lhe sobre a campa os objectos mais vulgares do seu uso è alguns
géneros alimentícios.
O coval é feito com bastante profundidade, abrindo-se no
fundo e para o lado, uma espécie de gaveta onde o cadáver é
colocado horizontalmente e por forma a que a terra com que é
enchida depois, o não toque.
Como sinal de luto as mulheres parentes do morto costumam
pintar a cara com tinta preta e tacula durante 3 meses.
No cortejo fúnebre até ao cemitério, apenas se encorporam
os homens parentes do morto.
O cadáver da mulher casada, depois de feito o competente
cerimonial, é mandado pelo homem à família da mulher para
que lhe dê a sepultura, junto dos seus parentes.
Í>È ANGOLA 19?
Para os sobas fazem-se as cerimónias fúnebres com numerosa
assistência. O cadáver depois de untado é colocado na posição
de assentado, sobre uma tarimba, egual à que lhe servia de
cama, e que se dispõe no meio do quarto; ali fica durante dois
anos ou mais, até que seja reduzido à ossada.
Nessa altura, os ossos das mãos, são entregues ao sobrinho
que herdou o sobado, e, os restos do esqueleto, como os mais
despojos do cadáver, da mortalha e da tarimba, são enterrados
dentro da cubata.
Cada lar, correspondendo de ordinário a uma cubata, compõe-se
da mãe, dos filhos solteiros e do pai, que, não é raro, faz parte
de mais de um lar.
Os filhos, mesmo depois de casados, são estimados como
membros do lar em que foram criados e retribuem essa estima
aos seus ascendentes, manifestando-a em todas as idades e situa-
ções; cumprimentam-nos beijando a terra e absteem-se de falar
em questões gentílicas na sua presença.
Pelos tios guardam o mesmo respeito e consideração, espe-
cialmente pelos maternos, de quem de facto mais dependem.
Reconhecem também o parentesco por afinidade.
Na intimidade do lar quem manda é o pai, mas, nas ocasiões
de mais ponderação, quem decide sobre tudo que se ligue com a
situação dos filhos do casal é o tio materno, seu tutor legítimo
também, por falecimento dos pais.
O poder dos tios vai até à faculdade de venderem os so-
brinhos como escravos ou pagarem as suas dívidas e crimes com
eles.
Os órfãos são adoptados pelos parentes passando de preferência
aos do clan da mãe.
Toda a família é solidária em matéria de dívidas, contractos
e crimes.
No que diz respeito a ideias e práticas religiosas, pouco di-
ferem as dos Mussucos do comum a quási todas as tribus que
povoam a colónia.
É o féticismo professado por todas as populações do grupo
198 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Bantu, com pequenas variantes de ideias, ritos, cultos e divin-
dades, produto das influências modificadoras dos meios em que
teem habitado e dos grandes acontecimentos da tribu, que pas-
saram aos domínios da tradição.
Os Mussucos crêem na existência de entes superiores, invi-
síveis, de poder ilimitado, que não pretendem representar ma-
terialmente, que não temem e antes respeitam como forças
protectoras e benévolas, e aos quais prestam um culto íntimo
apenas exteriorizado por simples exclamações, frases e fórmulas
de juramento. Distinguem assim dois deuses : um superior que
entendem masculino o Nzambi ã Pungo e um outro feminino o
Kamona Mauéze.
Este último é que lhe impõe o dever de não tocarem nos
feitiços que não lhe pertencem (Kufunduka) e a obrigação de
respeitarem a Kijila (proibição de comerem certos alimentos).
Abaixo destas potências vêem então os verdadeiros feitiços,
representados materialmente por ídolos afectando formas humanas
e de animais, — verdadeiras produções teratológicas do génio
artístico dos escultores — que julgam habitados por um espírito
extra-humano ou pelo de algum lendário herói ou sábio feiti-
ceiro.
A todos os feitiços cabe o nome genérico de Kiteka.
Damos a nota de alguns mais importantes:
O Kiteka — protector da tribu, verdadeiro ídolo da pátria.
O Ngola e o Koxi — ídolos máximos que em tudo superin-
tendem.
O Kungila — que intervêm na fecundidade das mulheres (re-
presentam-no por uma escultura tosca de mulher, tendo o tórax
e o ventre cavado, em forma de barco).
O Kiteha-Luango — advogado contra as hemorragias (este
feitiço para exercer a sua influência em benefício dos doentes
exige primeiro que lhe satisfaçam os seus apetites de sangue,
fazendo-o correr abundantemente de algumas vítimas que imolam,
— cabras, carneiros e outros animais).
O Kissongo — que protege os caçadores.
O Kibeji — espécie de policlínico, com formas femininas. Cura
todos os males.
Depois, a infinidade de objectos de virtudes mágicas, com os
mais bizarros feitios e utilidades; uma variedade enorme de
talismans, de amuletos e de feitiços de poder maléfico, com que
os possuidores pretendem acalmar, atrair e chamar em seu
DE ANGOLA 199
auxílio para o bem e para o mal, os diversos feitiços e os manes
dos antepassados e dos feiticeiros (Muvumbi), ou auxiliar os
efeitos das práticas de magia branca a que se entregam.
Acreditam na vida futura que julgam eterna, mas a alma (Moio)
só existe nos homens; depois da morte torna-se sombra (Kivuri)
e passa a habitar em uma das grandes árvores do mato, próximo
à sua sanzala, tomando o nome cte Muvumbi.
Dali, os Muvumbi guardam as terras da caça e regulam o
universo; interveem na vida da família e da tribu, mandam a
chuva, a abundância de colheitas de caça, de pesca, etc.
Todos os acontecimentos, ainda os mais simples, são vistos
supersticiosamente e atribuídos à influência dos feitiços e dos
manes, ou a malefício dos vivos.
Para captar a simpatia dos feitiços e dos Mavumbi prestam-lhe
juramento, prometem-lhe dádivas, oferecem-lhe alimentos e outros
objectos e sacrificam-lhe animais para satisfazer o que o feiticeiro
indica que eles desejam. Para se vingarem ou subtraírem ao
mal causado pelos malefícios dos inimigos vivos praticam sempre
tremendas injustiças e por vezes verdadeiros crimes.
Consideram que há estreitas relações de parentesco entre
determinado animal e planta com cada família da tribu e dali,
a Kijila a que já nos referimos.
Quem desempenha o principal papel na vida religiosa da
tribu é portanto o feiticeiro verdadeiro sacerdote do culto feticista
que, dispondo de supostos poderes sobrenaturais, obtidos da
educação e iniciação que recebeu, gosa e abusa de largos privi-
légios com que vai explorando a população da tribu.
Os sobas são considerados sempre como feiticeiros e tiram o
seu maior poder dos feitiços de que são possuidores.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
A vida dos Mussucos pode dizer-se sedentária porque as
mudanças do local em que estabelecem as sanzalas são sempre
originadas por uma necessidade de momento, como já dissemos.
200 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A organização social, como a de quási todos os povos que
habitam a Colónia, compreende no geral três classes :
Os nobres, ou sejam os sobas, sobetas, outros chefes e pessoas
de importância, e a sua família.
Os homens livres, que constituem o que se poderá chamar a
burguezia.
Finalmente, os escravos.
Os escravos podem sê-lo por nascimento, ou por terem passado
a esse estado.
Passam à condição de escravos os filhos e os parentes daqueles
que, para pagamento de alguma dívida ou reparação por crimes
praticados, são obrigados a indemnizar o credor, a vítima ou
os seus parentes, com um certo número de muleques. O escravo
por nascimento — filho de outro escravo — é mais considerado.
Há alguns que voluntariamente se submetem a essa condição,
por melhor conveniência em se sustentarem e por outros fins em
que reconhecem ter vantagens.
A escravatura entre estes povos não é aquela escravatura de
tráfico, que se praticava no tempo das guerras e razias, mas
sim a escravatura doméstica, em que o servo vive familiarmente
com o seu senhor, passando a ser considerado como membro de
sua própria família, acompanhando-o, prestando-lhe serviços,
partilhando das suas venturas e dos seus infortúnios, e vindo
até a herdar-lhe parte dos haveres.
Como sinal de submissão e sujeição à condição de escravo, o
indígena que a ela passa, ao apresentar-se ao seu senhor, toma
entre as mãos a tijela de barro onde come os alimentos, ajoelha,
e curvando o corpo até quási tocar com a fronte em terra, parte
aquela tijela aos pés do amo.
A organização política do Mussuco compreende:
O soba chefe com o nome de Kiambamba, diversos sobas ou
sobetas e os macotas ou chefes de povoação.
O Kiambamba na resolução de assuntos de importância é
DE ANGOLA 201
assistido pelo conselho dos diversos chefes e de alguns homens
velhos, que são os fiéis depositários das leis e costumes da tribu.
Para o coadjuvarem na gerência dos negócios públicos tem
também uns dignatários, espécie de ministros, com diversos nomes
e encargos, mas que na realidade tratam mais dos interesses
especiais do Kiambamba e dos seus do que dos negócios públicos.
Dentre os dignatários que acompanham o soba nas grandes
solenidades, merece especial menção o mukixe, indivíduo que toma
esta designação pelo nome dado a uma enorme cabeça de pau,
ôca, que enfia pela sua. Esta máscara é encimada por uma
pomba ou qualquer outro enfeite e adornada com um largo
colar de capim seco que cai sobre os ombros do portador.
O Mukixe marcha à laia de batedor, na frente da comitiva
do soba, batendo fortemente com os pés no chão para melhor
fazer soar com estalos de castanholas, uns molhos de cascas
secas do fruto de uma trepadeira chamada futi, que leva atados
aos joelhos.
O Kiambamba tem ainda grande poder e direitos sobre os
seus súbditos e não obstante a influência das autoridades locais
e da missão religiosa instalada próximo da sua sanzala e o estar
já positivamente submisso ao nosso domínio, ainda pratica alguns
actos de requintada selvageria sobre o seu povo.
Afirma-se que alguns desgraçados, que caem no seu real
desagrado, são condenados a morrerem encerrados dentro duma
cubata a que manda lançar fogo.
Diz-se o verdadeiro dono das terras que habita a sua tribu;
recebe por direito tradicional uma cabeça de gado ou um muleque
de cada uma das famílias dos seus súbditos que se constituem;
cobra uma quota parte dos valores que a sua gente aufere no
negócio; recebe uma porção da caça abatida e tem a faculdade
de requisitar, para seu serviço particular, a título de soldado do
Kiambamba, um filho dos lares que tenham mais do que um
filho varão.
Entre os Mussucos há um soba feminino a — Nguria-kama —
cuja origem é a seguinte: na época em que os Lundas do Nzovo
andavam em luta com os Mussucos travou-se acesa peleja numa
pequena sanzala de que era chefe uma mulher, na qual ficou
vencido o próprio Nzovo, que lá deixou o seu cadáver e um mo-
numental bombo onde rufava as suas glórias marciais.
Para consagração de tão brilhante feito de armas e de tão
excelente concurso prestado pela mulher chefe da sanzala, a
14
202 POPULAÇÕES INDÍGENAS
sucessão do sobado a que ela pertencia, ficou pertencendo à des-
cendência feminina, dando-se-lhe o título de Nguria-kama (mãe
dos cem) e à sua habitação o nome de Kuii.
Ao príncipe consorte desta rainha é dado o título de Muene-
Mussundo.
Os indígenas de outras tribus que vão estabelecer-se nos do-
mínios do Kiambamba desde que paguem a este um certo tributo
e obtenham a necessária permissão para construírem cubata e
cultivarem os campos, passam a ser considerados como súbditos
e teem iguais direitos e deveres da gente do Mussuco.
Os pretos e mulatos civilizados são considerados como os euro
peus ; dão-lhe mesmo o qualificativo de brancos da terra dos pretos
É assim que eles consideram, temem e respeitam, grande
número de ambaquistas que vestindo à europeu e falando regu
larmente o português, se teem ido estabelecer, próximo da po
voação do Luremo e nas visinhanças do caminho de penetração
comercial e militar para o nordeste da Lunda, onde fundaram
regulares emprezas agrícolas de cultura de mantimentos para
indígenas e géneros para europeus que, diga-se de passagem,
são de apreciável utilidade para os carregadores e brancos que
por ali transitam e pára os que habitam nas cheanas incultiváveis
da borracha e das ervas.
Salvo o direito que o Kiambamba e os outros sobas se arro-
gam sobre as terras em que dominam, a propriedade da terra
pertence a quem a cultiva e enquanto a cultiva.
Cada um utiliza a que melhor lhe convêm, pela natureza do
terreno e proximidade da sua habitação, e uma vez julgada ex-
gotada ou cançada para determinadas culturas, é abandonada.
Como já dissemos, as lavras são propriedade à parte para o
homem e para a mulher, mas as colheitas entram para o celeiro
comum da família.
A cubata e os haveres móveis pertencem só ao chefe da
família.
#
Os principais artigos de exportação no Mussuco são: a bor-
racha cuja extracção pouco intensa se limita à parte norte da
DE ANGOLA . 203
região junto à fronteira belga; as galinhas, algum gado caprino
e mantimentos.
Importam-se tecidos e artigos vários do comércio que consti-
tuem o consumo geral das populações indígenas da província.
A forma de comércio é a permuta.
A circulação da moeda portuguesa é diminutíssima, quási
nula. Como os povos da alta Lunda consomem muito sal mine-
ral das salinas do Hôlo, que os indígenas daquela região apre-
sentam no mercado em uns tubos de bunho — de cerca de dois
palmos de comprimento a que chamam muxas — servem-se deste
artigo como moeda, para facilitarem as suas transacções.
Cada Muxa contêm cerca de lfa quilo de sal muito impuro e
a sua cotação é, em média: três centavos.
Do que já dissemos àcêrca desta tribu, algumas noções se
tiram sobre as suas costumagens jurídicas.
Sintetizaremos pois, neste logar, o que se observa da descri-
ção feita, acrescentando-lhe o pouco mais que sobre o assunto
podemos colher, do estudo de dispersas notícias sobre os Mus-
sucos.
O conjunto de preceitos observados pelos Mussucos para a
resolução das suas questões, as suas leis enfim, se não estão
escritas, nem por isso deixam de ser tão bem conservadas como
se o estivessem.
O texto dos códigos é a memória dos mais velhos que vai
retendo e transmitindo fielmente as tradições da tribu, às novas
gerações.
Entre os Mussucos a propriedade das terras limita-se à posse
de quem as cultiva apenas durante o tempo em que elas estão
aptas para produzir abundantemente ; à cubata pouco ou nenhum
valor atribuem, e portanto, os seus haveres são constituídos
pelas lavras, gados e outros valores móveis, como fazendas,
.muxas de sal, peles, etc.
Destes dispõe o pae, enquanto vivo, em benefício da mulher
e dos filhos, mas não lhos transmite por sucessão nem tem o
direito de dispor deles por testamento quando tenha herdeiros
forçados, que são os sobrinhos, filhos dos seus irmãos uterinos.
Morto o chefe da família, vêem aqueles sobrinhos tomar conta
204 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de todos os haveres, enquanto a viuva com os filhos regressa ao
seu clan, levando apenas o direito de colher os frutos das lavras
que fabricou e os poucos objectos que se consideram bens mobi-
liários próprios.
Pode dizer-se que é esta a regra geral do direito de sucessão
na herança dos bens, porém há, evidentemente, algumas hipóte-
ses em que esta regra não pode seguir-se por falta de herdeiros
do matriarcado, e outras, em que não obstante existirem esses
herdeiros, se não segue também rigorosamente aquela forma
geral.
Dessas hipóteses apresentaremos, na generalidade, os casos
que melhor conhecemos.
Na falta de herdeiros, sobrinhos, irmãos ou tios uterinos do
autor da herança, os bens passam aos filhos; na falta destes,
aos parentes do ramo paterno e na ausência absoluta de parentes,
o herdeiro é o soba.
Como regra, a viuva deve casar com um irmão do falecido
e quando assim suceda estabelecem um acordo para a partilha
dos bens em cujo cômputo entram os haveres e a própria viuva ;
neste caso os filhos solteiros ou vão para junto dos seus tios
maternos ou continuam durante a infância em companhia da
mãe. Quando o falecido só tem parentes com quem a viuva não
possa casar, é frequente deixar de regressar com os filhos ao
seu clan, para ficar vivendo na companhia dos parentes do
marido.
O direito de testar existe, mas restrito aos casos em que não
haja herdeiros forçados do matriarcado e sempre dependente do
grau de desinteresse dos outros herdeiros legítimos e do soba
que raríssimas vezes se conformam em respeitar a vontade do
testador sem serem bem remunerados.
Os Mussucos fazem os seus contratos de empréstimo, de troca
e de compra e venda, verbalmente. Quando a transação é de
relativa importância ajusta-se e fecha-se na presença do soba,
do macota chefe da sanzala ou de alguns homens velhos e sem-
pre com a assistência e testemunho dalguns membros da família
dos contratantes. Como que ratificando e garantindo o propó-
sito de cumprir a obrigação tomada, é costume, o comprador
ou o que recebe o empréstimo, dar ao vendedor uma galinha ou
uma cabra que todos os assistentes ajudam a comer.
Os empréstimos são sempre feitos sem juro estipulado.
O contratante que não cumpre escrupulosamente a obrigação
DE ANGOLA 205
tomada fica sujeito a uma multa que vai desde o dobro ao quín-
tuplo do valor recebido. Esta multa raras vezes é fixada no
acto do contracto ; a sua aplicação está nos usos e costumes e
quando não seja paga voluntariamente segundo o acordo dos
contratantes, é fixada pelo juís do pleito.
Quando o réu não tenha haveres para indemnizar o autor
cumpre à família do réu o pagamento ; se esta também os não
possue, o valor da indemnização é então calculado e pago com
pessoas de família que ficam escravos do autor.
Os Mussucos na aplicação das condenações não distinguem
de modo tão diferente como nós o direito civil do criminal.
Tudo para eles se liquida preferentemente com o pagamento
da indemnização.
As penas estabelecidas, visam mais à reparação dos prejuízos
causados, rial ou imaginariamente, e à satisfação da avidez dos
ofendidos e dos julgadores, do que, na verdade, ao nosso fim
de repressão dos delitos e restabelecimento da ordem, moral e
social violadas.
A gravidade das penas, pode dizer-se fixada para cada espé-
cie de infracção quando esta seja um facto positivo, mas no
grande número de acusações por crimes imaginários, que a
superstição dos Mussucos submete aos seus tribunais, os julga-
dores, tomando por boa a opinião dos feiticeiros — variável
conforme o interesse que tiram da causa — engendram sempre
um concurso de atenuantes e agravantes, pelo qual, chegam à
conclusão de esbulhar em seu proveito e de uma das partes, a
maior porção possível dos haveres da outra parte.
Desta forma, é claro, que não só as penas aplicadas são de
uma variabilidade extrema, como muitas vezes sucede sofrer
ainda maior condenação o queixoso.
Sendo pois impossível dar uma resenha da infinidade de
infracções e penas, que só o critério de avidez e rapacidade dos
feiticeiros e julgadores sabe classificar e graduar, para a con-
denação pelos crimes que a sua imaginação inventa, limitando-
nos a indicar as penas graduadas para as mais frequentes infra-
cções riais, que entre os Mussucos são do domínio do direito
criminal :
— O furto, alem da restituição do objecto ou do seu valor, é
punido com a obrigação de pagamento de 2 a 3 escravos ou de
2 cabeças di9 gado bovino.
— As ofensas corporais, quer sejam voluntária ou involuntária-
206 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mente feitas, quando produzem ferimentos graves, são punidas,
com a obrigação de pagamento de uma a quatro cabras, ou de
um ou dois escravos adultos que podem ser substituídos por
dois ou três menores. Conforme a gravidade dos ferimentos,
assim é determinado o número de cabras ou de escravos a pagar.
— No adultério da mulher: é punido o autor da infracção
com a obrigação de indemnizar o marido, pagando-lhe de 10 a'
15 cabeças de gado caprino ou 4 de gado bovino. Se o réu não
tiver haveres para indemnizar o queixoso passa à condição de
escravo, assim como todos os seus sobrinhos do ramo uterino,
se os seus parentes não pagarem a condenação imposta.
— O homicídio involuntário: é punido com uma ofensa corporal
simples, com a indemnização aos parentes da vítima de 4 cabras
ou correspondente número de bois ou escravos.
— O homicídio voluntário: o autor ou os seus parentes são
condenados a pagarem à família da vítima 12 escravos, que
podem ser substituídos, quando os não tenha, por 10 bois. O
pagamento é exigido primeiro ao autor, mas se este o não faz,
passa a ser exigido aos parentes e quando estes se recusam a
fazê-lo, a família da vítima, arma-se e vai cobrá-lo violenta-
mente, apoderando-se à forca de todos os haveres, escravos e
membros da família do réu, que pode apanhar. Sucede por
vezes, quando o autor não tem haveres nem parentes, sofrer a
pena de Talião, executada por qualquer dos membros da família
da vítima que toma a si o encargo da vingança.
Aos julgamentos preside o soba, assistido dos sobetas ou ma-
cotas, chefes das sanzalas a que pertencem as partes, quando a
questão é de pouca importância^ isto é, quando haja de julgar
causas em que as partes estão dispostas a chegarem a um acordo
já meio feito, ou quando os litigantes são gente sem haveres
nem importância social.
Nas questões de maior vulto, tais como: pleitos cíveis entre
gente rica e de importância na tribu, crimes em que o acusado
tem bastantes haveres para pagar aos membros do tribunal e
aos seus defensores (feiticeiros e testemunhas) e crimes de morte,
então o tribunal, presidido pelo Kiambamba, é constituído por
todos os dignatários da sua corte, pelos sobetas e por alguns
komens velhos conhecedores das leis da tribu.
Nos debates de acusação e defeza, entram os parentes das
partes e os feiticeiros seus defensores ou acusadores.
A decisão é proferida pelo soba mas de ordinário está já pre-
DE ANGOLA 207
viamente assente entre êle e os membros mais importantes do
tribunal antes do julgamento. A prova dos crimes é feita por
testemunhas ou pela confissão do réu.
Nos crimes de morte em que é desconhecido o autor recorrem
à prova do veneno para o descobrir.
A família da vítima, depois de consultado o feiticeiro indica
sobre quem recaem as suas suspeitas e os indigitados compa-
recem perante o tribunal.
O feiticeiro prepara o veneno usado e trazidos tantos cães,
quantos são os indigitados (geralmente dois) escolhem o animal
que há de representar a cada um, fazem-lhe ingerir à força a
droga; o autor do crime é o representado pelo cão que não
vomitar o veneno.
Quando não teem cães para fazer a prova não hesitam em
substitui-los por creancinhas da família dos acusados.
É claro que o resultado da prova depende sempre do feiti-
ceiro, que segundo o seu interesse, assim aplica a substância em
dose emética ou tóxica fazendo com que determinado acusado seja
julgado inocente ou culpado; geralmente convem-lhe que as
investigações prosigam e vai aplicando em doses vomitivas até
que por descuido ou maldade surte o efeito venenoso.
O desgraçado, contra quem a prova sai provada, chega a
convencer-se que foi êle o autor do crime por efeito dos espí-
ritos maus.
De ordinário os que sofrem qualquer condenação, pagam
voluntariamente a indemnização estipulada, mas recusando-se a
fazê-lo, encarrega-se o queixoso com os seus parentes, da exe-
cução da sentença, apoderando-se violentamente de tudo quanto
possam apanhar ao acusado.
O direito de asilo, tanto na tríbu Mussuco como nas tríbus
visinhas, não é reconhecido por lei; é apenas respeitado, quando
o que conceda guarida é um potentado ou feiticeiro poderoso, a
quem a gente das outras tríbus teme e não se atreve a exigir a
entrega do foragido. Por isso os pobres e os escravos, quando
cometem qualquer infracção ou se vêem injustamente acusados e na
iminência de serem condenados, tratam de se pôr em fuga para
onde se julgam livres de serem descobertos ou capturados pelos
parentes do queixoso, escolhendo de preferência os centros de
população europeia, onde estando ao serviço dos brancos, sabem
que não serão apanhados.
Para o* Mussucos não existe a prescrição. Há questões que
208 POPULAÇÕES INDÍGENAS
passam sucessivamente aos descendentes em duas e mais gerações
e só vêem a acabar quando se extinguem os membros das famí-
lias em demanda.
Param, adormecem longos anos às vezes, mas lá surgem como
o enxerto de uma nova desinteligência de tempos a tempos.
É conhecida a tendência, de quási todas as populações indí-
genas da Colónia, para a questão gentílica e a facilidade com
que buscam no campo da imaginação o facto determinante, se
lhe falha no da realidade. Para muitas tríbus é a sua principal
preocupação — o seu passa-tempo predilecto, um jogo económico
de receita e despesa e até um considerável incentivo ao trabalho
— pois é um facto que grande parte dos indígenas que contratam
os seus serviçais como carregadores ou para qualquer outro tra-
balho, o fazem obrigados pela necessidade de adquirirem o di-
nheiro ou as fazendas precisas para pagarem as suas questões
ou para estarem prevenidos para elas. — Assim como nós somos
previdentes pensando nas contigencias de uma possível doença
são-no eles também calculando uma inevitável questão gentílica.
Ora os Mussucos não se afastam da forma geral a que aca-
bamos de aludir e como a maneira violenta e sumária de executar
as suas sentenças — rapinando aos acusados e seus parentes quási
sempre mais do que o valor da indemnização e praticando
agressões e outras violências — representa novas infracções às
leis da tríbu, é um nunca acabar de questões.
M.EÇrya. y,,.! imp
CAPÍTULO VIII
JINGASí1)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem dos povos desta tríbu. — Situação
geográfica. — População.
Os povos de que vamos tratar neste capítulo intitulam-se
Ana-ngola (filhos de Angola) e são os actuais representantes do
reino de Matamba ou Jinga, que com os reinos do Congo, de
Dongo ou Angola e Benguela constituíram em longíquas épocas
a parte conhecida da província.
Encontramos na Collection de relactions de voyages en Afri-
que coordenadas e publicadas por C. A. Walckenaer dados in-
teressantes sobre o reino da Jinga, se bem que alguns, sobretudo
no que toca aos costumes bárbaros da corte da rainha da Jinga,
sejam para pôr de remissa, tão carregadas são as cores dos
quadros que nos apresentam.
Descrevem-se minuciosamente e com detalhes alguns costumes
dos povos que consideramos ascendentes dos Jingas, as scenas
da corte da rainha Jinga, e não esqueceu enumerar as rainhas
que se deixaram batisar, abraçando o catolicismo, temporaria-
mente, como arma política, para melhor conseguirem os seus
fins, mas desprezando-o com a mesma facilidade com que o
adoptaram, desde que conseguiram o seu desideratum ou inten-
deram poder dispensar o auxílio dos seus pregadores.
(*) Prestaram informações sobre os usos e costumes desta tríbu o
tenente-coronel Pais Brandão e o secretário da Circunscrição Francisco
Santos.
210
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Se os detalhes chegam quási a ponto de se poder averiguar
quantas audiências esta ou aquela rainha Jinga deu ao padre
Antoine Gaete ou outro, poucos ou quási nenhuns elementos nos
dão as fastidiosas descrições da Collection de relations de voyages
Gringas — Carregadores tomando uma refeição
en Afrique sobre a procedência e origem dos povos sujeitos à
rainha da Jinga.
Assim só vagamente se sabe que o reino de Matamba,
ocupando os territórios para àlêm de Massangano, era limitado
ao norte pelo reino do Congo e oeste pelo reino de Donga, ao
sul pelas províncias do Lubolo (Libolo) e de Ganguela, e que a
sua capital ou sede da corte da rainha da Jinga, primeiro esta-
belecida pouco àquem do Lucala, passou para onde se encontra
DE ANGOLA 211
actualmente a povoação de Pungo Andongo, vindo depois a es-
tabelecer-se em Banji-a-N'gola.
E se vagos e imprecisos são os elementos de que podemos
dispor sobre o território ocupado pelo reino da Jinga e sobre a
sede da sua corte, nada de positivo encontramos que nos eluci-
dasse sobre a origem e procedência destes povos.
Não obstante, somos levados a admitir que os Jingas são
descendentes dos povos que invadiram a província pelo Congo.
A esta conclusão chegamos, se não por outra razão, pelo menos
de não poderem ser os Jingas representantes actuais de qualquer
das invasões de nordeste, visto estar excluida esta hipótese,
atendendo a que, quando se deu a primeira daquelas invasões já
veio encontrar os ascendentes dos Jingas.
Nestes termos as coisas ter-se iam passado pela seguinte
forma :
Das primeiras migrações que do Congo se deram para o sul,
que deram logar ao reino do Dongo, destacou-se um grupo de
descontentes ou revoltosos, e ciosos da sua independência foram
fundar para leste o reino de Matamba.
Este reino, umas vezes apoiado pelos portugueses e pelo reino
do Dongo, a que temporariamente se ligava para resistir às in-
vasões que, — por uma forma genérica — foram designadas pelas
dos jagas, outras vezes auxiliado por estes contra aqueles,
assim se foi mantendo pela hábil política das suas rainhas até
ficar reduzido aos territórios que actualmente ocupa a tríbu
Jinga.
Eis em nosso entender e em poucas palavras a origem dos
povos que constituem esta tríbu que, atravez dos tempos, se teem
manifestado ciosos da sua independência, e mais ou menos isola-
dos intendem, ainda hoje, serem os legítimos representantes dos
N'golas.
*
É difícil, senão impossível, designar os limites dos territórios
ocupados pela tribu Jinga, não obstante todos os esforços que
nesse sentido tentamos.
Do que apuramos os Jingas ocupam o território confinando
pelo norte com as tríbus Maungo e Holo, e limitado a oeste pelq
rio Gola Luiji e a leste pelo Cambo.
212
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os Jingas são de estatura mediana e a maior parte menos
que mediana, de aparência pouco resistente, sendo mais robustos
Jingas — Fumando o cânhamo
e melhor constituídos os que povoam a parte norte da região
por eles ocupada.
São em regra retintos, olhos de forma elipsóide e iris acas-
tanhada.
Raramente entre eles se encontra o bócio.
Como deformações artificiais, usam furar os lóbulos das orelhas
onde introduzem paus e bocados de cana.
DE ANGOLA
213
II. —Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, sciências, faculda-
des intelectuais.
O Jinga por principio algum se lava. Unta-se com azeite de
palma simples ou misturado com pó de tacula.
Por motivo de luto costumam esfregar-se com carvão, tor-
Jingas — Na sanzala
nando-se assim mais pretos e ascorosos do que seriam somente
besuntados com o azeite de palma e a tacula.
Como penteado usam o jinguindu que são umas dez ou doze
tranças caindo-lhes do ocipital e temporaes sobre os hombros,
donde às vezes pendem missangas ou contas, engenhosamente
entretecidas com os cabelos. Nas mulheres os jinguindos são
mais curtos e pendentes deles usam na nuca uns quatro ou cinco
fios de missanga de cores.
O vestuário ê a tanga de fazenda. Em geral compram panos
de algodão cr ú que tingem com um banho de azeite de palma e
âi4 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tacula e que lhes dá uma aparência de oleado. Os Jingas do Dange
costumam usar peles, guardando os panos para se cobrirem de
noite.
Nas mulheres a tanga denomina-se pákn, e é constituida por
um pequeno pano de um palmo de largo e, quando muito quatro
de comprido, provido de duas fitas com que o atam em volta das
nádegas, cobrindo os órgãos genitais. É todo o seu vestuário a
não ser uma pequena tira de pano com que seguram os filhos
em pequenos, colocando-os às costas e atando a tira sobre os peitos.
A tatuagem propriamente dita não existe; as mulheres cos-
tumam, na parte superior do peito e nas costas, golpear a pele,
produzindo cicatrizes, servindo-se para isso da ponta de uma
faca muito afiada.
Como adornos usam os homens uma espécie de cartocheira,
toda coberta de taxas amarelas pendente do cinto. As mulheres,
enfiadas de grossas missangas ou contas ou correntes metálicas
ao pescoço, bem assim como à guisa de pulseiras usam nas pernas
argolas de grossos tubos de latão amarelo.
A base da alimentação é vegetal, no entanto fazem uso e
apreciam a carne de boi, cabra, porco e galinha.
No que respeita a vegetais usam na alimentação a jinguba, o
jinbonzo (batata doce) a mandioca, a abóbora de que aproveitam
as sementes e que chamam muteta, o milho e o feijão.
O prato de resistência é constituido pelas papas de farinha
de mandioca. Tomam em geral três refeições preparadas pelas
mulheres.
O chefe da família faz a divisão das rações, comendo as
mulheres e os filhos de menos de dez anos aparte dos homens.
O tipo da habitação dos Jingas é a cubata de base rectangular
assente sobre o solo.
A cubata é construída de pau a pique, barreada e coberta a
colmo com 2 ou 4 águas, encontrando-se algumas delas pintadas
de um barro ou greda branca a que chamam <'pemba».
DE ANGOLA 215
Compõe-se a casa Jinga de três divisões, na generalidade,
sendo o tipo e número de divisões, e até mesmo o tamanho,
perfeitamente comum.
A primeira divisão é a casa da entrada, onde fazem fogo e
onde cosinham quando chove, porque, a não ser nestas ocasiões,
cosinham na rua. É uma divisão quadrada e sem outra mobília
que, a um ou dois cantos, um tridente de qualquer pernada de
árvore, sobre o qual colocam uma quinda com quaisquer restos
de mantimentos ou ainda com uma galinha chocando ovos.
A segunda divisão é o quarto de cama e comunica com a casa
de entrada por meio de uma estreita porta cortada nos luandos
de que são feitos os tabiques; dum lado e do outro de quem
entra há duas tarimbas a que chamam kitanda, e sobre as quais
um luando ou uma esteira (xissa) e é ali que dormem. Se é casal,
dorme a mulher numa das tarimbas e o homem na outra.
Os filhos dormem no terceiro compartimento que, tendo a
largura do edifício, não terá de fundo mais que um metro ou
metro e meio, que igualmente serve para arrecadação de manti-
mentos.
Os tetos das suas habitações são, em toda a Jinga, de colmo,
mas varia um tanto a maneira de o colocar. Nalguns sobados o
colmo é embricado tão regularmente que, à primeira vista, pa-
recia o teto das cubatas um daqueles capotes de colmo que
usam no Alentejo os pastores de gado.
As cubatas assim construídas agrupam-nas os Jingas em
povoações cujo número varia desde 6 ou 7, até 70 ou 80.
Não os preocupa muito o alinhamento das ruas das suas
povoações.
Todas as povoações, sanzalas, teem um ou dois largos onde
se reúnem os moradores e é ali que teem o seu club, a sua taba-
caria, enfim, o consagrado ponto de reunião, para onde o próprio
soba gosta de vir cavaquear um pouco sobre os negócios do
Estado. É ali que em geral se resolvem as questões do povo e
se decide da vida ou da morte de muitos.
As suas construções, se bem que não tenham estética como
seria para desejar, são pelo menos bem defendidas.
Cercam de kissomas (espécie de cactus muito altos e com-
pactos) as suas sanzalas, e os caminhos que conduzem ao centro
da povoação são verdadeiros labirintos a que se não chega sem
algum trabalho e sem se passar algumas vezes pelo mesmo sitio.
Como a região ó frequentemente cortada por linhas de água,
216 POPULAÇÕES INDÍGENAS
escolhem as margens dos rios para as suas construções, sem se
importarem com outra coisa que não seja ficar perto da água,
porque o trabalho para eles não é coisa de apreço.
Não tomam em conta as condições climatéricas do sitio em
que se estabelecem, e a orientação é ad libitum.
Não obstante a tão apregoada indolência e inaptidão do Jinga
para o trabalho, nós apezar de tudo não a podemos confirmar e
r"i
Jingas — Cubata em construção
muito ao contrário constatamos que, se o Jinga mais não trabalha
é porque nem de tanto necessita.
Assim é que a sua principal ocupação é a agricultura simples
e rudimentar de extensas plantações de mandioca, batata doce,
ginguba, abóboras, etc. Nas suas culturas empregam como
alfaias, as enxadas gentílicas, o machado e as catanas.
Dedicam-se à creação de gado suino, lanígero, caprino, e
bovino, de que se utilisam para a alimentação e de que se servem
para moeda. As últimas epidemias no gado bovino quási que
lhes extinguiram esta riqueza, que hoje está reduzida a uma ou
outra manada e que, aqui e além ainda se vê pastando socegada-
DE ANGOLA 217
mente, pelas extensas campinas das margens do Luinga e do
Lucala.
São hábeis caçadores, havendo quem da caça faça uma pro-
fissão e que em geral constitue sempre uma classe onde nem
todos que desejam podem ingressar, usando como distintivo uma
tira de pele de javali em volta da cabeça.
Dedicam-se à pesca nos rio& que banham as suas terras,
empregando em geral uns pequenos aparelhos de verga, muito
semelhantes aos covos usados na metrópole.
Em um outro mister se ocupam os Jingas com persistência,
o de carregar. O Jinga carrega todos os seus productos agrícolas
e mais mercadorias que a sua região importa, e na condição de
carregador vai prestar os seus serviços fora da sua terra.
# *
No que diz respeito às indústrias que exercem, não obstante
pouco desenvolvidas, é de notar, sobretudo, a de obra de
verga.
Os trabalhos de verga executados pelos Jingas revelam o seu
quê de artístico, principalmeute no fabrico de esteiras. Além
de esteiras fabricam kindas de diversos tamanhos, feitios e cores,
chapéus e sacos de mateba para transporte de café.
# *
Falam o Kimbundu.
As danças são, como as de outras tribus, constituidas por
movimentos compassados do tronco e rins.
Como instrumentos de música empregam as marimbas a que
já fizemos alusão e o Kisanje ou jisanje, muito vulgarizado entre
as tribus Bimbundu, feito de qualquer cepo de madeira macia,
ou ainda pedaços de bordão, ligados lateralmente entre si, sobre
que se montam umas palhetas de ferro, tudo assente sobre uma
pequena cabaça que serve de caixa de resonância.
No que diz respeito a trabalho de escultura em madeira estão
eles patentes principalmente nas cadeiras que é vulgar encontrar.
Costumam desenhar nas paredes das cubatas figuras mais ou
menos toscas.
IS
218 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Com relação a conhecimentos de astronomia chamam ao sol
muanii, à lua mbeiji, às estrelas tetumbua, às nuvens matuta e
à trovoada nzaje.
Dividem o tempo pelas fases da lua.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento.—A família. — A morte. — A re-
ligião, ritos, cultos, divindades e sacer-
dócio.
O nascimento, entre os Jingas, é acontecimento de somenos
importância, salvo se o recemnascido é do sexo feminino.
. Um rapaz nenhuma felicidade pode proporcionar à família,
ao passo que uma rapariga, quer seja bonita ou feia, alta ou
baixa, magra ou gorda, é sempre, e durante toda a vida dos pais,
dos avós e dos tios, uma apreciável fonte de receita.
Poucos ou nenhuns cuidados se observam na Jinga com as
parturientes; no entanto a mãe, a tia, ou qualquer visinha mais
velha, não deixa de a instruir na forma por que se deve ligar o
cordão umbilical, na maneira de tirar o musgo da cabeça da
creança, e que — o que é notáveí entre quem tem horror à água
— logo no dia do parto e após êle, é preciso ir ao rio e tomar
um banho geral.
O pai e a restante família limita-se a celebrar o acontecimento
bebendo mais umas cabaças de maluvo.
O nome é-lhes posto poucos dias depois do nascimento e
funda-se em qualquer ocorrência de ocasião, em qualquer casuali-
dade, etc.
#
Existem práticas de iniciação em um e outro sexo.
Entre os indivíduos do sexo masculino é a iniciação cons-
tituída pela circuncisão. Pratica-se, geralmente, aos 14 anos de
idade, e ai daquele que se não deixar circuncisar, porque seria
tido, para sempre, entre os seus, como uma espécie de filho
espúrio, como uma espécie de engeitado, entre os filhos legítimos
da tribu; e, por mais que fizesse, por maiores que fossem as
suas qualidades de valentia, nunca conseguiria arranjar mulher.
DE ANGOLA
219
Quando os* mancebos da sanzala chegam à idade de serem
circuncisados, retiram-se para uma cubata, bastante separada da
sanzala, onde os conservam três dias, alimentados somente por
géneros crus, como sejam: mandioca, batata, milho, jinguba, etc.
No terceiro dia vai o Kimbanda para tal escolhido, acompanhado
de dois ou três velhos da sanzala, afim de procederem à operação.
Depois untam-nos de tacula e azeite de palma, traçam-lhes no
rosto grandes riscos vermelhos e brancos, e deixam-nos ali em
tratamento mais três dias, durante os quais já podem comer
Jingas — Uma esteira de produção gentílica
alimento cosinhado. Muitos deles sucubem às infecções na ope-
ração adquiridas, outros curam-se passados os três dias regula-
mentares. Depois voltam à sanzala que festeja o facto.
Entre os indivíduos do sexo feminino a iniciação faz-se entre
os dez ou doze anos, encarregando-se das práticas de iniciação
as tias maternas e na falta destas amigas íntimas.
Não foi possível conhecer as práticas desta iniciação.
*
* *
A idade em que os Jingas se julgam capazes de casar varia
muito, sendo regulada geralmente pela habilidade que cada qual
tem para adquirir as fazendas e haveres necessários para pagar
o penhor do casamento (nlemba) mas se adquirem esses pre-
cisos haveres bastante cedo, logo que perfaçam os 17 ou 18 anos,
podem procurar rapariga.
220
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Apesar de tudo isto, os Jingas, enquanto na sanzala não são
considerados velhos (ricotas) continuam a ter-se como (mona
ndengué) creanças.
É vulgarisshno ouvir-se dizer aos Jingas, que devem ter aí
uns 30 ou 35 anos, que ainda são creanças, porque na cubata
ainda lhes não dão as honras de «velhos».
Gomo já dissemos, logo que nasce na Jinga uma creança do
sexo masculino, nasce um encargo para a família; assim como,
Jingas — Tralbalho de olaria
quando nasce uma creança do sexo feminino, nasce para a fa-
mília uma fonte de receita, porque o homem procura «celebrar
esponsais» com a mulher, poucos mezes ou anos depois do seu
nascimento. E, nesse lapso de tempo que vai decorrendo até à
puberdade da rapariga, vai sempre contentando a família com
alguma dádiva, como que assegurando a futura posse da pro-
metida, até que mais tarde possa consumar o matrimónio.
O nlemba também varia muito segundo os teres do noivo e a
idade da mulher.
No entanto pode dizer-se que, duma maneira geral, o penhor
do contrato entre os Jingas regula entre 18 e 20 escudos, que é
quási sempre a maior quantia estipulada pelo contrato ante-
nupcial, e um pequeno sinal que a noiva recebe, contrato a que
sempre assiste o soba que também recebe o seu presente por essa
assistência»
Popul. indígenas de Angola.
(221)
DE ANGOLA 221
O casamento é em geral tratado entre o tio do noivo e os
pais da noiva, que igualmente ajustam o nlemba.
Na Jinga não se faz grande cerimonial pelo casamento.
Nalguns sobados, no dia aprazado para o casamento, a mulher
limita-se a fugir para o mato, onde o noivo terá que a procurar
até a encontrar e a levar para casa, quási à força. Se, porém,
a não encontra tem que pagar ao pai um presente previamente
estipulado, que em geral consta de uma cabra ou de um porco,
ou ainda uma ovelha que depois comem em comum, celebrando
o aparecimento da mulher. Mas isto rarissimamente se dá, por-
que, antes do casamento teem elas o cuidado de combinar com
o noivo o sitio onde se vão esconder.
Noutros sobados é a noiva, que acompanhada de duas ou mais
raparigas, vai para casa do noivo, não arredando pé estas da
porta da cubata do noivo, enquanto este as não gratificar.
Existe a poligamia sendo motivo de júbilo para qualquer
mulher da Jinga o ir pertencer a um homem que já possue mais
do que uma, do que duas, ou do que três mulheres, e isto por
diversos motivos, entre os quais avulta o facto de, quantas mais
mulheres o homem possuir, tanto menos serviço precisa fazer
cada uma delas.
O homem que tem muitas mulheres cohabita geralmente cinco
dias com cada uma delas; e, durante esse tempo, aquela a quem
êle então pertence é que tem o dever de lhe procurar os alimentos
para êle e os géneros que êle precise vender. As outras, neste
meio tempo, vão preparando as suas lavras para quando
chegar a sua vez.
A poliandria não existe.
Os deveres das diversas mulheres para com o marido comum
definem-se em poucas palavras: de obedecer cegamente ao ma-
rido.
De resto, todas teem iguais direitos, a não ser quando a mais
antiga na casa é muito mais velha que as outras, porque então
incumbem a esta a superintendência dos negócios do marido que
a ela os confia, de preferência do que a qualquer das outras.
Os filhos pertencem à mulher sendo, em geral esta que fica
com eles, quando por qualquer razão se separam.
Existe o divórcio se assim quisermos chamar às constantes
separações que se dão entre os casais Jingas.
Não tem forma nem processo regular. O marido um dia,
encandescido pelo maluvo, maltratou a mulher. Ela fugiu, na-
222 POPULAÇÕES INDÍGENAS
turalmente, para casa de qualquer pessoa de família. E o homem,
a primeira coisa que tenta, é haver as despesas que fez com o
nlemba. Procura o soba e este resolve a questão. Se a mulher
tem razão, vai para casa da família e casa com quem ela entende
na primeira ocasião. Se é ao homem que a razão se outorga,
então, ou a família da prófuga, ou o novo marido com quem ela
casar, teem que restituir ao divorciado as despesas que primiti-
vamente fizera, sem ao menos se lhe levar em conta o tempo em
que a mulher lhe serviu de creada e escrava.
Se é o marido que abandona a mulher sem razão, é muitas
vezes condenado pelo soba a pagar qualquer quantia à família
da mulher, quantia de que ela nunca chega a aproveitar, porque a
mulher não tem direitos.
O marido que assim se divorcia, em geral, não pensa mais
nos filhos.
Mas se eles, já crescidos, quiserem estar com ele, êle recebe-os
e trata-os.
Também em certas separações por mutuo consenso, o homem
fica com os filhos machos, acompanhando a mãe as raparigas
que do casamento houver.
O adultério da mulher é punido, indemnizando o co-réu
adultro o marido trauljado com o pagamento do penhor do
contracto.
O crime de adultério a que chamam upanda é dos mais graves
entre os Jingas e muitas vezes pára o julgar recorrem a um
tribunal mixto, composto de vários sobas e entidades.
A sucessão é colateral e define-se em primeiro logar a favor
dos irmãos uterinos, na falta destes aos sobrinhos filhos de irmãos.
Só na falta de parentes a herança se transmite ao soba. A mulher
nunca herda»
■# *
São os Jingas desvelados no tratamento das suas doenças,
atestando-o a grande quantidade de Kimbanda que entre eles se
encontram.
O Kimbanda perdeu por completo entre os Jingas todo o
prestígio que em tempos disfrutava ; hoje limita-se a subministrar
tisanas e aplicar emplastos.
No tratamento das doenças o receituário é quási que exclu-
sivamente tirado do reino vegetal.
DE ANGOLA
223
A pneumonia é tratada deitando o doente ao pé de uma
grande fogueira, aplicando-lhe ao mesmo tempo ventosas, que pra-
ticam fazendo várias incisões e adaptando-lhe a seguir um chifre
na extremidade por onde fazem a rarefação do ar até começar
a afluir o sangue, tapan-
do-o depois com resina.
Só admitem a morte
natural, nas pessoas que
morrem muito velhas ou
que passaram os últimos
tempos da sua vida so-
frendo uma doença grave,
o que pouco se dá.
Quási sempre quando
um Jinga morre, a sua
morte é atribuida a male-
fícios deste ou daquele, e
os parentes do falecido
teem então ocasião de pe-
dir aos supostos culpados
do desastre o pagamento
de vida do falecido. Re-
correm ao soba que, em
conselho de macotas, arbi-
tra o valor de tal vida
e o acusado é obrigado a
pagar; caso o não faça
tem que provar a sua ino-
cência sujeitando-se às res-
pectivas provas.
As cerimónias dos óbi-
tos variam muito, mas a
prática mais vulgar é a
seguinte :
No dia do falecimento rufam os tambores da sanzala de
certa maneira que dá a conhecer aos povos visinhos e por estes
é da mesma forma transmitido aos de mais longe, que alguém
morreu na sanzala donde partiu o sinal.
Depois começa a juntar-se gente dos arredores e a família do
defunto trata imediatamente de comida para toda essa gente,
que é tanto mais numerosa, quanto mais rico ou poderoso o era
Jingas — Um soba
os tambores da
224
POPULAÇÕES INDÍGENAS
falecido. Às vezes chegam a abater dois ou três bois para co-
sinharem para os que vêem prantear o óbito. De todos os lados
aflue gente como se viesse a uma importante romaria ; mas che-
gando ao pé da cubata do falecido, desata num berreiro verda-
deiramente selvagem, elevando os braços ao céu, conio que
increpando-o por tão irreparável perda. Chegam ao pé do
Jingas — 'Cumprimentos ao soba
cadáver e ali, numa lamúria grotesca e fúnebre, recomendam-lhe
que, se por lá encontrar os seus parentes já falecidos, lhes dê
muitas saudades. -
Depois desse imprescindivel recado, muitas vezes repetido,
bebem o seu copo de maluvo e vão, contentes e satisfeitíssi-
mos, incorporar-se num dos grupos do batuque, donde somente
se retiram quando a isso os obriga as necessidades de alimen-
tação. E assim se demoram dias e dias e até meses, se o
defunto era pessoa de qualidade, pagando muitos com a vida
a sua estulta febre de dança e de orgia, porque é nestas oca-
siões que eles são acometidos de pneumonias que raramente os
poupam.
O enterro faz-se dois ou mais dias depois do óbito, segundo
DE ANGOLA 225
a importância do falecido, chagando a ultrapassar o oitavo dia,
post-rnortem.
Abrem as sepulturas à beira dos caminhos, em sítios mais
ou menos usuais e dão-lhes sempre uma forma comum. Na aber-
tura teem o diâmetro de 80 centímetros quando muito e vai
alargando por baixo, à maneira de galeria, tendo às vezes formas
caprichosas.
Sobre este assunto informa-nos o Secretário- de Circunscrição
Sr. Francisco Santos, que teve ocasião de ver uma sepultura de
um soba que era uma espécie de miniatura da sua banza.
Tinha quatro ou cinco galerias e cada uma delas ia dar a um
sítio mais largo, e em cujo comprimento caberia uma pessoa
deitada. Cada um destes quadrilongos representava a cubata de
cada uma das mulheres do soba falecido. E ao meio, um pouco
mais ou menos, havia o logar onde se tinham desfeito já os restos
mortais daquele que, em vida, havia sido um dos mais autocratas
potentados da sua terra.
Os cadáveres são amarrados de pés e mãos, ficando numa
bóia e assim os enfiam pela abertura da cova em que os sepultam.
Depois, com uns paus compridos lá os concertam de maneira
que fiquem deitados de lado e com a frente para o caminho à
beira do qual são sepultados. Os sobas porém, não são amar-
rados e são deitados de costas. Defronte da cabeça põem um
cano de espingarda ou um canudo de bambu, que chega acima
à superfície da terra e por ali lhe deitam, de tempos a tempos a
sua cabaçada de maluvo para que eles, lá no outro mundo, não
possam dizer mal daqueles que cá deixaram.
Em cima da sepultura que é cercada dum tapume de kisso-
mas e, quási sempre coberta com uma alpendrada de capim,
colocam-lhes os objectos do seu uso como sejam o seu cachimbo,
a kinda onde comiam o nfundji, o moringue ou cabaça por
onde bebiam a água, etc. Se o morto se empregava no mister
de carregador, lá ficará, sobre a sepultura, a muamba, em que
transportava as suas cargas e ninguém se atreverá a tocar-lhe
mais.
As viuvas acompanham, chorando, os cadáveres dos maridos,
até à sepultura mas na volta, são envolvidas nos seus panos, de
forma a não verem a luz e trazidas pelos amigos do falecido,
em charóla, até à cubata onde se deu o falecimento. Ali perma-
necem dias e dias, tendo a fogueira sempre acesa, dia e noite,
afim de que a alma do morto, ali não possa penetrar.
226 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Crêem num ente supremo a que chamam o Ngana-Nzambi
assim como crêem também no Nvunfi, que temem por ser o génio
do mal.
Julgam que a alma dos que morrem pode vir ao mundo e
fazer-lhes mal em qualquer situação.
Nem em todas as sanzalas há logares sagrados ou tidos como
tais, pois apenas nalgumas se encontra um pequeno telheiro
coberto a capim, dentro do qual estão os manipanços ou feitiços
com que se servem nas suas arengas.
As superstições entre eles são variadíssimas, sendo muito
difícil fazer delas uma resenha aproximada da verdade. Não se
lavam por superstição. Não caminham de noite por superstição.
Não comem juntos com as mulheres por superstição. Não usam
chapéu na presença do soba porque é kijila. E muitíssimas
outras coisas de igual disparate.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Os Jingas levam vida sedentária, não obstante se podesse
supor o contrário pelo facto de se entregarem às creações de
gado bovino.
Não fazem os Jingas excepção às restantes tribus da raça
negra no que diz respeito a classes e castas. Temos aqui como
em todas as outras tribus daquela raça o nobre, o livre e o
o escravo.
Dos nobres saem os sobas, 'macotas e mais dignatários da
corte ; os kimbandas pertencem aos homens livres.
Parece que a escala hierárquico-social entre os Jingas é de
constituição complicada e se distribue em ordem decrescente
pelos seguintes títulos :
Vundas, Caudas, Quiluanges, Zundos, Kapeles, Ngola-Nboles,
(espécie de secretário), Matomuzumus, etc.
Por morte de qualquer destes senhores não pode o seu legí-
DE ANGOLA 227
timo descendente suceder-lhe imediatamente e isto pela simples
razão do soba o não permitir, visto interpôr-se quási sempre um
ambicioso, que, mais abastado, tenta prejudicar o natural pro-
prietário.
Estabelece-se a demanda e o soba resolve por quem mais dá.
Terminado o pleito é o vencedor investido no seu cargo e
pode a seu turno como compensação, esbulhar os subalternos.
Jingas — Preparativos para a guerra
No que diz respeito aos escravos nada temos a acrescentar
ao que sobre o mesmo assunto deixamos exposto para outras tribus.
Para com os extrangeiros usam de uma certa urbanidade,
preparando-lhes o fungi e oferecendo-lhes abrigo, e se tanto fôr
preciso deixando a sua cubata.
Nem todos os povos Jingas são pacíficos, alguns teem-se
mostrado irrequietos e de difícil sujeição.
O regimen político da tribu Jinga foi durante muito tempo
caracterizado por um despotismo posto nas mãos dos seus sobe-
ranos — Ngolas Kiluanges Kissamba — hoje em completa deca-
dência.
A este soberano absoluto e autocrata estavam sujeitos vários
estados (sobados) que ele explorava em proveito próprio.
Atualmente esta unidade de governo quási que por completo
desapareceu restando uns sobados mais ou menos independentes
em que o soba — muenéxi ou (senhor das terras) — perdeu o
228
POPULAÇÕES INDÍGENAS
prestígio de outros tempos, e tem que se sujeitar à vontade do
conselho dos macotas, seus ministros.
O soba vive na sanzala — banza ou embala — que constitue a
corte, como o mais simples dos seus subordinados, tendo no
entanto os rendimentos que lhe adveem do julgamento das ques-
tões que lhe apresentam, e do produto do trabalho de um dia
por ano que cada morador da embala tem obrigação de prestar.
Jingas — Depois do combate dansando era volta do soba
O soba usa como distintivo um pequeno barrete, espécie de
solideo — kijinga — tecido de qualquer fibra que nunca tira.
A sucessão é hereditária e defere-se na ordem já mencionada,
quando a ela nos referimos na organização da família, nesta tribu.
Ao soba falecido tiram um dente da maxila superior que é
entregue ao sucessor como documento autêntico da sua sucessão.
Na investidura do novo soba costuma haver apenas um rui-
doso batuque.
As cerimónias do enterro do soba nada teem que as distinga
das que fazem quando morre outro qualquer Jínga.
Considera- se proprietário da terra o soba, dispondo dela a
seu bel-prazer entre os seus subordinados que são os seus usu-
fructuários.
DE ANGOLA 229
Exercem o comércio dos seus produtos agrícolas e sobretudo,
de gado, com que fazem as principais transacções.
Esta tribu confinando pelo sul com territórios ocupados pelos
ambaquistas tem sido invadida por esta praga, e assim é que, é
vulgarmente encontrarem-se contractos ou ajustes, reduzidos a
escrito pelo manhoso requerimentista ambaquista, e que o Jinga
religiosamente guarda.
As questões são julgadas conforme a sua importância, pelo
soba ou por um tribunal por este presidido, tendo como mem-
bros os seus makotas.
Alem da prova testemunhal em assuntos de gravidade, sujei-
tam o réu à prova da ndua ou beberagem venenosa, preparada
por um kimbanda.
A facilidade com que de bom grado os pacientes se sujeitam
e até reclamam a ndua, mostra bem que a beberagem é prepa-
rada à vontade do freguez e só produz resultados contraprodu-
centes, quando de todo o que a ela tem de se sujeitar, não possua
haveres para convencer o curandeiro.
AfJSfyrya //r,tt irrp
CAPITULO IX
KISSAMAS (*)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem desta tribu. — Sua situação geo-
gráfica. — População.
Segundo a tradição corrente os povos pertencentes à tribu
Kissama são afins daqueles da tribu Ginga, visto que parece ter
dado origem à formação da tribu um irmão de um potentado da
Ginga que se veiu estabelecer na região actualmente ocupada
pelos Kissamas.
Admitindo esta tradição, que os seus usos e costumes em
parte confirmam, são os Kissamas descendentes dos povos que
invadiram a província pelo norte.
A tribu Kissama ocupa a região limitada ao norte pelo rio
Cuanza, ao sul pelo rio Longa, a oeste pelo Oceano Atlântico, a
leste pelo rio Luime e os montes Zumba Vunge que a separam
do Libolo.
A população diminuiu consideravelmente dizimada pela doença
do sono, flagelo que actualmente os tem sacrificado menos.
São de estatura regular, robustos e resistentes, de côr preta
retinta, joviais, faladores e muito desconfiados.
Não se encontra nesta tribu o bócio nem a steotipigia; como
deformações artificiais, usam as mulheres prefurar os lóbulos
das orelhas onde introduzem pequenos bocados de cana com tabaco
moido (rapé), e tanto os homens como as mulheres costumam
limar os dentes, aguçando-os.
(l) Prestou elementos para o estudo desta tribu o Administrador da
Circunscrição Civil de Cambambe o sr. João Pinto da Cunha Andrade*
232 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação.
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes e sciêneias. — Facul-
dades intelectuais.
Não prestam o menor cuidado à higiene e limpeza do corpo,
não se lavando nunca, e sendo talvez dos povos da província os
mais porcos. Em compensação usam untar-se, corpo e cabeça,
com azeite de palma e tacula.
Tanto homens como mulheres usam geralmente o cabelo em
tranças caídas sobre os ombros e enfeitadas com missangas e
contas de vidro de variadas cores, não existindo diferença dos
penteados entre os dois sexos, a não ser o dos homens ser mais
carregado de adornos e enfeites.
Entre os Kissamas pratica-se a tatuagem, mas quási exclusiva-
mente nas mulheres que usam no ventre e nas costas, feita por
meio de agulha ou â faca.
Como adornos e enfeites empregam a missanga no cabelo
como já tivemos ocasião de dizer e nos braços, pescoço, pernas
e cintura.
No que diz respeito a vestuário usam as fazendas adquiridas
ao comércio europeu, as mulheres um pano em volta dos rins,
chegando-lhes até aos joelhos, os homens, um simples pedaço de
pano em forma dos chamados papagaios das creanças. Os sobas
vestem casacos e usam chapéus.
 base da alimentação é vegetal e constituída pela massam-
bala, mandioca, milho, feijão, batata doce e ginguba.
Consomem na alimentação o peixe que pescam, principal-
mente, nas lagoas e a carne da caça : boi selvagem (pacaça),
javali e veado.
Comem igualmente a carne do cavalo marinho, do macaco,
cobras, ratos e morcegos.
Empregam o sal como tempero e o gintlungu como excitante.
Fazem largo uso da seiva da palmeira depois de fermentada.
Poucos são os que fumam, na maioria tomam rapé.
Tomam duas refeições por dia, preparadas pelas mulheres;
os homens justamente com os filhos e à parte as mulheres.
O tipo de habitação é a cubata de base circular, constituída
Tipos da tribu Quissama
Popul. indígenas de Angola.
DÊ ANGOLA 233
de paus a pique, ligadas por cordas de filamentos vegetais e
colmo e com cobertura deste mesmo material, de forma cónica.
A cubata assenta directamente sobre o solo.
Não preside ao estabelecimento das povoações qualquer orien-
tação definida, sendo as cubatas construidas irregularmente,
sem alinhamentos. Escolhem de preferência para o local das
povoações os logares mais baixos, junto dos palmares e das suas
lavras.
A principal ocupação destes povos é o fabrico do azeite de
palma, dedicando-se igualmente os povos de oeste à extracção
da goma copal e à apicultura para o comércio da cera.
As culturas dominantes são : a massambala, a mandioca o
feijão, a ginguba, a batata doce e o milho. Destes géneros
costumam vender o milho e o feijão de que não necessitam
para a sua alimentação.
Exercem a agricultura pelos processos mais rudimentares,
empregando as enxadas gentílicas, as catanas, pequenos ma-
chados e facas.
Possuem apenas gado suino e caprino.
Além do fabrico do azeite de palma, a principal indústria
que exercem é a da tecelagem, fiando o algodão e fabricando
sacos e redes para tipóia (machila).
A língua falada é o Kimbundo.
As danças usadas, monótonas como as das restantes tríbus,
consistem em compassados passos, acompanhados por movimentos
dos quadris, que dois deles executam no meio de uma circun-
ferência formada por todos os outros que dançam.
Como instrumentos de música usam uma espécie de flautim
construido de cana e o conhecido tambor feito de um tronco de
árvore ôco, a que se adapta uma pele de cabrito ou veado.
Teem vagas noções sobre os astros, chamando Rícumbe ao sol
e Rieiji à lua.
III. - Da vida familial
O nascimento. — A iniciação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A reli-
gião, rito, cultos e sacerdócio.
Não usam qualquer prática antes do nascimento e após este,
bem assim como na escolha ou imposição do nome ao recemnascido,
16 .
234 POPULAÇÕES ÍNDÍGENAg
que, em geral, recebe o nome de um parente ou de um amigo da
família.
Não lhes merecem cuidados especiais as creanças, a quem,
logo de princípio, fazem ingerir banana cozida mastigada, e
farinha de mandioca em forma de papas pouco consistentes,
bastante diluídas em água.
Praticam a circuncisão entre os dez e doze anos pouco mais
ou menos, fazendo festas depois da operação que se resumem em
danças, comer e beber.
Desconhecemos se as raparigas são iniciadas ao chegar à
idade da puberdade.
O indivíduo é considerado maior quando está em idade de
casar-se, o que geralmente é entre os 16 e 18 anos.
O casamento ajusta-se entre o noivo e os pais da noiva, e
vincula-se por uma oferta feita por aquele a estes.
Assim ajustado, o casamento efectiva-se mandando o noivo
buscar por pessoa de idade a noiva a casa dos pais, sendo indis-
pensável enviar por este intermediário novo presente, que em
geral consta de uma esteira, um cacho de bananas, peixe, etc.
Existe a poligamia em grande escala.
O homem tem sobre a mulher todos os direitos, salvo o de
morte.
A mulher deve obediência ao marido, e vive na sua cubata
com os seus filhos. A primeira mulher goza um certa número
de regalias e é respeitada pelas outras.
Existe o divórcio tendo como causas determinantes o adul-
tério, os maus tratos, e a esterilidade.
A mulher uma vez divorciada volta para a casa da família,
podendo casar-se novamente. Os filhos ficam com o pai até à
maior idade, visto que a mulher não tem sobre eles direito algum.
Os filhos das diferentes mulheres teem direitos iguais.
É pouco frequente o adultério.
A herança transmite-se aos sobrinhos filhos das irmãs, no-
tando, contudo, que na parte norte da região ocupada pelos
Kissamas parece que a sucessão se faz em alguns deles de pais
para filhos. A mulher não tem direito a parte alguma da
herança.
As doenças são tratadas pelos kimbandas que àlêm do trata-
mento empregado pela aplicação dos remédios quási todos tirados
da flora da região, usam cerimónias e manigâncias próprias
para cada género de doenças.
DÈ ANGOLA 235
Não admitem a morte natural, atribuindo-a a feitiçaria. A
morte é sempre assinalada por grande fusilaria de tiros de es-
pingarda, quando teem pólvora, e por danças.
No que diz respeito às cerimónias do funeral, envolvem o
cadáver em panos e depois de amarrado conduzem-no para a
sepultura a pau e corda. O cadáver enterra-se na posição de
sentado, pouco mais ou menos como indicamos para as tríbus do
sul da província.
A forma de sepultura é redonda, e cobre-se com uma pedra
ou lage coberta depois de terra. As sepulturas dos caçadores e
sobas são feitas de pedras. As sepulturas em geral são perto
das povoações e junto aos caminhos, salvo as dos caçadores e
sobas, que são no alto dos morros.
Nada temos a acrescentar em matéria religiosa ao que ficou
exposto sobre o mesmo assunto ao estudar as outras tríbus.
São supersticiosos, acreditando na influência que em todos
os actos da sua vida teem os espíritos dos seus antepassados,
que classificam em bons e maus, oferecendo-lhes sacrifícios para
aplacar as iras dos segundos e por eles fazem interceder os
primeiros.
Crêem em um ente supremo que respeitam e veneram mas
que não representam.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Regimen econó-
mico. — Propriedade. — Costumagens ju-
rídicas.
Os povos que constituem a tríbu Kissama levam vida seden-
tária.
Como nas restantes tríbus da raça negra existem classes.
São de índole mais ou menos guerreira, sendo em grande
parte rebeldes às nossas autoridades.
A constituição política dos Kissamas é constituída por soba-
dos independentes uns dos outros, governados pelos seus res-
pectivos sobas, mas mais ou menos subordinados ao soba Kixinge
que, não obstante ter perdido grande parte do seu prestígio,
ainda é considerado soba grande da Kissama.
Os sobas são escolhidos entre os parentes do falecido,
236 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Junto de cada soba existe o conselho dos macotas, escolhidos
pelo povo de entre os que são de melhor conselho e seriedade,
que é ouvido pelo soba em todos os casos importantes.
Após a morte de um chefe, procede-se como em qualquer
óbito assinalando o facto com fusilaria e danças.
O acto da investidura de um soba consiste em fazer sentar
o escolhido na cadeira de estado e porem-lhe cordas de fibras de
imbondeiro no pescoço e nos braços, e na cabeça um pequeno
barrete das mesmas fibras.
Exercem o comércio de permuta exportando coconote e azeite
de palma, milho, etc, e importando fazenda, missanga, contaria
e pólvora. Muitos exercem já o comércio a dinheiro, preferindo
o cobre que parece que em parte enterram.
A propriedade das terras é de quem a ocupa, não tendo por
isso os chefes mais direitos do que outro qualquer indígena.
Existem os contractos de compra, venda e empréstimo, que se
provam por meio de testemunhas.
As questões são julgadas pelo tribunal constituído pelos ma-
cotas e presidido pelo soba, perante o qual se apresentam os
litigantes com as suas testemunhas.
Existe uma espécie de juramento, fazendo um sinal no chão
com um dedo que em seguida passam pela língua.
Todos os crimes, delicto ou contravenção são expiados pelo
pagamento de indemnizações e composições às partes lesadas.
'"•'/" •'
CAPITULO X
LIBOLOSí1)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica desta tríbu. — Sua ori-
gem. — População.
Os povos desta tríbu ocupam os territórios ao sul do rio
Cuanza limitados ao norte por este rio, ao oeste pelo Luime e
montes Zumba Vunge, a leste pelo rio Gando e a sul pelo rio Nhia.
Não conhecemos tradição que nos elucide especialmente sobre
a origem da tríbu Libolo, mas do estudo dos seus usos e cos-
tumes e da origem da tríbu Bangala não será dificil concluir
que os actuais povos da tríbu Lrbolo são descendentes daqueles
que invadiram a província pelo Congo, e que mais tarde se
cruzaram com a gente de Kinguri.
Com efeito, quando Kinguri, capitaneando um grupo de des-
cendentes do estado Muat-Ianvua, esteve no Libolo já ali encon-
trou os povos vindos do norte com quem travou relações que
foram tão íntimas, que delas resultaram a união de Kinguri com
uma irmã de Angonga, potentado da região, união que deu logar
a ingressar no jagado de Cassange um representante da família
de Angonga.
Os Libolos são bem constituídos, robustos, musculados e re-
sistentes, de estatura regular, olhos de forma elptica e côr da
(4) Forneceram elementos para o estudo desta tríbu o administrador
da Circunscrição civil sr. Armando de Campos Palermo e o Superior da
Missão de Calulo ex.mo sr. Eduardo George.
238 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pele negra retinta nos terrenos baixos junto do Cuanza e cas-
tanho escuro nas regiões de maior altitude.
Não se encontra o bócio nem a steotopigia, mas é vulgar o
albinismo, designando os albinos kilombo kiahaça.
II. — Vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, seiências e faculda-
des intelectuais.
Nos cuidados de asseio e higiene com o corpo, destoam um
pouco dos povos circunvisinhos, visto lavarem-se frequentemente
nos pequenos ribeiros que atravessam a região por eles ocupada,
e teem todo o cuidado com a limpeza da boca, lavando-a na
maioria mais do que uma vez por dia, esfregando os dentes e
raspando a língua.
Usam untar o corpo com azeite de palma.
Praticam a tatuagem propriamente dita homens e mulheres,
com uma agulha impregnada de água e fuligem, por sucessivas
picadas, ou mesmo fazendo ligeiras incisões com facas muito
afiadas.
As mulheres àlêm da tatuagem costumam fazer cicatrizes em
relevo, introduzindo uma agulha grossa horizontalmente no
tecido subcutâneo que destacam depois, fazendo deslisar uma
faca sobre a agulha que assim arranca a parte do tecido que
lhe está sobreposta. As feridas produzidas são tratadas, esfre-
gando-as com milho mascado.
O vestuário é constituído pela tradicional tanga de fazenda.
Entre os homens é luxo o vestirem camisas e casacos, e os de
maior gerarquia costumam usar por cima do pano uma pele, em
formrt de avental. Esta pele para os sobas é de onça.
Só os carregadores é que costumam usar uma espécie de san-
dálias, feitas de pele de boi.
Como adornos alguns homens usam em volta do pescoço cor-
rentes de metal amarelo em que suspendem qualquer objecto
DE ANGOLA
239
indicado pelos curandeiros como preservativos de determinadas
doenças, e a que vulgarmente dão o nome de chilo. As mulheres
usam colares, pulseiras e cintos de missanga.
#
* *
A base de alimentação é vegetal e constituída pelas papas da
farinha de milho e da mandioca.
A este prato obrigatório juntam no que diz respeito a vegetais,
o feijão, a abóbora, a batata doce, o amendoim, e diversas ervas
em forma de esparregado;
no que diz respeito à ali-
mentação tirada do reino
animal, comem peixe, carne
de vaca e de várias espécies
de caça, galinhas, porcos,
cabras, carneiros, ratos,
gafanhotos cobras, salalé.
Como tempero empregam o
sal, nos molhos usam o azeite
de palma e como excitantes
o gindungu e o gipepe.
Tomam em geral duas
refeições: a da manhã ou
almoço que chamam kuria-
ula, e outra ao cair da tarde
ou jantar Jculua.
As refeições são prepa-
radas indistintamente pelos
homens e mulheres, comendo
os homens à parte das mu-
lheres, e sendo frequente os visinhos reunirem-se para tomar
as refeições em comum.
Por motivo de superstição, com receio que lhes morram os
filhos as mulheres não usam na alimentação a carne de porco e
da cabra.
Em geral conservam sempre o fogo, não havendo necessidade
de o produzir, o que fazem quási que exclusivamente quando
mudam a povoação.
Na nova povoação fazem fogo novo, com receio de que tra-
WÈÊÊÊÊÊM
Raparigas da tríbu Libolo
240 POPULAÇÕES INDÍGENAS
zendo o fogo da que abandonaram, com êle venha Igualmente as
desgraças experimentadas naquela. Neste caso o fogo é produ-
zido pela percussão em pedras com ferro.
Alem de água fazem uso de bebidas fermentadas, tais como:
o maluvu ou vinho de palmeira ; a uala ou garapa da farinha de
milho e da massambala; o kingundu ou hidromel.
Fumam o tabaco e a riamba.
Conservam a carne desecando-a ao sol ou defumando-a, e os
cereais e legumes em celeiros em pequenas cubatas assentes
sobre estacaria ou em cima de rochedos para assim ficarem ao
abrigo do salalé.
A antropofagia — diz-se — é praticada clandestinamente, sendo
as vítimas os feiticeiros ou prisioneiros de guerra. Não pode
porem ser considerada com o fim de se alimentarem, mas tão
somente porque estão convencidos que assim destroem tudo
quanto pudesse sobreviver np inimigo morto.
*
* *
O tipo de habitação é a cubata assente sobre o chão, de base
rectangular ou circular — mais geralmente esta última forma —
com uma só porta e quási sempre sem janelas.
A cubata é construida de pau a pique, barreada ou revestida
de colmo e com cobertura deste mesmo material.
Com relação ao mobiliário, além da tarimba de empelas de
palmeira, raro é encontrar-se outro móvel.
As povoações são construídas no alto dos montes e não longe
de água.
São constituídas por aglomerações irregulares de cubatas,
não obedecendo a qualquer plano.
Nas povoações há cubatas destinadas para as raparigas sol-
teiras de uma certa idade pernoitarem, e aos hóspedes oferecesse
geralmente a cubata de um rapaz.
*
% #
A ocupação principal dos povos em estudo é a agricultura.
O Libolo é, por certo, das tríbus do norte da província, aquela
que, com mais esmero e proficiência exerce, não só a agricultura
DE ANGOLA
241
dos produtos de que tira a sua alimentação, como igualmente
o tratamento de outras plantas expontâneas, principalmente a
palmeira dendem, em que se pode considerar exímios.
As culturas dominantes são : o milho, a mandioca, a ginguba,
a abóbora, a batata doce e o feijão.
Como utensílios e alfaias empregam os tradicionais machados,
enchadas e catanas; não recorrem a regras ou a adubação.
Ao homem compete a preparação do terreno para as culturas
Libolo — Fabrico do esteiras
e o tratamento das palmeiras, e à mulher as culturas e apanha
dos frutos.
Dedicam-se à apicultura, principalmente os indígenas do Ki-
bala, fazendo os cortiços de casca de árvore e suspendendo-os
nas árvores de maior porte.
Dedicam-se à criação de gado suino, caprino e lanígero.
Exercem a caça como prazer em batidas por ocasião das
grandes queimadas de julho a outubro e pela forma já indicada
para os Manungos.
No que diz respeito a indústrias : exercem a de olaria, princi-
palmente na região de Mussende, onde abunda a argila mais
própria; a de cesteiro, quási que exclusivamente da competência
da mulher; a tecedura do algodão expontâneo; a de moagem
por trituração, reservada exclusivamente às mulheres; a de me-
talurgia, por indivíduos que a este mister se dedicam, fabricando
facas, machadinhas, concertando armas, etc. ; a de cordoaria apro-
veitando a casca de imbundeiro; a de tanoaria e a de tinturaria.
242 POPULAÇÕES INDÍGENAS
* *
Os Libolos falam um dialecto do Kimbundu.
As danças usadas por esta tríbu em nada diferem das que
são comuns aos povos já estudados, sendo como aquelas desen-
graçadas, monótonas e reduzindo-se a flexões do tronco e rins.
São dados à música. Os instrumentos de música que usam
são: a marimba, a puita (bombo), já descritas para outras tríbus,
e a kissaca, constituída por três ou quatro pequenas cabaças,
enfiadas seguidamente em uns paus e tendo dentro pedras.
Não praticam a escultura.
Sobre astronomia, julgam que o sol durante a noite se mete
na água.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A reli-
gião, rito, culto, divindades, sacerdóoio.
A mulher grávida três meses antes do parto suspende as
relações sexuais com o marido, mas não deixa os seus misteres
e ocupações senão quando sente os primeiros smtomas do parto.
Após este não sai da cubata durante quatro semanas e continua
não tendo relações sexuais com o homem durante igual período
ao que já o precedeu.
A parturiente é assistida no parto por mulheres experi-
mentadas, em geral as visinhas amigas.
A lactação dura em geral dois anos.
Por motivo de superstição existe o infanticídio obrigatório
para as creanças a quem os dentes de cima nasçam primeiro.
Quando assim sucede é a própria mãe que tem de ir afogar o
filho em um rio, pois se assim não fizer virá a ser um feiticeiro.
O *abôrto é muito comum e quási todas as mulheres o sabem
provocar, visto que assim procedem quando concebem fora do
casamento ou quando concebem a primeira vez depois de casadas.
Lavam os recemnascidos com água fria, cortam-lhe o cordão
umbilical com uma faca, tratando-o com a aplicação de uma
mistura de excremento de lagarto, fubá, polpa de um pequeno
fruto de uma curcubitácea (ritanga) e azeite de palma.
DE ANGOLA
243
A imposição do nome ao recemnascido é feita só entre a fa-
mília, fazendo uma pequena festa, pretexto para se usar e abusar
das bebidas fermentadas. O nome é dado pelo mais velho tio
paterno do recemnascido, na falta deste compete a um tio ma-
terno e só não havendo tios cabe ao pai a imposição do nome.
Além deste nome, os Libolos tomam um segundo entre os 16
e 18 anos quando praticam a cerimónia da iniciação. A cerimónia
é presidida pelo soba, oferecendo uma cabeça de gado, que manda
Libolo — Ponte gentílica
cozinhar, e qualquer bebida fermentada. Os novos nomes são
dados reciprocamente pelos iniciados e a cerimónia é seguida de
três dias de festa, em que as mulheres não podem tomar parte.
Ainda é costume muitos tomarem um terceiro nome dos 25
aos 40 anos, não sendo a escolha do nome revestida de cerimonial
algum, convidando simplesmente os parentes para assistir.
Pratica-se a circuncisão entre os 3 e os 18 anos. Da operação
é encarregado um kimbanda que a leva a efeito longe das san-
244 POPULAÇÕES INDÍGENAS
zalas e junto de qualquer rio ou riacho, onde os rapazes se con-
servam durante a cicatrização, não podendo ir à sanzala nem
privar com qualquer mulher, e onde a família lhes manda ali-
mentação.
Não pode fixar-se a idade em que oLibolo atinge a maioridade,
pois que é bastante variável, visto que a condição para ser senhor
das suas acções é o casamento.
* #
Não há idade certa para o casamento, entretanto na grande
maioria, o homem casa dos 18 anos em deante e a mulher depois
de ter feito 16 anos.
Os ajustes antenupciais variam consoante a categoria e os
haveres dos noivos. O noivo faz a proposta de pedido de casa-
mento à família da noiva, sendo esta ouvida, mas podendo no
entanto ser obrigada pela família a casar contra sua vontade.
Ajustado o casamento é o noivo obrigado a presentear a
família da noiva com gado, fazendas, aguardente, etc, no valor
sempre superior a 30$00.
Caso o noivo faleça antes de se unir à noiva, é a família
obrigada a restituir o que dele recebeu, à sua família.
A forma de casamento constituo na entrega da noiva à mãe
do noivo, a casa de quem é levada pela família, vizinhos e
conhecidos, matando o noivo, por essa ocasião e para solenizar
o acto, um porco ou um carneiro.
Só depois de 15 dias de iniciação por parte da sogra, é que
os noivos se podem juntar.
Existe a poligamia, mas não se pratica a poliandria.
O homem tem direitos absolutos sobre a mulher, fazendo-a
trabalhar em seu proveito, dando-lhe alimentação e vestuário.
Os direitos e obrigações, das diversas mulheres de um mesmo
homem são iguais, estando no entanto todas mais ou menos
subordinadas à primeira.
Cada mulher vive com seus filhos em cubata separada.
Existe o divórcio, sendo causas determinantes :
1.° A esterilidade da mulher;
2.° A incapacidade procreativa do homem;
3.° O facto de falecerem os filhos ainda creanças;
O adultério nem sempre constitue causa de divórcio.
DE ANGOLA
'245
Entre os Libolos o divórcio por esterilidade da mulher ou
incapacidade procreativa do homem não se efectiva sem primeiro
se averiguar qual dos cônjuges é o culpado de não haver filhos.
Assim a mulher procura ter relações sexuais com outro homem
e, se destas há fruto, efectiva-se o divórcio, perdendo o homem
o penhor (alambamento) que deu antes do contracto, se a mu-
lher não consegue ter filhos
com outro homem e este con-
segue havê-los de outra mu-
lher, o divórcio resolve-se a
favor do homem, tendo a fa-
mília da mulher de o inde-
mnizar do penhor por êle en-
tregue, se ambos se revelam
inaptos para procrear acor-
dam no divórcio por mútuo
consentimento.
Pelo que fica exposto, pa-
rece que nesta tríbu não se
dá bem o empréstimo da
mulher, para por qualquer
processo se obter filhos como
nalgumas tríbus Ganguelas,
e que se acorda no divórcio
provisório logo que não haja
fruto do casamento, ficando
porém a forma de o liquidar
e portanto de o efectivar,
dependente da averiguação
de quem é o causador da falta
de prole.
A mulher divorciada fica
livre do vínculo que a prendia ao homem e apta para contrair
novo casamento. Volta em geral para casa da família, levando
consigo os filhos menores, mas cujo sustento corre por conta do
pai.
Os filhos das diferentes mulheres teem os mesmos direitos,
sendo no entanto os da primeira mulher considerados os mais
velhos, não obstante sejam mais novos que alguns das outras
mulheres.
O adultério é frequente, sendo punido, quando por parte da
Libo os — Soba do Mussende
246 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mulher, com indemnização ao marido do penhor do casamento,
quando por parte do homem, com a perda por parte deste da-
quele penhor em favor da família da mulher.
Parece que, pelo menos no sobado de Calulo, a sucessão se
faz de pais para filhos, sendo estes os legítimos herdeiros dos
pais, e que na falta do pai, é o tio paterno que exerce as suas
funções, com os respectivos direitos, fazendo os filhos parte do
patriarcado.
Esta informação prestada pelo superior da missão de Calulo
e confirmada pelo sr. Palermo, creio bem que não terá um caracter
geral, e se referirá a indígenas mais ou menos assimilados, pois
não*é crível que, não diferindo a organização da família, nos
seus traços gerais, da que se encontra nas tríbus da raça negra,
se abrisse uma excepção para a sucessão, que tão característica
é para aquela raça, por se fazer pelo ramo colateral feminino.
A mulher não herda do marido e na falta de herdeiros rever-
tem os bens a favor do soba.
* #
As doenças são tratadas pelo kimbanda, adoptando remédios
e mesinhas tirados do reino vegetal. Usam muito a aplicação de
ventosas, servindo-se de chifres de boi em que fazem um pequeno
orifício na extremidade, produzindo o vácuo por sucção naquele
orifício, que a seguir fecham com cera.
Antes da aplicação da ventosa, praticam algumas ligeiras
incisões na derme para facilitar a sangria.
Não crêem na morte natural e atribuem-na sempre aos fei-
tiços.
Costumam antes de enterrar o morto de o untar com azeite
de palma, vestindo-o com o melhor vestuário que possua, e
expondo-o sentado debaixo de uma espécie de alpendre que cons-
troem com ramos verdes junto da cubata em que morreu.
Seguem-se três dias em que choram — a seu modo — o defunto,
dançando, comendo e sobretudo bebendo.
A sepultura é em forma de gaveta, isto é, fazem uma cova
e em uma das suas paredes junto à base abrem uma pequena
galeria, onde o cadáver é colocado. Tapam a abertura desta
galeria com esteiras em forma de cortina, e entulham a cova
com pedras até à superfície.
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Popul.' indígenas de Angola
(247)
DÊ ANGOLA 247
O luto da viuva dura um ano, no espaço do qual não pode
tratar de novo casamento, nem de cozinhar. Decorrido o ano
do luto, é oferecido no tumulo do marido o sacrifício de uma
cabra, terminando assim este.
Crêem em um ente supremo que não sabem representar, que
respeitam e que tudo governa.
Crêem em espíritos bons e maus que a todo o transe inter-
veem na sua vida, recorrendo aos adivinhos para chamar em
seu auxílio a influência dos primeiros e aplacar as iras dos segun-
dos.
Daí a sua representação material por meio de feitiços (ma-
bumbes), guardados em uma cubata especial, que em geral se
encontra ao centro das sanzalas.
A. alma a que chamam kilula, depois da morte torna a viver
em outro corpo, vindo animar o corpo de um escravo, como
castigo, se o primeiro corpo a que pertenceu praticou algum
crime, e de um homem conceituado como recompensa de seu
primeiro possuidor ser um homem bom.
São supersticiosos e em qualquer pequena coisa vêem pro-
núncios de desgraça ; teem o culto pelos antepassados.
Os adivinhos e curandeiros parecem reunir em si as funções
de sacerdócio.
Cada soba tem na sua corte um oficial ou ministro, denomi-
nado Mxocote, de nomeação hereditária e que é encarregado dos
sacrifícios nos túmulos dos sobas falecidos.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens jurí-
dicas.
Levam vida bastante sedentária, dedicando-se às suas culturas,
e tendo verdadeiro amor pela sua terra.
Existem classes e castas, nada tendo a acrescentar ao que
sobre o assunto temos exposto para outras tríbus.
248 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A organização política é constituída em estados independentes,
sobados, governados por um chefe, soba, que é assistido por um
conselho com atribuições consultivas.
O soba escolhe uma espécie de primeiro ministro, conselheiro
e ajudante, e que se denomina Gana Tandela. Além desta enti-
dade existem, segundo ordem decrescente, os seguintes digna-
tários: Golambole; Gana Egico ; Gana Lumbn; Gana Vilola;
Gana Toni; Gana Dungue; Gana Muculau; Kilombo kia Goma;
e Gana Kiambata.
Estes dignatários vivem uns na banza do suba (residência) ou
em outras sanzalas de quem são chefes e a quem são transmitidas
as ordens do soba por intermédio do Tandela. O Tandela, ime-
diato do soba, pertence aos dignatários que não residem na banza
e é chefe de uma sanzala.
O conselho junto do soba é constituído pelos dignatários
acima designados, mas em geral só reúne com todos os seus
membros em assunto de grande importância, em casos de pequena
importância é o conselho constituido pelo soba, que preside e
pelos dignatários: Tandela; Gana Egico; Golambole; Gana
Dungue; e Gana Lumbu.
Em geral o soba conforma-se com a opinião do conselho, mas
pode não conformar-se e tomar resolução contrária.
O soba governa o seu povo e tem por dever defendê-lo pe-
rante a autoridade. Tem sempre direito a uma parte da caça
abatida no seu sobado, e à pele se aquela fôr leão ou onça.
O soba usufrue o rendimento dos bens do sobado.
Por morte do soba, fica o Gana Tandela dirigindo o sobado.
Falecido o soba passam a embalsamá-lo extraindo-lhe as
vísceras que enterram no quintal junto da habitação do soba
falecido, substituindo-lhas por sal e aguardente, depois do que é
o soba falecido envolvido em peles de onça e depositado em uma
cubata. Só depois desta cerimónia reúne o conselho afim de
acordar em quem deve substituir o soba falecido.
Escolhido o novo soba dá-se a conhecer o seu nome, e é con-
vidado para se apresentar na banza, sem cerimonial especial. O
soba toma posse do seu logar, mas quem continua a ter o mando
superior é o Gana Tandela, até que decorridos alguns meses, se
trata de enterrar o falecido soba e da investidura do escolhido.
Nesta cerimónia figuravam sempre uma ou mais cabeças de
homens que eram sacrificados para este fim. Atualmente
substituem as cabeças de pessoas por cabeças de macaco.
DE ANGOLA 249
Quem preside às cerimónias do funeral do soba falecido e
investidura do escolhido, é um soba vizinho, respeitando a tra-
dição de ser sempre o mesmo soba que com a sua comitiva vem
assistir àquelas cerimónias.
Destas cerimónias consta o acompanhamento do cadáver do
soba ao cemitério dos sobas, dansas, sendo dadas as cerimónias
de investidura por terminadas com uma arenga produzida pelo
novo soba em que exalta as suas qualidades, promete bem go-
vernar, rematando por pôr o pé sobre a cabeça do macaco.
Nas audiências dadas pelo soba, é êle quem primeiro dirige
a palavra aos seus vassalos sem o que estes não podem falar.
# *
Praticam a permuta de cera, esteiras, coconote, azeite de
palma, milho, ginguba, batata doce, mandioca e fubá, por fa-
zendas, armas, facas, etc. Alguns já vendem a dinheiro os seus
productos.
Existe o direito de propriedade das terras, individual, colectiva
e a que constitue os bens do sobado.
Existem igualmente os contratos de compra, venda e emprés-
timo.
O credor tem o direito de apossar-se de quaisquer bens do
devedor, quando este não satisfaça os seus compromissos.
Os contractos provam-se, por testemunhas ou por sinais, por
exemplo, tratando-se da venda de um palmar, da entrega de
duas pequenas hastes do vendedor ao comprador.
As questões são julgadas, segundo a sua importância, pelos
sobetas ou pelos sobas.
Nos julgamentos interveem, àlêm do julgador, as testemunhas,
os litigantes ou seus representantes (em geral parentes próximos)
e às vezes acessores.
Como provas subsidiárias usam a do veneno, administrado ao
suposto culpado e a do acusado meter as mãos em azeite a
ferver.
17
6y3"* •./"••' '"V-
CAPÍTULO XI
TEÍBUS BAVILLI (')
(Cabindas e Kakongos)
As tríbus Bavilli ocupam, na província de Angola os territó-
rios ao norte do rio Zaire, no que impropriamente se denomina
o Enclave de Cabinda limitados ao norte e sul pelas colónias
extrangeiras confinantes, ao oeste pelo Oceano Atlântico e a leste
pelo rio Luali.
As tríbus Bavilli pertencem à raça Negra e descendem dos
povos que, vindos do oriente, na sua frente encontraram as
grandes florestas da bacia hidrográfica do Zaire, torneando para
o norte.
Os Bavilli constituíram até aproximadamente ao principio do
século xvn divisões ou condados directamente sujeitos a um so-
berano residente em S. Salvador, o rei do Congo, a quem paga-
vam tributo. Mas com o andar dos tempos e em virtude da
grande extensão dos territórios, que dificultava a sua adminis-
tração, foi a região ocupada pelos Bavilli dividida em zonas
governadas por delegados do rei do Congo.
Estes governadores aproveitando as frequentes revoltas, sa-
cudiram o jugo que os oprimia e proclamaram a sua independência,
tomando cada um deles o título de rei, o que deu ocasião à for-
mação do reino de N'Goio, ou dos territórios actualmente abran-
gidos pela Circunscrição de Cabinda, cujos habitantes se designam
por Bafiotes, e ao reino de Kakongo, com jurisdição nos territó-
rios hoje pertencentes à Circunscrição de Landana e que se
extendem até ao Luali.
(!) Forneceu elementos para â estudo destas tríbus o administrador
da Circunscrição de Landana o Sr. Gama Ochôa.
252 POPULAÇÕES INDÍGENAS
I
CABINDAS
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Entre os Cabindas encontram-se ao lado do tipo franzino o
rapagão de formas hercúleas; ao lado da estatura meã a elevada.
No entanto, ou porque predominam o número de certos indiví-
duos, ou porque o clima, a educação, os usos, a abastança rela-
tiva, etc, modifiquem os tipos, certo é que geralmente o cabinda
está longe de apresentar o corpo disforme de outros pretos; é
um homem geralmente musculoso, de formas airosas quando
ainda não velho. Entre as raparigas encontram-se com frequência
figuras esbeltas e corpos modelados com elegância.
A mulher entrada há pouco na puberdade, tem mãos e pés
pequenos, delgados sustentando uns membros inferiores fortes,
torneados, engrossando do pé ao joelho pouco a pouco, e forte-
mente para cima até constituirem as nádegas volumosas, com
uma ampla bacia, bem conformada, que se prolonga em uma
cintura delgada e um tórax desenvolvido, de seios cónicos,
rijos, proeminentes, com mamilos grossos e salientes tudo enci-
mado por um pescoço proporcionado e uma cabeça pequena,
pouco dolicocéfala, de orelhas curtas e delgadas, de nariz pouco
achatado, lábios pouco grossos, olhos grandes e rasgados e testa
curta.
O cabinda é geralmente cobarde, não responde a uma agres-
são, tornêa as dificuldades e os perigos sem nunca os encarar
de frente; com uma paciência acima de toda a medida espreita
a melhor ocasião de fazer o que pretende; é tenaz, dissimulado
até ao último extremo, mentindo com o maior desassombro,
sem que o seu rosto anuncie a menor alteração. Com estes
predicados, astuto e sofismando tudo, fácil Jhe é enganar ou
roubar o europeu, e, quanto mais e melhor o fizer mais consi-
deração fica gosando entre os seus.
Desde muito novo o cabinda está pronto a emigrar para
qualquer parte, a ganhar a vida fora da pátria, onde conserva
os seus usos e costumes e é tão trabalhador como mandrião o é
na sua terra; mas tem sempre vivo desejo de a ela voltar, quer
pouco tempo, quer para se fixar.
DE ANGOLA 253
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação.
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, sciências e faculda-
des intelectuais.
É por certo a tribu da província a que mais cuidados tem
com a higiene e asseio do corpo, podendo mesmo afirmar que
êle é maior do que em muitas das nossas aldeias da metrópole.
Há tendência em tudo para o asseio do corpo; tomam repetidos
banhos quando lhes é fácil encontrar água, aproveitando o mar
ou os rios, e mudam amiudadas vezes de roupa quando a tem.
O que porém mais cuidado merece ao cabinda é o asseio da
boca; ao levantar é a primeira coisa que faz, lavando e fric-
cionando os dentes com um pau aromático e tirando a saburra
lingual, servindo-se para isso de uma delgada tira de bordão
que arrastam no dorso da língua de traz para diante e tomando
fortes e repetidos bochechos de água simples. Em qualquer
ocasião, seja qual for a substância que se comer e por mais
insignificante que for a quantidade, o cabinda lava a boca e
fricciona os dentes e gengivas com o' dedo.
A base da alimentação é constituída pela mandioca, quer em
farinha nas conhecidas papas, quer seca (fadigo), quer cozida a
vapor aos pedaços (maiaka) ou em bolos (chikuangá).
Alem da mandioca costumam usar na alimentação frutos,
tubérculos e raizes comestíveis, o peixe e caça.
O cabinda faz largo uso das bebidas alcoólicas ou fermentadas
tais como : a seiva das palmeiras, fresca ou fermentada ; o hi-
dromel e todas as bebidas obtidas pela fermentação do milho,
da mandioca, etc. Aprecia sobretudo a aguardente (malávo), é
o líquido que mais consome depois da água. Sobre o uso da
aguardente pelo cabinda escreve J. Matos e Silva na Contribuição
para o Estudo da Região de Cabinda:
«A mãe bebe aguardente e dá-a ao filho de mama, ou pelo
menos borrifa-lhe a cabeça e a boca; cresce a pessoa e troca o
que pode por aguardente; em ajustes para qualquer serviço,
254 POPULAÇÕES INDÍGENAS
entra sempre a aguardente ; este líquido mostra se a rapariga
aceita noivo, se qualquer indígena aceita qualquer contrato; a
misade manifesta-se oferecendo aguardente, a hospitalidade do
mesmo modo; no casamento no funeral, em qualquer festa, a
aguardente corre em abundância; muitos serviços se pagam
com ela; ela era a base a que se referiam certas transações».
É trivialíssimo em ambos os sexos o uso de tabaco, chei-
rando-o reduzido a pó, ou fumando-o em cachimbos de barro
cozido e de pipos de madeira, por eles construídos.
Não obstante a proibição, só se não podem é que não fumam
a liamba (cânhamo), sujeitando-se às sensações penosas produzidas
por tal uso que em princípio lhes produz uma tosse insistente,
violenta, fatigante, quási sufocante, mas que parece ser com-
pensada pela fase de repouso em que, segundo contam, há sen-
sações agradabilíssimas.
O vestuário geralmente usado varia com o sexo, com os ha-
veres de cada um e outras circunstâncias, mas fundamentalmente
consta de simples tiras de algodão, conhecidas pelo vulgar nome
de panos.
Nos homens o pano prende-se na cintura por um cinto, cordel
ou cordão grosso e vai até ao tornozelo, sendo mesmo luxo o
arrastar um pouco pelo chão, a que se obsta levantando as pontas
que é uso levar na mão. Constitue um certo luxo que o pano
fique liso sobre as nádegas, vindo toda a fazenda em excesso
juntar-se à frente, um pouco para a esquerda, formando nume-
rosas pregas.
Cobrindo o tronco é vulgar as camisas, coletes, casacos, con-
tudo é de uso muito comum uma espécie de camisola, na maioria
branca, pouco larga quando não justa ao corpo, passando raras
vezes da cintura, de pequena gola lisa, direita, ou mesmo sem
gola e abotoada à frente, a meio ou ao lado, em uma abertura
tão pequena que às vezes se torna difícil o vestir e despir. Esta
camisola em geral não tem mangas e quando as tem são justas e
curtas não passando àlêm do cotovelo. Constitue luxo pequenas
algibeiras nesta camisola, bem assim como botões de louça de cores
variadas e desenhos caprichosos ou mesmo frases a pontos variados.
A cabeça em geral anda descoberta, mas usam-se bonets de
palha e chapéus europeus.
DE ANGOLA 25Õ
Andam geralmente descalços, salvo os que vestem calças, que
quando o fazem se calçam.
A mulher, enquanto não chega à puberdade, usa, em geral,
um simples pano preso à cintura e que lhe chega aos joelhos,
andando os seios a descoberto; logo, porem, que se estabelece a
menstruação, a mulher começa a usar o pano preso por cima dos
seios e debaixo dos sovacos, chegando-lhe até aos joelhos, e quando
muito até ao tornozelo. Por baixo desse pano é costume usar mais
dois, presos por um cordão à cintura, um constituído por uma
pequena tira de fazenda que atam por debaixo das pernas, o Zumbo,
e outro dando a volta ao corpo e descendo só até meia coxa.
A cobrir-lhes o tronco usam, as que téem mais recursos, uma
camisa quási sempre de algodão branco, fino, setineta ou voile,
sem mangas, cobrindo apenas o alto do braço e que desce até ao
joelho.
Alem do vestuário indicado para as mulheres, as que podem,
acrescentam àqueles panos um outro, espécie de manto do pescoço
ao chão, e que não anda preso.
Os homens teem grande predileção pelo vestir à europeia, o
que não sucede com a mulher que traja sempre segundo o uso.
Costumam empregar a tatuagem ou antes cicatrizes salientes
no ventre, peito e costas. Estas cicatrizes são finas e pequenas,
de dois a três centímetros e aos grupos de duas, três ou quatro.
Obteem-se as cicatrizes desenhando-as primeiro na pele com
greda, aplicando depois qualquer dos seus curiosos processos de
ventosas, que sarjam miudadamente à faca, enchendo as feridas
com pó fino de carvão vegetal. Em poucos dias as feridas estão
fechadas e as cicatrizes salientes de um a dois milímetros.
É uso nos dois sexos furar as orelhas.
No que diz respeito a enfeites e adornos usam tanto homens
como mulheres os propriamente indígenas, como sejam : pulseiras
ou argolas de ferro, latão e prata nos braços e tornozelos, nestes
principalmente as mulheres, que pelo seu peso lhes chega a difi-
cultar os movimentos ; pulseiras de pele de hipopótamo ou outro
qualquer animal a que se ligue memória de caso de sensação;
colares de contas de vidro, massa ou metal nas mulheres e de
dois pêlos de elefante nos homens a que geralmente se suspende
um búzio ou um pequeno osso; e o massingalálila, um cordão
de algodão ou finas fibras vegetais que se usa na cintura sobre
a pele, a que anda preso ou enfiado um ou mais amuletos, geral-
mente um pequeno chifre, osso ou búzio.
256 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Dos ornamentos e enfeites de origem europeia usam : os brincos,
as pulseiras, os anéis, relógios de ferro e prata, em geral avariados
e só para vista, correntes, botões de metal, marfim, osso ou
madrepérola, etc.
*
# *
O tipo de habitação é a cubata de base rectangular e com
cobertura de duas águas que pôde fechar à maneira de dobradiça
em torno do bordão que forma o pau de fileira. Os materiais
empregados na construção são o colmo, o bordão de palmeira e
os papiros.
A porta é única e sempre feita em uma das paredes mais
pequenas; abre-se a uma pequena altura do solo, tem pouco
mais de um metro de altura e a sua largura é aquela que seja
necessária apenas para dar passagem ao morador.
Quanto a janelas, uma ou outra vez as há nas paredes laterais,
raras na posterior e mais geralmente no telhado.
Não os preocupa a orientação ao construir a cubata, no entanto
a porta ficará para o lado oposto ao caminho principal, se é próximo.
As cubatas agrupam-se em aldeias (buala) dispostas irregular-
mente, em exposições diversas, sem arruamentos, mais ou menos
afastadas entre si, separadas por espaços cultivados, mas todas
ligadas umas âs outras por caminhos tortuosos.
O tipo de Buala mais pequena é constituída por um chefe de
família e seus parentes próximos ou cônjuges desses parentes; o
mais velho é o representante da buala. Outras muala (plural de
buala) existem em que se agrupam várias famílias, mais ou menos
afastadas; estas ficam subordinadas então a um príncipe.
A cosinha é junta da casa em uma espécie de vestíbulo feita
pelo prolongamento de duas das paredes da cubata, que pôde
deixar de ser coberto, ou então por uma espécie de alpendre sem
paredes e cuja cobertura é o prolongamento de uma das águas
do telhado. No entgnto, quando se trata de um chefe, a cosinha
é feita em uma pequena cubata próxima da que serve de vivenda.
O cabinda tem especial predilecção e tendência para os ser-
viços marítimos a que se entrega como remador de escaleres em
DE ANGOLA 257
toda a costa da província e de S. Tomé e Príncipe, e como tri-
pulantes de outras embarcações à vela ou vapor. Além desta
ocupação, que por certo é a sua predilecta, o cabinda emprega-se
como criado de quarto e de meza, lavadeiro e cosinheiro, tendo
grangeado uma tal fama que até há bem pouco tempo era, nos
centros mais importantes da província, considerado como indis-
pensável.
A mulher compete quási que exclusivamente os trabalhos
agrícolas, o serviço caseiro e de cosinha, o tratar de animais
domésticos, patos e galinhas, e. o fabrico de bebidas fermentadas.
O cabinda tem negação, quási que absoluta, pela agricultura,
que considera degradante, sendo os trabalhos agrícolas da exclu-
siva competência das mulheres.
Os processos empregados nas culturas são os mais rudimen-
tares possíveis, usando como alfaia a pequena enxada gentílica,
e não regando nem adubando as terras com outro adubo que não
seja a cinza das ervas a que deitam fogo para fazerem as semen-
teiras e plantações.
Cultivam o milho, o amendoim, o feijão, a batata doce, a
mandioca e pouco mais. A não ser o milho e o amendoim, que
cultivam em maior escala, as restantes culturas são calculadas
para as necessidades alimentares até nova colheita.
No que diz respeito à criação de gado, a não ser os poucos
cuidados que às mulheres merece a criação de galinhas e patos,
as restantes espécies de gado que possuem, como sejam porcos,
gado lanígero e caprino, não os preocupa muito, nem lhes for-
necem alimentação ; o animal alimenta-se do que encontra e volta,
próximo da noite, para casa do dono.
Não exercem a caça por profissão e simplesmente levados pela
necessidade de se defenderem contra os prejuízos que qualquer
peça de caça lhes faça.
Não usam na caça flecha e raramente armas de fogo ; o modo
mais usual de caçar é com armadilhas de várias espécies e feitios
conforme a corpolência e a ferocidade do animal que se pretende
caçar.
Dos processos usados pelos cabindas na caça, merece especial
menção a forma como caçam o macaco. Empregam uma cabaça
grossa, solidamente presa, na qual fazem um pequeno orifício
por onde custe a entrar a mão do macaco, e onde metem pedaços
de maçaroca de milho, espalhando alguns grãos em volta. O ma-
caco, aproveitando os grãos, vai aproximando-se da cabaça, e,
258 POPULAÇÕES INDÍGENAS
espreitando os pedaços de maçaroca, dispõe-se a tirá-los com a
mão, metendo-a na cabaça, mas não o podendo fazer denuncia a
manobra aos caçadores que pressurosos acodem gritando; o ma-
caco, assustado, tenta fugir, mas, ou porque não quer largar a
maçaroca, ou porque disso se não lembra, é apanhado.
Para a caça de animais de maior porte e perigosos, empregam
uma isca, um animal vivo, preso a uma estaca, e uma disposição
especial que a caça ao lançar-se sobre a presa ou é mortalmente
ferida por uma espingarda que se dispara ou cai em uma funda
cova de onde não pôde sair, e onde depois é morta.
A pesca é igualmente uma ocupação e modo de vida vulgar
entre os cabindas. Entregam-se à pesca quer no mar, quer nos
rios. Na praia a pesca é geralmente exercida com a rede de
arrastar, processo que varia conforme a profundidade da água.
Junto da praia com pequenos declives, é a rede constituída por
paus paralelos de mais de um e menos de dois metros, distantes
entre si de três metros, e ligados todos por uma rede, de 50 a
90 centímetros de largo, constituída por um encanastrado de
fibras de delgadas hastes vegetais, que inferiormente é continuada
por uma espécie de franja de folhas de gramíneas, soltas a modo
de cadilhos. Para pescarem por este processo estendem pela
praia o aparelho e arrastam-no para dentro de água obliquamente
à praia ; depois de terem avançado uma distância igual ao com-
primento da rede, voltam para terra formando com ela um semi-
círculo que a pouco e pouco vai diminuindo e que arrasta para
a praia o peixe que ficou dentro dela.
Em fundos não superiores a seis metros, costumam usar uma
outra rede de arrastar de 30 a 50 metros de comprimento, for-
mando uma espécie de cone, continuando-se de um e outro lado por
panos de malhas larguíssimas, que rematam em compridos cabos.
No alto mar a pesca é à linha.
Nos rios a pesca exerce-se nos cursos de água de maior im-
portância, com aparelhos semelhantes aos acima descritos, nos
pequenos rios, com redes atravessando a corrente ou com apa-
relhos análogos aos nossos covos, mas cuja forma é cilíndrica ou
proximamente cúbica.
São hábeis em obra de cesteiro fabricando de fibras vegetais
esteiras, cestos (kindas) de vários feitios e tamanhos, barretes e
bonets.
No fabrico dos cestos e condessas empregam a folha seca da
palmeira e nos bonets e barretes, quando mais cuidados e desti-
DE ANGOLA 259
nados a insígnias ou atributos de nobres, de delgadas fibras de
folhas de ananaz que, pela maceração e percursão, tenham dado
fios muito alvos e extremamente fortes.
O processo de fabrico é, em geral, o encanastrado.
Um outro producto fabricado pelo mesmo processo é a insígnia
de nobreza, tchinzela, espécie de romeira, cingida ao pescoço,
sempre sem gola, com uma abertura rectilínea na frente, guarne-
cida ou não de alamares ou cordões com borlas.
A cerâmica dos cabindas, pequena na variedade de formas, é
muito desenvolvida na produção, constituindo comércio de bas-
tante importância. A argila empregada é de duas variedades,
resultando productos, depois de cosidos, com duas cores, a aver-
melhada mais vulgar, e a quási preta mais empregada para os
objectos que teem de sofrer a acção directa do fogo.
Os productos mais comuns são : a panela, desde a de pequenas
dimensões, podendo conter menos de um litro, até à maior, de
uns cinco litros; garrafas para água, em geral semelhantes às
nossas garrafas de meza, de gargalo alto e delgado e base larga ;
e vasilhas semelhantes aos nossos potes, com tão pouca base que
para se manterem de pé é necessário enterrá-los ou calçá-los.
No que diz respeito a obra de madeira, a não ser a construção
das canoas e dos manipanços que constituem os feitiços, pouco
mais fazem.
Apesar de raríssimos cabindas se entregarem a trabalhos de
marfim, o que é muito vulgar no Congo francês onde esta in-
dústria está mais desenvolvida, alguns há que pachorrentamente
e à faca se dedicam a trabalhos desta natureza.
No que diz respeito aos processos de moagem, é o de tri-
turação por meio do conhecido pilão, usado pelos povos estabe-
lecidos na margem sul do rio Zaire.
*
O dialecto falado pelos Cabindas tem todas as características
das línguas aglutinativas e perfixativas, faladas pela grande
família bantu.
O mecanismo do dialecto é em tudo, pois, semelhante aos
daqueles já inumerados e que são falados pelas diversas tribus
da raça negra e em especial das estabelecidas nas margens sul
do rio Zaire, em que o prefixo serve para designar a classe a
260
POPULAÇÕES INDÍGENAS
que o substantivo pertence, ou para designar qual o substantivo
com que o adjectivo concorda.
A seguir publicamos um vocabulário do dialecto falado por
esta tribu,
Yocabulário do dialecto Cabinda
Português
*
Singular
Plural
Abaixar
Kukulula
—
Abantesma
Tchimbinde
Bimbinde
Abcesso
Ivúma
Vuma
Abelha
Nossa
Zinossa
Aborto
Tchialula
Bialula
Acácia
Vúnga
Mavúnga
Adeus
Siála
—
Adivinhar
Kutécha
__
Adoecer
Kubéla
—
Advogado
Kótikuanda
Kótikuanda
Agua
Mázi
—
Aguardente
Malávo
—
Águia
Bémba
Mabémba
Agulha
Túumbo
Túumbo
Álcool
Tchikêma
—
Alcunha
Kúmbo
Kúmbo
Aldeia
Buála
Mala
Alfinete
Finête
Finête
Amendoim
Piinda
Piinda
Amor
Luzólo
—
Anel
Anére
Anére
Anus
Fúne
Mafúne
Anzol
Nezólo
Nezólo
Apodrecer
Kubóla
—
Arroto
Diouka
Madiouka
Artéria
Lecila
Cila
Assassino
Mepúnha
Punha
Assobio
Luita
Tuita
Atirar
Kukúba
—
Aza
Váva
Maváva
Banana
Itêba
Bitêba
Bandeira
Limbo
Belimbo
Baralhar
Kuméça
---
Barbatana
Itólo
Matólo
Barrete
Mepú
Mepú
Beber
Kunuá
— ■
Beliscão
Kinkofe
Bimkofe
Blenorragia
Zuéma
Zizuéma
Boca
Muno
Mino
Braza
Kála
Makála
DE ANGOLA
Português
Singular
Plural
Brincar
Kusákana
—
Bufar
Kufuanga
—
Buraco
Ibulo
Mabulo
Buscar
Kulânda
—
Cabaça
Nessáva
Zissáva
Cabeça
Metú
Bantú
Caçar
Kubuéla
—
Caixote
Lukáta
Nekáta
Caldeira
Nezúngo
Zúngo
Calo
Kângo
Makângo
Cama
Tchica
Betchica
Camisa
Tchinkuto
Binkuto
Caneca
Nebúngo
Búngo
Cantar
Kuimbila
' —
Cantiga
Luimbo
Tuimbo
Carro
Kálo
Makálo
Cavar
Kusika
—
Chamar
Kutéla
—
Chave
Sábi
Zissábi
Cheirar
Kunúkuna
—
Chorar
Kulile
—
Cobra
Nhóka
Inhóka
Coçar
Kukáleta
—
Concertar
Kubókuka
—
Condeça
Kinda
Makinda
Coral
Búkua
Mabúkua
Corno
Nepóka
Nepóka
Costela
Lubânza
Banza
Crescer
Kukúla
—
Curar
Kubuka
—
Dedo
Izála
Bezála
Deitar
Kutula
—
Deixar
Kulemba
—
Dente
Liéno
Méno
Denunciar
Kufúnda
—
Dia
Lumbo
Belumbo
Discutir
Kufinda
—
Donzela
Tchinkumpa
Bimkumpa
Dôr
Tanta
Matânta
Emissário
Kunda-fúmo
Bakunda-fumo
Emprestar
Kudéva
—
Encher
Kuúazi
—
Enforcar
Kusuunga
—
Ensinar
Kusina
—
Enterrar
Kusika
—
Escama
Kó
Makó
Espada
Tânzi
Betânzi
Espectáculo
Iânge
Maiange
261
262
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Português
Singular
Plural
Espelho
Lumuêno
Muêno
Espiga
Rica
Maça
Espingarda
Meta
Mata
Espoleta
Pulêta
Pulêta
Esponja
Sipônza
Tchipônza
Esteira
Luândo
Tuândo
Estragar
Kuiatalága
,— .
Faca
Mebéle
Zimbele
Falar
Kutuba
—
Febre
Kátama
Makátama
Fechadura
Salúla
Salúla
Feijão
Dézo
Madézo
Ferver
Kutouka
—
Fígado
Fula
Befúla
Fisga
Bessouko
Bessouko
Folha
Liéza
Méza
Fonte
Jóngoulôulo
Bejóngouloúlo
Formiga
Nouna
Zinouna
Forrar
Kubâmbika
—
Fritar
Kukânga
—
Fuzil
Liindo
Maliindo
Gafanhoto
Kônko
Makônko
Garfo
Nssômo
Somo
Gato
Uaia
Uaia
Gengive
Lufúmbo
Tufúmbo
Gritar
Kulôucuka
—
Guardar
Kulunda
—
Guerra
Vita
Tuvita
Guiso
Liôio
Maiôio
Girino
Zúndo
Mazúndo
Herdar
Kulandula
—
Hombro
Vêmbo
Mavêmbo
Homem
Bákala
Babákala
ídolo
Mekiça
Bakiça
Imbundeiro
Nekôndo
Kôndo
Inchar
Kukútuka
—
Intérprete
Lingece
- Malingece
Janela
Zanéra
Néra
Joelho
Kúngulo
Makúngulo
Jogo
Içavo
Óçávo
Ladrar
Kulóla
—
Lábio
Lili
Belili
Lagartixa
Meliônga
Beliônga
Lágrima
Suéla
Messuéla
Lamber
Kuvénda
—
Laranja
Lalânge
Malalânje
Lei
Mekáka
Mikáka
Lenço
Lenço
Malênço
DE ANGOLA
Português
Singular
Plural
Letra
Lêtela
Lêtela
Língua
Lulúme
Tulumi
Linha
Sifo
Messifo
Luz
Muinda
Miinda
Macaco
Netchima
Tchima
Machado
Táli
Betáli
Mandar
Kutúma
—
Marido
Menúno
Banúno
Meretriz
Dúmba
Badúmba
Milhafre
Fungo
Mafúngo
Montanha
Môngo
Miôngo
Mosca
Nezinzi
Zinzi
Mosquito
Lubú
Nebú
Mulher
Mechênto
Bachênto
Namorar
Kulânga
—
Narina
Muáia
Miáia
Nariz
lio
Mailo
Nuvem
Túti
Matúti
Olhar
Kutala
—
Óculo
Vókula
Vókula
Omoplata
Sêngo-i-vêmbo
Sêngo-i-vêmbo
Orelha
Kúto
Mato
Osso
Vésse
Mevésse
Ostra
Liire
Maire
Ovo
Tchó
Matchó
Pai
Táta
Mata ta
Pagar
Kufúta
—
Palavra
Liâmbo
Mambo
Palhoça
Tchimbéko
Bimbéko
Palmeira
Ibá
Mabá
Pálpebra
Ibátcheliéço.
Ubátcheliéço
Panela
Zúngo
Zizúngo
Pano
Tchindéle
Bindéle
Pão
Pân
Zimpân
Papaia
Iloulo
Maloulo
Pardal
Sólela
Zissolela
Parede
Báka
Báka
Parente
Tchibúto
Búto
Pássaro
Núni
Zinúne
Pedra
Manha
Mamânha
Peixe
Fú
Zifú
Peneira
Sônsulo
Bessônsulo
Penis
Mucête
Mecête
Prato
Longa
Belônga
Quebrar
Kubúlika
—
Quegila
Tchina
Bina
Queimar
Kuviá
—
Sã
Ivouno
Mavouno
263
264
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Português
Singular
Plural
Ramo
Ivála
Mavála
Ranger
Kukuéta
—
Rasgar
Kutênda
—
Rato
Mepuko
Zimpuko
Rebento
Téka
Betéka
Recado
Neçâmo
Beçâmo
Regador
Lêgadou
Lêgadou
Relâmpago
Luciêmo
Tuciêmo
Remar
Kuvuila
—
Remador
Mevuile
Bavuile
Remédio
Melôngo
Belôngo
Rolha
Káka
Káka
Saber
Kuzábe
—
Sair
Kubácika
—
Sapo
Tchiúla
Biúla
Segurar
Kusimba
—
Semana
Souna
Zissouna
Servente
Célo
Becélo
Sino
Negúnga
Gúnga
Soco
Nekoume
Koume
Soldado
Sôrdáde
Massórdade
Soltar
Kukútula
—
Sombra
Tchinhe
Ibinhe
Soprar
Kulunga
—
Tábua
Libáia
Mabaia
Tambor
Nedúngo
Dúngo
Telhado
Muânza
Miânza
Tigre
Nego
Gó
Tinteiro
Builika
Builika
Tipóia
Tchipoia
Bipoia
Tirar
Kubótuka
—
Tomar
Kutâmbula
—
Tomate
Kamáto
Tumato
Tosse
Unkózulou
Kózulou
Travesseiro
Mepêto
Peto
Trazer
Kutuála
—
Tromba
Mekombe
Mekombe
Umbigo
Kúmba
Bekúmba
Vapor
Kúmbi
Makúmbi
Vareta
Lussóko
Sóko
Vassoura
Lukómbezo
Ukômbezo
Vespa
Livéko
Mavéko
Víbora
Tchinzêngala
Bizêngala
Virilha
Vuámo
Mavuámo
Voar
Kudúmuka
—
Voltar
Kubárula
—
Vomitar
Kuluka
—
Zangar
Kudáçuka
—
DE ANGOLA 265
#
São dados os cabindas ao canto. O sistema é, invariavelmente,
o mesmo; se a voz é uma só, fará esta a parte cantante e o
acompanhamento que as pausas do canto lhe permitam, de forma
que ao nosso ouvido chega sempre a mesma toada monótona.
Quando cantam quatro ou mais, um fará a parte cantante e os
outros (divididos em quatro grupos) cantarão o estribilho em
coro, mas por três entradas sucessivas em contraponto, donde
resultará ouvir-se simultaneamente a voz e os três coros.
A letra é variável para cada ocasião e refére-se quási sempre
ao acto que se vai executando.
Estas canções são, geralmente, desacompanhadas de qualquer
instrumento, outras, porém, o são, quer nos funerais de pessoas
gradas, quer em outras festas.
O instrumento de uso mais trivial, quer nas danças e funerais,
quer para acompanhar a mais simples canção, é o tambor, que
até pôde ser substituído por qualquer caixote ou lata.
Tem este instrumento a forma de um charuto, são feitos de
um tronco excavado, de madeira leve e macia, sendo neles gra-
vados a fogo, ou pintados, desenhos representando pessoas, ani-
mais ou objectos de uso indígena. Em uma das extremidades
adapta-se lhe uma pele seca e descabelada, geralmente de cabra,
amarrada circularmente em volta pelo exterior, ou por fibras
que passam nos orifícios nela feitos.
Tocam este instrumento por percussão com as mãos abertas.
Usam, igualmente, nas grandes solenidades, especialmente
nos funerais de importância, trompas de marfim, pequenos dentes
de elefante excavados interiormente, terminando em orifício cir-
cular na ponta, a que se aplica a boca.
Empregam ainda como instrumentos: grandes búzios, uma
espécie de guitarra de duas cordas, feita de fibras vegetais
torcidas, retezada por cravelhas ; o sambi, constituído por lâminas
presas por uma das extremidades e tendo por baixo uma caixa
de resonância; enfim, os instrumentos de origem europeia, como
sejam harmónios e uma extraordinária variedade de assobios,
gaitas e apitos.
18
266 POPULAÇÕES INDÍGENAS
*
No que diz respeito a conhecimento de astronomia, tomam o
firmamento como a casa do deus dos brancos, comparando o sol,
a lua e Vénus com o que na vida são as pessoas e a que os
equivalem: o sol é o homem, o chefe da família; a lua é a mulher
dele; Vénus a criada desta, a sua escrava.
Sobre náutica já aqui tivemos ocasião de dizer bastante para
mostrar que lhe não é ela desconhecida. O tipo de embarcação
é a canoa (buátu), construída de uma só peça, um tronco de
árvore, aparelhado e excavado, conforme já o descrevemos ao
tratar de outras tribus, e que em geral importam já feitos do
Zaire ou da costa do norte; as que são construídas na região
são-no por operários especiais.
A navegação pôde ser a remo ou à vela.
A remo, cada remador pega em um só remo (tchela), e de pé
e de frente para a proa.
Na navegação à vela empregam uma vela triangular muito
alongada, antigamente de tecido vegetal, actualmente de pano de
algodão, e bastantes vezes da côr do ocre ou vermelha, em con-
sequência da emersão prolongada em decoctos vegetais para
resistir mais às intempéries.
Dividem o tempo em dia e noite e, praticando como nós,
também o seu dia (lumbu) corresponde ao período de 24 horas.
A semana tem quatro dias, que, por sua ordem, se designam :
suna, kaandu, tóunu e becilu;. o primeiro destes dias é o de des-
canço e por êle dizem começar a semana.
O mês não tem número certo de semanas; corresponde a um
mês lunar e começa a contar-se quando se consegue pela primeira
vez ver a lua nova.
O ano dos cabindas tem apenas seis meses que se denominam :
Kafulu-katchu, kafula-kanene, tchungu-tcheliana, muana-sundi,
muana-sundi-kome-kazi e maku-tungu?igu.
#
A inteligência do cabinda, não obstante ser superior à média
da de outras tribus da província, é rudimentar e na grande
DE ANGOLA 267
maioria curta, parecendo algumas vezes quási faltar totalmente.
A astúcia é corrente e a memória é bastante desenvolvida.
As faculdades intelectuais florescem dos 15 aos 30 anos; depois
desta idade só conservam a memória que persiste com a velhice.
Na mulher o nível intelectual ainda é inferior ao do homem ;
espécie de autómato nas mãos dos homens, o servilismo a que
está sujeita torna-a ainda menos esperta do que estes.
Em ambos os sexos é precoce a vivacidade, a vontade e a
facilidade de aprender; no entanto, no masculino essas qualidades
poderão desenvolver-se com vantagem do próprio, no feminino
a atrofia virá depressa por falta de exercício, por necessidade e
obediência cega.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A re-
ligião, rito, culto, divindades e sacer-
dócio.
Poucos ou nenhuns cuidados são dados às mulheres grávidas
que não fazem quási alteração alguma à vida usual, salvo nos
últimos dias antes do parto.
A parturiente quando se sente com as dores características
do parto avisa o marido e recolhe-se à sua cubata ; o homem por
sua vez 'participa o facto às parentas, às amigas e visinhas da
mulher, que vêem vigiar a operação, aconselhar, tratar da criança,
mas nem elas nem qualquer outra pessoa interveem, é a natureza
quem se encarrega de tudo.
Os partos são geralmente normais e fáceis, para isso concor-
rem, o considerar-se o acto honroso e natural, não influindo no
moral deprimindo-o, e sobretudo o grande desenvolvimento da
bacia em boas condições para um parto fácil.
Após o parto é a mulher lavada em água morna e o ventre
ligado com uma espécie de cinto (iúbo), de fibras vegetais, de
três centímetros de largura, que dá repetidas voltas ao ventre,
abrangendo-o em toda a altura. Toma durante os primeiros
cinco meses, diariamente banhos especiais, durante os quais o
cinto é tirado e que o seguir novamente se põe, ajustando-o
sempre cada vez mais até o ventre ficar normal.
Terminado o período de banhos dá-se a intervenção do
curandeiro, que vem praticar as cerimónias necessárias para a
268 POPULAÇÕES INDÍGENAS
criança poder sair da cubata, e que consiste em colocar em volta
da cintura da criança uma tira de baeta, e ao pescoço o amuleto
que serve também na cabeça da mãe durante o período de ama-
mentação, e que consta de um cordão de fibras vegetais com
objectos pequenos suspensos, tudo pintado de takula.
A alimentação da criança durante os primeiros cinco a sete
meses, é quási que exclusivamente feita pelo leite da mãe, só
raras vezes pelo de outra pessoa. Depois começa a ingerir
pequenas doses de farinha de mandioca em caldos e outras
eguarias, primeiro mastigada e bem salivada pela mãe; aos dois
anos já come, já anda mas ainda mama.
A mulher enquanto está grávida ou amamenta, não pode
coabitar, com receio de que de tal advenha mal à criança, seque
o leite, ou dê nova prenhez.
A criança acompanha sempre a mãe, em geral escarranchada
às costas, segura por uma peça do vestuário como nas outras
tribus, às vezes até com idade superior a 2 e a 3 anos.
Pratica-se a circuncisão entre os cinco e os doze anos, não
em época fixa como em outras tribus e por grupos, mas indivi-
dualmente, e logo que, por conveniência social ou de família, ou
por o rapaz o desejar, se entende deve proceder-se à operação,
visto que a circuncisão é por assim dizer a emancipação assu-
mindo o indivíduo a responsabilidade do seu sexo.
Rapado todo o cabelo, é pintado o corpo com tabula, um
curandeiro corta o anel perpucial, com simples faca e de um só
golpe, contra madeira macia; a hemorragia estanca-se cóm
cinza peneirada e trata-se da ferida como de qualquer outra.
Esta cerimónia, a tinta, é acompanhada de dansa e folia.
Quando aparece o corrimento menstrual a rapariga co-
munica-o à mãe que por sua vez o participa ao homem.
Sujo um pano com o líquido menstrual (zumbo), é arvorado
na cubata da mãe da rapariga, espalhando-se a novidade e
comentando-se o facto.
Como consequência imediata reunem-se os parentes e vizinhos
e festeja-se o acontecimento.
A rapariga não cabe em si de contente, deixa de ser consi-
derada como creança, vai ter mais liberdade, começa a ser
DE ANGOLA 269
mulher, para o que tem de ser iniciada na casa da tinta, uma
cubata espaçosa que não difere das outras, senão por uma dispo-
sição interior especial e que constitue em ser dividida por baias
de madeira, ao modo das cavalariças, sendo cada espaço reservado
para cada rapariga durante o tempo que permanecer na casa.
A iniciação faz-se geralmente poucos dias depois de manifes-
tada a puberdade, e as despesas de sustento e cerimonial durante
o internato na casa da tinta correm por conta de quem ordenou
a entrada, que em geral é o pai, tio materno ou outro parente
próximo com a mira nos proventos que colherá desta fonte de
receita, a exploração mais rendosa da mulher, e outras vezes o
homem a quem a rapariga está já prometida para esposa.
A encarregada das práticas da iniciação é uma velha, com
longa prática, dona do estabelecimento, que inicia as raparigas
na vida de mulheres, especialmente no que diz respeito à cópula,
dando-lhes as explicações as mais minuciosas e dizem até que
lhes administra noções práticas.
A rapariga ao entrar na casa da tinta* é totalmente despojada
dos pêlos que tenha em qualquer parte do corpo; a seguir lavada
e untada com várias drogas e entre estas com takula. Depois
de pintado o corpo, incluindo o couro cabeludo, envolve-se a
rapariga com um pano grande de algodão branco.
As raparigas enquanto sofrem esta aprendizagem, fogem e
escondem-se à aproximação de qualquer homem, e não podem
sair de casa senão acompanhadas, de cara tapada, e só nas pro-
ximidades do estabelecimento de ensino.
A iniciação costuma ser demorada, dois a quatro meses, mas
se o homem está impaciente, fácil é abreviar o prazo mediante
contrato especial.
A saida é precedida de um banho demorado e nova pintura
de takula e tem logar de noite.
Quando a rapariga ainda não tem pretendente a família ao
terminar a iniciação faz uma festa, onde a apresenta enfeitada,
a vêr se encontra pretendente; se ainda assim este não aparece,
pode então a rapariga entregar-se aos prazeres sexuais com quem
quizer.
#
Dos povos da província os cabindas são dos poucos em que
existe a corte feita pelo homem à mulher, o autêntico e genuíno
270 POPULAÇÕES INDÍGENAS
namoro, com saudações efusivas, ademanes, requebros e olhares
ternos.
O namoro entre os cabindas, como entre os povos civilizados,
nem sempre tem como consequência imediata o casamento. Par-
tindo da hipótese que a corte é aceita pela mulher, se esta é
virgem, tem oNhomem de estabelecer negociações com a família
da requestada afim desta ser internada na casa da tinta, sem
o que não pode a mulher considerar-se apta para se casar ou ter
relações sexuais com qualquer homem. Neste caso o homem se
não é responsável por todas as despesas feitas, pelo menos de sua
conta fica grande parte. Se a mulher não é virgem e é solteira
da corte aceita pela mulher pode resultar: relações sexuais aci-
dentais, mais ou menos efectivas, a mancebia e vida em comum
sem haver casamento; a promessa de casamento. Se a mulher
é casada poderá resultar o adultério, e suas consequências.
«As relações sexuais aturadas a modo de experiência de génios
ou a mancebia, tem em geral e quási sempre como terminus o
casamento.
«Nas classes elevadas, e geralmente quando o cônjuge mascu-
lino é príncipe ou nobre e o feminino não, os casamentos fazem-se
ainda em creança e por vezes ajustam-se casamentos entre fa-
mílias de creanças ainda não nascidas.
«É sempre ao homem — escreve Matos e Silva no Estudo da
Região de Cabinda — que compete abordar o assunto, fazendo à
mulher uma resenha dos amores e das seenas íntimas passadas
entre os dois, citando as provas de afecto que tem dado e dela
recebido, discurso que termina pelo abrir a boca da rapariga,
apresentando-lhe uns presentes e uma garrafa de aguardente
rolhada, um copo e um saca-rolhas. Geralmente esses presentes
são dois ou mais (até dez) cortados estreitos, dois panos largos
para vestidura, cordão para a cintura, lenço branco de qualquer
qualidade e uma volta de coral (neste lenço a mulher amarra
tudo, quando aceita a proposta) ; se o noivo quer mostrar-se rico,
dá também dois brincos e uma pulseira.
«Então a rapariga, se está resolvida a casar (o que já tem sido
maduramente pensado por ela por ser resolução de grande im-
portância para o seu futuro) desrolha a garrafa, enche o copo,
bebe parte da aguardente, dá o resto ao homem (que a bebe toda)
e guarda a garrafa tornando a fechá-la. Está assim dado o seu
consentimento e o casamento assente em princípio. Nessa ocasião,
se é dia ou na manhã seguinte muito cedo, entrouxados os pre-
DE ANGOLA 271
sentes e as coisas que calcula lhe serão mais precisas, pega na
mesma garrafa e abandona o noivo (seja ou não sua amante)
dirigindo-se ao local onde habitam os parentes mais próximos, a
quem vai pedir autorização procedendo por graduações a começar
pelo pai ou seu substituto, depois pelos parentes deste ramo,
passando em seguida à mãe e aos parentes por esta linha.
«Com cada um dos parentes a, cerimónia é igual; participando
o que acaba de passar com o homem, declarando quem é êle, sua
família e aldeia a que pertence, faz notar que a garrafa não está
cheia, que o mesmo é que dizer que por sua parte anuiu ; o pa-
rente se é mulher, habituada só a obedecer, concorda, se é homem
pode arriscar-se a alguma observação, mas não insistirá ; só o
pai ou mãe poderiam servir de obstáculo, mas àlêm de que já
sabem há muito de que se trata, e ou quiseram impedir ou não
o puderam fazer, poderiam dar ocasião, opondo-se, a qualquer
questão tentada pelo noivo, à desobediência da filha ou a acon-
tecimento pior ; geralmente concordam também. O consentimento
de todos é tanto mais provável quanto está ali a tentadora
aguardente e esta cerimónia lhes indica que serão contemplados
com alguns presentes. O modo de mostrar a acquiescência é
beber um gole de aguardente da contida na garrafa apresentada
pela rapariga.
«Todo o parente consultado é depois presenteado pelo noivo,
presentes tanto maiores quanto mais' próximo é o grau de paren-
tesco; estes pagamentos vão sendo feitos pouco a pouco, e, sem
todos estarem satisfeitos, não deve ter logar o casamento; adeante
veremos que nem sempre tal sucede, o que faz variar as conse-
quências do casamento; receber presente, chama-se comer fa-
zenda.
«A noiva fica residindo de então para o futuro, com o pai ou
a mãe até ao dia do casamento; nunca mais se junta ao noivo
senão defronte de testemunhas, mesmo no caso de com êle ter
vivido amancebada por muito tempo; participa-lhe ter o consen-
timento da família e enumera-lhe as pessoas consultadas. Daqui
por deante o vestuário e alimento da rapariga ficam á conta do
noivo que por vários modos ajuda o pai dela em tudo quanto
lhe for possível.
«Se o noivo tem já as fazendas e artigos necessários para os
presentes aos parentes, entrega-os; assim abrevia o casamento;
geralmente porem, só depois vai ganhar com que pagar todos
estes tributos e as despesas da cerimónia. A obrigação de dar
272 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tantos presentes faz talvez com que ás vezes digam como sinó-
nimos casar e comprar mulher, e este facto contribui de certo
para o marido tratar a mulher casada não como noiva ou amante,
mas quási como uma escrava; esta mudança de situação, as
obrigações, a falta de regalias que dela derivam, motivam bas-
tantemente o demorado pensar das raparigas no casamento e a
experiência que, à custa de relações sexuais ou mancebia mais
ou menos prolongada, elas adquirem das qualidades do homem
a que irão pertencer.
«É por causa deste estudo que, quando o noivo lhe abre a boca,
a rapariga pode não se decidir logo a provar da garrafa, sem
que tal seja considerado como recusa, pois a dar-se esta, ou a
mulher abandonaria o namorado ou francamente lhe diria que,
servindo-lhe para amante, não lhe serviria para marido, ou que
ainda não quer casar, etc, os mil expedientes em que os pretos
são férteis (quanto mais as pretas) para adiarem qualquer acto.
«Pode o casamento não se realizar mesmo depois de chegadas
as coisas a esta altura; se a culpa é do noivo, êle perderá tudo
quanto deu à noiva, e aos parentes; se ó da noiva todos os que
receberam teem que restituir tudo em número e qualidades iguais.
«Participados os factos pelo noivo às autoridades das terras
dele e dela (é ainda abrir a boca dando presentes), construída a
nova casa, pagos todos os parentes dela, reunidos os bens ne-
cessários para as despesas do casamento, dadas pequenas lem-
branças aos parentes dele mais próximos, combinam os dois o
dia e procede-se à complicada cerimónia. São avisados de vés-
pera todos os parentes e pessoas de amizade dos dois para com-
parecerem à festa.
«Pernoitam juntos uma noite, a da véspera da festa; de
manhã o rapaz, com qualquer desculpa, sai da cabana e em seu
lugar entram homens e mulheres, com que esta manobra, estava
anteriormente combinada, fazendo grande algazarra e dizendo
para ela que se até ali era prostituta, desde essa ocasião está
casada; a multidão dá tiros de pólvora seca com as espingardas
e algum mais rico com velha peça; em qualquer parte se içam
bandeiras as mais extravagantes e logo se improvisam dansas,
regosijo que dura dia e noite por tanto tempo quanto as posses
do noivo o permitem, pois é êle quem paga todas as despesas
que são especialmente fortes na quantidade de aguardente e li-
cores que os convivas, cada vez mais numerosos, vão repetidas
vezes engorgitando. Altas horas da noite, às vezes já de manhã,
DE ANGOLA 273
é que se dá tréguas à dança, para continuar pela tarde, emquanto
de dia se descança um pouco.
«Desde que a multidão toma conta da noiva, algumas mulheres
vigiam-na constantemente, não a deixando comer senão já de
noite e em casa do pai ou da mãe ; também durante todo esse
dia a rapariga deve não falar.
«O noivo manda a casa dos sogros uma embaixada, levando
dois cortados e uma garrafa de aguardente, a participar que
casou. A primeira noite de núpcias passam-na os esposos sepa-
rados e de manhã reunem-se em casa do noivo, onde são visitados
e felicitados pelos amigos e parentes, o que julgo ser apenas
pretexto para a continuação da festa, que recomeça pela tarde.
É nessa manhã, em que a mulher deixa para sempre a casa pa-
terna, que ela tem, pela primeira vez, de fazer a comida ao
marido, que lhe entrega o que pretende cosinhado e que trivial-
mente é feijão e galinha ou peixe; êle dá-lhe, como motivo de
tal serviço, dois cortados estreitos, dois largos de vestidura, um
cordão para a cintura e uma garrafa de aguardente; chama-se
a isto pegar fogo (simba-bazo).»
Existe a poligamia, não havendo limites para o número de
mulheres que cada homem pôde possuir, visto que quantas mais
tiver mais consideração terá e maiores serão os proventos que
dali colherá no presente e até no futuro, visto que as filhas llje
darão, ao chegarem à idade de se casarem, uma boa fonte de
receita.
As mulheres do mesmo homem dão-se bem umas com as
outras, trabalham para êle, procedendo em tudo como se cada
uma fosse esposa única, mais ou menos subordinadas à primeira
com que o homem casou, salvo quando uma das outras é princesa
ou de família nobre, que será a mais considerada.
Cada mulher vive com os seus filhos em cubata própria e
separada, podendo o homem mesmo deixar de ter cubata, ser-
vindo-se, alternadamente, da de qualquer das suas mulheres.
O adultério por parte do homem é um simples incidente da
vida conjugal que o marido regulariza, quando regulariza, dando
à esposa uma insignificante indemnização.
Por parte da mulher é o adultério mais grave e punido, se-
gundo contam, com a pena de morte para a adúltera e para o
sedutor; a este, se lhe poupam a vida, não lhe escaparão os
haveres, que serão poucos para pagar a indemnização ao marido
ultrajado.
274 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Existe o divórcio tendo como causa determinante mais vulgar
a leviandade da mulher. Neste caso, se a mulher convencer o
tribunal que a julgar da sua inocência, terá o homem de lhe
pagar uma indemnização e à sua família; ao contrário, se provar
a culpabilidade da mulher, é o divórcio pronunciado, pagando
os parentes da mulher não só todos os presentes que por ocasião
do casamento dele receberam, como uma indemnização, que é
estipulada pelo juís, tanto maior, quanto mais grave fôr a falta.
São causas determinantes do divórcio: a esterilidade da mulher ;
o ódio ou inimizades fundas que se manifestem entre as famílias
dos cônjuges; o conhecer-se qualquer circunstância, encoberta
ou desconhecida por ocasião do casamento e que a este devia
obstar; os crimes graves cometidos pela mulher, quando o marido
não fôr cúmplice e de que não teve conhecimento.
Pôde igualmente o divórcio ser promovido pela família da
mulher, quando puder provar que o marido inflige repetidos
maus tratos à mulher, tentou ou planeou assassiná-la, faltou aos
seus deveres de esposo, ou praticou outras faltas graves para
com ela ou para com a sociedade.
Pronunciado o divórcio os cônjuges ficam livres de qualquer
compromisso, como se fossem solteiros.
O divórcio não traz grandes dificuldades na separação dos
haveres, visto que à mulher só pertencem os objectos do seji
vestuário e pouco mais; os bens do casal, mesmo os angariados
por ela, pertencem ao marido.
#
# *
A família cabinda consta principalmente do marido, filhos e
mulheres ; são os que vivem mais aproximados, são todos aqueles
sobre quem o chefe da família tem poderes discricionários e que,
por essa razão talvez, mais lhe obedecem e mais respeito lhe teem.
Os filhos teem respeito pelos pais, pelos irmãos uterinos dos
pais, e a seguir pelos irmãos uterinos da mãe.
O verdadeiro amor filial é da mãe aos filhos e um pouco
menos na inversa.
A sucessão dos vários cargos públicos, assim como a dos bens
materiais, é do falecido para o filho mais velho da sua irmã mais
velha; se essa não tem filhos é para os da segunda, etc.
No caso de falecer um chefe de família, essa qualidade, com
DE ANGOLA 275
as consequências que dela derivam, pode passar ao irmão uterino
mais velho do falecido bem como os bens que êle possuía ; só não
tendo irmãos nem irmãs, os bens são divididos pelos parentes.
Até aos 7 ou 8 anos a criança do sexo masculino está sob a
vigilância da mãe, que dela trata, daí por deante acompanha o
pai, competindo a este ensiná-la e dirigi-la, respondendo por
todos os actos do filho para com estranhos. Aos 18 anos, apro-
ximadamente, o rapaz passa à categoria de homem, com as
vantagens e as responsabilidades que são inerentes a essa qua-
lidade, conforme a classe social a que pertença.
No que diz respeito às raparigas estão elas sob as vistas da
mãe até à puberdade, então começa a sentir-se fortemente a
ingerência do pai, a quem pertencem todos os poderes, passando
a mãe a ser simples companheira e conselheira.
No que diz respeito aos deveres do homem como marido,
constituem eles em defender os haveres do casal, a mulher e os
filhos; representá-los em todas as questões, pagar as multas e as
indemnisações arbitradas como castigo das suas faltas; angariar
por sua parte os meios de vida que a terra não dá, construir as
cubatas, etc.
A mulher casada pertence tratar dos seus filhos, cavar,
plantar, colher, tratar as terras, fazer a comida para o marido
salvo quando menstruada, arranjar a lenha para o serviço do-
méstico, ajudar o marido em transportes mais pesados, vender
os produtos agrícolas ou frutos que colher, tratar da criação e
vendê-la. A mulher casada n*ão deve brincar com outros homens
nem entrar nas cubatas de solteiros, que não sejam parentes
muito próximos; não deve comer na presença do marido, nem
dos parentes mais chegados dele, etc.
A arte de curar as doenças pertence ao ganga, nome por que
designam o curandeiro, e que igualmente significa feiticeiro ou
sacerdote pelo seu caracter religioso.
No entanto ao feiticeiro na acepção vulgar da palavra, aquele
capaz de produzir malefícios, por poder sobrenatural, a esse
chamam dutche. É considerado perigoso, não praticando senão
o mal.
O ganga aproveita no tratamento das doenças grande número
276 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de plantas sobre cujas propriedades, efeitos, parte aproveitável
e modo de as empregarem guardam segredo absoluto.
Emprega o ganga para aliviar qualquer dôr e como trata-
mento de contusão, quedas, etc, a ventosa seca ou sarjada.
As ventosas aplicam-se com ou sem auxílio de fogo ; o instru-
mento empregado em ambos os casos é quási sempre um chifre,
cuja ponta é cortada e furada ficando com um pequeno orifício.
No caso de se não empregar o fogo a rarefacção faz-se com a
boca no caso do uso do fogo a rarefação faz-se por meio de uma
grelha de brazas colocada dentro do chifre a pequena distância
da pele.
As ventosas sarjam-se à faca, fazendo pequenos golpes para-
lelos finos, superficiais.
Após o falecimento não é o cadáver enterrado, sendo antes
disso mumificado pelo fumo, operação demorada e tanto mais
complexa quanto maior é a hierarquia do morto e os haveres
dos parentes próximos.
Desejando dar uma ideia nítida do processo de mumificação
passamos a transcrever o que sobre o assunto escreve Matos e
Silva :
«Numa das suas habitações a que se tira uma ou duas das
paredes, arma-se a meio um estrado em forma de grelha, feito
de madeira e sustentado sobre quatro estacas a uma altura de
110 a 130 centímetros; o chão, completamente alisado e coberto
de areia fina em camada delgada, servirá tanto para a colocação do
lume como para dormitório das mulheres do morto, que estará
sempre vigiado por uma, pelo menos. O cadáver é todo enrolado (in-
cluindo a cabeça e pés) num pano de algodão, branco ou riscado,
que dê algumas voltas, e deitado sobre a grelha fazendo-se-lhe
debaixo uma pequena fogueira que dê pouco calor e bastante
fumo, que irá bater nas costas do cadáver, porque as paredes
da cabana serão colocadas de modo a evitar as correntes atmos-
féricas; esse fogo manter-se-ha noite e dia durante a semana ou
meses que durar a operação, e será alimentado pela mulher,
que às vezes até comerá junto do corpo por não ter quem a
renda sempre que fôr preciso; os líquidos cadavéricos vão caindo
sobre a fogueira e alguns pingos na areia ; é uso que da massa
formada por esses líquidos com a cinza, as viuvas tomem dedadas
que põem na própria pele da testa e das faces, empregando
tanto mais essa manobra quanto mais quizerem demonstrar o
seu desgosto. De tempos a tempos, e conforme o estado imun-
BE ANGOLA 277
díssimo do primeiro pano, é o corpo envolvido em segundo,
terceiro, etc, até que, nos nobres, sucede que, ao passo que o
cadáver está quási reduzido aos ossos e pele, o volume que
apresenta, formado pelas sucessivas camadas de pano, excede
quanto é possível imaginar em gordura do corpo humano, é um
enorme cilindro. O fétido exalado durante a operação é fácil
de calcular ; os perigos para a saúde dos vizinhos são extraordi-
nários; mas a crença, a rotina, a tudo resiste; e o mais que se
tem conseguido é que esta operação seja feita a distância do
povoado.
«Dada por terminada a mumificação e reunidos os cabedais
necessários para as despezas a fazer, trata-se do funeral.
«Escolhido o dia — escreve Matos e Silva — do enterro, man-
da-se abrir a sepultura e começa a festa, as cantigas e danças
nocturnas, em que tomam parte todos os indivíduos das aldeias
subordinadas e ainda qualquer que se apresente, mesmo sem
convite; começa a ser extraordinário o consumo de bebidas
alcoólicas ; tudo isto só termina na noite seguinte àquela em que
a terra cobrir o corpo, e é de admirar como tais indivíduos
resistem a tanta fadiga e tanta embriaguês. Fazem-se de dia os
últimos preparativos e acaba-se o carro monumental, um especial,
novo para cada enterro importante, cuja grandeza e complicação
de ornatos estará em relação com as posses da família; o desejo
de gastar, de alardiar riqueza, é insaciável, gasta-se tudo o que
de momento é possível obter, chega-se a contrair dívidas que
levarão anos a saldar.
«O carro constará de um estrado de rija madeira, tendo quatro
a seis por seis a dez metros de superfície, solidamente ligado a
traves que servirão de eixos a três, quatro ou cinco pares de
rodas de madeira, cheias, de 50 a 60 centímetros e 12 a 20 de
trilho. Sendo fixos os eixos de tão grande extensão, percebe-se
que grandes curvas será necessário fazer descrever ao carro
para mudar de direcção; para isso se abre propositadamente um
caminho especial, de largura dupla da do carro, abatendo-se
todos os vegetais, as plantações de mantimentos, as casas, os
desnivelamentos, desde a habitação do falecido até à sepultura,
caminho que muitas vezes fica assim com a extensão de bastantes
quilómetros, especialmente se ha elevações a vencer por meio
de extensíssimas curvas em rampa suave.
«Esse estrado é guarnecido em volta por uma grade de ma-
deira, que só deixa aberturas adiante e atrás, e circunscreve
278 POPULAÇÕES INDÍGENAS
uma espécie de varanda ou corredor que fica entre a grade e a
construção central. Esta começa debaixo por um grande para-
lelepípedo de mais de metro de altura a que se sobrepõem outros
cada vez mais pequenos, em degraus ou qualquer outra forma
arquitectónica, contanto que no alto, de tudo haja um pequeno
caixão, que não chegaria para uma criança de seis anos.
«Quanto maior fôr a altura, quanto maior o número de enfeites
e a extravagância deles, maior grandeza tem a solenidade. Sobre
esses degraus amontoam-se objectos de toda a espécie, peles de
feras espalhadas fingindo os animais em posições ameaçadoras,
objectos de prata ou outro metal, jarros, bacias, bandoleiras,
bandas de oficiais, colchas, lençaria de cores berrantes, pontas
de marfim de todas as grandezas, com ou sem enfeites e obras
de talha, búzios e conchas de todos os feitios e dimensões, cabeças
de antílopes, peles e outros despojos de animais, armas brancas
e de fogo de todos os sistemas e qualidades, etc. A madeira de
todo o carro é forrada de pano de algodão branco e encarnado;
o caixãosinho é-o de encarnado com galões dourados ou prateados.
Sobre este vão as insígnias do príncipe morto, o seu barrete, a
sua romeira, a sua chimpábala, emfim todos os seus distintivos.
Coroando tudo, no alto, um pequeno toldo ou chapéu de sol
aberto, de algodão branco ou vermelho e, melhor, ainda das
duas cores. Abaixo deste, aos lados, nos topos de varas ligadas
à grande varanda, flutuam bandeiras e galhardetes de todos os
feitios e cores, tanto mais apreciados quanto mais numerosos e
extravagantes.
«Sobre a varanda durante o caminhar do carro, tomam lugar
vários personagens: à frente o director da cerimónia munido de
buzina, dá ordens; atrás dois a quatro músicos tocam, em pontas
de marfim furadas, uma música semelhante à dos pretos de
,S. Jorge, composta de notas soltas, com duração e intervalos
desiguais, mas numa certa ordem dada pelo tom de cada instru-
mento, resultando uma toada plangente, monótona, audível a
grande distância ; nas varandas laterais vão alguns escravos ou
criados do morto.
«Este carro é puxado por duas grossas cordas, de não menos
de trinta metros de comprimento, paralelas entre si e totalmente
guarnecida de pretos, tantos quantos cabem, que vão cantando,
na toada habitual, uma canção laudatória do defunto ou apro-
priada ao acto.
«A turba enorme, constituída por todos os subordinados do
DE ANGOLA 279
personagem e dos parentes dele, reforça a canção, faz um barulho
de ensurdecer, caminhando aos lados e atrás do carro ; mas logo
atrás deste, caminham silenciosos o sucessor, os nobres subordi-
nados, os nobres da família e os mais considerados adivinhos.
«De noite pára o cortejo em pontos de antemão escolhidos, cujas
ervas foram cortadas e onde se canta e dança por noite velha;
andam-se por dia apenas 500 a 1^000 metros, para fazer durar o
trânsito e a festa; só próximo da cova, a última marcha terá
maior extensão e rapidez para que o carro lá chegue ao anoitecer.
Mas em cada uma marcha há ainda novas paragens para mudança
dos homens que puxam, e na última gasta-se o tempo, de sol a
sol, nesse caminhar e nessas paragens, porque outros factores
entram no acompanhamento.
«A cada passo chega um magnate conhecido do defunto que
vem prestar a derradeira homenagem; faz-se acompanhar do
maior número possível de pessoas dos dois sexos de que pôde
dispor, tudo ao som de cânticos, buzinas, tambores, fazendo o
máximo barulho e trazendo arvoradas o maior número de ban-
deiras. A cada uma destas aglomerações pertence a sua vez
de puxar pelas cordas do carro, que pára ao avistar-se novo
grupo, que só entra em exercício depois de ruidosos cumprimentos
e manifestações.
«Vai crescendo o número de pretos e pretas atrás, aos lados
e adiante do carro, mas outro grupo especial vai sempre adiante
das cordas, próximo delas, mas sem lhes tocar; é sempre com-
posto só por homens, dos mais ágeis, quási nús, com coroas de
folhas verdes nas cabeças, com braçaletes de ervas nos braços,
nos pulsos, nos tornozelos, com as caras sarapintadas de ver-
melho, de preto, de branco ou cobertas por toscas mascaras de
madeira pintada de branco ou de vermelho e com riscos pretos,
tornando-as o mais hediondas que fôr possível ; levam armas
brancas nas mãos ou à cintura e bastantes espingardas. O papel
destes indivíduos é gritar, fazer esgares, dar saltos, correr,
fazer cabriolas e ameaças a inimigos invisíveis, disparar tiros,
etc, é emfim, afugentar e combater inimigos hipotéticos, que
tolhem o avanço, que fazem surpresas de lado, que atacam a
rectaguarda para onde por vezes destaca uma porção dos gro-
tescos guerreiros. Não lembrará esta tradição os ataques de
que foram alvos em casos semelhantes há longos anos? Bem o
fazem crer as manobras que executam, as pinturas, esgares e
posições análogas às da suas guerras, o rudimentar e extranho
280 POPULAÇÕES INDÍGENAS
vestuário semelhante ao que de certo usaram em épocas muito
remotas, os cuidados e precauções com o cadáver de que falarei
mais abaixo. t,
«O extranho cortejo chegou junto da sepultura e parou; é
quási sol posto. Aí teem logar as mais, rijas manobras guerreiras,
a dansa mais longa e entusiasta, a maior gritaria e confusão,
a grande fusilaria e descargas, as desordenadas e furiosas corridas
darma branca em riste, que chegam a ser perigosas e a causar
ferimentos.
Anoitece; o carro é arrastado para sobre a cova, os eixos
são cortados rente das rodas e tudo assenta no chão, ficando a
enorme cova justamente por baixo do paralelipipedo. central.
Acendem-se fogueiras, ficam de guarda alguns parentes; todos
os outros pretos retiram, na maioria para os seus povos (aldeias)
com os seus magnates, o resto, ainda assim alguns centos, para
a aldeia do falecido, onde a festa continua rija até de manhã.
«Alta noite tem então logar o verdadeiro enterro: em silêncio,
pela calada da noite, alguns homens de confiança, poucos, pa-
rentes e pessoas de prestígio, conduzem aos ombros volumoso
caixote contendo os restos mortais do príncipe que vieram do
fumeiro envolvidos nas centenas de metros de fazenda de várias
cores e qualidades. Chegados à cova, encontram desmanchada
toda a parte central do carro, arrecadados todos os adornos
escancarada a sepultura : descem até ao fundo o cadáver (dizem
que antigamente ia também alguma das viuvas ainda viva),
enchem a cova de terra, calcando-a, até ao nivel do terreno
adjacente e um pouco mais, colocam sobre ela parte da cons-
trução de madeira e os objectos sem valor que designarão a
sepultura do falecido, e retiram-se todos, levando todo o resto
menos o estrado do carro com sua grade; esta parte fica mar-
cando a cova, que a volta interna do estrado circunscreve exa-
tamente».
Entre os cabindas existe o luto, variando a sua duração mais
com os haveres de quem o usa do que com a proximidade de
parentesco.
Em geral o luto manifesta-se pelo uso de vestuário de ganga
azul, mascarrar a cara com carvão ou giz, ou simplesmente
trazer alguns riscos e rapar completamente a cabeça. O maior
luto é o da viuvez.
ÔÈ ANGOLA â8Í
# *
Como as restantes tribus da raça negra os cabindas são
fetichistas, não obstante o meio se ressinta da acção dos missioná-
rios que em antigos tempos evangelizaram estes povos. Assim,
em presença dos brancos, usam fazer um juramento que consiste
em desenhar no chão uma cruz com o dedo indicador da mão
direita, levando-o depois à boca tapada com o polegar, e beijando
a unha deste. Crêem- em entes supremos ou deuses sendo o
principal o Zambi que tem grande influência na vida dos casa-
dos, e o Bunzi, deus da chuva, vivendo debaixo da terra. Cada
um destes deuses tem o seu sacerdote especial que é o interme-
diário entre os crentes e o respectivo deus. Assim o sacerdote
do deus bunzi, o lunga, é quem guarda as chaves da porta por
onde há de entrar a chuva, e abri-la quando receba para isso
ordem do bunzi. Ainda relativamente ao deus da chuva, parece
existir outro feiticeiro ou sacerdote djima-kango, encarregado de
furtar ao lunga as chaves da porta das chuvas e fechá-la. E claro
que estes feiticeiros só operam à força de presentes.
Acreditam em almas penadas, fantasmas, espíritos bons e
maus que consagram em objectos, e que constituem os ídolos ou
feitiços do culto e das crenças indígenas.
Estes feitiços são fabricados pelo karálanga, e constituem
grosseiras esculturas de madeira geralmente clara e macia dando»
lhes formas tradicionais, na quási totalidade figuras de homens,
com alguma particularidade, ou excentricidade bem visível, que
traduz a especialidade a que o feitiço é dedicado.
Obtido o feitiço chama-se o ganga, feiticeiro especial para o
feitiço de cuja representação se trata, para proceder a uma es-
pécie de sagração. No meio de demorado cerimonial e com
palavras especiais, vai adornando o feitiço com os respectivos
acessórios postos nos logares e pela forma que a crença deter-
mina, e só depois de dar por terminada a cerimónia é que o
feitiço pode servir para o culto.
Quando desejam servir-se dalgum feitiço procuram o feiti-
ceiro respectivo, contam a história do que ali os levou, dizem o
que pretendem e cravam no feitiço a ponta dum prego, pagando
ao feiticeiro pela interferência determinada quantia. O cumpri-
mento da promessa dá origem a nova cerimónia e despezas cor-
19
282 1>ÔÍ>ULAÇQES INDÍGENAS
relativas, correspondentes ao soltar o prego (kakula-muekica) ; o
feiticeiro pisa folhas de vegetais e com o seu suco molha o logar
em que o prego está cravado, tapando-o com um pano e dei-
xando-o ficar assim até ao dia seguinte, vindo então o crente
tirar o prego.
Sucede ás vezes decorrer muito tempo entre o cravar e o
tirar o prego, de modo que, ou o crente se esquece e não sabe
qual foi o prego .que pregou, ou o ganga também não sabe ;
nestes casos chama-se o feiticeiro de faca quente que, procedendo
ao seu cerimonial, passa a faca em braza pela própria mão e
declara qual é o prego. Escusado será dizer que esta cerimónia
traz comsigo mais uma despez-a adicional.
Aos, feitiços fazem-se igualmente simples consultas por inter-
médio dos respectivos feiticeiros. Para isso, presenteia-se o fei-
ticeiro, e põe-se ao corrente da consulta. A certa altura da
narração o ganga, conhecedor do caso e da resposta que ha de
dar, sente-se inspirado (tuntuka mekice, que o feitiço lhe entrou
na cabeça). Salta, dança, diz coisas incompreensíveis, e por
entre elas responde à consulta do crente, e sempre por uma
forma confusa. Este estado anormal termina de repente decla-
rando o ganga, que o feitiço já lhe saiu da cabeça.
Entre os vários feitiços dos cabindas contam-se: o Bumbo-
malazi, constituído por dez pequenas imagens de madeira represen-
tando pessoas, colocadas em circunferência e todas presas à mesma
base, é o feitiço que trata de regular a grandeza do ventre das
crianças e doenças que se lhes relacionam; o Lumba, feitiço de
grande importância que tem moradia especial, uma cubata divi-
dida a meio, ocupando o feitiço o compartimento interior. Assim
ao mesmo tempo que serve para melhorar os doentes, serve para
guardar as coisas de maior valor, é advogado contra a esterili-
dade dos esposos e encarregado da felicidade dos mesmos.
O funza, feitiço caseiro, substituto do lumba quando o homem
é casado com mais de uma mulher ; ou é a segunda mulher que
é dedicada a este feitiço, ou a mulher da família mais nobre.
O melumba que preside ao efeito das balas nas guerras ; tem
moradia própria. Tratando-se de ir para a guerra, o chefe se-
gura no feitiço perante o qual os guerreiros vão passando, um
a um, recebendo do feiticeiro a resposta, se pode ir ou não por
ser certo lá ficar morto.
Compreende-se quanto será fácil ao chefe do bando indicar
ao feiticeiro quem não lhe convêm levar consigo.
DE ANGOLA 28á
IV. — Da vida social
Espécie d© vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime e comércio. — Costumagens jurí-
dicas.
A sociedade cabinda divide-se, pelas suas prerogativas, em
três classes bem distintas : nobreza," povo e escravos.
Na nobreza residem todos os poderes, todas as atribuições,
conforme os seus graus, desde o que chamam kapita, até ao rei
ou regência. Só os nobres são autorizados, só eles teem poder
para mandar, em nome próprio ou no de superior.
O grau mais baixo, kapita, obtem-se nâo se sendo escravo, se
se consegue agradar à autoridade mais elevada, pelo bom com-
portamento, serviços prestados e grandes presentes; entra-se por
este modo na nobreza sem ser por herança, mas é preciso aliar-se,
casando com princeza, a membro da classe nobre.
Depois, podendo já ter alguns bens sem que lhos tirem ime-
diatamente, pode adquirir mais um título, tarefa então mais
fácil, prestando serviços administrativos dignos de recompensa,
e assim subir na escala. A ma?nbuko parece não ter chegado
preto algum senão por herança.
Os diversos graus de nobreza, por ordem descendente são:
ma?igòio (rei), manbôma, mambuku, mafuka, mankáfí, mom-
bondu, linguece, lumbângala, matchiôaa, e kapita. A, cada nobre
competem qualidades próprias e poderes especiais cada vez mais
diminutos até ao simples kapita.
Um homem do povo pode, ser elevado, como vimos a kapita
e passar depois a matchiôua, mas por ali fica; dos herdeiros
destes dois graus inferiores da nobreza é que saem os outros
nobres, subindo sucessivamente de hierarquia até mafuka, que
é o grau o mais elevado que se pode obter ; só parente próximo
do rei pode chegar a manbuko.
Faz excepção a todas estas regras o grau de mambôma, que
corresponde a primeiro ministro, e é escolhido pelo rei, em
qualquer classe de homens livres, mesmo entre o povo, pelo seu
muito saber e esperteza; pode substituir o rei na sua ausência
emquanto este é vivo, mas não pode ser rei; esse cargo é único
e vitalício, mas não é hereditário. É o conselheiro real, mas se
2l8á tÔMJLAÇOES INDÍGENAS
cair em desagrado no conceito real é quási sempre morto, se a
tempo não se exilar.
Da classe povo a subdivisão que tem mais representação e
poderio é a dos feiticeiros que podem hombrear, e mesmo de-
frontar-se com bastantes nobres, mas que não são como tal con-
siderados ; teem muita força moral de que usam para as suas ceri-
mónias e que lhes vem da sua astúcia e da crença popular em feitiços.
O resto do povo não escravo, o mais numeroso da tribu,
divide-se em três partes desiguais conforme os seus haveres.
O escravo (mevika no plural bavika), como nas restantes
tribus é considerado como uma pessoa de família, quási um
filho do seu senhor; é tratado como uma creança, é irrespon-
sável, não tem que intervir em deliberações, não é ouvida a sua
opinião, nem pode possuir coisa alguma.
Os escravos provêem: das razias, nos tempos das conquistas;
por nascimento quando a mãe é escrava; por compra, em geral
de outras tribus; por dividas e furtos; e finalmente o escravo
voluntário, aquele que se não julgando suficientemente forte para
escapar à vingança de outro, a quem se esgotaram os meios e
pela fome se rende, aquele que se vê perseguido por um crime
ou delicto e se quer eximir à sua responsabilidade, etc.
Neste último caso o preto escolhe o seu senhor e mesmo sem
a sua anuência se torna seu escravo, entrando-lhe em casa e
partindo-lhe qualquer objecto de louça ou vidro que arremessa
ao chão, produzindo estrondo que chame a atenção de pessoas
para servirem de testemunhas de que foi êle que não pertencendo
à família, veio ali expressamente para praticar tal acto. Desde
esse momento é escravo do dono da casa.
O reino de N'goío ê governado por um chefe supremo a que
denominam rei, e que é dividido em zonas mais ou menos irre-
gulares, administradas cada uma por um mambúko, que por sua
vez é dividido e subdividido em outras administradas por auto-
ridades inferiores.
Pelo exposto aqui e o que atraz deixamos escrito, o rei ou
chefe supremo exerce o seu governo por intermédio de um pri-
meiro' ministro e dos governadores ou administradores das
diversas divisões e subdivisões territoriais do reino.
DE ANGOLA 285
Desde porém que faleceu o último rei, ha mais de vinte anos,
é o reino de N'goio governado por uma espécie de conselho.
Esta regência é constituída pela mambôma do falecido rei, pela
mais importante mulher, dele viúva, com o título de mambuka e
pelo filho mais velho do dito rei.
Segundo se conta a morte deste rei não foi natural, razão
porque ela esteve durante muitos jnezes oculta, afim de dispor o
povo, não sobreviesse qualquer complicação. Parece que este
rei, desde que se apanhou no cargo, começou, segundo uns, a
mostrar-se demasiado tirano e, segundo outros, a alterar os
costumes e leis em sentido liberal, visto não ter sido total e
constantemente a favor dos nobres. Inclinamo-nos para esta
segunda hipótese, tanto mais que o facto de ficar fazendo parte
da regência o mambôma do rei, o que é fora da regra, pois o
poder de ministro acaba com a vida do rei, faz supor que este
entrou na conspiração de combinação com os outros nobres, as
mulheres do rei e talvez mesmo com o filho.
«O que se conta — escreve Matos e Silva — é que estando o
rei a dormir na sua cama, dentro da cabana e a meio dela, des-
viado de todas as paredes (por onde se conclue que receiava
o perigo de fora) e guardado por uma esposa cujo dever era
despertá-lo ao menor indicio suspeito (precauções que provam
quanto ele julgava a sua vida em perigo) ; sucedera que a esposa,
de guarda em certa ocasião, saíra da cabana a pretexto de
necessidade urgente, para tal ausência servir de desculpa ao que
aconteceu e foi atribuído a pessoa desconhecida; mas que, na
realidade, fora essa mesma esposa quem enfiara pela régia
cabeça, até ao pescoço, o nó corredio de forte corda cujas pontas,
saindo através das paredes opostas, eram de fora da choupana
puxadas de ambos os lados pelas restantes mulheres, se não também
por algum dos nobres conspiradores. O caso foi que o rei morreu,
o segredo manteve-se mais ou menos, os nobres não se encomo-
daram com isso ou até gostaram, e o povo, sabedor do caso
tempos depois, mas desorientado pelos vários boatos adrede
habilmente espalhados, contentou-se com o seu papel passivo de
nada fazer, não se metendo nas intrigas da corte.
Publicado o acontecimento, seguia-se a aclamação do real
parente (sobrinho ou irmão) a quem os costumes do país davam
a sucessão; mas não havia na família real quem estivesse nas
condições de ser coroado e por isso a um mambuko, ou directo
sucessor deste, caberia a coroa.
286 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A guerra surda estabelecida entre os nobres com o grau de
mambuko demorou a escolha, porque alguns não estavam nas
condições ou não tinham haveres para colocarem parentes seus,
e uns aos outros se guerreavam, dificultando a resolução do
negócio, para o que sempre eram auxiliares seguros os membros
da regência. Uma das últimas tentativas foi feita pelo barão de
Cabinda (Puna) a favor dum seu irmão, mas sem resultado,
porque este não quiz, de forma alguma, subir tão alto com
receio dos acontecimentos; apezar dos gastos feitos para aplanar
dificuldades da votação, não houve meio de o decidir, alegando
êle sempre que não se sentia capaz de ser rei, que não podia
fazer a vontade aos seus partidários porque não estaria melhor
sendo rei do que sendo um pescador como era. Vê-se uma coisa
quási inacreditável: um preto com as condições para ser rei,
solicitado a sê-lo, aceito já por alguns, tendo um irmão que fazia
todas as despezas do cerimonial, um preto que passava de mi-
serável pescador a ser a pessoa mais importante da sua terra,
com poderes absolutos, realisando mais do que tudo, o que muitos
dos maiores sonham e que êle podia sonhar, recusou a colocação,
passando-se isto nos tempos em que ainda não havia na sua
terra o prodomínio dos brancos. Fácil é suspeitar que pelo
irmão êle saberia bastante da verdade, e que aos seus 40 anos
sorria mais um futuro igual ao presente que conhecia, embora
humilde, do que as honras de rei ; quem sabe até de quantas
ameaças teria sido alvo.
Parece que não haverá mais rei, porque deixou de haver
quem tenha os bens necessários para as despezas da coroação e
porque já não vale a pena ser rei, visto que, com o estabeleci-
mento dos brancos as condições mudaram totalmente.
Para ser eleito rei é preciso : ser do sangue dos nobres de
primeira grandeza; ser proposto por influente e aceite pela
grande maioria dos mais elevados dos nobres; nunca ter sujado
a terra de sangue, quer de gente quer de qualquer grande
animal útil ; estar resolvido a ir viver para o interior sem nunca
mais tornar a vêr o mar ; possuir o suficiente, seu ou de inter-
posta pessoa que lho forneça, para as despezas da coroação
(afírmou-me o oivilisado Manuel Puna, barão de Cabinda, que
não andarão por menos de três contos de reis actualmente).
Aparte miúdas cerimónias de que não foi possível infor-
niar-me convenientemente para delas falar, como sejam os pre-
parativos dirigidos pelos grandes feiticeiros, de demoradas,
DE ANGOLA 287
complicadas e repetidas cerimónias religiosas durante semanas;
aparte minúcias da pragmática durante os muitos dias que vão
desde a apresentação do candidato até à coroação, a escolha do
seu mambôma, ou primeiro ministro, o novo casamento com
princeza importante, que ficará sendo a primeira mulher, mas
cujo rapto haverá necessidade de simular, bem como vida errante
com ela no mato, durante os primeiros dias, caçando para se
alimentarem, percorrendo grandes distâncias, improvisando com
ramos abrigos para passarem a noite (vida selvagem que parece
ser tradição das suas emigrações até se fixarem neste ponto de
Africa) ; aparte mil outras dificuldades a vencer por destreza,
coragem, decisão, etc. ; para se ser rei ha ainda o grande óbice
das extraordinárias despezas a fazer com a compra dos votos
dos eleitores, que teem o grau de mambuko, e com os funerais
do rei anterior, que devem dar brado através os tempos pela
magnificência com que tenham sido feitos; quanto mais sumptuo-
sos forem os funerais e maior duração das festas, tanto mais
respeito o novo rei mostrará pelo seu antecessor e mais consi-
deração o povo começará a ligar-lhe.
Os predicados exigidos para se ser rei sãomuitos, mas apesar
disso não dão certeza de que o rei venha a ser bom; o seu pri-
meiro ministro governará por ele ; terá um carrasco encarregado
de fazer justiça sumária e o próprio, rei não desdenhará de der-
ramar o sangue alheio; em breve, por extorsões, feitas sob mil
pretextos ao próprio povo, ou por guerras com os vizinhos, se
indemnisará com grande uzura das despezas que fez, etc.»
#
Os príncipes e as autoridades gentílicas são considerados os
senhores da terra ; quem quizer construir a sua cubata ou quizer
cultivar qualquer terra terá de pedir licença e pagá-la ao prín-
cipe, colherá a seara, mas não será dono da terra, perdendo o
direito às plantações que vivam mais de um ano que ficarão
pertencendo ao dono da terra.
Talvez deste facto, de ser infrutífero o labor de plantar
árvores viesse a crença, muito arreigada, de que quem plantar
qualquer árvore, morre antes dela ter utilidade, ou antes de dar
sombra que cubra um homem.
288 POPULAÇÕES INDÍGENAS
* *
A não ser os nobres, não é costume, nem mesmo fácil às
restantes classes acumular haveres. Além de imprevidentes,
gastando tudo com a maior facilidade, à proporção e medida
que o vão havendo, os próprios nobres não vêem com bons olhos
quem tem alguma coisa, e é sempre fácil arranjar pretexto para
questões que tenham por fim desapossar cada um do que possuem.
Se algum cabinda, àlêm de ser esperto para evitar questões, fôr
trabalhador e poupado para acumular valores, pode suceder que
exgotados os meios de lhe fazer perder os haveres, cheguem a
fazer-lhe perder a vida, acusando-o de feiticeiro, ou forjando-lhe
outro qualquer pretexto que o leve a ter de tomar a beberagem
que constitui o juramento. Assim o acumular riqueza, àlêm de
dar muito trabalho, faz ainda correr perigos de questões e até
a vida, sendo por isso dificil e perigoso ter alguma coisa não
sendo nobre.
Gasta-se emquanto há, satisfazem-se depois as necessidades
mais urgentes recorrendo a expedientes; se aparece uma doença
ou outra grave conjuntura morre-se à míngua, vende-se ou
empenha-se a mulher e os filhos, se os há, vive-se à custa de
outros, se já não se é rapaz ou, sendo-se novo, vai-se então
trabalhar, preferindo-se a expatriação.
O homem pode possuir o que herda, o que adquiriu por
qualquer forma e o que as suas mulheres e filhos ganharem; à
mulher só é permitido possuir o que o marido lhe der, quer
para seu uso, quer como indemnização por ofensas dos costumes
matrimoniais.
Os contractos são verbais, perante testemunhas, que só em
coisas mínimas deixa de haver, e sendo de maior importância
perante uma autoridade gentílica, que em parte recebe uma
certa quantia.
Qualquer contracto se pode anular, levando-o perante a
autoridade; a maior parte das vezes, porém, uma das partes
contratantes falta às condições que aceitou, competindo à outra
provocar a questão, se quizer ganhá-la, porque se ofende por
palavras e especialmente por actos, a que não cumpriu, tem
esta direito de provocar a questão, pagando muito menor inde-
mnização pela falta, e sempre inferior à multa que tem a receber
DE ANGOLA 289
do ofensor, a cujo cargo ficam, àlêm disso, as despezas da jus-
tiça.
Sempre que há faita de cumprimento de um contracto e que
ela se prove com testemunhas ou argumentos que dêem forte
presunção de ter havido quebra, ha direito a indemnização; o
mesmo sucede quando o queixoso mostra a falta, embora não se
prove à evidência, mas o acusado não defenda razoavelmente o
seu proceder. Se foi uma só das partes que faltou, pagará essa ;
se faltaram as duas, é avaliado o prejuízo resultante de uma e
de outra parte, e a diferença é paga por um ao outro mais pre-
judicado; em ambos os casos ha multa ou custas a favor do
julgador.
A indemnização pode ir desde o pagamento de uma impor-
tância mínima até à perda da liberdade; a avaliação dessa
importância depende do prejuízo e transtorno causados pela
falta do contracto, da qualidade da pessoa prejudicada, da
facilidade ou dificuldade de remediar a falta, do tempo decorrido
depois de cometida a falta, mais elevada quanto maior o inter-
valo, da habilidade com que se fizerem valer as circunstâncias
agravantes, etc.
Conhecem como moeda as notas do banco, o dinheiro em
prata e em cobre, bem assim como o franco, quer francês, quer
do Congo Belga.
Como medida linear conhecem só a braça, aplicável a tudo;
no entanto tratando-se de tecidos chamam dóbela à jarda, e
como múltiplos desta o pano e o cortado.
Como medidas de capacidade conhecem o copo, a gaiata
(5 '/a a 7 decilitros) e o garon (galão) de cinco ou seis gar-
rafas.
A garrafa de aguardente é o padrão a que reduzem todos
os outros valores; não importa saber o valor em moeda desse
líquido, o indígena vende uma coisa por tantas garrafas, não
quer saber quanto custou ou vale cada garrafa. Não aceita a
troca de garrafas por dinheiro, mas tem correspondências de
todos os valores para com a garrafa, usando de frases como
estas; um copo de sabão, uma garrafa de tabaco, etc.
O maior valor que conhecem é a espingarda, isto é, o que
de qualquer género de comércio corresponde ao valor de uma
espingarda ordinária de carregar pela boca, antiga lazarina, ou
suas modernas imitações.
290 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os julgamentos a que os* cabindas chamam meakno, são
levados a efeito com grande aparato e variam de importância
conforme a questão a julgar e da autoridade a quem se recorre.
Assim recorrendo a uma autoridade gentílica subordinada em
questões de menor importância, constitui o julgamento no que
vulgarmente se denomina puchar a palavra; quando porem se
recorre a um príncipe (fumo) a coisa é mais séria e denoinina-se
fundação. A marcha geral do julgamento é a mesma, quer se
trate de puchar a palavra quer da fundação; em qualquer dos
casos pode haver recurso da sentença para outra autoridade de
maior hierarquia, o que é raro porque o réu com receio das
avultadas indemnizações que em geral tal recurso lhe traz eom
a sentença se conforma, mesmo que se não convença.
O tribunal é constituido pela autoridade gentílica que preside
e os velhos ou outros indígenas considerados de bom conselho.
Quem se julgue ofendido nos seus direitos, na sua propriedade,
nos seus negócios, etc, se não é escravo, mulher ou creança,
porque nestes casos pertence ao senhor, marido, pai ou tio, vai
queixar-se à autoridade — um príncipe (fumo) se deseja dar
maior importância à causa — que tomando conta da questão que
há-de julgar junto da sua própria casa, fica com a designação,
especial para o. acto de fumi-kunzi. Este manda chamar a outra
parte, depois de a interrogar, calcula o prazo necessário para os
contendores obterem as provas e testemunhas de que precisam,
e marca o dia do julgamento, indicando o assunto a tratar.
Muitas vezes incidentes e rabulices fazem protelar o dia mar-
cado, mas o fumo, tendo interesse no julgamento pelos proventos
que aufere, corta os embaraços e termina por inexorável, não
consentindo novo adiamento.
Com bastante antecedência o juiz faz avisos ao público por
meio de pregoeiros, e convida directamente os indivíduos de
bom conselho que hão de fazer parte do tribunal. Estes confe-
renceiam entre si e com o fumo várias vezes, inteirando-se sobre
todas as minudências do caso, procurando recordar-se de outros
semelhantes, seu julgamento e desfecho.
Chegado o dia famoso — escreve Matos e Silva — ansiosamente
esperado começa de manhã a romaria do povo para o local de-
DE ANGOLA 291
signado, que é sempre vasto terreiro junto da principal habi-
tação do fumo e tendo árvores que façam sombra, mas pelo
menos uma grande árvore junto da qual se constituirá o tribunal,
assentando-se o presidente. Esse povo é constituído pelos dois
sexos e de todas as idades ; assenta-se todo no chão em semi-círculo
de concavidade para a presidência, deixando, entre esta e as
várias filas que forma, um espaço amplo onde possam livremente
achar-se todas as pessoas que são chamadas a figurar no acto ; as
filas da frente são formadas pelos homens mais velhos ou de maior
posição social, e logo atrás pelos mais novos ou menos importantes ;
os rapazes ficam indistintamente com o sexo feminino na recta-
guarda do elemento masculino. Raro será o cabinda, vivendo
alguns quilómetros em volta, que não abandone as suas ocupa-
ções para assistir à fundação, porque ainda que o actual caso,
ou qualquer das pessoas nele envolvidas, não o interesse de
perto, o julgamento sempre serve de pretexto para não trabalhar
algum tempo, é um espectáculo não muito vulgar, e pode dar
ensinamento que de futuro seja proveitoso.
As autoridades e os nobres de categoria inferior à do fumi-
kunzi, quer seus subordinados quer não, não deixam também de
assistir, mesmo vindo de grandes distâncias, e tomam logares à
frente do povo na primeira fila, podendo os mais graduados ter
assentos fornecidos pelo juiz.
Todo este auditório fala em 'voz alta, discute, comenta, infor-
ma-se produzindo um barulho ensurdecedor até à constituição
do tribunal; mas depois faz- se silêncio, escuta-se cuidadosamente
o que se passa até que, com o decorrer da causa, vai aumentando
o entusiasmo, acabando por haver manifestações a favor dos
oradores, sendo preciso chamar à ordem, o que é atribuição do
presidente que manda tocar um tambor indígena; este instru-
mento é também empregado para advertir que vai começar o
acto solene, ou que vai recomeçar depois de interrupção no mesmo
dia ou em dias sucessivos.
Durante o julgamento, especialmente quando uma testemunha
faz revelação de importância ou quando um orador consegue
arrebatar o auditório, este manifesta-se repetidas vezes por
exclamações variadas e em todos os tons; como muitas vezes
sucede que os advogados, discursando, não se contentam com
chamar a atençãu do júri, mas ainda fazem consultas directas
aos ouvintes, estes manifestam a sua opinião favorável à con-
sulta, os homens repetindo em coro a última palavra da frase
292 POPULAÇÕES INDÍGENAS
do advogado e dando certas palmadas, as mulheres apenas pelas
palmas e só acompanhando as dos homens.
Reunidas todas as pessoas que devem tomar parte no julga-
mento, passam elas a ocupar os seus logares no vasto terreiro
que assim vai ficar ocupado formando-se uma figura ovóide
coberta de pretos, havendo apenas espaços livres em volta dos
autores e réus, seus advogados e testemunhas, que todos se co-
locam por grupos entre o auditório e os julgadores, mas de
frente para estes e assentados no chão; exceptuam-se os advo-
gados que geralmente estão de pé, virando-se ora para um lado
ora para outro, e andando, indo conferenciar com os seus cons-
tituintes, as testemunhas, o júri e o juiz.
Do lado menor do ovóide é este fechado pelo principe julgador e
seus ajudantes ou júri, ficando todos à sombra da árvore, ou
mesmo debaixo dum coberto em forma de telhado de duas águas,
igual aos tectos das casas indígenas, que tem sido construído de
propósito para tal fim.
O fumi-kunzi assenta-se num objecto (muitas vezes cadeira eu-
ropeia) mais elevado do que qualquer outro dos pretos presentes;
aos seus lados tomam assento também os que êle chamou para
ajudarem com suas luzes o julgamento e que são em geral velhos
ou pessoas de consideração, bamukurunto, ainda mesmo que não
sejam nobres ou autoridades (que teem preferência) mas nunca
escravos. Por detrás do principe e de pé, estão creados seus, ou
súbditos, a quem está distribuído o papel de oficiais de deligên-
cias; não me pareceu haver agente do ministério público nem
guardas do tribunal; não há decerto escrivães, tudo se passa
oralmente. A língua falada nas fundações (também chamadas
fundamentos) ê sempre e só a fióte ou indígena; ainda mesmo
que alguém saiba falar outra não o deve fazer; se não sabe
falar fióte, diz o que entende ao interprete que escolheu para
seu advogado, que toma o nome de vikála-kâno, e este repete
em língua da terra o que lhe parece, acrescentando o que for
favorável à causa que adoptou e omitindo o que pode ser desfa-
vorável ou que é contra os costumes ou leis indígenas; há porém
a máxima liberdade de palavra fora destas restrições, pode em-
pregar-se qualquer termo que não será tido por ofensivo por
mais obsceno que seja; pode-se descer a todas as particulari-
dades, ás descrições mais minuciosas e escabrosas das scenas mais
íntimas ou repugnantes, sem empregar perifrases. Haja contudo
o máximo cuidado em não usar coisa que seja ou pareça ofensa
DE ANGOLA 2§3
ou ching amento, por causa das más consequências que daí deri-
vam, tudo exactamente como na palavra.
O presidente da reunião marca a ordem dos trabalhos, dá a
palavra a quem ela compete, mantém o socêgo e respeito no
tribunal; pode acarear testemunhas a pedido dos advogados ou
dos membros do júri ; estes podem fazer perguntas para melhor
se esclarecerem sobre o que desejam; os advogados podem inter-
rogar quaisquer testemunhas, falar desenvolvidamente a favor
dos seus constituintes e em desabono dos contrários, havendo até
réplicas e tréplicas.
No seu longo discurso, cada advogado, tem o cuidado de
estender o mais possível as conclusões a favor da causa que
defende; será tanto mais hábil quanto maior fôr o número de
argumentos favoráveis que do mesmo facto puder extrair; esses
argumentos vão sendo ponderados e avaliados pelos julgadores
e de cada um admitido como provado e probatório o presidente
toma nota. Esta nota é uma coisa curiosa; não há argumento
ou prova de maior ou menor valor do que o outro, o que há é
o número de argumentos ou de provas admitidos depois de
examinados; cada uma dessas razões será representada por um
pedacito de pau que o fumi-hunzi colocará defronte de si, mas
do lado do contendor, a quem aproveite; deste modo fácil será,
subtraindo o número de paus de um lado do do outro, saber
quem perdeu.
Exgotado totalmente o assunto, aduzido tudo quanto lembrou
de ambos os lados, chega a vez ao príncipe de beber agua com
os seus conselheiros, é a conferência final; cada conferência
interrompe a sessão, por ser secreta, e pode realizar-se a propó-
sito de cada razão apresentada se fôr discutível a admissão dela
como prova ; pelo que percebi, a conferência final é para pon-
derar, não quem venceu a questão, mas qual o castigo a arbitrar,
qual a indemnização a pagar, quais as custas a satisfazer; rea-
berta a sessão, é publicada a sentença o que se chama dar rezão,
mas ela não terá execução antes do pagamento das custas ou
fiança.
O vencedor retira-se com os seus partidários, amigos e
parentes, que o vão aclamando; depois, toda a noite, é a vitória
festejada com danças e bebedeiras na aldeia do feliz e á custa dele.
Como já tivemos ocasião de vêr admitem a prova testemu-
nhal, sendo encarregado de escolher, angariar e oferecer as teste-
munhas o interessado que para isso precisa consultá-las e pagar-
294 POPULAÇÕES INDÍGENAS
lhes para que elas aceitem o encargo. Acontece muitas vezes
que, pagando-se a uma testemunha para ela dizer só parte do que
sabe e convém ao interessado, o outro contendor pague à mesma
testemunha para que ela diga tudo o que souber.
Admitem àlêm da prova testemunhal, as provas da faca quente
e da kassa.
No que diz respeito ã primeira, pondo-se o ganga ao facto
do caso começa este preparando a cerimónia, fazendo uma
pequena cova no chão, põe-lhe dentro um seixo que consigo
traz e faz -lhe em cima lume, aquecendo a faca.
Emquanto a faca aquece, vai o ganga falando baixo, tão
baixo que nada se percebe, deitando apenas pitadas de areia no
lume, e examinando surrateiramente o que se passa nas fisiono-
mias dos assistentes e em especial daqueles sobre quem recaem
suspeitas.
Então o ganga dirige-se ao indigitado ou indigitados como
culpados, e no alto da parte externa de uma das pernas de cada
um, logo abaixo do joelho, traça uma circunferência com giz.
Invoca os feitiços, conta resumidamente a história do caso, e
não deixando de olhar para os indigitados que marcou, declara
que a faca irá dizer a verdade, porque o inocente não se quei-
mará, e o culpado ficará queimado.
Os pacientes devem repetir os finais das frases do ganga, o
que os obrigará a estar com toda a atenção presa ao palavriado,
e portanto deixando melhor transparecer na fisionomia o que
se lhe passa no íntimo, O feiticeiro toma da faca pelo cabo cospe
no meio do círculo marcado pelo giz na perna de cada um, e
aplica-lhe nesse ponto duas a cinco pancadas com a lâmina da
faca, dadas de prancha e demorando ou não o contacto, como
entende; se a pele percutida fica menos escura do que a restante,
o paciente está inocente, se a pele escurece mais, é culpado.
A outra prova subsidiária empregada nos julgamentos pelos
cabindas é a da kassa, que consiste em fazer ingerir ao indigi-
tado culpado a casca de um vegetal, reduzida a pó pela raspa-
gem em uma pedra áspera, ou pisando-a, consentindo-se ou não
a ingestão de água, quando se administra a casca, conforme, a
gravidade do caso. Asssim tratando-se de caso muito grave,
administra-se a kassa com a água contida em uma pequena
chávena, quando a causa a julgar não é de tanta importância,
chega-se a dar até três copos de água para ajudar a ingerir a
kassa.
DE ANGOLA 295
Vomitar a hassa é prova de inocência, não a vomitar é
prova de culpabilidade. Quando se trata de questão grave a
prova produz a morte; no entanto, muitas vezes a morte não
chegaria a dar-se, se não fosse a fúria da multidão que à cace-
tada acaba aquele cuja morte julga próxima e inevitável.
Em geral a prova faz-se ao nascer do sol, e o efeito vomitivo
deve produzir-se de forma que,, até às 11 horas ou meio dia,
metade da porção ingerida tenha sido vomitada ; a outra parte
a que chamam duli leva mais tempo a sair, acreditando que é
esta parte que mata e portanto só quando "-ela está saída é que
há esperança na salvação do paciente.
O paciente pode fazer-se acompanhar pela sua família, por
feiticeiros importantes, que assistirão à prova como fiscais da
regularidade do julgamento e para destruir a acção de feitiços
que possam comprometer a inocência do acusado.
Emquanto dura a cerimónia, os assistentes cavaqueiam e
gozam o espectáculo, e os criados do ganga tocam um pequeno
tambor (mussaku) e cantam. O paciente sentado em uma esteira
e tendo lavado as mãos espera que o ganga que toma o nome de
gola-kassa prepare a casca. Ingerido o pó, o paciente deve
passear defronte de todos, no espaço deixado livre para a ceri-
mónia, mas pode sentar-se de quando em quando, alguns minutos.
Nesta ocasião é permitido ao paciente falar, licença que êJe
aproveita para patentear a sua inocência, declarando que se in-
criminado está a casca o mate.
Tratando-se de questões de pouca importância, se passado o
tempo próprio para vomitar, não vomita, admitem como pro-
vada a culpabilidade do paciente e administram lhe remédios
para que vomite, o que em geral é difícil, ficando o paciente
sofrendo durante algum tempo, ás vezes durante anos.
Vomitada a casca no tempo próprio, está o paciente em bom
caminho de provar a sua inocência, deixa-lo hão então dormir
nessa noite, de manhã será interrogado pelo gola-kassa, a que
tem de responder o mais alto que lhe fôr possível e com voz
bem clara, para mostrar que está bom, chamando a esta prova
bila kongo. Assim provada a inocência do acusado, fica este
durante algum tempo sujeito a um regimen especial. Usará um
simples pano suspenso à cintura, não trabalhará durante um certo
número de meses, tomará banho todos os dias, terá de rapar o
cabelo e pintar-se com tacula, e, nos tornozelos, usará um amuleto
dedicado ao lunga. Levará assim uma vida regalada na sua.
296 K^ÍJLAÇÕES INDÍGENAS
cubata, visitado e tratado por mulheres, não admirando que
engorde mais que o costume, chegando a parecer melhor do
que era, e cujos efeitos atribuem à kassa.
Não obstante a crença geral nos efeitos da kassa ser tão
arreigada que muitos pedem para se sujeitarem voluntariamente
a esta prova, não deixam de com promessas e presentes, dispor
o ganga a seu favor.
Parece que ha duas espécies de casca empregadas na prova,
uma que mata e outra que só faz vomitar, ou pelo menos empre-
gam-se juutamente com a mesma casca outras raízes ou vegetais
para a reforçar ou neutralizar, dependendo tudo do feiticeiro
pelo que é conveniente comprá-lo, vencendo quem mais paga.
Assim parece que, estando resolvido o dia e local em que dado
paciente tomará kassa, chama-se o feiticeiro que vem para ali
de noite um ou dois dias antes, instalando-se numa cubata
isolada.
Com todos os cuidados para não levantar suspeitas, o repre-
sentante de uma das partes vai oferecer fazendas ao ganga para
lhe ser favorável ao seu partido ; este ouve o pretendente, recebe
o que se lhe dá e despede-o depressa, para dar ocasião a
que os contrários venham, que efectivamente não se fazem
esperar. Toda a noite se leva em correrias para a cubata do
ganga, com presentes e promessas, chegando este a dizer a um ofe-
rente que já teve maior oferta dos contrários, e sucedendo que o
representante de um partido está escondido esperando que acabe
a conferência do ganga com o do outro para então entrar. No
entanto toda a gente sabe que se procede assim em todos os
casos em que se administra a kassa} a maior parte do povo crê
na veracidade da prova.
Perdida a questão mas salva a vida tem a parte condenada
de se sujeitar às custas e mais despezas inerentes à sentença ;
caso o condenado tenha morrido durante a prova, é a família
a responsável pelas despezas da sentença.
Em geral nem só o condenado tem de pagar, o queixoso ao
autor, igualmente lhe cabem despezas que tem de satisfazer
porque enquanto não forem pagas todas as despezas, ou pelo
menos se dê penhor ou fiadores que as garantam, não é proferida
a sentença.
Todos os que interveem no julgamento teem quinhão, mas a
parte de leão pertence ao presidente, autoridade gentílica ou
príncipe sendo tanto maior quanto maior é a sua categoria*
DE ANGOLA 297
Quando a sentença absolve o condenado por se provar a sua
inocência, cabe a este a vez de chamar perante a justiça o acu-
sador, que é então condenado e tem de pagar todas as despezas
feitas e até uma multa, que nunca é inferior a dez cortados e
um galão de aguardente, e que tratando-se de indivíduos de
família nobre e especialmente se o é, então a multa é de arrazar,
chegando a ser escravizadas famílias inteiras como penhor do
pagamento da enorme quantia arbitrada como multa.
II
KAKONGOS
Os usos e costumes da tríbu Kakongo são em tudo idênticos
aos da tríbu Cabinda, salvo no que diz respeito à organização
política, motivo porque em separado só desta tratamos para os
Kakongos.
Os territórios ocupados pelos Kakongos constituem uma
espécie de reino governado por um chefe electivo que por muito
tempo residiu com os seus ministros em Kingele, sendo-lhe
vedado ver a água, não podendo por isso vir ao litoral nem às
margens do rio.
Esta curiosa proibição feita ao rei pelo «Ganga» (curandeiro)
tem uma explicação que a coaduna bem com o retrato moral
dos habitantes de Kakongo, que é a seguinte: o rei de Kakongo
por cada navio que abordava à costa nos seus domínios, recebia
um imposto chamado m'bico, por intermédio dos seus minis-
tros, imposto que era constituído na maior parte dos casos, por
aguardente, pólvora, tabaco e outras mercadorias, principal-
mente fazendas, e o qual era transportado para a capital pelos
referidos ministros. É claro que o imposto chegava sempre
reduzido a menos de metade, e como o rei não conhecia a sua
totalidade, satisfazia-se com o que lhe entregavam.
O rei fazia-se cercar dos seguintes ministros:
Mangove — Ministro dos negócios estrangeiros e chefe do
protocolo ;
Maniputo — secretário do Mangove ;
Makaka — Ministro da guerra e general em chefe do exército;
Mani-Banza — Ministro da fazenda e o encarregado de rece-
ber os impostos e de fazer os pagamentos;
Manibéle — É o mensageiro do rei junto dos diversos chefes
20
â9Ô ÊOtULAÇOES INDÍGENAS
e tinha como distintivo a chimpaba, uma faca de prata Com 45
a 50 centímetros de comprimento por dois de largura.
Makimba — Ministro do fomento. Tinha superintendência
sobre os rios e florestas.
Mafuca — Ministro do comércio e como tal dos mais impor-
tantes personagens do estado. É ó encarregado de receber os
impostos rríbico e contribuições lançadas sobre os europeus que
comerciavam nos domínios do seu rei e o encarregado de fisca-
lizar a permuta entre europeus e indígenas.
Além destes ministros, cada aldeia tinha o seu chefe ou
MyFumn. Ainda hoje existem estes chefes de povos ou M'Fumu-
Bnála, que salvo raras excepções, não dispõem já de prestígio
algum, e que se limitam a cumprir as ordens dos sobas.
Por morte do rei trata-se de eleições do novo soberano.
Como acto preliminar, era preciso ver se existiam na terra os
representantes do NZambi Wpungo (Deus creador de todas as
coisas) e que delegou os seus poderes em três ídolos que presi-
diam: um aos mares, outro aos rios, e outro às florestas, fazen-
do-se representar na terra por três gangas, espécie de sacer-
dotes da religião «fiote».
O homem que ia ser coroado rei, devia ser um negro boçal
e sem luzes de civilização, devia ser apresentado por uma das
mais importantes famílias.
Uma outra família apresentava o Mamboma (ministro da
guerra, representante da força), que devia ter muita gente
armada e que era quem verdadeiramente governava.
Uma vez descobertos os Gangas, o futuro rei, era-lhes entre-
gue, e por eles levado a uma floresta onde devia fazer uma con-
fissão de todos os actos da sua vida.
Uma das clausulas para que o homem pudesse ser rei era a
de nunca ter visto sangue de outrem, e nunca ninguém ter
visto o seu sangue. Quer dizer : nunca devia ter sido ferido
nem devia ter ferido ninguém.
Depois da confissão entrava então nos três feitiços da terra :
Lemba Fungi e Bumba, devendo ter para cada um uma mulher.
As mulheres do rei conheciam-se por três longas costuras de
três golpes no peito. O príncipe daqueles três feitiços, era o
Lemba e conheciam-se os indígenas que o tinham por uma
Malunga (pulseira) de cobre, lavrada com uns desenhos, um
dos quais se assimilhava a uma cara. Esta Malunga não po-
dia ser de outro metal senão cobre, podendo porém ser grossa
Í)É ANGOLA 299
ou fina. Depois do rei se ter iniciado nos três feitiços, se ainda
o não estava, e de ter feito a confissão, era levado pelos Gangas
a um lago onde o banhavam. Este banho representava a lavagem
das impurezas morais do que ia ser rei, e só depois apresentado
por Mamboma ao povo e nessa ocasião coroado. São então no-
meados os seus ministros entre os quais o Ma N}buco que tem
como distintivo uma Chimpaba (faca) de cerca de 30 centímetros
de comprimento e que exerce a justiça e resolve as palavras
(questões); o título de Ma N'buco equivale ao título de conde
que por vezes era também concedido a pessoas ricas e nobres.
O rei de Kakongo chamava-se Makongo. Parece que este
prefixo Ma queria indicar a autoridade ou nobreza pois que
WGoio é Cabinda, Mangoio, rei de Cabinda, Loango é Loango,
Maloango, rei de Loango, Bonde (norte de Loango) Mabonde,
rei de Mabonde. Mesmo nas pessoas nobres se encontra este
prefixo. Ma Suami, Ma Pucuta, Ma Benza, etc.
Depois da coroação o rei era levado a passear pelos seus
estados acompanhado pelos seus ministros, recebendo nessa oca-
sião presentes dos príncipes que os governavam.
CAPÍTULO XII
MAIOMBES (*).
Os Maiombes ocupam a região limitada ao norte e leste pelo
Congo Francês e ao oeste sul e sudeste, respectivamente pelos
rios Luali e Luango Luci.
O Nome Maiombe parece provir do nome dos povos que
habitavam a região N'Zala, conhecida por Iombe (escravo).
Os maiombes são descendentes dos povos que vindo do
oriente, como todos os outros da raça Negra, tornearam o rio
Zaire e alcançaram a costa ocidental de Africa ao norte do
mesmo rio. Está igualmente averiguado que estes povos pouco
ou nenhum contacto teem tido com os Bavili, e que não sofreram
a influência dos povos do sul do Zaire e portanto não estiveram
subordinados ao rei do Congo.
Os habitantes de Maiombe, são de pequena estatura sendo a
média tirada de cem indivíduos, de 1,55 para os homens e de
1,50 para as mulheres. A cabeça é redonda, nariz curto e largo,
lábios grossos, e um pouco revirados, fronte curta, os dentes
salientes, cabelos lanosos, quási nenhuma barba, e o queixo
retraído. O tronco em geral é estreito, e os braços proporcional-
mente um pouco mais compridos que as pernas. A cavidade
óssea da bacia é muito estreita mas é larga no sentido do osso
sacro o que torna para as mulheres mais fáceis os partos.
O pé é chato; a pele muito porosa e exalando um cheiro
nauseabundo. Em geral o seu temperamento é linfático; o andar
é vagaroso e essencialmente preguiçoso. Os membros são frouxos
e as carnes moles e flácidas. Pouca sensibilidade. O maiombe é
(l) — Os elementos para o estudo desta tríbu foram fornecidos pelo
administrador sr. Gama Ochôa.
302 POPULAÇÕES INDÍGENAS
inteligente e possui uma memória boa. Inventa muitas vezes
histórias que conta com tão grande naturalidade e com tais
pormenores como se fossem verdadeiras, possuindo uma extra-
ordinária verbosidade. É um grande observador, racionando
sempre com calma e mostrando sempre muito bom senso. As
perguntas que lhe são feitas, responde sempre de modo a
agradar ao seu interlocutor sem se importar da verdade. É
mentiroso por excelência, mas nunca responde sem primeiro ter
procurado a intenção do que o interroga. Outras vezes responde
com evasivas ou interpretando a pergunta a seu bel prazer e do
modo que mais lhe convêm.
Fala com extrema facilidade adequando à palavra o gesto,
que por vezes é elegante, correspondendo sempre à ênfase ou à
doçura da frase. Possui um jogo fisionómico soberbo, sendo
capaz de representar todas as nuances da escola sentimental sem
que sinta qualquer delas. De constituição débil, a sua arma
predilecta é a astúcia.
É paciente, e pouco sensível às dores. Resiste com facilidade
a marchas longas mesmo sem se alimentar e carregando 20 ou 30
kilogramas. A sede, principalmente quando o calor é forte,
encomoda-o deveras, não podendo passar por qualquer ribeiro
sem beber água. Quando nas horas de calor atravessa regiões
onde não há água, chupa pedaços de raizes de Massiço. Marcha
com o corpo direito e quando descança raras vezes se deita. A
sua posição predilecta para descançar é assentada.
O trajo limita-se a um pouco de pano que enrola à cintura,
caindo-lhe até ao joelho e seguro por uma correia ou por uma
m'singa (cordel).
Não usa chapéu ou qualquer outra cobertura na cabeça mesmo
quando marcha sob o mais ardente sol. Só o soba ou chefe do
povo usa boné feito de fio de vela que adquire ao comerciante,
ou ainda de fibra de ananaz ou de matoba. Por cima deste boné
põe muitas vezes um chapéu alto, um bicornio ou qualquer outro
chapéu extravagante. O Maiombe anda sempre descalço.
O Maiombe possui de uma maneira muito completa as noções
religiosas. Crêem num deus mas entregam-se excessivamente à
prática do fetichismo. Todos os feitiços estão subordinados ao
N'Zambi, e tudo quanto não souberem explicar respondem com
a frase «Samu dia Zambi» (negócios de deus). Cada feitiço porem
tem o seu poder. Assim há feitiços para o bom êxito na caça,
para a chuva, para o feliz parto, outros que preservam o seu
DE ANGOLA 303
possuidor contra várias doenças, etc. Uma vez porem que o
feitiço nega ao seu possuidor o que lhe pede, é posto de parte.
Se um europeu ou um extranho mexe num feitiço, este perde o
seu poder e é igualmente posto logo de parte.
Estes idolos podem dividir-se em três categorias a saber :
1.° — Os grandes feitiços.
2.° — Os feitiços das povoações.
3.° — Os feitiços domésticos.
Os grandes feitiços são em geral segredo dos N'Gandas, que
os empregam na cura das doenças. Eis o Vambi do Malazi.
Compõe-se de um cesto de verga tendo dentro uma grande
quantidade de ovos, conchas, cinzas, M'Bonze, (fruto de M'Bonze)
e vários outros objectos tudo embrulhado numa infinidade de
lenços de variadas cores. Serve este feitiço para a cura da
doença do sono, TChimbuca. Serve para tornar corcunda
aquele contra quem se bate o prego no feitiço.
Chama-se «bater o prego no feitiço» pregar um prego numa
figura de madeira, umas vezes com a forma humana outras com
a forma de animais fantásticos, e que em geral é um feitiço da
povoação e que são conservados em uma pequena cubata e de
cuja guarda está encarregada uma pessoa da povoação indicada
pelo chefe, sendo o único responsável pelo feitiço e recebendo
em troca os presentes que lhe dão aqueles que, recorrendo ao
feitiço, obtiveram bons resultados.
Um escultor qualquer faz os feitiços mas é só o feiticeiro e o
seu proprietário que lhe dão o poder. Por vezes os rochedos e
troncos com formas caprichosas e extravagantes são objecto de
culto. Os idolos domésticos são muito numerosos e a toda a
necessidade preside sempre um feitiço, tendo cada indivíduo o
seu para a mesma necessidade. Um Yombe, por exemplo, sai
para a caça ou para qualquer outra região, onde se conta demorar
alguns dias, fecha a porta da sua cubata, atravessando-lhe um
pau na porta ou colocando-lhe à entrada um ramo ou uma folha
de palmeira. Fica assim seguro que ninguém lhe entrará em
casa por que ela está protegida pelo feitiço que bem patente
deixou na porta da casa.
E vulgar ver-se nas plantações indígenas um pau sobre o
qual colocam um boneco de trapos, ou uma panela velha, um
jarro quebrado ou qualquer outro objecto semelhante o que
representa um feitiço ali colocado pelo dono da plantação e que
assim está seguro que não será roubado.
304 POPULAÇÕES INDÍGENAS
O Mayombe teme os feitiços das outras tríbus por que é muito
supersticioso.
Eis o que se nos oferece deixar exposto acerca do estudo
etnográfico desta tríbu, por quanto, os restantes usos e costumes
se podem considerar idênticos aos das tríbus Bavili,
CAPÍTULO XIII
MUSSIIRONGOSC)
(Asolongo)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica desta tríbu. — Sua Ori-
gem. — População.
Os Mussurongos ocupam a vasta região da província margi-
nando o sul do rio Zaire, limitada ao norte por aquele rio a
oeste pelo oceano atlântico, a leste pelo rio Mpozo, seguindo
depois aproximadamente o paralelo da nascente deste rio e ao
sul pelas tríbus Iembe e Libongo.
Os mussurongos são descendentes dos povos que invadiram a
província pelo norte e a que já tivemos ocasião de nos referir,
não tendo conhecimento de qualquer tradição especial por eles
contada.
São bem constituídos e resistentes, joviais e expansivos, co-
bardes e traiçoeiros, sem amizade, dedicação e compaixão por ou-
trem.
Não praticam a tatuagem, nem a deformação do crâneo, do
nariz, das orelhas ou dos lábios.
(') Colaborou no estudo desta tríbu o sr. Francisco Rodrigues de
Castro.
306 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — - Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Habitação. — Alimentação. — Meios de
existência. — Artes, seiências e faculda-
des intelectuais.
A estes povos não lhes merece cuidado algum a higiene do
corpo.
Na sua maioria sabem nadar, sendo um divertimento quando
novos.
Não teem um tipo característico de penteado, usando o cabelo
cortado rente com tesoura, no entanto em certa época do ano
deixam-no crescer, penteando-o com pente de madeira, não fazendo
emprego de óleos. Tanto as mulheres como os homens costumam
rapar à navalha os cabelos da púbis, e dos sovacos, parece que
para assim evitarem os parasitas.
Quanto ás unhas usam-nas cortadas rentes.
São de ordinário madrugadores, deitando-se cedo; é muito
raro dormirem de dia.
Não existe entre os povos desta tríbu a tatuagem, como já
dissemos, há no entanto o costume de pintarem o corpo com
tacula, em determinadas ocasiões, vestindo então panos tingidos
com a mesma tacula.
*
O vestuário dos mussurongos consiste em panos, que são co-
sidos por eles próprios e usados como temos descrito para as
outras tríbus alguns havendo já que vestem casacos, coletes e
camisas e na cabeça usam chapéus, barretes e bonets, objectos
que compram ao comércio europeu.
Como adorno usam, homens e mulheres, argolas nas orelhas,
fabricadas de cobre, latão, estanho e até de prata, bem assim
como igualmente usam por luxo e ostentação argolas de diferentes
dimensões e dos mesmos .metais, nos tornozelos a que chamam
Malungas.
Os possuidores dos adornos de prata são considerados gente
abastada e para a sua confeição fundem moedas, de preferência
shillings que obtêem a bordo dos navios ingleses em troca de
frutas, legumes, aves, em especial papagaios, etc. Ao pescoço
DE ANGOLA 307
usam, tanto homens como mulheres, colares de contas de coral
fino, os abastados e os pobres contas coloridas de vidro, mis-
sangas.
O tipo de habitação é a cubata, construida de colmo, de forma
rectangular, algumas barreadas tanto interiormente como exte-
riormente, tendo na maioria uma só divisão, e todas a sua porta
e algumas delas janelas.
Não teem estes povos preferência na escolha de lugares para
a construção das habitações, assim como não há cerimónias pre-
paratórias, nem consultam o feiticeiro.
O mobiliário consiste apenas em uma tarimba a que dão o
nome de n'fulo, onde colocam as esteiras e luandos que servem
de cama.
Não é costume haver iluminação nas suas habitações a não
ser, emquanto de noite preparam a comida, a produzida pelo
fogo da cosinha.
No tempo do frio, para se aquecerem, fazem uso de fogueiras
fora das casas e no interior delas conservam durante a noite toros
de madeira a arder.
#
A base de alimentação é mixta, predominando todavia a ali-
mentação vegetal.
Fazem uso de carne e sobretudo de peixe que teem em abun-
dância em virtude de uma grande parte dos mussurongos se
dedicar à pesca, tanto no mar como nos rios.
Os únicos alimentos que comem crus é a mandioca com gin-
guba ou com castanhas de dendem (coconote), sendo todos cosi-
dos, assados e guisados, empregando como temperos o sal —
proveniente das suas salinas ou comprado a troco de géneros
coloniais ao comércio europeu — e o azeite de palma, e como
picantes o gindungo com que preparam as muambas (molhos).
Como sucede com as restantes tríbus da raça negra o prato de
resistência e obrigatório é constituido pelas papas ou massa que
denominam funfo ou ndiba de farinha de mandioca.
Não fazem uso do leite nem dos seus derivados, assim como
do açúcar.
308 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A sua bebida predilecta é o malavo, fabricado da seiva ex-
traída das palmeiras do dendem, do bordão e das matebeiras
que servem depois de fermentada, assim como apreciam muito
os nossos vinhos e todas as bebidas alcoólicas de importação.
Não teem número regular de refeições por dia, sendo os ali-
mentos de ordinário preparados pelas mulheres e muitas vezes
pelos homens. As refeições são tomadas em família e em comum,
comendo no entanto os homens separados das mulheres. Os
escravos mais considerados comem juntos com os seus senhores.
Os alimentos são preparados dentro de um compartimento da
cubata ou ao ar livre, colocando as panelas sobre três pedras.
Fazem estes povos uso dos fósforos para produzir o fogo,
conservando constantemente troncos de árvores secas a arder.
Os homens e as mulheres na sua maior parte, cheiram o ta-
baco (rapé), atribuindo-se este uso à convivência em certa época
com os missionários. Só algumas pessoas idosas fumam, repu-
gnando-lhes em geral o cheiro do tabaco.
Não existe, nem nunca existiu a antropofagia, assim como
não existe a geofagia.
Os povos desta tríbu teem os seus celeiros particulares, cons-
tando de quatro paus espetados no chão com um estrado em cima
feito de bordões ou empélas de palmeira, sobre a qual arrumam
os sacos contendo os ceriais.
#
#
Quem se ocupa dos trabalhos agrícolas é exclusivamente a
mulher em campos cultivados, constituindo as principais culturas
as de mandioca, batata doce, ginguba, gergelim, milho, feijão,
abóboras, inhame, etc. Os produtos são para consumo próprio e
para venderem nos mercados (quitandas), tratando cada família
da sua lavra.
Não empregam adubos nem regas e os instrumentos agrícolas
constam da enchada e do machadinho.
O trabalho dos campos é feito no princípio da época das chuvas.
Dedicam-se à criação de animais domésticos tais como galinhas,
porcos, carneiros, e cabritos.
Não são caçadores; apenas um ou outro munido de uma
espingarda de espoleta dá caça ás lebres, perdizes, pombos verdes,
galinhas bravas, javali, antílopes, etc. Também empregam arma-
DE ANGOLA 309
dilhas para caçar assim como adestram alguns cães. Àlêm da
espingarda trazem sempre consigo facas em bainhas presas à
cintura e muitos deles usam uma navalha de barba para defesa,
com a qual em lutas ferem o adversário.
Os mussurongos dedicam-se muito à pesca; embarcam dois
ou três em uma canoa formada de um tronco de mafumeira
escavado interiormente, pescam toda a qualidade de peixe que
abunda no mar ao longo da costa, servindo-se para isso de anzol
e da tarrafa para o que reúnem duas canoas, borda a borda, cosidas
com lianas por forma a manter a estabilidade. Nos rios pescam
em canoas ou pirogas com os mesmos instrumentos, fazendo
também uso de armadilhas, formadas de troncos de árvores,
algumas tão fortes que quando colocadas em certos canais chegam
a caçar o hipopótamo.
Os povos desta tribu fabricam, para seu uso, à mão e de
fibras de várias plantas textis, ainda que pouco, um tecido a
que dão o nome de mabela.
Empregam-se também as mulheres no fabrico de cestos (quin-
das) de mateba, que servem para condução dos ceriais, assim
como no de cordoaria da mesma mateba, do liconde ou de fibras
de imbondeirp.
Fazem trabalhos de olaria: panelas, bilhas, cântaros para
condução de líquidos, que cozem em fogueiras de mato seco.
Servindo-se como matéria prima de arcos de ferro dos fardos
das fazendas, forjam e fabricam facas, machetes, enchadas e
outros instrumentos.
Em madeira fabricam pratos, escudelas, colheres, pás para
remarem, assim como canoas ou pirogas, servindo-se para estes
trabalhos apenas da faca e do machado.
Não usam a moagem; para reduzirem a farinha o milho e a
mandioca seca servem-se do pilão.
A linguagem dos Mussurongos é o Kissolongo, dialecto do
Kikongo que é a língua falada pela maioria das populações negras
do baixo Congo.
310 POPULAÇÕES INDÍGENA^
Se tomarmos em atenção os prefixos com que se forma O
plural dos nomes, deixando à conta de excepções os poucos que não
seguem estas regras, podemos dividi-los nas dez classes seguintes :
1> CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR Mil, M, N — PLURAL a
Desta classe apenas fazem parte os nomes de pessoas ou seres
racionais. Ex. : Munto (pesspa) ; Anto (pessoas) — Muvuidi (rema-
dor); Avuidi (remadores) — Nkentu (mulher); Akentu (mulheres).
2.a CLASSE
prefixo do singular Mu (m, n, duros e fixos)
— plural mi (ante-posto).
Nesta classe compreendem-se todos os nomes que tendo o
prefixo do singular idêntico ao da l.a não significam pessoas
ou seres racionais — Ex. : muanzi (raiz); mianzi (raizes) — Mvu
(ano); Minvu (anos) — Nlele (pano); Minlele (panos).
3.a CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR Kl — PLURAL i
Compreende nomes de objectos, instrumentos línguas, loca-
lidades, qualidade, etc. Ex. : Kinkuto (camisa); Inkuto (camisas).
4.a CLAS3E
PREFIXO DO SINGULAR Dl — PLURAL ma
Ex. : Dinkonde (banana); Mankonde (bananas).
5.a CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR Ku — PLURAL M&
Convêm aos nomes de algumas partes do corpo e a todos os
verbos quando sejam tomadas substantivamente. Ex. : Kulu
(perna); Malu (pernas). — Kudia (o comer, ou a comida); Ma-
kudia (as comidas).
6,a CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR Lu — PLURAL TU
Ex. : Lukata (caixa); Tukata (caixas).
7. * CLASSE
prefixo do singular m, ti (leves e fixas) — plural Zi (ante posto).
Encontram-se também nesta classe quási todos os nomes
importados de línguas estranhas que não afectam de qualquer
DE ANGOLA
311
prefixo no singular. Ex. : Mpaca (curai); Zimpaca (curais);
Nsungo (ramo de árvore); ginsungo (ramos) — Lapi (lápis);
Zilapi (lápis).
8.a CLASSE
prefixo do singular não tem. — plural ma (anteposto ao radical).
É constituído por alguns nomes que em tempos tiveram u
com o prefixo do singular, e que presentemente se usam sem
êle. Ex. : Lungo (canoa) Malungo (canoas).
9.a CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR U — PLURAL U
Compreende esta classe alguns nomes concretos, mas convêm
especialmente à grande parte dos nomes abstratos. Ex. : TJime
(avareza, avarezas); Uenga (medo, medos).
10.* CLASSE
PREFIXO DO SINGULAR Vu — PLURAL Mu
Ex. : Vuma (iogar, sitio); Muma (logares, sitios).
Quadro das classes do dialecto kissolongo
Classe
Prefixo do singular
Exemplos
Prefixos do plural
Exemplos
I
mu, m, n
munto,
mvuidi
nkentu
a
antu avuidi,
akentu
II
mu, (m, n, duros
munvidi,
mi, (raranteposto)
minvidi,
e fixos)
mvu, nti
minvu, minti
III
ki
kinkuto
i
inkutu
IV
di
divito
ma
mavito
V
ku
kulu
ma
malu
VI
íu
luinda
tu
tuinda
VII
m, n. (leves, fixas)
mbele, ndala
zi (anteposto)
zimbele, zin-
dala
VIII
ko, lungu
ma (anteposto)
mak o , ma-
lungu
IX
u
uiki
u
uiki
X
va
vuma, (vau
ma)
mu
muma (mu-
uma)
312
POPULAÇÕES INDÍGENAS
A concordância é feita pelos prefixos cujo quadro, corres-
pondente às classes dos nomes damos a seguir :
Classe
Partícula concordante
Partícula concordante
— singular
— plural
I
u
A
II
u
MI
III
Kl
I
IV
Dl
MA
V
KU
MA
VI
LU
TU
VII
I
ZI
VIII
U
MA
IX
U
U
X
VA
MU
Em kissolongo os nomes são epicenos. O género é indicado
pelas palavras nkala (homem) e a-nkentu (mulher) quando se
trate de pessoas e a-mbakala (masculino) e a-nkentu (feminino)
quando se referem a seres irracionais.
Para alguns casos empregam vocábulos especiais, como:
dise tatá (pai) e mama, ngudi (mãi).
NOMES DIMINUITIVOS
Em Quissolongo a formação dos díminuitivos não segue as
regras conhecidas dos diversos dialectos do Kikongo, do Kim-
bundo e do Umbundo.
Não empregam prefixos. Formam o diminuitivo pela simples
simples repetição do nome repetição do nome. Suprimindo, na
repetição o próprio prefixo do nome quando este tenha mais de
duas sílabas e não forme sílaba predominante com a letra ou
letras que se lhe seguem. Ex. : Ntekulu (neto) ; Ntekulu-ntekulu
(netinho) — Divito (porta); Divito-vito (portasinha) — Lucata
(caixa); Lucata-kata (caixinha).
NUMERAÇÃO
Contam decimalmente e, caso raro em outros dialectos das
línguas Bantu, vão até milhões.
NUMERAÇÃO ABSTRATA
1 — kosi, — mosi.
2 — zole, — ole.
3 — tatu, — tatu.
4 — ia, — ia.
5 — ntanu, — tanu.
6 — nsambunu, — sambanu
DE ANGoLA
âiâ
7 — nsambuadi.
8 — nana.
9 — vua
10 — kumi
11 — kumi ie mosi.
12 — kumi ie zole.
13 — kumi ie tatu.
14 — kumi ie ia.
15 — kumi ie tanu.
16 — kumi ie sambanu.
17 — kumi ie nsambuadi.
18 — kumi íe nana.
19 — kumi ie vua.
20 — makumole.
21 — makumole ie mosi.
22 — makumole ie zole.
23 — makumole ie tatu.
24 — makumole ie ia.
25 — makumole ie tanu.
26 — makumole ie sambanu.
27 — makumole ie nsambuadi.
28 — makumole ie nana.
29 — makumole ie vua.
30 — makumatatu.
31 — makumatatu ie mosi, etc.
40 — makumaia.
41 — makumaia ie mosi, etc.
50 — makumatanu.
51 — makumatanu ie mosi, etc.
60 — makumasambanu.
61 — makumasambanu ie mosi
etc.
70 — lusambuadi.
71 — lusambuadi ie mosi, etc.
80 — lunana.
81 — lunana ie mosi, etc.
90 — luvua.
91 — luvua ie mosi, etc.
100 — nkama.
101 — nkama ie mosi.
102 — nkama ie zole, etc.
200 — nkama zole.
201 — nkama zole ie mosi, etc.
300 — nkama tatu.
301-
400-
401-
500-
501 —
600-
601 —
700 —
701-
800-
801 —
900 —
901 —
1:000 —
1:001 —
1:100 —
1:101 -
2:000 —
2:001 —
3:000—
3:001 —
10:000 -
10:001 —
100:000 -
100:001
1:000.000
1:000.001
2:000.000
2:000.001
3:000.000
nkama tatu ie mosi, etc.
nkama ia.
nkama ia ie mosi, etc.
nkama tanu.
nkama tanu ie mosi,
etc.
nkama sambanu.
nkama sambuanu ie
mosi, etc.
nkama nsambuadi.
nkama nsambuadi ie
mosi, etc.
nkama nana.
nkama nana ie mosi,
etc.
nkama e vua.
nkama e vua, etc.
nkulazi.
nkulazi ie mosi, etc.
nkulazi ie nkama.
nkulazi, nkama ie mosi
etc.
nkulazi, ole (nkulazi-
zole).
nkulazi zole ie mosi,
etc.
nkulazi tatu.
nkulazi tatu ie mosi,
etc.
nkulazi kumi (ou) kumi
di-a kulazi.
nkulazi kumi ie mosi
(ou) kumi dia-a ku-
lazi ie mosi, etc.
nkulazi nkama (ou)
nkama a kulazi.
nkulazi nkama ie mosi
(ou) nkama an kulazi
ie mosi, etc.
lufuku.
lufuku ie mosi, etc.
mafuku mole.
mafuku m-ole ie mosi.
mafuku ma-tatu, etc.
ADIVINHAS (Ingunga)
As adivinhas são assim propostas :
O que propõe diz: Mez omu? O interrogado quando sabe
21
Sú
POPULAÇÕES INDÍGENAS
dar a resposta diz: malokama e dá-a em seguida. Quando não
sabe, responde: nuini zo.
I. — Pregunta : E divia diavafa nengua mafuku mole kaka ?
A horta capinada pela mãe montes dois só ?
Minha mãe capinou uma horta aonde há só
dois montes de capim.
Resposta : Zintulu.
Os peitos.
Os peitos da mulher.
II. — Pergunta : E nzo i avanga tatá e iaka iole kaka ?
A casa que fez o pai as paredes duas só?
O pai fez uma casa com duas paredes apenas.
Resposta: Titi kia mpinda.
Casa de ginguba.
A casca de ginguba, que é composta de duas
metades.
III. — Pregunta : letu tu-a-n-zola o iandi k'a-tu-zola ko?
Nós amámo-lo e êle não nos amou?
Nós chegámo-nos para êle e êle repele-nos.
Resposta : Tubia.
Fogo.
O fogo.
CONTOS (Intinti)
O KUEBO I O NKUVU
Dom Mpételu-mpételu otungidi
e vata diandi. Dia-konka, dia-ku-
takana, akuela Nkenge i o Ngundu.
O kuebu avanga e divatai o nkuvu
avang'e divata. O nkuvu asikang'e
zimbambi:
O mvindi a ngo.
Mutimen'e mbambi!!
Lélé, kulé!!
Akaz'iandi bavovanga vo:
— Vina vele, e muni ietu: ngei
olekeluanga kua ne-nkuvu !
O kuebo, n'auilu'uau, akuenda
kua ne*kuvu avova vo:
O LEOPARDO E A TARTARUGA
Dom Pedrinho edificou a sua po-
voação. Depois de concluída e de
toda a gente arrumada, desposou
Quengue e Gundo. O leopardo fez
a sua casa e a tartaruga também
fez a sua. A tartaruga tocava o seu
apito:
A canela de leopardo
É. muito boa para apitos!!
Lélé, culé!!
As mulheres do leopardo diziam-
lhe:
— Escuta, ó nosso marido: tu es-
tás sendo descomposto pela tarta-
ruga.
DE ANGOLA
315
— Utolo vele e mbcmbo uaku vele
utolanga.
— E ngo'nkazi, mono e mbembe
ntolanga :
O nivindi a ngua.
Mutomen'e mbambi!
Lélé, kulélí
Amona, e ngo'nkazi? onu ntole-
langa kuame!
— E muan'ame-a-nkazi, uvana
vel'e zimbambi zaku mono mpe ia
sika.
O ne-nkuvn avana e zimbambi.
O ne-ngo n'atambuid e zimbambi
ozemuini kuandi.
O ne-nkuvu abonga kaka e dim-
bu-a-niki a-ku-m-veta. O ne-ngo
obokele vo:
— Mfuidi! ifuidi!! Ke zazi e zim-
bambi zaku!!
O ne-nkuvu akuenda támbula e
zimbambi zandi, akatula mpe e
dimbu. O ne-nkuvu, o kuma ne
kuakiele, otolanga diaka vo :
O mvindi a ngo,
Mutomen'e mbambi!!
Lélé, kulé!!
Akaz'a ne-ngo bavova vo:
— E nuni ietu, ngei utoluanga
kua ne-nkuvu.
O ne-ngo avova vo:
— Amona! ienu akentu una lu-
vondeselanga e maiakala!!
Akentu bavova:
— Vo ietu, oakolela ; o uau o ne-
nkuvu o-ku-lokelanga k'o-ku-n-ko-
lelako!!
O" ne-ngo akuenda kuna-ku akala
ne-nkuvu. O ne-ngo avovesa ne-
nkuvu vo:
— O sika vele e zimbambi zaku.
O ne-nkuvu asika vo:
O leopardo, tendo ouvido isto, foi
a casa da tartaruga e disse-lhe:
— Ora canta lá a cantiga que es-
tavas a cantar.
— Ó meu tio, eu estava cantando
esta cantiga:
A canela da mãe
É muito boa para apitos!!
Lélé, culé!!
— Ó meu sobrinho, dá-me os teus
apitos para eu também tocar.
A tartaruga deu os apitos. O
leopardo, tendo recebido os apitos,
deitou-se a fugir.
A tartaruga apanhou imediata-
mente um bocado de cera e atirou-
lhe com êle.
O leopardo gritou:
— Ai que morro! ai! que morro!
Toma lá os teus apitos!
A tartaruga veio receber os seus
apitos e tirou também a cera.
A tartaruga, logo que amanheceu,
começou novamente a cantar:
A canela do leopardo
É muito boa para apitos!!
Lélé, culé!!
As mulheres do leopardo dis-
seram :
— Ó nosso marido, você está
sendo cantado pela tartaruga.
O leopardo disse:
— Vejam! vocês, mulheres, assim
são as causadoras da morte dos
seus maridos!!
As mulheres disseram:
— Se fôramos nós, bater-nos-ia;
agora, como é a tartaruga que o
está descompondo, não lhe bate!!
O leopardo foi aonde estava a
tartaruga. O leopardo disse à tar-
taruga :
— Ora toca lá os teus apitos.
316
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Omvindi a ngua.
Mutomen'e mbambi!!
Lélé, kulé!!
Ne-ngo avova vo :
— Ne-nkuvu, u-m-pana vePe
zimbambi zaku mono mpe i a
sika.
One-ngo atambula e zimbambi .
nátambuidi kaka e zimbambi aze-
muna kuandi. O ne-nkuvu oboka
nana, o ne-ngo akuenda ku vata
diandi!
Ne-nkuvu akuenda kua lubuta-
buta vo:
— E lubutabuta, u-n-landila
manga.
O lubutabuta aland'e manga. N'a-
mene landa e manga avovesa ne-
nkuvu vo:
— Tambula e nkisi mi-a-dimiole.
O mosi, ua-nkentu, o mosi, ua-
mbakala. Edina divov'o nkisi
a-nkentu, diau unua; edina divova
o nkisi a-mbakala, k'unu'ko.
O ne-nkuvu akuenda kuandi
kun'e vata diandi, avanga kim-
panga. Muna nkisi mu avaika e
muni in'e nkumbu luseke, lukam-
bang'o uiki. O luseke luakuenda
vovela vana-va kala ne-ngo, náuiro
luseke, akuenda a landi, oenda bu-
langana uiki muna nti a-poto. O
n e-ngo, bulang'o uiki, atufo koko
mun'e vu dia nti. JSPatutidi, o koko
ku kakamene.
Atuta diaka ku mosi, ku kaka-
mene diaka. O ne-nkuvu a-ku-m-
vovesa vo:
— Amon'e ngoVnkasi, e unu ufui-
di!
O ne-ngo avova vo :
— O bika ienda a landi e zim-
bambi zaku.
O ne-nkuvu avova vo:
— UtePo muana aku eza a tuadi
e zimbambi zame.
A tartaruga tocou:
A canela da mãe
É muito boa para apitos!!
Lélé, culé.
O leopardo disse:
— Tartaruga, dá-me os teus
apitos para eu também tocar.
O leopardo recebeu os apitos; e,
mal os recebeu fugiu por ele! O
leopardo foi para a sua casa.
A tartaruga foi ter com o noitibó
e disse:
— Ó noitibó, arranj a-me um fei-
tiço.
A noitibó arranj ou-lhe um fei-
tiço. Quando acabou de lho arran-
jar, disse para a tartaruga:
— Toma dois feitiços: um fêmea,
outro macho. Aquilo que te disser
o feitiço fêmea, isso escuta-o ; o que
disser o feitiço macho, não o es-
cutes.
A tartaruga foi para o seu povo,
fez uma maravilha: Do feitiço saiu
aquele passarinho que tem o nome
de luceque, que nos mostra aonde
há mel !! O luceque foi cantar aonde
estava o leopardo. O leopardo,
tendo ouvido o luceque, foi-o se-
guindo, foi encontrar mel numa
árvore grande; o leopardo, quando
tirava o mel, meteu a mão no bu-
raco da árvore. Tendo-a metido, a
mão ficou presa. Meteu lá a outra
e também lá ficou presa. A tarta-
ruga disse lhe então:
— Ora viste, meu tio, que hoje
vais morrer!
O leopardo disse:
— Deixa que eu vou buscar os
teus apitos.
A tartaruga disse:
— Chama o teu filho, que venha
trazer os meus apitos.
O leopardo gritou ao seu filho:
— Vem trazer os apitos alheios,
os apitos da tartaruga.
DE ANGOLA
317
O ne-ngo abokele o muand' andi
Nzinga :
— Uiza a tuadi e zimbambi za
ngana, za ne-nkuvu.
O muana auivula vo :
— Uebi, e tatá ? e mabuku e ?
— E zimbambi !
— A uebi? e nkele?
— E zimbambi! E zimbambi za
ne-nkuvu!!
— A uebi, e tatá? e kutu?
— E zimbambi za ne-nkuvu!!
— A uebi, e tatá? luazi?
— E zimbambi za ne-nkuvu!!
O muana a kuiza a tuadi e zim-
bambi, oiza bulangana o tat' andi e
nlembu miaonsono mivuidi butuka !
O filho perguntou :
— O que é, ó pai? as cabaças?
— Os apitos.
— O que é? as espingardas?
— Os apitos! Os apitos da tarta-
ruga!!
— O que é, ó pai? a bolsa?
— Os apitos da tartaruga!!
— O que é, ó pai? o machado?
— Os apitos da tartaruga! . . .
Quando o filho veio trazer os
apitos veio encontrar seu pai com
as mãos todas partidas!
Os mussorongos não são dados à pintura, tendo no capítulo
escultura alguns trabalhos, ainda que toscos em madeira e
marfim, figurando homens, mulheres e animais cabalísticos.
Teem apenas uma só espécie de dança para todos os aconte-
cimentos, não tendo danças de guerra ou de caça. Todos dan-
çam e cantam, sem distinção de idade ou de sexo, batendo as
palmas com espaços cadenciados ao som de tambores, muitas
vezes durante dias e noites consecutivas.
Empregam para contar pequenas pedras, burgau, contando
às centenas e milhares — nkama, cem, nkulazi, mil; também
contam de mil para cima como nkulazi nkama zole, mil e du-
zentos, nkulazi-ole, dois mil, etc.
Dividem o tempo por ciclos lunares — lua ou mez rígonde —
noite e dia o n'fnso o muina.
Não possuem veículos de espécie alguma, transportando
cargas e tipóias aos ombros e à cabeça.
Quanto à náutica constroem apenas as pequenas embarcações
a que já tivemos ocasião de nos referir.
Não teem talento inventivo, seguindo a rotina dos seus ante-
passados.
Quanto a factos históricos apenas conservam a recordação
de uma guerra, de uma epidemia ou de fome ocasionada por
prolongadas estiagens, não rememorando por muito tempo, em
318 POPULAÇÕES INDÍGENAS
virtude de serem em geral apoucados de memória, assim como de
entendimento, observação e raciocínio. Ha no entanto alguns mus-
sorongos que possuem qualquer destas faculdades em alto grau.
Não são previdentes; agem unicamente sob a impulsão da
necessidade de momento.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A morte. — A família. — A re-
ligião, ritos, cultos, divindades e sacer-
dócio.
Não é costume entre estes povos realizarem-se festas ou
sacrifícios antes ou depois do nascimento, nem tão pouco tomam
qualquer precaução para protecção da mãe a não ser o cessar
esta todas as relações com o marido.
A mulher tem o parto na sua própria habitação e muitas
vezes dentro do cercado ou no quintal da mesma, sendo ajudada
pelas mulheres da família com excepção da mãe.
A posição da parturiente é ordinariamente, assentada, um
pouco inclinada para traz, sendo costume após o parto, tomarem
banhos semicúpios em água muito quente, quási em ebulição.
A creança é amamentada durante bastante tempo.
Não ha a registar entre os povos desta tribu casos de infan-
ticídio, conformando-se em casos de aborto.
Em geral os pais não cuidam da educação de seus filhos.
Os rapazes quando chegam à edade própria são circuncisa-
dos, operação esta que é levada a efeito nas florestas, onde se
conservam até completa cicatrisação.
Nos povos desta tribu, só em casos isolados, é que as rapa-
rigas praticam o coito antes de atingirem a idade da puberdade.
O sentimento do amor não existe, assim como não existe o
celibato e a continência.
A prostituição é clandestina e muito reduzida.
#
Os pedidos de casamento são feitos com muita antecipação,
até mesmo antes da rapariga ter atingido a idade da puberdade.
DE ANGOLA
Si9
O pretendente apresenta-se aos pais da escolhida, fazendo-so
acompanhar de fazendas ajustando-se então o alambamento que
muitas vezes é julgado insuficiente e só quando o noivo leva o
exigido pelos pais é
que a noiva o acom- ___ __ __«_M___-!„ _.
panha para sua casa,
ou aguarda a puber-
dade.
Por morte do noivo
fica pertencendo a
noiva ao irmão ime-
diatamente mais ve-
lho.
Nenhum sentimen-
to determina a escolha
da mulher, é pura-
mente ocasional.
Entre estes povos,
o adultério da mulher
é punido com fins me-
ramente gananciosos,
pois que é esta obri-
gada a denunciar o
sedutor o qual é con-
denado a pagar Uma
pesada indemnização,
continuando no entan-
to a mulher a viver
maritalmente com o
seu legítimo possui-
dor.
O casamento é per-
pétuo não obstante os
adultérios constantes.
Predomina a poli-
gamia, tendo o homem
várias mulheres, todas na mesma condição, gozando no entanto
a primeira de mais autoridade. Não existe a poliandria.
Durante os esponsais há festejos, nos quais tomam parte os
parentes, vizinhos e gente de fora da sanzala.
Existe entre estes povos o impedimento de casamento para
Mussurongos — Soba do Ambrizete
320 POPULAÇÕES INDÍGENAS
certos graus de parentesco, assim como para determinadas
classes e castas, não podendo os descendentes de escravos (muai)
casar com descendentes de homens livres (ginfumu).
O marido tem sobre a mulher poderes absolutos, sendo esta
considerada uma verdadeira escrava.
As relações entre o genro e a sogra são de muito respeito,
evitando quanto possível avistarem-se; quando teem necessidade
de se falar é sempre atravez de uma sebe ou parede.
Existe o divórcio, tendo como causas determinantes a levian-
dade da mulher, a relutância em se sujeitar aos caprichos libi-
dinosos do marido e muitas vezes por desharmonia com as outras
mulheres.
No caso de repudio, os parentes da mulher restituem o valor
do alambamento do marido.
# #
A família é constituida pelas seguintes pessoas : pai, mãe,
filhos solteiros e casados e avós.
Não existem irmãos de sangue nem adopção.
Os filhos casados formam um novo lar, continuando contudo
a estimar os seus pais.
A autoridade dos pais é exercida sobre os filhos até estes
tomarem estado.
Os pais e os filhos amam-se mutuamente, manifestando estes
o seu respeito por aqueles ajoelhando-sc e batendo palmas.
Por morte do pai os filhos acompanham a mãe.
Na vida comum são igualmente proprietários dos haveres do
casal o homem e a mulher, sendo do produto do trabalho daquele
que se veste e alimenta a família.
Os homens aplicam se aos misteres de pescadores, oleiros,
ferreiros, carpinteiros de canoas, negociantes, marinheiros, car-
regadores, etc, e as mulheres ao cultivo das terras e aos serviços
domésticos.
Por morte do chefe da família o herdeiro dos seus bens é o
irmão mais velho, que igualmente tem de casar com as mulheres
do irmão, na falta daquele os herdeiros são os sobrinhos filhos
das irmãs.
A família é responsável e solidaria pelas dívidas e crimes de
qualquer dos seus membros ate á segunda ou terceira geração.
DE ANGOLA 321
As doenças são tratadas pelos curandeiros (n* ganga) que tiram
os remédios que administram dos cosimentos e infusões de várias
plantas e raízes. Entre outros medicamentos costumam os
curandeiros aplicar ventosas e pinturas de tacula.
*
# #
Não acreditam na morte natural, sendo chamado a inter-
vir um adivinho que descobrirá por meio dos seus sortilégios
quem foi o feiticeiro.
Após o falecimento é o cadáver envolvido em fazendas e
enterrado depois de previamente o terem deitado sobre uma
tarimba um pouco elevada do solo por baixo da qual colocam
um brazeiro até que se produz a desecação.
A cremação só é praticada nos cadáveres dos feiticeiros,
sendo as cinzas lançadas ao vento.
Não tem cemitérios* próprios, sendo os cadáveres enterrados
em posição horizontal, em covais feitos no recinto da libata perto
da cubata onde residem. Sobre o tumulo é costume colocarem
alguns utensílios e louças de què o finado se servia durante a
vida, tendo o cuidado cie previamente as inutilizarem de forma
que nãò aproveitem os profanos.
A viuva esposa de direito o irmão de seu marido, ficando os
órfãos ao cuidado de sua mãe a quem pertencem.
Como manifestação de luto pintam as mulheres os panos com
tacula e a cara e o corpo com azeite de palma e carvão, não se
lavando durante o tempo de nojo.
Entre os mussorongos o nome dado à alma humana é mo tom-
boria, sendo crença entre eles de que os feiticeiros depois de
matarem com feitiços as suas vítimas, as vão de noite vender
aos brancos para resuscitadas as embarcarem *.
1 Esta lenda vem de tempo da escravatura em que os navios negrei-
ros vinham à costa carregar escravos.
322 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Crêem estes povos na existência de um deus supremo — o
rízambi ia rípungo desu — que é citado pelos sobas, quando
presidindo a qualquer julgamento, proferem a sua sentença
Oriambo ria bobeie rízambi ia pungo desu. — Quinanque êno
aleque? o que desu ordenou foi. . . (qualquer máxima adequada
ao caso). Não foi meus filhos ? ao que assemblea responde em
unisono — ua una — é isso . . .
E este o único princípio geral regulador do Universo em
que o indígena acredita.
Entre os mussorongos existe também o cirito pelos seus ídolos
ou feitiços aos quais lhes são conferidos vários atributos, sendo
invocados em casos de doença ou suspeita de malifícios que
alguém lhes queira fazer.
Teem noções muito superficiais do bem e do mal, assim
como do pudor, do remorso e da caridade.
Os adivinhos rí ganga rígambo e os curandeiros rí ganga, a que
já fizemos alusão não são escolhidos ou recrutados, fazendo uso
desse mister quem quizer ou por essa arte tiver predilecção ; rece-
bem para tal fim, a instrução e educação dos profissionais que exer-
cem semelhantes artes. Gosam de poderes particulares sendo o seu
papel na vida política e social extraordinariamente preponderante,
estão ligados por votos, mas não são obrigados à abstinência nem
à castidade e os seus trajos são os mesmos dos da região.
Ha também entre estes povos o cirurgião da casca ríganga
ríeassa, o qual é chamado para administrar nos julgamentos a
prova da casca a que na altura competente nos referimos.
Entre os mussorongos existe, em algumas libatas, um voto, de-
nominado dos guimbas, composto de um número de vinte ou mais
rapazes, entre os 14 e os 20 anos, que vivem isolados, falam uma lin-
guagem especial, usam, como vestuário, suspenso da cintura uma
espécie saiote formado de colmo e pintam o corpo com cré (pembe)
diluido em água.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Gostumagens jurí-
dicas.
Não são nómadas levam vida mais ou menos sedentária.
A organização social comporta as seguintes classes : os sobas,
nobres, homens livres e escravos.
Popul, indígenas de Angola.
(322)
DE ANGOLA 323
Os curandeiros, adivinhos e feiticeiros, não obstante a pre-
ponderância que teetn entre os indígenas, não são considerados
nobres e pertencem à classe dos homens livres.
Os escravos são considerados como pessoas de família, go-
zando algumas regalias e direitos, sendo-lhes porém vedado a liga-
ção com mulheres livres. Não teem cubatas ou libatas especiais,
vivendo com suas famílias em comum com os seus senhores.
A organização social pode actualmente ser considerada como
uma monarquia constitucional, com um chefe ou soba, NVnmu
ia bata (senhor da libata), que governa assistido por um conselho,
constituído pelos nobres.
A sucessão dos chefes é por hereditariedade e por via colateral,
sendo herdeiro do trono o irmão mais velho, só na falta deste é
que o soba é eleito entre os nobres, em geral o que dispõe de
mais influência.
A mulher não pode ser soba.
Pouco tem adeantado os povos desta tríbu do contacto com
os civilizados, conservando na sua maior parte, os costumes
gentílicos; há no entanto muitos que falam, ainda que mal, a
língua portuguesa.
Não distinguem nem consideram mais que os outros o indígena
que recebeu uma educação europeia.
A propriedade da terra consideram-na como pertencendo ao
soba que dela dispõe.
A mulher, quer seja livre, casada ou escrava, é vedado pos-
suir em seu nome próprio, comprar ou vender.
Fazem comércio de importação e de exportação. Importam
mercadorias de toda a espécie e exportam café, azeite de
palma, coconote, ginguba, gergelim, borracha, marfim e outros
produtos.
Tem estes povos em vários pontos da região os seus mercados
chamados quitandas, onde se reúnem em determinados dias e aí
transacionam, trocando por fios ou enfiadas de milhares de
contas de coral matari, buanza — moeda corrente — fazendas,
galinhas, cereais, farinha de mandioca, frutas e outros géneros,
assim como garrafas e meias garrafas de aguardente e frascos
de genebra.
324 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como medidas só usam a braça não conhecendo medidas de
peso.
Como vias de comunicação, servem-se só de trilho e a pas-
sagem pelos rios é feita em pequenas canoas.
Não existe uma ou um conjunto de leis definindo e classifi-
cando os delitos ou infrações, as penas são estabelecidas pelo
soba e pelos conselheiros em audiência pública, variando a sua
gravidade conforme a punição dos julgadores, sendo no entanto
as infracções definidas pelo costume.
O tribunal chamado fundação é constituído pelo soba que
preside, e pelos seus conselheiros, os quais dão o seu veredictum
independente de qualquer influência do chefe.
O julgamento é público, compete ao soba proferir a sentença
que é deliberada em conferência secreta dando a esse acto a
denominação de beber a agua.
O acusado pode defender-se ou nomear advogado, ale-
gando as razões que militarem em seu favor contra a parte
queixosa.
A prova do crime é feita por testemunhas, com debates entre
os advogados e os julgadores.
Além da prova testemunhal existe também a prova da rikassa,
vulgarmente designada da casca, que em pouco difere da prova
designada pelo mesmo nome, usada pelos cabindas.
Algumas vezes antes do julgamento e para descobrir o ver-
dadeiro criminoso há a intervenção do adivinho.
Outrora, antes da ocupação desta região, existia entre eles
a pena de morte por meio de decapitação, assim como prisões em
troncos aos pés e ao pescoço; actualmente só existem as penas
pecuniárias.
Há contudo uma excepção para os acusados a quem se
administra a casca e que por virtude desta prova dão indícios já
de pouca vida, acabando com êle a machado e à cacetada.
.VFtr'/- •
CAPITULO XIV
AMBOINSO)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica desta tríbu. — Sua ori-
gem. — População.
Os Amboins ocupam toda a floresta da região designada pelo
Amboim, limitada ao norte pelo rio Nhia, ao sul pelo Cuvo, a
leste pelo Cupaelo e ao este pelos rios Longa e Culohonjo.
Segundo as tradições desses povos e o que nos ensinam os
seus usos e costumes são eles um produto do cruzamento das
tribus descendentes das quo invadiram a província pelo norte e
nordeste com as tribus Bimbundo, no entanto as primeiras mi-
grações para esta região vieram dos povos do interior de Loanda,
parecendo que outras migrações se seguiram vindas do sul, das
tribus Bimbundo.
São hoje de índole pacífica, robustos, musculados, bem cons-
tituídos e de estatura mediana.
A coloração da pele é em geral castanha um pouco carregada ;
a forma dos olhos oval e a cor da iris igualmente castanha
escuro.
Como deformações artificiais ou mutilações étnicas, aguçam
os dentes incisivos superiores e perfuram os lóbolos das orelhas
e as narinas.
(l) Forneceu valiosos elementos para o estudo desta tríbu o capitão-
mór do Amboim o senhor Henrique de Carvalho.
326 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes.— Ciências. — Facul-
dades intelectuais.
No que respeita a cuidados com a higiene, usam lavar a boca,
esfregando os dentes com um bocado de madeira de manhã e
sempre que tomam qualquer refeição. É costume igualmente
lavar a cara, enchendo a boca de água que em seguida deitam
em uma das mãos, com a qual esfregam a cara.
Untam-se com azeite de palma a que juntam a tacula.
Com relação aos penteados usados, os homens usam o cabelo
curto, e as mulheres em trancinhas empastadas com azeite de
palma para cada um dos lados da cabeça.
Como vestuário usam o comum às tribus de raça negra, no
entanto já alguns homens usam camisas, casacos e coletes.
Existe a tatuagem propriamente dita (cangin) feita com
uma agulha e o látex da borracha queimada. Alem da tatuagem
existem igualmente as cicatrizes étnicas, feitas com agulha e
uma faca, e constituidas por diversos bordados nas costas, nos
braços ou no peito, ou ainda por meio do suco duma planta que
chamam dondarinho, que cáustica a pele, deixando marcas in-
deléveis.
Raramente os homens usam qualquer espécie de adornos que
são especialmente reservados às mulheres que usam braceletes
de missangas nos braços e nas pernas, brincos, cordões ao pes-
coço com diversos amuletos, e diademas de búzios na cabeça,
bem assim como cintos de missangas em cores mais ou menos
bem combinadas.
A base de alimentação é vegetal e constituída principalmente
pelas papas ou massa de farinha de milho, que habitualmente
fazem acompanhar de um cosinhado de ervas temperadas com
azeite de palma ou então com carne de cabrito ou porco, quando
a teem.
Comem a carne mesmo em estado de putref acção, aproveitando
todos os animais mortos, servindo-lhes qualquer, como cobras f
lagartos, etc.
Como excitantes empregam o gindungo.
Tomam em geral duas refeições por dia preparadas pelas
DÈ ANGOLA
327
mulheres comendo os homens à parte destas, que tomam as
refeições conjuntamente com os filhos; isto se a mulher é nova
e com pouco tempo de casada, porque sendo já velha come
juntamente com o homem.
A habitação tipo é a cubata de base circular, assente sobre
o solo, sem janelas com uma única porta, construídas de varas
entrelaçadas, barradas, e cobertas de colmo.
Tipos do Amboim
Não obedece a disposição alguma a distribuição das cubatas
na povoação ou libata, esta é que tem de ficar em local dominante
e o mais possível inacessível.
A principal ocupação desses povos é a agricultura, cultivando
o milho, a mandioca e o feijão, e preparando o café que colhem
dos cafezeiros expontâneos. Nas suas culturas empregam as
enchadas gentílicas, o machadinho, e a catana.
No Amboim, propriamente dito, região pouco propícia à
creação de gado bovino, prevalece a criação de animais domés-
ticos, como a galinha, o porco, a cabra e o carneiro.
Estes povos são pouco industriosos, no entanto manifestam
habilidade no fabrico de objectos de uso ordinário, especialmente
louça de barro cosido que fabricam com relativa perfeição,
328 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Alem disto produzem pequenos artefactos de verga, bancos,
cadeiras, zagaias, cintos, etc.
Falam um dialecto de Kimbundu.
As danças são como as tradicionais da raça negra, de mo-
vimentos compassados e dengosos. Os instrumentos de musico
usados são : o conhecido batuque, constituído por um tronco inte-
riormente cavado, em que, a cada um dos lados adaptam uma pele ;
a puita constituida igualmente por um tronco cavado interiormente
mas com pele em um só dos lados a qual adaptam uma^corda
que friccionada faz vibrar a pele produzindo um som similhante
ao mugir dum touro ; o Kindende, espécie de rabeca de uma só
corda em que a caixa sonora é constituida por uma cabaça, e
que é tocada por uma vara que substitue o arco; e o Izupa, em
forma de clarinete.
Em trabalho de escultura de madeira fazem pequenos mani-
panços, pentes, bancos, cadeiras, mocas, etc.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — A iniciação
O casamento. — A família. — A morte. —
Ritos, cultos, e sacerdócio.
Antes do nascimento não se pratica qualquer cerimónia, apenas
em seguida ao parto, o pai tem que presentear com qualquer
cousa as pessoas que o auxiliaram.
Quando a creança nasce dá-se-lhe de comer o que em igual-
dade de circunstâncias comeu o pai. Esta cerimónia é feita pelo
pai ou pelos avós paternos que em segredo conservam o conhe-
cimento da comida que primeiro lhe deram e tem por fim uma
espécie de prova se o recemnascido é ou não filho do presumido
pai, pois teem como certo que se o não fôr, aceitando o alimento
inicial, morre pouco depois.
É nesta ocasião que a assistente mais velha pergunta ao pai
o nome que quer dar ao filho, escolhendo este habitualmente o
nome de um dos seus ascendentes que segundo a tradição mais
se tenha distinguido.
Poucos ou quási nenhuns cuidados lhe merecem os recemnas-
cidos prestando-lhes os indispensáveis para os manter vivos, aos
quais como nas restantes tribus da raça negra, é uso começar a
dar os alimentos usuais dos adultos em tenras idades,
Í)E ANGOLA 32§
Entre os Amboins existem as práticas de iniciação para ambos
os sexos.
Nos indivíduos do sexo masculino é constituída pela circun-
cisão. A circuncisão pratica-se uma vez em cada ano pelo ca-
cimbo (estação seca) sujeitando-se à operação aqueles que o
desejam e em qualquer idade, sendo costume a família mandar
os filhos quando os encontra na" idade mais conveniente para
suportarem a operação.
O operador é um dos mais considerados Kimbandas da libata
ou das libatas próximas, e a operação pratica-se em lugar afas-
tado da povoação no interior de qualquer floresta. No dia de-
signado o soba entrega uma cadeira ao Kimbanda operador, que,
acompanhado dos pacientes se dirige para o local escolhido.
Desde esse momento, ao soba, aos pais dos circuncisados e a
estes é absolutamente vedado ter relações sexuais emquanto não
estiverem completas todas as cerimónias de iniciação. De ordi-
nário os pacientes permanecem 30 a 40 dias no mato para cica-
trização das partes operadas. Designado pelo Kimbanda o dia
em que os operados devem regressar à libata, cada um deles corta
um pau de lenha e com o operado à frente regressam à povoação.
O soba previamente prevenido manda preparar uma refeição que
se toma após a entrega dos paus de lenha seguindo-se depois a
distribuição do vinho de palmeira e com ela uma orgia que vai
terminar nas libatas junto da família dos iniciados.
A iniciação das raparigas cujas práticas não podemos minu-
ciosamente averiguar, parece que consiste na rotura do hymen
com uma faca.
Quando um homem pretende casar principia por oferecer
qualquer coisa à rapariga escolhida declarando-lhe a sua pre-
tenção. Se ela recebe o presente é porque está disposta a aceitar
o casamento e então o noivo arranja um amigo, com quem se
apresenta à mãe da noiva, para que lhe exponha a pretenção, con-
servando-se o pretendente calado. Chamam-se a rapariga e as tias,
e ficando assente o casamento, efectiva-se vindo o amigo que acom-
panhou o noivo e uma mulher buscar a noiva, entregando nessa
ocasião à família da noiva o penhor do contracto do casamento
(alamb amento).
Entre estes povos existe a poligamia.
O homem tem sobre a mulher, sua consorte, direitos de
senhor absoluto.
As mulheres de um mesmo marido teem iguais direitos, salvo
22
330 POPULAÇÕES INDÍGENAS
a mais antiga a quem as outras devem respeitos e a quem o
homem costuma consultar sobre todos os negócios do casal, não
podendo casar com nova mulher sem o seu consentimento.
A mulher incumbe especialmente tratar dos filhos, dos
arranjos domésticos e das lavras.
Os pais pouco direito teem sobre os filhos, competindo-lhes
no entanto, a obrigação de os cuidar e defender pelos que são
responsáveis perante a família da mulher. Quem tem direitos
sobre os filhos de um casal, são os tios maternos que intervém
em tudo que lhes diz respeito.
Existe o divórcio, sendo variadíssimas as causas que o de-
terminam, no entanto a mais vulgar tanto da parte do homem
como da mulher é a esterilidade. E também causa do divórcio
muito frequente, a morte dos filhos, neste caso, àlêm do divórcio,
o cônjuge, que o Kimbanda indica como causador da morte, tem
ainda de pagar a outro uma indemnização.
A mulher divorciada livre do vínculo que a prendia, facil-
mente casa outra vez; porem, se a opinião pública lhe é diversa
na questão do divórcio dificilmente encontra homem que a aceite.
Os filhos geralmente acompanham a mãe, visto pertencerem
ao clan materno como é de uso nas tríbus da raça negra.
O adultério é frequente. Quando praticado pela mulher é
esta chamada em primeiro logar pelo marido, e se averigua que
ela foi vítima de violação ou cilada procura-se o culpado que é
condenado a pagar ao marido uma indemnização cuja impor-
tância varia segundo as circunstâncias, continuando o marido e
mulher a viver em bôa paz; se a culpa está do lado da mulher,
o que geralmente esta confessa, tem de dizer os motivos que a
levaram a proceder assim, realisando-se, neste caso, um julga-
mento, que termina sempre pelo divórcio, se o motivo do pro-
cedimento da mulher foi o de não ter filhos; mas se o motivo
que levou a mulher ao adultério não é justo, segundo eles, então é
em geral despresada até pela própria família, sendo muito raro
tornar a casar. Em tempos obrigavam-na a ir trabalhar para
pagar uma indemnização. Hoje esse costume caiu em desuzo.
Em geral o indígena dispõe do que tem, emquanto vivo, dis-
tribuindo os seus bens pelas mulheres, de forma que quando
morre está a herança naturalmente repartida; no entanto se
mais alguma coisa deixou ou morre solteiro, pertencem os bens
aos irmãos ou tios e sobrinhos maternos.
Quando alguém está doente vai um parente procurar um
DE ANGOLA 331
Kimbanda (médico feiticeiro ©u adivinhador) para zambular
(adivinhar) o motivo da doença, que atacou o parente; espíritos
maus, feitiços, acidentes, etc, depois do que se chama outro
Kimbanda o qual fica sendo o assistente, e principia a tratá-lo.
Os remédios empregados são em geral folhas de plantas, raizes,
etc. ; algumas delas com virtudes terapêuticas comprovadas,
mas na cura das doenças entra em grande parte o charlatanismo,
a feiticeria, e a sugestão, com a qual na verdade obteem muitas
curas, chegando a persuadir o doente de que lhe extraíram da
cabeça, estômago, etc, objectos variadíssimos, como balas, en-
xadas, pedras. Estes objectos são mostrados na própria ocasião
da extracyão ao doente, que fica completamente capacitado do
engano feito pelo Kimbanda.
Não consideram a morte natural ainda que o indivíduo tenha
100 ou mais anos ; houve sempre uma causa : feitiço, etc.
Em seguida à morte os que se encontram presentes começam
a gritar andando em várias direcções de volta da cubata, par-
tindo outros a avisar os parentes de longe.
O morto é então lavado sendo-lhe metido no ânus um rolo de
pano e o consorte, homem ou mulher tem então que se espojar
na lama que a água da lavagem fez no chão depois de que é o
cadáver ligado com panos de forma a ficar de cócoras posição
em que é metido na sepultura.
A cova tem a forma circular e a altura necessária ao cadáver,
sendo depois tapado com uma lage ao nível do terreno sobre o
qual deitam a terra extraída da cova, colocando sobre a terra
uma camada de pedras soltas e acamadas.
O enterro não vai àlêm de 24 horas não podendo o soba da
libata comer emquanto não enterrarem o morto. Se a fraqueza
o aperta come qualquer coisa mas para isso desvia-se para fora
da banza, ocultando-se.
Crêem, e quando algumg calamidade os ataca, o Kimbanda
chamado Sembo ou N'Gana Carambolo, espécie de sacerdote e
encarregado dos sandes e relíquias do sobado que sempre estão
guardadas em cubata especial ao lado da do soba, ali vai im-
plorar e fazer prece, mas só êle, sendo interdito a qualquer, lá
entrar ou tocar. Pelo mesmo motivo também vai rogar às se-
pulturas dos sobas mais importantes para que não deixem perder
a libata.
A alma (quilalo ou cazambi) segue o corpo para a sepultura,
saindo dali sempre que lhe apraz, umas vezes para exigir dos
332 POPULAÇÕES INDÍGENAS
vivos qualquer cousa: comer, beber e até panos; outras vezes
para exigir festas, reparações por qualquer acto que em vida ou
depois de morto contra ele praticassem, regressando logo que
fique satisfeita. Assim muitas vezes se vê em redor da libata
tiras de panos amarrados nos ramos, outras vezes uma panela de
carne, indo uma bruxa oferecer e espalhar os bocados pelo chão>
com o que bastante lucram os esfomeados cães que seguem de
perto, engulindo os bocados, que no dizer de gentio foram comidos
pelos cazambiz. Emfim sempre que atribuem mal ou doença ao
quilulo, teem que satisfazer o que pede, rogando-lhe que fique
socegado, que nem volte a apoquentar nem a fazer mal.
A todos os mortos, como atraz se explica das velhas, tem que
se lhes fazer a festa da garapa, matando se qualquer cabeça de
gado; se porém a comemoração é a da morte de algum soba
importante, manda o rito que seja sacrificado um homem que
será comido na festa, sendo a cabeça oferecida ao soba morto.
Esta de canibais tem-se feito na Tunda, e no Amboim não se
pode pôr em dúvida que o tenham feito, havendo quem o afirme
ter-se efectuado no Assango há pouco, por morte do soba
Sacanga.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Regime econó-
mico. — Propriedade. — Costumagens ju-
rídicas.
Estes povos levam vida sedentária, sendo pouco propensos,
mesmo a sair da sua terra.
Existem castas e classes. A organização social admite: os
sobas, os kilambas (os do seu conselho), os homens livres e os
escravos.
A organização política é constituída por estados ou sobados
governados por um chefe, o soba, que é assistido por um con-
selho. A estes estados estão subordinados outros mais pequenos
com uma organização em tudo idêntica à do estado a que estão
sujeitos.
Os chefes dos estados são eleitos de entre os parentes dos
chefes falecidos, e exercendo grande preponderância na escolha
as mulheres já idosas, indicando os defeitos ou qualidades dos
candidatos.
DE ANGOLA 333
Como já dissemos os sobas são assistidos por um conselho,
composto de certo número de macotas ou kilambas que residem
junto do chefe, e que são: o N'Gana Carombolo, encarregado
das relíquias do sobado; o kimbungo, ajudante dcf soba que é
um seu sobrinho; o N'Gana Dengue, irmão do soba; o N'Gana
Kessongo; e o N'Gana Kapingana. O N'Gana Kessongo é sempre
um escravo idoso da confiança do soba que o acompanha, se-
guindo-o atrás, uma espécie de mordomo mór e confidente.
A organização política não pode ser classificada de autocrata
ou ditatorial, e o soba com o seu conselho, competindo-lhe in-
terpretar as leis ou costumes e impor a sua execução, tem sempre
em mira conservar os usos, procurando resistir ou intravar
qualquer inovação que o povo queira introduzir.
São muito limitados os direitos dos sobas, mais ou menos
sujeitos ao que o seu conselho lhes impõem. Quanto aos seus
deveres, tem por obrigação representar o povo, presidindo ao
conselho, defendê-lo perante extranhos até ao sacrifício, sendo
tanto mais estimado quanto mais diplomata ou sofismador seja.
Os seus rendimentos limitam-se à parte que tem na caça que se
abate na área da sua jurisdição, e ao que lhe compete na resolu-
ção das questões e ofertas feitas.
Quando da morte de um soba, toda a libata se agita em uma
perfeita orgia durante alguns dias. A criação que existe é aba-
tida e consumida; os valores móveis do soba são repartidos; e
em tempos, conta-se que até as crianças, se as mães se descui-
davam, eram apanhadas e vendidas.
Afirma-se que na região da Tunda, quando da morte de um
soba, o enterro deste aguarda que os caçadores vão em pro-
cura de um homem que apanhado descuidado escolhem para
vítima, decepando-lhe a cabeça que será sepultada com o soba.
Igualmente se conta que no Pungo é de uso o sacrificarem-se
duas crianças para serem sepultadas com o soba afim de no
túmulo ficarem ao seu serviço, uma para água, e outra para a
lenha.
Nesta mesma região no Pungo o soba ao tomar posse do seu
cargo, depois da eleição, e ao assentar-se tem que sacrificar duas
crianças uma de cada sexo, que são colocadas ao lado da cadeira
e que este ao sentar-se mata com duas facas que impunha em
cada uma das mãos.
Ao soba é defeso falar ou imitir opinião que não seja na pre-
sença dos kilambas, por isso sempre que os seus vassalos lhe vem
334 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pedir a sua opinião ou algum favor, o soba diz-lhe sempre que
volte no dia em que reúne o seu conselho.
Existe o comércio de permuta, constituindo a sua moeda os
produtos das suas culturas ou da industrialização daqueles que
colhem das árvores espontâneas.
A propriedade do solo pertence ao sobado, eompetindo ao
soba dispor dela, para o que os seus súbditos, quando pretendem
fazer uma nova plantação, escolhem o local, e comunicam no ao
soba.
Existem os contractos de locação, de compra e venda, e de
empréstimo, feitos verbalmente mas sempre perante testemunhas.
As questões ou causas são julgadas pelo conselho dos kilambas
presidido pelo soba, onde se discutem com toda a amplitude, ou-
vindo testemunhas e advogado do réu, e produzindo-se as provas
Proferida a sentença fica a liberdade ao condenado de pagar
ou não, mas sempre o faz sob ameaça do outro litigante lhe
fazer feitiço, cujo sentido lato quer dizer, fazer mal por todas
as formas e feitios,
CAPITULO XV
TRÍBTJ BIMBUNDO
CACONDAS, BIENOS, BAILUNDOS, HUAMBOS, SAMBOS, GANDAS
HANHAS, GALENGUES, SELES, MUSSUMBES E CtUILENGUES
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Origem destes povos. — Sua situação geo-
gráfica. — População.
A semelhança dos usos e costumes das tríbus que vamos estu-
dar, sobretudo no que diz respeito à língua falada que é o m'bundu,
apenas com algumas variações fonéticas de tríbu para tríbu e em
especial para os Quilengues e Galengues levou-nos a incluir em
um só grupo, Bimbundo (plural de- nVbundo) as tríbus acima
indicadas, a fim de evitar fastidiosas repetições no estudo dos
usos e costumes das populações indígenas de Angola, que por
sua natureza já bastante árida é. E tanto mais que, as razões
de existência da maioria destas tríbus tem a sua explicação uni-
camente, em uma questão de ordem política, visto que são pro-
venientes da separação de sub-estados que descontentes se
tornaram independentes dos chefes gentílicos a que estão subor-
dinados.
Parece que estes povos são descendentes dos que fizeram a
sua entrada pelo norte da província, e que os seus ascendentes
vindos do Congo foram os primeiros invasores do planalto de
Benguela. A esta invasão se veio juntar a dos povos cuja emi-
gração se fez por sudeste, nordeste e sul da província. Da fuzão
de parte da tríbu cuja emigração se deu pelo norte, pelo sudeste
336
POPULAÇÕES INDÍGENAS
e nordeste, resultaram os diversos tipos que actualmente constituem
as tríbus em estudo, salvo para os Bimbar, uma espécie de classe
entre os Cacondas, que são o produto do cruzamento daqueles
Bimbundu — Mulher Galangue
povos com os antigos degredados do presídio que durante muitos
anos existiu em Caconda.
Estas tríbus ocupam extensos territórios no distrito de Ben-
guela entre a costa e os rios Cuanza e Cubango, estendendo-se:
os bienos pela região do planalto, limitando a leste pelo Cuanza,
e a norte e oeste pelo Cunhinga e a sul pelo Coquema ; os bai-
DE ANGOLA 337
lundos, do rio Cutato para àlêm do Queve; os seles, deste rio à
costa; os mussumbes, ao norte destes, entre a costa e o Cuvo ;
os hanhas, ao sul dos seles entre a costa e a Ganda; os gandas
nesta última região; os Huambos, entre os rios Caiae e Cunene;
os sambos, entre este rio e o Cubango; os cacondas ao sul destes;
os quilengues na região do mesmo nome; e os galengues ao sul
dos sambos entre os rios Cunene e Cubango.
A vasta região ocupada por estes povos e em especial a parte
planáltica é talvez aquela da província onde a densidade da
população indígena é maior, e que tende a aumentar devido por
certo ás suas condições climatéricas.
Os povos destas tríbus são na maioria bem constituídos,
robustos, musculados, joviais e expansivos. A má índole e as
qualidades de ladrões, traiçoeiros e assassinos, que as caraterisava
emquanto se não efectuou a ocupação, hoje não existe, podendo
classificar-se das mais laboriosas da província.
São de estatura mais que regular e aprumados.
A côr da pele é de preto retinto entre os que habitam o lito-
ral; entre os povos que habitam a parte planáltica, a côr da pele
é menos retinta, nas regiões mais expostas aos raios solares, e
abronzeada nas menos expostas.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Misteres. — Ocupações. —
Artes. — Sciências. — Faculdades intele-
ctuais.
Estes povos, como em geral a maioria dos que povoam a
província, teem pouco cuidado consigo próprio, não praticando
exercícios especiais que não sejam as viagens que fazem para
permutarem os seus géneros, e lavando-se raras vezes. Em com-
pensação merece-lhes especial cuidado o tratamento da boca e
dentes que manteem muito limpos.
Estes povos usam untar o corpo com azeite de palma.
338 POPULAÇÕES INDÍGENAS
São variadíssimos os penteados usados por estes povos de que
passamos a dar uma ideia tanto quanto possível rigorosa e apro-
ximada. Os homens da tríbu em estudo usam o cabelo cortado e
pouco comprido; somente os quilengues fazem excepção a esta
regra e usam vários penteados, ora solto, ora rapado, deixando
ficar uma tira no alto da cabeça, ora com cortes variados. As
mulheres em geral, usam torcer o cabelo, deixando-o cair sobre
o pescoço e ombros em canudos semelhante a tranças, ás vezes
fixam nas extremidades das tranças umas poucas de voltas de
arame amarelo ; no entanto algumas mulheres solteiras usam o
cabelo solto, e grande número daquelas que pertencem ás tríbus
caconda, bieno, e bailundo usam-no cortado rente. Dos penteados
os mais caraterísticos são os das mulheres quilengues, que cos-
tumam fazer três bandós, sendo um no alto da cabeça e dois nos
lados presos atrás por taxas amarelas.
Nesta confecção de penteados usam ferros e pentes adquiridos
no comércio ou por eles fabricados; é vulgar trazerem estes
enfeitando a cabeça.
O vestuário é o tradicional pano, entre estes povos um amplo
pano, cobrindo-lhe as pernas até ao tornozelo ou mesmo até ao
chão, suspenso em volta da cintura para os homens, e por cima
dos seios e por debaixo dos sovacos, para a maioria das mulheres.
Trazem o tronco nu ou cobrem-no com um outro pano ; alguns
homens vestem camisas, camisolas, casacos, etc, e algumas mu-
lheres, principalmente as raparigas, trazem o tronco nu, enco-
brindo os seios com um lenço que amarram por debaixo dos
sovacos. O cobertor de lã encontra-se em uso, mais ou menos
entre estes povos, com que cobrem o tronco nas manhãs frias.
Nestas tríbus, e principalmente entre os cacondas encontram-se
indígenas trajando calças.
Em geral trazem a cabeça descoberta e andam descalços; no
entanto, está mais ou menos vulgarizado o uso do chapéu e cal-
çado. Em viagem todos os indígenas costumam usar alpercatas
de couro.
Os homens, a não ser em práticas de feitiçaria, não usam
adornos, nem fazem a aplicação de cores no corpo; é vulgar o
costume de uma fita de retrós em volta do pescoço em que sus-
pendem uma medalha adquirida no comércio europeu. As mu-
DE ANGOLA
339
lheres é que em geral se enfeitam com missangas e contarias,
que trazem ao pescoço, nos pulsos, artelhos e cintura. Algumas
Tipos Bimbundu (Chineca — Caconda)
mulheres seles, hanhas, cacondas e quilengues, também usam
nos pulsos e nos artelhos pulseiras feitas de arame amarelo.
No que diz respeito a tatuagem, praticam-na, nos rostos, nas
costas e no ventre, quer por pequenos cortes, quer por pontuados
de agulhas embebidas em líquidos negros que se tornam inde-
léveis.
340 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os seles, hanhas e gandas usam as orelhas furadas, e alguns
dos povos daquela primeira tríbu costumam igualmente furar o
nariz.
A base de alimentação é vegetal constituída pelas papas de
farinha de mandioca ou de milho a que já nos referimos no
estudo das outras tríbus e cuja preparação em nada difere. Além
das papas, alguns destes povos, como os bailundos, usam umas
outras feitas de farinha de milho, pisada com o grão molhado,
para se lhe separar a casca, e uma espécie de pão ou bolo igual-
mente de farinha de milho, amassada e colocada entre folhas
verdes de bananeiras, que leva ás brazas.
Comem feijão cosido em água e sal, a que ás vezes juntam
azeite de palma; esperregado de rama de mandioca ou de abó-
bora; gafanhotos, lagartos e alguma caça; de longe em longe
carne de porco, e só por motivo de festa abatem bois; o peixe
que em geral preparam limpando-o, espetando-o em um pau, e
assando-o sem sal, que pouco a pouco comem cosido.
Não aproveitam o leite de vaca nem o de cabra.
Como tempero fazem uso do sal e do azeite de palma.
No que diz respeito a bebidas, usam a que obteem da fer-
mentação da farinha de milho com o auxílio do luco germinado
que reduzem a farinha e que chamam kimbombo ou com uma
raiz cortada em bocados ou mesmo a farinha do próprio milho
grelado, que denominam kissanga.
Em geral teem uma só refeição por dia ao cair da tarde ou
à noite. Os homens não comem com as mulheres, nem com os
sogros, tomando primeiro a refeição os homens e só depois as
mulheres, os homens comem em geral no jango (cubata que serve
de uma espécie de club da sanzala) e as mulheres nas cubatas.
Fazem uso dos fósforos, fumam o tabaco e o cânhamo, em
cachimbos e muitos cheiram igualmente o tabaco, para o que
o trazem numa caixa que usam suspensa à cintura.
*
O tipo de habitação é a cubata de forma circular ou retan-
gular, sendo a mais geralmente usada esta última.
DE ANGOLA 341
A cubata entre estes povos apresenta-se nas sua linhas gerais
com um aspecto de maior elegância, do que as dos povos do
norte da província, as linhas de água são mais inclinadas e as
paredes na maioria são barradas e muitas com aparência de
caiadas ou pintadas, se não no todo, pelo menos em uma faixa
junto da cobertura ou do solo pelo emprego de barro branco ou
vermelho.
A distribuição das cubatas na libata (aldeia) não preside
qualquer traçado geométrico ou simétrico, visto que, determinado
o local da libata os homens construem a sua cubata agrupando-se
por famílias. As libatas são sempre cercadas por palissadas de
pau a pique que na maioria das vezes, pegando de estaca se
transformam em palissadas de árvores. Estas palissadas em
algumas libatas são fechadas por portas características e que não
é fácil de abrir quando fechadas; são elas constituídas por dois
ou três troncos suspensos na parte superior por uma charneira
que lhe permite um movimento de rotação em volta dela, de forma
que a porta assim constituída, se abra de fora para dentro. Estas
portas que se conservam abertas por meio de forquilhas cravadas
no solo, obstando a que tomem a posição vertical, fecham-se
atravessando-lhe na parte inferior um tronco que serve de tranca.
Como a libata é composta por um certo número de famílias,
que vivem por grupos, separadas as cubatas de famílias diferen-
tes por palissadas, a libata torna-se por vezes um complicado
labirinto de corredores de onde ás vezes não é fácil sair. Esco-
lhem de preferência como local para a construção das libatas, os
sítios altos e perto das nascentes dos rios, não obedecendo a
princípios especiais de tradição senão o local das embalas dos
sobas.
Nas libatas ha sempre uns telheiros de cobertura de colmo,
chamado jango, uma espécie de club, onde reúnem os homens da
libata, a palestrar, fumar e beber.
Entre estes povos as cubatas teem em geral três e quatro
divisões e nalgumas veem-se já pequenas janelas; no que diz res-
peito a mobiliário são dignas de menção as camas de madeira com
os seus colchões feitos de tiras de couro por eles construídos,
hoje bastante vulgarizadas principalmente entre os huambos e
sambos; àlêm da cama constitue o mobiliário, bancos e mesmo
cadeiras, ás vezes uma arca, e o trem de cosinha, constituído por
panelas de barro e colheres de pau.
342
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Estes povos exercem atualmente a agricultura com uma rela-
tiva intensidade, visto que dedicando-se anteriormente à indústria
e comércio da borracha, com a baixa desta viram-se força-
dos a lançar mão
■I '-'-1 da agricultura.
Neste mister, na
parte referente à
preparação de ter-
renos e semen-
teiras são das
atribuições dos
homens, coadjuva-
dos pelas mulhe-
res, na parte refe-
rente à colheita dos
frutos, pertence
ela quási que ex-
clusivamente à
mulher.
Das tríbus em
estudo as mais
agrícolas são : os
cacondas, bailun-
dos, huambos e
hanhas.
4s culturas do-
minantes são : o
milho, o feijão,
a abóbora, a ba-
tata, a jinguba, a
batata doce, a mandioca, a massambala e o tabaco.
A agricultura exercese por processos rudimentares e sim-
plesmente com o auxílio das pequenas enxadas gentílicas e ma-
chados.
Quási todos estes povos exercem a caça; os hanhas, por certo
os melhores caçadores, exercem-na por assim dizer, por arte, e
em batidas que duram dias; os restantes exercem a caça em
Musseles — Um soba e sua família prisioneiros
DE ANGOLA 343
menor escala em geral por ocasião das queimadas; os que exer-
cem menos são os quilengues.
Para a caçada característica das queimadas, reune-se um
certo número de caçadores acompanhados de cães, que lançando
fogo nos três pontos cardeais do mato a queimar vão esperar a
caça no ponto livre, à medida que ela vai saindo, espavorida e
desnorteada, a vão abatendo.
Empregam na caça a arma de espoleta, pistão, a seta e a moca.
A pesca entre estas tríbus é principalmente exercida na costa
pelos mussumbos nas suas características canoas (bimbas) — cons-
truídas em forma de leque de troncos de um arbusto aquático
muito leve que é vulgar encontrar na foz dos rios, e com as quais
se avantajam às vezes ao largo no exercício desta profissão, e
pelos bailundos, bienos, cacondas, huambos e outros nos pequenos
rios da região planáltica, mas em pequena escala, apenas para a
sua alimentação. Para a pesca usam uns cestos de forma cónica
de malha estreita, tendo de comprimento dois ou três metros, e
um diâmetro de boca inferior a um metro, colocam este cesto a
jusante do rio, com a abertura para o montante, onde removem
a água turvando de forma que o peixe desnorteado e cego arras-
tado pela corrente do rio vai meter-se nos cestos. Empregam
igualmente lançar à água uns tubérculos ou folhas de uma árvore
pisada, que tem a propriedade de atordoar o peixe, vindo à su-
perfície podendo assim apanhá-lo à mão.
Todos estes povos se dedicam à criação de gado, fazendo-o
em maior escala os quilengues, os gandas e os hanhas ; as tríbus
da zona planáltica são as que criam menos gado.
Os quilengues, gandas e hanhas dedicam-se sobretudo à creação
de gado bovino e caprino; os bienos, bailundos, huambos e sam-
bos principalmente à creação de gado suino.
No que diz respeito às indústrias que estes povos exercem,
merece menção a indústria metalúrgica, distinguindo-se : os bai-
lundos, bienos, huambos e sambos no fabrico de enxadas, zagaias,
em concertos de armas de fogo os quilengues, em anilhas e pul-
seiras os hanhas e gandas.
No fabrico de esteiras e quindas (cestos) distinguem-se os
bailundos, bienos, huambos e sambos, e principalmente os cacon-
das que imitam qualquer objecto de arte que se lhes dê para
padrão.
Estas tríbus todas, mais ou menos, exercem as indústrias
rudimentares de olaria, e de moagem por trituração.
344
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Exercem a indústria de tanoaria, fazem a exploração da cera
e do mel, da goma copal e da borracha, conhecida por borracha
das ervas, hoje em muito pequena escala devido à baixa de
preço, e fabricam o azeite de
J! palma, principalmente os hanhas
'. 1 eos seles.
Estes povos falam o m'bun-
du, a língua falada por maior
número de tríbus do distrito de
Benguela, e a que nos referire-
mos mais detalhadamente, como
fizemos para o kimbundo.
pronúncia
O alfabeto n^bundu pode
compôr-se de vinte letras a sa-
ber : a, b, d, e, f, g, h, i, j, k,
m, n, o, p, r, s, t, u, v, y.
Os a, e, f, i, m, n, o, p, q, t,
u, teem o mesmo som que em
português.
Os b, d, q,j, são sempre pre-
cedidos de um som nasal.
Emprega-se o h para indi-
car que a sílaba que principia
por aquela consoante deve ser aspirada.
O j tem sempre o mesmo som áspero de degê.
O k tem sempre antes de qualquer vogal o valor de c portu-
guês antes de a, o, u.
O r tem sempre o som brando do r em português entre vogais.
O s tem o som sibilante do s português no princípio das pa-
lavras ou depois da consoante.
O v tem um som compreendido entre o b e o v português.
Tipo Mnssumbe
DE ANGOLA
345
SUBSTANTIVOS
Género
Em m'bundu não se forma o género por alteração na palavra.
Indica-se o género pelos adjectivos :
Ulume ou ondue (para animais grandes do género masculino).
Otchilume ou Oka~
tchilume (para animais
pequenos do género
masculino).
Ukai ou omange
(para animais grandes
do género feminino).
Otchipange ou oka
tchipange (para animais
pequenos do género fe-
minino). Há ainda al-
guns termos diversos
para designar o macho
ou fêmea de determina-
dos animais.
Número
For ma -se o plural
dos substantivos por
mudança no começo das
palavras, que consiste
na substituição de uma
letra ou grupo de letras
por outra letra ou grupo,
denominadas prefixos tíPo Mussumbe
dos substantivos.
Fazem excepção a esta regra algumas palavras cujo plural
difere do singular no começo e no fim e outras que são uniformes
para os dois sexos. Umas e outras são em tão pequeno número,
que adiante as mencionaremos quási na sua totalidade.
PREFIXOS
Constituem os prefixos a chave da língua; com eles se forma o
plural, as concordâncias e até por vezes servem de verbo auxiliar.
Substituindo-se, antepondo-se, intercalando-se operam toda a
mecânica do m/bundu,
23
346
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Prefixos dos substantivos
No singular
No plural
Princi-
pais
Menos usados
Forma
mais
usual
Formas
excepcio-
nais
Significando
pessoas
Indicando natura-
lidades
Otchi
_
Ovi
I
0
—
Olo
—
—
—
Olu
—
01o
—
—
—
U
—
Ovi
Ovo..I..
A. Ova
Va Â.Ova..
Oka
—
Otu
—
—
—
E
A
—
—
—
Ê
—
Ova
Ovex
—
—
—
I (principiando
a palavra por
Ova
Ovae
—
—
—
consoante)
—
—
Vô (anteposto)
—
—
Okuo
Ovô
Ovo
—
—
—
Oku
Ovo
—
—
—
—
Ou
Au
—
—
—
—
Omu. .Orno. .
Orna
— ■
—
—
EXEMPLOS
Classe otchi — ovi :
Otchina coisa ovina coisas
Otchindele branco ovindele brancos
Otchite pau oviti paus
Otchiquengue periquito oviquengue periquitos
Otchivela ferro ovivela ferros
Otchimunu ladrão ovimunu ladrões
Otchimbundu preto ovimbundu pretos
Otchipa pele ovipa peles
Também se usa o plural em i, porém o mais usado moder-
namente é o ovi.
Classe o — olo :
Ombua
cão
olombua
cães
Osema
soba
olosema
sobas
Orneia
boca
olomela
bocas
Onde
colmeia
olonde
colmeias
Ombiga
chifre
olombinga
chifres
Onjiavite
machada
olonjiavite
machadas
Ombia
panela
olombia
panelas
Omunda
monte
olomunda
montes
Pop. indígenas de Angola.
(347)
DE ANGOLA
Omuko
rato
olomuko
ratos
Ongamba
carregador
olomgamba
carregador
Classe olu —
olo :
Oluhaco
sapato
olohaco
sapatos
Olusolo
bala
olosolo
balas
Olumati
costela
olo ma ti
costelas
Olungiala
unha
olòngiala
unhas
Oluhisa
percevejo
olohisa
percevejos
Olusi
peixe
olosi
peixes
Classe u — ovi :
Utue
cabeça
ovitiie
cabeças
Uti
árvore
ovitue
árvores
Umuini
dedo
ovimuini
dedos
Usenge
seta
ovisenge
setas
Utima
coração
ovitima
corações
Excepções com o plural em ovo
i j
Uta
arma
ovota
armas
Ula
cama
ovola
camas
Unga
zagaia
ovonga
zagaias
Também se
pode formar o
plural em i,
mas é pou(
Classe u — a
(significando pessoas) :
Ulume
homem
alume
homens
Ukai
mulher
akai
mulheres
Ukuengie
rapaz
akuengie
rapazes
Umalehe
jovem
amalehe
jovens
Ukomhe
hóspede
akombe
hóspedes
Upica
escravo
apica
escravos
Ufeko
rapariga
afeko
raparigas
Ungorabo
pastor
amgombo
pastores
347
No Bié usam de preferência o plural em ova (Ex. Ulume
Ovalume).
Classe u — va :
Umbuela
Ugalange
preto ambuela
preto galange
vambuela
vagalange
pretos ambuelas
pretos galanges
Em algumas regiões usa-se também o plural em a e em ova.
Classe oka — utu :
andorinhas
papagaios
Okamiapia andorinha
Okalongq papagaio
otumiapia
otulongo
348
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Okapamba milhano otupamba milhanos
Okandingo canário otundingo canários
Okaliama gavião otuliama gaviões
Okalundilili morcego otulundilili morcegos
Esta classe indica diminuitivos. Nenhum outro exemplo se
encontra e dos apontados se exceptuarmos Okalongo e Okaliama,
os restantes são aves pequenas.
Classe e— a:
Etimba
corpo
atimba
corpos
Eterno
enxada
atemo
enxadas
Epute
ferida
ápute
feridas
Elonga
prato
alonga
pratos
Enhulo
nariz
anhulo
narizes
Evimbi
milhafre
avimbi
milhafres
Esisa
esteira
asisa
esteiras
Evele
mama
avele
mamas
Emela
folha
ameias
folhas
Epungo
milho
apungo
milho
Ekongo
velhote
akongo
velhotes
Eyui
doido
ayui
doidos
Obs. — No Bié usa-se o plural em ova para todos os subs-
tantivos que no singular terminam em e aberto ou mudo.
Classe em é — ova :
Eyo
Éka
Épia
Éué
Étui
dente
mão
lavra
pedra
orelha
ovayo
ovaka
ovapia
ovaue
ovatui
dentes
mãos
lavras
pedras
orelhas
Formas excepcionais em ovo:
Enha
Éngu
Énhu
pena
larva
verme
Classe y — ovae ou ova :
Imo
I so
lmbo
barriga
olho
aldeia
ovonha
ovongu
ovonhu
penas
larvas
vermes
ovaemo ou ovamo barrigas
ovaeso ou ovaso olhos
ovaembo ou ovambo aldeias
Ina mãe forma o plural excepcionalmente vaina mães.
Classe okuo ou oku — ovo :
Okuoko
Okulo
braço
perna
ovoko
ovolu
braços
pernas
DE ANGOLA
349
Classe ou — au :
Ouatu canoa
Ouanga malefício
Ouanda tipóia
Ouango erva
auato
auanga
auanda
auango
canoas
malefícios
tipóias
ervas
Classe omu, orno — orna :
Omunu homem
Omola filho
omanu
omala
homens
filhos
DIMINUITIVOS
Com as raras excepções indicadas, todos os nomes cujos pre-
fixos sejam oka ou otu significam diminuitivos.
Forma-se o diminuitivo dos substantivos com estes dois prefi-
xos e observando as regras seguintes:
No singular
I — Os que principiam pelas vogais o ou e mudam-na pelo
prefixo oka.
II — Os que principiam por iouu antepõe-se-lhes o mesmo pre-
fixo oka com o* qual pela regra geral das contrações de ai em ae
e de au em ó, equivale a mudar o i inicial em okae e o u em oko>
No plural
I — Os que principiam por olo mudam este prefixo em otu.
Os restantes cuja vogal inicial do prefixo é o substituindo
esta vogal pelo prefixo otu.
II — Todos aqueles cuja letra inicial é a ou outra, antepondo
o prefixo otu. Ex. :
Singular
Plural
Otchite
pau
Okatchite
pausinho
Ovite
paus
otuvite
pausinhos
Ombua
cão
okambua
cãosinho
olombua
cães
otulombua
cãesinhos
Oluhaco
sapato
okaluhaco
sapatinho
ouhaco
sapatos
otulohaco
sapatinhos
Eterno
enxada
okatemo
enxadinha
atemo
enxadas
oluatemo
enxadinhas
Eue
pedra
okaue
pedrinha
ovaue
pedras
otuvaue
pedrinhas
Ouato
canoa
okauato
canôasinha
auato
canoas
otuanato
canôasinhas
Ulume
homem
okolume
homenzinho
alume
homens
otualume
homenzinhos
Imbo
aldeia
okambo
aldeiasinha
ovaembo
(ovambo)
aldeias
olubambo
aldeiasinhas
Imo
barriga
okamo
barriguinha
ovaemo
(ovamo)
barrigas
otuvamo
barriguinhas
Isso
olho
okaeso
olhinho
ovasso
olhos
otuvasso
olhinhos
CONCORDÂNCIA
A concordância faz-se por meio de prefixos, os quais de uma
forma geral, se podem dividir em três partes :
Á primeira pertencem os que significam do, da, dos, das,
36Ò
POPULAÇÕES INDÍGENAS
exprimindo posse, são colocados entre dois substantivos. Ex. :
otchipa tchiombua — a pele do cão).
Os que significam de ou para, com eles se pretende indicar
%/
>
Mussumbe — Uma «bimba»
a matéria de que uma coisa é feita, o seu conteúdo, fim ou des-
tino. Ex. : Otchialotchietchivela — cadeira de ferro).
Com as partículas da primeira série se faz também a con-
cordância de substantivos com o infinitivo dos verbos quando se
DE ANGOLA
351
pretende indicar o seu destino a dar ao substantivo. Convém, geral-
mente, nas expressões em que o verbo é enunciado a seguir ao sub-
stantivo e opera-se antepondo a partícula concordante ao prefixo
oku do infinitivo dos verbos. Ex. : Otchialo tchiokupekela — ca-
deira para dormir; Onanga iokuuala — fazenda para vestir).
Ás partículas da segunda série aplicam-se quando o comple-
mento (quer seja um substantivo ou um adverbio) principiem
por consoante (e faz-se antepondo ao complemento a partícula
correspondente ao prefixo do sugeito). Ex. : Uta atate — arma
de meu pai; olondaca viasuko — palavras de Deus).
Os prefixos da terceira série empregam-se quando se queiram
significar alocuções compostas de proposição e adverbio; e tam-
bém nos casos em que do, da, dos, das, não exprimem posse
mas sim o logar que as cousas ocupam. Nestes casos a concor-
dância faz-se acrescentando à partícula concordante as preposi-
ções py k, v ou m. Ex. : Evanhama viovusenge — os bichos do
mato (que estão no mato). Epunga liokovapia — o milho dos
campos (que está nos campos).
Ha ainda outras formas de concordância correspondentes ao
infinitivo dos verbos e às preposições que adiante veremos.
PreOxos concordantes
Prefixos dos substantivos
I Série
Otchi
O
(Palavra principiando por
consoante)
Olu
U — O mu — Orno
Oka
I — e — é
Oku
Ou
Ovi — Olo — I
Otu
 — Ova
 — Ova (significando pes-
soas)
Tchio
I
Lu
U
K (antes de vogal)
Ka (antes de consoante)
Li
Ku
U
Vi
Tu
(Não tem antes de vogal)
 (antes de consoante)
V (antes de vogal)
Va (antes de consoante)
35$ POPULAÇÕES INDÍGENAS
EXEMPLOS DA CONCORDÂNCIA — I SERIE
Objecto possuído no singular :
Otchialo tchiovindele — a cadeira dos brancos.
Ombinga iongombe — o chifre do boi.
Olunhaco luakuengie — a alpergatados rapazes.
Olumati luomola — a costela do filho.
Utima ualume — o coração dos homens.
Elonga liomola — o prato dos pequenos.
Épia liovinbundo — a lavra dos gentios.
Okatemo kanaua — a enxadinha do cunhado.
Okatemo kufeco — a enxadinha da rapariga.
Ise iomuko — o pae do rato.
Iso iomuko — o olho do rato.
Imo liongombe — a barriga do boi.
Imbo liomanu — a aldeia da gente.
Naua iosoma — o cunhado do soba.
Okuoko kuongamba — a perna do carregador.
Omunu uosoma — o homem (escravo) do soba. i
Omona segue às vezes as regras dos que principiam por â.
Obs. — Exceptuando a forma plural em i que como já disse-
mos se usa nalgumas partes em vez de ovi, e para os quais o
prefixo concordante é vi, poucos substantivos no singular prin-
cipiam por i.
Esses poucos damo-los neste exemplo com ús concordâncias
que o uso lhe aplica que como se vê para alguns é i e para
outros é li.
Objecto possuido no plural:
Ovipa viovinhama — as peles dos bichos.
Olofeka viomano — as terras dos homens.
Otuvitue tuolosangie — as cabecinhas das galinhas.
A partícula concordante da I série corresponde aos plurais
â e ova, série A, mas elide-se por eufonia antes da vogal que
segue e põe-se simplesmente o segundo substantivo em seguida
ao primeiro.
Mas quando o primeiro substantivo que tem por prefixo â
ou ova é nome de pessoa a partícula concordante é va ou v antes
de vogal.
Omanu e omala exigem excepcionalmente esta concordância
também. Ex.:
Âkepa ovinhama — os ossos dòs bichos.
Âkuengie vanaua — os rapazes da cunhada,
Ouala vonianu — os filhos dos homens»
DE ANGOLA 353
Exemplos do emprego das partículas concordantes da I série,
exprimindo a matéria de que uma coisa é feita, o seu fim, con-
teúdo ou uso.
Singular
Otchialo tchiotivela — uma cadeira de ferro.
Onjio iovaue — uma casa de pedra.
Olui luolomupa — rio de cachoeiras.
Uta uombangia — arma de pederneira.
Épungo lionanga — milho para (comprar) fazenda.
Okombia kuotuma — a panelinha de barro.
Imo liovava — barriga de água.
Ouanda uovindele — tipóia para brancos.
Plural
Oviti viokutunga ongio — paus para construir uma casa.
Olondovi violonde — cordas para as colmeias.
Ovaue olombongo — pedras de onde se tira o dinheiro.
Ovola otchivela — camas de ferro.
Akupa olananga — fardos de fazenda.
Auato uotchivela — canoas de ferro.
ADJE3TIVOS POSSESSIVOS E PRONOMES PESSOAIS
Os adjectivos possessivos formam-se dos pronomes pessoais
antepondo-se-lhes a partícula concordante da I série correspon-
dente ao substantivo possuidor.
Os pronomes ame, eie, ovo, para formar os possessivos sofrem
alterações: ange, ae, avo.
Em vez de ae (tchiae, etc.) dizem alguns ale (tchiaié).
Os possessivos colocam se sempre depois dos substantivos.
Os pronomes pessoais e os adjectivos possessivos podem,
quando o sentido o pede, incluir o verbo auxiliar, ser: ame —
sou eu, ove — és tu, etc. Viange — são minhas, vietu — são
nossas, e também as minhas, as nossas, etc.
Quando dele e deles se refere a um substantivo que não é
nome de pessoa exprime-se de um modo diferente; também algu-
mas vezes se pode como que personificar o tal substantivo, e
exprimir o substantivo por tchiae, viae, como acima.
Adjectivos possessivos
Meu Teu
Eu Tu Ele
Ame Ove Eie
Dele Nosso Vosso
Deles
Dela — —
Delas
PronomBS pessoais
Ela Nós - Vós
Eles Elas
Eie Etu Ene
Ovo Ovo
354
POPULAÇÕES INDÍGENAS
PREFIXOS DO SUBSTANTIVO
Otchi
tchiange
chiove
tchiae
tchietu
tchine
tchiavu
0
iange
iove
iae
ietu
ienu
iavo
Olu
luange
luove
luae
luetu
lueno
luavo
U
uange
uove
uae
uetu
ueno
uavo
Oka
kange
kove
kae
ketu
kene
kavo
E
liange
liove
liae
lietu
liene
liavo
PARA SUBSTANTIVOS NO PLURAL
Ovi
viange
viove
viae
vietu
viene
viava
Olo
viange
viove
viae
vietu
viene
viava
Otu
tuange
tuove
tuae
tueto
tuene
tuava
Â
ange
ove
ae
etu
ene
avo
Ovo
ange
ove
ae
etu
ene
avo
Â
vange
vove
vae
vetu
vene
vavo
Orna
vange
vove
vae
vetu
vene
vavo
Destas tríbus aqueles que falam o mirando mais puro são os
bienos e os bailundos. Os quilengues são das tríbus em estudo
os que teem adulterado mais em contacto com os mondombes.
Estes povos teem danças muito simples, e que de uma maneira
geral consistem apenas em um movimento lento e cadenciado dos
pés, braços, hombros e quadris, à mistura com algumas piruetas
e umbigadas, quando dela fazem parte as mulheres, acompanhadas
de música com três executantes, em que dois fazem a parte can-
tante e um o acompanhamento.
Entre os vários instrumentos de música usados por estas tríbus
mencionaremos: ariba, o tchigufu, o orubedo, o tchisage, o tchi-
suba e o orokuguru, etc.
Ariba, é o instrumento que vulgarmente se chama marimba.
Compõe-se de uma série de pequenas táboas em número de doze a
quinze, com trinta centímetros de comprimento por dez de lar-
gura e meio centímetro de espessura, ligadas por tiras de couro,
e assente por cima de cabaças ocas e abertas superiormente, que
vão decrescendo de tamanho, como as táboas, do centro para as
extremidades. O instrumento é tocado com duas baquetas per-
cutindo as táboas.
O tchigufu, ê um instrumento feito de um tronco aparelhado
DE ANGOLA
355
de uma árvore com a forma de um trapésio isósceles invertido.
É ôco, feito de uma só peça, tendo no bordo superior uma fenda
longitudinal que abrange todo o comprimento do instrumento.
Bimbundu — Port i em um cercado de uma libata
É tocado com duas baquetas que se fere lateralmente na parte
superior.
O erubedo é uma espécie de clarinete sem palheta nem chaves
tendo oito a dez buracos.
0 otchisage é um pequeno instrumento que consta de uma
356
POPULAÇÕES INDÍGENAS
série de oito a dez dentes de ferro polido, formando notas dis-
persas agudas e graves; assenta sobre uma tábua colocada em
uma pequena cabeça. Toca-se ferindo os dentes com os dedos
polegar e indicador.
O otchisuba é uma espécie de rebeca usada principalmente
pelos quilengues consta de uma caixa retangular, ôca, sobre que
estão estendidas, como na rebeca, seis a oito cordas, presas de um
Bimbundu - Ponte gentlilica
lado a uma extremidade da caixa e do outro lado a uns pequenos
paus curvos e flexíveis, dispostos em forma de leque. Toca-se
fazendo vibrar as cordas com os dedos.
O orukuguru instrumento tocado exclusivamente pelas mulhe-
res, formado por um arco de uma estreita casca de bordão e uma li-
nha que tem o comprimento de quatro centímetros pouco mais ou
menos. Toca se metendo um dos lados da casca do bordão entre os
dentes, fazendo vibrar a linha com os dedos polegar indicador.
Sob o ponto de vista scientífico, não devemos deixar de
mencionar o tratamento das doenças.
DE ANGOLA 357
Os curandeiros (tchimbanda) entre estas tribus, como em
geral entre as outras populações indígenas da província, são
muito considerados e respeitados, desejando todos com eles estar
nas melhores relações, pois são muito temidos pelos poderes que
lhe atribuem de adivinhos e contra os feiticeiros. Assim a sua
influência moral é grande e os seus conselhos são sempre ouvidos
e atendidos, de que eles se aproveitam para saber tudo o que
querem para seu interesse.
No tratamento das doenças ha, como já fizemos notar para
as outras tribus, a parte de magia e espiritista, e a parte pro-
priamente médica, constituída pela aplicação de remédios quási
todos de origem vegetal.
Temos presente uma longa lista de plantas aproveitadas pelos
indígenas destas tribus no tratamento das suas doenças, que não
incluímos por não nos ter sido possível classificar e não sabermos
senão o nome porque os indígenas as conhecem.
Empregam os curandeiros plantas com propriedades purga-
tivas, calmantes, toxicas, anestésicas, etc, que merecem um
estudo especial por quem tenha competência, pois cremos que
desse estudo só advinha proveito para a medicina.
Os curandeiros tratam com os seus medicamentos a diarreia,
a iterícia, o reumático, as úlceras, a sífilis, o hemorroidal, afe-
cções de baço; mordedelas de reptis, etc.
Ainda sob o ponto de vista scientífico nos queremos referir
aos conhecimentos que estes povos teem de astronomia.
Consideram o sol como um grande reflector que mergulha no
mar (karuga) e que passa por debaixo da água para o dia se-
guinte aparecer no oriente. Consideram a lua como a fêmea do
sol e sobre ela teem a mesma ideia.
As estrelas, uns consideram-nas fogueiras acesas por gente
que lá vive e outros como pirilampos.
Uns consideram o raio como um animal que cai do ceu por
efeito da chuva e que depois de destruir e queimar se enterrou;
outros como o fogo resultante do choque de pedras da chuva que
julgam existir na abobada celeste.
De todos os fenómenos da natureza aquele que mais temem
é o raio,
.
358
POPULAÇÕES INDÍGENAS
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. —A reli-
gião, rito, culto, divindades, sacerdócio
Por ocasião do nascimento da creança o pai oferece à parteira
e às pessoas que o vêem cumprimentar algumas bebidas repe-
tindo-se estas libações, quando a parteira
apresenta a creança fora da alcova onde
nasceu.
Quando se trata de filhos de soba ou de
famílias de importância, e de um varão nin-
guém da libata vai às lavras; para se po-
der dispensar este uso é necessário que um
curandeiro prepare ura remédio que será
lançado à terra antes que nela se meta a
enxada.
O nascimento de gémeos é sempre motivo
de regosijo e festas, para que se convidam
todos os parentes e amigos, e que são levadas
a efeito a distância da libata ; para lá seguem
todos os convidados, dizendo apóstrofes e
palavras obscenas dirigidas aos gémeos, e
levando a mãe à cabeça a panela que guarda
os cordões umbelicais dos gémeos. Cons-
truem um leito ou catre onde se assenta a
mãe com os gémeos e onde são, mãe e filhos,
levados por um curandeiro com cosimento
de hervas medicinais. A seguir a mãe dis-
tribue pelos assistentes os cosinhados pre-
parados da ocasião, terminando a festa, como
em geral todas as das populações da província, por comer e beber.
Iguais festas se fazem quando a creança nasce com os pés
para a frente ou quando se trata de um aborto.
No caso de nascimento de três filhos, um deles, varão, é
mandado de presente ao soba que tem de criá-lo, sustentá-lo,
vesti-lo, e dar-lhe uma arma, ficando a ser seu filho adoptivo,
e perdendo os pais o direito sobre êle,
Musselles — Um caçador
DE ANGOLA 359
*
No que diz respeito a educação e iniciação entre quási todas
estas tribus, existe a circuncisão.
O local onde se realisa a circuncisão é na libata dentro de
uma palissada expressamente construída para esse fim. O cir-
cuncisado ali passa noites e dias exposto ao ar livre, não podendo
dormir na cubata emquanto durar a cura, que vai de oito a
quinze dias. O curativo faz-se com folhas frescas de rícino.
Usam praticar a circuncisão na mesma época para todos os
rapazes da libata que se encontram com idade própria e que
regula entre os quinze e os dezoito anos.
Depois de curados são os circuncisados muito bem lavados e
vestidos e durante dias consecutivos se fazem festas em que
estes dançam, para o que se abate um boi ou um porco conforme
as posses dos pais dos circuncisados.
É de uso igualmente em alguns destes povos, cerimónias e
festas quando as raparigas atingem a puberdade (okafefika), sem
o que se não podem ligar a qualquer homem. As raparigas
obrigadas pelos pais a prestarem-se às provas a que teem de ser
sugeitas, e que não nos foi possível conhecer, são fechadas em
uma cubata especial, em que se tem deitado uma camada de
areia e onde a paciente se deita completamente nua, com uma
pequena tanga entre as pernas.
Seguem-se depois as festas em que se abatem tantas cabeças de
gado bovino quantas as raparigas, cujos rabos lhes são distribuídos.
Estas festas consistem principalmente em numerosos cortejos
em que as raparigas pintadas de branco com cal moída, de olhos
no chão e acompanhadas de numeroso cortejo vem passear à libata ;
e isto até se darem por findas as cerimónias a que se segue a apre-
sentação das raparigas depois de lavadas e com a cabeça coberta,
cantando e dançando cada uma delas com o rabo de boi que lhe
foi distribuído; nas cerimónias da puberdade cada rapariga tem
uma madrinha.
*
O pedido de casamento e a autorização para se requestar
uma mulher é firmado por um pequeno presente que o noivo
360 POPULAÇÕES INDÍGENAS
manda à família da futura esposa. Desde esse momento ..o noivo
tem permissão e liberdade de andar por toda a parte com a
noiva, com ela viajar, passar uma temporada na sua terra, e
até dormir com ela no mesmo leito, sendo-lhe porém vedado
oom ela ter relações sexuais. Cada vez que vai buscar a noiva
a casa dos pais, tem que dar uma ou duas garrafas de aguar-
dente.
Os pedidos de casamento são como em geral nos restantes
povos da província, feitos muitas vezes tendo as donzelas tenra
idade.
Chegada a ocasião do casamento o noivo, expede dois irmãos
e uma irmã que vão buscar a noiva, levando o dote do noivado,
e que consiste em fazendas, aguardente, gado, etc, variando o
seu valor consoante as posses do noivo. São os emissários
recebidos pela família da noiva, demoram se alguns dias comendo
e bebendo, e por fim entregam-lhes os pais da noiva esta,
acompanhada por uma irmã e sobrinha, que lhe levam uma
quinda e uma cabaça, objectos que simbolisam o mister da mulher.
Recebe o noivo a sua esposa com grandes demonstrações festivas,
abatendo galinhas e um porco, e que se prolongam por alguns
dias, durante os quais a noiva se conserva na cubata nupcial,
onde bebe e recebe as visitas, saindo ao romper da manhã,
cautelosa e secretamente para não ser vista.
Terminadas as festas pode a mulher sair e então o esposo
faz-lhe entrega da casa e de uma enxada, com que ela vai tra-
balhar na lavra de uma cunhada ou outro parente próximo do
marido. Só depois é que lhe faz entrega dos terrenos, previa-
mente limpos e desbravados, representando a nova lavra.
Entre algumas famílias mais civilizadas, usa-se levarem os
parentes da noiva as provas de virgindade para serem apresen-
tadas a toda a sua família e amigos.
Dois meses depois do casamento é costume a nubente visitar
os pais, trazendo as pessoas que a acompanharam. É claro que
esta visita é motivo para novas festas, libações e troca de pre-
sentes.
Em alguns destes povos quando a família da noiva (pai ou
tia) deseja que o casamento tenha um caracter mais grave e
rigoroso, fazem-no compreender ao noivo, retribuindo-lhe o
presente por ocasião da visita da nubente, com um porco grande,
tendo prezas. O noivo desde logo fica sabendo que brevemente
receberá um novo presente (ogibe é obigua) constituído por um
DE ANGOLA
361
boi que os nubentes teem de comer e para o que convidam os
seus amigos e parentes. Durante estas festas que se prolongam
aproximadamente por oito dias, os noivos conservam-se em uma
cubata às escuras onde comem e recebem visitas, chamando a
esta cerimónia ókuture, (enviuvar ou tomar nojo). Assim neste
caso, os esposos tomam o luto em vida, e por morte de um dos
cônjuges, o outro não tem necessidade de tomar nojo.
Entre a tribu Quilengues é ao noivo que compete promover
esta forma de confirmação de casamento peio oferecimento de
um boi aos sogros (pais e
tio da mulher), não com-
partilhando a noiva do
banquete que se faz com
a carne de boi, e termi-
nando as cerimónias pela
oferta de uma tira da-
quela carne seca à noiva.
O casamento assim con-
firmado tem tal valor,
que mesmo que os cônju-
ges se divorciem, os filhos
que a mulher possa vir a
ter de outro homem, são
de direito filhos do pri-
meiro marido.
Os direitos do marido
sobre a mulher consistem apenas na obediência que esta lhe
deve e nos serviços a seu cargo que tem de prestar como dona
de casa.
O crime de adultério, (ukoi) por parte da mulher é punido
com o pagamento de indemnização pelo sedutor ao marido ul-
trajado. Entre os Quilengues e outros povos chega-se a fazer
do ukoi uma exploração imoralíssima, induzindo as suas mulheres
a cometer o adultério para receber a indemnização respectiva.
Existe a poligamia, vivendo cada mulher em sua cubata.
E permitido o divórcio que pode ser promovido pelo marido,
pela mulher ou pelos tios maternos desta. O divórcio tem por
fundamento, quando promovido pelo homem, a incompatibilidade
de génios ou o não saber a mulher cumprir os deveres de dona
de casa ; quando promovido pela mulher, a mesma incompati-
bilidade ou maus tratos; e quando promovido pelo tio materno
24
Bimlnmdu — Músicos de Orubedo (Huambo)
362 POPULAÇÕES INDÍGENAS
da mulher, o facto de, passados dois ou mais anos, não ter
filhos.
A mulher, uma vez divorciada, é livre e independente do
marido voltando para casa dos pais ou parentes e ali ficando
até contrair segundo matrimónio, sendo novamente dotada pelo
homem com quem casar. No caso, porem, de esterilidade atri-
buída ao marido, a mulher não pode contrair segundo matrimónio
sem que o segundo marido restitua ao primeiro o dote que este
lhe deu. E, não havendo filhos do segundo marido e tendo logar
novo divórcio o primeiro marido, tem o direito de anular o
divórcio tornando a restituir ao ulterior marido o dote do casa-
mento ou de exigir à família da mulher uma indemnização
(mukano) por lhe ter atribuido a esterilidade.
O marido não retira à mulher divorciada os bens que lhe
tiver dado.
Sobre a situação dos filhos dos divorciados, as informações
que possuímos são um pouco contraditórias com os usos comuns
aos direitos do pai sobre os filhos. Assim nos parece que, sendo
os tios maternos quem dispõe dos filhos, os pais, pela circuns-
tância do divórcio, fiquem sobre eles tendo direitos; o que seria
natural é que eles ficassem dependentes da família da mãe. A
não ser que as informações prestadas não sejam claras e que se
trate do dever de os sustentar e educar, podendo assim e por
conveniência, ceder esse dever ou direito à mãe, aos tios maternos
ou paternos.
#
Todas as doenças teem por causa a acção de espíritos malignos
de pessoa já falecida inimiga da família do doente ou de um
membro da família que não está satisfeita com qualquer acto
dos seus descendentes.
Assim se adoecer alguém gravemente, recorre-se imediatamente
ao tchimbanda, advinho que averigua a causa da doença e pro-
núncia o seu diagnóstico dando-se começo aos sacrifícios que se
oferecem ao espírito descontente para aplacar a sua ira, e às
arengas ou evocações, solicitando ao espírito que deixe em paz
o doente.
Aqui termina a acção do adivinho passando-se a chamar o
tchimbanda curandeiro, especialista da doença indicada pelo
adivinho, que aplica os seus remédios. Caso estes não produ-
DE ANGOLA 363
zam resultado, consulta-se novo adivinho para fazer novo dia-
gnóstico.
Após o falecimento procede-se à remoção dos trastes que
mobilam a alcova, sendo esta limpa e atapetada com esteiras.
Lavam e vestem o cadáver e anuncia-se o falecimento às pessoas
conhecidas e parentes, que correm à casa mortuária com pre-
sentes para ajudar as despezas do óbito.
Começa a seguir o choro, exaltando-se as qualidades do
morto; e após êle os cantos e danças, acompanhadas de libações
que se prolongam até alta noite. No dia seguinte recomeça o
choro e a seguir os cantos e danças, que se prolongam quoti-
dianamente até terminar o óbito, que pode durar até dez dias e
mais, conforme as posses da família. Se não ha recursos para
fazer óbito é este adiado para quando os haja, adiamento a que
se chama okuvebika o uábe (enterrar o óbito).
Emquanto dura o óbito, todas as noites, depois de terem ter-
minado as libações, e quando tudo dorme, o feiticeiro, em pre-
sença da família, pergunta ao morto qual foi a causa da sua
morte, qual é a sua última vontade e o seu herdeiro universal
(kapikuarau), mesmo que tenha filhos, e quem deve ser o seu
tutor caso sejam menores.
No último dia do óbito mata-se um boi e a todas pessoas de
casa se corta o cabelo rente, isto sendo morto de alta estirpe;
não o sendo, apenas se corta o cabelo.
Terminado o óbito, o cadáver embrulhado "em panos e estei-
ras, é conduzido para o local da sepultura a pau e corda,
com um numeroso cortejo que dança e canta, dando-se salvas
de tiros.
Costumam em geral cavar a sepultura em forma de gaveta,
fazendo primeiro uma excavação vertical e depois outra horizontal
comunicando com aquela, onde se mete o cadáver.
Salvo o caso de terem os cônjuges tomado o nojo em vida, como
acima referimos, em todos os outros, a viúva ou viúvo, acompa-
nhados por um ou dois filhos mais velhos, tomam nojo, conser-
vando-se na cubata mortuária alguns dias.
No que diz respeito à forma de proceder quando morre um
chefe gentílico, começa-se por não divulgar a morte senão dois
ou três meses depois, o tempo suficiente para se. decompor o
cadáver, e separando-se o tronco da cabeça, visto que ao exalar
o último suspiro é suspenso pelo pescoço.
Comunicado o óbito começam a chorar os que vem dar os
364 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pezames à família e trazem os presentes com que se hão de custear
as despesas do óbito.
Procede-se depois ao sacrifício de um boi com grande armação,
cuja pele constitue a mortalha, não já do cadáver, mas do esque-
leto, bem assim como das vestes de gala com que o vestiram e
dos vermes da decomposição. Cosida a pele é assim depositada no
jazigo dos sobas (akókoto).
*
Na família, o pai e mãe tem apenas sobre os filhos o direito
de obediência, de tutela e dos seus serviços, emquanto estão na
casa paterna, visto que de facto, são os tios quem dispõem dos
sobrinhos, filhos de irmã, podendo este até vendê-los.
Os direitos dos filhos das diferentes mulheres, livres ou escra-
vas são iguais em vida do pai, que os teem de sustentar, vestir
e protejer, a diferença só se dá no direito de herdar, morto o
pai.
Por morte de um chefe de família, a herança transmite-se ao
primogénito, se as mulheres são todas livres ou todas escravas,
não importando que a mãe seja á primeira, segunda ou terceira
mulher; se existem filhos de mulheres livres ou escravas, a he-
rança transmite-se de preferência ao primogénito filho de escrava.
Havendo sobrinhos, filhos de irmã, e filhos de mulheres livres,
herda o sobrinho mais velho; havendo também filhos de escravos
herda o mais velho destes e o mais velho dos sobrinhos por igual. A
falta de sobrinhos a herança transmite-se pela seguinte ordem:
netos, pais, avós, tios, primos, cunhados, etc. E não havendo
parentes, a quem o autor da herança por testamento verbal e
perante testemunhas indicou, ou à falta de testamento a quem
êle indicar depois de morto quando perguntado pelo feiticeiro,
como já tivemos ocasião de referir. A mulher não é herdeira,
só tem parte na herança por vontade expressa do morto.
Segundo o que deixamos exposto o filho da irmã prefere o
filho da mulher livre, por que é dificil garantir que seja real-
mente filho do autor da herança, ao passo que o filho da irmã
é parente garantido mais próximo. No entanto, se o autor da
herança é mulher, o filho legítimo prefere o sobrinho, e neste
caso herda aquele, visto que neste caso não pode haver dúvidas.
Havendo, porem filhos de mulher livre ou escrava, o filho da
DE ANGOLA
365
escrava prefere o da mulher livre, herdando aquele, visto que o
último, depois de herdar, pode dividir a herança paterna levando
parte dela para a casa materna, ao passo que o filho da escrava,
não tendo família materna, não tem por quem a dividir.
Assim pois, existe o morgadio, competindo este ao primogé-
nito, filho de escrava, a seguir ao filho da irmã e só por último
o filho primogénito da mulher livre.
O herdeiro tem por dever sustentar e conservar na libata os
outros filhos até que se possam governar, bem assim como as
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Bimbundu — Um Tchi
curandeiro) no exercício de sua profissão
viúvas, se não tiverem meios, até que contraiam novo matri-
mónio. No entanto, na maior parte das vezes, o herdeiro para
se livrar destes encargos distribui uma parte da herança pelos
irmãos e madrasta. A mãe do herdeiro nunca deste se separa.
A mulher na família exerce o papel de dona de casa, compe-
tindo-lhe àlêm dos serviços que lhe são destinados na lavra, var-
rer e limpar a habitação, cosinhar para o marido e para a sua
família, se este a tem na mesma libata.
Crêem estes povos nos espíritos, bons e maus, cultivando o
espiritismo a que recorrem para quási todos os actos da sua vida,
366 POPULAÇÕES INDÍGENAS
em geral, por meio do magnetismo das pessoas; o magnetizado
tem dupla vista, lê o que vai no íntimo das pessoas os seus pen-
samentos, e adivinha as causas e efeitos dos males.
Os espíritos são a alma dos mortos, parentes ou extranhos,
que consideram imortal, que vagueia no espaço, vindo visitar,
alta noite, uma vez por outra a sua casa e a sua família, que se
incarna no cérebro da pessoa que cultiva o espiritismo, e que nos
magnetismos fala pela boca do magnetizado. Ao espiritismo
chama-se orodére e ao espírito odére.
De todos os espíritos, o que consideram peor e mais terrível
é aquele que denominam Sáburo, mas temem outros como sejam o
chamado Tchirudo, Tchihobo e Sege. Na classe dos benefícios
numeram o Kámiam, o espírito das creanças.
Todos estes povos crêem e respeitam um ente supremo Suku
(Deus) arquitecto do universo, que em tudo manda e de tudo
dispõe.
Teem lugares sagrados, vedados aos profanos, recintos ou
cubatas onde praticam a magia, o espiritismo e a feitiçaria,
(Etambu) e onde se guardam os feitiços que consistem em chifres,
machadinhas, penachos, chocalhos, cabaças, etc, e de que fazem
parte o Usése rabo de cavalo que os sobas e séculos usam, a
Uhába do negociante, e arco e seta do guerreiro e do caçador.
Estes povos tem superstições com relação a animais, tais como
o leão, o jacaré, a águia, etc. ; crêem que estes animais não matam
uma pessoa sem que esta tenha cometido algum crime ou uma
má acção, e consequentemente se podem servir desses animais
para fazerem mal a qualquer. De todos os animais o mais te-
mido é a águia de grande envergadura, peito branco, costa e azas
escuras a cauda vermelha, a que chamam Hokohóko. A esta águia
se atribuem várias doenças das crianças e desgraças a adultos
que tem de ter intervenção imediata dos curandeiros.
Além desta superstição teem estas tríbus feitiços a quem
atribuem propriedades para se poderem fazer amar, para obterem
a estima geral, para se fazerem queridos dos seus senhores ou
chefe, para vencerem o inimigo em guerra ou quebrar-lhe a ira,
para serem bem sucedidos em qualquer empreza, para conse-
guirem todos os pedidos que façam, e para se livrarem de feiti-
çaria e tantas outras.
DE ANGOLA 367
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Regimen econó-
mico. — Propriedade. — Costumagens ju-
rídicas.
Não obstante alguns destes povos empreenderem grandes
viagens, e outros como os quilengues se dedicarem à criação de
gado, todos eles levam vida sedentária.
Entre estes povos, alem das classes privilegiadas a que já
tivemos ocasião de nos referir, de feiticeiros e curandeiros,
existem os sobas, os seus conselheiros, os séculos ou chefes de
libatas, os anciões, os fidalgos, os homens ricos, os homens
livres e os escravos. Como em outras tríbus, existem duas es-
pécies de escravos : os escravos comprados, por herança e por
dívida para prestação de serviços, e que ficam fazendo parte da
constituição da família, e os escravos prisioneiros de guerra que
se conservam para serem resgatados.
*
* *
A organização política é por estados (sobados) e sub-estados
ou estados subordinados, (libatas ou grupos de libatas) ; os pri-
meiros governados pelos sobas que se denominam soma e os
segundos pelos secura, sendo estes subordinados àqueles.
Junto dos sobas e sobetas existem outras autoridades que
constituem um conselho (ptchiduri) e a sua corte (eróbe). O con-
selho do estado que assiste aos chefes gentílicos compõe-se dos
vákuerobe, dignatários privativos do chefe em exercício, esco-
lhidos particularmente por aquele entre os seus parentes, pessoas
livres e escravos seus, e dos vamuênren eróbe, os membros
efectivos, inamovíveis, vitalícios da corte, visto que não são de
nomeação do soba, sendo os seus logares hereditários e descen-
dentes dos primitivos escravos do estado. Estes conselheiros
não podem ser destituídos pelo soba, castigando-os apenas quando
cometem algum delito.
Os conselheiros (vámumren) constituem uma corporação pu-
gnando pelo estado a que pertencem, moram com as suas famílias
na embala do soba, e é com eles que o povo conta quando está
368
POPULAÇÕES INDÍGENAS
descontente com o soba. Os seus principais séculos, é com estes
conselheiros que se entendem para a sua deposição.
Os dignatários (vakuerobé) pugnam pelo soba que os nomeou,
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Bímbundu — Feiticeiros Galangues
constituindo um corpo particular daquele, e tem as suas cubatas
na libata, onde teem as suas famílias, estando na embala quando
estão de serviço.
É grande a autoridade dos conselheiros e dos dignatários,
DE ANGOLA 3G9
sendo muito respeitados não só pelo povo como pelo próprio
soba que, a maioria das vezes, segue o seu parecer. s
Os conselheiros, como representantes do estado, são quem
depõe os sobas e os fazem subir ao trono; resolvem por morte
do soba se o herdeiro presuntivo tem ou não competência para
ascender ao trono, elegendo outro herdeiro ou um estranho, se
entenderem que nenhum dos parentes do morto tem competência,
e sendo a sua opinião e conselho respeitado e cumprido.
A organização política dos estados subordinados é igual à dos
principais. Nas reclamações das grandes questões entre diversos
sub-estados os sobetas teem de ouvir o parecer do soba a quem
estão subordinados, seguindo-o em geral.
Os chefes gentílicos tiveram em tempo direito sobre a vida e
liberdade dos seus subordinados, actualmente com a ocupação a
não ser os sobas dos Galangues que ainda conservam poderes
absolutos sobre os seus súbditos e que ainda praticam sacrifícios
humanos pela morte do soba e a elevação ao trono da nova
autoridade, estão as suas prerogativas muito mais resumidas.
Não teem os chefes direitos sobre a propriedade, mas são os
seus subordinados obrigados a servi-los quando eles necessitam.
Os sobas teem como rendimento os emolumentos que cobram
pela decisão de questões, as multas que impõem e os presentes
que frequentemente recebem.
A sucessão do soba é em geral por hereditariedade; por morte
do soba sobe ao trono o filho primogénito da mulher preferida
(rainha), e quando dela não houver, teem preferência os da
mulher escrava aos da mulher livre, tendo em atenção sempre a
primogenitura. A falta de filhos sucedem os netos e a seguir
irmãos, sobrinhos e primos.
Quem indica o novo soba é o presidente do conselho (otchiduri),
observando-se as leis de sucessão salvo se o conselho entender
que o herdeiro de direito não é competente para governar. À
falta de herdeiro presuntivo, elegem em geral um sobeta.
A sucessão nos sobetas é igualmente por hereditariedade que
só se não sustenta quando o sobeta é deposto por insubordinação,
neste caso o soba nomeia em geral para substituir o sobeta um
dos grandes do seu estado.
A cerimónia da investidura dos chefes, feita na parte da
embala reservada às audiências, consiste na entrega ao soba do
bastão e do Usese (rabo de cavalo com que desviam as balas na
guerra) pelo presidente do otchiduri e na arenga que este profere
370 POPULAÇÕES INDÍGENAS
sendo apoiado pelos assistentes com repetidas salvas de palmas.
Seguindo-se depois os cumprimentos e juramentos de obediência
e fidelidade dos assistentes, as felicitações, os presentes, as salvas
e as festas.
Entre estas tríbus alguns estados teem entre si alianças em
que se obrigam a mútuo auxílio, quer na guerra ofensiva ou
defensiva, quer para facilitar relações comerciais. Esta espécie
de tratados é sempre feita perante testemunhas sob juramento,
selando-se a aliança com o sacrifício de um boi e presentes
mútuos, acompanhados das indispensáveis práticas de feitiçaria.
#
# *
O comércio é exercido em mais ou menos escala por todos
estes povos, distinguindo-se porém os bienos e bailundos. O co-
mércio é de permuta, sendo os principais artigos permutados : a
cera entre quási todos os povos; e gado principalmente pelos
quilengues, gandas, hanhas e seles; os géneros pobres, por todos ;
a goma copal e azeite de palma, principalmente pelos seles e
hanhas; os couros pelos quilengues; e a borracha pelos bienos,
e que hoje perdeu a importância que em tempos chegou a atingir.
As transacções são em geral à vista e a moeda consiste em
gado, fazendas e escravos.
Existe o direito de propriedade de terras. Quem nos terrenos
de outrem e com seu consentimento tiver construído cubatas ou
tiver plantado árvores, pode dispor, dando ou vendendo, das cons-
truções ou das árvores.
Existe o contrato de compra e venda; que se comprova por
testemunhas, e se valida por um sinal dado adiantadamente. O
objecto comprado só passa para as mãos do comprador na ocasião
em que paga o valor. Depois do sinal dado, se o vendedor dispor
do objecto para outrem, tem de restituir o sinal, se fôr o com-
prador que desistir do negócio, não tem direito à restituição do
sinal.
As dívidas não prescrevem. A dívida é sempre comprovada
por testemunhas, e o devedor fica na completa dependência do
credor, podendo, caso não tenha outro meio, dispor da sua li-
berdade.
DE ANGOLA 371
*
#
O tribunal para o julgamento das questões gentílicas é cons-
tituído pelos conselheiros de estado e pelos dignatários do soba,
presidindo este, quando a questão é importante e transcendente,
ou um dos membros do conselho se a questão é de menos impor-
tância.
O tribunal funciona sempre de manhã e ao ar livre, em um
recinto da embala do soba, denominado ekago.
O julgamento começa sempre pela exposição da causa a julgar,
feita pelo presidente, dando este a seguir a palavra à parte de
acusação, para expor a queixa; ao réu, para fazer a sua defeza;
e por último às testemunhas.
A seguir o presidente convida os diversos membros do tri-
bunal a expor a sua opinião, lavrando a sentença em conformidade
com ela, na maioria das vezes.
Além da prova testemunhal existe o conhecido juramento da
casca que consiste— como já para outros povos indicamos — em
fazer beber um cosimento venenoso a quem tem de a êle se pres-
tar. A inocência fica provada se o incriminado vomitar o líquido
ingerido, caso contrário não sofre dúvida a culpabilidade do incri-
minado.
A pena comum para todos os crimes, delitos ou contraven-
ções, é a indemnização, variando o seu valor consoante a gravi-
dade daqueles. A indemnização é paga em gado, géneros, fazendas,
aguardente ou escravos.
II
MONDOMBES
Segundo a nossa opinião os Mondombes devem ser incorpo-
rados no grupo das tríbus Bimbundu, não obstante pelo contacto
que teem tido com as tríbus do planalto da Huíla e com as tríbus
Bacuando e Bacuisso da raça Boschjman, o seu modo de ser tenha
tomado uma feição especial, sobretudo pela influência daquelas
duas últimas tríbus.
Os Mondombes ocupam a região litoral ao sul da cidade de
Benguela na bacia hidrográfica do rio Coporolo e estendem-se
para o sul até aos confortes da serra do Cheia.
372
POPULAÇÕES INDÍGENAS
/
Os Mondombes ainda não ha muito que eram considerados
insubmissos e sempre que podiam faziam a sua partida ao viajante
desprevenido que êies transportavam em maxila. Depois porém
da severa lição que lhes infligiu o major Bastos, reduzindo-os à
obediência, mostram-se de índole
pacífica, não obstante um tanto
trocistas.
São joviais, expansivos e bas-
tante astutos.
Quanto aos cuidados de hi-
giene, pode considerar-se este povo
como um dos mais porcos da pro-
víncia, e reduzem-se aqueles a
untar-se com manteiga e um óleo
que extraem do fruto de um ar-
busto espinhoso a que chamam
umóko.
Quanto aos penteados ou à
forma como usam o cabelo, as
mulheres costumam correr o ca
belo para traz, acertando-o com
a mão, fazem como que um rabi-
cho no alto da cabeça, e pendidos
sobre as fontes trazem dois canu-
dos tecidos à semelhança de tran-
ças. Os homens solteiros usam
rapar a cabeça em redor, tendo
apenas no alto desta uma porção
de cabelo em forma de pirâmide
cónica, a que chamam osiíku. Os
homens casados usam cabeleira
corrida para traz e caindo em bandó sobre as orelhas, a que
chamam etuma.
É vulgar o uso de turbante em homens e mulheres, sendo o
destas, quando casadas de pele de cabrito.
No que diz respeito a adornos àlêm dos indicados para as
restantes tríbus Bimbundus, usam os homens e as mulheres con-
siderados importantes e ricos ao pescoço umas grandes colheiras
feitas de dongo.
A cubata dos Mondombes é de base circular e de forma ovóide,
sem janelas e com uma pequena abertura que força o seu habi-
Tipo Mondombe
DE ANGOLA
373
tante a entrar nela de rastos. As cubatas são formadas por um
esqueleto de madeira facilmente transportável e cobertas de colmo
desde o vértice até à base.
Dentro das cubatas, em geral, pouco mais existe do que a
cama, uma tarimba feita de barro amassado.
Não obstante se dedicarem à agricultura, as suas principais
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Tipos Mondombos
ocupações são as da creação de gado bovino e a de carregar, no
que são exímios.
No que respeita à vida familial e social apenas notarei como
costume característico dos Mondombes a forma como procedem
com o cadáver que deslocam emquanto não arrefece de todo,
metendo-lhe a cabeça entre os pés e reduzindo-o a uma espécie
de bola. Depois é embrulhado em panos e exposto, à noite, fora
da cubata, tornando a ser recolhido ao romper da manhã.
É costume fazer passar o cadáver sobre um boi, à saída da
374
POPULAÇÕES INDÍGENAS
cubata onde se dê o óbito, sendo em seguida abatido o animal.
Antes do cortejo funerário chegar ao local da sepultura vai um
mensageiro apregoar a genealogia e qualidades do morto.
No cemitério é morto outro boi, cujo sangue é vazado na se-
pultura; colocam então o cadáver com todas as suas armas e
insígnias, e a cabeça do boi ali abatida; só depois destas ceri-
mónias é que se procede à inhumação.
Eis o que se nos oferece expor como sendo os costumes que
mais em destaque põem os Mondombes entre as tríbus Bimbundus.
CAPITULO XVI
TRÍBTJS GANGUELAS (')
(Baluimbe, Banhema, Bambuela, Babunda, Balutchaze)
T. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica destes povos. — Sua
origem. — População.
Pelas razões já expostas em anteriores capítulos em que con-
juntamente tratamos mais de uma tríbu, isto é, por os povos que
se designam de uma maneira geral por Ganguelas terem usos e
costumes idênticos e falarem uma mesma língua, adoptamos
igual critério fazendo o seu estudo neste capítulo.
Os Ganguelas ocupam o distrito de Benguela para àlêm do
rio Cubango e a parte norte do distrito da Huíla, estendendo-se
os Balimbes ao longo da margem esquerda do rio Cuanza, desde
o rio Luanda até Massaca, e ao longo da margem direita do
Cuanza entre o Dunje e o Cunhinga; os Banhema, do rio Cunene
ao sul dos Galangues e Bienos até àlêm do rio Cuelei ; os Bam-
buela, ao sul dos Banhema e Quiocos, pelo vale de Otchitanda,
entre este rio e o Cubango, e àlêm deste em pequenas colónias
nas margens do Cuito inferior, Luiana e seus afluentes, confi-
nando pelo sul com as tribus N'Ctuba, Cuanjares e Mucussos;
os Babunda ao sul do rio Lungue-Bungo ao longo dos rios Cussibi,
ou Cuti, Chiculai, Minda, Luati, até ao Cuando : os Balutchaze,
entre os rios Luena e Lungue-Bungo.
í1) Cooperou no estudo destas tribus o amanuense sr. Francisco
Araújo e Cunha e forneceu valiosos elementos de estudo o Ex.m0 sr,
dr. Manuel Alves da Cunha.
376
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Não obstante a dificuldade de obter tradições sobre a origem
destas tríbus, parece-nos poder concluir, pelo estudo dos seus
Raparigas Grangnelas
usos e costumes e afinidades com as tríbus Bimbundu e do sul
da província que, não andamos longe da verdade, supondo que
são elas o resultado da disseminação dos povos cujos ascendentes
foram o produto do cruzamento daquelas que invadiram a pro-
víncia pelo norte, nordeste e sobretudo sudeste.
DE ANGOLA
37Í
A parte sul da região ocupada pelos Ganguelas, correspon-
dente às tríbus Baluimbe e Banhema que habitam o planalto de
Benguela, é, como a
região ocupada pelas
tríbus Bimbundu,
aquela da província
onde a densidade da
população é maior; já
assim não sucede na
parte leste e principal-
mente naquela que é
ocupada pela tríbu
Babunda.
As condições cli-
matéricas do planalto
muito concorrem para
compensar e corrigir
as causas, já para ou-
tras tríbus indicadas,
que entre as popula-
ções indígenas contri-
buem para a diminui-
ção da população. Daí
o facto da população
aumentar ou pelo me-
nos estar estacionária
nas tríbus do planalto
e nas outras ter dimi-
nuído principalmente
entre a tríbu Babunda.
Pelas mesmas ra-
zões acima expostas
podemos de urna maneira geral, considerar dois tipos entre os
Ganguelas; um, em que agrupamos os indígenas do planalto,
de estatura mais que mediana, robustos, espaduados e muscu-
lados, e de tez abronzeada; um outro, em que agrupamos as
tríbus de leste, e sul da região ocupada pelos Bambuelas,
25
Ganguelas — Tipo Banhema
378
POPULAÇÕES INDÍGENAS
de estatura mediana, pouco robustos, e de tez negra quási re-
tinta.
No que diz respeito, em especial ao sexo fraco, as mulheres
das tríbus Banhema e Bambuela podem-se classificar das mais
feias e desengraçadas de formas, o que contrasta com a graciosi-
Mulheres G-anguelas
dade de formas e coquetismo das mulheres da tríbu Balutchaze,
que podemos considerar como tipo de beleza mais perfeito da
província.
Os Ganguelas são de carácter jovial, pouco expansivos; nos
seus maiores sofrimentos físicos ou morais raro é verem-se-lhes
as lágrimas, a não ser as mulheres; pouco dedicados; compaixão
apenas para com os parentes muito próximos, e nem sempre;
amizade só quási a filial e esta a materna.
Os Banhema são odiados por todas as outras tríbus, por
DE ANGOLA 379
serem falsos e de má condição, não se aventurando a deixar a
sua terra senão em grandes comitivas, e ainda assim é raro que
não tenham lutas com os outros povos.
Os Balutchaze são aventureiros fazem correrias ou guerras
(como o indígena as classifica) nos territórios dos Banhema,
fazendo razia em gente e gado.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, sciências, faculda-
des intelectuais.
Nos cuidados de higiene e limpeza, salvo as mulheres Balut-
chaze que diariamente se lavam, não fazem estes povos excepção
à grande maioria dos outros da província, não usando lavagens
regulares e, quando o fazem, é por imersão nos rios e riachos.
Untam o corpo, empregando diversas substâncias oleosas, tais
como, os óleos de rícino e de gimguba, e entre algumas popula-
ções do sul, a manteiga.
São variados e numerosíssimos os penteados usados por estes
povos não tendo a pretenção de descrever senão aqueles que são
mais característicos e típicos.
Entre os Baluimbes, os homens rapam à navalha ou cortam
rente o cabelo do alto da cabeça e da nuca, e abrem um sulco
pela mesma forma que partindo dos cantos da testa vai termi-
nar na parte superior da cabeça; as mulheres deixam crescer o
cabelo de que fazem muitas tranças que lançam para trás, e que
ornamentam de missangas e fixam com taxas amarelas.
Entre os Banhema, os Bambuela, Balutchaze e Babunda,
citaremos como um dos penteados mais característicos, aquele
usado por algumas mulheres, consistindo em, do meio da testa
partirem dois rolos de cabelo ou de fibras vegetais entrançadas,
as quais depois de se separarem um pouco, deixando a descoberto
o alto da cabeça, tornam de novo a unir-se, vindo terminar em
bico recurvado na nuca, sendo o resto do cabelo, tanto nas fontes
como entre os dois rolos, penteado liso sobre a cabeça, e termi-
nando por uma tira de missangas de várias cores, em volta da
testa, de orelha a orelha, e acompanhando a raiz do cabelo. Um
outro penteado, característico dos Banhema é o constituído por
380
POPULAÇÕES INDÍGENAS
dois rolos em posição horizontal, postos de trás para diante se-
melhando chifres de antílope.
Dentre os penteados usados pelos homens da tríbu Bambuela,
e da grande maioria dos povos Ganguelas, citaremos: o que
consiste em rapar completamente a cabeça; o de deixar um
Tipos Ganguelas (Banliema)
filete de cabelo crescido, segundo a linha média, entre a testa e
o centro da cabeça, rapando o resto; o de deixar simplesmente
um filete de cabelo crescido, formando uma aureola, que cinge
a cabeça, da testa à nuca; a combinação dos dois penteados
anteriores; metade da cabeça rapada e outra com o cabelo
crescido; a cabeça toda rapada deixando um pequeno rabicho
no centro, ou uma espécie de melenas nas fontes; o de vários
filetes de cabelo crescido, intercalados com partes rapadas,
partindo do centro da cabeça para a periferia.
DE ANGOLA 381
Aqui como em todos os outros povos da raça negra, o ves-
tuário,é constituído simplesmente pela tanga de pano ou de pele,
suspensa na cintura, visto trazerem o tronco nú.
Não obstante predominar actualmente a tanga de fazenda de
origem europeia, ainda se encontram panos por eles tecidos,
principalmente entre os Ba- - _t>y_M,^MHJC^- -
nhema, e é vulgar nos Bam-
buela e Balumbes o uso da ÍÉ^
pele.
Como fazendo parte do
vestuário inumeramos aqui *
uma espécie de saco de coiro
em que algumas mulheres
Bambuela e Banhemas con-
duzem os filhos às costas, e
igualmente entre estes últi-
mos, umas largas tiras de
tecido de malha larga por
eles fabricados, empregadas
para o mesmo fim.
No que diz respeito aos
adornos usados, pode afir-
mar-se que, nas tríbus em &%
estudo, as mulheres, se mais '■■': À
se não carregam de missan- l.^J| ■■HHBH
gas, e de braçaletes e argo- Tipo Ganguelas (Banhema)
las de ferro, de latão ou co-
bre é porque mais não podem ou para tanto não chegam os seus
recursos. Usam missangas, em colares, nas tranças e em tiras ou
pequenas fachas dos penteados ; usam braceletes e argolas de ferro,
de latão ou cobre, nos tornozelos e nos braços; usam taxas de latão
para fixar as tranças.
A alimentação é quási que exclusivamente constituída por
vegetais, e em especial da farinha com que se prepara a massa,
382
POPULAÇÕES INDÍGENAS
base da alimentação, e que nos Baluimbe, Balutehaze, Babunde
e na maioria dos Banhema é feita quási que exclusivamente da
mandioca, o que não sucede com os Bambuela, onde já predomina
talvez a farinha do massango e massambala.
Dos alimentos de que fazem uso tirados do reino animal,
podemos incluir em primeiro logar o peixe dos rios, que, fresco
ou seco consomem em geral assado ;
em segundo logar vem a carne de
caça, e por fim a carne de animais
domésticos, em especial de vaca,
que se abate só por motivo de sa-
crifícios oferecidos aos feitiços ou
por ocasião de festa.
Fazem uso do tabaco e da liam-
ba (cânhamo), principalmente os
Banhema e Bambuela, que fumam
em cachimbos especiais, feitos de
chifres, passando o fumo por um
pequeno deposito de água.
Usam as bebidas fermentadas
da farinha de milho, massango, mas-
sambala e de vários frutos, bem
assim como o hydromel, em especial
os Banhema.
Tipos Bambuelas
*
* *
Entre estes povos predomina nos Baluimbe e Banhema a
forma rectangular das cubatas, nas restantes tríbus e nomeada-
mente na Bambuela, a forma circular.
A cubata tem sempre cobertura de colmo e assenta no solo,
salvo na tribu Babunda, em que as libatas estão situadas em
lugares encharcados e onde as cubatas assentam sobre estacaria.
Nas tríbus de leste as paredes da cubata são revestidas de
colmo ; nas tríbus Baluimbe e Banhema, não obstante a regra geral
seja o revestimento de colmo, está muito em uso o revestimento
de barro.
Na tríbu Bambuela o revestimento de barro é interior, não
se revestindo exteriormente a cubata e deixando a descoberto
os paus que formam o seu esqueleto.
De uma maneira geral as cubatas destes povos são regular-
DE ANGOLA
383
mente lançadas, elegantes, altas, tendo uma grande inclinação
as linhas de água, o que lhes dá um aspecto diferente das habi-
tações dos restantes povos da
província.
Algumas das cubatas bar-
radas são pintadas com ele-
mentos naturais : kaolino, li-
munite e hematite.
As libatas são em geral
cercadas por palissadas com-
pletamente abertas ou fecha-
das, e neste caso comunicando
com o exterior por estreitas
portas corrediças, como des-
crevemos para as tríbus Bam-
tuba, ou abrindo em volta de
uma charneira colocada pela
parte superior, conforme
usam alguns dos povos das
tríbus Bimbundu.
As grandes libatas consti-
tuídas pela reunião de várias
famílias são interiormente di-
vididas por cercados em cada
um dos quais vive uma famí-
lia.
Para a escolha do local da
li bata, concorre principal-
mente, haver próximo boas
•terras para cultura e rios.
Na tríbu Babunda algu-
mas libatas são localizadas
muito próximo às margens
dos rios em terrenos mesmo
pantanosos, sendo as cubatas construídas sobre estacaria. Pa-
rece porém que este uso vai decaindo, visto atribuírem a grande
mortandade nas libatas àquele facto, e que se afastam dos rios,
localizando as libatas nos morros que os acompanham, salvo
para uma sub-tríbu, bamaxis, que ainda constroem as suas cubatas
em cima das águas do rio Cuango.
384 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A principal ocupação dos ganguelas é a agricultura que exer-
cem por processos rudimentares com às suas tradicionais enxadas.
Mtilher da tríbii Balutchaze
A agricultura é exercida pelas mulheres, auxiliadas pelos ho-
mens, deixando de prestar este auxílio no tempo próprio da
extracção das raízes da borracha das ervas (principalmente nas
tríbus de leste) ou das caçadas.
As culturas principais são : a mandioca, para os Baluimbe,
Banhema e Balutchaze; massambo e massambala para os Bambuela
DE ANGOLA
385
e Babunda; de uma maneira geral o milho, o feijão, a ginguba,
a abóbora, etc.
Os Baluimbe, Banhema e Bambuela cultivam ou tratam o
algodão expontâneo que fiam e tecem, fazendo panos ; no entanto
é esta cultura em muito pequena escala.
Não deixa de ser interessante mencionar como em geral os
ganguelas procedem na separação do grão dos cereais cultivados.
Tipos Balutchazes
Aquecem as massarocas ou as espigas, conforme o caso, sobre
uma grelha formada de troncos de madeira colocados sobre um
buraco aberto no chão e no fundo do qual arde um lume brando.
Por este processo, aquecida a massaroca ou a espiga, facilmente
à mão se separa depois o grão.
Dedicam-se à apicultura, principalmente os Banhema, servin-
do-se de cortiços cilíndricos que colocam no topo dos ramos das
árvores mais altas, fazendo largo comércio de cera.
São os Ganguelas todos mais ou menos creadores de gado, salvo
os Balutchaze, os Bambundo e Bambuela de leste que por falta de
pasto possuem pouco gado; predomina a criação de gado bovino.
São caçadores e pescadores, sendo estes misteres exercidos
pelos homens, salvo na tríbu Babunda em que a pesca é das atri-
buições das raparigas.
386
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os Ganguelas trabalham o ferro em forjas, idênticas às que
já descrevemos para outras tríbns, sendo exímios nesta indústria
os Banhema, produzindo machadinhas, enchadas, facas, za-
gaias, etc.
Fiam o algodão em pequenos fios, e tecendo em malha muito
Casa Ganguela
larga umas fachas em que algumas mulheres seguram os filhos
às costas.
Simplesmente com auxílio da faca teem os Ganguelas, espe-
cialmente os Banhema, verdadeiras criações em obra de madeira,
produzindo cadeiras, bancos, bastões, com figuras regularmente
delineadas, e tendo como motivo, scênas de adultério, práticas
obscenas e adágios.
DE ANGOLA
387
Em género de trabalho de madeira não desejamos de nos
deixar de referir à construção de canoas feitas da casca da árvore
(samba) que por ser interessante e não ser usada — que nos
conste —senão pelos Banhema e Bambuela, passamos a descre-
ver.
Fazem-se dois cortes circulares no tronco, um junto ao pé,
outro no ponto em que as árvores deitam os primeiros ramos, e
um terceiro, vertical, unindo os dois; depois começam a separar
a casca, por meio
de pequenas cu-
nhas. Em seguida
enche-seo cilindro
ôco extraído com
folhas secas, fa-
zem-se arder estas
para dar mais elas-
ticidade à casca,
limpa-se esta ex-'
teriormente das
partes mais rugo-
sas e por meio de
paus fortemente
cravados no solo
obrigam-se a unir
as duas extremi-
dades do cilindro,
que se apertam
por meio de fibras vegetais que se fazem passar nos furos que
previamente se teem feito com um ferro de zagaia quente. Para
concluir a canoa, basta afastar na parte média os dois bordos por
meio de travessas de madeira.
Fabricam a farinha por trituração, preparam peles de animais,
não desconhecem o trabalho de olaria, e fabricam toda a espécie
de cordas e atilhos que necessitam.
Tipos Balutchazes
A língua falada é a ganguela ou dialectos desta língua com
pequenas variações.
Sobre canto e música não conhecemos qualquer particularidade
388 POPULAÇÕES INDÍGENAS
a acrescentar ao que expozemos no capítulo anterior sobre os
Bimbundus.
As danças são como em geral entre os povos da raça negra
pouco variadas e monótonas.
Ao centro, três ou quatro tambores seguros entre as tríbus
dos homens que com grande força os percutem ; a pequena dis-
Granguelas — Aparelhos de pesca
tância em círculo fechado, as mulheres formando cordão tanto
mais espesso quanto mais numerosas forem, e em volta delas,
exteriormente, os homens, cujos passos de dança são muito mais
livres e variados; um pouco mais distante, em grupos sentados,
os que não dançam ou já se não sentem de pé muito firmes.
Soam os tambores, eleva-se uma voz, logo um coro que não
é desarmonioso, e o círculo das mulheres agita-se, movendo cada
uma o corpo a um e outro lado, avançando lateralmente em
passo muito miúdo e fazendo soar as manilhas dos tornozelos
pelo bater dos pés no chão; no cordão dos homens, mais amplo
e desafogado, o mesmo balancear do dorso, caminhando em cír-
culo, e de vez em quando um deles dá um salto, gira no ar e
caindo de pé faz um gesto particular.
DE ANGOLA 389
Assim se sucedem uns após outros os passos de dança, sem
variantes, ou tendo-as só na letra do canto.
Em conhecimentos scientíficos àlêm das noções erradas que
os feiticeiros e adivinhos lhes administram dos astros, das chu-
vas, etc, sabem contar pelos dedos e são hábeis curandeiros.
O tchimbanda Banhemba gosa de fama em todo o distrito de
Benguela sendo respeitado até pelos povos circunvizinhos.
Tiram os remédios de que fazem aplicação da flora da região.
Sobre' faculdades intelectuais não se lhes pode negar a me-
mória que conservam até avançada idade; são astutos e obser-
vadores, qualidades de que se servem sempre ao enta"bolar relações
com alguOm, pautando o seu procedimento pelo resultado obtido.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação e iniciação. —
O casamento. — A família. — A morte.
— Religião, ritos, cultos e sacerdócio.
O nascimento das crianças constitue sempre um acontecimento
que é motivo de regosijo, constatado por ofertas aos pais e re-
tribuição destes.
Ao nascimento das crianças assiste uma mulher entendida e
prática que partilha das ofertas por parte dos pais, e que é en-
carregada, passados alguns dias após o parto, de trazer para
fora da cubata o recemnascido, oferecendo nesse dia o pai bebidas
aos assistentes à cerimónia.
O recemnascido recebe o nome de um parente vivo ou já
morto, nome que tem sempre significação de plantas, utensílios,
animais, provérbios, estação do ano, meses, fenómeno da natureza
que se torna notável nessa ocasião, etc.
As crianças do sexo masculino até aos cinco anos estão sob o
cuidado da mãe, só depois desta idade começam a acompanhar
390 POPULAÇÕES INDÍGENAS
o pai e dele a receberem a instrução nos diversos misteres a que
se entregam. f
Entre alguns povos destas tríbus, em especial entre os Balut-
chaze, as crianças, passados os cinco anos, passam para a com-
panhia dos tios maternos que deles podem dispor, e de quem
são legítimos herdeiros.
Pratica-se a circuncisão. A operação é feita ou quando cai o
cordão umbilical e a maior
~! "i
parte das vezes entre os quinze
e os dezoito anos.
A circuncisão é levada a
efeito na época de colheita,
escolhendo-se de preferência
anos de abundância; para a
prática da circuncisão for-
mam-se grupos de trinta a
quarenta rapazes que, com três
ou quatro Tchimbanda, a quem
são entregues, vão acampar a
distância, fora das povoações;
aí são operados, e permanecem
em tratamento durante o tempo
necessário para a cura, não
podendo usar panos e prepa-
rando os vestuários feitos com
fibras vegetais, com os quais,
Tipo de penteado da tabu Bambuela . , , ,
e com o corpo pintado de barro
branco, se apresentam depois da cura. Terminada esta, dirige-se
o grupo com os curandeiros a um rio e ali se lavam, sendo es-
perados pelas famílias, que os vestem com panos novos, sendo o
facto motivo para festas de que o elemento principal é a morte
de um boi, oferecido pelo soba ou século.
As raparigas são também iniciadas ao chegar à idade da pu-
berdade, não conseguindo averiguar das cerimónias ou práticas
a que são sujeitas; sabemos que se pintam de várias cores, se
cobrem com um pequeno pano e estão recolhidas em uma casa
especial e entregues ao cuidado de umas velhas, que são as en-
carregadas da iniciação.
Quando se dá por concluída a iniciação seguem-se as festas e
danças, vindo os rapazes escolher as suas noivas.
Não temos dados seguros para afirmar se das práticas da
DE ANGOLA
âôi
iniciação das raparigas faz parte a cerimónia do desfloramento
por qualquer processo, visto que parece — pelo menos entre os
povos Balutchaze — ser a mãe que em tenra idade desflora a filha
com o auxílio de uma tripa de cabrito cheia de água.
Encontramos nos Ganguelas, como nos centros de civilização,
nojentas degradações que em nada condizem com a natureza
Ganguelas — Preparando a farinha
selvagem da raça a que pertencem e mais parecem filhos de uma
vida enervante de luxúria sexual que não sabemos explicar a
origem.
Alem da masturbação nos dois sexos, é* frequente, nas tríbus
Banhema e Balutchaze, homens e mulheres satisfazerem os seus
prazeres sexuais com indivíduos do mesmo sexo, chegando os
sobas a ter junto com as mulheres um rapazola vestido e penteado
como estas.
No que diz respeito ao ajuste de casamento é ele feito de uma
maneira geral como nos outros povos da raça negra, e em tenra
idade, ficando a noiva em casa da família, geralmente, até aos
doze anos, vindo só depois para a companhia do marido.
392
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Existe a poligamia e entre a tríbu Balutchaze é frequente a
poliandria, visto que a mulher tem em geral dois homens com
consentimento mútuo destes, e até como dever de mulher, porque
não é apreciada pelo homem se não tiver outro.
É frequente o adultério, desagravado com o pagamento de
uma indemnização pelo co-reu adúltero, e facultado pelo marido
ultrajado que no adultério tem uma fonte de receita, consentindo
e até instigando a mulher a cometê-lo, chegando esta a fazer
digressões pelos
povos vizinhos
procurando e
provocando os
homens a quem
se entrega a tro-
co de qualquer
recompensa, e
vindo depois re-
latar ao marido
as infidelidades
cometidas, afim
de este exigir a
respectiva in-
demnização. Ca-
so o arguido ne-
gue perante o
tribunal julga-
dor o crime, é corrente chamar-se a depor a adúltera, e perante
a confissão desta é aquele condenado.
A adúltera só é punida pelo seu crime se o adultério produz
fruto; entre os Balutchaze é esse facto um crime grave.
Existe o divórcio com a restituição ou garantia do contracto
e tendo como causas determinantes as inunciadas para as tríbus
Bimbundu.
Parece, porém, que nem em todas estas tríbus constitui motivo
para divórcio a esterilidade da mulher ou incapacidade, pro-
criativa do homem, pelo menos antes de chegar aquele extremo
tentam, por troca ou empréstimo da mulher, obter prole. É o
que se dá na tríbu Banhema, em que é corrente dois amigos
fazerem o pacto da troca de mulheres; dirigem-se primeiro à
cubata do que fez a proposta; tomam uma pequena refeição e
enquanto o convidado se fecha com a mulher do amigo, o marido
&^:HSsSS^g^-^gr~ ^•VV.Vttó'^'^
Tipo de habitação da tríbu Babunda
DE ANGOLA 393
espera sentado à porta ; saem dali e repete-se a mesma scena em
casa do outro. Os filhos assim havidos são recebidos e conside-
rados como próprios pelo marido da mulher que os concebeu.
A família compõe-se do chefe, das mulheres, dos filhos e dos
sobrinhos filhos das irmãs do chefe da família.
Ao chefe da família devem obediência e respeito os seus di-
versos membros.
A mulher é tratada com certa deferência, principalmente
entre os Balutchaze, e embora sujeita aos trabalhos agrícolas e
de cosinha, não são estes tão árduos que facilmente os não su-
portem, porque os homens deles compartilham.
A mulher da tríbu Balutchaze só procria dos vinte e cinco
anos em diante e fá-lo com tal método, que só tem filhos de cinco
em cinco anos, dizem elas, para conservar a sua beleza por
muito tempo.
Os filhos, como já tivemos ocasião de dizer, estão sob a vigi-
lância da mãe até aos cinco anos, passando depois a acompanhar
o pai ou para a companhia dos tios maternos.
#
* *
Não admitem a morte natural, sendo sempre atribuída a fei-
tiço ou a outra qualquer causa extranha, que, pelos adivinhos,
feiticeiros e interrogando o morto, procuram conhecer; só tra-
tando-se de pessoas muito idosas admitem que o Calunga (o ente
supremo) o levou.
Segundo os usos antigos dos povos Ganguelas, não havia
grandes cerimónias por ocasião da morte de qualquer pessoa;
logo no dia seguinte ao da morte, um sobrinho do falecido trans-
portava-o às costas, com o auxílio de outro parente, e enterrava-o
no mato; depois a cubata do falecido era destruída e queimada,
não se construindo mais no local por ela ocupada. Actualmente
pelo convívio com as tríbus Bimbundu e Quiocos aqueJes usos
estão modificados e praticam mais ou menos as cerimónias usadas
pelos Bimbundu.
394 POPULAÇÕES INDÍGENAS
*
* '*
As considerações expostas ao estudarmos a religião da tríbu
Bimbundu, são, de uma maneira geral, aplicáveis aos Ganguelas,
que cultivam a feitiçaria, a magia e o espiritismo em alto grau.
Como naquelas tríbus, os Ganguelas respeitam é crêem em
um ente supremo que designam pelo nome de Calunga.
Parece designarem pelo mesmo nome Tchimbanda, os adivi-
nhos, feiticeiros e curandeiros, cujas funções estão mais ou menos
ligadas ao culto e por isso podem ser considerados como os seus
sacerdotes;
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade.
Não obstante alguns destes povos, principalmente os Banhema
e Bambuela, se dedicarem à criação de gado, pelo que se poderia
supor que levavam vida nómada e pastoral, assim não sucede.
Aqui como nos outras tríbus da raça negra temos a distinguir,
nobres, livres e escravos; dos primeiros saem, em geral, as auto-
ridades e constituem os conselheiros e os ministros ; nos segundos
agrupam-se os ricos, os pobres, e a ela pertencem os tchimb andas,
finalmente na terceira agrupam-se os escravos : por dívidas, por
pagamento, por efeito de sentença de tribunal, por depósito para
garantia de dívidas, por compra, como presas de guerra, e vo-
luntariamente, entregando-se por dificuldades na vida àquele que
escolhem para seu senhor para o que basta quebrar-lhes diante
de testemunhas qualquer pequeno frágil objecto que lhe pertença,
o que entre os Babunda se chama ukutumbica.
O escravo é tratado como um filho menor, podendo casar com
os filhos do seu senhor, e até a seu bel prazer, quando lhe con-
vier, mudar de senhor, para que basta praticar a ohutumbica em
objecto pertencente ao senhor que de novo escolheu.
Parece existirem associações secretas, não obstante não co-
nhecermos os seus fins nem a sua organização.
£>E ANGOLA
3ÓS
Vamos entrar em uma das partes mais interessantes do estudo
destas tríbus — a organização política — característica para cada
uma delas e com uma feição completamente diferente daquela
das restantes tríbus da raça negra.
A não ser nas tríbus Babunda e Bambuela àquem Cubango,
não existem os grandes estados subdivididos em sub-estados; nas
tríbus em estudo, predomina a federação de pequenos núcleos li-
Bamlmela — Uma libata
gados por laços de família, mais ou menos independentes uns dos
outros.
Na tríbu Babunda cada libata é governada pelo seu secúlo,
assistido de um conselho composto pelos mais velhos, que reúnem
para solucionar as questões de maior importância, sendo as de-
liberações tomadas por maioria. Estes pequenos estados — cha-
memos-lhes assim — estão subordinados ao chefe da tríbu a quem
as magnas questões são presentes depois de ouvida a opinião
daqueles conselhos, e que tratando-se de assuntos de grande in-
teresse para a tríbu, como ameaça de guerra por tríbus vizinhas,
ou resolver sobre a guerra a fazer, sucessão de chefe, etc, reúne
e consulta uma grande assembleia composta por todos os chefes
das libatas e seus parentes, sendo igualmente as resoluções to-
madas por maioria.
O chefe da tríbu é o soba Bando que vem exercendo este
396
POPULAÇÕES INDÍGENAS
cargo há perto de vinte anos, que é das poucas autoridades gen-
tílicas que tem conservado o poder e prestígio entre os seus su-
bordinados. Este soba tem o seu lombe (residência do soba) na
margem do Lua ti, devendo o grande prestígio que goza ao constar
que tem o p oder de transformação, poder de que faria uso se fosse
atacado pelos brancos, transformando a sua libata e embala em
um grande rio, tomando
êle a forma de um hipo-
pótamo.
Uma organização polí-
tica semelhante, consti-
tuída por sobados dividi-
dos em mucundas com os
seus séculos, se encontra
nos Bambuela de àquem
Cubango, não obstante os
sobas terem perdido o seu
prestígio.
Entre os Bambuela de
leste — àlêm Cubango — a
organização política é
constituída por federações
de pequenas famílias cada
uma com o seu chefe.
Entre os Baluimbe e
Balutchaze cada libata constitui um pequeno estado independente,
governado por um chefe que é o mais velho.
Na tríbu Banhema as autoridades gentílicas não são vitalícias,
servindo cada, soba um triénio ao fim do qual é substituído,
sendo destituído aquele que se recusar a sair, dando este facto
logar a lutas entre os vários partidos formados.
Os principais da libata, antes de terminar o mandato do
soba, reúnem secretamente e escolhem o sucessor, que fica des-
conhecido para o povo e o soba em exercício. Nas vésperas o
novo soba é apresentado fora da libata ao seu povo para sancionar
a sua escolha, enquanto o soba que termina o mandato se prepara
para de noite abandonar a residência (lombe) com as suas mu-
lheres e filhos. Na ocasião da investidura do novo soba, prati-
cam-se várias cerimónias inerentes ao caso, como sejam entrega
de chaves e mais pertences da residência do soba, a que se
seguem festas e grande fusilaria.
Balutchazes — Circuncisão
DE ANGOLA 397
Diz-se — não o podendo nós asseverar — que por esta ocasião
uma das cerimónias consiste na apresentação da cabeça de um
homem que é enterrada conjuntamente com uma cabeça de
malanca (boi bravo).
O executor, kissa?nbo, acompanhado pelos kissongos sai em
busca da vítima humana que tem que ser decapitada e que
servirá na cerimónia, dirigindó-se a terras alheias, e em sítio
pouco frequentado, para por surpreza agarrar, auxiliado pelos
kissongos, o primeiro desgraçado que apareça, cortando-lhe a
cabeça que leva para a embala, abandonando o corpo. Muitas
vezes a vítima pertence ao estado e é indicada pela família por
ser mau elemento ou que por qualquer outra razão convenha
que desapareça.
A sucessão nas tríbus em que os sobas são vitalícios é por
via colateral feminina sendo herdeiros do trono os irmãos ou
sobrinhos filhos das irmãs.
#
# #
Os Ganguelas e destes em especial os Banhema, entregam-se,
em grande escala, ao comércio de permuta, não só dos géneros
que constituem a principal alimentação dos indígenas, como
igualmente de gado, couros, cera e borracha, constituindo estes
produtos os artigos de exportação que os Ganguelas permutam
por fazendas, contaria, missanga, armas e pólvora (quando a sua
venda está autorizada) e outros tantos artigos que o comércio
europeu tem introduzido.
Não existe o contracto de locação e em matéria de contractos
os mais usuais são de compra e venda, que se fazem perante
testemunhas e em geral à vista.
Existe o penhor como garantia do pagamento de dívidas, que
consiste em gado e em escravos.
A moeda entre estes povos são os escravos, gado e as fa-
zendas.
A indústria é familial.
#
* *
Os julgamentos são da competência do tribunal constituído
pela soba ou século que preside e dos seus conselheiros, os velhos
da libata.
398 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Mo obstante o soba ou secúlo presidir ao julgamento parece
que nem em todas as tríbus Ganguelas, é êle encarregado de
dirigir os trabalhos, havendo por exemplo na tríbu Babunda em
todas as libatas uma personagem especial para esse fim, que
deve ser, esperto, velhaco e dotado d,e verbosidade.
Instalado o tribunal tomam assento junto do presidente os
seus membros, a um lado assenta-se o arguido, a outro o quei-
xoso, fazendo-se acompanhar cada um respectivamente dos seus
advogados, testemunhas, parentes e convidados.
Aberta a sessão dá o presidente a palavra ao queixoso, ao
arguido, aos seus advogados e testemunhas e a quem mais deseje
manifestar a sua opinião, ao fim do que é a sentença proferida
pelo presidente.
Parece que antes do julgamento de certas causas o tribunal tem
uma reunião secreta preparatória ou para instrução do processo.
Além da prova testemunhal, quando estas não esclarecem os
julgadores ou quando as partes não se conformam com a decisão
do tribunal, recorre-se às provas por sortilégios, torturas ou
veneno.
Estas provas são administradas ou da competência do curan-
deiro.
Para a prova do veneno o feiticeiro manipula a droga e,
dividindo-a em partes iguais, ingerida pelo arguido e queixoso.
Um deles pouco depois, começa a sentir os efeitos do veneno, e
c-aindo exausto no chão, e vendo-se perdido, acaba por confes-
sar-se culpado, embora o não seja, para que o curandeiro lhe
administre o contra-veneno.
Uma outra prova consiste em perante o tribunal pôr em ebu-
lição uma porção de água, sujeitando arguido e queixoso, a meter
as mãos na água, repetindo esta operação três vezes. Discute-se
novamente a causa e averigua-se qual dos dois ficou queimado,
sendo este considerado culpado.
Uma outra prova, consiste em cortar rapidamente a cabeça a
uma galinha, atirá-la para o meio do tribunal e para a frente do
indigitado culpado, se acaso a galinha deixa de estrebuchar é
este considerado réu sem apelo.
Todos os crimes e delitos são punidos com indemnizações ou
composições às partes lesadas, incluindo o de morte que é pago
aos herdeiros do morto. Uma excepção existe para o crime de
morte por meio de feitiço, sendo o suposto criminoso queimado
vive.
DE ANGOLA
399
Para este caso especial intervém o adivinho afim de averiguar
quem seja o culpado, e quando confirmado duas ou três vezes,
G-ançuelas — Festa da circuncisão
por meios diferentes, aplicados pelo adivinho, é aquele sentenciado
à morte.
Os pacientes são geralmente procurados entre as mulheres de
idade avançada, sendo sacrificadas juntamente as filhas solteiras.
São amarradas nuas de pés e mãos, deitadas no chão e, cer-
cadas por toda a gente da libata ao som do jingufu (tambor) e
de cantos, são espesinhadas.
A seguir são levadas para o lugar do suplício, ali amarradas
a uma árvore, e emquanto a música e cantos não cessa, vão
400 POPULAÇÕES INDÍGENAS
depondo em volta dos sentenciados feixes de lenha, a que o mais
velho da libata deita o fogo. A música e cantos continuam para
sufocar os gritos dilacerantes da vítima, estando, dentro de pouco
tempo, tudo reduzido a cinzas.
Aqui como na tríbu Mucussu o indivíduo que propositadamente,
ou involutáriamente cegar de um ou dos dois olhos outrem, é
condenado a, todos os anos, pagar-lhe, emquanto fôr vivo uma
determinada indemnização.
uM.Sffe/a •/'<'* zmp.
CAPITULO XVII
VANYANEKAS (4)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação dos povos designados por vania-
nekas. — Sua origem. — População.
Os povos designados por vanianekas habitam uma extensa
região na parte mais alta do planalto da Huíla situado entre os
graus 14 a 16 de latitude sul e compreendendo as circunscrições
do Lubango, Chibia, Humpata e Gambos.
O nome por que são conhecidos deriva do verbo o Kuanyaneca
que significa estender ao sol.
Os vanyanekas são originários dos povos cuja imigração se
deu pelo norte da província e que não se tendo fundido com as
tríbus que se chocaram no planalto de Benguela, vindas de nor-
deste e sudoeste, se foram estabelecer no planalto da Huíla, onde
os seus usos e costumes passaram por grandes transformações
em contacto com os damaras, ovampo e hotentotes que pelo sul
invadiram a província.
Os vanyanekas são bem constituídos, solidamente musculados,
aprumados e a côr da pele de um preto avermelhado e cabelo
encarapinhado.
Encontram-se albinos e observa-se em alguns o bócio.
(') Prestaram a sua colaboração no estudo desta tribu o administrador
de circunscrição sr. Campos Palermo e os missionários do planalto da
Huíla.
402 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Extraem os dois incisivos superior médios ou limam-os de
forma a deixar entre este um espaço de forma triangular.
São joviais e expansivos entre si, principalmente nos tempos
de abundância e nas festas e corajosos quando estão certos de
pilhagem. A polidês é absolutamente exigida para com os chefes
gentílicos, pessoas de idade e parentes.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes, seiências e faculda-
des intelectuais.
Entre estes povos não há uso de banhos ou de lavagem, mas
untam o corpo com manteiga ou com óleos vegetais, o que não
é exigido pela religião, e tão somente pelo bem estar que sentem
e para tornar a pele macia.
No que diz respeito a penteados existe uma grande variedade,
não se encontrando um que se possa considerar como caracte-
rístico da tribu.
Assim entre os povos da Huíla, Chibia, Humpata e Lubango
o penteado mais usual, quer entre os homens, quer entre as
mulheres, são as cabeleiras penteadas em forma de crista. Entre
os povos habitando os Gambos, os homens, uns rapam comple-
tamente a cabeça, outros rapam o cabelo só na parte correspon-
dente à nuca, e ainda outros deixam crescer grandes cabeleiras
que penteiam para trás; as mulheres, umas deixam crescer uma
pequena porção de cabelo na parte média da cabeça e que se
alonga da testa à nuca, e nas partes laterais fazem múltiplas
tranças que adornam, outras usam um penteado, como que for-
mando as abas de um capacete, que fazem com o auxílio de
pequenas vergônteas de madeira.
A.s mulheres e crianças do sexo feminino costumam adornar
a cabeça com contarias, taxas amarelas e às vezes penachos.
Empregam a epilação apenas para as barbas, parecendo que
obedecem a um simples costume. Muitos trazem pendurada ao
pescoço, por um cordel, uma pequena pinça de ferro, para pro-
ceder à epilação.
Dormem durante a noite; apenas as pessoas idosas é que
descansam um pouco de dia, durante as horas de maior calor.
DE ANGOLA
403
Não são nadadores, só em caso de inundação para se salvarem.
Poucos são os que sabem nadar.
Conduzem aos ombros as tipóias e as diferentes cargas, sendo
estas apertadas por dois paus compridos, a que chamam ono-
mango. Muitas vezes levam à cabeça cestas com mantimento.
Tipos Vanyanekas (Humpata)
Não consta que haja torneios de luta, mas como divertimentos
entregam-se a diferentes jogos sendo os principais: onkusso,
omphnono, okange.
#
No que diz respeito a vestuário consiste êle em um pequeno
pano suspenso na cintura á frente, e atrás uma pele de cabrito ou
de onça para os homens, uma pele de bezerro ou de carneiro para
as mulheres e uma pele de cabrito para os rapazes e raparigas.
Fazem uso de sandálias feitas com pele de boi.
Todos os materiais empregados nos vestidos são obtidos do
comércio por permuta, excepto as peles. Não há alfaiates, sendo
os panos remendados em família.
Alguns adornos marcam a posição social dos que os trazem;
assim os sobas colocam nas cabeleiras certas conchas brancas,
que só eles podem trazer. Os feiticeiros possuem certas conta-
rias e amuletos da sua classe e alguns ministros do soba costumam
ter objectos inerentes à sua dignidade.
404 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como adornos usam nos cabelos, contarias de cores, botões
dourados, taxas também douradas, penachos; nos braços, brace-
letes e pulseiras de ferro, de metal amarelo e de junco denomi-
nados ovikeka; e nos dedos anéis. Ao pescoço suspendem "uma
infinidade de amuletos, feitiços, cartuchos vasios, fivelas, chifres
pequenos e contaria grande e meuda.
Pintam o corpo em diversas festas gentílicas, principalmente
por ocasião da festa do soba e na mudança de cabeleira das
raparigas, empregando para isso terra branca, terra encarnada ,
folhas moidas, etc.
Não ligam muita importância à tatuagem no entanto alguns
há que a empregam por meio de picaduras ou antes pequenas
incisões cujas cicatrizes formam desenhos variados.
#
A base de alimentação é vegetal e consiste principalmente
nas conhecidas papas de farinha de milho ou massango, em
feijão frade ou macunde, abóboras, algumas frutas dos bosques,
mandioca e cará.
A carne de diversos animais, tanto domésticos como selvagens,
assim como o peixe fresco ou seco, fazem igualmente parte da
alimentação. Apreciam extraordinariamente a carne dos bovídeos
mortos pela peripneumonia, caonha, doença muito vulgar no
planalto e a que vitima mais gado.
O leite é sempre coalhado.
As diversas espécies de carne são cosidas, assadas ou torra-
das nas brazas, assim como o peixe seco ou fresco, e usando
como tempero o sal.
Como bebidas, usam a aguardente, ás vezes o vinho, o hidro-
mel e as bebidas fermentadas onkela, ongougo, macau e berlunga,
fabricadas pelas mulheres. De uma maneira geral estas bebidas
são produzidas pela fermentação das farinhas de milho, de mas-
sango de massambala, obedecendo todas elas ao mesmo processo
de fabrico. Primeiro fazem germinar o cereal, regando-o com
água. Uma vez germinado é pizado até o reduzirem a pó, pondo-o
em seguida a secar. O pó assim obtido constitui o fermento ;
para fazerem a bebida, pizam uma porção de cereal, que depois
de reduzido a farinha deitam dentro de um recipiente com água
a ferver conjuntamente com determinada quantidade de fermento.
DE ANGOLA
405
Decorrido que sejam vinte e quatro horas, está a bebida sufi-
cientemente fermentada.
Os homens comem separadamente das mulheres. As crianças
comem no mesmo prato ou cestinho.
A refeição principal é à noite composta de pirão e um conduto
qualquer.
A cosinha é uma cubata não rebocada, compondo-se de fogão
de três ou quatro pedras entre as quais se introduz a lenha; as
Tipos Vanyanecas (Quipungo)
panelas são de argila cosida, mexendo o alimento com um pau
denominado oluvale.
O fogo é produzido ordinariamente fazendo-se girar uma vara
em um orifício. Os que estão em contacto mais próximo com os
brancos já empregam fósforos.
Existem alguns manjares proibidos por motivos de superstição
e crenças religiosas, sendo entre eles certos pássaros e animais.
Os excitantes principais, usados entre estes povos, são o ta-
baco e o cânhamo, mas este raras vezes.
A antropofagia, propriamente dita, não existe entre os vanya-
nekas, todavia certas cerimónias exigem que os iniciados comam
carne humana.
Os celeiros são particulares; cada família tem o seu ou nas
libatas ou nas florestas, longe dos olhares curiosos.
Secam a carne e o peixe ordinariamente ao sol.
406 POPULAÇÕES INDÍGENAS
#
O tipo da habitação é a cubata construída de pau a pique e
de forma circular, barreadas interiormente, com uma* abertura
que serve de porta e janela ao mesmo tempo. As cubatas teem
um diâmetro de três metros aproximadamente.
As cosinhas estão instaladas em cubatas separadas da habi-
tação e não são barreadas.
Escolhem de preferência para local das habitações as monta-
nhas, ou as planícies não expostas a inundações. O dono da
aldeia escolhe o terreno, manda cortar a madeira para as casas
e sem mais formalidades principia a construir.
Não existem habitações transportáveis. Cada homem faz a
sua casa sem embelesamentos.
Como mobília estes povos tem apenas uma pele a servir de
cama, panelas de argila, alguns cestos de diferentes tamanhos e
cabaças para água. t
Não é costume haver iluminarão, quando de noite necessitam
procurar o caminho ou objectos perdidos, acendem fogueiras ou
servem-se de um tição. Para se aquecerem servem-se também
de fogueiras.
As casas não obedecem à linha recta, agrupam-se simplesmente.
O curral consiste num simples cercado que está ordinariamente
no meio da aldeia. Tende a desaparecer o costume de circundar
as aldeias com palissadas sólidas, que constituem verdadeiras
fortificações.
Os vanyanekas dedicam-se à agricultura, sendo os homens
que arroteiam os campos, procedem as mulheres ás sementeiras
e apanha dos frutos.
Cultivam por processos rudimentares o milho, o sorgo, o
massango, o feijão, as abóboras e o tabaco. Não empregam
adubos, nem regas, a não ser na cultura do tabaco que regam à
mão e fazem em antigos curais.
O único instrumento empregado na agricultura é a enxada,
no entanto usam o machadinho, a catana, a moca, a faca ordi-
nária e uma outra de dois gumes a que chamam onutenge.
DE ANGOLA 407
São caçadores, servindo-se muito da espingarda, moca, azagaia,
arco, flexas e armadilhas.
Dedicam-se à creação de gado bovino, caprino, lanígero e
suino.
As mulheres e creanças dedicam-se à confecção de cestos e
fabrico de objectos de barro.
No que diz respeito ás indústrias, exercem as de tanoaria,
e bem assim a de metalurgia, fabricando azagaias, machadinhos e
braceletes. O ferreiro é sempre um homem importante.
A moagem é por trituração no pilão.
A língua falada por estes povos é a nyaneka.
Pertence como todas as faladas na colónia a grande família
das línguas faladas pelos povos do grupo Bantu.
Línguas — prefixas, polígenas e de classificação não se-
xual.
É muito mais semelhante à do Umbundo do que ao Kimbundo
ou Kicongo. Poderia mesmo considerar-se um simples dialeto
da língua N'Bundu mas não o classificamos assim porque sa-
bendo que os povos hoje chamados njoneka vieram àcêrca de
dois séculos reunidos ao Vananos e outros povos que falam
aquela língua não é possivel concluir a qual delas cabe na ver-
dade a classificação.
Sem pretendermos apresentar aqui um estudo gramatical
completo de língua limitamo-nos a incluir neste trabalho algumas
noções colhidas de obras publicadas pelas missões da Huíla.
Adoptando para a língua Nyaneka o alfabeto português temos,
no que respeita à fonética de convencionar algumas alterações.
Assim :
O — Sôa sempre como o nosso gue mesmo antes do é ou i.
H — É sempre aspirado.
O — Sôa sempre como o nosso é aberto.
R — Sempre brando como na palavra Maria.
S — Tem sempre o valor do nosso ç mesmo entre vogais.
Y — Sôa como dois ii.
Do y servimo-nos também para representar um som especial
da língua, muito difícil de pronunciar e mesmo de exemplificar
pelo alfabeto português. É o de determinadas consoantes compostas
408 POPULAÇÕES INDÍGENAS
que alguns gramáticos chamam molhadas, e que representamos
por u, d, t seguidas y pela seguinte forma :
Ny — Equivalendo ao nhi português.
Dy — Exprimindo-se dos sons de ndi-nhdi e ndj-nhdj do por-
tuguês.
Ty 1 — Sôa entre o txi e til da nossa língua.
SUBSTANTIVOS
Plural dos substantivos
O plural faz-se sempre no princípio das palavras.
l.a Os nomes que começam por omu (seres animados), mudam
o omu em ova. Ex. : omukuendye, rapaz, ovakuendye; omuntu,
pessoa, ovantu. Huko, Deus, faz no plural ovohuku; tate, meu
pai, ovotate; nyoko, tua mãe, ovonyoko ; i?ia, mãe dele, ovoina;
otava, camarada, ovotava;
2.a Os que principiam por omu (seres inanimados), mudam
o omu em omi. Ex. : omuti, árvore, omiti; o?nutue, cabeça,
omitue;
3.a Os que começam por olu; otu ou ou mudam o o em orna;
ex. ; olufue, copo, omalufue; otupia, fogo, omatupia; outa, cama,
omaula;
Alguns teem no plural outra forma mais usada em ono ou
onon;ex.; oluhúki, cabelo, onohukiou omatuhuki; olukui, lenha,
ononkhuiouomalukui ;
4.a Os que começam por o* seguido de outras letras não men-
cionadas acima mudam o o em ono; ex.; ofufua, galinha, onofu-
fua; omfunda, montanha, onomfunda; ondenge, irmão, onon-
denge ;
5.a Os que principiam por e mudam esta letra em orna; ex.:
ekamo ; etala, lagoa, omatala; eiho, olho; omaihe, vista, omeho,
órgãos ;
6.a Os que começam por otyi mudam em-ovi; ex. : otyihutu,
camisa, ovikutu; otyinyango, fruta, ovinyango ;
Alguns há, porém, que fazem o plural irregular ; ex. : otyalo,
banco, ovityalo ; otyoto, altar, ovityoto ;
7.a Os que começam por oka fazem o plural em ou; ex. :
okatemba, carrinho, outemba; okana, criancinha, ouna;
8.a Os que principiam por oku, uns fazem o plural somente
1 Som muito diferente do texi e tki que se exprime em Umbundo pelo
grupo tchi.
£>E ANGOLA
409
oku em orna; ex. : oknuoko, o braço, omauoho ; outros também
mudam o o em orna; ex. : okútui, orelha, o?nakutids órgãos,
omatui, audição.
Tabela dos preflxos, inflxos e sufixos, "com os quais se operam
as concordâncias das palavras
Classes
2.*
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Singular — Ame
pessoa D, , ~ ,
( Plural — Ontue
( Singular — Ove
^ K j Plural — Onue
iSi?igular — O mu. . . .
(Plural — Ova, ovo.. .
i Singular — Omu
[Plural — O mi
Singular — 01 u
I Singular — Otu
I Singular — Ou
Plural — A
J Singular — O
\Plural — Ono
( Singular — E
\ Plural — Orna
i Singular — Otyi
[Plural — O vi
j Singular — Oka
[Plural— Ou
I Singular — Oku
Plural — Orna
Pu ..
Ku
Mu
Prefixos
dos
qnaliíi a-
tivos
ndyimu
tuva
omu
muva
omu
ova
omu
omi
olu
otu
omu
orna
o
ono
e
orna
otyi
ovi
oka
ou
oku
orna
pa
ku
mu
Prefixos
pronomi-
Infixos
pronomi-
nais
sujeitos
comple-
mentos
ndyi
ndy
tu
tu
u
ku
mu
mu
u
mu
va
ve
u
mu
vi
VI
lu
lu
tu
tu
u
u
a
e
i
í
mbu
mbu
ri
ri
a
e
tyi
tyi
VI
VI
ka
ke
u
u
ku
ku
a
e
pa
pe
ku
ku
mu
mu
Sufixos
pronomi-
nais
comple-
mentos
ange
etu
ove
enyi
o
vo
o
vio
luo
tuo
uo
o
io
mbo
rio
o
tyo
vio
ko
o
ko
o
po
ko
mo
Qualificativos
Há poucos qualificativos nesta língua e empregam-se sempre
precedidos dos prefixos da segunda coluna; ex.: omuti omunene,
uma árvore grande; omamanya omale, as pedras compridas.
27
410
POPULAÇÕES INDÍGENAS
GRAUS DOS ADJECTIVOS
Qualificativos
O comparativo de igualdade forma-se pospondo-se nga (assim)
ao positivo, ex.: elombe omuua nga he, o chefe é tão bom como
o pai.
O comparativo de superioridade forma-se pospondo-se vari
(mais) ao positivo; ex.: o meu livro é mais bonito, omukando
uange omuua vari; ou
então empregando ver-
bos, que indiquem ideia
de superioridade; ex.:
meu pai é mais rico do
que o meu irmão, iate
u apita vari ondenge
iange kJolu?nono, (lit.
passa acima do meu ir-
mão em riqueza).
O comparativo de in-
ferioridade for ma-se com
verbos, que exprimem
ideia de inferioridade;
ex.: a minha manta é me-
nos forte do que a tua,
onguno iange kaikolele
(não forte) iove iakota-
vari (a tua é mais forte).
O superlativo absoluto forma-se repetindo-se o positivo; ex.:
epata enene-nene, casa muito grande.
O superlativo relativo forma-se por meio de uma perífrase; ex.:
a melhor fruta, diz-se : p}ovinyango, tyino otyiua vari, dentre as
frutas, esta é melhor.
Demonstrativos
Estes formam-se com as partículas no, que significa perto, ena,
longe, precedidas dos prefixos pronominais sujeitos (3. a coluna);
ex.: omuntu una, literalmente: o homem êle lá, ou aquele homem.
Outras formas de demonstrativos figuram no quadro abaixo.
Possessivos
Formam-se com o sufixo complemento, correspondente ao
prefixo do possuidor, precedido do prefixo do sujeito correspon-
Tipos Vanyanecas (Lubango)
Í)Ê ANGOLA
411
dente ao da causa possuída, interpondo-se um a; ex.: ovifuo
viavio, as folhas delas (árvores).
O sufixo complemento o da l.a classe do singular muda-se
em e; ex.: epia riae, em vez de riae, em vez de riao, o campo dele.
Na formação dos possessivos das l.a e 2.a pessoas de ambos
os números o a elide-se ; ex. : uange, riove> mbetu e luenyi.
Vem aqui aqui a propósito falar do genitivo : forma-se este
como o possessivo, elidindo-se o a antes de vogal; ex. : ondaka
ia Huku, a palavra de Deus; omfunda iotylongo tyange, a mon-
tanha da minha terra.
Numerais
A simples contagem faz-se do modo seguinte :
1 — Mohi.
2 — Vari.
3 — Tatu.
4 — Kuana.
5 — Tano.
6— Panda.
7 — Pandivari.
8 — Tyinana.
9 — Tyive.
10 — Ekui.
11 — Ekui na ike.
12 — Ekui na vari.
20 — Omakui evari.
30 - Omakui etatu.
40 — Omakui ekuana.
100 — Otyita
200 -- Ovityita vivari
600 — .Ovityita epanda.
700 — Ovityita epanduvari.
800 — Ovityita etyinana.
900 — Ovityita etyive.
1000 — Ekui — riovityita.
Quando o nome vem expresso, antepõem-se ao numeral 1 a 5
inclusive os prefixos pronominais sujeitos (3.a coluna), com as
seguintes excepções: O a muda-se em e, e no plural da 4.a classe
emprega-se o prefixo dos qualificativos. Ex. :
1 rapaz — omukuendye uike.
2 pastores — ovantita vevari.
4 livros — omikanda vikuana.
5 virtudes — omakamo etano.
3 carneiros — onongi onontatu.
De 6 a 9 inclusive, antepõem-se um e; ex. : omivia epandu,
seis cintas; onombula etyinana, oito cortiços.
O número 10 é invariável; ex. : oviimbo ekui, dez cantos;
onontemo ekui, dez flores.
De 11 a 99 a concordância faz-se do modo seguinte: em pri-
meiro lugar fica o nome, em seguida o algarismo da dezena,
emfim o da unidade, quando houver, precedido do prefixo do
nome; ex. : omihongo omakui evari na vivari, 22 cartuchos;
omauta omakui ekuana na etano, 45 espingardas; omasolari
omakui epanduvari, 70 soldados.
Tratando-se de centenas, figura primeiro o nome, depois o
412
POPULAÇÕES INDÍGENAS
algarismo da centena e segue-se a regra acima ; ex. : omiti ovi-
tyita vivari nomakui etano na vitatu, 253 árvores.
As formas: uma vez, duas vezes, etc, são os cardinais, pre-
cedidos de tu; ex.: tulce, tuvari, etc. De 6 para diante são os
cardinais sem modificação: epandu, epanduvari, etc.
Numerais ordinais
Estes são os cardinais, precedidos dos prefixos dos genitivos;
ex.: emanya riatatu, terceira pedra.
As formas: primeira vez, segunda vez, etc, são os cardinais,
precedidos de tya, ex.: tyke, tyavari, tyatatu.
Tabela dos demonstrativos
Classes
Este
Aquele
Este aqiú
Aquele lá
1
Singular — Omu . . .
OU
0
oióu
oió
Plural — Ova
ava
ovo
ovava
ovovo
'
Singular — Omu . .
ou
0
oióu
oió
Plural — Omi
evi
ovio
ovievi
ovióvio
Singular — Olu ...
olu
olo
ololu
ololo
J Singular — Otu . .
j Singular — Ou
otu
oto
ototu
ototo
, ou
0
oióu
0
1 Plural — A
a
o
a (oiua)
oiei
0
oioio
( Singular — 0
{Plural — Ono
ei
oio
ombu
ombo
ombombu
ombombo
1 Singular — E
j Plural — Orna
eri
orio
orieri
oriorio
a
0
a (oiua)
ó
A Singular — Otyi —
\Plural — Ovi
etyi
otyo
utyetyi
otyotyo
evi
ovio
ovievi
oviovio
1 Singular — Oka . .
\ Plural — Ou...... .
aka
oka
okaka
okaka
ou
0
oióu
ó
A Singular — Oku. .
j Plural — Orna
oku
oio
okoku
okoko
a
0
a (oiua)
ó
Pn
apa
oku
omu
opo
oko
orno
apapa
okoku
omomu
opopo
okoko
Ku
Mu •
omoiTio
yiHV/lHv
Os da 2.a e 3.a colunas são adjectivos e pronomes, os da 4.a
e 5.a são só pronomes demonstrativos.
As partículas no e na, precedidas dos pronomes da 4.a coluna,
servem também para formar um outro modo de demonstrati-
DE ANGOLA 413
vos : oiouna ano, oruána, oieino, ombombuna, orierino. otyetyino,
ovievina, okakana, okokuna.
Relativos
Estes não se traduzem em Olunyaneka ; ex. : namona o mu-
lume, ueya, vi o homem, que veiu.
Indefinidos
Muito, a, os, as, — nyingi. | Outro, a, os, as. — kuavo.
Antepostos dos prefixos dos qualificativos (2.a coluna).
Certo, a, os, as, — mue. Algum, a, uns, as, — mue.
Tal, tais, — atyo.
Precedidos dos prefixos pronominais sujeitos (3.a coluna).
Nenhuma, a, uns, as. — Na mue. | Nenhum Só, — Na ike.
As partículas mue e ike antepoem-se os prefixos pronominais
sujeitos (3.a coluna).
Todo, a, os, as. — a-ho. | Pouco, a, os, as. — ka-hi.
Intercalados dos infixos pronominais complementos (4.a co-
luna).
Cada um, uma. — Kalamununu.,
Tudo. — Atyiho.
O mesmo, a, os,?as. — Lumue.
Qualquer, quaisquer. — Hatyo.
Um poucochinho. — Okatutu.
EXEMPLOS
Omakumbi omanyingi, muitos dias ; ofivuo vimue, algumas
folhas; omunthu na umue, nenhum homem; onandaka ambuho,
todas as palavras ; ovinuango havihi, poucas frutas ; mouye muno
atyio tyipua, tudo acaba neste mundo.
Interrogativos
Que? qual? quais? (adj.) — pi, (pron.) o-pi.
Sendo adjectivo, vem depois do nome e é precedido dos
infixos pronominais complementos. (4.a coluna); excepto na l.a
e 2.a classe do singular, em que se empregam os prefixos pro-
nominais sujeitos ; sendo pronome, é a forma o'pi intercalada
dos infixos e prefixos acima ditos. Ex. : oripi? (emanya) qual?
(pedra); omukay opi? que mulher?
Qual? quais? (espécie), —patyi ? | O que (com o verbo). — tyi ?
Ex. : otyiv era patyi? qual ferro? — Uhandatyi ? o que queres tu?
Quantos, as ? — ngapi
414
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Precedidos dos infixos pronominais complementos (4.a coluna) ;
exceptuam-se a l.a e 7.a classes, em que figuram os prefixos dos
qualificativos; ex. : omiti vingapi? quantas árvores? onombolo
onongapi? quantos pães?
De quem ? — o-arie ?
Dè que ou para que ? — o-atyi ?
Intercalados dos prefixos pronominais sujeitos (3.a coluna) ;
ex. : olufu oluarie? de quem é o copo? ombila oiatyi? para que
serve a chuva ?
Quem sou eu ? — amalie ?
Quem é ele ? — orie ?
Quam sois vós? —muvariè?
Quem és tu? — overie?
Quem somos nós? — tuvarie?
Quem são eles? — ovarie?
Para maior compreensão das regras acima ditas, veja-se a
conversação.
Vocativo
Os vocativos formam-se eliminando a , primeira vogal dos
nomes. Ex. : mulume! Ó homem ! Liepe, mfepo nkhombe, tetemena
rieulu! Salve, anjo, príncipe do ceu !
Os adjectivos seguem a regra, excepto os possessivos. Ex. :
nondenge mbange mondalaua! meus irmãos justos!
CONCORDÂNCIA
1.° Concorrendo dois ou mais nomes de pessoas do mesmo
prefixo ou diferente, o prefixo do adjectivo ou do verbo é o da
l.a classe; ex. : ohamba nonkhayhamba nonondei ovaua, o soba,
a rainha e os ministros são bons ; he novana nomapanga a Pedulu
vapita, o pai, os filhos e os amigos de Pedro partiram.
2.° Havendo nomes de cousas ou de animais do mesmo pre-
fixo, ou prefixos' do adjectivo e do verbo são correspondentes
aos da classe, a que pertencem aqueles nomes. Ex. : epatanomapia
à omanene aringa epingo riange, a casa e os campos vastos
tornaram-se minha herança ; onkhuriha monkhapi mburia ovanta,
o leão e onça são ferozes.
3.° Concorrendo nomes de cousa ou de animais de prefixo
desigual, o prefixo do adjectivo é ovi e o verbo vi. Ex. : etemba
novitele vienyi viao?nba, o carro e as vossas cargas perderam-se;
ombua notyimbisi vityiriya ovantu, o cão e o gato acostumam-se
com o homem.
4.° Quando houver nomes de pessoas, animais e cousas, o
prefixo de adjectivo é o do mais próximo e o do verbo é ty.
DE ANGOLA
415
Ex. : ovana, nonongombe nepata riae tyapundua, os filhos os bois
e a casa dele foram roubados.
Pu, Ku, Mu.
Estas preposições chamamo-las locativos, porque as empre-
gamos sempre referindo-se à ideia de logar; a primeira significa
pe?'to de ou sobre, a segunda na direcção de com ou para com
a terceira em ou dentro. Guardam a sua forma primitiva antes
Raparigas Vanyanekas
dos nomes sem prefixos e dos pronomes; ex.: ku nioko, com tua
mãe; pu ove, perto de ti. Quando precede outro nome o u eli-
da-se.
Correspondentes a estas preposições há os advérbios de logar ;
apa, opa, opopa; oku, oko, okoJai; omu, orno, omumo.
Nas orações formadas com estas preposições ou advérbios
deve-se estabelecer a concordância entre as preposições e os
advérbios, e o adjectivo e o verbo ; os prefixos de concordância
são os da 2.a coluna, da tabela dos prefixos; ex.: apa payikua,
aqui está fechado; oko kuua, ali é bonito; orno muantikovera,
dentro está escuro.
Com estes mesmos prefixos (pa, ku, mu) e as partículas de-
monstrativas no e na, formam-se advérbios demonstrativos; veja
tabela dos prefixos, 3.a coluna.
Finalmente há sufixos correspondentes (po, ko, mo), que se
pospõem aos verbos para explicar melhor a ideia; ex.: polapo,
416 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tira aqui; napolako, tirei ali; vapolamo, tiraram dentro (veja-se
conversação).
O complemento (me) ndyi tem as seguintes alterações :
Antes de uma vogal transforma-se em ndy ; ex.: undyi? co-
nheces-me? em vez de undyii; aandyamena, favoreceu-me, em
vez de uandyiamena.
Antes de y transforma-se em nd; ex.: undyeka, êle deixa-me,
em vez de undyiyeka.
Antes de h muda-se em nty, isto é, o h passa para antes do y ;
ex.: untyole? amas-me? em vez de undyihole; ouomu uantyenesa,
o medo faz-me fugir, em vez de ouoma uandyihenesa.
A mesma regra aplica-se aos verbos, que começam por fous;
estas letras transformando se em h; ex.: okufuisa, preparar,
ntyuisepo, preparar-me aí, em vez de ndyifuisepo ; okusa, deixar,
uantya, deixou-me, em vez de uandyisa.
Antes de l e r muda-se em n e o l e r do verbo transfor-
mando-se em d; ex.: okundelwsa, mostrar-me, em vez de okun-
dyilekesa; okundyepesa, saudar-me, em vez de okundyiriepesa.
Antes de v muda-se em m e o v do verbo transforma-se em b;
ex.: umbasa, encontra-me, em vez de undyivasa; uambeta, ba-
teu-me, em vez de uandyiveta.
Antes de p, k e t o ndyi transforma-se em m ou n pondo-se
um h depois de p, h e t; ex.: mfopite, ajuda-me, em vez de ndyi-
popile; uanhkuata, agarrou-me, em vez de uandyikuata ; uanteta,
cortou-me, em vez de uandiyteta.
Antes do m ou n não se exprime; ex.: uamona, viu-me; nane,
pucha-me.
MODELO DE UM VERBO AFIRMATIVO
Falar — Oku-popia
INDICATIVO PRESENTE
Eu falo, etc.
Ame . ndyipopia
Ove upopia
Oe upopia
Onthue tupopia
Onue mupopia
Ava vapopia
IMPERFEITO
Eu falava, etc.
É o indicativo precedido de
ankho.
Ame ankho ndyipopia, etc.
PERFEITO IMEDIATO
Eu falei,
(há pouco) etc.
Ame
napopia
Ove
uapopia
Oe
uapopia
Onthue
tuapopia
Onue
muapopia
Ava
vapopia
DE ANGOLA
417
PERFEITO
REMOTO
Eu faíei,
(há
muito) etc.
Ame
napopile
Ove
uapopile
Oe
uapopile
Onthue
tuapopile
Onue
muapopile
Ava
vapopile
MAIS QUE PERFEITO
Eu falava ou tinha falado, etc.
É o perfeito precedido de
ankho.
Ame ankho napopia, etc.
FUTURO INDEFINIDO
Eu falarei, etc.
Ame handyipopia
Ove haupopia
Oe haupopia
Onthue hatupopia
Onue hamupopia
Ava havapopia
FUTURO
PRÓXIMO
Eu falaria, (<
im breve) etc.
Ame
mandyipopia
Ove
mopopi
Oe
mapopi
Onthue
matupopia
Onue
mamupopi
Ava
mavapopi
FUTURO REMOTO
Eu hei de falar, etc.
Ame
mandyikapopia
Ove mokapopia
Oe makapopia
Onthue matukapopia
Onue mamukapopia
Ava mavakapopia
CONDICIONAL PRESENTE
Eu falaria, etc.
É o indicativo precedido de
ngeno.
Ame ngeno ndyipopia, etc.
CONDICIONAL PASSADO
Eu teria falado, etc.
É o perfeito precedido de ngeno.
Ame ngeno napopia, etc.
IMPERATIVO
Popia, fala tu.
Tupopia, falemos nós. ^
Popiei, falai vós.
CONJUNTIVO
Que eu fale, etc.
É o indicativo mudando a úl-
tima letra em e.
Ame ndyipopie, etc.
MAIS QUE PERFEITO
Eu tivesse falado, etc.
É o perfeito remoto precedido
de ngeno.
Ame ngeno napopile, etc.
FUTURO
Eu falar, etc.
É o futuro indefinido precedido
de apa.
Ame apa handyipopia, etc.
PARTICÍPIO PRESENTE
Mokupopia, Falando.
PARTICÍPIO PASSADO SIMPLES
Uapopia, falado, a.
Vapopia, falados, as.
PARTICÍPIO PASSADO COMPOSTO
Popie, Tendo falado eu, tu, etc.
418
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Forma negativa do Infinito
Para formar um infinito negativo, intercala-se ha entre o
prefixo e o radical; a terminação do verbo segue as seguintes
regras :
l.a Aos terminados em ia e ua suprime-se a última vogal;
ex.: okunkhia, morrer, okuhankhi; okulua, combater, okuhalu.
2.a Os que na penúltima sílaba tiverem a, mudam a última
vogal em e; os que tiverem e, i, o, u, mudam a última vogal
respectivamente em e, i, o, u; ex.: okutala, ver, okuhalale; oku-
puena, fumar, okuhapuene; okulita, chorar, okuhalili; okupola,
tirar, okuhapolo; okukupa, escapar, okuhakupu.
3.a Os terminados em ya, ka e sa, ordinariamente não al-
teram a terminação; ex : okupeleya, desejar, okukapeleya; oku-
tereka, cozinhar, okuhatereka ; okuvasa, encontrar, okuhavasa.
Às regras acima ditas há raras excepções, que só se aprendem
com a prática.
VERBO NEGATIVO
Não comer — Oku-hari
INDICATIVO PRESENTE
Eu não como, etc.
Ame
hiri
Ove
kuri
Oe
kari
Onthue
katuri
Onue
kamuri
Ava
kavari
IMPERFEITO
Eu não comia, etc.
É o indicativo precedido de
anicho.
Ame ankho biri, etc.
PERFEITO IMEDIATO
Eu não comi, etc.
Ame
sarile
Ove
kuarile
Oe
karile
Onthue
katuarile
Onue
kamuarile.
Ava
kavarile
MAIS QUE PERFEITO
Eu não comera ou não tinha
comido, etc.
É o perfeito precedido de
ankho.
Ame ankho hirie, etc.
FUTURO INDICATIVO
Eu não comerei, etc.
Ame
himari
Ove
kumari
Oe
kamari
Onthue
kamaturi
Onue
kamamuri
Ava
kamavari
FUTURO PRÓXIMO
Como o antecedente.
Eu não hei de comer, etc.
FUTURO REMOTO
Eu não hei de comer, etc.
DE ANGOLA
419
Ame
Ove
Oe
Onthue
Onue
Ava
himakaria
kumakaria
kamakaria
kamatukaria
kamatukaria
kamavakaria
CONDICIONAL PRESENTE
Eu não comerei, etc.
É o indicativo precedido de
ngeno.
Ame ngeno hiri, etc.
CONDICIONAL PASSADO
Eu não teria comido, etc.
É o perfeito precedido de ngeno.
Ame ngeno hirile, etc.
IMPERATIVO
(conselho)
Uharie, não comas.
Tuhariei, não comamos.
Muhariei, não comais.
Ordem expressa:
hori.
haturi.
hamuri.
CONJUNTIVO
Que eu não coma, etc.
É o indicativo ajuntado um e.
Ame hirie, etc.
MAIS QUE PERFEITO
Eu não tivesse comido, etc.
É o perfeito remoto precedido
de ngeno.
Ame iigeno hirile, etc.
FUTURO
Eu não comer, etc.
É o futuro indicativo precedido
de apa.
Ame apa himari, etc.
PARTICÍPIO PRESENTE
Mokuhari, não comendo.
PARTICÍPIO PASSADO SÍMPLES
Karilue. não comido, a.
Kavarilue, não comidos, as.
PARTICÍPIO PASSADO COMPOSTO
Mokuaharile, não tendo co-
mido eu, etc.
Voz passiva do infinito
Passa-se um verbo da activa para a passiva mudando a última
vogal em tia; ex.: okuteva, pfende?\ okulevua. Exceptuam-se:
okupa, dar, okupeua; okuta, afugentar, okuteua; okusa, deixar,
okuhiua e outros.
VERBO PASSIVO
Ser amado — Oku-holua
INDICATIVO PRESENTE
Eu sou amado, etc.
Ame
ndyiholua
Ove
uholua
Oe
uholua
Onthue
tuholua
Onue
muholua
Ava
vaholua
MAIS QUE PERFEITO
Eu fora ou tinha sido amado, etc.
É o perfeito imediato precedido
de ankho.
Ame ankho naholua, etc.
IMPERFEITO
Eu era amado, etc.
420
POPULAÇÕES INDÍGENAS
É o indicativo precedido de
ankho.
Ame ankho ndyiholua, etc.
PERFEITO IMEDIATO
Eu fui amado, etc.
Ame
naholua
Ove
uaholua
Oe
uaholua
Onthue
tuaholua
Onue
muaholua
Ava
vaholua
PERFEITO REMOTO
Eu fui amado, etc.
Ame
naholelue
Ove
uaholelue
Oe
uaholelue
Onthue
tuaholelue
Onue
muaholelue
Ava
vaholelue
CONDICIONAL PRESENTE
Eu seria amado, etc.
É o indicativo precedido de
ngeno.
Ame ngeno ndyiholua, etc.
CONDICIONAL PASSADO
Eu teria sido amado, etc.
É o perfeito precedido de ngeno.
Ame ngeno naholua, etc.
IMPERATIVO
Holua, sejas amado.
Tuholuei, sejamos amados.
Holuei, sede amados.
CONJUNTIVO
Que eu seja amado, etc.
É o indicativo mudado a última
letra em e.
Ame ndyiholue, etc.
FUTURO INDEFINIDO
Eu serei
amado, etc.
Ame
handyiholua
Ove
hauholua
Oe
hauholua
Onthue
hatuholua
Onue
hamuholua
Ava
havaholua
FUTURO PRÓXIMO
Eu serei amado, etc.
Ame
mandyiholua
Ove
mo holua
Oe
maholua
Onthue
matuholua
Onue
mamuholua
Ava
mavaholua
FUTURO REMOTO
Eu serei
amado, etc.
Ame
mandyikaholua
Ove
mokaholua
Oe
mokaholua
Onthue
matukaholua
Onue
mamukaholua
Ava
mavakaholua
MAIS QUE PERFEITO
Eu não tivesse sido amado, etc.
É o perfeito remoto precedido
de ngeno.
Ame ngeno naholelue, etc.
FUTURO
Eu não fôr amado, etc.
É o futuro indefinido precedido
de apa.
Ame apa handyiholua, etc.
PARTICÍPIO PRESENTE
Mokuholua, sendo amado.
PARTICÍPIO PASSIVO
Holué, tendo sido amado, a,
os, as.
DE ANGOLA 421
OBSERVAÇÕES SOBRE ALGUNS TEMPOS DO VERBO
Infinito
Quando no mesmo período houver dois ou mais verbos no mesmo
tempo, o último vai para o infinito, precedido de n' ; ex.: Onohamba
mbatundile k' Outundilo, ambuhindikilua n ' ontungululu iomaelema, am-
biya ku Belém, ambufende Sesu, ri 'okumuavera ovipahulilo viambo, os
magos saíram do Oriente, foram dirigidos pela estrela milagrosa, vieram
a Belém, adoraram Jesus e ofereceram-lhe presentes.
Formação dos pretéritos
Pretéritos afirmativos imediatos; veja-se o modelo do verbo afirma-
tivo.
Afirmativo remoto. Este forma-se mudando a última vogal em ele;
ex.: nalala, dormi, natalele; em ile, se a penúltima fôr i, y, u; ex.: na-
kunkha, moi, nakunkhile.
Os que terminam em ma e na, cuja penúltima vogal fôr a, e, o, mudam
a última vogal em ene; napuena, fumei, napuenene; se a penúltima fôr
i ou u, mudam a última vogal em ine; outro tanto acontece aos verbos
terminados em nua; ex. : natnma, mandei, natumine; nanua, bebi, na-
nuine.
Os terminados em sa mudam esta sílaba em hile; ex.: navasa, en-
contrei, navahile.
Pretéritos negativos
Imediatos. Veja-se o modelo do verbo negativo, as terminações são
as mesmas do remoto afirmativo.
Os terminados em sa mudam esta sílaba em hile; ex.: katuvahile, não
encontramos.
Remotos. Formam-se com os imediatos negativos terminados em ele,
ile, ene, ine, mudando a última vogal respectivamente em ele, ile, ene, ine;
ex.: salalele, não dormi, salalelele; katnamanene, não acabámos, katua-
manenene.
O a, prefixo dos verbos nos pretéritos muda-se em e:
1.°) Antes dos infixos complementos; ex.: uemuleta, trouxe-o. Antes
do infixo da l.a pessoa do singular (ndy) o a conserva-se; ex.: uandyita
pediu-me;
2.°) Antes de li (reflexo); ex.: neliveta, feri-me.
Imperativo
Quando a primeira pessoa do plural do imperativo se refere somente
a duas pessoas, deve terminar em e; referindo-se a mais de duas, termina
em ei; ex.: luringe, façamos (eu e tu); turingei, façamos (eu e muitos).
A 2.a pessoa do singular do imperativo termina igualmente em e,
quando tiver por complemento os infixos das l.as pessoas {ndy e tu);
ex.: ndyavere, entrega-me; tupopia, fala-nos.
422 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Particípio presente
Este particípio traduz-se de dois modos:
1.° Pelo infinito precedendo-o da partícula m1 ; ex.: m'okutala ovantu,
vendo as pessoas;
2.° Por uma oração condicional; ex.: yuino ombila iloka, kamatuende,
chuvendo não iremos.
Particípio passado
Particípio passado simples dos verbos transitivos. Traduz-se este
pelo pretérito perfeito da voz passiva no singular ou no plural, conforme
o sujeito; ex.: uambasa ame navetua, encontrou-me ferido; omapia
arimua, campos cultivados.
Particípio passado simples dos verbos intransitivos. Este traduz-se
pelo pretérito perfeito da voz activa; ex.: omfay iamita, o pé inchado;
omiti kaviauile, as árvores não caídas.
Particípio passado composto de um verbo afirmativo. Traduz-se
pelo radical de um verbo, mudando a última vogal em e; ex.: Sesu, kanené
ovana, ai; Jesus, tendo abençoado os meninos, retirou-se.
Particípio passado composto negativo. Traduz-se pela 3.a pessoa do
singular do pretérito remoto afirmativo, precedido de m'okuaha, supri-
mindo-se o prefixo do sujeito; ex.: m ' oknahahandele, não tendo acabado.
VERBOS RELATIVOS
Os verbos, que em Olunyaneka chamamos relativos, traduzem-se em
português por uma locução, que exprime para com uma pessoa ou objecto
uma relação de favor, causa, deferência, fim, vantagem, etc. Estes verbos
são caracterizados pelas desinências ela, ila, ena, ina, conformando-se
com as seguintes regras:
l.a Ela; mudam a última vogal nesta terminação os verbos que
tiverem como penúltima vogal a, e, o, y; ex.: okutapa, buscar água,
okutapela, buscar água para alguém ; okuveta, bater, okuvetela, bater em
vantagem de outrem ; okuyola, rir-se, okuy oleia, rir-se por causa de outro ;
okuloya, dar tiro, okuloyeta, dar tiro em vantagem de alguém.
2.a Ita; mudam a última vogal nesta terminação, quando a penúltima
vogal fôr i, u; ex. : okuringa, trabalhar, okuringila, trabalhar por um
certo fim ; okuhupa, escapar-se, okuhupila, escapar-se por um motivo.
3.a Ena; nesta desinência mudança última vogal os verbos, que ter-
minarem em ma, na ou nya, cuja penúltima vogal fôr a, e, o; ex.: okutyama,
vaguear, okuty amena, vaguear por uma causa; okutena, fortalecer, okn-
tenena, fortalecer em vantagem de uma causa; okuanya, regeitar, okua-
nyena, regeitar por um motivo.
4.a Ina; mudam nesta desinência a última vogal os verbos terminados
em ma, na, nica, cuja penúltima vogal fôr i ou u; ex.: okutuma, mandar,
okutumina, mandar a favor de alguém; okunua, beber, okunuina, beber
a pedido de outrem.
VERBOS CAUSATIVOS
Estes indicam uma ideia de causalidade:
l.a Tomam a desinência esa quando a penúltima vogal do infinito
DE ANGOLA 423
fôr a, e, o, y; ex.: okulala, dormir, okidalesa, causar sono; okuveta, bater,
okuvetesa, mandar bater; okutopa, enlouquecer, okutopesa, causar loucura;
okuloya, dar tiro, okuloyesa, causar o tiro.
2.a Tomam a terminação isa quando a penúltima vogal fôr i ou u;
ex.: okunkhia, morrer, okunkhisa, causar a morte; okuhuva, admirar,
okuhuvisa, causar admiração.
LINGUAGEM NARRATIVA
Nos pretéritos imediatos desta linguagem o prefixo do sujeito é pre-
cedido de um a; notando-se, porém, que o sujeito, sendo nome de pessoa
da 2.a do singular, o prefixo ua muda-se em o; sendo da 3.a do singular,
o dito prefixo transforma-se em a; ex.: abri, abriste, etc, andyiikula,
oyikula, ayikula, atuyikula, amayikula, avayikula.
As terminações dos verbos variam assim: 1.° Os terminados em ia
e ua perdem a última vogal; ex.: avulu, eles brigam; 2.° Sendo a penúltima
vogal a, e, i, o, u, a terminação será, respectivamente, aquelas vogais ;
ex.: avatuala, levaram; olili, tu choraste; epata aritoko, a casa caiu.
Exceptuam-se os seguintes verbos: okupa, dar, andyipe, ope, ape}
etc; okuti, dizer, andyiti, oty, aty, etc; okuia, ir-se, abdary, oi, ai, etc.
Os que tiverem um y como penúltima vogal a terminação deve ser
em o.
Ma
Esta partícula emprega-se antes dos verbos para indicar a continui-
dade de uma acção ou uma futura muito próxima. Os verbos precedidos
desta partícula mudam as terminações seguindo as regras da linguagem
narrativa; ex.: inanu, está a beber.
Ka
Esta partícula é empregada como negação, precedendo o verbo; ex.:
kavakapa. Como influxo traduz-se pela locoção portuguesa ir como o
infinito; ex.: nakapola.
Ha
Esta partícula negativa antepõe-se aos substantivos, adjectivos, pro-
nomes, verbos no infinito e advérbios, suprimindo-se a primeira vogal da
palavra a que se junta; ex.: hamuntu, não é gente.
Vo
Esta partícula pospõe-se: 1.° Aos pronomes pessoais sujeitos para
indicar respeito; ex.: ovevo. 2.° Aos imperativos, e neste caso traduz-se
por faze o favor de. . .; muaveravo otyitumba notyingondi, faze o favor
de lhe dar isto, aquilo.
A aplicação das partículas ma, ka, ha, ngo, na, ia, vo e olyo acha-se
na conversação.
ADVÉRBIOS
Hoje, hoje mesmo — Omuhomo, homo rimo.
Amanhã — Muhuka*
424 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Depois de amanhã — Muhuka rina.
Ontem — Mongulo.
CONJUNÇÕES
Afim de que — e, com, Na.
Ou — Ine, muhuna, ae.
Mas, mas êle — Anti, ngué.
Porem — Ongo.
Sem que
A forma de dizer em português sem que seguido do imperativo do
conjuntivo traduz-se pelo pretérito remoto afirmativo, suprimindo-se a
primeira letra e antepondo-se ao verbo anah, oh, ah, atuh, amuh avah,
respectivamente a cada pessoa; ex.: anahaitile, ohaitile, etc. Sem que eu
pedisse, sem que tu pedisses, etc.
PREPOSIÇÕES
Até, 16; com, n' ; desde, tunde; para, na; junto, pu; etc.
INTERJEIÇÕES
Oh! Tate; Espera! He; Nunca! Tuan; Espera! he; etc.
Entre estes povos não existe o talento inventivo ou de inves-
tigação, desconhecendo por completo as produções artísticas.
Teem grande predileção pela música, pelo canto e pela dança,
consistindo esta em saltos, voltas, requebros e movimentos com-
passados, alternados com palmas.
Todos cantam e dançam, os homens separadamente das mu-
lheres, sendo os assuntos tirados dos diversos acontecimentos
da vida: como seja de guerra, de caça, festas de família, recreio,
etc.
Como instrumentos de música teem os vanyanekas a enkhuene,
flauta com dois sons; onkhuins, cornetas formadas com chifres
de antílopes; onkhondmi e ombulumbumbo, composta de um
arco, uma corda e uma pequena vara ; otyihumba e otyindyaluidya,
com a configuração de um tamanco, tendo cinco cordas; otyicandyi,
espécie de marimba. Alem destes teem também o chamado batuque
grande e batuque pequeno.
Há variados passatempos infantis muito interessantes, que se
assemelham a alguns jogos dos países civilisados.
Quanto a jogos na acepção da palavra, teem estes povos
apenas o chamado ovela.
DE ANGOLA 425
No capítulo sciências os seus conhecimentos são quási nulos ;
desconhecendo por completo a engenharia e a náutica — em
virtude dos seus rios não serem caudalosos — de astronomia
conhecem as seguintes estrelas: as Plêiadas, otyikuane kanda;
Estrela de Alva, otyofi; Via Láctea — omunkheka-nkheka.
Como medicamentos empregam ordinariamente os vegetais;
fazendo também operações cirúrgicas, o que contribue muito
para a grande influência que o médico goza entre os povos.
.-" ■■ .
Vanyanecaa — Libata (Kihita)
Sobre história conservam a memória de certos factos tais
como: de guerras, de estiagens que produziram fama, nomes de
sobas, aparecimento dos brancos, construções das fortalezas e
outros.
Sobre geografia citam nomes de determinadas terras/florestas,
montanhas, rios, etc, indicando as direcções, mas não representam
nada pelo desenho.
O vanyaneca tem a memória muito viva, dos factos, dos
logares, das pessoas e das palavras, assim como viva tem a
imaginação, especialmente para o que diz respeito a feitiços e
crenças supersticiosas.
Possue algum entendimento; e quanto a observação, só se
revela em assuntos que lhe dizem respeito : como questões, fei-
tiços, etc.
28
426 POPULAÇÕES INDÍGENAS
III. — Da vida familial
O nascimento. — A educação. — O casa-
mento. — A morte. — A família. — A reli-
gião, rito, culto, divindade e sacerdócio.
Entre estes povos é costume, algumas vezes a prática de
certas cerimónias antes do nascimento para favorecerem o nas-
cituro e ainda outras para protecção da mãe.
A parturiente dá à luz em sua própria casa sendo ordinaria-
mente assistida por algumas mulheres idosas pertencentes à
família, sendo certo que os cuidados que lhes dispensam nunca
são escrupulosos nem esmerados.
A própria mãe é que amamenta o seu filho.
A mulher que tem dois filhos gémeos, em alguns povos, paga
multa de um carneiro ao chefe da aldeia e no caso do nascimento
dum ser disforme é logo morto.
O nome é dado à criança no fim de oito ou dez dias após o
nascimento, ficando esta a pertencer ao tio materno.
Em geral o número maior dos recemnascidos pertence ao sexo
femenino, competindo à mãe os primeiros cuidados na infância e
passando o filho varão, dos sete aos nove anos, a ser educado pelo
pai, que o obriga a acompanhar os pastores que guardam o gado.
A educação física, intelectual ou moral deixa muito a desejar
ou mesmo não existe, a não ser, a educação especial dos adivinhos,
feiticeiros, curandeiros, etc, aproveitando na maioria dos casos
indivíduos atacados de epilepsia que consideram como manifes-
tações dos espíritos a designá-los para o ofício.
Entre estes povos, para que qualquer homem goze dos seus
direitos e garantias deve ser circuncisado, não havendo tempo
fixo para esta prática, mas escolhendo de preferência os meses
de junho ou julho, realizando-se por essa ocasião muitas festas e
passatempos.
Também a rapariga chegada à idade da puberdade, faz uma
grande festa em companhia de suas amigas e pessoas de família.
Antes do casamento o noivo visita e oferece presentes à noiva,
que ordinariamente é pedida por uma terceira pessoa, sendo os
DE ANGOLA i2l
pais consultados e recebendo uma cabeça de gado após o seu
consentimento.
Os sentimentos de amor e de afeição, em regra, são pouco
intensos, sendo o celibato e a continência exigidas em certas
épocas da vida, não existindo nestes povos a prostituição pro-
priamente dita.
A idade própria para o casamento é para os homens dos
vinte aos vinte e cinco anos e para as mulheres dos quinze aos
dezoito anos, não sendo exigida a estas a sua virgindade.
Dado o consentimento dos noivos e ouvidos os pais e o tio
materno, o casamento fica combinado, realizando-se na idade
conveniente, sendo levada, para casa do marido, ocupando logo
a categoria de mulher casada, sem mais festas ou cerimónias.
Algumas vezes o homem convida a sua futura noiva a passar
um certo tempo em casa dele para a conhecer de perto, apre-
ciar-lhe o génio, aptidões para o trabalho e outras qualidades,
podendo chamar-se a isto, casamento de ensaio.
Entre estes povos é permitido ao homem escolher mulher
fora do seu clan, tribu ou aldeia, podendo ter várias, sendo
porém uma delas a favorita.
A poligamia ó uzada entre estes povos em razão de costume,
do trabalho das lavras, etc, habitando cada mulher em casa
diferente.
A poliandria não existe.
Os impedimentos de casamento são sempre motivados por
consanguinidade.
O adultério do homem fica impune, o da mulher ó punido
com uma indemnização paga ao marido pelo homem com quem
a mulher o cometeu.
A existência do divórcio é determinada por várias causas,
como: maus tratos infligidos à mulher; ausência prolongada do
marido ; prisão ou exílio deste e outros.
#
# *
Entre os vanyanekas os curandeiros e feiticeiros gozam de
muita influência; empregam medicamentos, fazendo operações
cirúrgicas. São muito crentes em sortilégios, feitiços ou amuletos,
sendo as doenças mais frequentes: cluva — febre e pegitomo —
pontada (pneumonia).
428
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Nos últimos momentos de um moribundo, algumas vezes, o
curandeiro é chamado para lhe assistir.
Quando um curandeiro (vimbande) está agonisante, assistem
todos os colegas que podem reunir, havendo então grandes
danças, cantos e práticas mágicas.
Não acreditam na morte natural.
Após o falecimento é ao
cadáver partida a espinha
dorsal e enrolado de forma
que os joelhos toquem no
queixo.
A mortalha consiste em
uma manta ou uma peça de
fazenda e muitas vezes uma
pele de boi que é abatido para
este fim.
Os cemitérios são nas flo-
restas.
Entre estes povos, como
sinal de luto, há carpideiras,
disparam-se tiros de espin-
garda, e os homens, parentes
próximos, rapam todo o ca-
belo.
Em seguida ao falecimento
do marido a viúva volta
para casa da família e os órfãos são entregues ao tio materno.
L: I J
Vai;yanelía — Ura feiticeiro (Gambos)
A família nestes povos, compõe-se de pai, mãe, filhos, irmãos
e tios. Há uma espécie de adopção, ficando o adoptado com
todos os direitos de membro da família.
Possuem autoridade na família: o pai, a mãe, o tio materno,
0 filho mais velho e em geral os parentes mais idosos. Os filhos
quando casados, formam um novo lar.
Em regra os filhos amam seus pais e os parentes mais velhos,
prestando-lhes respeitosa obediência.
Não existe entre estes povos o parentesco por afinidade, mas
reconhecem parentesco com o animal que deu o nome à família.
DE ANGOLA 429
Cada membro da família é isoladamente responsável pelas
suas dívidas, contractos, crimes, etc.
A propriedade é particular e privada, ajudando-se às vezes
em certos trabalhos, os membros da família.
Ordinariamente é nulo o papei dos visinhos, acatando todavia,
quando velhos, os seus conselhos.
A autoridade da mulher ó quásinula, dependendo do marido,
como verdadeira escrava, e sendo~lhe sujeita até haver uma
razão que determine o divórcio.
#
# #
Estes povos crêem na existência de um Deus, criador de todas
as coisas, havendo um certo número de evocações que lhe são
dirigidas.
Acreditam nos espíritos (almas dos antepassados) que evocam
nas diversas necessidades da vida, e nos poderes dos grandes
vimbandas por espíritos dos antepassados.
Os vimbandas quando evocam os espíritos fazem-nos falar,
mas só de noite, com todos os fogos apagados.
Prestam culto aos espíritos dos antepassados, a quem oferecem
sacrifícios, pedindo-lhes a sua intervenção em tempos de fome,
epidemia ou de qualquer calamidade.
É convicção íntima entre estes povos, que os espíritos, estão
encerrados em algumas vacas sagradas.
Í3á proibição para comer certos manjares, de pronunciar
certas palavras, de nomear certas pessoas, de passar em deter-
minados logares, etc. Esta proibição é bazeada em motivos reli-
giosos e supersticiosos.
Como em outro logar se disse, algumas famílias e tribus
tomam o seu nome de certos animais ou objectos, que veneram
e respeitam.
A alma humana chama-se ohonde ; esta depois da morte, .às
vezes, vem atormentar e perseguir os vivos.
O indígena tem uma ideia muito vaga da vida futura.
O materialismo está muito impresso no ânimo do gentio, que
a cada passo diz o seguinte provérbio : turie, tukute, tunyne, tu-
lovole, kondyenbo halyiko, que. quer dizer: comamos, fiquemos
fortes, dansemos, fiquemos saciados, depois desta vida nada mais
há.
430 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Os vanyanekas possuem a noção do bem e do mal, existindo
entre eles centenas de provérbios, adágios e máximas, sobre o
respeito, maledicência, justiça, remorso, caridade, etc.
A ideia filosófica entre eles é quási nula, acreditando que
tudo que acontece é por intervenção dos espíritos, assim como
todos os acontecimentos são ligados à ideia da religião e supers-
tição.
Celebram estes povos, em várias épocas do ano grande nú-
mero de práticas e cerimónias religiosas, acompanhadas de evo-
cações, sacrifícios, oferendas e muitas vezes obrigados a jejum.
Possuem uma grande colecção de longos contos e narrativas
dos omakihi (seres fabulosos).
A organização das sociedades secretas tem por fim a perse-
guição, aplicação de venenos e a prática de vários crimes.
Os iniciados fazem uso de insígnias particulares quando
assistem às cerimónias.
O tempo principal é na embala (casa do soba) sendo aí guar-
dadas as campainhas do soba, vários ferros sagrados, as jarras
para o leite das vacas sagradas àlêm de outros objectos desti-
nados às cerimónias.
O sumo sacerdote por excelência é o soba, como chefe da
hierarquia, em seguida tem os sacerdotes e os feiticeiros que
podem oferecer sacrifícios aos espíritos e finalmente os adivinhos
que gozam de uns certos poderes particulares. Distinguem-se
uns dos outros pelas variadas insígnias que trazem no pescoço
ou na cinta.
IV. — Da vida social
Classes e castas. — Organização política.
— Propriedade. — Regime económico. —
Costumagens jurídicas.
Entre estes povos a vida nómada, propriamente dita, não
existe; apenas os pastores mudam, em certas épocas do ano, de
terra em terra à procura de novos pastos para gado.
Os rapazes de sete a doze anos guardam gado caprino, e os
desta idade em diante ocupam-se do gado bovino. A noite é
costume juntar-se no curral a mocidade e aí cantam e dançam.
Entre os vanyanekas existem sacerdotes, feiticeiros, ricos,
pobres, livres e escravos, gozando cada um deles das suas ga-
rantias e prerogativas.
DE ANGOLA 431
Os escravos provêm dos prisioneiros de guerra ou de paga-
mentos. Os amos exigem deles qualquer trabalho, podendo
adquirir família, e obter a liberdade mediante um certo número
de cabeças de gado.
*
# *
Estes povos tem por chefe supremo, o soba, que reside em
uma libata simplesmente com os seus parentes e conselheiros, e
que se chama umbala. Junto do soba há os ministros (onondei)
que o aconselham e ajudam no governo dos povos que lhe prestam
obediência.
Os sobados estão divididos em um certo número de mucunda
ou departadamento, cujo governo está a cargo de um chefe
denominado muene, sinónimo de secúlo, senhor da terra, de no-
meação hereditária, e que estão subordinados ao soba.
O soba preside aos julgamentos importantes, aplica multas e
impõe correctivos. É o sumo sacerdote como já se disse, e pos-
sui em grau elevado todas as insígnias da feitiçaria.
A sucessão ao trono é do tio ao sobrinho.
A mulher pode ser chefe de um departamento, administrar
uma mucunda, mudando de quatro em quatro anos de marido.
Os anciãos, às vezes, reunem-se em assembleia para decidirem
sobre um certo número de negócios de família, mudança de
aldeia, precauções a tomar durante o tempo de uma guerra, fome
ou outra qualquer calamidade. Assistem a estas reuniões os prin-
cipais chefes.
O soba recebe impostos em cereais ou trabalho em determi-
nadas épocas do ano.
- A propriedade é essencialmente privada. A sua origem é a
ocupação para os campos, compra ou herança para os restantes
objectos.
Os limites dos campos são marcados por cercados.
Não há propriedade em comum, todavia há uma excepção
para o gado, encontrando se muitas vezes uma cabeça de gado
pertencer. a vários donos.
Não há locações.
Existe uma espécie de usufruto para os gados.
432 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Na casa, o homem e a mulher possuem separadamente os bens
mobiliários, instrumentos de trabalho, utensílios de cosinha, etc.
A mulher pode vender o producto do seu trabalho e dos seus
campos.
O direito da caça é livre, assim como é o da pesca.
A cera e o mel pertencem ao dono do cortiço.
O direito de propriedade sobre achados existe, ficando per-
tencendo o objecto achado ao primeiro que o encontrou, não
aparecendo o dono.
A propriedade passa do tio materno para os sobrinhos, não
herdando a viuva e os filhos cousa alguma.
A sucessão pode ser de pai aos filhos, por meio de testamento
verbal feito perante os velhos da terra.
# #
Qualquer pessoa pode exercer comércio em todo o lugar e época.
Os productos vendidos pelos vanyanekas são em geral: — gado,
cereais, mel, panelas, cabaças, bebidas, caça, etc, e recebem em
troca dinheiro, fazendas, contarias, mantas, sal, arame de cobre
ou de latão, facas, catanas e outros artigos.
Não há moedas nem pesos. Possuem para medir os cereais
uns cestos, denominados ombul, plural ombue.
Os rios não são navegáveis.
* #
Há um conjunto de leis e costumes relativos à família, ao ca-
samento e a outras questões.
Os contractos de compra e venda são feitos simplesmente
pelos donos dos objectos.
Nos empréstimos não são exigidos juros.
Existe um complexo de costumes, estabelecendo penas e multas
para as diferentes infracções. Estas multas reduzem-se ao pa-
gamento de cabeças de gado.
Como já se disse os julgamentos de questões graves são pre-
sididos pelo soba, assistido por alguns dos seus ministros. O
queixoso apresenta a questão e indica testemunhas, havendo de-
bates e discussões durante a audiência.
DE ANGOLA 433
Entre estes povos, não podem os estrangeiros exercer cargo
algum importante no país, assim como não podem fazer parte
das assembleias ou reuniões.
Não existem tratados de comércio, sendo a hospitalidado
exercida por todos, conforme as posses e circunstâncias de cada
um.
É raríssimo actualmente haver entre os vanyanekas declarações
de guerra. No entanto possuem diversas armas como : espin-
gardas de pederneira e de espoleta, azagaias, arcos e flechas,
catanas, machadinhas, moscas e facas de dois guines.
O indígena que traje um pouco à europeia, fale algumas pa-
lavras em português ou saiba algum ofício, é entre estes povos,
bastante considerado e respeitado.
'ANGOLA*
Escala =.-^-t^À
12O00000
Tribu HUMBE
M.Egrtja y***- àrtp
CAPÍTULO XVIII
HUMBESO)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação dos povos designados por hura-
bes. — Sua origem. — População.
Os humbes habitam a margem direita do Cunene, desde o
Dongoena ao Capelongo, e as margens do Caculvar até ao Tchi-
pelongo.
A tribu muhumbe parece ter formado um grande estado, esten-
dendo-se por toda a bacia do Cunene, desde as suas cabeceiras
até às faldas da serra da Cheia, Chambicua e ás matas do Ovampo.
Sobre a origem destes povos não nos foi possível colher ele-
mentos que de uma forma cabal nos ilucidem, limitando-nos por
isso a transcrever para aqui o que sobre o assunto se escreve no
Sul de Angola.
«É hoje incontestável que, quando os portugueses procuravam
desenvolver a ocupação e conquista no território norte do reino
de Angola, existia no sul um grande estado governado pelo Humbi-
Onene, o qual se estendia por toda a bacia do Cunene, desde as
suas cabeceiras perto do Bié até às faldas da Cheia, Chabicua
e ás matas do Ovampo.
Sabe-se que nos meados do século xvi foi o Congo invadido
pelas hordas dos jagas, onde se supõe virem também os baxim-
bas-bacumbis sob o comando de célebre Zimbo ou Ximbo, as
quais, depois de destruirem S. Salvador, obrigaram o rei a re-
( ) Colaborou no estudo desta tríbu o administrador de circunscrição,
sr. Campos Palermo.
436
POPULAÇÕES INDÍGENAS
fugiar-se numa das ilhas do Zaire. Em seguida dividiu o seu
exército em hostes mais pequenas e mandou-as à conquista de
novas terras, competindo ao seu logar-tenente Quinzuva marchar
para o oriente a avassalar os povos até ao mar. Sendo detidos
pelos portugueses na bacia do Zambeze, em Tete, recebeu mais
reforços, mas, após algu-
mas vitórias, foi novamente
derrotado em Melinde sen-
do obrigado a retirar.
Não podendo prosse-
guir o caminho que leva-
vam, por as populações
se levantarem contra eles,
transpozeram o Zambeze
com um pequeno número
de companheiros e, tor-
neando o Calahari pelo
norte, vieram à procura
de terras próprias para se
estabelecerem no ocidente,
fixando-se nas margens do
Cunene, expulsando ou
avassalando os seus pri-
mitivos habitantes e for-
mando o grande estado
do Humbe. E a confir-
mação de que os povos do
Humbe não são aborigines,
está na diferença que eles oferecem dos outros povos que os cercam,
na tradição que ainda entre eles existe de terem vindo do norte
e ainda numa tal ou qual analogia que uma cuidada observação
surpreende entre os seus costumes e os árabes, como se nota em
outras tribus distantes, mas habitantes do norte e nordeste».
Não tendo elementos seguros para discutir esta tradição, não
podemos deixar de estranhar que tendo os povos invasores da
província vindo da região dos lagos, retrocedessem a conquistar
terras que eles ou os seus ascendentes tinham abandonado e já
conheciam. O racional e o que a história destas invasões nos
ensina, é que os povos invasores, em geral, não retrocedem,
avançam, submetendo ou escorraçando as tribus que se lhe depa-
ram no caminho, se tem condições vitais para o fazer, ou são
Tipos Muhumbes
DE ANGOLA 437
detidos e a pouco e pouco aniquilados, por aquelas tríbus que
encontram, se lhes não podem resistir. O que parece não restar
dúvida, constatado por algum dos seus usos e costumes, e prin-
cipalmente pela língua falada, é que os humbes teem grandes
afinidades com algumas das tribus do planalto de Benguela.
São fortes, espaduados, retintos, mas com as feições agradá-
veis e bastante correctas; especialmente as mulheres que se podem
classificar de formosas e bastante fáceis.
Arrancam os dois incisivos do maxilar inferior.
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Vestuário. —
Alimentação. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes. — Sciências e facul-
dades intelectuais.
Merecem-se-lhes especial cuidado os penteados e cosméticos de
manteiga de vaca misturada com algumas folhas e raízes aromá-
ticas com que se untam.
O vestuário predominante é a pele, não obstante terem muita
predilecção pelos panos, mas que raras vezes usam por não ter
com que os adquirir. Os homens usam suspensa por um cinto
de couro, na frente, uma pele para que pouco mais lhes serve do
que para resguardar os órgãos genitais, e outra posteriormente
cobrindo-lhes as nádegas. As mulheres usam, o mesmo vestuário
que os homens, com a diferença de que as peles são maiores, que
o cinto de couro muitas vezes é substituído por um largo cinto
de missanga, e que a pele suspensa posteriormente, tem a forma
de uma meia lua, com a concavidade voltada para cima e suspensa
aos quadris por duas pontas que prendem no cinto.
Os homens usam o cabelo com dois ou três centímetros de
comprimento, não o penteando, ou costumam rapar a cabeça, dei-
xando dois ou três rebaixos quási no vértice da mesma.
As mulheres usam um penteado interessante e característico,
consistindo em uma elevação de cabelo, no vértice da cabeça,
desde a nuca à testa, semelhando o todo um capacete romano, e
nos lados, por sobre as orelhas, umas finas rodelas de cabelo na-
tural, lembrando as orelhas do elefante.
A maioria das raparigas casadoiras (mucandonas) usam o ca-
belo cortado à navalha junto das orelhas e um pouco acima,
438 POPULAÇÕES INDÍGENAS
formando três listas que partem da testa para a nuca, sendo a
do centro maior; as listas de cabelo são feitas em tranças que
vão cair sobre os hombros e testa onde suspendem grande quan-
tidade de missangas.
Os rapazes em geral usam o cabelo sem ser cortado nem
tratado, costumam atá-lo com uma tira de couro quando está
muito crescido.
Como adorno usam os homens argolas de ferro, cobre ou la-
tão nos pulsos; ao pescoço alguns usam missangas (e pouco a
usam), e suspenso de uma tira de couro um bocado de pau me-
dicinal e uma espécie de colher com que chegam o tabaco em pó
(rapé) ao nariz.
As mulheres usam missanga na cabeça, ao pescoço em colares
ou caida sobre o peito, e na cintura principalmente, chegan-
do-lhes às vezes quási que a cobrir as nádegas. Usam as mulheres
igualmente nos braços e nas pernas, argolas de ferro ou latão,
ou arame dos mesmos metaes, enrolado em espiral, e nos dedos
anéis grosseiros de ferro.
A base de alimentação é vegetal e constituída pelas papas de
farinha de massango, prato diário de resistência que se serve com
qualquer condimento, carne ou peixe, e na falta deste com leite
fermentado. Costumam usar na sua alimentação, sapos aquá-
ticos, rãs e frutas silvestres. Não fazem uso de carne de
porco. ;
Fazem uso das bebidas fermentadas feitas, quer das farinhas
de massambala e massangu, quer de frutos, e igualmente do ma-
rufo da palmeira.
Das bebidas fermentadas de que fazem mais uso são o macau,
e berlungo e o gongo.
Para se fabricar o macau põe-se a massambala de molho em
água durante três dias, no fim dos quais se estende no chão co-
berta com folhas molhadas ou terra húmida, até que comece a
germinar ; em seguida lava-se, expõe-se ao sol durante uma ou
duas horas, reduzindo-a logo a farinha ainda húmida e molhada,
deitando-se a seguir em água a ferver; no dia seguinte junta-se
novamente uma pequena quantidade da farinha para fermento e
no fim de dois dias está pronto a beber-se, depois de coada.
O fabrico do berlungo é idêntico ao do macau com a dife-
DE ANGOLA 439
rença que sendo feita de farinha de massango a germinação e
fermentação são mais rápidos.
O gongo fabrica-se reunindo-se em um cesto frutos da árvore
do mesmo nome, onde se conservam durante três ou quatro dias,
no fim dos quais se lhe tira a casca e se espremem os frutos,
deitando o suco em uma panela e os caroços e os restos do fruto
noutra a que se junta água, ficando depois a fermentar bem
como o sumo principal; este está pronto a beber-se no dia se-
guinte, o proveniente da fermentação dos restos dos caroços no
no fim de 6 a 8 dias.
A habitação tipo é de cubata de base circular, em que a base
tem um diâmetro de 2m,5 e a altura da parede não vai àlêm de
70 centímetros e para onde se não pode entrar senão de cócoras.
A cubata constroe-se de pau a pique barreada interiormente
e a cobertura de uma armação cónica coberta de colmo.
As cubatas agrupam-se em aldeias (tchilongos) por famílias,
circundadas por fortes palissadas de pau a pique e defendidas
ainda por cercados de espinheiros a dois ou três metros da pa-
lissada. Dentro do tchilongo estão separadas as cubatas de
habitação e aquelas que servem de cosinhas, das que se destinam
para guarda de mantimentos e dos currais, por uma palissada,
como a que envolve o tchilongo.
Escolhem para a construção dos tchilongos de preferência os
logares mais livres de anato e próprios para culturas, não dando
preferência, às visinhanças dos rios, mulolas, cacimbas ou chands.
Como cama usam uma pele ou uma esteira de caniços, esten-
dida no chão ou sobre um leito feito de estacas.
Como utensílios, teem : panelas e púcaros de barro; vasos de
madeira; cestos de várias formas e feitios (quimbalas), e as
cabaças que representam o principal utensílio caseiro.
#
4
A principal ocupação dos muhumbes, homens, mulheres e
crianças é a agricultura e creação de gado. As mulheres fazem
as suas culturas separadas dos homens; ajudando-se reciproca-
mente, no entanto esta separação é um simples capricho, por-
440
POPULAÇÕES INDÍGENAS
1
quanto ao fazer a colheita juntam tudo. Os filhos àlêm de
ajudarem os pais no serviço da cultura, são empregados na
pastoreação do gado, bem como os escravos. As raparigas àlêm
da parte que lhes compete em ajudar as sementeiras, são encar-
regadas dos serviços caseiros, cosinhar, pizar o mantimento para
fazer a farinha, buscar água e lenha, etc.
Cultivam a massambala, o massango, o feijão macunde, o
tabaco, ginguba, abóboras,
e tem introduzido ultima-
mente a cultura do milho.
Dedicam-se à creação
do gado bovino, caprino,
lanígero e galinhas, pos-
suindo de cada qualidade
pouca quantidade. Não
criam gado suino.
Nos rios ou mulolas pes-
cam na quadra seca, depois
que as aguas baixam.
Não são caçadores, não
obstante haver abundância
de caça na época de estia-
gem. Usam armas de fogo,
fundas, zagaias e sobretudo
CISMEI -^ ' ° Purrenno que manejam
com destreza chegando a
caçar com êle aves e peque-
3SBB&* nos animais.
Exercem rudimentar-
mente as indústrias de ola-
ria e tanaria, executam obras de cesteiro e de madeira, e tra-
balham o ferro.
#
# #
1;
Tipo Muhumlbe
No que diz respeito à linguagem falam os humbes um dialecto
especial, parecido com nVbundo e os dialectos que falam os povos
visinhos.
Amantes de música, usam vários cantos e danças pelas festas
que fazem durante o ano.
No que diz respeito a instrumentos usam : umas cabaças com
DE ANGOLA 441
pedras dentro que agitam para tirar os diversos sons; uma
espécie de viola feita de um arco de flexa com corda, tendo
próximo de uma das extremidades uma meia cabaça, que serve
de caixa de ar e uma espécie de trompa, feita de barro.
A dança mais vulgar é o batuque, que é executado só por
mulheres ou só por homens, formando um círculo, saindo um
que ao centro vai cantar qualquer coisa relativa a algum dos
que está no círculo e que os outros repetem em coro; a seguir
vai ao centro o visado e assim se continua a dança, que quand0
é pelos homens é acompanhada de saltos.
Fazem várias festas durante o ano; as principais são: a do
gongo em Fevereiro, em que tomam parte os feiticeiros sarapin-
tados e vestidos a capricho; a das sementeiras; a das colheitas;
e a festa em memória dos falecidos que não tem tempo determi-
nado. Todas as festas tem por fim comer, beber, cantar e dançar.
Tem cronologia, ainda que rudimentar, dividindo o tempo em
lunações e fazendo começar o ano em Outubro.
Consideram o sol como uma grande fogueira; a lua e as
estrelas como tantas outras que se deslocam.
Tomam as nuvens carregadas como pronuncio de chuvas.
Tem muito receio das trovoadas.
III. — Da vida familial
O nascimento. — A iniciação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A re-
ligião e sacerdócio.
O nascimento de uma criança é sempre festejado, matando o
pai um garrote, um cabrito ou um carneiro, conforme as suas
posses para agradecer à mulher o ter-lhe dado um filho.
Os nomes dados aos recemnascidos são, em geral, o de uma
pessoa de família já falecida, ou no caso de haver qualquer facto
importante na ocasião do parto, é um nome adequado ou relativo
a esse facto o que se dá à criança.
#
Usam a prática de circuncisão para os rapazes, bem assim como
celebram com festas quando as raparigas chegam à puberdade.
29
442
POPULAÇÕES INDÍGENAS
No que diz respeito à circuncisão, pratica-se dos 16 aos 18
anos, mandando os rapazes nas condições de ser circuncisados
para uma mata próxima e desabitada, onde um perito vai fazer-
lhes a operação. Durante o período da cura as famílias costumam
abater um garrote, levando a carne para o circuncisado e fazendo
cintos da pele, que lhe entregam ao regressar. Da operação da
circuncisão costumam
morrer alguns rapazes
por falta de conve-
niente tratamento;
quando tal sucede os
companheiros enter-
ram-no ecomunicam-no
à família, que não chora
o óbito.
A emancipação faz-
se pelo casamento ; não
casando, a emancipação
faz-se no homem dos 18
aos 22 anos, e na mulher
dos 15 aos 18, podendo
estabelecer-se em habi-
tação separada da famí-
lia.
*
Tipos Muliumlbes (Mucandonas)
O casamento efec-
tua-se logo que o pai
da noiva entende ter esta atingido a idade para casar, enviando-a
ao futuro genro por quem anteriormente estava escolhida e pedida,
acompanhada de uma comitiva de amigas e família, com um
garrote. Matam este garrote e outro que o noivo oferece aos
convivas, bebe-se e dança-se, e está o casamento efectivado.
Existe a poligamia, variando o número das mulheres com a
fortuna do marido; cada mulher habita na sua cubata.
É permitido o divórcio por motivos fúteis ou por desobediência
da mulher. Quando o divórcio seja de comum acordo, fazem
a divisão dos filhos igualmente por acordo ; quando o não é, os
rapazes ficam com o pai e as raparigas acompanham a mãe que
regressa ao lar da família emquanto não tiver outro pretendente.
DÈ ANGOLA 443
0 marido é a verdadeira autoridade na família, limitando-se
a mulher à obediência.
O pai e a mãe exercem autoridade igual sobre os filhos.
Por morte do homem a mulher e os filhos não herdam e os
haveres vão para o irmão mais velho e na falta de irmão para o
tio mais velho, e na falta deste, para o sobrinho materno mais
velho.
As viúvas vão aumentar o número das mulheres do irmão
mais velho do finado, ficando sendo mulheres do cunhado; levam
consigo os filhos e a herança, visto que é o herdeiro quem os
recebe.
Os viúvos ficam com os filhos, não havendo alteração alguma,
visto o homem ter mais mulheres e estas não terem fortuna.
De uma maneira geral os herdeiros são o irmão mais velho
e na sua falta os sobrinhos da irmã. Os filhos nunca herdam do
pai, salvo o que o mesmo lhes haja dado em vida.
# #
A morte nunca é considerada como natural e, a não ser a dos
rapazes que morrem por virtude da circuncisão, é atribuída a
qualquer acto de feitiçaria ou às almas dos antepassados.
Para tratamento das doenças teem os curandeiros que consi-
deram e respeitam. Os curandeiros são em geral emigrados que
ao regressar se anunciam como tal, não havendo preparação
para o mister.
Fazem grande segredo dos remédios que aplicam operando
em geral as curas por sugestão.
No que diz respeito ao costume para com o cadáver, antes de
ser enterrado é dobrado, unindo-se-lhes os joelhos ao corpo, mãos
apoiadas no rosto e os cotovelos nos quadris, mete-se dentro de
uma pele de boi preto ou envolve-se em panos, e a pau e corda
é assim transportado para o local da sepultura. Antes porém de
ser sepultado o parente mais próximo e idoso pergunta-lhe quem
foi o causador da sua morte. Se aquele em quem recaem as
culpas está presente, o defunto impele os que o conduzem para o
lado onde êle está; se está ausente deixam nomear uma grande
quantidade de nomes dos supostos e avançam para quem os inter*
roga.
O funeral é sempre acompanhado de choros, cantos, danças e
444 POPULAÇÕES INDÍGENAS
o indispensável sacrifício de algumas cabeças de gado que comem
bem regadas com bebidas fermentadas.
Em geral um dos animais sacrificados é imolado sobre a
sepultura e esta é regada com o seu sangue.
Estes povos crêem na existência de um ente supremo a quem
chamam, uns Suou e outros Calunga e que invocam indistinta-
mente.
São supersticiosos com alguns logares, onde não vão, e com
animais domésticos e ferozes.
Parece que estes povos não distinguem o curandeiro do fei-
ticeiro.
IV. — Da vida social
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens judi-
Não obstante serem criadores de gado levam vida sedentária.
Como nas tribus vizinhas há sobas, séculos, curandeiros,
homens livres, e escravos. Os escravos fazem parte da família
e se se comportarem bem dão-lhes a liberdade ao chegar à maiori-
dade.
A organização política é constituída por um governo absoluto
exercido pelos sobas que delegam parte das suas atribuições nos
séculos, chefes das mucundas. No entanto em casos graves ou de
terem de aplicar a alta justiça, consultam sempre os velhos e
cuja opinião acatam.
Os sucessores dos sobas e séculos são os irmãos e na falta
destes os sobrinhos filhos da irmã.
DE ANGOLA
445
*
Existe a propriedade individual, sendo os terrenos que agri-
cultam considerados como bens imóveis. Raras vezes as transa-
cionam, e se o fazem é por absoluta necessidade, em casos de
fome; qualquer transacção é feita perante testemunhas que assistem
ao contracto.
Costumam fazer negócio de permuta com os comerciantes
ambulantes (funantes), permutando gado ou mantimentos por
Muhumbes — Penteados
fazendas, missangas, metais, enxadas gentílicas e quinquilharias.
A moeda corrente é o boi, o cabrito ou o carneiro.
Em matéria de administração de justiça é ela da competência
dos séculos e do conselho dos velhos e em última instância do
soba.
Tem o juramento firmado sobre a memória de família morta
e admitem a prova testemunhal.
No que diz respeito a punições de crimes e delitos são eles
expiados com o pagamento de uma indemnização. Assim o crime
446 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de morte é punido com a indemnização à família do morto que
nunca pode ser inferior a 10 bois. A mutilação, ferimento ou
espancamento dá o direito ao ofendido de se vingar em tempo
oportuno. O estupro, o dano e o adultério, são punidos com
indemnização. A traição com a morte do traidor e família, e
confiscação de bens.
M JT^fT-e/M yrov trttp
CAPÍTULO XIX
TEIBUS BANCTUBA (»)
(Cuamatos, Cuanliamas, Evales)
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Situação geográfica destes povos. — Sua
origem. — População.
As tribus N'ctuba, cujo nome lhe advém de uma peça de ves-
tuário que usam suspensa pela cintura posteriormente, habitam
os vastos territórios entre o Cubango e o Cunene abaixo do pa-
ralelo 16° de latitude sul.
Estes povos são originários do sudoeste, da região do Ovampo.
Não obstante haver zonas desabitadas na região ocupada
por estas tribus, é ela uma daquelas da província em que a den-
sidade da população é maior.
O indígena destas tribus tem um tipo agradável, é alto ele-
gante, bem constituido, robusto e muito sociável. Tem os cara-
cterísticos da raça negra, o pigmento não é muito retinto, mas
um tanto avermelhado ; usam todos limarem os dois incisivos
superiores.
São agricultores e pastores, turbulentos e muito dados à
rapina. Apreciam' muito as armas de fogo e o gado bovino, e
teem muita facilidade em assimilar os hábitos e costumes euro-
peus.
(') Prestaram colaboração no estudo desta tríbu o administrador de
circunscrição senhor Campos Palermo e as missões católicas.
448 POPULAÇÕES INDÍGENAS
II. — Da vida material e intelectual
Cuidados dados ao corpo. — Alimentação
— Vestuário. — Habitação. — Meios de
existência. — Artes. — Sciências. — Fa-
culdades intelectuais.
Poucos ou nenhuns cuidados lhe merece o corpo a não ser os
penteados. Com efeito a não ser os evales que se não esmeram
com o penteado, usando geralmente, tanto homens como mulheres,
o cabelo cortado, untando-o às vezes com lucula, os restantes povos
destas tríbus cuidam bastante dos seus penteados.
Os cuamatos e cuanhamas, os homens e rapazes, ou rapam o
cabelo, ou deixam no alto da cabeça e na nuca uma pequena
porção de cabelo crescido, ou um simples rabicho na parte pos-
terior da cabeça.
As mulheres dos cuamatos usam em geral o cabelo crescido
apartado ao meio e entrançado com fios de imbondeiros, caindo
sobre as orelhas e pescoço.
As mulheres cuanhamas usam na cabeça uma espécie de capa-
cete, patela de couro e cabelo, terminada por duas hastes levan-
tadas à frente, que prendem à cabeça com pregos de madeira.
A alimentação destes povos é quási que exclusivamente cons-
tituída por vegetais, a não ser a dos evales que usam muito a
carne de boi, escaceando-lhes às vezes os mantimentos.
Os restantes povos usam quotidiamente as papas de farinha
de massango, empregando a carne na sua refeição só por ocasião
de festa. Todos os povos que estão estabelecidos junto dos rios
empregam na sua alimentação o peixe.
Usam e abusam das bebidas fermentadas que constitui a sua
primeira refeição, e empregam na alimentação, frutos silvestres,
como sejam: os nombes, semelhantes ao bago de uva; nenhandos,
espécie de abrunhos, etc.
#
# #
No que diz respeito a vestuário entre as tríbus em estudo, é
característico para os homens o uso da ríctuba, um pedaço de
DE ANGOLA
449
pele de boi, com uma orelha- ao lado direito, e que se suspende
por um cinto de couro na parte posterior, cobrindo as nádegas.
É a ríctuba que conjuntamente com a matita, uma pele de
boi suspensa na frente que, entre os cuanhamas constitui o traje
nacional e se costuma usar nas festas solenes. No entanto actual-
mente quási todo o cuanhama que tem alguma coisa de seu, pelo
menos os lengas, usam fato à europeia, lenço ao pescoço calçado
e chapéu, ou pelo menos um
grande pano que lhes chega
abaixo do joelho. Alguns
muficos do soba, usam ca-
misas compridas apertadas
na cintura por um cinto de
couro, onde trazem os car-
tuchos. As mulheres cua-
nhamas usam na frente um
buxo de boi e na parte
posterior, uma pele em for-
ma de losango suspenso do
cinto e apertado aos lados
sobre os quadris, descre-
vendo sobre as nádegas,
dois arcos com as concavi-
dades voltadas para fora.
Entre os restantes povos
o vestuário consiste para
os homens, em um pequeno
pedaço de pele ou riscado,
para cobrir os órgãos ge-
nitais e uma estreita tira
de couro para encobrir o anus ; para as mulheres em duas tiras
largas de pele de boi, preferindo a preta, pendente, à frente e
posteriormente, de um largo cinto de couro.
Como adornos, usam missangas ao pescoço, trazendo uma
simples fiada os homens, e nem todos, mas nas mulheres chegando
por vezes a constituir uma grossa e pesada coleira; usam homens
e mulheres pulseiras de fio de cobre ou ferro, braceletes cinzela-
dos (principalmente os cuanhamas) e argolas dos mesmos metais
nos braços e pernas; e as mulheres cuanhamas faixas ou cintas
de contaria grossa. As raparigas solteiras cuanhamas usam
como distintivo várias rodelas de ovos de avestruz, enfiadas em
BancUibas — Tipo do Cuamato
450 POPULAÇÕES INDÍGENAS
uma linha e assentes ou suspensas da faxa de missanga cobrin-
do-lhe os rins.
Alguns homens do evale usam chapéu embelezado com uma
pena de avestruz, encòntrando-se o mesmo costume entre os
muficos do soba dos cuanhamas.
Todos os cuanhamas e alguns dos povos das outras tribus
usam furar a orelha direita onde suspendem à laia de brinco,
um colchete, uma argola, pedaço de fio, etc.
Não usam a tatuagem.
O tipo da habitação é a cubata de base circular, e cuja forma
portanto é a pyramide cónica.
As cubatas assentam directamente sobre o solo, e são cons-
truídas de pau a pique, barreadas e com cobertura de colmo.
As cubatas dos membros da mesma família, agrupam-se,
constituindo o tchilongo cercado de pau a pique, com um corredor
em labyrinto dando serventia às divisões interiores para cubatas,
currais, e cobertos para trabalho e descanço. A entrada prin-
cipal do tchilongo fica sempre voltada a oriente e é fechada por
uma porta em órgão, constituída por paus que sobem ou descem,
correndo entre dois que formam a verga do portado, e que pela
parte inferior são trancados com outros dois ou mais de correr.
Álêm da porta principal há sempre pelo menos uma falsa, mas-
carada por arbustos, junto ao curral interior do gado e da entrada
principal.
Escolhem de preferência para local do tchilongo logares mais
elevados, nas orlas das chanas, e perto de mulolas, cacimbas ou
rios.
Como mobiliário àlêm do trem de cosinha, constituído por
algumas panelas de barro, quindas, e vasos de madeira para o
leite, usam esteiras de caniço e peles de boi, que lhes servem de
cama e assento, quando não tem cama feita de estacas de madeira,
e alguns troncos de árvores de pequenas dimensões para subs-
tituir as cadeiras.
Uma das principais ocupações destes povos e em especial dos
cuamatos é a agricultura. As culturas dominantes são: o mas-
DE ANGOLA
451
sango; massambala; o feijão chingoméne; amendoim; abóboras;
tomates; e algum milho.
Em geral cultivam só o necessário para o seu consumo e
conservam os produtos em umas pequenas cubatas sobre estacas,
barreadas interiormente.
Na sua rudimentar agricultura empregam a enchada, uma
espécie de ancinho, o machadinhd, e a catana. Quando tem de
fazer derrubas de árvores de grande porte empregam o fogo.
Banctubas — Tipos do Cuamato
Exercem a caça principalmente os evales que disso fazem a
sua principal ocupação.
% Dedicam-se à creação de gado bovino, caprino e algum suino,
em especial no que diz respeito ao gado bovino a que se dedicam
em grande escala.
No que diz respeito às indústrias que exercem, todos estes
povos se dedicam : à indústria de olaria, fabricando panelas de
vários feitios e tamanhos, e outras vasilhas; ao fabrico de es-
teiras e cestos variados; à de tanarias; à de metalurgia, fabri-
cando as facas características que usam, machadinhos, enchadas,
argolas, pulseiras, flechas, azagaias e concertando armas ; e a
de trabalhar a madeira, fabricando cestos e ceirões de entrecasca
de árvore e vasilhas de que se servem para depósito de manti-
mentos.
452 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A língua falada é o herrero ou ovampo com pequenas varian-
tes de tríbu para tríbu.
No que diz respeito a canto e danças não existe grande va-
riedade, e quási por assim dizer se reduzem a coros acompa-
nhando o vulgar e conhecido batuque. Os instrumentos de mú-
sica usados são a puita (espécie de tambor), as marimbas, onugo
(viola de uma só corda).
Entre os cuanhamas é de uso ao anoitecer, em quási todos
os tchilongos, as raparigas solteiras (mucandonas) organizarem
umas espécies de orfeons, acompanhando o canto com palmas.
Entre os evales há quatro festas durante o ano a que o povo
aflue, diverte-se, dança canta e bebe.
A primeira festa coincide com as colheitas, sendo reunido
todo o gado e contado; outra festa é na segunda quinzena de
Agosto em que o gado e novamento contado; vem depois, na
primeira quinzena de Setembro, a festa da fundula, em que as
raparigas casadoiras são presentes ao soba que escolhe quais as
que se encontram em condições de contrair matrimónio; a última
festa é a das sementeiras ou chiepa.
Estes povos são, relativamente aos restantes do sul da pro-
víncia, dotados *de uma inteligência e estado de adiantamento
incomparavelmente superior àqueles.
Orientam-se pelo sol, conhecem as fases da lua que lhes serve
de contagem de tempo, sem é claro lhe dar explicação.
III. — Da vida familiál
O nascimento. — A iniciação. — O casa-
mento. — A família. — A morte. — A reli-
gião e sacerdócio.
Entre alguns destes povos não é costume qualquer cerimónia
pelo nascimento, entre alguns cuamatos após o nascimento e
DE ANGOLA 453
depois da parturiente ter sido esfregada com manteiga, sai
para fora da cubata com a criança recemnascida e com ela pas-
seia a libata, sendo oferecido a esta pelas mulheres, pequenas
porções de mantimento e outros artigos de uso das mulheres, se
«o recemnascido é do sexo feminino; se é do sexo masculino, é aos
homens que compete oferecerem artigos de seu uso,, havendo a
seguir um batuque.
A imposição do nome é da competência da família ; assim em
geral tratando-se do primeiro filho é o nome dado pelo avô
paterno, ao contrário pertence ao pai. Os nomes teem diferentes
significações, tais como: trazer, encontrar, nomes de parentes
falecidos, nomes conforme a hora a que a criança nascer e a
estação do ano, etc.
Entre os cuanhamas quando nasce uma criança defeituosa
é sacrificada, bem assim como quando nascem gémeos, sendo pou-
pado, sempre o do sexo masculino.
Existe a circuncisão para os cuamatos e cuanhamas, mas não
é de uso entre os evales.
Existe a festa do mufico para os cuanhamas e da fundula
para os cuamatos, quando as raparigas chegam à idade de pu-
berdade.
As raparigas não podem conceber antes da festa do fundula,
a que tiver a infelicidade de conceber antes da fundula lavrou
a sua sentença de morte.
Os homens emancipam-se logo que tenham tanta força como
os pais ou quando se casam ; as mulheres só depois de casadas.
Entre alguns povos da tríbu cuamato o período de casamento
é feito espetando-se uma flecha à porta do pai da noiva, a que
se segue um batuque oferecido pela família do noivo à da noiva
e que termina com a oferta da família daquele à deste de um
boi, cabritos, ou enxadas e bebidas fermentadas conforme as
posses.
Entre outros povos destas tríbus o casamento contracta se
pela oferta acima referida do pai do noivo ao da noiva.
Entre os evales as cerimónias que precedem o casamento
diferem por completo da usual que se pratica nas tríbus aqui
em estudo, visto que os casamentos saem por assim dizer efecti-
454
POPULAÇÕES INDÍGENAS
..
h
vados da festa da fundula a que já nos referimos, havendo à
oferta de um boi não da família do noivo, mas deste à noiva, de
que se tem de presentear o soba com uma perna, visto a este
competir fazer a escolha das raparigas que encontra em condi-
ções para o matrimónio.
A mulher casa logo que chegue à idade de puberdade entre
^ os 15 e os 18 ; o homem entre
os 17 e os 20.
Existe a poligamia, va-
| riando o número de mulheres
| com que cada indígena casa e
I não indo àlêm de 15, à excep-
j ção dos sobas que podem ter
as que quizerem. Cada mu-
lher vive na sua cubata.
Existe o divórcio que é
proposto pelo homem ou pelo
tio materno da mulher, sendo
'á indemnizado o homem ou a
família deste do presente que
Ú deu para efectivar o casa-
mento. A mulher divorciada
9 não tem direito algum sobre
os bens do homem. Os filhos
na maioria dos casos acom-
fl panham a mãe.
O adultério é motivo de
' divórcio quando o seductor
da mulher não pague uma
indemnização.
O divórcio exigido pelos tios maternos da mulher é sempre
fundado na esterilidade do marido.
Banetubas — Tipos Dongoenas
*
Os pais não teem direito sobre os filhos, e os seus direitos
sobre a mulher é para nós ponto muito discutivel; no entanto
filhos e mulher devem-lhe obediência, os filhos emquanto se não
emancipam e a mulher emquanto se não divorcia. Quem de
direito dispõe dos filhos são as mães e os tios maternos.
BE ANGOLA 455
A ordem de sucessão para efeito de herança é entre irmãs e
a seguir entre os filhos das irmãs, começando pelo mais velho;
na falta de herdeiros revertem os haveres em favor do soba.
Os viúvos e viúvas não teem direito algum aos bens do casal,
nem em vida, nem depois da morte, gozando dos direitos que
teem as pessoas solteiras.
Os filhos das diferentes mulheres vivem em comum emquanto
pequenos, e teem todos os mesmos direitos.
Para o tratamento das doenças teem os curandeiros que são
muito respeitados e considerados, usando os do evale, como dis-
tintivo, uma tira de pele de boi vermelho ombro a ombro, os
curandeiros cuamatos, nem todos tem distintivos e só alguns
usam pulseiras de couro e pendente ao pescoço uma concha com
uma espécie de figa.
Os remédios mais usuais são pó de lucula e azeite de palma,
chá de diferentes raízes, pó de folhas secas de diversas árvores,
raízes maceradas ou em infusão.
Os curandeiros fazem segredo da sua profissão e quem se
encontra com aptidão para exercer o cargo entende-se com um
curandeiro velho que a troco do sigilo e de uma remuneração
recebe a aprendizagem.
Os falecimentos dão sempre logar a festas, tanto mais impor-
tantes quanta a importância do falecido. A seguir ao óbito é
chamada a família e enquanto os homens vão bebendo e disparando
tiros, as mulheres em volta do cadáver fazem uma algazarra me-
donha. No dia seguinte é o cadáver enterrado, para o que se
dobra, de forma a que as coxas fiquem unidas ao peito, apoiando
o queixo nas mãos, e os cotovelos nas coxas ; o que para se
obter muitas vezes tem de se quebrar os ossos ao cadáver.
O corpo enterra-se no curral dos bois em uma sepultura cir-
cular, deitando-se por cima do cadáver uma pele de boi preto e
cobrindo-se com terra.
Quando se trata do falecimento de um soba, não é este logo
dado a conhecer ; faz-se constar que está doente e só passados
dias e às vezes meses, tempo que parece ser determinado para
mais ou menos facilidade na sucessão, é que a morte se torna
pública. Afluem à embala a gente de categoria, matam- se bois
456 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pretos em abundância, bebe-se, come-se e chora-se largo tempo.
O cadáver é exposto numa cubata entre peles de boi preto, até
apodrecer, só depois é removido para uma caixa de madeira e
depositado em um cercado de estacas, coberto de capim.
Crêem na existência de um ente que os domina e que manda
nos astros, dispõe da chuva e lhes dá o que necessitam, poder que
julgam conservar alguns sobas
ou pelo menos por intermédio
de quem a êle se dirigem.
Assim no Evale quando vêem
as sementeiras perdidas, reu-
nem-se os chefes de macunda,
vão pedi-la ao soba, levando
é claro o respectivo boi. O
soba vai a seguir transmitir
o pedido à sepultura do antigo
soba Binga e antes de regres-
; sar à embala chove torrencial-
!: fíjSi mente !
A não ser a sepultura dos
sobas que lhes é vedado pisa-
rem, não tem lugares sagrados.
Não adoram nem veneram
j representações materiais de
entes sobrenaturais, não exis-
Banctuba — Tipo Cuanhama
tindo manipanços.
São muito supersticiosos, atribuindo todos as desventuras e
infortúnios a qualquer acto que tivessem praticado, recorrendo
aos feiticeiros para o remir, com o pagamento de alguns bois.
No Evale do soba reside toda a sabedoria e todos os poderes
de magia, não permitindo aquele outros feiticeiros nos seus do-
mínios.
Entre a classe dos feiticeiros, existem: os feiticeiros da guerra
cuja missão especial é indicar o resultado final de qualquer
guerra; os feiticeiros maus, que segundo a sua crendice são cul-
pados da morte de qualquer pessoa ; e os bons a quem se recorre
para desfazer os efeitos daqueles ou para remir as culpas.
DE ANGOLA
IV. — Da vida social
45?
Espécie de vida. — Classes e castas. —
Organização política. — Propriedade. —
Regime económico. — Costumagens ju-
ridicas.
Não obstante se dedicarem à criação de gado em grande
escala, levam vida sedentária.
Álêm dos sobas, dos chefes de mucundas, dos lengas, dos
curandeiros e dos feiticeiros, há os homens ricos, os homens
livres, e os escravos. Há escravos por dívidas, e escravos pri-
sioneiros de guerra ou das razias, que fazem aos povos do dis-
trito de Benguela; os primeiros são considerados como filhos.
Por morte dos seus senhores os escravos se não quizerem
ficar ao serviço dos herdeiros, podem servir qualquer outra
pessoa, mas nunca são livres.
A organização política não é igual para todas as tríbus.
A organização política dos evales é caracterisada por um
governo absoluto, e até mesmo despótico, posto na única auto-
ridade que de tudo dispõe, ao ponto de depender dele a licença
para pescar e caçar, e que é o soba. O soba só em casos de
excepcional gravidade consulta os velhos tidos como homens de
bom conselho, mas esta consulta é uma simples formalidade,
porquanto estes teem o cuidado de previamente saberem as dis-
posições do soba para lhe não desagradarem. Depois destes, os
indígenas mais considerados são os séculos.
O soba tem os seus lengas, chefes de guerreiros que dispõem
de limitada influência e são escolhidos e substituídos segundo
a vontade daquele. No Evale há dois sobados rivais, um situado
na margem direita e outro na margem esquerda do rio Cuvelay
que atravessa a região do norte a sul.
A autoridade do soba faz-se sentir debaixo de todas as for-
mas : dispondo da vida das pessoas sobre qualquer pretexto,
escravisando famílias inteiras com confiscação dos haveres,
desde que alguns dos seus membros é acusado de homicídio ou
crime grave, e finalmente intervindo na resolução de todas as
questões.
30
4'58 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Emfim não permitindo nos seus domínios os feiticeiros, nas
suas mãos concentra todos os poderes para despoticamente
governar.
Em teoria o sucessor do soba do Evale é o sobrinho mais
velho, filho da irmã igualmente de mais idade; mas na prática
é aquele que dispondo de mais elementos de combate ou simpatia
do povo vence o seu rival.
A eleição do soba no Evale, a seguir-se a tradição, seria
feita por um conselho de velhos e chefes mais importantes, os
Banctubas — Mulheres Cuanhamas
quais se conformariam com as disposições do soba falecido ou
escolheriam o seu sobrinho de maior idade.
Comunicar-se-ia ao eleito a decisão do conselho e este cons-
truiria a sua embala a um quilómetro distante da antiga, visto
ser vedado ao eleito entrar nesta, sem primeiro ter provado a
sua capacidade para o desempenho do cargo.
Entre os cuanhamas, o governo, não obstante ser absoluto, é
menos despótico do que no Evale.
O soba é o Oghamba senhor do tchinogo (terra) e governa
repartindo a sua autoridade pelos membros da sua família,
fidalgos e simples séculos. O sobado divide-se em mueundas e
estas em libatas; governa a mucunda um século e a libata o seu
chefe; no entanto há séculos que teem, alem da sua mucunda
outros séculos subordinados.
A sucessão é entre os irmãos e depois entre os sobrinhos
mais velhos filhos das irmãs.
Entre os cuamatos a organização política é em tudo seme-
lhante à dos cuanhamas ; um soba exercendo o governo absoluto,
DE ANGOLA 459
ajudado pelos chefes da mucunda e lengas, de que dispõe, por que
dele depende a sua nomeação. No entanto, nas regiões de Dom-
bomdola, Uncuancua e Hinga, não existe a autoridade soba
propriamente dita, e quem exerce as suas funções é o chefe de
mucunda mais velho, que tem muito pouca autoridade, a qual
está distribuida pelos respectivos chefes de mucunda que são
afinal quem governam.
A sucessão é como entre os cuanhamas.
Todas estas tríbus teem uma organização militar mais ou
menos perfeita. O agrupamento predilecto parece ser a tanga
(cem homens). Um lenga, o chefe de guerra, comanda 2, 3, 4,
ou 5 tangas e mais. Em geral o lenga é o século da terra e
comanda a sua gente, havendo lengas seus subordinados quando
a área da sua juridiscão é grande. Ao conjunto de vários lengas
dão o nome de ohíta.
Extremamente ladrões e dotados de um espírito aventureiro
mantinham esta organização guerreira para efectivar as suas
razias. Para dar ideia de uma dessas proezas passamos a trans-
crever alguns períodos de um artigo do senhor Campos Palermo,
descrevendo uma razia ao Humbe, onde foi admnistrador de
circunscrição :
«4 guerra dos diversos vaus (') fica ao cuidado das mucundas
(grupos de indígenas dirigidos por um chefe, que se denomina:
chefe de macunda) que residem mais próximo deles.
O povo fabrica pequenos paus ponteagudos que vão semi-
enterrar no leito do rio, no sítio dos vaus, e com os bicos vira-
dos para cima. Esta operação tem por fim embaraçar as guer-
rilhas na passagem dos vaus, porque vindo os peões descalços,
espetam-se e a passagem é retardada, o que contribue para que
o gentio que vai ser atacado se reúna em maior número para a
resistência e, muitas vezes, os escurraçar com grandes perdas.
O gado só vai beber água por turnos, para no caso de assalto
imprevisto, se perder o menos possível, e de dia e de noite os
indígenas que estão de sentinela ao rio gritam o seu . . . alerta !
para mostrar que estão vigiando e que não há novidade. Quando
os gritos se retardam, logo outros indígenas vão inquirir do
que se passa, não tenham algumas sentinelas sido mortas pelos
cuanhamas.
(l) Só no Cunene.
460 POPULAÇÕES INDÍGENAS
E assim se passa esta quadra do ano nesta anciedade cons-
tante, e apesar de todos estes cuidados, não há ano, que se passe
sem que tenha havido mais ou menos incursões, maiores ou me-
nores roubos e razias.
As guerrilhas cuanhamas são tecnicamente organizadas.
Cada lenga (chefe de guerra) comanda a sua gente.
Os lengas vêem a cavalo, vestidos à europeia, com botas de
meia prateleira, esporas e polainas, quási todos eles armados de
espingardas Mauser de 8mm.
Juntamente com a gente armada de espingardas vem outra,
só com zagaias, porrinhos (pequenas mocas com que enxotam o
gado e também combatem) e punhais com curiosas bainhas de
madeira.
Não entram em massa. Vêem mais ou menos formados a
três ou quatro; entram por um vau e geralmente vão sair por
outro, dando o seu trajecto a forma de um semicírculo, em que
o rio representa o diâmetro.
É uma verdadeira rede de arrastar !
Também às vezes entram em duas guerrilhas por pontos dife-
rentes mas não muito distantes, para destorcar e dividir os defen-
sores.
Assim que se presente uma guerrilha, os primeiros indígenas
que a pressentem dão o grito de alarme (conhecido pelo termo:
bater cua), e então as mulheres são quem alastram o alarme
gritando agudamente: Ulu. , . Ulu, . . Ulu. . , Ulu. . . De toda
a parte ocorrem homens armados com espingardas, zagaias, fle-
chas, punhais e porrinhos; enquanto outros, num afan diabólico
enxotam as manadas e os rebanhos para o interior da terra, para
fora do alcance das guerrilhas.
O combate trava- se a princípio com pouca intensidade, mas
à maneira que as guerrilhas se entranham e que a massa dos
defensores aumenta torna-se mais rijo até que, os cuanhamas
quando jã vêem o inimigo muito numeroso, retiram. Então, os
defensores passam a ofensiva, perseguem os cuanhamas tentando
reaver as presas que eles levam, atravessam o Cunene em sua
perseguição e vão muitas vezes até próximo das primeiras aldeias
cuanhamas.
Algumas vezes, indígenas da margem direita conseguem rea-
ver as presas que os cuanhamas já levam, e infligir-lhes maior
número de baixas do que as sofridas e fazerem-lhe bastantes
prisioneiros. Os cuanhamas armados só de porrinhos tem a mis-
DE ANGOLA 461
são especial de tomarem conta do gado apanhado e conduzirem-o
para o cuanhama. Os combatentes cobrem habilmente a presa,
fazendo face ao inimigo, defendendo- a e os qne a levam. Sabem
fazer fogo por descargas, e retiram quási sempre em ordem. O
móbil destas guerrilhas é o roubo de gado. Os prisioneiros
podem ser depois resgatados por bois e vacas, e os que não são
resgatados ficam como seus escravos».
*
Parece não haver o direito de propriedade de terra senão
para os sobas e séculos, que delas dispõem a seu belo prazer e
simplesmente como usofruto.
Donde se conclue que só existem contratos de compra e venda
de terras entre aquelas autoridades, e que as questões desta na-
tureza só podem ser liquidadas pela guerra.
*
Exercem o comércio, permutando gado bovino por armas,
munições, fazendas, riscados, missangas, aguardente, arame de
cobre e ferro. Os cuanhamas, em especial, adquiriam armas e
munições em grande quantidade, e objectos de uso de europeus
como sejam, fatos, camisas, calças, chapéus, navalhas, louca de
folha esmaltada, espelhos e toda a espécie de bugigangas que os
funantes se lembram de lhes impingir. Abastecem-se de sal por
intermédio dos povos do sul do distrito de Benguela. Entre si
há permuta de objectos vários, sendo a moeda corrente o gado
bovino e os mantimentos.
* *
A forma como se administra a justiça entre estas tríbus está
mais ou menos em relação com a sua organização política.
Assim entre os evales, cuja organização política tem como
base um governo autocrático e dispótico, não há por assim dizer
tribunal para resoluções das questões, visto que quem nelas
unicamente intervém é o soba que ouvindo as partes, as suas
462 POPULAÇÕES INDÍGENAS
respectivas famílias e testemunhas, resolve a seu belprazer,
terminando o julgamento por o soba deitar farinha na testa do
favorecido pela sentença.
Entre os cuanhamas, onde o governo sendo absoluto é menos
autocrático, tem os séculos competência para julgar a maioria das
questões, e só quando se trata de caso grave são eles os inter-
mediários entre o seu povo e o soba ; o que não impede de qual-
quer pessoa poder directamente queixar-se ao soba. Do exposto
se vê que o soba é quem em última instância administra a justiça.
Entre os cuamatos as questões são julgadas pelo soba e pelos
lengas, sendo em casos graves consultados os velhos séculos.
Todos os crimes e delitos se resgatam pelo pagamento de uma
indemnização em bois, até mesmo o crime de morte que é punido
com a morte, pode ser esta resgatada com o pagamento de 10 a
15 bois.
vv^ovLvrM
"ANGOLA?
Escala -12.000.000
Tribu CUA.NGARES
ur
CAPITULO XX
CUANGARES
I. — Dos caracteres etnográficos gerais
Os cuangares habitam a vasta região entre os rios Cuatir e
Cuito, limitada ao Sul pelo rio Cubango e confinando ao Norte
com territórios ocupados pelos Ambuelas.
Os Cuangares são descendentes das tribus Ovampo e Dámaras
que evadiram o Sul da província e se foram estabelecer nas
margens do Cubango, depois de cruzados com alguns dos povos
que habitavam o planalto da Huíla, e que ali teem recebido novas
influências dos povos do Barotze.
São de estatura mais que vulgar, robustos, imperiosos, san-
guinários, ladrões e indolentes.
II. — Da vida material e intelectual
Os povos desta tríbu costumam, tanto homens como mulheres,
untar totalmente o corpo, desde os pés até à ponta dos cabelos,
com o que chamam tacula, que é uma mistura de manteiga com
o pó vermelho que se obtém pisando a madeira de múcula,
espécie de acácia. Quanto mais elevada é a jerarquia mais se
untam, e, portanto, mais pronunciadamente vermelhos teem o
cabelo e a pele.
No que diz respeito a penteados usam os homens o cabelo
rapado em toda a volta da cabeça, deixando no vértice uma
espécie de solidéu de cabelo mais crescido, que, com auxílio de
tacula, dispõem em numerosas e finas torcidas.
As mulheres usam o mesmo solidéu mas a este, e a partir das
464 POPULAÇÕES INDÍGENAS
orelhas para a parte de traz, estão ligadas compridas fibras ve-
getais torcidas. Esta ligação é tão bem feita que dá ideia de uma
larga e farta cabeleira com um tom avermelhado que lhe dá a
tacula,
# *
A base de alimentação é o leite misturado com as papas feitas
de massango.
Usam muito na alimentação de umas cebolinhas que arrancam
Tipos Cua.n0ares
nas chanas, de fructos silvestres, de peixe que secam, e teem
grande predilecção pela carne de cavalo marinho.
Entregam-se ao uso de bebidas fermentadas, e costumam chei-
rar o rapé que trazem em pequenas bocetas feitas de chifre de
antílopes o a que aplicam, como tampa, uma rodela de couro.
Correlatrvo a esta boceta tem uma fina lamina de ferro, que
trazem espetada nos cabelos, e que lhes serve para aplicar o
rapé ao nariz.
O vestuário consiste em uma pele suspensa por um forte cinto
de couro na frente e outra atraz.
Os homens em geral usam só a da frente e essa mesmo muito
curta. Em vez de peles de pequenos antílopes, que são as mais
vulgarmente empregadas, usam alguns peles de boi.
DE ANGOLA 465
As peles usadas pelas mulheres são em geral mais compridas,
dando-lhes pelo joelho ou abaixo dele; algumas mulheres usam
também uma espécie de capas redondas, que descem abaixo da
cintura, e que, na maioria dos casos, são feitas de várias peles
cosidas entre si por meio de fibras.
Costumam preparar as peles, raspando-lhe o pêlo e untan-
do-as e esfregando-as, de forma que conseguem dar-lhe quási
uma flexibilidade e a aparência de pano.
No que diz respeito a ornamentos as mulheres de mais alta
jerarquia usam braceletes de fio de ferro, latão ou cobre, que
lhes envolvem os braços desde o pulso até ao cotovelo, bem assim
como trazem ao pescoço pendentes colares de contas de ferro ou
latão; nas orelhas umas grossas e pesadas anilhas deste último
metal e na cintura por cima das peles uma enfiada de pequenas
rodelas de ovos^de avestruz.
As mulheres de menor jerarquia, em vez de braceletes, usam
numerosas pulseiras dos mesmos metais, umas mais toscas e fa-
bricadas por elas próprias, outras importadas do Ngami.
Os homens usam ao pescoço e nos pulsos os mesmos orna-
mentos que as mulheres; as pernas, trazem-nas cingidas, logo
abaixo do joelho, por um ou mais finos anéis de latão, e no braço,
na depressão que existe entre o biceps e o ombro, trazem justo em
volta uma tira de couro de um centímetro de largura, onde alguns
entalam a boceta do tabaco. Além destes ornamentos usam como
sinal de nobreza os mandes, grandes rodelas cie louça branca,
enfiadas em colares de forma a penderem sobre o peito como um
medalhão.
Em marcha usam os homens alpercatas de pele de boi.
O tipo de habitação é a cubata, de base circular. A cubata
constroe-se fazendo o esqueleto circular com pau a pique, a que
exteriormente se encostam esteiras, e a que aqueles paus são
atados.
A cobertura de colmo é feita à parte, e só depois de completa,
colocada no seu logar.
As cubatas agrupam-se em libatas, divididas interiormente
por esteiras demarcando os diversos recintos, e defendidas por
fortes palissadas de espinheiros.
466 POPULAÇÕES INDÍGENAS
As libatas são construídas perto dos cursos de água, e é de
canoa que fazem as suas viagens.
Em geral os séculos e chefes da povoação usam duas libatas,
uma para a quadra das secas junto ao rio, e outra para a quadra
das chuvas mais afastada, fora do alcance das cheias.
Estes povos são principalmente agricultores e pastores; cul-
tivam o milho, a ginguba, o massango, a abóbora, o feijão e o
rícino.
Dedicam-se à creação de gado bovino, não teem porcos, cabras
e carneiros, mas em compensação teem galinhas e cães.
Caçam o elefante cujas pontas constituem a sua riqueza, o
avestruz e o hipopótamo, cuja carne e gordura muito apreciam,
servindo-se de armas de fogo, flexas envenenadas e armadilhas.
Exercem a pesca nos rios, lagoas e mulolas.
Fabricam estes povos, bancos, vasos, pratos, escudelas de
madeira, e constroem canoas, maúatos, dos troncos de mucussé
e nucibe, que movem com pequenas pás.
As esteiras usadas nas cubatas são' feitas com o caniço do rio,
dispondo no chão compridas varas deste caniço e batendo-o até
ficarem completamente rachadas; cortam-se segundo essas rachas
longitudinais e abrem-se, obtendo-o assim o elemento que serve
para o entrançado da esteira.
Usam várias danças e cânticos, acompanhados dos toques dos
instrumentos semelhantes aos usados pelas tríbus n'ctuba.
Fazem várias festas sendo as principais a das ?nucandonas,
a que nos referimos na organização da família, coincidindo com
o fim das colheitas, e aquela das sementeiras em Setembro.
%■
Os cuangares falam o herrero, modificado pelos dialectos do
Barotze e povos seus visinhos.
DE ANGOLA 467
III. — Da vida familial
Desconhecemos quaisquer práticas ou cerimónias antes do
nascimento das crianças ou após este.
Usam festas pela emancipaçãa das raparigas que consideram
com a idade para se poderem casar, aproveitando o fim das
colheitas. As festas são levadas a efeito na embala e para elas
são feitos convites a todas as libatas, dirigindo-se as raparigas
e os seus noivos às diversas libatas onde cantam e dançam.
Formam as raparigas um círculo e os rapazes um outro em
volta daquele, cada um atrás do seu par, e ao som da puita,
acompanhado por um estranho repinicado, feito com uns pe-
quenos paus, de que cada rapaz trás um par, batendo com
um no outro ora acima da cabeça, ora em frente do corpo, os
rapazes meneam-se graciosamente e as raparigas com as mãos
nos quadris fazem requebros do corpo e cabeça. No que diz
respeito ao casamento nesta tribu pratica-se como nas tribus
n'ctuba.
São polígamos, variando o número de mulheres conforme a
sua riqueza; as mulheres vivem todas na mesma libata com o
marido, mas cada uma na sua cubata com os seus filhos.
O marido é o chefe da família e como tal manda no casal.
O divórcio é de uso e costume frequente; e a vontade ou
capricho de qualquer dos cônjuges, é o bastante para o efecti-
var, retirando cada um com os haveres que trouxe, tendo de
retribuir as ofertas.
Os direitos de sucessão e herança, exercem-se nos irmãos e a
seguir nos sobrinhos filhos das irmãs, havendo no entanto exce-
pções frequentes.
Em matéria de religião não se afastam do que deixamos
exposto para as tribus n'ctuba.
Supersticiosos, como todos os povos da província, e sendo
uma das suas principais ocupações a caça, teem alguns uma
espécie de recinto sagrado com numerosos feitiços da caça.
IV. -— Da vida social
Existem os sobas, os séculos, os homem ricos e livres, e os
escravos. Como nas tribus já estudada há escravos familiares,
podendo ligar-se com as pessoas da família, provenientes de
468 POPULAÇÕES INDÍGENAS
actos de justiça e das permutas, e os escravos das guerras e
razias com outros povos.
A autoridade superior entre os Cuangares é o soba com po-
deres absolutos e despóticos sobre pessoas e haveres, não admi-
tindo controvércias parlamentares. No entanto em casos graves
consulta os séculos e os homens mais velhos.
Na vasta região ocupada pela tríbu cuangar há quatro soba-
dos independentes uns dos outros, o do Cuangar propriamente
dito, e os dos povos da Bunga, Sambio e Dirico.
Cada sobado é dividido em mucundas com os seus séculos.
Dedicam-se ao comércio de permuta, constituindo a sua prin-
cipal moeda os dentes de elefante com que obtém, armas, mu-
nições, missangas, etc.
A justiça é administrada pelo soba, sendo admitida a prova
testemunhal, e todos os crimes e delitos espiados com pagamento
de uma indemnização, que pode ser em mantimento, gado ou
pessoas.
Escala -jjjTõoí
Tribu MUCUSSOS
Otjunjuma, \oJ\tcuTtoana.'*
«■
CAPÍTULO XXI
MUCTJ8S0S
Dos Caracteres etnográficos gerais.
— Vida material e intelectual. — Vida farnilial.
— Vida social.
Os povos designados por mucussos ou bacussos são originários
do Barotze ; habitam as margens do Cubango inferior e as do
Liliana e Cuando, ocupando assim uma vastíssima região da
nossa província, limitada a oeste pelo rio Cuilo a leste pelo
Cuando ao sul pelo Cubango e ao norte pelos territórios habi-
tados pelos ambuelas.
Os mucussos são espaduados, corpolentos, fortes, alegres e
joviais e retintos, costumam limar em pontas os dois incisivos
médios superiores, e não usam tatuagem.
As condições climatéricas não lhes permite que se dediquem
com afinco à agricultura, são no entanto hábeis na condução
das canoas, em que descem os rápidos dos rios, e exercem a
caça.
No que diz respeito aos cuidados dados ao corpo, merece-lhes
especial atenção os penteados e uso de amaciar a pele com o
emprego da manteiga de vaca ou óleo de rícino, misturado com
tacula reduzida a pó.
O vestuário em nada difere do usado pela tríbu cuangar que
deixamos estudada no capítulo anterior, bem assim como no que
diz respeito a ornamentos, constituindo a única diferença o facto
de os usarem em maior escala.
Outro tanto sucede com os penteados, observando-se contudo
470 POPULAÇÕES INDÍGENAS
uma maior percentagem de homens com a cabeça completamente
rapada.
Na alimentação àlêm da farinha e do leite coagulado usam
principalmente o peixe seco de que fazem grandes reservas para
a quadra das chuvas. Fazem pouco uso de carne e para não
fazer excepção aos outros povos da> província, entregam-se ao
uso das bebidas fermentadas de farinha de milho e de vários
frutos.
O tipo de habitação é a cubata, em cuja construção predomina
a esteira por eles
fabricada do ca-
' nico dos rios. As-
sim encontram-se
^W^-'^ «X , - ú cubatas semelhan-
tes às usadas pelos
_ cu a ngares, veda-
rajtV;0 :í das por esteiras e
cobertas de colmo,
& jStss, .&^_-.*&^n.5ÍMfâgm \ cuja diferença está
simplesmente em
?>.,,, .\y'-' *í terem a cobertura
mais elevada, e
Tipos da tribu Mucussu outras feitas exclu-
sivamente com esteiras combinadas de modos diversos, e de
forma cilíndrica, elítica, cónica e quadrada.
As libatas, construídas no meio de caniços das ilhas, e mar-
gens dos rios, ou mais frequentemente em altos, fora dos terrenos
alagadiços, são constituídas por cubatas dispostas sem ordem e
apertando-se umas contra as outras, vedadas por cercados de
esteiras, mas na maior parte de entrada livre, e sem defesa.
Os mucussos não podem dediear-se à agricultura, visto o
regime incerto das chuvas na maioria não lhes garantir um
êxito regular para as suas culturas, por esta razão do pouco
que cultivam muitas vezes nada recolhem, sendo frequentes as
crises de verdadeira fome.
Cultivam o milho, o massango, abóboras e o rícino.
A principal ocupação consiste na pesca e na caça, enquanto
que as mulheres tratam das lavras e da seca do peixe.
No que diz respeito à caça, a principal é a do elefante, mas
segundo o costume o marfim pertence ao soba, que faz a dili-
gência para que tal uso se cumpra, mandando azagaiar todo
DE ANGOLA 471
aquele que, caçando um elefante, lhe não venha entregar os
respectivos dentes, não obstante o rigor do castigo nem todo o
marfim do mucusso vai parar às' mãos do soba. Exercem com
alguma intensidade a caça do cavalo marinho, para o que em-
pregam uma forte vara rectangular de dois a três metros de
cumprido, tendo em uma das extremidades um orifício onde se
coloca um arpão forte de ferro ; à haste deste arpão está ligado um
feixe de cordas, que se prende fortemente ao meio da vara. Com
Ti 1303 do Mncussu
este aparelho embarcam nas suas canoas e procuram aproximar- se
do animal para lhe enterrar o arpão; logo que o conseguem, ou
o cavalo marinho se dirige furioso à canoa ou mergulha para
fugir; em qualquer dos casos a canoa foge rapidamente para
a terra, e vai largando um cabo que previamente se tem amar-
rado à vara, enquanto esta flutua à superfície, desembaraçada
do arpão, que ficou enterrado no animal, e indicando a sua
posição ; prendem o cabo a um tronco da margem do rio e esperam
que o cavalo marinho morra.
Dedicam-se em pequena escala à creação do gado, principal-
mente do gado bovino, e não tem gado suino.
Falam o barotze, dialecto mucusso da língua do Barotze.
#
* #
No que diz respeito à organização e mais usos e costumes em
relação ao nascimento, casamento, morte, religião e sacerdócio,
472 POPULAÇÕES INDÍGENAS
são eles idênticos aos da tríbu cuangar, havendo a notar quê"
entre os mucussos há magníficos curandeiros.
Sobre a organização social àlêm do que ficou dito para
os cuangares, merece especial menção no que diz respeito à
Mucussu — Urna libata
^y
organização política a forma absoluta, despótica e sanguinária
como o soba exerce o seu governo.
Este soba é temido pelos seus vassalos e impõe-se-lhe por um
despotismo sanguinário, suprimindo todo aquele, seja êle quem
fôr, que, começando a ganhar um certo prestígio faça sombra à
sua autoridade suprema. Aos povos limítrofes, desde longa data
que se lhes vem impondo pelo poder", que se arroga, e que todos
lhe reconhecem, de dispor das chuvas, procurando por meio de
presentes captar lhe a benevolência, para que na época própria
a chuva não falte nas suas respectivas terras.
Junto da embala do soba, que está estabelecida em uma ilha
do rio Cubango, existe um pequeno bosque que é o recinto des-
tinado às cerimónias do culto das chuvas; ali ninguém entra
senão o soba, e, raras vezes, com êle, o sobrinho, que destina
para suceder-lhe no poder, e aquém, a pouco e pouco, vai ini-
ciando.
Jf.Ayrt/a *T"V r*nf*
I
CAPITULO XXII
VAHIMBAS
Dos caracteres etnográficos gerais.
— Vida material e intelectual. — Vida familial.
— Vida social.
Os vahimbas habitam a região ocidental dos Gambos, nas
nascentes do Curoca e Otchinjau, errando muitos pelo Chabicua,
Nguerengue e vertentes da serra da Cheia até ao Cunene.
Os vahimbas são o produto do cruzamento dos boschjmanes
com os hotentotes e dámaras, e por assim dizer representam um
termo de transição entre a raça boschjman e a negra ou bantu.
Caracteriza esta tríbu a vida errante que a maioria da po-
pulação leva, pastoriando os seus gados e não se fixando à terra.
Entre os vahimbas ainda muitos não enterram os cadáveres.
Merece-lhes especial cuidado os penteados que pouco se afas-
tam dos usados pelos vanyanekas, principalmente entre os homens.
O vestuário consiste em uma pele suspensa e em uma tira de
pano que passam por entre as pernas, depois de entalada no
cinto de couro. Os séculos usam vários panos sobrepostos, fa-
zendo lembrar saias com muitas pregas.
Algumas mulheres usam uma pele de boi em forma de saia
que lhe cai até ao joelho e uma outra em forma de capa, presa
ao pescoço, enfeitada com pregos amarelos e contas de ferro.
Encontram se algumas mulheres que na cabeça usam um cas-
quete em forma de mantilha com duas orelhas como enfeite.
Usam vários adornos, tais como : colares de missanga, bra-
31
474
POPULAÇÕES INDÍGENAS
,-
celetes, pulseiras, brincos, anéis, etc. Os homens usam à cinta
um cinto ou larga correia onde penduram uma patrona de coiro,
a faca e o porrinho. As mulheres usam grandes faixas ou cintos
de fios de missanga branca, verde e vermelha.
Empregam a tatuagem.
A alimentação é quási que exclusivamente vegetal, consti-
tuída pelas papas de farinha de
F-1" 5 massambala ou dé milho, e do
jip^ leite cuagulado.
&* ** Usam várias bebidas fermen-
I tadas por eles fabricadas, e que
as mais frequentes são a ber-
lunga, o gongo e o hidromel.
O tipo de habitação ê a cu-
bata de base circular coberta de
colmo e ramos de árvores.
A principal ocupação destes
povos é a criação de gado bovino
e caprino, o que constitue a sua
principal riqueza. No entanto
os homens empregam-se igual-
mente na caça e no cultivo de
arimos, e as mulheres tratam do
lar doméstico, dos filhos e das
culturas.
As culturas dominantes são o milho, a massambala e o mas-
sango. Cultivam também, mas em pequena escala, o feijão ma-
cunde, abóboras, tabaco, ginguba, cará e mandioca.
Teem pequenas indústrias de oleiro, obras de madeira e de
cesteiro, e de metalurgia.
Falam um dialecto herrero.
$%>v
Tipo Vahimba
O nascimento cie uma criança é sempre motivo de regosijo
para a família, abatendo-se um cabrito e untando-se a criança
com manteiga.
A imposição do nome (oculuca) ê feita sempre por um velho
ou velha da família. A criança tem em geral três nomes.
Praticam a circuncisão dos 12 aos 14 anos, e as raparigas ao
DE ANGOLA
475
chegarem à puberdade fazem uma festa, ficando aptas para o
casamento.
O casamento não tem cerimónias especiais e efectiva-se pelo
dote antenupcial como nas outras tríbus.
Os direitos dos cônjuges um sobre o outro são quási nulos.
Existe a poligamia e o divórcio.
A sucessão é de tios para sobrinhos filhos das irmãs, o her-
deiro pode ou não dar às
viuvas ou aos filhos do fa-
lecido alguma cousa, de-
pendendo da sua boa ín-
dole e vontade.
É permitido o testa-
mento perante os velhos
da povoação.
No tratamento das
doenças recorrem aos cu-
randeiros, que dispõem de
enorme influência entre os
povos e cuja arte passa por
herança ou vocação. Quem
se sente com vocação, pra-
tica com um curandeiro, e
este, passado tempos, vai
com êle em uma noite de
luar para longe da povoa-
ção, e dando ambos uma
incisão em um dos pulsos,
unem-nos durante o tempo
que julgam necessário
para que o sangue do mestre tenha passado ao discípulo; desde
então considera-se o novo curandeiro encartado.
Os medicamentos usuais são tirados das raizes e hervas,
acompanhados é claro de práticas de magia.
O cadáver é amarrado de forma a ficar sentado, como nas
tríbus circunvizinhas.
São muito supersticiosos e crêem em um ente superior, bom.
Tipos Valiimbas
476 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como já se disse muitos dos vahimbas levam uma vida mais
ou menos errante, mudando de sítio em procura de pastos para
o seu gado.
Entre os vahimbas há : sobas, séculos, chefes guerreiros,
homens livres e escravos. Como na maioria das tríbus da pro-
víncia, os escravos são provenientes das guerras, ou de pagamento
de dívidas, sendo tratados como pessoas de família e podendo
ser resgatados pela família ou por outra qualquer pessoa.
Actualmente não existem sobas, quem exerce a autoridade
são os séculos estendendo-se a sua acção sobre as pessoas e seus
haveres, e sobre o seu próprio trabalho. A forma de governo
é absoluta, consultando os chefes o conselho dos velhos em casos
graves de administração e declaração de paz ou guerra.
O direito de sucessão recai nos sobrinhos filhos da irmã.
O chefe no acto da investidura tem de estar voltado para o
sol, com dois ramos nas mãos, do meio dia às 4 horas.
Há o direito á propriedade comprada, e todos os contractos
se provam com testemunhas.
Fazem as suas transacções por meio de permuta de gados e
mantimentos, apreciando sal, armas, pólvora, missangas, anilhas
de cobre, fazendas, etc.
As questões são resolvidas pelos chefes, assistidos em casos
mais importantes e graves, por um conselho de velhos, e em
que é admitida a prova testemunhal.
Os crimes, delitos e contravenções são espiadas com o paga-
mento de indemnização, em geral, em gado, que é a moeda cor-
rente. Destas indemnizações merece especial mensão a devida
pela mutilação de um olho, em que a multa que constitue a pena
é paga todos os anos.
PARTE II
ESTUDO ETNOGRÁFICO
DAS TRÍBUS DA RAÇA BOSCHJMAN
„V £\/ri;"i tfrav inyt.
PARTE II
TRÍBTJS DA RAÇA BOSCHJMAN(<)
(Bacuisses, Bacuandos, Bacuncas, Bacubais, Bacancaias, Bacassequeres)
Hipótese da primitiva ocupação da África
equatorial e austral pelos boximanes e
similares. — Incapacidade étnica da raça
como factor de utilização e desenvolvi-
mento das terras que ocupava. — Sub-
jugação e expulsão das populações abo-
rígenes. — Fragmentos dessas antigas
populações em Angola. ! — Cruzamentos.
— Descrição dos principais caracteres
físicos que distinguem os boximanes
(estatura, forma do crânio, desenho do
rosto, olhos, cabelos, eôr da pele, estea-
topigia, tablier das mulheres). — Indu-
mentária e ornatos. — Defeza da raça. —
Manifestações de ordem moral. — A lín-
gua e as diferenciais que a isolam no
meio da variedade das línguas bântus
— Regime político. — Vida errante; ocu-
pações do povo. — Festas, danças, artes
e indústrias. — Religião.
Os viajantes e exploradores que nestes últimos tempos pene-
traram mais a fundo no continente africano, até às proximidades
do equador, poderam descobrir uns fragmentos de população,
evidentemente distanciados, pelo aspecto, língua e costumes, das
tríbus de raça preta, no meio das quais vagueavam. Todos os
(J) O estudo das tribus da raça boschjmanes é a transcrição do capí-
tulo I «Primitivas populações» do Subsidiário Etnográfico, do Ex.mo Sr.
Dr. Manuel Alves da Cunha, em publicação e que S. Ex.a nos autorisou a
incluir neste trabalho.
480 POPULAÇÕES INDÍGENAS
descrevem como gente de pequena estatura, côr amarelo terrosa
vida nómada, hábeis atiradores de frechas, miseráveis e repe-
lentes.
Já os portugueses souberam (xvn século) da existência dos
Minos ou Baka-Baka no reino do Mapôco onde os nossos pum-
beiros iam à compra do marfim e onde apanharam as vagas
notícias que Dapper arquivou na sua Description de V Afrique,
Stanley, Nogueira e Serpa Pinto viram e descreveram, respectiva-
mente, os Watua, os Bacancala e
1 os Bacassequere.
I". Schweinfurth, o ilustre explo-
rador a quem mais deve, talvez,
a reconstituição da prehistória
africana, mediu e desenhou mui-
tos dos Acka do equador, um dos
ramos desta curiosa raça dos pig-
meus ou Ni grilos (4).
São bem conhecidos os Ba-
cuisses do litoral sul, como o são
os Boximanes (2) e Hotentotes (3)
do sul africano.
Não indicamos mais. Pode
vêr-se, no mapa completo de Sir
Tipo Baouisso Harry Johnston, a extensão e a
densidade destas populações,
para as quais passou para sempre a sua época.
Assim, pois, desde o rio Orange até o Cu&ene, e depois,
subindo, abordando as águas do centro de África, errando pela
imensa floresta desde o Gabão a Contra Costa, desde a Guiné
setentrional às alturas do Kenia e rio Juba, ora com um nome
ora com outro, encontra o viajante, aqui ou alem, certos núcleos
similares de população retardada, e caída na miséria, estigmati-
zada por uma fatalidade comum, mas conservando, através dos
(') A palavra Nigrilo tem sido empregada para designer os pigmeus
africanos, considerados como descendentes dos primeiros habitantes an-
teriormente à grande invasão dos povos da raça negra.
(2) De Bosjesmannen, i. é, homem dos bosques, nome dado pelos colo-
nos holandeses da África Austral.
(3) Palavra de origem holandesa. Os hotentotes dão a si próprios o
nome de Coin Coin, i. é, homens. São os denominados vaquiros dos
nossos cronistas.
DE ANGOLA 481
acidentes da dispersão e das mudanças violentas da vida, os
traços basilares do seu tipo e a impressão inalterável do pobre
sangue que o constitue.
Ora, reconhecendo por um lado a afinidade destes núcleos
através das distâncias que os separam, e não podendo por outro
lado encontrar a explicação suficiente de similhantes resíduos,
que andam aqui como que deslocados, muito distanciados, pela
antropotomia, hábitos e linguagem, das raças invasoras e domi-
nadoras,— a sciência moderna parece cada vez mais inclinada a
admitir a existência duma grande raça aborigena, primitiva,
homogénea, hoje decadente e dividida em peças avulsas que
lutam debalde contra o seu destino,
«Esses homens, diz Sir Harry Johnston, que aparecem hoje
como que perdidos e salpicados em volta das regiões, são evi-
dentemente os representantes actuais de um tipo originário de
indígenas, que, num certo período, teriam habitado a África
tropical, desde as bordas mais austrais do deserto do Saara até
as cabeceiras das águas Congo Zambeze, desde a costa oriental
até as praias do Atlântico» (*).
Assim pensam, alêiii doutros, o citado Schweinfurth, A. Le
Roy, que passou vinte anos em contacto com estas populações,
o conde de Ficalho, homem dum senso Crítico e dum escrú-
pulo scientífico que fazem dele um guia ilustrado e conscien-
cioso.
Tudo leva, pois, a preferir a hipótese que acaba de ser apre-
sentada, de preferência a que considera estas tríbus nómadas
como formas decadentes e regressivas de várias raças que já
floriram.
.*
* *
Estamos em presença duma raça indolente, dum tipo ínfimo
da humanidade, que nenhuma esperança ou desejo despertam
para as lutas da vida e para os progressos que dessas lutas
derivam. Não praticam nem conhecem a agricultura, reduzindo
a sua alimentação vegetal às raizes das plantas espontâneas e aos
frutos das árvores silvestres — a pura fase da selvajaria. Não
conhecem o ferro nem o bronze. Apertados pela fome, lançam
(l) Sir H. Johnston, Grenfell and the Congo, li, pág. 500.
482 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mão do arco e da seta e fazem-se caçadores, exclusivamente
para não morrerem ; não teem previdência, sentindo apenas as
necessidades que aguilhoam na hora que passa.
A pátria, para eles, é o chão onde acampam, onde acendem
hoje o fogo, é a caverna ou a fenda das rochas onde se abrigam
de noite com a mísera prole. Emfim, uma existência apática na
floresta, absorvida, como a dum bicho, na conquista dum pedaço
de carne e dum covil.
Veja-se a descrição que faz Serpa Pinto dos Bacassequeres ou
Mucassequeres (*), para não citarmos outras muitas, e ter se há
ideia da abjecção desses entes que os pretos quási não querem
para seus escravos.
Uma tal raça primitiva estava condenada a ser vencida. Ela
só podia conservar a sua pobre paz emquanto outra gente mais
enérgica, impelida pela necessidade ou pela iniciativa de pro-
gredir, não olhasse para esse campo imenso que a indolência
duma raça tornava estéril.
Foi o que aconteceu. Quando caíram sobre ela os invasores
e novos dominadores de raça preta, nenhuma resistência opôs ;
vivendo por viver, nascendo e morrendo como ao acaso, esses
povos não sentiram nesse momento a força prodigiosa que sai
dos músculos de quem defende a sua pátria; foram chacinados,
escravizados, varridos da grande vida do continente.
As tribus a quem a desgraça deu força refugiaram-se aqui ou
acolá, nalgum recanto mais solitário onde poderam reconstituir
o seu pequeno clan, e vagueiam entre as populações de raça
preta; os outros, a grande onda, foram rechaçados para o sul e
sepultados nos confins do deserto de Calaari, que ainda são hoje
a sua pátria.
O mapa de A. Le Roy assinala alguns acampamentos de Bo-
ximanes a a vizinhar em-se duma e doutra margem do Cunene.
(*) Serpa Pinto, ob. cit., pág. 278-284. Capelo. De Angola à contra
costa, 206 e seg. — sobre os Bacancalas.
DE ANGOLA 483
Serpa Pinto encontrou os Bacassequeres ou Mucassequeres no
país dos Ambuelas do Cuando superior. Os Bacuisses ou Muquisses,
a quem já se referiu A. F. Nogueira, e recentemente os srs. Au-
gusto Bastos (') e João de Almeida (ã), escondem-se nas montanhas
pedregosas do litoral-sul ; vivem nas furnas e nutrem-se de pe-
quenos animais, de raizes, de mel, de moluscos e de alguns peixes.
Os Bacancalas ou Mucancalas; e os Bacassequeres mais para
leste, segundo a afirmação autorizada do citado escritor do Sul
de Angola, habitam as matas interfluviais dos grandes rios, onde
não há populações fixas, desde o Cmiene à fronteira leste. Estes
povos, com nomes diferentes, pertencem, evidentemente, ao grupo
dos Boximanes e são representantes deles entre os bântus.
Os Boximanes prestaram-se no sul da Província, para onde
vinham sendo impelidos pelos Hotentotes, a numerosas fusões de
sangue. Nelas encontraram principalmente os Matchonas — os
povos mais antigos de raça preta que habitaram o Sul de Angola ;
os Dámaras, os invasores desse estado, que, não contentes com a
região que a fortuna lhes concedia, seguiram a sorte dos fugi-
tivos e se misturam com eles; e os Hotentotes, os mesmos que
forçaram os Boximanes a atravessar o Cunene, e que são dos
mais antigos habitantes da África austral, o tipo aperfeiçoado
do boximane com o qual cruzou em larga escala; vivem hoje a
sudoeste da África austral.
Daqui resultou a formação das diferentes tríbus que povoaram
a região, desde a embocadura do Cunene e da cordilheira da
Cheia até ao Cubango, e que tomaram diferentes nomes em har-
monia com os nomes das terras e cios chefes e com a predomi-
nância do sangue.
Os Boximanes, fisicamente, são homens de estatura pequena,
quási anãos. Aceitando os números de Mondiere, a raça não se
eleva, em média, acima de l,,n34 de altura. Estas minguadas
dimensões dependem sobretudo do comprimento dos membros
inferiores pois os braços e o busto são regulares.
Teem o crânio muito alongado (dolicocéfalos), sendo o seu
índice cefálico 72 a 73; capacidade craniana, 1250c3.
(') Augusto Bastos, ob. cit., pág. 27.
(2) João de Almeida, ob. cit., pág. 67 e seg.
484 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A fronte é curta, mas não deprimida; os pómulos redondos
e salientes; dai para baixo as linhas do rosto desviam-se abru-
tamente do seu desenho e vão dar em linha recta a um queixo
agudo, talhando desta maneira a todo o fácies uma aparência
triangular.
Os olhos são fundos, mui ligeiramente oblíquos; as fendas
palpebrais, estreitas; a pupila, mortiça.
Cobre-lhe a cabeça uma rara cabeleira de aspecto lanoso.
A pele é dum amarelo escuro, terroso; o amarelo do cobre,
ou ainda melhor, o amarelo esverdeado de uma azeitona do
Alentejo.
As mulheres apresentam um fenómeno interessante, a que a
sciência deu o nome de esteatopigia: a hipertrofia das camadas
do tecido celular subcutâneo do médio corpo, com uma forte
saliência do sacrum. Semelhante intumescência gordurosa, que
não se sabe se atribuir a propósito da natureza, se a fixação
hereditária de algum defeito ou de algum vício originário, tor-
na-se flácida e rugosa com a idade, à maneira de um balão que
se vai esvasiando do gaz que o enche.
Outra especialidade anatómica que caracteriza as mulheres
é o chamado tablier (avental) ou prolongamento desconforme das
ninfas; nalgumas chegam a atingir o comprimento de 15 e mesmo
18c. Kolbe, que conheceu e contou estas gentes, afirma que as
mulheres boximanes consideram o tablier como um sinal carac-
terístico de pura raça.
A indumentária masculina reduz-se a um saio de peles em
volta dos rins; a das mulheres mete mais uma espécie de alforje
onde trazem os filhos.
Esta gente não é dada a coqueteries ; ao passo que os seus
consanguíneos, os Hotentotes, segundo diz Kolbe, usam uma
infinidade de pequeninas coisas, chegando ao apuro de se pulve-
rizarem com a brilhantina que arranjam das folhas secas e re-
moidas de uma espiraca chamada bueku, estes simples na sua
fealdade, conformados com ela, ou antes, desconhecendo-a, apre-
sentam-se limpos de adornos e atavios aos olhos de quem os en-
contra. Quando muito trazem ao pescoço algum amuleto ou nos
artelhos uma argola de junco.
DE ANGOLA 485
A* raça, por mais que se pressinta condenada, defende-se.
Uma das principais medidas é a exogamia ; o joven Sab (nome
que o boximane se dá a si mesmo, plural Sáu) chegado aos anos
próprios, sai do seu clan e procura a esposa noutra família (*).
A consanguinidade é um impedimento; o incesto é um acto
abominável e punido. E porque? Porque eles sentem de qualquer
maneira a obrigação moral de reagir contra o esgotamento da
sua estirpe ; assim como a terra sujeita invariavelmente as mesmas
culturas, começa a tornar-se esquiva, assim o sangue humano,
fechado sempre nos mesmos vasos e movido por forças velhas que
dia a dia decrescem, finalmente impossibilita-se e morre.
Ao passo que em volta deles, no seio das populações supe-
riores de raça preta, domina a promiscuidade do lar, a poligamia,
os Boximanes conservam ao seu matrimónio a feição monogâ-
mica.
Os indivíduos mal conformados, ou incapazes da vida ou
gravemente defeituosos, são sacrificados à nascença em home-
nagem à pureza da raça.
Nesta luta contra o que se poderia supor, os Boximanes pro-
curam avir-se com as próprias forças, sem recorrer ao valimento
dos totems (-).
(') Exogamia — regra que obriga a tomar mulher fora do seu clan ou
mais geralmente da sua parentela ; opõe-se a endogamia.
Clan (palavra de origem escocesa) — agrupamento de aparentados so-
ciais (organização cujos membros se consideram como descendendo do
mesmo antepassado que o seu chefe).
(2) Esta expressão foi tirada duma palavra dos índios «Chippewai» da
America do Norte; designa a ideia dum protector colectivo de aparen-
tados; totemismo — instituição que tem por base o totem. O totem é um
aliado ou protector do clan (espécie animal ou ainda vegetal ou uma classe
de objectos que se considera como um protector colectivo).
Ou seja que o vigor da raça comece a afrouxar em face dos infortúnios,
ou que se aspire a perpetuar sobre ela o valimento dos espíritos, das
omnipotências misteriosas que dão ao mundo as voltas que querem, certas
populações, na África, na America e na Oceania, travam pacto com uma
espécie da sua predilecção, em que encontram, mais do que noutra qual-
quer, atributos e privilégios que a fazem estimadados génios superiores.
Valha a verdade que, as mais das vezes, a preferência manifesta um
486 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Rigorosamente — os Boximanes não são totemistas.
O mais que se conta deles é uma afeição especial por um
insecto que se chama ngo, afeição exagerada até quási aos pri-
cípios dum culto naturalista. Este ngo era na verdade, uma
criatura especialmente fadada para atrair as complacências de
homens tímidos.
Com fragmentos de palha, com fios e teias volantes, com a
seiva das árvores, o ngo arranja-se uma espécie cie bainha ou
forro, onde se esconde, onde não é visto nem pressentido; e,
quando precisa de alimento ou de sol, arrisca à entrada a cabeça
e a primeira ordem de patas; porém, ao primeiro alarme, o insecto
renuncia instantaneamente à sua distracção ou à sua caça.
O Boximane viu neste pequeno animal a sua própria impopu-
laridade no meio da natureza, a sua preocupação de passar des-
percebido. Dai esse estranho amor ao ngo. Que o Sab seja
recolhido e acautelado, como a larva escondida no seu casulo; e,
quando partir para a caça, que procura nos ramos das árvores,
algum desses viventes silenciosos que lhe traga fortuna!
*
Já no que fica referido se deixa entrever um aspecto da vida
moral dos Boximanes — a moral a proteger a constituição da
família em ordem ao aperfeiçoamento da raça. Encontra-se
também, ainda que embrionária, como base da elevação relativa
dos indivíduos e da segurança das relações sociais.
O Boximane que mente não merece a consideração do povo.
Man, Stanley, A. Le Roy, prestam homenagem ao sentimento
do pudor conservado vivo no meio destas populações primitivas.
O primeiro cita crimes que as grandes civilizações não desco-
capricho redondamente selvagem : não os impressiona nem o rugido do
leão, nem a força do elefante, nem a beleza da pantera, nem a fidelidade
do cão, nem o canto das aves : o sapo, a serpente, o jacaré e outras criações
similhantes, eis para onde se inclinam as aspirações dos interessados.
Seja como fôr, está ai para o futuro o seu totem. Eles se dirão com
ufania os descendentes do lagarto, da salamandra ; adoptarão a figura do
defensor para emblema dos escudos de guerra, para ornato da tatuagem ;
conservarão nas suas cubatas um representante da espécie famosa ; invo-
carão esse oráculo nas suas angustias e não atentarão jamais contra a
sua existência.
DE ANGOLA 48?
nhecem e que fariam abrir os olhos de espanto aos nómadas para
quem o próprio sertão é cruel. Não matar, não roubar, não
caluniar, não cometer adultério, são preceitos conhecidos e pra-
ticados ainda que por instinto rude, por estas comunidades.
A par da moral que tem por fundamento a conservação e o
progresso do indivíduo, da família e da sociedade, estende-se
outro ramo, igualmente pobre de -seiva, que parece já depender,
pelo menos em parte, do domínio religioso. Assim o acto de
deitar ao lume a cera das abelhas, que, para quem sabe apro-
veitar Osse produto, seria um desperdício, é para eles quási um
sacrilégio.
A língua dos Boximanes não é compreendida das tríbus de
raça preta, que aliás se entendem mais ou menos umas das
outras.
É este um campo envolvido ainda em densa penumbra. Mas
supondo, como parece mais provável, que o principal dialecto,
que falam os Boximanes, seja uma simples variação do hotentote
já se podem, pelo menos, indicar as diferenciais mais importantes
que o isolam entre as línguas bântus.
A primeira, e talvez mais importante, é o jogo dos sufixos, a
indicação das relações gramaticais no fim das palavras. Este
feitio da língua separa-a das do grupo bântu: o que nestas é
mais característico, é o emprego exclusivo de prefixos para ex-
primir as noções de género, número, pessoa e tempo ; as palavras
formam-se acrescentando a um radical invariável uma ou mais
partículas que modificam o sentido do termo principal.
A segunda é o predomínio das guturais, assinalado unanime-
mente pelos escritores e viajantes. Moffat, ilustre filólogo afri-
cano, apanhou aos Boximanes um som especial da garganta
similhante ao grasnar dos corvos — a croaking sound (Ficalho,
Plantas úteis, pág. 12).
O dique, (estalinho da língua) pode não ser mais do que um
geito da fala, mas imprime ao hotentote um sabor característico.
No fim das palavras ou ainda cortando-as, com a rapidez que só
poderia derivar de um longo uso tradicional, eles fazem ouvir
um estalinho da língua, produzido pelo jogo deste órgão contra
o veu palatino.
O Boximane também mete os diques, segundo afirmam Moffat,
488 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Capelo e Ivens, João de Almeida, etc. Augusto Bastos diz que â
língua dos Camussequeles é reforçada com estalinhos da lín-
gua (*). — Acaso, imitação, tendência da língua? Seja o que fôr;
em todo o caso a reprodução não seria possível senão numa base
de afinidade e de similhança que desmentiria por completo o
isolamento da linguagem dos Boximanes, ainda por alguns pre-
tendido.
Estes dialectos são pobres de sons labiais e dentais; falam de
uma maneira especial o l, o v o f.
Um progresso, em compensação, os distingue de outros mais
pobres — a partilha dos géneros, uma forma para o masculino e
outra para o feminino.
# *
O regime político é o regime elementar das sociedades pa-
triarcais, em que o chefe concentra em si a tríplice autoridade
— paterna, civil e sacerdotal.
Os bens são comuns, o que quási se restringe a significar
que todos são admitidos a partilhar da caça que matam. Não há
distinções de classes ou de pessoas; porém a mulher, de facto, é
uma verdadeira escrava. (Mondière, V. La Qrande Encyclo-
pédie, Paris, t. i, pág. 738).
Para eles toda a terra é a mesma, contanto que possam viver
escondidos e não morram à fome. Consumidos os frutos e as
raizes silvestres, afastada a caça, irão procurar as fendas de
outros rochedos ou as tocas de outras árvores, onde possam re-
colher-se. Assim a pátria pode dizer-se que não é para eles mais
do que o esconderijo de um dia.
A principal ou mesmo a única ocupação do povo é a caça.
Nem lavras, nem rebanhos, nem comércio; a indolência e a ti-
midês só a perdem de arco à cintura no meio dos bosques,
quando a fome os aperta.
Daqui a extraordinária fragmentação dos grupos de Boximanes;
bandos compactos não poderiam viver em paz e saciados só com
a ajuda de tão insignificantes recursos.
(l) Obr., cit, pág. 181.
DE ANGOLA 489
# *
Parece que para estes fugitivos não há festas em períodos
fixos; estas expansões são determinadas pelos acontecimentos
mais ou menos notáveis que se dão na tríbu. Encontra-se refe-
rência a uma dança nocturna (mocoma), que pertence ao número
dos actos impetratórios, como se vê pelas circunstâncias em que
se pratica, destinada a chamar sobre a aflição do povo o favor
dos seres superiores.
As artes e as indústrias são menos do que embrionárias — o
bastante para terem as curtas peles com que se vestem e as
frechas com que atiram à caça. A. Le Roy diz que os Boximanes
e os seus similares se gabam de terem sido os primeiros a extrair
e a trabalhar o ferro (d).
Os Boximanes reconhecem a existência dum génio macho
(Goha)y que habita nos altos ares, mandando nos astros, presi-
dindo às estações, dirigindo o céu e os seus fenómenos ; e a dum
génio fêmea (Ko)t subterrâneo, que das profundidades do solo
governa o mundo.
Estes poderes são justos e bons, embora temíveis; mas há o
génio mau (Gauna ou Gaunale), que habita um céu negro e que
é a origem das desventuras que os afligem. Ainda mais alto
encontra-se o primeiro chefe ou Kaang, a quem, para o distinguir
dos poderes subalternos, se deu o nome de senhor de tudo (Kne-
Ahenteng). Nas suas mãos está a vida e a morte dos homens,
dele depende a abundância e a falta da chuva e da caça. (2)
Os boximanes não teem o mais leve simulacro de altares ou
templos; apenas sobre uns palmos de chão consagrado deixam
cair, ao passar, o ramo de acácia, um seixo ou mesmo um pu-
nhado de terra. A mutilação da falange do dedo mínimo, ope-
rada à beira das sepulturas, pode considerar-se para eles como
o seu sacrifício propiciatório.
(') La Religion des Primitifs, Paris, 1911, pág. 371.
(2) Ha?in, Tsuni Goam, The suprom Being of the Khoikhoi, Londres,
1881, cit. por A. Le Roy, ob. cit., pág. 376.
32
490 POPULAÇÕES INDÍGENAS
O Boximane é um feiticisía ? Não é, qualquer que seja o
aspecto sob que se considere o feitiço. Ele não faz esculturas
de espécie nenhuma. Mas gosta de se prevenir contra a desgraça
com os amuletos ou gri-gri; ainda assim não carrega o peito
desse amontoado de crinas, de galhos, de pontas e de dentes, que
é a mania doutras populações aliás superiores (1).
Parece mesmo que o amuleto do Boximane começa a fazer a
transição entre o amuleto propriamente dito e uma virtude de
outra natureza. Sabe-se que o homem do mato tem uma ten-
(1) Feitiço foi o nome dado pela primeira vez pelos nossos navegadores
da costa africana aos objectos divinizados pelos pretos (preferível à forma
afrancesada na linguagem comum — fetiche, fetichismo). — Feitiço, no sen-
tido rigoroso desta palavra, é uma estatueta, geralmente de madeira e al-
gumas vezes de terra, de pedra, de marfim, raras vezes de metal, habitada
e animada por algum génio ou espírito poderoso, enchida por assim dizer
da sua virtude. Esse génio ou espírito pode ser tutelar da família, da
aldeia ou da tríbu, com uma acção eminentemente defensora e protectora,
ou um espírito mau e vingador.
Alem destas duas espécies, ainda há outras estatuetas-feitiços que
certas populações pretendem que sejam a imagem de algum ilustre ante-
passado, e que servem ao mesmo tempo de relicário onde se guardam os
seus cabelos, as suas unhas, os seus dentes, ossos, numa palavra, qualquer
coisa do que eles foram. Então o espírito que se evolou recolhe-se a esses
despojos e dali continua a exercer os prodígios de habilidade ou de força
que o tornaram notável.
E o feiticismo, rigorosamente, termina aqui; — rigorosamente, em-
quanto traduz uma virtude extrínseca, uma força que não resulta nem da
matéria nem da forma da estatueta, mas da união superveniente de um
espírito mais ou menos poderoso que o compenetra.
O feitiço diferença-se do amuleto e do talisman em que é consciente e
tira a sua força de si próprio por virtude do espírito que o habita.
Há coisas que teem em si próprias, pouco importa porquê, uma
influência misteriosa — são os amuletos ou gri-gri.
O amuleto e o talisman diferem em dois pontos.
O amuleto significa um objecto que por sua virtude misteriosa se
julga preservar das desgraças, doenças, etc, ou dar felicidade na guerra,
na caça, etc, em o indivíduo o trazendo consigo. O talisman é um objecto
cuja virtude não adere à própria essência da coisa como a do amuleto,
mas a certos caracteres ou sinais cabalísticos que nela se gravam.
Em segundo lugar, talvez devido ao seu caracter mais social, o talisman
não acompanha o indivíduo, como o amuleto, suspende-se à porta das
habitações, à entrada da aldeia ou nos ramos de alguma árvore que borda
o caminho comum.
Os amuletos e os talismans variam ao infinito; há-os para todas as
felicidades c contra todos os males.
DE ANGOLA 491
dência manifesta para a medicina. Oprimido pela doença, olha
em volta de si e experimenta do que descobre: da casca das
árvores, do suco das folhas, das raizes e dos frutos. Sucede
muitas vezes que acerta ou supõe acertar.
Então essas matérias assumem aos seus olhos a qualidade de
remédios maravilhosos. Como era de crer numa imaginação
desprevenida contra o sofisma, generaliza, e o específico já não
serve unicamente para curar, serve com a mesma eficácia de
isolador e de preventivo. Daí o trazê-lo sempre consigo suspenso
ao pescoço.
PARTE III
ESTUDO ETNOLÓGICO
DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS DE ANGOLA
^[.Eartiiou ar. c vnp.
———————
— 1
CAPITULO I
DA ORIGEM DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS
DE ANGOLA
Exposto na primeira e segunda parte deste trabalho o estudo
etnográfico das tríbus das duas raças que povoam a província,
isto é, a descrição mais ou menos completa dos seus usos e cos-
tumes, religião, língua, caracteres étnicos e origem na história,
resta-nos, como nos propozemos, comparar aqueles elementos de
estudo, para deles deduzir as leis gerais dos diversos fenómenos
da vida social; em uma palavra, resta-nos fazer o estudo etno-
lógico das populações indígenas de Angola, tendo assim em vista
coligir sob uma forma aproveitável o que é indispensável conhe-
cer do indígena sob os pontos de vista antropológico e socioló-
gico, habilitando o legislador com os conhecimentos intrínsecos
e scientíficos que constituem as bases necessárias para a con-
fecção das leis de caracter social.
O estudo etnográfico das tríbus da província, distribuídas
conforme o mapa aqui junto, não pode deixar dúvidas sobre a
existência das duas raças indígenas — a Negra e a Boschjman —
seja ele considerado, quer sob o ponto de vista dos caracteres
étnicos, quer sob o ponto de vista da linguagem, da habitação,
do vestuário, da alimentação, dos meios de existência, das facul-
dades intelectuais, quer enfim sob o ponto de vista da vida fa-
milial ou da organização social.
Assim constatada a existência daquelas duas raças, nós co-
meçaremos o estudo etnológico, por neste capítulo indagar da
sua origem.
As gerações das raças indígenas que povoam a província
tem-se sucedido sem deixar o menor vestígio da sua cultura e
civilização.
Delas não restam monumentos, nem escritos que ilucidem e
496 POPULAÇÕES INDÍGENAS
facilitem uma investigação metódica sobre a sua origem, tornan-
do-se difícil chegar a conclusões seguras, pelo estudo dos repre-
sentantes daquelas gerações que actualmente povoam a província
e pelas lendas tradicionais que se podem colher em uma ou outra
tríbu.
Nestes termos, e desejando fugir, tanto quanto possível, a
formular conjecturas sobre a história das populações indígenas
de Angola, forçosamente vagas e destituídas de provas, nós
vamos procurar, se, no estudo dos usos e costumes dos seus
representantes actuais, encontramos bases scientíficas que nos .
possam servir de ponto de partida para averiguar da sua origem.
Pelo estudo etnográfico ficamos sabendo que o Boschjman é
o puro ideal do selvagem, levando uma existência perfeitamente
nómada, não construindo habitação, vivendo da caça, desconhe-
cendo a agricultura, e alimentando-se apenas das raizes das
plantas expontâneas ou dos frutos das árvores silvestres.
Quanto ao Negro, podemos concluir pelo estudo etnográfico,
que não é nómada, não obstante o estado de flutuação em que
se encontra e que parece ser uma transição necessária entre a
vida nómada e a estabilidade relativa das nações civilizadas, e
que em geral, fixando-se é cultivador, vivendo do produto do
solo.
Por outro lado, os estudos dos botânicos sobre a origem das
plantas geralmente cultivadas, e que formam a base da alimen-
tação dos povos da raça Negra, chegam todos à conclusão de
que a maior parte daquelas plantas — salvo quási exclusivamente
para o sorgo — são extranhas a Angola e até à Africa, oriundas
de outras regiões, e foram ali introduzidas em épocas mais ou
menos remotas.
Os factos constatados pela etnografia, do Boschjman não
praticar a agricultura, e se alimentar de raizes de plantas es-
pontâneas ou frutos de árvores silvestres, e do Negro ser essen-
cialmente cultivador, constituindo o produto das suas culturas
a base da sua alimentação, conjugados com o que nos ensina a
botânica de que as plantas geralmente cultivadas pelos Negros
são extranhas a Angola, não podem deixar de ser tomados em
consideração ao estudar a origem das populações indígenas da
província.
O que a etnografia nos constata e a botânica nos ensina,
leva-nos à conclusão de que em Angola a existência dos povos
da raça Negra está intimamente relacionada com a introdução
DE ANGOLA 497
das plantas que cultivam e de que tiram a sua principal alimen-
tação, e que anteriormente à introdução das espécies vegetais
extranhas à província, só pode ser admitida a existência de uma
raça que não usasse estas espécies vegetais na sua alimentação,
de que, por certo, o Boschjman é o actual representante.
Parece pois, não restar dúvida que os povos da raça Negra,
são os representantes actuais dos povos que, em uma época por
determinar, posteriormente ou contemporâneo à introdução das
plantas extranhas a Angola, invadindo a província, nela se es
tabeleceram, e que os Boschjmans são os representantes de uma
raça arborigem, habitando primitivamente toda a província.
Estando pois, em presença de duas raças, uma arborigem —
a Boschjman — e uma outra invasora — a Negra — ocorre natu-
ralmente averiguar da proveniência desta última.
Atendendo à íntima ligação que mostrámos haver entre a
data do estabelecimento dos povos da raça Negra em Angola e
a da introdução das plantas que constituem as suas principais
culturas, o indagar da procedência dos povos desta raça, será,
como que um corolário do estudo da proveniência das plantas
cultiváveis de que tiram a sua alimentação.
As plantas cultivadas pelos Negros serão mencionadas adiante,
na parte deste estudo ao tratarmos dos meios da existência das
populações indígenas, aqui, apenas citaremos, das plantas ex-
tranhas à África, as mais características, e como tal, aquelas que
nos podem elucidar sobre o assunto que presentemente estamos
tratando.
Deixando de lado o sorgo, por estar provado ser uma planta
indígena de África, e por esse facto, presentemente não nos
interessar para o estudo em questão, das outras plantas extranhas
a Angola e de que o Negro faz a sua principal alimentação,
constata-se, no sul da província, a cultura do massango (Pennise-
tum) e do luco (Eleusine), e reconhece-se, caminhando para o
norte, que aquelas culturas são substituídas pelas da mandioca
e batata doce.
A estas plantas, de que o Negro faz a sua principal alimen-
tação, podemos juntar, o milho, o jindungu (capsicum), a bana-
neira, a mangueira, o coqueiro, o tabaco, a larangeira, etc, que
mais ou menos se encontram em toda a província.
Diz-nos a botânica que o luco, a bananeira, a mangueira, e o
coqueiro são de origem asiática.
É hoje um facto histórico plenamente provado o contacto
498 POPULxVÇÕES INDÍGENAS
íntimo que, desde eras remotas, se estabeleceu entre a África e
a Ásia, quer pela via naturalmente estabelecida do vale do Nilo,
quer pela navegação entre a Arábia e a África do nordeste, e a
costa oriental da África do sul.
Para o caso das relações da Ásia com a África do sul — que pre-
sentemente nos interessa — a via estabelecida pelo vale do Nilo,
só indirectamente e por meio de Etiópia pode ser considerada
como servindo de colector, visto que, pelo sul e oeste os desertos
opunham a qualquer expansão um obstáculo insuperável.
Mas, como fica exposto, as relações da África e Ásia não se
limitaram às que tiveram logar por intermédio do vale do Nilo,
fizeram-se igualmente pela navegação entre a Arábia e a África.
Separadas por um mar estreito e facilmente navegável o contacto
estabeleceu-se, não só pelas costas do nordeste, mas igualmente
pelas de leste, visto que, os navegadores dobrando o cabo dos
Aromas, alongavam as suas viagens por esta costa até Zanzibar.
Assim não é difícil conceber que as espécies vegetais Asiáticas,
por esta via penetrassem na África Austral, e que aos habitantes
da Arábia devem atribuír-se as primeiras dispersões daquelas espé-
cies de um para outro continente.
No que diz respeito às espécies vegetais tais como: o milho,
a mandioca, jindungu (capsícum) e o tabaco, estranhas a Angola
e a África, que nela actualmente se cultivam ou se encontram,
consideram-nas os botânicos como sendo segura a sua origem
americana.
As descobertas dos portugueses da costa ocidental da África
e do Brasil, o predomínio que então tinhamos nos mares, e as
provas numerosas de quanto nos empenhamos em introduzir nas
nossas províncias as plantas úteis que conheciamos, são argu-
mentos irrefutáveis em favor da dispersão daquelas espécies
vegetais americanas, por intermédio da costa ocidental de África,
em especial pela de Angola, e da influência dominante que nela
tiveram os portugueses.
Não será pois difícil concluir que as costas de Angola não
podem deixar de ser consideradas como tendo sido uma outra
via de penetração de plantas estranhas à África.
E, se esta via é a que serviu de colector às espécies vegetais
americanas, pelas razões expostas, deve igualmente ser conside-
rada, como a porta de entrada em África de muitas plantas de
origem europeia que, malogradas tentativas, não conseguiram
adaptar-se às condições climatéricas da África.
DE ANGOLA 499
A flora económica da África enriqueceu se assim, sucessiva-
mente, de plantas de origem asiática e americana, introduzidas
respectivamente pelos dois flancos — o oriente e o ocidente.
Esta dupla corrente que da Ásia se dirigiu para a costa
oriental e da América para a costa ocidental de África, devia ■
tender a povoar o oriente de espécies vegetais de origem asiática
e o ocidente de espécies americanas.
Actualmente é difícil constatar sequer, o predomínio respe-
ctivo de influências, determinado por aquelas duas correntes,
visto que indistintamente era qualquer das costas e nos sertões
do interior da África Austral se encontram, quer as espécies
introduzidas pelo oriente, quer as introduzidas pelo ocidente.
O facto de no oriente aparecerem plantas vindas da América
e no ocidente plantas vindas da Ásia, tentam explicá-lo alguns
autores, afirmando que as introduções se não fizeram regular-
mente, e uma espécie americana podia ser levada pelos portu-
gueses para Angola, e ao mesmo tempo para Moçambique, como
uma espécie Asiática podia ser trazida directamente para a costa
ocidental.
Se de facto estas razões podem ser consideradas para atender
na explicação de no ocidente aparecerem espécies vegetais intro-
duzidas pelo oriente e vice-versa, não nos ilucidam nem podem
ser consideradas, como causas que influíram para que aquelas
espécies do litoral se dispersassem e penetrassem nos sertões da
África Austral.
A principal dessas causas — se não a única — encontrâmo-la
nas migrações dos povos da raça negra, que não é difícil concluir
de tudo que deixamos exposto.
Com efeito, arredada a hipótese, pelo que fica exposto, de
serem considerados os invasores os povos da raça Boschjman, e,
pelo contrário, confirmado que são arborígens da província, não
pode restar a menor dúvida que aos negros se deve atribuir a
dispersão daquelas plantas estranhas à África.
Nestes termos e conforme as conclusões a que chegamos, duas
hipóteses, podem admitir-se — a invasão da raça Negra corres-
pondente à entrada e dispersão das plantas pelo ocidente da
África Austral ou a invasão da raça Negra correspondente à
entrada e dispersão das plantas pelo oriente da África Austral.
A invasão correspondente à entrada e dispersão das plantas
pelo ocidente, está prejudicada; pelo ocidente os invasores e
introductores das plantas estranhas à África fomos nós, os por-
500 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tugueses; e assim por dedução lógica se conclue que a invasão
da raça Negra em Angola deu-se com a introdução das plantas
oriundas do oriente.
Mas não é só pela dedução lógica que chegamos a esta con-
clusão, é o que os próprios Negros narram nas suas tradições, e
o que as investigações. dos botânicos nos ensinam, indicando-nos
como sendo as plantas introduzidas pelo oriente, aquelas que
primeiro deram entrada na província.
Proseguindo na investigação da procedência dos povos da
raça Negra, ainda mais uma vez recorremos à botânica.
Está plenamente confirmado que a agricultura das plantas
estranhas à Africa Austral e que são oriundas da Ásia tiveram
em épocas remotas largo desenvolvimento na Abyssinia.
Sobre o assunto e em especial sobre a cultura do luco, escreve
o Conde de Ficalho:
«Vimos nas páginas precedentes que o nosso antigo viajante
Duarte Lopes, enumerando os cereais cultivados no Congo, men-
ciona como um dos melhores o luco; e acrescenta, não haver
muito tempo que ali era frequente, tendo sido as suas sementes
trazidas da parte do Nilo, onde este rio entra no segundo lago.
Em primeiro logar podemos estabelecer com segurança a
identidade entre o luco e a Eleusine Coracana, pois não só esta
espécie corresponde de modo bastante exacto à curta descrição
de Duarte Lopes, como é hoje cultivada nas terras altas de
Angola, e conhecida pelo mesmo nome de luco, segundo verificou
Welwitsch. Esta planta julga-se originária da índia, e em todo
o caso é cultivada ali desde tempos muito remotos, pois tem um
nome sânscrito — Rajika. É frequente em cultura no oriente da
África, tanto em parte do Egito, como nas terras altas da Abis-
sínia; e Speke e Grant encontraram-na por toda a parte na sua
viagem de Zanzibar aos lagos e ao Nilo. E também bastante
comum na província de Moçambique; mas aí suspeito que hou-
vesse introdução directa e relativamente recente da Índia, pois
o nome vulgar é naxenim, levíssima corrução de um dos nomes
das modernas línguas indianas, nanchni. Deixando, porém, esta
questão, é fora de dúvida que a cultura desta espécie é muito
antiga no oriente da África, e daí passou, pelo interior, às terras
do Congo, onde chegou no meiado talvês do século xvi. Vejamos
se é possível indagar quem a levou.»
«Os factos parecem pois encadear-se de um modo claro e
1 — —
DE ANGOLA 501
bastante plausível : introdução remotíssima da espécie pela costa
do Mar Vermelho, e cultura na Abissínia, onde ainda hoje é fre-
quente; expansão gradual pelo vale do Nilo superior, e pene-
tração nas terras dos antropófagos, em parte das quais ainda
hoje é a cultura dominante; movimentos destes povos para o
ocidente, coincidindo com o começo desta cultura no Congo,
facto sobre o qual temos um testemunho histórico. E note-se
que, se por um lado o estudo das analogias dos povos veiu escla-
recer a marcha da cultura, por outro esta marcha, e o sentido
e época em que teve logar, se podem invocar como argumento
em favor daquela analogia ou parentesco.»
Parece pois não haver dúvida que a Abissínia pode ser con-
siderada como o centro por onde se deu a dispersão, senão de
todas as plantas vindas do oriente, pelo menos dalgumas e destas
das que o Negro fez e faz a sua principal alimentação, e, conse-
quentemente, pode pois a Abissínia ser igualmente considerada
como o centro das primeiras migrações dos povos da raça Negra.
Considerada, com grandes probabilidades de certeza, a Abis-
sínia, como o centro das migrações, não só pelas razões acima
deduzidas, mas igualmente por não ser admissível que as migra-
ções se dessem por qualquer ou quaisquer outros centros junto
da costa oriental da África até Zanzibar, pela grande barreira
que lhe opunha a cordilheira que limita por leste a região dos
lagos, vamos tentar reconstruir o caminho que essas migrações
seguiram para alcançarem Angola.
O caminho seguido pelas migrações cias populações da raça
Negra obedeceu por certo, ás normas e princípios que facilmente
se deduzem da forma como elas se deslocaram a dentro da pro-
víncia, e a que, por estarem bem constatadas, podemos recorrer
como argumento seguro para o reconstituir.
Aqueles princípios podem reduzir-se a dois : não transpor os
obstáculos que se lhes deparavam nas marchas, constituídos por
grandes rios e montanhas; e seguir, em geral, ao longo dos cursos
dos rios de forma, a não lhes faltar a água e terrenos férteis
para as suas culturas.
Assim, um simples exame da carta da África do sul, indica-nos
que, as primeiras migrações dos povos da raça Negra, partindo da
Abissínia, e encontrando pela frente a rede fluvial do rio Zaire,
tornearam-na, seguindo os dois únicos caminhos que se lhes
apresentavam sem grandes obstáculos. Uns, seguindo pelo norte
da bacia hidrográfica do Zaire, outros, seguindo a região dos
502 POPULAÇÕES INDÍGENAS
lagos, verdadeiro corredor entre duas cordilheiras, a longa crê-
vasse a que os fenómenos geológicos do Jurássico deram logar.
As migrações que seguiram o primeiro caminho estão actual-
mente representadas pelas tríbus da raça Negra estabelecidas ao
norte do rio Zaire, e são, portanto os ascendentes dos povos que
ocupam o que, impropriamente, se chama o enclave de Cabinda.
As migrações que seguiram pela região dos lagos, desceram
até ás nascentes dos rios, afluentes dos Zaires, e, subindo ao
longo destes, uns alcançaram o Zaire e por êle desceram, outros
vieram a dar origem à constituição dos estados Muat-Ianvua e
Bakololo, e outros ainda, dirigindo-se para oeste — os primeiros
que ao ocidente chegaram — deram logar à constituição do im-
pério do Ovampo.
As migrações que subiram os afluentes do Zaire, fixando-se
primeiro na região média dos rios Cassai e Lualaba, deram logar
à constituição dos estados da Luba e do Muat-Ianvua.
Retalhado o estado da Luba por diferentes invasores, o seu
último potentado Mutumbo Muculo aconselhou os seus filhos, a
que fossem procurar novas terras e melhor fortuna mais para o
norte, acompanhando os rios, e ali constituiram novos estados,
protegendo-se mutuamente. São pois estes povos, descendentes
dos filhos de Mutumbo, que, por sucessivas migrações alcançaram
o Zaire e o desceram, e portanto, são estes os ascendentes da-
queles que em territórios ribeirinhos do Zaire, incorporados na
província, vieram a constituir o grande reino do Congo.
Foi deste reino que partiram sucessivas migrações para sul,
chegando o rei do Congo a estender a sua influência, mais ou
menos directamente, até ao sul do Cuanza, podendo considerar-se
como legítimos descendentes dos primitivos povos do reino do
Congo, aqueles que constituem as tríbus : Muchicongo, Mussu-
rongos, Muzumbos, Sosso, Dembos e Mussuco.
Os Maungos, Jingas, Ngolas, Kissamas e Libolos, podem e
devem ser considerados como descendentes dos povos do reino
do Congo, visto que foram estes os primeiros invasores que se
instalaram nas regiões por aqueles ocupadas, e portanto os que
devem ser considerados como fundadores das tríbus. No entanto
os actuais representantes daqueles povos não podem ser consi-
derados como sendo descendentes puros dos invasores do Congo,
mas sim um produto de cruzamento destes com aqueles que in-
vadiram a província por nordeste.
Dos povos que vieram fixar-se na parte média dos rios Cassai
DE ANGOLA 503
e Lualaba encontramos os Bungos, entre o Lubilaxi e o Luiza,
vivendo agrupados em diferentes povoações, governando-se inde-
pendentemente cada um, com o seu chefe, intitulado «senhor do
estado» e que tinha por distintivo o lucano (braçalete feito de
veias humanas).
Não obstante a sua independência os chefes das povoações
eram parentes e todos ouviam e respeitavam o mais velho, lalo
Maka, o velho Xacala a que tivemos ocasião de nos referir ao
tratar da origem da tríbu Bangala.
Como então referimos, tendo os seus dois filhos Kinguri e
lala, assassinado seu pai, o velho Xacala, sucedeu-lhe sua filha
Lueji que tutelada por um conselho governou o estado.
Foi a união de Lueji com Ilunga, filho de Mutumbo Muculo,
o último potentado da Luba, que deu logar à constituição do
estado de Muat-Ianvua.
Das dissenções na corte do estado de Muat-Ianvua — a que
igualmente nos referimos ao tratar da origem da tríbu Bangala
e das tríbus Lundas — resultaram as sucessivas invasões por
nordeste e a constituição das tríbus : Lunda, Bangala, Quioco,
Luena, Songo, Minungo, Xinge, Bondo e Holo.
Alguns dos povos — na opinião de Casalis — os Basuto, cujas
migrações subiram os afluentes do Zaire, estabeleceram- se nas
terras baixas do alto Zambozo, fundando o estado que se deno-
minou Bakololo, nome que, segundo A. F. Nogueira, vem de
Kukoko, triturar, o que quer dizer, fortes, destruidores, por
alusão aos estragos e às derrotas que os Bakololo infligiram nos
povos da raça Boschjman que habitavam as terras onde eles se
estabeleceram.
Parece que o primeiro chefe dos Bakololo foi Chibitano, que
capitaneava os Basuto ao invadir o alto Zambeze, e que por isso
se pode considerar como sendo o fundador do estado.
No alto Zambeze, entre o Katongo e Linyante, permaneceram
algum tempo, até que obrigados pelo clima doentio que os ia
enfraquecendo se dividiram em dois ramos; um, deslocou-se
para leste; o outro, mais forte e mais enérgico, desceu o Zambeze.
Foi por certo deste último grupo que se destacaram as migra-
ções sucessivas que, seguindo o Cubango. invadiram por sudeste
a província de Angola, e que teem como actuais representantes
os Mucussos e os povos das tríbus Ganguelas.
Finalmente a província de Angola foi invadida pelos povos
do Ovampo e os Damaras, descendentes dos primeiros povos da
504 POPULAÇÕES INDÍGENAS
raça Negra que alcançaram a costa ocidental, e que, tendo se-
guido pela região dos lagos, tornearam pelo norte o Kalahari e
vieram estabelecer-se ao sul dos actuais limites de Angola, donde
fizeram as suas invasões.
Os actuais representantes destes povos na província são os
que pertencem às tríbus Banctuba e Cuangares.
Convêm esclarecer que os povos que actualmente habitam o
centro da província, como sejam os pertencentes às tríbus Bim-
bundu e Ganguelas, e aqueles que designamos por Vanyanekas,
Humbes, Vaymbas e Cuangares, devem ser considerados como
produtos de fusão de diferentes invasões.
Na verdade no centro da província deu-se o embate das di-
versas e sucessivas invasões dos povos da raça Negra; desse
choque resultou, como é natural, a fusão de uns e o serem es-
corraçados outros que, não se fundindo ou cruzando com os
invasores, foram vencidos e rechaçados.
Assim os dois grupos de tríbus que no estudo etnográfico
designamos por Bimbundu e Ganguelas, são productos de fusão;
os Bimbundu, da fusão dos povos que invadiram Angola pelo
norte e daqueles descendentes do estado de Muat-Ianvua que a
invadiram por nordeste; os Ganguelas, producto da fusão da
invasão nordeste com a dos Bakololo ou de sudeste.
Isto mesmo se conclue da designação genérica de Bananu
(gente do norte) como os Bimbundu são conhecidos e da de
Bambueilu (do verbo ombueilu, gente do sul) com que os Ganguelas
são designados.
A mesma conclusão temos de admitir pelo estudo dos seus
usos e costumes e sobretudo pelas línguas faladas, que aproximam
o Bimbundu dos povos da invasão do norte e os Ganguelas dos
povos da invasão do sudeste.
No que diz respeito aos povos da raça Negra habitando o
planalto da Huila, representados pelas tríbus Vanyaneka, Humbe
e Vaymba, podemo-los enquadrar como descendentes das invasões
do norte que vieram estabelecer-se nos terrenos do centro da
província e que escorraçados por novas invasões ali se fixaram.
As invasões do Ovampo e sobretudo dos Damaras, e o con-
tacto com os povos da raça Boschjman, introduziram nestes
povos novos elementos, e os actuais representantes podem con-
siderar-se um tipo sui generis, em que os Vaymba são como que
o termo da transição entre a raça Boschjman e a raça Negra.
Os Cuangares, não resta dúvida, são descendentes da invasão
t)É ANGOLA 505
sul — do Ovampo — no entanto até eles chegaram as invasões
dos Bakololo e isso por certo constituiu o bastante para actual-
mente os Cuangares não poderem ser considerados como des-
cendentes puros da invasão sul e se tenham afastado um pouco
dos Banctuba.
Eis o que se nos afigura dizer sobre a origem das populações
indígenas de Angola, estudo elaborado tendo por base o que
deixamos exposto no estudo etnográfico das diferentes tríbus que
povoam a província, e tendo em atenção o evitar repetições de
tradições e costumes, já expostas no estudo etnográfico, que
prejudicariam a sua coordenação e tornariam este estudo mais
fastidioso do que ele por sua natureza já é.
33
CAPITULO II
DA POPULAÇÃO
A população indígena está muito irregularmente distribuída
pelos vastos territórios da província, mercê das condições geo-
lógicas e meteorológicas e em grande parte dos seus tradicionais
costumes.
A constituição geológica dos terrenos tem uma grande in-
fluência na distribuição da população, tanto mais para apreciar
e ser considerada como um factor predominante, quanto menos
culta é a população que o habita.
É evidente que as populações indígenas, não sabendo corrigir
os terrenos que ocupam e que se lhes tornam inospitaleiros, por
lhes não darem os frutos expontâneos de que carecem ou não
lhes serem favoráveis às suas culturas, adoptam o único meio de
defeza que se lhes depara, abandonando-os, e procurando con-
centrar-se em regiões onde a natureza dos terrenos lhes garanta
pelo menos o indispensável para a sua subsistência.
Se as condições geológicas dos terrenos teem uma grande
influência na distribuição da população indígena, não menos in-
fluência teem as condições meteorológicas que, efectivamente,
podemos classificar de capital.
As condições meteorológicas, e destas, em especial, o regimen
das chuvas, tem uma influência capital na distribuição da popu-
lação indígena, por que dependendo a hidrografia duma região,
quási que exclusivamente, daquelas condições, delas, implicita-
mente, depende o abastecimento de água da população indígena
dessa região.
E em absoluto assim é, por que o indígena nos trabalhos de
pesquiza de água não vai além da construção das tradicionais
cacimbas, poços reservatórios de pequena profundidade e sem
revestimento de espécie alguma.
508 • POPULAÇÕES INDÍGENAS
Assim, compreende-se quanta influência teem as condições
metereológicas na concentração das populações indígenas ao
longo dos rios, junto de nascentes, lagos ou de charcos.
Da influência das condições geológicas e meteorológicas na
distribuição da população indígena resultaram as condições tra-
dicionais do costume, senão de todas as tríbus da província,
pelo menos do maior número, de se estabelecerem com água à
vista e em terrenos apropriados às suas culturas.
No entanto, não só aquele costume tem influência na distri-
buição da população indígena, a organização social e sobretudo
a forte organização da família indígena, impede, em grande
parte, uma distribuição regular da população, concentrando-a
em determinadas regiões, em prejuízo de outras, dando logar a
núcleos de população onde a densidade atinge uma elevadíssima
percentagem.
Não tendo elementos para elaborar com precisão um estudo
consciencioso da distribuição da população indígena em Angola,
limitamo-nos, por esse facto, a elucidar' que, das regiões da pro-
víncia por nós conhecidas, aquelas onde a densidade da população
indígena é maior, são os planaltos de Benguela e de Malange, e
as regiões de Catete, do Libolo, do Amboim, de Maquela do Zombo,
e as ribeirinhas do Zaire, Santo António e S. Salvador do Congo.
Um estudo conscencioso da distribuição da população ; indí-
gena deve ter como base um recenseamento exacto, de que es-
tamos longe e com que não podemos contar nos anos mais pró-
ximos.
Em África faltam todos os elementos que podem servir de
base para elaborar um recenseamento da população indígena que
se aproxime da verdade.
O indígena, desconfiado, furta-se tanto quanto possível às
operações do recenseamento, e uma das duas hipóteses seguintes
se podem dar : a região está insubmissa, ou simplesmente subme-
tida, e o indígena foge ao contacto com as suas autoridades, e o
recenseamento é impossível; ou a região está perfeitamente ocu-
pada e o indígena, entrincheirando-se em uma resistência passiva,
por todos os modos dificulta o recenseamento.
Para vencer estas dificuldades de nada vale a força, que
poderá submeter no primeiro caso, mas que não vencerá, em
qualquer deles, a relutância.
Só com persistência, diplomacia, espírito de justiça e sobretudo
uma força de vontade inexcedível, podem as autoridades admi-
pftovmcr,,
■
DE ANGOLA 509
nistrativas, encarregadas do recenseamento da população, vencer
a má vontade do indígena.
Sem desdouro para as autoridades administrativas da pro-
víncia, difícil é conseguir reunidas aquelas qualidades em um
mesmo indivíduo, e sobretudo conservá-las por muito tempo
nestes climas depauperantes.
E, por que em Angola faltam todos os elementos necessários
para o recenseamento da população indígena, tivemos de lançar
mão da única base admissível para o elaborar, o arrolamento
para o pagamento do imposto de cubata.
O arrolamento para o pagamento do imposto de cubata não
nos pode dar um recenseamento exacto, emquanto aquele não se
estender a todos os indígenas da província, porquanto não se
referindo senão a populações que foram arroladas para o imposto,
só inclue aquelas das regiões onde êle poude efectuar-se; mas
tom a vantagem de por êle, e à primeira vista, se poder avaliar
a intensificação da nossa administração, constituindo um elemento
de estudo e devendo interessar a quem a exerce.
Para bem avaliar de que longe estão da verdade os recensea-
mentos elaborados, procuramos organizar a carta junta, em que,
com uma aproximação, tanto quanto possível, indicamos: quais
as regiões onde o pagamento do imposto de cubata atingiu o seu
máximo, e consequentemente, onde o arrolamento para esse pa-
gamento se pode considerar completo e o recenseamento da po-
pulação indígena exacto; as regiões onde, cobrando-se o imposto
de cubata, este ainda não abrange todos os indígenas, e portanto,
onde o arrolamento é incompleto e o recenseamento da população
indígena não pode considerar-se exacto; finalmente as regiões
onde não tem havido operações de arrolamento para o pagamento
do imposto de cubata e consequentemente de que não existe
recenseamento da população indígena.
Um exame à carta organizada como deixamos exposto, dá-nos
uma ideia perfeita e nítida do estado actual da intensificação da
administração pública em Angola, revelando-nos que a área das
regiões, onde o recenseamento é exacto e portanto onde a acção
administrativa mais se faz sentir, não excede a um décimo da
área total dos territórios ocupados pela província.
Tomando como base para o recenseamento da população indí-
gena, o arrolamento para o pagamento do imposto de cubata,
vem aquele sendo elaborado desde o ano de 1913, em que foi
creada a Secretaria dos Negócios Indígenas, e onde se concentram
510
POPULAÇÕES INDÍGENAS
os recenseamentos parciais dos concelhos, circunscrições e capi-
tanias-móres, com o auxílio dos quais se tem organizado o recen-
ceamento geral da província.
Recenseamento da população indígena durante os anos de 1913, 1914, 1915 e 1916
Anos
Total
geral
Por distritos
Lo anela
Cuanza
Congo
Lund a
Ben^ nela
Mossâ-
rnedes
Hnila
1913
1914
1915
1916
1.984.824
2.124.361
1.839.077
1.677.705
378.418
13.841
17.186
16.966
(l)
224.968
224.953
331.269
717.017
715.186
469.788
297.396
109.655
197.634
157.269
136.140
695.390
884.389
881.610
822.302
6.846
6.890
6.819
6.792
80.498
81.452
81.452
66.837
Julgamos, pois, de toda a conveniência manter, como base da
elaboração do recenseamento da população indígena, o arrola-
mento para o pagamento do imposto de cubata, mas admitir,
conjuntamente, o recenseamento por estimativa das regiões con-
finantes coríi aquelas onde, por efeito do arrolamento do imposto
de cubata, se tenha probabilidades de o organizar, partindo da
hipótese de em igual área haver a mesma densidade de população
da que na região tomada como tipo, e onde se organizou o recen-
seamento da população.
Por esta forma o recenseamento da população indígena subdi-
vidir-se há em duas partes; uma exacta e directamente organizada
tendo como base o arrolamento para o pagamento do imposto de
cubata; outra organizada por estimativa, tendo esta por base a
hipótese de em igual área haver a mesma densidade de população
da região confinante que lhe serve de tipo e onde o recenseamento
foi organizado directamente.
Nesta ordem de ideias elaboramos um projecto (2) regulando
a forma de organizar o recenseamento da população indígena.
O recenseamento da população indígena pode ainda ser auxi-
liado com o registo do estado civil dos indígenas que urge ser
regulado na província.
Em nosso entender o registo do estado civil dos indígenas
deve ser obrigatório, não obstante, se depreenda que essa obriga-
(1) Este distrito foi creado em 1914.
(2) Vide Apenso V.
DE ANGOLA 511
toriedade só poderá efectivar-se em regiões pacificadas e ocupa-
das, como afinal se dá com o imposto de cubata e outras tantas
disposições especiais para os indígenas, que são obrigatórias
segundo a lei.
A direcção, coordenação e superintendência do serviço do
registo do estado civil dos indígenas deverá incumbir ao Secre-
tário dos Negócios Indígenas, cabendo-lhe o nome no exercício
das suas funções, de Conservador Geral do Registo Civil dos
indígenas e funcionando a Conservatória na Secretaria dos Ne-
gócios Indígenas.
Em cada concelho, circunscrição civil e capitania-mór haverá
uma repartição de registo civil que funcionará na respectiva
secretaria da administração do concelho, circunscrição ou capi-
tania-mór, dirigida por um oficial do registo civil que respecti-
vamente será o administrador do concelho, circunscrição ou
capitão -mor.
Em cada posto civil ou militar das circunscrições e capitanias-
móres haverá um posto do registo civil dirigido por um ajudante
do oficial do registo civil, sob directa responsabilidade deste
oficial, e que será o respectivo chefe do posto.
Por qualquer acto do registo civil cobrar-se há o emolumento
único de $25, pertencendo $20 ao funcionário que lavrou o re-
gisto e $05 à autoridade gentílica que intervém.
Para cada espécie de registo é este constituído pelo ori-
ginal e dois extratos, um para ser enviado ao conservador do
registo e outro para ser entregue ao interessado ou interessa-
dos. Os extractos destinados aos interessados, quando se trate
de nascimento ou casamento, são constituídos por chapas me-
tálicas.
Os registos serão lavrados em face das declarações do chefe
ou chefes das famílias dos interessados e na presença da autori-
dade gentílica, a que estão subordinados, e que é responsável
pela participação e declaração do registo do estado civil.
Pelo casamento polígamo, cobrar-se há, além do emolumento,
uma taxa de 5$00 pela segunda mulher e a de 10$00 por cada
uma das outras.
O casamento de menores entre os 16 e 18 anos, sendo do sexo
masculino,, e entre os 14 e 16 anos, sendo do sexo feminino ficam
dependentes da licença do funcionário do registo civil e por êle
cobrar-se ha uma taxa de 2$00.
O divórcio averbar-se há à margem do respectivo registo de
512 POPULAÇÕES INDÍGENAS
casamento, em face da sentença do tribunal indígena que o con-
firmou.
As autoridades administrativas fica competindo compelir ao.
registo civil todos os indígenas que por efeito de operações de
arrolamento e cobrança do imposto de cubata, de queixas, con-
tractos de prestação de trabalho, ou por qualquer outro motivo,
averiguem, não terem celebrado os actos do registo em que se
encontram.
Eis de uma maneira geral como se nos afigura que deve ficar
estabelecido o registo do estado civil dos indígenas e cujo pro-
jecto de regulamento incluímos no Apenso (1).
(') Vide Apenso IV.
CAPITULO III
DOS CARACTERES ÉTNICOS
Neste capítulo propomo-nos estudar os caracteres físicos e
fisiológicos das populações que povoam a província, e por meios
dos quais podem estabelecer-se as suas afinidades e as agrupar
sistematicamente.
Esta parte do nosso trabalho, que outra coisa não é, senão
um estudo de antropologia étnica das populações de Angola, seria
por certo a mais importante, se tivéssemos elementos para lhe
dar o desenvolvimento que merece. A falta de tempo, de instru-
mentos e de pessoal habilitado que nos coadjuve, força-nos a
abandonar a ideia de, por agora, lhe prestar a atenção e cuidado
a que tem jus pelo papel preponderante que tem no estudo etno-
lógico das raças indígenas de Angola.
Na ordem de ideias acabada de expor vamos passar em revista
os diversos caracteres étnicos das populações indígenas da pro-
víncia.
I. — Dos caracteres anatómicos
Dos caracteres étnicos são os caracteres anatómicos os que
nos podem dar melhores e mais rigorosos elementos para o
estudo das raças, mas são igualmente aqueles que, com precisão,
não podemos tratar.
Os caracteres anatómicos, estudados sobre o esqueleto ou
sobre o cadáver, demandam, para constituir um trabalho honesto
e sério, instrumentos de antropometria, quem deles se saiba
servir, e um grande número de medições e observações.
Nada disto tivemos, por que no que diz respeito a antropologia
étnica — como fácil é de supor — nos encontramos absolutamente
sós com um compasso de espessura e um outro de corrediça, e
sobretudo sem podermos dispor de tempo para, com estes redu-
514 POPULAÇÕES INDÍGENAS
zidíssimos instrumentos, proceder às medições indispensáveis e
que deveriam servir de base ao estudo dos caracteres étnicos.
E, se nos faltaram instrumentos, tempo e cooperadores, muito
menos podemos dispor da matéria prima onde efectuar o estudo
antropológico — esqueletos e cadáveres.
No que respeita, pois, aos caracteres físicos e em especial
anatómicos, não será fácil, por emquanto, tentar um estudo sob
o ponto de vista scientífico, como é mister que se leve a efeito e
de que nós não desistimos, desde que possamos dispor dos ele-
mentos indispensáveis para o fazer.
Assim, é para desejar um estudo completo do esqueleto, em
particular, do crâneo, bem assim como o estudo comparativo
dos músculos, do sistema nervoso, dos aparelhos esfâncnicos e
órgãos genitais, que constituem a base da anatomia descritiva e
comparada das raças.
A craniologia tem actualmente um logar proeminente na an-
tropologia étnica e pode subdividir-se em craniografia — o estudo
filho de observação directa e de simples descrição — e a crânio-
metria — o estudo do crânio por processos matemáticos.
Nos caracteres craniográficos ou descritivos começaremos
pelas suturas do crânio.
As articulações das suturas do crânio entre as raças de Angola
são habitualmente simples, o que aliás vêm confirmar a lei consta-
tada de que as articulações das suturas variam, segundo as posi-
ções das raças na escala humana, sendo simples nas raças infe-
riores e muito complicadas nas superiores.
A obliteração das suturas marcando o terminus do crescimento
do crânio, e consequentemente indicando^ igualmente o terminus
do crescimento do cérebro, dá-nos úteis indicações sobre a evo-
lução cerebral.
A obliteração das suturas, no homem, principia usualmente
um pouco antes da velhice, salvo excepções individuais, devidas
de ordinário a uma actividade prolongada das faculdades inte-
lectuais.
Nas raças Negra e sobretudo Boschjman a obliteração tem
logar, em média, aos vinte e cinco anos, aproximando-se dos
indivíduos pouco inteligentes ou completamente estranhos à vida
intelectual que ocupam os últimos graus cia escala das raças
superiores.
As partes laterais do ocipital são achatadas e verticais, e a
protuberância do ocipital externa saliente.
DE ANGOLA 515
O frontal articula-se muitas vezes com o temporal, e assim,
as grandes azas do esfenoide não se articulam com o parietal.
As bossas frontais são na maioria confluentes ou substituídas
por uma bossa única e mediana, e as órbitas são pouco profundas,
resultado das arcadas serem pouco salientes e lisas.
Se pouco podemos dizer sobre caracteres craniográficos, que
poderemos acrescentar sobre caracteres craniométricos?
Como se sabe a craniometria constituo hoje uma sciência
distinta, empregando processos matemáticos de precisão e tendo
por base as medições craniométricas. As medições craniométri-
cas são de rectas ou curvas, de projecção, angulares e estereomé-
tricas ou de capacidade.
O que fica exposto parece-nos por si responder à pergunta
formulada, pois, por certo, não podíamos sequer pensar em
medições craniométricas com os elementos de trabalho de
que dispúnhamos, limitando-nos a, por assim dizer, repetir o
que actualmente de uma maneira genérica se sabe sobre o
assunto.
No que diz respeito à capacidade craniana, na maioria, não
ultrapassa entre os negros 1600 centímetros cúbicos e entre os
Boschjman 1400. O crânio é dolicocéfalo nas duas raças mas
muito mais pronunciado entre os Boschjman.
Com relação ao prognatismo é muito variável, e se a sciência
na actualidade não admite a ortognatia absoluta, parece, que
entre as populações indígenas de Angola, o trivial é serem os
ângulos inferiores aos da raça branca.
Como caracteres anatómicos propriamente ditos acrescenta-
remos, que teem o esqueleto desenvolvido, ossos proeminentes,
curvatura pronunciada da coluna vertebral, logo acima da bacia
e dentes oblíquos, excedendo, em geral, os superiores.
II. — Dos caracteres morfológicos
Dos caracteres morfológicos, começaremos por tratar da cor-
da pele, caracter que se nos afigura tanto mais importante,
quanto é certo que tem servido, de uma maneira -geral, como
base para a classificação das raças.
As cores, nuances e tons que a pele apresenta, variando até
ao infinito, resultam da combinação da matéria corante vermelha
do sangue em circulação na rede capilar, vista por transparência
através da epiderme, das granulações negras do pigmento da
516 POPULAÇÕES INDÍGENAS
rede mucosa de Malpighi, e da biliverdina, produzida no fígado,
e dando aos tecidos uma côr amarelada.
Assim a côr da pele depende das proporções em que estes
três elementos se encontram representados.
Há porém quem conteste serem três os elementos fundamentais
da côr da pele, e os reduza a dois — o vermelho do sangue e o
negro do pigmento — com o fundamento de que a biliverdina
não é senão uma transformação, uma maneira de ser diferente
da matéria corante do sangue ou do pigmento.
Em Angola podem as populações indígenas com relação à côr
da pele, reduzir-se a dois tipos, correspondentes às duas raças
— Negra e Boschjman. •
As populações indígenas da raça Negra corresponde uma
coloração de pele com várias nuances e tons, desde o negro
quási retinto ao castanho escuro ; às populações daraça Boschjman
corresponde uma coloração de pele muito menos carregada,
amarelo esverdeado, assemelhando-se ao verde escuro da azeitona
de Elvas.
A côr da pele, subordinada às altitudes e condições geológicas
das localidades, à hereditariedade e à alimentação, é tão variável
dentro dos limites acima expostos, que nos impossibilita de com
precisão fazer a sua distribuição em um mapa da província.
O maior número de tons da coloração da pele, encontra-se
na raça Negra, como não é dificil de prever, atendendo que esta
é a que tem a maior representação na província, ocupando-a
quási na totalidade.
A coloração da pele da população da raça Boschjman é a mais
uniforme, pois que reduzidos a um pequeno número, habitando
regiões cujas condições são em tudo muito semelhantes, não
podiam apresentar grandes variações.
No entanto e apesar das variadíssimas nuances da coloração
da pele das populações da raça Negra, quem percorrer a pro-
víncia, e atente às diversas nuances da côr da pele dos indígenas
que vá encontrando, constatará que nas regiões de maior alti-
tude, a coloração vermelha predomina e nas mais baixas o fundo
negro é manifesto. E, dentre as regiões de maior altitude, notará
que naquelas, correspondentes às grandes florestas, a coloração
vermelha é ainda mais acentuada, e acrescida do amarelo.
Assim, de uma maneira geral, poderemos admitir em Angola
quatro tipos diferentes da coloração da pele dos indígenas. Ama-
relo esverdeado correspondente à côr da pele dos indígenas da
DE ANGOLA 517
raça Boschjman; negro quási retinto, sem o ser em absoluto, cor-
respondente à côr da pele dos indígenas da raça Negra ocupando
as regiões baixas da província ; abronzeado, correspondente à
côr da pele destes indígenas, ocupando as regiões planálticas,
mas despidas de vegetação de grande porte; castanho claro, cor-
respondente à côr da pele dos indígenas da raça Negra, ocupando
as regiões planálticas e de floresta.
Nesta ordem de ideias elaboramos o mapa junto com a dis-
tribuição dos diversos tons da coloração da pele dos indígenas
de Angola.
No que diz respeito à distribuição das diversas nuances da
côr da pele em um mesmo indivíduo, nota-se que as partes geni-
tais são mais escuras e que a palma das mãos e planta dos pés
são mais claras.
A coloração da pele anda mais ou menos associada a côr dos
olhos e dos cabelos.
A côr do cabelo varia do preto fusco ao negro, e a côr dos
olhos varia do castanho, em que ha vários tons, até ao preto,
que não é trivial. A esclerótica não é perfeitamente branca,
predominando o amarelo pálido.
A côr do* cabelos e olhos varia igualmente consoante a alti-
tude, sendo mais claros os cabelos e olhos das populações indígenas
dos planaltos.
Os cabelos são lanosos, mais ou menos finos e encrespados,
rijos, enrolando-se em espiral e achatando-se, como que for-
mando pequenos grânulos de pólvora, como Topinard os classi-
fica.
Os cabelos no corpo rareiam sobre o ventre, braços e pernas
e pode dizer-se que são muito poucos os indivíduos que os teem
nas costas, peito e hombros.
São raras as calvas que se vêem em indivíduos de muita
idade, bem assim como os cabelos russos ou brancos.
Passemos aos traços da fisionomia, compreendendo a forma
geral do rosto, os seus detalhes e tudo o que concorre para a
sua expressão.
Visto de perfil o rosto é visivelmente oblíquo ou prognata, com
as mandíbulas salientes lembrando um focinho, beiços grossos e
revirados; de frente, testa curta e descaída, faces curtas, as maçãs
proeminentes e os olhos à flor do rosto.
No entanto, algumas excepções se encontram, principalmente
no que diz respeito à testa que em muitos casos se confunde com
518 POPULAÇÕES INDÍGENAS
o do tipo europeu — grandes, cheias, com as bossas um tanto ele-
vadas, e bem pronunciadas as arcadas em que assentam as
sobrancelhas, tornando as órbitas profundas.
O nariz é, ainda assim, o traço fisionómico mais uniforme,
destacando-se a largura, na base entre as ventas, que em alguns
chega a ser igual à altura, de modo que a sua projecção será um
triângulo muito próximo do equilátero.
As ventas são largas, havendo-as arredondadas, as azas do
nariz carnudas e móveis, com dilatação e contracção pronunciadas.
O intervalo ocular é igual, na maior parte dos tipos, à base
do nariz, e mais pronunciada entre os Bochsjman.
As orelhas são compridas e largas, sendo a sua projecção a
de um ovo em que a parte superior mais larga é uma curva de
grande raio; a sua extremidade superior é bastante pronunciada,
decaindo para a frente, enquanto que a inferior, é mais unida à
face que no europeu.
Os beiços são salientes, em geral, o inferior mais do que o
superior e um pouco decaido, revirando-se em uns mais do que
em outros ; o superior levanta-se ligeiramente.
O queixo é em geral redondo e pouco saliente; a proemi-
nência do masseter é geral, alargando-lhes o rosto, de modo
que os apresenta com as fontes deprimidas e com as cabeças
estreitas.
A pele é finissima, polida, fresca e aveludada, deixando ver
bem todo o sistema venoso.
O pénis é longo e volumoso no estado de flacidez, aumentado
pouco no de erecção.
No que diz respeito à mulher o caracter étnico mais impor-
tante é representado pelos pequenos lábios da vagina, que atin-
gem um desenvolvimento considerável, bem assim como a vagina,
correspondendo assim às dimensões do pénis do homem.
O cheiro dos órgãos genitais é característico nos dois sexos.
Os seios da mulher são grandes, pendentes depois da puber-
dade, túrgidos e em forma de pêra antes daquele período.
Para a estatura ou altura a cima do solo do ponto culminante
da cabeça — o vértice — adoptamos a classificação de Topinard:
1.° grande estatura, superior a lm,70; 2.° estatura mediana supe-
rior, de lm,69 a lm,G5 inclusive; 3.° estatura mediana inferior,
de l,n,64 a lm,60 inclusive; 4.° pequena estatura, inferior a lm,60.
No primeiro grupo podemos incluir as tríbus Banctuba, Cuan-
gares, Bailundos, Bienos, Mussurongos, Muchicongos e Muzombo;
DE ANGOLA 519
no quarto grupo, os Boschjman; no terceiro grupo a tríbu Jinga;
e no segundo as restantes tríbus da província.
No que respeita aos caracteres morfológicos da cabeça, nota-se
que em geral, as raças indígenas teem a parte da cabeça que me-
deia entre o vértice e o limite dos cabelos, mais curta do que
entre a raça branca ; que a testa, da intersecção dos cabelos à
raiz do nariz, é elevada; que o .nariz é curto e pouco elevado;
que no sentido transversal, a região média da face é alongada;
e que entre os Boschjman é grande o intervalo ocular.
O tronco entre os Negros, é mais curto que entre os europeus,
o que não sucede com os Boschjman, que em média regula pelo
destes.
Com relação à grande envergadura, isto é, ao comprimento
entre as extremidades dos dedos médios, afastando longitudinal-
mente os dois braços e as duas mãos, podemos enquadrar as
raças da província naquela de braços compridos.
Assim, não obstante terem, Negros e Boschjman, os membros
inferiores compridos, entre os Negros os membros superiores
ultrapassam aqueles. Finalmente, teem as mãos grossas e dedos
curtos, e o pé pequeno e largo.
Tendo passado em revista os mais importantes caracteres
morfológicos das populações indígenas de Angola, resta-nos,
antes de fechar este capítulo, tratarmos das anomalias que se
nos deparam em alguns indivíduos, e que constituem valiosos
elementos de estudo para a antropologia étnica das raças de
Angola.
Estas anomalias ou deformações podem ser produzidas fisio-
logicamente durante a vida, outras são congenitais, e outras, não
sendo um produto da natureza, são provocadas voluntária ou
involuntariamente, e constituem o que vulgarmente se denominam
mutilações étnicas.
Nas primeiras podemos enquadrar o albinismo, vulgar entre
as tríbus da raça Negra, devido à falta de matéria pigmentar,
tornando a pele e os cabelos incolores, a iris transparente e a
face interna do choroide desprovida de matéria negra destinada
a absorver o excesso dos raios luminosos, resultando não poder
o albino suportar a luz solar e vendo melhor de noite do que de dia.
Os albinos teem os olhos e a pele avermelhada, pela transpa-
rência dos tecidos que deixam ver o sangue circulando nos ca-
pilares.
Como tivemos ocasião de dizer na primeira parte deste tra-
520 POPULAÇÕES INDÍGENAS
bailio, encontramos em Pungo Andongo um caso interessante de
albinismo parcial, raro, mas que a antropologia étnica confirma.
Uma outra deformação é a steatopigia, a acumulação de tecido
adiposo sobreposto aos músculos das nádegas, vibrando ao menor
contacto, muito vulgar entre as mulheres da raça Boschjman e
rara entre as da raça Negra.
A steatopigia constitue um caracter étnico de um alto valor
da raça Boschjman pura, pois parece provado que ela desaparece
pelo cruzamento desta raça com outras.
Entre os indígenas da raça Negra é vulgar a excrecência na
garganta ou o bócio.
Como vimos no estudo de cada uma das tríbus que povoam
a província, as deformações produzidas artificialmente ou as
mutilações étnicas são variadíssimas, podendo algumas vezes
alterar certos caracteres antropológicos, como por exemplo a
epilação, ao passo que outras, não indo tão longe, atingem mais
ou menos a integridade de certos órgãos, como sejam as perfu-
rações diversas, e ainda outras, como a tatuagem, não alteram
nem as formas nem as funções. No entanto, todas, desde a mais
insignificante à mais importante, devem merecer a nossa atenção,
seja como característicos da raça ou tríbu, seja como o índice
das relações que possam existir entre certas tríbus.
Assim começaremos por mencionar a epilação que, sendo pra-
ticada por muitos povos da província, se não pode no entanto consi-
derar como geral. A epilação é praticada principalmente pelas
tríbus do sul da província, havendo, entre estes indígenas, alguns
que trazem consigo sempre uma espécie de pinça para a exercerem.
Outro tanto devemos acrescentar quanto à tatuagem ou melhor
quanto às cicatrizes étnicas, porquanto a tatuagem propriamente
dita é muito rara praticar-se. Assim é que, não devemos classificar
de tatuagem os traços e figuras salientes que alguns dos povos
da província apresentam pelo corpo, principalmente no ventre,
nas costas, nos ombros, nos antebraços e raramente no rosto, e
que nos parece não passar de cicatrizes étnicas.
As cicatrizes salientes que alguns indígenas de Angola apre-
sentam são praticadas, quer pela aplicação de ventosas que à faca
rasgam, quer por incisão com uma agulha ou estilete de madeira
bastante afiado, quer intersectando a epiderme com uma agulha,
arrancando a parte intersectada com uma faca, e que fazem cica-
trizar servindo-se de vários processos e empregando diferentes
ingredientes, conforme a região.
DE ANGOLA 521
São raras as figuras e desenhos, sendo mais vulgar a prática
de cicatrizes em linhas mais ou menos paralelas.
A bárbara e antiquíssima prática da deformação artificial do
crânio, é pouco vulgar. É levada a efeito nas crianças recém-
nascidas e por pressão, com o fim de tornar a cabeça mais
bem feita.
São vulgares as mutilações no nariz e orelhas, principalmente
nestas últimas, constituindo em perfurações para suspender ar-
golas, pingentes ou pequenos pedaços de pau. A não ser os
Cuanhamas que usam a orelha direita furada, os Cuangares a
esquerda, e os Seles e Amboims que perfuram o nariz, o que
constitue um característico daquelas tríbus, nas restantes, estas
mutilações não são privativas de um determinado povo.
É igualmente muito frequente a mutilação nos dentes incisivos,
quer extraindo-os, quer limando-os ou lascando-os só de um lado,
quer aguçando-os em ponta. A mutilação dos dentes incisivos é
frequente, sobretudo nas tríbus do sul da província.
Finalmente como mutilações étnicas temos a considerar as
praticadas pelos Negros, na época da iniciação dos rapazes e
raparigas, nos órgãos genitais, a que mais detalhadamente nos
referimos ao tratar das práticas da iniciação, e o tablier entre
os Boschjman.
O tablier é constituído por uma hipertrofia considerável de
todos os elementos vasculares e glandulares nos pequenos lábios
da vagina, da qual participa o prepúcio do clitóris, e que se
pratica desde criança. O tablier chega atingir o comprimento
de 15 e 18 centímetros e pode considerar-se como sendo um
caracter étnico da raça Boschjman.
III. — Dos caracteres fisiológicos
Se as diferenças físicas constatadas sobre o cadáver ou sobre
o vivo teem um logar de destaque na distinção das raças, as
diferenças resultantes do funcionamento dos órgãos não podem
deixar de ser consideradas para o estudo etnológico, por que não
se lhe pode negar a importância que teem para o estudo compa-
rativo das raças.
No que diz respeito à duração da vida média, está ela abaixo
do que se atribue a diversos povos da raça Negra, devido, cremos,
às influências dos meios físicos e sociológicos em que vivem.
34
522 POPULAÇÕES INDÍGENAS
A indolência, a preguiça e a ignorância, atrofiando-os e con-
correndo para os tornar de uma submissão extrema, não lhes
permite o culto da inteligência. Não sabem sequer como evitar
as causas das doenças.
As lutas e guerras que se sucedem pelo desejo de uma melhor
existência, daquela que teem nos logares que abandonam, são
motivos de extinção ou expulsão dos povos mais desfavoráveis.
E, finalmente, o abandono e isolamento em que os teem dei-
xado os povos civilizados, mais teem concorrido para as péssimas
condições sociais em que vivem os indígenas de Angola.
,A mulher entra em um estado de decadência e enfraquecimento
muito mais rapidamente que entre os europeus, por que não só
se desenvolve muito mais cedo, como igualmente muito antes da
época própria é arrastada aos prazeres sexuais, e todo o organismo
decerto se deve resentir desse facto.
G desenvolvimento do corpo, a mudança de dentição, o termo
do crescimento do cérebro, o aparecimento do dente do sizo, o
desenvolvimento dos ossos longos e a menstruação, dão-se muito
mais cedo do que é usual entre europeus. O enfraquecimento
e queda dos cabelos e a perda dos dentes dá-se ao contrário
muito mais tarde.
A mulher, apesar dos mais elementares cuidados, concebe com
facilidade e a procriação é grande.
Mas assim como a fecundidade é grande, a mortalidade nas
crianças é correspondente, o que pode atribuir-se à pobreza do
leite das mães, por andarem constantemente expostas às intem-
péries e sujeitas a trabalhos superiores às suas forças. Esta
mortalidade e a servidão concorrem muito para a depauperação
das raças da província.
Com relação a cruzamentos, está averiguado que se teem
dado em pequena escala entre as duas raças que habitam a pro-
víncia, o que não quer dizer que o cruzamento das duas raças
não seja para ser tomado em conta nas tríbus da raça Negra que
mais em contacto teem vivido com os Boschjman, tais como
sejam os Mondombes, os Vaymbas e os Vanyanekas. O cruzamento
entre Negros e europeus tem-se dado em larga escala, principal-
mente na região ocupada pelos N'golas, entre a tríbu Muchicongo,
imediações de S. Salvador e entre os Cacondas.
Este cruzamento não tem sido fecundo, e dele não advieram
os resultados que se esperavam, seja qual fôr o ponto de vista
como se encare.
CAPITULO IV
DA VIDA MATERIAL
I. — Dos cuidados dados ao corpo
Tivemos ocasião de ver no estudo etnográfico que fizemos das
tríbus da província que, em geral, os mais rudimentares preceitos
de higiene e limpeza do corpo são desconhecidos, e notamos que
dos povos que povoam a província se destacam os Cabindas nos
cuidados de aceio do corpo. Em compensação merece-lhes bas-
tante cuidado o aceio da boca, que lavam diariamente ao levan-
tarem-se e quando tomam qualquer refeição, esfregando os dentes
e gingivas com um pequeno pau e à falta deste com os dedos.
Como medida de limpeza do corpo e cabelo, ou como resguardo
contra a mudança do tempo e acção contra parasitas da pele, os
indígenas de ambos os sexos usam untar-se; os das regiões baixas
e onde abunda a palmeira dendem, com óleo de palma, os dos
planaltos com óleo de rícino e de ginguba, e os do sul da pro-
víncia, onde a sua riqueza predominante é constituída pela criação
de gado bovino, com manteiga ou leite azedo.
Ainda, como medida de higiene ou por simples preocupação de
luxo, muitos povos da província, principalmente as mulheres
costumam juntar às substâncias oleosas ou gordura com que se
untam, a tinta de tacula ou de outras substâncias, pintando-se
de vermelho. Como vimos distinguem-se por este uso, e até
pode ser considerado, como característico de tríbu, os Cuanhamas,
os Cuangares e os Mucussos.
No que diz respeito a penteados a imaginação dos indígenas
apresenta-nos extravagantes criações, como tivemos ocasião de
descrever para cada tríbu.
Se para muitas tríbus da província não existe um penteado
característico, o que principalmente sucede com aquelas onde mais
524 POPULAÇÕES INDÍGENAS
se tem feito sentir a nossa acção, como sejam as tríbus : Cabindas,
ribeirinhas do rio Zaire, N'golas, Liboios, Bailundos, Bienos,
Cacondas, etc, para outras, e talvez a grande maioria, o penteado*
é característico, para cada tríbu ou grupo de tríbus, com pe-
quenas variantes. Assim parece que os penteados mais complicados
e extravagantes constituem um característico das tríbus que com-
nosco menos convívio teem tido, o que a própria confecção do
penteado confirma pela espécie de beleza selvagem que apresenta.
É o que os factos nos demonstram, com os penteados típicos
dos homens da tríbu Jinga, deixando crescer e cair o cabelo em
tranças; com o dos Quissamas, ornados de contaria de variada
côr igualmente caindo sobre os ombros; com o do grupo das
tríbus que denominamos Ganguelas ; com o dos homens da tríbu
Mondombe em cabeleiras soltas e corridas para trás ou em forma
cónica; com o interessante penteado das mulheres do Humbe,
cujo conjunto faz lembrar um capacete romano ; com o das mu-
lheres Cuanhamas, adaptando à carapinha um capacete de couro,
uma espécie de tricórnio original; com o das mulheres Cuangares
e Mucussos em longas cabeleiras postiças caídas sobre os ombros
e pintadas de vermelho; com o das mulheres Donguena em longas
tranças, igualmente postiças, às vezes quási até aos pés ; com a
dos homens dos Ambuelas, usando o cabelo todo rapado ou dei-
xando um simples rabicho no alto da cabeça ou filetes paralelos
ou concêntricos de cabelo, etc.
Sobre torneios de lutas e jogos com o fim de desenvolver as
forças musculares ou da agilidade, não temos conhecimento que
se pratiquem entre os povos que povoam a província ; o indígena
de Angola aproveita os seus ócios, palestrando e fumando com
os parentes e amigos, preferindo deleitar-se com o fumo do seu
cachimbo, relembrando ou contando histórias tradicionais em
que exercita a memória, a todo e qualquer exercício que demande
grande soma de energia.
II. — Da alimentação
A base de alimentação indígena é vegetal, e constituída, para
os indígenas da raça Boschjman, pelas raizes das plantas espon-
tâneas e pelos frutos silvestres, para os indígenas da raça Negra,
principalmente, pela mandioca (manihot utilíssima), pelo milho,
pela massambala (dorgo), pelo massango (pennisetum), pelo luco
DE ANGOLA 525
(eleusine coracana), pela batata doce (ipomaea batata), pela gin-
guba (arachis hypogaea).
A mandioca constituo a base da alimentação dos povos da
província dos distritos do Cuanza, Congo, Loanda, Lunda e parte
do distrito de Benguela; o massango, a massambala, o luco, e
sobretudo o massango a base da alimentação dos povos do sul
da província.
A mandioca, a massambala, o massango, o milho, e o luco,
são consumidos, em geral, reduzidos a farinha, com que fazem
as papas ou massa que constituo o seu principal alimento, di-
luindo a farinha em água a ferver e mexendo-a com um pau até
tomar a consistência da massa do pão. Consomem igualmente
os tubérculos da mandioca crus, assados ou secos, bem assim
como consomem torradas as diversas espécies de gramíneas
acima indicadas, principalmente o milho.
Alem destas espécies vegetais fazem os indígenas de raça negra
uso na alimentação de uma espécie de esperregados da rama da
mandioca o de outros vegetais, de diversas espécies de feijão, da
abóbora, dos pimentos, do dendem da palmeira, das bananas,
do caju, da fruta pinha o vários outros frutos.
Apreciam muito a carne mesmo no estado de putrefacção, o
até de preferência neste estado, bem assim como o peixe.
Os povos do sul da província fazem uso na sua alimentação
do leite azedo.
A cosinha indígena, das atribuições da mulher, é muito rudi-
mentar, e constitue, àlêm da preparação das papas da farinha,
em assados (carne e peixe fresco ou seco) ou cosidos (peixe), e
nos molhos ou condutos que acompanham as papas.
Como temperos usam o azeite de palma, o jindungu (plural
de n'dungn) (eapsicum conicum), o o sal, quando o teem, pois
em certos pontos da província é muito raro.
Àlêm da água, constituem bebidas predilectas, de uma ma-
neira geral, a aguardente, o hydromel e as bebidas obtidas pela
fermentação da farinha de milho (ulua), no distrito do Cuanza e
(quimbombo), no de Benguela do massango (berlunga) e da mas-
sambala (macau) no sul, e da seiva das palmeiras malufo, malavo,
(maluvo) onde estas plantas fegetam.
No sul da província usam igualmente o gonga, bebida obtida
pela fermentação do fruto da árvore do mesmo nome.
Pode pois concluir-se que a alimentação das raças que actual-
mente povoam a província, é caracterizada, para a raça Boschjman
526 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pelo uso na sua alimentação das raízes e frutos sem preparação
alguma culinária, como a natureza lhos fornece, e para a raça
Negra, já por uma rudimentar preparação culinária, que muito
a distancia e nos mostra a superioridade desta raça sobre a pri-
meira.
No que diz respeito ao uso do tabaco (nicotiana tabacum ou
rústico) encontra-se êle difundido por toda a província quer re-
duzido a pó, como rapé, quer picado para ser fumado.
Raro é o homem ou a mulher que não se deleita com o seu
cachimbo e havendo indígenas que fumam o cânhamo (cannabis
sativa) riamba ou liamba, principalmente os das margens do rio
Cubango, onde mais intensa é a cultura desta espécie vegetal.
O cânhamo é fumado em cachimbos especiais, atravessando o
fumo a água contida cm uma pequena cabaça ou chifre.
Os efeitos deste terrível veneno, que às primeiras aspirações
produz ao fumador fortes acessos de tosse, e a seguir uma so-
nolência que lhe dá visões e sonhos que muito apreciam, acaba,
pelo abuso que dele fazem, por enlouquecer o fumador.
III. — Do vestuário
O vestuário usado pelos indígenas da província de Angola,
é constituído, de uma maneira geral, pela tanga, suspensa da
cintura e em algumas tríbus, para as mulheres, traçado por
debaixo dos sovacos e por cima dos seios. Na sua simplicidade
o vestuário tem variantes de tríbu para tríbu, quanto à matéria
prima e à espécie de tecidos empregados, e quanto à sua forma
e tamanho, definindo as raças e as tríbus ou grupos de tríbus.
Dos indígenas da província aqueles que mais simplesmente se
vestem, ou por outra aqueles que menos vestidos andam, são os
pertencentes à raça Boschjaman, cujo vestuário não vai àlêm de
um saio em volta dos rins.
Em ordem crescente seguem-se-lhes as tríbus da raça Negra
do sul da província, Vanyanekas, Humbes, Vaymbas, Cuamatos,
Donguenas, Cunhamas, Evales, Cuangares e Mucussos, em que
predomina a tanga de pele de boi, de cabritos, e de vários antí-
lopes, caracterisando as tríbus Cuamatos, Donguenas, Cunhama
e Evale uma peça de vestuário a ríctuba a que já nos referimos
ao tratar aquelas tríbus. Na mesma ordem crescente, e em que
se encontra ainda a tanga de tecidos de fibras têxtis, não obs-
DE ANGOLA 527
tante predominarem actualmente os tecidos de origem europeia,
podem incluir-se as tríbus de nordeste, principalmente as que se
constituir am à custa de dissenções que se deram no estado de
Muat-Ianvua. A seguir vêem as tríbus em que só se encontram
tecidos de origem europeia, cuja tanga não vai além do joelho
ou pouco o ultrapassa, tais como sejam as do norte da província
e sul do rio Zaire, e que se estendem para àlêm do Cuanza até
ao distrito de Benguela. Finalmente os Cabindas e as tríbus
Bimbundu que, usando tecidos comprados ao comércio europeu,
a tanga cobre-lhes os membros inferiores até ao tornozelo e
mesmo o ultrapassa, arrastando às vezes pelo chão.
Entre es povos mais assimilados, como sejam os N' Golas,
Muxicongos, Cacondas, Cabindas, etc, os homens usam panos
cobrindo o tronco, camisolas, camisas, coletes, casacos, cobertores
e alguns vestem mesmo calças ; as mulheres, chambres e vários
outros panos, quer sobrepostos sobre a tanga, quer por debaixo
desta e de menor tamanho.
É raríssimo as mulheres usarem a saia.
Salvo as tríbus da raça Boschjman que, coerentes com a sua
simplicidade, não teem por costume usarem adornos, nas tríbus
da raça Negra estes parecem estar em proporção decrescente com
o grau de civilização em que elas se encontram, apresentando
mais adornos e maior número de enfeites as tríbus mais selvagns
e que menos contacto comnosco teem tido. É o que concluímos
se lançarmos um golpe de vista sobre o que deixamos exposto
respeitante a adornos, no estudo etnográfico das tríbus da raça
Negra.
Como tivemos ocasião de ver os ornatos usados pelos indíge-
nas variam ao infinito e são constituídos por colares, pulseiras,
braçaletes e cintos, de junco, de missanga, de cobre, de latão,
de marfim, de ferro, etc, e pingentes de toda a qualidade, pon-
tas, dentes, cascas de ovos de avestruz, etc.
IV. — Da habitação
Das manifestações exteriores dos povos, a habitação é, sem
dúvida, uma das que melhor traduz o grau da sua civilização e
cultura.
Os materiais e processos empregados na sua construção, a sua
arquitectura, a distribuição dos compartimentos interiores, os
móveis e até mesmo, os pequenos detalhes da sua arrumação,
528 POPULAÇÕES INDÍGENAS
constituem elementos preciosos para o estudo dos usos e costumes
dos povos, e como tal, não podem nem devem ser desprezados
em trabalhos desta natureza.
Entre os povos da província a habitação é característica para
cada uma das duas raças que a povoam.
Para os Boschjmans a habitação não os preocupa, qualquer
caverna, fenda ou abrigo natural lhes serve. É a vida errante.
Para os indígenas da raça Negra a habitação embora rudi-
mentar e tendo como tipo, a cubata, uma construção circular,
quadrada ou rectangular, feita de paus a pique, revestida de
terra amassada ou de colmo e com uma cobertura deste mesmo
material, constitue em si um fenómeno localisado e fixo, que
evidentemente traduz a superioridade e o grau de desenvolvi-
mento a que chegou já, em comparação com o tipo Ínfimo do
Boschjman.
Fazendo uma análise um pouco mais demorada da habitação
das tribus da raça Negra, vamos encontrar na sua simplicidade,
modalidades que nos darão outros tantos elementos para ajuizar
do grau de civilização das diversas tribus.
Assim, em um estudo comparativo, nós concluímos que a
grande maioria das tribus da raça Negra constroe a sua habita-
ção assente no solo e só um número reduzido, habitando em ter-
renos eneharcados de sudeste, tais como em alguns povos da
tribu Babunda, a constróem sobre estacaria.
Se considerarmos a habitação sôb o ponto de vista dos ma-
teriais de construção empregados, não nos será difícil concluir
que a grande maioria dos povos empregam nas suas construções
exclusivamente o colmo, o papiro, o bordão ou empela da pal-
meira, ao passo que em um número reduzido de tribus a estes
materiais juntam a terra amassada, e finalmente que os Cuanga-
res e Mucussos substituem as paredes das suas habitações por
esteiras com que revestem uma tosca armação que previamente
teem feito.
Impossível se torna determinar as tribus que excluem dos
materiais empregados na sua construção o barro, e aquelas que
o adoptam, porque em quási todas se encontram povos que o
empregam; no entanto, onde com maior frequência se encontra o
uso do barro com material de construção é nas tribus do centro
da província.
Se agora passarmos a analizar a habitação dos indígenas da
raça Negra sôb o ponto de vista da sua forma, nós encontramos
DE ANGOLA 529
em todos os vastíssimos territórios da província três tipos: cir-
cular quadrada e rectangular. Pelas mesmas razões acima expos-
tas ao tratarmos dos materiais empregados, a forma de habitação,
a não ser nas tríbus do sul da província, onde é exclusivamente
circular, não constitue um característico da tríbu, no entanto
podemos afirmar, que a habitação de forma rectangular predo-
mina, e quási que constitue a única forma adoptada nas tríbus do
norte da província e de grande parte do distrito de Benguela
(tríbus Bimbundu).
Entrando em detalhes observa-se, quanto à elegância como são
lançadas as linhas gerais da construção, ao seu maior pé direito,
à existência de janelas, à forma e tamanho das portas, que, cons-
tituem atributos da habitação de forma quadrada e sobretudo
rectangular.
A igual conclusão chegamos no que diz respeito a embeleza-
mentos exteriores, com a aplicação de barros de uma ou duas
cores, aos compartimentos ou divisões interiores, e aos móveis.
Sobre móveis é de notar, as artísticas cadeiras e bancos que
se encontram entre os Ganguelas e Bimbundu, e principalmente,
a substituição que alguns indígenas vão fazendo das tarimbas
por camas de madeira com colchão feitos de tiras de pele de boi.
Resta-nos fazer referência a outras construções indígenas,
que não obstante sejam do mesmo tipo, teem fins diferentes. Refe-
rimo-nos às pequenas cubatas que alguns indígenas, principal-
mente nobres e os que exercem autoridade, edificam junto à
cubata da habitação ou no cercado, — quando o teem — e que lhes
serve de cosinha, às pequenas cubatas que assentes sobre esta-
caria servem de celeiros, a umas outras que destinadas a guar-
dar os seus ídolos ou feitiços, e a um telheiro (jango) que em
geral se encontra em cada libata ou sanzala, onde raras vezes
deixa de haver lume, e que constitue uma espécie de club em
que os homens passam horas esquecidas fumando e palestrando.
As cubatas agrupam-se em geral por afinidades de família em
sanzalas ou libatas, em linhas mais ou menos tortuosas, sendo
uso em alguns povos a existência junto das cubatas, de culturas
mais apreciadas, como o tabaco e outras.
Do exposto não queremos deixar de tirar as conclusões ou
ensinamentos que devem orientar a legislação especial destinada
a indígenas.
Nesta ordem de ideias, julgamos necessário observar que o
indígena de Angola não tem o culto pelo lar doméstico, isso se
530 POPULAÇÕES INDÍGENAS
infere, como teremos ocasião de ver, ao tratar da organização
da família, mas até mesmo pela própria habitação que, de pouco
mais lhe serve do que para pernoitar — e nem sempre — por que
nas quentes noites de luar muitas vezes dela se não aproveita.
Além disso a cubata por si não constitue um domicílio inviolável ;
o indígena na construção da sua cubata não pretende senão
defender-se das intempéries, não havendo nada que possa justi-
ficar o comparar-se, sequer, a sua cubata com o domicílio como
nós europeus o entendemos. Assim como, as vedações, sebes ou
palissadas que muitos povos ainda usam em volta da libata ou
sanzalas se destinam única e simplesmente, como meio de defeza
contra as feras ou qualquer ataque por parte de outros povos,
assim a cubata constitui um meio de defeza contra as variações
atmosféricas.
O exposto dispensa-nos mais acrescentar para mostrar que o
princípio da inviolabilidade do domicílio da nossa Constituição
seria irrisório aplicado às cubatas das populações indígenas de
Angola, razão por que no seu estatuto civil e político ele não
deve ser mantido (l),
V. — Dos meios de existência
Do que deixamos exposto no estudo etnográfico das populações
indígenas de Angola, sobre os meios de existência, resalta à evi-
dência o contraste entre as duas raças que a habitam.
Ao passo que o Boschjman leva uma existência miserável e
errante, do verdadeiro selvagem, sem o menor desejo ou ambi-
ção, não praticando nem conhecendo a agricultura, o indígena
da raça Negra fixa-se, cultiva, vivendo do produto do solo, de-
nunciando nos qualidades que muito superior o coloca relativa-
mente ao Boschjman, e que devemos desenvolver e aproveitar
para o fazer evolucionar dentro do quadro da sua civilização.
A agricultura que não é conhecida nem praticada pelos indí-
genas da raça Boschjman, é a principal ocupação dos indígenas
da raça Negra. O Negro é essencialmente cultivador ; se mais não
agriculta, é por que de mais não carece para satisfazer as exi-
gências da sua vida, e, se em parte entrega ao cuidado da mulher
as suas culturas, é por que sendo elas tão simples e leves, con-
(l) Vide Apenso I (n.° 4. do art. 3.°).
DE ANGOLA
531
sidera degrante delas ocupar-se e não por que tenha adversão
aos trabalhos agrícolas. E tanto assim ê, que ao homem compe-
tem os trabalhos mais pesados, como sejam derruba, limpeza dos
terrenos destinados à cultura, o tratamento da palmeira, etc. O
indígena da raça Negra entrega ao cuidado da mulher as cultu-
ras, pela mesma razão que, entre os povos civilizados, os mais
leves trabalhos de costura se entregam à mulher, e que os aldeãos
das nossas Beiras igualmente lhe entregam as sachas e outros
trabalhos agrícolas menos pesados. A noção errada que se atri-
bui ao Negro do horror pela agricultura, filha de uma muito su-
perficial observação dos seus usos e costumes, que tem vindo sendo
admitida sem contestação, e que por conveniência, muitas pre-
tendem manter, precisa ser esclarecida, por não corresponder à
verdade dos factos.
Dela resultou o atribuir-se ao preto, como axiomático, uma
indolência que não pode ter o carácter tão generalizado e exa-
gerado como se afirma e que bem fácil é de contraditar.
O Negro, agricultando todos os produtos agrícolas que cons-
tituem a base da sua alimentação, como sejam, a mandioca, o
milho, a massambala, o mossango, a batata doce, etc, arranca
do solo pela sua rudimentar cultura, alguns milhares de tonela-
das daqueles produtos; mas por aí não fica, porque não se limita
a agricultar o restrito para o seu consumo, o Negro cultiva
aqueles produtos para vender e que grande parte são exporta-
dos, como se constata pelas estatísticas das exportações que a
seguir incluímos.
Estatística da exportação de milho, feijão, ginguba e fubá pelas Alfândegas
da província nos anos de 1914 e 1915
Produtos
Ano de 1914
Ano de 1915
Milho
4.051.902 Kg.
849.832 »
792 »
691.182 »
929 883 Kg.
Feijão
Ginguba
Fubá
267.425 »
1.763 »
145.416 »
Os produtos agrícolas acima indicados, devidos exclusivamente
à agricultura indígena, constituem apenas uma pequena parcela
representativa das manifestações da actividade indígena em tra-
balhos agrícolas, porquanto na agricultura indígena não levamos
532 POPULAÇÕES INDÍGENAS
em linha de conta o valor da sua industrialização pela prepara-
ção dos produtos agrícolas, tais como, o café, o coconote, a bor-
racha, que colhem em árvores expontâneas por eles tratadas e
cuidadas.
A exportação daqueles produtos tem uma excepcional impor-
tância, no movimento comercial da província e atingiu, nos anos
de 1914 e 1915, as cifras designadas no seguinte quadro:
Produto
1914
1915
Café
4.458.368 Kg.
3.976.743 »
1.614.610 »
4.000.920 Kg.
2.407.024 »
2 077 805 »
Coconote
Borracha
Não obstante se não possa considerar, como sendo de exclu-
siva iniciativa dos indígenas, as quantidades dos produtos acima
indicados no quadro das exportações, visto que parte destes pro-
dutos são devidos a explorações agrícoles europeias, o que não
pôde ser contestado, é que aqueles milhares de toneladas de café,
coconete e borracha, foram produto do trabalho do Negro, e
grande parte devido por sua iniciativa, à agricultura indígena
ou melhor à sua indústria agrícola.
E, se a isto acrescentarmos, produtos agrícolas, como o assucar
e outros, que, não sendo da exclusiva agricultura indígena, são
no entanto devido ao produto do seu trabalho, teremos provado
que a principal ocupação do Negro é a agricultura ou a sua in-
dustrialização. Do que deixamos escrito não se suponha que de-
sejamos concluir que o Negro produz já o máximo, por forma
alguma o admitimos, por que muito longe ainda está de o atin-
gir ; sabemos quanto rudimentares são os processos de agricul-
tura dos indígenas, sem regras, nem adubos e simplesmente com
o auxílio das suas tradicionais e características alfaias agrícolas
— a enchada e o machado gentílico — para não seguirmos o exem-
plo daqueles que temos vindo criticando, por à priori e axíoma-
ticamente admitirem erradas noções sobre as populações indíge-
nas de Angola. Em nossa opinião afigura-se-nos, pelo contrário
ser necessário levar o indígena a produzir mais e muito mais do
que atualmente produz.
As nações coloniais cabe a responsabilidade, não só cie não
terem melhor aproveitado as aptidões do Negro para a agricul-
DE ANGOLA 533
tura, mas sobretudo de não exercerem uma maior fiscalização
nas relações dos seus colonos com os nativos, o que tem tido
como único resultado o atrofiar aquelas aptidões.
A agricultura indígena já por si rudimentar e simples, pelas
condições de excepcional produção dos terrenos e poucas necessi-
dades do Negro, foi prejudicada na forma como se procedeu em
largos anos no recrutamento dos trabalhadores indígenas para
as fazendas agrícolas ou roças. O colono europeu em logar de
atrair e fazer desenvolver o gosto ao Negro pelos trabalhos agrí-
colas conseguiu, pelo contrário dele divorciá-lo.
O nosso dever, como nação dominadora impõe-nos, primeiro
que tudo, o assegurar ao indígena, nas suas relações com o co-
lono europeu, a protecção e assistência de que êle necessita pelo seu
atrazado estado de civilização, e, seguros da eficácia das dispo-
sições naquele sentido, regular a repressão da ociosidade e va-
diagem.
Regulando as relações entre os europeus e o indígena, no que
diz respeito à protecção no trabalho, está em vigor o Regulamento
do Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas, aprovado
pelo Decreto n.° 951 de 14 de Outubro de 1914, que, se como
lei basilar satisfaz por completo, como regulamento necessita ser
adaptado às condições especiais da província.
Assim, se no que diz respeito aos funcionários encarregados
da execução do regulamento e por quem é exercida a tutela, veio
dar satisfação à opinião que nos nossos relatórios expozemos,
sobre quem deviam recair as funções de Curador Geral, está
incompletísssima sobre as atribuições destes e dos seus Agentes.
Com uma pequena adaptação no tocante à parte burocrática
da execução dos serviços, o capítulo do regulamento que trata
do recrutamento dos trabalhadores indígenas, pode considerar-se
perfeito e estabelecido segundo as normas modernas deste ramo
de administração colonial.
Por êle se vê que o legislador conhece tudo o que em congres-
sos se tem resolvido e o que se pratica e está legislado em coló-
nias estrangeiras, e que o teve em atenção ao elaborá-lo. Pena
foi que não tivesse havido coragem — digamos assim — de varrer
deste diploma as disposições sobre trabalho compelido que, admi-
tindo o fornecimento pelas autoridades administrativas de indí-
genas considerados como compelidos, se presta a que se sofisme
a lei, e a que, por vezes, se deseje transformar em agente de
recrutamento os adminstradores de circunscrição e capitães-mó-
534 POPULAÇÕES INDÍGENAS
res e portanto os agentes do Curador, por que as funções destes
cargos são inerentes àqueles funcionários.
No que diz respeito ao estabelecido pelo Regulamento sobre a
prestação de serviço, pouco mais se pode aproveitar do que,
propriamente constítue os princípios gerais, não só, por que se
tem de regular a forma de contratar, como por o Regulamento
ser confuso e até omisso sobre vários assuntos.
É para desejar, atendendo à manifesta relutância dos patrões
de deixar de comunicar à autoridade sempre que podem, os indí-
genas que particularmente contratam, que o contracto seja sem-
pre feito com intervenção desta, não obstante possamos admitir
uma subdivisão na forma de contracto, e que seria, o contracto,
quando haja operações de recrutamento e o local de prestação
de trabalho não seja o* do domicílio do indígena contratado, e o
contracto correspondente à prestação de trabalho salariado, quando
o indígena venha oferecer os seus serviços ao estabelecimento
agrícola ou industrial e seja prestado no seu domicílio e este, se
quizer, possa todos os dias regressar á sua cubata.
As condições da prestação de trabalho e o regimen a que fi-
carão sujeitos patrões e trabalhadores, deferirão, simplesmente no
tocante ao pagamento de salários e sua liquidação, e às taxas
devidas pelos contractos.
Com pequenas alterações poder -se-hia equiparar a primeira
forma de prestação de serviço à estabelecida pelo Código Civil
para o serviço doméstico e a segunda à prestação de serviço
salariado.
E claro que no contracto para fora da colónia se admitiria só
a primeira espécie de contracto, conservando as taxas estabele-
cidas pelo atual regulamento em vigor, e alterando-o na parte
que se refere à forma de as liquidar, que deve ser na província.
Ainda sobre os contractos não deve manter-se emolumento de
espécie alguma e compensar os funcionários investidos na fun-
ção de Agentes do Curador com uma gratificação pelo serviço
de Curadoria.
Nesta ordem de ideias, e tendo introdusido algumas altera-
ções no tocante a transporte dos trabalhadores, a disposições de
protecção, penalidades e forma de processo, elaboramos um pro-
jecto de Regulamento, incluído no apenso (1).
(1) Vide Apenso VIII.
DE ANGOLA 535
Asseguradas as relações entre europeus e indígenas, consoante
ao trabalho indígena, não podemos nem devemos consentir, seja
em seu beneficio, seja da sociedade, que estes levem uma vida
de ociosidade.
Por uma forma mais ou menos imprecisa, algumas disposições
se encontram estabelecidas no Regulamento do Trabalho dos Indí-
genas reprimindo a ociosidade e vadiagem, indevidamente, em
nossa opinião, visto que não é do diploma que regula a forma
como se exerce o trabalho indígena que cabe a repressão da
ociosidade.
É um erro que se vem repetindo na legislação sobre trabalho
indígena que carece ser corrigido, destacando daquele regula-
mento as disposições aproveitáveis sobre o assunto, para em
diploma especial e com um carácter mais generalizado as ampliar,
precisar e tornar viáveis e práticas, de forma a habilitar as au-
toridades a poder efectivar a obrigatoriedade do trabalho.
Assim, à elaboração do diploma a promulgar sobre a repres-
são da ociosidade dos indígenas deve presidir o critério de com-
binar os dois princípios que lhe servem de base, a obrigatorie-
dade de trabalho e a livre escolha do modo de dar cumprimento
a esta obrigação ; indicando com clareza, quando o indígena está
isento daquela obrigação, e sobretudo, precisar os meios práti-
cos de que a autoridade se tem de servir para reprimir a ocio-
sidade ([).
Como complemento do diploma regulando a repressão da
ociosidade dos indígenas torna-se indispensável dotar a adminis-
tração da província com estabelecimentos especiais, onde se cum-
pram as penas de trabalho impostas aos indígenas delinquentes e
aqueles destinados a corrigir tantos outros que atualmente se
perdem por falta deles.
Enfim, para alcançar o fim desejado, de sobre bases sólidas
ficar garantida a melhor forma de aproveitar as aptidões dos
indígenas, basta que acompanhemos aquelas medidas com outras,
no sentido de instituir o ensino profissional aos indígenas, difun-
dinclo-o profusamente por toda a província, e a que teremos
ocasião de mais detalhadamente nos referirmos ao tratarmos da
vida intelectual dos indígenas de Angola.
Demonstrada como ficou a importância da agricultura indí-
(') Vide Apenso X.
536 POPULAÇÕES INDÍGENAS
gena, não queremos deixar de nos referir aos seus processos e
às culturas que com mais intensidade são exercidas.
Os processos empregados pelos Negros são, em geral, os mais
rudimentares possíveis.
Não usam a rega, não adubam as terras a não ser com as
cinzas dos fenos ou outros arbustos ique queimam na preparação
dos terrenos, e empregam como alfaias agrícolas as suas tradi-
cionais enxadas.
De uma maneira geral, o indígena começa por fazer a limpeza
do terreno a agricultar por meio da queimada ou da capinação,
e, algumas vezes, praticando uma cava superficial, sobretudo
quando se trata de culturas como o tabaco e outras sementes de
pequeno porte que são lançadas à terra a esmo, e em que a cava
se torna indispensável.
A seguir semeia ou faz a plantação que, salvo o caso acabado
de referir para sementes de pequeno porte, pratica, dispondo as
sementes ou as hastes a plantar, respetivamente conforme se trata
de sementeira ou plantação em pequenas covas que a seguir se
cobrem de terra.
No que diz respeito ao tratamento das culturas, se à grande
maioria dos Negros poucos cuidados lhes merecem, limitando-se
a umas cavadelas em redor das plantas outros teem o cuidado
de trazer limpas as suas plantações, beneficiando-as com sachas.
Das culturas propriamente ditas que com maior intensidade
são exercidas pelos indígenas da raça Negra, destacamos a
mandioca no norte da província e estendendo-se ainda ao sul do
Cuanza por parte do distrito de Benguela; o massango, a mas-
sambala, e o luco no sul da província; o milho nos distritos do
Cuanza, Lunda e Benguela; o algodão em Catete e Cassoneca;
a batata doce, a ginguba, a abóbora, o feijão, etc, de uma ma-
neira geral, em toda a província.
No que diz respeito ao tratamento pelos Negros das plantas
de produtos coloniais ou à sua indústria agrícola, destacamos
o café nas regiões de Mayombo, Encoje, Golungo Cazengo e
Amboim; a palmeira dendem nas regiões acima indicadas e do
litoral até ao Dombe Grande.
No quadro a seguir incluímos a distribuição dos produtos
agrícolas indígenas pelos diversos centros de produção e traba-
lho exclusivamente de iniciativa dos indígenas.
DE ANGOLA
537
Centros de produção e trabalho com tríbus Indígenas e sem colonos brancos
Centros
de produção
Trabalhadores
Tribu
Culturas
dominantes
Industria agricola
.2 ©
o
a
ES 'd
d
Cabinda.
Zaire. .
Encoje
Alto Dande. . .
Icolo e Bengo
Golungo Alto.
Cazengo
Planalto de
Malange. .
Libolo— Quis-
sama
Amboim.
Novo Redon-
do
Seles
Catumbela . .
Dombe Gran-
de
Planalto de
Benguela .
Planalto Huí-
la
Coroca
CS
u
Cabinda
( Mayombes . .
| Mussurongos
l Maungos
/ Dembos
N'golas ....
Mandioca
O
N'golas
Gingas .
Songos
Bangalas. .
Maungos. .
Holos
Libolos.. . .
Quissamas
N'golas . . .
Amboins. .
Musseles
Hanhas .
Mondombes
Hanhas. . . .
Gandas
Quilengues.
Bailundos. .
Bienos ... .
Cacondas. . .
Huambos . .
Sambos
Boschjman
Vanyanekas
Bacorocas. .
(2)
(4)
(5)
Palmeira Den-
dem, Café
Palmeira Den-
dem
Palmeira Den-
dem, Café
Palmeira Den-
dem
o
a
o
o
o
o
cu
03
jj
CD
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'53
N
03"
O
-d
o
O
cd
u
o
a,
M
H
(*) Mandioca, Milho, Batata doce, Ginguba, Feijão, Abóbora.
(2) » » » » » » Algodão.
(3) ,
(*) Milho, Batata doce, Ginguba, Feijão, Abóbora, Massango, Massambala, Luco.
(5) Massango, Massambala, Luco.
35
538C POPULAÇÕES INDÍGENAS
Ainda intimamente ligado com a agricultura se pode consi-
derar um outro mister do Negro, o de caiwegador, visto que as
suas cargas são constituídas pelos productos agrícolas que explo-
ram e que levam aos mercados.
Não desejamos prosseguir na análise dos outros misteres e
ocupações do indígena da raça Negra, sem nos referirmos à
grande importância que na província tem o comércio da cera
principalmente no distrito de Benguela e Cuanza, devido, é claro,
à grande intensidade com que o indígena exerce a apicultura.
Puzemos em destaque a importância da agricultura indígena
por parte da população da raça Negra, classificando o exercício
desse mister, como a sua principal ocupação, prosseguindo no
nosso modesto estudo, segue-se em ordem decrescente a criação
de gado pelos Negros, visto que, o Boschjman está para a criação
de gado como está para a agricultura.
A criação de gado pelos indígenas da raça Negra constituo
um factor económico importantíssimo, para que o Governo deve
fazer convergir a sua atenção, desenvolvendo-a, e sobretudo
aperfeiçoando as raças.
A criação de gado bovino pelos indígenas dos planaltos da
Lunda, Benguela e Huíla, a criação de gado suíno exercida por
quási todos os Negros salvo no sul da província, e em segundo
plano a criação de gado lanígero e caprino, está bem patente na
estatística elaborada na Secretaria dos Negócios Indígenas nos
anos de 1913, 1914, 1915 e 1916, que a seguir publicamos, e que
se refere exclusivamente aos povos em que se faz arrolamento
para o pagamento do imposto de cubata.
DE ANGOLA
539
Estatística do gado referente aos anos de 1913, 1914, 1915 e 1916
Distritos
Bovino
Lanígero
Caprino
Suíno
Cava-
lar
Muar
Asinino
Ano de 1913
Total .
Loanda
Lunda
Benguela. . .
Mossâmedes
Huíla
135.055
70.239
2.623
42.757
100
19.336
24.097
12.953
666
9.503
130
1.345
87.812
19.429
1.890
48.745
200
17.548
102.668
49.115
647
52.762
60
89
Ano de 1914
Total
Loanda ....
Cuanza
Congo . . .
Lunda . .
Benguela.. .
Mossâmedes
Huíla
120.978
75.104
153.791
201.880
6
23
513
2.994
197
808
-
-
22.258
20.998
25.420
44.859
2
23
-
436
3.553
5.000
-
-
16.666
5.349
14.521
7.185
-
-
60.671
46.955
91.172
143.860
3
-
110
155
230
102
-
-
20.760
917
18.118
66
1
-
159
155
Ano de 1915
Total
Loanda . ...
Cuanza ....
Congo
Lunda
Benguela
Mossâmedes
Huíla
110.923
22.258
6.662
61.133
110
20.760
78.229
8
20.598
1.384
5.243
49.924
155
917
156.623
409
25.420
11.245
2.099
99.401
230
17.818
1.256.130
804
44.859
17.470
36.339
1.156.490
102
66
23
23
163
155
4
4
Ano
DE 1916
Total
144.422
124.835
100
297.074
500
345.078
900
41
80
206
Loanda
Cuanza
36.952
33.541
65.341
91.867
7
24
179
Congo
207
7.762
26.683
26.649
-
-
-
Lunda!
10.891
9.127
28.593
12.356
-
-
-
Benguela
67.406
71.453
153.954
212.840
33
53
19
Mossâmedes .
250
164
246
211
-
-
-
Huíla
28.716
2.688
21.757
255
1
■"
8
540 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Esta estatística não obstante nos dar ideia da importância
capital que a criação de gado tem por parte dos indígenas,
ainda não pôde ser exacta, por que tem como base o arrola-
mento do imposto que muito longe está de abranger todos os
povos da provincia.
#
Como vimos, todos os povos da província mais ou menos se
dedicam à caça, praticando-a, quer por necessidade para defen-
derem as suas culturas, quer pára a sua alimentação, quer
mesmo por diversão.
Entre os indígenas da raça Boschjman a caça exerce-se como
a exercem os animais selvagens entre si, e de que tão pouco se
distanceiam.
Entre os indígenas da raça Negra o exercício da caça teve
uma capital importância, que actualmente vai perdendo, com a
maior intensidade da ocupação e consequentemente com o melhor
aproveitamento da actividade dos indígenas. No entanto, entre
algumas tríbus, ainda o exercício da caça tem foros de uma
instituição a que nem todos podem pertencer, tendo aqueles que
nela desejam ingressar sujeitar-se a provas, e sobretudo pre-
sentear quem os terá de julgar.
Se lançarmos um golpe de vista sobre o que deixamos ex-
posto no estudo etnográfico com relação aos processos usados
pelos Negros no exercício da caça, vemos que se podem reduzir
a dois: em grandes batidas, por ocasião das queimadas, e em
que tomam parte uma ou mais povoações, ou individualmente
em tojdo o tempo.
Na vida de algumas tríbus as grandes caçadas são sempre
motivo de grande regosijo e muito antes da sua realização teem
elas sido discutidas e preparadas.
O soba ou autoridade gentílica que tem jurisdição na região
onde ffe pretende levar a efeito a caçada, escolhe o local e nas
vésperas anuncia-a aos povos circunvisinhos.
No dia escolhido vão os caçadores colocar-se nos seus postos,
cercando o vasto campo de capim seco pelo lado oposto àquele
em que se começa a queimar. Tudo a postos, procede-se à ceri-
mónia de lançar o fogo ao capim ; a língua de fogo avança e
espaçados começam a ouvir-se os primeiros tiros sobre a caça
que espavorida foge. As chamas atingem rapidamente grande
DE ANGOLA 541
incremento, e o entusiasmo cresce; e, emquanto a linha de fogo
caminha vertiginosamente, os caçadores, envolvidos em espessos
rolos de fumo, sob os raios ardentes do sol e das lavaredas das
chamas, em uma berraria infernal, desfecham sem interrupção as
suas armas, ferindo-se uns aos outros e a caça que meia cha-
muscada pretende escapar-se ao apertado cerco de fogo. As
lavaredas vão extinguindo-se, o fogo dos caçadores começa a
fraquejar até de todo cessar, e aqui e àlêin estrebucham as peças
de caça que à cacetada se acabam de matar; a caçada está ter-
minada, dando-se começo à divisão da caça.
#
O Negro actualmente pesca muito mais do que caça, visto o
peixe constituir o alimento de que mais fazem consumo depois
dos vegetais.
A pesca é exercida em toda a costa e rios da província,
variando os processos adoptados conforme as circunstâncias.
Na costa, e em pequenas profundidades, adoptam os indígenas
uma espécie de redes de arrasto, umas que suspendem das suas
canoas (Cabinda) e outras com que fecham um cerco e depois
arrastam para a praia. Em grandes profundidades pescam ao
anzol.
Nos rios e lagoas empregam : as sebes no tempo das cheias
para reter o peixe quando as águas descem; uma espécie de
covos de vários tamanhos e feitios; a tarrafa e outras redes que
atravessam nos pequenos rios. No exercício deste mister usam
os indígenas as suas tradicionais canoas, feitas de um tronco de
mafumeira (Eriodendrom aufractuosum) escavado interiormente
e que exteriormente descascam e dão a forma de um charuto;
para lhe aumentar a estabilidade usam alguns Mussurongos
unir duas canoas.
Não obstante ser este tipo de canoa o mais empregado,
encontra-se um outro construído da casca de uma árvore especial,
que descrevemos ao tratar das tríbus Ganguelas, e ainda na
parte da costa entre Benguela Velha e Egito, vê-se um tipo
sui generis de embarcação, quási que especialmente usado pela
tríbu de pescadores Mussumbe, construído de troncos muito leves
de um arbusto (Hermineira claphroxilum) que cresce na foz de
alguns rios, e que reúnem e atam fortemente com fibras vegetais,
542 POPULAÇÕES INDÍGENAS
em forma de leque, constituindo umas pequenas chatas onde
sentado em uma táboa só pode embarcar um tripulante.
Estas chatas, conhecidas pelo nome de bimbas, fazendo água
por todos os lados, não correm o risco de se afundarem, visto
se conservarem à tona de água, mas não livram o tripulante de
um banho ou pelo menos de, emquanto está no mar, ter água
pelas pernas.
Continuando a passar em revista os misteres e ocupações dos
indígenas da raça Negra, não devemos esquecer as industrias a
que se dedicam, começando pela de artefactos de verga e palha,
exercida mais ou menos por todos os povos da província, fabri-
cando os objectos de que necessitam para seu uso, e entre algumas
tríbus, como os Mussurongos, produzindo cestos de vários ta-
manhos e feitios, esteiras, etc, destinadas ao comércio.
Nesta indústria, como em outras, àlêm de usarem no fabrico
os modelos tradicionais, com facilidade imitam os modelos euro-
peus ou outros que se lhes apresentem.
De fibras vegetais fabricam toda a espécie de cordas e atilhos.
No que diz respeito a tinturaria, empregam-na no fabrico de
artefactos de verga e palha, e para tingir os panos, etc. As
cores predominantes são o preto e vários tons entre o vermelho
viro ao roxo, cores que obteem de várias espécies vegetais, de
que a mais vulgar é a tacula, e de barros em cuja composição
entra o kaolino, a limonite, a hematite, etc.
Todos os indígenas da raça Negra mais ou menos fabricam
louça de barro procedendo uns à sua cozedura a fogo brando,
em buracos feitos no chão e ainda outros simplesmente, secando-a
exposta ao sol.
Preparam as peles de toda a espécie de animais, umas de que
se servem para vestuário ou insígnias de autoridade, outras para
o comércio.
Com o simples auxílio das suas usuais facas trabalham a
madeira, produzindo toda a espécie de objectos de uso comum
desde o tosco manipanço do Congo aos artísticos bastões, cadeiras
e bancos, com figuras alegóricas, scenas obscenas e de adultério,
e reproduzindo adágios.
Sobre o fabrico da farinha é ela feita pelas mulheres e por
trituração com o auxílio do pilão ; um grosso tronco, e coió-
DE ANGOLA 543
cando-se o grão que se deseja reduzir a farinha em uma cavidade
escavada em outro tronco ou uma pedra.
Das indústrias exercidas pelos Negros a mais importante é a
de trabalhar o ferro.
Não conhecemos tradições ou lendas que nos elucidem como
os indígenas da raça Negra tiveram conhecimento do ferro,
visto que todos são unânimes em dizer que os seus antepassados
já o conheciam, das terras de onde vinham, fazendo já uso dele
quando invadiram a província.
Para as inúmeras aplicações que fazem do ferro, ou o extraem
do minério em pequenos fornos, nas regiões onde ele existe, ou
aproveitam os arcos de pipas, aros que seguram os fardos das
fazendas, etc.
A forja é constituída por uma grande pedra com a face
superior lisa, onde se faz a combustão, e um fole construído de
um tronco grosso, desbastado, em que uma das extremidades
tem duas excavações semelhantes aos pratos de uma balança,
que comunicam por um pequeno furo com uma outra que tem a
forma das ventas de porco. A cada uma das referidas excavações
adapta-se uma pele muito macia, que as cobre como se fossem
válvulas, e a que está ligada uma pequena vara. A outra extre-
midade é ajustada à boca de uma campânula de barro que se
mete no carvão.
Assim, basta pôr em movimento, por intermédio das pequenas
varas, alternadamente um e outro fole, para se produzir uma
contínua corrente de ar sobre o carvão incandescente.
No que diz respeito à tecelagem o processo é muito simples.
Sobre uma travessa colocada .horisontalmente ao alto e fixa
sobre uma paralela inferior e móvel, dispõem-se os fios, uns ao
lado dos outros, em toda a largura que se pretende dar ao
tecido, e a começar de baixo para cima, vão dispondo-se outros
fios transversais, entre as duas ordens de fios verticais, que se
cruzam depois, fazendo passar entre elas umas réguas de ma-
deira com as arestas boleadas com que batem duas ou três pan-
cadas sobre o cruzamento dos fios verticais que apertam os
transversais, e assim seguidamente até se tocar na travessa su-
perior fixa.
A largos traços deixamos exposto os principais misteres e
ocupações dos indígenas da raça Negra, e se nos não referimos
aos Boschjman ao tratar das indústrias é por que desconhecemos,
por completo, que eles as exerçam.
CAPÍTULO V
DA VIDA INTELECTUAL
Se as manifestações por que se traduzem os actos da vida ma-
terial dos indígenas da província, não podem deixar dúvidas sobre
a mentalidade das populações indígenas da raça Negra, dão-nos
ao contrário indicação segura da falta, quási absoluta, da ca-
pacidade dos indígenas da raça Boschjman, para sobre eles tentar,
sequer, uma evolução dentro do quadro da sua civilização.
A raça Boschjman vencida e escravisada, levando uma exis-
tência apática na floresta, é uma raça que vai extinguindo-se
a olhos vistos, exgotando-se como a terra, que sujeita invaria-
velmente ás mesmas culturas se torna estéril e esquiva; é uma
raça condenada a desaparecer num praso de tempo relativamente
curto e de que nada temos a esperar.
Outro tanto não sucede com os indígenas cia raça Negra, a
quem não pode negar-se faculdades intelectuais, não obstante
opiniões em contrário de alguns investigadores.
Na verdade, são aquelas opiniões filhas de observações leva-
das a efeito sobre os Negros semi-civilizados, tendo assimilado
todos os inconvenientes e a parte defeituosa da sua imperfeita e
falsa civilização que se lhes teem consentido assimilar e que por
forma alguma nos podem dar uma verdadeira e nítida compre-
ensão da sua capacidade intelectual. As observações teem de
ser levadas a efeito sobre o Negro que ainda não sofreu a acção
da influência daquela civilização, o espécimen da criação natural.
Se assim se proceder, não será necessário recorrer a argu-
mentos inverosímeis para reconhecer ao Negro capacidade não in-
ferior ao nosso sertanejo do Alemtejo, e para concluir que o
atrazado grau da sua civilização é devido mais ás condições so-
ciais, políticas e climatéricas, do que à fisiologia e pessoal inca-
pacidade do Megro.
546 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Temos a convicção que, abandonando o preto a si próprio,
êle não estacionaria e desenvolveria uma civilização apropriada
ao génio e caracter da sua raça e acomodada ao meio em que
vive.
Parece, pois, que seria o natural, e para desejar, tanto mais,
que foi assim que a evolução se fez lios outros povos do mundo.
Não podem, porém, as nações civilizadas abandonar aos seus
próprios meios e recursos as raças inferiores, compete-lhes pro-
tegê-las, auxiliá-las e encaminhá-las para poderem resistir ás
influências da civilização europeia e, atendendo, ás condições e
exigências do comércio e indústria, mais lhe compete, adoptar
medidas apropriadas no sentido de acelerar a sua evolução den-
tro do quadro da sua civilização.
Os processos que nós e todas as nações com domínios em
Africa, temos adoptado naquele sentido, mostram, pelos resulta-
dos obtidos, que não corresponderam ao fim altruista em que
foram inspirados.
Entenderam as nações coloniais que a instrução literária cons-
tituía só por .si a mais possante alavanca de que poderiam dis-
por para realizar a sua obra colonial, como valor educativo,
desenvolvendo a inteligência, formando caracteres e ter uma
acção moralizadora.
Nesta ordem de ideias, para as suas colónias africanas trans-
plantaram as nações coloniais os seus métodos de ensino metropo-
litano, como sendo os mais apropriados para realizar a transfor-
mação do Negro e, animadas pelo acolhimento que tais processos
tiveram por parte dos indígenas acorrendo ás escolas, segundo
eles, regularam as instituições de instrução.
Os factos encarregaram-se de demonstrar quanto errada foi
aquela orientação ; na província de Angola temos o exemplo fri-
zante, com a acção secular de jesuítas orientada naquele sentido,
não conseguindo criar uma sociedade estável e dando logar ao
tipo bem conhecido missionary-made man de Reinsch : «vestido à
europeia e mostrando com orgulho uma tintura de instrução à
inglesa, os nativos civilizados pavoneiam-se pelas povoações da
costa, desprezando o trabalho manual e os costumes da sua
raça».
Compete pois a Portugal — e na província de Angola o esbo-
çou o governador Norton de Matos — limitar a acção da ins-
trução literária e consequentemente os resultados que dela podem
advir.
DE ANGOLA 547
Aqueles que a seu cargo teem a direcção da evoliu-ão intele-
ctual dos indígenas, devem limitar-se a procurar que estes últi-
mos se transformem em nossos colaboradores, ensinando-os a tra-
balhar de acordo comnosco, desenvolvendo a nossa influência,
difundindo os nossos inventos, e assim, concorrendo para o en-
grandecimento e para a fusão dos interesses.
Afim de guiar o desenvolvimento da nossa influencia, é abso-
lutamente necessário aumentar as relações entre administradores
e administrados, facilitar os seus contactos, e difundir tanto
quanto possível o conhecimento da língua portuguesa. E, ao
mesmo tempo, ensinar-lhes uma arte ou ofício uma profissão ma-
nual, o trabalho da terra, da madeira, da pedra ou dos metais,
conforme as localidades e a índole dos seus habitantes.
Para conseguir este programa, a instrução deve ter um cara-
cter essencialmente utilitário e ao mesmo tempo prático. Que a
escola seja mais uma oficina do que uma escola, onde se ensine
juntamente com a língua portuguesa um ofício, uma profissão, o
trabalho rural, criando operários e agricultores, e preparando
obreiros capazes de nos secundar utilmente na parte técnica da
nossa obra.
I. — Da linguagem
Não temos a pretensão de apresentar um trabalho linguístico
acerca das populações de Angola; para tal não temos competência,
nem semelhante estudo se nos pode exigir, como Secretário dos
Negócios Indígenas, por quanto demanda êle de um estudo atu-
rado que, a ser levado a efeito, absorveria todas as nossas ener-
gias, em prejuízo dos outros serviços que nos estão incumbidos.
A Secretaria dos Negócios Indígenas compete promover, coli-
gir e compilar trabalhos desta natureza ; mais do que isto será
meter foice em seara alheia.
Nesta ordem de ideias temos procedido e para aqui trazemos
o resultado a que chegamos.
A linguística esclarece-nos sobre a origem e afinidade dos
povos que hoje ocupam a província, e, se não possue todos os
elementos para a determinação, caracterisação e classificação
das raças e tríbus, é certo que os materiais étnicos e anatómicos,
e todas as investigações a que nos conduzem os estudos antropo-
lógicos, a podem subministrar.
Assim, a linguagem caracteriza e define, não só cada uma
das raças que povoam a província, como igualmente, cada tribu,
548 POPULAÇÕES INDÍGENAS
e ainda agrupamentos de tríbus com pequenas variações foné-
ticas.
Em Angola encontramos dois grupos de línguas completa-
mente distintas; o das linguas falada pelos Boschjmanes e o das
linguas Bantu.
O principal dialecto que falam os Boschjmanes parece ser uma
simples variação do hotentote, caracterizada, pelo jogo dos sufi-
xos, isto é, a indicação das relações gramaticais no fim das pa-
lavras, e pelo predomínio das guturais.
A estas características que separam e isolam a língua dos
Boschjmanes da falada pelas tríbus da raça Negra, temos a ajun-
tar o clique, um estalido singular da língua, produzido pelo
jogo deste órgão contra o véo palatino no fim das palavras ou
cortando-as.
As línguas Bantu faladas pelos indígenas da raça Negra, em
que os elementos se justapõem e aglutinam, estão no período
denominado de aglomeração ou aglutinação, isto é pertencem ao
tipo das línguas aglutinantes, e são caracterizadas principalmente
por carecerem do géneros gramaticais e de flexões desinenciais
para os nomes e verbos, isto é, são línguas assexuais e prefixais
ou inflexivas.
A chave da construção nestas línguas está no emprego de
prefixos, que, conjuntamente com pronomes de referência aos
nomes e pessoas gramaticais, substituem com vantagem as flexões
nominais e verbais.
A determinação do sexo faz-se, pospondo ao nome comum
aos dois sexos o substantivo macho ou fêmea, ligado ao primeiro
em género equivalente ao do genitivo.
Para plantas e objectos inanimados não ha especificação gra-
matical genérica ou sexual imprópria.
A unidade das línguas Bantu faz delas um grupo perfeitamente
definido, homogéneo, de origem própria e marcha autónoma.
Assim, a unidade das línguas Bantu, é representada, quanto
à fonética, na susceptibilidade de todas poderem ser represen-
tadas pelo mesmo alfabeto, salvo pequenas excepções na exclusão
de grupos de consoantes, na terminação vocálica de todas as
sílabas, etc, quanto à morfologia e sintaxe, na identidade de
processos na formação dos possessivos e demonstrativos, deri-
vação dos nomes verbais e sua conjugação, etc, quanto ao paren-
tesco, no vocabulário e plano gramatical.
As línguas Bantu são representadas em Angola : pelo Kicongo
d e:
«ANGOLA-
Escala
-l/jÇ*w;ya y<
DE ANGOLA 549
e seus dialectos, falado pelos povos que povoam as regiões ao
norte da província que aproximadamente teem por limite sul
uma linha seguindo os cursos do rio Lifune a oeste e do rio
Cambo a leste, e entre as nascentes destes rios a linha divisória
das águas: pelo Kinbundu e seus dialectos, falado pelos povos
que ocupam as regiões estendendo-se para o sul entre os limites
acima indicados e aqueles que de oeste para leste seguem o curso
do rio Cuvo e o seu afluente Cupache, o Cuilo, afluente do Cu-
tato e este último até à sua confluência "com o Cuanza, o rio
Luando, inflectindo-se para o sul, correspondente aos territórios
ocupados pela tríbu Quioco, e vindo acompanhar o curso do rio
Luena; pelo M'bundu e seus dialectos, falado pelas tríbus Bim-
bundu ; pelo Ganguela e seus dialectos falado pelas tríbus Ganguela
e Mucusso; pelo Onyaneka e seus dialectos, falado no planalto da
Huila; e pelos dialectos do Herrero falado pelas tríbus N'Ctuba
e Cuangar.
Em uma análise mais detalhada das afinidades das diversas
línguas faladas pelos Negros, não será difícil reuni-las em três
grupos : No primeiro grupo, podemos incluir o Kicongo e o
Kimbundu; no segundo grupo, o M'bundu e o Onyaneka; no
terceiro grupo, o Ganguela e os dialectos do Herrero.
Assim, a conclusão a que fomos levados pelas afinidades das
línguas faladas pelos povos da província, confirmam aquelas a
que chegamos, quanto à sua origem, isolando a raça Boschjman,
arborigem da província e agrupando as populações indígenas da
raça Negra em três grupos, correspondentes, o primeiro, às inva-
sões por norte e nordeste, o terceiro, às invasões de sul e sudeste,
e o segundo, ao produto de fusão de povos daquelas invasões.
II — Das artes
O estudo das artes constituiu, em todos os tempos, um dos
melhores elementos para definir e caracterizar o grau de civili-
zação e cultura dos povos.
O estudo da linguagem falada pelos povos da província, posto
em destaque na secção anterior, por virtude da sua excepcio-
nal importância, pôs bem em relevo a sua importância, pela
forma como contribui para esclarecer a origem das raças e tribus
e portanto para as definir com precisão.
E, se o estudo da linguagem definiu e extremou as duas raças
indígenas que povoam Angola, as outras artes por eles cultivadas
550 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mais acentuam a grande distância que as separa, porquanto, se
entre os Negros algumas constatamos, entre os Boschj manes des-
conhecemos que se cultivem as mais rudimentares.
As artes que os indígenas da raça Negra cultivam com mais
persistência e aquelas que merecem especial mensão, são : a
dança, o canto e a musica.
Com efeito, no que diz respeito à arte de escrever, quer, por
meio de sinais convencionais, marcas, incisões em madeira ou
em pedra, quer por desenhos, reprodução gráfica dos objectos
em mente ou emprego de sinais, representando ideias ou pala-
vras, pode bem dizer-se que não existe, porquanto, é ela repre-
sentada, pelas marcas ou sinais que os indígenas sem carácter
permanente costumam fazer nos cruzamentos dos caminhos, para
indicar aos que os precedem aquele que seguiram, e pelos sinais
dados com toques em tambores com o auxílio dos quais conseguem
a grande distância falar e transmitir notícias.
Outro tanto diremos com relação à pintura que, entre as tríbus
em que existe é rudimentaríssima e se reduz na aplicação às pa-
redes barreadas das cubatas de barros coroados e a uns toscos
desenhos, em geral, figurando pessoas e animais fantásticos.
Já assim não sucede com a escultura, que não obstante rudi-
mentar, se constata em trabalhos executados em pontas de marfim,
em hastes de boi bravo, nos manipanços e em outros grotescos
baixos relevos das portas ou hombreiras, feitos simplesmente
com o auxílio das suas facas, representando figuras humanas,
jacarés, etc.
No entanto, as artes que os povos da raça Negra cultivam
com persistência e até mesmo com frenesi, são como já dissemos,
o canto, a musica e a dansa.
Intimamente ligadas e subordinadas ao canto, a dansa e a
música são qualquer delas monótonas.
O canto consiste quási que exclusivamente em uma espécie
de recitativo, uma sucessão monótona de uma a três ou pouco
mais notas, repetidas em coro por diversas vozes em tons dife-
rentes.
No sul da província, porém, encontramos cantos de guerra,
de caça e as tristes e doces melopeias dos Gambos.
Os instrumentos de música usados, como vimos, são varia-
díssimos, mas rudimentares, compreendendo instrumentos de
corda, poucos de sopro e sobretudo de pancadaria que muito
apreciam.
DE ANGOLA 551
A dança é, como o canto, monótona e é constituída pela repe-
tição indefenida de passos e movimentos semelhantes e cadencia-
dos ; o seu principal caraterístico é ser caricata e excessiva-
mente lúbrica.
O canto, e sobretudo a dança constituem a principal distracção
dos indígenas da raça Negra, e são a forma de assinalar e vin-
cular os actos mais importantes da vida dos indígenas, os sacri-
ficios oferecidos pelo nascimento, pela iniciação, pelo casamento,
pela morte, pela posse ou elevação ao trono de uma autoridade
gentílica, e por tantos outros, de que o canto e a dança são com-
plementos indispensáveis, e que, em determinadas tríbus são
adequadas a cada um deles.
Assim, pois, se é de todo inconveniente adoptar medidas no
sentido de alterar os usos e costumes, em tudo que não brigue
com os princípios humanitários, não devemos igualmente modi-
ficar os processos tradicionais consagrados a assinalar ou tornar
público aqueles mesmos usos e costumes.
O facto é que o indígena, desconhecedor, ou melhor talvez,
sem querer saber dos resultados que lhe podem advir da violenta
excitação e do cansaço da forma como exerce a dança, dá logar
à satisfação dos seus prazeres, e em noites seguidas, com um
louco frenesi, dansa até cair extenuado.
Como medida de protecção compete-nos intervir, adoptando
medidas no sentido de evitar os inconvenientes acima apontados,
reduzindo o número de dias consagrados a vincular os actos mais
importantes da sua vida para cada consagração ou festa e limi-
tando o número de horas de cada dia (*).
III. — Das sciências
Não podemos negar aos indígenas da raça Negra conheci-
mentos scientíficos, não obstante os ponhamos em dúvida para
as tríbus da raça Boschjman.
Cremos bem que a noção errada de negar aos indígenas da
raça Negra conhecimentos scientíficos, só pôde advir da forma
como se encara o assunto, pondo em confronto os conhecimentos
dos Negros com os das raças civilizadas. Só assim se explica
que semelhante afirmação tenha tido curso, não atendendo ao
(i) Vide Apenso XX.
552 POPULAÇÕES INDÍGENAS
grau de civilização em que os povos daquela raça se encontram,
e consequentemente, a não nos restringir a apreciar as diversas
manifestações que nos traduzem os seus conhecimentos sciêntí-
ficos.
Para avaliarmos da importância dos conhecimentos sciêntífi-
cos dos povos da raça Negra, e mostrar que alguma coisa repre-
sentam, não os devemos pôr em confronto com os das raças
civilizadas, confrontemo-los, por exemplo, com os da raça Bos-
chjman.
Esse confronto temos vindo a fazer neste capítulo e por êie
se constata uma tão grande superioridade para a raça Negra
que quási a podiamos classificar de civilizada em relação aos
Boschjmanes.
O primeiro colono europeu que pôz o pé em África encontrou
já o Negro construindo a sua habitação por forma a não poder
negar-lhe conhecimentos apreciáveis sobre construção ; não lhe
podia passar desapercebido que êle não tivesse conhecimentos
sobre a manufactura dos tecidos que usava e de todos os uten-
sílios que necessitava, quer para uso doméstico, quer para agri-
cultar as suas lavras; viu-o caçar e pescar com aparelhos, que
denunciavam outros tantos conhecimentos, e constatou que êle
também os tinha sobre algumas culturas.
Aqueles que põem em dúvida os conhecimentos sciêntíficos
dos Negros esquecem ou desconhecem que, talvez, a grande maio-
ria de colonos europeus que por África mourejam, se familiari-
zaram com alguns dos processos usados pelos Negros na cultura
e tratamento de determinados produtos, e em outros que nos
revelam conhecimentos sciêntíficos, o que nos fornece um pre-
cioso argumento em favor da nossa tese, por nos mostrar que
os conhecimentos dos Negros não podem ser postos em dúvida,
nem são tão para desprezar, que não sejam aproveitados pela
grande maioria dos colonos europeus.
.Tivemos ocasião de vêr no estudo etnográfico que, àlêm do
que aqui fica exposto, quási todos os indígenas da província
teem noções sobre astronomia, divisão do tempo, matemática, e
que sobre conhecimentos de náutica se distinguem os Cabindas,
Mussorongos e Mussumbes.
De todas as manifestações da vida do Negro, o tratamento
das suas doenças, é, no entanto, aquele que melhor nos eviden-
ceia e personaliza o valor sciêntífico dos seus conhecimentos.
As crenças dos Negros baseiam-se em circunstâncias mera-
DE ANGOLA 553
mente fortuitas, sem relação alguma com os acontecimentos de
que se sUpõe que elas são o pronuncio, sendo por esse facto a
superstição um sentimento religioso, e as causas de todos os seus
males, ainda os mais insignificantes, atribuídos ao descontenta-
mento dos espíritos dos seus parentes, amigos ou inimigos, fale-
cidos, por qualquer acto por eles praticado e que lhes desagrada,
e à má vontade dos seus ídolos, e aos malefícios dos feiticeiros.
Assim, quando adoece alguém, trata-se logo de averiguar a
causa, para, ao mesmo tempo que se aplacam as iras dos descon-
tentes ou se descobrem os feiticeiros, se aplicar ao doente os
remédios apropriados.
Temos pois, no tratamento das doenças, duas partes perfei-
tamente distintas, a que constitui a averiguação da causa da
doenya e o seu diagnóstico, e aquela que consta propriamente
do seu tratamento.
Em muitas tríbus da raça Negra— talvez na maioria — cada
urna daquelas duas partes é função de uma determinada enti-
dade— o adivinho para a primeira e o curandeiro para a segunda
— tomando vários nomes para cada uma delas, e até nomes es-
peciais conforme a doença, ou designadas por um nome comum.
Noutras tríbus as funções de adivinho e curandeiro são atri-
butos de um mesmo indivíduo.
Em qualquer dos casos, a parte que constitue propriamente
o tratamento da doença, subdivide-se em duas : a primeira, ope-
rando por sugestão e com o auxílio de práticas de magia, e que
constitui uma espécie de preparação, imperando sobre o espírito
do doente de forma a bem receber o que propriamente constitui
o tratamento; a segunda, a que se passa, só quando o curandeiro
reconhece estar seguro da vontade do paciente, e que constitui na
aplicação dos remédios e mezinhas.
Se a primeira parte em que se subdivide o tratamento das
doenças nos mostra que os Negros, por intuição, não desconhe-
cem os processos, de que a medicina moderna tão largamente
lança mão, e que operando sobre o espírito do doente constituem
meia cura, a segunda parte, a aplicação do seu receituário, tirado
na grande maioria da flora, constitue só por si o bastante,
para que não possamos negar ao Negro conhecimentos scientí-
ficos.
Destes seus conhecimentos fazem os profissionais segredo
quási que absoluto, sendo dificil neste sentido apanhar-lhes qual-
quer informação, respondendo por evasivas ou erradamente, e,
36
554 POPULAÇÕES INDÍGENAS
se às vezes mais ou menos forçados por reconhecimento os apli-
cam a europeus, fazem-no de forma a esconderem a origem do
medicamento.
Não obstante a relutância do Negro por dar a conhecer as
plantas de que tira os seus medicamentos, possuímos uma rela-
ção de um número avultado de plantas empregadas pelos indí-
genas no tratamento das doenças, e que aqui não incluímos por
lhe não conhecermos senão o nome gentílico.
Citaremos por exemplo : as raizes da ?nunhanoca (Cássia occi-
dentalis) e de mulemba (Ficus psilopoga), e a casca de mulolo
(Bauhinia reticulata) e de iríbulambia (Psorosperum fébrifugum)
usadas para combater a febre ; a casca e raiz de molungo (Ery~
trina suberifera), as raizes de jile (Tiliacora chrysobotrya) e de
mvk-óko (Cissampeloos Parideira) para a sífilis ; a infusão de fo-
lhas de kalusangue (Pencedanum fraxinifolium) nas tosses e
doenças de peito ; cabeia (Xilopia aethiopica) e as sementes de
jipepe (Monodora myristica), como tónicos e estomacais ; estas
últimas plantas, o jile, as raizes da mangueira (Mangifera indica)
e de mulemba (Ficus psilopoga) nas disentrias e suas complica-
ções; cosimentos de casca de kalusangae (Pencedanum fraxini-
folium) e raizes de mangueira nas cólicas; a casca de mulolo
(Bauhinia reticulata) e cosimentos de raizes de mulemba (Ficus
psilopoga), no tratamento de feridas e úlceras; etc. . .
Ainda sobre o tratamento de doenças, e em especial sobre as
entidades a quem, entre os indígenas, está confiado aquele tra-
tamento, não desejamos dar como terminadas as nossas conside-
rações, sem observar que este assunto, pela sua excepcional
importância, não deve passar desapercebido aos legisladores.
De facto, como proceder com as entidades indígenas que
interveem no tratamento das doenças ?
Deve dar-se àquelas entidades liberdade plena para exer-
cerem o seu mister ?
Deve restringir se, e como? Chamando-os a cooperar com-
nosco?
Seria talvez o mais lógico, mas por certo o menos viável na
prática.
Entendemos que só com um conjunto de medidas apropriadas
podemos chegar a resultados práticos.
Com efeito, a repressão das práticas empregadas no trata-
mento das doenças dos indígenas, e consequentemente a proibi-
ção do exercício ilegal de adivinhos e curandeiros, por si só,
DE ANGOLA 555
terá como resultado uma perturbação grande na vida dos indí-
genas.
Mas como ela tem inevitavelmente de ser levada a efeito, a
única forma de evitar maior perturbação será mandar proceder,
por uma missão, ao estudo das plantas medicinais aplicadas
pelos indígenas, ao mesmo tempo que dotando-se a província
com uma modelar reorganização dos serviços de saúde se possa
dar cumprimento integral ás disposições em vigor sobre assis-
tência indígena (*), isto é, podermos garantir com vantagem para
o indígena a substituição dos curandeiros pelos nossos médicos
e enfermeiros, tendo em vista na aplicação dos medicamentos
aqueles tirados da flora da região, para assim inspirar confiança
aos indígenas.
Não podemos pois, de no projecto do Código de Justiça In-
dígena, deixar de incluir as medidas de repressão que devem
ser tomadas com relação a curandeiros e adivinhos, por que
isso se nos impõe, como um dever de Nação colonial com respon-
sabilidades na civilização dos povos que domina, mas repetimos
que, a não ser esta medida contrabalançada com outras como
indicamos, os resultados serão absolutamente nulos.
IV. — Das faculdades intelectuais
As faculdades intelectuais, função do modo de actividade do
cérebro e produto das suas manifestações exteriores, constituem
um caracter étnico que não pode deixar de ser tomado na devida
consideração para o estudo das raças.
A análise das faculdades intelectuais de uma raça ou tríbu é
sempre difícil, por que ao fazer-se tem de ser considerada a
distinção das faculdades intelectuais próprias, pertencentes à
raça e ao indivíduo, e aqueles que provêem da educação e da
acção do meio exterior.
Não pode ser contestado que a feição das manifestações ex-
teriores do cérebro e portanto dos caracteres intelectuais, per-
sistem através dos tempos, como os caracteres físicos ; as impulsões
inerentes à matéria cerebral são tão tenazes, que, não obstante
a educação e a civilização, resistem mesmo aos cruzamentos.
Mas, o que igualmente não sofre dúvida, é que a educação e a
(') Vide Apenso XXII.
656 POPULAÇÕES INDÍGENAS
civilização, tem sobre as faculdades intelectuais uma acção evo-
lucionadora perfeitamente demonstrada por factos, variando o
seu modo de ser, consoante a faculdade de apropriação dos in-
divíduos sobre quem recai e da forma como é exercida.
No que respeita ás duas raças que povoam a província, e no
tocante aos indígenas da raça Boschjman, não manifestam estes,
pelos traços da sua fisionomia ou nos actos da sua vida, possuir
a menor parcela de inteligência, vivendo em uma indiferença a
mais absoluta, e não se preocupando senão em beber e comer.
E, tão convicto estamos da ausência de faculdades intelectuais
no Boschjman que lhe negamos um dos caracteres considerados
pelos antropologistas, como comuns ao homem — a faculdade de
assimilar e portanto de evolucionar — e simplesmente lhe reco-
nhecemos a de imitação.
Outro tanto não diremos com relação ás faculdades intelectuais
do Negro, por que as possui e são constatadas por todos os actos
e manifestações da sua vida.
Por certo é a memória a faculdade intelectual que mais desen-
volvida se encontra entre os indígenas da raça Negra, e que em
alguns chega a ser prodigiosa, na reprodução fiel de tradições que
de geração em geração vêem sendo transmitidas.
Pelas tradições e lendas que contam, dão-nos igualmente a
conhecer a larga imaginação que possuem, reconstituindo histó-
rias e scenas transcendentes em que figuram seres fantásticos,
produto da sua fértil imaginação.
São observadores, não lhes escapando o mais pequeno detalhe;
mas na observação são dissimulados, talvez como precaução e
como meio de defeza.
Só quem não tenha assistido ás suas polémicas e aos seus
julgamentos, lhes pode negar raciocínio, quer servindo-se da
comparação, do exemplo, e dos argumentos em apoio, quer so-
bretudo do dilema.
Não lhes podemos negar a faculdade de invenção, mas são
pouco previdentes.
Dotados das faculdades intelectuais que deixamos expostas,
os indígenas da raça Negra teem uma facilidade extrema em
assimilar, e de se desenvolverem intelectualmente, o que, apro-
veitado por uma acção constante, progressiva e por étapes su-
cessivas, garantirá a sua evolução.
A nossa acção naquele sentido — e quando dizemos nossa
referimo-nos a todas as nações com domínios no ultramar — tem
DE ANGOLA 557
sido quási nula e até contraproducente, como já tivemos ocasião
de referir neste capítulo, por quo se tem traduzido isoladamente
e sobretudo por uma forma brusca, provocando não a evolução
natural e progressiva da raça, mas sim, uma forçada aceleração
na evolução intelectual de alguns indivíduos que constituem um
tipo esporádico, que a todos, brancos e a indivíduos de côr
assimilados a europeus, convêm estirpar por completo do meio
social, não tornando possivel o aparecimento de novos produtos
desta espécie.
E, para conseguir esse desideratum, insistimos que, a ins-
trução deve ter um caracter essencialmente utilitário e ao mesmo
tempo prático. . .
Que a escola seja mais uma oficina do que uma escola, onde
se ensine juntamente com a língua portuguesa, um oficio, uma
profissão, o trabalho rural, criando operários e agricultores, e
preparando obreiros capazes de nos secundar utilmente na parte
técnica da nossa obra.
Assim a preocupação constante do Governo da Província tem
de ser de criar operários, criar agricultores, instituindo em cada
concelho, circunscrição ou capitania mór, escolas em que se en-
sine juntamente com a língua portuguesa, com a leitura e escrita,
com as quatro operações e com o sistema de pesos e medidas,
uma arte, ou um ofício uma profissão manual, o trabalho da
terra, o trabalho da madeira, da pedra, ou dos metais, conforme
a índole dos seus habitantes; escolas dotadas de um regimen
semi-internato, a que se atraia o indígena por uma pequena
remuneração, ou melhor talvez, por meio de uma ou duas re-
feições de géneros da terra, de modo a não tentar arrancar,
sequer, o indígena ao meio social a que pertence, onde é mister
que se conserve, melhorando-o e aperfeiçoando-o cada vez mais.
Eis as bases sólidas em que deve assentar a instrução que
preconisamos para os indígenas de Angola (l), como sendo aquela
que, difundindo- se por toda a província, pelos seus processos e
a par e passo, melhor concorrerão para a evolução da raça Negra.
O ensino profissional assim instituído, completar-se há com
aquele que se deverá subministrar nos estabelecimentos de cor-
recção e de tutela a que já nos referimos, cujos resultados não
se farão esperar.
(') Vide Apenso XVII.
CAPITULO VI
DA VIDA RELIGIOSA
Segundo o modo de ver dos mais exigentes em matéria reli-
giosa, a maioria das manifestações do sentimento religioso dos
indígenas não devem passar de ser consideradas senão como
crenças, atribuindo-lhes os mais condescendentes a significação
de culto.
Assim não o entendemos, porquanto, se o conjunto de crenças
e cultos dos indígenas não constituem uma religião definida, tal
como costuma conceber-se, constituem, no entanto, uma forma
religiosa que ainda que grosseira, é a base fundamental sobre
que gira a vida dos indígenas.
Nesta ordem de ideias atribuímos aos povos indígenas de
Angola a primeira forma religiosa bem caracterizada e que se
manifesta no feiticismo — o conjunto do crenças e manifestações
pelas quais o indígena considera e interpreta o sobrenatural —
traduzido no culto das pedras, dos vegetais, dos animais, das
águas, do fogo, do vento, dos astros, dos chifres, das conchas,
dos dentes, de ídolos e feitiços e de objectos de toda a espécie;
e ainda, no culto dos espíritos, na veneração dos manes, na crença
em uma vida futura e na persistência da personalidade depois
da morte.
O feiticismo, apresenta-se, porem, com vários graus. Ao passo
que os habitantes das florestas, aterrorizados pela pujança das
manifestações da natureza, praticam o feiticismo na sua essência,
rendendo um culto bárbaro a todos os objectos que para eles
representa o perigo, o desconhecido e o imprevisto, outros são
monoteistas, e teem por vezes concepções religiosas elevadas.
Quer num, quer noutro caso, os sacerdotes destas religiões,
essa horda de exploradores, constituída pelos adivinhos e feiti-
ceiros, usando e abusando da grande preponderância que, pela
560 POPULAÇÕES INDÍGENAS
astúcia, pela mentira e pela brutalidade, conseguem ter sobre a
população indígena, exercem a mesma deplorável influência sobre
a mentalidade das pobres criaturas que exploram.
Não obstante, a opinião em contrário do Ex.mo Sr. Dr. Cunha,
de que o Boschjman não é feiticista, transcrita na segunda parte
deste trabalho, cremos, que dentro da lata definição de feiticismo
cabem as manifestações do sentimento religioso de todas as po-
pulações indígenas de Angola.
E, assim o entendemos, por que a razão apresentada do Bos-
chjman não ser feiticista, por não fazer esculturas de espécie
alguma, não nos parece de ordem a excluir o Boschjman do
feiticismo, em face da sua definição, e a sê-lo, teriamos igual-
mente de excluir do feiticismo algumas das tríbus da raça
Negra, entre as quais se não encontra o feitiço representado
por esculturas.
O Boschjman é feiticista porque, oprimido entre as manifes-
tações da natureza que o rodeia e desconhece, crê no poder iso-
lador e preservativo, contra os seus males, de qualquer raiz,
fruto ou outro objecto.
O Boschjman crê na existência de génios justos e bons, um
habitando nos altos ares, presidindo ás estações, mandando nos
astros, etc, outro subterrâneo que de lá governa o mundo. A
par destes génios, crêem em outros, um habitando o ceu negro,
e outro nas mãos do qual está a vida e a morte do homem.
Quanto aos Negros não resta dúvida, que teem uma ideia
imperfeita e rudimentar do deus pai, o deus criador, uma força
suprema, invisível e criadora, que se manifesta aos olhos do
homem através do poder e da magestade dos elementos, que não
temem e não representam.
Encontra-se, pois, no Negro, a crença no ente supremo por
mais incerta, imperfeita ou obscura que ela possa apresentar-se
para nós; na certeza de que tudo o que ela transparece de sobre-
natural, que excede os limites da sua compreensão, é atribuído
à agência material dos poderes de um ser oculto designado por
um nome especial, que varia segundo a tríbu — Nzambi (nas
tríbus do norte que falam o Kicongo e Kimbundu), Saku (nas
tríbus Bimbundu), Hnkii (na tríbu Vanyaneka), Kalunga (nas
tríbus Guanguela e Banctuba).
Ao lado destas manifestações do sentimento religioso, o Negro
tem o culto pelos espíritos bons e maus, de natureza extra
humana ou almas dos antepassados ou dos feiticeiros que te-
DE ANGOLA 561
mem, por poderem exercer uma influência malfazeja, e que
servem, aplacando-lhes as suas iras por meio de oferendas ou
sacrifícios.
Esta predominante manifestação do sentimento religioso do
Negro é, pois, o de uma pura superstição, que o embaraça a
cada momento em todos os actos da sua vida. O Negro vive sem
cessar em uma atmosfera de terror, terror de tudo o que o rodeia,
dos seus antepassados, e dos espíritos ou almas dos mortos que
lhes falam por intermédio dos feitiços.
Nas culturas, na caça, preservando as parturientes, os recem-
nascidos e os noivos, na administração da justiça, emfim, em
todos os actos da vida dos indígenas, por mais insignificantes,
encontramos o feitiço. No norte da província, nos distritos do
Congo, Loanda, Cuanza e Lunda, representados pelos manipanços
ou toscas estatuetas, para o sul rareando até desaparecerem e
substituídas por diversos objectos, que em si encarnam algum
génio ou espírito poderoso.
O modo de ser destas manifestações do sentimento religioso
dá lugar à rendosa profissão dos que são encarregados das funções
religiosas, curandeiros, adivinhos e feiticeiros.
Ao estudarmos as manifestações da vida intelectual dos Negros,
na parte referente aos conhecimentos scientíficos cremos ter dei-
xado bem expressa a diferença entre as funções do curandeiro
e do adivinho e seu carácter religioso.
Feiticeiro é, em geral, o indivíduo que se julga possuir os
poderes ocultos suficientes para fazer o mal, e como tal con-
siderado o terror das populações indígenas da raça Negra ; no
entanto, algumas tríbus distinguem os feiticeiros prejudiciais, dos
bons, daqueles que teem poderes para contra-actuar e desfazer
os malefícios dos primeiros.
Muitas vezes os curandeiros e adivinhos são ao mesmo tempo
feiticeiros propriamente ditos, mas o mais vulgar é serem os
curandeiros também adivinhos, conforme indicamos no mencio-
nado capítulo da vida intelectual.
Assim é que às funções de curandeiro, adivinho e feiticeiro
andam intimamente ligados aos nomes de nganga entre as tríbus
do Congo e Lunda, ki?nbanda, entre as tríbus de Loancla e Cuanza,
tchimbanda, entre as tríbus de Benguela, vimbanda entre as tríbus
do planalto da Huila, etc.
As entidades encarregadas das funções religiosas gozam uma
situação preponderante entre as populações indígenas, de que
562 POPULAÇÕES INDÍGENAS
dispõem absolutamente e a seu bel-prazer, e intervindo em todos
os actos da sua vida.
Assim é que, a moral entre os Negros não tem outra base que
não seja o instinto, outra regra que não seja o direito do mais
forte, outro atributo que não seja o adivinho e sobretudo o fei-
ticeiro.
Com o direito sucede outro tanto.
A influência dos feiticeiros faz -se sentir nas relações sociais e
sobretudo no tocante à aplicação da justiça, quer satisfazendo um
sentimento de vingança pessoal, quer, pretendendo-se ser justo,
dando aos factos que lhes são submetidos uma solução conforme
a sua opinião, quer enfim fazendo pender a justiça para quem
melhor lhes pagar.
Perante a forma como se traduzem as manifestações do senti-
mento religioso dos indígenas, qual tem sido a nossa orientação
e atitude, e a das demais nações com domínios em África?
O trazer para África a nossa escola, considerando os nossos
métodos de ensino metropolitano como sendo os mais próprios
para preparar a evolução das raças indígenas, e, assim, admi-
tindo a instrução que lhes facultamos nas escolas do Governo e
aquela que consentimos lhe seja ministrada nas missões religio-
sas, como sendo a mais poderosa alavanca para o progresso na
escala da civilização.
A acção de qualquer destes estabelecimentos de ensino
é absolutamente condenável ; manifestando-se pelo desenvolvi-
mento acelerado, e certamente antecipado, da inteligência do
Negro, para o que, nem êle, nem o meio onde vive, estão pre-
parados.
E se, quanto à forma como a instrução laica é ministrada nas
escolas do Governo, já tivemos ocasião de nos pronunciar, clas-
sificando-a de inconveniente pelos resultados obtidos, quanto ao
ensino por intermédio das missões dos diferentes credos é êle
absolutamente condenável, pela forma menos racional e mais
imperfeita como encaminham o Negro.
O missionário, baseado em tradições espiritualistas e ritua-
listas, destinadas a cérebros e climas diferentes, não sabe mode-
lar os princípios moralizadores consoante o estado das sociedades
indígenas.
No estado actual do desenvolvimento dos povos da raça Negra,
não é possível substituir as crenças indígenas por qualquer das
religiões dos povos civilizados.
DE ANGOLA 563
«A razão principal ({) dessa grande dificuldade, mesmo em
relação às várias formas do cristianismo, reside no facto do fei-
ticismo ter para o preto um carácter essencialmente material,
dificil de substituir pelo carácter essencialmente espiritual de
quási todas as formas de religião de Cristo e totalmente impos-
sível, por agora, de substituir-se pelo carácter de pura abstração
que distingue a religião natural.
«A força enorme do feiticismo reside na confiança absoluta
que o indígena deposita no seu feitiço, que ele pode escolher
entre as diversas fórmulas da sua religião, apropriado a todas
as contingências de ordem material a que está exposto no decor-
rer normal da sua vida.
«O gentio armado com a protecção do feitiço que deve defen-
dê-lo de um determinado inimigo invisivel, mas cujas manifesta-
ções são sempre materiais, palpáveis, sente-se forte, adquire con-
fiança em si, por que tem uma arreigada fé em que esse feitiço
o defenderá nas conjunturas a que poderá expôr-se. Ele vê o
feitiço, sente-o, e com êle é capaz de arrostar os riscos das em-
prezas em que se embrenha, confiante na protecção material de
que se julga munido. Essa mesma confiança dá-lhe audácia, e
todos sabemos quanto é importante o papel desempenhado nas
acções humanas pela confiança do homem em si próprio e pela
audácia, seja qual fôr o fundamento em que assentem essas duas
qualidades ou sentimentos.
«A diferença está, porém, em que o bom sucesso num em-
preendimento realizado por um homem civilizado é por êle
explicado por uma causa, ao passo que o indígena, incapaz de
deduzi-la, explica-o sempre pelo efeito do feitiço.
« Se acaso a fortuna é adversa ao indígena, não vira as cul-
pas ao feitiço, e a sua confiança nele não sofre o menor abalo,
como poderíamos supor. A sua imaginação ingénua e os seus
hábitos facultam-lhe uma explicação simples que evita a destrui-
ção da crença e da sua fé.
«É, diz êle, por que o seu feitiço foi contra-actuado por um
feitiço de influência superior à do seu, ou por que, por uma
natural distracção, deixou de executar algumas das muitas e mui
complicadas minudências dos ritos que fortalecem a virtude do
feitiço.
(•) No Congo Português — Relatório do Governo do distrito, José
Cardoso, 1914.
564 POPULAÇÕES INDÍGENAS
«Compare-se isto com a intimidade dos enguiços a que são
atreitos, mesmo, muitos espíritos cultos, e convencer-nos hemos
de que é eminentemente natural a suposta acção dinâmica do
feitiço.
«A falta de confiança no auxílio que possa prestar-lhe a reli-
gião civilizada é, portanto, muito fácil de compreender-se.
«Em primeiro logar, embora o indígena creia na sobrevivência
do espírito, não lhe parece que sirva para qualquer coisa a sal-
vação da alma, e o que vê nas nossas imagens são outros tantos
feitiços destinados a fins idênticos aos seus, mas que só são efe-
ctivos para brancos.
«Por fim, é um facto que o indígena convertido tem, como
regra, uma fé frouxa, e sente, quando entregue a ela, a falta
de qualquer coisa tangível que o defenda na vida presente, e
nas conjunturas materiais mais difíceis, das armadilhas dos mil e
um feitiços que se opõem aos seus empreendimentos, aos quais
se entrega sem aquela confiança no êxito que lhe prometem os
seus feitiços familiares e portanto de facílima intuição para êle.
«Quando sofre um insucesso, que se lhe pretende explicar pelo
facto de Deus querer experimentar a intensidade da sua nova fé,
não o satisfaz essa explicação com a qual se não governa e que
não o anima a consolidar a sua fé nesse Deus que, para experimen-
tá-lo, o abandona, expondo-o assim a sérias contingências, que
êle não pode prever quando cessem, por não saber quando acaba
essa prova a que tem de sujeitar a sua fé.
«Daí resulta que na maioria das vezes o preto cristão adiciona
à sua nova crença o uso íntimo do seu feitiço, para, pelo menos,
iludir o feitiço oposto, encobrindo-lhe a sua conversão ao cris-
tianismo, o que afinal não passa de ser uma forma prática do
preto manifestar que também compreende que é bom estar-se
bem com todos os deuses.»
O missionário e a religião que prega e que deseja implantar,
nada tem conseguido do Negro, nem sequer o converteu, por que,
debaixo da fraca demão de verniz que a instrução cristã lhe deu,
conserva-se o selvagem, não já o produto natural, mas o selva-
gem tendo assimilado todos os defeitos e vícios do cristianismo.
As nações com domínios em África pareceu que as missões
católicas e protestantes, poderiam transformar-se em outros tan-
tos valiosos elementos com que o Estado contaria na obra de colo-
nização, por quanto, conjuntamente com a instrução literária
elementar que subministram ao indígena, ensinam-lhe um ofício,
DE ANGOLA 565
uma profissão, o trabalho da terra, e, com a incontestável van-
tagem do seu pessoal dever ser escolhido entre homens que pelos
seus votos, consagram a sua vida à tarefa de missionar, sem
ambições nem esperanças.
A prática, porém, tem de sobejo mostrado à evidência que
é urgente e necessário dar como terminada esta tentativa que
por completo falhou.
As missões falharam e não corresponderam ao que delas se
esperava, por que o seu principal papel e aquele a que com in-
teresse e cuidado mais zelozamente se dedicam é o de converter
à sua religião ou crença, indígenas, com a destruição do poder
do feitiço, o que o missionário não pode conseguir, sem varrer
da mente ingénua dos indígenas as suas crenças tradicionais, e,
consequentemente, sem destruir a organização da sociedade ca-
frial que tem todos os seus actos, particulares e públicos, inti-
mamente relacionados com o poder do feitiço.
As missões religiosas com quem se contava, como poderosos
factores para a regeneração das raças africanas, não passam
de elementos de desorganização que se introduziram no seio
das sociedades cafriais, dando logar por vezes a graves pertur-
bações.
As missões religiosas, como quaisquer outras tentativas con-
géneres, tendo como base o combater ou aniquilar as crenças
tradicionais mais radicadas entre os indígenas, não podem nem
devem ser toleradas, por nocivas e prejudiciais a uma bôa polí-
tica indígena.
Não será com semelhantes processos que conseguiremos en-
fraquecer a crença do indígena nos seus feitiços, a forma mais
eficaz de combater o feiticismo será a liberdade absoluta do seu
exercício, combinada com uma administração inteligente, em que
a acção civilizadora do Estado recaia sobretudo, sobre a organi-
zação económica, o meio mais próprio de acelerar e facilitar a
evolução social.
Sem fazer do feiticismo uma religião do Estado, devemos
admiti-lo, e garantir o seu livre exercício, se não quizermos que
êle seja contra o Estado.
Conforme o exposto, no projecto do Estatuto Civil e Político
dos Indígenas de Angola (l) estabelecemos o princípio da libér-
ia Vide Apenso I
586 POPULAÇÕES INDÍGENAS
dade de consciência e de cultos e garantimos o exercício de todos
os cultos desde que não ofendam os princípios humanitários, não
se consentindo prática alguma que por qualquer forma possa
constituir crime contra pessoas e punindo-se severamente todos
os que a exerçam ou para ela concorram (').
(i) Vide Apenso III (Parte III).
. CAPÍTULO VII
DA VIDA FAMILIAL
I. — Do nascimento
Não obstante, entre algumas tríbus da raça Negra, se con-
sultem adivinhos e curandeiros, nos últimos tempos de gravides,
afim de encaminhar os sucessos a um bom êxito, de uma ma-
neira geral, os Negros só recorrem, por este facto, ao adivinho
ou ao curandeiro, quando sobrevem qualquer complicação.
As cerimónias aconselhadas pelos adivinhos e os remédios
mandados aplicar pelos curandeiros, parece que se renovam em
todas as fases da lua.
Além do exposto, e o cessarem todas as relações entre marido
e mulher no último período da gravides, não conhecemos quais-
quer outras práticas ou medidas higiénicas durante aquele pe-
ríodo, tanto mais que a mulher grávida só deixa os trabalhos
usuais a que se entrega, quando se pronunciam os primeiros
sintomas do parto, sendo vulgar surpreendê-la o parto nos tra-
balhos das lavras ou em viagem.
No entanto o parto em condições normais tem lugar na
cubata da parturiente, e estando esta dè bruços ou ajoelhada.
O parto é assistido pelas vizinhas e amigas da parturiente e
em alguns povos, por mulheres especialmente destinadas a esse
fim, uma espécie de parteiras, que a ajudam no parto.
O nascimento duma criança é sempre motivo para regosijo
por parte dos indígenas da raça Negra, sobretudo se é do sexo
feminino, não só por que a mulher representa sempre para a
sua família o valor do penhor do casamento dado pelo noivo,
como, por que, pertencendo os filhos ao clan materno, são as
mulheres que se encarregam de aumentar a sua prole, emquanto
que os homens aumentam as dos outros, e às vezes sem o saber,
588 ' POPULAÇÕES INDÍGENAS
Mais ou menos todas as tríbus da raça Negra festejam ou
praticam cerimónias ou práticas, por ocasião do parto e pela
imposição do primeiro nome ou do leite ao recemnascido. Se
alguns povos não teem por costume levá-las a efeito pelos dois
actos, não deixam de as praticar por um deles.
As práticas e festas, se servem de pretexto para orgias, são
igualmente a forma de tornar público o nascimento e de o sole-
nizar. Na libata ou sanzala, e mesmo nas que ficam mais pró-
ximas, o nascimento é imediatamente conhecido, e em grande
número de tríbus é obrigatória a comunicação do nascimento à
autoridade gentílica.
Este facto vem facilitar e tornar viável o poder tornar-se
obrigatório o registo dos nascimentos, e deles tornar responsável
as autoridades gentílicas, conforme o deixamos estabelecido no
projecto do Registo do Estado Civil dos Indígenas (*).
A latação das crianças prolonga-se até muito tarde, dois ou
três anos, no entanto, não passa isso de uma guloseima, por que
é rara a mãe. que ao fim de um mês não dá ao recemnascido
caldos grossos de farinha de mandioca ou de milho, — e mesmo
bolos de massa que fazem daquelas farinhas, que o obrigam a
chupar.
O nascimento de uma criança com qualquer defeito físico ou
o facto de nascer em posição que não seja a habitual, é ainda em
grande número de tríbus, motivo para que a própria mãe tenha
que afogar ou enterrar no lodo o seu filho.
O primeiro nome ou de leite é imposto poucos dias depois do
nascimento e anda em geral ligado a qualquer acontecimento
notável que por ocasião do nascimento se deu, ou ao nome de
visita importante que chegue, tornando-se a criança comemorativa
do facto.
Do que fica exposto sobre a forma de proceder do Negro pelo
nascimento, se reconhece não lhe merecer grandes cuidados o
recemnascido nem a mãe, o que prejudica e limita a população,
em parte, porquanto outras causas a determinam, como sejam,
os casamentos com uma idade muito juvenil, a poligamia, etc,
a que em ocasião oportuna mais detalhadamente teremos ocasião
de nos referir. Aqui, entraremos em linha de conta unicamente,
com a falta de cuidados e medidas higiénicas, ao recemnascido
(•) Vide Apenso IV.
DE ANGOLA 569
e à mãe, que a própria natureza tem suprido, com a grande
fecundidade da mulher e facilidade com que concebe.
As medidas tomadas neste sentido, as poucas que estão em
vigor, não teem tido execução por parte do serviço de saúde
por falta de organização. Queremos referir-nos, à portaria pro-
vincial n.° 406 de 22/3/14 (*), creando comissões de assistência
médica e definindo as suas atribuições, onde não foi esquecida a
assistência indígena na gravidez e na infância, e o funcionamento
de maternidades.
Se estas estão no papel, e resta o principal, executá-las,
muitas outras medidas de assistência e protecção urge promulgar,
àlêm das que nos anteriores capítulos indicamos.
A administração da província na parte que se refere a as-
suntos indígenas e de política indígena é deficientíssima, por
que carece de estabelecimentos de protecção e assistência indí-
gena, protegendo, tutelando e corrigindo; enquanto este estado
de coisas assim se mantiver, não se dotando a província com
estabelecimentos daquela natureza, não poderemos caminhar,
e a nossa acção será estéril por que dela não resulta coisa
apreciável.
Todas as iniciativas caem por terra em face da falta de uma
verba para custear a instalação e garantir o funcionamento dos
estabelecimentos com que é urgente dotar a administração da
província.
É mister, pois, que se crie um fundo especial de protecção e
assistência aos indígenas, constituído :
1.° — Pelas receitas de loterias cuja emissão seja autorizada
na província (-) ;
2.° — Pelas importâncias que constituem o bónus de repatriação
de trabalhadores indígenas contratados para dentro e fora da pro-
víncia, -que faleceram durante a constância do contracto ou antes
do pagamento do respectivo bónus, quando os herdeiros os não
reclamem dentro do prazo estipulado por lei ;
3.° — Pelas receitas que por lei ou determinação superior,
sejam destinadas ao mesmo fim;
4.° — Por subsídios de particulares.
Nestes termos, e estabelecendo que o fundo reverta a favor
(») Vide Apenso XXII.
(2) Vide Apenso XIII.
37
570 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de colónias de correcção, de tutorias de infância, de asilos de
velhos e inválidos, de prémios de natalidade a indígenas e de
quaisquer despezas eventuais de protecção e socorro aos indígenas,
elaboramos o projecto que incluímos no apenso (*).
Conforme acabamos de indicar, parte do fundo de protecção
e assistência destina-se a prémios de natalidade, visto, por
enquanto não ser viável promulgar outras disposições, a não
ser as já indicadas no projecto regulamento do Registo do Estado
Civil e as que estabelecemos no projecto do Código de Justiça
Indígena, com o fim de dificultar a poligamia.
Como disposição destinada a fomentar o aumento da população
e a moralização dos seus costumes, em apenso incluímos o pro-
jecto, instituindo os prémios de natalidade a indígenas concedidos
às mulheres casadas, nos termos do Registo do Estado Civil dos
Indígenas, que provem ter cinco ou mais filhos vivos do marido
e devidamente registados (2).
Como tivemos ocasião de notar, o que deixamos exposto é
relativo ao nascimento entre os indígenas da raça Negra, no
tocante ao Boschjman não consta haver festas, cerimónias ou
práticas pelo nascimento, e não obstante as disposições por nós
propostas poderem-lhe ser extensivas, cremos bem que a sua
aplicação não se efectivará nos pequenos núcleos de população
Boschjman pela relutância que este tem em de nós se aproximar.
II. — Da educação e iniciação
Entre as populações indígenas da província não se praticam
Jogos ou misteres como fazendo parte de um sistema de educação
física.
Outro tanto podemos acrescentar quanto à educação intele-
ctual, não obstante, como já fizemos notar ao tratarmos das
faculdades intelectuais, o Negro acorrer com facilidade à escola.
Quanto à educação moral não pode ela ser negada a qualquer
das raças da província, por que, não obstante se apresente
diferente da moral da nossa raça, ela constata-se sobre várias
formas em todos os actos da vida dos indígenas.
As creanças de um e outro sexo até aos sete anos estão ao
cuidado quási exclusivamente das mães; depois desta idade, as
O Vide Apenso XIV.
(2) Vide Apenso XV.
DE ANGOLA 571
raparigas continuam mais ou menos acompanhando a mãe e os
rapazes passam a ajudar o pai, até à idade da puberdade ou de
constituir família.
É deste convivio que resulta, por assim dizer, a educação nas
primeiras idades, e por êle que, de geração em geração, se trans-
mite o modo de ser das populações indígenas.
Com esta preparação considera-se o indígena apto para cons-
tituir família, no entanto, entre as populações da raça Negra, ã
educação não fica por aqui para determinadas classes e cargos,
ou profissões. Referimo-nos aos que por hereditariedade tenham
de vir a exercer autoridade, aos que desejem ou mostrem aptidões
para curandeiros, e aos que tendam para a magia e desejem pra-
ticar para adivinhos.
Estes teem de se sujeitar a uma educação especial; os futuros
sobas ou dignatários, exercida pelos seus ascendentes; os curan-
deiros e adivinhos, exercida pelos considerados mestres nestes
misteres, sujeitando-se a cerimónias e práticas, que difícil é ao
europeu conhecer.
O que o Estado tem feito em Angola sobre a educação do
indígena, cremos, ficou claramente exposto nos anteriores capítu-
los, bem assim como igualmente os resultados obtidos e o que, em
nossa opinião, urge fazer.
O conjunto de medidas que temos vindo proposto, combinadas
com aquelas que no decorrer deste trabalho teremos ocasião de
propor, completarão a legislação especial, que mais se coaduna
com a índole do indígena, e constituirão por esse facto, garantia
suficiente, pelo menos, para a sua fácil efectivação, se lhe qui-
zerem negar o êxito dos seus resultados.
A este respeito não desejamos deixar de nos referir à falta
de estabelecimentos destinados a internar indígenas menores,
órfãos ou abandonados, que tanto embaraça a tutela dos que
por lei teem de substituir o poder paternal daqueles menores,
obrigando-os a recorrer ao depósito em casa de particulares,
que nem sempre é o mais conveniente.
Reservando-nos para mais detalhadamente tratar este assunto
em outro capítulo deste trabalho, aqui, unicamente queremos
frizar que a tutela dos menores órfãos e abandonados é uma
utopia, se não houver estabelecimentos especiais onde possam
ser depositados (d).
(i) Vide Apenso XVI.
572 POPULAÇÕES INDÍGENAS
As práticas de iniciação a que são submetidos os indígenas
dos dois sexos das tríbus da raça Negra, constituem um costume
característico daquela raça, visto que não são praticadas pelo
Boschjman.
A iniciação é uma educação especial que os indígenas dos
dois sexos recebem ao chegar à idade da puberdade, no momento
em que vão tornar-se adultos, a que o indígena se tem de sujeitar
para, na sociedade cafrial, poder fazer uso dos direitos e deveres
que pelo costume são inerentes à classe a que pertence.
A iniciação é, pois, um dos actos mais solenes da vida dos
indígenas da raça Negra, por que ela constitui o rito de passagem
da juventude para a adolescência, sem a qual o indígena não
pode casar e portanto constituir família.
A iniciação é levada a efeito em grupos de iniciados e consiste
essencialmente, na operação ou mutilação dos órgãos genitais, e
em práticas ou cerimónias; destas umas, levadas a efeito como
medida de precaução a tomar para a rápida cicatrização dos
ferimentos produzidos pela operação, outras, propriamente para
solenisar e tornar público o acto, e ainda outras, exclusivamente
para os indivíduos do sexo feminino, e que consistem em uma
espécie de aprendizagem nas relações sexuais.
A operação em si, consiste nos indivíduos do sexo masculino,
na circuncisão; nos indivíduos do sexo feminino, consiste na
ablação dos grandes lábios da vagina, ou pelo menos, na prefu-
ração da membrana do hymen. Em qualquer dos casos é a ope-
ração feita com uma faca bem afiada.
No que respeita ás práticas, como medidas de precaução,
podemos considerar como tais, o isolamento dos operados, o
vestuário exigido durante a cura, e o costume de pintar o corpo
e o rosto aos pacientes. Quaisquer deles constituem costumes
tradicionais que, como tantos outros, teem a sua razão de ser, o
seu fundamento, e que para o presente caso encontramos nas
medidas de higiene a tomar depois da operação.
Com efeito, tanto para os rapazes como para as raparigas, a
operação é feita em logar isolado e em geral afastado da povoa-
ção, onde os operados se conservam incomunicáveis, durante um
determinado tempo; ali permanecem durante o tempo da cura
sendo lhes vedado falar, sequer, com qualquer pessoa que não
seja o curandeiro operador ou a quem está incumbido de lhes
levar de comer.
Como tivemos ocasião de ver no estudo etnográfico, o local
DE ANGOLA 573
onde se pratica a operação de iniciação pode ser uma cubata
isolada na povoação, mas o mais usual é ser em logar afastado
desta, em cubata especialmente constituída para esse fim ou
mesmo no meio do mato.
Destas cubatas, a mais característica, é a usada pela tríbu
Cabinda para a iniciação dos indivíduos do sexo feminino — a
casa das tintas — nome que tem a sua origem no facto de que
as iniciadas são nela esfregadas com tacula.
Como não é dificil antever, o regimen e a fiscalisação a que
estão sujeitos os pacientes, depois da operação e durante a cura,
tem por fim não a prejudicar e acelera-la, evitando que os ini-
ciados tenham relações sexuais.
Outro tanto sucede com relação ao vestuário usado emquanto
dura a cura, constituído unicamente por panos em que se envol-
vem, e que diminuem ou mesmo evitam o atrito do vestuário
nos órgãos genitais, que assim poderia prejudicar o bom anda-
mento da cura.
Finalmente, o costume de aplicar tintas no corpo e rosto dos
pacientes consideramo-lo como um meio fácil de fiscalização e
que denuncia qualquer dos iniciados que queira eximir se ao
regimen a que está sujeito, evadindo-se.
Terminada a cura são os iniciados lavados e apresentados
solenemente na sanzala ou libata, dando-se começo ás cerimó-
nias que patenteiam e tornam público o acto, constituída por
danças, cânticos e libações, que se prolongam em dias consecu-
tivos.
Como tivemos ocasião de mostrar no estudo etnográfico, na
grande maioria das tríbus da raça Negra — aquelas que menos
contacto teem tido com a civilização europeia — os iniciados ao
apresentarem-se na povoação vêem mascarados, com vestes de
fibras vegetais que os cobrem totalmente, parecidas com as pa-
lhoças usadas pelos pastores das províncias do norte de Portugal,
ou de malha com saios franjados em volta da cintura ; em outras
tríbus este costume tem caido em desuso e os iniciados não se
apresentam mascarados nas festas de iniciação, mas vestem panos
novos que as respectivas famílias lhes fornecem.
A estas festas da iniciação dão excepcional brilho os povos
das tríbus do sul e leste da província.
Álêm do que fica exposto é positivo que, na grande maioria
das tríbus da raça Negra, outras práticas são levadas a efeito
na iniciação das raparigas, sem contudo delas podermos dar
574 POPULAÇÕES INDÍGENAS
ideia, pelo sigilo que guardam a este respeito. Sabe-se que as
iniciadas são internadas em casas especiais, onde, àlêm da ope-
ração, lhes são ministrados outros conhecimentos sobre a forma
como teem de se haver nas relações sexuais, e há quem afirme
que lhes são dados praticamente, dando logar a scenas obscenas.
Resta-nos, para completar tanto possivel o que é a iniciação
entre os Negros, esclarecer que a operação é das atribuições de
um curandeiro especial, o que não obsta que da infecção pro-
duzida pela operação morram alguns dos pacientes.
III. — Do casamento
O casamento sendo a base da constituição da família, vem
trazer-nos, para o estudo das populações indígenas de Angola,
as primeiras noções da organização da família em cada uma das
duas raças que a povoam.
O casamento dos indígenas da província é um perfeito con-
tracto civil; bem ao contrário do que se dá com todos os actos
da vida gentílica, em que se encontra bem manifesta e acentuada
a influência de qualquer das manifestações da sua rudimentar
religião, no casamento, não intervém o adivinho ou feiticeiro,
nem os costumes tradicionais e usuais a êle inerentes traduzem
a menor influência religiosa.
O casamento, entre os indígenas da raça Boschjman, tem
feição monogâmica e o seu caracter essencial é a exogamia. O
Boschjman é obrigado a procurar mulher fora do seu clan ou
mais geralmente dos seus parentes, pois que, persentindo a sua
raça condenada defende-se, sente a necessidade de por qualquer
maneira reagir contra o exgotamento da sua estirpe.
Entre as populações indígenas da raça Negra, domina a poli-
gamia e o casamento tem um caracter exclusivamente económico.
O indígena deseja ter muitas mulheres, isso representa um
capital, e consequentemente um luxo muito apreciado ; a mulher
aspira sempre a ter muitos filhos, que constitui uma riqueza
para a sua família, sobretudo se forem do sexo feminino, por
que deles pode dispor.
Os esponsais ou ajustes do casamento são feitos entre o noivo
e o clan materno da família da noiva, em geral, representado
pelo tio materno ou o individuo considerado como chefe do clan,
e para o que não há necessidade do consentimento da noiva.
A família da noiva recebe do noivo, como penhor do contrato
DE ANGOLA Õ7Õ
de casamento um determinado valor em dinheiro, fazendas, gado,
géneros, etc., que será devolvido se por qualquer circunstância
se não chega a efectivar o casamento.
Na sua essência, o que deixamos exposto é o que caracteriza
os esponsais, e que pode considerar-se generalizado a todas as
tríbus da raça Negra, no entanto, dentro desta fórmula genérica,
cabem as diferentes modalidades, variáveis de tríbu para tríbu.
Assim, quanto à idade dos ajustes do casamento e à situação
em que fica a noiva depois de pedida, impossível se torna
estabelecer uma regra fixa, tão variável é a maneira de pro-
ceder.
Em algumas tríbus os ajustes são feitos ainda em tenra idade
da noiva ; noutras os ajustes precedem com pouca antecipação a
época da iniciação ; em outras tríbus os ajustes são por ocasião
das festas tornando público a iniciação ; e ainda em outras tríbus,
como a Cabinda, o noivo, quando pretende qualquer rapariga, é
êle próprio que promove e acelera a sua iniciação. E, se as
coisas assim se passam quanto à época dos ajustes do casamento,
outro tanto sucede quanto à situação da noiva que, ou se con-
serva em casa de sua familia, ou pode acompanhar p futuro
marido, cedida pela familia, sem contudo poder ter com ela
relações sexuais, ou pode mesmo chegar a permitir-se uma es-
pécie de casamento de ensaio.
A virgindade da mulher não é exigida nem estimada; não é
nem podia ser exigida, por que este facto iria de encontro ao
costume da operação usual por ocasião da iniciação da mulher,
não é estimada, por que o casamento tem um caracter exclusi-
vamente económico, sendo raro que o inspire qualquer sentimento
de amor ou afecto.
O casamento efectiva-se pelo pagamento de penhor estipulado
entre o noivo e a familia do noivo e, como por ocasião de outros
actos solenes da vida dos indígenas, torna-se público pelo sacri-
fício de uma cabeça de gado bovino, lanígero ou suino, conforme
a região, que se abate para as festas tradicionais solenizando o
casamento que, como todas as outras, redundam em uma verda-
deira orgia.
Efectivado o casamento é a noiva entregue ao seu marido,
variando o cerimonial da entrega consoante a tríbu. Em umas
tríbus, por exemplo nas Bimbundu, é a noiva levada ao marido
e acompanhada por um cortejo, cuja composição, varia segundo
o costume local; em outras tríbus a noiva simula uma fuga e o
576 POPULAÇÕES INDÍGENAS
noivo corre a buscá-la, levando-a consigo ; em outras finalmente,
a entrega é pela ocasião das festas tornando público o acto.
No que diz respeito a impedimentos do casamento, a consan-
guinidade nem sempre o é, pois que há o exemplo do casamento
entre tios e sobrinhas e vice-versa, mas a loucura, a lepra ou
qualquer outra doença incurável é impedimento, por que os in-
divíduos atacados destas doenças não conseguem casar.
O casamento dissolve-se pela morte e pelo divórcio.
O divórcio pode ser promovido por qualquer dos conjugues
ou pela família da mulher — em geral o chefe do clan materno.
O homem divorcia-se da mulher, quando há incompatibilidade
de génios, quando ela é descurada e incapaz para os trabalhos
agrícolas. A mulher dívorcia-se do homem, quando há a mesma
incompatibilidade de génios, por maus tratos, por ausência, sem
que do ausente haja notícias, etc. A família da mulher promove
o divórcio, em geral, quando esta, passados dois anos ou pouco
menos, não tem filhos, isto é, por incapacidade procreativa do
homem, e por incompatibilidade irredutível das famílias dos côn-
juges.
Do divórcio resulta para os cônjuges a situação anterior à
do casamento, ficando livres do vínculo que os ligava um ao
outro e aptos para contraírem novo casamento, seguindo a mu-
lher para o seio da sua família, mas ficando obrigado o cônjuge
que deu causa ao divórcio a restituir ao outro cônjuge ou à
família deste o valor do que deles recebeu, e a perder em se«
favor tudo o que êle haja dado como penhor.
No caso do divórcio por incapacidade procreativa do marido,
dada a circunstância da mulher, contraindo novo casamento, não
ter filhos do segundo marido, o primeiro marido pode exigir a
restituição do penhor. que perdeu em favor da mulher ou da sua
família quando se divorciou, mas se do segundo marido a mu-
lher divorciada houver filhos poderá ela ou a sua família exigir
deste uma indemnização, em geral, correspondente ao número
de anos da constância do primeiro casamento.
O adultério não constitui, em geral, motivo para o divórcio,
o que não quer dizer que, em algumas tríbus, o adultério da
mulher dê lugar ao divórcio, e que este seja sempre punido com
uma indemnização ao marido ultrajado, voltando a mulher para
o lar, apta a novamente praticá-lo, às vezes até, instigada pelo
marido que nesse crime tem uma bela fonte de receita.
O adultério em algumas das tríbus Ganguelas chega quási a
DE ANGOLA 577
constituir uma instituição, sendo mais estimadas as mulheres
adulteras. Assim, é que, chegam as mulheres a fazer verdadei-
ras tournées pelos povos visinhos, provocando os homens, e indo
depois relatar ao marido as infidelidades cometidas e, sobretudo,
os co-reus adúlteros, a quem o marido vai exigir a repectiva
indemnização, sendo vulgar que, negando aqueles o crime, sejam
chamados perante os tribunais onde a própria adúltera lhes vai
lembrar as condições em que se deu o crime.
Em face do que constituem os costumes gentílicos sobre casa-
mento, e que concretisamos nos anteriores períodos, vamos pas-
sar a estudar a legislação especial que a este respeito tem de ser
elaborada, consoante os nossos deveres, como nação colonial,
estabelecidas na Conferência de Berlim e nas Bases das Cartas
Orgânicas das colónias.
Começando pelo registo do casamento, deve este ser registado
pelo oficial ou ajudante do registo civil (*), e pela sua participa-
ção será responsável a autoridade gentílica dos cônjuges, que
no acto receberão uma chapa metálica, indicando o número do
registo, a repartição onde foi registado e o ano, que constitui
uma certidão ou extracto do registo do casamento.
O projecto do Código de Justiça Indígena (2) deve estabelecer
que o casamento é um contracto puramente civil que se presumo
perpétuo sem prejuizo da sua dissolução pelo divórcio.
O projecto estabelece que não podem contrair casamento : os
parentes por consaguinidade ou afinidade em linha recta, ainda
que o casamento causa da afinidade tenha sido dissolvido ; os
irmãos; os menores de 16 anos, sendo do sexo masculino, e
de 14 anos, sendo do sexo feminino, e aqueles que manifesta-
mente se reconheça estarem atacados de demência ou loucura,
tripanosimiase, lepra ou qualquer outra doença incurável ou
contagiosa ou que importe aberração sexual.
Para os menores entre os 16 e 18 anos, sendo do sexo mas-
culino, e entre os 14 e 16 anos, sendo do sexo feminino, só é
permitido o casamento mediante uma licença, por que se deve
pagar uma pequena taxa, e que pode ser recusada, quando o
funcionário do registo o entender conveniente.
O casamento não poderá celebrar-se sem o consentimento por
(') Vide Apenso IV.
(2) Vide Apenso III.
578 POPULAÇÕES INDÍGENAS
parte dos tios maternos ou pais da noiva, ou por quem fôr con-
siderado como chefe do seu clan materno.
No que diz respeito aos actos e ajustes usuais, preliminares
do casamento, feitos entre os noivos ou perante as famílias des-
tes, devem ser considerados lícitos e garantidos, pelo Código,
desde que se provem. Assim o casamento pode ser garantido
por um penhor em dinheiro, gado, fazendas, ou quaisquer géneros
ou artigos entregues pelo noivo aos tios maternos da noiva ou a
quem segundo o costume deve receber, podendo a sua entrega
ser feita antecipadamente à realização do casamento ou no acto
da sua celebração, ficando o seu valor consignado no registo do
casamento. Por este penhor fica solidariamente responsável a
família da noiva, contraindo a obrigação de restituí-lo, desde que
o casamento deixe de realizar-se.
Àlêm do penhor, sendo costume em algumas tríbus o troca-
rem-se dádivas ou ofertas durante o ajuste do casamento, devem
estas ficar igualmente consignadas no registo, e a sua restitui-
ção ser obrigatória, quando o casamento deixe de realizar-se.
Deve-se permitir o regimen polígamo, mas restringir-se há
com o pagamento de taxas progressivas para cada mulher àlêm
da primeira.
No que respeita aos haveres dos conjugues, o casamento deve
considerar-se sempre feito com separação de bens, e os bens
adquiridos durante a constância do casamento devem pertencer
exclusivamente à sociedade familial do marido, salvo os artigos
de vestuário e objectos de uso doméstico da mulher que ficam
pertencendo a esta. Esta disposição, como tantas outras não
obstante nos repugnem, traduzem um costume radicado nas
populações indígenas que não pode deixar de ser considerado
no Código, por que isso acarretaria uma profunda alteração na
organização da família, que por todos os motivos convém não
provocar.
A administração dos haveres trazidos para o casal por qual-
quer dos cônjuges, bem como a dos adquiridos durante a cons-
tância do casamento, pertence ao marido que não pode, contudo,
alienar os haveres que a mulher haja trazido sem o consenti-
mento do chefe do clan materno da família da mulher.
O marido por si ou pelos seus haveres não será responsável
pelas dívidas da mulher, bem assim como a mulher não será
responsável pelas dívidas do marido.
Passando a examinar o costume gentílico no que respeita às
DE ANGOLA 579
dissoluções do casamento, deve o Código estabelecer a dissolução
pela morte e pelo divórcio.
O divórcio poderá ser pedido só por um dos cônjuges, por
ambos conjuntamente, ou pelo indivíduo considerado, segundo o
costume, como o chefe do clan materno da mulher.
O divórcio, quando pedido por ambos os cônjuges conjunta-
mente classificar-se-há por mútua consentimento ; quando pedido
só por um dos cônjuges ou pelo chefe do clan materno da mulher,
será litigioso.
O divórcio por mútuo consentimento obter-se há por simples
solicitação dos cônjuges ao presidente do tribunal indígena do
segundo grau, da área a que eles pertencem, que o autorizará
provisoriamente depois de perante êle os cônjuges provarem
o casamento, e acordarem na forma de restituir as ofertas ante-
nupciais e sobre a situação dos filhos menores, se os houver. Na
sua primeira reunião o tribunal sancionará o divórcio e lavrará
a sua sentença definitiva se os cônjuges persistirem na sua re-
solução.
Para o divórcio litigioso pedido por um dos cônjuges, são
causas legítimas: a incompatibilidade de génios; maus tratos;
ausência, sem que do ausente haja notícias por tempo não infe-
rior a cinco anos ; o adultério da mulher ; a esterilidade da mu-
lher e a incapacidade procreativa do homem ; a inaptidão da
mulher para os trabalhos agrícolas ; a loucura ou demência e
qualquer outra doença contagiosa ou que importe a aberração
sexual ; e os condenados pelos crimes a que corresponda pena
de degredo.
Para o divórcio litigioso pedido pelo chefe do clan materno
da mulher serão causas legítimas ; a incompatibilidade irreductí-
vel das famílias dos conjugues ; e a condenação do homem pelos
crimes a que corresponda pena de degredo.
Solicitado o divórcio litigioso ao presidente do tribunal indí-
gena do segundo grau da área a que pertencem os conjugues,
fará este intimar os conjugues para comparecerem perante o tri-
bunal com as suas respectivas testemunhas, e, se exgotados os
meios conciliatórios, tentados no julgamento, os conjugues per-
sistirem no propósito de se divorciarem, o tribunal lavrará a
sentença do divórcio definitivo, em que ficará definida a questão
dos haveres e encargos do casal, a restituição das ofertas e
penhor e bem assim a situação dos filhos se os houver.
O cônjuge que der causa ao divórcio litigioso fica obrigado
580 POPULAÇÕES INDÍGENAS
a restituir ao outro ou à família deste o valor do que deles rece-
beu, como penhor ou ofertas, e a perder em seu favor tudo o
que lhe haja dado como penhor.
Do divórcio deverá resultar para os cônjuges, em relação
aos seus haveres, a situação anterior à do casamento, salvo para
os adquiridos durante a constância do casamento que, conforme
o costume, deverão pertencer ao clan materno do homem. No en-
tanto, deve em parte compensar-se a mulher, e é justo que ela
fique com o direito ao fruto das plantações que exclusivamente
agricultou e a uma parte dos daquelas em cuja agricultura auxi-
liou o marido, e que será fixada pelo tribunal.
Os créditos adquiridos e os débitos contraídos durante a
constância do casamento pertencem ao marido, salvo os que res-
peitem aos haveres trazidos pela mulher, sobre os quais o tribu-
nal decidirá como julgar de justiça.
Havendo filhos menores de 16 anos e acordo sobre a qual
dos cônjuges ou suas famílias deverão eles ser entregues e con-
fiados, será êle respeitado ; não o havendo, incumbe ao tribunal,
tendo em vista os usos e costumes locais, providenciar àcêrca do
destino a dar aos filhos menores de 16 anos, devendo de prefe-
rência entregá-los aos cuidados dos parentes maternos.
Os cônjuges divorciados são para todos os efeitos considera-
dos livres do vínculo que os ligava um ao outro e aptos para
contraírem novo casamento, quer restabelecendo a todo o tempo,
a sociedade conjugal, quer passando a novas núpcias com ou-
trem.
O marido contra quem seja lavrada sentença de divórcio liti-
gioso, com o fundamento da sua incapacidade procreativa, po-
derá exigir a restituição do penhor e ofertas ante-núpciais que
perdeu, quando a mulher de quem se divorciou, tendo contraído
novas núpcias, não manifestou a sua fecundidade, mas se do úl-
timo casamento da mulher divorciada houver filhos, constando-se
assim a incapacidade procreativa do homem de quem se divorciou,
poderá ela ou a sua família exigir deste uma indemnização que
o tribunal fixará consoante os usos e costumes locais.
IV. — Da família
A constituição da família entre as populações indígenas da
raça negra Boschjman, tendo como tipo o totemismo, não antevê
senão a protecção da raça, reagindo contra o exgotamento da
DE ANGOLA 581
sua estirpe; ela não nos dá a menor indicação sobre qualquer
costume tradicional, que possamos traduzir em lei, regulando as
relações sociais.
Nas populações indígenas da raça Negra, a família constitui
uma instituição solidamente organizada, tendo por base o regi-
men polígamo com fins exclusivamente económicos, em que o
parentesco se estabelece pela linha maternal, e a sucessão é cola-
teral e se defere entre tios e sobrinhos, filhos das irmãs uteri-
nas, e, na falta destes, entre irmãos uterinos.
A constituição da família do Negro que, aparentemente, parece
semelhante à das sociedades civilizadas, é bem diferente e tem
feição característica. Ao passo que nas sociedades civilizadas o
casamento dá logar à constituição de um novo lar doméstico, a
que ficam pertencendo os cônjuges e seus filhos, pelo casamento
gentílico dos indígenas da raça Negra, não se constitui de facto
um novo lar ; a mulher não vai para o casamento senão para
enriquecer com os seus braços o marido e a família deste, e dar
filhos para aumentar a prole da sua família; a mulher não vive
na mesma cubata com o homem, mas em uma cubata separada
com os seus filhos; enfim, os cônjuges ficam pertencendo às
suas respectivas famílias, e os filhos que houver do casamento
fazem parte da família da mulher. O homem tem por dever
proteger e defender a pessoa e haveres da mulher e de prover
à sua alimentação, bem assim como dos seus filhos menores ; a
mulher deve obediência ao marido ; os filhos devem respeito e
obediência aos pais ; mas o que não resta dúvida, é que, quem
exerce a verdadeira autoridade na sociedade conjugal, é o chefe
do clan materno da família da mulher, que dispõe dos filhos do
casal, e a quem, sobretudo, obedece a mulher.
O clan materno é, pois, quem preside aos destinos da família,
e, como a unidade de constituição da comunidade das populações
indígenas da raça Negra não é o indivíduo, como sucede nas
sociedades civilizadas, mas a família, o clan materno pôde bem
considerar-se como uma instituição servindo de base ou de su-
porte da colectividade, em volta da qual gira toda a vida cafreal,
sobre que êla superintende de uma maneira categórica e positiva.
Individualmente o indígena, por mais aptidões e qualidades
de trabalho que revele, não lhe é permitido acumular em seu
próprio proveito o que possa angariar pelo produto ou rendi-
mento do seu trabalho, tem que reparti-lo pela sua família, e
como esta verdadeiramente está limitada ao clan materno, a esta,
582 POPULAÇÕES INDÍGENAS
por intermédio do seu chefe, compete interferir administrando
o produto do trabalho, da indústria e do comércio dos mem-
bros da família.
E, assim como o indígena não pode dispor do produto do
seu trabalho, não seria lógico que a esta feição colectiva da vida
gentílica, não correspondesse, por parte do clan materno, a obri-
gação jurídica de prestar assistência a todos os seus membros,
visto que todos são considerados responsáveis pelas acções, cri-
mes ou delictos cometidos por qualquer deles.
Esta feição colectiva é igualmente usual e tradicional, para
a celebração dos sacrifícios ou cerimónias, levadas a efeito nos
actos mais solenes da vida dos indígenas, pois que cada um dos
membros do clan materno tem por dever contribuir com a sua
parte para as despezas.
Esta instituição de suporte colectiva a que estão subordina-
dos todos os direitos e obrigações dos indígenas da raça Negra,
não pôde deixar de transparecer e ser traduzida no Código de
Justiça Indígena, por que não envolve matéria que vá de encon-
tro aos princípios humanitários dos povos civilizados.
Nesta ordem de ideias, o projecto do Código de Justiça
Indígena, consigna, para efeitos do mesmo Código, que os indi-
víduos de que se compõe o clan materno de uma família consti-
tuem entre si o que se denomina sociedade familiar ; (*), e esta-
belece que esta sociedade abrange : a propriedade que, nos
termos legais possa vir a pertencer-lhes ; tudo o que cada um
dos seus membros possa apropriar-se por ocupação ; o uso e os
rendimentos do que fica consignado ; o produto do trabalho,
indústria e comércio de cada um dos seus membros.
Àlêm disto estabelece que a sociedade familiar é solidaria-
mente responsável pelo cumprimento de todas as disposições
civis voluntariamente contraídas por qualquer dos seus membros
ou que aos mesmos seja imposta por efeito legal ou por sentença*
No que respeita à relações mútuas entre os diversos membros
da família, estabelece o projecto do Código, quanto à mulher
a obrigação (2) de prestar obediência ao marido ; de viver em
cubata que aquele lhe destinar ; de o acompanhar, salvo para
fora da província ; de o auxiliar nos trabalhos da sua agricul-
(*) Vide Apenso III (Parte II, capítulo II).
(2) Vide Apenso III (Parte II, capítulo V, secção II).
DE ANGOLA 583
fura e indústria e dos serviços domésticos ; quanto ao marido a
obrigação de proteger e defender a pessoa, e os haveres da mu-
lher e de prover à sua alimentação e vestuário.
Sobre as relações entre pais e filhos (*) fica consignado no
projecto do Código que, ao pai compete reger e dirigir a pessoa
dos filhos menores, bem assim como defendê-los perante os tri-
bunais, e prover à sua subsistência, participando, igualmente,
destes deveres, o chefe do clan materno.
Na ausência ou impedimento do pai compete à mãe substi-
tuí-lo, e na falta daquele são os seus deveres e obrigações para
com os filhos menores, exercidas por tutela.
A tutela pertence ao chefe do clan materno ou qualquer
outro membro deste, por tácito acordo entre a família, e na falta
destes ao chefe do clan paterno ou a qualquer membro deste
por tácito acordo. A tutela dos menores, órfãos ou abandona-
dos, de que se não conheça família, será exercida pelo Curador
Geral ou por delegação deste pelos agentes do curador.
No que diz respeito aos deveres dos filhos menores devem
eles obediência e respeito aos pais e ao chefe do clan materno.
No que acabamos de expor e no que ficou dito com relação
ao casamento, Sobre a superintendência do clan materno na vida
na vida familial das populações indígenas da raça Negra, cremos
ter mostrado a feição característica e sui generis que deve ter o
Código de Justiça Indígena e a que no capítulo seguinte nova-
mente nos teremos de referir.
V. — Da morte
Perante a morte, como em todas as outras manifestações da
sua vida, o Boschjman comporta-se como o verdadeiro selva-
gem, distanciando-se consideravelmente do Negro.
Ao passo que o Boschjman, vivendo por viver, nascendo e
morrendo como ao acaso, não patenteia a morte por prantos e
cerimónias e abandona os cadáveres dos mortos, o Negro celé-
bra-a com festas e sacrifícios e enterra os cadáveres dos seus
mortos.
O Negro, supersticioso sobremaneira, não toma a morte como
coisa natural e atribui-a sempre a qualquer malefício, que a fa-
([) Vide Apenso III (Parte II, capítulo V, secção II)
584 POPULAÇÕES INDÍGENAS
mília do falecido tem por dever indagar e para o que se recorre
ao adivinho. Junto do cadáver o adivinho dá largas à sua ima-
ginação, fazendo práticas para convencer os assistentes do seu
poder mágico, e, na grande maioria das tríbus, chega a subme-
ter o morto a um apertado interrogatório, de que só êle adivinho
é capaz de perceber as respostas. É claro que o adivinho, é
sempre astuto bastante para estar ao par dos factos ocorridos
entre os povos onde exerce o seu mister, para lhe ser fácil atri-
buir a responsabilidade da morte a um seu inimigo que apon-
tado como feiticeiro, se não desaparece, nas tríbus em menos con-
tacto com as autoridades, terá morte bárbara.
No que diz respeito à mortalha, varia esta consoante a tríbu,
e vai, desde uma esteira em que se envolve o cadáver, ao ves-
tir-se este como nunca em vida trajou. Sobre a mortalha o
costume mais característico que encontramos nas populações
indígenas da raça Negra, é o usado pelos povos do sul da pro-
víncia e por parte de alguns do distrito de Benguela e que
consiste em envolver o cadáver com uma pele de boi, que,
tratando-se de soba, lenga ou de pessoa categorizada, tem de
ser preta.
Ao cadáver, esfregado com tacula, nas populações do norte
da província, ou com sangue de boi, nas do sul, dá-se, na grande
maioria das tríbus, a posição de sentado, ficando com o queixo
apoiado nos joelhos, os braços estendidos ao longo das pernas e
estas dobradas e juntas ao tronco, tendo de, em alguns casos,
para obter esta posição, partir-se a golpe de machado a espinha
dorsal ao cadáver.
O cadáver depositado, em geral na cubata que em vida lhe
serviu de vivenda, é, após o falecimento, chorado em altos
prantos pelas mulheres da família e das vizinhas, emquanto que
os homens fora da cubata de espaço a espaço anunciam o óbito
por descargas ou tiros isolados.
Ao mesmo tempo, outros vão preparando as coisas para as
cerimónias do funeral, mais ou menos complicadas e demoradas,
consoante a categoria social do falecido e sobretudo dos seus
haveres, visto que um óbito é sempre pretexto para uma ver-
dadeira orgia qne se prolonga o mais que se pode, e com o
pretexto de que o morto ainda não está satisfeito e deseja que as
festas continuem.
É indispensável no óbito o sacrifício de uma ou mais cabeças
de gado bovino, lanígero ou suino, conforme a região; no sul da
DE ANGOLA 585
província, onde abunda o gado bovino, em funeral de certa
ordem são sacrificados pelo menos dois bois, um logo que se dá
o óbito e outro junto à sepultura, com o sangue do qual esta se
rega.
A esta orgia que, como medida de protecção, nos compete
reduzir (*), tanto quanto possível, segue-seo funeral propriamente
dito ou cortejo para o local da sepultura.
Este cortejo, é sempre um produto da fértil imaginação do
indígena, e sobretudo muito complicado entre a tríbu Cabinda,
como tivemos ocasião de descrever, não obstante actualmente se
não proceder já com a pompa outrora usada.
A sepultura mais geralmente usada e em forma de gaveta,
isto é, abre-se uma cova de forma rectangular e em uma das
suas paredes cava-se uma galeria, onde o cadáver é depositado,
e que é fechada com pedras em alguns povos ou por uma simples
esteira noutros, enchendo-se o resto da sepultura com terra.
No entanto, esta forma de sepultura não se pôde considerar
geral, principalmente tratando-se de autoridades gentílicas, que
em algumas tríbus, como por exemplo no Amboim, constituem
toscos monumentos construídos de pedras amontuadas, que nou-
tras, como nos Quiocos, é a própria cubata que se cobre de terra
e se defende por um cercado. O local das sepulturas varia
igualmente de povo para povo, podendo ser na própria cubata,
ou dentro da povoação, mas sendo mais usual as sepulturas
aglomerarem-se, junto dos caminhos e próximo das povoações.
Sobre a sepultura é vulgar e principalmente nas tríbus do
norte da província, colocar os utensílios de que em vida o falecido
se serviu.
Os sinais de luto usados são de uma maneira geral, o rapar
o cabelo da cabeça, o mascarrar a cara com barro negro, e, em
algumas tríbus, mais familiarizadas com os costumes europeus o
uso de panos pretos. As cerimónias dos funerais dos sobas, na
sua essência, não se afastam das usuais, revestem, no entanto,
maior pompa e complicam-se com aquelas que é costume praticar
com relação à sucessão, e a que nos referiremos no capítulo
seguinte na parte que se refere à organização política.
(i) Vide Apenso XX,
38
".f-.vJLi ?jf&Bl
CAPITULO VIII
DA VIDA SOCIAL
I. — Da organização social
O estado social em que se encontram as populações indígenas
de Angola, comporta dois estádios, correspondentes às duas raças
que a povoam.
Para os indígenas da raça Boschjman, caracterizada pela
vida errante, não conhecendo nem praticando a agricultura, não
exercendo comércio nem indústria, servindo-lhe qualquer terra
onde acampem desde que lhe não seja hostil, dando-lhe os frutos,
as raizes e a caça de que vivem, e a caverna ou fenda onde possam
alojar-se.
Para as populações da raça Negra, caracterizada pela fixação
à terra, praticando a agricultura, construindo a habitação e
exercendo a indústria e o comércio, e revelando um tal grau de
adiantamento em relação à raça Boschjman que o conde de
Ficalho escreve: «Por bárbaras que sejam as cortes de Muat-
Ianvua ou do Cazembe, de Munsa ou Kambari, temos quási a
tentação dê as chamar civilizadas, quando as comparamos com
uma tríbu dos Boschjmanes».
No entanto, as migrações das populaçães indígenas da raça
Negra, que em épocas remotas tiveram logar e actualmente conti-
nuam, não obstante com muito menos intensidade, mostram-nos
que ainda se encontram hoje num estado de flutuação que parece
ser uma transição necessária entre a vida errante, e a estabilidade
das nações civilizadas, pela qual estas igualmente passaram.
Continuando a estudar a organização social das duas raças,
encontramos em todas as formas por que ela se manifesta a
mesma acentuada diferença entre elas e a grande superioridade
do Negro sobre o Boschjman.
588 , POPULAÇÕES INDÍGENAS
Ao passo que, na raça Boschjman não ha distinções de castas,
classes ou pessoas, a organização social do Negro compreende
três castas : os nobres, ou sejam os chefes, dignatários e suas
famílias, e outras pessoas categorizadas ou que se distinguem
pela sua riqueza; os homens livres constituindo a burguezia
indígena; e os escravos. As castas por seu turno admitem um
determinado número de classes, podendo contar-se, quanto aos
nobres, as classes : dos chefes ; dos sobetas ou chefes de pequenos
estados subordinados; dos conselheiros ou ministros dos chefes;
dos lengas ou chefes de grupos guerreiros, entre os Cuanhamas;
dos chefes de sanzalas ou libatas; quanto aos homens livres as
classes: dos curandeiros; dos adivinhos; dos feiticeiros; dos ho-
mens ricos e dos pobres; quanto aos escravos: os provenientes
de razias ou guerras; os domésticos, por nascimento ou por
terem passado a este estado para pagamento de dívidas como
caução ou penhor, etc.
A acção das nações com domínios em África perante as socie-
dades cafreais, caracterizada por uma política de destruição e
servidão e seguidamente substituída, nos três primeiros quartéis
do século xix, pela assimilação dos indígenas, atribuindo a todos
os indivíduos uma mentalidade absolutamente semelhante, ou
pelo menos julgando-os susceptíveis de a possuir depois de uma
superficial educação, admitindo um tipo único e superior de
civilização que se tornava necessário propalar por toda a parte,
e substituindo as instituições indígenas pelas nossas leis, tiveram
como uma das mais graves consequências — de entre muitas a
que deram lugar — a criação de um novo tipo ou classe : — o
indígena semi-civilisado, o dengoso tipo, entregando-se a uma
doentia ociosidade, coçando-se pelas esquinas das populações do
litoral, trajando à europeia, esfarrapado, do casaco restando só
quási as mangas, meio calçado meio descalço, não dispensando
um roto chapéu ou um desbotado boné, com a pretenção a ci-
dadão da República, mas exercendo a poligamia e conservando os
costumes indígenas que mais lhe convêm para satisfação dos
seus vícios.
Eis exposta de uma maneira singela a organização social das
populações indígenas de Angola; ao legislador compete, perante
ela e em face dos princípios humanitários, elaborar o estatuto
que deve regular as suas relações sociais e adoptar as medidas
de protecção que o seu estado atrazado de civilização nos impõe,
como dever imperioso de tutela que nos cabe exercer.
DE ANGOLA 589
De facto urg^e encarar o problema de frente, sem subterfúgios
e pueris receios, saindo da falsa situação que criamos de dar ao
indígena direitos que ele não reclama, não deseja e até repu-
dia, bem assim como, não lhe impor deveres que de bom grado
não aceita.
O indígena de Angola não pretende nem aspira a possuir as
regalias e obrigações dos cidadãos da República, nascidos e
educados na metrópole, conserva as suas instituições e possue os
seus códigos pelos quais se regula e que nós devemos respeitar,
não havendo necessidade nem interesse em lhe impor disposições
de que não carece, que não solicita e que não quer.
Ha absoluta necessidade de definir o indígena de Angola, o
que não está feito em termos claros e precisos nos textos legais;
dando logar a dúvidas e confusões as definições estabelecidas
nas diversas disposições da lei, e que se torna indispensável
fazer, tanto mais que actualmente assim está determinado pela
lei orgânica das colónias.
Em Angola existem indivíduos de côr que, pelo seu trabalho
e aturado estudo, atingiram uma civilização que, se não é igual à
nossa, é pelo menos paralela ; estes podem considerar-se para
todos os efeitos como cidadãos portugueses, a quem podemos
dar os direitos e exigir as obrigações que a nossa Constituição
estabelece, o que não sucede com os restantes indivíduos de côr,
e o maior número que, pela sua cultura e civilização, muito se
diferenciam dos europeus, e a quem não ha necessidade nem
conveniência de impor direitos e deveres que não desejam.
Nesta conformidade elaboramos o estatuto civil e político dos
indígenas (*), considerando indígena, o indivíduo de côr, natural
da província, ou de colónias africanas portuguesas ou estran-
geiras, que não satisfaça cumulativamente às seguintes condições:
1.° — Falar e escrever o português ou alguma outra língua
culta ;
2.° — Não praticar os usos e costumes característicos das
raças africanas;
3.° — Exercer profissão, comércio ou indústria, ou possuir
bens de que se mantenha .
Os indivíduos de côr que satisfaçam àquelas condições são
considerados pelo estatuto como cidadãos da República, e como
(t) Vide Apenso I.
590 POPULAÇÕES INDÍGENAS
tal isentos da aplicação das leis e outras disposições exclusiva-
mente adoptadas para indígenas, tendo garantido o pleno uso de
todos os direitos civis e políticos concedidos na província aos
portugueses originários da metrópole. Destes indivíduos far-se ha
um registo especial nas administrações dos concelhos, circunscri-
ções e nas capitanias-móres.
No que diz respeito ao exercício dos direitos e garantias
individuais dos indígenas estabelece o projecto do estatuto:
1.° — Que serão mantidos os foros de nobreza e os títulos
hierárquicos tradicionais segundo os usos e costumes ;
2.° — Que é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
e garantido o exercício de todos os cultos, desde que não ofendam
os princípios humanitários e que sejam compatíveis com a ordem
pública ;
3.° — A liberdade de reunião, associação e petição, salvo
quando esta fôr exercida por escrito e assinado a rogo, que
será regulada por diploma especial;
4.° — A não inviolabilidade de domicilio;
5.° — A prisão sem culpa formada, quando executada por
ordem escrita de autoridade;
6.° — Que tudo quanto diz respeito à administração de justiça
a indígenas regulado por disposições especiais;
7.° —Que o estado civil e os respectivos registos são de
exclusiva competência da autoridade administrativa;
8.° — Que o direito de ocupação, concessão e propriedade da
terra é o estabelecido pelas leis sobre o assunto em vigor ;
9.° — Que é livre a forma de dar cumprimento à obrigação
moral e legal a que o indígena está sujeito a por meio de tra-
balho, prover ao seu sustento e melhorar sucessivamente a sua
condição social.
Álêm disto, o estatuto mantém as instituições políticas indí-
genas, respeitando-se, nas relações de subordinação, na escolha
dss autoridades gentílicas e suas funções, as tradições usos e
costumes que não vão de encontro aos princípios humanitários,
e estabelece que o Governador Geral é o protector nato dos
indígenas da província, quer nela permaneçam, quer, não sendo
da província, nela se encontram ou venham a estabelecer-se.
Na ordem de ideias estabelecida e no que diz respeito a me-
didas de protecção, a administração da província de Angola,
como a de qualquer outra colónia em que o colono europeu se
não pôde aclimar nem entregar aos trabalhos agrícolas de campo
DE ANGOLA 591
— salvo em um número muito diminuto de regiões de extensão
limitada — tem por base o indígena, gerador preponderante do
orçamento, o elemento capital de prosperidade, que é mister
proteger. Sem indígenas não há colónias, por que não há pro-
dução nem imposto para o Estado, não há agricultura nem
indústria para os colonos nem comércio para os negociantes.
Nas colónias tropicais, onde a população é quási exclusivamente
agrícola, o verdadeiro colono é o indígena.
Mas, não há só fortes motivos de interesse, há as razoes de
ordem moral, de justiça e de dever, que a nação colonizadora
tem de acatar e que garantem às raças indígenas o direito de
existirem, de se desenvolver e de se civilizarem. O artigo 16.°
do Acto Geral da Conferência de Berlim sancionou expressamente
esta doutrina, visto as potências tomarem o compromisso da
conservação das populações indígenas e do melhoramento das
suas condições materiais e morais de existência.
Para manter e garantir a protecção que ao Governo imcumbe
exercer, afigura-se-nos indispensável, primeiro que tudo, dotar
a província com os órgãos de administração especiais para esse
fim.
Como órgão de administração central sobre negócios indígenas
existe, na província a Secretaria dos Negócios Indígenas, a quem
não faltam atribuições, dadas pelo decreto que a criou e por
aquele que aprovou o regulamento de trabalho indígena, mas
que luta com a exiguidade do pessoal com que foi dotada, insu-
ficiente para os serviços que tem a seu cargo, tornando-se urgente
publicar um diploma reunido todas as atribuições que lhe estão
incumbidas e reorganizando o quadro do seu pessoal (4). Como
complemento, e na mesma ordem de ideias, junto da Secretaria
dos Negócios Indígenas, deve instalar-se um museu etnográfico (2)
que constituirá um elemento valioso de estudo dos usos e costumes
indígenas.
Nas administrações de concelho, circunscrições e capitanias-
móres são delegados da Secretaria os administradores e capitães-
móres.
Delineada a organização da repartição por onde devem correr
os negócios indígenas e, portanto, por intermédio de quem se
(') Vide Apenso XI.
(*) Vide Apenso XII.
592 POPULAÇÕES INDÍGENAS
deve exercer a protecção aos indígenas, uma grande barreira se
levanta diante de nós — a falta de verba com que desde o inicio
da Secretaria se vem lutando para fazer face às despesas com a
protecção a efectivar. Isto mesmo já tivemos ocasião de referir
em um dos anteriores capítulos, propondo a criação de um fundo
especial ; aqui novamente insistimos ria necessidade dos projectos
que elaboramos a este respeito (*).
Sobre a inspecção e fiscalização das condições higiénicas das
povoações indígenas existe na província uma portaria do gover-
nador Norton de Matos, cujas disposições são modelares e-ijue,
se até hoje não produziu resultados apreciáveis, é pela razão
simples de que, dependendo a sua execução de muito trabalho e
persistência, ela tem sido descurada e pode bem dizer-se, consi-
derada como letra morta.
Álêm do legislado na província sobre assistência médica —
que urge fazer cumprir — parece de toda a vantagem mais
alguma coisa estabelecer sobre populações e bairros indígenas,
de forma a concentrá-los em núcleos de populações e exigir que
as povoações ou bairros fiquem completamente separados das
povoações ou bairros dos europeus (2). Não é preciso que o
bairro indígena seja muito afastado do centro europeu, mas é
indispensável que seja construido fora dos limites do bairro
europeu, e, sobretudo, que não se estabeleça era local que pela
direcção do vento dominante possa prejudicar o bairro europeu.
O bairro ou povoações indígenas deverão seguir um plano
determinado, com ruas largas, adoptando-se um tipo de habitação
higiénica e confortável, que os indígenas serão obrigados a seguir ;
ãlêm disto, as terras deverão ser drenadas para o fácil escoa-
mento das águas e os lixos nas ruas serão proibidos.
No que diz respeito à nosologia dos indígenas, àlêm do
paludismo com as suas manifestações, as doenças das vias respi-
ratórias, da pele e do aparelho digestivo, as que maior número
de vítimas fazem, são a variola e a doença do sono.
O indígena tem pela variola verdadeiro terror, que infeliz-
mente não tem sido aproveitado para levar as populações indí-
genas a usar da vacina antivariólica, não obstante existir na
província um regulamento de vacinação e revacinação aprovado
pela portaria provincial n.° 1116 de 14 de Setembro de 1911.
(1) Vide Apensos XIII e XIV.
(2) Vide Apenso XXI.
DA ANGOLA 593
Sobre as medidas profiláticas contra a doença do sono, àlêm
das que foram tomadas pelo Governo da metrópole dignas de
referência, por que de uma maneira intensa efectivam as provi-
dências que vinham sendo reclamadas, convêm agrupar em
povoações os indígenas, vivendo separados em pequenas sanzalas,
ocultos na maioria das vezes em densas florestas, frequentadas
pelas glossinas (l).
Sobre a assistência médica e condições de alojamento, vestuário,
horas de trabalho em que se encontram os indígenas nos estabe-
lecimentos agrícolas ou industriais, àlêm do que dispõe o projecto
sobre o Regulamento de Trabalho Indígena (2), é de toda a van-
tagem estabelecer indemnizações aos indígenas que, no desempenho
do trabalho a seu cargo ou por causa dele, sobrevenha acidente
de que resulte incapacidade de trabalho temporária ou perma-
nente (3) e aos parentes considerados como herdeiros, no caso de
pelo acidente resultar a morte do trabalhador indígena.
Sôb o ponto de vista da assistência moral, àlêm do que
temos ponderado neste trabalho sobre as medidas a adoptar de
protecção à raça Negra, sobre a poligamia, casamentos precoces,
tutela de menores, etc, não convêm deixar de frizar quanto
pernicioso tem sido o cruzamento da raça Branca com a Negra,
e quanta vantagem havia em promulgar medidas que tivessem
por fim dificultar semelhantes ligações.
Destas ligações não tem resultado senão o definhamento da
raça Negra, como bem contestado está nos indígenas das tríbus
que povoam as regiões de mais intensa ocupação e em que se
deram maior número de cruzamentos. Estas populações são de
constituição raquítica e de uma indolência doentia, que contrasta
com a robustez das populações circunvisinhas, em que se não fez
sentir a acção depauperadoura do cruzamento das duas raças.
Nestes termos, torna-se urgente proibir, ou pelo menos difi-
cultar as ligações legítimas ou ilegítimas de indivíduos das duas
raças bem assim como, promulgar disposições que por meio de
prémios de natalidade estimulem o aumento da população (4).
Ainda sobre este assunto muito será para desejar que se
efectivasse uma protecção aos velhos e inválidos, pelo menos nos
(») Vide Apenso XIX.
(2) Vide Apenso VIII.
(3) Vide Apenso IX.
(*) Vide Apenso XV.
594 POPULAÇÕES INDÍGENAS
centros mais civilizados (4), e se adoptassem medidas enérgicas
contra a exploração corrente nas petições escritas a rogo de
indígenas (2).
As petições escritas em nome ou a rogo dos indígenas devem
ser restritas a um número de indivíduos e dadas por meio de
licença concedida pela autoridade administrativa, que só a con-
cederá, a indivíduo de comprovada moralidade e honestidade e
possua instrução necessária para exercer o mister.
Sôb o ponto de vista da assistência intelectual, já tivemos
ocasião de a tal respeito nos pronunciarmos sobre a orientação
a seguir, no capitulo da vida intelectual, sendo supérfluo aqui
novamente reproduzir o que ali deixamos exposto.
II. — Da organização política
Uma boa política indígena exige, àlêm da conservação das
raças indígenas^ e a coodificação dos seus costumes, o respeito
pelas leis, pela organização, pela individualidade política e social
dos povos da região em que se exerce a acção colonizadora.
Cumpre à nação coLonizadora manter a preponderância das
autoridades gentílicas, não derrogar os hábitos locais e conservar
tanto quanto possível, os costumes, as ideias e a religião das
populações indígenas, exercendo uma fiscalização benévola e
efectiva sobre os seu actos, substituindo gradualmente os seus
processos administrativos por outros mais perfeitos, mantendo
rigorosamente a ordem pública e promovendo o progresso da
colónia pela realização de melhoramentos materiais.
Esta política tutelar e benévola, geradora de uma nova civi-
lização, é a verdadeira política indígena. A que traz o Negro a
cooperar com o Branco na realização da grande obra que se
chama colonização, e que nenhum deles isoladamente poderia
levar a cabo, pois o que ao europeu só falta — a resistência física
— é quási o único elemento de que pode dispor o indígena.
A associação do espírito do Branco que pensa e do braço do
indígena que executa dará ao europeu os elementos necessários
para compreender o espírito dos indígenas, e impôr-lhes pela
benevolência a sua autoridade, não desprezando o indígena, nem
caindo no erro de o identificar a si.
í1) Vide Apenso XIX.
(2) Vide Apenso VI.
DE ANGOLA 595
Entre a população indígena da raça Boschjman o regimen
político é o regimen elementar das sociedades patriarcais, o chefe
da família é que exerce a autoridade.
A organização política das populações indígenas da raça Negra
não se apresenta tão rudimentar como a dos Boschj manes e não
pode, pelas diferentes modalidades que tem, reduzir-se a um
único tipo.
Os grandes estados, característicos da organização política das
populações negras doutrora, não existem, desapareceram pela
emancipação dos pequenos estados subordinados que, adquirindo
prestigio e força, se tornaram independentes.
Para isso muito concorreu a sujeição absoluta a que estavam
presos os estados subordinados, posta em prática por um despo-
tismo que a pouco e pouco foi fomentando a revolta e por fim
deu logar à separação. Indirectamente as nossas autoridades,
suprimindo abusos incompatíveis com os sentimentos de humani-
dade favoreceram e facilitaram a independência dos estados
subordinados.
O desaparecimento dos vastos e fortes impérios indígenas, nas
mãos de um soba déspota, se foi inconveniente por dificultar a
acção administrativa, com a falta de uma subordinação bem
estabelecida, entre os povos e seus chefes, do que resultou a
dificuldade de espalhar a acção da autoridade, troxe-nos a van-
tagem, muito para apreciar, de nos livrar das complicações de
soberania resultantes de facilmente se movimentar contra nós
uma grande massa de indígenas ao arbítrio de um chefe.
Os grandes estados que actualmente ainda existem no sul e
sudeste da província, são um arremedo dos antigos impérios do
Congo e do Muat-Ianvua ; no entanto o regime político é absoluto,
exercido despoticamente por um chefe que dispõe dos haveres,
da vida e da liberdade dos seus súbditos. O chefe é assistido
por um conselho — nem em todos os estados — cuja composição
varia de estado para estado, constituído pelos mais velhos da
embala (residência) do soba, ou pelos chefes dos estados subor-
dinados, ou ainda por conselheiros, espécie de ministros. Mas
o que não resta dúvida, é que este conselho em nada se opõe à
vontade suprema do chefe, e outros pelo contrário, quando
chamados a reunir teem o cuidado de se inteirar da sua vontade,
não vá pagar com a vida aquele que tiver a ousadia de, em
conselho, advogar doutrina que lhe desagrade.
Das dissenções nas cortes dos grandes estados, provocadas
596 POPULAÇÕES INDÍGENAS
pelos abusos dos seus chefes, resultou a formação de pequenos
estados independentes, como os da Lunda, do Congo, etc, em
que as prerogativas do chefe estão muito atenuadas pelo conselho
que junto de si teem. O soba não exerce só por si e arbitraria-
mente os seus poderes; o conselho dos velhos, ministros ou pes-
soas importantes (macotas, mutatas, lengas, etc.) interfere de
uma maneira preponderante na gerência dos negócios do estado,
são os depositários das leis e costumes da tríbu, e, na grande
maioria dos casos, o chefe quási não tem vontade própria, porque
quem de facto governa é o seu conselho. O soba tem o direito
do veto, mas raramente dele faz uso, porque seria o primeiro
passo para a sua deposição.
A sucessão do chefe é hereditária nos grandes estados e grande
número de pequenos, e electiva em alguns destes últimos.
A sucessão por hereditariedade faz-se pela linha feminina,
baseada como anda na evidência da maternidade em oposição
às incertezas ou desconfianças do lado paterno, e os sucessores
são os irmãos uterinos e, na falta destes, o primogénito ou mais
competente dos filhos da irmã mais velha do chefe que acaba
de governar. Esta regra tem excepções, sendo dado primeiro
logar aos sobrinhos que aos irmãos, ou mesmo recaindo a su-
cessão no filho primogénito, como sucede em algumas tríbus de
Benguela.
Em algumas tríbus Ganguelas e entre os Quiocos as dissen-
çoes provocadas pelos descontentes que se separaram deram
logar a que cada sanzala ou libata se constituísse em estado, e*
o governo se exercesse por um chefe assistido do seu respectivo
conselho, formado pelos mais velhos.
Nestes reduzidos estados a sucessão é electiva, o chefe é eleito
pelos membros do conselho, e em algumas tríbus Ganguelas a
eleição tem de ser sancionada pelo povo e o soba é eleito para
servir um determinado número de anos, findos os quais deixa o
governo.
Em face da organização política das populações indígenas de
Angola, como a largos traços acabamos de indicar, tem pois o
legislador de aplicar os princípios que expuzemos ao abrir este
capítulo, pondo de parte, de uma vez para sempre, a orientação
de desprezo que se votou aos chefes gentílicos, o manifesto pro-
pósito de os desviar da ingerência na administração dos indígenas,
e a hostilidade quási constante que as autoridades administrativas
manifestaram e praticaram para com eles, deixando de aproveitar
DE ANGOLA 597
tão valiosos elementos, enveredando por uma política de atracção,
no aproveitamento das autoridades gentílicas, no respeito pelos
usos e costumes, em tudo que não vá de encontro aos princípios
de humanidade.
Nesta conformidade o projecto do Estatuto Civil e Político
dos Indígenas que incluimos no apenso e a que já tivemos ocasião
de fazer alusão, mantêm as instituições políticas indígenas, de-
vendo respeitar-se, nas relações de subordinação, na escolha das
autoridades gentílicas e suas funções, as tradições, usos e costu-
mes que não vão de encontro aos princípios de humanidade.
Mas não pode por aqui ficar o que se deve promulgar a este
respeito, e como complemento é necessário precisar aquela dou-
trina em um regulamento, para cujo projecto chamamos a atenção
e que vai inserto no Apenso VII.
III. — Da condição económica
Já neste trabalho tivemos ocasião de aludir à opinião de
Paul Reinsch, sobre o critério scientífico que deve servir de base
para orientar a acção civilizadora. Essa acção deve recair sobre
a organização económica, como o meio mais próprio de acelerar
e facilitar a evolução social.
Com precisão mecânica pode demonstrar-se — diz Paul Reinsch
— que a reforma dos mais viciosos caracteres da vida africana
será a necessária consequência de uma pequena modificação na
organização económica; e assim podemos efectivamente antecipar
uma expansão de novas e melhores energias sociais, quando o
terreno tenha assim sido desembaraçado dos peores obstáculos
do progresso.
Concordamos em absoluto com a doutrina de Reinsch, por
que toda a vida social se encontra dependente da vida económica.
Emquanto não há regularidade nas condições económicas são
verdadeiramente impossiveis as manifestações mais elevadas da
vida social, porque as necessidades de conservação absorvem e
sufocam toda a actividade individual.
As forças económicas são a base sobre a qual se desenvolve
a vida humana em todas as suas modalidades. A evolução de
um povo deriva por isso das causas materiais, independentes da
vontade dos indivíduos, do poder e da influência das leis. O
desenvolvimento da organização do trabalho e a introdução de
novos processos técnicos da produção, aumentando o bem estar
598 POPULAÇÕES INDÍGENAS
da população, farão surgir, com as novas forças económicas, o
senso moral e intelectual dos indígenas.
Das populações indígenas de Angola o Boschjman, cuja ma-
neira de viver quási se não distingue dos processos da vida
comum dos animais inferiores, de facto, não tem um regimen
económico, como se pode verificar no Negro que produz tudo o
que necessita para seu sustento ou para satisfação do seu rudi-
mentar conforto, e que o transaciona com o comércio europeu
ou entre si.
A economia gentílica é imperfeita e muito rudimentar, porque
o Negro não tem a preocupação de criar fortuna, de acumular a
riqueza para aumentar a faculdade de aquisição, por falta de
incentivo e ambição, em grande parte devida a que a unidade
da constituição da comunidade é a família, em virtude da qual
ao indivíduo, mesmo contra sua vontade, não lhe é permitido
acumular em seu próprio proveito o produto do seu trabalho e
tem que o repartir com a família.
Daqui a grande dificuldade de se instituir a propriedade
particular que, salvo dos utensílios e objectos de uso, não existe.
Do estudo etnográfico que fizemos resulta à evidência que a
questão da propriedade entre os negros se encontra em fases
diferentes consoante o seu grau de civilização. Nas tríbus, cara-
cterizadas por um regimen político autocrata nas mãos de um
chefe déspota, a propriedade pertence a este que dela dispõe,
distribuindo a sua exploração pelos seus subordinados a seu
bel prazer; noutras, a propriedade é colectiva, mas a sua ex-
ploração fica ainda dependente de autorização do soba; final-
mente em outras tríbus a propriedade é ainda colectiva, mas
aqui a colectividade é a família, transmite-se aos seus descen-
dentes, e a sua exploração é feita sob a direcção do chefe da
família.
Do exposto se conclue que não podemos ter a pretensão de
estabelecer já a propriedade particular; por emquanto, em nossa
opinião, devemos encaminhar os nossos esforços para aquele
desideratum, dando a propriedade ao clan materno, isto é, à
sociedade familiar conforme convencionamos designá-lo no pro-
jecto do Código de Justiça Indígena.
Neste projecto definimos posse, a retenção de tudo o que, nos
termos do Código, é susceptivel de apropriação por ocupação, e
o que constitue o produto do trabalho, indústria ou comércio.
A posse pode ser adquirida individualmente, mas a sua fruição
DE ANGOLA 599
e exercício pertence à sociedade familiar (clan materno) do
adquirente, segundo o costume local. Da posse resulta o direito
da propriedade para a sociedade familiar do adquirente (4).
Atendendo, pois, às condições de propriedade, as reformas
introduzidas não poderão actuar de uma maneira rápida na
transformação da condição económica dos indígenas. Outro factor
preponderante da sua vida, o comércio, pondo cm contacto
íntimo e prolongado o indígena com o europeu, poderá desem-
penhar um papel preponderante na condição económica dos
indígenas.
O comércio tem uma alta importância na civilização cafreal,
e influe por tal forma no ânimo do Negro, que o leva aos maiores
sacrifícios, para adquirir as bugigangas que satisfaçam os seus
infantis apetites.
A acção do comércio sobre o indígena, recaindo sobre uma
grande massa de indivíduos sob uma forma intensiva, persistente
e constante deve produzir uma transformação profunda do meio
e é uma das melhores maneiras de civilizar o Negro.
Infelizmente assim não tem sucedido, porque o comércio em
lugar de criar necessidades ao Negro, de fazer-lhe nascer hábitos
de conforto, veio explorar-lhe as necessidades carreais, os vícios
e a manifestação dos maus instintos que já tinha. Substitui-lhe
os panos de tecelagem gentílica pelos mais reles algodões, ver-
dadeiras serapilheiras; trouxe-lhó toda a qualidade de vestuário
que guarnecia os adelos e ferros-velhos; estimulou-lhe o vício
da embriaguez, vendendo-lhe o álcool; e alimentou-lhe as lutas
cafreais, facilitando-ihe a pólvora.
Não contavam, por certo, as potências signatárias do Acto
Geral da Conferência de Berlim que as suas intenções fossem
ludibriadas e- que pela bacia convencional do Congo se abrissem
as portas da Africa para nela se introduzirem os lixos e os cacos
da Europa, Muito aó contrário, supôs-se que, com o livre esta-
belecimento do comércio, sob o regimen moderno da concorrência
mercantil, o indígena, para obter o dinheiro necessário para as
suas despezas, ou o género para a troca, exigida pelo comércio,
se lançaria espontaneamente no trabalho livre, concorrendo,
por um processo evolutivo, natural e admissível, para arrancar
as populações indígenas das trevas da barbaria.
(l) Vide Apenso III (Parte II, capítulos II e IV).
600 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Como nação signatária do Acto Geral da Conferência de
Berlim não pudemos deixar de respeitar as suas deliberações,
mas isso não impede que, dentro da esfera da nossa acção go-
vernativa, tomemos medidas que em parte atenuem aquele estado
de coisas.
Nesta ordem de ideias é absolutamente indispensável que, em
lugar de ferros-velhos deve dar-se ao Negro dinheiro, estabele-
cendo um regimen monetário que permita a circulação da moeda
no sertão; «moeda abundante, moeda que seja bem recebida pelos
indígenas, mas que ao mesmo tempo tenha a estabilidade neces-
sária para não perturbar as relações com a metrópole e com
outros paizes, moeda convenientemente subdividida, moeda
que marque a nossa soberania e que não permita a circula-
ção de moedas estrangeiras — é o que devemos e podemos
conseguir.»
Isto disse em 1913 o governador geral Norton de Matos à
Junta Geral da Província no magnífico discurso que então pro-
duziu ao fundamentar a sua proposta sobre o regimen monetário
e acrescentou: «Um regimen monetário, convenientemente ada-
ptado à Província de Angola, deve manter uma circulação uni-
forme, sem a qual nenhum desenvolvimento económico é possível ;
acabar de vez com os pagamentos de salários, de prés e de
impostos em géneros, sistema imoral e dentro do qual nenhuma
administração digna deste nome, se pode organizar; reduzir cada
vez mais o processo de permuta ou de troca de géneros por
outros géneros, processo bárbaro que constitui uma formidável
barreira a opôr-se ã expansão económica e comercial da colónia ;
multiplicar as transações no interior da província, permitindo
transações mínimas; baratear a vida da colónia, satisfazer as
necessidades da metrópole, alargando cada vez mais as suas
operações comerciais com a província de Angola, e ao mesmo
tempo satisfazer as necessidades do comércio indígena; e final-
mente acelerar a evolução económica da colónia.*
É o que urge fazer e compete ao Governo da colónia como
uma forma admissível para a solução do problema económico.
Ainda como complemento das medidas a tomar sob o ponto
de vista da condição económica dos indígenas, não desejamos
dar por terminado o assunto de que temos vindo tratando sem
aludir à importância que a agricultura indígena tem, e pode vir
a ter, na economia da província.
É já um lugar comum afirmar que urge providenciar de forma
DE ANGOLA 601
a intensificar a produção para fazer face às necessidades cada
vez mais crescentes da província.
Em uma colónia como Angola que sob o ponto de vista eco-
nómico se pode classificar de uma colónia mixta, porque abrange
os dois tipos de colónia de plantação e de povoação, a condição
r
principal da sua prosperidade é o capital. E o capital, porque
êle é a alma de qualquer exploração; é o capital porque para o
estabelecimento da colónia de povoação a emigração do capital
tem de preceder a emigração de pessoas.
Nestas circunstancias para intensificar a produção na pro-
víncia é condição essencial o capital. De momento será viável a
drenagem de capital para a Província? E se não é fácil obter
de momento capitais para Angola, devemos esperar de braços
cruzados até que eles se possam obter?
Em nossa opinião, não deve esperar-se, deve procurar-se a
intensificação da produção pela agricultura indígena, mesmo que
para esse desideratum se tenha de lançar mão de um forte estí-
mulo, quási forçado.
Nesta ordem de ideias é absolutamente necessário tornar
compulsórias determinadas medidas, tendentes a encaminhar a
agricultura indígena de forma a obter-se dela os melhores resul-
tados, obrigando os indígenas, em datas fixas, ou determinadas
annalmente, a proceder às cavas, semeaduras, colheitas, etc, dis-
tribuindo-lhe sementes e facilitando-lhe a colocação dos produtos.
IV. — Da condição jurídica
Tudo o que fica exposto neste trabalho mostra a conveniência
de uma legislação especial, em harmonia com as necessidades e
as condições das sociedades gentílicas, sendo supérfluo funda-
mentá-la de novo, ao abrir o estudo da condição jurídica.
A justiça indígena deve ser, sobretudo simples e rápida,
convindo não sobrecarregar os julgamentos senão com as for-
malidades indispensáveis, e tendo em vista na sua aplicação, os
usos e costumes, em tudo que não vá de encontro aos princípios
de humanidade e de equidade, sem os quais nenhuma sentença
poderá conter uma decisão de justiça.
No que diz respeito a administração de justiça indígena a
primeira coisa a considerar é a constituição dos tribunais.
Em causas ou questões gentílicas o seu julgamento deve ser
da exclusiva competência dos tribunais indígenas, arredando-o
39
602 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de uma vez para sempre dos tribunais ordinários, cuja compo-
sição, forma de processo e mais normas e preceitos, são de todo
inconvenientes para as populações indígenas, porque não lhe são
adequados aos seus usos e costumes (*).
A constituição dos tribunais indígenas deve, tanto quanto
possivel, moldar-se na organização dos tribunais gentílicos,
constituidos por diversos membros e presididos pela autoridade
gentílica que profere a sentença e a faz cumprir.
Sobre este assunto dividem-se as opiniões, visto que autores
ha que entendem conservar a constituição dos tribunais con-
forme o costume, arrogando-se o governo do direito de nomear
e demitir os juizes, e fiscalizando o funcionamento dos tribunais
com o recurso da apelação para um tribunal europeu. Funda-
menta-se esta opinião no facto de que o juiz indígena conhece os
usos e costumes que constituem a atmosfera em que êle próprio
foi creado, fala a língua das partes, e assim tem mais facilidade
de descobrir a verdade através da atitude, dos ditos e das
reticências dos pleiteantes.
Estas circunstâncias que, não resta dúvida, teem de ser
tomadas em conta na organização dos tribunais indígenas, não
o podem ser com a latitude acima indicada, porque, pela mesma
razão, não haveria lugar ao tribunal europeu de recurso, e a
administração de justiça aos indígenas ficar-lhe-ia nas mãos, o
que, inconveniente por todos os motivos, nem ao menos dela
poderíamos tirar partido, como política de atracção.
Só quem desconhece os julgamentos gentílicos, as bárbaras
provas subsidiárias empregadas, e as extorsões que eles sancionam
pode admitir a constituição do tribunal, constituído única e
exclusivamente por indígenas. Do tribunal devem fazer parte a
autoridade ou autoridades gentílicas dos pleiteantes e acessores
indígenas, mas será presidido pela nossa autoridade administra-
tiva que não julgará sem ouvir todos os membros do tribunal,
podendo ou não seguir a sua indicação.
Não é conveniente estabelecer para o exercício de justiça aos
indígenas uma autoridade judiciária diferente da autoridade
administrativa. O indígena não compreende facilmente a dis-
tinção entre a jurisdição e a administração, que se apresenta ao
seu espírito simples e ignorante como uma complicação inútil.
A divisão das funções nos meios primitivos não pode ser levada
(') Vido Apenso II.
DE ANGOLA 6Õâ
tão longe, como nas sociedades civilizadas, sendo certo que a
confusão das autoridades administrativas e judiciárias se encontra
forçosamente nos primeiros alvores da evolução social.
De mais, o direito de punir traz consigo um grande prestígio
aquele que o exerce, principalmente perante os indígenas que
não estão familiarizados com esta divisão de trabalho governa-
mental que se chama separação dos poderes e das autoridades.
Em questões entre europeus ou assimilados e indígenas, tam-
bém não existe unidade de vistas. Uns inclinam-se para a ju-
risdição do réu, o que pode obrigar o autor europeu a dirigir-se
a um tribunal indígena. Outros entendem que devem organizar-se
tribunais mixtos com elementos das duas jurisdições, um juiz
europeu e um juiz indígena reunidos sob a presidência de um
funcionário tendo por missão o equilíbrio entre os interesses
opostos dos colonos e dos indígenas. Finalmente ainda outros —
e entre esse número nos contamos — entendem que as questões
entre europeus e indígenas devem ser julgadas pelos tribunais
ordinários europeus, tendo-se em atenção na aplicação das penas
aos indígenas o Código de Justiça indígena.
Voltando propriamente ao que aqui nos interessa, a forma de
regular a administração de justiça aos indígenas, é de toda a
vantagem defini-la, tanto quanto possível, de forma que o simples
pretexto da distância à sede do tribunal não possa servir de
desculpa ao indígena para à sanção deste não sujeitar as suas
questões.
Assim, no projecto do Regimento de Administração de Justiça
aos Indígenas, constituímos, àlêm dos tribunais indígenas de
excepção e provincial, os tribunais indígenas de primeiro grau
estabelecidos junto de cada posto civil ou militar e os tribunais
indígenas de segundo grau estabelecidos junto de cada concelho,
circunscrição ou capitania-mor.
O tribunal provincial funciona junto da Secretaria dos Ne-
gócios Indígenas e compete-lhe conhecer dos recursos interpostos
das sentenças dos tribunais regionais.
Os tribunais de excepção reúnem, quando convocados pelo
Governador Geral que indicará os litígios que vão julgar, a sua
composição e o local onde devem funcionar, sendo dissolvidos
logo que tenham terminado a sua missão.
Os tribunais de excepção teem competência exclusivamente
para julgar: os crimes de rebelião contra o Estado, o Governo
da província ou os seus representantes ; os crimes cometidos
604 POPULAÇÕES INDÍGENAS
colectivamente contra sobados, sanzalas ou libatas e tríbus, com
o fim de exercer autoridade, de fazer razias ou exercer vingan-
ças; os crimes de contrabando de armas e munições; os actos de
força contra as tropas regulares, contra caravanas de carrega-
dores e escoteiros em serviço do Estado.
Aos tribunais regionais do segundo grau compete julgar, em
matéria civil, todas as causas e, em matéria crime, todos os
crimes que não sejam da competência do tribunal de excepção.
Quanto aos tribunais indígenas do primeiro grau, não se lhes
deve dar competência para julgar causas crimes e deve restrin-
gir-se a competência em matéria civil a causas cujo valor não
exceda a 20$00.
No que diz respeito à forma de processo temos de banir por
completo a organização morosa dos nossos processos, e as suas
minutas complicadas, tão pouco conformes com a mentalidade e
com os interesses dos indígenas, devendo-nos inspirar no resul-
tado da experiência.
Assim é que o processo, quer se trate de matéria civil, quer
de matéria criminal, será sumário e o julgamento em discussão
verbal.
Quanto à instrução do processo deve ela ficar a cargo do
presidente do tribunal, a quem deve dar-se liberdade de acção.
- A sua iniciativa precisa de se encontrar desembaraçada das res-
trições do código do processo, em virtude da pouca confiança
que merecem as testemunhas e da dificuldade que há de encon-
trar os culpados. Se a acção do juiz se mantiver coartada pela
lei, impondo um certo modo de proceder, os criminosos escaparão
quási todos, rindo-se o indígena da nossa impotência e multipli-
cando-se os atentados contra as pessoas e as propriedades de um
modo assombroso, como está sucedendo.
Estas razões aconselham deixar ao juiz a escolha dos meios
mais eficazes para a descoberta dos criminosos, por ser esta a
forma mais simples e mais prática de exercer a justiça aos in-
dígenas.
Como já tivemos ocasião de frizar o nosso projecto institui o
recurso de apelação e de revista para os tribunais indígenas do
segundo grau em relação às sentenças proferidas nos de primeiro
e para o tribunal provincial para as do segundo.
Os recursos de apelação e de revista devem existir, como
garantias verdadeiramente necessárias de uma boa administração
da justiça.
DE ANGOLA 605
Emfim, como feixo do regimento de administração de justiça
aos indígenas instituímos no nosso projecto a assistência judi-
ciária.
Exposta a nossa opinião sobre o regimento de administração
de justiça, passamos a indicar a forma de estabelecer os direitos
e obrigações dos indígenas e regular as relações entre si, con-
soante o estado social da sua civilização, e de forma a não ir de
encontro aos princípios de humanidade, isto é, passamos a estudar
o Código de Justiça Indígena.
As populações indígenas de Angola não distinguem, como os
povos civilizados, a responsabilidade civil da responsabilidade
criminal ; a simples contestação dos seus direitos é considerada
como uma ofensa, que tem de ser desagravada pelo seu autor ou
pelos seus parentes, porque todos são considerados solidaria-
mente responsáveis.
Não consagram o princípio da irresponsabilidade pessoal,
nem a legítima defeza é facto justificativo, pois consideram as
ofensas somente pelo lado exterior e objectivo, sem atenção ao
elemento da voluntariedade.
Todos os crimes se desagravam pelo pagamento de uma com-
posição pecuniária, todos são delitos civis, ainda que para muitas
ofensas não haja regras fixas de indemnização.
São estes os princípios gerais sobre que assenta o estatuto
jurídico dos indígenas e é consoante eles que nós temos de ela-
borar o Código do indiginato, não obstante os não admitamos
integralmente.
Nestes termos, no projecto do Código de Justiça Indígena (*)
que elaboramos, tomamos por base o princípio a que já mais de
uma vez fizemos menção, de que a unidade da constituição da
comunidade é o clan materno, restringindo assim a responsabi-
lidade colectiva de todos os membros da família ao clan materno,
porque essa restrição se esboça na grande maioria das tríbus, e
portanto, assim, facilitamos a evolução natural que lenta e pro-
gressivamente se vai operando na civilização das populações
indígenas.
A sociedade familiar — assim convencionamos designar o clan
materno — é a base sobre que giram todas as disposições do
Código, interferindo em todos os actos da vida dos seus respe-
ctivos membros, e por esse facto, solidariamente responsável pelo
(l) Vide Apenso III.
606 POPULAÇÕES INDÍGENAS
cumprimento de todas as disposições civis voluntariamente con-
traídas por qualquer dos seus membros ou que aos mesmos seja
imposta por efeito legal ou por sentença.
O indígena maior do sexo masculino, nos termos do mesmo
Código, tem capacidade civil para gerir a sua própria pessoa e
haveres, é-lhe lícito apropriar-se pela ocupação dos terrenos,
animais e produtos ou substâncias naturais, salvo as restrições
consignadas no Código e nos regulamentos especiais, pode esco-
lher o género de trabalho para prover à sua subsistância, tem a
faculdade de intervir em contractos, etc, mas todos os actos da
sua vida, tudo aquilo de que só apropria, todo o produto do seu
trabalho, comércio e indústria, todos os contractos cm que inter-
vém, ficam dependentes e subordinados à sociedade familiar que,
solidariamente responsável, em todos interfere.
No que diz respeito ao facto dos indígenas não distinguirem
a responsabilidade civil da responsabilidade criminal, não pode
este princípio prevalecer no Código de Justiça Indígena; isso
equivaleria a não admitir a reparação da ofensa ou violação pelo
dano causado à sociedade na ordem moral.
Sobre direito civil, àlêm do que já tivemos ocasião de fazer
alusão neste trabalho, sobre relaç5es entre os diversos membros
da família, tutela de menores, ocupação, posse e propriedade,
admite o Código os contractos de parceria pecuária, muito em
voga nas tríbus que se entregam à creação de gado bovino, de
empréstimo, de compra e venda e de locação.
O cumprimento das obrigações que resultam dos contractos
pode ser garantido por fiança ou por penhor.
Com relação à sucessão, àlêm da legítima, não podemos deixar
de incluir no projecto do Código a sucessão testamentária porque
ela é frequente em algumas tríbus, em que os indígenas por sua
última vontade dispõem verbalmente e perante testemunhas dos
seus haveres; mas tanto uma como outra são restritas aos mem-
bros da sociedade familiar, podendo só recair em estranhos na
falta de membros daquela; isto é, o testador pode desherdar alguns
dos seus legítimos descendentes em favor de outros e só pode
testar livremente em favor de qualquer pessoa quando não tiver
sucessores legítimos.
A sucessão legítima defere-se pela linha feminina, como já
mais de uma vez aludimos, isto é, defere-se entre os membros
da família do clan materno do autor da herança, que constituem
a sociedade familiar a que êle pertence, na ordem e consoante o
DE ANGOLA 607
costume local, e só na falta de membros da família pertencentes
ao clan materno se defere a sucessão entre os do clan paterno.
No que diz respeito à parte do projecto que se refere ao
direito penal, temos que ter em conta, como na parte do direito
civil, que não podemos aplicar aos indígenas pura e simplesmente
o nosso Código Penal.
O indígena não tem noção alguma do que nós chamamos
ordem, não respeitando, por vezes, nem a vida nem a propriedade,
perante o que devem ceder os escrúpulos jurídicos e as conside-
rações sentimentais, organizando-se uma justiça repressiva, de
forma a garantir a vida e os haveres.
A lista de infracções não pode ser a mesma, embora isto
brigue, à primeira vista, com as nossas ideias de igualdade, visto
que há determinadas acções proibidas a europeus que se devem
permitir aos indígenas, sob pena de se provocar a sua desorga-
nização social.
A gravidade dos crimes pode não ser a mesma, conforme se
trate de um europeu ou de um indígena ; uma acção que pode
ser gravemente exprobada a um europeu, de quem se deve exi-
gir uma moralidade, superior, será uma falta ligeira quando
praticada por um indígena.
Assim, é necessário analizar cada infracção, apreciar as suas
condições e defini-las, tendo em atenção o estado social, os cos-
tumes, as ideias morais e religiosas dos indígenas, aferindo-se a
sua gravidade de forma a conciliar-se este ponto de vista com o
da nossa segurança e o do nosso prestígio.
Por esta forma no projecto do Código, na parte penal, esta-
belecemos a aplicação das penas previstas pelo nosso Código
Penal nos crimes contra a segurança do Estado e contra a vida
e liberdade das pessoas, e admitimos como penas previstas pelo
costume: a de degredo; a de desterro; a de trabalho correcional;
a de multa; e a de indemnização. E, quando as penas mandadas
aplicar pelo Código forem as decretadas pelo Código Penal, en-
tender-se liá que as penas maiores de prisão celular, seguidas
de degredo ou não, serão sempre substituídas pelas penas maiores
de degredo fixo ou temporário, aplicáveis em alternativa, e que
a pena de prisão correccional será sempre substituída por tra-
balho correccional.
A pena de indemnização àlêm dos casos em que é taxativa-
mente decretada no Código deverá, cumulativamente com outras
penas, ser imposta pelos tribunais indígenas em todos os crimes
608 POPULAÇÕES INDÍGENAS
e delitos de que resulte prejuízo para o ofendido, quando este
não seja o Estado.
Tendo em vista o que deixamos exposto sobre a aplicação
das penas, no projecto do Código de Justiça Indígena graduamos
as penas previstas pelo mesmo Código, consoante a gravidade
dos crimes sob ponto de vista gentílico.
Como meio de prova, tanto em matéria civil como em matéria
penal, admitimos todos os que são admitidos nas leis portuguesas
e ainda aqueles que, nos usos e costumes de cada tríbu, consti-
tuem para muitos pleitos incontestável prova da verdade dos
fa&tos.
É evidente que nestas provas não queremos abranger as que
são verdadeiros crimes contra pessoas ou grosseiras superstições,
tais como a do veneno, do ferro em braza, da água a ferver, da
decapitação de um animal, das práticas de magia ou adivinhação
de feiticeiros e outras, tão bárbaras ou tão grosseiras e pueris,
como as que citamos. Referimo-nos aos objectos permutados como
sanção de um contracto, dos sinais pintados ou gravados, às
cerimónias realizadas, e a outros actos que, na tradição de cada
tríbu, é uso praticar-se antes ou após a realização de qualquer
facto.
Em tudo que deixamos exposto sobre a condição jurídica
visamos sobretudo as populações indígenas da raça Negra, visto
nâo haver possibilidade de a nós atrair as populações Boschjmanes
e muito menos de por uma forma taxativa regular o seu modo
de ser arbitrário e selvagem.
APENSO
PROJECTO DO ESTATUTO CIVIL E POLÍTICO
DOS INDÍGENAS DE ANGOLA
Artigo 1.° Considera-se indígena da província de Angola, o indivíduo
de côr (preto ou mestiço), natural da província, ou de colónias africanas
portuguesas ou estrangeiras, que não satisfizer cumulativamente às se-
guintes condições:
1.° Falar e escrever o português ou alguma outra língua culta ;
2.° Não praticar os usos e costumes característicos das raças africanas ;
3.° Exercer profissão, comércio ou indústria, ou possuir bens de que
se mantenha.
Art. 2.° O indivíduo de côr (preto ou mestiço) natural da província ou
de colónias africanas portuguesas ou estrangeiras, que satisfaça, cumu-
lativamente, às condições do artigo anterior será considerado cidadão da
República, e como tal isento da aplicação das leis e outras disposições
exclusivamente adoptados para indígenas, tendo garantido o pleno uso de
todos os direitos civis e políticos concedidos na província aos portugueses
originários da metrópole.
§ único. Nas administrações de concelho, de circunscrição civil e capi-
tanias-móres far-se há registo dos indivíduos de côr (pretos ou mestiços),
abrangidos pelo estabelecido neste artigo, que perante o respectivo admi-
nistrador ou capitão-mór, conforme o caso, provem satisfazer às condi-
ções indicadas.
Art. 3.° O exercício dos direitos e garantias individuais dos indígenas
da província de Angola, será regulado nos termos seguintes :
1.° Serão mantidos os foros de nobreza e os títulos hierárquicos tradi-
cionais segundo os usos e costumes ;
2.° É inviolável a liberdade de consciência e de crença, e garantido o
exercício de todos os cultos, desde que não ofendam os princípios huma-
nitários e que sejam compatíveis com a ordem pública ;
3.° É livre o direito de reunião, associação e petição. Disposições es-
peciais regularão o direito de petição, quando fôr exercido por escrito
e assinado a rogo ;
4.° O domicílio não é inviolável;
5.° É admitida a prisão sem culpa formada, quando fôr executada por
ordem escrita da autoridade competente;
6.° A definição, punição dos crimes, delitos e contravenções, a instru-
612 POPULAÇÕES INDÍGENAS
ção e forma de processo, as autoridades que tenham de intervir no julga-
mento, e tudo o mais que diga respeito à administração de justiça a indí-
genas será regulado por disposições especiais •,
7.° O estado civil e os respectivos registos são da exclusiva competência
da autoridade administrativa. Disposições especiais regularão o assunto ;
8.° O direito de ocupação, concessão e propriedade de terrenos é regu-
lado pelas disposições especiais sobre o assunto ;
9.° É livre a forma de dar cumprimento à obrigação moral e legal a
que o indígena está sujeito de, por meio de trabalho, prover ao seu sustento
e melhorar sucessivamente a sua condição social.
Art. 4.° O Governador Geral, por intermédio da Secretária dos Negó-
cios Indígenas, é o protector nato dos indígenas da província, quer nela
permaneçam, quer, não sendo da província, nela se encontrem ou venham
a estabelecer-se.
Art. 5.° São mantidas as instituições políticas indígenas, devendo res-
peitar-se, nas relações de subordinação, na escolha das autoridades gen-
tílicas e suas funções, as tradições, usos e costumes que não vão de en-
contro aos princípios humanitários.
II
PROJECTO DO REGIMENTO
DE ADMINISTRAÇÃO DE JUSTIÇA AOS INDÍGENAS
DA PROVÍNCIA DE ANGOLA
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.° 0 julgamento das causas ou questões gentílicas é da exclu-
siva competência dos tribunais indígenas.
§ único. Desde que uma das partes em litígio seja um cidadão europeu
ou de côr, nos termos do estatuto civil e político dos indígenas, será o
julgamento das atribuições dos tribunais ordinários, tendo em atenção
na aplicação das penas aos indígenas o Código de Justiça Indígena.
CAPÍTULO II
Da constituição dos tribunais indígenas
Art. 2.° A administração de justiça aos indígenas da província de
Angola é ministrada :
1.° Nos tribunais indígenas regionais de 1.° grau, estabelecidos junto
de cada posto civil ou militar das circunscrições e capitanias-móres ;
2.° Nos tribunais indígenas regionais de 2.° grau, estabelecidos junto
de cada um dos concelhos, circunscrições civis e capitanias-móres ;
3.° No tribunal indígena provincial, estabelecido em Loanda ;
4.° Nos tribunais indígenas de excepção.
Art. 3.° Os tribunais regionais de 1.° grau são constituídos pelo chefe
do posto, pelo chefe ou chefes gentílicos, reconhecidos pela autoridade, a
que pertencem os indígenas em litígio, e por dois acessores, escolhidos
anualmente pelo administrador do concelho ou da circunscrição, ou ca-
pitania-mór, conforme o caso, de uma lista de cinco indígenas ou assimi-
lados de reconhecida preponderância e honestidade apresentada pelo chefe
do posto.
Art. 4.° Os tribunais regionais de 2 o grau são constituídos pelo admi-
nistrador do concelho ou da circunscrição ou capitão-mór, conforme o
caso, que será o presidente do tribunal ; pelo secretário da administração
614 POPULAÇÕES INDÍGENAS
do concelho ou da circunscrição ou capitania mór, que será o secretário
com voto; pelo chefe ou chefes gentílicos, reconhecidos pela autoridade,
das áreas a que pertencem os indígenas em litígio; e dois acessores, no-
meados anualmente pelo Secretário dos Negócios Indígenas e escolhidos
de uma lista de cinco indígenas ou assimilados de reconhecida prepon-
derância e honestidade, apresentada pelo presidente do tribunal.
Art. 5.° O tribunal provincial é constituído pelo Secretário dos Negó-
cios Indígenas que será o presidente, o delegado do procurador da Re-
pública da comarca de Loanda, e um indivíduo, funcionário ou não, co-
nhecedor dos usos e costumes indígenas, nomeado pelo Governador Geral
anualmente.
§ único. Servirá de Secretário neste tribunal sem voto um amanuense
da Secretaria dos Negócios Indígenas, designado pelo presidente do tri-
bunal.
Art. 6.° Os tribunais de excepção são compostos de membros, desi-
gnados pelo Governador Geral na portaria que os mandar constituir.
§ único. Na constituição destes tribunais o Governador Geral poderá,
se assim o entender, deixar de incluir acessores indígenas.
Art. 7.° Os chefes gentílicos e os acessores dos tribunais indígenas
não teem voto, mas o tribunal não pode nunca julgar sem os ouvir.
Art 8.° Junto de cada tribunal haverá um intérprete.
Art. 9.° No caso de uma das partes em litígio ser um chefe gentílico,
que teria de fazer parte do tribunal, será este substituído por um outro
com preponderância na região escolhido pelo presidente do tribunal.
Art. 10.° Os tribunais regionais do 1.° e 2.° grau funcionam respecti-
vamente junto das secretarias dos postos civis e militares, dos concelhos,
das circunscrições e das capitanias-móres. O tribunal provincial funcio-
nará na Secretaria dos Negócios Indígenas e os tribunais de excepção no
local designado na portaria da sua constituição.
Art. 11.° Os tribunais regionais não teem reuniões periódicas, são
convocados conforme as necessidades e conveniências de serviço pelos
seus respectivos presidentes.
Art. 12.° O tribunal provincial tem uma reunião mensal.
Art. 13.° Os tribunais de excepção reúnem, quando convocados pelo
Governador Geral em portaria que designará a sua composição, o local
onde deve funcionar e os litígios que vão julgar, sendo dissolvidos logo
que tenham terminado a sua missão.
CAPÍTULO III
Da competência dos tribunais indígenas
Art. 14.° Os tribunais regionais do 1.° grau; em matéria civil e comer-
cial, teem competência para julgar causas cujo valor não exceda a 20100;
em matéria crime não teem competência para julgar.
Art. 15.° Os tribunais de 2.° grau teem competência para julgar em
matéria civil e comercial todas as causas, e em matéria crime todos aqueles
que não sejam das atribuições dos tribunais de excepção.
§ único. A estes tribunais compete rever os julgamentos efectuados
BE ANGOLA G15
nos tribunais do 1.° grau, sem que para isso haja necessidade da sus-
pensão da sentença, salvo o caso de ter sido interposto recurso dessa sen-
tença.
Art. 16.° Ao tribunal provincial compete conhecer dos recursos inter-
postos das sentenças dos tribunais regionais do 2.° grau.
Art. 17.° Os tribunais de excepção teem competência exclusivamente
para julgar :
a) Os crimes de rebelião contra o Estado, o Governo da província ou
os seus representantes;
b) Os crimes cometidos colectivamente contra sobados, sanzalas ou li-
batas e tríbus, com o fim e exercer autoridade de fazer razias ou exercer
vinganças;
c) Os crimes de contrabando de armas e munições;
d) Os actos de força contra as tropas regulares, contra caravanas de
carregadores e escoteiros em serviço do Estado.
CAPÍTULO IV
Da forma do processo
Art. 18.° O processo, quer se trate de matéria criminal, quer se trate
de matéria civil ou comercial, será sumário e o julgamento em discussão
verbal.
Art. 19.° O tribunal, em matéria civil ou comercial, não promoverá
qualquer acção sem uma comunicação oral ou por escrito dirigida ao pre-
sidente do tribunal e um preparo na importância de um escudo e cincoenta
centavos quando o julgamento fôr da competência do tribunal do primeiro
grau e três escudos quando fôr da competência do tribunal do segundo
grau.
§ único. Deste preparo cabe, nos tribunais do primeiro grau, 50% à
autoridade que julgar a causa, 25% ao chefe ou chefes gentílicos que in-
tervenham, e 25% aos acessores; nos tribunais do segundo grau, 50% ao
presidente do tribunal, 10% ao secretário do mesmo, 20% ao chefe ou
chefes gentílicos que intervenham e 20% aos acessores.
Art. 20.° Em matéria crime o tribunal promoverá o julgamento de
todos os crimes que tem competência para julgar e ao seu conhecimento
chegarem, independentemente mesmo de participação ao presidente do
tribunal.
Art. 21.° Ao presidente do tribunal compete a instrução das causas a
julgar, podendo, nesta conformidade, inquirir e ouvir testemunhas e as
partes em qualquer local e ocasião mandar prender preventivamente o
réu, e proceder a quaisquer diligências que julgar necessárias.
Art. 22.° A instrução de qualquer causa não deverá exceder um prazo
de tempo que vá àlêm de quinze dias a contar da data que o presidente
do tribunal dela tiver conhecimento, findo o qual se procederá ao julga-
mento.
§ único. A ampliação do prazo de tempo para a instrução só pode ser
feita por julgamento que prove a sua insuficiência.
Art. 23.° Dentro do prazo que não exceda a dez dias a contar do co-
616 POPULAÇÕES INDÍGENAS
nhecimento da causa será feita a convocação do tribunal, e intimadas as
partes e testemunhas para em dia e hora determinada se proceder ao
julgamento da causa.
Art. 24.° As partes são obrigadas a comparecer, podendo, no caso de
impossibilidade, fazerem-se representar por mandatários escolhidos entre
os parentes, tendo, no entanto, a sua qualidade de ser reconhecida pelo
tribunal.
§ único. Caso ambas as partes ou uma delas, devidamente convocadas,
não compareça ou não se façam representar, o tribunal julgará como se
todos estivessem presentes.
Art. 25.° A cada uma das partes é concedido fazer-se acompanhar de
um defensor indígena, ficando a sua apresentação dependente da resolução
do presidente do tribunal.
Art. 26.° Os julgamentos são públicos, podendo o tribunal por motivos
excepcionais reunir-se em audiências secretas.
Art. 27.° Dos .julgamentos se lavrará acta escrita em um livro de
registo de que constará :
a) Os nomes, idades, profissões e residências dos membros do tribu-
nal, das partes, das testemunhas, do intérprete e de quaisquer outras
pessoas que intervenham no julgamento.
b) Hora, dia, mês e ano em que o julgamento tiver logar.
c ) Enunciado da causa e resumo da sua discussão.
d) Fundamento da sentença.
e) A sentença.
Art. 28.° As actas serão assinadas por todos os membros do tribunal
que saibam ler e escrever, serão feitas por séries anuais, escrevendo-se
na margem das folhas do livro respectivo, o número de ordem e do ano
a que digam respeito, e serão separadas umas das outras por um simples
traço não devendo ficar qualquer linha em branco entre elas.
Art. 29.° As actas serão escritas por extenso, sem emendas, razuras
e algarismos, devendo qualquer erro ser rectificado na mesma e em se-
guida à sentença antes das assinaturas.
Art. 30. • As anotações que sejam julgadas necessárias bem assim
como a declaração de ter havido recurso e o resultado deste serão feitas
nas margens das actas.
Art. 31.° Proferida a sentença e passada em julgado, será esta posta
em execução pela autoridade administrativa em que o tribunal funciona,
sendo-lhe enviadas pelo presidente do tribunal as certidões das sentenças,
quando este o não fôr.
Art. 32.° Quando se tratar da pena de multas a importância destas
dará entrada na Fazenda por guia assinada pela autoridade encarregada
da execução da sentença.
Art. 33.° Aos presidentes dos tribunais regionais e às autoridades
competentes cumpre, por todos os meios ao seu alcance, dar imediata
execução às sentenças, de forma a garantir o seu integral cumpri-
mento.
DÉ ANGOLA 617
CAPÍTULO V
Dos recursos
Art. 34.° Das sentenças dos tribunais regionais do primeiro grau cabe
recurso aos tribunais regionais do segundo grau e das sentenças destes
para o tribunal provincial.
§ único. Das resoluções do tribunal provincial não ha recurso.
Art. 35.° Das sentenças dos tribunais de excepção cabe recurso para
o Governador Geral em Conselho do Governo.
Art. 36.° Qualquer dos recursos acima indicados será interposto no
prazo de três dias a contar da data da sentença, por uma simples decla-
ração verbal ou escrita feita ao presidente do tribunal que intervier no
julgamento, o qual a seguir mandará tirar certidão do acto do julgamento
e enviará ao presidente do tribunal para que cabe recurso.
§ único. No caso do recurso dos tribunais de excepção, serão as cer-
tidões das actas dos julgamentos presentes ao Governador Geral por
intermédio do Secretário dos Negócios Indígenas.
Art. 37.° Os recursos serão instruídos no acto da sua apresentação
com um preparo na importância de seis escudos.
§ único. Deste preparo cabe 40% ao presidente do tribunal, 25% a
cada um dos vogais do tribunal e 10 % ao secretário.
CAPÍTULO VI
Da assistência judiciária
Art. 38.° Junto de cada tribunal regional de segundo grau funcionará
uma comissão de assistência judiciária aos indígenas, composta de três
membros anualmente nomeados pelo Governador Geral sob proposta do
presidente do respectivo tribunal e que recairá em cidadãos europeus ou
de côr, funcionários ou não, de provada moralidade e honestidade.
Art. 39.° As comissões de assistência prestarão, perante os tribunais
indígenas, assistência judiciária aos indígenas que, por falta de recursos,
comprovada pelas comissões junto dos mesmos tribunais, se encontrem
impossibilitados de exercer os seus direitos junto deles.
§ único. Aos indígenas nestas condições não será levado preparo na
instrução do processo.
CAPÍTULO VII
Disposições diversas
Art. 40.° Os presidentes dos tribunais do 2.° grau elaborarão mensal-
mente um mapa (modelo A) das causas julgadas nos tribunais a que
presidem e nos tribunais de primeiro grau pertencentes à divisão admi-
nistrativa onde aquele se encontra instalado, e envia-lo-hão para a Secre-
taria dos Negócios Indígenas até ao dia 15 de cada mês.
Art. 41.° Em face dos mapas recebidos será publicado pela Secretaria
40
618
POPULAÇÕES INDÍGENAS
dos Negócios Indígenas um boletim semestral, donde constem as causas
julgadas e o modo como foram resolvidas, durante o semestre anterior.
Art. 42.° Os livros de registo das actas do julgamento e mais expe-
diente será fornecido pela Fazenda a requisição dos presidentes dos
tribunais.
: § único. Os livros de registo das actas e mais expediente dos tribunais
de excepção serão requisitados pelo Secretário dos Negócios Indígenas e
ficarão depositados na Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 43.° Á Secretaria dos Negócios Indígenas incumbe fiscalizar e
inspeccionar o funcionamento dos tribunais indígenas, e receber e expedir
toda a correspondência que sobre os tribunais indígenas tenha de ser
presente ao Governo Geral ou a qualquer concelho.
(Modelo A)
Data
Da apresenta-
ção da causa
Dia
Mês
Ano
Do julgamento
Dia
Mês
Ano
Nome
3 domi-
cilio
do
autor
Nome
3 domi-
cílio
do
réu
Objecto
da
Funda-
mento
da
sentença
Sentença
III
PROJECTO DO CÓDIGO DE JUSTIÇA INDÍGENA
PARTE I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. l.° As disposições deste Código estabelecem direitos e obrigações
aos indígenas da província de Angola e regulam as relações entre si con-
soante o estado actual da sua civilização e de forma a não ir de encontro
aos princípios humanitários dos povos civilizados.
Art. 2.° A ofensa ou violação dos direitos de outrem importa a obriga-
ção de indemnizar o lezado pelos prejuízos causados.
Art. 3.° Os direitos ofendidos produzem :
a) responsabilidade civil;
b) responsabilidade criminal;
c) responsabilidade civil e criminal simultaneamente.
Art. 4.° A responsabilidade civil e criminal consiste na obrigação em
que se constitui o autor da ofensa ou violação dos direitos de outrem de
restituir o lesado ao estado anterior ao da lesão, indemnizando-o das per-
das e danos que lhe tiver causado.
Art. 5.° A responsabilidade criminal consiste na obrigação em que se
•institui o autor da ofensa ou violação de reparar o dano causado à socie-
dade na ordem moral.
Art. 6.° A responsabilidade civil nunca é acompanhada da responsabi-
lidade criminal.
A responsabilidade criminal pôde ser acompanhada da responsabili-
dade civil, e os casos em que o é são especificados neste Código.
Art. 7.° O direito de exigir reparação bem como a obrigação de a pres-
tar transmite-se por herança em todos os casos da responsabilidade civil ;
nos casos de responsabilidade criminal transmite-se unicamente o direito
de exigir a reparação.
62Ô POPULAÇÕES INDÍGENAS
PARTE II
DO DIREITO CIVIL
CAPÍTULO I
Da Capacidade Civil
Art. 8.° Todo o indígena do sexo masculino maior nos termos deste
Código é apto para gerir a sua pessoa e haveres.
Art. 9.° São incapazes para gerir a sua pessoa e haveres:
1.° As mulheres;
2.° Os menores ;
3.° Os dementes ;
4.° Os surdo-mudos ;
5.° Os que acidentalmente se acharem privados de fazer uso da sua
razão por algum acesso de delírio, embriaguês ou outra causa seme-
lhante.
Art. 10.° A incapacidade da mulher é suprida, nos termos e condições
estabelecidas neste Código, quando casada, pelo marido, e na falta ou in-
capacidade deste, ou quando solteira ou viuva pelo chefe do clan materno
da família a que pertence.
Art. 11.° A incapacidade dos menores é suprida pelo pai e na falta ou
incapacidade deste por tutela conforme dispõem os artigos seguintes.
Art. 12.° Todos os filhos qualquer que seja o estado civil em que a
mãe os houver, são considerados como de maternidade legítima.
Art. 13.° São considerados de paternidade legítima os filhos que a
mulher conceber durante a constância do casamento, desde que o marido
ou a sua família não contestem a sua legitimidade.
Art. 14.° O casamento legitima a paternidade dos filhos nascidos das
pessoas que o contraem e que existam à data da sua celebração, qualquer
que fosse a situação destas pessoas no momento da concepção ou nasci-
mento.
Art. 15.° São considerados de paternidade ilegítima os filhos havidos
de mulher solteira, divorciada ou viuva, e bem assim os de mulher casada
cuja paternidade seja contestada pelo marido ou sua família.
Art. 16.° Os filhos de paternidade ilegítima podem ser perfilhados pelo
presumido pai, desde que a mãe ou sua família convenham na perfilhação.
Art. 17.° Ao pai compete reger e dirigir as pessoas dos filhos menores
e administrar os seus bens.
Art. 18.° O indivíduo considerado como chefe do clan materno parti-
cipa dos deveres que competem ao pai e que ficam estabelecidos no artigo
anterior.
Art. 19.° Compete exclusivamente ao pai representar e defender os
seus filhos menores perante os tribunais, e prover à sua subsistência.
Art. 20.° Os filhos menores devem obediência e respeito aos pais e tios
ou outro qualquer membro da família considerado como chefe do clan
maternc.
DE ANGOLA 621
Art. 21.° Na ausência ou impedimento do pai competem à mãe os deve-
res consignados nos artigos 17.° e 19.°.
Art. 22.° Na falta do pai os deveres e obrigações que a este incumbe
para com os filhos menores são exercidos por tutela.
Art. 23.° A tutela legítima dos filhos legítimos menores pertence :
1.° Ao chefe do clan materno ou a qualquer outro membro deste, por
tácito acordo entre a família, e na falta destes ;
2.° Ao chefe da família do clan paterno ou a qualquer membro desta
por tácito acordo entre a família.
Art. 24.° A tutela dos menores, órfãos ou abandonados, de que se não
conheça família, será exercida pelo Curador Geral, ou, por delegação
deste, pelos Agentes do Curador.
§ único. A acção de tutela do Secretário dos Negócios Indígenas e
Curador Geral e seus agentes pôde ir até à suspensão temporária ou ini-
bição completa do poder tutelar das pessoas designadas nos artigos 17.° a
23.° inclusive, quando os menores se encontrem em perigo moral, quer
pelo abandono a que tenham sido votados, quer pela insuficiência de qua-
lidades educadoras das mesmas pessoas.
Art. 25.° O Curador Geral, ou, por delegação deste, os Agentes do
Curador, poderão entregar os menores, nas condições do artigo anterior,
ao cuidado e responsabilidade de qualquer estabelecimento do Estado ou
Município ou por eles subsidiado ou ainda a qualquer particular, que se
encarregue gratuitamente de prover à sua subsistência e educação.
Art. 26.° A entrega de menores será feita mediante termo de respon-
sabilidade, lavrado perante o Curador ou seus Agentes.
Art. 27.° Do termo de responsabilidade constará a forma de dar exe-
cução aos deveres estabelecidos no artigo 25.°, e bem assim, a obrigação
a que fica sujeito o depositário, quando fôr um particular, de entregar o
menor quando se ausente da área da jurisdição da autoridade que lho
entregou, no caso do depósito ter sido feito por um agente do curador,
e da sede da Curadoria Geral quando o depósito tiver sido feito pelo
Curador Geral.
Art. 28.° Os directores ou gerentes de estabelecimentos do Estado ou
Municípios, e bem assim os particulares que tomarem a seu cargo meno-
res órfãos ou abandonados, ficam sendo seus tutores, salvo a superien-
tendência do Curador Geral, ou dos seus agentes que poderão rescindir
o depósito e dar novo rumo aos menores, quando o entendam por con-
veniente.
Art. 29.° Os indígenas da província de Angola atingem, sem distinção
de sexos, a maioridade aos 18 anos de idade completos.
§ único. Os menores de 16 anos sendo do sexo masculino e os de 14
anos do sexo feminino, atingem a maioridade pelo casamento.
Art. 30.° A incapacidade dos dementes e surdo-mudos é suprida pelo
chefe do clan materno da família a que pertencem, na falta ou incapaci-
dade deste pelo chefe do clan paterno e na falta ou incapacidade deste o
membro da família escolhido por tácito acordo.
Art. 31.° A incapacidade dos dementes e surdo-mudos de que se não
conheça família é suprida pelo Curador Geral, ou, por delegação deste,
pelos agentes do curador, observando-se o disposto nos artigos 25.°, 26.°
622 POPULAÇÕES INDÍGENAS
e 28.° na parte aplicável a depósitos em estabelecimentos do Estado ou
Municípios, ou por eles subsidiados.
Art. 32.° A incapacidade dos que acidentalmente se acharem privados
de fazer uso da sua razão, é suprida, em quanto ela persista, pela forma
estabelecida nos artigos 30.° e 31.°.
Art. 33.° Todo o indígena apto para, nos termos deste Código, gerir
a sua pessoa e haveres, poderá praticar actos de comércio.
Art. 34.° A mulher pode praticar actos de comércio, autorizada pelo
marido, odiando casada, e quando solteira, divorciada ou viuva, pelo chefe
do clan materno a que pertence.
Art. 35.° Para efeito do exercício dos seus direitos e do cumprimento
das suas obrigações, o domicílio do indígena é a sanzala ou a libata onde
estiver situada a cubata por que pague imposto.
§ único. O indígena que por não ter pago o imposto de cubata, não tenha
domicílio determinado, será considerado como domiciliado no logar em
que se encontrar.
Art. 36.° Os indígenas que servem ou trabalham em casa de outrem
teem por domicílio o da pessoa a quem servem, emquanto durar a pres-
tação de trabalho, salvo se continuarem a residir na cubata porque pa-
garam o imposto.
Art. 37.° Os menores teem por domicílio o da mãe ou do pai, e na falta
destes o da pessoa ou estabelecimento a quem, nos termos deste Código,
estejam entregues.
Art. 38.° Se qualquer indígena desaparecer do lugar do seu domicílio,
sem que dele se saiba parte, os seus haveres e aqueles de que seja detentor,
caso seja considerado como chefe de família do clan materno, serão
administrados pelo membro deste clan que por tácito acordo seja escolhido.
Art. 39.° Na falta de tácito acordo entre os membros da família do
clan materno, ser-lhe há dado curador pelo presidente do respectivo
tribunal indígena do 2.° grau, tendo em vista na escolha o costume local.
Art.0 40.° Caso não se conheça família do ausente será a curadoria
exercida pelo Curador Geral ou por delegação deste, pelos Agentes do
Curador.
Art. 41.° Se o ausente tiver deixado filhos menores a tutela destes
será exercida conforme estabelece o artigo 23.° e seguintes deste Código.
Art. 42.° Em todo o tempo que o ausente volte, só poderá exigir a
restituição dos seus próprios haveres e dos rendimentos que eles tenham
produzido deduzidas as despezas feitas com a sua conservação ou explo-
ração e com os filhos menores quando os houver.
CAPÍTULO II
Da Sociedade Familiar
Art.0 43.° Os indivíduos de que se compõe o clan materno de uma fa-
mília constituem entre si o que, para efeito deste Código, se denomina
sociedade familiar.
Art.0 44.° A sociedade familiar rege-se pelas disposições dos artigos
subsequentes.
DE ANGOLA 623
Art.° 45.° A sociedade familiar abrange :
1.° A propriedade dos terrenos que, nos termos do Regimen das Con-
cessões de Terreno em vigor, seja como tal titulada a cada um dos seus
associados :
2.° Tudo o que cada um dos seus associados poder apropriar-se por
ocupação, nos termos deste Código ;
3.° O uso e os rendimentos do que fica consignado nos números !.• e
2.»;
4.° O produto do trabalho, indústria e comércio dos seus associados.
Art. 46.° O uso dos haveres da sociedade, e a partilha dos rendimentos
e do produto do trabalho, indústria e comércio, pelos associados, é regu-
lado entre eles por tácito acordo e constante o costume local.
Art. 47.° A sociedade familiar é solidariamente responsável pelo cuiut
primento de todas as disposições civis voluntariamente contraídas por
qualquer dos seus associados ou que aos mesmos seja imposto por efeito
legal ou por sentença.
CAPÍTULO III
Da Ocupação
Art. 48.° É lícito aos indígenas apropriarem-se, pela ocupação, dos
terrenos, dos animais e produtos ou substâncias naturais, que não forem
propriedade exclusiva de outrem, salvo as restrições consignadas neste
código e nos regulamentos especiais.
Art. 49.° É permitido aos indígenas, nos termos do Regimen de Con-
cessões de Terrenos, ocuparem terrenos devolutos, incultos não demar-
cados, ou dentro das áreas exclusivamente destinadas para esse fim.
Art. 50.° É permitido aos indígenas dar caça aos animais bravios, con-
formando-se com as condições dos regulamentos especiais de caça;
1.° Nos terrenos próprios cultivados ou não;
2.° Nos terrenos do Estado ou dos particulares, não cultivados, nem
vedados.
Art. 51.° O caçador apropria-se da peça de caça que matar ou reter nas
suas artes de caça.
Art. 52.° O caçador adquire direitos à parte do animal que ferir.
§ único. A partilha da caça será regulada pelos usos e costumes locais.
Art. 53.° É permitido aos indígenas pescar nas águas públicas e comuns,
salvo as restrições dos regulamentos especiais.
Art. 54.° No exercício do direito do artigo anterior não é permitido
devassar os terrenos marginais do Estado ou de particulares, que se en-
contrem cultivados ou vedados.
Art. 55.° Todo e qualquer indígena pode apropriar-se dos enxames que
primeiro encontrar, não sendo perseguidos pelo dono da colmeia, de que
houverem enxameado, ou não se achando pousados dentro de prédios de
que outrem tem o usufruto ou propriedade.
Art. 56.° Os animais domésticos e as cousas inanimadas, perdidas ou
extraviadas poderão ser ocupados livremente pelo primeiro que as en-
contrar, mas restitui-los hão ao seu dono desde que este, em qualquer
tempo, prove pertencerem-lhe.
624 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 57.° As águas pluviais que caem directamente sobre qualquer
prédio e bem assim as de fonte ou nascente que haja dentro do mesmo
prédio, podem ser aproveitadas pelo dono ou usufrutuário do prédio, não
podendo, no entanto, desviá-las do seu curso natural, para onde possam
causar prejuízo, sem consentimento dos supostos prejudicados.
Art. 58.° As nascentes das águas medicinais são consideradas pro-
priedade do Estado, não podendo delas dispor o dono ou usufrutuário
do prédio onde nasçam.
Art. 59.° Os donos ou usufrutuários dos prédios atravessados por
quaisquer águas correntes, podem delas usar livremente, desde que não
prejudiquem a navegação ou flutuação e os prédios confinantes.
Art. 60.° A pesquiza e lavra de substâncias minerais é regulada pelas
disposições especiais em vigor.
.Art. 61.° Os pastos, matos, lenhas e outras substâncias vegetais, pro-
duzidas em terrenos do Estado, não cultivados nem vedados, podem ser
Mvremente aproveitados pelos indígenas, salvo nas áreas em que por de-
terminação da autoridade administrativa fôr proibido.
Art. 62.° O corte de madeiras e árvores de fruto dos terrenos do Estado,
não cultivados nem vedados, só é permitido nos termos dos regulamentos
especiais.
CAPÍTULO IV
Do Trabalho, da Posse e da Propriedade
Art. 63.° É lícito aos indígenas escolher o género do trabalho para
prover ao seu sustento e necessidades.
Art. 64.° O indígena que, no exercício do direito estabelecido no artigo
anterior, lesar os direitos de outrem será responsável pelos danos cau-
sados.
Art. 65.° Diz-se posse a retenção de tudo o que, nos termos deste Có-
digo, é susceptível de apropriação por ocupação, e o que constitui o pro-
duto do trabalho, indústria ou comércio.
Art. 66.° A posse pode ser adquirida individualmente, mas a sua fruição
e exercício pertence à sociedade familiar do adquirente, segundo o cos-
tume local.
Art. 67.° Da posse resulta o direito de propriedade para a sociedade
familiar do adquirente, salvo as restrições estabelecidas pelo Regimen de
Concessões de Terrenos em vigor.
CAPÍTULO V
Dos contractos
SECÇÃO I
Disposições Gerais
Art. 68.° Contracto é o acordo porque duas ou mais pessoas transferem
entre si algum direito ou se obrigam a alguma obrigação.
DE ANGOLA 625
Art. 69.° Os contractos entre indígenas só podem ser pessoalmente
feitos pelos outorgantes.
Art. 70.° Os contractos entre indígenas podem ser celebrados :
1.° Verbalmente sem intervenção da autoridade competente;
2.° Por escrito perante a autoridade competente;
3.° Conforme estabelece este Código ou os regulamentos em vigor
para os casos especiais não especificados.
§ único. A autoridade competente para intervir nos contractos é o
presidente do Tribunal Indígena do segundo grau.
Art. 71.° Salvo os contractos que, nos termos deste Código ou dos re-
gulamentos especiais, tenham de ser celebrados perante a autoridade
competente, para os restantes contractos entre indígenas é facultativo o
serem feitos perante a autoridade competente.
Art. 72.° Os contractos entre indígenas e europeus ou indivíduos de
côr como tais considerados, são regulados por diploma especial, são
sempre verbais e pessoalmente feitos pelos outorgantes perante o res-
pectivo presidente do tribunal indígena do segundo grau.
Art. 73.° São hábeis para contractar todos os indígenas que por este
Código não são tidos como incapazes nos termos do artigo 9.°
Art. 74.° As condições e cláusulas de um contracto fazem parte inte-
grante do mesmo, e governam-se pelas mesmas regras.
Art. 75.° Os contractos celebrados nos termos deste Código serão pon-
tualmente cumpridos e não podem ser rescindidos ou alterados senão
por mútuo consentimento dos contratantes.
Art. 76.° Os contractos obrigam tanto ao que é neles expresso, como
ás suas consequências usuais e legais.
Art. 77.° O contraente que faltar ao cumprimento do contracto resti-
tuirá ao outro aquilo que precipuamente tiver recebido.
Art. 78.° O contraente que tenha satisfeito aquilo a que se obrigou
pôde exigir do que não tenha satisfeito, não só a restituição do que pres-
tou, como uma indemnização correspondente ao prejuízo sofrido pela
falta do cumprimento.
Art. 79.° Se nenhum dos outorgantes tiver cumprido o contracto, e só
um deles se prestar a cumpri-lo, este pôde exigir do outro a execução do
contracto ou uma indemnização correspondente ao valor daquele.
Art. 80.° Os direitos e obrigações dos contractos podem ser transmi-
tidos entre vivos ou por morte, salvo se esses direitos e obrigações forem
puramente pessoais por sua natureza ou por efeito do contracto.
Art. 81.° São nulos os contractos:
1.° Quando algum dos outorgantes fôr incapaz nos termos deste Código;
2.° Quando o consentimento de algum dos outorgantes tiver sido
obtido por coação ;
3.° Quando algum dos outorgantes ou outrem que tenha intervindo no
contracto haja usado de dolo ou má fé;
4.° Quando o objecto do contracto fôr física e legalmente impossível;
5.° Quando estipularem condições sobre o que estiver fora do comér-
cio, o que não se puder reduzir a um valor exigível, ou que não puder
ser determinado ;
6.° Quando das condições do contracto não se possa depreender qual
626 POPULAÇÕES INDÍGENAS
fosse a vontade ou intenções dos contratantes sobre o objecto principal
do contracto ;
7.° Quando estipularem condições contrárias aos princípios humani-
tários ou às obrigações impostas por disposição legal.
Art. 82.° O cumprimento das obrigações que resultam dos contractos
pode ser assegurado por fiança ou por penhor.
Art. 83.° Fiança é o acto pelo qual alguém se torna responsável pelo
cumprimento das obrigações que um ou mais outorgantes contraem,
quando este ou estes deixem de cumpri-las.
Art. 84.° Penhor é todo o valor em dinheiro, gado, fazendas, géneros
ou quaisquer outros objectos móveis, que alguém entrega para assegurar
o cumprimento das disposições contraidas.
Art. 85.° Os indígenas com capacidade para contratar, nos termos
deste Código, podem afiançar.
Art. 86.° O fiador só é obrigado a pagar ao credor quando o devedor
e a sociedade familiar a que êle pertence estiverem materialmente im-
possibilitados de o fazer.
Art. 87.° A sociedade familiar do fiador é solidariamente responsável
pela obrigação por este contraída.
Art. 88.° O fiador que fôr obrigado a pagar pelo devedor tem o direito
de por êle ser indemnizado não só do que afiançou, como das perdas e
danos que disso sobrevenham.
Art. 89.° Ao fiador assiste o direito de exigir do devedor o cumpri-
mento da obrigação contraída, antes mesmo de por êle ter pago, quando
tiver justo receio de que este por qualquer forma procure eximir-se ao
pagamento da dívida.
Art. 90.° Havendo vários fiadores do mesmo devedor, e pela mesma
dívida, cada um deles responde pela parte que proporcionalmente lhe
compete.
Art. 91.° O credor adquire pelo penhor o direito de, não sendo pago
no tempo, pagar-se do seu débito pelo valor do penhor.
Art. 92.° O credor pode sempre exigir do devedor outro penhor se o
primeiro se perdeu ou se desvalorisou, salvo se prove que para isso pro-
positadamente concorreu o credor.
Art. 93.° O credor é obrigado a guardar aquilo que constitui o penhor
como fosse seu e responder por êle.
SECÇÃO II
Do Casamento
Art. 94.° O casamento indígena, nos termos deste Código, é um contracto
feito entre duas pessoas do sexo diferente com o fim de constituírem le-
gitimamente família.
Art. 95.° Este contracto é puramente civil e presume-se perpétuo sem
prejuízo da sua dissolução pelo divórcio nos termos deste Código.
Art. 96.° O casamento é celebrado perante as autoridades encarregadas
do registo'do estado civil dos indígenas, nas condições e pela forma esta-
belecida no regulamento do mesmo registo.
DE ANGOLA 627
Art. 97.° Não podem contrair casamento :
1.° As parentes por consanguinidade ou afinidade em linha recta,
ainda que o casamento causa da afinidade tenha sido dissolvido ;
2.° Os irmãos;
3.° Os menores de 16 anos, sendo do sexo masculino, e de 14 anos,
sendo do sexo feminino;
4.° Aqueles que manifestamente se reconheça estarem atacados cie
demência ou loucura, tripanosimiase, lepra ou qualquer outra doença in-
curável ou contagiosa que importe aberração sexual.
Art. 98.° Para os menores entre os 16 e 18 anos, sendo do sexo mas-
culino, e entre os 14 e 16, sendo do sexo feminino, só é permitido o casa-
mento mediante licença do oficial do registo do estado civil da área da
divisão administrativa a que pertencerem os menores, que lhe poderá
ser recusada quando o entender conveniente.
Art. 99.° O casamento não poderá celebrar-se sem o consentimento
por parte dos tios maternos ou pais da noiva, ou na falta de qualquer
destes por aqueles a quem, segundo o costume da sua tríbu, competir
concedê-lo.
Art. 100.° É permitido o regimen polígamo nos termos deste Código,
ficando dependente a celebração dos casamentos neste regimen do paga-
mento das taxas restritivas, consignadas no Regulamento do Registo do
Estado Civil dos Indígenas.
Art. 101.° Os actos e ajustes usuais, preliminares do casamento, feitos
entre os noivos ou perante as famílias destes, são lícitos e garantidos
para efeitos futuros, desde que sejam provados.
Art. 102.° O casamento pode ser garantido por um penhor em dinheiro,
gado, fazendas ou quaisquer géneros ou artigos entregue pelo noivo aos
tios maternos ou pais da noiva ou. na falta de qualquer destes a quem,
segundo o costume, o deva receber.
Art. 103.° A entrega daquele penhor poderá ser feita antecipadamente
à realização do casamento ou no acto da sua celebração, sendo o seu valor
consignado no registo do casamento.
Art. 104.° A sociedade familiar da noiva será solidariamente respon-
sável pelo penhor recebido e contrae a obrigação de restitui-lo ao noivo
desde que o casamento deixe de realizar-se.
Art. 105.° Álêm do penhor a que se refere o artigo 102.° será igual-
mente consignado no registo do casamento o valor total dos presentes,
dádivas ou ofertas, feitas pelos noivos entre si ou entre qualquer dos
noivos à família do outro durante o ajuste do casamento.
Art. 106.° A restituição do valor dos presentes, dádivas ou ofertas a
que se refere o artigo anterior é obrigatória quando o casamento deixe
de realizar-se.
Art. 107.° O casamento, nos termos deste Código, considera-se sempre
feito com separação de bens.
Art. 108.° Os bens adquiridos durante a constância do casamento per-
tencem exclusivamente à sociedade familiar do marido, salvo os artigos
de vestuário e objectos de uso doméstico da mulher que ficam perten-
cendo a esta.
Art. 109.° A administração dos bens trazidos para o casal por qualquer
628 POPULAÇÕES INDÍGENAS
dos cônjuges, bem como a dos adquiridos durante o casamento, pertence
ao marido que não pode contudo alienar os bens que a mulher haja tra-
zido ou herdado sem o consentimento da pessoa, consagrado pelo costume,
como sendo o chefe da sociedade familiar a que pertence a mulher.
Art. 110.° O marido por si ou pelos seus haveres não é responsável
pelas dívidas da mulher, quer estas sejam contraídas antes, quer durante
a constância do casamento. Da mesma forma a mulher não é responsável
pelas dívidas do marido ou da família deste.
Art. 111.0 A mulher tem por obrigação :
1.° Prestar obediência ao marido;
2.° Viver na cubata que o marido lhe destinar;
3.° De o acompanhar para qualquer parte que êle lhe exija, salvo para
fora da província ;
4.° De o auxiliar nos trabalhos da sua agricultura e indústria ;
5.° Os serviços domésticos.
Art. 112.° Ao marido incumbe a obrigação de proteger e defender a
pessoa e os bens da mulher e prover à sua alimentação e vestuário.
Art. 113.° No regimen polígamo a primeira mulher ou de mais elevada
gerarquia, conforme o costume, gosa de autoridade sobre as outras mu-
lheres, e é administradora dos bens do casal durante as pequenas ausên-
cias do marido.
Art. 114.° O casamento prova-se pelo seu registo, ou por qualquer ou-
tro meio que prove a posse desse estado.
SUB-SECÇÃO i
Da dissolução do Casamento
Art. 115.° O casamento dissolve-se:
1.° Pela morte;
2.° Pelo divórcio.
Art. 116.° O divórcio pode ser pedido só por um dos cônjuges, por
ambos conjuntamente, ou pelo indivíduo considerado, segundo o costume,
como o chefe da sociedade familiar da mulher.
Art. 117.° O divórcio, quando pedido por ambos os cônjuges conjunta-
mente diz-se divórcio por mútuo consentimento; quando pedido só por um
dos cônjuges ou pelo chefe da família da mulher diz-se litigioso.
Art. 118.° O divórcio por mútuo consentimento obtem-se por simples
solicitação dos cônjuges ao presidente do tribunal indígena do segundo
grau, da área a que eles pertencem, que o autorizará provisoriamente
depois de perante êle os cônjuges provarem o casamento nos termos do
artigo 114.°, e acordarem na forma de restituir as ofertas ante-nupciais,
penhor do casamento e sobre a situação dos filhos menores, se os houver.
Art. 119.° Na sua primeira reunião o tribunal sancionará a autorização
provisória concedida pelo presidente e lavrará a sentença definitiva do
divórcio se os cônjuges persistirem na sua resolução.
Art. 120.° Para o divórcio litigioso pedido por um dos cônjuges, são
causas legítimas nos termos deste Código :
1.° Incompatibilidade de génios ;
2.° Maus tratos;
x
DE ANGOLA 629
3.° A ausência, sem que do ausente haja notícias por tempo não infe-
rior a cinco anos;
4.° O adultério da mulher;
5.° A esterilidade da mulher e a incapacidade procriativa do homem ;
6.° A inaptidão da mulher para os trabalhos agrícolas;
7.° A loucura ou demência, e qualquer outra doença contagiosa que
importe aberração sexual;
8.° Os condenados pelos crimes a que couber pena de degredo.
Art. 121.° Para o divórcio litigioso pedido pelo chefe da família da mu-
lher, são causas legítimas:
1.° A incapacidade procriativa do homem;
2.° A incompatibilidade irreductível das famílias dos cônjuges ;
3.° A condenação do homem pelos crimes a que couber pena de de-
gredo.
Art. 122.° A petição para divórcio litigioso é feita ao presidente do tri-
bunal indígena do segundo grau da área a que pertencem os cônjuges,
acompanhada da indicação das testemunhas oferecidas.
Art. 123.° O presidente do tribuual fará intimar os cônjuges para com-
parecerem pedante o tribunal com as suas respectivas testemunhas no
dia e hora designados, devendo na intimação ao cônjuge arguido indicar
os fundamentos da petição do divórcio e o nome das testemunhas do
auctor.
Art. 124.° Se esgotados os meios de conciliação, tentados no julga-
mento, os cônjuges persistirem no propósito de se divorciarem, o tribu-
nal lavrará a sentença do divórcio definitivo em que ficará definida a
questão dos haveres e encargos do casal, a restituição das ofertas e pe-
nhor e bem assim a situação dos filhos se os houver.
Art. 125.° O cônjuge que der causa ao divórcio litigioso fica obrigado:
1.° A restituir ao outro cônjuge ou à família deste o valor do que deles
haja recebido, como penhor ou oferta;
2.° A perder em favor do outro cônjuge ou da família clêste tudo o que
lhe haja dado como penhor;
§ único. A restituição do que trata o número 1.° deste artigo será feita
dentro do prazo consignado na sentença do julgamento do divórcio.
Art. 126.° Do divórcio resulta para os cônjuges, em relação aos seus
haveres, a situação anterior à do casamento, salvo para os adquiridos
durante a constância do casamento que ficam pertencendo à sociedade fa-
miliar do marido e em que não estão incluídos os artigos de vestuário e
objectos de uso doméstico da mulher que nos termos do artigo 108.° per-
tencem a esta.
Art. 127.° A mulher, por virtude do divórcio litigioso, tem direito aos
frutos das plantações que exclusivamente agricultou e uma parte dos
frutos daquelas em cuja agricultura auxiliou o homem, que será fixada
pelo tribunal.
Art. 128.° Os créditos adquiridos e os débitos contraídos durante a
constância do casamento pertencem ao marido, salvo os que respeitem
aos haveres trazidos pela mulher para a sociedade conjugal, sobre os
quais o tribunal decidirá como julgar de justiça.
Art. 129.° Havendo filhos menores de 16 anos e acordo sobre a qual
630 POPULAÇÕES INDÍGENAS
dos cônjuges ou suas famílias devem eles ser entregues e confiados, será
esse acordo respeitado pelo tribunal.
Art. 130.° Não havendo acordo incumbe ao tribunal, tendo em vista os
usos e costumes locais, providenciar àcêrca do destino a dar aos filhos
menores de 16 anos, devendo de preferência entregá-los ao cuidado dos
parentes maternos.
Art. 131.° Os cônjuges, divorciados nos termos deste Código, são para
todos os efeitos considerados livres do vínculo que os ligava um ao outro
e aptos para contraírem novo casamento, quer estabelecendo a todo o
tempo a sociedade conjugal, quer passando a novas núpcias com outrem.
Art. 132.° O marido contra quem seja lavrada sentença de divórcio liti-
gioso, com o fundamento da sua incapacidade procreativa, poderá exigir
a restituição do penhor e ofertas ante-nupciais que perdeu nos termos do
artigo 125.°, quando a mulher de quem se divorciou, tendo contraído
novas núpcias, não manifestou durante três anos a sua fecundidade.
Art. 133.° Quando por ulterior casamento da mulher divorciada houver
filhos, constatando-se assim a incapacidade procriativa do homem de quem
se divorciou, poderá aquela ou a sua família exigir deste uma indemniza-
ção que o tribunal designará consoante os usos e costumes locais.
SECÇÃO III
Do Contracto da Parçaria Pecuária
Art. 134.° O contracto de parçaria pecuária dá-se, quando alguém en-
trega a outrem, animais para os cuidarem, pensarem e vigiarem, com o
ajusto de repartirem entre si os lucros.
Art. 135.° As condições deste contracto serão reguladas por acordo
entre os interessados, observando-se, na falta destes, o costume local.
Art. 136.° O parceiro depositário é obrigado a guardar e tratar os
animais, como se seus fossem, respondendo pelas perdas e danos a que
der causa.
Art. 137.° Se os animais perecerem por caso fortuito, será a perda
por conta do parceiro depositante, e o proveito que acaso se possa tirar
dos animais que morreram, pertencerá a este.
SECÇÃO IV
Dos contractos de prestação de serviços, de empréstimo,
de compra e venda e de locação
Art. 138.° A prestação de serviços e o seu contracto rege-se pelas dis-
posições especiais sobre trabalho indígena em vigor.
Art. 139.° O contracto de empréstimo consiste na cedência gratuita ou
como determinada retribuição de qualquer coisa, contraindo a pessoa a
quem é cedida a obrigação de a restituir na mesma espécie ou em coisas
equivalentes.
Art. 140.° O contracto de compra e venda é aquele em que um dos con-
traentes se obriga a entregar certa coisa, e outro a pagar por ela certo
preço em dinheiro, gado, géneros ou qualquer outro valor.
BE ANGOLA 631
Art. 141.° Dá-se o contracto de locação, quando alguém trespassa a
outrem, por certo tempo, mediante certa retribuição, o uso e fruição de
certa coisa.
CAPÍTULO VI
Da Sucessão
Art. 142.° Por morte de alguém, os seus haveres, direitos e obrigações
na sociedade familiar transmitem-se por sucessão testamentária ou por
sucessão legítima.
Art. 143.° A sucessão é testamentária, quando o indivíduo, por sua
última vontade, dispõe de todos ou parte dos seus haveres, direitos e
obrigações na sociedade familiar a favor de um ou mais dos seus suces-
sores legítimos. Só na falta destes pode o testador livremente testar a
favor de qualquer pessoa.
Art. 144.° A sucessão é legítima, quando todos ou parte dos haveres,
direitos e obrigações do indivíduo na sociedade familiar, por falta de
disposição da sua última vontade, passam aos seus sucessores legítimos
nos termos deste Código.
Art. 145.° Diz-se testamento o acto pelo qual alguém, por sua última
vontade, verbalmente e perante testemunhas dispõe, consoante o estabe-
lecido no artigo 143.°, para depois da sua morte, de todos ou de parte dos
seus haveres, direitos e obrigações na sociedade familiar.
Art. 146.° As disposições testamentárias podem ser impugnadas pelos
sucessores legítimos do testador.
Art. 147.° São considerados nulos e de nenhum efeito os testamentos :
1.° Em que figurem como testemunhas indivíduos contemplados no
testamento ;
2.° Em que o testador ou qualquer das testemunhas não esteja em
perfeito juizo ou livre de coação ;
3.° Em que o testador seja menor nos termos deste Código.
Art. 148.° Um testador pode dispor dos seus haveres, direitos e obriga-
ções na sociedade familiar, desherdando parte dos seus legítimos sucesso-
res.
Art. 149.° Os haveres de que o autor da herança não tiver disposto em
testamento, e bem assim aqueles de que tiver disposto, quando o testa-
mento venha a ser anulado, pertencem aos seus sucessores legítimos.
Art. 150.° A sucessão legítima defere-se entre os membros da família
do clan materno do autor da herança, que constituem a sociedade familiar
a que êle pertence, na ordem e consoante o costume local. Na falta de
membros da família pertencentes ao clan materno, defere-se a sucessão
entre aqueles do clan paterno.
Art. 151.° A herança responde solidariamente pelo pagamento das dí-
vidas do autor dela e dos membros da família deste pertencentes ao clan
materno, bem assim como, pelas despezas do seu funeral.
632 POPULAÇÕES INDÍGENAS
PARTE III
DO DIREITO PENAL
CAPÍTULO I
Dos crimes em geral e dos criminosos
Art. 152.° Crime ou delito, para os efeitos de Código, é o facto volun-
tário por êle declarado punível.
Art. 153.° Contravenção, para os efeitos deste Código, é o facto volun-
tário por êle punível que unicamente consiste na violação ou na falta de
observância das disposições preventivas das leis e regulamentos.
Art. 154.° Os agentes do crime para os efeitos deste Código, são autores,
cúmplices ou encobridores.
Art. 155.° São autores: i
1.° Os que executam o crime ou tomam parte directa na sua execução ;
2.° Os que concorrerem directamente para preparar ou facilitar a
execução nos casos em que sem esse concurso, não tivesse sido cometido
o crime.
Art. 156.° São cúmplices :
1.° Os que directamente aconselharem ou instigarem outros a serem
agentes do crime;
2.° Os que concorrerem directamente para facilitar ou preparar a
execução nos casos em que, sem esse concurso, pudesse ter sido come-
tido o crime.
Art. 157.° São encobridores :
1.° Os que alterarem ou desfizerem os vestígios do crime com o pro-
pósito de prejudicar ou impedir a formação do corpo de delito;
2.° Os que ocultarem ou inutilizarem as provas, os instrumentos ou
os objectos do crime com o intuito de concorrerem para a impunidade.
3.° Os que dão coito ao criminoso ou lhe facilitarem a fuga com o
propósito de o subtraírem à acção da justiça.
Art. 158.° Só podem ser criminosos os indígenas que tem a necessária
inteligência e liberdade.
Art. 159.° A responsabilidade criminal recai única e individualmente
nos agentes do crime ou de contravenções.
Art. 160.° A responsabilidade criminal é agravada ou atenuada,
quando concorrerem no crime ou no agente dele circunstâncias agravan-
tes ou atenuantes.
Art. 161.° São circunstâncias agravantes :
1.° Ter sido cometido o crime com premeditação ;
2.° Ter sido cometido o crime sendo o ofendido ascendente, descen-
dente, cônjuge ou parente;
3.° Haver reincidência, sucessão ou acumulação de crimes ;
4.° Em geral quaisquer outras circunstâncias que precedam, acompa-
nhem ou sigam o crime, se robustecem a culpabilidade do agente ou
aumentarem por qualquer modo a gravidade do facto.
£>E ANGOLA 633
Árt. 162.° Dá-se reincidência para os efeitos deste código, quando o
agente, tendo sido condenado por algum crime, comete outro da mesma
natureza antes de ter passado um ano desde a dita condenação.
Art. 163.° Verifica-se a sucessão de crimes para os efeitos deste Có-
digo, quando o agente, tendo sido condenado por algum crime, comete
outro de natureza diferente, não tendo mediado um ano entre a condena-
ção do primeiro e a perpetração do segundo.
Art. 164.° Dá-se a acumulação de. crimes quando o agente comete
mais de um crime na mesma ocasião, ou quando, tendo perpetrado um,
comete outro antes de ter sido condenado pelo anterior.
Art. 165.° São circunstâncias atenuantes da responsabilidade criminal:
1.° O bom comportamento anterior;
2.° Ser menor nos termos deste Código;
3.° Ser provocado ;
4.° A expontânea confissão do crime;
5.° Ser em legítima defesa;
6.u Em geral quaisquer outras circunstâncias que precedam, acom-
panhem ou sigam o crime, ou enfraquecerem a culpabilidade do agente
ou diminuam por qualquer modo a gravidade do facto criminoso.
CAPÍTULO II
Das Penas
Art. 166.° As penas admitidas por este Código são:
1.° A de degredo;
2.° A de desterro;
3.° A de trabalho correccional ;
4.° A de multa ;
5.° A de indemnização.
Art. 167.° Quando as penas mandadas aplicar por este Código forem
as decretadas pelo Código Penal Português entender-se há :
1° Que as penas maiores de prisão maior celular, seguida de degredo
ou não, serão sempre substituídas pelas penas maiores de degredo fixo,
ou temporário, aplicáveis em alternativa;
2:> Que a pena de prisão correccional será sempre substituída por
trabalho correccional.
Art. 168.° A pena de degredo temporário não poderá ser menor de
três anos nem exceder a doze e será sempre cumprida em outra colónia,
competindo ao Governo Geral destinar o local do degredo, para o que
serão os condenados postos à sua disposição por intermédio da Secretaria
dos Negócios Indígenas.
Art. 169.° A pena de desterro não poderá ser menor de um ano nem
exceder a doze e será sempre cumprida dentro da colónia e em estabele-
cimento correccional situado em outro distrito diferente daquele a que
pertence o condenado, e designado pelo Secretário dos Negócios Indígenas.
Art. 170.° As penas de degredo e desterro obrigam o condenado a
trabalhar no estabelecimento onde a pena fôr cumprida, de harmonia com
os respectivos regulamentos.
41
634 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 171.° A pena de trabalho correccional não poderá exceder a três
anos e será cumprida nos trabalhos do Estado ou dos Municípios e sem-
pre que seja possível no concelho, circunscrição ou capitania-mór onde o
réu foi condenado.
Art. 172.° Os indígenas condenados a trabalho correccional serão alo-
jados pelo Estado ou Municípios, ficando, sob a vigilância da autoridade,
que tomará as precauções necessárias para que se não evadam.
Art. 173.° Os indígenas condenados a trabalho correccional teem di-
reito a alimentação e a um salário de $03 por dia útil de trabalho, forne-
cidos pelo Estado ou pelo Município que os empregarem.
Art. 174.° O condenado em multa é obrigado a pagar para o Estado
uma quantia até três anos, arbitrada em sentença, de modo que por dia
não seja menor que $10, nem exceda a $50, salvo nos casos em que este
Código taxar quantias determinadas.
Art. 175.° A pena de indemnização àlêm dos casos em que é taxativa-
mente decretada neste Código deverá, cumulativamente com outras penas,
ser imposta pelos tribunais indígenas em todos os crimes e delitos de que
resulte prejuízo material para o ofendido, quando este não seja o Estado.
Art. 176.° Para o cômputo da indemnização será tomado em conside-
ração, pelo julgador, a gravidade do prejuízo sofrido e os haveres e ren-
dimentos da sociedade familiar a que pertence o condenado.
Art. 177." O pagamento da indemnização ao ofendido poderá ser feito
em dinheiro, gado, géneros ou outros valores.
Art. 178.° Aos crimes ou delitos e contravenções especificadas neste
Código, correspondem penas no mesmo designadas.
§ único. As penas dentro dos limites assinados neste Código serão
graduadas conforme forem ou não os crimes acompanhados de circuns-
tâncias agravantes ou atenuantes, e havendo umas e outras, conforme
predominarem estas ou aquelas.
Art. 179.° O cúmplice ou encobridor será punido com o mínimo da
pena aplicável ao crime.
§ único. Quando o condenado fôr punido com o mínimo da pena o
cúmplice ou o encobridor será absolvido.
Art. 180.° As penas não passarão em caso algum da pessoa do delin-
quente.
Art. 181.° Todo o procedimento criminal e toda a pena acaba:
1.° Pela morte;
2.° Pelo cumprimento da pena.
CAPÍTULO III
Dos crimes contra a liberdade de crenças e de cultos
Art. 182.° Todo o indígena que por qualquer forma praticar ou tentar
praticar actos com o fim de impedir a liberdade de crenças religiosas e o
livre exercício de qualquer culto, que não ofendam os princípios huma-
nitários e sejam compatíveis com a ordem pública, será condenado com
a pena de trabalho correccional até seis meses, quando dos actos pratica-
dos não resulte ofensa a que caiba pena mais grave.
DE ANGOLA 635
CAPÍTULO IV
Dos crimes contra a segurança do Estado
Art. 183.° Todo o indígena que praticar qualquer dos crimes contra
a segurança exterior do Estado, previstos pelo Código Penal, será conde-
nado nas penas correspondentes decretadas pelo mesmo Código.
Art. 184.° São condenados com as penas previstas pelo Código Penal:
1.° Aquele que maliciosamente arrancar ou por qualquer modo su-
primir marcos, balizas ou outros sinais indicativos do território portu-
guês;
2.° Aquele que, sendo português e violando as leis, decretos ou regu-
lamentos, se passar em tempo de guerra para país estrangeiro neutro ou
amigo ;
3.° Aquele que, sem autorização do Governo, recrutar ou fizer recrutar,
assalariar ou fizer assalariar gente para serviço militar ou marítimo es-
trangeiro, ou procurar armas, ou embarcações, ou munições para o mesmo
fim.
Art. 185.° Os indígenas que por qualquer acto de rebelião atentaram
contra o domínio português, impedindo ou tentando impedir por actos
de violência o exercício do mesmo domínio dando lugar a motim ou le-
vantamento e de que resulte a morte de qualquer agente da autoridade,
a destruição ou dano de edifício ou construção do Estado serão conde-
nados:
1.° No máximo da pena de degrêdq estabelecida por este Código aqueles
que tenham exercido aliciação, comando ou direcção;
2.° Na pena fixa de degredo por quinze anos, aqueles que tomaram
parte activa como co-réus, na prática dos crimes de que trata este artigo ;
3.° Na pena de degredo temporário, aqueles que por qualquer forma
tenham concorrido para a preparação e execução destes crimes.
Art. 186.° Quando pela prática dos crimes previstos no artigo anterior
se derem actos de violência contra os agentes da autoridade de que não
advenha a morte e dela resultaram a destruição ou dano de edifício ou
construção do Estado serão condenados:
1.° Na pena de degredo por quinze anos, aqueles que tenham exercido
aliciação, comando ou direcção;
2.° Na pena de degredo temporário, aqueles que tenham concorrido
para a preparação e execução do crime ou nele tenham tomado parte
activa.
Art. 187.° Quando dos crimes de rebelião resultar unicamente a des-
truição ou dano de edifício ou construção do Estado, serão condenados :
1.° Na pena máxima de desterro, aqueles que tenham exercido ali-
ciação, comando ou direcção;
2.° Na pena máxima de trabalho correccional, estabelecido por este
Código, aqueles que tenham concorrido para a preparação e execução ou
nela tenham tomado parte activa.
Art. 188.° Os indígenas que atentarem contra as autoridades gentílicas,
como tal reconhecidas, concertando-se para a sua deposição ou substi
éâé POPULAÇÕES INDÍGENAS
tuição por meios contrários aos que lhe facultam as disposições legais,
serão condenados na pena de desterro temporário.
§ único. O aliciador do movimento de rebelião contra as autoridades
gentílicas, assim como o que pretende substitui-la, serão condenados na
pena de degredo temporário.
CAPÍTULO V
Dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública
Art. 189.° Aqueles que sem praticar actos que devam considerar-se de
rebelião, se ajuntarem em motim ou tumulto ou arruido, perturbando ou
tentando perturbar o exercício da autoridade pública, ou tendo em vista
exercer algum acto de ódio, desprezo ou vingança contra qualquer fun-
cionário ou empregado do Estado, ou autoridade gentílica, serão conde-
nados na pena de trabalho correccional não inferior a cento e oitenta
dias.
§ único. Os aliciadoras, promotores ou dirigentes destes motins ou
tumultos, serão condenados na pena de desterro até três anos.
Art. 190.° Aquele que ofender directamente por palavras, ameaças ou
por actos ofensivos da consideração devida, alguma autoridade civil, mi-
litar ou gentílica, estejam ou não no exercício das suas funções, ou qual-
quer funcionário no exercício destas, será condenado na pena de trabalho
correccional até um ano. •
Art. 191.° A ofensa corporal contra alguma das autoridades designadas
no artigo anterior, no exercício das suas funções ou por causa destas,
será punida:
1.° Com a pena de degredo temporário se da ofensa corporal resultar
qualquer ferimento não produzindo impossibilidade de trabalho;
2.° Com a pena de degredo por quinze anos se da ofensa corporal re-
sultar impossibilidade de trabalho;
3.° Com a pena de degredo por vinte anos se da ofensa corporal re-
sultar cortamento, aleijão, privação ou inabilitação de algum membro ou
órgão do corpo;
4.° Com a pena máxima de degredo, quando da ofensa corporal resul-
tar a morte.
Art. 192.° Aquele que perturbar a ordem em qualquer acto ou lugar
público, ou levantar gritos subversivos da ordem ou tranquilidade pú-
blica será condenado na pena de trabalho correccional até cento e oitenta
dias.
Art. 193.° Aquele que em lugar público se apresentar em manifesto
estado de embriaguês, *será condenado na pena de trabalho correccional
até noventa dias.
Art. 194.° Aquele que romper ou quebrar selos postos por ordem da
autoridade em qualquer lugar ou objecto, e o que por qualquer forma
inutilisar editais ou avisos mandados afixar pela autoridade, serão con-
denados na pena de trabalho correccional até cento e oitenta dias.
Art. 195.° Aquele que empregar actos de resistência, opondo-se a que
a autoridade pública ou qualquer funcionário exerça as suas funções,
DE ANGOLA 637
será condenado na pena de trabalho correccional até um ano, se pelos
actos de resistência empregados não couber pena mais grave.
Art. 196.° Aquele que desobedecendo à autoridade, se recusar a pres-
tar ou deixar de prestar qualquer serviço de interesse público para que
tiver sido nomeado ou intimado, ou que faltar à obediência devida ás
ordens ou mandados legítimos da autoridade pública ou agente dela, será
condenado na pena de trabalho correccional até noventa dias, se a deso-
bediência não fôr acompanhada de actos por que lhe caiba pena mais
grave.
§ único. Compreendem-se ras disposições deste artigo aqueles que
infligirem as determinações da autoridade competente, tornadas públicas
por editais ou bandos.
Art. 197.° Aquele que por qualquer modo concorrer para a fuga ou
tentativa de fuga de algum preso, preparando, auxiliando, ou facilitando-a
maliciosamente, será condenado :
1.° Na pena de trabalho correccional até um ano se o auxílio prestado
se limitar a qualquer simples artifício fraudulento ;
2.° Na pena de desterro temporário quando o auxílio para a fuga se
traduzir em violências e ameaças contra os encarregados da guarda do
preso, em levantamento propositado de motim ou tumulto, ou em arrom-
bamento, escalamento ou uso de chave falsa no edifício em que estiver
guardado o preso;
3.° Na pena de degredo temporário, se pelos actos praticados não
houver crime a que corresponda pena mais grave, quando as violências
cometidas forem acompanhadas de ofensas corporais na pessoa dos agentes
da autoridade a quem esteja confiada a guarda do preso ou de qualquer
outro que lhe esteja prestando auxílio.
Art. 198.° O preso que antes do julgamento passado em julgado se
evadir, será simplesmente punido com as penas disciplinares dos regu-
lamentos da prisão ou casa de detenção, se para realizar a fuga não tiver
cometido qualquer crime por que deva ser condenado em pena mais grave
do que a correspondente ao crime porque estava preso.
§ único. A fuga será sempre tomada em conta para a aplicação da
pena pelos crimes cometidos como circunstância agravante.
Art. 199.° Aqueje que estando condenado por sentença passada em jul-
gado se evadir sem que tenha cumprido a pena será obrigado a cumprir
a sentença acrescida de mais um terço.
Art. 200.° Aquele que falsificar moeda metálica ou notas do banco da
forma daquelas que teem curso legal no território da República, e aqueles
que lhes derem curso conscientes da sua falsidade, serão condenados na
pena de degredo por vinte e cinco anos.
Art. 201.° Aquele que, tomando um falso nome, tentar subtrair-se, de
qualquer modo, à vigilância da autoridade pública, ou fizer algum pre-
juízo ao Estado ou particulares será condenado na pena de trabalho cor-
reccional até um ano.
Art. 202.° Aquele que mudar de nome sem que esta mudança seja le-
galmente feita nos termos do Registo do Estado Civil dos Indígenas, será
condenado na pena de trabalho correccional até trinta dias.
Art. 203.° Aquele que sem título ou causa legítima exercer funções
638 POPULAÇÕES INDÍGENAS
próprias da autoridade ou empregado público, arrogando-se estas quali-
dades, será condenado com a pena de desterro temporário sem prejuízo
das penas de falsidade se houverem lugar.
Art. 204.° Aquele que em causa criminal e sobre as circunstâncias
essenciais da acusação testemunhar falso, será condenado :
1.° Na pena de desterro temporário, se testemunhar falso contra o
acusado;
2.° Na pena de trabalho correccional até um ano, se testemunhar a
favor do acusado.
§ único. O testemunho falso em matéria civil, será punido na pena de
trabalho correccional até cento e oitenta dias.
Art. 205.° Ao suborno ou tentativa de suborno para alguém dar teste-
munho falso, cabem as penas estabelecidas no artigo anterior para o teste-
munho falso.
Art. 206.° Aquele que, maliciosamente, perante as autoridades, apre-
sentar falsa queixa ou acusação, será condenado na pena de trabalho
correccional até um ano.
Art. 207.° O enterramento de qualquer indígena, em contravenção dos
regulamentos especiais em vigor, será punido com a pena de trabalho
correccional até cento e oitenta dias.
Art, 208.° Aquele que cometer violação de túmulos ou sepulturas,
praticando, antes ou depois da inumação, factos que pelo costume local
importem falta de respeito devido à memória dos mortos, será condenado
na pena de trabalho correccional até um ano.
Art. 209. a Aqueles a quem cabendo obrigação de promover o enterra-
mento de um cadáver o não fizerem, deixando o cadáver insepulto, serão
condenados na pena de trabalho correccional até um ano.
Art. 210.° Aquele que, exercendo práticas de curandice, exponha à
venda, venda ou subministre substâncias venenosas ou abortivas, será
condenado na pena de desterro temporário, se daquelas práticas não
resultar crime a que caiba pena mais grave.
Art. 211.° Aquele que, de qualquer maneira alterar géneros destinados
ao consumo público de forma que se tornem nocivos à saúde, e aquele
que os vender, será condenado na pena de trabalho correccional até um
ano.
§ 1.° Em igual pena será condenado aquele que fabricar ou vender
objectos cujo uso seja nocivo à saúde.
§ 2.° Os géneros ou objectos de que trata este artigo serão apreendidos
e inutilizados em qualquer parte que se encontrem.
Art. 212.° Aquele que lançar às águas que sirvam para a alimentação,
qualquer coisa que as torne impuras ou nocivas à saúde, será condenado
na pena de trabalho correccional até um ano.
Art. 213.° Aqueles que transgredirem os regulamentos, avisos e deter-
minações das autoridades administrativas e sanitárias sobre providências
de higiene e saúde pública, serão condenados na pena de trabalho corre-
cional até cento e oitenta dias.
Art. 214.° Os crimes sobre fabrico, importação, venda, subministração
ou guarda de armas proibidas e pólvora, bem assim como os que resultam
do exercício da caça e pesca, são aqueles, como tais considerados pela
DE ANGOLA 639
legislação especial sobre o assunto em vigor, e as penas que lhes cabem,
aquelas que pela mesma legislação lhes competem.
Art. 215.° Será declarado vadio o indígena como tal considerado pelo
diploma regulando a repressão da ociosidade e vadiagem.
Art. 216.° O indígena declarado como vadio será detido, julgado e con-
denado, nos termos do diploma mencionado no artigo anterior.
Art. 217.° Os crimes e delitos de contrabando e descaminho de di-
reitos serão punidos nos termos da legislação especial em vigor sobre o
assunto.
Art. 218.° Todo o indígena que, fazendo-se passar por feiticeiro, pre-
tenda exercer ou utilizar práticas de magia ou de feiticeria, arrogando-se
um poder sobrenatural para por qualquer forma, influir ou actuar sobre
a pessoa dos indígenas ou de seus haveres, será condenado na pena de
degredo temporário, se do exercício daquelas práticas não resultar crime
a que caiba pena mais grave.
Art. 219.° Aquele que, não se fazendo passar por feiticeiro, pratique
no entanto qualquer prática de magia ou feiticeria com o fim de causar
dano na pessoa ou haveres de outrem, será condenado na pena de tra-
balho correccional até dois anos.
Art. 220.° Aquele que falsamente acusar outrem de exercer habitual ou
profissionalmente a feiticeria, será condenado na pena de trabalho correc-
cional até três anos.
Art. 221.° Aquele que falsamente atribuir a outrem a origem ou a in-
tenção de qualquer mal, por efeitos de feiticeria, sem que contudo o acuse
de feiticeiro por profissão, será condenado na pena de trabalho correc-
cional até um ano.
Art. 222.° Aquele que, baseando-se no pretendido poder de magia ou
feiticeria de alguém, a êle recorra para causar dano na pessoa ou haveres
de outrem, será condenado na pena de desterro temporário.
Art. 223.° Será condenada na pena de multa de 5100 a 50$00, toda a
autoridade gentílica :
1.° Que, no uso dos suas atribuições, aconselhar ou informar dolosa-
mente com falsidade a autoridade administrativa a que está subordinada;
2.° Que empregar ou fizer empregar, sem motivo legítimo, contra
qualquer indígena violências que não sejam necessárias para o cumpri-
mento das determinações da autoridade e bem assim quaisquer represálias.
Art. 224.° Toda a autoridade gentílica que se recusar a dar execução
às determinações que pelos superiores a quem devem directamente obe-
diência lhes forem legalmente dadas em matéria da sua competência, será
condenada :
1.° Na pena de multa de 5$00 a 50$00, quando a desobediência fôr mo-
tivada por simples falta de zelo ou negligência;
2.° Na pena de deposição seguida de degredo temporário, quando a
desobediência tomar um caracter de insubordinação contra o prestígio e
o respeito devido à autoridade.
Art. 225.° Aquele que, tendo sido suspenso ou deposto do exercício de
funções de autoridade gentílica, continuar a praticar actos inerentes às
mesmas funções, será condenado na pena de trabalho correccional até dois
anos.
640 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 226.° A autoridade gentílica, e bem assim outros indígenas em-
pregados do Estado, que abandonarem o exercício das suas funções ou
emprego por mais de quinze dias, sem motivo justificado, serão conde-
nados na pena de trabalho correccional até cento e oitenta dias, devendo
esta pena ser acompanhada de deposição quando se trate de autoridades
gentílicas.
Art. 227.° A autoridade gentílica que, aproveitando-se das suas atri-
buições extorquir por qualquer forma, dinheiro, serviços ou outra qual-
quer coisa que lhe não seja devida, será condenada na multa de 5100 a
50100, independentemente da restituição do valor extorquido.
Art. 228.° Todo o indígena que, exercendo emprego ou funções de
autoridade pública, cometer crimes de peita, suborno e corrupção, será
condenado na pena de desterro temporário.
Art. 229.° Aquele que corromper por dádivas, presentes, oferecimentos
ou promessas qualquer indígena que exerça emprego ou função de au-
toridade, será condenado na pena de trabalho correccional até dois anos.
CAPÍTULO VI
Dos crimes contra as pessoas
Art. 230.° Será condenado com as penas decretadas pelo Código Penal
e que por este lhe couberem :
1.° Todo o indígena que praticar qualquer dos crimes contra a liber-
dade das pessoas;
2.° Todo aquele que praticar qualquer dos crimes previstos pelo Có-
digo Penal sobre:
a) Partos supostos;
b) Subtracção e ocultação de menores;
c) Exposição e abandono de infantes.
3.° Todo aquele que praticar qualquer dos crimes previstos pelo Có-
digo Penal sobre:
a) Homicídio voluntário ou involuntário ;
b) Envenenamento;
c) Aborto;
d) Ferimentos, contusões e outras ofensas corporais voluntárias ou
involuntárias.
Art. 231.° O presidente do tribunal indígena do segundo grau, a quem
fôr presente qualquer queixa sobre crimes de ofensa corporal, sobre
consulta de algum perito que haja na localidade, ou ao seu prudente arbí-
trio, calculará o tempo provável da doença ou impossibilidade de trabalho.
Art. 232.° Não são crimes o homicídio, os ferimentos ou espanca-
mentos ou outros actos ou meios de força, quando forem cometidos:
1.° Repelindo de noite o escalamento ou arrombamento de uma habi-
tação ;
2.° Defendendo-se contra os autores de roubos ou destruições execu-
tadas com violências.
Art. 233.° Todo aquele que provocar, ordenar ou subministrar o
emprego, de substâncias venenosas, do fogo, da água em ebulição ou de
DE ANGOLA 641
outro processo que directa ou indirectamente possa produzir a morte de
pessoas ou animais ou causar-lhe ferimentos ou ofensas corporais, para
averiguar de factos imputados a alguém, será condenado na pena fixa de
degredo por quinze anos, se da prova não resultar crime a que caiba
pena mais grave.
Art. 234.° Aquele que prepare, venda ou retenha em seu poder qualquer
preparação venenosa habitualmente empregada nas provas judiciais indí-
genas, será condenado na pena de degredo temporário.
Art. 235.° Aquele que assistir a uma prova judicial indígena será
condenado na pena de trabalho correccional até três anos.
Art. 236.° A autoridade gentílica que, directa ou indirectamente, tolerar
ou facilitar uma prova judicial indígena ou que, tendo conhecimento que
essa prova terá logar ou se projecta na área da sua jurisdição, não informe
imediatamente a autoridade administrativa, será deposta e condenada na
pena de degredo temporário.
Art. 237.° Aquele que ameaçar ou intimar outrem de fazer algum mal
que constitue crime será condenado na pena de trabalho correccional até
noventa dias.
Art. 238.° Aquele que ameaçar ou intimar outrem para o constranger
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, a que por lei não é obrigado,
será condenado na pena de trabalho correccional até cento e oitenta dias.
Art. 239.° Aquele que se introduzir na habitação de outrem, sem co-
nhecimento ou licença deste ou contra sua vontade, não sendo agente
da autoridade pública e por esta não esteja devidamente autorizado, será
condenado na pena de trabalho correccional até um ano, se não resultar
crime a que caiba pena mais grave.
Art. 240.° Aquele que dolosamente ocupar o estado civil de outrem ou
de quaisquer direitos da família, será condenado na pena de trabalho
correccional até um ano.
Art. 241.° A mulher que contrair segundo ou ulterior casamento, sem
que, nos termos deste Código, se ache dissolvido o anterior, será conde-
nada na pena de desterro temporário.
Art. 242.° Aquele que publicamente, por qualquer acção, ofender a
moralidade, como tal considerada pelo costume local, ou que sem ofender
aquela moralidade, cometer acções que não possam ser admitidas pelos
povos civilizados, será condenado na pena de trabalho correccional até
cento e oitenta dias.
Art. 243.° Todo o atentado contra o pudor de uma pessoa de um ou
outro sexo, que fôr cometido com violência, será condenado na pena de
trabalho correccional até um ano.
§ único. Se o atentado fôr praticado em menor de doze anos a pena
será a mesma embora se prove não ter havido violência.
Art. 244.° Aquele que, por meio de sedução, estuprar mulher virgem
maior de doze anos e menor de dezasseis, será condenado na pena de
desterro temporário.
Art. 245.° Aquele que tiver cópula ilícita com quaisquer mulheres,
contra sua vontade, por meio de violência física, de intimidações ou de
qualquer forma, que não constitua sedução, ou achando-se a mulher pri-
vada do uso da razão, será condenado em pena de degredo temporário.
642 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 246.° Aquele que desflorar menor de doze anos, será condenado
na pena fixa de degredo por quinze anos.
Art. 247.° Os tribunais indígenas não tomarão conhecimento dos crimes
de adultério senão quando os cônjuges forem casados nos termos do re-
gisto do Estado Civil dos indígenas.
O adultério da mulher importa a punição do co-reu adúltero, sempre
que o marido ofendido promova o divórcio e este seja decretado.
Art. 248.° Nos termos do artigo anterior, ao co-reu adúltero cabe, àlêm
da restituição a que se refere o art. 125.° pela efectivação do divórcio,
a pena de indemnizar o marido em mais cincoenta por cento do valor
da restituição.
Art. 249.° O marido ofendido que, não tendo promovido o divórcio
pelo adultério, receba qualquer valor da família da adúltera ou do co-reu
adúltero, a título de indemnização pela ofensa, restituirá o valor recebido
e será condenado na pena de trabalho correccional até um ano.
Art. 250.° O marido que por qualquer forma incitar a mulher à prática
do adultério perde o direito a por esta causa requerer o divórcio e será
condenado na pena de trabalho correccional até dois anos.
Art. 251.° Aquele que para satisfazer desejos desonestos de outrem,
excitar, favorecer ou facilitar a prostituição ou corrupção de qual-
quer pessoa sua descendente, tutelada, ou que esteja confiada à sua
guarda e direcção, será condenado na pena de trabalho correccional até
um ano.
Art. 252.° Aquele que publicamente difamar,*caluniar ou injuriar outrem,
será condenado na pena de trabalho correccional até cento e oitenta dias.
CAPÍTULO VII
Dos crimes contra a propriedade
Art. 253.° O indígena que cometer o crime de furto, subtraindo frau-
dulentamente uma coisa que lhe não pertença, será obrigado a restituir
ao queixoso a coisa subtraída ou seu valor e a pagar-lhe uma indemnização
na importância igual ao valor do furto, e condenado na pena de trabalho
correccional até três anos, conforme o valor do furto.
Art. 254.° Os reincidentes a quem no último ano tenha sido imposta
mais de uma pena por furto, serão condenados na pena de desterro até
três anos.
Art. 255.° É qualificado como roubo a subtração da coisa alheia que
se comete com violência ou ameaças contra as pessoas.
Art. 256.° Ao crime de roubo cabe comulativamente as penas de furto
da coisa roubada e das que, por este Código, correspondem às das vio-
lências ou ameaças cometidas.
Art. 257.° Aquele que burlar outrem, empregando qualquer meio de
fraude para o lesar, será obrigado a indemnizar o burlado do valor da
fraude e condenado na pena de trabalho correccional até dois anos, con-
forme a gravidade do crime.
Art. 258.° O abuso de confiança daquele que, descaminhando ou dissi-
pando em prejuízo do possuidor ou detentor dinheiro, gado, fazendas ou
DE ANGOLA 643
qualquer outro valor que lhe tenha sido confiado, será considerado como
crime de furto e como tal punido.
Art. 259.° Aquele que voluntariamente puzer fogo, e por este meio
destruir no todo ou em parte:
1.° Edifício pertencente ao Estado ou qualquer logar contendo, ou des-
tinado a conter coisas pertencentes ao Estado, será condenado na pena
fixa de degredo por vinte e cinco anos;
2.° Lavras, searas ou colheitas, será condenado na pena fixa de degredo
por quinze anos ;
3.° Habitação indígena ou qualquer logar por eles habitado será con-
denado na pena de desterro temporário ;
4.° Cubata não habitada nem destinada a habitação, será condenado
na pena de trabalho correccional até três anos.
Art. 260.° Quando do fogo posto resultar a morte de alguma pessoa,
será o crime punido como homicídio voluntário.
Art. 261.° Aquele que voluntariamente, por qualquer meio, derrubar,
destruir ou desarranjar, no todo ou em parte, edificação, construção ou
qualquer obra do Estado, ou de outrem, concluída ou somente começada,
será condenado:
1.° Na pena de trabalho correccional até cento e oitenta dias, quando o
prejuízo causado não exceder dez escudos;
2.° Na pena de trabalho correccional até um ano, quando o prejuízo,
excedendo dez escudos, não fôr superior a cem escudos;
3.° Na pena de desterro temporário, quando o prejuízo exceder a cem
escudos.
Art. 262.° A destruição ou desarranjo de via férrea, ponte ou estrada
pública, e bem assim a colocação de qualquer objecto sobre estas vias de
comunicação com o fim de embaraçar a circulação, será punida com a
pena de degredo temporário.
Art. 263.° Aquele que voluntariamente danificar ou destruir culturas
e bem assim o que ferir ou matar animais domésticos pertencentes ao
Estado ou de outrem, será condenado nas penas estabelecidas no ar-
tigo á58.°, conforme o prejuízo causado.
PARTE IV
é DAS PROVAS
Art. 264.° Prova é a demonstração da verdade dos factos alegados pe-
rante os tribunais indígenas.
Art. 265.° Os únicos meios de prova admitidos por este Código são :
1.° A confissão das partes;
2.° Os exames e vistorias ;
3.° Os documentos ;
4.° O caso julgado;
5.° O depoimento das testemunhas ;
6.° As presunções ;
7.° Os sinais feitos, animais ou objectos trocados por ocasião da cele-
bração do contracto, consagrado pelo costume local.
644 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 266.° A confissão é o reconhecimento expresso que a parte faz
do direito da parte contrária ou da verdade dos factos por esta alegados.
Art. 267.° A confissão é indivisível, não podendo por ôste facto, a parte
que dela se quizer aproveitar, aceitar o que lhe fôr favorável e regeitar
o que lhe possa ser prejudicial, salvo abrangendo a dita confissão factos
cuja falsidade se ache aliás demonstrada. ,
Art. 268 u A prova por exame ou vistoria, é aplicável à averiguação de
factos, que tenham deixado vestígios, que possam ser sujeitos a inspecção
ou exame ocular.
Art. 269.° Prova documental é a que resulta de documentos escritos,
exarados ou expedidos pelas instâncias oficiais.
Art. 270.° Caso julgado é. o facto ou o direito tornado certo por sen-
tença de que já não há recurso.
Art. 271.° Podem ser testemunhas todas as pessoas de um e outro sexo
que não sejam consideradas inábeis por incapacidade natural ou dispo-
sição deste Código.
Art. 272.° São inábeis para serem testemunhas, por incapacidade na-
tural:
1.° Os dementes ;
2.° Os cegos, ou surdos nos casos cujo conhecimento depender destes
sentidos;
3.° Os menores nos termos deste Código.
Art. 273.° São inábeis nos termos deste Código, para serem testemu-
nhas:
1.° Os que teem interesses directos na causa;
2.° Os ascendentes nas causas dos descendentes e vice-versa ;
3.° O marido nas causas da mulher e vice-versa ;
§ único. O disposto nos números 2.° e 3.° não é aplicável às questões
em que se trata de verificar o registo do Estado Civil dos Indígenas.
Art. 274.° O depoimento de uma única testemunha, destituído de qual-
quer outra prova, não fará fé em juizo.
Art. 275.° Presunções são as consequências ou ilacções, que o julgador
deduz de um facto reconhecido, para firmar um facto desconhecido.
Art. 276.° Ao prudente arbítrio do tribunal julgador fica o aceitar ou
regeitar como prova, em questões de contractos, os sinais convencionais
feitos, animais ou objectos trocados, por ocasião da sua celebração e
consagrados pelo costume local.
IV
PROJECTO DO REGULAMENTO
DO REGISTO DO ESTADO CIVIL DOS INDÍGENAS
DA PROVÍNCIA DE ANGOLA
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Art. l.° O registo do estado civil dos indígenas da província de Angol
é obrigatório e abrange:
1.° O registo dos nascimentos;
2.° O registo dos casamentos;
* 3.° O registo dos óbitos;
Art. 2.° No mesmo registo se averbarão os outros actos relativos ao
estado civil.
CAPÍTULO II
Dos funcionários do registo civil e suas atribuições
Art. 3.° A direcção, coordenação e superintendência do serviço do re-
gisto civil incumbe ao Secretário dos Negócios Indígenas, cabendo-lhe o
nome, no exercício das suas funções, de Conservador Geral do Registo
Civil dos Indígenas.
Art. 4.° A conservatória do registo civil dos indígenas funcionará na
Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 5.° No exercício das suas atribuições incumbe ao Conservador
Geral :
1.° Propor ao Governador Geral as medidas, as instruções e provi-
dências necessárias para a organização e funcionamento dos serviços;
2.° A inspecção das repartições do registo civil, directamente por si
próprio ou por intermédio de funcionários seus subordinados;
3." Resolver as dúvidas que nos casos particulares forem suscitadas
por qualquer dos oficiais do registo civil, solicitando deles ou de outros
quaisquer funcionários do registo os dados e informações que julgar con-
venientes e dando-lhe as ordens e instruções acomodadas;
4.° Organizar a estatística do registo civil;
646 POPULAÇÕES INDÍGENAS
5.° Desempenhar todas as mais funções que pela índole do seu cargo
lhe competem.
Art. 6.° O Conservador Geral será substituído nos casos de falta ou
impedimento pelo funcionário que o substituir como Secretário dos Ne-
gócios Indígenas.
Art. 7.° Em cada concelho, circunscrição civil e capitania-mór haverá
uma repartição do registo civil que funcionará na respectiva Secretaria
da administração do concelho, circunscrição civil ou da capitania-mór,
dirigida por um oficial do registo civil.
Art. 8.° Em cada posto civil ou militar das circunscrições e capitanias
mores haverá um posto de registo civil dirigido por um ajudante do
oficial do registo civil e sob directa responsabilidade deste mesmo oficial.
Art. 9.° O facto d& existência dos postos do registo civil não retira
ao oficial a sua competência dentro da área destes postos, antes, quando
o oficial se encontrar presente, é a êle que de preferência compete realizar
os registos, embora nos livros dos postos.
Art. 10.° As funções de oficial do registo civil são inerentes aos cargos
de administrador do concelho ou circunscrição civil e de capitão-mór.
Art. II.9 Exercem as funções de ajudante de oficial de registo civil os
chefes de postos civis ou militares a que eles pertencem.
Art. 12.° Os oficiais e ajudantes do registo civil serão substituídos, na
sua falta ou impedimento, por quem legalmente os deve substituir nos
seus cargos.
Art. 13.° No exercício das suas atribuições incumbe aos oficiais e aju-
dantes do registo civil:
l.° Lavrar ou mandar lavrar sob a sua responsabilidade todos os re-
gistos dos actos concernentes ao estado civil para que tenham competência;
2.° Arquivar, guardar e conservar os livros dos registos e todos os
documentos neles referidos;
3.° Organizar e enviar ao Conservador Geral ou oficial do registo
civil, conforme os casos, os mapas e mais informações a que se refere
este regulamento e quaisquer outros que aqueles funcionários lhe pedirem;
4.° Passar extractos, certidões e boletins dos actos do registo civil a
seu cargo e de quaisquer documentos arquivados ou certificar a sua não
existência;
5.° Desempenhar as mais funções que lhe são incumbidas por este
regulamento.
CAPÍTULO III
Dos livros do Registo Civil
Art. 14.° Em cada repartição do registo civil haverá os seguintes livros
de registo :
1.° De nascimentos;
2.° De casamentos;
3.° De óbitos.
Art. 15.° Os livros de registo devem ser conforme os modelos que
fazem parte deste regulamento, não podendo cada uma das suas folhas
conter mais de um registo.
DE ANGOLA t)47
Art. 16.° Para os nascimentos e casamentos é o registo constituído
pelo original e um extracto deste (modelos A e B).
§ único. No acto do registo de nascimento ou de casamento será en-
tregue aos interessados uma chapa metálica (modelo C) para o registo de
nascimento, e (modelo D) para o registo de casamento.
Art. 17.° Para os óbitos é o registo constituído pelo original e dois
extractos (modelo E), sendo um destes entregue aos herdeiros do fale-
cido.
Art. 18.° Aos oficiais do registo civil incumbe mensalmente enviar
para o Conservador Geral os extractos dos registos por eles lavrados e
os efectuados pelos ajudantes dos postos civis ou militares que estão sob
a sua directa responsabilidade.
Art. 19.° Os ajudantes do registo civil enviarão ao oficial respectivo
até ao dia 15 do mês seguinte os extractos dos registos que efectuaram
durante o mês.
Art. 20.° Os oficiais do registo civil enviarão ao Conservador Geral,
até ao dia 30 do mês seguinte, os extractos dos registos que efectuaram e
aqueles que receberam dos seus ajudantes durante o mês.
Art. 21.° Aos funcionários do registo civil que não enviarem os ex-
tractos ou os demorarem mais de um mês será imposta uma multa de
um escudo por cada dia de demora, paga por meio de guia assinada pelo
Conservador Geral.
Art. 22.° Os originais dos registos serão arquivados anualmente pelos
oficiais do registo civil nas respectivas repartições.
Art. 23.° Os extractos dos registos serão, depois de ligados por enca-
dernação, arquivados pelo Conservador Geral na Secretaria dos Negócios
Indígenas.
Art. 24.° A numeração de cada espécie de registo será feita por anos
civis em cada repartição de registo civil.
Art. 25.° Por qualquer acto do registo civil cobrar-se há o emolumento
único de $25 pertencendo $20 ao funcionário que lavrou o registo e $05
à autoridade gentílica que inter vier no registo.
Art. 26.° As despezas com os livros, chapas e mais expediente das
repartições do registo correrão por conta dos respectivos oficiais e aju-
dantes destes e saem das verbas que constituem os seus emolumentos.
CAPÍTULO IV
Dos serviços do registo civil
Art. 27.° O serviço do registo civil pode ser feito de dia ou de noite
na repartição ou fora dela.
Art. 28.° É proibido, nos registos, usar de abreviaturas ou algarismos,
podendo no entanto repetir-se por algarismos as datas já escritas por
extenso.
Art. 29.° Os riscos, emendas, razuras ou outra qualquer alteração que
possa ocasionar dúvida, devem ser ressalvadas pela mesma letra e antes
da assinatura.
Art. 30.° O registo, antes de ser assinado será sempre lido em voz alta
648 POPULAÇÕES INDÍGENA^
e traduzido na língua falada pelos indígenas, perante todas as pessoas
que nele intervierem, e de que se fará expressa menção.
Art. 31.° As notas e averbamentos que tenham de ser feitos posterior-
mente nos registos serão lançadas à margem do respectivo registo, e se
o funcionário já não tiver em seu poder o extracto, é obrigado a enviar
ao Conservador Geral no prazo de oito dias, uma cópia textual desse
lançamento com indicação do registo a que se refere.
Art. 32.° Os registos são lavrados em face das declarações do chefe ou
chefes das famílias dos interessados e na presença da autoridade gentílica,
a que estão subordinados os indígenas de que trata o registo.
Art. 33.° São responsáveis pela participação e declaração do registo
do estado civil dos indígenas as autoridades gentílicas que neles inter-
veem.
Art. 34.° As autoridades gentílicas que, na falta das declarações da
família dos interessados no registo não fizerem as participações ou derem
falsas declarações serão punidos com a pena de multa de 5 a 50$00 escudos
imposta pelos oficiais do registo civil e mandada entrar na Fazenda por
guia por estes funcionários assinada.
§ único. Se se reconhecer que o facto da falta da participação ou falsas
declarações feitas pela autoridade gentílica foram devidas a erradas in-
formações, nem por isso aquela autoridade fica isenta da responsabilidade
do pagamento da multa que lhe fôr imposta, mas igual pena será aplicada
ao falso informador.
Art. 35.° As declarações de nascimento devem ser feitas dentro do
prazo de 15 dias a contar do parto, fazendo o funcionário encarregado do
registo, perante os indivíduos indicados no art. 32.° e na presença do
recem-nascido, o respectivo registo.
Art. 36.° A mudança de nome é autorizada até duas vezes para cada
indígena e o seu registo far-se há em averbamento à margem do registo
do nascimento.
Art. 37.° No registo de casamento dos indígenas observar-se ha o
disposto no Código de Justiça Indígena no capítulo respectivo ao casa-
mento.
Art. 38.° Os indígenas que pretenderem contrair casamento deverão
comparecer perante o funcionário de registo civil da área administrativa
a que pertence a noiva, acompanhados dos indivíduos indicados no
art. 32.° e do membro da família da noiva que nos termos do art. 103.°
do Código de Justiça Indígena compete dar o consentimento para o
casamento.
Art. 39.° O funcionário do registo civil verificando, pelas declarações
do chefe da família e da autoridade gentílica que o casamento pode rea-
lizar-se, e ouvindo o membro da família da noiva a quem compete dar o
seu consentimento, nos termos do art. 103.° do Código de Justiça
Indígena, explicará os direitos e deveres de cada um dos cônjuges e
lavrará ou mandará lavrar o registo do casamento.
Art. 40 ° Pelo casamento polígamo, permitido pelo art. 104.° do Có-
digo de Justiça Indígena, cobrar-se ha, àlêm do emolumento a que se
refere o art. 25.°, a taxa de cinco escudos pela segunda mulher, e a de
dez escudos por cada uma das outras.
DE ANGOLA
649
§ único. No registo far-se há especial menção do casamento neste re-
gimen e da taxa cobrada.
Art. 41.° Quando os noivos forem menores entre os 16 e 18 anos, sendo
do sexo masculino, e entre os 14 e 16 anos, sendo do sexo feminino, o
funcionário do registo civil procederá nos termos do artigo 102.° do
Código de Justiça Indígena, cobrando a taxa de dois escudos pela con-
cessão da respectiva licença.
Art. 42.° As taxas consignadas no& artt. 40.° e 41.° darão entrada na
Fazenda por meio de guia passada pelo funcionário do registo civil.
Art. 43.° O divórcio averbar-se há à margem do respectivo registo de
casamento, em face da sentença que o confirmou.
Art. 44.° Logo que um indígena falecer, compete ao chefe da família
do falecido, na falta ou na ausência deste a qualquer membro desta, vir
declarar o óbito ao funcionário do registo Civil da área a que pertence
fazendo-se acompanhar da respectiva autoridade gentílica.
Art. 45.° O funcionário do registo civil pode, se entender conveniente,
não lavrar o registo de óbito senão depois de ir ou mandar verificar o
mesmo.
Art. 46.° Se aparecer o cadáver de um indígena, cuja identidade não
seja possível reconhecer-se, no registo de óbito deverá declarar-se :
1.° O logar onde foi encontrado o cadáver;
2.° O estado em que êle se encontrava;
3.° O seu sexo e idade aproximada;
4.° Quaisquer outras circunstâncias ou indícios que se encontrarem.
§ 1.° Compete à autoridade gentílica mais próxima do local onde ocor
reu o óbito de qualquer indígena desconhecido ou sem família, fazer a
sua comunicação ao respectivo funcionário do registo civil;
§ 2.° O registo destes óbitos é gratuito.
Art. 47.° Os assentos e mais documentos relativos ao registo do estado
civil dos indígenas são isentos de selo.
CAPÍTULO V
Disposições transitórias
Art. 48.° Compete às autoridades administrativas compelir ao registo
civil todos os indígenas que por efeito de operações de arrolamento e
cobrança do imposto de cubata, de queixas e contractos de prestação de
trabalho, ou por qualquer outro motivo, averiguem, não terem celebrado
os actos do registo do estado em que se encontram.
Art. 49.° Ficam isentos do pagamento das taxas a que se referem os
artt. 40° e 41.° todos os registos de casamentos gentílicos celebrados
antes da publicação deste regulamento e que por efeito do artigo anterior
tenham de ser registados.
42
650
POPULAÇÕES INDÍGENAS
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DE ANGOLA
651
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PROVÍNCIA DE ANGOLA
Concelho, Circunscrição ou Capitania de . . .
REGISTO DO ESTADO CIVIL DOS INDÍGENAS
Repartição de- . .
REGISTO DE CASAMENTO
N.°...
Número de ordem deste registo em constância do regimen polígamo. •
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Nome. . .
Idade. . .
Estado. . .
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Nome do pai.
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Nome da mãe.
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Emolumentos para o funcionário do Registo Civil $20
» para a autoridade gentílica $05
Taxas pelo consentimento de menores #
» pelo casamento no regimen poligamo Ò
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O funcionário do Registo Civil,
052
POPULAÇÕES INDÍGENAS
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0 funcionário do Registo Civil,
PE ANGOLA
653
(Modelo C)
(Modelo D)
CONCELHO, CIRCUNSCRIÇÃO OU CAPITANIA DE.
REPARTIÇÃO DE...
CASAMENTO
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654
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Filiação cc(Hy
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PROVÍNCIA DE ANGOLA
Concelho, Circunscrição ou Capitania de--
REGISTO DO ESTADO CIVIL DOS INDÍGENAS
Repartição de. . .
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..., ... de ... de 191...
O funcionário do Registo Civil,
Emolumentos :
#20 para o funcionário do Registo Civil.
$05 para a autoridade gentilica.
AVERBAMENTOS
PROJECTO
DO DIPLOMA REGULANDO O RECENSEAMENTO
DA POPULAÇÃO INDÍGENA
Art. l.° Aos administradores de concelho, circunscrições civis e capi-
tães-móres compete organizar o recenseamento da população indígena,
pela forma estabelecida neste diploma.
§ único. Simultaneamente ao recenseamento da população se proce-
derá ao recenseamento do gado.
Art. 2.° O recenseamento da população indígena organisar-se-há:
1.° Directamente;
2.° Por estimativa.
Art. 3.° O recenseamento organizar-se há directamente, nas regiões
em que se proceda ao arrolamento para o imposto de cubata, e as opera-
ções do recenseamento serão simultaneamente levadas a efeito pela ocasião
em que se proceder às operações do arrolamento.
Art. 4.° O recenseamento organizado directamente será classificado:
1.° Completo, quando o arrolamento para o pagamento do imposto de
cubata o fôr, e abranja a totalidade dos indígenas da região.
2.° Incompleto, quando o arrolamento o fôr, e não abranja a totali-
dade dos indígenas de região.
Art. 5.° O recenseamento organizar-sehá por estimativa nas regiões
em que não se proceda ao arrolamento para o pagamento do imposto de
cubata.
Art. 6.° Com os elementos colhidos pela forma estabelecida nos artigos
anteriores elaborarão as autoridades administrativas os mapas do recen-
seamento da população indígena, conforme o modelo junto, e enviá-lo
hão para a Secretaria dos Negócios Indígenas até 31 de Janeiro de cada
ano.
656
POPULAÇÕES INDÍGENAS
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Fêmeas
Varões
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VI
PROJECTO REGULANDO O EXERCÍCIO DO DIREITO
DE PETIÇÃO POR ESCRITO
(Procuradores indígenas)
Art. l.° Para escrever e assinar, em nome ou a rogo de indígenas,
reclamações, queixas, petições ou qualquer exposição, dirigida às autori-
dades ou instâncias oficiais, só são competentes :
1.° Aqueles que legalmente podem fazê-lo, pela sua qualidade de
advogados ou solicitadores ;
2.° Os procuradores de indígenas.
Art. 2.° Ninguém poderá ser procurador de indígenas sem uma licença
especial passada pela autoridade competente.
Art. 3.° As licenças de procuradores de indígenas são da competên-
cia dos administradores do concelho, circunscrições civis ou capitães-
móres.
Art. 4.° Todo aquele que deseje obter licença de procurador de indí-
genas deverá requerê-la à autoridade competente de concelho, circunscri-
ção ou capitania-mór, onde deseja exercer o seu mister.
Art 5.° As autoridades competentes para passarem licenças de pro-
curadores de indígenas, só as concederão, quando reconheçam que os
requerentes são de comprovada moralidade e honestidade e possuam
instrução necessária para exercerem o seu mister.
Art. 6.° Para averiguar das condições dos requerentes empregarão
as autoridades os meios .que entenderem convenientes, podendo sempre
recusar qualquer licença sem obrigação de justificar o motivo da recusa,
bem assim como poderão cancelar as licenças que hajam concedido.
Art. 7.° Por cada licença de procuradores de indígenas cobrar-se há
uma taxa de cinco escudos, paga na Fazenda por meio de guia passada
pela autoridade que a concede.
Art. 8.° As licenças de procuradores de indígenas são pessoais e in-
transmissíveis e terminaram em 31 de Dezembro do ano em que foram
concedidas.
Art. 9.° Nas administrações dos concelhos, circunscrições ou capita -
nias-móres, far-se há um registo das licenças de procuradores de indíge-
nas, de onde conste o nome, a morada, o estado e profissão do titular da
licença, e a sua assinatura.
658 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 10.* O número de procuradores de indígenas de cada concelho,
circunscrição ou capitania-mór não poderá exceder a 10.
Art. 11.° As reclamações, queixas, petições ou exposições escritas e
assinadas, em nome ou a rogo de indígenas, que não sejam dirigidas
às autoridades ou entidades oficiais da divisão administrativa em que a
licença é válida, transitarão pelos administradores do concelho, circuns-
crição ou capitães-móres, que devidamente informadas as farão seguir
o seu destino.
Art 13.° As reclamações, queixas, petições ou exposições escritas e
assinadas, em nome ou a rogo de indígenas, não serão recebidas sem
que venham autenticadas pela impressão digital do polegar esquerdo dos
indígenas interessados.
Art. 14.° E lícito aos procuradores dos indígenas receberem uma re-
muneração pelos serviços prestados no exercício do seu mister, a qual
não poderá exceder a $50 pela primeira lauda escrita e $20 por cada uma
das outras.
Art. 15.° Os procuradores de indígenas são obrigados a assinar os
escritos que, em nome ou a rogo de indígenas, fizerem, bem asssim como
a explicar claramente o texto dos mesmos escritos aos seus clientes.
Art. 16.° Á margem daqueles escritos constará a quantia recebida
como remuneração dos serviços prestados.
Art. 17.° Toda e qualquer infracção ao disposto neste diploma por
parte dos procuradores de indígenas, será punida com a multa de um a
cinco escudos, podendo ser-lhe caçada a licença se a autoridade que a
concedeu assim o julgar conveniente.
Art. 18.° Aquele que escrever e assinar, em nome ou a rogo de indí-
genas, qualquer reclamação, queixa, petição ou exposição, dirigida às
autoridades ou entidades oficiais, etn contravenção do disposto nos
artt. l.° e 2.° deste diploma, será punido com a multa de cinco a vinte
escudos.
PROVÍNCIA DE ANGOLA
Concelho, Circunscrição ou Capitania- mór de . . .
LICENÇA DE PROCURADOR DE INDÍGENAS
Estando. . . nas condições de obter licença de procurador de indígenas,
nos termos do . . . de. . . hei por conveniente passar-lhe a presente licença
válida desde. . . de. . até 31 de Dezembro de 191 . .
..., ... de... de 191...
Assinatura do titular da licença
Administrador do Concelho, Circunscrição
ou Capitão -mór,
VII
PROJECTO REGULANDO A ORGANIZAÇÃO POLITICA
INDÍGENA
Art. l.° São considerados como autoridades gentílicas os sobas, so-
betas, séculos, macotas, mucuruntos, lengas e similares exercendo as
suas funções com o consentimento expresso das autoridades administra-
tivas.
Art. 2.° São reconhecidos e considerados como Conselhos Gentílicos
as corporações de sobetas1, séculos, macotas e similares, a quem, segundo
as tradições indígenas, cabe, colectivamente, as resoluções de diversos
assuntos de interesse das populações indígenas.
Art. 3.° Nos termos do artigo 5.° do Estatuto Civil e Político dos
Indígenas são mantidas todas as autoridades e Conselhos Gentílicos e
permitidos e respeitados todos os usos e costumes das organizações polí-
ticas indígenas que não sejam contrárias às disposições legais e aos
princípios de humanidade.
Art. 4.° A autoridade gentílica somente se exerce sobre os indivíduos
compreendidos na categoria de indígenas definida pelo Estatuto Civil e
Político dos indígenas.
Art. 5.° Os indígenas das diferentes circunscrições administrativas
da província, quer se achem nas localidades a que pertencem, quer fora
delas por efeito de contracto para trabalho por período certo de tempo,
ou por qualquer outra circunstância que implique regresso à sua residên-
cia usual, estão, para os efeitos da subordinação à autoridade gentílica,
repartidos por sobados.
Art. 6.° Entende-se por sobado uma povoação ou agrupamento de
povoações obedecendo a um chefe indígena, quando dessa relação de
obediência seja confirmada pela tradição e à autoridade administrativa
convenha mantê-la.
Art. 7.° Os limites territoriais dos sobados são fixados pelo adminis-
trador da circunscrição, mediante a informação dos chefes dos postos
e ouvidos os conselhos gentílicos dos sobados limítrofes.
§ único. Na delimitação da área dos postos ter-se há em vista que
o mesmo sobado fique inteiramente incluído na área de um posto.
Art. 8.° Todos os indígenas que residam habitualmente no sobado e
que nele venham a estabelecer-se consideram-se como fazendo parte desse
660 POPULAÇÕES INDÍGENAS
sobado e estão para todos os efeito sujeitos à autoridade do respectivo
soba.
§ único. Exceptuam-se desta disposição os indígenas empregados pelo
Governo ou por casas particulares mediante contracto efectuado nos ter-
mos da lei emquanto dure o serviço ou seja válido o contracto.
Art. 9.° Cada sobado fica sujeito á autoridade de um único chefe indí-
gena, o soba ou sobeta, directamente subordinado ao administrador do
concelho, circunscrição ou capitania-mór, que lhe transmitirá as suas
ordens directamente ou por intermédio do chefe do posto respectivo.
Art. 10.° Entre os sobas, sobetas, macotas e similares serão mantidas
as relações de subordinação e uso das funções que pela tradição lhes
competem, de harmonia com os princípios estabelecidos neste diploma.
Art. 11.° Quando a extensão territorial do sobado seja demasiado
grande, mantem-se virtual a influência do soba relativamente a todo êle,
e dá-se aos sobas subordinados ou aos sobetas, a influência actual, tal
como é definida pelo presente diploma também aplicável aos sub-so-
bados e aos sobetas da mesma forma que o é aos sobados e sobas.
Art 12.° Quando em qualquer sobado se tenha extinguido a organi-
zação política indígena devido à influência da autoridade dominadora,
à disseminação do povo que habitava a região, a heterogeneidade étnica
da população indígena que ali esteja estabelecida, ou a qualquer outro
motivo, as autoridades administrativas deverão procurar restabelecer
aquela organização, orientando-se para este fim, com os melhores ele-
mentos que poderam obter acerca de quem por direito, tradição ou con-
veniência política deva assumir a chefia do sobado e constituir o conselho
gentílico.
§ único. Na restauração dos sobados extintos a autoridade adminis-
trativa, intervirá por forma a conseguir que a organização política esta-
belecida se harmonise o melhor possível com os usos e costumes da
maioria da população e porá especial cuidado para que todos se submetam
às autoridades gentílicas nomeadas.
Art. 13.° As autoridades administrativas deverão respeitar quanto
possível as regras consuetudinárias e as tradições dos povos na investi-
dura dos sobas e outras autoridades gentílicas^ assistindo lhe porém a
faculdade de se oporem a ela, quando assim seja necessário à sua acção
administrativa.
Art. 14.° Os administradores do concelho, circunscrição ou capitães-
móres quando julguem prejudicial a investidura ou a continuação em
exercício de determinado indígena nas funções de soba ou outra autori-
dade gentílica, farão reunir o conselho gentílico do respectivo sobado, ao
qual lembrarão a escolha de outros indivíduos para o exercício daquela s
funções, de acordo com o sentimento da população do sobado e interesse s
administrativos, e só quando por este meio não conseguirem que as fun-
ções sejam atribuídas a indivíduo competente, poderão escolhê-lo segundo
o seu critério.
Art. 15.° Nenhuma autoridade gentílica poderá exercer as suas fun-
ções sem que a sua escolha ou eleição seja aprovada pelo administrador
da circunscrição e sem que, perante a mesma autoridade administrativa
tome posse e preste as suas declarações de honra.
BE ANGOLA 661
Art. 16.° No acto da posse será organizado o registo biográfico dos
nomeados conforme o modelo anexo ao presente regulamento.
§ único. Um duplicado deste registo será enviado à Secretaria dos
Negócios Indígenas.
Art. 17.° A nomeação dos sobas será confirmada pelos administrado-
res um ano depois da sua nomeação provisória e a das outras autoridades
gentílicas após seis meses, devendo, nesta ocasião, ser-lhes entregue o
competente alvará.
Art. 18.° A confirmação dos sobas será comunicada à Secretaria dos
Negócios Indígenas para ser publicada no Boletim Oficial.
Art. 19.° Os sobas e sobetas teem direito a uma percentagem sobre a
cobrança do imposto de cubata, quando nela intervenham prestando
o seu auxílio ao arrolamento e cobrança e a outras importâncias ou
emolumentos que lhes sejam atribuídas pelas leis e regulamentos em
vigor.
§ 1.° As autoridades administrativas poderão determinar que uma
parte das percentagens ou emolumentos atribuídos ao soba seja equitati-
vamente distribuída pelas autoridades gentílicas suas subordinadas.
§ 2.° Podem também ser abonadas gratificações a qualquer autori-
dade gentílica por serviços prestados não excedendo porém a 60100
em cada ano. Estas gratificações serão pagas pelo fundo das circuns-
crições mediante proposta do administrador, autorizada pelo governo
do distrito.
Art. 20.° Será concedida passagem gratuita em caminhos de ferro ou
a bordo de qualquer navio para o soba e para um dos macotas que o
acompanhar, sempre que por ordem da autoridade administrativa tenha
de deslocar-se em objecto de interesse público entre localidades servidas
por aquelas vias de comunicação.
Art. 21.° É garantido aos sobas e outras autoridades gentílicas a
ocupação provisória e usufruto de terrenos do Estado que, segundo as
suas tradições, constituem os chamados bens do governo do sobado.
§ único. Para garantia da ocupação provisória serão os terrenos
demarcados pelos funcionários dos serviços de agrimensura ou adminis-
trativos e gratuitamente titulados pelo respectivo administrador, em
favor do Bobado ou sub-divisão deste.
Art. 22.° A área máxima a conceder nos termos do artigo anterior
será de vinte hectares para usufruto do soba, dez para o sobeta e cinco
para usufruto de cada macota, século ou similar.
Art. 23.° Os filhos dos sobas e sobetas, assim como as suas mulheres
são isentos da obrigatoriedade na prestação de serviços a que se refere o
artigo.
Art. 24.° São deveres dos sobas e sobetas : \/
1.° Obedecer e fazer com que os povos sob a sua jurisdição obedeçam
às autoridades administrativas da circunscrição a que pertencem.
2.° Tornar públicas no sobado as determinações e avisos da autori-
dade administrativa, vigiar sob a sua observância e comunicar às mesmas
autoridades as faltas que se derem levando também ao seu conhecimento
os pedidos, reclamações ou queixas que sobre as mesmas determinações
fizerem os habitantes do sobado.
662 POPULAÇÕES INDÍGENAS
3.° Auxiliar a autoridade a que estejam subordinados, na execução
dos seguintes serviços :
a) organização de recenseamentos ;
b) arrolamento, e cobrança de imposto;
c) recrutamento de trabalhadores ;
d) recrutamento militar;
4.° Fazer nos termos do regulamento do Registo do Estado Civil
dos Indígenas as devidas participações à autoridade competente.
5.° Conservar sempre abertos e limpos os caminhos, pontes, poços
e cacimbas do seu sobado.
6.° Vigiar pela conservação das estradas, pontes, linhas telegráficas
e outras obras do Estado impedindo que por incúria ou maldade sejam
danificadas e comunicando à autoridade administrativa imediatamente
qualquer dano ou desarranjo motivado for propósito ou caso fortuito.
7.° Comunicar à autoridade administrativa todos os acontecimentos
de importância que ocorrerem no sobado e que interessem e demandem
a intervenção da autoridade, tais como calamidades públicas, desloca-
mento de populações em massa, incursões de outros povos, tentativas de
rebelião, etc.
8.° Auxiliar e proteger os indígenas sujeitos à sua jurisdição man-
tendo a ordem e a tranquilidade da população.
9.° Fazer a polícia do sobado denunciando e capturando de motu pró-
prio, ou a pedido da autoridade administrativa, para serem presentes a esta:
a) os desobedientes aos mandados e determinações da autoridade;
b) os desordeiros ;
c) os ociosos e vadios que não cumpram por qualquer forma a sua
obrigação de trabalho.
d) os serviçais fugidos do local onde estavam prestando serviços;
é) os indígenas de fora da circunscrição que transitem pelo seu
sobado sem estarem munidos da competente guia ;
f) os transgressores das disposições sobre uso e porte de armas,
caça, corte de madeiras e outros regulamentos em vigor;
g) os desertores.
h) os condenados evadidos do logar em que estavam cumprindo a
condenação ;
i) quaisquer outros reconhecidos ou supostos criminosos.
10.° Auxiliar a autoridade administrativa na manutenção da ordem
e polícia da região e em tudo o mais que seja necessário e comunicar-lhe
todos os delitos ou crimes de que tenham conhecimento.
Art. 25.° Os sobas e sobetas são auxiliados pelas autoridades gentí-
licas que lhe estiverem subordinadas, competindo a estas autoridades
dentro das sub-divisões do sobado sujeitas à sua autoridade as mesmas
obrigações que por este diploma competem aos sobas.
Art. 26.° Para execução dos trabalhos públicos a cargo dos sobados
devem as autoridades gentílicas empregar a população por forma que,
durante cada ano, a tarefa imposta aos indígenas seja equitativamente
repartida por todos eles, sendo permitido o emprego das mulheres e dos
menores nos serviços menos violentos tais como limpeza de povoados e
caminhos.
DE ANGOLA 663
Art. 27.° Nenhum indígena poderá ser forçado a trabalhar nos termos
do artigo anterior mais do que vinte e quatro dias em cada ano civil,
salvo em casos de calamidade pública.
Art. 28.° A não ser por ordem da autoridade ou em serviço desta,
nenhum indígena poderá ausentar-se por mais de trinta dias para fora
do sobado ou por qualquer tempo para fora da circunscrição administra-
tiva a que pertencer, sem se munir de uma guia de desembaraço que lhe
poderá ser negada quando a autoridade tenha razões para isso.
§ único. A transgressão do disposto neste artigo será punida com a
multa de um a três escudos.
Art. 29.° Pela guia de desembaraço pagarão os indígenas a impor-
tância de $10 que será dividida em duas partes, pertencendo uma à
autoridade gentílica da residência do indígena e outra à autoridade que
a passar.
§ 1.° As guias de desembaraço podem ser colectivas e neste caso a
importância a cobrar será de $05 por cada indígena adulto quando nelas
sejam incluídos três ou maior número.
§ 2.° Nenhuma importância será cobrada pelas guias com que os
indígenas hajam de regressar de qualquer local ao seu sobado.
Art. 30.° A falta de cumprimento nas obrigações impostas por este
diploma às autoridades gentílicas será punida : com a multa de um a
vinte escudos ou com prisão até sessenta dias.
§ único. A reincidência sem manifestação de tendência para correcção
implica a destruição da autoridade gentílica e pode determinar a sua
apresentação ao governador do distrito para lhe dar destino conveniente,
quando a autoridade administrativa reconhecer que é prejudicial à ordem
e tranquilidade da região a permanência ali da autoridade gentílica
destituída.
Art. 31.° É expressamente proibido a todas as autoridades gentílicas:
1.° Cobrar quaisquer importâncias a título de imposto em seu pro-
veito ou de outrem, sem que para isso estejam legalmente autorizadas.
2.° Servir-se de nome da autoridade administrativa sem seu prévio
consentimento para o con seguimento de qualquer acto.
3.° Exercer violências e extorsões sobre os indígenas.
§ único. A transgressão do disposto neste artigo será punida com a
multa de cinco a cinco enta escudos ou com prisão até seis meses, podendo
qualquer das penas aplicadas ser ou não seguida da destituição nos
termos do § único do artt. 30.°, mas importando sempre a reparação
pecuniária do dano ou dolo causado.
Art. 32.° As multas cominadas neste diploma quando não sejam
pagas voluntariamente, sem outra forma de processo àlêm da sua apli-
cação e passagem da respectiva guia em papel comum e sem selos para
entrada na Fazenda serão impostas em processo sumário e se por esta
forma não forem ainda pagas serão substituídas por prisão ou trabalho
correccional equivalendo um dia à importância de $30.
Art. 33.° Os administradores e capitães-móres deverão reunir os sobas
e sobetas ao menos uma vez em cada ano, na sede das circunscrições para
ouvirem as suas queixas e exposições sobre quaisquer assuntos e para 09
guiar e orientar na política indígena a seguir.
664 POPULAÇÕES INDÍGENAS
§ único. Anualmente as mesmas autoridades deverão enviar ao governo
do distrito e à Secretaria dos Negócios Indígenas um relatório sobre a
política indígena da área das suas jurisdições.
Art. 34.° Ficam por este diploma revogadas e substituídas as dispo-
sições do capítulo 3.° do Regulamento das Circunscrições Civis em
vigor.
VIII
PROJECTO
DO REGULAMENTO DE TRABALHO DOS INDÍGENAS
NA PROVÍNCIA DE ANGOLA
CAPITULO I
Disposições gerais
Art. l.° É livre o trabalho dos indígenas em todo o território da pro-
víncia de Angola.
Art. 2.° A prestação de serviços por parte dos indígenas da província
de Angola exige sempre um contracto nos termos deste regulamento.
Art. 3.° Os contractos de prestação de serviços para fora da província^
só podem ser feitos com licença do Governo da Metrópole.
§ único. Serão permitidos os contractos de prestação de serviços,
nos termos deste regulamento, para a província de S. Tomé e Príncipe,
autorizado pelo decreto n.° 951 de 14 de outubro de 1914, e para a Ro-
désia do Norte, conforme os acordos internacionais de 4 e 31 de Dezembro
de 1912.
Art. 4.° A emigração dos indígenas de Angola para a metrópole, para
outras colónias portuguesas ou para colónias ou países estrangeiros, só
será permitida mediante contracto feito nos termos dos artigos antece-
dentes.
Art. 5.° O Governador Geral proporá ao Governo da Metrópole, sem-
pre que o aconselhem razões políticas ou económicas, a proibição tempo-
rária da emigração de indígenas de todo ou de parte do território da
província para fora da mesma província.
§ único. Compete ao Governador Geral, em Conselho do Governo,
proibir a emigração de uns pontos para outros dentro da província,
sempre que o aconselhem razões económicas, de saúde pública ou de
política indígena.
Art. 6.° São considerados trabalhadores indígenas os indígenas que
por um contracto se obriguem à prestação de trabalho mediante paga-
mento de um salário.
§ 1.° São incluídos nesta categoria os indígenas que prestam serviços
domésticos, serviços marítimos ou de pesca e de cargas.
43
666 POPULAÇÕES INDÍGENAS
§ 2.° O facto de qualquer indivíduo ou entidade ter ao seu serviço
um indígena confere a este os direitos e deveres de trabalhador indígena.
Art. 7.° São considerados colonos indígenas os indígenas de Angola
que dentro da província contratarem os seus serviços para cultivar de
conta própria terrenos de outrem, por concessão, arrendamento ou a
troco de prestação de serviço.
CAPÍTULO II
Da tutela dos trabalhadores indígenas
Art. 8.° O Estado exerce tutela sobre os trabalhadores e colonos indí-
genas, nos termos deste regulamento.
Art. 9.° A tutela a que se refere o artigo antecedente é exercida pelo
curador geral e pelos seus agentes, sob a superintendência do Governador
Geral.
Art. 10.° Exerce as funções de curador geral na província o secretário
dos negócios indígenas.
§ único. Na falta ou impedimento do secretário dos negócios indígenas
desempenhará as funções do curador geral o funcionário daquela secre-
taria que o substitue.
Art. 11.° São agentes do curador geral na província de Angola:
1.° Os administradores de concelho;
2.° Os administradores de circunscrição;
3.° os capitães-móres.
§ 1.° O curador geral se assim o entender conveniente para o serviço
poderá retirar a qualquer dos seus agentes todas ou parte das atribuições
que lhes competirem em toda ou em parte da área da sua jurisdição,
delegando-as a qualquer funcionário civil ou militar, mediante proposta
apresentada ao Governador Geral, por este aprovada em portaria publicada
no Boletim Oficial.
§ 2.° Os agentes do curador poderão, por conveniência de serviço,
delegar todas ou parte das suas atribuições em qualquer funcionário
civil ou militar da área da sua administração, mediante proposta
aprovada pelo curador geral e confirmada pelo Governador Geral em
portaria publicada no Boletim Oficial.
Art. 12.° O curador geral e os seus agentes são os protectores natos
dos trabalhores e colonos indígenas contratados, nos termos do presente
diploma, com ou sem intervenção da autoridade, devendo, sob a super-
intendência do Governador Geral, vigiar e fiscalizar a execução dos res-
pectivos contractos.
Art. 13.° Não poderá ser nomeado curador geral ou seu agente quem
tiver em colónias portuguesas ou estrangeiras qualquer exploração agrí-
cola ou industrial em que empreguem trabalhadores ou colonos indígenas.
Art. 14.° Compete ao curador geral:
1.° Interferir na celebração dos contractos de prestações de serviços
conforme o disposto no presente regulamento;
2.° Fazer sob sua responsabilidade, com que as condições desses
contractos sejam observados escrupulosamente;
DE ANGOLA 667
3.° Opôr-se à celebração dos mesmos contractos quando encontrar
razões pelas quais entenda não dever aprova los, e anular aqueles feitos
sem a intervenção da autoridade, quando os julgue nas mesmas condições ;
em um e outro caso os seus despachos serão dados com fundamento,
sujeitos às disposições dos artt. 21.° e 22.°;
4.° Vigiar por si e pelos seus agentes, que lhes estão imediata e.
directamente sujeitos, que os contractos sejam fielmente cumpridos pelos
patrões e trabalhadores indígenas, podendo proceder ou mandar proceder
por delegados seus às investigações que julgar necessárias;
5.° Receber as reclamações e queixas que com relação à execução dos
contractos de prestação de serviços, lhe forem feitas e proceder nos termos
da lei ;
6.° Retirar a aprovação dada aos contractos quando, por ofensa das
disposições legais, para isso haja suficiente motivo;
7.° Praticar os actos necessários para fazer executar e cumprir todas
as disposições protectoras dos trabalhadores indígenas contratados e para
compelir estes ao cumprimento das disposições que tomaram, pelo facto
de serem contratados os seus serviços;
8.° Publicar anualmente um relatório claro e conciso de onde conste o
número de indígenas contratados e todos os outros detalhes que sejam
necessários para que se possam julgar com exactidão do movimento dos
trabalhadores contratados;
9.° Julgar e punir, em processo sumário, todas as faltas cometidas
pelos patrões e trabalhadores indígenas, contra o disposto no presente
regulamento, e a que não corresponde pena superior a multa de 5.000$ ou
a seis meses de prisão correccional ou 300 dias de trabalho correccional, e
especialmente :
1.° Por parte dos patrões :
a) Falta de pagamento dos salários ;
b) Detenção forçada dos trabalhadores indígenas ;
c) Maus tratos infligidos aos trabalhadores indígenas a que não cor-
responde penalidade superior à da sua competência;
d) Transgressão das obrigações impostas no contracto de prestação de
serviços.
2.° Por parte dos trabalhadores indígenas :
a) Ausência ilegítima do estabelecimento de trabalho;
b) Recusa de prestação de trabalho;
c) Desobediência contínua ou insubordinação, não acompanhada de
agressão ou circunstâncias a que corresponde pena superior à da sua al-
çada;
d) Embriaguês habitual, prática de danos e vícios de maus costumes
inveterados.
10.° Expedir directamente para os agentes do curador as ordens e ins-
truções que, sobre os serviços de curadoria entender conveniente para a
execução dos mesmos serviços ;
11.° Desempenhar todas as outras atribuições que, pelo presente regu-
lamento, lhe compete ou pelo governador geral lhe forem conferidas.
Artigo 15.° Compete aos agentes do curador :
1.° O estabelecido nos n.os 1.°, 2.°, 3.°, 5.°, 6.° e 7.° do artigo anterior;
668 POPULAÇÕES INDÍGENAS
2.° Vigiar que os contractos sejam fielmente cumpridos pelos patrões e
trabalhadores indígenas ;
3.° Julgar e punir, em processo sumário, todas as faltas cometidas
pelos patrões, trabalhadores e colonos indígenas, e em especial os indica-
dos no n.° 9 do artigo anterior, a que não corresponda pena superior a
seis meses de prisão correccional ou a multa de 590$ ou cento e cincoenta
dias de trabalho correccional ; -
4.° Desempenhar todas as outras atribuições que pelo presente regu-
lamento lhes competem, bem assim como as ordens e instruções que, em
serviço de curadoria, pelo curador geral lhes forem incumbidas.
■ Art. 16.° As atribuições protectoras do Ministério Público, com relação
aos menores de dezoito anos, contratados ou que se queiram contratar
nos termos do presente regulamento, serão exercidas pelo curador geral
ou por delegação deste, pelos seus agentes.
Art. 17.° O curador geral, por si ou pelos seus agentes poderá, sempre
que o entender conveniente, proceder ou mandar proceder à inspecção dos
serviços sujeitos à sua autoridade.
§ único. O curador geral quando em serviço fora da capital da provín-
cia, terá direito a transporte e à ajuda de custo como secretário dos ne-
gócios indígenas.
Art. 18.° Quando no exercício das faculdades que lhe são confiadas, o
curador geral ou seus agentes entenderem por bem retirar a aprovação
dada aos contractos, procederão, primeiro a todas as precisas investi-
gações, ouvindo o patrão e o queixoso ou quem o represente, podendo
interrogar ou fazer interrogar testemunhas e reduzir a auto o seu
depoimento.
Art. 19.° O curador e seus agentes tem o direito de intimar, por via
administrativa, quaisquer testemunhas de que careçam para as inves-
tigações a que tenham de proceder, a comparecerem no local e hora
designadas na intimação, atendendo sempre às distâncias e meios de
transporte.
§ único. Todo aquele que depois de intimado não comparecer no local
e à hora que lhe foram marcadas será punido, pelo curador ou seu agente,
nos termos do art. 188.° do Código Penal, excepto se justificarem a
impossibilidade da comparência.
Art. 20.° O curador gerai e seus agentes não podem ser impedidos no
exercício das funções por quaisquer autoridades que, ao contrário, lhes
prestarão, nos limites das suas atribuições, todo o auxílio e concurso de
que careçam no exercício do seu cargo.
Art. 21.° Das decisões dos agentes do curador ha recurso para este.
Das decisões do curador há recurso para o governador geral, em Conselho
de Governo. Da decisão do Governador Geral não ha recurso algum.
Art. 22.° O Governador Geral pode ordenar, por despacho seu, que
quaisquer negócios resolvidos pelo curador geral, e que não tenham ca-
rácter judicial, subam ao seu conhecimento ; a resolução que sobre eles
houver de ser tomada, alterando o despacho do curador, será sempre em
Conselho do Governo.
§ único. Os recursos terão efeito suspensivo.
Art. 23." O curador geral corresponde-se directamente, em nome do
DE ANGOLA 669
Governador Geral, com todas as autoridades da província e com os go-
vernadores das outras províncias.
Art. 24.° A Curadoria Geral da Província faz parte integrante da
Secretaria dos Negócios Indígenas, e os serviços da curadoria serão dis-
tribuídos em uma ou mais secções ao pessoal daquela secretaria, pelo
Secretário dos Negócios Indígenas.
Art. 25.° As secretarias dos agentes da curadoria funcionam em cada
uma das sedes dos concelhos, circunscrições ou capitanias-móres, fazendo
parte integrante destas secretarias salvo o caso do disposto no § 2.° do
art. 2.°, que funcionará junto da repartição do funcionário a quem foram
dadas as atribuições de agente de curador.
§ único. Na capital da província não funcionará agente da curadoria
junto da respectiva administração do concelho e exercerá as funções de
agente cio curador o funcionário da Secretaria dos Negócios Indígenas,
nomeado nos termos do § 1.° do art. 2.°.
Art ° 26.° As despezas dos livros e expediente da Curadoria Geral e
suas agências serão pagas pela verba fixada nas tabelas orçamentais para
o expediente da Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 27.° Pelos serviços indicados no presente regulamento perceberão
os agentes do curador uma gratificação anual de 120$.
Art. 28.° Os agentes do curador em serviço da Curadoria, a mais de
5 quilómetros da sede da sua secretaria terão direito a uma ajuda de
custo de 2$ diários, não podendo exceder trezentos dias em cada ano o
número total dos dias de ajuda de custo para todos os agentes do cura-
dor da Província.
Art. 29.° Nenhuma ajuda de custo poderá ser abonada sem que os
agentes do curador que a ela tiverem direito, apresentem ao curador geral
um relatório dos serviços de curadoria a que procederam, e sem que as
respectivas folhas sejam visadas pelo mesmo curador.
Art. 30.° O curador geral e os seus agentes não poderão receber emo-
lumento algum por qualquer acto que pratiquem no exercício das suas
funções, sob pena de demissão do cargo que acumularem com o de cura-
doria.
Art. 31.° As receitas criadas pelo decreto n.° 951 de 14 de Outubro
de 1914, e de que tratam os artt. 36.°, 70.°, 83.% 91.° e 107 e § 1.° do art. 40.°
deste regulamento, serão arrecadadas pela Secretaria dos Negócios In-
dígenas, e constituirão um fundo especial à ordem do Governador Geral
para anualmente serem aplicadas em obras de fomento e de assistência
de utilidade imediata para os indígenas da província, atendendo tanto
quanto possível à região de proveniência das receitas.
§ 1.° Para este efeito na Secretaria dos Negócios Indígenas se montará
uma escrita por partidas dobradas daquelas receitas, por distritos.
§ 2.° Os agentes do curador enviarão mensalmente para o curador
geral as importâncias cobradas e arrecadadas provenientes dos artigos
mencionados acima, acompanhadas duma conta corrente com a descrimi-
nação das diversas receitas.
670 POPULAÇÕES INDÍGENAS
CAPÍTULO III
Dos agentes e sociedades de recrutamento
SECÇÃO i
Dos agentes de recrutamento
Art.° 32.* Para o recrutamento de trabalhadores indígenas que se des-
tinem a prestar serviço dentro da província, são competentes :
1.° Os patrões quando para serviço próprio;
2.° Os agentes de recrutamento, quando para serviço doutrem;
3.° As autoridades administrativas, quando para serviço do Estado.
Art. 33.° Para o recrutamento de trabalhadores indígenas que se des-
tinem a prestação de serviço para fora da província são só competentes
os agentes de recrutamento.
Art. 34.° Ninguém poderá ser agente de recrutamento, ou engajar
trabalhadores indígenas para serviço próprio, sem ter licença de enga-
jador, passada pela autoridade competente.
§ 1.° Exceptuam-se;
1.° Aqueles que contratem trabalhadores indígenas para o seu serviço
caseiro e em número que esteja de acordo com a sua posição social;
2.° Aqueles que tenham ou giram estabelecimentos comerciais e que
neles não empreguem mais de dez trabalhadores indígenas ;
3.° Aqueles que, para serviço próprio e por período de tempo não
superior a três meses, contratam, no estabelecimento ou propriedade da
prestação de serviço, trabalhadores indígenas que ali venham oferecer-se
e sobre que não tenha havido operação de recrutamento.
4.° As autoridades administrativas quando disso encarregadas.
§ 2.° No caso dos n.08 l.° e 2.° do parágrafo anterior, os indivíduos a
que eles se referem não poderão percorrer a província para engajar tra-
balhadores indígenas, mas tão somente fazê-lo na sua casa, estabeleci-
mento ou em qualquer local onde se reunam trabalhadores para serem
contratados.
Art. 35.° Todo aquele que desejar obter licença para recrutar, seja
para serviço próprio seja para serviço doutrem, poderá requerê-la ao
Governador Geral por intermédio do secretário dos negócios indígenas.
§ 1.° O requerimento deverá ser acompanhado dos seguintes docu-
mentos:
1.° Certidão de registo criminal;
2.° Certidão de bom comportamento passada pela autoridade adminis-
trativa da área onde residir ou tenha residido nos últimos doze meses ;
3.° Documento mostrando ter depositado na Secretaria dos Negócios
Indígenas (modelo A) ;
a) Para recrutar para serviços fora da província 1.000$ ;
b) Para recrutar para serviços dentro da província, 500$;
c) Sendo o recrutamento feito pelo patrão, 20$ ;
§ 2.° São dispensados de depósitos os agentes das sociedades de
recrutamento e emigração.
DE ANGOLA 671
Art. 36.° Pelas licenças para recrutar pagarão os titulares, no acto de
a receberem :
Para recrutar para fora da província, 100$ ;
Para recrutar para dentro da província, 20$ ;
Para recrutar para serviço próprio, 2$ ;
§ 1.° A licença para recrutar é válida por um ano e pode ser renovada
se o Governador Geral entender que o titular não praticou abusos durante
o período que a usou.
§ 2.° Exceptuam-se as licenças dos agentes das sociedades de recruta-
mento e emigração, que serão válidas emquanto o Governador Geral não
as anular.
Art. 37.° Recebido o requerimento pedindo licença de recrutamento,
o Governador Geral mandará proceder, por intermédio da Secretaria dos
Negócios Indígenas, a um inquérito sobre as qualidades morais e proce-
dimento anterior do requerente e só concederá a licença (modelo B)
quando se convencer do seu bom comportamento anterior e moralidade.
Art. 38.° Para coadjuvar os agentes de recrutamento, ou os patrões
com licença para engajar, haverá engajadores, que são os agentes auxi-
liares de recrutamento, quando europeus, e auxiliares especiais, quando
indígenas.
v Art. 39.° O pessoal de cada agência de recrutamento não poderá
exceder : um agente, três engajadores europeus e cincoenta engajadores
indígenas.
Art. 40.° As licenças dos engajadores são dadas, quando europeus,
pelo curador geral (modelo C) sob proposta dos agentes de recrutamento
ou dos patrões com licença de recrutar, quando indígenas, por estes, mas
sancionadas pelo curador geral ou seus agentes (modelo D).
§ 1.° Pelas licenças pagarão, os agentes europeus 1$; os engajadores
indígenas $50.
§ 2.° Os agentes de recrutamento ou os patrões responsabilisar-se hão
por serem os engajadores pessoas honestas e de bons costumes, sendo
punidos nos termos deste regulamento em caso de falsa declaração.
§ 3.° Os agentes do curador sempre que sancionem a nomeação de
engajadores indígenas, darão conhecimento pelo primeiro correio ao
curador geral, indicando os nomes do engajador e do agente do recruta-
mento ou patrão com licença para recrutar para serviço próprio que o
nomeou.
§ 4.° Nenhuma outra taxa àlêm das fixadas neste artigo poderá ser
imposta aos engajadores e agentes de recrutamento de trabalhadores
indígenas.
Art. 41.° As licenças são pessoais e intransmissíveis, sendo expres-
samente proibido ao agente do recrutamento ou ao engajador o fazer-se
substituir no exercício das suas funções por outra pessoa, sob pena de
30$ a 150$ de multa e prisão correccional de um a seis meses.
Art. 42.° A renovação da licença é obrigatória dentro de 15 dias que
seguirem ao seu termo, sob pena da perda da caução depositada.
§ único. Quando o agente do recrutamento não queira continuar a
exercer o mister deverá, dentro dos 15 dias, o mais tardar, que se segui-
rem ao termo da sua licença, declará-lo na Secretaria dos Negócios
672 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Indígenas, sendo a declaração acompanhada das licenças válidas dos
engajadores que tenham trabalhado sob a sua direcção.
Art. 43.° Aos agentes do recrutamento e aos seus engajadores é
expressamente proibido encetar o recrutamento sem que primeiro se
apresentem aos agentes do curador das regiões onde vão operar esse
recrutamento.
Art. 44.° Em caso de alteração de ordem pública, ou outra de força
maior, o governo da metrópole, por proposta do Governador Geral, pode
suspender o exercício de todas as licenças de recrutamento e as respec-
tivas operações em toda ou em determinadas regiões da província, sem
que os agentes e seus engajadores tenham direito a qualquer indemnização.
Art. 45.° Tanto o Governador Geral como o curador geral e os seus
agentes poderão recusar a nomeação de indivíduos que lhes sejam pro-
postos para agentes e engajadores, sem obrigação de justificarem a sua
recusa, assim como poderão cancelar as nomeações que hajam feito sempre
que entendam conveniente.
Art. 46.° Os agentes de recrutamento deverão fazer seguir os tra-
balhadores indígenas recrutados para a sede da Curadoria Geral ou dos
agentes desta que mais próxima ficar do local das suas operações, e ali
deverão apresentá-los, para serem celebrados os contractos, nos termos
deste regulamento.
§ 1.° As autoridades darão todas as facilidades aos agentes de recru-
tamento e aos engajadores destes, e verificarão se os indígenas recrutados
são devidamente cuidados e bem tratados.
§ 2.° No transporte de serviçais recrutados da região das operações
para o local da prestação de serviço, aproveitar-se há, sempre que haja
caminho de ferro ou navegação fluvial ou marítima.
§ 3.° Nos caminhos que os indígenas recrutados hajam a seguir
deverão os agentes ter acampamentos devidamente formados onde os
mesmos possam pernoitar e receber a necessária alimentação.
§ 4.° No caso de os indígenas serem contratados para fora da província
e tenham de seguir por via marítima, deverá haver, em localidade pouco
afastada do porto de embarque, edifício apropriado para os receber em-
quanto esperam embarque e também os repatriados, emquanto não
seguirem para as suas terras ou o Governador Geral lhes não dá o devido
destino, nos termos do presente regulamento.
§ 5.° As despesas de alimentação antes do embarque e as despesas
com a instalação para receber os indígenas contratados antes do embarque
e depois da repatriação, correm por conta do agente.
Art. 47.° A responsabilidade dos agentes e engajadores cessa desde
que os trabalhadores indígenas sejam entregues ao patrão da propriedade
onde tem de servir, ou a bordo dos navios em que seguem viagem.
Art. 48.° É proibido aos agentes de recrutamento e engajadores:
1.° Empregar engajadores indígenas que não sejam portugueses;
2.° Recrutar indígenas e entregá-los aos patrões, sem que previamente
os tenham apresentado aó curador ou seus agentes, nos termos do
artigo 47.°;
3.° Desviar os indígenas do destino para que tinham sido contratados.
Art. 49.° Na Secretaria dos Negócios Indígenas haverá livros de registo
<
DE ANGOLA 673
dos agentes de recrutamento (modelo E) e engajadores europeus (mo-
delo F) e indígenas (modelo G), nomeados e sancionados na província.
§ único. Na secretaria dos agentes de curador haverá livros de registo
dos engajadores indígenas (modelo G\ sancionados pelos respectivos
agentes.
SECÇÃO II
Das sociedades de recrutamento
Art. 50." Os agricultores, industriais e comerciantes da província po-
derão organizar-se em sociedade de recrutamento e emigração, a fim de
recrutar indígenas na província ou fora da província.
§ único. As sociedades de recrutamento ou de recrutamento e emigra-
ção, constituir-se hão sob a forma de sociedades anónimas, e os lucros
respectivos constituirão dois fundos de reserva, um permanente e outro
variável, na proporção que fôr indicada pela respectiva direcção e apro-
vada pela assembleia geral.
A estas sociedades serão aplicáveis os preceitos dos artt. 162.° a 198.°
do Código Comercial.
Art. 51.° As sociedades de recrutamento ou de recrutamento e emigra-
ção serão formadas por todos os agricultores, industriais e comerciantes
da província que quizerem utilizar-se e dela possuam uma ou mais acções».
§ único. As acções das sociedades de recrutamento ou de recrutamento
e emigração serão sempre nominativas.
Art. 52.° Não poderá haver na província senão uma sociedade de
recrutamento e emigração.
§ 1.° Caso haja uma sociedade de recrutamento e emigração autorizada
pelo governo a recrutar dentro da província para serviços a prestar
noutra colónia nenhum outro agente de emigração para essa colónia se
poderá entregar ao mesmo mister, salvo acordo feito pela referida socie-
dade.
§ 2.° Os serviçais contratados pelas sociedades de recrutamento e emi-
gração, serão sempre distribuídos em rateio, com a mais absoluta impar-
cialidade conforme fôr regulamentado pelo governador da colónia de
destino.
§ 3.° Aos agentes das sociedades de recrutamento e emigração que
angariarem para particulares, ou que procurem favorecer uns agricultores
em prejuízo de outros, será anulada a licença e serão punidos com multa
ou prisão, nos termos do presente regulamento.
Art. 53.° As sociedades de recrutamento ou de recrutamento e emigra-
ção nomearão um representante e um agente geral de recrutamento, que
deverão ser indivíduos de comprovada honestidade e moralidade ; o agente
geral só poderá exercer o seu cargo cora aprovação do Governador Geral.
Quando as sociedades o entenderem conveniente, os dois cargos podem
ser exercidos pelo mesmo indivíduo.
§ único. Para efectuar o recrutamento haverá os necessários agentes,
de nomeação do agente geral, e que só poderão entrar em exercício quando
as suas nomeações forem aprovadas pelo Governador Geral.
Art. 54.° O agente geral e mais agentes, bem como os engajadores
europeus e indígenas, ficarão sujeitos às disposições da l.a secção do
674 POPULAÇÕES INDÍGENAS
presente capítulo que não se encontrar em oposição com as da presente
secção.
Art. 55.° As verbas a depositar na sociedade de recrutamento e emi-
gração para satisfazer as despesas de recrutamento de cada serviçal para
patrões cujos estabelecimentos estejam situados dentro do mesmo con-
celho, circunscrição civil ou capitania-mór, serão as mesmas para todos
os patrões, podendo, porem, a sociedade fixar uma localidade onde aqueles
deverão tomar conta dos trabalhadores indígenas contratados.
CAPÍTULO IV
Dos contractos de prestação de serviços
SECÇÃO I
Disposições gerais
Art. 56.° Os indígenas da província de Angola teem o direito de con-
tratarem livremente os seus serviços.
Art. 57.° O Govêrno~não intervêm nos contractos de prestação de ser-
viços, a não ser para manter a liberdade do indígena de contratar os seus
serviços com quem entender, para fiscalizar o cumprimento dos contractos
com êle feito e para exercer a tutoria de que aquele carece, pelo seu atra-
zado estado de civilização.
Art. 58.° Os contractos de prestações de serviços de trabalhadores e
colonos indígenas e a sua execução, são sujeitos à interferência, vigilância
e fiscalização do Governador Geral, curador geral e agentes deste.
Art. 59.° Para os efeitos dos contractos de trabalho é aplicável o disposto
no Código Civil Português, sobre os contractos de prestação de serviços
em tudo que não vá de encontro ao estabelecido no presente regulamento.
Art. 60.° As únicas autoridades competentes para intervir na celebração
dos contractos são o curador geral e os seus agentes.
Art. 61.° Os contractos de prestação de serviços podem ser :
1.° Só para prestação de trabalho;
2.° Para prestação de trabalho e colonização por ocupação de terras na
posse do patrão;
3.° Só para colonização por ocupação de terras na posse dos patrões.
§ único. Os contractos para prestação de trabalhos podem ser :
1.° Para servir na colónia;
2.° Para servir fora da colónia.
Art. 62.° Os contractos de prestação de serviços podem estipular como
remuneração :
1.° Salário;
2.° Salário e sustento, podendo este ser fornecido em géneros ou em
dinheiro ;
3.° Salário, sustento e vestuário.
§ único. O salário será sempre pago em dinheiro.
Art. 63.° Não poderão ser contratados para prestação de serviços os
indígenas com menos de catorze anos, podendo, porem, acompanhar os
DE ANGOLA 675
seus pais contratados ; entre os catorze e dezoito anos só poderão ser
contratados com autorização de seu pai ou de sua mãe, ou de quem sobre
eles exerça tutela.
Art. 64.° Os contractos de trabalho das mulheres dos trabalhadores que
os acompanhem, embora a união seja segundo o costume gentílico, serão
lavrados em um só instrumento. Da mesma forma se procederá com
relação aos filhos e sobrinhos sucessores entre os catorze e dezoito anos
que os acompanhem.
Art. 65.° Os expostos ou abandonados, menores de dezoito anos, ficam
sujeitos ao que a seu respeito dispõe o Código Civil Português nos títulos
respectivos, e o presente regulamento no que respeita aos seus contractos.
SECÇÃO II
Dos contractos para prestação de serviços dentro da província
Art. 66.° Os contractos para prestação de serviços dentro da província,
quando não se trate de indígenas recrutados nas condições dos n.os 1.°, 2.°
e 3.° do § Io e do § 2.° do artigo 34.°, serão lavrados em impressos segundo
o modelo H, contendo as principais condições do contracto, sendo entregue
ao trabalhador indígena o bilhete de identidade, e enviando o duplicado
ao curador geral' quando entervier no contracto algum dos seus agentes.
Art. 67.° Os contractos para prestação de serviços dentro da província,
quando se trate de indígenas recrutados nas condições dos n.os 1.°, 2.°
e 3.° do § 1.° e do § 2.° do artigo 34.°, poderão ser reduzidos a escrito em
triplicado (modelo I), pelo patrão que enviará o original e um duplicado
ao curador ou agente mais próximo e as taxas correspondentes, para
este os sancionar depois de verificar, no local da prestação de' trabalho
ou mandando vir os trabalhadores à sua presença, se estes compreen-
deram todas as cláusulas do contracto e se nelas consentiram livremente.
§ único. O curador ou qualquer dos seus agentes, para sancionar os
contractos, poderão deixar de proceder à verificação indicada neste artigo,
mas ficarão responsáveis pela veracidade dos contractos.
Art. 68.° O curador geral e os seus agentes recusar-se hão a lavrar e
a sancionar contractos em que houver preceitos injustos ou imorais, ou
que não contiverem condições claras e expressas regulando:
1.° O período não superior a três anos;
2.° A natureza do serviço ;
3.° A retribuição em dinheiro, com ou sem alimentação ou vestuário;
4.° O local onde o serviço deve ser prestado.
Art. 69.° São nulos os contractos:
1.° Que estipularem prestação de serviços por mais de três anos;
2.° Que dispensarem o patrão de dar ao trabalhador indígena uma re-
tribuição certa em dinheiro ;
3.° Que autorizarem o patrão a aplicar ao trabalhador indígena penas
corporais.
4.° Que inibirem o trabalhador indígena do exercício de direitos e fa-
culdades legais ou o obriguem a actos proibidos por lei ;
5.° Que impuzerem serviços em que haja perigo manifesto ou dano
considerável para quem os prestar;
676 POPULAÇÕES INDÍGENAS
6.° Que não estipularem que, terminado o contracto de prestação de
serviços, o trabalhador indígena seja, à custa do patrão, transportado
para o local onde foi contratado;
7.° Que contiverem cláusulas contra as disposições do presente regu-
lamento.
Art. 70.° Pelos contractos de prestação de serviços, cobrar-se há, àlêm
de $10 por cada contracto, uma taxa de $10 por cada mês de trabalho.
Art. 71.° Nenhuma outra taxa, àlèm da fixada no artigo anterior, seja
sob que pretexto for, quer de selos, licenças ou impostos de qualquer
natureza, poderá ser lançada sobre os patrões que contratam serviçais,
ou sobre os serviçais e seus contractos, quer directamente, quer por inter-
médio dos agentes; nem poderá ser exigido qualquer documento a apre-
sentar pelo serviçal, tal como folha corrida, desembaraço, guia ou outro
e que obrigue este ou agente de recrutamento ou emigração a pagar
qualquer quantia.
Art. 72.° É dever do patrão para com o trabalhador indígena :
1.° Cumprir escrupulosamente todas as condições do contracto de pres-
tação de serviços que houver feito;
2.° Não exigir dele trabalho superior às suas forças;
3.° Tratar ou mandar tratar o trabalhador indígena quando estiver
doente;
4.° Prover à subsistência do trabalhador indígena em caso de crise
alimentícia, dispendendo para tal fim até 50% do salário ajustado, se o
contracto não estipular alimentação ;
5.° Dar-lhe alojamento higiénico ou materiais para construir a sua ha-
bitação e alimentação saudável, se estiver estipulado alojá-lo e alimentá-lo;
6.° Abster-se escrupulosamente de compeli-lo por meios directos ou
indirectos a comprar-lhe ou a comprar a agentes seus quaisquer artigos
de que êle queira prover-se;
7.° Não lhe reter as soldadas ou parte delas, sempre que forem devidas,
nem apoderar-se de qualquer valor que lhe pertença, sob pretexto algum ;
8.° Conservar ao seu serviço o trabalhador indígena durante o período
estipulado no contracto, não o podendo despedir, contra suavontade, sem
causa justa;
9.° Apresentá-lo, findo o contracto, à autoridade que o tiver contratado,
sendo as despezas de transporte pagas pelo patrão;
10.° Não obstar a que o trabalhador indígena viva com a sua família
no local do trabalho;
11.° Estabelecer, caso o exija o trabalhador indígena, uma pensão à
sua família, que será descontada do salário respectivo;
12.° Não ceder a outrem os direitos que lhe resultem dos contractos
com os trabalhadores indígenas, sem autorização do curador geral ou dos
seus agentes e sem consentimento desses trabalhadores;
1S.° Fornecer aos trabalhadores indígenas a caderneta de trabalho a
que se refere o diploma que regula a repressão da ociosidade e vadia-
gem.
Art. 73.° É dever do trabalhador indígena:
1.° Obedecer às" ordens do patrão em tudo que estiver de acordo com
as prescrições do presente regulamento;
DE ANGOLA 677
2.° Desempenhar o trabalho, de que fôr encarregado, com zelo e da
melhor forma compatível com as suas forças e aptidões;
3.° Indemnizar o patrão das perdas e danos que causar propositada-
mente, por desleixo ou incúria;
4.° Não abandonar o serviço sem prévia autorização do patrão.
Art. 74.° Os trabalhadores indígenas não podem ser obrigados a tra-
balhar mais de nove horas úteis por dia e deverão ter quatro dias de
repouso por mês, sem perda dos seus salários, sempre que forem contra-
tados para fora do seu domicílio.
§ 1.° Não se considera tempo útil de trabalho aquele que gasto a per-
correr a distância entre o alojamento dos trabalhadores e o local do serviço,
contanto que esse tempo não exceda a meia hora à ida e meia hora para
o regresso.
§ 2.° Os trabalhadores de empreitada, quando os haja, serão livremente
ajustados com os colonos ou trabalhadores indígenas, sem quebra todavia
das vantagens estabelecidas nos primitivos contractos, e que os patrões
não poderão diminuir por este meio.
§ 3.° A isenção de trabalho nos dias de descanço não exime da obri-
gação de serviço para o tratamento necessário dos gados e da vida habitual,
e ainda para o salvamento de géneros expostos à acção do tempo;
Art. 75.° A prestação de serviço entre o pôr do sol e o nascer do sol
será paga pelo dobro do salário.
Art. 76.° Os trabalhadores indígenas contratados não poderão ser trans-
feridos pelo respectivo patrão para outro, salvo o caso do contracto ter
sido feito em nome das sociedades de recrutamento, autorizadas pelo Go-
verno, que os poderão transferir por simples declaração do representante
ou agente geral das sociedades, feita no respectivo contracto, por uma
única vez, e só quando o contracto de prestação de serviços seja feito para
dentro da província.
§ único. No caso do estabelecimento agrícola, comercial ou industrial
mudar de dono, o adquirente assumirá todas as responsabilidades dos
contractos de que o transmitente haja feito com os seus trabalhadores,
caso eles o consintam, e a isso anua o curador geral, fazendo-se na Cu-
radoria Geral os respectivos averbamentos nos contractos. O curador
geral poderá recusar-se a fazer os averbamentos e não deverá fazê-los
sem primeiro averiguar das qualidades morais do adquirente.
Art. 77.° Falecendo os patrões, os seus herdeiros, se a isso anuírem os
serviçais contratados, sucedem no direito ao cumprimento dos contractos
existentes, salvo renunciando a êle, ficando entretanto com a obrigação
de cumprir todas as cláusulas do contracto, especialmente a de repatria-
ção.
Art. 78.° Não é permitida a prorogação de contractos de prestação de
serviços antes de findar o seu prazo.
Art. 79.° Se nos contractos de colonização de terrenos houver conjunta-
mente a obrigação de prestação de serviços, estes não poderão ser pres-
tados por período superior a metade do tempo útil e por mais de dois
anos, nem estipular-se preço certo para a venda de géneros ou que estes
sejam vendidos ao senhorio.
Art. 80.° O Governo ou corpos administrativos, teem, para com os ii>
678 POPULAÇÕES INDÍGENAS
dígenas que empregarem como trabalhadores nas obras e serviços públi-
cos, os direitos e deveres de patrão.
§ 1.° As penas que, pelo presente diploma, são aplicáveis aos patrões
que faltem aos seus deveres para com os serviçais, serão, no caso dos
trabalhadores indígenas em serviço do Governo e corpos administrativos,
aplicadas aos funcionários sob cujas ordens directas eles se encontrarem
trabalhando.
§ 2.° Os contractos para prestação de serviços feitos pelo Governo ou
corpos administrativos serão feitos nos termos do art. 67.° sendo dis-
pensado o pagamento das taxas a que se refere o art. 70.°
Art. 81.° Os trabalhadores indígenas contratados para dentro da pro-
víncia, por tempo não superior a três anos, podem recontratar os seus
serviços por tempo não superior a dois anos, sendo o seu salário elevado
a 5 % em cada um dos anos que continuem ao serviço.
§ único. Não poderá fazer recontractos o patrão que nos últimos
365 dias tenha sido punido por maus tratos para com os serviçais.
Art. 82.° Os recontractos só podem ser feitos com a intervenção da
autoridade e pelo curador geral, ou com autorização deste.
Art. 83.° Por cada recontracto pagará o patrão a quantia de 2$00.
Art. 84.° Os trabalhadores indígenas contratados que, terminado o
período do seu contracto, não quiserem recontratar-se, serão repatriados
dentro do prazo máximo de um mês.
Art. 85.° A repatriação na província será obrigatória para os traba-
lhadores indígenas que tenham prestado serviço durante cinco anos con-
secutivos.
Art. 86.° Os trabalhadores indígenas que não desejem recontratar-se
e os que tenham de ser repatriados, serão apresentados pelo patrão ao
curador ou seu agente, que celebrou o contracto ou àquele a quem foi
comunicado o contracto verbal ou escrito, sendo as despesas de transporte
pagas pelo patrão e aproveitando este, sempre que haja, o caminho de
ferro e a navegação fluvial e marítima.
Art. 87.° Os contractos serão registados pelo curador geral ou agente
do curador que os celebrou ou por quem os sancionou, e serão depositados
na curadoria ou na agência a que pertencer q local da prestação de serviço.
Art. 88.° Na Secretaria dos Negócios Indígenas haverá livros de registo
(modelo J) de todos os contractos celebrados para prestação de serviços
dentro da província.
§ 1.° Para os efeitos deste artigo, os agentes do curador enviarão ao
curador geral os duplicados dos contractos a que se refere o art. 66.° e o
duplicado a que se refere o artigo.
§ 2.° Os agentes do curador terão sempre em dia um livro de re-
gisto dos contractos e prestação dos serviços dentro da província (mo-
delo J).
SECÇÃO III
Dos contractos para fora da colónia
Art. 89.° Nos contractos para fora da província observar-se hão os
preceitos já indicados para os trabalhadores indígenas dentro da pro-
víncia, que não sejam contrários às disposições da presente secção.
DE ANGOLA 679
Art. 90.° Os contractos que obrigarem os trabalhadores indígenas a
prestar serviços fora da província, só poderão ser feitos nos termos do
artigo 66.°
Art. 91.° Pelos contractos de prestação de serviços para fora da pro-
víncia cobrar-se hão àlêm de $10 por cada contracto as seguintes taxas:
Por cada contracto de trabalho :
Até um ano, 4$00.
Até dois anos inclusive, 7$00.
De dois anos em diante, 9$00.
§ único. Nenhuma outra taxa ou emolumento poderá ser cobrada pelos
contractos.
Art. 92.° Os contractos de prestação de serviços para fora da provín-
cia serão celebrados pelo curador geral ou seus agentes mais próximos
do local das operações de recrutamento, registados na Curadoria Geral
da Província e depositados na Curadoria de S. Tomé, no caso dos tra-
balhadores indígenas se destinarem aquelas ilhas, registados na Cura-
doria Geral da Província e na secretaria do agente de Nana Candundo e
os seus termos entregues ao comissário do Governo no local da prestação
de trabalho no caso dos trabalhadores indígenas se destinarem à Rodésia
do Norte.
Art. 93.° O tempo de serviço conta-se desde o dia em que o serviçal
desembarca no porto da colónia de destino, ou chega ao local da prestação
de serviço quando tenha de seguir por via terrestre.
Art. 94.° Nos contractos de prestação de serviços para fora da provín-
cia estabelecer-se há sempre a obrigação de que o último patrão com quem
servirem deverá pagar a viagem de regresso do serviçal e de sua famí-
lia, sempre que o serviçal se repatrie.
Art. 95.° Na Secretaria dos Negócios Indígenas haverá livros de registo
dos contractos de prestação de serviços para a província de S. Tomé e
Príncipe (modelo L) e para as colónias estrangeiras (modelo M).
§ único. Os agentes do curador enviarão a este, pelo primeiro cor-
reio, os duplicados dos contractos celebrados para a província de
S. Tomé e Príncipe e colónias estrangeiras.
SECÇÃO IV
Dos contractos da serviçais oriundos da país ou colónia estrangeira
Art. 96.° O contracto de trabalhadores e colonos, indígenas vindos de
país estrangeiro, obedecerá ao disposto no presente diploma para os tra-
balhadores indígenas oriundos das colónias portuguesas, salvo qualquer
disposição em contrário feita em contracto realizado no país de origem,
devidamente legalizado, e que será visado pelo curador geral.
§ único. O contracto de trabalhadores indígenas, não portugueses, feito
em país estrangeiro, será cumprido sob fiscalização do curador geral
como se fosse feito em território português, salvo nas cláusulas que forem
contrárias à Constituição da República.
Art. 97.° Não será permitido o desembarque de trabalhadores indígenas
oriundos de país ou colónia estrangeira que não venham contratados
regularmente ou que não tragam passaporte legal, e bem assim o do
680 POPULAÇÕES INDÍGENAS
menores de catorze anos que não venham acompanhando sua família : pai,
mãe, e irmãos, avós ou tios.
§ único. Se qualquer menor de catorze anos vier acompanhando um eu-
ropeu ou equiparado, só poderá desembarcar se este depositar na Curadoria
100100 e fizer declaração legal de que assume para com o trabalhador
indígena as responsabilidades de tutor. A verba de 100$00 ficara depo-
sitada até que o menor tenha dezoito anos de idade e servirá de garantia
para a sua educação e repatriação, caso venha a ficar abandonado. E,
caso não seja empregada, será entregue ao depositante logo que o menor
tenha atingido a idade de dezoito anos.
Art. 98.° Os contractos com que desembarcarem os trabalhadores
indígenas vindos de colónia ou país estrangeiro, serão registados na
Curadoria Geral devendo o Curador Geral verificar, fora da presença do
agente recrutador ou seu representante, que os indígenas entram na pro-
víncia por sua livre vontade, bem assim que nos contractos se estabelece
a repatriação à custa dos patrões.
Art. 99.° Nos portos estrangeiros, onde haja agentes consulares por-
tugueses, estes deverão visar os contractos dos indígenas contratados
em país estrangeiro, certificando que os contractos são feitos segundo as
leis do país.
Quando não houver agente consular no porto de embarque, o visto e
o certificado deverão ser feitos pelo agente consular residente no local
mais próximo desse porto ou por uma autoridade local.
CAPÍTULO V
Vencimentos, salários,
alimentação, vestuário e habitações dos trabalhadores
e seu tratamento médico
Art. 100.° O pagamento dos salários aos trabalhadores indígenas será
sempre feito em dinheiro e aos meses ou às semanas, conforme o estipu-
lado nos contractos.
Art. 101.° Os patrões depositarão no cofre da curadoria, seus agentes
ou de qualquer entidade digna de confiança que pelo curador geral ou
seu agente fôr designada, em dinheiro, letras com garantia, por fiança ou
por aval, a importância dos salários de um mês.
§ 1.° Se até o dia 2S de cada mês o patrão não tiver satisfeito o paga-
mento desse mês aos seus serviçais, considerar-se ha anulado o contracto
de prestação de serviços, sendo o trabalhador mandado retirar pelo cura-
dor ou seu agente.
§ 2.° O curador geral ou os seus agentes, quando se trate de patrões
que, pelo seu anterior comportamento e rigorosa honestidade de paga-
mento aos trabalhadores indígenas, se tornem merecedores de tal proce-
dimento, poderá dispensá-los do depósito a que se refere este artigo, mas
tal dispensa nunca poderá ser dada ao patrão que alguma vez tenha
deixado de pagar aos seus trabalhadores indígenas, e será da responsa-
bilidade do curador geral ou do agente que lha conceder, devendo o
responsável pagar ao trabalhador indígena não pago, à sua conta, quando
o patrão o não fizer.
DE ANGOLA 681
Art. 102.° O pagamento dos salários será fiscalisado pelo curador geral
ou seus agentes, directamente ou pelo funcionário administrativo em quem
deleguem e que rubricará as folhas do pagamento.
§ 1.° Para esse efeito os patrões são obrigados a comunicar ao curador
ou agente deste, que tem jurisdição no local de prestação de trabalho, os
dias e horas de pagamento dos salários, que poderão ser alterados por
aqueles funcionários, constante as necessidades de serviço, mas que
nunca ultrapassarão o dia 30 de cada mes.
§ 2.° Afim de não se levantarem infundadas reclamações por parte dos
trabalhadores indígenas, a estes será distribuído o bilhete de trabalho
(Modelo N), devidamente assinado pelo patrão ou seu representante e
indicada a data em que foi entregue, afim de nele serem designados os
dias em que o trabalhador indígena prestou serviço.
Art. 103.° Os patrões não poderão adiantar ajps trabalhadores indígenas
contratados qualquer quantia, excepto no acto do contracto, até três
meses dos seus salários.
§ 1.° O desconto dos adeantamentos feitos aos trabalhadores indígenas
não poderá nunca ser superior a 33 % do seu salário.
§ 2.° Não será permitido obrigar o indígena a pagar, no acto do con-
tracto, mais de um ano de imposto de cubata, que lhe poderá ser abonado
pelo agente de recrutamento ou pelo patrão.
Art. 104.° No caso do trabalhador indígena desejar deixar pensão a
sua família, não poderá aquela ser superior a um terço do seu salário
e será indicada no contracto. As pensões serão enviadas pelos patrões
ao curador geral ou aos seus agentes, que as farão chegar ao seu destino
pela via mais segura e rápida e são por elas responsáveis. O recibo da
entrega será passado pela autoridade administrativa mais próxima da
localidade da residência da família do trabalhador indígena.
Art. 105.° Àlêm da garantia estabelecida pelo art. 101.° os patrões de
trabalhadores indígenas, cujo domicílio não pertencer ao concelho, cir-
cunscrição ou capitania-mór do local de prestação de serviço, serão obri-
gados a depositar à ordem do curador geral ou dos seus agentes, à medida
e à proporção que forem pagando os salários, metade destes que consti-
tuirá o seu bónus de repatriação.
§ único. O curador geral ou o seu agente, terminado o contracto, en-
tregará ao indígena este bónus de repatriação, em presença de testemu-
nhas e na sede do concelho, circunscrição ou capitania-mór onde foi con-
tratado, sendo para aí remetido o dinheiro e as folhas de pagamento, e
lavrando-se uma acta em duplicado ; um exemplar é destinado ao curador
e outro para o arquivo da secretaria do agente do curador.
Art. 106.° No caso da prestação de serviços fora da província, o paga-
mento dos salários, a parte deste que constitui o seu bónus de repatria-
ção e mais condições de contracto, são da responsabilidade e competência
do curador geral de S. Tomé e Príncipe, quando se trace dos trabalhado-
res indígenas, prestando serviços naquela ilha, ou do comissário do Go-
verno no local da prestação de serviço, quando se trate daqueles prestando
serviços na Rodésia do Norte.
§ único. O representante na província, dos patrões para quem os
indígenas trabalham na Rodésia do Norte, depositarão, na Filial do
44
682 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Banco Nacional Ultramarino, em Loanda, a importância que o curador
geral entender ser suficiente para garantir o pagamento do bónus de
repatriação.
Art. 107.° Caso o trabalhador indígena morra durante a constância do
contracto ou depois de o terminar, mas antes de ter recebido o seu bónus
de repatriação, a parte do salário depositada será entregue à família, e,
não se encontrando esta, dentro do período de um ano, estas quantias
depositadas reverterão a favor do fundo a que se refere o art. 31.°.
Art. 108.° Quando o trabalhador indígena, terminado o contracto, fique
na propriedade do patrão à espera de ocasião de transporte, ser-lhe há
devido salário caso trabalhe, e o mesmo sucederá se for, pelo curador
geral ou seus agentes, depositado na propriedade de qualquer patrão.
Art. 109.° Aos agentes do curador incumbe dentro do prazo de três
meses, depois do conhecimento deste regulamento, proporem ao curador
os salários mínimos a fixar nas áreas das suas respectivas jurisdições.
§ único. Nas propostas de fixação de salários, os agentes do curador
atenderão :
1.° À natureza de serviço, se é rural, industrial ou doméstico ;
2.° Se a remuneração estipulada é só por salário, por salário e sustento,
ou por salário, sustento e vestuário;
3.° Aos salários de homens, mulheres e menores entre os catorze e
dezoito anos.
Art. 110.° Quando o trabalhador indígena houver de receber alimenta-
ção, esta constará de três refeições diárias : a primeira, antes da partida
para o trabalho ; a segunda, entre as onze e as treze horas ; e a terceira
depois de largar o trabalho.
§ único. Depois da segunda refeição terá o trabalhador indígena uma
hora para descanço.
Art. 111.0 As refeições serão compostas de géneros de bôa qualidade e
tanto quanto possível daquelas a que os indígenas estão habituados nas
suas terras e de preferência de produção da região.
Art. 112.° O curador fará inspeccionar, por si ou por agentes seus, a
maneira como os trabalhadores indígenas são alimentados, podendo, caso
o entenda, e ouvida a autoridade sanitária, propor ao Governador Geral
a organização de tabelas do rancho dos trabalhadores indígenas, tendo
em atenção na organização destas tabelas, os hábitos dos indígenas e a
alimentação a que êle está habituado e prefere.
Art. 113.° Quando o trabalhador indígena tenha pelo seu contracto,
direito a vestuário, o patrão fornecer-lhe há, mensalmente, um chapéu e
um fato de ganga ou cotim, composto de calça, blusa ou casaco, ou dois
panos.
Art. 114.° Quando qualquer patrão houver de construir alojamentos
para trabalhadores indígenas, poderá dar-lhes materiais e, pelo menos,
uma semana para construírem a sua cubata, ou fornecer-lhes alojamentos,
de alvenaria, cobertos de colmo.
§ 1.° Em um e outro caso o patrão enviará ao curador geral um cro-
quis da sanzala a formar, a sua situação e o desenho de cada cubata ou da
casa a construir.
§ 2.° Em cada cubata ou casa não poderá alojar-se mais de uma famí-
DÈ ANGOLA 683
lia, quando os trabalhadores indígenas tenham consigo a sua família, ou
alojar mais de seis trabalhadores, no caso contrário.
Art. 115.° Os patrões que tenham em serviço das suas propriedades
1:000 ou mais trabalhadores indígenas deverão fazê-los visitar diariamente
pelo médico respectivo.
Os que tiverem 600 a 1:000, três vezes por semana, e semanalmente os
que tiverem menos de 600.
§ 1.°'0 facultativo deverá tambêmanspecionar todos os trabalhadores
indígenas quando formam para o trabalho, ou num domingo de manhã.
Esta visita será feita uma vez cada quinze dias nas propriedades que
empreguem mais de 1:000 trabalhadores indígenas e uma cada mês nas
que empreguem entre 100 a 1:000.
§ 2.° Em casos urgentes e graves, o patrão deverá fazer imediata-
mente visitar o trabalhador por um facultativo.
§ 3.° O facultativo poderá prescrever qualquer restrição e até completa
dispensa de trabalho, por motivo de doença.
Art. 116.° Os patrões de estabelecimentos industriais ou agrícolas que
não tenham médico, situados a mais de quinze quilómetros, pela estrada
ou caminho ordinário, de qualquer hospital do Estado, serão obrigados
ao pagamento de uma cota, que não será superior a $50 por serviçal e
por ano para o serviço de saúde desde que o Governo nomeie um médico
que se estabeleça a menos de quinze quilómetros do mesmo estabeleci-
mento.
§ único. Para o cômputo da cota a pagar tomar-se há o número médio
dos serviçais que o patrão ou dono do estabelecimento empregar durante
o ano.
Art. 117.° O médico nomeado pelo Governo, nos termos do artigo
antecedente, deverá fazer as visitas diárias ou semanais a que se refere
o art. 115.°
Art. 118.° A nomeação dos médicos nestas condições deverá ser feita
em concurso público.
Art. 119.° Os patrões poderão ter ao seu serviço médicos por eles pagos
para a visita e tratamento dos indígenas, devendo a nomeação ser feita
livremente pelos patrões, mas podendo os médicos ser mandados demitir
pelo curador, em caso de queixa dos trabalhadores indígenas, e provado
que seja que o médico é pouco zeloso e incompetente.
Art. 120.° As prescrições do facultativo e, em geral, quaisquer ocorrên-
cias médicas respeitantes aos trabalhadores indígenas, serão registadas
pelo próprio facultativo, em livro especial fornecido pelo patrão, com
termo de abertura e encerramento e as folhas numeradas e rubricadas pelo
curador geral ou seu agente.
§ único. O médico é o fiscal da salubridade e do estado sanitário do
estabelecimento onde os serviçais trabalham, e, como tal, poderá passar
as visitas que entender necessárias.
Art. 121.° Os patrões que tiverem ao seu serviço mais de 50 trabalha-
dores indígenas enviarão mensalmente para a Secretaria dos Negócios
Indígenas, e por intermédio do agente do Curador mai3 próximo, um
boletim com o movimento dos doentes assinado pelo facultativo.
Art. 122.° Cada patrão que tiver mais de 50 trabalhadores indígenas
684 POPULAÇÕES INDÍGENAS
normalmente empregados em sen serviço, e cujo estabelecimento diste
mais de quinze kilómetros de qualquer hospital ou enfermaria do Governo,
é obrigado a ter enfermarias onde os serviçais possam receber tratamento
gratuitamente.
§ 1.° Caso no estabelecimento trabalhem homens e mulheres, a enfer-
maria deverá ter instalações para os dois sexos.
§ 2.° Se entre o local dos trabalhos e o hospital do Governo houver
meios de transporte rápido por via férrea, poderá o Governador Geral
dispensar a existência da enfermaria.
§ 3.° Em todos os estabelecimentos onde se empreguem mais de dez
trabalhadores indígenas deverá haver uma ambulância para poder prestar
serviços em caso de necessidade.
Art. 123.° Na construção de hospitais para tratamento de trabalhadores
indígenas, de creches para crianças e doutros edifícios para tratamento
de trabalhadores indígenas, o patrão é obrigado a apresentar os projectos
das construções a fazer ao curador, que resolverá depois de consultar o
chefe do Serviço de Saúde.
Art. 124.° Em qualquer ocasião o curador ou seus agentes poderá
exigir dos patrões as obras necessárias para a conservação dos aloja-
mentos, hospitais, creches, etc, para uso dos serviçais e bem assim a
desinfecção dos locais por estes habitados.
Art. 125.° O patrão não poderá impor às mulheres e aos menores
serviços que só por homens possam ser executados.
Art. 126.° As mulheres contratadas são sempre dispensadas de qual-
quer trabalho nos trinta últimos dias prováveis da gestação e nos trinta
dias imediatos ao parto.
§ único. Nos primeiros seis meses de amamentação de seus filhos só
poderão ser empregadas em tabalhos moderados, em recinto abrigado
ou perto das suas habitações.
Art. 127.° É proibido o contracto para dentro e para fora da província
de trabalhadores indígenas velhos, raquíticos, atacados de alienação
mental ou doença do sono, de quaisquer moléstias ou deformidades que
os tornem inaptos para o trabalho e daqueles que previamente não tenham
sido vacinados.
§ 1.° Para os efeitos deste artigo, o curador geral e seus agentes não
celebrarão contractos senão em presença duma declaração de qualquer
delegado de saúde da província, atestando a aptidão para o trabalho e a
vacinação.
§ 2.° Estas declarações são gratuitas não tendo os delegados de saúde
direito a exigir por elas quaisquer emolumentos.
Art. 128.° Em cada estabelecimento em que haja crianças, filhos de
serviçais ou colonos, de idade inferior a sete anos, haverá uma creche
onde sejam convenientemente tratados durante o período em que suas
mães trabalhem.
Art. 129.° Em todas as localidades onde haja escola oficial a distância
inferior a quatro kilómetros da residência dos serviçais, o patrão não
poderá pôr obstáculo ou impedir que os serviçais enviem a essa escola 03
seus filhos ou filhas desde a idade dos sete anos.
DE ANGOLA 685
CAPÍTULO IV
Do transporte de trabalhadores indígenas por mar
Art. 130.° O transporte de trabalhadores indígenas da província para
outra colónia por via marítima e em número superior a dez, só poderá
ser feito em navios portugueses para esse fim aprovados pelo Governo
(modelo O).
§ 1.° Só no caso de não haver carreiras regulares de vapores portu-
gueses poderá ser feito o transporte em vapores estrangeiros, que declarem
na respectiva capitania do porto, que se sujeitam ao disposto no presente
diploma.
§ 2.° O navio que transportar da província para outra colónia mais de
dez serviçais ou colonos contratados, será sujeito a uma fiança ou depó-
sito de 2.000S00.
Art. 131.° O transporte de trabalhadores indígenas de um para outro
porto da província poderá ser feito em navios portugueses, nas condições
do artigo anterior, ou em outros igualmente portugueses cujos coman-
dantes tenham obtido licença das autoridades marítimas locais.
§ 1.° Estas licenças não são permanentes, não estão sujeitas à fiança,
mas são por elas responsáveis as autoridades marítimas que as conce-
derem.
§ 2.° As autoridades marítimas sempre que dêem uma licença nestas
condições comunicá-la hão ao curador geral ou ao seu agente do porto de
embarque dos trabalhadores indígenas.
Art. 132.° À autoridade marítima compete verificar:
1.° Se os navios recebem a bordo trabalhadores indígenas em número
que não esteja em relação com a sua tonelagem;
2.° Se os navios que transportam trabalhadores indígenas teem no
depósito mantas ou cobertores em número de dois para cada trabalhador
que habitualmente transportam, para serem utilizados pelos trabalhadores
durante a viagem, e se no fim da viagem são devidamente desinfectados.
§ único. A falta de cumprimento destas disposições será punida com
a multa de 50800 a 500$00.
Art. 133.° O comandante do navio é responsável pelo bom tratamento
dos trabalhadores indígenas a bordo; caso algum indígena morra durante
a viagem, o médico de bordo deverá certificar, sob declaração de honra,
que para essa morte em nada concorreu o tratamento dado a bordo e,
sobretudo, a falta de alojamento e abrigo conveniente.
Art. 134.° O navio que transportar mais de dez trabalhadores indígenas
é obrigado a ter a bordo médico e enfermeiro.
Art. 135.° Ao findar a viagem, e verificado que o comandante cumpriu
com as obrigações legais, deverá receber uma resalva que assim o
certifique; no caso contrário ser-lhe ha aplicada uma multa que dependerá
da natureza da infracção que tiver cometido (modelo P).
Art. 136.° O comandante do navio poderá recusar a entrada a bordo
a indígenas que não tragam suficientes roupas de agasalho para a tra-
vessia e que não venham decentemente vestidos.
686 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 137.° Os trabalhadores indígenas contratados ou repatriados, que,
para seguirem para o local da prestação de trabalho ou para a terra da
sua naturalidade, tenham de embarcar em qualquer dos portos da pro-
víncia serão presentes ao curador geral ou ao agente do porto de embarque
que, em face dos contractos e bilhetes de identidade, por meio de guia os
mandará apresentar à autoridade marítima que lhes passará uma guia
em duplicado, onde se especifiquem os nomes e os destinos dos trabalha-
dores indígenas.
§ 1.° O comandante conferirá a guia com os trabalhadores indígenas
que recebe e estando conforme, e os trabalhadores indígenas em condições
de serem embarcados, passará o recibo no duplicado, ficando desde esse
momento responsável com estes pelo tratamento dos trabalhadores indí-
genas que recebeu e por os entregar no porto do destino. O recibo será
enviado ao curador geral.
§ 2.° O comandante poderá recusar o embarque dos trabalhadores
indígenas que o médico do bordo considere doentes, raquíticos, ou inca-
pazes para o trabalho, e que não tenham sido vacinados.
§ 3.° Da decisão do comandante haverá recurso para o Governador
Geral.
§ 4.° No porto de desembarque serão os trabalhadores indígenas
entregues à autoridade marítima que os mandará apresentar ao curador
geral ou ao agente daquela localidade que os fará seguir ao seu destino.
Art. 138.° Em todos os navios que transportem trabalhadores indígenas
repatriados de S. Tomé e Príncipe haverá um comissário do Governo
nomeado ad hoc pelo Governador daquela colónia, portador de bónus de
repatriação e incumbido de verificar que os serviçais só desembarquem
no porto do seu destino entregando nessa ocasião o respectivo bónus ao
curador geral, de que se lavrará uma acta em duplicado, assinada pelo
comissário do governo, curador geral e duas testemunhas.
§ único. Um exemplar desta acta será enviado ao curador da província
de S. Tomé e Príncipe e o outro será arquivado na Secretaria dos
Negócios Indígenas da província.
Art. 139 ° Havendo trabalhadores indígenas repatriados de S. Tomé e
Príncipe, que para seguirem para a terra da sua naturalidade, tenham de
novamente embarcar, serão estes agrupados em tantas relações (modelo Q)
quantos os portos que servem às terras das suas naturalidades e entregues
ao comissário ad hoc que os fará desembarcar no porto do destino, en-
tregando nessa ocasião o respectivo bónus ao agente do curador, de que
se lavrará uma acta em duplicado, sendo um exemplar destinado ao
curador geral da província e outro para ser arquivado na Secretaria do
Agente do Curador do porto de desembarque.
Art. 140.° A fiança estabelecida no § 2.° do art. 130.° responde pela
falta de cumprimento das obrigações impostas pelo presente regulamento,
e independentemente do procedimento civil e criminal a que os actos do
comandante e tripulação para com os serviçais possam dar logar.
Art. 141.° As reclamações e queixas contra os comandantes dos navios
serão resolvidas pelo Governador Geral sob promoção do curador, e em
última instância sempre que a falta que motivou a queixa seja, nos termos
do Código Penal, castigado com multa não superior a 500$00.
DE ANGOLA 687
Art. 142.° Os trabalhadores indígenas não podem ir presos a bordo,
salvo cometendo crime pelo qual devam ser e neste caso, logo que cheguem
a terra, serão entregues às autoridades competentes para instaurarem o
processo.
Art. 143.° Todos os trabalhadores indígenas que não apresentarem
sinais evidentes de varíola ou de terem sido vacinados sê-lo hão antes de
embarcar.
Art. 144.° Os navios que transportem serviçais deverão fornecer
passagem gratuita em primeira classe ao curador geral entre os portos
da província, sempre que este o deseje, afim de verificar o tratamento
dados aos serviçais.
§ único. A qualquer funcionário da Secretaria dos Negócios Indígenas
e Curadoria dos Serviçais que por ordem do curador o substitua no uso
das atribuições deste artigo ou que por qualquer motivo tenha de acom-
panhar serviçais embarcados, igualmente será fornecida passagem gra-
tuita na classe a que a sua categoria lhe der direito.
Art. 145.° Entende-se pelo facto de obterem licença para transporte
de trabalhadores indígenas que os comandantes se obrigam ao disposto
no presente decreto que diz respeito ao transporte dos mesmos.
CAPÍTULO VII
Das penalidades e sua aplicação
SECÇÃO I
Penalidades
Art. 146.° Quando o curador nos primeiros oito meses de cada ano,
não apresentarem ao governador geral o relatório a que se refere
o art. 15.°, será imediatamente suspenso do seu vencimento de exer-
cício, que não tornará a receber emquanto não apresentar o mesmo re-
latório.
§ 1.° Se tiver sido suspenso, demitido ou licenceado por qualquer
motivo dentro dos oito meses referidos no artigo anterior, e não apre-
sentar o mesmo relatório dentro desse período, será punido com multa
de 1.000$, que será mandada cobrar coercivamente pelo governador.
§ 2.° Compete a publicação do relatório, referido a todo o ano civil
ao curador que estiver nomeado por decreto no dia 31 de dezembro de
cada ano.
Art. 147.° Os agentes do curador que não enviarem para a curadoria
as informações estabelecidas no § 3.° do art. 40.°, no art. 66.°, no art. 67.°,
no § único do art. 95.° e 205.", e não prestarem conta das receitas con-
forme estabelece o § 2.° do art. 31.°, ou as demorem mais de três meses,
serão suspensos dos vencimentos de exercício, o qual perderão definiti-
vamente até que as remetam.
Art. 148.° Os patrões que deixarem de cumprir, para com os trabalha
dores indígenas, os deveres que pelo contractos de prestação de serviços
e pelo presente regulamento lhes são impostos, serão punidos com multa
688 POPULAÇÕES INDÍGENAS
de 5$ a 100$ àlêm do .pagamento das indemnizações que possam ser
devidas aos serviçais queixosos.
§ único. Quando o patrão não residir habitualmente na localidade,
será condenado como tal, para os efeitos deste artigo, o seu gerente,
capataz ou chefe de secção que no local dirija os trabalhos.
Art. 149.° Os patrões que maltratarem os seus trabalhadores indígenas
voluntariamente, produzindo-lhe ferimentos, contusões ou contra eles
praticar ofensas corporais voluntárias, serão punidos conforme o disposto
nos artt. 359.° e 367.° do Código Penal.
Art. 150.° Os patrões que conservarem os trabalhadores indígenas
com algemas, grilhetas, gargalheiras, ou quaisquer outros instrumentos
que tolham a liberdade de movimentos serão punidos nos termos dos
artt. 359.° e 360.° do Código Penal.
Art. 151.° Aos patrões que mensalmente, ou por outro período que
fôr designado no respectivo contracto, não pagarem aos trabalhadores
indígenas o salário devido, serão rescindidos os contractos dos trabalha-
dores indígenas não pagos, pelo curador geral ou seus agentes ; as mesmas
autoridades pagarão dos cofres públicos os salários em dívida, cobrando-os
desde logo do patrão pela via coerciva.
Art. 152.° A Repartição de Fazenda do Distrito onde houverem de ser
pagos trabalhadores indígenas, nos termos do artigo anterior, satisfará
as requisições de fundos que lhe forem feitas para esse fim pelo curador
ou seus agentes.
Ârt. 153.° Todo o patrão ou seu agente que apresentar ao curador
geral ou seus agentes folhas de pagamento de trabalhadores indígenas
falsificadas ou que não sejam a expressão da verdade, será punido nos
termos do art. 216.° do Código Penal.
Art. 154.° Os patrões de trabalhadores indígenas não poderão impedir
estes de recorrerem às autoridades locais, sob pena da multa de 50$ a
500$ considerando-se em caso de condenarão do patrão, o respectivo
contracto rescindido se o trabalhador indígena assim o desejar.
Art. 155.° O curador geral ou seu agente poderá, em vista da queixa
justificada e provada do trabalhador indígena, retirá-lo do serviço do
patrão desde logo e mandá-lo depositar mais conveniente, sempre que
julgar que o patrão possa exercer represálias sobre o trabalhador indígena
queixoso.
Art. 156.° Os patrões, cujos trabalhadores indígenas lhe forem reti-
rados por cancelamento dos respectivos contractos, são obrigados ao
pagamento das passagens de repatriação para os trabalhadores e suas
famílias.
§ único. Não sendo cumprida voluntariamente a obrigação imposta
por este artigo, será a importância das passagens cobrada dos patrões,
coercivamente, pelo processo das execuções administrativas, servindo
de título exequível qualquer documento comprovativo da dita importância.
Art.0 157.° Os patrões que deixarem de dar aos trabalhadores ou
colonos indígenas sustento e de cumprir as demais condições estipuladas
nos contractos, serão intimados a fazê-lo pelo curador ou seus agentes ou
pela autoridade administrativa da localidade onde aqueles não existam
os quais procederam ex-oficio logo que lhes constar a falta.
DE ANGOLA 689
§ 1.° Se, intimado a fazê-lo, o patrão não cumprir a ordem, será desde
logo levantado o respectivo auto e enviado ao curador geral ou seus
agentes, sendo o patrão julgado pelo crime de desobediência à autori-
dade.
§ 2.° Em caso de urgência, poderá a autoridade administrativa que
fizer a intimação retirar os trabalhadores indígenas do serviço ao patrão
e mandá-los depositar onde entender mais conveniente.
Art. 158.° Todo aquele que recrutar trabalhadores indígenas sem
licença ou em contravenção do disposto no presente decreto, será casti-
gado com a pena de multa de 50$ a 1.000$.
Art. 159.° Os agentes de recrutamento ou engajadores, ou outra qual-
quer pessoa, que, com o fim de obrigar os indígenas a contratarem se
para prestação de serviços, os conservarem com algemas, grilhetas, gar-
galheiras, ou quaisquer outros instrumentos que tolham a liberdade de
movimento, serão punidos nos termos do art. 330.° do Código Penal.
Art. 160.& Álêm das penalidades que pelas leis vigentes lhe possam
ser aplicadas, ficam sujeitos à perda total ou parcial do seu depósito de
caução todos os agentes de recrutamento ou engajadores que não cum-
prirem os deveres impostos pelo presente regulamento e que :
1.° Perturbem ou tentem perturbar a ordem pública;
2.° Cometam violências ou fraudes de que resultem prejuízos aos
direitos ou interesses do Governo ou dos indígenas;
3.° Pratiquem contrabando ou descaminho de direitos, exerçam co-
mércio proibido ou não autorizado ou cometam qualquer contravenção
das leis e regulamentos em vigor na província.
Art. 161.° Os colonos com obrigação de trabalho e os trabalhadores
indígenas que, sem motivo justificado faltarem ao trabalho a que pelo
contracto são obrigados, perderão em cada dia útil as respectivas rações
e o salário do dia.
Art. 162.° Os indígenas que desobedecerem ás instruções da autori-
dade e se recusarem ao trabalho, os que se evadirem dos lugares onde
lhes tiverem dado trabalho ou a caminho desses lugares, ou que se recu-
sarem a prestação de trabalho, serão entregues ao curador geral, ou seus
agentes, que os julgarão e terão competência para condenar a trabalho
correccional por período variável de oito a trezentos dias.
Art. 163.° Os trabalhadores indígenas que, sem motivo justificado,
abandonarem o serviço, rompendo o contracto celebrado, serão pela
autoridade compelidos ao trabalho nos termos do Capítulo vi deste
regulamento.
O patrão terá direito a indemnização das despesas feitas.
Art. 164.° Quando os indígenas praticarem delitos ou transgressões
das disposições do presente regulamento, forem encontrados ou residirem
fora da área onde tenham praticado esses delitos ou cometido essas trans-
gressões, poderão ser julgados pelo curador geral ou seus agentes a cuja
jurisdição pertencer o local onde forem encontrados ou residirem, sempre
que o curador geral assim o determinar.
Art. 165.° A pena de prisão correccional, quando aplicada a indígenas,
poderá ser substituída pela de trabalho correccional na proporção de dois
dias de trabalho por um de prisão correccional, devendo a sentença do
690 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Poder Judicial, do curador geral ou seus agentes, indicar qual das duas
penas deverá ser aplicada.
Art. 166.° A competência dos agentes do curador para condenação a
trabalho correccional é da metade da do mesmo curador geral.
Art. 167.° A pena de trabalho correccional será mandada aplicar por
um certo número de dias úteis de trabalho e não se julgará concluída
emquanto o condenado não tiver, seja por que motivo fôr, trabalhado
efectivamente esses dias todos.
Art. 168.° Para a captura dos trabalhadores indígenas fugitivos e dos
vadios em geral, serão efectuadas administrativamente as buscas domi-
ciliárias ou no mato que sejam indispensáveis.
Art. 169.° Quando as faltas pelos patrões para com os trabalhadores
indígenas ou vice-versa, estiverem fora da alçada jurisdicional do curador
ou dos seus agentes, estes funcionários promoverão a sua repressão
pelos tribunais ordinários, fazendo a competente participação ao agente
do Ministério Público.
Art. 170.° É absolutamente proibido aos trabalhadores indígenas
comprar ou vender géneros coloniais e especialmente a mesma espécie
daqueles que são produzidos no estabelecimento ou propriedade onde
trabalham. Os que não cumprirem esta disposição serão punidos com
prisão correccional de um a seis meses ou multa de 2$ a 50$. Em igual
penalidade incorrem os que venderem ou comprarem aos trabalhadores
indígenas.
Art. 171.° O indígena que depois de recrutado se evadir será obrigado
a restituir ao engajador o adeantamento que tiver recebido. Se o não
fizer será pelo curador geral ou seu agente julgado e condenado a tra-
balho correccional até pagamento do mesmo adeantamento.
Art. 172.° Os indígenas que emigrarem de territórios portugueses
donde a emigração seja proibida deverão ser presos em qualquer parte
do território da República onde forem encontrados sem passaporte, con-
duzidos ao distrito da sua residência, serão aí julgados nos termos deste
regulamento. Se, porem, voltarem expontâneamente ser-lhes há levada
em conta essa circunstância no julgamento.
Art. 173.° O indivíduo que scientemente e sem motivo justificado
receber algum trabalhador ou colono indígena por outrem contratado,
indemnizará o anterior patrão das despesas feitas com o transporte e
contracto do mesmo serviçal, e será obrigado a contratá-lo com interven-
ção da autoridade, sob pena de multa de 20$ a 50$.
Art. 174.° Todo aquele que abusar da fraqueza e deficiência da instrução
e educação do indígena, quer provocando-o a que êle faça dívidas que
não possa pagar, quer incutindo-lhe falsas ideias dos seus deveres ou
receios infundados da autoridade ou emfim, usando de qualquer outro
meio ilícito afim de o obrigarem a recontratar se contra o seu desejo será
punido com a multa de 100$ a 1.000$ ou prisão até seis meses.
Art. 175.° É absolutamente proibido envolver os trabalhadores indí-
genas em questões de propriedade ou de posse, que só nos tribunais
ordinários devem ser derimidas. Aquele que nisso os envolver incorrerá
na pena de recisão dos contractos de todos os trabalhadores indígenas
envolvidos na questão ou multa de 500$ a 5.000$.
DE ANGOLA 691
Art. 176.° Todo aquele que vender clandestinamente bebidas alcoólicas
ou fermentadas a trabalhadores indígenas contratados e sem autorização
do patrão deste, incorrerá na pena de um a seis meses de prisão correc-
cional ou multa de 100$ a 1.000$.
Art. 177.° Os que perturbarem ou tentarem perturbar o trabalho dos
trabalhadores indígenas ou os aliciar para o abandonar ; os que espa-
lharem falsas notícias tendenciosas, procurando desacreditar os pa-
trões perante os trabalhadores indígenas e os que aplicarem falsidades
tendentes a prejudicar os patrões ou serviçais, ou a levantar estes
contra aqueles serão punidos com a multa de 100$ até 1.000$, ou prisão
até seis meses.
§ único. Se a aliciação fôr acompanhada de actos de violência, para
fazer abandonar o trabalho e a casa dos patrões com quem estive-
rem contratados, serão aplicadas as disposições do art. 329.° do Código
Penal.
Art. 178.° O acto de publicamente em reunião de trabalhadores ou
colonos, procurar convencê-los a abandonar o trabalho, ou a praticar
qualquer outro facto criminoso é condenado como provocação pública
ao crime, sujeito ao art. 483.° do Código Penal.
Art. 179.° Toda a aliciação ou provocação para o fim de perturbar o
trabalho dos trabalhadores e colonos indígenas contratados nos termos
da lei em vigor, ou para se recusarem, em reunião ao cumprimento das
condições estabelecidas nos respectivos contractos, fica sujeito às penas
estabelecidas no art. 483.° do Código Penal, quando o facto, pelas mesmas
circunstâncias não esteja compreendido em algumas das outras disposi-
ções mais graves.
Art. 180.° Todo o português que publicar notícias falsas e tendenciosas,
procurando demonstrar a existência do trabalho forçado ou não livre
nas colónias portuguesas, será punido com a multa de 100$ a 1.000$ ou
prisão de seis meses a cinco anos.
Art. 181.° O curador geral e seus agentes bem como os agentes do
Ministério Público teem competência para representarem em juíso ou
administrativamente os trabalhadores e colonos indígenas contratados,
em tudo que respeita ao cumprimento dos respectivos contractos.
Art. 182.° A falta de cumprimento dos deveres impostos pelo presente
regulamento, quer por parte dos funcionários da província, quer pelos
patrões, agentes de recrutamento, trabalhadores ou outras entidades, e
sem que neste se imponha penalidade especial será punido com a multa
de 5$ a 100$ ou prisão correccional de seis a cento e oitenta dias, quando
pelas vias gerais não lhe corresponda penalidade maior.
§ único. Na aplicação das penas impostas nos termos do presente
capítulo, dever-se ha, sempre que fôr julgado de justiça, preferir a apli-
cação das multas à prisão correccional.
Art. 183.° Se na província houver quem empregue mulheres indígenas
em estabelecimento de venda de géneros alimentícios, bebidas de qualquer
espécie ou ainda mercadorias de uso especial dos indígenas, provando-se
por qualquer fórmá que os donos desses estabelecimentos exploram essas
mulheres ou consentem. que elas se entreguem à prostituição, será cas-
tigado com multa de 200$ a 2.000$ ou prisão de seis meses a dois anos.
692 POPULAÇÕES INDÍGENAS
§ único. Se as mulheres a que se refere este artigo forem casadas com
os donos dos estabelecimentos ainda mesmo segundo os costumes gentí-
licos a multa será de 2.000$ a 5.000$.
SECÇÃO II
Forma de processo
Art. 184.° As penas, quaisquer que seja a sua natureza, da competência
do curador geral e seus agentes, que hajam de ser aplicadas, nos termos
do presente diploma, serão impostas em processo sumário, julgando o
curador geral e seus agentes pela verdade sabida.
Art. 185.° O processo será gratuito, escrito em papel branco e isento
de selo, emolumentos, salários, custas ou papel.
Art. 186.° No processo servirão de escrivão um oficial da curadoria
geral, os secretários das administrações de concelho, de circunscrição, de
capitania-mór, ou quem suas vezes fizer, conforme os casos.
§ único. Na falta de quaisquer dos funcionários mencionados neste
artigo, poderá ser nomeado um escrivão ad hoc.
Art. 187.° As intimações serão feitas pelo pessoal das administrações
de concelho, circunscrição ou capitanias-móres a que pertencer o agente
do curador.
§ único. Na sede da curadoria geral, as intimações serão feitas pela
administração de concelho, sempre que tal seja requisitado pelo curador
geral, em simples nota oficial.
Art. 188.° O processo começará por queixa verbal ou escrita, auto ou
mandado, conforme os casos.
Art. 189.° Conhecida a infracção, o curador geral ou seus agentes,
sempre que por aquele lhes não forem restringidas as atribuições a julgar,
fará intimar o arguido para, no praso de três a oito dias ou mais, se
houver motivo justificado, comparecer na curadoria geral ou suas agências,
com a defeza que tiver.
§ único. O curador geral ou seus agentes, quando entenderem, poderão
inquirir testemunhas ou proceder a quaisquer diligências antes do jul-
gamento.
Art. 190.° No dia e hora designados para o julgamento, o escrivão
verificará se está presente o arguido com a sua defeza, se a tiver, e o
curador geral ou os seus agentes ouvindo o arguido e as testemunhas,
caso compareçam, proferirá em seguida a sentença.
§ único. Caso o arguido não compareça, correrá o processo à revelia
não se podendo fazer substituir no julgamento.
Art. 191.° Os julgamentos serão em discussão verbal e deles se lavrará
acta escrita no livro do registo das actas de julgamentos, que deverá
existir na curadoria geral e em todas as suas agências.
§ 1.° Das actas constará o nome do autor, do arguido, das testemu-
nhas e de quaisquer outras pessoas que intervenham no julgamento,
hora, dia, mês e ano em que tiver logar este, a questão versada e a
sentença.
§ 2.° As actas serão assinadas pelo julgador e pelas testemunhas,
quando as houver e saibam escrever. São separadas umas das outras
DE ANGOLA 693
por um simples traço, não devendo ficar qualquer linha em branco
entre elas.
§ 3.° Na margem das actas serão feitas quaisquer anotações que sejam
julgadas necessárias, bem assim como a declaração de ter havido recurso
e resultado deste.
§ 4.° As actas são feitas por séries anuais, escrevendo-se na margem
das folhas do livro respectivo o número de ordem e do ano a que digam
respeito.
§ 5.° As actas são escritas por extenso, sem emendas, rasuras e alga-
rismos. Qualquer erro será rectificado na mesma e em seguida à sentença,
antes das assinaturas.
Art. 192.° Proferida a sentença e passada em julgado, nos termos dos
artt. 194.° e 195." o curador geral ou seus agentes, enviarão às respectivas
autoridades administrativas, quando o não sejam, as certidões necessárias
para que possa ser executada, quando se trate de pena de prisão.
Art. 193.° A importância das multas dará entrada na Fazenda por
guia passada pelo escrivão, e assinada pelo curador geral ou seus agentes,
à maneira que vão sendo pagas, juntando-se ao processo o recibo passado
pelo recebedor da fazenda.
§ único. Das multas aplicadas por maus tratos a qualquer trabalhador
indígena, o curador geral ou os seus agentes poderão determinar que até
100 por cento da importância da multa seja entregue ao indígena, como
indemnização, independentemente de qualquer outra que deva receber.
Art. 194.° Decorridos dez dias após a condenação em multa, que o
condenado a não vier pagar, quando não tenha recorrido, porque neste
caso tem a sentença efeito suspensivo, notificar-se ha à autoridade admi-
nistrativa a falta de pagamento, remetendo-se-lhe a certidão de sentença
a fim de ser satisfeita na cadeia à razão de 1$00 diário.
§ 1.° Quando os agentes do curador forem conjuntamente autoridades
administrativas, farão eles próprios cumprir a prisão.
§ 2.° Em qualquer altura que o preso pretenda pagar a parte da multa
de que ainda seja devedor, ser-lhe ha recebida, sendo imediatamente
posto em liberdade e procedendo- se com relação à parte da multa paga,
nos termos do artigo anterior.
Art. 195." Da sentença dos agentes do curador cabe recurso para o
curador geral e da sentença deste para o Governo Geral.
Art. 196.° Qualquer dos recursos acima mencionados será interposto
no prazo de cinco dias, a contar da intimação da sentença, por meio de
uma petição que a autoridade recorrida mandará juntar aos autos ou
documentos do processo, dando recibo de entrega ao recorrente. Em
seguida mandará o curador geral ou os seus agentes tirar certidão da
acta do julgamento pelo escrivão, a qual assinará, juntando-se ao processo,
enviando em seguida esta, assim instruída e com a sua informação ao
curador geral ou Governador Geral, conforme fôr o caso.
Art. 197.° O curador geral ou o Governador Geral, conforme o caso,
mandará dar vista do processo ao recorrente por três dias para que apre-
sente a sua minuta, querendo.
Art. 198.° Passados três dias, o processo será cobrado pelos meios
prescritos para o processo judiciário.
BÔ4 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 199.° No caso do recurso para o Governador Geral, nomeará este
a seguir um relator membro do Conselho do Governo, marcando um
prazo, não inferior a quinze dias, para este relatar o processo em sessão
do Conselho do Governo e que se realizará depois desse prazo.
Art. 200.° Quando o Conselho do Governo tiver deliberado, o Gover-
nador Geral, dentro do prazo de três dias, lançará o seu despacho nos
autos confirmando ou revogando o do curador geral, e ordenará que o
processo seja remetido à Curadoria Geral para cumprir ou promover o
cumprimento do mesmo despacho.
Art. 201.° Do recurso para o Governador Geral será escrivão o primeiro
oficial da Secretaria do Governo, e as suas diligências serão feitas por
oficiais de diligências da administração do concelho.
Art. 202.° Quando o curador geral fôr membro do Conselho do Go-
verno, não poderá assistir às deliberações sobre recursos das sentenças
da Curadoria.
Art. 203.° Recebido o processo com o despacho do curador geral ou
deste e do Governador Geral, confirmando ou negando a sentença, será
este logo intimado ao réu para dele ter conhecimento.
Art. 204.° Quando se dê o caso do art. 156.° o curador geral ou os seus
agentes intimarão os patrões a num prazo que lhes pareça razoável, virem
fazer entrega da importância das despezas, e, caso o não façam no prazo
marcado, será enviada a conta à autoridade administrativa, para o efeito
do referido artigo.
Art. 205.° Os agentes do curador informarão o curador geral, mensal-
mente, dos julgamentos que fizerem, segundo o modelo R. Mesmo que
durante o mês não tenham feito aplicação de qualquer pena, deve ser feita
a comunicação nesse sentido ao curador geral.
§ único. Os mapas a que se refere este artigo serão feitos em dupli-
cado, sendo o original enviado ao curador geral e ficando o duplicado
arquivado na agência, com a data da remessa do original,
Art. 206.° O curador enviará trimestralmente, ao Governador Geral,
uma nota de todas as penas impostas, com indicação detalhada das razões
que as motivaram e do patrão em cujo serviço se deu o delito.
CAPÍTULO IX
Disposições transitórias
Art. 207.° Os contractos celebrados antes da vigência do presente re-
gulamento subsistirão até terminarem os respectivos prazos, contudo, os
trabalhadores indígenas e os patrões ficam sujeitos às disposições tute-
lares estabelecidas por este regulamento e outras de ordem pública.
Art. 208.° Os trabalhadores indígenas contratados na província e pres-
tando serviço em S. Tomé e Príncipe, antes da vigência do presente re-
gulamento, que não tenham depósito algum no fundo de repatriação,
serão, quando terminados os seus contractos, caso o desejem, repatriados
à custa dos patrões e entregues ao Governador Geral, o qual providenciará
para que sejam devidamente tutelados, protegidos e levados até às suas
terras sob a vigilância das autoridades, sendo para esse efeito abonados
DE ANGOLA 695
pelo cofre de repatriação da colónia onde o indígena trabalhou uma verba
não superior a 30$ para as despesas da tutela de cada serviçal, a qual
será entregue ao Governador Geral.
Art. 209.° O governador geral, com os repatriados que não tenham
descontado parte alguma dos seus vencimentos para o cofre de repatriação
poderá organizar povoações indígenas, aos quais dará habitação, terras,
sementes e utensílios de agricultura e onde os manterá sob a sua vigi-
lância, a fim de não serem esbulhados çlos meios que lhes forem entregues.
§ único. Se os repatriados não forem capazes de angariar os meios
de 'subsistência por serem inválidos, serão entregues às suas famílias,
sendo-lhe abonada a verba de 30$ indicada no art. 208.°, e caso não tenham
família, serão instalados nas povoações organizadas pelo governador,
recebendo a mesma quantia de 30$, depois de deduzidas as quantias
gastas com a instalação.
(Modelo A)
SECRETARIA DOS NEGÓCIOS INDÍGENAS ^ SECRETARIA DOS NEGÓCIOS INDÍGENAS
E CURADORIA DOS SERVIÇAIS M E CURADORIA DOS SERVIÇAIS
Talão da guia de depósito i».°... <» Guia de depósito n.°...
Entregou. . . a quantia de. . . que «^ O Ex.m0 Sr. . . entregou a quan-
fica depositada nesta Secretaria Aã tia de. .. que fica depositada nesta
como garantia da licença de recru- «** Secretaria como garantia da licença
tamento que requereu. ít de recrutamento que requereu.
Loanda, . . . de. . . de 19. . . ^ Loanda,. . . de. . . de 19. . .
Esc. ..$... É Esc ..$...
M
O Secretário dos Negócios Indígenas *=£ O Secretario dos Negócios Indígenas
e Curador Cerai, *N»(» e Curador Geral,
(Modelo B)
PROVÍNCIA DE ANGOLA
Licença de recrutamento para prestação- de serviços
AGENTE DE RECRUTAMENTO)
Tendo. . . provado achar-se no caso de obter licença para recrutamento
de indígenas nos termos do Regulamento de trabalho indígena em vigor,
hei por conveniente passar-lhe a presente licença. . . válida desde. . . de. . .
de. . até. . . de. . . de. . .
Loanda,. . . de. . . de. . .
O Agente de recrutamento,
O Governador Geral,
A presente licença só permite o recrutamento de serviçais para ser
viço. . . e será apresentada sempre que fôr pedida por qualquer autoridade
administrativa ou militar.
696 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Modelo B (verso)
Direitos e deveres dos agentes de recrutamento e seus engajadores
1.° As licenças são pessoais e intransmissíveis, sendo expressamente
proibido ao portador da licença o fazer-se substituir por outrem no
exercício das suas funções, sob pena de 30100 a 150100 de multa e prisão
correccional de um a seis meses.
2.° A renovação da licença é obrigatória dentro dos quinze dias que
se seguirem ao seu termo, sob pena da perda da caução depositada. Quando
o agente não queira continuar a exercer o seu mister deverá, dentro de
quinze dias, o mais tardar, que se seguirem ao termo da sua licença,
declará-lo na curadoria, sendo a declaração acompanhada das licenças
ainda válidas dos engaj adores que tenham trabalhado sob a sua direcção.
3.° Em caso de alteração de ordem pública ou outro de força maior, o
Governo da Metrópole, por proposta do Governador Geral, pode suspender
o exercício de todas as licenças de recrutamento e as respectivas opera-
ções em todas ou em determinadas regiões da província, sem que os
agentes e seus engaj adores tenham direito a qualquer indemnização.
4.° As autoridades competentes para sancionar as nomeações de agen-
tes e de engajadores poderão cancelar as nomeações que hajam feito,
sempre que o entendam conveniente.
5." Os agentes de recrutamento e seus engajadores deverão apresentar
os serviçais angariados ao curador ou seu agente que mais próximo
ficarem do local das suas operações, afim de serem celebrados os contra-
ctos, nos termos legais.
6.° As autoridades prestarão todas as facilidades aos agentes de recru-
tamento e seus engajadores intervindo simplesmente no angariamento
para o fiscalisar e garantir a liberdade do indígena.
7.° É proibido aos agentes de recrutamento e engajadores:
a) Empregar engajadores indígenas que não sejam portugueses ;
b) Recrutar indígenas e entregá-los aos patrões sem que previamente
tenham feito o respectivo contracto, sem ou com intervenção da autoridade;
c) Desviar os indígenas do destino para que tenham sido contratados.
(Modelo C)
PROVÍNCIA DE ANGOLA
Licença de recrutamento para prestação de serviços
AGENTE AUXILIAR DE RECRUTAMENTO (engajador europeu)
Tendo-me sido proposta por. . . a nomeação de . filho de. . . e de. . •
que pelo proponente me é afiançado como pessoa honesta e de bons cos-
tumes, para engajador de serviçais indígenas e conformando-me com essa
proposta lhe passo a presente licença, pela qual pagou a taxa de ...$...
Esta licença lhe dá direito a engajar serviçais no. . . pelo período de. . .
a começar em ... de . . . de . . . e terminando em de . . . de . .
Loanda, . . . de. . . de. . .
O Engajador
O Secretário dos Negócios Indígenas
e Curador Geral
DE ANGOLA 697
(Modelo C) (verso)
Direitos e deveres dos agentes de recrutamento e seus engajadores
1.° As licenças são pessoais e intransmissíveis, sendo expressamente
proibido ao portador da licença o fazer-se substituir por outrem no exer-
cício das suas funções, sob pena de 30$00 a 150$00 de multa e prisão cor-
reccional de um a seis meses.
2.° A renovação da licença é obrigatória dentro dos quinze dias que se
seguirem ao seu termo, sob pena da perda da caução depositada. Quando
o agente não queira continuar a exercer o seu mister deverá, dentro
de quinze dias, o mais tardar, que se seguirem ao termo da sua licença,
declará-lo na curadoria, sendo a declaração acompanhada das licenças
ainda válidas dos engajadores que tenham trabalhado sob a sua dire-
cção.
3.° Em caso de alteração de ordem pública, ou outro de força maior,
o Governo da Metrópole, por proposta do Governador Geral, pode
suspender o exercício de todas as licenças de recrutamento e as respe-
ctivas operações em todas ou em determinadas regiões da Província,
sem que os agentes e seus engajadores tenham direito a qualquer inde-
mnização.
4.° As autoridades competentes para sancionar as nomeações de agentes
e de engajadores poderão cancelar as nomeações que hajam feito, sempre
que o entendam conveniente.
5.° Os agentes de recrutamento e seus engajadores deverão apresentar
os serviçais angariados ao curador ou seu agente que mais próximo fica-
rem do local das operações, afim de serem celebrados os contractos, noa
termos legais.
6.° As autoridades prestarão todas as facilidades aos agentes de recru-
tamento e seus engajadores intervindo no angariamento simplesmente
para o fiscalizar e garantir a liberdade do indígena.
7.° É proibido aos agentes de recrutamento e engajadores:
a) Empregar engajadores indígenas que não sejam portugueses;
b) Recrutar indígenas e entregá-los aos patrões sem que previamente
tenham feito o respectivo contracto, sem ou com intervenção das autori-
dades ;
c) Desviar os indígenas do destino para que tenham sido contratados.
(Modelo D)
x PROVÍNCIA DE ANGOLA
Licença de recrutamento para prestação de serviços
AGENTE ESPECIAL DE RECRUTAMENTO (engajador indígena)
Pelo presente declaro que nomeio engajador o indígena. . . , da povoação
de..., sobado de..., afim de me auxiliar no recrutamento de serviçais
45
698 POPULAÇÕES INDÍGENAS
indígenas, e pelo qual me responsabilizo. A presente nomeação deverá
ter. . . meses de validade, a contar da data em que fôr aprovada.
Loanda, . . . de... de. . .
0 Patrão ou Agente,
■Visto e aprovado.
Loanda,. . • de. . . de ..
0 Secretário dos Negócios Indígenas
e Curador Gerai,
(Modelo D) (verso)
Direitos e deveres dos agentes de recrutamento e seus engajadores
1.° As licenças são pessoais e instransmissíveis, sendo expressamente
proibido ao portador da licença o fazer-se substituir por outrem no
exercício das suas funções, sob pena de 30100 a 150$00 de multa e prisão
correccional de um a seis meses.
2.° A renovação da licença é obrigatória dentro dos quinze dias que
se seguirem ao seu termo, sob pena da perda da caução depositada.
Quando o agente não queira continuar a exercer o seu mister deverá,
dentro de quinze dias, o mais tardar, que se seguirem ao termo da sua
licença, declará-lo na curadoria, sendo a declaração acompanhada das
licenças ainda válidas dos engajadores que tenham trabalhado sob a sua
direcção.
3.° Em caso de alteração de ordem pública, ou outro de força maior,
o Governo da Metrópole, por proposta do Governador Geral, pode sus-
pender o exercício de todas as licenças de recrutamento e as respectivas
operações em todas ou em determinadas regiões da Província, sem que
os agentes e seus engajadores tenham direito a qualquer indemnização-
4.° As autoridades competentes para sancionar as nomeações de agentes
e de engajadores poderão cancelar as nomeações que hajam feito, sempre
que o entendam conveniente.
5.° Os agentes de recrutamento e seus engajadores deverão apresentar
os serviçais angariados ao curador ou seu agente que mais próximo
ficarem do local das operações, afim de serem celebrados os contractos,
nos termos legais.
6.° As autoridades prestarão todas as facilidades aos agentes de recru-
tamento e seus engajadores intervindo no angariamento simplesmente
para o fiscalizar e garantir a liberdade do indígena.
7.° É proibido aos agentes de recrutamento e engajadores:
a) Empregar engajadores indígenas que não sejam portugueses;
b) Recrutar indígenas e entregá-los aos patrões sem que previamente
tenham feito o respectivo contracto, sem ou com intervenção das autori-
dades ;
c) Desviar os indígenas do destino para que tenham sido contratados.
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® Agência de... <|» Agência de...
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genas de. •(')••• em nome da(2)..- contracta para
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clarou perante mim desejar contrata-rse livremente
e sem imposição de qualquer espécie, para ir ser-
vir por {*)■•■ nas(*) propriedades agrícolas, sitas
em (•)..., (')•.., (8)-..
O salário mensal será de...S--- e alimentação : o
serviçal deixa à sua família a pensão mensal de ■ . . S . ■ .
e recebeu de adiantamento a quantia de ..&■■■
Obrigamo-nos a cumprir o presente contracto feito
hoje... de... de 19...
(9) ■•
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O Agente do Curador,
(10)
Vistos
Indicações especiais
Ao último patrão com
quem servir fica a obri-
gação de pagar a viagem
de regresso, sempre que
o serviçal se repatrie.
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M Contracto de prestação de serviços
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^ e recebeu de adiantamento a quantia de ...$.. .
^ Obrigamo-nos a cumprir o presente contracto feito
^ hoje. .. de... de 19...
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O Agente do Curador,
Nome. . .
Número do contracto.
Pai...
Sobado.
Duração do contracto
Salário. . .
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Data do contracto. . .
..., ...de... de 191.
O Agente do Curador,
M Vapor em que partiu. . .
W Data da chegada ao local do trabalho.
Indicações espec
Ao último patrão com M.
quem servir fica a obri- <£*
gação de pagar a viagem M
de regresso, sempre que m
o serviçal se repatrie. M
(') Nome do patrão ou do agente do recrutamento. — (:) Nome
do patrão cuso o contracto seja feito pelo agente.— (a) Nome do
indígena. —(') Tempo do contracto. — (s) Espécie de estabeleci-
mento, se agrícola, comercial ou industrial. — t6) Colónia para
onde vai servir.— ('] Distrito. — !") Concelho, Circunscrição ou
é£9 do palrao
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5ÁP mento, se agrícola,
ÍS onde vai servir. - (!
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Capitania-mór. — (fl) Assinatura do patrão (
para impressão do polegar do serviçal.
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JêS para impressão do polegar do
patrão ou do agente do recrutamento — (•) Noi
o contracto seja feito pelo agente. — t'l Nor
«I Tempo do contracto. — (') Espécie de estabeleci- $£
omercial ou industrial. - ,«) Colónia para ^g
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Nome próprio . . ■
Outros nomes de que usa ou usou. . .
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Circunscrição, concelho ou capitania-mór onde nas-
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Distrito . . .
Se leva família e qual. . .
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DE ANGOLA
707
• (Modelo N)
BILHETE DE TRABALHO
NOME DA PROPRIEDADE
Número do registo de trabalhadores. . , Data de entrega. . .
O Patrão ou o administrador da propriedade
(Modelo O)
PROVÍNCIA DE ANGOLA
DEPARTAMENTO MARÍTIMO DA PROVÍNCIA DE ANGOLA
Licença para transporte de serviçais indígenas
Tendo o Comandante do... depositado na recebedoria de Fazenda a
quantia de 2:000$00 como demonstrou por documento comprovativo que
fica arquivado nesta repartição, pela presente licença o autorizo a trans-
portar serviçais nos termos do Regulamento do Trabalho Indígena em
vigor nesta Colónia.
O número dos serviçais que no máximo poderá ser de. . .
Loanda. . . de. . . de. . .
O Chefe do Departamento Marítimo,
(Modelo P)
DEPARTAMENTO MARÍTIMO DA PROVÍNCIA DE ANGOLA
Capitania do Porto de. . .
RESSALVA PELO TRANSPORTE DE SERVIÇAIS
Tendo o Comandante do. . transportado serviçais indígenas de. .
para. . , e tendo verificado por inspecção própria e pelas informações re-
cebidas que o tratamento dado aos serviçais foi . . lhe passe a presente
ressalva.
... de ... de . .
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IX
PROJECTO REGULANDO OS ACIDENTES DO TRABALHO
Art.° 1.° Os agricultores, industriais, comerciantes ou qualquer outro
particular que ao seu serviço empregue trabalhadores indígenas, pagará,
conforme estabelece este diploma, uma indemnização ao trabalhador indí-
gena a que, no desempenho do trabalho a seu cargo ou por causa dele,
sobrevenha acidente de que resulte incapacidade de trabalho temporária
ou permanente.
Art.° 2.° No caso de pelo acidente resultar a morte, será a indemnização
paga aos parentes considerados herdeiros conforme o costume local.
Art.° 3.° O patrão pagará :
1.° Por um acidente de que resulte a incapacidade temporária, uma
indemnização correspondente a um terço da importância dos seus salá-
rios, emquanto essa incapacidade persistir, tomando por base o salário
que o trabalhador percebia à data do acidente;
2.° Por um acidente de que resulte a incapacidade de trabalho perma-
nente, uma pensão vitalícia correspondente a metade do salário que o tra-
balhador percebia à data do acidente;
3.° Por um acidente de que resulte a morte, uma indemnização nunca
inferior a 50100.
Art. 4.° A indemnização a pagar .por acidente de que resulte a morte
será fixada, para cada caso, pela comissão de assistência médica aos indí-
genas e tendo em atenção as circunstâncias em que o caso se deu.
Art. 5.° Das resoluções da comissão de assistência médica aos indí-
genas caberá recurso para o Governador Geral em Conselho do Governo,
por intermédio da Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 6.° O disposto nos n.os 1.° e 2.° do artigo 3.° não dispensa o sus-
tento e o tratamento médico a que por lei os trabalhadores indígenas teem
direito.
Art. 7.° As indemnizações a pagar não poderão ser satisfeitas levando
em conta os adeantamentos feitos aos trabalhadores indígenas.
Art. 8.° Os patrões são obrigados a comunicar à autoridade adminis-
trativa a que pertence o local da prestação do trabalho, todo e qualquer
acidente, logo que êle tenha logar.
Art. 9.° As indemnizações serão pagas por intermédio da autoridade
administrativa, lavrando-se uma acta, que ficará arquivada na secretaria
da administração, circunscrição ou capitania-mór, conforme o caso, e de
DE ANGOLA 711
que se extrairão duas cópias uma para ser entregue ao patrão e outra
para ser enviada à Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 10.° Nenhuma indemnização será devida por acidentes provocados
voluntariamente ou por comprovado estado de embriaguez.
Art.0 11.° As infracções ao disposto neste diploma por parte dos patrões
serão punidas pelas autoridades administrativas com multa de cinco a
vinte escudos.
Art. 12.° O médico, enfermeiro, ou qualquer outro empregado do esta-
belecimento onde se tenha dado um incidente no trabalho, que, não comu-
nicado pelo patrão, não dê dele imediato conhecimento à autoridade admi-
nistrativa, será punido pela mesma com uma multa de cinco a cincoenta
escudos.
Art. 13.° Os administradores de concelho, circunscrição ou capitães-
mores elaborarão mensalmente um mapa. dos acidentes no trabalho,
conforme o modelo junto, e enviá-lo hão para a Secretaria dos Negócios
Indígenas até ao dia 15 de cada mês.
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PROJECTO DO DIPLOMA REGULANDO A REPRESSÃO
DA OCIOSIDADE E VADIAGEM
Art. l.° Os indígenas válidos da província de Angola são moral e legal-
mente sujeitos à obrigação de, por meio. do trabalho, adquirir os meios
de subsistência, e de melhorar sucessivamente a sua condição social.
Art. 2.° Todo o indígena que não cumprir voluntariamente esta obri-
gação, será obrigado a fazê-lo pelas autoridades administrativas.
§ 1.° A escolha do modo de cumprir a obrigação de trabalho é livre
para os maiores de dezoito anos.
§ 2.° Para os menores de 18 anos a escolha de trabalho é feita pelos
pais e na sua falta, por quem sobre eles exerça legalmente tutela.
Art. 3.9 As autoridades administrativas, para imporem a obrigação
legal de trabalho aos indígenas, servir-se hão, pela ordem por que suces-
sivamente devem ser empregados, dos seguintes meios:
1.° Notificar aos indígenas, por editais, bandos, afixações de avisos e
comunicações às autoridades gentílicas, a obrigação a que estão sujeitos;
2.° Chamar à sua presença os remissos, sob custódia, se for preciso,
admoestando-os e emprazando-os a procurar cumprir a obrigação a que
estão sujeitos dentro de um curto período de tempo;
3.° Mandar apresentar os transgressores aos funcionários que dirijam
estabelecimentos ou obras do Estado ou dos Municípios, dentro da área
da sua jurisdição, designando-lhe o tempo por que devem prestar ser-
viço e o salário máximo a perceberem, que será o mínimo porque esteja
em uso, na localidade, pagar idênticos trabalhos;
4.° Distribuir-lhe terrenos, nos termos do Regimen de Concessões de
Terrenos em vigor, impondo-lhe culturas apropriadas, dando-lhe instru-
ções e auxiliando-os, com os meios de que puder dispor, na aquisição de
sementes e venda dos produtos.
§ único. Às autoridades administrativas é expressamente vedado for-
necer trabalhadores indígenas para serviço de particulares.
Art. 4.° A obrigação legal de trabalho julga-se cumprida:
1.° Pelos indígenas que provem, pela certidão de manifesto de capitais,
que possuem capitais cujo rendimento lhes assegure meios de subsistência
para si e suas famílias;
2.° Pelos indígenas proprietários, inscritos como tais na respectiva
matriz, e que vivam dos próprios rendimentos ;
714 POPULAÇÕES INDÍGENAS
3.° Pelos indígenas concessionários de terrenos, nos termos do Regula-
mento de Concessões de Terrenos em vigor, que mostrem ter, persistente-
mente cultivados, dois hectares de terreno por cada chefe de família e
meio hectar por cada membro da mesma;
4.° Pelos indígenas que exerçam qualquer arte, ofício, profissão ou
mister de que tirem licitamente os meios de subsistência e desse modo
procurem trabalhar quotidianamente;
5.° Pelos indígenas que provem estar prestando serviço mediante
pagamento de um salário ou tenham já prestado pelo menos 4 meses em
cada ano ;
6.° Pelos indígenas alistados como soldados ou cipaios.
§ único. Os indígenas compreendidos no n.° 5 deste artigo que não
possuam lavras onde trabalhem, nem habitualmente se entreguem à ex-
ploração e aproveitamento de quaisquer produtos coloniais, para a venda
ao comércio do consumo local ou de exportação, oú não exerçam em
suma, qualquer mister de onde se reconheça que podem tirar os meios
de subsistência, durante os 8 meses restantes, sem viverem à custa do
trabalho das mulheres numa imoral ociosidade, não ficam isentos da obri-
gação de trabalho e para com eles se procederá nos termos do artigo 3.°
Art. 5.° São isentos da obrigação legal de trabalho:
1.° As mulheres;
2.° Os homens de mais de 60 anos ou menores de 14;
3.° Os doentes ou inválidos;
4.° Os sobas, séculos, macotas e similares, como tais reconhecidos
pela autoridade.
§ único. A isenção da obrigação legal de trabalho às mulheres não
prejudica as medidas de repressão que as autoridades possam tomar,
impondo o trabalho e corrigindo aquelas que averiguar levarem uma
vida imoral de ociosidade, entregendo-se à vadiagem ou prostituição.
Art. 6.° Nos cadernos do recenseamento da população registar-se
ha a forma como cada indígena dá cumprimento à obrigação de tra-
balho.
Art. 7.° Todo o indígena é obrigado a munir-se da caderneta de tra-
balho, conforme o modelo junto, fornecida pela autoridade administrativa,
e da qual conste a forma como o indígena anualmente dá cumprimento à
obrigação legal de trabalho ou a razão por que desta obrigação está
isento.
Art. 8.° As cadernetas de trabalho são pessoais, intransmissíveis e
isentas de selo.
Art. 9.° Por cada caderneta de trabalho cobrarão as autoridades admi-
nistrativas o único emolumento de dez centavos.
§ único. O custeio das cadernetas de trabalho sairá deste emolumento.
Art. 10.° Aos administradores de concelho, circunscrição ou capitães-
móres incumbe anualmente:
1.° Lançar na caderneta de trabalho de cada indígena pertencente à
área da aua jurisdição, a forma como deu cumprimento à obrigação legal
de trabalho ou por que dessa obrigação está isento;
2.° Fazer o registo das cadernetas de trabalho;
3.° Lançar no caderno do recenseamento da população a forma por
DE ANGOLA 7ÍÕ
que cada indígena deu cumprimento à obrigação legal de trabalho ou por
que desta fica isento;
4.° Autenticar com a sua assinatura e selo em branco da secretaria a
caderneta de trabalho.
Art. 11.° Aos administradores dos concelhos ou circunscrições civis e
aos capitães-móres compete averiguar a forma como cada indígena da
área das suas jurisdições, dá cumprimento à obrigação de trabalho e
vigiar por que a cumpram, servindo-se, para esse efeito, dos meios ao
seu alcance, e nomeadamente, dos seguintes :
1.° Do registo do manifesto de capitais, da matriz predial, das licenças
para comércio e indústria e do tombo de concessões de terrenos;
2.° Dos cadernos de recenseamento da população e do arrolamento
para a cobrança do imposto de cubata;
3.° Dos registos de contractos de trabalho feitos nos termos dos Regu-
lamentos em vigor;
4.° Das informações dos funcionários e das autoridades gentílicas ;
5.° Da exigência da apresentação da caderneta de trabalho;
6.° Das visitas e rusgas que fizerem ou mandarem fazer às autoridades
que lhes estiverem subordinadas.
Art. 12.° Os indígenas sujeitos à obrigação de trabalho que desobede-
cerem e resistirem à acção suasória indicada no art. 3.°, tornando-a sob
qualquer pretexto ineficaz, serão considerados vadios e como tal detidos
e julgados pelos tribunais indígenas do 2.° grau e condenados na pena de
trabalho correccional até um ano.
Art. 13.° Os indígenas que condenados por vadiagem se evadirem dos
locais em que forem obrigados a trabalhar ou a caminho para esses lo-
gares, os relapsos a quem nos dois últimos anos tenha sido imposta
mais de uma pena por vadiagem, e todos aqueles que, por qualquer
modo, fujam pertinazmente ao cumprimento da sua obrigação de trabalho,
sejam elementos perturbadores e inconvenientes, ou instigadores à deso-
bediência da obrigação de trabalho, será instaurado auto administrativo,
em que deponham 3 testemunhas, e postos à disposição do Governo
Geral, por intermédio da Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 14.° A pena de trabalho correccional, aplicada pelos tribunais in-
dígenas, nos termos do art. 12.°, será cumprida em estabelecimentos
penais ou de correcção especiais para indígenas e sempre que seja pos-
sível no distrito a que pertencem os indígenas.
Art. 15.° Os indígenas postos à disposição do Governo Geral, nos
termos do art. 13.°, serão deportados para outra colónia ou para outro
distrito, sendo neste caso internados em qualquer estabelecimento penal.
Art. 16.° Os patrões que ao seu serviço admitirem trabalhadores indí-
genas e não lhes exigirem a apresentação das suas cadernetas de trabalho,
serão punidos com a multa de 1 a 10 escudos, tendo em atenção para o
seu cômputo, o número de indígenas por que fôr aplicada.
Art. 17.° Todo o indígena que fôr encontrado sem caderneta de tra-
balho, ou possuindo-a não esteja o registo em dia, àlêm do procedimento
com êle a haver nos termos do art. 3.°, será punido com a multa de 1 a
5 escudos.
Art. 18.° Afim de facilitar a execução do n.° 3.° do art. 3.°, os funcio»
46
716
POPULAÇÕES INDÍGENAS
nários, ou empregados encarregados de dirigir as obras e trabalhos do
Estado e dos Municípios, informarão a autoridade administrativa do local
da prestação de trabalho, do número de trabalhadores que necessitam
para os serviços de que estão encarregados.
Art. 19.° Nos concelhos, circunscrições ou capitanias-móres em que
não haja trabalhos do Estado e do Município, ou que o número de indí-
genas a empregar nos termos do n.° 3.° do art. 3.°, fôr superior às neces-
sidades daqueles trabalhos, as autoridades administrativas darão conhe-
cimento ao Governador do Distrito do número de indígenas naquelas
condições, afim de serem empregados em quaisquer outros serviços do
Estado.
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XI
PROJECTO DO REGULAMENTO
DA SECRETARIA DOS NEGÓCIOS INDÍGENAS
DA PROVÍNCIA DE ANGOLA
CAPITULO I
Dos Serviços
Art. l.° À Secretaria dos Negócios Indígenas da Província de Angola,
criada por Decreto n.° 175 de 21 de outubro de 1913, compete tratar àlêm
dos assuntos que por aquele decreto lhe foram incumbidos, todos aqueles
que digam respeito a serviços de Curadoria, incluindo a cobrança e
arrecadação das receitas próprias à emigração dos indígenas, e a todos os
mais que se relacionarem com a política indígena e os negócios indígenas
da Província de Angola.
, Art. 2.° A Secretaria dos Negócios Indígenas divide-se em cinco sec-
ções.
Art. 3.° Compete à l.a secção tratar dos negócios relativos:
1.° Ao recenseamento da população indígena;
2.° Aos estudos etnográficos e codificação dos usos e costumes indí-
genas;
3.° Ao estudo e aproveitamento das instituições indígenas ;
4.° Á justiça indígena;
5.° Á determinação de zonas de território a reservar aos indígenas, às
concessões de terreno a indígenas e a tudo que se relacione com a riqueza
indígena;
6.° Ao movimento do pessoal da Secretaria ou daquele que por
ela transite; ao expediente e registo de entrada e saida da correspon-
dência.
Art. 4.° Compete à 2.a secção tratar dos negócios relativos à regula*
mentação e fiscalização de tudo que se relacione com o trabalho indígena,
ou recrutamento de trabalhadores indígenas e com todos os mais serviços
que digam respeito a assuntos de curadoria, quando o local da prestação
fôr dentro da província.
Art» 5.° Compete à 3.a secção tratar dos negócios relativos:
1«° Á regulamentação e fiscalização de tudo que se relacione com o
DE ANGOLA 719
recrutamento de trabalhadores indígenas para prestação do serviço fora
da província, e com a repatriação destes trabalhadores;
2.° Á fiscalisação e direcção de todos os mais assuntos relativos à
emigração dos indígenas;
Art. 6.° Compete à 4.a secção tratar dos assuntos relativos aos socorros
a prestar aos indígenas, e que principalmente digam respeito:
1.° Promover a assistência médica;
2.° Á alimentação, vestuário, habitação, tratamento médico e tudo que
se relacione com a protecção aos trabalhadores indígenas ;
3.° Aos acidentes de trabalho ;
4.° Á fiscalização do cumprimento das disposições contra o fabrico e
consumo de bebidas alcoólicas pelos indígenas ;
5.° Á instituição de associações de beneficência, de asilos de indígenas
velhos e inválidos, à assistência a indígenas alienados, de colónias penais
e casas de correcção, sua fiscalização e superintendência;
6.° Á fiscalização de modo como se exerce a protecção às mulheres
grávidas e aos recemnascidos;
7.° Á instituição de maternidade;
8.° Ao estudo dos meios para a repressão de práticas indígenas;
9.° Á superintendência no ensino profissional dos indígenas.
Art. 7.° A 5.a secção centraliza a escrituração de toda a contabilidade
da Secretaria dos Negócios Indígenas e como tesouraria faz o movimento
de fundos que lhe tiverem sido entregues, competindo-lhe:
1.° Escriturar, em harmonia com as regras da contabilidade, todas as
receitas relativas a licenças de recrutamento de trabalhadores indígenas,
taxas de contractos e recontractos de prestação de trabalho, e todas as
mais que digam respeito a trabalho indígena para dentro da província e
emigração de trabalhadores indígenas para fora da província, bem assim
as de qualquer natureza que sejam cobradas e arrecadadas pela Secretaria
dos Negócios Indígenas ou por sua ordem ;
2.° Escriturar os bónus de repatriação pertencentes a trabalhadores
indígenas que prestam serviço dentro da província ou daqueles que tendo
emigrado prestem serviço fora dela;
3.° Escriturar todos os depósitos e garantias de pagamento de salários
a trabalhadores indígenas, e de licenças de recrutamento, arrecadadas na
sede da Secretaria ou em qualquer das agências da Curadoria da Pro-
víncia.
4.° Arrecadar todas as receitas da Secretaria a que se referem os
números anteriores classificando-as por distritos e discriminando-as
conforme as espécies de receita ;
5.° Entregar contra recibo assinado pelo Secretário dos Negócios
Indígenas, os fundos arrecadados afim de terem a aplicação estabelecida
pelas leis.
Art. 8.° Incumbe a cada uma das secções :
a) O estudo e preparação de todos os documentos e processos a enviar
ao Ministério das Colónias ou a apresentar ao Governador Geral ou aos
diversos conselhos, respeitantes à política ou assuntos indígenas que lhe
compete tratar nos termos deste Regulamento.
b) A fiscalização, regulamentação estatística de todos os actos da vida
720 POPULAÇÕES INDÍGENAS
civil dos indígenas da província, ou que nela residam ou transitam que
lhe competir tratar nos termos deste regulamento.
CAPÍTULO II
Do Pessoal .
Art. 9.° O pessoal da Secretaria dos Negócios Indígenas compõe-se de:
1 Secretário dos Negócios Indígenas;
1 Intendente do serviço de emigração;
1 Oficial;
1 Chefe da secção de contabilidade;
2 l.08 Amanuenses; '
9 2.0S Amanuenses;
2 Intérpretes;
1 Contínuo ;
1 Servente.
§ único. O pessoal da Secretaria dos Negócios Indígenas constitue um
quadro privativo e os seus vencimentos são os constantes da tabela
anexa a este regulamento e que dele fazem parte integrante.
Art. 10.° O Secretário dos Negócios Indígenas a cargo de quem fica a
Secretaria dos Negócios Indígenas, pertencerá ao Conselho do Governo e
superintende sobre todos os serviços dos Negócios Indígenas, terá a
categoria de Chefe de Serviço Provincial, despachando nessa qualidade,
directamente com o Governador Geral, competindo-lhe:
I.° Corresponder-se directamente, em nome do Governador Geral,
com todas as autoridades da província e com os Governadores das outras
colónias;
2.° Receber e expedir directamente, em nome do Governador Geral,
em objecto da sua competência, para os demais chefes do serviço pro-
vincial, para os Governadores do distrito e administradores do distrito
de Loanda, as ordens e instruções necessárias para a execução dos res-
pectivos serviços ;
3.° Expedir directamente para os agentes do curador as ordens e
instruções que, sobre os serviços da curadoria, entender conveniente
para a execução dos mesmos serviços;
4.° Instruir, documentar e informar todos os processos que corram
pela Secretaria dos Negócios Indígenas;
5.° Estudar, tratar, dirigir, executar e fazer executar todos os assuntos
e serviços mencionados no Capítulo I deste regulamento e propor o que
julgar conveniente à melhoria das condições de vida dos indígenas da
província ;
6.° Exercer as funções de Curador Geral;
7.° Na parte relativa aos serviços de contabilidade:
a) Fiscalisar a escrituração do serviço de contabilidade;
b) Assistir aos balanços da tesouraria, e inspeccionar sempre que o
entenda por conveniente, os fundos e documentos que à data existam
em cofre ;
c) Assinar todos os documentos ou guias de entrega ou saida de
DE ANGOLA 721
fundos da tesouraria, bem assim como os depósitos ou levantamentos na
Filial do Banco Nacional Ultramarino;
d) Determinar as necessárias transferências de fundos.
8.° Publicar o relatório anual dos serviços a seu cargo; -
9.° Dirigir e inspeccionar os serviços da Secretaria, propondo ao Go-
vernador Geral as providências que lhe pareçam necessárias e adquadas
ao serviço;
10.° Manter a ordem e fazer executar as disposições do regulamento
relativas ao regimen, serviço e polícia interna da Secretaria admoestando
os empregados e repreendê-loá quando for necessário e suspendê-los até
15 dias, dando imediatamente parte ao Governador Geral.
Art. 11.° Na falta ou impedimento do Secretário dos Negócios Indígenas
serão as funções deste cargo desempenhadas pelo intendente do serviço
de emigração. . -
Art. 12.° Compete ao intendente do serviço de emigração:
1.° Dirigir o expediente da secção de emigração dos indígenas, exa-
minando e fiscalizando todos os trabalhos a seu cargo;
2.° Coadjuvar o Secretário dos Negócios Indígenas nos assuntos da
sua secção, e atender sempre à boa execução dos demais trabalhos que
este lhe distribuir;
3.° Desempenhar as funções do Secretário dos Negócios Indígenas na
falta ou impedimento deste funcionário.
Art. 13.° Compete ao oficial:
1.° Dirigir o expediente da l.a secção, examinando e fiscalizando todos
os trabalhos a seu cargo ;
2.° Coadjuvar o Secretário dos Negócios Indígenas nos assuntos da sua
secção e atender à boa execução dos demais trabalhos que este lhe distribuir;
3.° Desempenhar as funções de arquivista da Secretaria.
Art. 14.° Compete ao chefe da contabilidade:
1.° Dirigir o expediente da secção de contabilidade e tesouraria exa-
minando e fiscalizando todos os trabalhos a seu cargo;
2.° As funções de tesoureiro da Secretaria, ficando por tal exercício
sujeito ao cumprimento das obrigações e responsabilidades em vigor,
aplicáveis aos exactores da Fazenda Pública;
3." Responsabilidade pelos fundos que arrecadar, e que derem entrada
no cofre da tesouraria, dos quais só poderá dispor em face de documentos
ou guias autorizadas pelo Governador Geral, e assinadas pelo Secretário
dos Negócios Indígenas;
4.° Arrecadar todas as receitas que lhe forem apresentadas, passando
recibo das importâncias entregues;
5.° Providenciar, sob sua inteira responsabilidade para que todos os
valores existentes no cofre sejam diariamente depositados na Filial do
Banco Nacional Ultramarino ;
6.° Proceder ao balanço diário do cofre da tesouraria;
7.° Elaborar os balancetes mensais do movimento de contabilidade da
secção;
8.° Apresentar, sempre que pelo Secretário dos Negócios Indígenas
lhe fôr exigido, os fundos e documentos que nesse acto devem existir em
seu poder;
722 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 15.° Compete aos l.os amanuenses:
1.° Encarregar-seda secção que pelo Secretário dos Negócios Indígenas
lhe £ôr distribuída;
2.° Coadjuvar o Secretário nos assuntos da sua secção e atender sempre
à boa execução dos demais trabalhos que este lhe distribuir.
Art. 16.° Compete aos 2.0S amanuenses: -
í.° Dar entrada à correspondência que não fôr de natureza confidencial
e passar a limpo a que tiver sido expedida;
2.° Ter em dia os registos de que estiver encarregado ;
3.° Desempenhar com presteza e asseio os serviços de escrituração que
pelo Secretário dos Negócios Indígenas ou chefe da secção a que pertencer
lhe forem distribuídos ;
4.° Desempenhar quaisquer outros trabalhos da Secretaria que lhe
forem cometidos pelo Secretário e que sejam compatíveis com as suas
habilitações.
Art. 17.° Compete aos intérpretes:
1.° Desempenhar as funções de intérprete na Secretaria quer na sede
desta, quer fora dela acompanhando o Secretário dos Negócios Indígenas;
2.° Desempenhar quaisquer outros trabalhos da Secretaria que lhe
forem cometidos pelo Secretário que sejam compatíveis com as suas
habilitações.
Art. 18.° Compete aos contínuos :
1.° Abrir todos os dias a Secretaria às horas que forem determinadas
fazendo a limpeza a toda a mobília e utensílios de serviço, conservando-os
em boa ordem e fechá-la quando superiormente lhe fôr ordenado;
2.° Evitar que sejam por qualquer forma desviados do serviço próprio
quaisquer artigos da Secretaria, verificando amiudadas vezes o seu número
e dando conhecimento das faltas que encontrar;
3.° Anunciar a presença das pessoas que pretenderem falar a qualquer
empregado ou tratar de qualquer pretenção;
4.° Coadjuvar o serviço da expedição de malas para o correio;
5.° Executar tudo o mais que lhe fôr ordenado pelo Secretário dos
Negócios Indígenas ou pelos funcionários da Secretaria, e seja relativo ao
serviço a seu cargo.
Art. 19.° Compete aos serventes :
1.° Fazer a limpeza da Secretaria;
2.° Executar todos os mais serviços que lhe forem ordenados.
Art. 20.° Salvo o disposto nos artigos anteriores, a distribuição ,do
pessoal da Secretaria dos Negócios Indígenas pelas cinco secções será
feita por aquele funcionário, tendo em vista as suas habilitações, aptidões
e as necessidades e conveniências do serviço.
Art. 21.° A nomeação para o cargo de Secretário dos Negócios Indí-
genas e Intendente dos serviços de emigração é da competência do
Governo da Metrópole e só poderá recair a indivíduos de provada com-
petência, com conhecimento dos usos e costumes e línguas indígenas, e
devendo para a nomeação daquele funcionário ser exigido um curso
superior, tendo preferência para qualquer dos cargos os diplomados com
o curso da Escola Colonial.
Art. 22.° O chefe da secção de contabilidade será um Guarda-livros
DE ANGOLA 723
diplomado, nomeado pelo Governo da Metrópole mediante concurso
documental.
Art. 23.° Os Jogares de oficial e primeiros amanuenses serão providos
provisoriamente por antiguidade, respectivamente entre os primeiros e
segundos amanuenses e confirmados depois de um ano de exercício 'com
boas informações. Os logares de segundos amanuenses serão por con-
curso de provas públicas, conforme o estabelecido no art. 26.°
Art. 24.° O logar de contínuo é provido por concurso documental para
que se exigirá:
1.° Certidão de exame de 1.° grau;
2.° Certidão do registo criminal;
3.° Certidão de bom comportamento passada pela autoridade adminis-
trativa da residência dos últimos 12 meses.
Art. 25.° A nomeação dos intérpretes e serventes é da exclusiva com-
petência do Secretário dos Negócios Indígenas,
Art. 26.° As provas do concurso para os logares de segundos ama-
nuenses serão escritas e orais e versarão sobre os assuntos e negócios
que corram pela Secretaria e sobre as línguas indígenas Kimbundo e
Umbundo.
§ 1.° As provas escritas na parte relativa às línguas indígenas cons-
tarão :
1.° Tradução da língua indígena para a portuguesa;
2.° Tema;
3.° Redacção em língua indígena.
§ 2.° As provas orais constarão na parte relativa a línguas indígenas:
1.° Leitura e tradução em voz alta de um texto da língua indígena;
2.° Tradução e explicação em língua indígena de um texto em por-
tuguês;
3.° Conversação em língua indígena, do candidato, primeiro com o
examinador e depois com um indígena que não conheça o português;
4.° Conversação de um examinador falando português, com o indígena
falando em língua indígena, servindo o candidato de intérprete.
Art. 27.° O júri para os concursos será composto pelo Secretário dos
Negócios Indígenas, servindo de presidente o intendente do serviço de
emigração e outro funcionário nomeado pelo Governador Geral, conhe-
cedor das línguas indígenas.
Art. 28.° Aos funcionários da Secretaria dos Negócios Indígenas são
aplicáveis as seguintes penas disciplinares:
1.° Repreensão verbal ou registada;
2.° Suspensão de exercício e vencimento;
3.° Demissão.
Art. 29.° São causas de repreensão as faltas leves cometidas em
serviço.
Art. 30.° São causas de suspensão:
1.° A negligência ou qualquer outro motivo culposo pelo qual o em-
pregado falte ao cumprimento dos seus deveres, depois de repreendido;
2.° A desobediência às ordens superiores em objecto de serviço;
3.° A pronúncia passada em julgado.
§ único. A suspensão nunca será inferior ao tempo quo decorrer desde
724 POPULAÇÕES INDÍGENAS
a pronúncia até ao julgamento definitivo ao tempo da duração da pena
em que o réu foi condenado.
Art. 31.° Nos casos dos n.08 1.° e 2.° do artigo antecedente a suspensão
poderá ser imposta pelo Secretário dos Negócios Indígenas até 15 dias
dando imediatamente parte ao Governador Geral, que poderá levantar a
suspensão.
Art. 32.° A suspensão tem por efeito privar o funcionário não só do
exercício do seu emprego, mas também de metade do de categoria.
Art. 33.° Ao funcionário que tiver sido suspenso por virtude de pro-
núncia serão restituidos todos os vencimentos se fôr absolvido.
§ único. Esta disposição aplica-se aos funcionários suspensos para
efeito de sindicância, a quem seja levantada a suspensão.
Art. 34.° São causas de demissão :
1.° A revelação dos segredos da Secretaria e o abuso de confiança em
matéria de serviço público, devidamente comprovada;
2.° A aceitação ou participação de lucros provenientes do andamento
e resolução dos negócios dependentes da Secretaria;
3.° A impossibilidade permanente, física ou moral, de exercer o em-
prego quando o funcionário não estiver em circunstâncias de ser apo-
sentado;
4.° O abandono de serviço, considerando-se como tal o número de
faltas não justificadas superior ao terço dos dias úteis em cada ano;
5.° A condenação por crime a que caiba pena maior, e ainda conde-
nação nos crimes de suborno, peculato, concussão, falsidade, moeda falsa,
furto, burla, roubo e abuso de confiança, quando lhes caiba pena correc-
cional.
Art. 35.° A suspensão por mais de 15 dias, e a demissão em todos os
casos só podem ser impostas pelo Governador Geral ou pelo Governo da
Metrópole segundo a respectiva competência, excepto quanto ao servente
e intérpretes que podem ser demitidos pelo Secretário dos Negócios In-
dígenas.
Art. 36.° É expressamente proibido aos funcionários da Secretaria dos
Negócios Indígenas:
a) Receber presentes de qualquer espécie ou remuneração directa ou
1ndirecta dos agentes de recrutamento ou de pessoa que tenha ao seu
serviço trabalhadores indígenas;
b) Ser agentes de recrutamento de trabalhadores indígenas ou em-
pregar-se em qualquer agência desta natureza;
c) Serem interessados em sociedades agrícolas, industriais ou comer-
ciais ou fazer parte de qualquer sindicato, sociedade ou companhia dentro
da província ;
d) Tomar parte em manifestações colectivas ou nelas cooperar sem
autorização superior.
CAPÍTULO III
Do tempo de serviço
Art. 37.° O horário de serviço será fixado pelo Governador Geral.
§ 1.° O contínuo e os serventes devem comparecer sempre na Secre-
taria meia hora antes da fixada para o começo do trabalho;
DE ANGOLA 725
§ 2.° Chegada a hora de saida, nenhum empregado poderá retirar ou
deixar o trabalho sem que o Secretário dos Negócios Indígenas dê como
terminado ou interrompido o serviço daquele dia ou sem prévia permissão
do mesmo Secretário.
Art. 38.° Os empregados da Secretaria assinam, logo que entram, o
livro do ponto.
§ único. Um quarto de hora depois da marcada para a entrada dos
empregados é encerrado o ponto pelo Intendente de emigração e colocado
sobre a mesa do Secretário dos Negócios Indígenas, para êle o verificar.
CAPÍTULO IV
Da ordem e processo de serviço
Art. 39.° Na Secretaria dos Negócios Indígenas haverá, àlêm do livro
do ponto já mencionado, os de entrada, de cópia e de saida de correspon-
dência, da porta, de registo e ordens, resoluções e arquivo.
Art. 40.° Todos os assuntos e papeis afectos à Secretaria serão extra-
tados no livro de entrada, em que se anotará todo o andamento que lhes
fôr dado até final resolução.
§ l.°*0 livro de entrada tem um índice alfabético, em que se farão
referências aos números dos negócios, por assuntos e nomes dos indiví-
duos, autoridades e corporações que neles figurar.
§ 2.° Nos diversos papeis que tenham números diferentes, mas que
tenham alguma ligação com o mesmo assunto, devem fazer-se referências
mútuas pelos números.
Art. 41.° Todos os documentos e informações relativos ao mesmo as-
sunto são anotados com o número que esse assunto tiver no livro de
entrada sempre que seja possível, e andam reunidos, emquanto durar o
expediente, assim como quando são guardados e arquivados.
Art. 42.° Todos os papeis atinentes ao mesmo assunto constituirão
processo, que, depois de findos serão guardados nó arquivo e classifi-
cados em harmonia com a divisão da Secretaria.
Art. 43.° Os requerimentos são datados, assinados e escritos em papel
selado, nos termos da lei do selo em vigor,
Art. 44.° Em nenhuma representação, informação, ofício ou nota pode
tratar-se mais de um assunto.
Art. 45.° As representações e requerimentos dirigidos ao Governo Geral
não se restituem às partes, todavia podem delas tirar certidões, assim
como dos despachos que a seu respeito tiverem sido deferidos.
§ 1.° Exceptuam-se os requerimentos em que se pedem certidões, os
quais se entregam aos requerentes com as certidões nelas exaradas.
§ 2.° No caso de indeferimento ou de desistência da pretensão, resti-
tuem-se todos os documentos, sendo a entrega feita por termo no pro-
cesso.
§ 3.° No caso de deferimento da pretensão, os documentos serão res-
tituídos nos casos seguintes:
1.° Ficando cópia deles autêntica no processo;
2.° Quando apresentados conjuntamente com públicas formas, ficando
essas no processo;
726 POPULAÇÕES INDÍGENAS
§ 4.° Em qualquer das hipóteses do § anterior, lavrar-se há sempre
no processo termo da entrega dos documentos, e neles se consignará,
quando fiquem apenas públicas formas, obrigação do requerente ou seu
procurador de apresentar os originais logo que lhe for exigido.
Art. 46.° Não se darão certidões de requerimentos que não sejam
pedidas pelos signatários ou procuradores.
Vencimentos do pessoal do quadro da Secretaria dos Negócios Indí-
genas:
Secretario dos Negócios Indígenas:
Vencimento de categoria -$-
Vencimento de exercício -$-
Intendente de Emigração:
Vencimento de categoria . . , 700$00
Vencimento de exercício . 2.500$00
3.200100
Oficial :
Vencimento de categoria m 500100
Vencimento de exercício 1.300$00
1.800100
Chefe da Secção de Contabilidade :
Vencimento de categoria 500100
Vencimento de exercício 1.900$00
2.400100
1.° Amanuense:
Vencimento de categoria 300$00
Vencimento de exercício 660$00
960$00
2.° Amanuense:
Vencimento de categoria 240100
Vencimento de exercício 600100
840100
Intérprete:
Gratificação de 360fô00
Contínuo e servente, os vencimentos fixados para idênticos cargos do
quadro do pessoal da Secretaria Geral.
Ajudas de custo ao Secretário dos Negócios Indígenas, quando em
serviço fora da sede, durante o prazo máximo de 180 dias a 5$00 diários.
Expediente, impressos e despezas miúdas da Secretaria e das
agências da Curadoria 1.500100
XII
PROJECTO
DA INSTITUIÇÃO DE UM MUSEU ETNOGRÁFICO
Art. l.° É instituído na cidade de Loanda e junto da Secretaria dos
Negócios Indígenas um Museu que se denominará <- Museu Etnográfico
de Loanda».
Art. 2.° O Museu fica directamente subordinado ao Secretário dos
Negócios Indígenas que será o Director.
Art. 3.° Àlêm do Director, será o pessoal do Museu Etnográfico
constituído por um conservador e um contínuo.
Art. 4.° O Conservador do Museu será um funcionário da Secretaria
dos Negócios Indígenas nomeado pelo Governador Geral sob proposta
do Secretário dos Negócios Indígenas e terá uma gratificação anual
de 600$00.
Art. 5.° O contínuo será equiparado para todos os efeitos ao da Secre-
taria dos Negócios Indígenas.
Art. 6.° Para custear os vencimentos do pessoal, conservação e outras
despezas do Museu será este dotado com a verba de 5.000S00.
Art. 7.° O Governador Geral, sob proposta do Secretário dos Negócios
Indígenas, elaborará o Regulamento interno do Museu Etnográfico.
XIII
PROJECTO SOBRE A EMISSÃO DE LOTERIAS
Art. l.° É proibida, na província de Angola, a venda:
1.° Da loteria nacional portuguesa;
2.° De loterias estrangeiras;
3.° De quaisquer rifas ou cautelas cuja extracção se regule pelas
mesmas loterias.
Art. 2.° Fica autorizada a emissão até quatro loterias em cada ano, de
harmonia com os planos que forem previamente aprovados pelo Governo
Geral, sendo o produto líquido, depois de pagas todas as despezas,
incluída a de pessoal empregado na sua realização, lançado em conta
especial e aplicado à protecção e assistência indígena.
Art. 3.° A emissão da loteria correrá pela Secretaria dos Negócios
Indígenas.
Art. 4.° Aqueles que negociarem bilhetes ou os distribuírem, ou que
por qualquer meio de publicidade tiverem feito conhecer a existência de
uma loteria proibida por este diploma, ou facilitarem a emissão ou
distribuição dos bilhetes, serão punidos nos termos dos art. 270.° e 271.°
do Código Penal.
XIV
PROJECTO SOBRE A CRIAÇÃO DUM FUNDO ESPECIAL
PARA SER APLICADO
Á PROTECÇÃO E ASSISTÊNCIA INDÍGENA
Art. l.° É instituído na província de Angola um fundo de protecção e
assistência aos indígenas.
Art. 2.° O fundo a que se refere o artigo anterior é constituído pelas
receitas líquidas:
l.° Das loterias autorizadas pelo Governo Geral nos termos do diploma
que regula este assunto;
2.° Das importâncias que constituem o bónus de repatriação dos
trabalhadores indígenas contratados para dentro e fora da província,
que faleceram durante a constância do contracto ou antes do pagamento
do respectivo bónus, quando os herdeiros os não reclamem dentro do
prazo estabelecido por lei ;
3.° Das receitas que por leis ou determinações superiores, sejam
destinadas ao mesmo fim;
4.° De subsídios de particulares.
Art. 3.° O fundo de protecção e assistência aos indígenas é arrecadado
e escriturado na secção de tesouraria e contabilidade da Secretaria dos
Negócios Indígenas.
Art. 4.° No fim de cada ano civil serão as importâncias arrecadadas
durante o ano e que constituem o fundo, postas à disposição do Gover-
nador Geral, para, segundo o seu prudente arbítrio, terem a aplicação a
que se refere este diploma.
Art. 5.° O fundo de protecção e assistência aos indígenas reverterá a
favor :
1.° Das colónias de correcção;
2.° Das tutorias de infância;
3.° Dos asilos de velhos e inválidos;
4.° De prémios de natalidade a indígenas;
5.° De quaisquer despezas eventuais de protecção e socorro aos indí-
genas.
XV
PROJECTO SOBRE A INSTITUIÇÃO DE PRÉMIOS
DE NATALIDADE A INDÍGENAS
Art. l.° São instituídos prémios de natalidade destinados a fomentar
o aumento da população indígena e a moralização dos seus costumes.
Art. 2.° Estes prémios serão concedidos às mulheres indígenas casadas
nos termos do Registo do Estado Civil dos Indígenas que provem ter
cinco ou mais filhos vivos do marido e devidamente registados.
Art. 3.° O número de prémios a distribuir cada ano e a importância de
cada um, nunca inferior a 3 $00 nem superior a 10$00, será anualmente
fixada de harmonia com a verba que do fundo de protecção e assistência
a indígenas fôr distribuído para este fim.
Art. 4.° A distribuição de prémios será feita com equidade por todos
os distritos e em cada um terão preferência as concorrentes que tiverem
maior número de filhos.
Art. 5.° Ás indígenas uma vez premiadas não poderá ser distribuído
novo prémio, salvo quando tendo passado 5 anos provem ter aumentado
a sua prole com mais dois filhos.
Art. 6.° Para concorrer à distribuição dos prémios basta que as
interessadas se habilitem com um ou mais atestados de funcionários do
registo civil em que comprovem estar nas condições do n.° 2.° deste
diploma o qual será devidamente informado e remetido à Secretaria dos
Negócios Indígenas pelo Administrador ou capitão-mór respectivo.
Art. 7.° Dos atestados é indispensável constar o nome, naturalidade e
residência da concorrente e do marido, a data do registo do seu casamento,
e o nome, idade e data do registo do nascimento dos filhos, devendo ser
passados gratuitamente em papel comum e isentos de qualquer selo.
Art. 8.° A entrega dos prémios será feita por intermédio da autoridade
administrativa competente.
XVI
PROJECTO PARA O ESTABELECIMENTO DE TUTORIAS
DE MENORES INDÍGENAS
Art. l.° Com os fins de evitar, nos centros de população civilizada, a
exibição da miséria moral e material dos menores indígenas a que se
refere o art. 24.° e § único do Código de Justiça Indígena, de procurar
corrigir e regenerar quanto possível os delinquentes e viciosos e ainda
de tornar efectiva e profícua a protecção aos abandonados, são criados
na província de Angola internatos de repressão e de protecção a menores
que se denominarão «Tutorias de Menores Indígenas».
Art. 2.° São desde já criadas duas Tutorias de Menores Indígenas
devendo instalar-se uma na cidade de Loanda e outra na de Benguela.
Art. 3.° Quando as circunstâncias o aconselhem o Governador Geral
poderá instalar outras Tutorias nos centros de maior população europeia
e assimilada.
Art. 4.° A instalação dos internatos será feita em edifícios do Estado
expressamente construídos para este fim, podendo, provisoriamente,
instalar-se em qualquer edifício do Estado que para isso possa apro-
priar-se.
§ único. Anexo ao internato deverá haver um vasto campo onde possa
ser ministrado o ensino de trabalhos agrícolas, aos menores.
Art. 5.° Nos termos do art. l.° devem ser inscritos sob a vigilância e
protecção das Tutorias de Menores Indígenas, todos os menores de
16 anos, órfãos ou abandonados, ou que se encontrem em perigo moral,
e recolhidos aos internatos, os delinquentes, e todos aqueles a quem por
outra forma eficaz não possa prestar-se auxílio e protecção.
Art. 6.° Nas Tutorias estabelecer-se hão divisões separadas, para cada
um dos sexos, dos maiores de cinco anos, e uma divisão especial e única,
denominada «Creche da Tutoria», em que se reunirão todos os menores
de cinco anos.
Art. 7.° A inscrição dos menores, conforme as circunstâncias que a
motivarem, será feita sob as seguintes designações:
a) Órfãos;
b) Abandonados;
c) Em perigo moral;
d) Delinquentes.
l.° Sob a designação de órfãos serão inscritos os órfãos de pai
47
732 POPULAÇÕES INDÍGENAS
e mãe que não tenham parentes conhecidos, ou que tendo-os sejam inca-
pazes.
2.° A designação de abandonados compreende os que embora tenham
um ou ambos os progenitores vivos ignorem a sua residência e se encon-
trem sem a natural protecção dos avós, tios ou irmãos.
H.° A designação em perigo moral abrange todos os que sejam reti-
rados de sob o domínio dos pais ou parentes por se considerar insuficiente
ou defeituosa a capacidade educadora daquelas pessoas.
4.° Sob a designação de delinquentes serão inscritos todos os menores
que em consequência de terem praticado qualquer acto criminoso sejam
internados nas Tutorias.
Art. 8.° Em cada uma das divisões, dos maiores de cinco anos, far-se
ha a separação dos menores em duas classes, segundo o seu carácter
moral e comportamento, e, dentro destas, a distribuição em grupos con-
forme as idades.
Art. 9.° Para a primeira classe serão seleccionados todos os menores
que, revelando boa índole, não estejam ainda prevertidos ou se tenham
regenerado e mostrem que são susceptíveis de se educar dentro de um
regimen de simples assistência e protecção moral.
Art. 10.° Na segunda classe serão incluídos todos os que, pelos seus
antecedentes, índole viciosa ou má conduta dentro da instituição, devam
sujeitar-se a um regimen mais severo.
Art. 11.° Aos menores internados nas Tutorias será fornecida alimen-
tação e vestuário que deve ser uniforme para cada um dos sexos.
§ único. Como estímulo ao bom comportamento e à regeneração moral
dos menores, poderão ser distribuídos uniformes de cores ou talhes
diversos a cada uma das duas classes, e ainda distintivos aos que, dentro
da sua classe, melhor se conduzirem.
Art. 12.° Nas Tutorias é obrigatória a educação literária e profissional
dos menores, orientando-se a mesma educação sob um carácter morali-
zador, utilitário e prático, de molde a criar no espírito dos menores o
amor pelo trabalho e pela economia, fazendo deles uns bons operários, e
nunca futuros ociosos pretenciosa e defeituosamente assimilados à civili-
zação europeia.
Art. 13.° A educação literária será restricta ao ensino da língua por-
tuguesa com leitura e escrita, ao das quatro operações ariméticas e ao
conhecimento de sistema de pesos e medidas.
Art. 14.° A educação profissional abrangerá o ensino de qualquer arte
ou ofício e o de trabalhos agrícolas e domésticos.
Art. 15.° O ensino profissional poderá ser ministrado nas oficinas e
campos anexos às Tutorias ou em quaisquer outros estabelecimentos
fabris ou agrícolas explorados pelo Estado.
§ único. Excepcionalmente poderá permitir-se que os menores apren-
dam qualquer arte ou ofício em oficinas particulares.
Art. 16.° Aos menores compreendidos na primeira classe nos termos
do art. 9.° poderá ser permitida a saída temporária das Tutorias para se
empregarem em estabelecimentos do Estado ou em qualquer oficina ou
casa particular, prestando serviços domésticos ou agrícolas.
-§ único. Compete ao curador geral, ou ao seu agente que dirigir uma
DE ANGOLA 733
Tutoria, autorisar a saída dos menores nas condições deste artigo, me-
diante termo de depósito e de responsabilidade, assinado pelo director
do estabelecimento do Estado ou particular que tomar a seu cargo o
menor, em conformidade com o disposto nos artt. 26.° e 27.° do Código
de Justiça Indígena.
Art. 17.° Os menores compreendidos na segunda classe, a que se refere
o art. 10.°, só poderão prestar qualquer serviço, fora do internato, em
estabelecimentos do Estado e sob vigilância, devendo regressar, no fim
de cada dia de trabalho, à Tutoria em que estiverem internados.
Art. 18.° Os directores dos estabelecimentos do Estado ou os particu-
lares que tenham ao seu serviço menores, inscritos sob a vigilância e
protecção das Tutorias, ficam obrigados a fazer um desconto de 20 %
nos seus salários, que será depositado, em conta corrente do menor, na
Caixa Económica da Tutoria em que este estiver inscrito.
Art. 19.° Os salários vencidos pelos menores, pelo trabalho prestado
nos termos do art. 17.°, reverterá em favor da Tutoria, salvo a percen-
tagem de 10 %> que será depositada em conta do menor, nos termos do
artigo anterior.
Art. 20.° A importância acumulada na Caixa Económica, em conta de
cada menor, ser-lhe há entregue quando atingir a maioridade.
Art. 21.° As quantias em depósito na Caixa Económica dos menores
que falecerem ou desaparecerem sem que deles haja notícias durante dois
anos, reverterão em favor da instituição onde serão especialmente apli-
cadas em reforço das verbas com que fôr dotada a creche.
§ único. Dos depósitos dos falecidos deduzir-se há a importância gasta
com o funeral.
Art. 22.° As Tutorias de Menores Indígenas ficam sob a superinten-
dência da Secretaria dos Negócios Indígenas e Curadoria dos Serviçais,
competindo ao Curador Geral a direcção imediata da de Loanda e ao seu
agente em Benguela a desta cidade.
Art. 23.° Para cada Tutoria serão nomeados um regente e uma regente
encarregados do funcionamento interno da instituição, competindo-lhes
respectivamente a regência da divisão masculina e da divisão feminina.
Art. 24.° A nomeação dos regentes será feita por concurso em que
terão preferência os professores de instrução primária legalmente habi-
litados.
Art. 25.° Os' regentes das Tutorias percebem os vencimentos consi-
gnados na tabela anexa ao regulamento interno das Tutorias, gozam dos
mesmos direitos e regalias concedidos aos professores de instrução pri-
mária regendo escolas do Estado e teem direito a moradia gratuita em
dependências do internato.
§ único. É obrigatória a residência dos regentes no edifício do internato.
Art. 26.° São obrigações dos regentes das Tutorias de Menores Indí-
genas :
1.° Fazer a inscrição dos menores nos termos dos artt. 5.° e 7.°
2.° Distribuir os menores pelos respectivos grupos e propor o seu
trânsito de uma para outra classe.
3.° Organizar o registo biográfico de todos os menores sob a vigilância
e protecção da Tutoria.
?34 POPULAÇÕES INDÍGENAS
4.° Manter a ordem e disciplina entre os menores da sua divisão.
5.° Ministrar o ensino literário aos menores da sua divisão.
6.° Distribuir e dirigir a execução de todos os serviços do estabeleci-
mento de harmonia com as disposições do regulamento e instruções do
director.
7.° Desempenhar as funções de ecónomos.
8.° Ter à sua responsabilidade toda a escrituração da Tutoria.
Art. 27.° Junto de cada Tutoria funcionará um Conselho de Adminis-
tração e Disciplina;
§ 1.° Este Conselho na Tutoria de Loanda será composto:
Do Curador Geral, presidente;
Do Inspector dos Serviços de Agricultura;
Do Delegado do Procurador *la República ou do Conservador do Re-
gisto Predial da comarca de Loanda, à escolha do Governador Geral;
Do Administrador do Concelho de Loanda;
De um vereador da Câmara Municipal escolhido pelo Governador
Geral.
§ 2.° O Conselho de Administração e Disciplina da Tutoria de Benguela
será composto:
Do Agente do Curador Geral, presidente;
Do Delegado do Procurador da República ou do Conservador do Re-
gisto Predial da comarca de Benguela, à escolha do Governador Geral;
Do Delegado de Saúde do concelho de Benguela;
Do agrónomo ou regente agrícola chefe dos serviços de agricultura do
distrito ;
De um vereador da Câmara Municipal escolhido pelo Governador
Geral.
Art. 28.° Compete ao Conselho Administrativo e Disciplinar:
1.° Administrar autonomamente os fundos da Tutoria arrecadando as
receitas e ordenando as despezas;
2.° Admitir por contracto ou assalariado todo o pessoal que for neces-
sário para auxiliar os regentes na execução de todos os serviços da Tu-
toria e despedi-lo quando entender conveniente, respeitando as condições
dos contractos.
3.° Propor ao Governador Geral as alterações que julgar conveniente
introduzir no regulamento interno da Tutoria.
4.° Deliberar sobre a selecção dos menores para as duas classes a que
se referem os artt. 9.° e 10.° e sobre o trânsito de uma para outra.
5.° Conceder prémios ou distintivos aos internados que «e distingui-
rem pelo seu bom comportamento.
6.° Julgar e punir, paternalmente, pelos princípios da equidade e da
justiça, os delitos e faltas cometidos por todos os menores inscritos sob
a vigilância e protecção da Tutoria, salvo quando aos factos praticados
corresponda a pena de degredo na legislação penal indígena, entregando
neste caso os menores aos tribunais competentes.
Art. 29.° Constitue receita das Tutorias de Menores Indígenas:
1.° A verba que do fundo de protecção e assistência fôr anualmente
distribuída ;
2,° O subsídio que lhe fôr consignado lio orçamento da colónia;
DE ANGOLA 735
3.° O produto de quaisquer donativos que lhes sejam feitos;
4.° O rendimento dos produtos agrícolas ou dos trabalhos executados
nas oficinas das Tutorias.
Art. 30.° O Conselho de Administração e Disciplina da Tutoria de
Loanda dentro do prazo de 90 dias elaborará e apresentará ao Gover-
nador Geral, para aprovação deste, o regulamento interno das Tutorias,
dentro dos princípios estabelecidos neste diploma.
XVII
PROJECTO SOBRE O ENSINO PROFISSIONAL
Art. 1.° É instituído na província de Angola, o ensino profissional para
os indígenas dos dois sexos.
Art. 2.° Fica o Governador Geral autorizado a estabelecer junt@ de
cada concelho, Circunscrição Civil e Capitania-mór, escolas profissionais
ou simplesmente escolas-oficinas, nos termos deste projecto.
§ único. O Governador Geral só estabelecerá uma escola quando tenha
garantido o seu funcionamento pelas verbas que constituem receita da
respectiva escola e em que o subsídio do Estado não ultrapasse o estabe-
lecido por este projecto.
Art. 3.° O ensino é absolutamente gratuito.
Art. 4.° A admissão dos alunos far-se ha em qualquer época do ano,
bastando para isso uma declaração escrita ou verbal, feito pelos pais ou
tutores perante o presidente do conselho escolar e provar-se, sem dis-
pêndio para o aluno:
a) Ter mais de nove anos e menos de quatorze;
b) Não ter doença contagiosa ;
c) Ter suficiente robustez física.
Art. 5.° É condição de preferência para a admissão o ser órfão de pai
e mãe ou de pai ou de mãe.
Art. 6.° Nas escolas profissionais ou escolas-oficinas ministrar-se ha:
1.° O ensino de uma profissão manual;
2.° A instrução literária rudimentar;
3.° A instrução moral e cívica;
4.° A cultura e desenvolvimento físico.
Art. 7.° O ensino profissional destinado a indígenas do sexo masculino
será dividido pelos seguintes ofícios:
a) De serralheiro ;
b) De marceneiro;
c) De carpinteiro;
d) De pedreiro;
e) De funileiro;
/) De alfaiate;
g) De sapateiro;
h) De trabalhador rural.
§ único. As profissões a adoptar em cada uma das escolas será depen-
DE ANGOLA 737
dente das condições locais, conforme a índole dos seus habitantes e
tendo em conta a situação financeira em que a escola se encontra.
Art. 8.° O ensino profissional nas escolas destinadas a indígenas do
sexo feminino constará:
a) De costura, corte e confecção das peças de vestuário e roupa de uso
comum;
b) Do conhecimento e usos de máquinas de costura, de meias, de
bordados;
c) De noções de misteres caseiros, governo de casa, higiene doméstica,
cuidados com os filhos.
Art. 9.° A instrução literária constará, em qualquer das escolas
profissionais, do ensino da língua portuguesa, com leitura e escrita,
com as quatro operações de arim ética e com o sistema de pesos e me-
didas.
Art. 10.° O regimen das escolas profissionais será o semi-internato,
com a distribuição de uma refeição sadia, abundante, cozinhada segundo
o costume indígena e composta de géneros da terra empregados pelos
indígenas da região.
Art. 11.° Para ministrar a instrução literária, moral e cívica, e a
cultura e desenvolvimento físico em cada uma das escolas, será encar-
regado o professor oficial ou municipal de instrução primária da divisão
administrativa onde se encontra instalada a escola, quando se tratar de
escolas para indígenas do sexo masculino, e a professora, quando a escola
se destinar a indígenas do sexo feminino. Caso não haja professor, ou
havendo-o, por motivo atendível não possa exercer essas funções será
encarregada pessoa de comprovada competência.
Art. 12.° O professor encarregado da instrução literária será o director
da escola e terá como remuneração dos serviços prestados uma gratificação
estabelecida sob proposta da autoridade administrativa local.
Art. 13.° Do ensino profissional será encarregado pessoal contratado
e devidamente habilitado.
Art. 14.° As nomeações dos professores de instrução literária e os
contractos do pessoal encarregado do ensino profissional serão aprovados
por portaria provincial ;
Art. 15.° Cada uma das escolas será dirigida e administrada por um
conselho escolar composto:
1.° Do administrador do Concelho ou de Circunscrição ou o Capitão-mór
da capitania, conforme os casos, que será o presidente;
2.° Do Secretário da Administração do Concelho ou da Circunscrição
ou da Capitania-mór;
3.° Do Director da escola que será o Secretário com voto.
§ único. O presidente do conselho escolar das escolas profissionais da
cidade de Loanda será o Secretário dos Negócios Indígenas.
Art. 16.° O Conselho Escolar reunirá pelo menos uma vez por mês,
competindo-lhe :
a) Apreciar os resultados do ensino, propor as alterações e modifi-
cações que julgar conveniente;
b) Adoptar os melhoramentos que julgue convenientes dentro do
orçamento e recursos da escola ;
738 POPULAÇÕES INDÍGENAS
c) Administrar o fundo da escola, arrecadando as suas receitas e
satisfazendo as suas despesas;
d) Enviar mensalmente para a Secretaria dos Negócios Indígenas um
balancete da receita e da despesa da escola;
e) Elaborar o relatório anual para ser presente por intermédio do
Secretário dos Negócios Indígenas ao Governo Geral.
Art. 17.° A superintendência das escolas profissionais fica a cargo do
Secretário dos Negócios Indígenas, e toda a correspondência daquelas
que tenha que ser presente ao Governo Geral ou a qualquer conselho
transitará pela Secretaria dos Negócios Indígenas.
Art. 18.° O Secretario dos Negócios Indígenas elaborará anualmente
um relatório sobre o funcionamento das escolas profissionais da província
e os resultados obtidos, para ser presente ao Conselho Inspector de
Instrução Pública da Província.
Art. 19.° Constituem receitas de cada escola :
a) 30% do adicional sobre o imposto de cubata estabelecido pelo
art. 145.° do Regulamento das Circunscrições Administrativas;
b) 20 % do fundo das circunscrições nos termos do art. 164 do Regu-
lamento de 2 de outubro de 1912;
c) O produto líquido dos trabalhos executados nas oficinas;
d) Subsídios que lhe forem estabelecidos por qualquer instituição de
beneficência;
e) Subsídios e donativos particulares;
f) Subsídios de subscrições, bazares e quermesses.
§ único. Os subsídios do Estado não ultrapassarão dois mil escudos
nas escolas estabelecidas nas sedes dos governos de distrito, e seis-
centos escudos nas restantes.
Art. 20.° Incumbe ao Governador Geral da Província de Angola,
ouvido o Conselho do Governo e sob proposta do Secretário dos Negócios
Indígenas, aprovar os regulamentos das escolas profissionais que forem
sendo criadas na província.
XVIII
PROJECTO DE DIPLOMA PARA O ESTABELECIMENTO
DE COLÓNIAS DE CORRECÇÃO PARA INDÍGENAS
Art. l.° São criados na Província de Angola estabelecimentos penais,
denominados Colónias de Correcção para Indígenas, destinados ao Inter-
nato dos indígenas condenados nas penas de desterro e trabalho correc-
cional pelos tribunais da província e aos degredados indígenas vindos
de outras províncias ultramarinas.
Art. 2.° As Colónias de Correcção funcionarão, simultaneamente: como
estabelecimentos de ensino profissional e elementos de progresso e desen-
volvimento da agricultura, da pecuária e das indústrias e economia admi-
nistrativa da província.
Art. 3.° Serão desde já estabelecidas uma Colónia de Correcção em cada
distrito da província, competindo ao Governador Geral, ouvindo o Secre-
tário dos Negócios Indígenas e o Inspector de Agricultura e os respecti-
vos governadores dos distritos designar o local onde devem estabelecer-se.
§ único. Fica o Governador Geral autorizado a dispender até à quantia
de 20.000$00 com a instalação de cada Colónia de Correcção, assim como
garantir a manutenção de cada colónia com uma dotação anual não su-
perior a 3.000S00.
Art. 4.° Constituem as receitas de cada Colónia de Correccção :
1.° O rendimento das suas culturas, criações de gado e oficinas;
2.° A verba da sua dotação nas tabelas orçamentais ;
3.° A verba que anualmente lhe fôr distribuída do fundo de protecção e
assistência a indígenas.
§ único. Quando uma ou mais Colónias de Correcção, pelo desenvolvi-
mento dos seus rendimentos não careçam de dotação ou do subsídio do
fundo de protecção e assistência a indígenas, poderão aplicar-se as respe-
ctivas verbas à manutenção e desenvolvimento doutras Colónias.
Art. 5.° O Governador Geral poderá, nas condições dos artigos ante-
riores, aumentar o número de Colónias de Correcção quando assim o
julgue necessário.
Art. 6.° Para o estabelecimento de cada Colónia de Correcção será de-
marcada uma área não inferior a 200 hectares, destinada a ser agricul-
tada, pelos internados da Colónia, em culturas de géneros próprios à
alimentação do pessoal e gado e à exportação e consumo da província.
Art. 7.° Na escolha do local, ter-se há em vista que as instalações do
740 POPULAÇÕES INDÍGENAS
estabelecimento penal devem ficar sempre a menos de 2 quilómetros da
sede de uma circunscrição ou capitania-mór, preferindo-se a proximidade
da via férrea.
Art. 8.° As Colónias de Correcção, quando as conveniências o aconse-
lhem, poderão ser instaladas nos postos agrícolas ou granjas existentes,
aproveitando-se os edifícios, culturas e toda a existência desses estabele-
cimentos para a transformação em Colónias de Correcção.
Art. 9.° Em todas as Colónias de Correcção haverá escolas de instrução
literária rudimentar e oficinas, onde será ministrado o ensino literário e
profissional aos internados.
Art. 10.° A educação literária consistirá no ensino da língua portuguesa
com leitura e escrita, das quatro operações de arimética e do sistema de
pesos e medidas.
Art. 11.° A educação profissional consistirá no ensino das profissões
manuais de :
Ferreiro-serralheiro.
Carpinteiro-marceneiro.
Serrador.
Pedreiro-trôlha.
Funileiro.
Alfaiate.
Sapateiro.
Oleiro.
Trabalhos rurais com prática de máquinas e alfaias agrícolas e espe-
cialmente cultura de hortas e pomares.
§ único. As profissões a adoptar em cada uma das Colónias de Correcção
serão dependentes das condições locais e de harmonia com as necessida-
des e recursos da Colónia.
Art. 12.° O ensino literário será ministrado em aulas nocturnas, e é
obrigatório para todos os indígenas que hajam de cumprir penas de dura-
ção superior a um ano.
Art. 13.° O ensino dos ofícios, mencionados no artigo 10.°, será minis-
trado àqueles dos internados, que, tendo mais tempo de desterro ou de-
gredo a cumprir, mostrem melhores aptidões para cada um deles.
Art. 14.° Além dos ofícios indicados no artigo 10.°, poderão ensinar-se
todos aqueles de que haja conveniência manterem-se as respectivas oficinas.
Art. 15.° As oficinas, àlêm da aplicação do ensino profissional aos in-
ternados, destinar-se hão à execução dos trabalhos necessários ao funcio-
namento das Colónias de Correcção e ainda a quaisquer outros que lhe
sejam encomendados pelo Estado ou por particulares.
Art. 16.° A educação profissional aos indígenas do sexo feminino con-
sistirá no ensino de serviços domésticos e de costura, como corte e con-
fecção de peças de vestuário feminino e infantil, e será ministrada às indí-
genas que mostrem aptidões para o receber.
Art. 17.° As escolas de instrução literária rudimentar para os indíge-
nas de ambos os sexos serão regidas, respectivamente, pelo professor e
professora de instrução primária da localidade a quem será paga uma
gratificação que lhe fôr atribuída pela comissão.
Art. 18.° Para mestres das oficinas serão contratados operários compe-
DE ANGOLA 741
tentes, vencendo como assalariados o jornal estipulado por cada dia de
trabalho.
§ único. Estes operários terão a garantia de receber 50% do seu jor-
nal durante 30 dias em cada ano, quando deixem de trabalhar por motivo
de doença.
Art. 19.° Para a manutenção da ordem e guarda dos condenados haverá
sempre em cada Colónia de Correcção um destacamento de 20 a 30 praças
indígenas devidamente comandadas,.
Art. 20.° Será obrigatório o trabalho durante 8 horas em cada dia útil
para todos os condenados.
Art 21.° Aos condenados será distribuída alimentação e vestuário, e
abonada mensalmente a quantia de $30.
Art. 22.° Além do que lhe é concedido pelo artigo anterior ser-lhe ha
pago salário por cada dia em que trabalhem, variando conforme as suas
aptidões, entre $01 a $03 diários para os trabalhadores rurais, aprendizes
de diversos ofícios e mulheres, e entre $03 e $10, para os que trabalhem
regularmente em qualquer dos ofícios mencionados no artigo 11.°.
Art. 23.° Quando nas Colónias de Correcção houver operários disponí-
veis poderão ser, temporariamente, dispensados para quaisquer trabalhos
do Estado ou Municípios, quando estes sejam próximos das Colónias de
Correcção e os condenados possam recolher todas as noites ao estabeleci-
mento penal.
Art. 24.° Os encarregados das obras do Estado ou dos Municípios que
requisitarem os condenados, ficarão responsáveis pela sua guarda e vigi-
lância, e pelo pagamento da importância dispendida com a sua alimenta-
ção, conforme fôr estipulado pelo Director da Colónia de Correcção, pelo
pagamento do abono de $30 a que se refere o artigo 21.° e pelo salário
que lhe fôr atribuído.
§ único. O salário de cada dia de trabalho será computado no dobro
do que habitualmente seja pago aos indígenas, quando em serviço na
Colónia de Correcção, revertendo uma parte a favor do fundo do estabe-
lecimento penal.
Art. 25.° A venda de quaisquer géneros de colheita nas Colónias de
Correcção, assim como a dos gados nelas criados e a execução de obras
feitas nas suas oficinas, será sempre feita a pronto pagamento e, ainda
quando se trate de fornecimento para o Estado, não poderão os riquisi-
tantes, ou quaisquer autoridades superiores, exigir que as Colónias de
Correcção satisfaçam as requisitações doutra forma, a não ser em casos
excepcionais de calamidade pública.
Art. 26.° As Colónias de Correcção para indígenas serão dirigidas e
administradas por uma comissão composta :
a) Do administrador do concelho, circunscrição ou Capitão-mór que
será o presidente e director fiscal da Colónia de Correcção ;
b) De um regente agrícola do quadro do serviço de Agricultura da
Província que será o administrador gerente ;
c) Do Delegado de Saúde da respectiva divisão administrativa em que
estiver situada a Colónia ;
d) Do escrivão ou delegado de Fazenda da Circunscrição ou concelho
em que estiver situada a Colónia de Correcção ;
742 POPULAÇÕES INDÍGENAS
e) Dos professores de instrução literária na Colónia de Correcção ;
f) De um dos mestres das oficinas do estabelecimento penal que fôr
escolhido pelos restantes membros da comissão.
§ 1.° Estas comissões terão autonomia administrativa necessária para
fomentar e arrecadar as receitas das Colónias de Correcção e para ordenar
as despesas do seu funcionamento, competindo-lhe reunir quinzenalmente
para deliberar sobre todos os assuntos que interessem ao mesmo funcio-
namento, quer nos da parte puramente administrativa como nos que
possam considerar-se de carácter técnico.
§ 2.° Das reuniões da comissão serão lavradas as competentes actas
ficando todos os membros solidariamente responsáveis pelas delibera-
ções tomadas embora não tenham assistido às reuniões em que forem
tomadas se na primeira reunião não protestarem a sua discordância com
as mesmas deliberações e não fundamentarem na acta a razão da sua
discordância.
Art. 27.° Os membros das comissões administrativas que estiverem
servindo em 31 de dezembro terão a obrigação de elaborar até 15 de
março do ano seguinte, um sucinto relatório da administração anual da
Colónia de Correcção, acompanhando o mesmo relatório de elucidativos
elementos estatísticos sobre movimento dos condenados, resultados das
culturas, trabalhos das oficinas e um balancete geral da receita e despesa.
§ único. Deste relatório será enviado um exemplar ao Governador do
Distrito e dois exemplares ao Governo Geral da Província por intermé-
dio da Secretaria dos Negócios Indígenas e da Inspecção de Agricultura.
Art. 28.° Ao director fiscal compete especialmente: a fiscalização e
direcção superior de todas as deliberações da comissão administrativa ;
a manutenção da ordem e disciplina do estabelecimento ; a aplicação de
castigos aos condenados ; e a assinatura de toda a correspondência oficial
da Colónia de Correcção.
Art. 29.° Ao administrador gerente compete : ordenar e dirigir todo o
funcionamento do estabelecimento penal, de harmonia com as delibera-
ções da comissão administrativa e indicações do seu presidente ; ter a
seu cargo a guarda e conservação de toda a existência dos depósitos e
oficinas ; manter directamente a ordem e disciplina do pessoal e conde-
nados.
Art. 30.° Ao Delegado de Saúde compete: a inspecção sanitária do esta-
belecimento penal.
Art. 31.° Ao escrivão ou Delegado de Fazenda compete : exercer as
funções de tesoureiro e pagador da Colónia de Correcção.
Art. 32.° Aos professores de Instrução literária compete: auxiliar o
administrador gerente e o tesoureiro na organização de toda a escritura-
ção do estabelecimento penal.
Art. 33.° O administrador- gerente vence pelo quadro do Serviço de
Agricultura a que pertence e tem direito a residência gratuita na Colónia
de Correcção e á gratificação especial que lhe fôr atribuída pela Comissão
Administrativa da Colónia de Correcção com a aprovação do Governador
Geral.
Art. 34.° As Colónias de Correcção, como estabelecimentos penais para
indígenas, de administração autónoma, estão sob a superintendência e
DE ANGOLA 743
fiscalização da Secretaria dos Negócios Indígenas e com ela se corres-
pondem directamente assim como com quaisquer outras autoridades da
província.
Art. 35.° O Governador Geral, ouvida a Secretaria dos Negócios Indí-
genas e as entidades que julgar conveniente regulamentará o funcio-
namento das Colónias de Correção para Indígenas de harmonia com
as disposições deste diploma e com os recursos e necessidades possivel-
mente atendíveis em cada região onde seja montada uma Colónia de Cor
recção.
XIX
PROJECTO DE DIPLOMA INSTITUINDO UM ASILO
DE VELHOS E INVÁLIDOS NA CIDADE DE LOANDA
Art. l.° É fundado na cidade de Loanda um estabelecimento de bene-
ficência que se denominará Asilo' de. . . destinado ao internato de indígenas
da província de Angola velhos ou inválidos de ambos os sexos.
Art. 2.° O Asilo de... será provisoriamente instalado em qualquer
edifício do Estado emquanto não fôr construído edifício próprio para a
sua definitiva instalação.
Art. 3.° As despesas com a instalação e manutenção do Asilo serão
custeadas :
1.° Com a importância da verba que anualmente lhe fôr distribuída
do fundo de protecção e assistência a indígenas ;
2.° Com os subsídios que lhe forem consignados pelas Câmaras e
Comissões Municipais da província ;
3.° Com o produto de legados ou donativos que lhe forem testados ou,
oferecidos, e com o rendimento destes fundos ;
4.° Com a importância das quotizações pagas pelos protectores dos
asilados admitidos extraordinariamente;
5.° Com o produto de quaisquer receitas que por iniciativa da admi-
nistração do asilo possam ser angariadas.
Art. 4.° A admissão dos asilados far-se ha por duas classes : ordinários
e extraordinários.
Art. 5.° Serão admitidos como asilados ordinários os indígenas indi-
gentes que não tenham família que possa socorrê-los na sua invalidez
por doença ou velhice.
Art. 6.° Poderão ser admitidos como extraordinários :
1.° Os velhos ou inválidos que tenham pessoas de família a quem
cumpra socorrê-los ;
2.° Os trabalhadores indígenas que por acidente de trabalho ou doença
adquirida durante a vigência de um contracto de trabalho, se tornem
inválidos.
Art. 7.° A admissão dos asilados extraordinários só poderá ser feita,
mediante pagamento permanente da prestação mensal estipulada no regu-
lamento interno do Asilo, para os mencionados no n.° 1.° do art. 6." e me-
diante o mesmo pagamento, durante o período de dois anos, ou da
importância de 50$00, paga de uma só vez, para os do n.° 2.°.
BE ANGOLA 745
Art. 8.° Não poderão ser recebidos no Asilo indígenas que sofram de
moléstias contagiosas, nem os atacados de demência e condições de per-
turbarem a ordem no estabelecimento, emquanto nele não houver depen-
dências apropriadas para os alojar isoladamente.
Art. 9.° Os asilados em condições de trabalhar na manufactura de
objectos de verga ou fibra, ou em qualquer outro mister compatível com
a sua idade e invalidez, serão obrigado a trabalhar durante um determi-
nado número de horas por dia.
Art. 10.° Metade do produto dos asilados ser-lhes ha entregue mensal-
mente, revertendo a outra metade em favor da instituição.
Art. 11.° O asilo será gratuitamente assistido e visitado por um médico
do quadro de saúde da província, para esse fim designado pelo Chefe do
Serviço de Saúde, competindo-lhe fazer remover para o hospital os
doentes que não possam ser tratados no asilo e requisitar do mesmo hos-
pital os medicamentos e os serviços de enfermagem que fôr preciso para
os que poderem ser tratados no asilo.
Art. 12.° A administração do asilo será entregue a uma comissão de
5 membros composta: do Secretário dos Negócios Indígenas, que servirá
de presidente ; do Chefe dos Serviços de Saúde, vice-presidente ; do Admi-
nistrador do Concelho de Loanda, e de dois outros indivíduos europeus,
nomeados pelo Governador Geral para servirem por dois anos servindd
um deles de tesoureiro.
Art. 13.° A comissão administrativa terá duas reuniões periódicas
mensais nos dias que forem designados no regulamento do asilo, e as
extraordinárias que forem precisas para a regular administração do
estabelecimento, competindo-lhe :
1.° Fixar trimestralmente, conforme a provável disponibilidade de
fundos, o número máximo do asilados de cada sexo que podem ser admi-
tidos no trimestre seguinte;
2.° Ordenar as despesas e aprovar o seu pagamento ;
3.° Promover a criação de receitas e deliberar sobre o seu recebimento
e arrecadação ;
4.° Propor ao Governo Geral as modificações que julgue necessário
introduzir no regulamento do asilo e todas as medidas convenientes paru
a manutenção e progresso da instituição ;
5.° Elaborar anualmente, até 31 de Março, um relatório sumário com
as contas da sua administração durante o ano findo, que será publicado
no Boletim Oficial.
Art. 14.° O Secretário dos Negócios Indígenas será o director do Asilo
e como tal encarregado de executar as deliberações da comissão adminis-
trativa e de prover e vigiar o funcionamento do estabelecimento.
Art. 15.° Do expediente da administração do asilo será encarregado
um funcionário da Secretaria dos Negócios Indígenas que servirá também
de secretário nas reuniões da comissão administrativa.
XX
PROJECTO DO REGULAMENTO DE FESTAS
E CERIMÓNIAS GENTÍLICAS
Art. l.° Os batuques, festas e cerimónias fúnebres indígenas que por
qualquer modo, possam vir prejudicar a ordem e a tranquilidade pública
só serão permitidos mediante licença por escrito da autoridade adminis-
trativa e nas condições prescritas pela mesma.
Art. 2.° Não serão concedidas licenças para festas ou cerimónias que
se continuem por mais de 5 dias nem será consentido que durante a noite
se prolonguem àlêm das 2 horas e comecem antes das 12.
§ único. As festas e cerimónias por morte ou investidura de novo soba
poderá excepcionalmente permitir-se que durem até 30 dias.
Art. 3.° Aqueles a quem, como organizadores das festas e cerimónias
gentílicas, forem passadas as respectivas licenças ficarão responsáveis
pelo cumprimento das determinações da autoridade sobre a execução das
mesmas cerimónias e festas.
Art. 4.° As licenças a que se refere este diploma são sujeitas ao paga-
mento de emolumentos, para a autoridade que as conceder, de $30 quando
a duração das festas fôr de um dia e $50 se fôr mais de um.
Art. 5.° Serão punidos com a multa de 1 a 10 escudos aqueles que
organizarem festas gentílicas, públicas, sem prévia licença ou em con-
trário das condições em que forem autorizadas pela autoridade.
XXI
PROJECTO DO REGULAMENTO
PARA A CONCENTRAÇÃO, ISOLAMENTO E HIGIENE
DAS HABITAÇÕES DOS INDÍGENAS
Art. l.° Todos os indígenas da província de Angola, são obrigados a
agrupar as suas habitações nos locais que forem escolhidos para edificação
de bairros ou povoações indígenas.
Art. 2.° A partir da publicação do presente regulamento nenhum indí-
gena poderá construir a sua cubata ou ir fixar residência dentro do perí-
metro reservado para a edificação de centros urbanos de habitação de
europeus ou africanos civilizados, nem estes poderão mudar a sua habi-
tação para os logares exclusivamente destinados à construção de bairros
ou povoações indígenas.
§ único. Aos indígenas empregados em serviços domésticos ou ainda
em quaisquer outros que por circunstâncias especiais seja necessário
viverem no centro de população civilizada, bem assim como as suas
famílias, será permitida a residência em dependências das habitações dos
europeus e equiparados.
Art. 3.° A concentração das habitações dos indígenas em bairros ou
povoações ter-se ha completado no praso máximo de 5 anos, findo o qual
as autoridades administrativas mandarão destruir todas as cubatas que
estiverem fora dos locais designados.
Art. 4.° Os indígenas que pela ocasião do segundo arrolamento para
cobrança do imposto de cubata, a que se proceder após a publicação deste
diploma, não tiverem mudado as suas habitações para os logares de con-
centração, ficarão obrigados ao pagamento do dobro do imposto por esse
ano económico, e progressivamente, ao tripulo e ao quádrupulo no ter-
ceiro e quarto arrolamentos seguintes.
Art. 5.° A escolha de logares para o estabelecimento de bairros e
povoações indígenas, o seu delineamento e a vigilância e fiscalização das
rescrições impostas neste regulamento, competem, na área de cada con-
celho, circunscrição ou capitania-mór, às comissões que permanentemente
funcionarão para esse fim, compostas dos seguintes membros :
Administrador do concelho, circunscrição ou capitão-mór;
Delegado de saúde;
Dois vogais da Câmara ou Comissão Municipal ;
Um funcionário da Agrimensura ou das Obras Públicas.
48
748 POPULAÇÕES INDÍGENAS
§ único. Nas localidades onde não haja delegado de saúde nem fun-
cionários da Agrimensura ou Obras Públicas, funcionará a comissão
apenas com os outros membros.
Art. 6.° Em cada posto militar ou civil constituir-se ha uma comissão
auxiliar, composta do chefe do respectivo posto, de dois sobas ou chefes
indígenas e de mais dois vogais, indivíduos brancos ou de côr, indicados
pelo mesmo chefe como conhecedores da topografia e recursos da região,
e dos hábitos e necessidades agrícolas e indústrias dos indígenas.
Art. 7.° ás comissões a que se referem os artigos anteriores, para a
escolha dos locais onde devam estabelecer-se bairros ou povoações indí-
genas, terão em vista :
1.° As condições de salubridade- e abundância de água, própria para
bebida e outros usos domésticos;
2.° O aproveitamento dos locais onde existam já importantes núcleos
de população, quando pelas condições higiénicas e topográficas forem
adquáveis ao estabelecimento de grandes povoações ;
3.° O mais provável aproveitamento das riquezas, minerais florestais
e agrárias da região, e os hábitos e interesses agrícolas, comerciais ou
indústrias indígenas ;
4.° A maior possibilidade de ligar as povoações às sedes das divisões
administrativas ou centros de população civilizada, por estradas ou cami-
nhos que permitam fácil e rápido acesso.
5.° Outros fins convenientes à boa administração e subordinação dos
povos.
Art. 8.° A concentração das populações indígenas far-se ha por tríbus,
sobados e famílias subordinadas ao mesmo século, macota ou similar,
não devendo, em regra, estabelecer-se povoações com menos de 50 cubatas
nem o número de povoações exceder :
3 quando os sobados tenham menos de 250 cubatas ;
5 tendo entre 250 a 500;
8 tendo entre 500 a 1.000;
10 tendo de 1.000 a 2.000;
12 tendo mais de 2.000 cubatas.
§ único. As cubatas poderão agrupar-se em um só núcleo ou em
bairros de dez ou mais cubatas, com tanto que, da periferia de
qualquer bairro à do que lhe ficar mais próximo, não distem mais de
150 metros.
Art. 9.° As povoações quer se constituam em único agrupamento quer
em bairros, serão previamente delineadas, obrigando-se os indígenas,
sob pena de destruição das obras feitas ou começadas, a respeitar o plano
concebido, segundo as indicações que lhe forem dadas sobre arruamentos,
alinhamentos, dimensões, condições de higiene, estética e segurança das
suas habitações e dependências.
§ único. O delineamento dos bairros indígenas anexos aos centros
urbanos de população europeia, será sempre feito de acordo com as res-
pectivas corporações municipais.
Art. 10.° É garantido aos indígenas a ocupação gratuita dos terrenos
do Estado, para edificações das suas habitações e respectiva dependência
até 60 metros quadrados por cada chefe de família e mais doze por cada
DE ANGOLA 749
membro desta, que lhe poderão ser titulados nos termos do Regulamento
de Concessões de Terrenos em vigor.
§ único. Os terrenos pertencentes aos municípios ser-lhes hão facul-
tados mediante o pagamento de um preço certo por metro quadrado que
será estipulado de acordo com a autoridade administrativa.
Art. 11.° Será respeitado em cada local o tipo regional ou étnico das
habitações, no que respeitar à forma e material de construção empregado,
mas não será permitida a construção de cubatas destinadas a serem
habitadas, que tenham menos de 2 metros de altura e de 6 metros qua-
drados de superfície, ou cujo sistema de construção seja manifestamente
prejudicial à saúde dos habitantes.
§ único. O número máximo de indígenas que poderão alojar-se em
uma cubata, será computado à razão de 5 metros quadrados de superfície
para cada habitante.
Art. 12. ° Nenhum indígena poderá construir ou reedificar as suas
cubatas sem estar munido de uma licença passada por qualquer das
comissões a que se referem os artt. 5.° e 6.° pelo qual pagará a impor-
tância de • • $
§ único. O produto destas importâncias será arrecadado e adminis-
trado pela comissão a que se refere o art. 5." e destina-se exclusivamente
ao pagamento de despesas que haja de fazer com o delineamento de
bairros ou povoações, e à distribuição anual de um prémio em cada
sobado, proporcional ao rendimento por ele produzido, com que serão
gratificados os indígenas que em melhores condições de estética e higiene
construírem as suas habitações.
Art. 13.° Os indígenas são obrigados a manter limpos o interior das
suas habitações e dependências, os arruamentos da povoação e uma
faxa de terreno, pelo menos de 250 metros de largura, em volta da mesma
e a estabelecer os cercados ou estábulos para o gado e lixeiras, fora das
habitações e em local que não prejudique a salubridade das povoações.
Art. 14.° Em cada povoação ou bairro indígena compete ao respectivo
século, raacota ou chefe da povoação, zelar pelo cumprimento das dispo-
sições deste regulamento, obrigando os indígenas a observá-las e acu-
sando os transgressores ao soba e às autoridades administrativas para
lhe ser imposto o devido castigo.
§ único. A falta de zelo no cumprimento das obrigações que por este
artigo competem as autoridades gentílicas, será punida com a multa de
1 a 10 escudos.
Art. 15.° Qualquer transgressão ao preceituado neste regulamento
será punida com a multa de 1 a 20 escudos que será paga em trabalho à
razão de $15 diários quando o não seja voluntariamente em dinheiro.
§ único. O produto das multas será arrecadado e administrado pela
comissão a que se refere o art. 5.° que o aplicará em obras de saneamento
ou de utilidade para as povoações indígenas assim como os dias de tra-
balho em que sejam remidas.
XXII
DA ASSISTÊNCIA MÉDICA AOS INDÍGENAS
(Portaria Provincial n.° 406 de 27 de Março de 1914)
Tem a assistência aos indígenas merecido os maiores cuidados a este
Governo Geral. São prova disso as portarias e circulares relativas à mão
de obra indígena, à regulamentação de trabalho indígena e à instrução
profissional, as medidas de diversa espécie tomadas contra a doença do
sono, as visitas médicas periódicas às fazendas agrícolas, a criação de
uma secretaria de negócios indígenas e a publicação do regulamento das
circunscrições. Mas muito resta a fazer ainda; e entre o mais instante
avulta a organização da assistência indígena na gravidez, na infância e
na doença. A isso visa esta portaria; e julgando azado o momento para
a promulgação de medidas tendentes ao aumento da população indígena, á
sua preservação e ao seu robustecimento, visto figurarem no orçamento
do ano económico correntes verbas para esse fim por mim propostas;
Tendo ouvido o Conselho do Governo :
Hei por conveniente determinar o seguinte :
Art. 1.' Nas sedes dos concelhos, circunscrições civis e.capitanias-
móres serão criadas comissões denominadas «comissões de assistência
indígenas» ; e nos principais centros de população indígena serão estabe-
lecidos «postos de assistência».
§ 1.° Cada comissão de assistência indígena será constituída pelo
administrador ou capitão-mór, pelo delegado de saúde e por um indígena
de prestígio entre os nativos, anualmente escolhido pela municipalidade
na sua primeira sessão.
§ 2.° Nos concelhos ou circunscrições onde houver câmaras municipais
fará também parte da comissão o presidente da câmara.
§ 3.° Nas localidades onde não houver delegado de saúde fará
parte da comissão pessoa idónea, indicada pelo administrador ou ca-
pitão-mór.
§ 4.° Os «postos de assistência» serão dirigidos por enfermeiros da
companhia de saúde ou por enfermeiros civis, fiscalizados pela comissão
de assistência indígena do concelho, circunscrição ou capitania a que
pertencerem.
§ 5.° Os administradores das circunscrições ou capitanias-móres são
obrigados a participar aos governadores dos distritos respectivos a ins-
talação das comissões a que se refere este artigo.
ÍNDICE
Pág.
INTRODUÇÃO v
PARTE I — ESTUDO ETNOGRÁFICO DAS TRÍBUS DA RAÇA NEGRA. ... 1
Capítulos :
I — Negolas 3
II — Dembos 31
III — Muchicongos 65
IV — Muzombos 91
V - Tríbus da Lunda (distrito) . . 97
VI — Mahungos 165
VII — Mussucos 187
VIII — Gingas 209
IX— Kissamas ; 231
X — Libolos 237
XI - Tríbus Bavili 251
XII — Mayombes 301
XIII — Mussurongos 305
XIV — Amboins .* 325
XV— Tríbus Bimbundo 335
XVI — Tríbus Ganguelas 375
XVII — Vanyanekas 401
XVIII - Humbes 435
XIX — Tríbus Banctuba 447
XX — Cuangares ■ . . . 463
XXI - Mucussos 469
XXII — Vahimbas 473
PARTE II — ESTUDO ETNOGRÁFICO DAS TRÍBUS DA RAÇA BOSCHJMAN 477
PARTE III — ESTUDO ETNOLÓGICO DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS DE
ANGOLA. 493
Capítulos :
I — Da origem das populações indígenas de Angola .... 495
II — Da população 507
756 POPULAÇÕES INDÍGENAS
Pág.
III — Dos caracteres étnicos 513
IV — Da vida material. 523
V — Da vida intelectual 545
VI — Da vida religiosa 559
VII — Da vida familial 567
VIII — Da vida social 587
APENSO:
I — Projecto do Estatuto Civil e político dos indígenas . . 611
II — » do Regimento de Administração de Justiça . 613
III — » do Código de Justiça Indígena 619
IV — » do Regulamento do Registo do Estado Civil. 645
V — » do Regulamento do Recenseamento da Popu-
lação 655
VI — Projecto Regulando o Exercício de Petição por Escrito . 657
VII — » Regulando a Organização Política Indígena . . 659
VIII— » do Regulamento do Trabalho dos Indígenas. . 665
IX — » Regulando os acidentes de trabalho • 710
X — > de Diploma regulando a repressão da ociosi-
dade e vadiagem 713
XI — Projecto do Regulamento da Secretaria dos Negócios
Indígenas 718
XII — Projecto da Instituição dum Museu Etnológico 727
XIII — » sobre a emissão de loterias. ... . . ... . . 728
XIV — » sobre o fundo de protecção e assistência.. . 729
XV — » sobre a instituição de prémios de natalidade a
indígenas. . . 730
XVI — Projecto de Tutorias de menores indígenas . 731
XVII — » sobre o Ensino Profissional ... 736
XVIII — » sobre Colónias de Correcção para Indígenas . 739
XIX — » para um Asilo de velhos e inválidos em Loanda. 744
XX— » de Regulamento de Festas e cerimónias gentí-
licas . . . . . 746
XXI — Projecto do Regulamento para a concentração, isola-
mento e higiene das habitações indígenas 747
XXII — Portaria sobre assistência Médica aos Indígenas .... 750
DE ANGOLA 751
Art. 2.° Incumbe à comissão de assistência indígena:
a) Á assistência às mulheres grávidas, às crianças recemnascidas, aos
menores até aos cinco anos e aos doentes ;
b) Fazer inspecções regulares e periódicas às povoações indígenas,
prestando socorros da sciência médica aos necessitados, distribuindo-lhes
medicamentos, desinfectantes e artigos de penso e organizando o cadastro
dos indígenas a quem seja necessário socorrer em casos de doença com
assistência médica gratuita;
c) Mandar proceder à vacinação em larga escala e sobretudo à vaci-
nação ambulante, e pôr em prática as medidas de higiene pública compa-
tíveis com o meio, aconselhando os indígenas á prática cia profilaxia
das doenças contagiosas, endémicas e epidémicas, indicando-lhes as suas
causas e origens e o modo de evitar a sua propagação.
d) Estabelecer com o concurso das autoridades gentílicas, brigadas
de saneamento local, às quais dará as necessárias instruções, ensinan-
do-lhes a maneira de evitar o contágio das doenças ou a sua transmissão,
convencendo os indígenas a adoptarem medidas de profilaxia sesonática
e da tripanosomiase, mostrando-lhes por um modo palpável as suas van-
tagens e resultados práticos ;
e) Estudar o censo da população indígena e os seus usos e costumes
no que disser respeito a doenças e seu tratamento ;
f) Providenciar de forma a tornar a assistência assídua e efectiva,
evitando que os socorros sejam tardios e deficientes;
g) Estabelecer os «postos de assistência» que julgar convenientes na
área da sua jurisdição, e fiscalizar o seu funcionamento por intermédio
do delegado de saúde ou do administrador ou capitão-mór, conforme os
casos;
h) Procurar convencer os indígenas dos inconvenientes e inanidade
das práticas de feitiçaria ;
i ) Tomar as providências necessárias para promover e estabelecer a
assistência infantil e para diminuir a mortalidade das crianças, estabele-
cendo maternidades, se fôr possível, ou instruindo as mulheres nos de-
veres e cuidados a ter com os recemnascidos e consigo próprias antes e
depois dos partos;
j ) Apresentar ao Governo Geral, por intermédio do chefe dos serviços
de saúde, e directamente aos municípios as propostas que julgar conve-
nientes para melhorar a situação dos indígenas ;
k) Enviar ao chefe dos serviços de saúde relatórios trimestrais da
assistência prestada aos indígenas no trimestre anterior.
Art. 3.° O delegado de saúde é o principal executor das deliberações de
cada comissão de assistência indígena e como tal tem direito aos meios
de transporte para as inspecções sanitárias.
§ único. Aos mesmos delegados de saúde será abonada a ajuda de
custo a que por lei tiverem direito.
Art. 4.° Compete aos enfermeiros encarregados dos postos de assis-
tência :
a) Vacinar;
b) Prestar os socorros da sua profissão aos doentes que deles preci-
sarem ;
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752 POPULAÇÕES INDÍGENAS
c) Ter a ambulância sempre fornecida suficientemente, nos termos
dos regulamentos das ambulâncias;
d) Dirigir e fiscalizar os serviços de saneamento local executados pelas
brigadas fornecidas pelas autoridades gentílicas ;
e) Participar ao administrador ou ao capitão-mór os nascimentos e
óbitos dos indígenas da região ;
/) Cumprir as instruções e ordens da comissão de assistência, que
lhes serão dadas pelo delegado de saúde a quem são directamente subor-
dinados ;
g) Dar mensalmente á comissão de assistência, por intermédio do de-
legado de saúde, em um pequeno relatório, conta de todos os serviços
prestado no mês anterior.
§ único. Nas localidades onde não houver delegado de saúde, o enfer-
meiro estará directamente subordinado ao administrador ou capitão-mór.
Art.° 5.° São destinadas a cobrir as despesas a fazer com assistência
médica aos indígenas:
a) A parte das verbas consignadas na tabela da despesa ordinária
para dieta e outras despesas, que possa ser aplicada á assistência aos
indígenas da província;
b) Pelo menos 30 por cento do produto do adicional ao imposto de
cubata autorizado pelo art. 145.° do regulamento das circunscrições
administrativas ;
c) Quaisquer verbas que pelos municípios sejam para esse fim ins-
critas nos orçamentos municipais;
d) Quaisquer verbas inscritas para esse fim nas tabelas de despesa
ordinária ou extraordinária ;
e) Quaisquer donativos.
Art. 6.° Cumpre ao Governador Geral, sempre que o julgue necessário,
determinar que sejam inspeccionados por médicos do quadro de saúde os
trabalhos das Comissões de Assistência a Indígenas e os Postos de Assis-
tência, devendo estas inspecções incidir principalmente sobre os seguintes
pontos :
a) Prática da profilaxia e combate das doenças endémicas e infecto-
contagiosas ;
b) Efectividade da assistência indígena na gravidez, na infância e na
doença ;
c) Repressão das práticas de feitiçaria;
d) Vacinação;
e) Fornecimento de medicamentos, e pensos aos indígenas doentes;
f) Funcionamento dos hospitais, maternidades e estabelecimentos
congéneres;
§ 1.° Estas inspecções são extensivas às fazendas agrícolas e estabeleci-
mentos industriais, conjuntamente com o que está determinado na portaria
n.° 1.454, de 20 de dezembro de 1912.
§ 2.° Os inspectores sanitários apresentarão ao chefe dos serviços de
saúde relatórios sobre as suas inspecções.
§ 3.° Os inspectores sanitários terão direito a transportes e a ajudas de
custo, que competirem nos termos da legislação em vigor.
Art. 7.° O chefe dos serviços de saúde elaborará, anualmente, um re-
DE ANGOLA 753
latório sobre a assistência indígena na província, que apresentará ao Go-
vernador Geral, e enviará trimestralmente, á Secretaria dos Negócios In-
dígenas, o resumo das informações que lhe forem prestadas nos termos
da alínea k) do artigo 2.° e do § 2.° do art. 6.° desta portaria.
Art. 8.° Todos os que tenham a seu cargo a assistência indígena de-
verão dirigir-se sempre aos indígenas não como autoridades ou seus
emissários, mas sim como elementos de socorro e auxílio, procurando
atraí-los á nossa convivência, insinuando-se no seu espírito, e desfazendo
por meio da persuação e de um procedimento altruísta e desinteressado
quaisquer desconfianças, dúvidas ou ressentimentos que nutram a nosso
respeito.
Art. 9.° A assistência indígena começará a fazer-se desde já, de har-
monia com os elementos e recursos actuais, cumprindo ao chefe de ser-
viço de saúde organizar e montar sem demora os respectivos serviços, e
apresentar ao Governo Geral as medidas e regulamentos que para esse
fim julgar necessárias.
§ 1.° Logo que seja possível, instalar-se hão maternidades, ou pelo
menos salas ou quarto separados, para mulheres grávidas e puérperas,
em todas as localidades da província, onde já haja hospitais e enferma-
rias, a principiar por Loanda.
§ 2.° Para prover à falta de pessoal necessário à assistência indígena
será desde já aumentada e remodelada a escola de enfermeiros da pro-
víncia.
As autoridades e mais pessoas a quem o conhecimento e a execução
desta competir assim o tenham entendido e cumpram.
Residência do Governo Geral, em Loanda, 27 de março de 1914, — O
Governador Geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos.
Dinis, ^Sgenas de
c
SMITHSONIAN INSTITUTION LISRARIES
:> 3 9088 00080 8352