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PUBLICAÇÕES DO CDN3a.80 NACIONAL 
DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS 

(rio de janeiro) 

19^» v.aa n,5 
1947 v«86^30 

1946 v,89 n.5 




2 




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COMISSÃO DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS 
DE MATO GROSSO AO AMAZONAS 


(Publicação n.” 84) 


Anexos n.® 5 

HISTÓRIA NATURAL 


ZOOLOGIA 

Ofídios de Mato Grosso 

(Contribuição II para o conhecimento dos ofídios do Brasil) 


POR 

AFRANIO DO AMARAL 


1. » edição: Comp. Melhoramentos de S. Paulo 1925 

2. ® ” : autorizada pelo C. N. P. I. - 1948 


1048 

IMPRENSA NACIONAL. 
RIO DE JANEIRO — BRASIL 



SciELO 






















COMISSÀO .DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS 
DE MATO GROSSO AO AMAZONAS 


(Publicação n.“ 84) 


Anexos n." 5 

HISTÓRIA NATURAL 

ZOOLOGIA 


Ofídios de Mato Grosso 

(Contribuição II para o conhecimento dos ofídios do Brasil) 


POR 

AFRANIO DO AMARAL 


1. » edição: Comp. Melhoramentos de S. Paulo 1925 

2. » ” : autorizada pelo C. N. P. I. - 1948 


1948 

IMPRENSA NACIONAL 

RIO DE JANEIRO — BRASIL 


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BIBLIOTI.CA 

RECEBIDO tm; Of- 




SciELO 


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ÍNDICE 

Assunto Pâgs. 

INTRODUÇÃO . 5 

Na coleção de 99 exemplares que a "Comissão Rondon” ofereceu ao Museu 
Nacional, há 50 espécies representadas, sendo 3 novas, classificadas pelo autor: 

a) Liophis longivcntris 

b) Apostolepis Rondoni 

c) Micrurus albicinctus . 5 

Relação de 46 espécies já assinaladas para a fauna ofiológica de Mato-Grosso, 

representada por 96 espécies . 6 

CLASSIFICAÇAO : 

A) Familia Boidae ‘ 

B) Familia Colubridae 

C) Familia Amblycephalidae. ■ . 40 

D) Familia Viperidae . 42 

Estampa n." 1: figuras 1 a 6. 45 

Estampa n,° 2: figuras 7 a 10. 47 


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INTRODUÇÃO 


Quando, em fins de 1921, tomei a resolução de emprestar meus ser¬ 
viços de especialista ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, para determinar 
sua rica coleção de ofídios, mal supunha que, ao estender minhas vistas 
até os exemplares colhidos em épocas diversas^ entre 1908 e 19H, pela 
“Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato-Grosso ao Ama¬ 
zonas”, dirigida pelo eminente patrício General Cândido Mariano da Silva 
Rondon, viria a encontrar ali material tão abundante e precioso como aquele 
de que me vou ocupar no presente trabalho, segundo da série por mim 
encetada sob o titulo de “Contribuição para o conhecimento dos ofídios 
do Brasil" (1). 

As cobras da Comissão Rondon, colecionadas nas regiões central e 
setentrional de Mato-Grosso, perfazem o total de 99 exemplares, correspon¬ 
dentes a 50 espécies, das quais 3 novas, que descrevo, neste trabalho, sob 
os nomes, respectivamente, de Liophis longiventris. Apostolepis Rondoni 
e Micmrus albicinctus. 

Na aludida coleção figuram igualmente as espécies Rhinobothryum 
lentiginosum ScopOLi e Pseudoboa occipitolutea (Dm. & Birr.), as quais eu 
ainda não vira registadas para o Brasil, e bem assim as espécies, raras 
entre nós. Dvymobius dendtophis (Schl.), Urotheca bidncta (Herm). Atra- 


(1) Para a contribuição I, vejam-se os Anexos do Instituto de Butantan — Seção de 
Ofiologia — 1921 — I/l. 






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— 6 — 


ctus latilrons (Gthr.) , Pseudoboa bitorquata (Gthr.) c Ps. labialis (Jan), 
Philodryas uiridissinms (L. ). Dipsas variegata (Dm. & Bibr.) e Bothrops 
Castelnaudi Dm. & Bibr. 

Todavia, como e.xpressão de uma fauna estadual brasileira, a presente 
lista deve ser aumentada com diversas outras espécies já assinaladas an¬ 
teriormente em Mato-Grosso, a saber : 

1. Typhlops reticulatus (L.) — Koslowsky, J . — Reo. Mus. La Plata. 

1898, VIII: 26. 

2. Leptotyphlops albifrons (Wagl.) — Boulenger G. A. — Cat. 

Sn. 1893. I: 63 (loc. Corumbá). 

— Peracca, M. G. - Boll. Mus. Zool. Anat. Torino, 
1904. XIX. 460: 7 (loc. Urucum) . 

— Koslowsky, J. - 1. cit. : 26. 

3. Constrictor constrictor (L.) — Cope, E. D. - Proc. Am. Phil. Soc. 

1887. XXIV. 125: 56. 

— Koslowsky, J. - 1. cit.: 26. 

NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie das localidades matogrossenses Campo-Grande, Pôrto-Es- 
perança e Senador-Vitorino. 

4. Ilysia scytale (L.) — Koslwsky, J, - 1. cit.: 26. 

5. Helicops carinicauda (Wied) — Idem. 

6. Drymarchon corais (Boie) — Idem. 

•— Cope, E. D. - 1. cit. : 58. 

7. Leimadophis almadensis (Wagl.) — Boulenger, G. A. - Proc. 

Zool. Soc. Lond. 1903. II: 70 (loc. Chapada). 

— Koslowsky, J. - 1. cit.: 27. 

NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense Mutum. 

8. L. typhlus (L.) — Boulenger, G. A. - Cat. Sn. 1894, II : 137 (locs. 
Chapada e Corumbá) . 

— Koslowsky, J. - 1. cit.: 27. 

9. Cyclagras gigas (Dm. & Bibr.) — Idem. 


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— 7 — 

NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie das localidades matogrossenses Miranda, Pôrto-Esperança, 
Senador-Vitorino e Salobra. 

10. Lystrophis histricus (Jan) — Koslowsky, J. - 1. cit.: 28. 

11. Aporophis lineatus (L.) — Idem. 

12. Liophis genimaculatus (BoET.) — Idem. 

13. Dimades plicatilis (L.) •— Idem. . 

— Peracca, M. G. - 1. cit.: 8 (loc. Urucum). 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense Pôrto-Esperança. 

14. Simophis rhinostoma (Schl.) — Koslowsky, J. — 1. cit.: 28. 

15. Leptodeira annulata (L.) — Idem. 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé 
cie das localidades matogrossenses Guaicurus e Visconde 
Taunay. 

16. Pseudoboa trigemina (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, }. - 1, cit.: 29. 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie das localidades matogrossenses Aquidauana, Mutum e 
Campo-Grande. 

17. Ps. Guerini (Dm. õ Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit.: 29. 

— Boulenger, G. a. - Cat. Sn. 1896, III: 113 (loc. Co¬ 
rumbá) . 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense Guaicurus. 

18. Rhinostoma Guianensc (Tros.) — Koslowsky, J. - 1. cit. 29. 

NOTA :0 Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense Miranda. 

19. Philodryas Psammophideus (Gthr.) — Boulenger, G. A. - Cat. 

Sn. 1896. III: 132. 

— Koslowsky, J. - 1. cit. 29. 


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— 8 


20. Ph. Nattereri Steind. — Boulenger, G. A. - 1. cit. : 134. 

— Koslowsky, J. - 1. cit. 29. 

NOTA ;0 Instituto de Butantan tem recebido e.xemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense Mutum. 

21. Ph. matogrosscnsis Kosl. — Koslowsky, J - 1 . cit. . 29-30. 

NOTA :0 Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie das localidades matogrossenses : Correntes, Miranda, Mu¬ 
tum e Visconde Taunay. 

22. Platyinion lividum Amaral — Amaral, A. do — Proc. N. E. 

Zool. Club. 1923. VIII: 91. 

NOTA : Por engano de revisão, o tipo desta espécie foi, na publicação 
original, dado como procedente de Dorizon, Estado do Paraná, 
quando realmente foi recebido do Sr. Emilio Guarini, de 
Guaicurus, Estado de Mato Grosso, em 18 - X - 1920. 

23. Erythrolamprus aesculapii (L.) — Cope, E. D. - 1. cit.: 57. 

— Koslowsky, }. - 1. cit.: 30. 

24. Apostolcpis assimilis (Reinh.) — Boulenger, G. A. - Proc. Zool. 

Soc. Lond. 1903. II: 70 (loc. Chapada). 

25. Ap. erythronota (Pet.) — Cope, E. D. - 1. cit.: 56. 

— Boulenger, G. A. - Caí. Sn. 1896. III: 237. 

•— Koslowsky, J. - 1. cit.: 30. 

26. Ap. ambinigra (Pet.) — Boulenger, G. A. - 1. cit.: 237. 

— Koslowsky, }. - 1. cit. 30. 

— Cope, E. D. - 1. cit.: 56. 

27. Ap. intermédia Kosl. — Koslowsky, J. — 1. cit.: 30-31. 

28. Ap. BorcIIi Per. — Peracca, M. G. - 1, cit.: 9 (loc. Urucum). 

29. Elapomorphus tricolor (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit. 31. 

— Peracca, M. G. - 1. cit.: 10 (loc. Urucum). 

NOTA : O Instituto de de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬ 
cie da localidade matogrossense : Mato-Grosso. 

30. Micrurus corallinus (Wied) — Griffin, L. E. - Mem. Carn. Mus. 

1915. VII. 3: 217 (loc. Sto. Antônio do Guaporé). 




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— 9 — 

31 M. frontalis (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit; 31. 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie 
da localidade matogrossense: Campo-Grande. 

32. M. Icmniscatus (L.) — Peracca, M. G. - 1. cit.: 10 (locs. Corumbá 

e Urucum). 

33. Sibynomorphus turgidus (Cope) — Cope, E. D. - 1. cit.; 58. 

— Koslowsky. J. - 1. cit.: 32. 

— Peracca, M. G. - 1. cit.: 11 (locs. Carandázinho, Co¬ 
rumbá e Urucum). 

34. Bothrops Neuwiedii Wagl. — Griffin, L. E. - 1. cit.: 226. 

— Koslowsky, J. - 1. cit.: 32. 

NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie 
dás localidades matogrossenses; Aquidauana, Campo-Grande, 
Guaicurus, Mato-Grosso, Miranda, Mutum, Pórto-Esperança 
c Visconde Taunay. 

35. Crotalus terrificus (Laur.) — CoPE, E. D. - 1. cit.: 59. 

— Koslowsky, J. - 1. cit.: 32. 

— Peracca. M. G. - 1. cit.: 11 (loc. Urucum). 

NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie 
das localidades matogrossenses: Arapuá, Campo-Grande, Ca- 
randazal, Corumbá, Guaicurus Mato-Grosso, Miranda e Pôrto- 
-Esperança. 

A essas 35 espécies devo acrescentar mais as 11 seguintes, também 
não compreendidas no material da Comissão Rondon, mas recebidas pelo 
Instituto de Butantan, de diversos fornecedores da zona meridional de 
Mato-Grosso : 

36. Chironius sexearinatus (Wagl.) — Loc. Mutum. 

37. Xenodon Guentberi Blgr. — Loc. Joaquim Murtinho. 

38. Àporophis flavifrenatus (Cope) — Loc. Guaicurus. 

39. Lystrophis semicinctus (Dm. õ Bibr.) — Loc. Visconde Taunay. 

40. Pseudoboa cloclia (Daud. — Locs. Miranda, Mutum e Senador- 

-Vitorino. 


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45. 


46. 


— 10 — 

Ps. rhombifera (Dm. ô Bibr.) — Locs. Miranda e Mutum. 

Tomodon dorsatus (Dm. & Bibr.) — Does. Carandazal, Pôrto- 
-Esperança e Joaquim Murtinho. 

Philodryas aestivus (Schl.) —Loc. Campo-Grande. 

Ph. Schottii (Schl.) — Locs. Guaicurus, Miranda e Pôrto- 
-Esperança. 

Bothrops jararaca (Wied) (1) — Locs. Campo-Grande, Joaquim. 
Murtinho e Mutum. 

B. alternata Dm. & Bibr. — Locs. Àquidauana, Campo-Grande, 
Joaquim Murtinho e Mutum. 


Juntando-se as espécies acima assinaladas às que estão registadas no 
texto do presente trabalho, ver-se-á qne a fauna ofiológica de Mato-Grosso 
é representada atualmente por 96 espécies. 

S. Paulo, Junho de 1925. 


(1) Esta espécie foi assinalada por Koslovvsky (1. cit. : 32) para a mesma região e 
sob o nome de Lachesis lanceolatus (LACÉP.). A respeito da identificação desta espécie, 
veja-se o que publiquei in Anexos Mem. Inst. Butantan. Qfiologia. 1921. I-l : 32-3-f e 76-78. 


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A. 


Fam. BOIDAF 


1. - Gen. EPICRATES Wagler 

1. - EPICRATES CENCHRIS (Linnaeus) 

Dois exemplares colhidos por Emílio Stolle, no Norte de 
Mato-Grosso . 

N" 1 — Adulto 9. 

E. 49: V. 262; A. 1 : Subc. 58. Supralabiais 13. 

Comprimento total 808 mm ; cauda 92 mm. 

N" 2 — Jovem. 

E. 45 : V. 257 ; A. 1 ; Subc. 56. Supralabiais 13. 

Comprimeuto total 477 mm ; cauda 55 mm. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie da localidade ; Senador-Vitorino. 


11. — Gen. BOA Linnaeus 

J. Florêncio Gomes (1) já havia aceito a sugestão de Stejneger. 
(2) que, para o gênero denominado Corallus por Daudin, em 1803, 


(1) J. F. Gomhs — Ofídios do Museu Rocha (Ceará) — in Revista do Museu Paulista 
1918, X, p. 507. 

- (2) L. Stejneger — An annotatcd list of Batrachians and Reptiles colleted at the 
vicinity of La Guaira, Venezuela, with descriptions of two new species of snakes — in 
Proceded U. S. Nat. Museum. 1902, XXIV N. 1.248, pp. 184/185. 


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reservara o nome Boa, ficando Constritor para o que era geralmente 
chamado Boa. 

São estas as palavras com que Stejneger justificara a modifi¬ 
cação : 

"The generic name Boa must be retained for the genus 
afterwards known as Corallus Daudin (1803), while Constrictor 
must be used for the group ordinarily designated as Boa. as 
will be seen from the following analysis. 

In 1758 Linnaeus established the genus Boa, in which, 
among others species, he included B. canina. B, constrictor and 
B. orophias. Of course he indicated no generic types which must 
therefore be ascertained by the process of elimination. 

In 1768 Laurenti subdivided the genus into two genera, for 
one of which he retained the name Boa, proposing Constrictor for 
for the other. Boa he made to contain three nominal species but 
they all belong as synonyms to Linnaeus’ B. canina, which, there¬ 
fore, must stand as the type. Constrictor, on the other hand, contains 
the two other Linnean species mentioned above (the additional 
B. dininiloquus being only a synonym of B. orophias). This case 
is as plain as it can possibly be, and the well known Boa constrictor 
must henceforth be known as Constrictor constrictor." 

2. - BOA HORTULANA (Linnaeus) 

Seis exemplares. 

N*’ 3 — Jovem, colhido no Norte de Mato-Grosso. 

E. 59: V. 286; A. I : Subc. 112. Supralabiais H. 

Comprimento total 745 mm : cauda 140 mm. 

N“ 4 — Jovem, colhido no Norte de Mato-Grosso. 

E. 55 ; V. 276 ; A, 1 ; Subc. 113 Supralabiais 14. 

Comprimento total 662 mm : cauda 135 mm. 

N*" 5 — Adulto 9 , colhido pelo General RoNDON na região do Guaporé 
(Parecis). 





— 13 — 

E. 59 ; V. 285 + n : A. 1 ; Subc. 124. 

Comprimento total 1.765 mm -f- n (cabeça destruída) ; cauda 362 mm 
Contém no estômago uma pata não digerida e penas de um pássaro. 

Ns. 6, 7 e 8 — Exemplares imaturos, retirados da $ n“ 5. Colorido branco 
amarelado com manchas pardas. 

3. — BOA CANINA (Linnaeus) 

Um exemplar colhido no Norte de Mato-Grosso. 

N" 9 — Adulto 3. 

Rostral em contato com uma pequena placa que separa as 2 nasais ; 
nenhuma prefrontal ; 12 escamas no espaço interorbitário e 13 em 
tôrno da órbita ; preoculares 2 ; frenais 3 -f- 1 supranumerária ; supra- 
labiais H. E. 69 : V. 208. A 1 : Subc. 68. 

Comprimento total 802 mm ; cauda 137 mm. 

Verde-claro no dorso, com manchas e curtas faixas transversais 
branco-amareladas de contornos negros: ventre amarelado. 

IIL - Gen. EUNECTES Wagler 
4. - EUNECTES MURINUS (Linoaeus) 

Nome vulgar regional : “Sucuriju" (1) 

N? 10 — Pele com 2m.530, mutilada em dois pontos, de um exemplar morto 
na foz do Rio Castanha (tributário do Rio Madeira), em 4-IV-1914. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie das localidades Correntes e Pôrto-Esperança. 


(1) Neste trabalho só assinalarei as denominações registadas nos rótulos dos exem¬ 
plares de Mato-Grosso. 


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— 14 — 


B, - Fam. COLUBRIDAE 


(série aglypha) 


IV. - Gen. HELICOPS Wagler 


5. - HELICOPS LEOPARDINA (Schlegel) 


N" 11 — Adulto 9 contendo embriões e encontrado no Rio Jauru, a 
22-XI-1908, na bôca de um jacaré. 

E. 19 ; V. 120; A. 1/1 ; Subc. 60/60. Supralabiais 8 (4“) ; temporais 
1 + 3 1 anterior supranumerária de cada lado. 

Comprimento total 580 mm ; cauda H5 mm. 

N“ 12 — Adulto ?, contendo embriões e colhida em Pôrto-Esperidião (Rio 
Jauru), a 11-XI-1908. 

E. 19; V. 121 ; A. 1/1 ; Subc. 60/60. Supralabiais 8 (3’ e 4'^) : tem- 
<• - porais 1 -f- 2. 

Comprimento total 490 mm ; cauda 125 mm. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie da localidade Põrto-Esperança. 


6. - HELICOPS ANGULATA (Linnaeus) 


Nome vulgar regional : “Surucucurana”. A denominação indígena 


é dada, provavelmente, pela semelhança que esta espécie oferece com 


a “Surucucu" (Lachesis muta), por ser dotada de escamas carinadas 
e por apresentar grandes malhas negras losângicas no dorso. 


N" 13 — Jovem. 

E. 19: V. 110: A. 1/1 : Subc. 76/76. Temporais 1 +3/2+3. 
Comprimento total 192 mm : cauda 57 mm. 

N? 14 — Adulto 9. 

E. 19 : V. 111 : A. 1/1 : Subc. 81/81. Temporais 3 + 4, posteriores e 
também a superior da série anterior carinadas. Infralabiais 5/6 con¬ 
tíguas às mentais anteriores. 


cm 


2 3 


z 


5 6 



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— 15 


Comprimento total 404 mm ; cauda 129 mm. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie da localidade ; Pôrto-Esperança. 

7. - HELICOPS POLYLEPIS (Günther) 

Um exemplo. 

N? 15 — Adulto S. 

E. 23 ; V. 126 : Subc. 75/75. Temporais 1 -|- 2. Supralabiais 8 (4'>) . 
Infralabiais 5 ; contiguas às mentais anteriores, que são mais longas 
do que as posteriores. 

Comprimento total 400 mm ; cauda 116 mm. 

Dorso pardacento com 5 séries alternadas de manchas negras, 
sendo que as medianas, maiores, confluem e formam, no anterior do 
corpo, uma espécie de lista vertebral em zigue-sague. Duas ou três 
primeiras séries de escamas manchadas de amarelo intenso. Ventre 
negro, apresentando o lado das ventrais uma ou duas séries de manchas 
punctiformes amarelas, opostas ou alternadas de lado a lado. 


8 . 


V. - Gen. DRYMOBIUS Cope 

- DRYMOBIUS BIFOSSATUS (Raddi) 


Um exemplar. 

N- 16 — Adulto á . com a cauda mutilada. 

E. 15 : V. 186 ; Subs. 20/20 + n. 

Comprimento total 1 .320 mm + n. ; cauda 110 mm 


n. 


Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie das localidades Campo Grande, Correntes, Guaicurus, Ladário, 
Mato Grosso, Miranda, Mutum, Pôrto Esperança e Visconde Taunay. 

9. - DRYMOBIUS DENDROPHIS (Schlegel) 

Espécie relativamente rara entre nós, representada na coleção por 2 exem¬ 
plares . 

N'? 17 — Jovem, colhido ao Rio Jauru, acima de Pedra Branca, em dezembro 
de 1908. 


cm 


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— IG 


E. 17; V. 165: A. 1 ; Subc. 154/154; Supralabiais 9 (4-*, 5‘' e 6’) ; 
Postoculares 2. 

Comprimento total 350 mm ; cauda 148 mm. 

Dorso pardo-oliváceo com estreitas faixas transversaias negras, mar¬ 
geadas anteriormente por faixas lineares brancas e apresentando no têrço 
mediano da linha vertebral uma espécie de estria branca, longitudinal. 
Ventre esbranquiçado no centro e pardacento nos lados. 

N" 18 — Jovem, tendo no dorso faixas transversais pardacentas, separadas 
por espaços lineares brancos e uma estria branca vertebral, bem apa¬ 
rente no têrço mediano: ventre esbranquiçado no meio e pardo-oliváceo 
nos lados. 

E. 17: V. 158: A. 1 : Subc. 159/159. 

Supralabiais 10 (4'^, 5-, 6’ e 7“) /8 (3“, 4'> e 5^). Postoculares 2. 
Comprimento total 560 mm : cauda 250 mm. 

Como se vê, o número de subcaudais é superior ao limite máximo 
dessas placas (155), atribuído por Boulenger (') à espécie de que trato. 
Todavia J. F. Gomes (-) em um exemplar, procedente do Amazonas e 
pertencente ao Museu Rocha, do Ceará, havia encontrado 183 pares ; e, 
além disto. ScHLEGEL (’). num dos espécimes típicos, originário de 
Caiena, na Guiana Francesa, assinalara 196 pares. 


VI. - Gen. SPILOTES Wagler 

10 — SPILOTES PULLATUS (Linnaeus) 

Um exemplar. 

N" 19 — Jovem. 

E. 16: 220: A. 1; Subc. 119/119. Frenal, pequena, colocada abaixo 
da sutura da preocular com' a nasal posterior ; supralabiais 8 (4'' e 
5*). Temporais 1-1-1. 

Comprimento total 515 mm ; cauda 120 mm. 

Color'do : dorso negro, com manchas amarelas irregulares na parte 
anterior e com anéis negros completos, dispostos mais ou menos re- 


(1) Cat. of Snakes — 1894. II. p. 16. 

(2) Loc. cit. p. 508. 

(3) H. ScHLEGEL — Essai sur la Physion. de.s Serpents. Amsterdam. 1837. p. 197. 


cm i 


vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16 






— 17 — 

gularmente e separados por espaços amarelos, na parte posterior do 
corpo e na cauda. Ventre amarelado, com faixas incompletas transver¬ 
sais. negras. 

VII. — Gen. CHIRONIUS Fitzinger 

11. — CHIRONIUS CARINATUS (Linnaeus) 

Um exemplar. 

N*" 20 — Adulto $ . 

E. 12; V. 153; A. 1/1: Subc. 145/H5. Postoculares 2. Temporais 
I + 1. Supralabiais 9 (4», 5» e b»). 

Comprimento total 982 mm ; cauda 390 mm. 

Colorido : dorso pardo-oliváceo, ligeiramente amarelado na linha 
vertebral; ventre amarelo-pardacento. 

12. - CHIRONIUS FUSCUS (Linnaeus) 

Nome vulgar regional : "Papa-ovos". 

Três exemplares. 

N“ 21 — Adulto á . 

E. 10, as 2 séries vertebrais carinadas ; V. 156; A. 1 ; Subc. 118/118. 
Supralabiais 9 (4’, 5» e . Mentais anteriores cêrca de 2/3 das 
posteriores. 

Comprimento total 870 mm ; cauda 280 mm. 

Colorido : pardo-oliváceo no dorso e pardo-amarelado no ventre. 

N? 22 — Adulto $ . 

E. 10, lisas: V. 154 ; A. 1 : Subc. 118/118. Supralabiais 9 (5» e 6’). 
Mentais anteriores um pouco menores que as posteriores. 

Comprimento total 1.310 mm; cauda 457 mm. 

Colorido : negro-oliváceo no dorso e pardo, intensamente manchado 
de negro, no ventre. 

N*" 23 — Adulto 9 . 

E. 10, as 2 séries vertebrais carinadas ; V. 147 ; A. 1 ; Subc. 135/135, 
número excepcional para a espécie. Supralabiais 9 (4‘», 5» e 6'^) . 
Mentais anteriores um pouco menores do que as posteriores. 
Comprimento total 1.185 mm; cauda 450 mm. 

Colorido : oliváceo escuro no dorso e pardo, finamente manchado 
de negro sôbre o bordo das placas, no ventre. 


cm 


SciELO 


11 12 13 14 15 16 17 





— 18 — j 

VIIL - Gcn. LEPTOPfflS Wagler 

13. - LEPTOPHIS AHAETULLA (Linnaeus) 

Nome vulgar regional : "Azulão-bóia”, denominação tirada do colo¬ 
rido azul brilhante intenso que alguns espécimes, quando vivos, 
apresentam. 

Dois exemplares. 

N*" 24 — Adulto $ , colhido por Cesar Diogo, à Lagoa Mandioré, em se¬ 
tembro de 1908. 

E. 15: V. 162, fortemente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc. 
99/99+ 1 (3’ impar) + n. Temporais 1 + 1. Supralabiais 7/8 (4’ 
5^). Cinco infralabiais contíguas às mentais anteriores. 

Comorimento total 1.000 mm; cauda 330 mm (mutilada). 

Colorido ; dorso azul-oliváceo anteriormente, passando a brônzeo 
na parte posterior ; ventre amarelado brilhante. 

N“ 25 — Adulto, apresentando variação no colorido e no n’ de supralabiais. 
E. 15, as 5 séries medianas, no têrço médio do corpo, carinadas; 
V. 170, fortemente anguladas lateralmente. Supralabiais 7 (4» e 
5^). Cinco infralabiais contiguas às mentais anteriores. 
Comprimento total 1.060 mm ; cauda 354 mm. 

Colorido : azul bronzeado no dorso, cabeça e cauda ; leve estria 
negra, passando pela órbita ; ventre azul acinzentado. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta 
espécie das localidades Guaicurus, Miranda, Ladário e Pôrto-Esperança. 

14. - LEPTOPHIS NIGROMARGINATUS (Günther) 

Dois exemplares. 

N® 26 — Adulto 5 

E. 15; V. 157, nitidamente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc. 
118/118 + n. Preocular, dividida à direita e semi-dividida à 
esquerda; frontal 1 1/2 vez tão longa quanto larga; supralabiais 
9 (5® e b'^) ; seis infralabiais contiguas às mentais anteriores. Es¬ 
camas dorsais lisas no 1/3 anterior e no posterior do corpo ; no 
1/3 médio, somente as 3 séries medianas é que são um pouco ca¬ 
rinadas, tôdas as demais lisas, o que representa uma exceção, em- 


cm i 


vSciELO) 12 13 14 15 16 





— 19 — 

bora se trate de um espécime ç. Ventrais nitidamente anguladas 
lateralmente. 

Comprimento total 951 mm ; cauda 352 mm. 

Colorido (em álcool) : azul-esverdeado intenso: escamas do dorso 
c placas cefálicas intensamente margeadas de negro ; carinas negras : 
lista negra temporal começando atrás da órbita ; uma pinta negra sôbre 
as supraoculares ; ventre nacarino esverdeado; ventrais e subcaudais 
orladas de verde-azulado na base. 

Êste exemplar está com 3 ovos e apresenta, no estômagp, restos 
não digeridos de um batráquio. 

N" 27 — Adulto S . 

E. 15; V. 152, nitidamente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc. 
151/151. Frontal 1 2/3 vez tão longa quanto larga; supralabiais 
9 (5'^ e 6*) : seis infralabiais contíguas às mentais anteriores. Es¬ 
camas dorsais nitidamente carinadas no 2’ e 3" 1/5 anteriores 
do corpo. 

Comprimento total 960 mm ; cauda 380 mm. 

Colorido (em álcool) : como no n'? 25 ; leve lista negra atrás da 
órbita: mancha negra sôbre as supraoculares e parietais. 

Nota. — Quando se examinam comparativamente muitos exem¬ 
plares de L. nigromarginatus (Güenther), fica-se surpreso diante das 
variações que muitos dêles mostram. No presente material, o exemplar 
n’ 25 tem, como ficou registado, sòmente as 3 séries medianas de es¬ 
camas ligeiramente carinadas, fato que parece excepcional (embora se 
trate de uma $ ) e ainda não fôra assignalado. 

IX. Gen. LEIMADOPHIS Fitzinger 
15. - LEIMADOPHIS POECILOGYRUS (Wied) 


Dois exemplares. 

N? 28 — Adulto $ . 

E. 19: V. H6: A. 1/1 : Subc. 47/47. 

Comprimento total 421 mm ; cauda 73 mm. 

Colorido : pardo oliváceo no dorso, com esboços de manchas trans¬ 
versais negras; 


ventre amarelado, levemente manchado de escuro. 


cm 


SciELO 


11 12 13 14 15 16 17 





N? 29 — Adulto $, trazido de S. Luiz de Cáceres, por F. C. Hoehne 
(5-I-19H). 

E. 19; V. 150: A. 1/1 ; Subc. 46/46. 

Comprimento total 298 mm ; cauda 50 mm. 

Colorido : pardo-oliváceo no dorso, coberto de leves pintas irre¬ 
gulares negras; ventre amarelo-alaranjado com leves manchas cinzento- 
-escuras. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta 
espécie das localidades : Campo-Grande, Correntes, Miranda e Mutum. 

16 . - LEIMADOPHIS REGINAE (Linnaeus) 

Nomes vulgares regionais: “Jaboti-bóia" e “Goipeba". 

Oito exemplares. 

N“ 30 — Adulto $ . 

E. 17 : -V. 149 : 1/1 : Subc. 58/58. 

Comprimento total 338 mm ; cauda 72 mm. 

Colorido : dorso oliváceo, finamente manchado de negro ; muitas 
escamas apresentam as bordas brancas, mormente na parte anterior do 
corpo : leve estria negra passando por sob a órbita ; esbôço de colar 
amarelado da nuca ; bem nítida linha negra de cada lado da cauda ; 
ventre amarelo intensamente manchado de negro. 

N® 31 — Jovem. 

E. 17: V. 150: A. 1/; Subc. 71/71. 

Comprimento total 163 mm; cauda 38 mm. 

Colorido : dorso oliváceo com retículo anegrado: mancha ama¬ 
rela desde a parietal à última supralabial; leve lista negra passando 
por sob a órbita ; colar amarelo na nuca : lista negra ao lado da cauda ; 
ventre amarelo-pardacento muito manchado de negro. 

N® 32 — Adulto S . 

E. 17; V. 142; A. 1/1 ; Subc. 66/66. Supralabiais 9/8 (5- e 
6V4 ' e 5»). 

Comprimento total 520 mm ; cauda 133 mm. 

Colorido : dorso oliváceo até acinzentado, bordas das escamas da 
parte anterior manchadas de negro e de branco, formando um desenho 
reticulado : lista negra por sob a órbita : mancha amarelo-acinzentada 





21 — 


da parietal à última supralabial; lista negra ao lado do 5’ posterior 
do corpo até a cauda: ventre amarelo levemente manchado de negro. 

N’ 33 — Adulto 5 . 

E. 17; V. H7: A. 1/1 : Sub. 61/61. 

Comprimento total 388 mm ; cauda 89 mm. 

Colorido : como no n’ 32. 

N*> <34 — Adulto 9. 

E. 17: V. 146: A. 1/1; Subc. 42/42 + n. 

Comprimento total 720 mm -|- n. : cauda 130mm+n. 

Faixa parietal-labial. Lista caudal negra. 

N" 35 — Adulto á . 

E. 17: V. 150: A. 1/1 ; Subc. 69/69. 

Comprimento total 694 mm : cauda 178 mm. 

Apresenta no estômago restos de um Lacertídio. 

Faixa parietal-labial. Lista caudal negra. 

N® 36 — Adulto á . 

E. 17 : V. 150 : A. 1/1 : Subc. 64/64. 

Comprimento total 637 mm : cauda 159 mm. 

Faixa parietal-labial. Lista caudal negra. 

N** 37 — Adulto 9 . 

E. 17: V. 146; A. 1/1; Subc. 34/34-fn. 

Comprimento total 505 mm -F n. : cauda 74 mm n. 

Faixa parietal-labial. Lista caudal negra. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta 
espécie das localidades Miranda e Mutum. 

X. - Gen. XENODON Boie 

17. - XENODON COLUBRINUS Günther 

Nome vulgar regional: «Jibóia». Esta denominação parece aplicar-se 
a esta espécie sòmente nessa região, pois em quase todo o resto 
do Brasil ela designa a Boidea, Constrictor constrictor (L.) 

Dois exemplares. 


cm 


SciELO 


11 12 13 14 15 16 17 





— 22 — 


N? 38 — Adulto 2, procedente do Norte de Mato-Grosso. 

E. 19 : V. 155 + n (4 mutiladas) ; A. 1 ; Subc. 45/45. 

Comprimento total 1.104 mm ; cauda 153 mm. 

Ventre amarelado com leves manchas pardas, anteriormente, e bem 
manchado, posteriormente. 

N" 39 — Jovem. 

E. 19 ; V. 135 : A. 1 ; Subc. 45/45. Rostral uma vez e meia tão larga 
quanto alta ; supralabiais 9 (4- e 5») ; preoculares 2 ; postoculares 
2 : temporais 1 + 2 ; 4/5 infralabiais contíguas às mentais ante¬ 
riores, que são maiores do que as posteriores. 

Comprimento total 263 mm ; cauda 40 mm. 

Colorido : dorso pardacento-claro com largas faixas transversais 
castanhas de bordas escuras, algumas levemente constringidas no meio ; 
ventre pardo com manchas escuras anteriormente e pintas amarelas sôbre 
o lado das ventrais. 

Êste, exemplar representa visivelmente uma variação, já no que se 
refere às supralabiais que no tipo são em n’ de 8 (excepcionalmente 
7), já no que diz respeito ao colorido do ventre que no tipo é amarelado 
com cintas escuras. 


18. - XENODON SEVERUS (Linnaeus) 


Nome vulgar regional : “Jacanarana". 
Dois exemplares. 


N? 40 — Jovem. 


E. 21 : V. 131 ; A. 1/1 : Subc. 41/41. Postoculares 2. Temporais 
1 -f3. 


Comprimento total 283 mm ; cauda 39 mm. 

Ventre negro com manchas laterais amarelas. 

Contém no estômago, restos não digeridos de dois pequenos ba- 


trácios. 


N? 41 — Jovem. 

E. 21 : V. 135 : A. 1/1 ; Subc. 37/37. Temporais 1 4- 2. 
Comprimento total 243 mm ; cauda 31 mm. 


cm 


2 3 


L. 


5 6 



11 12 13 14 15 16 





2;í 


Colorido como no n’ dO. 

Contém no estômago restos não digeridos de um batrácio. 

19. - XENODON MERREMII (Wagler) 

Nome vulgar regional : "Boipeva”. 

Um exemplar. 

N** 42 — Adulto S . 

E. 19; V. HO. A. 1. Subc. 48/48. Preocular 1 ; postoculares 2; 
nenhuma subocular. Supralabiais 7 (H à direita soldada à pre- 
nasal) . 

Compriment ototal 1.104 mm; cauda 153 mm. 

Colorido : dorso amarelo-oliváceo claro com faixas transversais 
pardas de bordas escuras, constringidas no meio ; cabeça com faixas 
curvas pardas de bordas amarelas': ventre amarelo-pardacento levemente 
manchado de pardo-escuro sôbre a base das ventrais e subcaudais. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie das localidades : Arapuá, Campo-Grande, Correntes, Guaicurus. 
Joaquim-Murtinho, Miranda, Mutum, Pôrto-Espefança, Senador-Vitorino 
e Visconde-Taunay. 

XL - Gen. LIOPHIS Wagler 

20. - LIOPHIS LONGIVENTRIS sp. n. 

(Estampa; figs. 1-3) 

Um exemplar. 

N** 43 — Adulto ê. 

E. 17; 177; A. 1/1 : Subc. 49/49. Frenal um pouco mais alta do 
que longa ; preocular 1 ; postoculares 2 (à esquerda, a postocular 
inferior está soldada à 5» supralabial) ; temporais 1 -f2 ; supralabiais 
7 (3" e 4^^ contíguas à órbita) ; quatro infralabiais contíguas às 
mentais anteriores que são um pouco mais longas do que as pos¬ 
teriores. 

Comprimento total 476 mm ; cauda 75 mm. 

Colorido : dorso castanho-anegrado, tendo estreitas linhas transver¬ 
sais esbranquiçadas, e apresentando algumas escamas as bordas brancas ; 


cm 


vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16 




— 24 — 


esboço de colar negro da nuca e de par de manchas esbranquiçadas 
dos parietais ; ventre amarelado com manchas negras transversais, alter¬ 
nadas ou formando faixas completas. 

À presente espécie distingue-se de L. cobella (L.), por ter maior 
número de ventrais : 7, em vez de 8, supralabiais ; e 4, em vez de 5, 
infralabiais contíguas às mentais anteriores. 

21. - LIOPHIS OCCIPITALIS (Jan) 

Um exemplar, colhido à Foz do Pirapitinga (S. Luiz de Cáceres) em 
24-VIII-1908. 

N® 44 — Adulto. 

E. 15; V. 182: A. 1/1; Subc. 81/81: Temporais 2 + 2/1 +2: 

quatro infralabiais, contíguas às mentais anteriores. 

Comprimento total 372 mm ; cauda 97 mm. 

Colorido típico. 

XIL - Gen. UROTHECA Bibron 

22. - UROTHECA BICINCTA (Hermann) 

Embora seja esta uma espécie bastante rara, todavia está bem 
representada na coleção. 

Três exemplares. 

N“ 45 — Adulto S, colhido por Blake, em Tapirapuã, em janeiro de 1914. 
E. 19 ; V. 172 ; A. 1 : Subc. 79/79 : 7/6, escamas, além da supraocular, 
em redor da órbita : temporais 2 -j- 3 : supralabiais 8. 

Comprimento total 393 mm : cauda 99 mm. 

N® 46 — Adulto S, colhido por Alípio Miranda Ribeiro, em Tapirapuã, 
a23-III-1909. 

N'' 47 — Adulto colhido por Alipio Miranda Ribeiro, em Tapirapoã, a 1 de 
março de 1909. 

E. 19: V. 170-1-2: A. 1: Subc. 81/81 : seis escamas, além da 
supraocular, em redor da órbita. Temporais 3 -|-3. Supralabiais 7/8. 
Comprimento total 408 mm : cauda 105 mm. 


cm i 


vSciELO) 12 13 14 15 16 





25 — 


E. 19; V. 170; A. 1 : Subc. 81/81 ; seis escamas, além da supra- 
ocular em redor da órbita, à direita (regiões orbitária e parietal 
esquerdas mutiladas). Temporais 3 + 3/2 + 3. Supralabiais 8. 
Comprimento total 406 mm : cauda 102 mm. 

Nota. — O colorido dêstes exemplares é absolutamente idên¬ 
tico ao assinalado por G. A. Boulenger. 

XIIL - Gen. ATRACTUS Wagler 

23. - ATRACTUS LATIFRONS (Günther) 

Dois exemplares desta espécie pouco frequente, colhidos por Emílio 
Stolle, no Norte de Mato-Grosso. 

N" 48 — Jovem. 

E. 17: V. 157; A. 1 ; Subc. 33/33,; quatro supralabiais contíguas 
à mental. 

Comprimento total 212 mm ; cauda 26 mm. 

Colorido : 14 pares de anéis negros, separados por espaços ama¬ 
relos, cujas escamas têm o ápice negro; um anel negro singular na 
nuca; cabeça negra com uma faixa amarela preocular, interrompida 
no centro e uma faixa amarela ocipital. 

N" 49 — Jovem. 

E. 17 ; V. 154; A. 1 ; Subc. 27/27 ; quatro supralabiais contíguas 
à mental. 

Comprimento total 182 mm; cauda 20 mm. 

Colorido : 11 pares de anéis negros ; um anel negro singular na 
nuca e outro na ponta da cauda; cabeça negra sem faixa amarela 
preocular ; fai.xa amarela ocipital. 

Nota. — Em ambos os exemplares, a 5^^ supralabial é muito pouco 
mais alta do que a 4^. Êste caráter que até agora só foi registado 
por J. F. Gomes (1), serve, conjuntamente com o menor número de 
séries de escamas, para distinguir esta espécie de Atractus elaps ( Guen- 
ther), que lhe é muito afim. 


(1) J. F. Gomes, in Rev. Museu Paulista. 1918. T. X. p. 516. 


cm 


vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16 






— 26 — 

(série opisthoglypha) 

XIV. - Gen. LYCOGNATHUS Dm. & Bibr. 

24. - LYCOGNATHUS CERVINUS (Laurenti) 

Um exemplar. 

N® 50 — Adulto (mutilado) . 

E. 19 : V. 228 : A. 1 : Subc. 100/100. Postoculares 2 ; supralabiais 
8 (4» e 5*). 

Comprimento total 653 mm : cauda 159 mm. 

Colorido ; branco manchado e cintado de negro : ventre amarelado, 
manchado irregularmente de negro. 

XV. - Gen. TRYPANURGOS Fitzinger 

25. -- TRYPANURGOS COMPRESSUS (Daudin) 

Um exemplar, um tanto mutilado no ventre. 

N’ 51 — Jovem. 

E. 19; V. 253; A. 1 ; Subc. 115/115. 

Comprimento total 365 mm ; cauda 83 mm. 

Colorido como no tipo. 

XVI. - Gen. RHINOBOTHRYUM Wagler 

26. - RHINOBOTHRYUM LENTIGINOSUM (Scopoli) 

Espécie, cuja presença ainda não tinha sido assinalada no Brasil, re¬ 
presentada na coleção por 2 exemplares. 

No 52 — Adulto 9 . 

E. 19, as 7 séries medianas do centro do corpo levemente carinadas ; 
V. 269; À. 1/1 ; Subc. 112/112; supralabiais 8 (o e 5^) ; cinco 
infralabiais contiguas às mentais anteriores ; mentais posteriores se¬ 
paradas por 3 escamas. 


cm 


vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16 





27 — 


Comprimento total 655 mm : cauda 123 mm. 

Colorido : 21 anéis negros, sendo o primeiro na nuca, separados 
por anéis brancos cujo centro é ocupado por uma faixa amarelada sal¬ 
picada de negro; placas cefálicas negras orladas de branco. 

N** 53 — Adulto $ . 

E. 19, as 7 séries carinadas como no n'? 52 ; V. 275; A. 1/1 ; 

111 / 111 . 

Comprimento total 1.210 mm; cauda 241 mm. 

Colorido : como no exemplar anterior ; 29 anéis negros completos 
e 1 incompleto em redor do corpo. 


XVIL - Gen. IMANTODES Dm. ô Bibr. 

27. - IMANTODES CENCHOA (Linnaeus) 

Seis exemplares. 

4 

N" 54 — Adulto ê , com a cauda mutilada. 

E. 17; V. 263; A. 1/1 ; Subc. 57/57 -j- n. Preoculares 2; posto- 
culares 2 ; temporais 2 + 3 ; supralabiais 8 (4’ e 5'>) ; cinco infra- 
labiais contíguas às mentais anteriores que são um pouco mais 
curtas do que as posteriores. 

Comprimento total 845 mm n; cauda 133 mm -j- n. 

Colorido : dorso amarelo-pardacento com 47 -]- n manchas trans¬ 
versais castanho-escuras ; ventre amarelado salpicado de castanho. 

Ni* 55 — Adulto á . 

E. 17 ; V. 274 ; A. 1/1 : Subc. 172/172. Preoculares 2 ; postoculares 
2 ; temporais 2 -j- 3 ; supralabiais 8 (3", 4“ e 5") ; cinco infralabiais 
contíguas às mentais anteriores que são um pouco mais curtas do 
que as posteriores. 

Comprimento total 1.160 mm ; cauda 345 mm. 

Colorido; como no n“ 54, com 56 manchas transversais simples 
-j- 4 bifurcadas de um lado 1 unilateral. 

Ni’ 56 — Adulto, colhido no Norte de Mato Grosso. 

E. 17; V. 263; A. 1/1; Subc. 171/171. Preocular 1; postoculares 
2; temporais 2-j-3 ; supralabiais 8 (4’ e 5») ; cinco infralabiais 
mentais anteriores. 


cm 


•SciELO 


0 11 12 13 14 15 16 




— 28 — 

Comprimento total 610 mm; cauda 178 mm. 

Colorido : como nos exemplares anteriores, com 67 manchas trans¬ 
versais simples -f- 4 bifurcadas de um lado. 

N® 57 — Adulto, colhido no Norte de Mato-Grosso. 

E. 17; V. 279: A. 1/1; Subc. 179/179. Preoculares 2; postocula- 
res 2 : temporais 2 -j- 2 ; supralabiais 8 (4‘'> e 5») ; cinco infralabiais 
-f- mentais anteriores. 

Comprimento total 505 mm ; cauda H7 mm. 

Colorido : como nos exemplares anteriores, com 71 manchas trans¬ 
versais simples -f 4 bifurcadas de um lado -|- 5 unilaterais. 

Apresenta no estômago restos de um Lacertidio. 

N*" 58 — Adulto $. 

E. 17; V. 278; A. I/l : Subc. 111/111 n. Preoculares, posto- 
culares, temporais, supralabiais e infralabiais como no n’ 57. 
Comprimento total 1.065 mm n. : cauda 255 mm -j- n. 

Colorido : como nos exemplares anteriores, com 54 manchas trans¬ 
versais simples 6 bifurcadas de um lado -p 1 unilateral. 

N? 59 — Adulto á . 

E. 17; V. 266; A. 1/1; Subc. 170/170. Preoculares, postoculares, 
temporais e infralabiais como nos ns. 58 e 57; supralabiais 7 
(3» e 4»). 

Comprimento total 1.162 mm; cauda 357 mm. 

Colorido : como nos exemplares anteriores, com 67 manchas trans¬ 
versais simples -j- 2 bifurcadas de um lado -j- 1 unilateral. 

XVIIL - Gen. LEPTODEIRA Fitzinger 

28. - LEPTODEIRA ANNULATA (Lnnaeus) 

Nome vulgar regional : “Cacaual". 

Cinco exemplares. 

N® 60 — Adulto S . , 

Comprimento total 630 mm ; cauda 162 mm. 

Colorido : dorso pardacento com 1 faixa em zigue-rague, côr de 
chocolate, pouco perceptivel, manchas laterais ausentes; occiput es¬ 
branquiçado; ventre branco-amarelado. 


cm 


7SCÍELO3 ;l1 12 13 14 15 16 






— 29 


N? 61 — Adulto ê . 

E. 19 (vertebrais ligeiramente mais largas) : V. 194; A. 1/1 ; Subc. 
98/98. Subocular ausente: postoculares, supralabiais e infralabiais. 
como no n’ 60 ; mentais anteriores iguais às posteriores. 

92/92. Subocular ausente: postoculares 2; supralabiais 8 (3’, 
4-' e 5*) : seis infralabiais contíguas às mentais anteriores que são 
um pouco mais longas do que as posteriores. 

Comprimento total 758 mm ; cauda 205 mm. 

Colorido : mais nitido do que o do exemplar anterior. 

N’ 62 — Adulto 9, colhido por Emílio Stolle, no Norte de Mato-Grosso. 
E. 19 (vertebrais ligeiramente mais largas) : V. 197 ; A. 1/1 : Subc. 
92/92. Placas cefálicas como no n- 60; colorido também igual, 
porém mais nitido. 

Comprimento total 652 mm ; cauda 164 mm. 

N*" 63 — Adulto $ . 

E. 19 (série vertebral, nalguns pontos, mais larga) : V. 188 ; A. 
1/1 : Subc. 89/89. Placas cefálicas e colorido como no n’ 60; 
mas, 5 infralabiais somente contíguas às mentais anteriores que são 
longas quanto às posteriores. 

Comprimento total 700 mm ; cauda 170 mm. 

Apresenta no estômago um batráquio. 

N<’ 64 — Adulto á . 

E. 19 (série vertebral como no n’ 62) ; V. 190; A. 1/1 : Subc. 
99/99. Placas cefálicas como no n’ 60. 

Colorido como no n’ 61. 

Comprimento total 601 mm ; cauda 160 mm. 

XIX. -- Gen. PSEUDOBOA Schneider 

29. — PSEUDOBOA BITORQUATA (Günther) 

Espécie rara, representada na coleção por dois exemplares. 

Nf' 65 — Adulto S ■ 

E. 19; V. 213; A. 1: Subc. 80/80. Preocular contígua à frontal. 
Supralabiais 8 (4" e 5’). 


cm 


-SciELO 


0 11 12 13 14 15 16 




30 — 


Comprimento total 570 mm ; cauda 114 mm. 

Colorido : dorso pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ; ca¬ 
beça negra com uma estreita feixa clara transversal no occiput ; uma 
faixa negra na nuca, transversal, precedida de uma outra clara ; ventre 
amarelado. 

N® 66 — Adulto $ . 

E. 19; V. 205; A. 1 : Subc. 76/76. Preocular contígua à frontal. 
Supralabiais 8 (4» e 5’). 

Comprimento total 473 mm ; cauda 92 mm. , 

Colorido : como no exemplar anterior. 

30. - PSEUDOBOA PETOLA (Linnaeus) 

Dois exemplares. 

N? 67 — Jovem. 

E. 19; V. 216; A. 1 ; Subc. 88/88. Preocular contigua à frontal. 

Supralabiais 8 (4'^ e 5“) . 

Comprimento total 343 mm ; cauda 68 mm. 

Colorido : cabeça negra: dorso anegrado com 11 faixas trans¬ 
versais amareladas, a primeira na nuca, e reduzidas, em alguns pontos, 
a manchas laterais da mesma côr, em número de 9/8 em todo corpo ; 
ventre amarelado. 

N“ 68 — Jovem, anômalo. 

E. 19; V. 218; A. 1 ; Subc. 107/107. Frenal ausente à direita, e 
diminuta à esquerda ; preocular contígua à frontal; postocular 1 ; 
temporais 2 4-3; supralabiais 8 (4‘^ e 5’) ; cinco infralabiais con- 
tiguas às mentais anteriores que são um pouco mais curtas do que 
as posteriores. 

Comprimento total 267 mm ; cauda 62 mm. 

Colorido : cabeça e dorso castanho anegrados, êste com 27 faixas 
transversais amareladas, a primeira na nuca e três faixas interrompidas 
na linha vertebral; ventre amarelado. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie da localidade Guaicurus. 


JSciELO 








— 31 — 


31. -- PSEUDOBOA LABIALIS (Jan) 


Espécie rara no Brasil, representada na coleção por 2 exemplares. 

Np 69 — Adulto á . 

E. 19 ; V. 200 ; A. 1 : Subc. 65/65 ; ôlho cêrca de metade da exten¬ 
são do focinho, que é arredondado : frenal pouco mais de 2 vêzes 
tão longa quanto alta : preocular bem separada da frontal; supra- 
labiais 8 (d» e 5’) ; quatro infralabiais contíguas às mentais ante¬ 
riores que são um pouco mais longas do que as posteriores. 
Comprimento total 940 mm : cauda 170 mm. 

Colorido : cabeça pardo-escura até a nuca, extremidade do focinho 
mais clara; dorso pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ; ventre 
amarelado, apresentando raras manchas anegradas. 

Np 70 — Adulto á . 

E. 19: V. 200. A. 1 : Subc. 70/70. Cabeça c placas cefálicas como 
no exemplar anterior. 

Comprimento total .590 mm : cauda 110 mm. 

Colorido : cabeça como no n’ 69 : dorso pardo-alaranjado com es¬ 
boço de largas manchas escuras transversais : ventre amarelo imaculado. 

32. - PSEUDOBOA OCCIPITOLUTEA (Dm. & Bibr.) 

Espécie, cuja existência no Brasil não achei registada em publicação 
alguma ; representada na coleção por um exemplar. 

Np 71 — Adulto ?. 

E. 19: V. 225: A. 1 : Subc. 101/101. Porção da rostral visivel de 
cima igual a 2/5 de sua distância da frontal: preocular bem sepa¬ 
rada desta: supralabiais 7 (3» e 4») : cinco infralabiais (a 5» toca 
levemente) contíguas às mentais anteriores que são maiores do que 
as posteriores. 

Comprimento total 695 mm : cauda 153 mm. 

Colorido : dorso amarelo-pardacento, escamas com o ápice e as 
bordas mais escuras : cabeça pardo-anegrada com uma larga faixa pardo- 
amarelada que se estende desde atrás da órbita até a nuca, onde há uma 
grande mancha pardo-anegrada: ventre amarelado: ápice das sub- 
caudais pardo. 


cm 


2 3 


z 


5 6 



11 12 13 14 15 16 





— 32 — 


XX. - Gcn. THAMNODYNASTES Wagler 

33. - THAMNODYNASTES STRIGILIS (Thunberg) (1) 

Um exemplar, colhido à Lagoa Gahyba, em setembro de 1908. 

N® 72 — Adulto $ , contendo embriões. 

E. 17, fortemente carinadas, menos a série externa; 'V. 137 ; A. 1/1 : 
Subc. 85/85. Supralabiais 8 (4* e 5^) ; temporais 2 + 3; cinco 
infralabiais contíguas às mentais anteriores que são tão longas 
quanto as posteriores. 

Comprimento total 575 mm ; cauda 17 mm. 

Colorido : dorso pardo, tendo, de cada lado, uma estria côr de cho¬ 
colate sóbre a metade da 3* e da 4“ séries de escamas ; e, sôbre a série 
vertebral, outra da mesma côr, limitada para fora por um pontilhado 
negro nítido; cabeça parda com estrias côr de chocolate e salpicada 
de negro ; supralabiais também salpicadas de negro; estria negra post- 
-orbitária presente; ventre amarelo com pintas e estrias negras ; margem 
das placas apresentando sucessivamente, da cabeça até a cauda, 2, 3, 4, 
3, 2 séries de pontos negros, unidos, no sentido longitudinal, por leves 
estrias negras. 

Nota. —- Êste exemplar afasta-se do tipo, por apresentar 17 séries 
de escamas e 85 pares de subcaudais (^), caracteres que o aproximam 
de Th. punctatissimus (Wagler), da qual, todavia, diverge, por possuir 
anal dividida e escamas carinadas. Ê, pois, perfeitamente intermediário 
às duas espécies do gênero. 

Doutra parte, sendo comum encontrarem-se variações regionais de 
Th. strigilis (Thunberg), e não sendo raros os exemplares desta es¬ 
pécie, cuja e.xistênda Boulanger assinala (3), que apresentam escamas 
lisas, conforme tenho verificado nas coleções do Instituto Butantan, Museu 
Paulista e Pôsto anti-ofídico do Butantan, na Bahia, sou de opinião que 
a só existência de anal inteira e as outras duas mínimas diferenças que 
os autores se esforçam por assinalar, isto é, ôlho maior e rostral pouco 
mais larga do que alta, não bastam para caracterizar a espécie Th. puncta¬ 
tissimus. a qual, tendo sido descrita trinta e sete anos depois de Th. stri- 

(1) Nattereri 

(2) Na coleção do Museu Nacional, do Rio. por mim estudada e determinada em 
novembro de 1921, encontra-se um exemplar de Th. stngíis, n.° 161, que apresenta 81 pares 
de subcaudais. 

(3) G. A. Boulenger — Cat. Sn. 1896, III, p. 117. 


JSciELO 









— :53 — 


gilis, deve ser considerada como sinônimo desta, em obediência às regras 
da nomenclatura zoológica. 

Nota. — O. Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie das localidades : Carandazal, Miranda, Mutum, Pórto-Esperança 
e Visconde-Taunay. 


XXL - Gen. PHILODRYAS Wagler 


34. - PHILODRYAS VIRIDISSIMUS (Linnaeus) 


Nome vulgar regional; ‘‘Tucana-bóia". Espécie pouco frequente nas 


coleções do Brasil. 

Dois exemplares. 

N" 73 — Jovem. 

E. 19. lisas : V. 221, anguladas lateralmente ; A. 1/1 ; Subc. 118/118 ; 

Temporal anterior subdividida à direita. 

Comprimento total 515 mm : cauda 127 mm. 

Colorido : verde-azulado cm cima : amarelado em baixo. 

N" 74 — Jovem. 

E. 19, lisas : V. 218, anguladas lateralmente ; A. l/l:Subc. 112/112. 
Comprimento total 488 mm : cauda 126 mm. 


Colorido : como no precedente. 


35. PHILODRYAS OLFERSII (Lichtenstein) 

Dois exemplares, da variédade latirostris Cope. 

N" 75 — Adulto 5 , colhido por César Diogo, à Lagoa Mandioré, em se¬ 
tembro de 1908. 

E. 19, lisas: V. 207, arredondadas: A. 1/1 : Subc. 105/105. Tem¬ 
porais 1 -f 2. 

Comprimento total 928 mm : cauda 247 mm. 

Colorido : verde azulado no dorso : estria negra postocular : pre¬ 
sente : verde-amarelado no ventre. , 


cm 


2 3 


z 


5 6 



11 12 13 14 15 16 






M — 


N® 76 — Jovem. 

E. 19, lisas V. 186, arredondadas; A. 1/1 ; Subc. 112/112. Tem¬ 
porais 1 + 2. 

„ Comprimento total 479 mm ; cauda 139 mm. 

Colorido como no anterior. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie das localidades Guaicurus, Mato Grosso e Esperança. 

XXII. Gen. OXYBELIS Wagler 

36. - OXYBELIS ÀRGENTEUS (Daudin) 


(3) G. A. Boulenger 
Dois exemplares. 


Cat. Sn. 1896. III. p. 117. ' 


N® 77 — Adulto, mutilado na nuca. 

E. 17; V. 218; A. 1; Subc. 181/182. Frenal ausente. Suprala- 
biais 7 (5’) . 

Comprimento total 722 mm ; cauda 278 mm. 

Colorido : como no tipo, predominando a côr parda n ..s estrias da 
cabeça, do dorso e do ventre ; região guiar pardacenta salpi.:ada simè- 
tricamente de escuro. 

N® 78 — Adulto $ , com ovos, e mutilado no focinho. 

E. 17; V. 212; A. 1; Subc. 190/190. Uma sup''alal‘dal contigua à 
órbita. 

Comprimento total 1.070 mm n. ; cauda 412 mm. 

Colorido : como no exemplar anterior, predominando, porém, a côr 
azul-violácea nas estrias da cabeça, do dorso e do ventre ; região guiar 
esverdeada salpicada simètricamente de negro. 


37. - OXIBELIS FULGIDUS (Daudin) 

Nome vulgar regional : “Paraná-bóia" . 

Um exemplar. 

N? 79 — Adulto $ . 

E. 17,5 até 7 séries medianas levemente carinadas ; V. 210 ; A. 1/1 ; 
Subc. 148/148. Supralabiais 10 (5®, 6® e 7®). 


cm 


SciELO 


0 11 12 13 14 15 16 






Comprimento total 1.425 mm ; cauda 450 mm. 
Colorido ; como no tipo. 


38. - OXYBELIS ACUMINATUS (Wied) 


Dois exemplares. 

N" 80 — Adulto 9 • 

E.. 17, lisas; V. 197 ; A. 1/1 ; Subc. 176/176. Supralabiais 10/9 (5", 

6'‘ e 7"/4'‘, 5‘‘ e 6") . 

Comprimento total 940 mm ; cauda 372 mm. 

Colorido : tom geral acinzentado, levemente manchado de negro. 

N" 81 — Adulto 9 . 

E. 17; lisas: V. 194; À. 1/1; Subc. 162/162. Supralabiais 9 
(5» e 6’) . 

Comprimento total 1.265 mm; cauda 490 mm. 

Colorido : tom geral cinzento-bronzeado, sendo as bordas das es¬ 
camas do dorso levemente esverdeadas ; êste e o ventre com pintas negras 
irregulares. 

Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬ 
pécie da localidade Guaicurus. 


XXIII. — Gen. TANTILLA Baird ô Girard 


39. - TANTILLA MELANOCEPRALA (Linnaeus) 


Um exemplar. 

N** 82 — Adulto, em más condições. 

E. 15;V. 151; A. 1/1; Subc. 56/56. Sinfisal separada das mentais 
anteriores pelo primeiro par de infralabiais. 

Comprimento total 437 mm ; cauda 75 mm. 

Colorido : dorso pardo ; cabeça pardo-anegrada com duas manchas 
amarelas no occiput e uma sôbre a 5^^ e 6^ supralabiais, postocular in¬ 
ferior e temporal anterior; ventre amarelo-pardacento . 


cm 


2 3 


z 


5 6 



11 12 13 14 15 16 






— 36 — 


Nota. — Êste e.xemplar, embora proceda da mesma zona que o 
descrito por Cope (’) sob o nome de Tantilla pallida, apresenta a pri¬ 
meira infralabial contígua à do lado oposto. Aliás, penso com Boulenger 
(^) que a espécie de CoPE representa tão somente mera variação indi¬ 


vidual, até porque já tive ocasião de estudar 2 e.xemplares de T. me/a- 


nocephala (L.), da coleção do Museu Nacional, do Rio, e procedentes 
da mesma região, Belém, do Pará, os quais, embora tenham idênticos 
os demais caracteres, todavia divergem quanto ao primeiro par de 
infralabiais : um n’ 458, apresenta-o separado pela sinfisal; outro núme¬ 
ro 459, apresenta-o contíguo. 


XXIV. - Gen. XENOPHOLIS Peters 


40. - XENOPHOLIS SCALARIS (Wucherer) 


Três exemplares. 


Ní* 83 — Adulto 2 . colhido por Emílio Stolle ao Norte de Mato-Grosso. 
E. 17; V. 139: A. 1 : Subc. 31/31. 

Comprimento total 258 mm ; cauda 38 mm. 

N“ 84 — Adulto $ , com a cauda mutilada. 

E. 17; V. 140; A. 1; Subc. 18/18 + n. 

Comprimento total 437 mm -f- n. ; cauda 4 mm + n. 

Embora mutilado, é o maior exemplar desta espécie que vi até 
agora. 


Apresenta no estômago restos não digeridos de um batráquio. 


N? 85 — Adulto i . 

E. 17 ; V. 128 : A. 1 : Subc. 39/39. 

Comprimento total 200 mm ; cauda 37 mm. 

O colorido nos 3 exemplares é idêntico ; no dorso uma linha ver¬ 
tebral escura, pouco visível, separa manchas transversais alternadas, de 
côr negra. 


(1) Cope — in Proced. Amer. Phil. Society. 1887. T. XXIV. p. 56. 

(2) G. A. Boulanger - Cat. Sn. 1896. III. pg. 217. 


cm 


2 3 


z 


5 6 



11 12 13 14 15 16 







— 37 — 

XXV. - Gen. APOSTOLEPIS Cope 
41. - APOSTOLEPIS RONDONI sp. n. 

(Estampa; figs. 4-6) 

N*” 86. — Um exemplar. 

Descrição do tipo — Adulto $ . Focinho convexo e pouco saliente ; 
diâmetro do ôlho quase igual à sua distância da borda oral. Rostral 
mais larga do que longa, a porção visível de cima cêrca de metade do 
comprimento da sutura prefrontal. Internasais soldadas às prefrontais 
que estão separadas das supralabiais pela nasal e a preocular contíguas. 
Frontal cêrca de uma vez e um têrço tão longa quanto larga, um pouco 
mais curta do que sua distância da extremidade do focinho e cêrca de 
metade do comprimento dos parietais (5 : 9) . Nasal inteira, em contato 
com a preocular que é bem desenvolvida. Postocular 1. Temporal 0 + L 
Supralabiais 6, 2’ e 3" em contato com a órbita, 4» com a postocular, 
5", sòmente, com a parietal, e ó'- com a temporal. Sinfisal separada das 
mentais anteriores pelo \'> par de infralabiais ; 4 infralabiais em contato 
com as mentais anteriores que são um pouco longas e mais largas do 
que as posteriores. Escamas lisas, sem fossetas apicilares, em 15 séries. 
Ventrais 221. Anal dividida. Subcaudais 28 pares. 

Cabeça anegrada com uma mancha parda na parte anterior ; dorso 
pardacento com 5 riscas longitudinais negras que se estendem da nuca 
até a cauda : a F- risca, mais larga, ocupa, de cada lado, a 3^^ e a metade 
da 2» c da 4'- séries de escamas : a 2“ risca ocupa de cada lado, a metade 
da 5- e da 6'- séries : a 3'^ risca corre sôbre a série mediana. Cauda 
negra em seu 1/5 posterior; escama terminal branca. Ventre pardo 
esbranquiçado. 

Dimensões — Comprimento total 272 mm ; cauda 25 mm. 

Notas. — Na chave do gênero Apostolepis. a presente espécie deve 
ser incluída entre as que apresentam uma só supralabial, a 5'F em contato 
com a parietal. A. Rondoni Amaral, distingue-se, nessa divisão, de 
A. assimilis (Reinh.), pelo colorido, pelo menor número de ventrais e 
pela nasal que está contígua à preocular; de A. cearensis Gomes (’), 


(1) Gomes, ]. F. — Contribuição para o conhecimento dos ofidios do Brasil (Descrição 
de quatro espécies novas e um novo gênero de opistoglifos) in Anais Paulistas de Med. e 
Cirurgia. — Junho 1915. Vol. IV. N’ 6, pgs. 122/126. 


cm 


SciELO 


11 12 13 14 15 16 17 







38 


ela se distingue pelo colorido, pela nasal que está contigua à preocular 
e pela porção da rostral visível de cima que é metade menor do que a 
sutura prefrontal: finalmente, de A. coronata { Sauv. ) ela se distingue 
pelo colorido, pelo maior número de ventrais e pela existência de uma só 
postocular. 

Nestas condições, teremos a seguinte sinopse parcial do gênero 
Apostolepis : 

— Uma só supralabial, a 5^^, em contato com a parietal ; 

I. — Nasal separada da preocular ; 

— porção da rostral visível de cima : 

1. — muito mais curta do que a sutura prefrontal; ventrais 

244-269: subcaudais 27-39 . assimilis 

2. — tão longa quanto a sutura prefrontal; ventrais 221-243: 

subcaudais 27-32 . cearensis 

II. — ■' Nasal contígua à preocular ; 

— postoculares : 

1. — duas; ventrais 199; subcaudais 47. coronata 

2. — uma só : ventrais 221 ; subcaudais 28. Rondoni 

(série proteroglifa) 

XXVL - Gen. MICRURUS Wagler 

42. - MICRURUS SURINAMENSIS (Cuvier) 


Um exemplar. 

N“ 87 — Adulto á . 

E. 15; V. 166; A. 1/1; Subc. 38/38. Supralabiais 7 (4“) ; fron¬ 
tal diminuta. 

Comprimento total 323 mm ; cauda 36 mm. 

Colorido : 8 séries de 3 anéis negros, os do meio cêrca de 3 vêzes 
mais largos, separados por estreitos anéis amarelos, o primeiro anel ao 
nível do occiput ; fundo pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ; 
cabeça pardo-amarelada (em álcool) , bordas das placas cefálicas negras. 


cm 


SciELO 


0 11 12 13 14 15 16 










— 39 — I 

43. - MICRURUS ALBICINCTUS sp. n. 

(Estampa: figs. 7-10) 

N" 88 — Um exemplar. 

Descrição do tipo — Adulto ê . Focinho obtusamente arredondado, 
pouco saliente. Ôlho cêrca de dois terços de sua distância da borda 
oral. Rostral mais larga do que alta. Internasais qua.se duas vêzes tão 
largas quanto longas. Prefrontais cerca de duas vezes tão longas 
quanto as internasais. Frontal um pouco mais longa do que larga (7 : 6) ; 
cêrca de duas vêzes tão larga quanto as supraoculares ; um pouco 
mais curta do que sua distância da extremidade do focinho; mais 
curta do que as parietais (7 : 10), que são ligeiramente mais longas 
do que sua distância das internasais. Preocular 1, contígua à nasal pos¬ 
terior. Postoculares 2. Temporais 1 + I. Supralabiais 7, 3‘‘ um pouco 
mais larga do que a 4’, 3‘' e contíguas à órbita. Sinfisa separada das 
mentais anteriores pelo 1- par de infralabiais : quatro infralabiais em 
contato com as mentais anteriores que são tão longas quanto as poste¬ 
riores. Escamas em 15 séries. Ventrais 198. Anal dividida. Subcaudais 
48 pares. 

Corpo nitidamente negro, apresentando no dorso 81 faixas trans¬ 
versais brancas, equidistantes, estreitas (anéis), geralmente da largura 
de uma escama, as quais se estendem até o ventre, que também é negro, 
ficando aí às vêzes interrompidas e um pouco mais largas, mormente 
sob a cauda. Cabeça também negra, apresentando algumas manchas 
punctiformes brancas, regularmente distribuídas, de cada lado, assim : 
uma sôbre a prefrontal, uma .sôbre a supraocular, uma sôbre a tem¬ 
poral anterior, uma sôbre a 6- supralabial e quatro transversalmente 
dispostas sôbre a nuca. 

Dimensões — Comprimento total 492 mm : cauda 77 mm. 

Notas. — Na chave das espécies de Micrmus, organizada por 
G. A. Boulenger (’), M. albicinctus deve ser incluída na divisão 
III, B, 2, c, p, **, t : 

III. — Sete supralabiais, 3'- e 4'> contíguas à órbita : 

B. — 7" supralabial bem desenvolvida ; rostral de tamanho médio, 
justamente visível de cima : internasais muito mais curtas do 
que as prefrontais ; 


(1) G. A. Boulanger — Cat. of Snakcs. 1896. III pp. 412-414. 


cm 


SciELO 


11 12 13 14 15 16 17 







40 


2. — Sinfisal separada das mentais anteriores pelo 1" par de 
infralabiais ; nasal posterior contigua à preocular ; 
c. — Ôlho mais curto do que sua distância da bôea (no adulto) ; 
frontal mais curta do que as parietais, que são mais longas 
(nem que seja ligeiramente) do que sua distância das inter- 
nasais : 

p. — Anal dividida (muito raramente inteira) ; 

**, — Focinho obtusamente arredondado e pouco saliente; 
f. — Ventrais 180-240 ; temporal anterior grande e comprida. 

Micrurus albicinctus Amaral, além de apresentar caracteres ana¬ 
tômicos que lhe são peculiares, distingue-se fàcilmente de tôdas as outras 
espécies da citada divisão, pelo seu colorido negro bem nítido, regular¬ 
mente interrompido por anéis estreitos, brancos. 

Por esta particularidade de colorido, Micrurus albicinctus afasta-se 
francamente das demais espécies brasileiras de Micrurus, que, por pos¬ 
suírem anéis de côr vermelha mais ou menos acentuada, são, entre nós 
vulgarmente conhecidas pelo nome de “Corais venenosas". 


C. - Fam. AMBLYCEPHALIDAE 


XXVIL - Gen. SIBYNOMORPKUS Fitzinger 

44. - SIBYNOMORPHUS CATESBYI (Sentzen) 

Um exemplar, colhido ao Norte de Mato-Grosso. 

N? 89 — Adulto 2 , com 3 ovos. 

E. 13; vertebrais muito mais largas; V. 179; A. 1 ; Subc. 93/93; 
preoculares 2; postoculares 2;, supralabiais 9 (5'- e 6’) ; sinfisal 
separada das mentais pelo primeiro par de infralabiais ; 4 pares de 
mentais, primeiro maior e mais longo do que largo. 

Comprimento total 538 mm ; cauda 183 mm. 

Colorido.: como o descreve Boulenger. 


cm 


SciELO 


0 11 12 13 14 15 16 






— 41 — ! 

45. — SIBYNOMORPHUS MIKANI (Schlegel) 

Um exemplar, colhido em S. Luiz de Cáceres, em julho de 1909. 

Ní* 90_ Jovem, com o ventre mutilado e a cauda fragmentada. 

E. 15; vertebrais ligeiramente alargadas: V. 145/145 -f n. A. ? 
Subc. 50 p. + n, : preocular ausente ; postoculares 2 ; tempo¬ 
rais 1 + 2 ; supraldbiais 7 (3'‘ e 4’) p sinfisal separada das mentais 
pelo primeiro par de infralabiais ; 3 pares de mentais, primeiro tão 
longo quanto largo. 

Comprimento total 157 mm; cauda 30 mm. 

Colorido : dorso pardo-amarelado com faixas transversais e man¬ 
chas côr de chocolate: ventre manchado de pardo. 


XXVIII. 


Gen. DIPSAS Laurenti 


46. - DIPSAS VARIEGATA (Dm. & Bibr.) 

Espécie pouco freqüente. 

91 — Adulto 2, com a extremidade da cauda mutilada. 

E. 15; vertebrais um pouco mais largas; V. 202; A. 1 ; Subc. 
75/75 + n.; supralabiais 10 (4’, 5'^ e 6V3", 5'-' e 6’ : à esquerda 
a 4'’^ não atinge o rebordo orbitário) ; sinfisal separada das mentais 
pelos 2 primeiros, pares de infralabiais ; 2 pares de mentais, mais 
largas do que longas. 

Comprimento total 660 mm -j- n.; cauda 132 mm n. 

Colorido : dorso pardo com faixas transversais anegradas, com¬ 
pletas ou interrompidas no centro, prolongando-se até os lados das 
ventrais; cabeça parda com manchas escuras sôbre as placas frontal 
e parietais e no occiput ; ventre amarelo salpicado de pardo. 

Nota. — O presente exemplar não tem dentes pterigóideos, caráter 
que, tendo sido também encontrado por J. F. Gomes (1) em um 
exemplar procedente do Ceará, o levou a mudar a espécie do gênero 
Sibynotnorphus para o gênero Dipsas. 


(1*) J. F. Gomes — in Rev. Museu Paulista. 1918. t. X. p. 526. 


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— 42 — 


47. ^ DIPSAS ALBIFRONS (Sauvage) 

Um exemplar que apresenta pterigoídeos desdentados. 

N? 92 — Adulto $ . 

E. 15, vertebrais pouco mais largas; V. 171 ; A., 1 : Subc. 87/87 ; 
preocular diminuta, sôbre a frenal; temporais 1 + 2 ; supralabiais 
8 (4’ 5» e 6“^) : sinfisal, separada das mentais pelos 2 primeiros 
pares de infralabiais ; 3 pares de mentais, todos mais largos do que 
longos. 

Comprimento total 600 mm ; cauda 183 mm. 

Colorido : como no tipo de Sauvage, com diferença que as man¬ 
chas laterais, intermediárias às faixas transversais do dorso, sâo pouco 
visiveis. 


D. — Fam. VIPERIDAE 


XXIX. - Gen. LACHESIS Daudin 

48. - LACHESIS MUTA (Linnaeus) 

Um exemplar. 

N® 93 — Adulto $, bastante mutilado por grãos de chumbo, na parte an¬ 
terior da cabeça, dorso e ventre. 

E. 35 ; V. 228 ; A. 1 ; Subc. 36/36. 

Comprimento total 1.740 mm -j- n. ; cauda 174 mm. 

Nota. — Êste exemplar, que já é bem desenvolvido, não é, todavia, 
dos maiores que tenho visto, pois entre êstes há, na coleção do Instituto 
Butantan, um’com 2m.520 que obtive, em 25 de agosto de 1921, do 
Sr. Francisco Lopes Martins, agricultor em Cametá, Estado do Pará. 


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XXX. -- Gcn. BOTHROPS Wagler 

49. — BOTHROPS ATROX (Linnaeus) 

Cinco exemplares, todos com escamas de carina alta e curta e com 7/7 
supralabiais, caráter que, conforme assinalei em publicação anterior ('), 
é dos mais constantes e serve para a distinção da espécie. 

50. — BOTHROPS CASTELNAUDI Dm. & Bibr. 

Espécie muito rara, de que ainda não encontrei exemplar em outra 
qualquer coleção brasileira. 

N? 99 — Jovem. 

E. 25: fortemente carinadas ; V. 224; A. 1 ; Subc. 71, tôdas inteiras. 
Cinco escamas entre as supraoculares que são bem grandes ; tem¬ 
porais carinadas : postoculares 3 : subocular 1, separada das supra¬ 
labiais por 1 série de escamas ; supralabiais 8, 2“ formando a borda 
anterior do buraco lacrimal. 

Comprimento total 300 mm ; cauda 53 mm. 

Colorido : dorso cinzento com faixas transversais e manchas es¬ 
curas de bordas claras ; cabeça cinzenta com manchas negras, das quais 
a mais nítida está no meio do focinho ; faixa escura da órbita à comissura 
labial: ventre pardo, pintado de amarelo claro ; sôbre os lados das ven- 
trais, manchas amarelas nítidas, espaçadas e estendendo-se até a 3'^ série 
de escamas dorsais. 


(1) A. Amaral — «Contribuição para o conhecimento dos ofidios do Brasil» — I; in 
Anexos das Memórias do Instituto de Butantan. S. Ofiologia. 1921. p. 35 c p. 79. 


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1948 

IMPRENSA NACIONAL 

RIO DE JANEIRO — BRASIL 



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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA 


CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS 


PUBLICAÇÃO N.° 86 
t/a Comissão Rondon 

PELO ÍNDIO E PELA SUA 
PROTEÇÃO OFICIAL 


Trabalho organizado pelo então diretor do Serviço de 
Proteção aos Índios 

LUIZ BUENO HORTA BARBOSA 

1 edição: 1923 

2.* edição autorizada pelo C. N. P. I, em 1946 


1947 

IMPRENSA NACIONAL 

RIO DB JANEIRO — BRASIL 








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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA 

CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS 


PUBLICAÇÃO N.» 86 
da Comissão Rondon 


1 0 O i :> 
ú h. X ij 


PELO índio E pela SUA 
PROTEÇÃO OFICIAL 


Trabalho organizado pelo então diretor do Serviço de 
Proteção aos Índios 

LUIZ BUENO HORTA BARBOSA 

edição: 1923 

2.“ edição autorizada peio C. N. P. I. em 1946 


vBIBlIOIECl'’? 




da 




1947 

lIViPRENSA NACIONAL 
RIO DE JANEIRO — ERASIL 



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í N 1) [ C E 

Págs. 

Exposição ain-escntacla ao Alinislro da Afíricultura l)r. Aligud Calmou 

du L’iu c Almeida pclo C)ii-ctor do S.l’.l.. em Janeiro de 1923.... 3 

“Comissão Rondou" na Ex])osição do Centenário da Independência em 

1922.;. 43 

I)iscur.so do Cencral RondíJii ao inaugurar a Exposição. 43 

Resumo do di.scur.so do Sr. Ministro Calmou em resposta. 50 

Ralavras do Rre.sidente da República I)r. Arthur da Silva Remardes.... 52 
Em J)efcsa do índio — Arúgo do lupefenheiro-militar Coronel Alipio T?an- 
deira, comentando o discur.so de um Deputado, publicado no Diáriif 
do Congresso de 27-Xi 1-1922 .. 53 


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1 <; 


^llIBLIOT£Cl% 
*♦ —"— % 


JIm discurso ultinuimcntc ])ronuncia(Io na Câmara dos l.)c- 
putados c rc])roduzido no Diário do Congresso de 27 de 
dezemro ( de 1922), \'eio patentear quão profundo e exten- 
sf) é entre nós o desconhecimento de todos os assuntos (|ue se relacio¬ 
nam com a natureza e a situaícão do problema indigena e com o (|ue 
tem feito o governo para resolvê-lo, ])or intermédio da re])arti(;ão desti¬ 
nada a tal fim. Daí nasceu a idéia desta exposição, na (|ual se com¬ 
pila em breve notícia uma relação dos trabalhos mais salientes reali¬ 
zados pelo deiiartamcnto infblico de Proteção aos índios, e reedita-se, 
mais uma vez, a enumeração de fatos e depoimentos de i)essoas com¬ 
petentes que refutam in liminc as falsas e desumanas teorias que 
servem de base às asserções dos que pedem o xtermínio dos filtimos 
rpresentantes das tribos autóctones do Brasil. 

No duplo intuito de registar com a possível exatidão a natureza 
e o feitio das acusações contra o íserviço e o índio, e de adotar um 
roteiro para a presente explanação, transcrevem-se do mencionado dis¬ 
curso os trechos mais característicos, cpie passam assim a figurar como 
ejMgrafes das respectivas refutações. 


“Repto. Vh Ex.'ó disse o orador em resposta a um seu aparte- 
ante, a mostrar que serviço a comissão de i)roteção aos índios tenha 
])roduzido, de fato, e possa merecer a consideração do país (jue i)or 
êle tanto se sacrifica”. E pouco depois, talvez i)ara mais acentuar o 
seu pensamento de absoluta condenação ao injustiçado Serviço, afir¬ 
ma: “Serviço fictício, serviço de que a Nação não tem conhecimento”. 

No entanto, o que se devia esperar é que a Nação tivesse conheci¬ 
mento dessa rei)artição e dos serviços por ela prestados, porque a 
ambos fazem constantes referências .as mensagens presidenciais de 
inauguração dos trabalhos parlamentares; a ambos referiu-se, a 15' 
de novembro idtimo, a mensagem do Dr. Epitácio Pessoa, encerran¬ 
do o seu período governamental; a ambos referem-se, com maiores 
detalhes, os relatórios anuais do inistério da Agricultura, além de 


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outros trabalhos que têiu sido publicados no Diário Oficial c mesmo 
no Diário do Congresso, como se verificou, em 1921, com o parecer 
apresentado pelo Dr. Justo Chermont, relator do orçamento da Agri¬ 
cultura, parecer no qual o ilustre Senador Paraense reuniu valiosos 
dados sôbre o que tem realizado o Serviço no interior dos Estados em 
que está funcionando e enumerou os meios de que êle precisa para 
estender os benefícios de sua ação às populações indigenas das demais 
unidades da República. 

Essas e outras fontes de informação bastaram para fazer o Ser¬ 
viço de índios conhecido no estrangeiro, como o atesta a mensagem 
Presidencial de 1913 ao Congresso Nacional, nestes tênnos: “Pelo 
órgão de cientistas notáveis, bem como no seio do congresso das raças, 
reunido em Londres, foi o mesmo Serviço apreciado com os mais 
francos aplausos, a que se juntaram, depois, as manifestações da im¬ 
prensa daquela capital, de Berlim e Paris, pelos seus representantes 
mais autorizados, sendo por éstes o nobre procedimento do Brasil 
])ara com os seus primitivos habitantes apontado como um exemplo 
a ser imitado, para honra da civilização universal, por todos os i)aíses 
onde ainda existem índios selvagens'’. 

Pouco tempo depois destas manifestações provocadas pelas con¬ 
clusões do Congresso Lhiiversal das Raças, levantou-se em Europa 
enorme clamor contra as atrocidades inflingidas aos índios ])eruanos 
do Putomayo, conforme o que a respeito apurou uma Comissão Par¬ 
lamentar nomeada pelo governo britânico. Então mais uma vez o 
nome do Brasil apareceu cercado pelas simpatias do mundo civilizado, 
por se verificar que no seu território a situação do selvícola era in¬ 
teiramente diversa da cpie se encontrava no Peru e que o aborígene 
brasileiro recebia dos poderes públicos de sua Pátria, por um serviço 
permanete constituído para tal fim. proteção eficaz e bastante para 
tornar im])ossível que êle fôsse vítima de cenas tão dolorosas como 
as registadas no Putoma\’o. Houve mesmo o projeto de organizar- 
-se uma Comissão Internacional para intervir naquele território em 
defesa dos míseros íncolas, e ao que parece tal projeto deixou de ser 
realizado só por não ter podido o então Coronel Rondon aceitar o 
convite que lhe foi transmitido pelo nosso Ministério do Exterior 
para ser um dos membros daquela Comissão. 

Desses grandes acontecimentos foram eco (js telegramas publi¬ 
cados em 10 e 17 de agosto de 1913 pelo Jornal do Comércio, o pri¬ 
meiro procedente de Londres e o outro de Berlim. Dizia o primeiro: 
‘A imi)rensa inglêsa publica hoje uma nota de caráter oficioso a pro- 
posito da questão de Putomayo, na qual se lembram vários alvitres 


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para evitar a rei)etição de talos análogos aos ((ue recenteinente foram 
denunciados. Ifntre êsses alvitres faz-se especial menção da orientação 
seguida pelo ílrasil a res])eito dos indios (|ue habitam o ,seu território, 
tecendo-se calorosos elogios à forma ])or(|ue êsses serviços são exe¬ 
cutados n.a competente re])artição do Ministério da Agricultura”. 

Dizia o segundo: “Jlerlim. A maior ])arte dos jornais publica 
a comunicação dirigida à Legação Brasileira em Berlim a respeito do 
tratamento dos indios no Brasil, cuja organização elogiam, conside- 
rando-a muito i>erfeita’'. 

Comentando êstes fatos, um escrito l)ublicado no Diário Oficial 
do ano imediato, continha o seguinte: “Bastou-nos o ter podido scr 
feita essa excei>ção no momento conveniente (a de sermos .um pais 
em que o índio é ])rotegido em vez de ser i)erseguido) ])ara re.sguardar 
de graves ])reiuizos uma das nossas princi])ai.s produçoes, ])ois que 
alguns fabricantes alemães já haviam anunciado não comijrar a bor¬ 
racha produzida pelos seringais do ILitomayo, em (juanto os criminosos 
denunciados não fôssem punidos. Se não fosse essa oportuna res¬ 
salva. certamente a insinuação feita pela Comissão Parlamentar In¬ 
glesa teria sido ex])lorada em nosso detrimento, em virtude de não se 
terem ainda tornado bastante conhecidas de todos as conepustas es- 
])cciais já realizadas pela nossa administração politica a êsse respeito”. 

Muito mais recentemente, um jornal dos Estados Unidos: o Na¬ 
tional Geographic Magazine, citado pelo Brazilian American, número 
comemorativo do Centenário da nossa Jndependêmeia, e.screcia: “Du¬ 
rante 33 anos o General Rondon trabalhou no longiiupio sertão . . . 
Alas, o seu serviço mais meritório é sem dúvida o ejue êle realizou como 
Diretor do Serviço de Proteção aos índios do Brasil, cargo no qual 
a sua jjolítica de não hostilizar os índios, nem em re|)resália, e de usar 
com êles de brandura, grangeou a sua amizade, preservou a sua civi¬ 
lização e constituiu o c|ue ])ôde chamar “a maior conser\-ação de abo¬ 
rígenes realizada no Nov'o Mundo de nossos dias . 

K o Dr. Gilberto Grosvenor, presidente da Sociedade Nacional 
de Geografia de New-York, comunicando ao mesmo general ter sido 
o seu nome incluído na lista dos sócios honorários daquela cori)oração, 
escreveu-lhe: 

“Sinto-me feliz por ser de minhas atribuições informar- vos (jue 
a Sociedade Nacional de Geografia, pelo seu corpo administrativo, 
tendo em vista os esplêndidos serviços ])restados á civilização pela 
vossa obra com e a favor dos al)origenes do Brasil, resolveu incluir- 
-vos entre os seus sócios honorários . 


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Se no estrangeiro o nosso Serviço de índios é assim conhecido e 
estimado como um “exemplo a ser imitado, para honra da civilização 
universar’, como poderia êle ser desconhecido da Nação e não merecer 
a consideração do País? O mais provável é que tal desconhecimento, 
e os sentimentos dêle decorrentes, só por ilusão tenham sido atribuídos 
à coletividade Brasileira, e isso [)elo risco a que estão expostas as pes¬ 
soas que falam em nome de terceiros, de supor que sejam do comitente 
noções e modos de ver e de sentir que na verdade lhes são privativos. 

A realidade é que os moradores do interior, aos quais mais dire¬ 
tamente interessa a ação do Serviço de índios, têm perfeito conhe¬ 
cimento da sua existência e para êle apelam sempre que os assalta al¬ 
guma provação ou precisam de lenitivo para grandes necessidades e 
aflições. Ainda agora, dentro do espaço de um mês. três pedidos vie¬ 
ram de pontos diferentes do interior, solicitando a proteção oficial do 
Serviço para grupos de populações que se viam ameaçadas em suas 
propriedades e liberdades. A mais recente delas i)rocedia de longínquo 
sertão de Pernambuco, onde nunca se manifestara a ação do Serviço 
mas onde nem por isso deixou de chegar a noticia da sua existência e 
da eficácia da sua operosidade. E foi um sacerdote católico quem se 
dirigiu, em fervoroso apêlo, ao General Rondou, rogando-lhe que es¬ 
tenda a proteção oficial de sua obra até àquele ponto do país e assim 
corra em defesa dos legítimos interesses e dos direitos de um grupo de 
pacíficos e laboriosos Carijó, agora ameaçados e perseguidos por 
prepotentes senhores que lhes querem tomar as terras e os bens. 

Dos outros dois pedidos, o primeiro referia-se ainda à defesa da 
propriedade territorial de índios, e nos vinha da Paraíba do Norte; o 
segundo, á i)erseguição e prisão injusta de alguns indivíduos, reali¬ 
zada ix)r autoridades públicas de outro Estado. 

Como êstes, muitos outros casos podem ser citados para provar 
quanta injustiça há na afirmativa de (pie a Nação não tem conheci¬ 
mento do Serviço e que êste não merece a consideração do país. E 
como jioderia' ser isto verdade, em relação a um departamento público 
(pie tem realizado, por quase todos os recantos do interior, numerosos 
e memoráveis trabalhos, de muitos dos quais Resultaram profundas 
modificações no asiiecto geral de \-astos territórios, que em poucos anos 
perderam a aparência (pie tinham de sertões selváticos e se transfor¬ 
maram em regiões cobertas de povoados, de lavouras, de fábricas, de 
tòda a férvida atixidade da vida civilizada? 

Foi assim em São Paulo, no sertão hoje cortado pela estrada de 
Ferro Noroeste do Brasil, habitado pela tribo guerreira dos Cain- 
gangiies. Êsses índiQS, sob o nome de Coroados, infundiam tão grande 


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terror que, em 1910, ao se fundar o Serviço de Proteção, o Ministro 
da "Viação sustentava, em reuniões ministeriais, presididas pelo Pre¬ 
sidente da República, que o governo tinha de escolher entre a alter¬ 
nativa de enviar uma grande fôrça do exército para os bater e exter¬ 
minar ou consentir na proposta da empresa construtora de suspender 
as obras de que se achava encarregada. A situação de ameaça contra 
a vida dos trabalhadores e dos engenheiros, contra a segurança dos 
P'ens, da linha e das obras de arte era tão grave que uni senador da 
República, o Dr. Vitorino iSIonteiro, em conferência com o Chefe 
da Nação, e pelos jornais, pedia a urgente intervenção da fôrça pública 
para reprimir as hostilidades dos selvícolas e evitar as mortes e preiui- 
^os que de outra maneira pareciam irremovíveis. 

Foi, sob a pressão destes acontecimentos e do nervosismo pú- • 
blico por êles causado, que o Serviço encetou os seus trabalhos na¬ 
quele sertão, em fins de 1910. Ein 1911, conseguiu ele suprimir as 
dadas” contra os índios, isto é, as expedições organizadas por aven¬ 
tureiros mercenários, contratados para irem ao interior das matas em 
busca dos selvícolas e exterminá-los em suas aldeias: lógo de])ois, e 
como conseqüência disso, virain-se cessar as correrias dos índios contra 
^ Estrada, cujos trabalhos se puderam continuar sem nov.as pertur¬ 
bações. Ao começar o ano imediato, 1912, completava-se a pacifi¬ 
cação desses selvícolas, pelas relações amistosas que se entabolarani 
entre êles e os empregados do Serviço de Proteção, que para êste 
fim viviam, havia mais de dez meses, no meio da floresta virgem, em 
1 anchos de pau a pique cobertos de folhas de coqueiro, expostos a pe¬ 
rigos, privações e sacrifícios que dificilmente se podem imaginar e 
rjtais dificilmente se podem descrever. 

. A conseqüência imediata de tão grande triunfo da ação e dos mé¬ 
todos do Serviço de Proteção foi a abertura à atividade da nossa civi- 
bzação de um território que tinha de frente, ao longo da estrada de 
Ferro Noroeste, perto de 300 km e de fundo tôda a zona compreen- 
<fida desde o Tietê até o rio Feio (Agtiapei), dêste até o rio do Peixe, 
c, em grande parte, daí à margem do Paranapanema. Lugares ser¬ 
vidos i)or estações daquela estrada, como Presidente Alves, Legru, Pe- 
nápolis, Glicério, Araçatuba e Berigui, que se não desenvolviam nem 
povoavam, em quanto se sentiam ameaçados pelos índios, tomaram de 
i'epente esplêndido e maravilhoso surto: em pouco tempo levantaram¬ 
-se verdadeiras cidades, iluminadas a luz elétrica, servidas por telefo- 
ues públicos, por boas estr?.das de automovel; fundaram-se enormes 
plantações de café, de cana de açúcar e de cereais até nas longínquas 
paragens que ficam além do rio Feio, onde ninguém se atrevia a ir e 


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não foi antes dos empregados do Serviço. A construção do prolonga¬ 
mento da Sorocabana até Pôrto Tibiriçá, sôbre o rio Paraná, ao longo 
do sertão compreendido entre o Peixe e o Paranapanema, pôde, igual¬ 
mente, terminar-se sem nenhuma das perturbações que o govêrno do 
Estado esperava da parte dos Caingangue, e êsse sertão se vai ràpida- 
mente povoando e enriquecendo com lavouras de tôda a espécie, tudo 
pacificamente conseguido, como resultado da obra realizada pelo Ser¬ 
viço de Proteção aos índios. 

Idênticos a êstes, foram os resultados alcançados no município 
de Blumenau e no território de Palmas, Estado de Santa Catarina, 
com a pacificação dos Botocudo, cujas hostilidades, ora exercidas, 
ora sofridas da i>arté dos colonos alemães, invasores de suas terras, 
levantavam constantes celeumas na imprensa de Berlim e de Viena, 
nas quais ao nosso país e ao nosso govêrno nunca faltaram os mais 
atrevidos doestos e apodos . 

Como êstes, podem ser citados outros insignes serviços prestados 
à pacificação de vastas regiões do pais pela Proteção aos índios. 
Pertence a êste número a intervenção pela qual ficaram definitiva¬ 
mente suprimidos, desde 1911 até hoje, os conflitos que dantes exis¬ 
tiam entre os Aimoré e uma colônia italiana de São iMateus, no Es¬ 
tado do Espírito Santo; a abertura do rio Jauaperi, no Amazonas, à 
navegação e consequente aproveitamento econômico de suas riquezas 
naturais, o que era vedado pela tribo guerreira que povoa as suas 
matas; a possibilidade que se criou de explorar as matas de poaia, 
entre os rios Sepotuba e Paraguai, em IMato-Grosso, pela aquietação 
das correrias guerreiras da tribo dos Barbado, (*) que nelas habita; a 
travessia e as entradas pacíficas que pela primeira vez puderam rea¬ 
lizar os empregados do Serviço na ilha do Bananal, no Araguaia, 
graças ao entendimento com os Ja.vaé e Tapirapé; os trabalhos, que 
neste instante mesmo se estão terminando, de transformação em pa¬ 
cífica da tribo guerreira, dos Parintintim, cujos assaltos ainda enchem 
de pavor extensas regiões, cobertas de seringais e de castanhais, do 
iMadeira e de seus afluentes; a dos Caingangue do rio Laranjinha, no 
Paraná; a dos Cajabi, das cabeceiras do Tapajós. E isto sem falar 
nas numerosas tribos trazidas a relações pacíficas com a nossa gente 
e a nossa civilização, ao longo da Linha Telegráfica construída pelo 
General Rondon, como os Nhambiquara, os Quêpi-quiri-uáte, os Ari- 
quême, etc.; e outras junto às quais os trabalhos tiveram de ser inter¬ 
rompidos, por falta de recursos Orçamentários, depois de terem custado 


(*) ^^ais tarde identificados à denomniação de Umutina, na sua própria língua. 


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a dedicados auxiliares do Serviço de Proteção extrênuos esforços e 
incalculáveis sacrifícios, como foi o caso da tribo dos Urubu, no 
Estado do Maranhão, pela qual tanto se devotou o saudoso Major 
Pedro Ribeiro Dantas, e o dos Patacho, do Jequetinhonha, no Estado 
da Bahia. 

Acabamos assim de citar os nomes de diversas tribos guerreiras 
que o Serviço de índios, afrontando e vencendo inúmeros perig-os, 
dificuldades e privações, foi procurar nos mais recônditos sertões do 
país, para trazer a relações de amizade com a massa geral do povo 
brasileiro, na qual em breve elas desaparecerão, definitivamente as¬ 
similadas. Foram, portanto, outras tantas regiões do nosso território 
onde até então o homem civilizado não pisava, ou só pisava em tom 
de guerra, matando e correndo o risco de ser morto — que se abriram 
à nossa atividade, à nossa indústria, que se nos tornaram plenamente 
conhecidas nos seus acidentes geográficos, nas suas riquezas naturais, 
uo seu valor econômico, que, em suma, se incorporaram de fato à vida 
da nação brasileira. 

E isto corresponde a serviços que nada têm de fictícios e que por 
sua vez não puderam ser realizados sem a execução prévia ou con¬ 
comitante de muitos outros, tão reais como êles, tais como a constru¬ 
ção de estradas de rodagem, para penetrar e atravessar os sertões que 
se devassaram pela primeira vez, das quais algumas satisfazem às con¬ 
dições exigidas para o tráfego de automóveis; a criação dos meios 
de transporte de pessoas e de cargas, por terra e por via fluvial, em- 
Pcegando-se nestas, algumas vêzes ,embarcações a vapor ou a motor 
de explosão; a derrubada de largos trechos de mata virgem para des¬ 
bravar a terra e adaptá-la aos trabalhos de lavoura, à formação de 
pastos, à construção de casas, à criação de gado e dos vários animais 
domésticos; a introdução nesses lugares dos primeiros exemplares de 
animais úteis, destinados à procriação; bois, cavalos, jumentos, por¬ 
cos, cabritos, carneiros, galinhas, pombos, patos, etc.; a introdução 
de árvores frutíferas, desde as bananeiras, as laranjeiras e as man¬ 
gueiras, até os caquis, os pecegueiros e os marmeleiros ; e muitos outros 
trabalhos que. não ocorrem, ou seria de fastidiosa enumeração. 

Até aqui só temos falado dos trabalhos e obras executados pelo 
Serviço nos sertões habitados por tribos que viviam segregadas do 
grosso da nação brasileira; mas a êsses devemos juntar os que êle 
tem realizado em benefício de extensas populações_ pacíficas de nove , 
Estados, em cujo interior fundou, mantem e administra, na hora pre¬ 
sente, 35 estabelecimentos diversos, uns simplesmente agrícolas, outros 
principalmente pastoris. Nesses estabelecimentos, as populações bra- 


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sileiras que nêles vivem, encontram o ensino de primeiras letras; a 
melhoria das condições higiênicas de suas moradas, de seus hábitos e 
de sua alimentação; ensino dos ofícios de ferraria, carpintaria, selaria, 
c outros ^essenciais aos moradores do interior; ensino de música e for¬ 
necimento dos respectivos instrumentos; nielhoria dos métodos de 
trabalho; maior extensão dêsses trabalhos; aprendizagem do manejo 
e instalação de máquinas agrárias e das destinadas ao beneficiamento 
dos produtos das lavouras ; introdução de reprodutores para melhoria 
das criações de gado vaceum, de suínos, de equinos ,de aves, etc.; intro¬ 
dução de novas espécies de forrageiras nos estabelecimentos especial¬ 
mente destinados, pela natureza de suas terras, à criação de grandes 
rebanhos de bovinos, ou de outras espécies; e criação de novos gêneros 
de atividade, como tratamento do bicho da sêda, o cortume de couros, 
o aproveitamento de madeiras de lei e dos diversos produtos naturais 
das florestas e do solo. 

^ ^ ;,k 

Estas são as melhorias e os benefícios mais fáceis de serem enu¬ 
merados e avaliados; mas os de mais alta valia, por entenderem com a 
situação moral e intelectual das populações, por lhes ter aperfeiçoado 
a constituição íntima da família, por lhes ter dado garantias de vida e 
de respeito à sua dignidade de homens, de membros da comunidade 
brasileira, de dignificação de suas mulheres e filhas : essas quem as 
poderá tornar patentes e suficientemente sensiveis num escrito? Só 
quem já conviveu com as nossas populações do interior e teve assim 
ocasião de ver como elas vivem por aí expostas e entregues, sm de¬ 
fesa, a todos os caprichos, opressões e extorsões dos senhores e chefes 
de infinitos mátises, que se apossam das terras, e às vêzes do curso 
total de rios inteiros; dos cargos municipais e estaduais, que confis¬ 
cam em seu proveito próprio, bem como das autoridades jjoliciais, dos 
tribunais, da justiça pública e das leis : só quem já viu os sofrimentos 
de tôda a sorte das nossas populações do interior, e mais principal¬ 
mente dos índios semi-civilizados, miseros ])árias entre párias, pode 
ajuizar todo o valor e alcance da proteção que o Serviço tem dado, 
nesses 35 estabelecimentos, a dezenas de milhares de patrícios nossos, 
aos quais garante a propriedade das terras, o proveito de suas plan¬ 
tações e de seus rebanhos, a remuneração de seu trabalho, a garantia 
de sua liberdade e até o livramento de mal disfarçada escravidão e de 
prisões injustas, feitas umas vêzes para aterrorizar as populações e 
outras i)ara desviar do verdadeiro culpado a punição de crimes 
nefandos. 

\'êm de longe os sofrimentos dessas populações. Em 1862. um 
presidente da Província, o Dr. Francisco Carlos de Araújo Brusque, 


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compendiando-as em mensagem à assembléia do Pará, dizia: “Rude 
embora, o índio ama a família e preza os filhos. Pois bem, é o san¬ 
tuário da família, é o regaço do amor paternal o terreno em que o 
regatão exerce às vêzes a sua mai.s brutal ferocidade. Quando não 
seduz a esposa, rapta a filha, e quase sempre arranca do grêmio da 
família tenras crianças que, em seu regresso aos povoados, reparte 
entre seus comparsas”. 

Pois bem, o Serviço dê índios, não se limita a constatar a exis¬ 
tência dêstes abusos e a lamentar que êles se cometam; mas, entrando 
em ação, os vai corrigindo e suprimindo, restituindo às tribos as 
crianças e moças delas arrebatadas por sedução ou por violência, e que 
vinham trazidas para as cidades com destino a servirem de escravas 
ou a serem prostituídas; e obtendo dos juízes e tribunais mandatos de 
habeas-corpus pelos quais as autoridades policiais se vêm compelidas 
u cumprirem, em relação a êsses patrícios, as leis que lhes garantem a 
liberdade individual . E por tal forma se tem levantado o nível moral 
das tribos, o seu prestígio e estima no espírito dos sertanejos, que de 
dia para dia se tornam mais numerosos e mais freqüentes os casamentos 
entre índias e civilizados, coisa que antes do Serviço não havia, poi- 
hue entre nós não se compreendia a pobie india senão como concubina. 

Tais serviços já são bastante valiosos para não se podei dm idai 
ue que a repartição que as vem realizando meieceu a consideração do 
país” ; mas para citarmos tudo quanto ela tem executado em benefício 
do desenvolvimento material e moral da nação, as dòi es, os sof i i- 
uientos, os prejuízos que ela nos tem poupado, sei ia preciso que pu¬ 
déssemos enumerar cada um dos casos em que a sua ação tem evitado 
assaltos, mortes e depredações contra povoados, estradas de f ei ro, 
linhas telegráficas, estabelecimentos agrícolas, e até evitado quem o 
diria? — que tomassem vulto reclamações diplomáticas que se esboça¬ 
ram, mas não puderam ir adiante, por ter o Serviço a tempo esclareci¬ 
do que havia um simples acidente fortuito onde se cjueria in\ entar um 
assalto a mão armada. Destas circunstâncias, porém, como fazer o 
respectivo çômputo e como realçar, o valor, o alcance de cada aconte¬ 
cimento cuja ocorrência não se verificou, por ter sido obstada pelo 
Serviço? Alguém disse que feliz é o povo que não tem históiia, poi 
que êsse não atra\-essou os graves transes de guerras, de incêndios e 
de dôres, cuja narrativa constitue a substância dos gloiiosob anais, 
-\nàlogamente, os sertões em que a vida e a atividade laboriosa trans¬ 
correm plàcidamente. dentro das normas da boa disciplina social, não 
uiais fornecem matéria para notícias vistosas dos joi nais, pai a citação 
de nomes de heróis ou de vítimas, para registo de beneméritas intei - 



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venções. Não nos iludamos porem: é exatamente aí que a ação do 
Serviço está produzindo os seus melhores frutos, é aí que êle mais me¬ 
rece a consideração do país e mais reais, menos fitícios trabalhos 
executa. 

Quem quer de verdade conhecer essa obra e não se contenta com 
as informações escritas ou verbais que dela dão os que já a conhecem 
e dela tratam, deve seguir o exemplo de um ilustre homem de letras 
amazonense, o Sr. Joaquim Gondim, que acaba de fazer imprimir em 
Manaus um livro, a que intitulou “Através do Amazonas”, no qual 
relata as impressões das viagens (pie realizou, em 1921, pelo interior 
do grande Estado do Norte. Nesse livro, há a descrição e numerosas 
fotogravuras de nove estabelecimentos diversos, dos mantidos pelo 
Serviço de índios em afastadas regiões daquele Estado, alguns em 
pontos de fronteira com territórios de outras nações, nos quais o pa¬ 
vilhão brasileiro só balouça aos ventos pátrios desfraldado pelas mãos 
dos empregados da tão malsinada repartição de índios. 

Para julgar com inteira justiça esta repartição, é preciso tomar- 
-se em consideração, além dos trabalhos e obras que ela administra 
atualmente, oütros que iniciou, mas de que teve de abrir mão por 
ordem superior, depois de nêles despender somas importantes e muito 
esfórço. 

O pensamento que presidiu à sua criação foi o de levar ao nosso 
interior todos os meios que pudessem contribuir para o seu desenvol¬ 
vimento e para a mais pronta melhoria possivel das respectivas po¬ 
pulações. Nós viamos desenrolar-se sob nossos olhos o espetáculo do 
contraste profundo que havia entre o modo de serem tratados os tra¬ 
balhadores rurais provenientes de outras terras e os nascidos na nossa. 
Enquanto acjuêles eram acolhidos com afagos e amparo nas colônias 
agrícolas, onde o governo proporcionava-lhcs meios e facilidades de 
angariarem terra, boa morada, instrução para os filhos, etc., estes 
jaziam no meio de sua imensa miséria, inteiramente esquecidos de 
tòda e qualquer proteção oficial. 

O Ministério da Agricultura tratou de dar remédio a tão extra¬ 
vagante situação, encarregando ao mesmo Serviço de cuidar do índio 
e do trabalhador nacional; por isso a denominação dêste departa¬ 
mento era composta e indicava o duplo fim a que se propunha : pro¬ 
teger o aborigene e localizar, em terras que se tornariam de sua pro¬ 
priedade, os caipiras, os roceiros, os caboclos, a gente, enfim, em que 
se vieram transformando os índios brasileiros e em que se hão de 
transform.ar os que ainda hoje existem pelos nossos sertões. 


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loir niissão, o Serviço tratou de fundar, de 

idlO a 1914, um Centro Agrícola ein cada um dos oito Estados se¬ 
guintes: Maranhao, Piauí, Paraíba do Eiorte, Pernambuco, Alao-oas 
Sergipe, Bahia e Rio Grande do Sul. A área total destinada a êsses 
estabelecimentos subia a 10.170 hectares e êles podiam abrigar uma 
população de 2.710 famílias. Das terras destinadas a tal fim, umas 
foram adquiridas, em todo ou em parte, pelo Ministério da Agricultura, 
com recursos tirados das verbas do Serviço; outras foram doadas 
pelos respectivos governos locais. 

Os trabalhos que o Serviço chegou a executar nesses estabeleci- 
nientos, variaram desde os preliminares levantamentos topográficos, 
que foram realizados em todos, até a divisão e demarcação dos lotes 
destinados a cada família de colonos; abertura de caminhos; drena¬ 
gem do solo, para fins higiênicos e econômicos; desobstrução de rios; 
instalação de máquinas para beneficiamento de produtos de lavoura; 
construção de casas, etc. 

De]K)is de 1914 essa parte da primitiva repartição foi desmem¬ 
brada do Serviço de Porteção aos índios e passou para o Povoamento 
do Solo; mas, enquanto existirem, aqueles estabelecimentos serão outros 
tantos atestados vivos do que tem sido a operosidade do Serviço^ de 
índios em todos 05 pontos do interior do país onde lhe foi possível 
agfrem por lhe terem sido dados para isso os meios necessários. 

Outro trabalho a que se destinava o Serviço e par acuja reali¬ 
zação êle se aparelhou mediante a aquisição de valiosíssimo material, 
é o de recolhimento de dados para a organização da carta itinerária 
da República. Para preencher êsse fim, os organizadores da repar¬ 
tição, tendo à frente o General Rondon, proveram os principais lu¬ 
gares das Inspertorias nos Estados com engenheiros op agrimensores, 
‘'los quais incumbia proceder aos levantamentos, expeditos ou precisos, 
de acòrdo com as circunstâncias do momento, dos rios e caminhos por 
onde passassem, quer fossem em demanda dos sertões para os reco¬ 
nhecer e explorar, quer em visita a tribos indígenas. 

A êsses trabalhos filiavam-se os concernentes à demarcação e 
niedição das terras que já pertenciam aos índios, ou das que viessem 
^ ser adquiridas para êles, por doação ou por qualquer outra forma. 

esta parte do seu programa, o Serviço tem continuado a prover, 
npesar das dificuldades de todo gênero com que há de arrostar para 
desobrigar-se de semelhante dever. Tais dificuldades nascem, em pri¬ 
meiro lugar, da quase absoluta insuficiência das verbas do Serviço, 
das quais se há de tirar tudo quanto é precisa para todos os trabalhos 


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a que êle ni^ta ombros; em segundo lugar, cia falta de funcionários de 
que se ressente a i epai tição, depois que foi privada da grande maioria 
dos que a serciam nas Inspctorias; e em terceiro lugar pela inconce¬ 
bível compreensão que os governos estaduais têm, ou afetam ter, do 
que sao as nossas leis e os nossos princípios morais quando aplicados 
aos índios. 

Para que se veja até que ponto as autoridades estaduais se con¬ 
sideram desobrigadas de todo o dever de reconhecer e respeitar a pro¬ 
priedade das tribos e de acatar os compromissos contraídos com elas 
ou em nome delas, basta citar os dois casos seguintes : 

Num Estado do Sul, o Congresso decretou e o executivo sancio¬ 
nou uma lei que prescreve os meios a serem empregados para tirar á 
um grupo de índios umas terras em que êles vivem há seguramente 
74 anos ; c|ue lhes foram doadas por um particular, segundo consta de 
documento público conhecido e ctue anda citado em papéis oficiais re¬ 
centes ; e nas quais o Serviço federal se acha estabelecido e empregando 
dinheiros públicos, £m construção de casas, montagem de máquinas, 
manutenção de escolas, etc., há mais de dez anos seguidos! (*) 

Noutro Estado, êste do' Norte, o Congresso e o executivo fazem 
uma lei pela qual são declaradas nulas e insubsistentes as doações de 
vários lotes de terras, realizadas a favor de algumas tribos, na vi¬ 
gência de outra lei. E é para.notar que, na medição, demarcação 
e levantamentos topográficos dessas terras, havia a Repartição fe¬ 
deral, devidamente autorizada pelo govêrno estadual, despendido im¬ 
portantes quantias dos seus orçamentos, durante vários anos: e que 
os trabalhos assim realizados já haviam sido julgados e homologados 
pelo govêrno do Estado, por atos especiais, de diferentes datas. 
Assim, pois.’ temos o exemplo de não serem acatados pelos Estados 
trabalhos federais executados nos seus territórios, a custa de grandes 
sacrifícios de dinheiro e de pessoal, na boa fé de concessões consigna¬ 
das em leis dos mesmos Estados, leis baixadas especialmente para au¬ 
torizarem êsses mesmos trabalhos. 

No sul, para despojarem os indios. alegam que êles são poucos e ' 
que a propriedade visada é grande de mais; no norte, apegain-se a 
miseráveis pretextos de forma no processo das medições, como se estas 
já não tivessem sido julgadas e homologadas, havia vários anos. pela 

(*) Trata-se do Estado do Paraná e da generosa doação feita aos indios ainda ao 
tem^ da monarquia, pelo saudoso Barão de Antonina - questão irritante que só póde ser 
reMa em 194o, segundo dispositivos do Decreto-Lei n.» 7.692, de 30 de junho- CX PI ' 


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autoridade competente: mas o motivo verdadeiro, sabido de todos, é 
que entre as terras assim reservadas para os índios, há uma coberta de 
castanhais, para a qual se viraram as vistas cubiçosas de certo poten¬ 
tado. 

Vemos, por êstes exemplos, que no Brasil os indios só podem 
guardar o que é seu em quanto o que possuem é bastante miserável 
para não ser cubiçado jior algum magnata. Noutros países, é exata¬ 
mente o contrário: se acontece descobrir-se alguma fonte de riqueza 
em ])ropriedade de indios, aí é que o governo acode para dar-lhes ga- 
'rantias contra possíveis esbulhos. 

Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, segundo refere F. 
f-eupj), a descoberta, no território dos Choctaw e Chickasaw, de cêrca 
de meio milhão de geiras de terras contendo carvão, petróleo e as¬ 
falto, determinou que essas terras fossem medidas e excluídas do nú¬ 
mero das que jiodem ser arrendadas a civilizados: são conservadas 
coni^propriedade das duas nações e o Governo as tem administrado 
cm benefício delas. 

IMas já é tempo de passarmos a outro ponto do discurso (lue deu 
^'agar à presente exposição. Tomemos pois o seguinte trecho: 

‘'Êsse Serviço de Proteção aos Indios, conta com verbas tão 
iaustosas que chegam a causar-nos irritação . 

Neste terreno, parece que o melhor caminho a seguir é comparar 
as Verbas qualificadas de faustosas, com as destinadas a idêntico fim 
cm outros orçamentos. 

Ora, o orçamento cuja discussão na Gamara dos Deputados deu 
Ocasião ao discurso que nos ocupa, consigna para a despesa total da 
l^epública, em 1923, as quantias de 797.526 contos papel, e 88.482 
contos ouro . Convertido tudo a papel, pelo cambio vigente, encontra-se 
que o orçamento dá para a despesa autorizada no cori ente ano mais 
de um milhão e duzentos mil contos. 

Nesse total a verha do Serviço de Pioteçao aos índios figuia 
com a parcela de 1.060 contos. Esta quantia é muito menor do que 
^ milésima jiarte do valor total do orçamento da despesa. 

Agora, jiara fazermos uma idéia do que isto significa, lecor- 
í'amos ao último orçamento do Império . A desjiesa foi oi çada para. 
1889, lei 3.397 de 24 de novembro de 1888. em 153.148 contos. 

Ora, êsse orçamento consigna a verba de 220 contos para a 
Catequese, a qual constava de alguns serviços especificados nas pio- 
cíncias de Alato-Grosso e de Goiaz, e de auxílio paia um asilo de me- 
íiinos- indígenas cm Belém do Pará. 


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Procurando, como precedentemente, a relação por quociente entre 
esta verba e o respectivo orçamento, achamos que ela é maior do que 
um setecentos avos dêste. 

Assim, pois, o Brasil, no tempo do Império gastava, só com al¬ 
gumas poucas tribos indígenas de duas de suas províncias, e com um. 
serviço restrito na capital de outro, muito mais do seu orçamento, do 
que a República consigna dos seus, nos dias de hoje, para atender às 
necessidades de tôdas as tribos do seu território. Com aqueles sete¬ 
centos avos do seu orçamento, o Império não mantinha nenhum serviço 
propriamente público, não sustentava nenhum estabelecimento nacional ; 
subsidiava, apenas, ou auxiliava obras e fundações realizadas à custa 
de outros fundos. Com muito menos do que a milésima parte do seu 
orçamento, o Brasil de 1923 sustenta um serviço público; mantém 35 
estabelecimentos diversos em vários Estados; administra, conserva e 
melhora grandes propriedades do patrimônio nacional, como as fa¬ 
zendas do Rio Branco : realiza obras públicas de valor, como a cons-_ 
trução de estradas de rodagem, desobstrução de rios, para os tornar 
navegáveis; aumenta o patrimônio nacional pela construção de casas, 
aquisição de máquinas, de embarcações^ etc. 

Tomando outro ponto de vista para esta comparação entre os 
dois orçamentos, diremos.que em cada grupo de dez mil contos de 
despesa geral da República, ela destina oito contos e oitocentos mil 
réis para a Proteção aos índios; ao passo que o Império, de cada grupo 
de dez mil contos de sua despesa, dava treze contos. Daí resulta que, 
se a República guardasse em 1923 a mesma proporção de que usou o 
Império em 1889, ela destacaria agora, do seu orçamento de 1.200.000 
contos ,a quantia de 1. 560 contos só para trabalhos em dóis Estados. 
Como, porém, o atual Serviço de índios estende a sua ação efetiva por 
nove Estados, e ríão vai além por falta de recursos que incessantemente 
pede, segue-se que a sua verba, em nossos dias. só para alcançar pro¬ 
porcionalmente ao cpe era no fim do Império, devia ser de mais de 
7.000 contos. E seguramente que ainda seria deficiente, pois muito 
há que fazer no Amazonas, em IMato Grosso, no Paraná, em Santa 
Catarina, e tudo em Pará, Acre, Alto-Purus, Alto-Juruá, Goiaz e 
outros pontos do território nacional . 

Agora, o que poderemos dizer do qualificativo de faustosa dado 
a essa verba de mil e sessenta contos destinada ao Serviço de índios 
do Brasil em 1923 ? Teremos coragem de aproximá-la das somas que, 
para análogo fim, consignam os orçamentos dos Estados Unidos e do 
Canadá? Façamo-lo, por dever de ofício. 


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>■■ .Ai 








tribo recentemente pacificada 


índios de Mato-Grosso, de 


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Francis Leupp, antigo Comissário dos Negócios dos índios dos 
Estados Unidos, no seu livro intitulado — The Indian and his problem 


escreveu o seguinte: 


“O governo tem presentemente consciência 


da obrigação que lhe cabe em relação a êste povo que êle tomou sob 
sua proteção. Por isso, a mesquinha verba de 10.000 dólares que foi, 
até 1830, destinada à educação dos índios, veio aumentando até alcançar 
a 100.000 dólares em 1870, e o orçamento escolar, continuando a 
crescer com firmeza desde então, importa agora em cerca de quatro 
milhões de dólares — (amounts to about four milions dollars)—”. 

Convertida para moeda em que se exprime a verba total do Ser- 
ciço de índios do Brasil, ao câmbio em vigor, achamos que, só para 
d educação, os índios dos Estados Unidos recebem do governo de sua 
Eátria quantia superior a 34.000 contos. 

É preciso, além disso, ter presente que, de acordo com os números 
publicados no citado livro de Francis Leupp, a população indígena dos 
Estados Unidos quando muito atingirá a 300 mil pessoas; a do Brasil, 
segundo a estimativa do General Rondon. subirá a um milhão e qui¬ 
nhentos mil. 

Além disto, o índio do Brasil, todo o mundo está farto de saber, 
é a expressão mais acabada do homem pobre, do homem despido de 
tôda a sorte de propriedades e de bens. Em contraposição a isto: “os 
livros do Tesouro dos Estados Unidos (F. Leupp, ob. cit.), mostram 
que os fundos fiduciários depositados nêle a crédito, de muitas tribos, 
íormam um total de cêrca de 35.000.000 dólares, e produzem uma 
venda anual, na taxa de 4 a 5 por cento, superior a 1.800.000 dólares... 
São os frutos das negociações de todo o gênero, com o Govêrno, desde 
1837 até o presente. As vêzes o Govêrno induziu um grupo de índios 
a inudar-se das terras que êles estavam ocupando e conseguio que trans¬ 
ladassem as suas residências para lugares prèviamente escolhidos, 
obrigando-se a compensá-los com uma soma determinada; outras vê- 
zes, o govêrno comprou parte de suas terras, e depositou o preço da 
compra no tesouro em benefício da tribo. 

^‘Há ainda duas fontes de renda para os aborígenes. 

“No primeiro grupo entram as somas anualmente votadas pelo 
Congresso para o sustento das tribos que não possuem fundos, ou 
cojos fundos são insuficientes para as suas necessidades. 

“O segundo grupo baseia-se eih negócios: procede dos produtos 
de arrendamentos de terra das tribos; vendas de gado criado por f^m- 
Pjegados brancos do govêrno em fazendas da tribo (estas fazendas 
^ão propriedades fora dos grandes domíminos chamados reservations ); 
■^■enda de lotes de terras das tribos, contíguas ou próximas às cidades; 


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venda de pedra, de madeira e do direito de caminho; além dos bônus 
e foros de arrendamento de jazidas de ferro, de carvão, de asfalto, de 
petróleo, e assim por diante'’. 

Compreende-se assim como é possi\'el verificar-se nos Estados 
Unidos o que F. Leupp, diz da tribo dos Osagos: “Xa verdade, êles 
são o povo mais rico do mundo: se todas as coisas que lhes pertencem 
fòssem vendidas, e distribuído per capita o valor da venda, cada homem, 
mulher e criança, receberia provavelmente de 35 mil a 40 mil dó¬ 
lares” . , 

Pois, tão grandes recursos não impedem que repartições i)úblicas 
venham empregar nas propriedades desses índios somas vultosas, 
em obras que redundam em enormes benefícios para essas populações 
de ricaços. É o que se infere de um discurso proferido na Câmara, 
pelo deputado Ildefonso Albano: 

“U^m dos atos mais meritórios, disse êle, do Reclamation Service, 
é a construção de obras de irrigação para os índios. Assim os dire¬ 
tores dêsse serviço entraram em acôrdo com o Indian Department 
em 1907 e já executaram várias obras irrigatórias p,ara os indígenas. 
Xas terras reservadas aos índios Rlackfeet. no iMontona, estão exe¬ 
cutadas e em \ias de execução cinco obras dè irrigação, os canais 
Cutbank, norte e sul, o canal Two IMadicine. o Badger-Fisher e o 
P)ird-Creek, destinado a irrigar cêrea de 120.000 ares (48.000 
hectares) . 

“Também no Montana, nas reservas dos índios Flat-heat . . . 
tenciona a Reclamacion Service construir importantes obras de irri¬ 
gação. X'^a reserva dos índios Fort-Peck há projetos para 148.000 
acres; os trabalhos para irrigação dos tratos de terras ocupadas pelo» 
índios Plaia, no Arizona, iá foram cuncluídos”. 


Veiamos agora o Canadá, de cujo Departamento dos X’^egócios 
dos índios possuímos o relatório referente ao ano de 1918, impresso 
por ordem do Parlamento. 

Em primeiro lugar, digamos que o total da população indígena 
do Canadá é de 105.998 pessoas. 

Pois bem, a propriedade pessoal desses índios, em terras, cons¬ 
truções, veículos, aves domésticas, etc., etc., era de 65.285.112 dólares. 

E êles tiveram em 1918 a renda total de 8.418.307,10 de dólares, 
para cuja soma concorreram os produtos das fazendas com o valor de 
2.834.149; os salários com 2.043.137; as anuidades e juros de fundos 
depositados, com 555.628; além de outras rubricas, como arrenda¬ 
mento de terras, venda de madeiras, etc. 


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A esta população o Departamento esforça-se, segundo as suas 
próprias palavras, por dar uma tal educação que faça de suas novas 
gerações leais cidadãos do Canadá e habilite-os a competir com sucesso 
com os seus vizinhos brancos. 

Para a consecução de tal fim, o Parlamento deu ao Departamento 
a verba de 734.112,33 dólares, ou sejam ao câmbio de agora, mais de 
6.377 contos de réis, além de outras consignações, para os demais ser- 
■'■'iços que incumbem ao Departamento, e que elevam o seu orçamento 
votado no Parlamento, a 1.771.660,49 dólares, isto é, muito mais do 
que 15 mil contos de nossa moeda! 

Depois de lermos, compararmos e pesarmos estes números, c[ue 
'déia poderemos ter de nós mesmos, que achamos faustosa a verba de 
1.060 contos destinada a dar tudo, absolutamente tudo, a uma popu¬ 
lação de um milhão e quinhentas mil pessoas que nada possuem de seu, 
nem a terra em que pisam, nem o rio cm que pescam, nem o solo que 
lavram ?! 

Continuando, o discurso afirma do Serviço que — “êle não é 
absolutamente eficiente, não se sabe qual o paradeiro ou localização 
dos índios catequizados”. 

Os objetivos do Serviço não são assentados ou prescritos ao 
capricho de cada imaginação, ao sabor de suas predileções, da maior 
ou menor profundidade com que essa imaginação hája examinado 
estes assuntos. Ao contrário disso, êles se acham claramente enume¬ 
rados e condensados no Regulamento que constitue a lei por cujos dis¬ 
positivos os empregados do Serviço têm de pautar os seus atos, a sua 
inter\-enção e a sua operosidade. 

Assim, a afirmação de que o Serviço nao tem sido cficicntc. é 
perigosamente vaga, porque pode envolver a pretensão de julgar a sua 
obra, não a com])arando com o que êle se obrigou a fazer, mas sim 
eoni um outro programa que não só êle não aceitou, mas até peren¬ 
tória e categoricamente rejeitou e condenou. 

Precisamos, pois, sair do laço armado pelo vago dos têrmos,^^e 
pura isto pedimos que em vez de acusações como essa, de se dizei o 
Serviço não tem sido eficiente', nomeiem-se claramente as prescrições 
ttó seu Regmlamento, os pontos do seu programa em que êle, por sua 
pi ópria culpa e não por falta de meios de ação, falhou à sua missão, 
mosírou-se deficiente, lacunoso ou impotente. 

Os que conhecem o Serviço e comparam a sua obi a com o seu pi o- 
íí'ama, êsses sabem muito bem, que, para se dizei certo,pi ecisa afii- 
niur-se o contrário do que foi dito, isto é: afirmar que o Ser\iço, poi 
tóda a parte onde tem agido, se tem mostrado senhor de meios perfei- 






_ 22 _ 


camente eficientes para, em primeiro lugar, proteger o índio, e em 
segundo, conduzí-Io a incorporar-se à nação brasileira. 

Quanto ao outro membro da oração, com certeza não visava afir¬ 
mar que ninguém sabe qual o paradeiro ou localização dos indios ca¬ 
tequizados . 

Em primeiro lugar, não há índios catequizados pelo Serviço de 
Proteção, e êste faltaria aos seus deveres se enveredasse pelo caminho 
de dar ao índio, ou a quem quer que fôsse, instrução doutrinal sôbre 
princípios de fé. O Serviço não procura nem espera transformar 
o índio, os seus hábitos, os seus costumes, a sua mentalidade, por uma 
série de discursos, ou de lições verbais, de prescrições, proibições e 
conselhos; conta apenas melhorá-lo, proporcionando-lhe os meios, o 
exemplo e os incentivos indiretos para isso: melhorar os seus meios 
de trabalho, pela introdução das ferramentas; as suas roupas, pelo 
fornecimento de tecidos, e dos meios de usar da arte de coser, à 
mão e à máquina; a preparação de seus alimentos, pela introdução 
do sal, da gordura,*dos utensílios de ferro, etc. ; as suas habitações; os 
objetos de uso doméstico; enfim, melhorar tudo quanto êle tem e que 
constitue o fundo mesmo de tôda a existência social. E de todo êsse 
trabalho, resulta que o índio torna-se um melhor índio, e não um 
mísero ente sem classificação social possível, por ter perdido a civi¬ 
lização a c]ue pertencia sem ter conseguido entrar naquela para onde 
o queriam levar . 

Não há índio catequizado pelo Serviço, mas há o protegido, o lo¬ 
calizado nas Povoações Indígenas o recentemente pacificado nos 
sertões que a sua tribo dominava e preservava das invasões do ho¬ 
mem civilizado, a golpes de flecha ou de tacape. Quiz, a respeito dêsses, 
dizer o discurso que “ninguém sabe onde êles vivem, onde estão, nem 
como estão"! Pois a resposta a isso se encontra até nos títulos das 
várias consignações em que, no orçamento, se divide a verba 15.“. a 
do Serviço de Proteção aos índios, pois aí está declarado o número 
de estabelecimentos mantidos pela repartição e a sua distribuição por 
Estados . 

Mas é fácil repetir aqui a relação dos postos de proteção e de pa¬ 
cificação, e das Povoações Indígenas, pelos quais se distribue a popu¬ 
lação de índios que vivem sob a direção, e voluntariamente recebem a 
assistência, os auxílios e o ensino do Serviço. 


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, ,, p,„ ri>lacõe« com a comissão telegráfica 

os tupis do Gi-P’arana. Mato-Cirosso. b-m r Ç - 
A. \lnto-Grosso ao Amazonas. 


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— 23 — 

São êles: 

Amazonas. 8 postos 

Maranhão . 3 •” 

Espírito-Santo .... 1 Pôsto 

de Alinas-Gerais. 1 ” 

„ São-Paulo. 2 postos 

1 n - T- . 

V „ ^ Povoaçao Indígena 

do Paraná. 5 Postos 

”” 11 ji 1 n ~ T 

. 1 Povoaçao Indígena 

de Santa-Catarina .... 1 Posto 

’ ’ do Rio Grande do Sul 1 Povoação Indígena 

■ ” ’’ Alato-Grosso . 1 ” ” 

” ” ” . 10 Postos 

Eptal . 35 Postos 

Nesses estabelecimentos, a não ser os quê estão no início de rela- 
Çoes com tribos guerreiras, como acontece neste momento com os Pa- 
nntintim, os Cajabi, os Caingangue do Laranjinha, os Caliixi do Rio 
Sararé, etc, encontram-se, além das mais variadas lavouras, de cereais, 
de café, de cana de açúcar, etc., maquinismos para beneficiamento dos 
produtos dessas lavouras; para iluminação elétrica; escolas de pri- 
^iieiras letras; aprendizados de vários ofícios; criação de animais: nu- 
inerosas benfeitorias, e outras melhorias que se poderiam citar . 

De quase todos êles, há no Alinistério da Agricultura fotografias 
bem recentes, tiradas para a Comemoração do Centenário. A não se 
úiierer acreditar nessas fotografias, nem no que dizem os relatórios 
^'ficiais e nem mesmo nas descrições de escritores independentes, como 
® ja citado autor do ‘".Através do Amazonas”, resta o recurso, não de 
se lhes negar a existência, mas de ir pessoalmente verificar a de alguns 
dêles. E isto não é difícil para quem se acha no Rio de Janeiro, pois 
hae daqui iiartindo, com pequeno sacrifício, podem atingír-se, em 
poucas horas, os seguintes estabelecimentos; 

l-° Indo a ^h■tória, pela estrada de ferro Leopoldina ou por 

e dali seguindo pela estrada de ferro Vitória a Diamantina, até 
Colatina ou até Resplendor . AM primeiro caso, atravessará em canoa 
0 Rio Doce e, parte em automóvel ou charrete, parte a cavalo, per¬ 
correrá 46 quilômetros de boa estrada, no meio da mata virgem, ao 
lini dos quais estará no Pôsto do Panças. A"o segundo caso, atraves- 
sara ainda o Rio Doce, em canoa, e logo se encontrará no Pôsto Cuido 


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]Marlière, onde se está terminando a pacificação de um grupo de Ai¬ 
morés . 

Uma semana, compreendendo a partida e o regresso a esta ca¬ 
pital, é bastante para realizar esta visita. 

2. " Uma vez em São Paulo, vai-se a Bauru, pela Sorocabana 
ou pela Paulista; dali, pela Noroeste, a Avai, a Penápolis ou Glicério. 

No primeiro caso, com um percurso de 12 quilômetros a cavalo, 
chega-se à Povoação Indígena do Araribá, onde se verão todos os 
ai^erfeiçoamentos que o Serviço tem oferecido aos Guarani, ali insta¬ 
lados, para melhorare mo seu gênero de vida, as suas habitações, o seu 
trabalho, etc. 

No segundo e no terceiro caso, com um percurso maior a cavalo, 
chegar-se-á aos Postos do Icatu e á-anuire onde trabalham como bons 
e diligentes amigos nossos, os Caingangue que, durante tanto tempo, , 
sob o nome de coroados, foram tidos como gente feroz, inadaptável atí 
nósso convívio, quase diriam; “estranhos ao verdadeiro gênero hu¬ 
mano !”. 

Em rigor, estas visitas exigirão pouco mais de uma semana, entre 
ida e volta; mas podem ser feitas em menos tempo. 

3. " De São Paulo, i)ela Sorocabana, a Ourinhos; daí, por auto¬ 
móvel, a Jacarèzinho, no Paraná; de Jacarèzinho, a cavalo, a Santo 
Antônio da Platina; depois, ainda a cavalo, pela estrada de penetração 
aberta pelo Serviço para a pacificação dos Caingangue do Laranjinha. 

Aqui a viagem não é tão sem cuidados, como as precedentemente 
indicadas, nem o pôsto oferece as mesmas comodidades que os outros: 
mas há a vantagem de se ficar conhecendo como os empregados do 
Serviço trabalham em zona ocupada por índios guerreiros. 

A viagem pode terminar-se em uma semana. 

Ora, e de esperar que estas indicações sejam ai)roveitadas pelas 
pessoas que, desejando saber “qual o paradeiro ou a localização dos 
índios trazidos à civilização pelo Serviço de Proteção, não se decidem 
a acreditar na existência dêsses paradeiros, nem que êles sejam tais 
como se os descrevem, diretamente vê-los, em insi>eção imediata. 

Continua o discurso: “Tudo nos induz a crer que êsses selvagens 
brasileiros não aceitam a cultura que lhes queremos proporcionar: 
fogem dos civilizados, não se incorporam ao nosso meio, têm enfim, 
todos os defeitos de uma raça inferior”. 

Ao depararem-se-nos casos como êste. de ainda em nosso dias 
falar-se com tanto ardor e paixão contra os nossos aborígenes. com-‘ 
premdemos ao vivo quanta verdade e quanta propriedade havia no 


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qualificativo de “questão abrasadora” dado por ilustre escritor bra¬ 
sileiro, João Francisco Lisboa, ao problema indígena entre nós. 

É na realidade uma questão que apaixona, com certeza pelos gran¬ 
des interesses, princípios e sentimentos sociais que põe em jôgo e abala. 
Mas, convenientemente advertidos, por nossa parte trataremos de ver¬ 
sa-la sem entrarmos no braseiro das contestações acadêmicas em tõrno 
das teorias, tão boas como as suas vetustas predecessoras, que engen¬ 
dravam a crença em povos eleitos de Deus, relativas a raças louras ou 
morenas; cabeças compridas ou redondas; seleção natural ou artificial; 
eliminação dos fracos pelos fortes, e outros análogos argumentos com 
os quais os que têm a fôrça material de seu lado, esperam justificar o 
péssimo uso que dela fazem para saltear, depredar e exterminar os 
Que no momento não podem defender à mão armada a sua liberdade, 
os seus haveres e a sua vida. 

“Os selvagens brasileiros não aceitam a cultura que lhes queremos 
proporcionar’’. IMas, qual a cultura a que se faz alusão nestes têrmos ? 
Quem procurou proporcionar essa cultura, e viu perdidos os seus 
osforços ? 

Bastaria a resposta a estas duas perguntas para facilitar muito, 
ou talvez mesmo tornar desnecessária qualquer contradita àquela pro- 
Posição. Porque, se a cultura que se quis inculcar ao pobre selvícola, 
foi a mental de um de nossos bacharéis ou mesmo a de um simples le¬ 
trado; se foi a moral de um doutor em cânones, ou mesmo a de um 
íidviço ou noviça de convento, se foi a prática de um mecânico ou de 
^101 g-uarda-livros de banco, em qualquer dêsses casos, como se admi¬ 
ram de que êle a não tenha aceitado, ou antes, e melhor, que a não 
tenha podido aceitar? 

Mas. se em lugar de tão disparatada ação. como seria essa de que¬ 
rer transmudar o índio em doutor, em frade ou em banqueiro, nos li- 
ruitarnios a sé) exigir dêle o possível, isto e; que adote, dos meios e 
recursos da nossa civilização, os instrumentos, os jirocessos, os modos 
que melhoram e aperfeiçoam a sua indústria, as suas casas, as suas 
lavouras, as suas vestimentas, a constituição da sua família, e tantas 
Outras coisas que não comuns a nossa vida e â dêle, então o \eiemos, 
sem esforço nenhum de nossa parte, ir apropriando-se dos nossos co¬ 
nhecimentos, das nossas observações, das nossas maneiras de obrar, 
próprias àqiiêles atos e àqueles hábitos. Irá êle se aproximando, nao 
úos doutores, nem mesmo dos operários da cidade, mas dos nossos tia- 
lialhadores cías fazendas, dos nossos campeiros de gado, dos nossos 
loceiros ou caipiras, em suma. E nesse transito, não estara o selvícola 
caminhando para nós. adaptando-se â nossa cultura, isto é. â cultura 






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geral do povo brasileiro, naquilo que ela lhe é accessível no estado em 
que nós o encontramos ? 

Êles aprendem e acabam adotando a nossa língua. Só com isso 
quantas noções não adquirem; quantas modificações não sofre o seu 
entendimento; quantos novos pontos de contato não se formam entre 
a sua e a nossa alma? Êles abandonam, uns mais outros menos rapi¬ 
damente, o g-ênero de atividade em que fundavam a sua subsistência 
e a de suas famílias, o qual era essencialmente a caça e a pesca; e em 
lugar dêle adotam o que nos vêem praticar, em lavouras ou pastoreio 
de gado; — contraem a noção de trabalhar sem conhecer o destino 
objetivo, imediato, para Pedro ou para Paulo, do produto dêsse tra¬ 
balho; concomitantemente com isso, lhes vem a noção de dinheiro e 
a transformação do modo de comerciar, que deixa de ser por troca 
direta dos objetos, para ser mediante o sinal abstrato que representa 
o valor do objeto. Aumentam rapidamente o respeito que já tinham 
pela vida de seus semelhantes e não tardam em se. tornar monógamos . 

Pois estas' modificações, è muitas outras que se poderiam igual¬ 
mente citar, não consistem, afinal, em caminharem êles para a nossa 
civilização, em “se incorporarem ao nosso meio”, não pròpriamente 
ao nosso meio das cidades, mas ao meio brasileiro do interior do país? 

E que estas modificações se dão, quem o poderá contestar a pes¬ 
soas que têm convivido, durante decênios seguidos, e não por alguns 
instantes fugidios, com índios de todos os sertões do Brasil; que têm 
lidado tanto com tribos que pela primeira vez sáiem do fundo de suas 
florestas seculares, como com as que vivem promíscuamente com os 
descendentes dos europeus desde os primeiros dias do descobrimento? 

Barbosa Rodrigues, qi:e esteve tantas Vêzes entre êles. cita as 
palavras de bom observador”, que disse; “Esta raça só quer o 
bom exemplo e o bom ensino . A natureza com ela foi pródiga na for¬ 
mação dos seus dotes morais; se decaiu e se aviltou, tôda a culpa 
recae sóbre os que a educaram e a educam”. 

A êstes dotes morais refere-se um escritor francês Ferdinand 
Denis , o qual, aliás, no seu livro Brasil, tradução portuguêsa da casa 
Garnier, trata sempre o índio com visível antipatia e mesmo com 
dureza. Xão obstante, escreveu: “Há na existência social dos índios 
certas virtudes que não se encontram no mesmo grau entre povos 
adiantados na estrada da civilização. Nas freqüentes misérias da vida 
.selvagem nunca o fraco era esquecido e o forte se resignava primeiro 
que êle a sofrer. Não havia convenção feita, com consciência, que 
pudesse resolver um chefe a apoderar-se dos bens da terra que se 
reputa\ am de toda a tribo . Durante a mingua de alimentos era o 


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índia do Amazonas, de tribo recentemente pacificada. 




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escravo 'servido antes do mussacat. Uma das qualidades dos selvi- 
colas, era a sua inviolável boa fé nas transações, particulares ou 
gerais. Não há talvez exemplo de que fôsse por êles ciuebrantado um 
tratado de paz celebrado com os conquistadores. Esta boa fé nos tra¬ 
tados se manifestava em tôdas as relações da vida; e os antigos 
escritores são todos unânimes acerca da ternura, e mesmo das atenções 
que entre si testemunhavam, ainda que mais de vinte familias algumas 
^■ézes sob o mesmo teto habitassem”. 

Tanto aqui no Brasil como fora do Brasil, chegou-se afinal, à 
compreensão de que não se tem de procurar compelir o índio a trans¬ 
formar-se subitamente em civilicado. necessário deixá-los, diz 
0 Dr. Barbosa Rodrigues, mesmo depois de aldeados, com seus cos¬ 
tumes, para que aos poucos os vão abandonando . E. F. Leupp, 
descreve nestes termos as melhorias que Viu adotadas por uma tribo 
que aceitara instalar-se perto de um estabelecimento do Depai tamento 
de índios: “Eu os vi o ano passado. Já comiam os seus alimentos em 
mesa e não no chão; dormiam em leitos e não em terra; suas casas 
eram de boa aparência em relação ao asseio médio usado nas tribos. 
hudo isto é resultado de absorção e não de educação artificial e for¬ 
çada” . 

Idêntica a estas é a observação que regista o autor francês acima 
citado, em relação aos selvicolas do rio Doce e do Belmonte. Desde 
ÍO ou 20 anos estas tribos se têm achado num contínuo comércio com 
colonos brasileiros, e têm sofrido as modificações que de\ iam resultai 
dêste contato imediato com homens civilizados. Uma de suas primeiras 
resoluções foi abandonar, ao menos em parte, o uso do singular adôi- 
uo que à sua fisionomia dá tão feia aparência; alguns indi\ iduos se 
resolveram a fazer pequenas lavouras; chefes que pareciam irrecon¬ 
ciliáveis se congregaram; reina finalmente a paz naqueles desertos. 
^igânio-lo com orgulho, tudo isso se deve a um francês, Thomas Guido 
^larlière, o qual se estabeleceu nas margens do rio Doce desde 1924. 
I^umerosos obstáculos se apresentaram desde essa época ao bem que 
Marlière intentava fazer. Ignoramos .se os referidos obstáculos estão 
hoje superados; porém é uma vida generosamente sacrificada a 
do homem que. a respeito dos selvagens, nao cessava de dizei aos bra¬ 
sileiros : ^‘Ainor e Icadade para com eles, meus amigos, c temos homens . 

Os que conhecem de verdade o índio, ficam penalizados quando 
vêm escritores estimados e bem intencionados fazerem-se a mjutiça 
repetir descabidas acusações, como a de “ser êle inclolente e nao 
gostar do trabalho”. Em seu habitat próprio^ e no seu genero de vida 
primitiva, o índio dá provas de uma operosidade, de um esforço, de 


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uma constância na ação, de uma resistência à fadiga, de um tino em 
vencer as dificuldades, que bem raramente se encontram entre nós. 

Quem já pensou, sem ficar estarrecido, à simples idéia de se ver 
a isso condenado, no trabalho que é derrubar uma árvore a machado 
de pedra?,No entanto, os índios faziam extensas derrubadas para as 
suas plantações de milho, de mandioca, de favas, etc. E o trabalho, 
a arte, a infinita paciência que êles tinham de despender para a prepa¬ 
ração dos seus arcos e das suas flechas; para o aperfeiçoamento das 
pedras em machados e machadinhas; para fixar êsses machados em 
seus cabos; i)ara as caçadas aos grandes animais, como a anta, o veado, 
a onça, sem o auxílio de cães ? A delicadeza imensa no apanhar vivas 
as aves, que se guardam como reservas alimentícias para os dias de pe¬ 
núria ; a arte e a aplicação no abrir fogo pelo atrito de duas peças de 
madeira; no conservá-lo pelo maior tempo possível; na fiação de fibras 
têxteis para confecção de cordas e para tecidos vários, artisticamente 
enfeitados com desenhos de fios coloridos, inseridos na urdidura; os 
artefatos de barro; os enfeites de pena; e admirabilíssimos outros pro¬ 
dutos de um gênio industrioso incansável e cheio de recursos; e até 
os tocantes mimos que eram os brinquedos das crianças, os pequenos 
arcos, as flechas em miniatura, tudo manipulado através de mil dificul¬ 
dades por aquêles homens rudes, tão mal julgados ainda hoje ? 

E as transformações que introduziam em seus utensílios, com os 
materiais que apanhavam dos civilizados? Os Caingangue paulistas, 
trabalhando com infinita paciência, cortavam as pás e as enxadas to¬ 
madas aos trabalhadores da Noroeste, em lâminas, sem outro instru¬ 
mento senão lascas de sílex, e depois ajeitavam-nas em pontas de fle¬ 
cha, com tanta regularidade e perfeição que dificilmente se acreditava 
não serem forjadas por um bom ferreiro. Os Botocudo de Santa 
Catarina, com as lâminas de serra que tomavam aos madeireiros ale¬ 
mães, trabalhando-as só a pedra, faziam temerosas e belissimas pontas 
de lança e de flecha, que tanto serviam para a caça dos grandes her¬ 
bívoros, como para a guerra. Os Caingangue paulistas, nos primeiros 
dias da pacificação, tendo obtido um guarda-sol \-elho. inventaram 
desmontar as suas varetas, despontá-las e utilizá-las para furar os 
dentes de macaco de que faziam lindos colares, nos quais, antes disso, 
êsses dentes figuravam engastados num tecido de fibra de cipó imbé. 
Com as mesmas varetas êles conseguiram furar quanto níquel se lhes 
dava, para enfiá-los nos colares de suas mulheres. 

Êsses homens podiam ser indolentes e refratários ao trabalho? 
Quantos de nós sucumbiria de fadiga e de fome se tivesse a sua sub¬ 
sistência dependente das longas caminhadas a que êles eram obrigados 


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Indi:i da tribo dos Uaimaris, Amazonas, pacificada cm 1911 














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para apanhar a cai^a de que se tinham de alimentar; ])ara tirar, em 
troncos de árvores prodigiosas, os favos precisos para o seu hidro- 
ínel; ou para'derrul^ar a machado de i)edra o coqueiro e lhe tirar o 
palmito ? 

Como essa, muitas outras opiniões errôneas correm mundo, re¬ 
petidas como outras tantas verdades. Assim, escreveu o mesmo esti¬ 
mado autor: “o indio tinha o sentimento de propriedade coletiva (da 
iribo), mas não o tinha da propriedade privada-, o indio não julg-ava 
fazer mal roubando”. 

Isso só é verdade em se tratando da propriedade territorial. A 
terra, com as matas, os rios e as caças que nela existiam, o indio não 
concebia que pudesse ser deste, daquele, ou de alguns individuos: tinha- 
-a como propriedade geral da tribo. ]Mas, a caça uma vez preada; o 
ttreo, a flecha; os enfeites; os utensílios domésticos, panelas, vasos de 
barro, purungos, cestos; os animais mansos; as aves guardadas vivas, 
como reserva alimentícia; as roças e muitas outras coisas, constituiam 
propriedade privada e o índio tinha na conta de ação reprovável o apo¬ 
derar-se alguém de alguma delas, subrepticiamente, sem o consenti- 
ttiento do respectivo dono. 

A primeira vista, pode parecer que há contradição entre o que se 
ttfirma aqui e o que se encontra registado em muitos autores, como 
fcsultado de suas observações, que dão o índio como fortemente in¬ 
clinado ao furto e ao roubo. Xo entanto essa contradição é simples¬ 
mente aparente e, se existisse, seria da mesma ordem da que nos ofe¬ 
recem os naturalistas, exploradores geográficos ou excursionistas cien¬ 
tíficos que, não obstante serem pessoas perfeitamente honestas, inca¬ 
pazes de furtarem um alfinete que seja nas cidades e nas moradias 
ci^^ilizadas, quando se vêm numa aldeia de indios,. se podem, fazem 
ttião baixa sobre todos os objetos que encontram; e se não podem, tra- 
tam de se apossar dêles logrando velhacamente os respectivos donos, 
isto é, dando em troca de artefatos precio.sos, coisas de mínimo valor. 
Assim formam-se. ou antes, formavam-se sem dispêndio nenhum, ou 
'Paase nenhuni, copiosas coleções etnográficas que figuram nos museus 
de Europa, da América do Xorte, etc. 

Êsses mesmos naturalistas ou excursionistas científicos, que re¬ 
peliriam com horror a ideia de violarem túmulos, nos nossos cemi¬ 
térios, não sentem a menor sombra de escrupulo em ie\oi\ei quanta 
sepultura de índios a sorte lhes depara nos sei tões, e consideram-se 
tmuto honrados quando se apresentam nas cidades cai i egados de des¬ 
pojos mortuários obtidos dessa forma. 


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Se perguntássemos a um índio: Que idéia fazes destes homens 
que levaram os teus arcos, as tuas flechas, os teus tecidos, os teus ricos 
canitares de penas, as tuas urnas funerárias, e tantos outros objetos 
preciosos do teu uso cotidiano e relíquias sag-radas? Certamente que 
êle nos responderia: um desbragado ladrão, como todos os homens 
da sua raça. No entanto, nós sabemos que êste juízo e esta sentença 
do índio são profundamente injustos . O que houve, foi simplesmente 
que o naturalista e o excursionista cientifico, não consideraram que 
fôsse roubo ou furto o apoderarem-se como fizeram daquelas coisas 
que pertenciam a um outro povo, a uma outra civilização . 
Anàlogamenfe, o índio que se abstém de tomar e guardar para si ob¬ 
jetos pertencentes a outro índio, e que tem tal ação por feia e repro¬ 
vável, encara como ato perfeitamente legítimo o apossar-se por esper¬ 
teza ou por fôrça dos nossos machados, foices, facas, etc. No entanto, 
se as relações entre êles e nós estreitam-se e perduram, e se nós lhes 
damos exemplos de generosidade no trato e de x lisura nas transações, 
rapidamente desaparecem essas práticas e êles passam a respeitar as 
nossas propriedades como respeitam a sua própria, e tanto como nós 
míituamente respeitamos a nossa . 

A verdade, pois, é que o indio não é mais nem menos inclinado ao 
furto do que a gente da nossa civilização; êles conhecem a propriedade 
individual e sabem respeitá-la; o que lhes falta, nos casos enr que a in¬ 
fringem, como em outros que para êles são crimes, tanto como para 
nós, é a idéia e concomitante prática da repressão coletiva. Um ato 
dêsses, se praticado por um membro, contra outro da mesma tribo, 
dará lugar a represálias da vítima e quando muito de seus parentes, 
mas não dará lugar a pena decidida e aplicada pela tribo. Só quando 
a violência é de membro de uma tribo contra o de outra é que a coleti¬ 
vidade se dá por ofendida e se acha no dever de tomar uma desforra 
também coletiva, fazendo responsáveis pela ofensa todos os indivíduos 
do povo a que pertence o ofensor . 

Dêsse modo de compreender os fatos sociais nós mesmos viemos, 
e infelizmente ainda não nos achamos tão afastados dêle, que não apre¬ 
sentemos freqüentes casos de dolorosa recaída! 

Mas deixemos êstes aspectos, aliás interessantes, da vida do índio, 
para voltarmos ao discurso que nos vinha ocupando. O selvagem bra¬ 
sileiro, diz êle — “tem todos os defeitos de uma raça inferior”. 

Ao lermos esta sentença, não nos podem deixar de ocorrer, melan¬ 
colicamente, as vêzes em que já a encontrámos formulada contra o povo 
brasileiro, tomado no seu conjunto. Houve mesmo um estrangeiro bas¬ 
tante petulante para levantar a dúvida se seriamos dignos de ocupar 


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■jSciELO, 


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— 31 


uma ten-a tão bela e tão rica como a do Brasil, a qual, afinal, é um 
patrimônio da civilização, e precisa ser devida e convenientemente la¬ 
vrada e aproveitada . Êle empregava contra nós a mesma teoria que, 
em nosso nome, se empregaria agora contra os selvícolas . No fundo' 
a razão dêle era a mesma que a nossa : O governo do país a que êle 
pertencia ,possuia mais navios, mais canhões e mais soldados do que o 
nosso; como nós possuímos’espingardas, bombas e metralhadoras que 
os índios não possuem. 

Para consolo nosso, baste-nos recordar que o mais egrégio dos 
nossos homens políticos, o Patriarca da Independência, um século atrás, 
brava das profundezas do seu magnânimo coração e dp seu grande 
saber, pensamentos como êste “O homem primitivo nem he bom nem 
^5 mau naturalmente ... Si Catão nascera entre os Satrapas da Pér¬ 
sia, morreria ignorado entre a multidão de vis escravos; Newton si 
nascera entre os Guaranis seria mais um bípede, que pesara sôbre 
a superfície da terra; mas um Guarani criado por Newton talvez que 
occupasse o seu logar”. 

Em outros têrmos, um ilustre estrangeiro, Elisée Réclus, na sua 
nova Geografia Universal, repete esta magnífica lição contra a falsa 
teoria da “inferioridade da raça”, dizendo; 

Escritores do último século, notadamente Ulloa, negavam tôda 
inteligência aos naturais da América do Sul; êlcs não têm discernimento 
nem compreensãosão animais, são brutos” . 


Tais 


‘‘Muitos colonos do Brasil chamam os índios de bicho do mato. 


asserções depõem sobretudo contra os que as avançam. O fato é 
Que os americanos do .Sul, como os representantes de tôdas as raças 
uinanas, participam de nossas fraquezas e de nossas forças ; possuem, 
^’n graus diversos, nossas faculdades intelectuais e morais; levam-se 
j*' ^^nlização de grandes ações e recaem em práticas ignóbeis; progri- 
^ni ou decaem segundo as lutas nas quais estão empenhados, o meio 
qual se acomodam e à parte de liberdade de que gozam” . 

Lê-se no discurso: “Não tenhamos, por espírito de nacionalismo 
piegas e incompreensível, a veleidade de querer explicar à Nação que 
^ preciso proteger o selvagem” . 

Em primeiro lugar, o pensamento de proteger o índio não é pri- 
vo nosso, nem nos podemos vangloriar de sermos os primeiros a 
quem êle ocorreu . A honra de tal precedência cabe a uma senhora, e 
enhora egrégia : é o que se infere da seguinte passagem de um tra¬ 
io de Silvestre Rebêlo, publicado na Revista do Instituto Histórico, 
tomo I : 


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“Xa chegada da frota a Sevilha vieram ordens da còrte para se 
venderem os índios como escravos; contudo, o piedoso coração de Isa¬ 
bel fêz com que esta ordem fòsse contramandada, e que os índios fos¬ 
sem reenviados a São Domingos, para onde se mandou também outra 
ordem para que os mesmos índios fôssem aliciados com afagos e ca¬ 
rinhos e não perseguidos militarmente e reduzidos à escravidão’’. 

Muitos outros personagens ilustres, que enchem as páginas da 
história da Humanidade com os fulgores da sua glória, levantaram-se 
em defesa do índio e-manifestaram-se seus amigos. 

O chanceler Bacon, jxDr exemplo, num pequeno trabalho escrito 
l)ara chamar os europeus a sentimentos humanos, em relação às inde¬ 
fesas populações do novo mundo. dizia: “Lembremo-nos de que se 
somos cristãos, os outros são homens”. E noutro tópico; “Guardemo- 
-nos de fazer do nosso Salvador um !Moloch, oferecendo-lhe em holo¬ 
causto o sangue desses homens”. 

O grande Jefferson, quando presidente dos Estados-Unidos. em 
1804, não desdenhou a amizade de uma tribo indigena e mandou que 
0 seu ministro da gaierra escrevesse-lhe uma carta, exprimindo a sa¬ 
tisfação do governo de ^'ashington pelas boas relações com o povo 
aborígene a quem ela se dirigia. Essa carta tinha o seguinte fecho: “O 
Presidente vos envia uma cadeia dc ouro puro, o qual nunca enferruja. 
Assim queira o Grande Espírito ajudar-nos a conservar resplande¬ 
cente, por uma longa sucessão de séculos, a cadeia da amizade da 
qual a cadeia de ouro é um emblema”. 

Em segundo lugar, se adotássemos o conselho de não proteger 
o índio, abandonaríamos tòdas as tradições da nossa história e as 
lições dos nossos maiores patrícios. 

O primeiro rejeitado seria José Bonifácio, que compendiou em 
cinco mandamentos, “os meios de que se deve lançar mão para a })ronta 
e sucessiva civilização dos indios’’, os quais são: 

1. “ Justiça, não esbulhando mais os índios, pela fôrça, das 

terras que ainda lhes restam, e de que são legítimos 
senhores. 

2. ° Brandura, constância c sofrimento dc nossa parte, que nos 
cumpre como a usurpadores e cristãos. 

Abrir comercio com os bárbaros, ainda que seja com perda 
da nossa parte. 

4. “ Procurar com dádivas c admoestações fazer pazes com os 
índios inimigos. 

5. “ ^ Favorecer por todos os meios possíveis os matrimônios entre ' 
índios e brancos e mulatos. 


3.“ 


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Depois seriam os nossos mais esclarecidos homens de g-o\êrno, 
os quais trabalharam sem desfalecimento pela prosperidade do sel- 
' icolas, desde os ])rimeiros tempos do descobrimento do Brasil até 
nossos dias; seria um Caxias, que no Maranhão e no Rio Grande do 
ul, em Relatório de abertura da Assembléia Legislativa, 1846, levan¬ 
tou a voz a favor do índio; ou um Inglês de Sousa, que a 15 de junho 
í e 1889, no Instituto da Ordem dos Ad\ og’ados. formulava a seg-uinte 
Pi-oposta; 

“Proponho que o Instituto represente ao Congresso Xacional 
sobre o imj)erioso dever e alta conveniência de regularizar, no direito 
'lecionai, a situação dos aborígenes do Brasil, quer aldeados quer er- 
rantes ou nômades, de modo a protegê-los eficazmente contra as vio- 
^ncias e depredações de que são vitimas e a incorix)rá-los ao orga¬ 
nismo econômico do país como fôrça produtora, decretando legislação 
^pi^opriada a êsse diijilo fim em bem dos sentimentos de Humanidade 
^ dos interêsses da civilização". 

Ou um Barbosa Rodrigues, que reclama^-a para os selvícolas a 
pi oteção do govêrno nos seguintes têrmos; 

ide H Pacificação dos Crichanás) : 

“E triste vêr os índios expulsos das florestas em que se criaram, 
Onde rêdes se ataram e suas malocas se ergueram. 

‘Extorquidas as terras, derrubadas as suas matas, revolvidas as 
siias urnas mortuárias, como viverão êles? E ainda mais, divididos, 
'^^Par.sos e foragidos?. . . Que o século XIX não assista mais a êste 
^Petáculo. Que se proíba a dispersão dos membros de uma tribo. 
7^^ suas terras lhes sejam legahnente doadas, como é de lei, sem di- 
oito de alienação. Que se cumpra o aviso, de 21 de outubro de 1850, 
P^ira que não sejam dcq^is os indios usurpados do que é seu". 

Essas são as \'ozes que falam em nome das melhores tradições do 
’^nsso jiassado, chamando-nos ao cumprimento de um indeclinável de- 
c ninguém dirá que para tanto falte autoridade a um José Boni- 
' a um Caxias, a um Inglês de Sousa, a um Barbosa Rodrigues, 

^ hiiitos outros que seria fácil citar. 

^ i^Ias, prosseguindo na leitura do discurso, vamos encontrar o se- 
sUinte; ‘74 história do Brasil ( *) não apresenta, desde que resolvamos 

I'Ubl/ ^ Estados-Unidos foi instituído um Dia do índio .Americano, e por essa ocasião 

só Se proclamação na qual se lê: .Agora que a glória e as nuvens do passado 

e o f nas páginas dos monumentos históricos, nós não podemos esquecer o presente 

raçaj nosso jiovo. Cabe-nos promover e adquirir todos os meios que tornam as 

mais la ''^Çõe.s mais eficientes e mais nobres; pelos quais possamos alcançar uma vida 
■"Ka, através do amor fraternal, e atingir os nobres destinos de nossa pátria, não sò- 


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despir os índios das falsas vestes que os poetas lhe hajam emprestado, 
um exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso 
progresso’’. 

Recorramos, pois, à história do Brasil, tal como a relatam os que 
a tiveram de estudar pausada e cuidadosamente. 

Em 1788, Domingos Alves Branco, em seu “Plano sôhre a civi¬ 
lização dos índios do Brasil", entendia que só à incomparável viveza 
dos selvícolas e aos seus conhecimentos de ervas medicinais, devia-se 
o bom êxito dos trabalhos de exploração dos cosmógrafos portu¬ 
gueses, ao longo das costas e no interior do país. 

João ^íendes de Almeida, nas suas “Xotas Genealógicas”, es¬ 
creveu : 

“A verdade é que os pxjbres indigenas do Brasil, que foram os 
verdadeiros construtores das cidades e das povoações após a desco¬ 
berta, e sem os quais os portugueses teriam perdido esta conqitista, 
]}OÍs que eram impotentes para a colonização de tão vasto território, 
e ainda mais impotentes para o defenderem dos franceses, dos holan¬ 
deses, dos ingleses, a verdade é. dizemos, que os indígenas do Brasil 
não mereciam dos portugueses senão o rigor e o mau trato. e. por sô- 
bre-carga, o desprezo dos próprios que dêles descendem e que consen¬ 
tem no apagamento de todos os sinais de sua natural procedência. 

“Ainda por mofina, não têm faltado e.scritores brasileiros que 
em vez de reerguerem pela verdade histórica o indígena, hão preferido 
aceitar e afirmar tôdas as apreciações falsas dos europeus que os vie¬ 
ram explorar!’’ 

X^outra passagem da mesma obra, volta o autor ao assunto, nos 
seguintes ténnos: 

“Foram com efeito só índios os edificadores das igrejas, dos con¬ 
ventos. dos hospitais, dos palácios, das fortalezas e dos armazéns reais. 
Os governadores e os capitães-mores não conheceram outros operários 
nas obras públicas. Mesmo os particulares obtinham, para o seu ser¬ 
viço doméstico, índios livres. Inúmeras cartas régias dão testemunho 
dêsses fatos". 

Azeredo Coutinho. nas Obras do bispo d’Elvas. diz: “A conquista 
do Espírito-Santo foi devida a Tibireçá; a. da Bahia, a Tabira; a de 
Pernambuco, a Itagiba e Piragibe. que foi premiado com hábito de 
Cristo e tença; a do Maranhão, a Tomagica”. 



e os meios pelos quais elas podem ser alcançadas constituiam o objeto de 


no Dia do Índio .“Vniericano! 


nossos pensamentos 


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2 3 


z 










ficada em Wll 


Tribo paci 


\linas-Gcra's 


rio Doce 


Menina Crenaque 


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35 — 


E Gonçalves Dias, acrescenta: 

“Êles, foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil 
e grandioso; são o princípio de tcxlas as nossas coisas; são os que 
deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, 
e será coroado das nossas prosperidades o dia de sua inteira rea.- 
biliíação" . 

Estas palavras do nosso grande i)oeta lembram-nos uma passagem 
de Francis Leupp, em que também se faz menção do concurso do ín¬ 
dio para a formação do caráter do norte-americano. “Xossos aborí- 
gicnes, disse ele. trouxeram como sua contribuição para o i)atrimônio 
comum do caráter americano uma grande parte, que é admirável e 
útie só precisa ser acertadamente desenvoh ida”. 

Êsse é o depoimento da história verdadeira, a qual poderia aqui 
fala r por centenas e centenas de páginas, se quisesse minudear o con¬ 
curso do índio na formação da Pátria Brasileira, na dilatação e con¬ 
quista do seu território para além da linha de Tordesilhas. até ao sopé 
da Cordilheira dos Andes; na opugnação á conquista holandêsa e até 
contra a invasão paragmaia, durante a qual a defesa nacional viu 
desenrolar-se um dos seus mais épicos episódios, na resistência oposta 
pelos Terena. na passagem do Aquidauana. 

O concurso do índio há de ser procurado, não no desenvolvimento 
das nossas cidades modernas, nas calçadas de suas avenidas gloriosas, 
uo brilho das nossas obras literárias e científicas; mas sim no interior 
úo ])ais. no desbravamento dos sertões e na sua preparação para receber 
o homem civilizado, o europeu ou o seu descendente. 

“Os Tapuias, escreveu E. Réclus, na obra já citada, eram. antes 
da introdução do vapor no Amazonas, os intermediários de todo o co- 
uiércio. os guias de todos os viajantes". E quantos rios não há ainda 
uo nosso país. nos quais os transportes e as viagens só se fazem à 
custa do esfórço. do trabalho e da habilidade dos indios ? Quem poderá 
desconhecer o valor que representa para a civilização dessas regiões a 
uianutenção de tal .serviço? 

Quando o General Kondon, ainda no i)ósto de capitão, teve de en¬ 
frentar as dificuldades da travessia do pantanal, de São Lourenço a 
Taquari, na construção da linha telegTáfica entre Cuiabá e Corumbá. 
Venceu-as graças ao concurso voluntário e decisivo dos índios Bororo, 
que lhe forneciam turmas de trabalhadores para a abertura de picadas, 
levantamento e fixação dos postes, esticamento do fio, transportes, 
caçadas para abastecer de carne os acampamentos e numerosos outros 
serviços próprios a tão grande cometimento . Antes disso, outros 
Pi-ofissionais. de reconhecida e incontestável competência, haviam jul- 


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íí^aclo impraticável aquela obra. dada a natureza do solo. os famosos 
alagados do Paraguai. Não é legátimo admitir-se, com o General 
Rondon, (jue o concurso do índio foi o fator que faltou àqueles profis¬ 
sionais, e que a sua introdução representa por muito a mola do sucesso 
depois verificado, ou antes, que representa tudo quanto podia concorrer 
para êsse sucesso, além das qualidades individuais do chefe? 

Anos depois \-amos encontrar êsse mesmo grande brasileiro a 
afrontar as asi)erezas. os perigos e os riscos do descobrimento do Ju- 
ruena e da travessia do sertão, nessa época ainda desconhecido, que se 
alonga desde a crista da serra dos Parecis até as margens do Madeira. 
Para tão árdua emprêsa, conta êle com o auxílio dos Pareci, que lhe 
fornecem, no velho Uazá-Curiri-Gaçu. o guia que o leva ao Juruena, 
e depois concorrem para salvar a espedição, abastecendo-a de alimen¬ 
tos, quando»ela voltava exausta de cansaço e de privações. 

No ano seguinte, torna o moderno desbravador de sertões a en¬ 
frentar o desconhecido; transpõe o Juruena e descobre a Serra do Norte 
palmilhando para isso a terra coberta de aldeias dos aguerridos e hos¬ 
tis Nhambiquaras. 'Um outro pareci, Tolorí, é o guia ou explorador 
da vanguarda. Tôdas as manhãs parte sozinho; embrenha-se pelos 
trilhos ou caminhos de índios, na direção do poente. À tarde volta, 
trazendo claras e detalhadíssimas informações sôbre os acidentes, os 
obstáculos e os meios de contorná-los: do terreno que tem de ser pal¬ 
milhado pelos expedicionários no dia seguinte. Irás, além disso, jie- 
sada carga de peças venatórias, que constituem valioso e imprescin¬ 
dível elemento de subsistência para Rondon e seu.s comandados. 

Mais um ano e nova investida contra o sertão: desta vez para 
atravessá-lo definiti\-amente. até sair no Madeira. Logo no irrincipio 
da expedição, morre Toloirí: perda imensa, que Rondon deplora em 
palavras sentidas, respassadas de saudade, de reconhecimento pelos 
serviços que lhe jrrestou o índio. Levanta-se então um terceiro pareci, 
o jovem chefe Libânio Coluízorcê. que toma o pôsto em que tanto se 
distinguiram os seus dois predecessores. Êste termina o reconheci¬ 
mento do sertão, e \'em com Rondon, pelo Amazonas e pelo Oceano, 
á capital da República, que o teria de rever mais de 10 anos depois, à 
testa de um troço de guerreiros de sua tribo, trazendo-lhe, no auda¬ 
cioso e empolgante Zicunáti, o concurso do indio aos festejos do Cen¬ 
tenário de nossa Independência . Cumprida a mensagem, a morte colhe- 
-o em meio da enorme caminhada de regresso aos seus campos nativos 
e às suas aldeias. 

Por todos os sertões em que o índio vive. rAs o encontramos com», 
nos casos acima apontados, prontos a secundar-nus com o seu trabalho, 


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de um colégio do 


alunos 


de Mato-Grosso 


•U alto sertão uc 

de três tribos do a» 


Representantes 


2 3 4 5 6 7SCÍELO 77 72 13 14 15 16 17 





















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com o seu esforço e experiência, e com os seus meios de ação e de sub¬ 
sistência, na verdade parcos, mas eficientes. Ainda aj^ora, a Comissão 
Ronclon, por um dos seus mais perseverantes auxiliares, o Major Ni- 
colau B. Horta Barbosa, acaba de esticar o fio telegráfico, na exten¬ 
são de 360 km de Campo-Grande a Ponta-Porã, na fronteira do Para¬ 
guai, tendo como trabalhadores índios Terena e Caiuá. Os mesmos 
Terena e os Cadiuêu, forneceram injxirtantíssimos contingentes de 
trabalhadores ])ara a construção da estrada de ferro Noroeste, na parte 
que vai de Três Lagoas a Pôrto-Esijerança. Os Caingangue Para¬ 
naenses prestaram análogo concurso para a construção da estrada es¬ 
tratégica de Pòrto-L^nião à cidade de Palmas, e dêles escreveu distinto 
oficial, que os teve sob sua direção nessas obras: “Ao lado de traba¬ 
lhadores alemães, iwlacos, italianos, russos, argentinos e paraguaios, 
loram considerados ótimos trabalhadores. Eram os melhores tra¬ 
balhadores de terra". Sem os Uapichana e os Alacuxi, não há na- 
■'cgação no Alto Rio Branco e nos seus afluentes, nem rodeio de gado 
lias fazendas nacionais e ])articulares daquelas regiões, São êsses 
índios os campeiros daqueles rebanhos, atualmente avaliados em mais 
de 200 mil rezes, assim como são os únicos lavradores e fornecedores 
úe produtos agrícolas à ]»pulação da chamada güiana brasileira. 

A êstes exemplos, quantos outros não se poderiam juntar? Alas 
também, quanto não ficaria a relação cpie assim se fizesse, por mais 
extensa que fosse, abaixo da realidade? E o (pte não teria de imperfeito 
c de superficial, a representação que ])or ela se quisesse esboçar, do 
concurso prestado ])elo indio para a formação da Pátria Ifrasileira e 
pnra o progresso da ci\ ilização no nosso território e desenvolvimento 
úti nossa população? 

I’or fim, lemos no discurso; "Os antropologistas nos mostram 
hnc, raças refratárias ao ])rogresso, ])ovos avessos á civíTização, no 
i^^rasil e em todo o mundo, ao in\ és de serem socorridos i)elos poderes 
públicos, devem ser calculada e friamente deixados aos seus próprios 
úestinos". 

Preferimos não desvendar, não compreender a significação in¬ 
teira destas ])alavras, não penetrar os i)ensamentos tremendos (jue por 
acaso estejam nelas envolvidos e pretendam ser sub-entendidos. Já 
^ào tantas e tão inauditas as barbaridades que se têm dito e escrito, 
•is atrocidades (jue se têm preconizado e praticado contra o desgraçado 
povo americano, que mais uma não espanta, embora doa, E era de 
^si)erar que viesse em nome do “frio e calculista" cientismo, novo 
-'loloch não menos insaciável de sangue e de carne humana do que o 
'''CU predecessor. 


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Apela-se i)ara a lição dos antropologistas para aconselhar-se a 
adoção de uma providência tão horrivel como essa. Mas afinal, o que 
são os antropologistas? Não serão homens como os outros, a manejar 
teorias abstratas, construídas muitas vêzes sob a inspiração de inte- 
rêsses subalternos e de preconceitos de raças? Não estarão êles, por 
isso mesmo, mais expostos do que ninguém a se extraviarem, a erra¬ 
rem e a nos induzirem ao mal em vez de ao bem? Não é contra a se¬ 
dução do prestígio de forjadores de refalsadas teorias da natureza 
dessa que nos têm querido precaver os nossos melhores patrícios, quan¬ 
do escrevem, como João Mendes de Almeida: 

‘‘Acêrea dos índios do Brasil e em geral do homem americano, os 
europêus não se cansam, desde o século de acumular êrros sôbre 
erros, fábulas sôbre fábulas... O que. porém, mais deve doer ao bra¬ 
sileiro é ([ue. mesmo no Brasil, há muita gente que não conhece os in¬ 
dígenas brasileiros senão pelo que franceses, alemães e inglêses escre¬ 
veram e ainda escrevem". 

O valor de uma ciência mede-se pelo grau de exatidão com que 
as suas teorias abstratas representam a realidade, refletem os fatos 
do mundo objetivo, facultam-nos previsões relativas a ocorrências 
que nos possam interessar, e indicam-nos os meios de as modificar 
para melhor adaptá-las às nossas conveniências: e um cientista vale 
])e!o emprêgo que faz. ou aconselha que se faça, das teorias que ensina, 
no sentido de servir a sociedade em que vive e para tornar mais bela, 
mais cômoda, mais feliz a vida de seus semelhantes. Tornar o homem 
cada vez mais moralizado, isto é, cada vez mais sociável, é a missão da 
verdadeira ciência e é a função dos que a cultivam com dignidade. 
Ora, a sociabilidade consiste, não em suprimir ou deixar extinguirem- 
-se os fracos, os imbeles, os ^•elhos, os doentes, os aleijados, mas sim 
em proporcionar a cada um dêles os meios de terem garantida a vida, 
a subsistência e o bem estar. 

A civilização não é uma entidade extra-terrena, à qual se devam 
imolar \ ítimas humanas; ela não é um fim. mas um meio, um ai)arelho 
com o qual criamos, desenvolvemos ou aperfeiçoamos uma ordem ar¬ 
tificial que suprima, ou pelo menos, atenue as asperezas da ordem 
natural. Por ela. torna-se desnecessário, e depois condenável, a eli¬ 
minação dos infirmes, dos inca])azes. dos que não podem trabalhar 
nem produzir: e isso tanto é verdade em relação aos indivíduos como 
em relação aos povos de indústria primitiva, de pequena população e 
baldos de recursos militares. 

Se i)ois. a antropologia ensina coisas que não se acordam com os 
dados da observação e da experiência, ou que. pior do que isso se 


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opõem a esses dados, então será ela, e não os fatos, que se há de re¬ 
jeitar, por falsa e refalsada fonte de erro. E se há antroi)ologistas 
que, falando em nome de ciência tão imprestável e perniciosa, não re¬ 
cuam diante do horror de verem aplicadas as atrozes conclusões de 
suas teorias, mas. indiferentes aos sofrimentos que vão causar, acon¬ 
selham “calculada e friamente" que sejam postas em execução, então 
não devem esperar que homens de coração os tomem como j.^uias e 
mentores. 

A nossa pátria possue, a respeito dos indios, seus filhos de civili¬ 
zação primitiva, uma experiência própria, que não pode ser vencida 
nem se deve deixar vencer e excluir por afirmações de teoristas e de 
teorias que á nossa estima e ao nosso respeito só apresentam como tí¬ 
tulo o nome g^rego atrás do qual se embiocam. Pois não seria ridículo 
que a longa experiência de um Rondou, de quem Nordenskjõld, citado 
por jMiranda Ribeiro, disse — “êle realizou um trabalho tão impor¬ 
tante e grandioso que dentro dêstes 50 anos \ indouros será único: o 
nieti trabalho, bem como o de Roosevelt, são seus complementares": 
que a longa experiência de um Rondou, forjada ao fogo de mais de 
30 anos de convívio com os índios, nos sertões; que a de um Couto de 
ãlagalhães: a de um Barbosa Rodrigues; e, mais modernamente, a de 
um Roquette Pinto e a de um Miranda Ribeiro, para não falar na dos 
empregados do Serviço de Proteção que diuturnamente andam, há 
luais de dois lustros, lidando com selvícolas de todos os sertões do Bra¬ 
sil e de todos os graus da respectiva civilização; que tôda essa exjie- 
riência hou\-esse de ser rejeitada i)ara se por em seu lugar o que em 
contrário a ela afirmam antropologistas. só por serem antropologistas?! 

‘‘Raças refratárias ao progresso, povos-avessos à civilização"! 
^"o entanto, (juanto observadores, dos que têm privados com êles, par¬ 
ticiparam da oi)inião de João de Lery. que se julgava mais seguro entre 
eles do que em alguns lugares de França: ou de Ives d'Evreux. que os 
ceputava muito mais fáceis de civilizar do que o comum dos campónios 
franceses. 

Refratários ao progresso"! Xo entanto, um escritor francês o 
lúr. Amedée Moure, em 1862, publicando uma notícia sôbre “OS 
í-\'DIOS DA PRO\'ÍXCIA DE MATO-GROSSO", dava o seu de¬ 
poimento : “Êles parecem correr ao encontro da civilização, que nenhum 
estorço faz para os receber. . . Bastaria dar-lhes um ])ouco de proteção 
e socorros: e ter sobretudo cuidado i)ara que os seus vizinhos, os ci\ i- 
lizados. não os ex])lorem, e (pie os crimes cometidos contra êles sejam 
•'eprimidos de modo a imprimir-lhes o sentimento de justiça, de eqüi- 


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dade, que deve reger tôda organização social sábia e liberalniente 
instituída". 

Acusações como essa, de serem avessos à ci\ ilização, substituem, 
para idênticos fins, as (|ue se articulavam outrora ])or terem prestigio 
para impressionar os espíritos, e às (piais se refere o General Couto 
de Magalhães nestas palavras: “Para se poder matar o índio, como 
se mata uma fera bravia, para poder tomar-lhe impudentemente as 
mulheres, roubar-lhes os filhos, criá-los para a escravidão, e não ter 
para com êles lei alguma de moral e nem lhes reconhecer direitos, era 
mister acreditar que não tinham idéia de Deus nem sentimentos morais 
ou de família'’. 

Arouche Rendou, cpie escreveu sôbre êles na época cheia de en¬ 
tusiasmos e esperanças da Independência, não os tinha na conta de 
avessos ao progresso: “inuitos servem nos corpos militares, disse êle, 
muitos querem ser brancos, e alguns já são havidos por tais desde que, 
por meio do cruzamento das raças, têm esquecido a sua origem. Tais 
são muitas famílias novas, de curtas genealogias ( ^). 

E qual a arte, o ofício ou o gênero de ati\ idade que ainda se não 
conseguiu que aiirendessem e exercessem com proveito? Como tra¬ 
balhadores de machado não encontram cpiem os ipuale entre os macha- 
deiros de tixlas as origens: como canoeiros, navegadores de rios, são 
inigualáveis; como campeiros de gado, alcançam e excedem os nossos 
mais reputados boiadeiros do Xorte e do Sul; como lavradores, 
adaptam-se a todos os gêneros de cultura: no Sul o trigo, em São 
Paulo, o café, no Xorte o algodão, e por tcxla a parte o milho, o feijão, 
o arroz, a mandioca, a cana de açúcar, etc. Se lhes fornecemos escolas, 
como as cpie o Serviço mantém nas Povoaçoes Indígenas e em certos 
Postos, com facilidade ajirendem a lêr. escrever e contar. As suas mu¬ 
lheres aprendem a coser á mão e à máíjuina, e êles ajeitam-se aos tra¬ 
balhos dos motores a vapor, das serrarias me(:anicas. dos maíiuinismos 
de beneficiamento de cana. de café. de manclioca, de algodão e de ce¬ 
reais. Se o en.sejo se lhes oferece, ei-h^s tripulantes, foguistas e pi¬ 
lotos de embarcações a vapor ou a gasolina, lornam-.se ferreiros, 
carpinteiros, seleiros, alfaiates, enfim, oficiais de (jualquer profissão (*) 


(*) Um norte-americano, .Vrthur C. Parker, ainda recentemente escreveu: _ Conhe¬ 

ço muitas pessoas que não querem ser tidas como mdios. -A.lgumas nunca mencionam 
seus avós e ninguém pensa em perguntar por eles ; outros redondamente negam que tenham 
sangue índio e afirmam que sua ascendência e francesa ou espanhola... Conhecemos sacer¬ 
dotes, escritores, advogados, engenheiros, escrivães, funcionários públicos, jornalistas c outros 
que têm em grau proeminente o sangue indígena e que no entanto não são contados como 
índios. — Êstes fatos nos levam a supor que o sangue indio está muito mais difundido do 
que se imagina. — The qiiartely journal of thc Socicly of American Indiaits, vol III 19151 


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elementar que se lhes queira ensinar. Extratores de erva-mate, de óleo 
de copaíba, de i)oaia, de castanhas, de cáncho e de numerosos outros 
produtos florestais, transformam-se em trabalhadores de construção 
c de conservação de estradas de ferro e de rodagem, ou de linhas tele¬ 
gráficas. Com a mesma facilidade aprenderam a arte de manipular 
os aparelhos Morse, para receber e expedir telegramas. Xa grande 
Linha de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, o General Rondon já 
formou 10 telegrafistas, tirados do seio da nação Pareci; destes, uns 
estão empregados como praticantes, outros como profissionais de classe. 
A Estrada de Ferro Noroeste, na seção de iMato-Grosso, emprega dois 
telegrafistas terenas; um outro é praticante na linha recém-cons- 
truída de Campo-Grande a Ponta-Porã. E até como professôres, 
dactilógrafos e ourives há exemplos dêles se aplicarem com sucesso; a 
diretoria de índios possue bijouterias de prata, feitas por índios Tere- 
na, do Pòsío de Proteção do P>ananal. 

Enfim, o que falta para provar que os índios formam um ])ovo 
eminentemente ada])tável a todos os progressos e afeito a adotar as 
diretrizes da nossa civilização? E não se pense que esta conclusão 
esteja afirmando um fato peculiar, exclusivo aos aborígenes do Pra- 
sil : não! o que fica dito aplica-se a todos os povos autóctones do con¬ 
tinente de Colombo. 

Dos da América do Norte, escreveu F. Leupp, na obra citada: 
“Quanto mais estudamos o índio, tanto mais nos impressionamos com 
a forte evidência de i)arentesco cjue há entre a maior parte de seus 
traços e os de nossos remotos antepassados . A conclusão é ([ue aquilo 
QUe chamamos o problema índio, é mais um ])roblema humano do que 
tuna questão de raça”. 

E noutra ])assagem. levando mais longe o paralelo : “. . . não obs¬ 
tante a analogia que há entre os costumes de tódas as raças no seu es¬ 
tágio primitivo, o índio possue uma individualidade distinta, e nada 
patenteia isto de modo mais convincente do que a maneira pela qual 
Ge sobreviveu aos sofrimentos por (jue teve de i)assar como vítima da 
t^onquista. 

‘■Sui)onha-.se (lue, um século atrás, um povo absolutamente es¬ 
tranho à nossa civilização, aos nossos hábitos e á nossa língua, tivesse 
invadido as nossas costas marítimas e tocado diante de si os colonos 
Pranco.s para distritos cada vez mais isolados ; tivesse destruído as in¬ 
dústrias de (jue subsistiam êsses colonos, e coroado tudo ])elo desar¬ 
mamento e encerramento dêles em vários tratos de terra nos quais êles 
não se pudessem alimentar, vestir e cuidar à sua própria custa : Qual 
n condição a que etariam reduzidos os norte-americanos brancos de 



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hoje? Xão obstante a vigorosa seiva da sua ascendência, certainente 
êles teriam caído em fraqueza de espírito, de corpo e caráter, e esta¬ 
riam afogados na miséria. Xenhnma raça da Terra poderia vencer, 
por forças nascidas do seu prói)rio seio, o efeito de semelhante trata¬ 
mento. Que os índios não tenham ficado totalmente arruinados i)or 
êles, eis a melhor prova que j)odemos dar do forte traço do caráter que 
lhes é próprio’’. 

Estas, sim: são palavras de sadia e verdadeira sabedoria, da sa¬ 
bedoria que convém ser cultivada entre nós e inculcada à gente brasi¬ 
leira, como fonte necessária e exclusiva daquela política eminentemente 
humana que José Bonifácio nos prescrevia e para a (jual nos criou 
um lugar no concérto das nações livres: a sã política, é filha da moral 
e da razão. 

Foi nos sentimentos que a inspiram, que o poeta patrício encon¬ 
trou o conselho com que nos adverte no nosso descabido orgulho de 
civilizado: 

Foram qual hoje o rude americano 
O valente romano, o sábio argivo; 

Xós que zombamos deste povo insano, 

Se bem cavarmos no solar nativo, 

Dos antigos heróis dentro às imagens 
X’ão acharemos mais que outros selvagens. 

E foi também ])or êsses sentimentos que um nosso grande coevo 
fés jus à admiração do mundo civilizado, justa anteciitação da glória 
e do respeito que hão de cercar o seu nome pelos séculos ^■indouros a 
dentro. Tais sentimentos são {luc desabrocham em obras como essas 
que dão lugar a se dizer, noutras plagas: ‘*o General Rondon passou 
a ser conhecido como o W illian Penn do In asil, jtela sua penetração 
pacífica do sertão desconhecido de íMato-Grosso, no qual ganhou com 
imenso sucesso a confiança dos aboríqenes ])elo tratamento admirável 
0 pela proteção humana (pte lhes dispensou . 

Tais são as tradições e as aspirações gerais da elite, não só de 
nossa pátria, mas também de todo o mundo civilizado: as falsas opi¬ 
niões em contrário estão essencialmente condenadas à morte e ao es- 
(juecimento, e muito foi (lue tivessem aparecido algum dia à luz meri¬ 
diana da tribuna e da imprensa. 


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I 


üjilliolcrio lín ^“^ririfuíturn Jiiuliiotria c 4oiumcrna 




ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DO 
ESTADO DO PARANA 


I » 


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ASTOKIO vice;;te ouarahy 


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/fi o iitfiííto rr^fí r/ff fr/o -jfff rffi.jr rof/to 
rA': r/f> (.y/^^/r/o r/r Selleiro- Tapeceiro , r 29 r/r 

r/r. r/fi ff O r/r /^í\ , r/^/mr/rt rii 


Rovecbro. 


jfytttit/rj rt^r^iir^frtçõrj : 


Desenho Instrucçao ?rln;aria 

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rA tmr/rzrj Ay/rrr-i r/n ^"^rriy/'/ri, 12 r/r . . 

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_ .Junho_ 


Fonteve hirante seus anr.os de 
estudo exemplar cocportaaen'^ 


O Dir/rtor 


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7 SciELO 77 72 73 74 75 75 17 





















A C:OMISSÃO DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS DE 

Mato-grosso ao amazonas e o sermço de proteção aos 
ÍNDIOS na exposição DO CENTENÁRIO 

A IXAUGURAÇÃO DOS SEUS MOSTRUÁRIOS, OXTEM REALIZADA, COM A PRESENÇA DO 

SR. PRESIDENTE D.\ REPÚBLIC.A 

Os discursos dos Srs. General Rondou c Ministro Caluion. Visita à E.vposiçrw 

■AS I.MPRESSÕES DO SR. PRESIDENTE DA REPUBLICA 

X’o Palácio das Grandes Indústrias da Exposição do Centenário, efetuou-se 
ontem, às 11 horas da manhã, com a presença do Sr. Presidente da República, a 
inauguração dos mostruários organizados pelas comissões das Linhas Telegráficas 
i^ie Álato-Grosso e do Serviço de Proteção aos índios, chefiados pelo Sr. General 
1'london. 

Todos os trabalhos expostos patenteiam, conforme acentuou no seu discurso 
o Sr. Dr. ÁÍiguel Calmon, Álinistro da Agricultura, o esforço, a dedicação e o 
patriotismo com que o Sr. General Rondou c os seus incomparáveis companheiros, 
se têm empenhado nessa grandiosa obra de desbravamento dos nossos sertões, em 
prol do melhor conhecimento e aproximação das vastissimas zonas do nosso 
grande noroeste e das pojiulações indigenas que hahitam aquelas iiaragens. 

O Sr. General Ronnon. após os cumprimentos da pragmática, pedindo vénia 
Sr. Presidente da República, proferiu o seguinte discurso, que resume tòda 
3 obra até hoje realizada pelas comissões que tem sido dirigidas por S. Ex.: 

“E.xmo. Sr. Presidente da República. Os mapas, os livros, as fotografias 
^ os artefatos indigenas reunidos nestes mostruários e cuja exjiosição à curio¬ 
sidade pública \L E.x.^ quiz honrar coin a sua presença, lembram resumida- 
iiiente, 32 anos de continuos trabalhos no interior do país, a serviço de uma 
'-'aiisa, de um ideal, de um veemente desejo de contribuir para o engrandecimento 
Pátria Brasileira. 

Êsses tralíalhos começaram em 1S90, quando o atual chefe cia Comissão Te- 
•^gráfica, como ajudante do então Major Antônio Gomes Carneiro, e na qualidade 
de Tenente do Estado Maior de 1.^ classe, viu abrir-se diante de si a árdua car- 
leira de sertanista e de explorador geográfico. 


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Foi a primeira oportunidade cpie se lhe ofereceu para a realização do projeto 
que fromulára, quando ainda aluno da Escola Militar, de construir um dia a 
Carta do seu Estado natal. 

Em 13 meses de trabalhos assíduos e esforçados, o futuro herói da Lapa tinha 
concluido a sua obra. em consequência da qual a linha telegráfica estendia-se de 
Cuiabá à margem esquerda do Araguaia, através de um sertão nesse tempo só 
habitado por tribos da Xação dos Bororo. 

Eram 580 quilômetros de linha assentada e o levantamento de 600 quilô¬ 
metros de estrada que a Comissão chefiada pelo grande soldado republicano 
apresentava como resultado de sua curta mas brilhante campanha sertanista. 

Foi essa a minha escola; foi êsse o meu único Chefe e essa a primeira fase da 
carreira em que se havia de emi^enhar tóda a atividade de minha vida e o meu 
inquebrantável entusiasmo pelo .serviço da Pátria c da República. 

De 1892 a 1898, como Chefe do 16.“ Distrito Telegráfico de Mato-Grosso, 
reconstrui por completo a linha de Cuiabá ao Araguaia e retifiquei o levantamento 
da região leste, numa faixa de mais de 60 quilômetros de cada lado do fio. 

Foram então levantados os dois divisores do rio das ^lortes, um principal, 
com o São Lourenço e outro secundário, com o das Garças. 

O ano de 1899. passei-o no Rio de Janeiro, ao lado de minha família, como 
auxiliar técnico da Intendência Geral da Guerra, sob a direção do General Fran¬ 
cisco de Paula Argolo. 

Aproveitei essa circunstância para construir o mapa da região compreendida 
entre os rios Cuiabá e Araguaia, com os detalhes que acabava de colher pessoal¬ 
mente. durante sete anos de contínuas explorações daquele trecho do território 
nacional. 

Em 1900 voltei ao sertão, como Chefe da Comissão Construtora da Linha 
Telegráfica do Sul de ^lato-Grosso. cujos trabalhos se prolongaram até 1908 ' 
e atingiram as fronteiras do Paraguai e Bolívia, ahraugendo Beia-\’ista. Pôrto 
-Murtinho. Coimbra. Corumbá e São Luiz de Cáceres, com o desenvolvimento de 
1656 quilômetros de linha assentada. 

Essa quarta fase de minha atividade, agora na camjianha do Sul e parte 
do Oeste, durou sete anos c foi mais profícua do que as anteriores, pela multi¬ 
plicidade dos trabalhos empreendidos, já propriamente telegráficos, já especial¬ 
mente topográficos e já astronômicos. 

Em 1907 iniciava-se a quinta fase da minha ação de sertanista. com os tra¬ 
balhos de construção da linha telegráfica do Xoroeste de ^lato-Grosso com 
ramais para a antiga \'ila-Bela. Barra dos Bugres e Guajará-Miriin. na extensão 
de 2.686 quilômetros de linha assentada. 

Esta fase estendeu-se até 31 de dezembro de 1914. 

Xesse periodo teve lugar a expedição Roosevelt. que, partindo da foz do rio 
Apa. penetrou no sertão do Xorte, pelo rio da Dúvida, que de então para cá se 


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ilustrou com o nome do ardoroso estadista americano; saiu no Amazonas e atingiu 
u cidade de Manáus, com um percurso de mais de 3.000 quilômetros, dando lugar 
u uma preciosa colaboração cientifica em trabalhos diversos. 

Foi êste o período de mais ricas messes dentre todos quantos constituem a 
vida das Comissões Telegráficas nos sertões de nossa Pátria. 

Foi então que iniciámos os estudos de História Xatural, autorizados e ani¬ 
mados pela esclarecida e firme iniciativa do Ministro da Mação, no fecundo pe¬ 
ríodo governamental do benemérito Presidente Penna, criador da Comissão de 
Pinhas Telegráficas Estratégicas de Mato-Grosso ao Amazonas. 

A exploração metódica dos sertões e o estudo da natureza de 5iIato-Grosso 
foram levados a térmo com esplêndido resultado pela plêiade de brilhantes ofi¬ 
ciais do Exército e de engenheiros civis e militares, a serviço da Comissão e por 
dedicados professóres do nosso 5Iuseu Xacional e do Serviço Geológico, os quais 
prodigalizaram a essa ohra tódas as energias do seu saber e do seu grande amor 
pátrio. 

Como resultado dos trabalhos de penetração no Brasil desconhecido, surgiu 
3 idéia republicana de proteção aos indios. até então abandonados e entregues à 
^ua triste sorte de raça vencida e espoliada. 

O modo por que conduzimos as expedições através do Xoroeste matogros- 
sense desjiertou a atenção do Govêrno e fêz brotar o projeto de novo tentâmem 
para o levantamento do indio ao nivel da nossa civilização, da qual êle se con¬ 
servara arredio e como que repelido desde os tempos da conquista, depois de pas¬ 
sado o breve fulgor das primeiras tentativas jesuiticas. 

Quis o criador do Ministério da Agricultura que eu organizasse e dirigisse 
o novo serviço, como prova do apoio e dos aplausos que merecera do Govêrno 
da República a diretriz qup seguiramos no tratamento das tribos indigenas do 
■'■asto sertão que acabávamos de abrir à atividade pacifica e fecunda do homem 

civilizado. 

Tal diretriz não se traçara ao acaso de uma imposição de momento: ao con¬ 
trário disso, foi ela o fruto de um dever maduramente aceito como ])roduto' ne¬ 
cessário de convicções e de sentimentos que nos conduziram a respeitar as inde¬ 
fesas jiopulações feticbistas nas suas propriedades, nas suas pessoas e nas suas 
instituições politicas. sociais e religiosas. 

Os meus abnegados conqianbeiros de desbravamento do sertão e de explo¬ 
rações geográficas, aceitaram e sempre praticaram o lema inflexível que consti¬ 
tuiu a bandeira destas expedições; "Afrontar todos os perigos, até a morte; 
rnatar — nunca!". 

E foi assim que transformámos em amigas as nações de gênio belicoso dos 
^ 1’ambiquara, dos Barbado, dos Ouêpi-quiri-uáte, dos Pauatê, dos Tacuatêpe. 

^ Ipotê-uate, dos Urumi e dos Ariquême, como em 1893 conseguíramos em re- 


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'-.ao aos Bororo do rio das Garças; e foi assim que implantámos no coração 


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dos Pareci, dos Bacairi, dos Jarn. dos Uriípá, dos Caripuua a inabalável 
confiança na lisura das nossas intenções e no desinteresse de nossos projetos. E 
assim tem o Serviço de Proteção aos índios, filho dileto da Comissão de Linhas 
Telegráficas, conseguido chamar ao campo de sua ação benfazeja inúmeras tribos 
umas ainda guerreiras, outras já pacificas. Os nomes de muitas dessas tribos es¬ 
tão aqui representados nestes artefatos e itestas fotografias; alguns são nomes que 
ainda ressoam como notas de clarim e clamores de batalhas; os Caingangue, os 
Botocudo, os Parintintim, lembram fulgores de va.stos incêndios de duração se¬ 
cular, ainda mal extintos.. . 

— A l.° de janeiro de 1915, inaugurou-se a linha-tronco de Cuiahá a Porto- 
-Yelho, onde a ponta do fio ainda se acha à espera do verbo vivificador que o faça 
recomeçar a sua marcha através do Amazonas, em busca do Acre e de ^Manaus, 
para completar o programa do eminente estadista mineiro e o projeto patriótico 
do atual Diretor dos Telégrafos. 

— De 1915 a 1919, última fase da grande campanha sertanista inaugurada 
com o descobrimento do sertão do Juruena empregámos os nossos esforços no 
levantamento geográfico de pontos e regiões importantes de ^lato-Grosso. 

Estudámos então o vale do Araguaia com traVessia para o Xingu ; do Ta¬ 
pajós com transposição para o Sucunduri e Canumã. Completámos o leventa- 
mento dos vales do Madeira e do Paraguai ; traçámos o divisor das águas do Pa¬ 
raná com o Taquari e o Aquidauana. 

Levantámos as cabeceiras dos rios Correntes, Itiquira, Garças e São Louren- 
ço, como complemento dê levantamentos anteriores dos cursos desses rios. Igual¬ 
mente levantámos os cursos do Arinos, do Teles Pires, antigo São Manuel ; deli¬ 
neámos os divisores destes rios e do Xingu com o Cuiabá e rio das Mortes. Amar¬ 
rámos o nosso extenso nivelamento barométrico das regiões percorridas às esta¬ 
cas de nivelamento da Comissão do Planalto Central, partindo de Goiaz, à da 
Construção da Estrada de Ferro X^oroeste do Brasil em Pôrto-Esperança, através 
do sertão intercalado entre aquela Capital e a de I^Iato-Grosso e pelos rios Cuia¬ 
bá, São Lourenço e Paraguai. 

\'oltámos ao setor compreendido entre o, Gi-Paraná. Guaporé e o Madeira 
para levantar o divisor do Machadinho com o Anari ; dêste com o Jaru ; dêste 
com o Urupá e os seus respectivos cursos; Ikmu assim às cabeceiras dos rios 
Branco e Preto do Jamari ; Prêto do Gi-Iaraná, Juruàzinho; Jamari, Canaã. 
Pardo, Quatro Cachoeiras: Urupá, Cautário, Cautarinho. São IMiguel e Ricardo 
Franco, assinalando neste último trecho o divisor do Gi-Paraná com o Guaporé. 

Caracterizámos então as diferentes serras desses divisores e a extremidade 
norte da cordilheira dos Perecis, determinando por interseção a ponta oriental da 
Serra Pacaá-Xovo. as quais definem a grande garganta dos campos dos Urupás. 
nódulo geográfico importante, de onde promanam águas que vão para o Gi-Paraná. 
Madeira e Guaporé. 




















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]\Iais para o sul patenteámos importantes contrafortes daquela cordilheira, 
aos quais demos os nomes: Uôpiane, Aleixo Garcia, Pires de Campos, Pascoal 
Moreira e Antunes Maciel; regiões habitadas pelos índios Cabixi do norte, üômo, 
Aruá, Purus-Borá e Macurape. 

Êstes estudos orográficos completaram a descoberta de 1908 a 1909, da ori¬ 
gem da Serra do Norte, onde nascem os rios Xhambiquaras, 12 de outubro e Iquê, 
contribuintes do Camararé, e onde vivem os Xbambiquara-Anunzê. 

— De 1920 a 1922, finalmente, retificámos os levantamentos realizados no 
divisor do Arinos e Paranatinga com o Cuiabá; explorámos o Culuêne, formador 
do Xingu- 

Estudámos a cabeceira prncipal do Paraguai e o varadouro que liga a estação 
telegráfica de ^'ilhena à foz do Cabixi, que foi levantado, estabelecendo desde en¬ 
tão a navegação dêste rio, pelo qual começámos a prover o alto sertão do Noroeste 
mato-grossense com viveres e mercadorias importados de IManaus pelo Ama¬ 
zonas e IMadeira, Estrada de Ferro IMadeira-lMamoré e rios Mamoré e Guaporé. 

Construimos a linba telegráfica de Aquidauana a Ponta-Porã, por Campo- 
-Grande, Campos da \'acaria. Brilhante e Caiuás, com o desenvolvimento de 508 
quilômetros de linha assentada, completando assim o estabelecimento de linh.as 
telegráficas nas fronteiras de IMato-Grosso. 

Para aproveitar o imenso cabedal topográfico, astronômico e corográfico, 
acumulado desde o advento da primeira Comissão Telegráfica, instalámos nesta 
Capital um Escritório Central com uma Seção Cartográfica e de Desenho, cujos 
trabalhos se resumem com eloqüência nestes diferaites mapas. 

Construindo primeiramente as plantas dos Reconhecimentos, Explorações e 
Eevantamentos diversos, formulámos depois o projeto de iniciar a cojistrução da 
Carta de IMato-Grosso com os elementos até então adquiridos e pacientemente co¬ 
lecionados, na escala de 1: 100.000 em projeção policônica da Carta do IMundo e 

está sendo impressa no Serviço Geográfico do Exército francês, inestimável 
colabriração de boa camaradagem do exército da grande nação ocidental. 

Para divulgação, reduzimos essa Carta à escala de 1 :300.000, em impressão 
iia litografia Ipiranga de São Paulo. 

-Mém dessas, construímos mais a Carta Sintética, na escala de 1:2.000.000, 
"upressa no Gabinete Fotográfico do Estado-Maior do Exército; carta essa que 
serviu para indicação dos trabalhos sertanejos e descobertas realizadas pela Co- 
íiiissão e que foi aproveita<la na construção do Mapa do Brasil, mandado publicar 
peio Governo Federal em comemoração do Centenário. 

Com o mesmo intuito desenhámos cartas para ilustrar os trabalhos de Bo- 
lainca. Zoologia, Geologia e de Etnografia, dos quais possuímos preciosas me- 
»>orias escritas pelos distintos profissionais e cientistas que se encarregaram de 
tao valiosas pesquisas. 

Está também em construção a Carta de Navegação do Brasil- 


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Para completar os nossos estudos cartográficos de Mato-Grosso, pesqui¬ 
sámos dentro e fora do país. tudo quanto as intituiqões científicas e bibliotecas 
possuíam da cartografia daquele Estado, dos tempos coloniais. 

Um dos resultados práticos dêsse imenso labor foi a revelaqão das minas de 
sulfureto de ferro nas cabeceiras do São Lourenço; o descobrimento das de ouro 
e diamante nas cabeceiras do Cabixi e Corumbiara; de manganês nas origens do 
rio Manuel Correia. Serra Pires de. Campos e vale do rio Sacre; de gipsito nas 
cabeceiras do Cautário; de mica no córrego do Campo, contribuinte do Pimenta 
Bueno; de ferro no vale do baixo-Garças; assim como o assinalamento da exis¬ 
tência abundante da ipeca cinzenta no vale do Pimenta Bueno e margens do Gi- 
Paraná até Urupá. nos vales do Jaru e Jamari, do Lrupá, do Cautário e do São 
Miguel, muito ao norte da região onde essa rubiácea foi primeiramente conhecida 
e industrialmente explorada, na célebre mata da poaia do alto-Paraguai. Do mesmo 
modo foram marcadas as regiões em que a Hevea, a Bertholetia e a Castillõa 
vivem em grandes associações no território ao norte do paralelo de Diamantino, e 
entre os rios Araguaia e Guaporé. 

Tão grande soma de trabalhos não podia, infelizmente, ser levada a têrmo 
sem que pelo caminho ficassem caídos muitos dos esforçados pelejadores. 

A estrada a percorrer era longa e de árduo acesso; forçoso era que muitos 
tombassem para acender ao longo dela o facho do martírio, a cujo clarão a pos¬ 
teridade há de rever a sombra dos sacrifícios a que voluntariamente se votaram 
os novos exploradores dos ínvios sertões. 

É na invocação dessas memórias imortais que revemos a cada hora o travo 
das privações passadas, o péso das grandes fadigas, a agonia das saudades infi¬ 
nitas e também os intantes gloriosos dos triunfos conquistados. 

Elas tinham, pois, de comparecer aqui, onde neste momento a Xação. pelos 
olhos do seu Chefe e natural representante, vê e aprecia a natureza e o valor da 
obra realizada. 

Em primeiro lugar, vede a imagem do imortal Gomes Carneiro; ela evoca a 
lembrança, não só dos iniciadores das construções telegráficas pelo interior de 
Mato-Grosso e de nossa Pátria, como também a memória dos grandes obreiros da 
civilização dos nossos antigos sertões, desde os Capanemas, os Pimenta Buenos, os 
Taunays, os Couto de Magalhães, os Levergers e tantos outros, até Ricardo 
Franco de Almeida Serra, o tqKi mais acabado do sertanista generoso e desin¬ 
teressado. do explorador inteligente, esclarecido e infatigável dos tempos coloniais. 

Eis agora, o saudoso república mineiro, o clarividente Affonso Peirna, em 
tórno de cuja efigie grupam-se as memórias de todos os homens de Estado que. 
furtando-se à fascinação das grandes cidades do nosso litoral, dedicaram um pen¬ 
samento e uma parte do seu esfórço em benefício do nosso hiiitcrland e dos nossos 
sertanejos. 


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Por fim, levanta-se a figura que representa a plêidade brilhante dos iiue 
tombaram dentre as fileiras dos lutadores desta extensa campanha de 32 anos, que 
tem por teatro tõda a vasta região do nosso território, donde promanam as águas 
das nossas duas grandes bacias fluviais do Sul e do Xorte. < 

É o Capitão Cândido Cardoso, modesto e pertinaz colaborador desta obríf. 
ingente, à qual começou a servir quando ainda simples sargento, desde 1890, e' 
na qual foi conquistando vagarosamente os seus gloriosos galões até cair morto, 
em 1913, em pleno sertão, em meio de férvida peleja. 

Pela sua humilde origem, pela sua inquebrantável constância, pelo pôsto a 
que se elevou no sertão, êle conquistou o privilégio inestimável de representar 
com tõda a propriedade o conjunto dos mortos das Comissões Telegráficas de 
Aíato-Grosso. \'endo-o, nós lembramos os que foram, com éle os humildes 
obreiros, sein cujo braço e sem cujo devotamento não nos teria sido possível lançar 
nem a primeira pedra dêste edificio; a turba ativa, operosa, indispensável e anô¬ 
nima das praças de pret, dos trabalhadores nacionais e dos empregados dos te¬ 
légrafos, à qual nos reconhecemos devedores de profunda gratidão. 

Mas também, como oficial, êle nos lembra êsse punhado de nomes brilhantes., 
de cooperadores inteligentes, esclarecidos, dedicados, que tão alto elevam o me¬ 
recimento da obra a cujo serviço se sacrificaram, desde essa grande esperançar 
que foi o Alferes-aluno Francisco Bueno Horta Barbosa até Marques de Sousa,. 
Botelho, o ardoroso Lyra, o geólogo Cicero de Campos, o inspetor dos telégrafos' 
Salathiel Cândido de Morais Castro, o canoeiro SimpHcio, e o incomparável ca¬ 
cique Toloíri (*). 

Associamos a esses vultos nacionais, como homenangem à solidariedade hu¬ 
mana, a figura enérgica do grande amigo do Brasil, o ex-Presidente american» 
Coronel Theodoro Roosevelt, em tôrno do qual se grupam os colaboradores es¬ 
trangeiros da obra realizada no território nacional: a exploração do solo em 
'benefício da cciência e da civilização levada a efeito pelos Saint-Hilaires, Castel- 
rieaux, Chandlers, von den Steines e por tantos outros ilustres geógrafos e na- 
hiralistas que perlustraram os sertões do Brasil e especialmente os de Mato-Grosso. 

Foram êsses os obreiros, Exmo. Sr. Presidente da República! ^ 

É esta a obra ! 

Kós almejamos, como recompensa máxima de nossa vida, que a Nação nos 
ceconheça dignos de uns e de outra, depois de haver reconhecido uns e outra- 
"^'ignos de figurarem como simples ornamento da grande construção para a quaR 
há cem anos, José Bonifácio e os seus colaboradores edificaram a liberdade po¬ 
ética da nossa Pátria. 

jj- Sem esquecer outros valorosos colaboradores que tombaram em postos que exigiam 

Ped sacrifícios a bem da Pátria, como essa grande individualidade que foi o major 

cu' Pibyiro Dantas, devotado levantador do .Araguaia e explorador do rio das Mortes, 

na^ rser-i-iços ao Brasil terminou em virtude dos padecimentos a que se expôs 
'-omissão de Limites com o Peru. 


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A vós, Exmo. Sr. Presidente, dizer, pela Xação, se nos cabe esperar tal 
recompensa”. 

As últimas palavras do Sr. General Rondon foram cobertas por prolongada 
salva de palmas. 

O Dr. Miguel Calmon, Ministro'da Agricultura, em resposta, disse que tôdas 
as coisas que estavam patentes na exposição que se ia inaugurar, bem como a sin- 
tese admirável que o Sr- General Rondon acabava de fazer dos trabalhos da co¬ 
missão de que era chefe, não constituiam motivo de admiração para as pessoas 
que, como êle, orador, bem conheciam o esforço, a dedicação e o patriotismo com 
que o General Rondon e os seus incomparáveis companheiros se têm dedicado a 
esta grandiosa obra de desbravamento dos nossos sertões. É preciso assinalar a 
importância capital que têm êsses trabalhos, que revelam a grande capacidade dos 
brasileiros para a tomada da posse efetiva do extenso território de sua pátria. 

As entradas dos bandeirantes, as conquistas de territórios por êles realizadas, 
ficaram sem seguimento, por parte dos brasileiros, durante todo o século passado. 
Surgiram então os estrangeiros à frente de comissões científicas, destinadas a 
descobrimentos geográficos e etnográficos e, em nome dos seus governos e inte- 
rêsses, exploraram o nosso interior. Entre tais comissões se destacam a de Mar¬ 
tins, a do Príncipe Ludendorf e a do Príncipe iMaximiliano da Prússia, da qual 
fêz parte Bismark — que foi depois chanceler do Império Alemão. 

Cabe a Rondon a glória de ter retomado êsse trabalho de exploração da terra 
brasileira, em nome dos interêsses e-dos ideiais da nossa nacionalidade. Esse 
é, por certo, um dos aspectos mais interessantes dessa obra e, por isso mesmo, 
precisa ser devidamente realçado pela sua significação patriótica. 

O General Rondon, continua o orador, procurou realçar com grande Insis¬ 
tência, o espirito de devotamento com que os seus companHeiros aceitaram o pro¬ 
grama de sacrifícios que lhes foi imposto na frase, já hoje histórica: ‘‘Sofrer 
até a morte; matar, porém, nunca. 

O orador, por sua vez, pode prestar o seu depoimento de que Rondon foi o 
primeiro a dar o exemplo de submissão pessoal a êsse programa de sacrifícios e 
abdicações. 

S. Ex.a era ^linistro da Viação, por cuja pasta corriam os trabalhos das 
expedições de penetração de Rondon nos sertões dos Parecis e Xhambiquaras. 
A fama, não só de guerreiros, mas até de antropófagos de que gozavam os mem¬ 
bros desta última tribo, fazia com que todos temessem pela sorte dos destemidos 
expedicionários. A esposa de Rondon. participando dos mesmos receios e vendo 
que o seu marido se expunha aos maiores perigos, procurou o ^Ministro no in¬ 
tuito de lhe pedir uma providência qualquer que compelisse Rondon a adquirir 

e a usar uma cota de malha, enquanto se encontrasse entr» -i « ,• 

ciiire aqueles indios guer¬ 


reiros. 


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Rondon declarou cjue só aceitava o alvitre, se o mesmo se pudesse adotar para 
todos os seus auxiliares — oficiais e soldados. Para tanto seria necessário fazer 
uma despesa avultada, superior às forças do orçamento destinado ao serviço. 
Portanto, na impossibilidade de comprar cotas de malha para todos, Rondon não 
aceitou a que lhe era oferecida para o seu uso pessoal, apesar dos insistentes es¬ 
forços do ilinistro. E Rondon continuou a passar nos sertões pelos mesmos tra¬ 
balhos, privações e perigos que passavam os seus mais modestos auxiliares. 

Terminando a sua oração, o Sr. Alinistro Calmou felicitou o Sr. General 
, Rondon, em nome do Govêrno da República e da Xação, por todos os grandes 
trabalhos realizados pela benemérita comissão de Linhas Telegráficas e Serviço 
de Proteção aos índios. O discurso do Sr. Alinistro da Agricultura foi viva¬ 
mente aplaudido pelo numeroso e seleto auditório. 

Em seguida, o Sr. General Rondon, depois de apresentar ao Sr. Presidente 
da República os seus auxiliares, passou a percorrer com S. Ex^. e os Srs. Mi¬ 
nistros, os mostruários da comissão, já no que se refere ao Serviço de Proteção 
aos índios, já no que se refere aos mapas e outros dados relativos às Linhas Te¬ 
legráficas. De começo o Sr. Presidente teve ocasião de ver a maquete do monu¬ 
mento que se projeta erigir no noroeste de Mato-Grosso para nêle serem reco¬ 
lhidos os despojos dos mortos da IMissão Rondon, que jazem esparsos pelos ser¬ 
tões e em sepulturas provisórias. Êsse sarcófago (*) será representado por uma 
pirâmide de granito, de sólida base. onde serão gravados, com caracteres de bron¬ 
ze cs nomes dos 204 mortos que tombaram em pleno sertão. Xo pórtico uma 
estátua de bronze representará um indio, significando a origem e a razão de ser 
do monumento. 

Xa seção do Serviço de Proteção aos índios o Sr. Presidente da República 
teve e.xplicaçces sôbre o uso e procedência dos muitos e curiosos artefatos indí¬ 
genas que ali se encontram em grande profusão, desde os adornos de penas, co- 

(*) O artista nacional Sr. Eduardo Sá. autor dêsse projeto, dá dèle a seguinte des¬ 
crição : O monumento destinado a encerrar os restos mortais dos au.xiliares da Comissão 
Rondon se comporá de um sóco formado i)or três degraus e de uma pirâmide de base qua- 
drangular. apresentando um conjunto simples e severo. — O sóco guardará os despojos dos 
humildes companheiros animais : cavalos, cães. bois, etc., sacrificados no desbravamento dos 
sertões; e a pirâmide será a urna funerária, abrigo último dos cooperadores da grande obra 
de abnegação, desde o mais modesto cidadão até o que mais assinalado se tornou entre os 
obreiros da nobre causa da incorporação dos indigenas na Pátria brasileira. — Trés placas 
onde figurarão esculpidos os nomes dos mortos no serviço da Comissão cobrem as faces 
laterais e posterior da pirâmide, em cujo lado dianteiro, alto relêvo simbolizará o sacrifício 
con.í-ciente dos que se dedicaram à proteção nacional devida aos índios, seguindo, no proceder 
derradeiro, o lema da Comissão, que se lerá gravado na pedra — " ,\frontar todos os perigos, 
até a morte: matar, — nunca !" — Encimando as placas, baixos relevos representarão vultos 
dos precursores da obra civilizadora e também o escudo da Bandeira Nacional com a divisa 
da politica moderna — Ordem e Progresso. — Sôbre os degraus, na frente do monumento, a 
estatua de um indio c&çador, em atitude de atenção simpática, mostrará aos nossos irmãos 
das selvas o sentimento de respeito com que devem apreciar o monumento, até que os nossos 
Posteros melhor destino dém às relíquias que ao presente cumpre guardar com saudade e como 
•estimulo a outros sacrifícios se porventura déles precisar a causa nacional. O monumento 
sera de granito, tendo as placas e a estátua de bronze. 




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lares de dentes de animais e outros produtos de sua indústria primitiva, até os 
variados e l)em acal)ados objetos, já fabricados com os recursos da nossa iu- 
diistria ocidental, como chapéus, cestas, arreios, sandálias, e outros. 

Tudo foi demoradamente examinado pelo Sr. Presidente da República. 

Pelos documentos expostos sôbre uma mesa, o Sr. Presidente da República 
se inteirou do número e de outras informações sôbre as escolas, oficinas, cul¬ 
turas existentes nos vários estabelecimentos montados e dirigidos, no interior do 
Brasil, pelo Serviço de Proteção aos índios. 

.A seção cartográfica, a cargo do Sr. Capitão Jaguaribe de Matos foi tam¬ 
bém cuidadosamente examinada pelo Chefe da Xação, cpie recebeu informações 
minuciosas e interessantes dos vários tfechos de territórios que os respectivos 
mapas representam. 

Terminada a visita, o .Sr. Dr- Arthur Bernardes inanifestou a sua impressão. 
Disse (*) S. Ex.^ que percorrera com civica emoção tôda aquela sala onde em 
cada objeto, livro ou mapa, se via um testemunho eloquente, do quanto pode 
fazer jtela Pátria e pela República um pugilo de jiatriotas congregados e diri¬ 
gidos por um chefe, todo dedicação e pertinácia, ao serviço de uma nobre e pa¬ 
triótica missão. 'Ao terminar o seu exame sentra-se bem em felicitar o soldado- 
-cidadão. General Cândido iMariano da Silva Rondon e seus dignos companheiros, 
pela grandeza da obra realizada, podendo a todos assegurar o seu apoio, quer 
oficial, quer particular. 

Depois, S. Ex.^ abraçou o Sr. General Rondon. pedindo-lhe que transmi¬ 
tisse a seus subordinados as suas felicitações. 

Ct Sr. Ministro Calmon. despedindo-se'do Sr. General Rondon, disse-lhe 
que se retirava dali ainda mais brasileiro do que entrara. 


(*t' O -Sr. General Rondon deu do pequeno discurso do Sr. Presidente da República 
o seguinte apanhado: Xão vim aqui, disse o Exmo. Sr. Dr. A. Bernardes trazido iwr rm 
simples movimento de curiosidade; vim movido pelo sentimento de um a.. .,C.. 



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EM DEFESA DO ÍXDIO (*) 

Diário do Congresso de 27 de dezembro de 1922, página 8592. 
— Fala um deputado pelo Distrito Federal: 

‘‘Porque nos obrigam — diz êle — a votar aquela verba siintuária 
que se repete anualmente, destinada ao serviço de proteção aos índios ? 

Quais os benefícios que ao país tem proporcionado êsse dispen¬ 
dioso serviço? 

Como obra suntiiária êle aí está para mostrar que o Brasil, à beira 
da bancarrota, ainda tem recursos para catcqiti::ar indígenas incultos. 

Xa seção do Serviço de Proteção aos índios o Sr. Presidente da República 
forcejando debalde por adaptá-los à ciz'ili:;ação que os repele. 

Repto a Ex”. (dirige-se a outro deputado) a mostrar que ser¬ 
viço tenha produzido a comissão de proteção aos índios. Êsse ser¬ 
viço conta com verbas tão faustosas cjue chegam a causar-nos irri¬ 
tação nesta época de verdadeira penúria. 

Não tenhamos, por espírito de nacionalismo piegas c ineompre- 
cnsivel a veleidade de explicar à nação que é preciso proteger o sel¬ 
vagem porque êle c útil à nossa cultura e necessário às conveniências 
nacionais. 

A história brasileira não apresenta, desde que resolvemos despir 
os índios das falsas ^■estes que os poetas lhes hajam emprestado, um 
exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso 
progresso. 

Os antroitologistas nos móstram que povos avessos à civilização, 
ao invés de serem socorridos pelos poderes públicos, devem ser cal¬ 
culada e friamente deixados aos seus próprios destinos. Xo entanto, 
senhor presidente, quando a juventude doente da metrópole brasileira, 
quando o analfabetismo das cidades sobem de ponto à míngua de do¬ 
tações orçamentárias, vota-se na Câmara um orçamento de mais 
de mil contos para serviços fictícios . . . 


(*) Ao autor dêste trabalho, destinado originàriamente à imprensa jornalistica, agra¬ 
deço o consentimento que me deu de o inserir nesta publicação. — H. B. 


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Parece-me incrivel apenas que nenhuma voz verdadeiramente bem 
intencionada jamais se fizesse ouvir, para mostrar ao pais que êsse ser¬ 
viço de proteção aos indios não passa de escandaloso bliiff”. 

Excetuando-se os grifos, que são meus, e alguns cortes, que fiz 
por abreviação, sem alterar em nada o pensamento do orador, o mais 
é txtualmente do discurso apontado, o qual não tem a clássica nota 
de não ter sido revisto pelo autor, antes, pelo contrário, tem a de ter 
sido reproduzido i)or haver saído anteriormente com incorreções . 

Xão quero — é óbvio — com a transcrição acima fazer propa¬ 
ganda das respectivas idéias: quero, em vez disto, mostrar, não por 
dilcttantismo ou imi)ertinência. mas por amor dos nossos indígenas 
que tais idéias são errôneas. 

Preliminarmente contesto que seja suntuária a verba destinada 
ao Serviço de Proteção aos índios. Essa verba varia de 900 a 1. 000 
contos e já tem sido de 500 e 600. A deste ano é de 1.060:5508000. 

Ouem poderá em boa fé achar suntuosidade num serviço que gasta 
apenas 1.065 contos para manter quatro povoações indígenas. 31 pos¬ 
tos de proteção com as suas obras e aberturas de estradas, e medica¬ 
mentos. e material de expediente, e todo seu pessoal, necessàriamente 
numeroso ? 

Oue arrojado blasfemador dirá que a nação dá com generosidade, 
suntuàriamente, dando 1.065 contos para proteger unia população de 
500 mil almas, que a tanto montam os nossos ídios? 

Um ligeiro cálculo aritmético logo nos mostra que essa pojnila- 
ção sái a 2.130 réis per capita e por ano: 246 réis menos do que a 
etapa (só a etaiia) de um soldado aqui na margem do Taquari. onde 
ela não é grande coisa, tanto assim que os homens desarranchados 
custam a se acomodar com a comida que por êsse preço consemiem! 

Assim, o pobre índio gasta por ano muito menos do que o sol¬ 
dado por dia, pois .o soldado além da etapa, tem a roupa,' o calçado e 
o sóldo. 

E ainda acham (jue êle é caro. quando tôda a gente diz e com 
razão, que o soldado é barato! 

Quais os serviços que ao país tem proporcionado êsse dispendio- 
sissimo serviço? — interroga o vigilante censor. 

Quais? Em primeiro lugar êsse serviço tem evitado a morte por 
assasinios e misérias a milhares de criaturas tão nascidas para viver 
como outras quaisquer. 

Essa é a sua principal benemerência. Em semindo li,rv .l 
, , . . . / . . , lugar ele tornou 

habiraveis grandes e ubérrimas zonas airrico i i 

, abandonadas 

aos mdios bravos. 


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Isto se deu eni Santa Catarina, no Paraná, ein São Paulo, no Es¬ 
pírito-Santo e no Amazonas. Creio que se deu também em Mato- 
-Grosso e no iMaranhão. 

Tomando o caso mais vizinho do Rio de Janeiro, o de São Paulo, 
posso de momento, e daqui onde me faltam recursos de tôda a espécie, 
dar o seguinte atestado de benefícios do Serviço de Proteção aos ín¬ 
dios : 

É sabido que havia em São Paulo uma região inteiramente de¬ 
sabitada i)or motivo da presença dos Caingangue. 

Esta valorosíssima tribo defendeu e guardou, até 1912, uma por¬ 
ção tão grande de território do Estado, que se eu lhe pusesse aqui o 
tamanho, arriscaria a minha palavra a ser desacreditada não só do 
orador, como de muitos outros homens. 

Isto pôsto, vou mostrar, conforme certidões i)assadas jjelo Sr. 
Jfilio Coelho Ahlhena, escrivão de paz interino do Distrito de Pená- 
polis. a diferença de preços das terras em questão antes e depois da 
pacificação dos Caingangue. feita laboriosa e corajosamente pelo ser¬ 
viço com tão descabido ardor impugnado e deprimido. 

Bento da Cruz e sua mulher — reza uma certidão — “vendem 
tinia gleba de terra na fazenda IMoreiras, medindo z'iiitc c dois alqiici- 
'>'cs pelo preço certo c ajustado de trezentos mil reis". Isto foi em 1910, 
tlois anos antes da pacificação dos índios. 

O cálculo dá para cada alqueire 13.636 réis. Outra certidão do 
itiesmo Júlio Coelho \hlhena, relativa a 1914, dois anos depois da pa¬ 
cificação dos Índios, reza assim: A The S. Paulo Land & Lumber 
Conipany vende uma gleba de terras na fazenda de Baguaçu, medindo 
(^‘iiqncnta alqueires, “pelo preço certo e ajustado de ciuco coutos de 
réis". 

Cada akpieire custou, jiois. 100.000 réis, o que dá sôbre 13.636 
ceis uma diferença que o próprio arguidor achará bem sensível. Essas 
Icrras são hoje, com efeito, as mais valiosas do Estado. 

Ehn outro cidadão, o Sr. Jesuíno \nanna de Camargo, escrivão 
cartório do primeiro oficio da mesma comarca de Penápolis, cer- 
hficou uma venda feita em 1919 de ciuco alqueires e benfeitorias pela 
”tiportância de um couto de réis. Duzentos mil réis cada alqueire! 

Eu poderia transcrever outras certidões de vendas feitas em 1916, 
1918. não vale a iiena. porém, diante das tão expressivas que 
estão . 

^ Passemos, ixjr conseguinte, adiante. — O Brasil — continua o 
‘ de])utado — á beira da bancarrota ainda tem recur.sos “para ca- 
^'hiiizar indígenas que a civilização repele". 


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Há nesse trecho mais de um engano. O serviço de proteção aos 
índios — e isto já se tem dito centenas de vêzes — não cura absolu¬ 
tamente de catequese e sim de proteção, como o indica o seu próprio 
nome. 

A quem até agora não entendeu a diferença profunda que há 
entre catequese e simples amparo; entre catequizar selvagens, isto é, 
procurar convertê-lo a algum credo em matéria religiosa, política ou 
outra de natureza espiritual e proteger selvagens, isto é, defendê-los 
da opressão e abrigá-los da miséria;,a quem não percebeu ainda essa 
diferença, é inútil apresentar mais explicações. 

Quanto a dizer que a civilização repele os indígenas, é outro 
engano. — Quem os repele são os homens sem coração, e nem todos. 

A civilização ai)enas habitua-se com o desprezo e o sacrifício dos 
índios como se habituou outrora com a escravidão dos africanos. 
Quando, porém, percebe o mal que está fazendo, joga-o de si. 

Estou seguindo os passos do orador. 

Chegado a êste ponto repta éle a um seu colega para que lhe diga 
quais os serviços que tenha produzido, a “comissão de proteção aós 
índios”, que “conta com verbas tão faustosas”. 

O interpelado confessa que não está em condições de responder. 
Mas que culpa tem o Serviço de índios de não quererem as pessoas, 
com um simples passeio ao ÍNÍinistério da Agricultura, receber infor¬ 
mações relativamente ao mesmo serviço? 

As coisas boas que tem feito essa instituição patriótica são nu¬ 
merosas. Para não alongar êste artigo cito apenas algumas, além das 
já mencionadas: Implantou a paz entre os colonos alemães de- Blume¬ 
nau e os Caingangue catarinenses; abriu diversos rios ao tráfico e ex- 
]iloração dantes vedados. Fez do Araribá em São Paulo, e de São 
Jerónimo, e organizou em São Lourenço (Hato-Grosso) e no Erechim 
bem administradas que já lhe querem tomar e acabarão tomando São 
Jerónimo, e organizou em São Lourenço (Aíato Grosso) e no Erechim 
( B . G . do Sul ) duas outras, que em bre\ e serão objeto das mesmas 
cobiças. Certa vez libertou cm plena mata amazônica cinco moças 
que os Cumba, poi \ mgança, ha\ lam raptado e que, apesar de serem 
os Índios tão mal falados, nenhum vexame ou violência dêles sofreram. 
Levantou da progressiva decadência em que jaziam as fazendas na¬ 
cionais do Rio Branco, hoje reputadas as melhores e mais bem cui¬ 
dadas daquela região por pessoas'estranhas e insuspeitas como sejam 
o Dr. Jmeiano Pereira da Sdva. ex-deputado pelo Amazonas o Dr- 
Calvet e o Sr. Joaquim Gondui. cujas opiniões estão impre.s.sas cm 
li\'ros e documentos públicos. 


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Se eii aqui de tão longe, e apenas de memória, posso dar tão boas 
informações, imagine-se o qne poderia fornecer a Diretoria do 
serviço! 

Diz o Sr. deputado qne a história brasileira não apresenta “um 
exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso 
progresso". 

IMas será possvel que o orador ignore os serviços jjrestados à 
Pátria, e portanto ao nosso progresso, por Felipe Camarão, por Ja- 
guarari, por Tibireçá, por Ajuricaba. ])or Ararigboia, Tabira, Pira- 
gibe, Itagiba, Caiubi e tantos outros? 

O Bispo d’Elvas. pessoa sumamente entendida em história e muito 
dada a assuntos politicos e financeiros, escreveu no seu Ensaio Eco¬ 
nômico (Tomo I das Obras) que a conquista do Espírito-Santo foi de¬ 
vida a Tibireçá, a da Bahia a Talnra, a de Pernambuco a Itagibe e Pi- 
ragibe, a do Maranhão a Tomagica. Simão de \Msconcelos, diz, com 
outras palavras, mais ou menos as mesmas coisas. 

Dentre nós quem se poderá blasonar de benemerência que se com¬ 
pare à de íjualquer desses i)obres selvicolas tão injustamente esquecidos? 

Eu estou bem certo que ninguém. Mas ainda (jue essa infeliz 
raça nada houvesse feito seria motivo para abandoná-la aos seus as- 
sasinos e á penúria em que na sua maior i)arte vive por culpa do civi¬ 
lizado. que lhe faz concorrência na caça e na pesca? 

É o que desejaria o orador quando afirma que é “nacionalismo 
piegas e incom])reensíver‘ proteger o selvagem com a alegação de ser 
êle "útil á nossa cultura”, e “necessário às conveniências nacionais". 

Para ai)oiar a sua decidida opiniãq acrescenta que “os antropolo- 
gistas nos mostram que i)ovos avessos à civilização, em \ez de serem 
socoiridos pelos poderes públicos, devem ser calculada e friamente en¬ 
tregues aos seus i)róprios destinos" . 

A’ão ver que quem assim fala. é dos tais que se compadecem dos 
cães que sofrem e os levam para casa lornavehnente penalizados. 

Mas se os cães merecem tal piedade porque não a merecerão ho- 
nicns. só por serem de civilização diferente ou inferior? 

Por mim não faço verdadeiramente grande cabedal do que dizem 
os antropologistas. mas dado que o fizesse, quando algum dêles me de¬ 
parasse uma tal lição eu o mandaria, sem dúvida alguma, cuidar de 
outra vida. 

E ficaria pensando que. quando os homens dizem coisas como 
estas, dizem-nas da bòca para fora. no intuito, aliás vão. de parecerem 
enérgicos, originais ou coisa semelhante. Estão, como se dizia na gíria 
escolar do meu tempo, estão “fingindo pedra". 


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ü árclegd censor fêz. segundo afirma, tôda a sua crítica, to¬ 
mando a “esmo” uma das nossas instituições suntuárias* e inúteis. 

Eu só o acreditarei quando o vir dar para trás nas subvenções 
para catequizadores que escravizam e difamam os nossos índios; ou 
então quando ler o seu voto contra os presentes régios com que o Con¬ 
gresso. dando o que não lhe pertence, aumenta os haveres de quem 
não precisa dessas achegas para viver faustosa e suntuàriamente. 

Como era de esperar, terminou o orador tocando a tecla do anal¬ 
fabetismo. Antes, na sua opinião, êsses mil contos do Serviço de Pro¬ 
teção aos índios fossem gastos em combater o analfabetismo. 

É mais um engano seu. 

Xem sempre é um bem ensinar a lêr. Se Xapoleão Bonaparte 
não soubesse ler, não teria passado de cabo de esquadra e com isto 
imensas desgraças ter-se-iam i)oui)ado à Humanidade, além de que 
a situação atual do mundo seria certamente melhor. 

Se não tivessem ensinado a ler a muitos de nós. pode-se afirmar 
que ã sorte da República do lírasil teria sido bem mais fagueira. 

Enfim, se êsse. com certeza estimável cidadão, não tivesse apren¬ 
dido a ler. provavelmente não teria ensejo de dizer tantas blasfêmias 
contra os nossos infelizes índios, já tão sobrecarregados de alheias 
injustiças. 

Z\Iargem do Taquari, 2 de fevereiro de 1923. 

Alípio B.vxdeir.v. 


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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA 

CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS 


PUBLICAÇÃO N.° 88 DA *‘COMISSÃO RONDON” 

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0 PROBLEMA INDÍGENA DO BRASIL 


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Conferência realizada no Atheneu de Montevideo, 
a l.° de abril de 1925 por J 

L. B. horta Barbosa 



1®. edição: em 1926. 

2®. edição autorizada pelo C. N. P. I., em 1945 com acréscimo de 
outra conferência, realizada a 19/XI/913. pelo mesmo autor, em 
S. Paulo, sôbre a "Pacificação dos índios Caingangue". 



IMPRENSA NACIONAL - RIO DE JANEIRO - BRASIL - 1947 










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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA 

Conselho nacional de proteção aos índios 


PUBLICAÇÃO N.o 8S DA “ COM/SSÃO RONDON ” 


0 PROBLEMA INDÍGENA DO BRASIL 


Conferência relizada no Atheneu de Montevideo, 
a l.° de abril de 1925 por 

L. B. Horta Barbosa 


1“. edição: em 1926. 

2 \ edição autorizada pelo C. N. P. I., em 1945 com acréscimo de 
outra conferência, realizada a 19/XI/913, pelo mesmo autor, em 
S. Paulo, sôbre a “Pacificação dos índios Caingangue". 


imprensa nacional - RIO DE JANEIRO - BRASIL - 1947 


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i' J u ^ 




BIBLIOTECà ‘í 


ÍS54fi 


Ao Sr. Dr. Pedro de Toledo^ aob cuja adrdinistração dos negó¬ 
cios da pasta da Agricultara. Comércio e Indústria realizou-se a paci¬ 
ficação dos Caingangiie Paulistas e a cuja patriótica ação deve o 
Serviço de Proteção aos índios e Localização de í rabalhadores Na¬ 
cionais os brilhantes e decisivos resultados colhidos durante o triénio 
de 1911 a 1913, não só no Estado de S. Paulo como em todo o ter- • 
ritório da República, 


Como sinal de sua civica gratidão 


São Paulo — 4-12-1913. 


Oferece e dedica 
O Autor. 


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0 PROBLEMA INDÍGENA DO 

BRASIL 














Dileto amigo Erasmo Braga. 

Ao teu fecundo gênio de obsequiar os amigos devo eu os dias 
felizes de março e abril de 1925 que vivi em Montevidéu e em Bue¬ 
nos Aires no meio dos distintíssimos membros do Congress on C. 
Work in South America. AU, as vivas simpatias que incessante¬ 
mente se manifestavam por tudo quanto é do Brasil, acabaram 
dando-me a coragem de expor de viva voz o que na nossa Pátria 
se tem feito, e se está fazendo, em prol dos indígenas. 

Realizada a exposição, o acentuado favor que lhe dispensa¬ 
ram os meus novos amigos não se limitou aos aplausos e cumpri¬ 
mentos, mas foi até alcançar de mim a promessa de que a reduziria 
a escrito e a faria imprimir. Ê do cumprimento de tal promessa que 
hoje, afinal, me desobrigo, e o faço tornando explicito que êste im¬ 
presso tem, para mim, o simples significado de modesto tributo de 
gratidão aos bons amigos daquele Congresso. 

Eu os recordo todos, com a nitidez das imagens insculpidas 
em nossos corações pelo mais vivo afeto. Mas, para dar à minha 
manifestação a fôrça e o relevo das evocações pessoais, eu traço 
aqui os nomes, a todos os títulos respeitáveis, dos Srs. Robert E. 
Speer, S. G. Inman e Dr. H. C. Tucker, como sendo os dos amigos 
em quem personifico as homenagens de que me reconheço devedor 
aos preclaros membros do citado Congresso. 

A ti, caro amigo, reservo a missão de interceder a meu favor 
para que maior ainda seja a benevolência que certamente me virão 
dispensar os nomeados amigos ao lhes ser apresentado êste sinal do 
meu eterno reconhecimento. 


E, com isto, ainda mais obrigarás ao teu 

L. B. 


ex-corde 
Horta Barbosa 


Rio, 


13 de Descartes de 138. 
20 de outubro de 1926. 


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Exmas. Senhoras. 

Meus senhores. 

Que temeridade louca me arrastou a esta tribuna e me arran¬ 
cou da alma a consciência do meu desvalor e da minha falta de tí¬ 
tulos para vir tomar o vosso tempo e ocupar a vossa atenção? Cer¬ 
tamente que tão grande afoiteza se não teria engendrado se não 
fôsse a minha esperança no ilimitado poder da vossa benevolência, 
a cuja sombra protetora me agasalho como quem dela carece mais 
do que do próprio ar que respira. 

Mas, de duas outras forças também nasceu o impulso pode- 
roso, que me eleva a esta altura onde se concentram os vossos olha¬ 
res, boi a primeira o veemente desejo de pôr o meu coração e a 
minha mente de brasileiro em inteiro contacto e comunhão de sen¬ 
timentos e de pensamentos com a vossa alma de uruguaios, alma 
insigne à qual devemos essa indeslembrável lição de fraternidade 
internacional de restituir ao Paraguai os sacrílegos troféus da 
guerra que constitue o crime inexpiável das nossas Pátrias. Foi a 
segunda a ânsia de vos mostrar que também na terra do Brasil bro¬ 
tam e medram iniciativas generosas, inspiradas por alto e sadio 
idealismo, dêsses que desabrocham, não em quimeras vazias de 
préstimo, mas sim em obras pejadas de benefícios para vastas po¬ 
pulações e em fortes instigações endereçadas aos povos que as rea¬ 
lizam, para que mais sublimem a sua alma na esperança de torná-la 
consoante com a própria alma da Humanidade. 

Vou atingir o alvo que assim me proponho, esboçando em lar¬ 
gos traços o quadro da proteção fraternal que a Pátria Brasileira 
instituiu, e vem praticando desde 1910, em proveito da parte autóc¬ 
tone da sua população, e em reparação dos tremendos erros e des¬ 
varios contra ela praticados pelos nossos ascendentes de origem 
européia. 

★ ★ ★ 

Aos olhos dos rudes navegadores do século XVI o Brasil 
apresentou-se como vasto território, de extenso litoral oceânico. 


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habitado por povos de civilização rudimentar, que só conheciam e 
só empregavam instrumentos de pedra e de madeira, divididos e 
subdivididos em pequenos agrupamentos entre si hostis e em per¬ 
pétua guerra, pràticamente indefesos e imbeles diante de homens 
que, em fortes agremiações militares, manejavam o ferro e as armas 
de fogo. Diante de tão formidável superioridade de meios de ata¬ 
que e de destruição, não tardaram os vindicios europeus a transfor¬ 
marem-se de hóspedes, carinhosamente acolhidos e agasalhados, 
em espantosos tiranos que depressa desceram e ultrapassaram a 
escala de abjeções a_ que pode conduzir o abuso da fôrça bruta a 
serviço da cobiça, da luxúria e de todos os desmandos das más pai- 
rões largadas a si mesmas, sem freios morais e sem tropeços mate¬ 
riais. 

Daí nasceu, com tôda a sua dolorosa complicação, o problema 
indígena do Brasil, único de que me vou ocupar aqui, embora não 
exceda êle os limites de simples aspecto do vastíssimo incêndio que 
devorou as terras e os povos do Continente de Colombo. 

Os primeiros colonizadores que aportaram ao Brasil, logo de¬ 
pois da viagem de descobrimento de Pedro Álvares Cabral, não 
cuidaram senão de fundar feitorias para exploração das riquezas 
naturais da terra. Nenhuma atenção lhes mereceu a sorte das po¬ 
pulações autóctones que os acolhiam como amigos e se sõbre elas 
agiram foi para as submeter à mais deletéria ação desorganizadora, 
fonte viva de dissolução dos laços da fraca e incipiente ordem so¬ 
cial que entre elas existia. 

Tal situação perdurou até a chegada dos primeiros jesuítas, 
pelos fins ainda do século XVI, os quais traziam a preocupação de 
conquistar as almas para a fé que professavam e de derramar entre 
elas os benefícios da civilização de que eram, na época, os mais 
cultos representantes e os mais esforçados defensores. 

Idêntica preocupação havia levado aos confins do Oriente 
outros membros da mesma ordem, entre os quais avulta a figura 
gigantesca de S. Francisco Xavier. Mas, enquanto lá a obra pla¬ 
nejada se apresentava despida de complicações adventícias, aqui 
cia teve de desdobrar-se em duas ações bem distintas, a primeira 
destinada a proteger os indígenas contra os estragos e malefícios 
da cobiça, da concupiscência e da desmoralização dos conquistado¬ 
res, e a segunda propriamente votada a modificar e desarraigar as 
primitivas crenças e opiniões desses povos e a dar-lhes novas prᬠ
ticas, novos costumes e novas instituições. 


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Ao conjunto dessas duas ações deu-se o nome de catequese, 
embora só à segunda êle se adapte com perfeita e lídima proprie- 
ciade. Semelhante confusão de linguagem torna bem patente a prio¬ 
ridade e a dominadora supremacia que na época se atribuía ao mo¬ 
vimento de transformar os povos em prosélitos da fé monotéica, o 
que se acreditava ser exeqüível por mutação instantânea que de¬ 
terminaria nos homens modificações profundas, radicais e dura¬ 
douras. 

Na verdade êsse seria o tempo áureo das conquistas decisivas 
da catequese, caso pudesse ela produzir as maravilhas que ingenua¬ 
mente prometia. Entre os povos americanos vigoravam ainda ins¬ 
tituições e costumes extremamente bárbaros que urgia serem extir¬ 
pados como ponto de partida de qualquer ação civilizadora a exer¬ 
cer-se sôbre êles. Ao número de tais instituições pertencia a do sa¬ 
crifício dos prisioneiros e o banquete antropófago que se lhe seguia. 

Para sermos justos com êstes povos, devemos lembrar que os 
monumentos históricos da nossa Espécie deixam fora de dúvida 
que tais hábitos não lhes foram privativos. Ao contrário, a antropo- 
lagia foi praticada por todos os povos da Terra e o sacrifício dos 
prisioneiros, primitivamente em massa, e mais tarde de alguns indi¬ 
víduos escolhidos, vigorou até os tempos históricos. Entre os gre¬ 
gos temos o exemplo dos dois príncipes persas imolados como víti¬ 
mas propiciatórias da batalha de Salamina, e entre os romanos o 
destino de todo chefe inimigo aprisionado nunca diferiu do que 
César impôs a Vercingetorix. 

A instituição americana, na época do descobrimento, já se 
encontrava em fase que não era mais a simples antropofagia alimen¬ 
tar. Ao contrário disso, ela apresentava-se com os característicos 
de uma grande cerimônia, efetuada com enorme pompa, na qual a 
própria vítima, sempre um guerreiro tomado em luta, figurava como 
personagem ativa e em grande parte voluntária. De involuntário 
nêle só havia, realmente, o ato inicial, do aprisionamento. Mas de¬ 
pois, transportado para a aldeia dos seus adversários, o prisioneiro 
era deixado em liberdade, tinha os seus movimentos livres como se 
estivesse na sua própria habitação e no meio dos seus. Embora lhe 
estivessem assim abertas tôdas as facilidades e todos os ensejos 
para furtar-se, pela fuga, ao tranze final, êle o aguardava resoluto, 
e enquanto isso participava da vida do povoado como se fôsse um 
dos seus membros. Nessa espera passavam-se dias e meses, empre- 


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gados na preparação das bebidas fermentadas necessárias ao ban¬ 
quete e, principalmente, no expedir convites e esperar que se con¬ 
gregassem as populações das aldeias amigas e aliadas, vindas às 
vêzes de paragens longínquas. 

Tão complicados e demorados arranjos passavam-se sob os 
olhos daquele que tinha de ver nêles os preparativos do seu próprio 
funeral e que, pelas fases a que iam atingindo, podia avaliar de 
quanto já se aproximava o instante fatal. No entanto, a sua reso¬ 
lução conservava-se inabalável: não lhe vinha a tentação de esca¬ 
par ao passo derradeiro, ou, se vinha, afastava-a como idéia impor¬ 
tuna e mesquinha. Com a serenidade, e talvez com o interêsse de 
um ator que acompanha a preparação da cêna em que se terá de 
apresentar como figura central de uma ação empolgante, heróica e 
bela, êle seguia de ânimo inquebrantável o evoluir dos diversos 
aprestos e media a aproximação do momento em que se viria aba¬ 
tido, não como vítima imbele e miseranda, mas sim vencido em 
combate, desafiando a ira imensa da chusma de inimigos, aglome¬ 
rada para participar da glória da sua morte. 

Uma prática desta natureza, assim aceita por todos, sem ex¬ 
cluir os que tinham de nela figurar como vítimas, já pertence a uma 
instituição transformada, mais evoluída e mais nobre do que a pura 
antropofagia de fim estritamente alimentar. De depoimentos; de 
abalizados escritores do século do descobrimento, que conviveram 
com essas tribos quando ainda vigorava em tôda a sua pujança 
estas bárbaras usanças, pode inferir-se que elas estavam a caminho 
de desaparecer, ou pelo menos de passarem por novas transforma¬ 
ções que muito as haviam de restringir. Entre outros indícios que 
autorizam tal juízo figura o de ser notável o número de pessoas a 
quem repugnava, até provocar náuseas e vômitos, a ingestão dessas 
carnes, embora reduzida a partículas mínimas, tanto quanto se 
pode imaginar que um só corpo poderia fornecer a milhares de con¬ 
vivas. 

Parece, pois, fora de dúvida que o sacrificio dos prisioneiros e 
o banquete que a êle se seguia eram, entre os índios americanos, ou 
pelo menos entre os do Brasil, uma instituição de caráter especial, 
provàvelmente resultante da atenuação, e da tendência a desapa¬ 
recer, das matanças primitivas destinadas a fornecerem alimento 
aos matadores. Alguma crença teria concorrido para justificar e 
consolidar tal transformação, a qual teria tido pelo menos a vanta¬ 
gem de excluir as mulheres de figurarem como vítimas, e de tornar 
de uso restrito, só exeqüível de longe em longe, em circunstâncias 


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difíceis e excepcionais, o que dantes cra de uso corrente e banal, 
como a apreensão de qualquer caça e a ingestão de qualquer ali¬ 
mento. Mas essa crença, sobrevivendo ao seu próprio destino, sus¬ 
tentava e prolongava o hórrido festim além de tôda medida e já 
agora sem a justificativa de servir para evitar prática ainda mais 
bárbara. 

Infelizmente não podemos, neste terreno, sair do campo das 
puras conjeturas. Os homens que se acharam em situação de son¬ 
dar a alma dessas populações primitivas, e de nos indicar os senti¬ 
mentos e os pensamentos inspiradores das suas instituições, viram- 
-se desviados, pela doutrina que abraçavam, do caminho que os le¬ 
varia a nos prestar tão valioso serviço. Limitaram-se a descrever, 
de tais criações, os movimentos visíveis, a parte material e exterior, 
e em lugar de se aplicarem a descobrir e pintar o estado de alma 
que as gerara, que nelas se traduzia e retratava, deram-se por in- 
leiramente esclarecidos atribuindo-as ao demônio. 

Forçoso é, no entanto, reconhecer que independia de qualquer 
pesquisa no sentido indicado a adoção do projeto de exercer desde 
logo a mais viva e incessante ação para conduzir êsses povos a aban¬ 
donarem o nefando uso. E de fato os jesuítas dirigiram neste sen¬ 
tido os seus primeiros esforços, mas não tardaram reconhecer 
quanto êles eram impotentes para produzirem a transformação 
desejada. A experiência desmentia as esperanças fundadas na vir¬ 
tude da aceitação da fé monotéica e da prática dos sacramentos re¬ 
dentores por ela instituídos. O que se via não eram as prometidas 
mutações instantâneas que deviam apagar no neófito as chamas 
das paixões e dos hábitos antigos, e em seu lugar fazer surgir o 
homem novo, produto de nova geração, votado a novos estímulos, a 
novas preferências e a novo destino. Ao contrário disso, o que a 
observação mostrava era a persistência dos usos condenados, era a 
sobrevivência da alma primitiva, que mais depressa transformava 
e deformava o novo ensino até pô-lo ao nível da sua velha percepção, 
do que a si mesma se transmudava até amoldar-se às exigências da 
nova existência. 

Desde que isso verificou, a catequese sentiu-se vencida, por¬ 
que todo o seu plano de ação, todo o seu impulso baseava-se na 
crença peremptória de ser possível operar-se uma verdadeira rege¬ 
neração da alma humana, e de realizar-se ela instantaneamente como 
resultado irresistível e conseqüênte à prática de certos atos de in¬ 
tenção divina. Recorreram então os catequistas à eficácia dos meios 


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puramente temporais, às repressões materiais fornecidas pela fôrça 
militar dos governadores. E êstes promoveram e permitiram tão ex¬ 
tensas e desumanas devastações que dentro em pouco as tribos, as 
que não foram exterminadas, se viram reduzidas à impotência, im¬ 
possibilitadas de entre si se guerrearem. Atingindo êste resultado, 
estava automàticamente extirpada a bárbara usança dos banquetes 
antropófagos, por se lhes ter estancado a fonte donde lhe vinha o 
indispensável elemento de vida: — o prisioneiro. Mesmo em tribos 
que viveram até êstes últimos tempos arredadas de comércio com 
os civilizados, como a dos Nhambiquara, dos Quêpi-quiri-uáte, dos 
Parintintim, e outras, e que por iso conservaram em sua primitiva 
pureza as instituições e os hábitos primitivos, não mais se encon¬ 
tram vestígios nem memória da condenada cerimônia. Por tôda 
parte havia ela desaparecido do território brasileiro, não como pro¬ 
duto de mudanças de opiniões e de sentimentos, provocados pela 
catequese, mas sim como resultado das profundas modificações in¬ 
troduzidas na vida e nas relações das tribos pelo fato de se acha¬ 
rem elas dominadas por um poder militar infinitamente superior ao 
seu, que as dizimava e dispersava pela imensa vastidão dos sertões 
desconhecidos. 

Nunca o princípio teológico da intervenção divina para de¬ 
terminar mutações sensíveis e irrecusáveis na alma humana havia 
sido submetido a prova tão rude como essa; mas também nunca 
teve êle desmentido mais claro e mais categórico. Por isso mesmo, a 
ação dos jesuítas, embora sempre designada pela denominação de 
catequeses, só impressionou os contemporâneos e só se fixou na 
história pelo que teve de protetora das populações indígenas contra 
os desmandos e usurpações dos colonizadores. 

Infelizmente. porém, o plano de ação delineado e invariàvel- 
mente seguido pelos jesuítas, encerrava o duplo inconveniente de 
ser o que de mais contrário e de mais prejudicial se podia imaginar 
contra os interêsses daquelas populações, e o que melhor se prestava 
às interpretações malévolas de que afinal os padres nada preten¬ 
diam senão monopolizar em proveito da Ordem o trabalho forçado 
do índio. 

Semelhante plano consistia em proceder a grandes concentra¬ 
ções de tribos em lugares prèviamente escolhidos pelos missionᬠ
rios, de acordo com as conveniências das suas ligações e comércio 
com os centros civilizados. Atraídos por promessas ou compelidos 
pela fôrça, os índios abandonavam as suas aldeias, os seus campos. 


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as suas matas e os seus rios, onde tinham a sua vida organizada e a 
subsistência garantida pelos produtos da caça e da pesca, e vinham 
aglomerar-se em tôrno da casa dos padres, onde tudo lhes era es¬ 
tranho, indiferente ou infenso, e onde lhes faltavam os estímulos 
das coisas que, por falarem ao coração e à mente, alimentam no ho¬ 
mem a chama da existência. 

Assim despovoavam-se as terras do interior; mas com os seus 
habitantes só se conseguiam formar centros populosos de vida pre¬ 
cária e efêmera. Novas levas tinham de descer dos sertões para en¬ 
cher os claros abertos nas precedentes pelas doenças, pela fome, 
pela tristeza, o que tudo desfechava afinal na morte inexorável e 
impiedosa. 

Foi calamitosa fatalidade a transplantação das tribos de suas 
rddeias para as reduções dos missionários. A conservação, delas 
exigia, ao contrário, que fõssem mantidas no seu habitat, no meio 
que lhes era adequado, no ambiente a que as prendiam as velhas 
raízes do passado, formadas e fortalecidas pelas -tradições, pelos 
hábitos e costumes transmitidos de pais a filhos através de largas 
gerações. É evidente que todo projeto de transformação dêsses po¬ 
vos, devia antes de mais nada subordinar-se ao pensamento de ze¬ 
lar pela sua conservação: a obra a realizar era fazê-los subir na 
escala da civilização os degraus que os separavam dos invasores 
das suas terras, não era exterm.iná-los. No entanto foi no que ela 
redundou: foi êsse o fruto inevitável da erradíssima política de 
arrancar o índio ao seu sertão, de carregar, por assim dizer, o cate- 
cúmeno para a casa do missionário, em vez de ir êste ao seu en¬ 
contro e de na sua própria terra, na sua própria habitação, solicitá-lo 
à adoção dos sentimentos, dos ideais e das práticas que se lhes pre¬ 
tendiam inculcar. Nunca semelhante plano de ação fóra executado 
entre outros povos, e na mesma época em que isso se fazia no Brasil, 
e. em geral, na América, noutras paragens, da índia, da China e do 
Japão, a boa regra de ir o missionário ao encontro do catecúmeno, 
em suas aldeias e povoados, estava sendo seguida por membros 
dessa mesma Ordem que aqui fundava as reduções. 

O outro grave inconveniente dêsse plano resultava da neces¬ 
sidade, a que não podiam fugir os missionários, de proceder a gran¬ 
des trabalhos de lavoura, e outros, para o fim de angariar meios de 
subsistência indispensáveis à manutenção das tribos concentradas 
nos seus estabelecimentos. Tais estabelecimentos apresentavam 
desde então, por êsse lado, o aspecto de feitorias agrícolas de fins 


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idênticos aos das propriedades dos colonos e tudo concorria para 
fazer acreditar que outro não era o objetivo dos padres senão gran¬ 
jear riquezas e poderio sob disfarce de obra religiosa e a custa do 
braço do índio. Não lhes faltaram acusações neste sentido e por 
tôda a parte levantaram-se contra êles ódios e prevenções dos que 
só viam nêles competidores privilegiados, que monopolizavam em 
proveito próprio o trabalho da mísera população escravizada. Daí 
as contestações e lutas formidáveis entre a Ordem e os colonos, 
lutas que desfecharam afinal no aniquilamento total da tentativa 
jesuítica. 

Examinada à luz dos resultados positivos, os esforços dos je¬ 
suítas, tanto no sentido da catequese, como no da proteção, re¬ 
dundaram em completo insucesso. Quanto aos primeiros, a história 
não regista, de fato, o nome de um único povo brasileiro que tivesse 
abraçado a fé católica e por ela tivesse vindo ao seio da civilização 
e da comunidade brasileira. Quanto aos segundos, para reconhe¬ 
cer a que ponto fracassaram, basta ter presentes as proporções a 
que atingiu o despovoamento do nosso solo. Tribos inteiras desapa¬ 
receram, exterminadas até o último homem; das grandes multidões 
que povoavam o nosso litoral e os nossos rios só restam o nome e a 
memória dos sofrimentos entre os quais expiraram; de muitas, nem 
isso subsiste. E das poucas que escaparam à sinistra fogueira, o que 
se vê são informes destroços recalcados para o fundo dos longín¬ 
quos sertões, para as cabeceiras quase inatingíveis dos grandes 
cursos de água, onde vivem em triste e desamparado isolamento. 


Assim as encontrou o glorioso movimento que, em 1822, fun¬ 
dou a independência política da Pátria Brasileira. O imortal criador 
de obra de tão grande vulto, o sábio José Bonifácio de Andrada e 
Silva, retomou o estudo do secular problema e numa memória inti¬ 
tulada Apontamentos para a civilização dos indios bravios do Im¬ 
pério do Brasil, indicou o caminho que havia a seguir para dar-lhe 
cabal solução. O plano de ação que então traçou, baseou-o o grande 
estadista em cinco princípios gerais, dos quais os dois primeiros 
prescreviam: Justiça, não esbulhando mais os índios, pela fórça. 
das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores, e 
brandura, constância e sofrim.ento de nossa parte, que nos cumpre 
como a usurpadores e cristãos. 


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Examinado à luz dêsse documento, e de outros da mesma 
época, o pensamento político do Patriarca da Independência do 
Brasil apresenta-se como abrangendo a totalidade dos problemas 
sociais que a tempestuosa e desregrada colonização européia da 
América implantara em nossa Pátria. De tais problemas, dois eram 
de solução urgente, pois entendiam com a própria formação do 
povo para o qual se projetava levantar o edifício da unidade polí¬ 
tica: eram êles o da civilização dos índios e o da emancipação dos 
trabalhadores de origem africana, criminosamente transportados 
para o nosso Continente e nêle reduzidos ao estado de escravidão. 
Compreendeu o sábio estadista que enquanto êsses problemas sub¬ 
sistissem, não estaria na verdade fundada a Pátria Brasileira, mas 
sim um aglomerado de três povos desirmanados, os quais, embora 
co-habitantes do mesmo solo, permaneceriam, em tudo mais, sepa¬ 
rados e divergentes, solicitados por sentimentos antagônicos e inte¬ 
resses opostos. Tornava-se, pois, necessário, antes de mais nada, 
estabelecer as condições propícias ao surto e desenvolvimento da 
fraternidade entre os elementos constitutivos do povo brasileiro e 
foi nesse espírito e para isso conseguir, que o estadista da Indepen¬ 
dência tratou de promover ao mesmo tempo a civilização geral dos 
índios e a libertação dos escravos africanos. O seu pensamento neste 
tiltimo sentido, ficou registado noutra memória, a que deu o título 
de Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa 
do Império do Brasil sôbre a escravatura. 

Nessa memória, o excelso patriota, guiado pelo seu belo afo¬ 
rismo de que — a sã politica é [ilha da moral e da razão, propõe 
medidas para o estancamento imediato do tráfico de africanos, para 
a repressão dos rigores e abusos dos senhores contra os escravos, e, 
afinal, para a gradual e rápida extinção do nefando regímem. 

Desgraçadamente a efervescência das paixões políticas incum¬ 
biu-se de inutilizar tão generoso esforço, de abafar tão magnânimo 
pensamento. A assembléia constituinte foi dissolvida: José Boni¬ 
fácio, seus irmãos e amigos, expatriados. Com isso, a marcma dos 
negócios públicos do Brasil teve outra direção, surgirain^ homens 
dominados por outras preocupações e por um tempo o silêricio se¬ 
pultou no olvido o doloroso problema e a solução que para êle pro¬ 
pusera o gênio fecundo do clarivudente estadista. 

Uma geração teve assim de transcorrer antes que os aconteci¬ 
mentos e a situação geral da consciência do mundo nos forçasse a 
adotar a abolição do tráfico, e ainda outra geração teve de passar 


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para dar tempo a que se formasse o sentimento popular que acabou 
sublevando o Brasil inteiro contra a criminosa instituição e for¬ 
çando o governo a baixar a lei redentora de 13 de maio de 1888 que, 
num só artigo peremptório, declarou extinta a escravidão. 

Estava, pois, realizada, ao cabo de 66 anos de independência 
política, uma das partes do programa formulado por José Bonifácio 
para — “formar em poucas gerações uma Nação homogênea, ver¬ 
dadeiramente livre, respeitável e feliz”; — a outra parte, porém, a 
relativa à civilização dos índios, continuava à espera do pulso po¬ 
deroso que a tirasse da região dos sonhos e a instalasse no mundo 
das vivas realidades, isso não ocorreu no tempo do Império, em¬ 
bora houvesse êle podido, em seu berço, ouvir o éco da obra gran¬ 
diosa de Guido Marlière e tivesse visto surgir, ao longo da sua 
cansada existência, um Arouche Rendon, um Machado de Oli¬ 
veira, um Couto de Magalhães, um Barbosa Rodrigues e outros ge¬ 
nerosos lutadores da causa do índio. Veio a República, e através 
do vulto gigantesco do seu glorioso fundador, Benjamin Constant 
Botelho de Magalhães, tornaram-se mais ouvidos os conselhos e os 
apelos que à consciência nacional dirigiam os Apóstolos da Huma¬ 
nidade, discípulos de Augusto Comte, para que se retomasse o pro¬ 
grama de José Bonifácio e se o executasse com a amplitude dos no¬ 
vos horizontes abertos às iniciativas humanas, pelo conhecimento das 
leis naturais que regulam os fenômenos políticos e morais. 

Um homem houve que, retemperada nessa forja de portentosos 
ideais a sua bela alma de brasileiro, foi, por um benigno Destino, 
colocado em situação de poder executar quantas inspirações lhe 
brotavam da mente esclarecida e do forte coração a favor da pobre 
raça desprotegida e proscrita. Nessa obra veio êle despendendo os 
dias da sua existência durante mais de 30 anos de convívio ininter¬ 
rupto com as agruras do sertão e no trato íntimo com as tribos dos 
mais variados graus de civilização, desde as que já se encontravam 
em promiscuidade mais ou menos estreita com os moradores das 
fazendas, dos povoados ou das cidades, até as que ainda viviam 
isoladas no fundo de suas florestas primitivas, em longínquas pa¬ 
ragens quase inaccessíveis, onde, com a pureza dos constumes e das 
instituições herdadas dos seus maiores, conservavam a vida e o re¬ 
cato de suas mulheres e filhas, assim preservadas de contactos in¬ 
fames e deletérios com os maus elementos da nossa gente e da 
nossa civilização. 

Em tão longo e incessante tirocínio, pôde êsse homem, êsse 
emérito brasileiro, o General Rondon, despertar por fim a cons- 


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ciência nacional e chamar para o problema indígena a atenção dos 
que na sua Pátria tinham a investidura dos altos cargos públicos. 
Ocupava então o pôsto de mais destaque na magistratura do país o 
Dr. Nilo Peçanha, alma de verdadeiro republicano, que sentiu ser a 
índole e o destino dêsse regímem político fundar e fomentar a frater¬ 
nidade entre os filhos da mesma terra: e era um dos seus principais 
auxiliares outro sincero republicano, o Ministro Rodolfo Miranda. 

Encontrando-se assim reunidos num mesmo e feliz instante 
da vida política da sua Pátria, êsses três brasileiros deram-se as 
mãos c conjugaram os melhores esforços de suas naturezas, no afã 
de transformarem em fúlgida realidade a parte ainda não executada 
do grandioso programa de José Bonifácio. 

Foi assim que, antes,de terminada a terceira geração das que 
no Brasil transcorreram sob o regímen criado pelo Patriarca da In¬ 
dependência, abordou-se a solução racional do multissecular pro¬ 
blema de incorporar à nossa civilização os núcleos ainda existentes 
da população autóctone da nossa terra. Consiste essa solução, no 
que ela visa de mais essencial e de mais urgente, em cercar as tribos 
cie garantias que as desoprimam das ameaças e dos atos de exter¬ 
mínio ditados pela cobiça e pelas más paixões dos civilizados. Por 
isso, a primeira e a mais premente ação, tem de exercer-se sôbre os 
elementos da população de origem européia, para o fim de obstar 
que êles prossigam no movimento de invasão tumultuária e violenta 
dos sertões habitados por índios. Só depois de criadas nessas lon¬ 
gínquas e rudes paragens as condições de calma e de segurança no 
que de mais elementar se exige para ser possível manter-se e ex¬ 
pandir-se a vida humana, ó que, com proveito, se deve iniciar a obra 
de aproximação que porá em contacto os representantes das duas 
civilizações, com visos de a mais adiantada prevalecer e substituir a 
mais atrasada. O sentimento que sustenta e guia tôda esta ação é 
que semelhante obra colima atingir e melhorar a situação da parte 
mais fraca, sem outro cálculo senão o de serví-la, sem outra remu¬ 
neração senão o de erguê-lo do profundo abatimento e da infinita 
miséria em que a lançou o devastador incêndio que foi a conquista e 
a ocupação das suas terras. Não é o suposto interêsse da civilização 
o que se visa: mas sim o interêsse real, definido e palpável das po¬ 
bres populações, a cujo serviço se quer pôr essa civilização. Não é 
a ambição, pouco menos do que pueril, de conquistar entre mentali¬ 
dades apenas balbuciantes a sombra de prosélitos para nossas dou¬ 
trinas e crenças; mas sim a vontade de tirar dessas doutrinas e cren- 


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ças as normas e os incentivos da nossa própria conduta em proveito 
dêsses a quem queremos servir. Não é a cobiça de aumentar a ri¬ 
queza do país pelo aproveitamento do esfôrço de tanta gente em 
trabalhos cujos produtos alcançam valor venal nos mercados do 
mundo: mas antes o desejo de pôr tôdas as riquezas e todo o poder 
das nossas indústrias ao serviço dessa gente, para que se lhe miti¬ 
guem as asperezas da vida presente e as dores da miséria passada. 
É, em uma palavra, obra de reparação, obra de restauração, tal 
como convém a filhos de usurpadores que anseiam emendar as fal¬ 
tas de seus maiores, estendendo a mão poderosa, que tudo pode dar 
e de nada precisa, aos filhos dos antigos oprimidos e que com êsse 
gesto de fraternal inspiração esperam fazer penetrar um raio de luz 
no negrume do passado sombrio. 

Guiado por êste pensamento, o govêrno do Brasil criou em 
1910 o Serviço de Proteção aos índios, destinado a velar pelas tri¬ 
bos nos sertões em que elas se encontram, de modo a livrá-las das 
perseguições e esbulhos que as vinham flagelando desde os tempos 
do Descobrimento; a assegurar-lhes a posse das terras que ocupam 
e de que precisam como fundamento de sua própria existência: a 
proporcionar-lhes meios de melhorar as condições da vida e do tra¬ 
balho, pela introdução entre elas do nosso modo de construir as re¬ 
sidências, do manejo dos utensílios domésticos, do emprêgo das 
ferramentas e instrumentos de uso rudimentar, da criação e utiliza¬ 
ção dos animais domésticos de grande e pequeno porte; a aplainar- 
-Ihes o caminho nos progressos de ordem moral e intelectual me¬ 
diante, não só a vigilância e a disciplina das suas relações com os 
civilizados, mas também pela implantação de um ensino, tão ativo, 
quanto possível, de artes, ofícios e primeiras letras. 

Da ação orientada por êste plano geral deve resultar, se ela 
fôr sustentada e prosseguida pelo tempo necessário, não só a con¬ 
servação do que resta do primitivo e flagiciado povo americano, 
mas também o seu encaminhamento na trilha das sucessivas trans¬ 
formações morais, intelectuais e práticas, que o farão atingir por fim 
o nível em que se acham as massas de trabalhadores rurais que 
constituem o grosso da população brasileira. Alcançado êsse ponto, 
já não haverá motivo, nem modo, de se distinguirem separações 
entre os filhos de nossa terra: todos unidos, formando um só corpo, 
beberão, ao som da mesma língua, o ensino comum que lhes inscul¬ 
pirá nos corações e nas mentes o ideal único para cujo serviço foi 
argamassada a Nação pela mão poderosa de José Bonifácio. 


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Para o desempenho da incumbência que lhe coube, teve o Ser¬ 
viço de Proteção aos índios de distribuir a população aborigene em 
três grandes grupos, cáracterizados pela natureza das relações em 
que se encontram com a nossa civilização. Os trabalhos a realizar e 
o modo de nos conduzirmos com êles, dependem das características 
gerais de cada um dêsses grupos. 

O primeiro dêles é formado pelos índios que vivem promis- 
cuamente com os civilizados: falam português, trabalham em fa¬ 
zendas, sabem lidar com dinheiro e possuem uma idéia da nossa or¬ 
ganização social no que ela tem de mais fundamental e de mais evi¬ 
dente. Contudo, ainda conservam os laços da antiga existência 
tribal, embora afrouxados e tornados inconscientes em pontos es¬ 
senciais; praticam os velhos ritos da sua religião primitiva, mais ou 
menos desfigurados e acrescidos de práticas tiradas do que vêem 
nos povoados e vilas do interior, ou do que outrora lhes tentaram 
ensinar sôbre o culto católico: usam dois nomes para cada indivíduo, 
um da sua língua, destinado às relações internas da tribo, outro da 
nossa onomástica vulgar, destinado às relações com os civilizados; 
entre si, nas suas comunicações internas, nos seus cantos, nas suas 
festas, empregam o seu idioma original, a tal ponto que as crianças 
só muito tardíamente aprendem o português e das mulheres algu¬ 
mas o ignoram sempre. 

Do conjunto destas e de outras circunstâncias menos salientes, 
resulta que tais agrupamentos já não são mantidos nem fortalecidos 
pelas forças de coesão e de disciplina que existiam na decaída orga¬ 
nização tribal, mas que também ainda não receberam suficiente am¬ 
paro da ordem social em cujo seio vivem, por ainda não terem atin¬ 
gido a inteira e indispensável assimilação da mentalidade corres¬ 
pondente. 

Daí, os variados e dolorosos padecimentos morais e práticos 
que os afligem; a desorganização das famílias, a degradação das 
mulheres, o alcoolismo, as doenças mortíferas e repugnantes, a mi¬ 
séria física e por fim a morte. E para agravar tão triste situação, 
ninguém, nem mesmo as autoridades públicas, se considera obri¬ 
gado a deveres quando trata com êles: os comerciantes ultrapassam 
os limites da faculdade que se atribuem de fraudar nos preços, nas 
medidas e na qualidade das mercadorias; os patrões nunca se pejam 
de lhes marcar salários irrisórios e de nem mesmo de êsses serem 
exatos pagadores; e as autoridades não lhes ouvem as queixas, mas 
sempre recebem como provado o que contra êles alega qualquer 


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civilizado. Para os amparar, os princípios e as leis sôbre que se 
fundam a liberdade individual, o pudor feminino, a aquisição e a 
conservação da propriedade, principalmente imobiliária, nunca se 
aplicam; são disposições mortas, inexistentes. 

A ação protetora a favor destes grupos faz-se em grandes pro¬ 
priedades territoriais para as quais êles voluntariamente afluem, à 
medida que vão conhecendo as vantagens que nelas o governo lhes 
oferece a título gratuito. Ali êles têm as terras de que precisam para 
as suas lavouras, casas de moradia, cuidados higiênicos, tratamento 
médico, escolas, auxílios de tôda natureza em seus trabalhos no 
sentido de serem êstes ampliados e tornados mais produtivos, mais 
proveitosos, e assistência em suas relações com as autoridades, com 
os negociantes, com os civilizados, visando acobertá-los de injusti¬ 
ças, violências e fraudes. 

Do ambiente que assim se lhes proporciona resulta, não só a 
melhoria imediata das condições materiais da vida, mas também a 
possibilidade de surgirem progressos de ordem moral e intelectual, 
como expressão final do bem estar presente, da segurança no fu¬ 
turo, e do incentivo de verem cercados de estima, de respeito e de 
carinhos as suas pessoas, as suas famílias e as suas instituições. 

O segundo grupo é constituído por tribos que admitem rela¬ 
ções pacíficas, de intercâmbio comercial, com os civilizados, mas 
vivem em longínquos sertões, para os lados das cabeceiras de rios 
de difícil acesso, em pontos que lhes facilitam evitar a assiduidade 
dos contactos desorganizadores e deletérios da nossa gente e dos 
nossos povoados. Entre os índios dêsse grupo a organização tribal 
subsiste ainda com vigor bastante para manter de pé o primitivo 
edifício social. Entre êles domina, pràticamente inconírastado, o 
idioma original: às vêzes, no meio dêles nenhum compreende o por¬ 
tuguês. A instituição da família e o uso das velhas práticas feti- 
chistas conservam-se quase inalteráveis, com^o as viram nascer e as 
deixaram as antigas gerações. 

A ação protetora a favor dêste grupo consiste, antes de mais 
nada, em assegurar-lhe a propriedade legal das terras em que ha¬ 
bita, na intenção de prevenir e afastar as futuras perturbações que 
lhe adviriam dos cúpidos invasores de sertões que nunca tardam a 
afluir para onde alguma possibilidade de riqueza desponta. Em se¬ 
guida, semelhante ação desdobra-se em esforços para desenvolver, 
intensificar e tornar plenamente profícuas, as relações entre as duas 
populações: aplica-se em aproximá-las uma da outra, com os cui- 


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dados para que de tal aproximação só resultem benefícios para 
ambas e evitem-se os males cuja irrupção o penoso e esterilizante 
isolamento de dantes só conseguia adiar. 

O terceiro e último grupo é constituído das tribos inteiramente 
selvagens, que, não só vivem insuladas em sertões fechados ao 
acesso do homem civilizado, mas também repelem, de armas na 
mão, as tentativas de nossa gente no sentido de quebrar êsse insu- 
lamento. São essas as tribos que conservam mais puros os costumes, 
instituições e idiomas primitivos. Algumas foram encontradas pelo 
General Rondon em tão completo alheamento a tudo quando res¬ 
peita à nossa civilização, que ainda se achavam em plena idade da 
pedra, e ignoravam a existência dos instrumentos de ferro. 

Do ponto de vista da ação nossa sôbre elas, há necessidade 
de se as distinguir em dois grandes grupos determinados pelas con¬ 
dições em que se encontram os sertões que habitam. Ou êstes se 
acham tão afastados dos núcleos civilizados que de todo não há 
contactos entre os seus habitantes e a nossa civilização, ou, pelo 
contrário, os nossos estabelecimentos já se aproximaram tanto de¬ 
les que esses contactos se tornam inevitáveis e são cada vez mais 
numerosos e mais intensos'. 

O primeiro caso não é o que reclama com maior urgência a 
nossa intervenção, nem é também o que nos dará mais trabalho e 
nos oferecerá maiores perigos quando soar a hora de o abordarmos. 
Tais índios não têm contra nós outra prevenção, nem outra descon¬ 
fiança, senão a que resulta de lhes sermos desconhecidos e estra¬ 
nhos; mas em compensação, está em nosso poder oferecer-lhes van¬ 
tagens tão grandes, com os nossos instrumentos de ferro, o nosso 
meio simples e facílimo de fazer fogo, a abundância e a variedade 
de nossos alimentos, os nossos agasalhos, e de exercer sôbre a sua 
imaginação tanta fascinação com as nossas fiadas de contas visto¬ 
sas e com a nossa música de gramofone ou de harmônica, que ne¬ 
nhuma dificuldade encontramos em desvanecer tais prevenções e 
desconfianças, e de fazermos surgir em seu lugar os laços da ami¬ 
zade e a fôrça da ascendência livremente aceita e reconhecida. 

Ao contrário dêsse, o segundo caso apresenta-se-nos inçado 
de dificuldades e perigos: reclama soluções urgentes e não admite 
as delongas que seriam exigidas por trabalhos preparatórios clara¬ 
mente indicados por um sadio conhecimento do problema. Tão más 
condições resultam do fato de já se haver pronunciado o movi¬ 
mento de invasão das terras dessas tribos por elementos da nossa 


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civilização, nos quais a perspectiva da prêsa opima abafa e extin¬ 
gue todo sentimento de justiça e todos os reclamos da Humanidade 
a favor dos míseros despojados. Anda então acesa a guerra entre 
os que defendem os seus domínios, e com êles a vida de suas mu¬ 
lheres e filhas, e os que os pretendem tomar e nesse intuito levam 
tudo a ferro e fogo. As prevenções aqui são grandes e quase irrepa¬ 
ráveis, tanto de um lado como de outro. Nenhuma palavra de cle¬ 
mência, nenhum apêlo ao bom-senso, nenhum movimento de calma 
encontra guarida num e noutro campo. Mútuamente perseguem-se, 
exterminam-se e temem-se, e o terror, recrudescendo cada vez mais, 
exacerba o ódio e a recíproca crueldade. 

É no meio dessa fogueira que o Serviço Federal de Proteção 
aos índios tem de lançar-se, com a presteza e a desenvoltura de mo¬ 
vimentos requeridos pela gravidade do caso que ameaça desfechar 
no total aniquilamento das tribos. O seuiprimeiro esforço é sempre 
no sentido dê suprimir as provocações e os assaltos de iniciativa 
dos civilizados, e atrair para um ponto escolhido a atenção dos sel- 
vícolas, e de tal forma apoderar-se dela e absorvê-la que de todo os 
faça esquecer as antigas preocupações e os lugares em que anda¬ 
vam pelejando. 

Mas isso não basta: é preciso mais entrar em relações amis¬ 
tosas com êsses índios; é preciso ter com êles contactos imediatos e 
contínuos, para exercer sôbre os seus espíritos uma ação direta e 
progressivamente modificadora: é preciso conquistar-lhes a amizade 
e a confiança, e sôbre elas edificar um sólido prestígio moral que 
no-los permita afastar definitivamente do sentimento guerreiro de 
ódio e de vingança contra os seus adversários. É preciso, em uma 
palavra, apaziguar os sertões, e isso tem de ser conseguido pelo 
Serviço de Proteção só com o emprêgo de meios brandos, inspira¬ 
dos e inspiradores de sentimentos de fraternidade, com exclusão 
total, e onímoda do uso de qualquer violência, de qualquer compres¬ 
são física, direta ou indireta: de tôda idéia, vã e contraproducente, 
de ferir a imaginação do selvícola pela demonstração da superiori¬ 
dade dos nossos recursos militares. Como isso se consegue: como 
isso tem sido conseguido pelo Serviço de Proteção em paragens sel¬ 
váticas de todos os Estados do Brasil, eu o explicarei descrevendo o 
que se fêz num dos primeiros casos que fomos chamados a resolver 
e que, por muitos motivos, teve grande repercussão em todo o país. 

Na parte oeste do Estado de S. Paulo havia, ainda no quarto 
lustro do regímem republicano, uma vasta região que, partindo da 


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margem esquerda do Paraná e estendendo-se terras a dentro, entre 
o Tietê e o Paranapanema, até compreender o curso inteiro de dois 
outros rios consideráveis, o Aguapeí e o Peixe, se inscrevia nos 
mapas geográficos sob o título: território desconhecido, habitado 
por índios. Assim era porque ali tinha os seus domínios invioláveis 
uma das tribos mais belicosas de quantas existiram em terras do 
Brasil. O público dava-lhe a denominação de tribo dos Coroados, 
mas a seu respeito nada mais sabia senão que era irreprimível e te¬ 
merosa na represália e desforra contra qualquer mal que se lhes fi¬ 
zesse. Uma ou mais tentativas de abordá-la. falharam por completo, 
deixando de si triste e dolorosa lembrança. Haviam sido mal proje¬ 
tadas, sôbre bases falsas e hipóteses erróneas; haviam sido, na prᬠ
tica, ainda mais mal conduzidas: era fatal, portanto, que tivessem 
o fim que tiveram. 

Não o entendeu, porém, assim o público. Contra tôda a justiça, 
tirou dêsses fatos a conclusão de que os Coroado constituíam uma 
raça à parte, à margem da Humanidade, caracterizada por excep¬ 
cional instinto de insociabilidade que nunca lhes permitiria entrar 
em relações pacíficas e de amizade com os demais povos e com a 
nossa civilização. Para fortalecer tão falsa quanto perniciosa opi¬ 
nião. buscou-se o prestígio da ciência, torturando-a nos seus objeti¬ 
vos e nos seus fundamentos, e pela voz de um doutor estrangeiro 
afirmou-se que ela ensinava terem êsses e outros índios do Brasil 
índole feroz e serem por isso irredutíveis a sentimentos de sociabi¬ 
lidade com a nação civilizada, motivo pelo qual cumpria ao Go- 
vêrno dirigir contra êles a fôrça militar até exterminá-los e varrê- 
los da superfície da Terra. 

Já por êsse tempo iam adiantados os trabalhos de construção 
da estrada de ferro que, de S. Paulo, seguia em demanda de um 
ponto da margem esquerda do Paraguai, no estado de Mato-Grosso. 
Lançava-se ela através da região desconhecida, habitada pela tribo 
dos Coroado, e, rasgando a floresta secular, aproximava-se dia a 
dia do Paraná, além do qual só encontraria o chão fácil dos vastos 
descampados. Mas enquanto lá não chegava, tinha ela que se haver 
com enormes tropeços decorrentes do fato de se achar em terras 
dos temerosos guerreiros. 

Sucediam-se os assaltos e as represálias de lado a lado. Por 
tôda a parte pairava a morte e a devastação dos incêndios. A 
ameaça impedia a cada instante sôbre tôdas as cabeças; o mêdo to¬ 
lhia os movimentos; o pavor do desconhecido, pois só a imaginação 


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pode ver o que vai por detrás da cortina do infinito arvoredo, de¬ 
sorganizava o trabalho e paralizava as obras. 

Foi nesta ocasião que o Serviço de Proteção, ensaiando ainda 
os seus primeiros passos, pois acabava apenas de ser chamado à 
vida pelos seus beneméritos fundadores, teve de comparecer para 
fazer cessar naqueles sertões as lutas e estancar o sangue dos mor¬ 
ticínios; para extinguir o fragor das batalhas e emudecer os bra¬ 
dos de ódio e de vingança, e em seu lugar fazer ouvir os apelos aos 
sentimentos de Humanidade de ambos os lados. 

Coube a glória de arcar com as dificuldades e os imprevistos 
desta súbita improvisação, e de galhardamente vencê-los, a um dis¬ 
tinto oficial do exército brasileiro, o tenente, hoje Capitão Manuel 
Rabelo, patriota de magnânimo coração e de espírito aberto às ge¬ 
nerosas inspirações da verdadeira ciência, alicerce das boas e sa¬ 
dias construções do nosso altruísmo. Êle aplacou o ímpeto do incên¬ 
dio que lavrava por tôda a vastidão daquele território e manifesta¬ 
va-se, não só ao longo do traçado da via férrea, numa frente de 
quase 300 quilômetros, mas também muito distante dali, para os 
lados do Paranapanema, na zona que só mais tarde seria cortada 
pela linha que hoje liga Salto Grande a Pôrto Tibiriçá. Com êsses e 
outros grandes trabalhos de sua iniciativa, tornou êle possível ao 
seu substituto e continuador conseguir em menos de seis meses 
aquilo que todos proclamavam ser inatingível: o estabelecimento 
de relações pacíficas e amistosas com a tão malsinada tribo dos 
Coroado. 

Tão belo resultado alcançou-se pelo seguinte processo: 

Baseado em prévia exploração da floresta nos pontos em que 
mais freqüentemente se manifestava a atividade dos índios, deci¬ 
diu-se fundar um acampamento destinado a atrair a atenção dos 
selvícolas e proporcionar-lhes os meios de descobrirem as intenções 
pacíficas e benévolas dos seus novos amigos. O lugar escolhido para 
tal instalação foi à margem de um riacho, no passo para onde con¬ 
vergiam vários caminhos vindos de aldeias longínquas. Aí der- 
rubou-se a mata secular, abríndo-se uma clareira retangular de 
200 metros de largo por 300 de comprido. No centro dêsse quadri¬ 
látero, desembaraçado a fogo da galhada e troncos das árvores 
caídas, consruíram-se pequenos ranchos de estipes de coqueiros 
lascados ao meio, cobertos de palha e sem divisões internas. Ser¬ 
viam de residência ao chefe do serviço e aos seus auxiliares, num 
total que nunca excedeu de dôze pessoas; de arrecadação de víveres. 


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brindes e outros artigos, cozinha, refeitórios, etc. O perímetro dêsse 
quadrilátero era cercado a arame farpado, além de protegido pelo 
intrincado dos ramos de muitas árvores abatidas. À noite era ilu¬ 
minado a lampeões de querosene, que se traziam sempre acesos, 
enquanto o. centro jazia em profunda escuridão. O objetivo de tais 
cuidados era afastar, tanto quanto possível, as probabilidades de 
um assalto dos índios, o que certamente se alcançaria tirando-lhes 
os ensejos de executarem alguns dêsses passes de surpresa em que 
são exímios e sem os quais os seus guerreiros, armados de arco e 
flecha, nunca nos molestariam. 

Êles traziam o acampamento sob estreita e incessante vigilân¬ 
cia, espiando noite e dia, com paciência infindável, o momento em 
que um nosso descuido lhes propiciaria a desejada oportunidade 
de desferirem o golpe da sua infalível estratégia. A luz do dia era- 
lhes desfavorável: forçava-os a embrenharem-se na mata e a só de 
longe observarem-nos, às vêzes por seus espias enrodilhados na 
copa de algum coqueiro. Mas a noite fazia-os ousados e empreen¬ 
dedores: vinham até pró.ximo da nossa cerca, a princípio sorratei¬ 
ramente, enquanto esperavam surpreender-nos; depois ameaçado¬ 
res, soltando brados enormes e fazendo troar a mata com pancadas 
dos seus tacapes temerosos, os formidáveis guarantãs, contra os 
troncos das árvores. É que nos encontravam sempre vigilantes e 
atentos: ao menos era essa a impressão que lhes causavam as vozes, 
os cantos, as músicas que incessantemente ouviam sair do centro es¬ 
curo do acampamento. O que certamente os pasmava, era que nós 
nem descontinuávamos a nossa vigilância, nem deixávamos trans¬ 
parecer a menor sombra de mêdo, mesmo nas ocasiões das mais 
impetuosas ameaças. Tão grande efeito custava-nos no entanto, ao 
. contrário do que pensavam, muito pequeno esforço; era só um de 
Jiós que ficava a fazer funcionar o gramofone, no qual se sucediam 
i-hapas adrede escolhidas para darem a impressão de haver muita 
gente acordada, rindo e folgando despreocupadamente. 

Ao bom efeito que sóbre êles causava o fato de não nos ame¬ 
drontarmos e de não repelirmos a tiros as suas ameaças, juntávamos 
os presentes que íamos de dia pôr ao alcance de suas mãos, no in¬ 
terior da floresta. Para êsse fim seguíamos por um dos caminhos 
até encontrarmos lugares em que não lhes fôsse possível suspeita¬ 
rem alguma cilada ou má intenção de nossa parte. Nesses lugares 
fazíamos alguma construção ligeira, um girau, ou uma pequena co¬ 
berta de fólhas de coqueiro, e nela colocávamos os presentes, ar¬ 
ranjado tudo de tal forma que arraigasse em todo e qualquer en- 


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rendimento humano a compreensão de se tratar de brindes volun¬ 
tária e muito calculadamente oferecidos, e não de objetos deixados 
por acaso ou esquecimento. Tais brindes constavam de machados, 
facões, tecidos, contas e outras quinquilharias. Entre êles, porém, 
não devia figurar nenhuma substância alimentícia, porque o selví- 
cola não se serviria dela, mas ficaria suspeitoso de que*o queríamos 
envenenar. 

No entanto não podíamos descurar de meio tão eficaz de cap- 
rar a boa vontade dessas populações como é êsse de lhes propor¬ 
cionar alimentos fáceis e abundantes. A dificuldade estava em des¬ 
cobrirmos o meio de fazer-lhes oferta de tal natureza dando-lhes ao 
mesmo tempo a segurança de que a nenhum risco se expunham acei¬ 
tando-a. Foi o que conseguimos alargando mais a nossa derrubada 
para na terra assim desbravada plantarmos milho e abóboras, dis¬ 
postas as coisas de tal arte que fôsse fácil aos índios compreende¬ 
rem a nossa Benévola intenção. Em fins de janeiro de 1912 já essas 
plantações começavam a produzir os seus frutos mais preciosos, 
porque de tôda a parte afluíam òs moradores das aldeias atraídos 
pela tentação de aproveitarem aquela imprevista vantagem de abas¬ 
tecerem-se à vontade de milho verde, alimento que lhes é familiar, 
como a todos os autóctones do Brasil, onde são nativas três varie¬ 
dades dessa gramínea, que se distinguem pelas cõres, branca, roxo- 
-escura, quase negra, e rubro-“grenat”, das respectivas espigas. 

À experiência acabou convencendo-os de que nada teriam de 
recear de nossa parte. Os mais corajosos vieram, pois, instalar-se, 
com suas famílias, nas proximidades da roça a fim de se aliviarem 
do penoso trabalho do transporte das suas colheitas para as lon¬ 
gínquas paragens das aldeias. Contudo, não cessava a espionagem 
cm tórno do acampamento, nem as movimentadas vigílias noturnas. 
A nossa coragem e a firmeza da nossa resolução de nunca usarmos 
da violência, de não cedermos às ameaças, mas também de não re¬ 
vidarmos a elas, eram constantemente postas à prova, com tanta 
pertinácia e ímpeto que nem todos nossos companheiros de acampa¬ 
mento conseguiam dominar-se. Era então que o gramofone nos 
prestava os mais assinalados serviços, enchendo os ares de sons de 
ruidosas gargalhadas e de cantos alegres que, ouvidos de longe por 
pessoas ignorantes do artifício, valiam como evidentes atestados do 
desprêzo que a tantos perigos votavam os que se achavam cercados. 

As matas levantam-se diante de nossos olhos como grandes e 
impenetráveis muralhas atrás das quais o mistério nos espreita. A 


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nossa imaginação excita-se e povoa de fantasmas e de pavores a 
região que a nossa vista não pode devassar. Os enormes troncos 
sombrios parecem comparsas silenciosos, inflexíveis, do frio drama 
em que nos sentimos envolvidos e que prestes nos vai aniquilar. 

Fôsse outro o gênio da floresta, quisesse ela desvendar-nos os 
seus segredos, e veríamos que naquele momento as ameaças de 
assalto, que incessantemente recrudesciam, visavam outro efeito; 
~ o que pretendiam já não era o massacre, mas tirar a limpo a nossa 
fidelidade aos princípios pacíficos que a nossa conduta vinha in¬ 
culcando. Naquelas horas, em que tudo em tôrno de nós parecia 
I espirar ódio e concentrar-se na sêde de vingança, não podíamos 
suspeitar que distância enorme separava o que víamos do que na 
realidade se passava entre os índios. É que também lá se haviam, 
por fim, formado dois partidos: um que aceitava as nossas mani¬ 
festações de amizade e interpretava-as como promessas em que to¬ 
dos se podiam fiar, de terem boa e fraternal acolhida de nossa parte; 
outro, que entendia serem enganadoras as nossas atitudes e não 
visarem outro fim senão o total e impiedoso extermínio da tribo. Os 
homens deste último partido nada mais almejavam do que um ato 
nosso que lhes desse razão, e para que o praticássemos redobravam 
as provocações. Os do outro, queriam confirmar-se no seu pensa¬ 
mento, e punham a prova a nossa paciência e a firmeza da nossa 
resolução. 

Havia, felizmente, do lado dêste partido uma velha muito aca¬ 
tada pelo âlto valor profético que todos reconheciam existir nos seus 
sonhos. E essa boa velhinha sonhou que os seus irmãos vinham ao 
nosso acampamento, eram recebidos como amigos, entre festas e 
alegrias, e retiravam-se carregados de coisas preciosas; machados 
a cujos golpes qualquer árvore tombava sem custo: contas de tõdas 
as cõres, mas sobretudo brancas, muito brancas, que em colares de 
infinitas voltas realçavam a beleza das mulheres e davam às moças 
graças infinitas. 

Não era necessário mais, talvez mesmo nem tanto, para dar à 
questão o golpe que a tinha de resolver definitivamente. E foi o que 
aconteceu, quando à plena luz do sol de 19 de março de 1912, a pe¬ 
de coisa que muito ambicionava. 

daquele arroz insosso. Foi quanto bastou para os índios também 

comerem, e o fizeram com o alvoroto de quem afinal se apropria 

quena guarnição daquele acampamento perdido na solidão da mata 

virgem, viu, quase maravilhada, apresentarem-se no descampado 

da roça, e depois encaminharem-se para o recinto cercado, nove 
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homens, inteiramente desarmados, mãos livres, corpo despido e liso 
da cabeça aos pés. Eram os primeiros mensageiros da paz, havia 
tanto tempo esperados e, a custo de tantos trabalhos, sobressaltos e 
perigos, buscados e solicitados para aquele instante feliz. 

Dizer entre que transportes de alegria foram êles recebidos é 
impossível: descrever como se portaram, o que admiravam, dentre 
tantas coisas que viam pela primeira vez, seria longo e fastidioso. 
Bastam duas referências, uma para pintar a circunspeta prudência 
dêsses homens, e outra para dar idéia do valor que para êles têm os 
produtos da nossa indústria, mesmo nos artigos que nos são mais 
familiares e de que nos servimos desatentos. 

No afã de os obsequiar e de lhes mostrarmos a grandeza da 
nossa alegria, transformávamos tudo que tínhamos no acampa¬ 
mento em objetos de dádivas, e com êles os brindávamos. Não nos 
esquecemos de comidas: mandamos vir feijão, arroz e mandiocaj 
simplesmente cozidos em água, sem sal nem gordura. Êles, porém, 
não os quiseram aceitar. Vendo isso, teve alguém a intuição de que 
a recusa traduzia apenas a desconfiança de que se achassem enve¬ 
nenados os alimentos. Era necessário desvanecer tal suspeita: à 
vista de todos, tomou uma colher e pôs-se a comer daquele feijão e 

O outro traço entende-se com o indescritível interêsse que lhes 
causou o fósforo. Quando viram a facilidade que temos em produ¬ 
zir a chama viva e crepitante, mostraram-se deslumbrados. Esten¬ 
diam as mãos calosas, espalmadas, para que víssemos os vestígios 
que nelas havia do enorme trabalho que para êles era tirar uma in¬ 
certa e fugitiva centelha do atrito reiterado, sõbre uma peça de 
madeira, da ponta de uma varêta que fazem rolar entre as duas 
palmas, em incessante e rápido movimento de vai-vem. Por isso, dos 
presentes que lhes fazíamos, a nenhum prezavam mais do que as 
caixinhas de fósforos, e, inexperientes no modo de usá-los, catavafn 
os que, por já riscados, atirávamos ao chão, pensando que ainda 
serviriam. Quando, mais tarde, conheceram o dano que lhes cau¬ 
sava a humidade, deram para envolver as caixinhas em fôlhas sê- 
cas e fibras vegetais com tão apurado cuidado que mesmo caindo na 
água ficavam os palitos intactos e enxutos. 

Convém aqui dizer que entre os índios encontramos em ger- 
mem as instituições que em ponto grande e desenvolvidas existem 
na nossa sociedade. Assim, vemos lá a separação dos ofícios: — 
há uns, e são os mais pesados e os mais arriscados, da competência 
dos homens e só êles os exercem: outros cabem às mulheres. Quanto 


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ao fogo, por exemplo, pertence aos homens o trabalho de fazê-lo 
surgir do atrito das duas peças de madeira: é da alçada das mu¬ 
lheres alimentá-lo e conservá-lo, o que fazem com vistas de afastar 
o mais possível as ocasiões de êle extinguir-se, Há a regularização 
das relações matrimoniais com a previsão de interditos para os casos 
que entre nós são considerados incestuosos. Há a família em estado 
de organização já muito adiantado e plenamente desenvolvidos os 
sentimentos e as relações entre os esposos, pais e filhos, irmãos, 
tios e primos. Há a noção e o estrito respeito da propriedade pri¬ 
vada para todos os objetos de uso individual, como os arços, as 
flechas, os ornamentos, as tangas e mesmo para os artigos de uso 
familiar, como as panelas, os balaios, as provisões de bôca, conser¬ 
vadas pelo processo do moquém, e outros. 

A essa visita inicial, de 19 de março de 1912, seguiram-se ou¬ 
tras. Do nosso acampamento saíram também alguns moços deste¬ 
midos e ardorosos para irem às aldeias retribuir as visitas de paz e 
por tõdas elas lançar a semente da boa vontade e da amizade que 
havia nascido entre os dois povos. E essas relações amiudaram-se, 
estreitaram-se, tornaram-se sólidas e são hoje, ao fim de treze anos 
de duração inalterável, tão inabaláveis como as melhores constru¬ 
ções brotadas do gênio benfazejo da Humanidade. 


E ali temos, num exemplo estrondoso pela notoridade com que 
nêle se juntavam e culminavam as dificuldades do problema que 
resolveu, mas que não ficou isolado porque idêntica solução se re¬ 
produziu em casos difíceis como o dos Uaimirí, dos Botocudo, 
dos Barbado, dos Parintintim e de outras tribos guerreiras, como 
o Serviço republicano de Proteção aos índios alcança modificar os 
selvícolas dêste grupo e colocá-los em situação de receberem os be¬ 
nefícios da nossa civilização. Se o amparo de tal assistência não se 
descontinuar, nem se extraviar por veredas divergentes do primitivo 
roteiro, puro e nítido, por êle serão essas populações trazidas afinal, 
sem dores nem descaídas, ao nível mental e moral em que se encon¬ 
tra o meio social onde se engendra a prole inteira que povoa as 
terras do Brasil e nesse dia estará terminada a fusão e o caldea- 
mento das raças com que sonhou José Bonifácio quando, em 1822, 
lançou os fundamentos da nacionalidade brasileira. 

É no seio dessa nacionalidade que se forjam os grandes ideais 
de fraternidade universal que nos fazem desde já simpatizar com 


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tudo quanto de grande e belo vemos nesse sentido brotar, crescer e 
florir entre os povos nossos irmãos dêste Continente, do Ocidente 
e da Terra inteira. De tão beneméritos pioneiros da mais alta subli¬ 
mação da idealidade humana nenhum excedeu ainda a vós outros, 
uruguaios, pelo muito que já realizastes e estais realizando. Ainda 
ontem eu ouvia, embevecido de entusiasmo, a palavra arrebatadora 
de um dos vossos homens eminentes, o ex-Presidente D. Baltazar 
Brum, pregar a política de paz entre os povos da Terra e ensinar o 
caminho que temos de seguir para estreitarmo-nos todos nos laços 
de sincera e duradoura fraternidade; ouvi-o, em seguida, descorrer 
sôbre as instituições sociais que concretizam em realizações tangí¬ 
veis as encantadoras inspirações da alma altruística do povo uru¬ 
guaio. Compreendi então, mais vivamente do que nunca, que vós, 
uruguaios, e nós, brasileiros, pelo coração, pela fôrça e pela capa¬ 
cidade de amarmos e querermos o bem, encontramo-nos em mais 
estreita comunhão de aspirações do que nenhum outro elemento da 
grande família humana. 

A nossa obra republicana de Proteção aos índios, tal como pà- 
lidamente vo-la acabo de descrever, pode ser considerada como um 
esforço do povo brasileiro para acompanhar e secundar os esforços 
dos povos irmãos, e principalmente do Uruguaio, de implantar no 
mundo uma política guiada pelos altos interêsses da sociabilidade 
liumana, inspirada pelos mais sublimes ditames da bondade e do 
amor universal. 

Que vós todos que me ouvis, dando vida à minha pálida pala¬ 
vra e tirando-a da triste forma de crisálida sob a qual vô-la apresen¬ 
tei, leveis daqui, bem nítida, impressa em vossos corações, a convic¬ 
ção de que o Brasil está cumprindo o seu dever de resgatar a imensa 
dívida que herdou de seus maiores, em relação à raça oprimida dos 
primitivos habitantes do Continente de Colombo. 


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r.lCIJ-ICAÇAO DOS CAIXGASGUE 

Xfi 13 _ o chcíc f/iierrciro Rcriiii r sua vutihcr. Ao lado a velha índia inlért’n’lc Vanuire. 


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Senhores: 


INTRODUÇÃO 


O meu aparecimento nesta tribuna, já tantas vezes ilustrada 
por oradores de talento e de vasto saber, exige de mim que comece 
explicando, com tôda a lealdade, que, por me faltarem hábitos e 
dotes artísticos, não poderei nunca corresponder à espectativa da¬ 
queles que, por ventura, aqui tenham vindo com a esperança de 
ouvir uma conferência literária, abrilhantada por paradoxos fulgu¬ 
rantes, imagens imprevistas e sutilezas de estilo. 

Nada disso poderei dar e nem mesmo aspiro a mais do que 
fazer uma honesta e chã exposição de como alcançaram os funcio¬ 
nários do Serviço de Proteção aos índios captar a confiança e a 
amizade dos Caingangue, que enchiam de pavor os sertões do 
Estado de S. Paulo, compreendidos entre o curso inferior do 
Fieté, o vale do Rio Feio ou Aguapeí e do Rio do Peixe, até mesmo 
as margens do Paranapanema. 

Direi também o que temos observado dos hábitos, da índole 
e da civilização dêsses selvícolas, com a firme esperança de que 
fazendo-os assim conhecidos, modifique-se a falsíssima opinião 
que dantes se havia arraigado no espírito de muitos dos nossos 
letrados, de ser êsse povo dotado de gênio excepcionalmente feroz, 
a ponto de o tornar incapaz de merecer dos civilizados outro tra¬ 
tamento que não fôsse o extermínio completo a tiros de carabina. 

Uma compensação, porém, haverá para a falta de interêsse 
literário desta exposição : é a farta documentação de tôdas as 
afirmações que forem aqui avançadas, pelas belíssimas projeções 
luminosas que se irão fazendo das fotografias apanhadas em pleno 
sertão pelo dedicado e incansável fotógrafo do Serviço, o Sr. Sofian 
Niebler. 

Dadas estas explicações, necessárias para prevenir-vos, 
senhores, de que para o desempenho da tarefa que me impuz, pre¬ 
ciso de tôda vossa benevolência, que encarecidamente solicito, 
começarei expondo a distinção que há a façer entre as diversas 
tribos de índios existentes no território de nossa Pátria. 


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OS ÍNDIOS E OS NOSSOS SERTÕES 

Vulgarmente pensa-se, nesta Cidade, como nos demais centros 
civilizados, que os indígenas brasileiros acham-se todos no mesmo 
gráu de selvajaria, vivendo embrenhados nas florestas e procurando 
evitar relações com os descendentes do invasor europeu, aos quais 
assaltam e trucidam sempre que os apanham ao alcance de suas 
flechas. 

Esta opinião é tão radicalmente falsa quanto muitas outras 
que por aí correm, como verdades inconcussas e muito sabidas, a 
respeito de nossos sertões e de seus habitantes. 

A realidade, porém, é que os indígenas brasileiros distrí- 
buem-se em duas classes: destas, a mais numerosa é constituída 
pelas tribos ou nações que podemos chamar de civilizadas: a 
outra é formada pelos selvagens propriamente ditos, únicos, aos 
quais se poderá aplicar, mais ou menos, a idéia genérica que nas 
cidades se liga à denominação : índio. 

Quanto aos indígenas da primeira categoria, a que acabamos 
de chamar de civilizados, ainda é preciso dividi-los em dois grupos: 
um dos que vivem em promiscuidade com os brancos, falando corre¬ 
tamente o português, trabalhando em estabelecimentos agrícolas 
e pastoris, conhecendo e adotando os hábitos e costumes dos nossos 
cabõclos, dos quais não se diferenciam à primeira vista; e o 
outro, o dos que vivem afastados dos brancos, em tribos ainda 
organizadas, conservando a linguagem e os costumes primitivos, 
mas procurando freqüêntemente as nossas povoações para ven¬ 
derem os produtos de suas indústrias e lavouras ou para se empre¬ 
garem em certos serviços, como os de canoeiros. por ercmplo. e 
assim poderem adquirir roupas, ferramentas, etc. 

Dos que vivem em promiscuidade com os brancos, citarei os 
Guarani, de S. Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul : os Caiuá, 
habitantes da região Sul de Mato-Grosso, arrendada à Companhia 
Mate-Laranjeira, cujos trabalhos de colheita e preparação da 
herva são quase todos feitos por êles: os Terena, Cadiuéo c 
outros, magníficos campeiros cujos serviços são muito disputados 
pelos proprietários das grandes estâncias de criação de Mato- 
-Grosso ; os Mauê do Amazonas, conhecidos como os melhores 
fabricantes de guaraná, mercadoria cujo larguíssimo consumo em 
Mato-Grosso, dá margem a lucros consideráveis : os Timbira do 
Maranhão, e outros que seria fastidioso citar. 


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Dos que fazem vida à parte, mas procuram constantemente 
os brancos para com êles comerciar, citarei os Amanagé e Tembé 
do Pará, que se aplicam na extração do cedro e do óleo de copaíba; 
os Paricí de Mato-Grosso, que anteriormente à ação do Coronel 
Rondon troxeram para o mercado quantidade incalculável de 
poaia e de borracha; os Bororo do Rio das Garças, que se 
empregam em trabalhos de lavoura ; os Carajá, excelentes cano- 
eiros do Àraguáia e muitíssimos outros. 

Conquanto trabalhadores extrenuos, êstes índios civilizados, 
sempre arrastaram uma vida de misérias. Os que viviam em 
promiscuidade com os brancos, condenados a uma escravidão mal 
disfarçada, graças ao conhecido truque das dívidas eternas para 
com os patrões, dçgradavam-se pelo abuso das bebidas alcoólicas 
e pela prostituição ; os outros tinham de deixar em mãos dos 
regatões , ou negociantes que os iam procurar, em épocas certas 
do ano, produtos do seu trabalho (cedro, óleo de copaíba, borracha, 
guaraná, castanhas do Pará, etc.) em quantidades que valiam 
muitos contos de réis, recebendo por troca alguns facões, peças 
de chita, aguardente e outras ninharias, cujo valor mal alcançava 
a algumas dezenas de mil réis. 

^ ^ E evidente que, com semelhante regime, essas míseras popu- 

jaçoes nunca poderiam progredir e a nação só tinha que perder com 
tal prática, que consiste em extenuar sistemàticamente o trabalhador 
e a terra, para pôr nas mãos dos poucos proprietários dos hervais, 
dos campos, dos seringuais, etc., somas enormes, que êles se apres¬ 
sam em ir gastar desregradamente nas cidades do país ou do estran¬ 
geiro . 

Dos grandes capitais arrancados anualmente aos nossos ser¬ 
tões, pelo trabalho indefeso dos índios e dos nacionais, não se tira 
um real sequer para a melhoria dos métodos de exploração, das 
vias de comunicação, das habitações e nem mesmo dos meios de 
garantir a subsistência dos pobres trabalhadores. 

Lutando contra esta asfixiante situação, que já havia dolorosa- 
mente impressionado o espírito dos nossos grandes sertanistas, 
como os Generais Couto de Magalhães e Gomes Carneiro, o Co¬ 
ronel Rondon esforçava-se, numa ação tóda pessoal, por libertar 
os índios da esmagadora dependência em que definhavam, garan¬ 
tindo-lhes, para isso, os frutos de suas lavouras e de outros tra¬ 
balhos, em terras cuja propriedade lhes era atribuída. Foi assim, 
por exemplo, que os Paricí, antes misérrimos descobridores de so¬ 


em 


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berbos seringais do planalto matogrossense, viram, ràpidamente, 
melhorar, primeiro, as condições materiais de sua vida, e logo depois 
a moralidade e o bem estar de suas famílias. 

Esta grande obra de vivificação dos sertões brasileiros, con¬ 
quanto se limitasse aos simples esforços de iniciativa de um homem, 
ainda mesmo dotado da prodigiosa atividade e dedicação do Co¬ 
ronel Rondon, estava ameaçada de perecer, logo que outros deveres 
o obrigassem a ausentar-se daquelas regiões ; isso mesmo já se 
havia dado com os Bororo, do rio S. Lourenço, com alguns grupos 
de Terena e de outros índios dos pantanais, os quais, desde que lhes 
faltou a presença direta do Coronel, tiveram de ceder à compressão 
dos elementos hostis, entre os quais se encravavam as terras que 
lhes haviam sido doadas, e retrogradaram até a desorganização e 
dispersão de que êle os havia tirado. 

Não só para manter ininterrupta esta benéfica influência, como 
também para difundí-la por todo o território da República, fazendo-a 
abranger a totalidade das populações dos sertões, foi criado em 
1910, na Presidência do Sr. Dr. Nilo Peçanha, e sendo Ministro 
da Agricultura o Sr. Rodolfo Miranda, o Serviço de Proteção aos 
índios e I,ocalização de Trabalhadores Nacionais. 

o SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS 

Para dar uma idéia do modo de agir dêste serviço, dos fins a 
que êle colima e dos resultados que vai obtendo, bastará lançar-se 
um rápido golpe de vista sõbre a situação dos Guarani de S. Paulo, 
tal como era em 1910 e como é atualmente. 

Deve notar-se, em primeiro lugar, que os Guarani paulistas 
apresentam o mesmo grau de civilização que os nossos caboclos : 
falam correntemente o português ; são monógamos : casam-se na 
igreja católica: batizam os filhos e os inscrevem no Registro Civil; 
enterram os seus mortos nos cemitérios públicos e usam os mesmos 
métodos de trabalho. 

A diferença que os separa dos caboclos, é que êles entre si só 
falam a língua guarani: ao batismo e ao nome católico sobrepõem 
uma cerimônia e um nome dos antigos usos indígenas ; ao culto, 
aos santos e ao padre da igreja, antepõem os ritos do maracá, o 
culto do sol e da lua e a veneração pelos pagés, que êles chamam 
em português de “rezadores ’. 


















.P^ organização política nada mais resta, e a influência 

dos capitães , última sombra dos caciques e murubixabas de an¬ 
inho, ficou inteiramente absorvida e anulada pela influência do 
Govêrno uma espécie de entidade tôda poderosa e severa para 

a qual êles voltam as suas esperanças e respeitam com fervoroso 
temor. 

Dêsses índios existiam em 1910 vários grupos exparsos e 
arrastando uma vida misérrima, em Jacutinga, município de Bauru, 
em terras da fazenda de Itaporanga, em Piraju, e nas cercanias de 
Itanhaem. 

A primeira ação da Inspetoria do Serviço de Proteção aos 
índios, em S. Paulo, teve de dirigir-se no sentido de debelar as 
epidemias de varíola e de impaludismo que devastavam os grupos 
de Itaporanga, Piraju e de Jacutinga, criando-se para isso, por 
ordem imediata do Coronel Rondon, um hospital em Miguel Calmom 
e outro em Itaporanga. 

Depois de atendidas essas e outras necessidades urgentes, 
aplicou-se a Inspetoria em criar para êsses Guaranis uma situação 
favorável ao seu desenvolvimento material e conseqüente melhoria 
moral. Para êste fim, o Govêrno Estadual reservou as terras da 
fazenda do Araribá, abrangendo a área de 800 alqueires de flo¬ 
restas virgens. 

Para aí conduziram-se os índios de Itaporanga, Piraju, Salto- 
-Grande e do município de Bauru, os quais desde logo começaram 
a abrir estradas e fazer derrubadas para plantações de milho, arroz, 
feijão, mandióca, batatas, canas, árvores frutíferas ; criação de 
porcos, galinhas, patos, etc.. 

A concentração dos Guarani no Araribá, começada em meados 
do ano passado, deu os seguintes resultados : em dezembro 
tinham.-se derrubado e plantado perto de 200 alqueires de terra ; 
existiam 700 porcos : mais de 800 galinhas ; 35 cavalos e 

muares ; cabras, carneiros e outras criações. Já se tinham plan¬ 
tado mais de 200 árvores frutíferas. 

A moralidade dos índios melhorou em grau muito maior 
do que o esperado pelos cálculos mais otimistas ; com facilidade 
espantosa conseguiu-se, quase em absoluto, suprimir o abuso das 
bebidas alcoólicas e até hoje não se deu o menor conflito, nem 
mesmo algumas dessas pequenas rixas tão comuns entre populações 
pouco numerosas e rústicas. 





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No entanto, a população do Araribá é constituída de cêrca de 
300 indivíduos, provenientes de grupos que se olhavam com fundas 
prevenções, geradas por conflitos e rixas antigas. 

Os miseráveis ranchos em que êles vivdam, substituiram-se por 
casas, com as divisões internas exigidas pelos bons hábitos e pela 
moral doméstica. 

O regime adotado na povoação consiste em se dar aos índios 
absoluta garantia de propriedade sôbre todos os frutos de seus 
trabalhos. Das plantações que fazem em suas roças e de suas 
criações, êles dispõem inteira e livremente ; quando trabalham em 
serviços promovidos pela Inspetoria, o que só fazem por livre von¬ 
tade, sem menor sombra de coação material ou moral, recebem um 
jornal como qualquer trabalhador contratado. 

Os empregados da Inspetoria só existem para manter a órdem 
material, providenciar sôbre necessidades de alimentação, trata¬ 
mento de doentes, ferramentas, transportes, etc. ; evitar as inva¬ 
sões de intrusos e principalmente para zelar os materiais perten¬ 
centes ao Estado; além disto, procuram com os seus conselhos 
incentivar os trabalhos, melhorar as plantações, conservar o asseio 
e a higiene das habitações e das pessoas. Mas, em caso nenhum 
êles intervêm na vida íntima das famílias ou dos indivíduos ; nas 
crenças, festas e cerimônias religiosas. 

Os resultados colhidos era pouco mais de um ano são tão 
consideráveis, que nos animam a esperar para dentro de cinco anos. 
no máximo, vermos a atual povoação indígena de Araribá trans¬ 
formada em centro agrícola de trabalhadores nacionais. Êste pro¬ 
cesso só depende de não se descontinuar, nem desmerecer a ação do 
Govêrno, de modo a ser possível o estabelecimento definitivo do 
ensino das primeiras letras, a criação do aprendizado prático da 
agricultura, dos ofícios de carpinteiro e ^de ferreiro, bem como a 
introdução dos instrumentos próprios ao aperfeiçoamento da arte. 
de tecelagem, a que são muito dadas as índias e para cujo desenvol¬ 
vimento já se fês um.a regular plantação de algodão. 

Tendo assim dado uma idéia do que são os índios que cha¬ 
mamos “civilizados”, e da espécie de proteção que o Govêrno Fe¬ 
deral, por intermédio do Ministério da Agricultura, atualmente 
lhes dispensa, devemos agora passar a considerar os que denomi¬ 
namos de “selvagens”. 


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índios ÀMONTADOS 

Conquanto muito menos numerosos do que os outros, são 
estes indígenas os que mais preocupam o espírito público, e isso 
porque algumas tribos, habitantes de restos de florestas, já premi¬ 
das por estabelecimentos de civilizados, vivem em estado de guerra 
constante com os invasores de suas terras. Acresce que para 
agravar a impressão de terror que nas cidades anda ligada ao nome 
de índio, os jornais e os livros, que nunca deixam de comentar 
longamente as cruezas de seus assaltos, guardam sempre o maior 
silêncio sôbre as batidas que, em geral, as precedem e provocam e 
das quais resultara terríveis massacres de populações inteiras! 

E inútil dizer-se e repetir que esses selvagens atacam para 
defender-se, e quase sempre em desforra a uma sangrenta provo¬ 
cação dos civilizados. Nós, nas cidades, vamos registando as 
mortes que êles praticam e continuamos a ignorar os horrores que 
sofrem ; nós não sabemos, por exemplo, que há bem poucos anos, 
em Campos Novos do Paranapanema, Estado de S. Paulo, com¬ 
pletava-se a exterminação de uma nação inteira, a dos Oti, índios 
absolutamente inofensivos, que nunca souberam opôr a menor resis¬ 
tência aos seus inumanos matadores. 

As nações de selvícolas de que ainda restam algumas relíquias, 
sao exatamente as que se defenderam, opondo os seus arcos e 
flechas às nossas carabinas de repetição ; e por se terem defen¬ 
dido, nós muitas vêzes as classificámos de ferozes e exigíamos ao 
Govêrno que as mandasse exterminar. 

No entanto, a obser\'ação e a experiência demonstram que os 
índios habitantes de florestas, nunca foram subjugados pelos meios 
violentos. Êsses meios só podiam surtir efeito quando empregados 
contra os dos campos, em cujos descampados a flecha de nada 
vale em comparação com as armas de fogo. 

Os Boróro do rio das Garças sustentaram guerra contra 
Cuiabá durante quase um século. Em vão o Tenente Duarte, por 
ordem do Govêrno da então província de Mato-Grosso, manteve 
contra êles uma campanha sem tréguas : a guerra só terminou 
quando se deu a intervenção da índia Rosa, de cuja benéfica ação 
nos foi conservada a memória num trabalho encantador da esposa 
do General Melo Rego. 

Também os Boróro de S. Lourenço, que de primitivos aliados 
dos Portuguêses tiveram de se transformar em inimigos, para 


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evitar o cativeiro, desde os fins do século XVIII até nossos dias 
sustentaram, com vantagem, a guerra que lhes movíamos para desa¬ 
fogar a estrada de Cuiabá, e não sustaram as hostilidades senão 
depois que o Coronel Rondon, prosseguindo na obra esboçada pelo 
General Gomes Carneiro, fês cessar as batidas e substituiu-as por 
manifestações de benevolência e bondade. 

Ainda êstes processos de brandura, já agora empregados por 
funcionários do Serviço de Proteção aos índios, conseguiram, logo 
no princípio de 1911, terminar a guerra dos Aimoré que vinha desde 
o tempo de D. João VI, os quais agora se acham pacificamente 
tratando de lavouras, em postos criados pela Inspetoria do Espírito- 
Santo, sob a deligentíssima direção do Tenente Antônio Estigar- 
ríbia ; idênticos resultados colheu a Inspetoria de Goiaz, com os 
Javaé, da ilha do Bananal, também classificados de ferozes ; como 
o Coronel Rondon já o havia alcançado com os Nhambiquara, 
talvez a inais numerosa de tôdas as nações indígenas do Brasil, e 
comb o acaba de realizar com os Barbado, índios também de Mato- 
-Grosso. 

De todos os casos, porém, que se poderiam aqui citar, compro¬ 
bativos da excelência e do acerto do método preconizado pelo Di¬ 
retor do Serviço de Proteção aos índios, o que nos deve preocupar 
mais especialmente é o dos Caingangue, de S . Paulo . 

OS CAINGANGUE 

A celêuma que se levantou em torno do nome dêstes índios, 
não se justifica, nem pela importância numérica de sua população, 
que é uma das mais resumidas, nem tão pouco por algum requinte 
de crueldade, de que resultasse para êles um lugar à parte na triste 
história das lutas dos selvícolas brasileiros contra os civilizados. 

A explicaçãb da enorme retumbância que tiveram os assaltos 
dos Caingangue, parece-me residir, principalmente, em dois fatos : 
primeiro, o dêles se realizarem no Estado de S. Paulo, e segundo, 
o do lamentável desfecho que teve a tentativa de catequese do 
Padre Claro. 

Sacerdote estimado e respeitado entre as classes cultas de São 
Paulo, pelas suas altas virtudes e saber, o Padre Claro decidiu ir 
quase sozinho, ao encontro dos Caingangue, com o fito de os paci¬ 
ficar e conduzir para o grêmio da igreja católica. Para isso fês 
construir, nas cabeceiras do Feio, três canoas que tripulou com 





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Guaranis e nelas descendo o rio. ia deixando pelas ribanceiras, 
onde encontrava vestigios dos índios, espelhos, facões e outros 
brindes. 

Por êsse tempo ainda se acreditavm que o Feio fôsse um tribu¬ 
tário do Tietê. O Padre Claro, que partira com essa idéia, tendo 
navegado até às imediações da barra do Presidente Tibiriçá, e 
notado que o curso do rio, até alí, conserváva-se paralelo ao Tietê, 
concluiu que êle ia diretamente desaguar no Paraná, e, provável- 
mente, por falta de víveres, resolveu daí regressar para o ponto de 
partida. 

No dia imediato ao em que começou a subir o Feio, foi a flo- 
tilha inopinadamente assaltada pelos Caingangue, que contra ela 
atiraram uma nuvem de flechas. Um desses tiros acertou no 
padre ; outros mataram e feriram alguns tripulantes das canoas. 

A notícia desta tristíssim.a morte causou a mais penosa im¬ 
pressão na população de ,S. Paulo. Daí por diante, todos os espí¬ 
ritos se inclinavam a aceitar as mais odiosas opiniões sôbre a feroci¬ 
dade excepcional dos Caingangue, pois que. raciocinando com 
muito bons sentimentos, mas com nenhuma clarividência, conclui¬ 
ram que era preciso não existir naquelas almas nada de humano, 
para assim maltratarem um homem que nunca os molestara e que 
tantos sacrifícios afrontava só movido pelo desejo de lhes fazer o 
bem. 

O que, porém, não sabiam, nem podiam saber os moradores das 
cidades, é o que agora contam os índios, explicando o motivo do 
seu ato. 

Di zem êles que, entre os brindes deixados pelo Padre Claro 
numa ribanceira, figurava uma carabina ou espingarda, engenho 
cujo maquinismo êles, nesse tempo, ignoravam completamente, a 
ponto de acreditarem que êle disparava por si mesmo, automática- 
mente. Daí concluiram que aquela arma havia sido alí deixada com 
a intenção de matar os que dela se aproximassem, atraídos pelos 
outros presentes. 

Esta suposição conduziu-os logo a considerar os expedicio¬ 
nários, cujos passos vinham desde o princípio observando cuidado- 
^amente, como inimigos perigosos, que mereciam e precisavam ser 
imediatamente debelados. 

Como se vê, o triste desfecho da tentativa de catequese do 
Padre Claro resultou não da suposta ferocidade dos Caingangue, 


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mas sim- da profunda ignorância em que êles viviam a respeito das 
coisas da nossa indústria, e mais da desconfiança que nutria m 
pelos civilizados, em conseqüência das terríveis batidas contra 
êles incessantemente organizadas por mçradores de Campos-Novos 
do Paranapanema, e pelos que iam, mais recentemente, fundando 
estabelecimentos nas cabeceiras do Feio e em águas da margem 
esquerda do Tieté. 

Esta luta impiedosa e bárbara já vinha desde os primeiros 
anos da segunda metade do século passado, e quanto mais durava 
mais se amiudavam, de um lado e do outro, os assaltos e os morti¬ 
cínios, acompanhados de crueldades cada vez maiores. 

Em vão colocou o Governo estadual as suas esperanças na 
catequese, subvencionada desde 1903 até hoje, que devia ser orga¬ 
nizada pelos frades capuchinhos, em Campos-Novos ; a situação 
continuava a piorar de ano para ano. O reconhecimento e o levan¬ 
tamento dos rios Feio, Aguapeí e Pei.xe, pela Comissão Geográfica 
e Geológica do Estado, teve de fazer-se à mão armada, e ainda 
assim não se conseguiu evitar o sacrifício de vidas em ambos os 
campos. 


A E. F. NOROESTE E A AÇÃO DO CORONEL RONDON 

À construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, cor¬ 
rendo pelo divisor das águas do Feio e Tieté, constituiu uma nova 
fonte de hostilidades : às batidas dos bugreiros, sucediam-se os 
assaltos, cada vez mais violentos, dos índios contra os trabalhadores 
da estrada, e o pavor imperava por todo o sertão, onde ninguém 
se encontrava sem uma carabina de repetição, de que usava dia e 
noite, em descargas a esmo, para afugentar o “bugre”. 

Em fins de 1910, quando apenas se começava a organizar o 
Serviço de Proteçãô, a situação da Noroeste era tão premente, que 
o empreiteiro oficiava ao Ministério da Viação, avisando-o de que 
estava na iminência de suspender as obras de construção, por impos¬ 
sibilidade de conter os selvícolas e fazer parar as suas correrias. 

Os Tenentes Rabello e Dantas. — O Coronel Rondon, tendo 
notícia, pelos reconhecimentos preliminares dos Tenentes Pedro 
Dantas e Manuel Rabelo, da excepcional gravidade do problema, 
cuja solução ainda era mais dificultada pelas disposições hostis com 
que os moradores da região, todos armados e em pé de guerra, rece¬ 
biam os empregados do serviço, resolveu partir para lá, afim de 



























































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estudar a questão em suas fontes diretas e alí mesmo dar a traça 
que conviria seguir para conquistar a amizade dos temidos Cain- 

gangue, e assim estabelecer a paz e a ordem em todo aquele vasto 
sertão. 

Estudada a região, não só ao longo da estrada como também 
lateralmente até ao Tietê, o benemérito diretor do Serviço de Pro¬ 
teção aos índios assentou, com a maestria que todos lhe conhecem, 
o plano da pacificação e escolheu para o realizar o Tenente Rabelo, 
tendo como principais auxiliares os Tenentes Cândido Sobrinho e 
Sampaio. 

No plano estabelecido, o Coronel Rondon aproveitava com 
admirável habilidade a circunstância de se poder contar com os 
serviços de alguns Caingangues tirados do grupo já civilizado do 
Estado do Paraná, por meio dos quais podíamos comunicar aos sel- 
vícolas as nossas intenções pacíficas, não só por meio da palavra, 
como também por certos sinais peculiares a essa nação, feitos com 
o auxílio de businas e de uma espécie de hieróglifos, muitíssimo 
originais, construídos com pauzinhos e pequenos ramos de árvores. 

Êstes elementos, que deviam representar na campanha que 
se ia iniciar uma ação decisiva, foram logo depois acrescidos dos 
índios escravos de uma fazenda de Campos-Novos do Paranapa- 
nema, cujo proprietário, famoso bugreiro, os havia aprisionado por 
ocasião de devastadores assaltos que costumava dar às aldeias do 
rio do Peixe. 

Vanuire — Com êles vinha a velha índia Vanuire, que entre 
todos se destacou depois pelo inexcedível zêlo e verdadeiro amor 
com que se devotou àquela obra, que ela compreendia ser a salvação 
das últimas relíquias de seu povo. 

Uma grande dificuldade, porém, ainda estava para ser resol¬ 
vida, a da escolha do ponto onde conviria iniciar-se a entrada na 
floresta e instalar-se o servnço. 

De fato, os Caingangue, nesse tempo, faziam irrupções quase 
simultâneas, numa linha de frente superior a 250 quilômetros ; de 
modo que era bastante difícil descobrir-se o lugar de onde êles 
irradiavam, e para onde era necessário dirigir-se a ação dos expe¬ 
dicionários, afim de se ter a certeza de entrar logo em contacto com 
êles e nunca mais os perder de vista. 

Os Tenentes Rabelo e Sobrinho — Ainda estavam, o Te¬ 
nente Rabelo e os seus ajudantes, nessa perplexidade, quando se 


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deu o assalto contra a turma 21.“ de conservação da via-férrea, o 
que determinou a vinda do Tenente Cândido Sobrinho para a es¬ 
tação de Heitor Legru, então fortemente ameaçada. 

Feito o acampamento ao lado dessa estação iniciou logo o 
Tenente Cândido Sobrinho a exploração da mata que a circundava, 
resultando daí a descoberta de que se achava num lugar muitíssimo 
freqüentado pelos índios e por isso mesmo muito próprio para a 
fundação do projetado centro de atração. 

Seguindo por um dos trilhos mais batidos, foi o Tenente So¬ 
brinho esbarrar a 2 quilômetros da estação com o Ribeirão dos 
Patos, num ponto de passagem dos selvícolas, de onde divergiam 
para todos os lados numerosos caminhos com sinais evidentes de 
serem muito trafegados. 

Para aí resolveu êle transferir imediatamente o seu acampa¬ 
mento, fazendo para isto a necessária derrubada do arvoredo 
secular ; depois substituiu o abarracamento inicial por um arran- 
chamento de páu a pique e cobertura de folhas de coqueiro, desti¬ 
nado a servir de centro das operações que se haviam de desdobrar 
para o interior da misteriosa floresta, que se estendia ininterrupta 
para os lados do Feio, transpunha-o e daí se. derramava até o Feio 
e o Paraná. 

Para prender a atenção e o interêsse dos índios em torno dêsse 
acampamento e assim evitar que êles continuassem a espalhar o 
terror e a desorganização dos serviços ao longo da estrada de ferro, 
derrubaram-se 4 alqueires de mata e féz-se uma grande plantação 
de milho e feijão. 

Todos êsses trabalhos se prosseguiam no meio de tremendas 
ameaças dos selvícolas, os quais noite e dia cercavam o acampa¬ 
mento, ora tirando de suas buzinas lúgubres mugidos, que signifi¬ 
cavam guerra e extermínio, ora dando nas árvores com seus terríveis 
porretes pancadas que provocavam, no silêncio da noite, sons pavo¬ 
rosos, que deixavam as almas transidas de medo à lembrança de que 
a cacetadas tais nunca havia escapado com vida uma única vitima 
dos assaltos daqueles temerosos guerreiros. 

E a tôdas essas ameaças, no meio de tantos terrores, respon¬ 
diam os assediados com palavras de paz, com os cantos de festa da 
incomparável Vanuire, e com os sons alegres de benevolência e de 
boa amizade derramados por sôbre a soturna floresta, pela buzina 
que sopravam os intérpretes paranaenses, do mangrulho construído 
no alto de uma árvore. 


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E o Tenente Sobrinho, continuando impávido a grande obra, 
embrenhava-se na floresta para os lados do Feio, seguindo o trilho 
principal que de lá vinha em demanda do Ribeirão dos Patos, e 
quando encontrava os pequenos ranchos de caçada dos índios, 
nêles deixava-lhes presentes de roupas, machados e quinquilharias. 

Depois êsse trilho foi transformado em estrada, numa extensão 
de 30 quilômetros, até alcançar o rio em cuja barranca foi forçoso 
fazer-se novo acampamento à espera de que se terminasse a cons¬ 
trução de uma ponte, sob a direção imediata do Tenente Rabelo. 

Concluída a ponte, continuou a expedição para além do Feio, 
alcançando em princípio de dezembro de 1911, depois de percorridos 
perto de 20 quilômetros a contar daquele rio, a primeira aldeia dos 
Caingangue, a qual, soubemos mais tarde, pertencia ao grupo 
chefiado pelo rckakê Vauhin. 

Ao pressentirem a aproximação dos expedicionários, os índios 
abandonaram os seus ranchos e embrenharam-se pela mata, sem 
quererem atender aos chamados dos intérpretes. O pânico, como 
explica o chefe Vauhin, originou-se de que êles não esperavam, 
àquela hora, em que chovia torrencialmente, a chegada da coluna 
exploradora, e o inopinado dessa marcha, agravado pelo desorde¬ 
nado temor das mulheres e crianças, fez generalizar o medo até 
aos homens, que também correram. 

O Tenente Rabelo deixou nos ranchos grande quantidade de 
machados, facões, cobertores e outros presentes, depois do que 
regressou para o acampamento do Ribeirão dos Patos, para daí vir 
apresentar-se às autoridades militares conjuntamente com os seus 
esforçados ajudantes, em cumprimento de uma ordem do Minis¬ 
tério da Guerra. 

Com 6 mêses de trabalho, o Tenente Rabelo deixava o pro¬ 
grama da pacificação dos Caingangue, antes considerados como 
irredutíveis, nitidamente encaminhado para o feliz e desejado des¬ 
fecho. Craças à aplicação rigorosa do plano do Coronel Rondon, 
à ausência absoluta de tôda e qualquer manifestação que pudesse 
ser interpretada como hostilidade ou má vontade (basta dizer que 
durante todo êsse tempo não se deu um único tiro, nem mesmo para 
matar esplêndidas peças de caça que passavam quase ao alcance 
da mão) e as reiteradas provas de paciência e amizade, traduzidas 
pelos brindes deixados na floresta, graças a tudo isso, repito, já 
muito se havia modificado a noção que os índios tinham sôbre os 


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moradores do Ribeirão dos Patos e começava a despontar em suas 
almas a confiança que os havia de conduzir a se fazerem nossos 
amigos. Além disso, a atenção dos selvícolas tendo sido viva¬ 
mente solicitada para os acampamentos e trabalhos da inspetoria, 
aí se concentrava, e êles, por isso. abandonavam outras excursões, 
pelas quais, dantes, ameaçavam quase tôda a estrada Noroeste. 
Havia-se construído um bom acampamento nos Patos, plantado 
roças de milho e de feijão e rasgado, em plena floresta virgem, uma 
magnífica estrada de penetração, de perto de 50 quilômetros, pela 
qual ficavam abertas e fáceis as comunicações entre os índios e os 
civilizados empenhados em conquistar-lhes a amizade. 

O Ministro da Guerra Ordena a Retirada dos Oficiais — A 
retirada brusca dos oficiais ameaçava de ruína completa todos estes 
grandes trabalhos, realizados através de tantos sacrifícios, pois que 
o pessoal empregado nos diversos serviços ficava do dia para a 
noite entregue a si mesmo, sem a ação coordenadora de um chefe. 

Para evitar êsse calamitoso desfecho de uma obra, cujo coroa- 
mento já se previa para um futuro bem próximo, resolveu o Senhor 
Manuel de Miranda, sub-diretor do Serviço de Proteção aos índios, 
ir pessoalmente para aqueles sertões, afim de tomar as providências 
necessárias à conservação do que já estava feito, até que se pudesse 
designar a pessoa que devia substituir o Tenente Rabelo. 

Aproveitando a ocasião aquele chefe decidiu fazer uma ins¬ 
peção geral de todos os trabalhos já terminados, e para isso orga¬ 
nizou uma expedição, a cuja frente percorreu a estrada aberta pelos 
Tenentes Rabelo e Sobrinho, até a aldeia do rekatê .Vauhin. 

Os habitantes dessa aldeia não haviam voltado a ocupá-la 
e a nova expedição só encontrou um índio, que hoje sabemos 
chamar-se "Pechê”, surdo-mudo, para alí destacado como atalaia 
e guarda dos ranchos abandonados. 

O Cacique Vauhin e sua emboscada — Ao divisar os expedi¬ 
cionários, saiu êle em desabalada carreira, e metendo-se pela flo¬ 
resta a dentro foi levar ao seu chefe e irmão a notícia da nova 
invasão. Diz-nos agora o rekakê Vauhin que as mulheres e cri¬ 
anças aterrorizavam-se tanto com essas visitas, por temor de que 
elas acabassem repetindo as atrocíssimas carnificinas dantes prati¬ 
cadas pelos “bugreiros”, que aos índios se afigurava de imprescin¬ 
dível necessidade providenciar para que fôsse tal invasão sustada 
com a máxima urgência. 



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Por isso veio êle, acompanhado de mais um guerreiro, de nome 
Recandui, esperar o regresso da expedição, num ponto do caminho 
ique lhe pareceu propício à emboscàda que projetara. 

E quando a coluna chegou a êsse ponto os dois Caingangues 
não trepidaram em assaltá-la, apesar de ser ela composta de mais 
de vinte homens, todos portadores de carabinas . Das flechas, 
aisparadas com espantosa rapidez e precisão, uma bateu no arção 
da sela do animal cavalgado pelo Sr. Manuel de Miranda e por 
pouco não lhe causou um ferimento, que seria fatal ; outra feriu o 
intérprete Futoio. 

Primeiro Diálogo em Caingangue — Graças à calma do chefe 
da expedição, a boa ordem da coluna nada sofreu com esta surpresa 
e os intérpretes Geigmon e Futoio começaram logo a falar para os 
invisíveis assaltantes, repetindo os apelos à paz e os protestos de 
amdzade. -Então, pela primeira vez aqueles Caingangues, respon¬ 
deram às palavras que lhes mandávamos dizer e travaram um longo 
diálago cora os intérpretes, diálogo de que resultaram esclareci¬ 
mentos preciosos para o futuro da campanha pacificadora . 

Contudo, entre os índios ainda havia muitos espíritos traba¬ 
lhados pela profunda desconfiança que nêles implantaram os 50 
anos de guerra com os civilizados. Um desses decidiu vir sozinho 
ao acampamento dos Patos, onde já havia chegado a expedição, e 
aproximando-se do ribeirão, protegido pelo milharal, descobriu um 
homem que se banhava e contra êle desferiu uma flecha. Cito êste 
fato não só porque êle serve para evidenciar a audaciosa coragem 
dos guerreiros caingangues. como também porque dêle resultou, 
dias depois, a única morte que até hoje teve de lamentar a Inspetoria 
de S. Paulo em todo o decurso dos seus arriscados trabalhos nos 
sertões da Noroeste e de entre o Feio e o Peixe. 

Com a retirada dos oficiais era impossível continuar a Inspe¬ 
toria a utilizar-se dos serviços do destacamento do Exército, que 
estava às suas ordens. Era, pois, forçoso dispensá-lo ; mas dis¬ 
pensando-o não se podia deixar no acampamento os três ou quatro 
empregados civis que lá existiam. 

Sôbre tudo isto providenciou o Sr. Manuel de Miranda, man¬ 
dando evacuar aquêle acampamento, e recolherem-se os empregdos 
e o material a Miguel Calmon. 

Depois, nomeado novo Inspetor, em janeiro de 1912, tratou-se 
de reorganizar o serviço para continuar a obra interrompida. 


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A grande dificuldade que então se apresentava consistia em 
que, tendo-se de formar todo o pessoal só com civis, ficava-se 
exposto a ter, no fim de cada mês, uma interrupção dos trabalhos, 
porquanto é sistema dos “camaradas” não se demorarem nos em¬ 
pregos mais do que o tempo necessário para ajuntar alguns mil réis, 
que logo se apressam a ir gastar nas cidades ou povoações. 

Para obviar a êste inconveniente assentou-se em mandar con¬ 
tratar no Paraná uns doze Caingangues civilizados. 

Chegados êles, em fevereiro, tratou-se sem mais demora de 
reinstalar o acampamento dos Patos, nessa ocasião muito freqüen- 
tado pelos selvícolas que ali vinham abastecer-se de milho verde. 

Então recomeçaram as vigílias : as arriscadíssimas explo¬ 
rações de trilhos, para a descoberta de lugares próprios para nêles 
deixarem-se brindes ; as dificuldades de, à noite, conter-se o 
pânico das mulheres e mesmo de alguns homens, apavorados quando 
ouviam o estrugir das buzinas ou o reboar das formidáveis panca¬ 
das vibradas contra as árvores, por braços que se adivinhavam pos- 
santíssimos : e mais o trabalho de disfarçar êsse pânico com músi¬ 
cas de gramofone, com os cantos de paz da Vanuire e às vêzes dos 
intérpretes, chamando os temíveis visitantes, para que entrassem no 
acampamento, afim de receberem machados, cobertores e colares. 

Dez índios em visita ao nosso acampamento — Felizmente esta 
situação não chegou a durar dois mêses. Um pouco depois do 
meio-dia de 19 de março, no alto do caminho que vem do rio Feio, 
apresentaram-se a peito descoberto dez guerreiros caingangues, 
inteiramente desarmados e com a resolução evidente de travar re¬ 
lações com os ocupantes do acampamento dos Patos. 

A natural excitação dos primeiros momentos só durou o tempo 
necessário para a admirável Vanuire dar-se conta do que se pas¬ 
sava : então, correndo com entusiasmo incrível, foi ela resoluta¬ 
mente meter-se no grupo formado pelos caingangues e induziu-os 
a acompanhá-la até o recinto do acampamento. 

Recebidos com o carinho que é fácil de imaginar-se, êsses 
homens foram logo vestidos e cumulados de presentes e mimos. 

De tõdas as coisas que nessa ocasião lhes foram mostradas, 
nenhuma lhes causou mais admiração e viva alegria do que o fós¬ 
foro. Quanto às comidas e ao açúcar êles. ainda lembrados da 
mortandade de que haviam sido vítimas os moradores de uma aldeia 
do rio do Peixe, por se terem utilizado de genêros envenenados. 


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propositadamente levados para a floresta por um bugreiro de 
Campos-Novos, não os aceitavam sem primeiro nós os provarmos. 

Chefiava essa primeira turma o rekakê Vauhin, que por pru¬ 
dência havia deixado o resto do seu povo, as mulheres e crianças, 
reunido além do .rio Feio, com instruções para que, caso fracassasse 
a sua generosa iniciativa e êle morresse, todos se salvassem, embre¬ 
nhando-se na mata em rumo de oeste. 

Por isso mesmo êle precisava regressar quanto antes para o 
meio dos seus, afim de levar-lhes a auspiciosa notícia e assim resti¬ 
tuir-lhes a tranqüilidade. 

A êsse primeiro grupo seguiram-se outros, e não tardou que 
também viessem algumas mulheres, única manifestação verdadei¬ 
ramente valiosa para provar a realidade da cofifiança do índio em 
seus novos amigos. 

Pagando a visita do Rekakê — Também do nosso lado suce¬ 
deram-se as expedições e visitas às aldeias de Vauhin, onde exis¬ 
tiam então para mais de cem índios, seguidas de incursões para 
além de Presidente Tibiriçá e da descoberta de novos cursos d água, 
tão importantes como êste, aos quais se deram os nomes de rios dos 
Caingangues e 19 de março. Nestas expedições, tõdas levadas a 
efeito pelo destemeroso José Cândido Teixeira, auxiliar da Inspe- 
toria, foram reconhecidas as situações das aldeias dos outros rekakès, 
que eram, nesse ano, Congue-Hui, Cangrui, Rugrê e Charin. Fi¬ 
cou-se então sabendo que tõda a população dos Caingangue pau¬ 
listas, a qual seguramente não excede de 500 pessoas, acha-se loca¬ 
lizada em águas da margem esquerda do Feio e Aguapeí e que a 
mais oriental das aldeias é a de Vauhin, colocada aquem do Tibiriçá, 
e a mais ocidental é a de Charin, situada nas cabeceiras do ribeirão 
Itauna, que desagua no Aguapeí. logo acima do salto Carlos Botelho. 

Estendidas, ràpidamente, as relações de amizade a todos os 
rekakês, os quais visitam freqüentemente o acampamento dos Patos, 
foi-nos fácil fazer algumas observações sôbre os usos e costumes 
dêsse povo, tão injustamente taxado dantes de feroz e de incapaz 
de assimilar a nossa civilização. 

usos E COSTUMES 

O nome da ttibo — Começando agora a expôr os resultados 
dessas observações, devemos, em primeiro lugar esclarecer a ques¬ 
tão do nome porque são designados êstes índios. 


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- DJ. 


Até há bem pouco tempo dava-se-lhes geralmente a denomi¬ 
nação de “Coroados”, denominação esta radicalmente imprópria, 
porquanto homens e mulheres usam o cabelo aparado à moda que 
■dizemos “inglesa”, segundo a qual se penteiam muitas das nossas 
crianças. 

A única explicação que pode ter êsse nome reside no fato de 
trazerem os meninos caingangues a cabeça raspada, deixando-se- 
-Ihes ora uma orla de cabelos em volta do crâneo, ora três madeixas, 
duas caindo na parte dianteira das orelhas e a terceira na nuca. 
Dada a maior facilidade de se aprisionarem crianças, conjecturo 
que, por aí. foram os bugreiros induzidos a supor que também os 
adultos adotavam o uso do qual se poderia derivar a designação de 
“Coroados”. 

Mais recentemente generalizou-se a denominação de Cain- 
gangue, que irivariàvelmente adotamos. Mas, os índios paulistas, 
antes de entrarem em relações conosco, desconheciam esta palavra. 
Parece-me que ela nos vem do vocabulário do Paraná e talvez 
também pertença ao dos grupos riograndense e argentino. 

A verdade é que os habitantes da floresta do rio Feio não 
possuem um termo com que designem genèricamente o povo 
que constituem. Na sua linguagem só encontramos a palavra 
"cainqué”, que equivale ao nosso "patente" (mas só até um certo 
grau de consanguinidade) cujo sentido, depois de conveniente¬ 
mente alargado, poderia adaptar-se àquela função. 

Organização política — Quanto à organização política, os seus 
laços são tão frou.xos que se é antes levado a dizer que ela não 
existe. A autoridade, em cada grupo, reside num chefe apelidado 
rekakê; ela se transmite por hereditariedade, quando o herdeiro 
é suficientemente valente e empreendedor para se fazer respeitar 
pelos demais guerreiros. . 

Contudo essa autoridade só é verdadeiramente ativa e sensível 
nas ocasiões dos empreendimentos difíceis e nas grandes festas, 
sempre dadas em nome do chefe. Súditos, própriamente ditos, os 
Caingangue não o são, pois, o rekakê trabalha como qualquer 
outro homem, para prover a subsistência própria e à de suas mu¬ 
lheres e filhos. 

Muito mais bem definida é a instituição da família. Os 
homens vulgares têm uma só mulher ; os mais empreendedores, 
porém, chegam a ter duas, número que nunca é excedido. Os ma- 


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7SCÍELO) ;l1 12 13 14 15 16 
















ridos são muito carinhosos com as mulheres, que os acompanham 
por toda a parte, até mesmo nas expedições de guerra. Mães e 
pais têm para os filhos uma paciência que parece ilimitada ; nunca 
lhes batem e muito se afligem com qualquer sofrimento que os 
façam padecer. 

As mães prolongam excessivamente o período de amamentação 
dos filhos, e enquanto êle dura, não os deixam sòzinhos um só ins¬ 
tante, levando-os para tôda a parte em que vão, ou às costas, sus¬ 
tentados por uma cinta de casca de cipó imbé, apoiada na testa, ou, 
quando já sabem andar, pela mão. 

A autoridade dos pais não cessa com a maioridade dos filhos 
e estende-se mesmo até depois do casamento dêstes. 

Vimos uma mãe viúva desfazer dois casamentos de sua filha, 
contra a vontade desta e dos genros. 

A formação dos casais obedece a leis complicadas, dependen¬ 
tes dos grupos e sub-grupos em que se dividem as famílias caingan- 
gues. 

Camens e Canherucrens — Dêsses grupos, os principais deno¬ 
minam-se Camens e Canherucren.s ; os casamentos só se podem 
dar entre homens de um grupo e mulheres do outro : assim, por 
exemplo, um homem C.amem só poderá tomar mulher Caneieru- 
CREM. No entanto não se deve pensar que seja lícito o casamento 
de qualquer Camem com um Canherucrem também qualquer, 
porque para complicar o problema, intervem a divisão em sub-gru¬ 
pos, aliás bastante numerosos ; indivíduos de um certo sub-grupo 
camem, só se poderão casar com os de tais sub-grupos canheru¬ 
crens, salvo certas exceções, que também as há nas regras caingan- 
gues, para maior confusão da solução de uma questão que nos pa¬ 
rece dever ser tão simples. 

A noção do incesto — Também são absolutamente vedados e 
considerados com o mesmo horror que nos inspiram os casos de 
incesto, os enlaces entre cainqnés, isto é : pais e filhos, irmãos e 
irmãs, tios e sobrinhos, primos e primas. 

Parece que, com o intuito de trazer sempre viva na memória a 
proibição dêstes dois últimos casos, cuja infração pune-se com a 
morte dos culpados, estabeleceu-se o uso dos sobrinhos chamarem 
os tios de loG, (meu pai) e as tias de Iam (minha mãe), bem como 
êstes só tratarem àqueles de Cochite, isto é, filhos ; anàlogamenie 
os primos chamam-se de Rangré, isto é, irmãos, e tudo isto, não 






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obstante existirem na língua caingangue nomes próprios para desig¬ 
narem êsses graus de parentesco. 

Casamentos instáveis — Os casais, enquanto não têm filhos, 
são instáveis ; porém, depois, tornam-se indissolúveis. As mu¬ 
lheres casadas guardam escrupulosamente a fidelidade conjugal e 
tôdas têm um reóato que causaria profunda decepção aos nossos 
levianos forjadores de hipóteses, caso pudessem êles observá-las 
de perto. 

Um uso interessante é o dos pais entregarem as filhas, quando 
chegam à puberdade, a um dos seus cainqués, ao qual incumbe, daí 
por diante, zelar por ela e sustentá-la, até a data do seu casamento. 
Por êste uso, o filho mais velho que tem a seu cargo o sustento de 
uma irmã, não pode contrair casamento antes dela. 

O parto — Quando as mulheres sentem que se vão tornar mães, 
internam-se no mato, fugindo às vistas de todos. Aí, sòzinhas, 
dão a, luz aos seus filhos ; mas, apenas algum homem ou mulher 
ouve os vagidos da criança precipita-se para o ponto de onde êles 
partem e suspendendo o recem-nascido nos braços, dá-lhe o pri¬ 
meiro nome. 

Aos 7 anos, mais ou menos, se a criança é menino a mãe esfre¬ 
ga-lhe, em determinados períodos, todo o corpo com a fôlha de uma 
certa árvore, derramando-lhe água pela cabeça, com a esperança 
de, por êsse m.eio, dar-lhe fortaleza de ânimo e disposição para o 
trabalho ; nessa ocasião o menino recebe um sobre-nome. Noutras 
ocasiões êle pode ainda receber ou tomar mais alguns apelidos, os 
quais se ligam a acontecimentos notáveis de sua vida. 

Terminada a cerimônia das fricções acima referidas, o menino 
começa a aprender com o pai o manejo do cá, ou porrete vulgar¬ 
mente chamado pelos sertanejos da Noroeste de guarantam : a essa 
aprendizagem junta-se a de atirar com arco e flecha e depois a das 
caçadas. 

Quando tudo isto está bem sabido e o rapaz mostra-se capaz 
de prover à subsistência própria, então pode casar-se, coisa que se 
faz sem outro aparato a não ser o do cainqué encarregado da noiva 
conduzi-la até ao leito do futuro marido. Estas coisas se passam, 
para a moça, quando ela chega à puberdade, época que, na falta de 
contagem dos anos. pela qual se possa avaliar a idade, se conhece 
por um fenômeno comum às mulheres de tôdas as raças. Mas 
como as caingangues são muito precoces, acontece depararem-se 


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oo — 


com meninas já casadas que aparentam, ter apenas trere anos ou 
ainda menos do que isto. 

Cerimônias fúnebres — Quando morre um caingangue, dois 
homens se postam de cócoras, um de cada lado da cabeça, tangendo 
maracás, cantando e soprando-lhe constantemente nos ouvidos. 

Enquanto isto, os parentes e amigos conservam-se agrupados 
e silenciosos, de pé, à cabeceira. Depois dobram-lhe as pernas 
sôbre a barriga e amarram-no de modo que possa ser carregado 
dorso contra dorso, por um homem, que o leva para o cemitério. Aí 
abrem uma cova, cujo fundo é forrado com fôlhas de palmeira à 
moda das camas usadas por esses índios. Depositam o cadaver 
sôbre as fôlhas, pondo-lhe ao lado os objetos, utensílios e enfeites 
de seu uso, bem como muitos presentes dados para êsse fim pelos 
parentes e amigos. As coisas pertencentes ao morto e que o não 
acompanham na sepultura, como os animais por êle domesticados 
ou os objetos que se acham, por qualquer motivo, ausentes do lugar 
em que se deu a morte, são impiedosamente destruídos e queimados. 

Na bôca da sepultura constroe-se um estrado ou estiva de ma¬ 
deira e sôbre êste estrado amontoa-se terra, não só a retirada para 
a abertura da cova, como também muito mais que se escava dos 
lados. Em épocas certas, no meio de festas, chamadas kiki-côia, 
voltam os Caingangue a refazer êsse monte de terra, de sorte que 
êle alcança, às vêzes, alturas notáveis. 

As exéquias porém, continuam-se por muitos dias : homens 
e mulheres, com as cabeças envolvidas em longos panos — curus — 
entregam-se a um choro infindável, seguindo os ritmos de uma me¬ 
lopéia triste e por fim enfadonha. Enquanto dura êste chôro, os 
índios não atendem a nada do que possa ocorrer em torno dêles ; 
nada os faz distrairem-se daquela fúnebre ocupação. 

A viúva — Se o morto deixa viúva, esta retira-se para lugar 
ermo, onde, por muitos dias, que chegam às vêzes a um mês, con¬ 
serva-se em completo isolamento, evitando cuidadosamente lançar 
as vistas sôbre qualquer pessoa, na persuasão de que o seu olhar é, 
nesse período, maléfico e até mortífero. As coisas de que ela 
•então pode necessitar, como as provisões, são-lhe trazidas por algum 
parente ou amigo, que, precavido, os deposita longe do alcance da 
perniciosa influência visual. A inclusão na sepultura de objetos 
e utensílios, como arcos, flechas, machados, tecidos, colares, etc.. 
Justifica-se pela necessidade que dêles continua a ter o morto ; a 
clestruição dos que não são ou não podem ser enterrados, faz-se 


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para que o defunto não os venha buscar à aldeia. No entanto 
ainda há uma dificuldade ou perigo a remover : é o de que o 
morto, solicitado pela saudade das pessoas que lhe são caras, en¬ 
tenda vir procurá-las entre os vivos e levá-las para a sua habitação 
subterrânea. Porém, tão grande risco conjura-se fàcilmente, graças 
a umas pintas que se fazem no rosto, nos braços e tronco, com pó 
de carvão aglutinado com leite de certo cipó : a esta precaução 
junta-se mais a de raspar as sobrancelhas. 

O modo acima referido, de fazerem-se os enterramentos cain- 
gangues é de instituição bastante recente, porquanto os homens de 
hoje contam que, na sua meninice, usava-se sepultar o tronco numa 
cova, enquanto que a cabeça, separada e metida num vaso de barro, 
era objeto de grandes solenidades, depois das quais se a enterrava. 
Esta prática antiga parece que resulta das condições em que vivia 
a nação Caingangue, quando ela dominava ainda uma região muitas 
vêzes maior do que aquela em que agora se acha confinada. De 
sorte que seriam freqüentes as mortes ocorridas em pontos tão dis¬ 
tantes dos cemitérios que impossível seria transportarem-se os corpos 
até êles. A dificuldade resolvia-se dando ao tronco sepultura no 
mesmo lugar em que se verificava o trespasse e conduzindo a cabeça 
para a aldeia, para aí receber as homenagens fúnebres. 

Influenciado por êsse uso antigo, é que os Caingangue costu¬ 
mavam decepar os cadáveres das vítimas que faziam em seus as¬ 
saltos ; carregavam as cabeças para sepultá-las no meio de ceri¬ 
mônias. que parecem ter alguma coisa de e.xpiatórias. 

A alimentação — Passando, agora, à alimentação desses índios, 
examinemos em primeiro lugar os artifícios por êles empregados nas 
caçadas e nas pescarias. 

A mais apreciada das carnes é a da anta — zoro — que êles 
apanham em laços fortíssimos, feitos de cipó imbê ou senão ma¬ 
tando-a a flechas, indo para isso surpreendê-la de dia em seus 
retiros, guiados pelos rastos, que seguem com incrível facilidade. 

Imedíatamente depois dessa, colocam a carne de macacos ou 
bugios — canhere — dos quais matam enorme quantidade, por meio 
do arco e flecha. 

As caçadas — Para estas caçadas os Caingangue vão em 
grupos. Quando descobrem um bando, fazem, por baixo das ár¬ 
vores em que êle se acha, uma algazarra infernal : os macaco.s 
ficam com isso estatelados e é então que os homens desferem os 


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seus tiros certeiros. Depois de algum tempo os sobreviventes do 
bando procuram fugir, mas enquanto vão pulando de ramo em ramo, 
por baixo, cs índios os acompanham em gritaria : o bando pára de 
novo, como que preso pela fascinação daquela atoarda e os atira¬ 
dores de flecha, recomeçam a matança socegadamente. E esta 
cena se repete, até terminar, quase sempre, pela extinção do bando, 

Nas caçadas de porcos do mato usam os Caingangue cercar 
as varas que encontram ; depois, apertando o cerco, investem 
contra os animais e os abatem a pauladas : nestas batidas, é 
também comum não lhes escapar uma única peça. 

E’ costume dêsses índios fazerem das caveiras das antas, dos 
porcos e macacos por êles caçados, espécies de rosários, ligando-as 
umas às outras por meio de cipós e dependurá-las, assim, em árvores 
ou no interior dos ranchos. 

A pega de pássaros a laço — Para apanharem os pássaros em¬ 
pregam flechas de quatro pontas, ou senão, as de virote. Além 
disso, usam laçá-las com auxílio de um cordel preso à extremidade 
de uma vara longa e delgada. O manejo dêste laço exige grande 
delicadeza de movimentos e muita paciência, porque o caçador, tre¬ 
pado numa árvore, quando se trata de pegar periquitos ou maitacas, 
ou no chão, quando se trata de pombas, inhambús. etc., mas sempre 
escondido por uma tapada de fôlhas de coqueiro, tem de passar a 
laçada pela cabeça do pássaro e depois, erguendo a vara, segurá-lo 
pelo pescoço. Tudo isto passa-se de modo que seria mais justo 
dizer-se que os Caingangue assim “pescam os passaros. 

Quando se trata de periquitos ou maitacas, êsse caçador de 
“caniço” leva consigo um chamariz, ao qual faz gritar, conseguindo, 
destarte reter o bando ao alcance do laço ; quando se trata de 
pombas, colocam o milho de um lado da tapagem e, por essa forma, 
que não é nenhuma novidade, as atrái e reune. 

A vantagem dêste modo de apanhar os pássaros é que, por 
ficarem êles vivos, pode-se ter nas aldeias, ao alcance da mão, uma 
reserva de carne fresca, pela qual se quebra a monotonia das outras, 
conservadas pelo conhecido processo do moquem . 

Há certos animais que os Caingangue não comem, por exemplo, 
a onça e, o que é mais adnairável, o veado. Quanto à onça, ex¬ 
plicam que sentem repugnância em comer essa carne por ser ela 
muitas vêzes formada à custa das de algum índio ; quanto à do 
veado, porém, ainda não deram uma explicação que justifique tão 
inesperada abstinência. 






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Troca de caças — Um uso bastante singular e que se está 
perdendo rapidamente, sob a influência do que êles observam entre 
os civilizados, é o do caçador nunca se utilizar da caça abatida por 
suas próprias mãos ; animal que um mata outros o comem, e nisto 
não há pròpriamente permuta, porque o índio entrega o fruto de 
suas fadigas venatórias ao primeiro companheiro que encontra e vai 
receber de outro o que há de servir para a sua alimentação. 

Xirimbabos — Acontece muitas vezes apanharem êles filhotes 
de pássaros, de anta, macaco, etc., os quais são entregues às mu¬ 
lheres, que os criara com infinitos cuidados e muita paciência. 

Êsses animais, quando vingam, são tratados com mimos ilimi¬ 
tados por tôda a aldeia e o Caingangue se encheria de horror por 
quem matasse e comesse algum dêles. Isto seria aos seus olhos 
alguma coisa parecida com um ato de canibalismo ; por tal motivo, 
nos primeiros tempos da pacificação, os indios censuravam-nos pelo 
destino que nos viam dar às nossas aves domésticas, e foram preci¬ 
sos alguns meses para animarem-se a provar a carne de galinha, 
da qual, aliás, já se tornaram apreciadores, com um entusiasmo que 
nos parece agora excessivo. 

Péssimos pescadores — Apaixonados pelo peixe, os Caingan¬ 
gue são, no entanto, péssimos pescadores, se é que êste nome se pode 
dar a quem não emprega outros recursos senão o de esgotar algumas 
lagoas formadas pelas enchentes e depois pegar à mão os pescados 
nelas existentes ou esperà-los nas épocas de desova, em saltos e 
corredeiras, e apanhar os que, errando o pulo, caem em sêco, ou 
finalm.cnte matando a flecha algum que aparece pelas margens 
do rio. 

Carnes só bem cozidas - Em todos os casos os Caingangue só 
se alimentam de carnes muito bem cozidas, chegando mesmo a sua 
exigência sôbre este ponto tão longe que, nas mesas, recusam os 
bifes de que nos servimos, por achá-los crus. Para prepararem os 
seus “moquens”, usam, além dos processos geralmente empregados 
nos sertões, abrir no chão uma cova que aquecem fortemente com 
brasas e lenha; depois, chegado o calor ao gràu desejado, retiram 
todo o combustível e colocam alí a carne a assar, préviamente en¬ 
volvida em folhas verdes; feito isto, estivam a abertura da cova e 
cobrem tudo com uma espêssa camada de terra. A cocção dura 
quase um dia inteiro, mas em compensação dá às car^s um sabor 
muito mais agradável do que o obtido pelos outros meios. 


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Apanha de frutos etc. — Não só de caça vivem os Caingangue, 
pois a floresta fornece-lhes também grande variedade de frutos e 
côcos : entre os primeiros citaremos as saborosas jaboticabas, as 
pitangas, os “gragoatás”, os ananaz.es e muitos outros que seria 
fastidioso nomear. Utilizam-se igualmente do palmito, que comem 
cru ou guisado com carne ou com "fenhui ”, nome êste que serve 
para designar as larvas de certo coleóptero, que se desenvolvem 
nos troncos derrubados de uma determinada espécie de palmeira. 

Desta larva, que também comem crua, são òs Caingangue tão 
grandes apreciadores quanto entre nós os cavalheiros e damas de 
delicado paladar o são das ostras, cruas ou preparadas, e dos cara¬ 
mujos vindos de França. 

Roças — Além do que lhes dão as suas belíssimas florestas, 
têm os Caingangue os recursos que retiram de suas roças, onde 
cultivam abóboras — perrô ; uma fava branca, a que chamam 
rangró ; e o milho — inhere, das variedades, roxa, branca e grená, 
originais do Brasil, as quais, talvez por isto, parecem condenadas 
a desaparecer, substituídas pelo grão turco, que é o que se planta 
em nossas lavouras. 

O milho ocupa, na alimentação dêsses índios, um lugar tão 
preponderante quanto o representado pelo trigo na das populações 
do velho mundo. 

Quando verde, êles o comem assado, cozido ou em broas : as 
canas fornecem-lhes o seu caldo açucarado, parecido com o da 
extremidade superior das nossas canas de açúcar. Depois de 
maduro, comem-no assado ao borralho, ou reduzido a farinha ou 
em forma de pães — iamin — cujo único inconveniente, ao menos 
para o nosso paladar, é ter um sabor picante, que lhe vem do fato 
de pôrem o milho mergulhado em água corrente, durante alguns 
dias, até alcançar a certo grau de azedume. 

O kiki — Pôsto a fermentar, em grandes vasos de barro 
— coeron-bang, ou em cochos escavados em troncos de jaracatia, 
de mistura com mel, o milho fornece ainda o kiki, bebida de gosto 
agradável, levemente alcolizada, da qual só se faz uso nos dias de 
fésta. 

AS CASAS DOS CAINGANGUE 

Os Caingangue constroem suas casas, segundo dois tipos . o 
primeiro de uma só água, o segundo de duas. Sôbre varas in¬ 
çadas no chão com uma inclinação de 45 graus, mais ou menos, e 






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apoiadas no seu terço inferior sôbre uma viga horizontal, amarram-se 
outras, também horizontais, com cipó, destinadas a representarem o 
papel de ripas, e nelas se fixam fôlhas de coqueiro : tem-se assim 
uma casa do primeiro tipo, a qual fica completamente desabrigada 
pela frente e pelos flancos. 

O outro tipo constroe-se fechando a frente do anterior, por 
uma outra coberta feita segundo o mesmo processo ; uma dessas 
duas cobertas, porém, excede superiormente à outra, afim de obviar 
ao inconveniente da construção não possuir cumieira ; os flancos 
ficam geralmente abertos, mas às vezes coloca-se em um dêles uma 
terceira tapagem. 

Sob a influência do que observam no nosso acampamento, já 
começaram êles a modificar as suas construções, adotando esteios 
e cumieiras ; mas as paredes ainda continuam a ser supridas pelo 
prolongamento das coberturas até ao solo. 

Em viagens ou expedições, para caçadas ou outros fins, os 
Caingangue nunca pernoitam sem antes construirem alguns abrigos 
rapidamente feitos, segundo o primeiro tipo. 

Quando, porém, um homem viaja sozinho, o que raramente 
acontece, passa as noites no alto de algum coqueiro, cujas fôlhas 
enrodilha e entrelaça com tanta arte, que aí consegue, segundo 
afirmam, dormir com tôda a tranqüilidade e segurança. 

Para êste mister escolhem os coqueiros e não árvores, porque 
alí têm certeza de não serem surpreendidos e devorados pelas 
onças. 

No interior dos ranchos, os Caingangue fazem as suas camas 
sôbre o chão, forrado com fôlhas de coqueiro, e enquanto dormem, 
têm os pés aquecidos por uma pequena fogueira e o resto do corpo 
envolvido nos panos a que dão nome de curu-cuchá. 

O fogo — Até a data da pacificação, êles só conheciam um 
meio de fazer fogo : era rolando entre as palmas das mãos uma 
vareta de madeira rija, cuja extremidade inferior aplicava-se sempre 
no mesmo ponto de um pedaço, bem sêco, do pedúnculo de um 
cacho de côco ; o movimento de rotação alternativa, assim impresso 
à vareta, produzia na parte friccionada um pó tenuíssimo, o qual 
acabava inflamando-se, depois de um extrenuo trabalho, que se 
podia prolongar por muitas horas e que nem sempre dava o resultado 
desejado. 


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ii^l 






í;.u x/rim babo de sorte... 

Índia caingangue atnamcniando iini jdhotc de porco âo mato, enquanto 
o garoto espera a sua vez. 




























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Para evitar a necessidade de repetir amiudadamente essa pe¬ 
nosa operação, que competia aos homens, aplicavam-se as mulheres 
em consei-var o fogo obtido, alimentando para isso incessantemente 
as fogueiras domésticas. 

Quando saíam para caçadas ou expedições, levavam consiqo 
um tição aceso e protegido com tal arte, que não havia receio de se 
extinguir fàcilmente. 

A paciência e aplicação dos Caingangue aos trabalhos exigidos 
para a provisão das coisas necessárias à sua vida, manifestavam-se 
não só na produção do fogo, como também em muitas outras 
ocasiões. 

Manufaturas — Assim, por exemplo, a confecção dos uten¬ 
sílios de uso corrente, como as pinças de madeira, para apanhar no 
borralho as brôas e os grãos de milho torrado; os balaios de 
vários feitios e tamanhos, tecidos com taquarinha; os pilões 
abertos a fogo lento, em cepos de madeira, dirigindo-se a combustão 
de tal sorte que, depois de prontos, se julgariam feitos com auxílio 
de nossas ferramentas, manejadas por mão de perito carapina. 

Cerâmica — O mesmo se deve dizer da fabricação dos vasos 
de barro, de cõr prêta. e obedecendo á forma geral de um parabo- 
lóide de revolução, forma que parecia não dever ter sido a preferida, 
pela aparente dificuldade que há em os manter de pé. 

Estes vasos distínguem-se em duas categorias que se diferen¬ 
ciam pelos formatos das bordas : — os chamados “cocron”, que 

servem de panelas e chegam às vêzes, a ter capacidade de perto de 
25 litros, e os "petkê”, que são os pratos dos Caingangue. Nin¬ 
guém pode imaginar o que custa às índias, que são as artífices 
desses "cocrons” e “petkês”, bem como dos pilões, de paciência e 
de habilidade, a fabricação de tais vasos, que elas fazem sem o 
auxílio de nenhum instrumento, amoldando o barro só com as mãos 
e os dedos ; também não é menos admirável a resignação com que 
essas mulheres, muitas vêzes, vêm o seu trabalho inteiramente per¬ 
dido, quando, na operação final do cozimento, o barro, sob a ação 
do fogo, estala e fragmenta-se. 

Tecelagem — Que dizer, então, da perícia revelada por essas 
mesmas mulheres, na preparação de fios de fibra de gragoatà e na 
urdidura dos tecidos com que confeccionam as tangas e os "curu- 
-cuchà”, panos de agasalho contra o frio, sabendo-se que todo êsse 
trabalho é feito a mãos absolutamente livres, sem o auxílio, sequer, 
de um dispositivo que permita ter os fios destendios ? 


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No entanto, os Caingangue conseguem assim não só manufa¬ 
turar panos muito bem tecidos, como, além disso, fazê-los, pela in¬ 
serção de fios tingidos de vermelho e negro, com desenhos de fi¬ 
guras geométricas bem traçadas. 

Colares — Dentre os artefactos usados por êstes indios, citarei 
os colares, feitos, uns com as sementes de côr prêta de certo vegetal, 
furadas e enfiadas num cordel de fibra de gragoatá ; outros, com 
os incisivos de macacos, entremeados com presas e garras de onça 
e de outros animais. 

Todos êsses dentes eram antigamente encastoados em um te¬ 
cido : agora, porém, são perfurados com auxílio de agulhas e 
depois enfiados numa linha. 

Tangas, cintas e cordões — Às mulheres cobrem-se com 
tangas, que lhes' envolvem inteiramente tôda a parte inferior do 
tronco e descem até aos joelhos. 

Às moças, além da tanga, trazem uma cinta larga, de casca de 
cipó imbé, fechada em círculo e cozidas às extremidades ; de sorte 
que, para a usar é preciso a pessoa erguer os braços e juntar as 
mãos, enquanto uma ajudante a enfia, de cima para baixo, até 
chegar ao lugar desejado. 

Os homens andavam inteiramente nus, e desde meninos tra¬ 
ziam à cintura um cordão que a cingia em numerosas voltas : não 
conseguiram ainda os empregados da Inspetoria descobrir a signi¬ 
ficação dêsse cordão, cuja utilidade é evidentemente nenhuma. 

Armas — Quanto ao armamento, usam os Caingangue arcos 
de dimensões e forças proporcionadas ao emprego a que se destinam; 
assim, os de guerra, também utilizados contra as onças e antas, re¬ 
gulam ter dois metros de comprimento e são tão grossos que a mão 
mal os pode abarcar ; os destinados a matar macacos e outros 
animais de menor porte são muitíssimo mais leves, mais curtos e 
finos. 

Às flechas, cujo comprimento deve exceder, segundo medidas 
fixas, a altura da pessoa que a fabrica e utiliza, compõem-se de 
três partes : a ponta, o corpo — que é uma vareta de madeira — 
e o cabo, portador das penas, feito de taquarinha. 

Para as caças miúdas emprega-se a ponta feita de uma lasta 
de tíbia de macaco : na guerra, e contra animais corpulentos, a 
choupa de ferro. Às flechas para passarinhar são muito mais 
curtas que as outras e dotadas de quatro pontas de madeira, diver- 




F 

















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gentes e lisas ; ou, senão, de um batoque rombudo, cujo efeito é 
derrubar o pássaro sem o ferir, só atordoado pela pancada. As 
penas empregadas para dirigir o vôo das flechas são tiradas das 
asas de urubus e araras. 

Os Caingangue como a maioria dos índios brasileiros, não 
envenenam as pontas de suas flechas. 

Enfeites de penas — Para terminar esta enumeração de arte¬ 
factos caingangues, ainda citarei os enfeites de penas, usados pelas 
crianças, enfeites de que temos conhecimento só pelas referências 
que deles nos fazem os índios : e de um brinquedo chamado "nan- 
dire , formado de um disco de barro atravessado normalmente por 
uma haste finíssima de madeira ; fazendo-se rolar a parte superior 
dessa haste entre as palmas das mãos imprimi-se ao “nandire” um 
movimento de rotação que o faz funcionar como as nossas piorras. 

Festas, cantos e danças ^ Em certas ocasiões os Caingangue 
reunem-se para as festas, a que chamam “kiki-coia”. isto é, “o kiki 
que está para ser comido", as quais consistem em cantos e danças 
realizados em tôrno de monumental fogueira, e duram dias e noites 
seguidas até se esgotar a provisão da bebida, prèviamente preparada 
em quantidade enorme. Destas festas, a principal ou a mais sen¬ 
sacional é a que se realiza por ocasião do milho verde, quando se 
declara a maioridade dos rapazes ou a sua capacidade para con¬ 
traírem casamento, e as mulheres que enviuvaram no correr do ano 
são desobrigadas dos últimos deveres que ainda as ligava aos seus • 
defuntos maridos e postas em condições de convolarem a novas 
núpcias. 

Mas tôdas as festas começam, invariàvelmente, pela ida dos 
homens e rapazes já declarados maiores ao cemitério da aldeia, 
para refazerem o monte de terra que corõa as sepulturas ; nesta 
parte, que se faz. como tõdas as outras, entre cantos e com movi¬ 
mentos ritímicos, não pode figurar mulher alguma, nem menores. 

Regressando à aldeia os homens, começa em tôrno da fogueira 
a dança, na qual tomam parte os indivíduos de todos os sexos e 
idades, com as sobrancelhas raspadas e os corpos salpicados de 
pintas negras, feitas de pó de carvão misturado com leite de certo 
cipó, nuns indivíduos, redondas, noutros alongadas, conforme per¬ 
tençam ao grupo camen ou canhmucren. 

Os homens dançavam antigamente empunhando os seus arcos 
ou ramos de árvores ; agora, porém, preferem apresentar-se com 


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os machados e foices, que lhes dá o Governo Federal por intermédio 
da Inspetoria de S. Paulo. 

No kiki-coia só é fixa a melopéia, segundo a qual se deve dizer 
tudo o que no momento interessa, e a regra de ninguém beber o 
líquido que tira com as próprias mãos do cocho ou dos cocrons; 
tudo mais varia, segundo a ocasião da festa e segundo o personagem 
que canta. Um índio, tendo enchido de kiki o seu petkê ou caneca, 
entrega-a a outro, que pode ser homem ou mulher ; êste receben¬ 
do-o, bebe de um só trago o líquido nêle contido e para ali ficam os 
dois frente a frente, balançando os corpos, a cantar o que se têm a 
dizer. 

E’ assim que se rememoram e se liquidam passados dissídios : 
relatam-se peripécias de viagens, de excursões e de caçadas; 
ensinam os pais aos filhos a história e as tradições da nação e, sobre¬ 
tudo, rememoram-se as lutas com as [ógs — estranhos ou inimigos 
de outras raças, assentando-se então o plano de desforras terríveis 
e vingativas. 

O kiki, que se obtem não só pela fermentação do milho mistu¬ 
rado com mel. como já foi dito, mas também de igual infusão de 
flores de coqueiro, retiradas de espatas ainda verdes, é bebido em 
tão grande quantidade que alguns indivíduos ficam embriagados ; 
então dizem os outros que êstes morreram-terê, e para lhes restituir 
a vida empregam os cantos e as cerimônias usadas quando ocorre 
uma morte qualquer. 

O único instrumento de que se acompanham nos seus cantos é 
o maracá, tangido pelo rekakè da aldeia em que se realiza a festa 
o qual fica de parte, zelando pela boa ordem de tudo e servindo de 
mestre de cerimônia. 

O culto aos mortos — Tôdas as observações que pudemos 
fazer dos usos e instituições dos Caingangue, principalmente nas 
ocasiões decisivas dos kiki-coia, conduziram-se à conclusão de que 
êles só têm um culto : o dos mortos ; que, por ora, só há entre 
êles um princípio de adoração — a do fogo, do qual o rekakè, no 
decurso da festa, aproxima-se várias vêzes, para, de cócoras e 
sempre tangendo o maracá, dirigir-lhe alguma palavra em tom 
cantado. 

Os astros — Fora disso só pudemos descobrir um começo da 
atenção e do interêsse pelo sol e pela lua e nenhum pelos outros 
astros, que chegam até a ser confundidos numa designação comum 
dada pela palavra crin. Quanto ao trovão, não exerce sôbre êles 
nenhuma impressão de medo e muito menos de respeito, porque o 


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X.* 6 bis — Grupo de índias, vendo-se uma mulher ainda com a sua indumentária 
usual e outra com o camisolão branco ijue lhes era fornecido logo que chegavam 

ao Acampamento. 


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consideram como um fenômeno corriqueiro, como seja o rolar da 
água, a esforçar-se em romper as nuvens e cair em chuva. E quando 
perguntados sôbre a opinião que formam de outros fenômenos, 
que nos parecem próprios para fascinar qualquer imaginação e 
arrastá-la a criar hipóteses, êles se limitam a responder com a excla¬ 
mação — ma!, com a qual significam que se trata de coisa que não 
sabem e não lhes interessa saber. 

Nem feiticeiros, nem médicos — Entre êles não se encontram 
feiticeiros, médicos ou qualquer outra forma do equivalente ao pagé 
guarani ou ao bàri bororo. Os doentes são tratados pelos seus 
parentes mais próximos, os filhos pelas respectivas mães, o marido 
pela mulher, etc., e o tratamento consiste em sangrias na testa e nas 
fontes, que se picam com pedacinhos de vidro, o substituto atual 
do silex ; em massagens vigorosas e, às vêzes, violentamente exces¬ 
sivas ; e em atilhos, que apertam fortemente a parte dolorida do 
corpo. 

Onirocricia — Contudo, os Caingangue acreditam que algumas 
mulheres têm o dom de adivinhar o futuro, vendo claramente du¬ 
rante o sono o que sucederá em projetadas expedições e caçadas. 
Acreditam mais que êsses sonhos proféticos podem ser provocados, 
bastando para isto ingerir a sonhadora, um pó tenuíssimo, que se 
obtém pilando folhas de certo vegetal. Mas conquanto os homens 
não. se dispensem de consultar êsses oráculos na vespera de ini¬ 
ciarem novas empresas, contudo não desistem de as levar por 
diante, ainda que a resposta lhes seja desfavorável : é evidente, 
porém, que neste caso a ação se ressente da falta de firmeza e de 
pertinácia, necessárias para garantir-lhes o bom êxito. 

Ainda a essas mulheres atribuem os índios a fôrça de poderem 
sustar e desfazer as tempestades e aguaceiros que se estão formando, 
por meio de sopros que elas, com os dedos em pinha, figuram tirar 
da bôca e jogar contra as nuvens. 

Para terminar esta exposição sôbre os costumes e instituições 
dos Caingangue paulistas, falta-nos ainda considerar o modo 
porque êles fazem a guerra. 

TÁTICAS E ESTRATÉGIAS 

Em primeiro lugar, é preciso saber-se que em todos os empie- 
^^dimentos coletivos, devem figurar indivíduos dos dois grupos a 
já me referi, o Camen e o Canherucren ; a um pertence iniciar 
^ ^Ção, ao outro prosscguí-la até ao desfecho final. 


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Dada esta explicação, vejamos como era um combate entre 
dois partidos caingangues. Estando os guerreiros armados com os 
"cá ', enormes e pesados porretes de madeira fortíssima, avançavam, 
de um lado e de outro, estendidos em linha, os Camens dos dois 
partidos, soltando gritos e insultando-se mutuamente, dando pan¬ 
cadas no chão ou nas árvores, tudo com o fito de atemori¬ 
zarem. os contrários e incentivar a própria coragem ; enquanto 
isso. os Canherncrens ficavam em outra linha, à retaguarda, bran¬ 
dindo os "cás” e juntando seus gritos aos dos da vanguarda. 

Num dado momento, chegada a exaltação ao auge, começava 
o recontro, e os combatentes, ora defendendo-se, ora atacando, a 
manejarem os porretes em paradas parecidas com as do conhe¬ 
cido *jogo do páu”, trocavám-se pancadas terríveis que, se colhiam 
a cabeça do adversário, estendiam-no morto no chão ; se a uma 
perna ou braço, quebravam'-no. Nisto os Camens iam se retirando 
para a retaguarda e sendo substituídos pelos Canherncrens; a 
pugna tornava-se então mais encarniçada, referviam os golpes tre¬ 
mendos, aumentava o clamor das vozes e o solo se ia juncando de 
mortos e de estropiados . 

Como se vê, em suas lutas intestinas, os Caingangue não 
faziam uso do arco e das flechas : o pau, o temido “Guaratan” 
dos civilizados do Noroeste e de Campos-Novos do Paranapanema, 
era nesses casos a única arma empregada. 

Nos assaltos, porém, contra os “Fogs”, isto é. contra os índios 
Oti de Campos-Novos, os Ofaé de Mato-Grosso, ribeirinhos do 
Paraná e os civilizados, as armas de tiro figuravam, mas, ainda 
assim, só no começo da ação, para aterrorizar, desorganizar e pro¬ 
vocar a debandada do inimigo ; uma vez isto alcançado, o Cain¬ 
gangue abandonava o seu arco e empunhando o predileto “Gua¬ 
ratan”, saía correndo atrás do fugitivo, alcançava-o e, com uma só 
pancada na cabeça, arrancava-lhe a vida. 

Outra diferença entre as lutas intestinas e as exteriores, era 
que nestas êles não faziam preceder o recontro de clamor de insuP 
tos, como usavam naquelas ; mas, ao contrário, no meio do maior 
silêncio, no máximo do imprevisto, faziam cair sôbre os assaltados 
a primeira nuvem de flechas. O efeito dêsse ataque subtâneo, quass 
misterioso, era fulminante e, para agravá-lo, levantava-se então 
seio da floresta a gritaria enorme ; os homens já apavorados não 
podiam mais refletir nem se lembrar das armas que tinham ! Os qu^ 
conseguiam escapar vinham depois contar que naquele assalto ti' 


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