PUBLICAÇÕES DO CDN3a.80 NACIONAL
DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
(rio de janeiro)
19^» v.aa n,5
1947 v«86^30
1946 v,89 n.5
2
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COMISSÃO DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS
DE MATO GROSSO AO AMAZONAS
(Publicação n.” 84)
Anexos n.® 5
HISTÓRIA NATURAL
ZOOLOGIA
Ofídios de Mato Grosso
(Contribuição II para o conhecimento dos ofídios do Brasil)
POR
AFRANIO DO AMARAL
1. » edição: Comp. Melhoramentos de S. Paulo 1925
2. ® ” : autorizada pelo C. N. P. I. - 1948
1048
IMPRENSA NACIONAL.
RIO DE JANEIRO — BRASIL
SciELO
COMISSÀO .DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS
DE MATO GROSSO AO AMAZONAS
(Publicação n.“ 84)
Anexos n." 5
HISTÓRIA NATURAL
ZOOLOGIA
Ofídios de Mato Grosso
(Contribuição II para o conhecimento dos ofídios do Brasil)
POR
AFRANIO DO AMARAL
1. » edição: Comp. Melhoramentos de S. Paulo 1925
2. » ” : autorizada pelo C. N. P. I. - 1948
1948
IMPRENSA NACIONAL
RIO DE JANEIRO — BRASIL
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BIBLIOTI.CA
RECEBIDO tm; Of-
SciELO
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ÍNDICE
Assunto Pâgs.
INTRODUÇÃO . 5
Na coleção de 99 exemplares que a "Comissão Rondon” ofereceu ao Museu
Nacional, há 50 espécies representadas, sendo 3 novas, classificadas pelo autor:
a) Liophis longivcntris
b) Apostolepis Rondoni
c) Micrurus albicinctus . 5
Relação de 46 espécies já assinaladas para a fauna ofiológica de Mato-Grosso,
representada por 96 espécies . 6
CLASSIFICAÇAO :
A) Familia Boidae ‘
B) Familia Colubridae
C) Familia Amblycephalidae. ■ . 40
D) Familia Viperidae . 42
Estampa n." 1: figuras 1 a 6. 45
Estampa n,° 2: figuras 7 a 10. 47
cm
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INTRODUÇÃO
Quando, em fins de 1921, tomei a resolução de emprestar meus ser¬
viços de especialista ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, para determinar
sua rica coleção de ofídios, mal supunha que, ao estender minhas vistas
até os exemplares colhidos em épocas diversas^ entre 1908 e 19H, pela
“Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato-Grosso ao Ama¬
zonas”, dirigida pelo eminente patrício General Cândido Mariano da Silva
Rondon, viria a encontrar ali material tão abundante e precioso como aquele
de que me vou ocupar no presente trabalho, segundo da série por mim
encetada sob o titulo de “Contribuição para o conhecimento dos ofídios
do Brasil" (1).
As cobras da Comissão Rondon, colecionadas nas regiões central e
setentrional de Mato-Grosso, perfazem o total de 99 exemplares, correspon¬
dentes a 50 espécies, das quais 3 novas, que descrevo, neste trabalho, sob
os nomes, respectivamente, de Liophis longiventris. Apostolepis Rondoni
e Micmrus albicinctus.
Na aludida coleção figuram igualmente as espécies Rhinobothryum
lentiginosum ScopOLi e Pseudoboa occipitolutea (Dm. & Birr.), as quais eu
ainda não vira registadas para o Brasil, e bem assim as espécies, raras
entre nós. Dvymobius dendtophis (Schl.), Urotheca bidncta (Herm). Atra-
(1) Para a contribuição I, vejam-se os Anexos do Instituto de Butantan — Seção de
Ofiologia — 1921 — I/l.
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— 6 —
ctus latilrons (Gthr.) , Pseudoboa bitorquata (Gthr.) c Ps. labialis (Jan),
Philodryas uiridissinms (L. ). Dipsas variegata (Dm. & Bibr.) e Bothrops
Castelnaudi Dm. & Bibr.
Todavia, como e.xpressão de uma fauna estadual brasileira, a presente
lista deve ser aumentada com diversas outras espécies já assinaladas an¬
teriormente em Mato-Grosso, a saber :
1. Typhlops reticulatus (L.) — Koslowsky, J . — Reo. Mus. La Plata.
1898, VIII: 26.
2. Leptotyphlops albifrons (Wagl.) — Boulenger G. A. — Cat.
Sn. 1893. I: 63 (loc. Corumbá).
— Peracca, M. G. - Boll. Mus. Zool. Anat. Torino,
1904. XIX. 460: 7 (loc. Urucum) .
— Koslowsky, J. - 1. cit. : 26.
3. Constrictor constrictor (L.) — Cope, E. D. - Proc. Am. Phil. Soc.
1887. XXIV. 125: 56.
— Koslowsky, J. - 1. cit.: 26.
NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie das localidades matogrossenses Campo-Grande, Pôrto-Es-
perança e Senador-Vitorino.
4. Ilysia scytale (L.) — Koslwsky, J, - 1. cit.: 26.
5. Helicops carinicauda (Wied) — Idem.
6. Drymarchon corais (Boie) — Idem.
•— Cope, E. D. - 1. cit. : 58.
7. Leimadophis almadensis (Wagl.) — Boulenger, G. A. - Proc.
Zool. Soc. Lond. 1903. II: 70 (loc. Chapada).
— Koslowsky, J. - 1. cit.: 27.
NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense Mutum.
8. L. typhlus (L.) — Boulenger, G. A. - Cat. Sn. 1894, II : 137 (locs.
Chapada e Corumbá) .
— Koslowsky, J. - 1. cit.: 27.
9. Cyclagras gigas (Dm. & Bibr.) — Idem.
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— 7 —
NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie das localidades matogrossenses Miranda, Pôrto-Esperança,
Senador-Vitorino e Salobra.
10. Lystrophis histricus (Jan) — Koslowsky, J. - 1. cit.: 28.
11. Aporophis lineatus (L.) — Idem.
12. Liophis genimaculatus (BoET.) — Idem.
13. Dimades plicatilis (L.) •— Idem. .
— Peracca, M. G. - 1. cit.: 8 (loc. Urucum).
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense Pôrto-Esperança.
14. Simophis rhinostoma (Schl.) — Koslowsky, J. — 1. cit.: 28.
15. Leptodeira annulata (L.) — Idem.
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé
cie das localidades matogrossenses Guaicurus e Visconde
Taunay.
16. Pseudoboa trigemina (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, }. - 1, cit.: 29.
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie das localidades matogrossenses Aquidauana, Mutum e
Campo-Grande.
17. Ps. Guerini (Dm. õ Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit.: 29.
— Boulenger, G. a. - Cat. Sn. 1896, III: 113 (loc. Co¬
rumbá) .
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense Guaicurus.
18. Rhinostoma Guianensc (Tros.) — Koslowsky, J. - 1. cit. 29.
NOTA :0 Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense Miranda.
19. Philodryas Psammophideus (Gthr.) — Boulenger, G. A. - Cat.
Sn. 1896. III: 132.
— Koslowsky, J. - 1. cit. 29.
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— 8
20. Ph. Nattereri Steind. — Boulenger, G. A. - 1. cit. : 134.
— Koslowsky, J. - 1. cit. 29.
NOTA ;0 Instituto de Butantan tem recebido e.xemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense Mutum.
21. Ph. matogrosscnsis Kosl. — Koslowsky, J - 1 . cit. . 29-30.
NOTA :0 Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie das localidades matogrossenses : Correntes, Miranda, Mu¬
tum e Visconde Taunay.
22. Platyinion lividum Amaral — Amaral, A. do — Proc. N. E.
Zool. Club. 1923. VIII: 91.
NOTA : Por engano de revisão, o tipo desta espécie foi, na publicação
original, dado como procedente de Dorizon, Estado do Paraná,
quando realmente foi recebido do Sr. Emilio Guarini, de
Guaicurus, Estado de Mato Grosso, em 18 - X - 1920.
23. Erythrolamprus aesculapii (L.) — Cope, E. D. - 1. cit.: 57.
— Koslowsky, }. - 1. cit.: 30.
24. Apostolcpis assimilis (Reinh.) — Boulenger, G. A. - Proc. Zool.
Soc. Lond. 1903. II: 70 (loc. Chapada).
25. Ap. erythronota (Pet.) — Cope, E. D. - 1. cit.: 56.
— Boulenger, G. A. - Caí. Sn. 1896. III: 237.
•— Koslowsky, J. - 1. cit.: 30.
26. Ap. ambinigra (Pet.) — Boulenger, G. A. - 1. cit.: 237.
— Koslowsky, }. - 1. cit. 30.
— Cope, E. D. - 1. cit.: 56.
27. Ap. intermédia Kosl. — Koslowsky, J. — 1. cit.: 30-31.
28. Ap. BorcIIi Per. — Peracca, M. G. - 1, cit.: 9 (loc. Urucum).
29. Elapomorphus tricolor (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit. 31.
— Peracca, M. G. - 1. cit.: 10 (loc. Urucum).
NOTA : O Instituto de de Butantan tem recebido exemplares desta espé¬
cie da localidade matogrossense : Mato-Grosso.
30. Micrurus corallinus (Wied) — Griffin, L. E. - Mem. Carn. Mus.
1915. VII. 3: 217 (loc. Sto. Antônio do Guaporé).
P
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I
— 9 —
31 M. frontalis (Dm. & Bibr.) — Koslowsky, J. - 1. cit; 31.
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie
da localidade matogrossense: Campo-Grande.
32. M. Icmniscatus (L.) — Peracca, M. G. - 1. cit.: 10 (locs. Corumbá
e Urucum).
33. Sibynomorphus turgidus (Cope) — Cope, E. D. - 1. cit.; 58.
— Koslowsky. J. - 1. cit.: 32.
— Peracca, M. G. - 1. cit.: 11 (locs. Carandázinho, Co¬
rumbá e Urucum).
34. Bothrops Neuwiedii Wagl. — Griffin, L. E. - 1. cit.: 226.
— Koslowsky, J. - 1. cit.: 32.
NOTA : O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie
dás localidades matogrossenses; Aquidauana, Campo-Grande,
Guaicurus, Mato-Grosso, Miranda, Mutum, Pórto-Esperança
c Visconde Taunay.
35. Crotalus terrificus (Laur.) — CoPE, E. D. - 1. cit.: 59.
— Koslowsky, J. - 1. cit.: 32.
— Peracca. M. G. - 1. cit.: 11 (loc. Urucum).
NOTA: O Instituto de Butantan tem recebido exemplares desta espécie
das localidades matogrossenses: Arapuá, Campo-Grande, Ca-
randazal, Corumbá, Guaicurus Mato-Grosso, Miranda e Pôrto-
-Esperança.
A essas 35 espécies devo acrescentar mais as 11 seguintes, também
não compreendidas no material da Comissão Rondon, mas recebidas pelo
Instituto de Butantan, de diversos fornecedores da zona meridional de
Mato-Grosso :
36. Chironius sexearinatus (Wagl.) — Loc. Mutum.
37. Xenodon Guentberi Blgr. — Loc. Joaquim Murtinho.
38. Àporophis flavifrenatus (Cope) — Loc. Guaicurus.
39. Lystrophis semicinctus (Dm. õ Bibr.) — Loc. Visconde Taunay.
40. Pseudoboa cloclia (Daud. — Locs. Miranda, Mutum e Senador-
-Vitorino.
cm
SciELO
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45.
46.
— 10 —
Ps. rhombifera (Dm. ô Bibr.) — Locs. Miranda e Mutum.
Tomodon dorsatus (Dm. & Bibr.) — Does. Carandazal, Pôrto-
-Esperança e Joaquim Murtinho.
Philodryas aestivus (Schl.) —Loc. Campo-Grande.
Ph. Schottii (Schl.) — Locs. Guaicurus, Miranda e Pôrto-
-Esperança.
Bothrops jararaca (Wied) (1) — Locs. Campo-Grande, Joaquim.
Murtinho e Mutum.
B. alternata Dm. & Bibr. — Locs. Àquidauana, Campo-Grande,
Joaquim Murtinho e Mutum.
Juntando-se as espécies acima assinaladas às que estão registadas no
texto do presente trabalho, ver-se-á qne a fauna ofiológica de Mato-Grosso
é representada atualmente por 96 espécies.
S. Paulo, Junho de 1925.
(1) Esta espécie foi assinalada por Koslovvsky (1. cit. : 32) para a mesma região e
sob o nome de Lachesis lanceolatus (LACÉP.). A respeito da identificação desta espécie,
veja-se o que publiquei in Anexos Mem. Inst. Butantan. Qfiologia. 1921. I-l : 32-3-f e 76-78.
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A.
Fam. BOIDAF
1. - Gen. EPICRATES Wagler
1. - EPICRATES CENCHRIS (Linnaeus)
Dois exemplares colhidos por Emílio Stolle, no Norte de
Mato-Grosso .
N" 1 — Adulto 9.
E. 49: V. 262; A. 1 : Subc. 58. Supralabiais 13.
Comprimento total 808 mm ; cauda 92 mm.
N" 2 — Jovem.
E. 45 : V. 257 ; A. 1 ; Subc. 56. Supralabiais 13.
Comprimeuto total 477 mm ; cauda 55 mm.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie da localidade ; Senador-Vitorino.
11. — Gen. BOA Linnaeus
J. Florêncio Gomes (1) já havia aceito a sugestão de Stejneger.
(2) que, para o gênero denominado Corallus por Daudin, em 1803,
(1) J. F. Gomhs — Ofídios do Museu Rocha (Ceará) — in Revista do Museu Paulista
1918, X, p. 507.
- (2) L. Stejneger — An annotatcd list of Batrachians and Reptiles colleted at the
vicinity of La Guaira, Venezuela, with descriptions of two new species of snakes — in
Proceded U. S. Nat. Museum. 1902, XXIV N. 1.248, pp. 184/185.
cm
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reservara o nome Boa, ficando Constritor para o que era geralmente
chamado Boa.
São estas as palavras com que Stejneger justificara a modifi¬
cação :
"The generic name Boa must be retained for the genus
afterwards known as Corallus Daudin (1803), while Constrictor
must be used for the group ordinarily designated as Boa. as
will be seen from the following analysis.
In 1758 Linnaeus established the genus Boa, in which,
among others species, he included B. canina. B, constrictor and
B. orophias. Of course he indicated no generic types which must
therefore be ascertained by the process of elimination.
In 1768 Laurenti subdivided the genus into two genera, for
one of which he retained the name Boa, proposing Constrictor for
for the other. Boa he made to contain three nominal species but
they all belong as synonyms to Linnaeus’ B. canina, which, there¬
fore, must stand as the type. Constrictor, on the other hand, contains
the two other Linnean species mentioned above (the additional
B. dininiloquus being only a synonym of B. orophias). This case
is as plain as it can possibly be, and the well known Boa constrictor
must henceforth be known as Constrictor constrictor."
2. - BOA HORTULANA (Linnaeus)
Seis exemplares.
N*’ 3 — Jovem, colhido no Norte de Mato-Grosso.
E. 59: V. 286; A. I : Subc. 112. Supralabiais H.
Comprimento total 745 mm : cauda 140 mm.
N“ 4 — Jovem, colhido no Norte de Mato-Grosso.
E. 55 ; V. 276 ; A, 1 ; Subc. 113 Supralabiais 14.
Comprimento total 662 mm : cauda 135 mm.
N*" 5 — Adulto 9 , colhido pelo General RoNDON na região do Guaporé
(Parecis).
— 13 —
E. 59 ; V. 285 + n : A. 1 ; Subc. 124.
Comprimento total 1.765 mm -f- n (cabeça destruída) ; cauda 362 mm
Contém no estômago uma pata não digerida e penas de um pássaro.
Ns. 6, 7 e 8 — Exemplares imaturos, retirados da $ n“ 5. Colorido branco
amarelado com manchas pardas.
3. — BOA CANINA (Linnaeus)
Um exemplar colhido no Norte de Mato-Grosso.
N" 9 — Adulto 3.
Rostral em contato com uma pequena placa que separa as 2 nasais ;
nenhuma prefrontal ; 12 escamas no espaço interorbitário e 13 em
tôrno da órbita ; preoculares 2 ; frenais 3 -f- 1 supranumerária ; supra-
labiais H. E. 69 : V. 208. A 1 : Subc. 68.
Comprimento total 802 mm ; cauda 137 mm.
Verde-claro no dorso, com manchas e curtas faixas transversais
branco-amareladas de contornos negros: ventre amarelado.
IIL - Gen. EUNECTES Wagler
4. - EUNECTES MURINUS (Linoaeus)
Nome vulgar regional : “Sucuriju" (1)
N? 10 — Pele com 2m.530, mutilada em dois pontos, de um exemplar morto
na foz do Rio Castanha (tributário do Rio Madeira), em 4-IV-1914.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie das localidades Correntes e Pôrto-Esperança.
(1) Neste trabalho só assinalarei as denominações registadas nos rótulos dos exem¬
plares de Mato-Grosso.
cm
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— 14 —
B, - Fam. COLUBRIDAE
(série aglypha)
IV. - Gen. HELICOPS Wagler
5. - HELICOPS LEOPARDINA (Schlegel)
N" 11 — Adulto 9 contendo embriões e encontrado no Rio Jauru, a
22-XI-1908, na bôca de um jacaré.
E. 19 ; V. 120; A. 1/1 ; Subc. 60/60. Supralabiais 8 (4“) ; temporais
1 + 3 1 anterior supranumerária de cada lado.
Comprimento total 580 mm ; cauda H5 mm.
N“ 12 — Adulto ?, contendo embriões e colhida em Pôrto-Esperidião (Rio
Jauru), a 11-XI-1908.
E. 19; V. 121 ; A. 1/1 ; Subc. 60/60. Supralabiais 8 (3’ e 4'^) : tem-
<• - porais 1 -f- 2.
Comprimento total 490 mm ; cauda 125 mm.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie da localidade Põrto-Esperança.
6. - HELICOPS ANGULATA (Linnaeus)
Nome vulgar regional : “Surucucurana”. A denominação indígena
é dada, provavelmente, pela semelhança que esta espécie oferece com
a “Surucucu" (Lachesis muta), por ser dotada de escamas carinadas
e por apresentar grandes malhas negras losângicas no dorso.
N" 13 — Jovem.
E. 19: V. 110: A. 1/1 : Subc. 76/76. Temporais 1 +3/2+3.
Comprimento total 192 mm : cauda 57 mm.
N? 14 — Adulto 9.
E. 19 : V. 111 : A. 1/1 : Subc. 81/81. Temporais 3 + 4, posteriores e
também a superior da série anterior carinadas. Infralabiais 5/6 con¬
tíguas às mentais anteriores.
cm
2 3
z
5 6
11 12 13 14 15 16
— 15
Comprimento total 404 mm ; cauda 129 mm.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie da localidade ; Pôrto-Esperança.
7. - HELICOPS POLYLEPIS (Günther)
Um exemplo.
N? 15 — Adulto S.
E. 23 ; V. 126 : Subc. 75/75. Temporais 1 -|- 2. Supralabiais 8 (4'>) .
Infralabiais 5 ; contiguas às mentais anteriores, que são mais longas
do que as posteriores.
Comprimento total 400 mm ; cauda 116 mm.
Dorso pardacento com 5 séries alternadas de manchas negras,
sendo que as medianas, maiores, confluem e formam, no anterior do
corpo, uma espécie de lista vertebral em zigue-sague. Duas ou três
primeiras séries de escamas manchadas de amarelo intenso. Ventre
negro, apresentando o lado das ventrais uma ou duas séries de manchas
punctiformes amarelas, opostas ou alternadas de lado a lado.
8 .
V. - Gen. DRYMOBIUS Cope
- DRYMOBIUS BIFOSSATUS (Raddi)
Um exemplar.
N- 16 — Adulto á . com a cauda mutilada.
E. 15 : V. 186 ; Subs. 20/20 + n.
Comprimento total 1 .320 mm + n. ; cauda 110 mm
n.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie das localidades Campo Grande, Correntes, Guaicurus, Ladário,
Mato Grosso, Miranda, Mutum, Pôrto Esperança e Visconde Taunay.
9. - DRYMOBIUS DENDROPHIS (Schlegel)
Espécie relativamente rara entre nós, representada na coleção por 2 exem¬
plares .
N'? 17 — Jovem, colhido ao Rio Jauru, acima de Pedra Branca, em dezembro
de 1908.
cm
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— IG
E. 17; V. 165: A. 1 ; Subc. 154/154; Supralabiais 9 (4-*, 5‘' e 6’) ;
Postoculares 2.
Comprimento total 350 mm ; cauda 148 mm.
Dorso pardo-oliváceo com estreitas faixas transversaias negras, mar¬
geadas anteriormente por faixas lineares brancas e apresentando no têrço
mediano da linha vertebral uma espécie de estria branca, longitudinal.
Ventre esbranquiçado no centro e pardacento nos lados.
N" 18 — Jovem, tendo no dorso faixas transversais pardacentas, separadas
por espaços lineares brancos e uma estria branca vertebral, bem apa¬
rente no têrço mediano: ventre esbranquiçado no meio e pardo-oliváceo
nos lados.
E. 17: V. 158: A. 1 : Subc. 159/159.
Supralabiais 10 (4'^, 5-, 6’ e 7“) /8 (3“, 4'> e 5^). Postoculares 2.
Comprimento total 560 mm : cauda 250 mm.
Como se vê, o número de subcaudais é superior ao limite máximo
dessas placas (155), atribuído por Boulenger (') à espécie de que trato.
Todavia J. F. Gomes (-) em um exemplar, procedente do Amazonas e
pertencente ao Museu Rocha, do Ceará, havia encontrado 183 pares ; e,
além disto. ScHLEGEL (’). num dos espécimes típicos, originário de
Caiena, na Guiana Francesa, assinalara 196 pares.
VI. - Gen. SPILOTES Wagler
10 — SPILOTES PULLATUS (Linnaeus)
Um exemplar.
N" 19 — Jovem.
E. 16: 220: A. 1; Subc. 119/119. Frenal, pequena, colocada abaixo
da sutura da preocular com' a nasal posterior ; supralabiais 8 (4'' e
5*). Temporais 1-1-1.
Comprimento total 515 mm ; cauda 120 mm.
Color'do : dorso negro, com manchas amarelas irregulares na parte
anterior e com anéis negros completos, dispostos mais ou menos re-
(1) Cat. of Snakes — 1894. II. p. 16.
(2) Loc. cit. p. 508.
(3) H. ScHLEGEL — Essai sur la Physion. de.s Serpents. Amsterdam. 1837. p. 197.
cm i
vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
— 17 —
gularmente e separados por espaços amarelos, na parte posterior do
corpo e na cauda. Ventre amarelado, com faixas incompletas transver¬
sais. negras.
VII. — Gen. CHIRONIUS Fitzinger
11. — CHIRONIUS CARINATUS (Linnaeus)
Um exemplar.
N*" 20 — Adulto $ .
E. 12; V. 153; A. 1/1: Subc. 145/H5. Postoculares 2. Temporais
I + 1. Supralabiais 9 (4», 5» e b»).
Comprimento total 982 mm ; cauda 390 mm.
Colorido : dorso pardo-oliváceo, ligeiramente amarelado na linha
vertebral; ventre amarelo-pardacento.
12. - CHIRONIUS FUSCUS (Linnaeus)
Nome vulgar regional : "Papa-ovos".
Três exemplares.
N“ 21 — Adulto á .
E. 10, as 2 séries vertebrais carinadas ; V. 156; A. 1 ; Subc. 118/118.
Supralabiais 9 (4’, 5» e . Mentais anteriores cêrca de 2/3 das
posteriores.
Comprimento total 870 mm ; cauda 280 mm.
Colorido : pardo-oliváceo no dorso e pardo-amarelado no ventre.
N? 22 — Adulto $ .
E. 10, lisas: V. 154 ; A. 1 : Subc. 118/118. Supralabiais 9 (5» e 6’).
Mentais anteriores um pouco menores que as posteriores.
Comprimento total 1.310 mm; cauda 457 mm.
Colorido : negro-oliváceo no dorso e pardo, intensamente manchado
de negro, no ventre.
N*" 23 — Adulto 9 .
E. 10, as 2 séries vertebrais carinadas ; V. 147 ; A. 1 ; Subc. 135/135,
número excepcional para a espécie. Supralabiais 9 (4‘», 5» e 6'^) .
Mentais anteriores um pouco menores do que as posteriores.
Comprimento total 1.185 mm; cauda 450 mm.
Colorido : oliváceo escuro no dorso e pardo, finamente manchado
de negro sôbre o bordo das placas, no ventre.
cm
SciELO
11 12 13 14 15 16 17
— 18 — j
VIIL - Gcn. LEPTOPfflS Wagler
13. - LEPTOPHIS AHAETULLA (Linnaeus)
Nome vulgar regional : "Azulão-bóia”, denominação tirada do colo¬
rido azul brilhante intenso que alguns espécimes, quando vivos,
apresentam.
Dois exemplares.
N*" 24 — Adulto $ , colhido por Cesar Diogo, à Lagoa Mandioré, em se¬
tembro de 1908.
E. 15: V. 162, fortemente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc.
99/99+ 1 (3’ impar) + n. Temporais 1 + 1. Supralabiais 7/8 (4’
5^). Cinco infralabiais contíguas às mentais anteriores.
Comorimento total 1.000 mm; cauda 330 mm (mutilada).
Colorido ; dorso azul-oliváceo anteriormente, passando a brônzeo
na parte posterior ; ventre amarelado brilhante.
N“ 25 — Adulto, apresentando variação no colorido e no n’ de supralabiais.
E. 15, as 5 séries medianas, no têrço médio do corpo, carinadas;
V. 170, fortemente anguladas lateralmente. Supralabiais 7 (4» e
5^). Cinco infralabiais contiguas às mentais anteriores.
Comprimento total 1.060 mm ; cauda 354 mm.
Colorido : azul bronzeado no dorso, cabeça e cauda ; leve estria
negra, passando pela órbita ; ventre azul acinzentado.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta
espécie das localidades Guaicurus, Miranda, Ladário e Pôrto-Esperança.
14. - LEPTOPHIS NIGROMARGINATUS (Günther)
Dois exemplares.
N® 26 — Adulto 5
E. 15; V. 157, nitidamente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc.
118/118 + n. Preocular, dividida à direita e semi-dividida à
esquerda; frontal 1 1/2 vez tão longa quanto larga; supralabiais
9 (5® e b'^) ; seis infralabiais contiguas às mentais anteriores. Es¬
camas dorsais lisas no 1/3 anterior e no posterior do corpo ; no
1/3 médio, somente as 3 séries medianas é que são um pouco ca¬
rinadas, tôdas as demais lisas, o que representa uma exceção, em-
cm i
vSciELO) 12 13 14 15 16
— 19 —
bora se trate de um espécime ç. Ventrais nitidamente anguladas
lateralmente.
Comprimento total 951 mm ; cauda 352 mm.
Colorido (em álcool) : azul-esverdeado intenso: escamas do dorso
c placas cefálicas intensamente margeadas de negro ; carinas negras :
lista negra temporal começando atrás da órbita ; uma pinta negra sôbre
as supraoculares ; ventre nacarino esverdeado; ventrais e subcaudais
orladas de verde-azulado na base.
Êste exemplar está com 3 ovos e apresenta, no estômagp, restos
não digeridos de um batráquio.
N" 27 — Adulto S .
E. 15; V. 152, nitidamente anguladas lateralmente; A. 1/1; Subc.
151/151. Frontal 1 2/3 vez tão longa quanto larga; supralabiais
9 (5'^ e 6*) : seis infralabiais contíguas às mentais anteriores. Es¬
camas dorsais nitidamente carinadas no 2’ e 3" 1/5 anteriores
do corpo.
Comprimento total 960 mm ; cauda 380 mm.
Colorido (em álcool) : como no n'? 25 ; leve lista negra atrás da
órbita: mancha negra sôbre as supraoculares e parietais.
Nota. — Quando se examinam comparativamente muitos exem¬
plares de L. nigromarginatus (Güenther), fica-se surpreso diante das
variações que muitos dêles mostram. No presente material, o exemplar
n’ 25 tem, como ficou registado, sòmente as 3 séries medianas de es¬
camas ligeiramente carinadas, fato que parece excepcional (embora se
trate de uma $ ) e ainda não fôra assignalado.
IX. Gen. LEIMADOPHIS Fitzinger
15. - LEIMADOPHIS POECILOGYRUS (Wied)
Dois exemplares.
N? 28 — Adulto $ .
E. 19: V. H6: A. 1/1 : Subc. 47/47.
Comprimento total 421 mm ; cauda 73 mm.
Colorido : pardo oliváceo no dorso, com esboços de manchas trans¬
versais negras;
ventre amarelado, levemente manchado de escuro.
cm
SciELO
11 12 13 14 15 16 17
N? 29 — Adulto $, trazido de S. Luiz de Cáceres, por F. C. Hoehne
(5-I-19H).
E. 19; V. 150: A. 1/1 ; Subc. 46/46.
Comprimento total 298 mm ; cauda 50 mm.
Colorido : pardo-oliváceo no dorso, coberto de leves pintas irre¬
gulares negras; ventre amarelo-alaranjado com leves manchas cinzento-
-escuras.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta
espécie das localidades : Campo-Grande, Correntes, Miranda e Mutum.
16 . - LEIMADOPHIS REGINAE (Linnaeus)
Nomes vulgares regionais: “Jaboti-bóia" e “Goipeba".
Oito exemplares.
N“ 30 — Adulto $ .
E. 17 : -V. 149 : 1/1 : Subc. 58/58.
Comprimento total 338 mm ; cauda 72 mm.
Colorido : dorso oliváceo, finamente manchado de negro ; muitas
escamas apresentam as bordas brancas, mormente na parte anterior do
corpo : leve estria negra passando por sob a órbita ; esbôço de colar
amarelado da nuca ; bem nítida linha negra de cada lado da cauda ;
ventre amarelo intensamente manchado de negro.
N® 31 — Jovem.
E. 17: V. 150: A. 1/; Subc. 71/71.
Comprimento total 163 mm; cauda 38 mm.
Colorido : dorso oliváceo com retículo anegrado: mancha ama¬
rela desde a parietal à última supralabial; leve lista negra passando
por sob a órbita ; colar amarelo na nuca : lista negra ao lado da cauda ;
ventre amarelo-pardacento muito manchado de negro.
N® 32 — Adulto S .
E. 17; V. 142; A. 1/1 ; Subc. 66/66. Supralabiais 9/8 (5- e
6V4 ' e 5»).
Comprimento total 520 mm ; cauda 133 mm.
Colorido : dorso oliváceo até acinzentado, bordas das escamas da
parte anterior manchadas de negro e de branco, formando um desenho
reticulado : lista negra por sob a órbita : mancha amarelo-acinzentada
21 —
da parietal à última supralabial; lista negra ao lado do 5’ posterior
do corpo até a cauda: ventre amarelo levemente manchado de negro.
N’ 33 — Adulto 5 .
E. 17; V. H7: A. 1/1 : Sub. 61/61.
Comprimento total 388 mm ; cauda 89 mm.
Colorido : como no n’ 32.
N*> <34 — Adulto 9.
E. 17: V. 146: A. 1/1; Subc. 42/42 + n.
Comprimento total 720 mm -|- n. : cauda 130mm+n.
Faixa parietal-labial. Lista caudal negra.
N" 35 — Adulto á .
E. 17: V. 150: A. 1/1 ; Subc. 69/69.
Comprimento total 694 mm : cauda 178 mm.
Apresenta no estômago restos de um Lacertídio.
Faixa parietal-labial. Lista caudal negra.
N® 36 — Adulto á .
E. 17 : V. 150 : A. 1/1 : Subc. 64/64.
Comprimento total 637 mm : cauda 159 mm.
Faixa parietal-labial. Lista caudal negra.
N** 37 — Adulto 9 .
E. 17: V. 146; A. 1/1; Subc. 34/34-fn.
Comprimento total 505 mm -F n. : cauda 74 mm n.
Faixa parietal-labial. Lista caudal negra.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta
espécie das localidades Miranda e Mutum.
X. - Gen. XENODON Boie
17. - XENODON COLUBRINUS Günther
Nome vulgar regional: «Jibóia». Esta denominação parece aplicar-se
a esta espécie sòmente nessa região, pois em quase todo o resto
do Brasil ela designa a Boidea, Constrictor constrictor (L.)
Dois exemplares.
cm
SciELO
11 12 13 14 15 16 17
— 22 —
N? 38 — Adulto 2, procedente do Norte de Mato-Grosso.
E. 19 : V. 155 + n (4 mutiladas) ; A. 1 ; Subc. 45/45.
Comprimento total 1.104 mm ; cauda 153 mm.
Ventre amarelado com leves manchas pardas, anteriormente, e bem
manchado, posteriormente.
N" 39 — Jovem.
E. 19 ; V. 135 : A. 1 ; Subc. 45/45. Rostral uma vez e meia tão larga
quanto alta ; supralabiais 9 (4- e 5») ; preoculares 2 ; postoculares
2 : temporais 1 + 2 ; 4/5 infralabiais contíguas às mentais ante¬
riores, que são maiores do que as posteriores.
Comprimento total 263 mm ; cauda 40 mm.
Colorido : dorso pardacento-claro com largas faixas transversais
castanhas de bordas escuras, algumas levemente constringidas no meio ;
ventre pardo com manchas escuras anteriormente e pintas amarelas sôbre
o lado das ventrais.
Êste, exemplar representa visivelmente uma variação, já no que se
refere às supralabiais que no tipo são em n’ de 8 (excepcionalmente
7), já no que diz respeito ao colorido do ventre que no tipo é amarelado
com cintas escuras.
18. - XENODON SEVERUS (Linnaeus)
Nome vulgar regional : “Jacanarana".
Dois exemplares.
N? 40 — Jovem.
E. 21 : V. 131 ; A. 1/1 : Subc. 41/41. Postoculares 2. Temporais
1 -f3.
Comprimento total 283 mm ; cauda 39 mm.
Ventre negro com manchas laterais amarelas.
Contém no estômago, restos não digeridos de dois pequenos ba-
trácios.
N? 41 — Jovem.
E. 21 : V. 135 : A. 1/1 ; Subc. 37/37. Temporais 1 4- 2.
Comprimento total 243 mm ; cauda 31 mm.
cm
2 3
L.
5 6
11 12 13 14 15 16
2;í
Colorido como no n’ dO.
Contém no estômago restos não digeridos de um batrácio.
19. - XENODON MERREMII (Wagler)
Nome vulgar regional : "Boipeva”.
Um exemplar.
N** 42 — Adulto S .
E. 19; V. HO. A. 1. Subc. 48/48. Preocular 1 ; postoculares 2;
nenhuma subocular. Supralabiais 7 (H à direita soldada à pre-
nasal) .
Compriment ototal 1.104 mm; cauda 153 mm.
Colorido : dorso amarelo-oliváceo claro com faixas transversais
pardas de bordas escuras, constringidas no meio ; cabeça com faixas
curvas pardas de bordas amarelas': ventre amarelo-pardacento levemente
manchado de pardo-escuro sôbre a base das ventrais e subcaudais.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie das localidades : Arapuá, Campo-Grande, Correntes, Guaicurus.
Joaquim-Murtinho, Miranda, Mutum, Pôrto-Espefança, Senador-Vitorino
e Visconde-Taunay.
XL - Gen. LIOPHIS Wagler
20. - LIOPHIS LONGIVENTRIS sp. n.
(Estampa; figs. 1-3)
Um exemplar.
N** 43 — Adulto ê.
E. 17; 177; A. 1/1 : Subc. 49/49. Frenal um pouco mais alta do
que longa ; preocular 1 ; postoculares 2 (à esquerda, a postocular
inferior está soldada à 5» supralabial) ; temporais 1 -f2 ; supralabiais
7 (3" e 4^^ contíguas à órbita) ; quatro infralabiais contíguas às
mentais anteriores que são um pouco mais longas do que as pos¬
teriores.
Comprimento total 476 mm ; cauda 75 mm.
Colorido : dorso castanho-anegrado, tendo estreitas linhas transver¬
sais esbranquiçadas, e apresentando algumas escamas as bordas brancas ;
cm
vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
— 24 —
esboço de colar negro da nuca e de par de manchas esbranquiçadas
dos parietais ; ventre amarelado com manchas negras transversais, alter¬
nadas ou formando faixas completas.
À presente espécie distingue-se de L. cobella (L.), por ter maior
número de ventrais : 7, em vez de 8, supralabiais ; e 4, em vez de 5,
infralabiais contíguas às mentais anteriores.
21. - LIOPHIS OCCIPITALIS (Jan)
Um exemplar, colhido à Foz do Pirapitinga (S. Luiz de Cáceres) em
24-VIII-1908.
N® 44 — Adulto.
E. 15; V. 182: A. 1/1; Subc. 81/81: Temporais 2 + 2/1 +2:
quatro infralabiais, contíguas às mentais anteriores.
Comprimento total 372 mm ; cauda 97 mm.
Colorido típico.
XIL - Gen. UROTHECA Bibron
22. - UROTHECA BICINCTA (Hermann)
Embora seja esta uma espécie bastante rara, todavia está bem
representada na coleção.
Três exemplares.
N“ 45 — Adulto S, colhido por Blake, em Tapirapuã, em janeiro de 1914.
E. 19 ; V. 172 ; A. 1 : Subc. 79/79 : 7/6, escamas, além da supraocular,
em redor da órbita : temporais 2 -j- 3 : supralabiais 8.
Comprimento total 393 mm : cauda 99 mm.
N® 46 — Adulto S, colhido por Alípio Miranda Ribeiro, em Tapirapuã,
a23-III-1909.
N'' 47 — Adulto colhido por Alipio Miranda Ribeiro, em Tapirapoã, a 1 de
março de 1909.
E. 19: V. 170-1-2: A. 1: Subc. 81/81 : seis escamas, além da
supraocular, em redor da órbita. Temporais 3 -|-3. Supralabiais 7/8.
Comprimento total 408 mm : cauda 105 mm.
cm i
vSciELO) 12 13 14 15 16
25 —
E. 19; V. 170; A. 1 : Subc. 81/81 ; seis escamas, além da supra-
ocular em redor da órbita, à direita (regiões orbitária e parietal
esquerdas mutiladas). Temporais 3 + 3/2 + 3. Supralabiais 8.
Comprimento total 406 mm : cauda 102 mm.
Nota. — O colorido dêstes exemplares é absolutamente idên¬
tico ao assinalado por G. A. Boulenger.
XIIL - Gen. ATRACTUS Wagler
23. - ATRACTUS LATIFRONS (Günther)
Dois exemplares desta espécie pouco frequente, colhidos por Emílio
Stolle, no Norte de Mato-Grosso.
N" 48 — Jovem.
E. 17: V. 157; A. 1 ; Subc. 33/33,; quatro supralabiais contíguas
à mental.
Comprimento total 212 mm ; cauda 26 mm.
Colorido : 14 pares de anéis negros, separados por espaços ama¬
relos, cujas escamas têm o ápice negro; um anel negro singular na
nuca; cabeça negra com uma faixa amarela preocular, interrompida
no centro e uma faixa amarela ocipital.
N" 49 — Jovem.
E. 17 ; V. 154; A. 1 ; Subc. 27/27 ; quatro supralabiais contíguas
à mental.
Comprimento total 182 mm; cauda 20 mm.
Colorido : 11 pares de anéis negros ; um anel negro singular na
nuca e outro na ponta da cauda; cabeça negra sem faixa amarela
preocular ; fai.xa amarela ocipital.
Nota. — Em ambos os exemplares, a 5^^ supralabial é muito pouco
mais alta do que a 4^. Êste caráter que até agora só foi registado
por J. F. Gomes (1), serve, conjuntamente com o menor número de
séries de escamas, para distinguir esta espécie de Atractus elaps ( Guen-
ther), que lhe é muito afim.
(1) J. F. Gomes, in Rev. Museu Paulista. 1918. T. X. p. 516.
cm
vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
— 26 —
(série opisthoglypha)
XIV. - Gen. LYCOGNATHUS Dm. & Bibr.
24. - LYCOGNATHUS CERVINUS (Laurenti)
Um exemplar.
N® 50 — Adulto (mutilado) .
E. 19 : V. 228 : A. 1 : Subc. 100/100. Postoculares 2 ; supralabiais
8 (4» e 5*).
Comprimento total 653 mm : cauda 159 mm.
Colorido ; branco manchado e cintado de negro : ventre amarelado,
manchado irregularmente de negro.
XV. - Gen. TRYPANURGOS Fitzinger
25. -- TRYPANURGOS COMPRESSUS (Daudin)
Um exemplar, um tanto mutilado no ventre.
N’ 51 — Jovem.
E. 19; V. 253; A. 1 ; Subc. 115/115.
Comprimento total 365 mm ; cauda 83 mm.
Colorido como no tipo.
XVI. - Gen. RHINOBOTHRYUM Wagler
26. - RHINOBOTHRYUM LENTIGINOSUM (Scopoli)
Espécie, cuja presença ainda não tinha sido assinalada no Brasil, re¬
presentada na coleção por 2 exemplares.
No 52 — Adulto 9 .
E. 19, as 7 séries medianas do centro do corpo levemente carinadas ;
V. 269; À. 1/1 ; Subc. 112/112; supralabiais 8 (o e 5^) ; cinco
infralabiais contiguas às mentais anteriores ; mentais posteriores se¬
paradas por 3 escamas.
cm
vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
27 —
Comprimento total 655 mm : cauda 123 mm.
Colorido : 21 anéis negros, sendo o primeiro na nuca, separados
por anéis brancos cujo centro é ocupado por uma faixa amarelada sal¬
picada de negro; placas cefálicas negras orladas de branco.
N** 53 — Adulto $ .
E. 19, as 7 séries carinadas como no n'? 52 ; V. 275; A. 1/1 ;
111 / 111 .
Comprimento total 1.210 mm; cauda 241 mm.
Colorido : como no exemplar anterior ; 29 anéis negros completos
e 1 incompleto em redor do corpo.
XVIL - Gen. IMANTODES Dm. ô Bibr.
27. - IMANTODES CENCHOA (Linnaeus)
Seis exemplares.
4
N" 54 — Adulto ê , com a cauda mutilada.
E. 17; V. 263; A. 1/1 ; Subc. 57/57 -j- n. Preoculares 2; posto-
culares 2 ; temporais 2 + 3 ; supralabiais 8 (4’ e 5'>) ; cinco infra-
labiais contíguas às mentais anteriores que são um pouco mais
curtas do que as posteriores.
Comprimento total 845 mm n; cauda 133 mm -j- n.
Colorido : dorso amarelo-pardacento com 47 -]- n manchas trans¬
versais castanho-escuras ; ventre amarelado salpicado de castanho.
Ni* 55 — Adulto á .
E. 17 ; V. 274 ; A. 1/1 : Subc. 172/172. Preoculares 2 ; postoculares
2 ; temporais 2 -j- 3 ; supralabiais 8 (3", 4“ e 5") ; cinco infralabiais
contíguas às mentais anteriores que são um pouco mais curtas do
que as posteriores.
Comprimento total 1.160 mm ; cauda 345 mm.
Colorido; como no n“ 54, com 56 manchas transversais simples
-j- 4 bifurcadas de um lado 1 unilateral.
Ni’ 56 — Adulto, colhido no Norte de Mato Grosso.
E. 17; V. 263; A. 1/1; Subc. 171/171. Preocular 1; postoculares
2; temporais 2-j-3 ; supralabiais 8 (4’ e 5») ; cinco infralabiais
mentais anteriores.
cm
•SciELO
0 11 12 13 14 15 16
— 28 —
Comprimento total 610 mm; cauda 178 mm.
Colorido : como nos exemplares anteriores, com 67 manchas trans¬
versais simples -f- 4 bifurcadas de um lado.
N® 57 — Adulto, colhido no Norte de Mato-Grosso.
E. 17; V. 279: A. 1/1; Subc. 179/179. Preoculares 2; postocula-
res 2 : temporais 2 -j- 2 ; supralabiais 8 (4‘'> e 5») ; cinco infralabiais
-f- mentais anteriores.
Comprimento total 505 mm ; cauda H7 mm.
Colorido : como nos exemplares anteriores, com 71 manchas trans¬
versais simples -f 4 bifurcadas de um lado -|- 5 unilaterais.
Apresenta no estômago restos de um Lacertidio.
N*" 58 — Adulto $.
E. 17; V. 278; A. I/l : Subc. 111/111 n. Preoculares, posto-
culares, temporais, supralabiais e infralabiais como no n’ 57.
Comprimento total 1.065 mm n. : cauda 255 mm -j- n.
Colorido : como nos exemplares anteriores, com 54 manchas trans¬
versais simples 6 bifurcadas de um lado -p 1 unilateral.
N? 59 — Adulto á .
E. 17; V. 266; A. 1/1; Subc. 170/170. Preoculares, postoculares,
temporais e infralabiais como nos ns. 58 e 57; supralabiais 7
(3» e 4»).
Comprimento total 1.162 mm; cauda 357 mm.
Colorido : como nos exemplares anteriores, com 67 manchas trans¬
versais simples -j- 2 bifurcadas de um lado -j- 1 unilateral.
XVIIL - Gen. LEPTODEIRA Fitzinger
28. - LEPTODEIRA ANNULATA (Lnnaeus)
Nome vulgar regional : “Cacaual".
Cinco exemplares.
N® 60 — Adulto S . ,
Comprimento total 630 mm ; cauda 162 mm.
Colorido : dorso pardacento com 1 faixa em zigue-rague, côr de
chocolate, pouco perceptivel, manchas laterais ausentes; occiput es¬
branquiçado; ventre branco-amarelado.
cm
7SCÍELO3 ;l1 12 13 14 15 16
— 29
N? 61 — Adulto ê .
E. 19 (vertebrais ligeiramente mais largas) : V. 194; A. 1/1 ; Subc.
98/98. Subocular ausente: postoculares, supralabiais e infralabiais.
como no n’ 60 ; mentais anteriores iguais às posteriores.
92/92. Subocular ausente: postoculares 2; supralabiais 8 (3’,
4-' e 5*) : seis infralabiais contíguas às mentais anteriores que são
um pouco mais longas do que as posteriores.
Comprimento total 758 mm ; cauda 205 mm.
Colorido : mais nitido do que o do exemplar anterior.
N’ 62 — Adulto 9, colhido por Emílio Stolle, no Norte de Mato-Grosso.
E. 19 (vertebrais ligeiramente mais largas) : V. 197 ; A. 1/1 : Subc.
92/92. Placas cefálicas como no n- 60; colorido também igual,
porém mais nitido.
Comprimento total 652 mm ; cauda 164 mm.
N*" 63 — Adulto $ .
E. 19 (série vertebral, nalguns pontos, mais larga) : V. 188 ; A.
1/1 : Subc. 89/89. Placas cefálicas e colorido como no n’ 60;
mas, 5 infralabiais somente contíguas às mentais anteriores que são
longas quanto às posteriores.
Comprimento total 700 mm ; cauda 170 mm.
Apresenta no estômago um batráquio.
N<’ 64 — Adulto á .
E. 19 (série vertebral como no n’ 62) ; V. 190; A. 1/1 : Subc.
99/99. Placas cefálicas como no n’ 60.
Colorido como no n’ 61.
Comprimento total 601 mm ; cauda 160 mm.
XIX. -- Gen. PSEUDOBOA Schneider
29. — PSEUDOBOA BITORQUATA (Günther)
Espécie rara, representada na coleção por dois exemplares.
Nf' 65 — Adulto S ■
E. 19; V. 213; A. 1: Subc. 80/80. Preocular contígua à frontal.
Supralabiais 8 (4" e 5’).
cm
-SciELO
0 11 12 13 14 15 16
30 —
Comprimento total 570 mm ; cauda 114 mm.
Colorido : dorso pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ; ca¬
beça negra com uma estreita feixa clara transversal no occiput ; uma
faixa negra na nuca, transversal, precedida de uma outra clara ; ventre
amarelado.
N® 66 — Adulto $ .
E. 19; V. 205; A. 1 : Subc. 76/76. Preocular contígua à frontal.
Supralabiais 8 (4» e 5’).
Comprimento total 473 mm ; cauda 92 mm. ,
Colorido : como no exemplar anterior.
30. - PSEUDOBOA PETOLA (Linnaeus)
Dois exemplares.
N? 67 — Jovem.
E. 19; V. 216; A. 1 ; Subc. 88/88. Preocular contigua à frontal.
Supralabiais 8 (4'^ e 5“) .
Comprimento total 343 mm ; cauda 68 mm.
Colorido : cabeça negra: dorso anegrado com 11 faixas trans¬
versais amareladas, a primeira na nuca, e reduzidas, em alguns pontos,
a manchas laterais da mesma côr, em número de 9/8 em todo corpo ;
ventre amarelado.
N“ 68 — Jovem, anômalo.
E. 19; V. 218; A. 1 ; Subc. 107/107. Frenal ausente à direita, e
diminuta à esquerda ; preocular contígua à frontal; postocular 1 ;
temporais 2 4-3; supralabiais 8 (4‘^ e 5’) ; cinco infralabiais con-
tiguas às mentais anteriores que são um pouco mais curtas do que
as posteriores.
Comprimento total 267 mm ; cauda 62 mm.
Colorido : cabeça e dorso castanho anegrados, êste com 27 faixas
transversais amareladas, a primeira na nuca e três faixas interrompidas
na linha vertebral; ventre amarelado.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie da localidade Guaicurus.
JSciELO
— 31 —
31. -- PSEUDOBOA LABIALIS (Jan)
Espécie rara no Brasil, representada na coleção por 2 exemplares.
Np 69 — Adulto á .
E. 19 ; V. 200 ; A. 1 : Subc. 65/65 ; ôlho cêrca de metade da exten¬
são do focinho, que é arredondado : frenal pouco mais de 2 vêzes
tão longa quanto alta : preocular bem separada da frontal; supra-
labiais 8 (d» e 5’) ; quatro infralabiais contíguas às mentais ante¬
riores que são um pouco mais longas do que as posteriores.
Comprimento total 940 mm : cauda 170 mm.
Colorido : cabeça pardo-escura até a nuca, extremidade do focinho
mais clara; dorso pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ; ventre
amarelado, apresentando raras manchas anegradas.
Np 70 — Adulto á .
E. 19: V. 200. A. 1 : Subc. 70/70. Cabeça c placas cefálicas como
no exemplar anterior.
Comprimento total .590 mm : cauda 110 mm.
Colorido : cabeça como no n’ 69 : dorso pardo-alaranjado com es¬
boço de largas manchas escuras transversais : ventre amarelo imaculado.
32. - PSEUDOBOA OCCIPITOLUTEA (Dm. & Bibr.)
Espécie, cuja existência no Brasil não achei registada em publicação
alguma ; representada na coleção por um exemplar.
Np 71 — Adulto ?.
E. 19: V. 225: A. 1 : Subc. 101/101. Porção da rostral visivel de
cima igual a 2/5 de sua distância da frontal: preocular bem sepa¬
rada desta: supralabiais 7 (3» e 4») : cinco infralabiais (a 5» toca
levemente) contíguas às mentais anteriores que são maiores do que
as posteriores.
Comprimento total 695 mm : cauda 153 mm.
Colorido : dorso amarelo-pardacento, escamas com o ápice e as
bordas mais escuras : cabeça pardo-anegrada com uma larga faixa pardo-
amarelada que se estende desde atrás da órbita até a nuca, onde há uma
grande mancha pardo-anegrada: ventre amarelado: ápice das sub-
caudais pardo.
cm
2 3
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— 32 —
XX. - Gcn. THAMNODYNASTES Wagler
33. - THAMNODYNASTES STRIGILIS (Thunberg) (1)
Um exemplar, colhido à Lagoa Gahyba, em setembro de 1908.
N® 72 — Adulto $ , contendo embriões.
E. 17, fortemente carinadas, menos a série externa; 'V. 137 ; A. 1/1 :
Subc. 85/85. Supralabiais 8 (4* e 5^) ; temporais 2 + 3; cinco
infralabiais contíguas às mentais anteriores que são tão longas
quanto as posteriores.
Comprimento total 575 mm ; cauda 17 mm.
Colorido : dorso pardo, tendo, de cada lado, uma estria côr de cho¬
colate sóbre a metade da 3* e da 4“ séries de escamas ; e, sôbre a série
vertebral, outra da mesma côr, limitada para fora por um pontilhado
negro nítido; cabeça parda com estrias côr de chocolate e salpicada
de negro ; supralabiais também salpicadas de negro; estria negra post-
-orbitária presente; ventre amarelo com pintas e estrias negras ; margem
das placas apresentando sucessivamente, da cabeça até a cauda, 2, 3, 4,
3, 2 séries de pontos negros, unidos, no sentido longitudinal, por leves
estrias negras.
Nota. —- Êste exemplar afasta-se do tipo, por apresentar 17 séries
de escamas e 85 pares de subcaudais (^), caracteres que o aproximam
de Th. punctatissimus (Wagler), da qual, todavia, diverge, por possuir
anal dividida e escamas carinadas. Ê, pois, perfeitamente intermediário
às duas espécies do gênero.
Doutra parte, sendo comum encontrarem-se variações regionais de
Th. strigilis (Thunberg), e não sendo raros os exemplares desta es¬
pécie, cuja e.xistênda Boulanger assinala (3), que apresentam escamas
lisas, conforme tenho verificado nas coleções do Instituto Butantan, Museu
Paulista e Pôsto anti-ofídico do Butantan, na Bahia, sou de opinião que
a só existência de anal inteira e as outras duas mínimas diferenças que
os autores se esforçam por assinalar, isto é, ôlho maior e rostral pouco
mais larga do que alta, não bastam para caracterizar a espécie Th. puncta¬
tissimus. a qual, tendo sido descrita trinta e sete anos depois de Th. stri-
(1) Nattereri
(2) Na coleção do Museu Nacional, do Rio. por mim estudada e determinada em
novembro de 1921, encontra-se um exemplar de Th. stngíis, n.° 161, que apresenta 81 pares
de subcaudais.
(3) G. A. Boulenger — Cat. Sn. 1896, III, p. 117.
JSciELO
— :53 —
gilis, deve ser considerada como sinônimo desta, em obediência às regras
da nomenclatura zoológica.
Nota. — O. Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie das localidades : Carandazal, Miranda, Mutum, Pórto-Esperança
e Visconde-Taunay.
XXL - Gen. PHILODRYAS Wagler
34. - PHILODRYAS VIRIDISSIMUS (Linnaeus)
Nome vulgar regional; ‘‘Tucana-bóia". Espécie pouco frequente nas
coleções do Brasil.
Dois exemplares.
N" 73 — Jovem.
E. 19. lisas : V. 221, anguladas lateralmente ; A. 1/1 ; Subc. 118/118 ;
Temporal anterior subdividida à direita.
Comprimento total 515 mm : cauda 127 mm.
Colorido : verde-azulado cm cima : amarelado em baixo.
N" 74 — Jovem.
E. 19, lisas : V. 218, anguladas lateralmente ; A. l/l:Subc. 112/112.
Comprimento total 488 mm : cauda 126 mm.
Colorido : como no precedente.
35. PHILODRYAS OLFERSII (Lichtenstein)
Dois exemplares, da variédade latirostris Cope.
N" 75 — Adulto 5 , colhido por César Diogo, à Lagoa Mandioré, em se¬
tembro de 1908.
E. 19, lisas: V. 207, arredondadas: A. 1/1 : Subc. 105/105. Tem¬
porais 1 -f 2.
Comprimento total 928 mm : cauda 247 mm.
Colorido : verde azulado no dorso : estria negra postocular : pre¬
sente : verde-amarelado no ventre. ,
cm
2 3
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5 6
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M —
N® 76 — Jovem.
E. 19, lisas V. 186, arredondadas; A. 1/1 ; Subc. 112/112. Tem¬
porais 1 + 2.
„ Comprimento total 479 mm ; cauda 139 mm.
Colorido como no anterior.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie das localidades Guaicurus, Mato Grosso e Esperança.
XXII. Gen. OXYBELIS Wagler
36. - OXYBELIS ÀRGENTEUS (Daudin)
(3) G. A. Boulenger
Dois exemplares.
Cat. Sn. 1896. III. p. 117. '
N® 77 — Adulto, mutilado na nuca.
E. 17; V. 218; A. 1; Subc. 181/182. Frenal ausente. Suprala-
biais 7 (5’) .
Comprimento total 722 mm ; cauda 278 mm.
Colorido : como no tipo, predominando a côr parda n ..s estrias da
cabeça, do dorso e do ventre ; região guiar pardacenta salpi.:ada simè-
tricamente de escuro.
N® 78 — Adulto $ , com ovos, e mutilado no focinho.
E. 17; V. 212; A. 1; Subc. 190/190. Uma sup''alal‘dal contigua à
órbita.
Comprimento total 1.070 mm n. ; cauda 412 mm.
Colorido : como no exemplar anterior, predominando, porém, a côr
azul-violácea nas estrias da cabeça, do dorso e do ventre ; região guiar
esverdeada salpicada simètricamente de negro.
37. - OXIBELIS FULGIDUS (Daudin)
Nome vulgar regional : “Paraná-bóia" .
Um exemplar.
N? 79 — Adulto $ .
E. 17,5 até 7 séries medianas levemente carinadas ; V. 210 ; A. 1/1 ;
Subc. 148/148. Supralabiais 10 (5®, 6® e 7®).
cm
SciELO
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Comprimento total 1.425 mm ; cauda 450 mm.
Colorido ; como no tipo.
38. - OXYBELIS ACUMINATUS (Wied)
Dois exemplares.
N" 80 — Adulto 9 •
E.. 17, lisas; V. 197 ; A. 1/1 ; Subc. 176/176. Supralabiais 10/9 (5",
6'‘ e 7"/4'‘, 5‘‘ e 6") .
Comprimento total 940 mm ; cauda 372 mm.
Colorido : tom geral acinzentado, levemente manchado de negro.
N" 81 — Adulto 9 .
E. 17; lisas: V. 194; À. 1/1; Subc. 162/162. Supralabiais 9
(5» e 6’) .
Comprimento total 1.265 mm; cauda 490 mm.
Colorido : tom geral cinzento-bronzeado, sendo as bordas das es¬
camas do dorso levemente esverdeadas ; êste e o ventre com pintas negras
irregulares.
Nota. — O Instituto Butantan tem recebido exemplares desta es¬
pécie da localidade Guaicurus.
XXIII. — Gen. TANTILLA Baird ô Girard
39. - TANTILLA MELANOCEPRALA (Linnaeus)
Um exemplar.
N** 82 — Adulto, em más condições.
E. 15;V. 151; A. 1/1; Subc. 56/56. Sinfisal separada das mentais
anteriores pelo primeiro par de infralabiais.
Comprimento total 437 mm ; cauda 75 mm.
Colorido : dorso pardo ; cabeça pardo-anegrada com duas manchas
amarelas no occiput e uma sôbre a 5^^ e 6^ supralabiais, postocular in¬
ferior e temporal anterior; ventre amarelo-pardacento .
cm
2 3
z
5 6
11 12 13 14 15 16
— 36 —
Nota. — Êste e.xemplar, embora proceda da mesma zona que o
descrito por Cope (’) sob o nome de Tantilla pallida, apresenta a pri¬
meira infralabial contígua à do lado oposto. Aliás, penso com Boulenger
(^) que a espécie de CoPE representa tão somente mera variação indi¬
vidual, até porque já tive ocasião de estudar 2 e.xemplares de T. me/a-
nocephala (L.), da coleção do Museu Nacional, do Rio, e procedentes
da mesma região, Belém, do Pará, os quais, embora tenham idênticos
os demais caracteres, todavia divergem quanto ao primeiro par de
infralabiais : um n’ 458, apresenta-o separado pela sinfisal; outro núme¬
ro 459, apresenta-o contíguo.
XXIV. - Gen. XENOPHOLIS Peters
40. - XENOPHOLIS SCALARIS (Wucherer)
Três exemplares.
Ní* 83 — Adulto 2 . colhido por Emílio Stolle ao Norte de Mato-Grosso.
E. 17; V. 139: A. 1 : Subc. 31/31.
Comprimento total 258 mm ; cauda 38 mm.
N“ 84 — Adulto $ , com a cauda mutilada.
E. 17; V. 140; A. 1; Subc. 18/18 + n.
Comprimento total 437 mm -f- n. ; cauda 4 mm + n.
Embora mutilado, é o maior exemplar desta espécie que vi até
agora.
Apresenta no estômago restos não digeridos de um batráquio.
N? 85 — Adulto i .
E. 17 ; V. 128 : A. 1 : Subc. 39/39.
Comprimento total 200 mm ; cauda 37 mm.
O colorido nos 3 exemplares é idêntico ; no dorso uma linha ver¬
tebral escura, pouco visível, separa manchas transversais alternadas, de
côr negra.
(1) Cope — in Proced. Amer. Phil. Society. 1887. T. XXIV. p. 56.
(2) G. A. Boulanger - Cat. Sn. 1896. III. pg. 217.
cm
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— 37 —
XXV. - Gen. APOSTOLEPIS Cope
41. - APOSTOLEPIS RONDONI sp. n.
(Estampa; figs. 4-6)
N*” 86. — Um exemplar.
Descrição do tipo — Adulto $ . Focinho convexo e pouco saliente ;
diâmetro do ôlho quase igual à sua distância da borda oral. Rostral
mais larga do que longa, a porção visível de cima cêrca de metade do
comprimento da sutura prefrontal. Internasais soldadas às prefrontais
que estão separadas das supralabiais pela nasal e a preocular contíguas.
Frontal cêrca de uma vez e um têrço tão longa quanto larga, um pouco
mais curta do que sua distância da extremidade do focinho e cêrca de
metade do comprimento dos parietais (5 : 9) . Nasal inteira, em contato
com a preocular que é bem desenvolvida. Postocular 1. Temporal 0 + L
Supralabiais 6, 2’ e 3" em contato com a órbita, 4» com a postocular,
5", sòmente, com a parietal, e ó'- com a temporal. Sinfisal separada das
mentais anteriores pelo \'> par de infralabiais ; 4 infralabiais em contato
com as mentais anteriores que são um pouco longas e mais largas do
que as posteriores. Escamas lisas, sem fossetas apicilares, em 15 séries.
Ventrais 221. Anal dividida. Subcaudais 28 pares.
Cabeça anegrada com uma mancha parda na parte anterior ; dorso
pardacento com 5 riscas longitudinais negras que se estendem da nuca
até a cauda : a F- risca, mais larga, ocupa, de cada lado, a 3^^ e a metade
da 2» c da 4'- séries de escamas : a 2“ risca ocupa de cada lado, a metade
da 5- e da 6'- séries : a 3'^ risca corre sôbre a série mediana. Cauda
negra em seu 1/5 posterior; escama terminal branca. Ventre pardo
esbranquiçado.
Dimensões — Comprimento total 272 mm ; cauda 25 mm.
Notas. — Na chave do gênero Apostolepis. a presente espécie deve
ser incluída entre as que apresentam uma só supralabial, a 5'F em contato
com a parietal. A. Rondoni Amaral, distingue-se, nessa divisão, de
A. assimilis (Reinh.), pelo colorido, pelo menor número de ventrais e
pela nasal que está contígua à preocular; de A. cearensis Gomes (’),
(1) Gomes, ]. F. — Contribuição para o conhecimento dos ofidios do Brasil (Descrição
de quatro espécies novas e um novo gênero de opistoglifos) in Anais Paulistas de Med. e
Cirurgia. — Junho 1915. Vol. IV. N’ 6, pgs. 122/126.
cm
SciELO
11 12 13 14 15 16 17
38
ela se distingue pelo colorido, pela nasal que está contigua à preocular
e pela porção da rostral visível de cima que é metade menor do que a
sutura prefrontal: finalmente, de A. coronata { Sauv. ) ela se distingue
pelo colorido, pelo maior número de ventrais e pela existência de uma só
postocular.
Nestas condições, teremos a seguinte sinopse parcial do gênero
Apostolepis :
— Uma só supralabial, a 5^^, em contato com a parietal ;
I. — Nasal separada da preocular ;
— porção da rostral visível de cima :
1. — muito mais curta do que a sutura prefrontal; ventrais
244-269: subcaudais 27-39 . assimilis
2. — tão longa quanto a sutura prefrontal; ventrais 221-243:
subcaudais 27-32 . cearensis
II. — ■' Nasal contígua à preocular ;
— postoculares :
1. — duas; ventrais 199; subcaudais 47. coronata
2. — uma só : ventrais 221 ; subcaudais 28. Rondoni
(série proteroglifa)
XXVL - Gen. MICRURUS Wagler
42. - MICRURUS SURINAMENSIS (Cuvier)
Um exemplar.
N“ 87 — Adulto á .
E. 15; V. 166; A. 1/1; Subc. 38/38. Supralabiais 7 (4“) ; fron¬
tal diminuta.
Comprimento total 323 mm ; cauda 36 mm.
Colorido : 8 séries de 3 anéis negros, os do meio cêrca de 3 vêzes
mais largos, separados por estreitos anéis amarelos, o primeiro anel ao
nível do occiput ; fundo pardo-avermelhado, ápice das escamas negro ;
cabeça pardo-amarelada (em álcool) , bordas das placas cefálicas negras.
cm
SciELO
0 11 12 13 14 15 16
— 39 — I
43. - MICRURUS ALBICINCTUS sp. n.
(Estampa: figs. 7-10)
N" 88 — Um exemplar.
Descrição do tipo — Adulto ê . Focinho obtusamente arredondado,
pouco saliente. Ôlho cêrca de dois terços de sua distância da borda
oral. Rostral mais larga do que alta. Internasais qua.se duas vêzes tão
largas quanto longas. Prefrontais cerca de duas vezes tão longas
quanto as internasais. Frontal um pouco mais longa do que larga (7 : 6) ;
cêrca de duas vêzes tão larga quanto as supraoculares ; um pouco
mais curta do que sua distância da extremidade do focinho; mais
curta do que as parietais (7 : 10), que são ligeiramente mais longas
do que sua distância das internasais. Preocular 1, contígua à nasal pos¬
terior. Postoculares 2. Temporais 1 + I. Supralabiais 7, 3‘‘ um pouco
mais larga do que a 4’, 3‘' e contíguas à órbita. Sinfisa separada das
mentais anteriores pelo 1- par de infralabiais : quatro infralabiais em
contato com as mentais anteriores que são tão longas quanto as poste¬
riores. Escamas em 15 séries. Ventrais 198. Anal dividida. Subcaudais
48 pares.
Corpo nitidamente negro, apresentando no dorso 81 faixas trans¬
versais brancas, equidistantes, estreitas (anéis), geralmente da largura
de uma escama, as quais se estendem até o ventre, que também é negro,
ficando aí às vêzes interrompidas e um pouco mais largas, mormente
sob a cauda. Cabeça também negra, apresentando algumas manchas
punctiformes brancas, regularmente distribuídas, de cada lado, assim :
uma sôbre a prefrontal, uma .sôbre a supraocular, uma sôbre a tem¬
poral anterior, uma sôbre a 6- supralabial e quatro transversalmente
dispostas sôbre a nuca.
Dimensões — Comprimento total 492 mm : cauda 77 mm.
Notas. — Na chave das espécies de Micrmus, organizada por
G. A. Boulenger (’), M. albicinctus deve ser incluída na divisão
III, B, 2, c, p, **, t :
III. — Sete supralabiais, 3'- e 4'> contíguas à órbita :
B. — 7" supralabial bem desenvolvida ; rostral de tamanho médio,
justamente visível de cima : internasais muito mais curtas do
que as prefrontais ;
(1) G. A. Boulanger — Cat. of Snakcs. 1896. III pp. 412-414.
cm
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40
2. — Sinfisal separada das mentais anteriores pelo 1" par de
infralabiais ; nasal posterior contigua à preocular ;
c. — Ôlho mais curto do que sua distância da bôea (no adulto) ;
frontal mais curta do que as parietais, que são mais longas
(nem que seja ligeiramente) do que sua distância das inter-
nasais :
p. — Anal dividida (muito raramente inteira) ;
**, — Focinho obtusamente arredondado e pouco saliente;
f. — Ventrais 180-240 ; temporal anterior grande e comprida.
Micrurus albicinctus Amaral, além de apresentar caracteres ana¬
tômicos que lhe são peculiares, distingue-se fàcilmente de tôdas as outras
espécies da citada divisão, pelo seu colorido negro bem nítido, regular¬
mente interrompido por anéis estreitos, brancos.
Por esta particularidade de colorido, Micrurus albicinctus afasta-se
francamente das demais espécies brasileiras de Micrurus, que, por pos¬
suírem anéis de côr vermelha mais ou menos acentuada, são, entre nós
vulgarmente conhecidas pelo nome de “Corais venenosas".
C. - Fam. AMBLYCEPHALIDAE
XXVIL - Gen. SIBYNOMORPKUS Fitzinger
44. - SIBYNOMORPHUS CATESBYI (Sentzen)
Um exemplar, colhido ao Norte de Mato-Grosso.
N? 89 — Adulto 2 , com 3 ovos.
E. 13; vertebrais muito mais largas; V. 179; A. 1 ; Subc. 93/93;
preoculares 2; postoculares 2;, supralabiais 9 (5'- e 6’) ; sinfisal
separada das mentais pelo primeiro par de infralabiais ; 4 pares de
mentais, primeiro maior e mais longo do que largo.
Comprimento total 538 mm ; cauda 183 mm.
Colorido.: como o descreve Boulenger.
cm
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— 41 — !
45. — SIBYNOMORPHUS MIKANI (Schlegel)
Um exemplar, colhido em S. Luiz de Cáceres, em julho de 1909.
Ní* 90_ Jovem, com o ventre mutilado e a cauda fragmentada.
E. 15; vertebrais ligeiramente alargadas: V. 145/145 -f n. A. ?
Subc. 50 p. + n, : preocular ausente ; postoculares 2 ; tempo¬
rais 1 + 2 ; supraldbiais 7 (3'‘ e 4’) p sinfisal separada das mentais
pelo primeiro par de infralabiais ; 3 pares de mentais, primeiro tão
longo quanto largo.
Comprimento total 157 mm; cauda 30 mm.
Colorido : dorso pardo-amarelado com faixas transversais e man¬
chas côr de chocolate: ventre manchado de pardo.
XXVIII.
Gen. DIPSAS Laurenti
46. - DIPSAS VARIEGATA (Dm. & Bibr.)
Espécie pouco freqüente.
91 — Adulto 2, com a extremidade da cauda mutilada.
E. 15; vertebrais um pouco mais largas; V. 202; A. 1 ; Subc.
75/75 + n.; supralabiais 10 (4’, 5'^ e 6V3", 5'-' e 6’ : à esquerda
a 4'’^ não atinge o rebordo orbitário) ; sinfisal separada das mentais
pelos 2 primeiros, pares de infralabiais ; 2 pares de mentais, mais
largas do que longas.
Comprimento total 660 mm -j- n.; cauda 132 mm n.
Colorido : dorso pardo com faixas transversais anegradas, com¬
pletas ou interrompidas no centro, prolongando-se até os lados das
ventrais; cabeça parda com manchas escuras sôbre as placas frontal
e parietais e no occiput ; ventre amarelo salpicado de pardo.
Nota. — O presente exemplar não tem dentes pterigóideos, caráter
que, tendo sido também encontrado por J. F. Gomes (1) em um
exemplar procedente do Ceará, o levou a mudar a espécie do gênero
Sibynotnorphus para o gênero Dipsas.
(1*) J. F. Gomes — in Rev. Museu Paulista. 1918. t. X. p. 526.
cm
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— 42 —
47. ^ DIPSAS ALBIFRONS (Sauvage)
Um exemplar que apresenta pterigoídeos desdentados.
N? 92 — Adulto $ .
E. 15, vertebrais pouco mais largas; V. 171 ; A., 1 : Subc. 87/87 ;
preocular diminuta, sôbre a frenal; temporais 1 + 2 ; supralabiais
8 (4’ 5» e 6“^) : sinfisal, separada das mentais pelos 2 primeiros
pares de infralabiais ; 3 pares de mentais, todos mais largos do que
longos.
Comprimento total 600 mm ; cauda 183 mm.
Colorido : como no tipo de Sauvage, com diferença que as man¬
chas laterais, intermediárias às faixas transversais do dorso, sâo pouco
visiveis.
D. — Fam. VIPERIDAE
XXIX. - Gen. LACHESIS Daudin
48. - LACHESIS MUTA (Linnaeus)
Um exemplar.
N® 93 — Adulto $, bastante mutilado por grãos de chumbo, na parte an¬
terior da cabeça, dorso e ventre.
E. 35 ; V. 228 ; A. 1 ; Subc. 36/36.
Comprimento total 1.740 mm -j- n. ; cauda 174 mm.
Nota. — Êste exemplar, que já é bem desenvolvido, não é, todavia,
dos maiores que tenho visto, pois entre êstes há, na coleção do Instituto
Butantan, um’com 2m.520 que obtive, em 25 de agosto de 1921, do
Sr. Francisco Lopes Martins, agricultor em Cametá, Estado do Pará.
cm
■SciELO'
0 11 12 13 14 15 le
— 43 —
XXX. -- Gcn. BOTHROPS Wagler
49. — BOTHROPS ATROX (Linnaeus)
Cinco exemplares, todos com escamas de carina alta e curta e com 7/7
supralabiais, caráter que, conforme assinalei em publicação anterior ('),
é dos mais constantes e serve para a distinção da espécie.
50. — BOTHROPS CASTELNAUDI Dm. & Bibr.
Espécie muito rara, de que ainda não encontrei exemplar em outra
qualquer coleção brasileira.
N? 99 — Jovem.
E. 25: fortemente carinadas ; V. 224; A. 1 ; Subc. 71, tôdas inteiras.
Cinco escamas entre as supraoculares que são bem grandes ; tem¬
porais carinadas : postoculares 3 : subocular 1, separada das supra¬
labiais por 1 série de escamas ; supralabiais 8, 2“ formando a borda
anterior do buraco lacrimal.
Comprimento total 300 mm ; cauda 53 mm.
Colorido : dorso cinzento com faixas transversais e manchas es¬
curas de bordas claras ; cabeça cinzenta com manchas negras, das quais
a mais nítida está no meio do focinho ; faixa escura da órbita à comissura
labial: ventre pardo, pintado de amarelo claro ; sôbre os lados das ven-
trais, manchas amarelas nítidas, espaçadas e estendendo-se até a 3'^ série
de escamas dorsais.
(1) A. Amaral — «Contribuição para o conhecimento dos ofidios do Brasil» — I; in
Anexos das Memórias do Instituto de Butantan. S. Ofiologia. 1921. p. 35 c p. 79.
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1948
IMPRENSA NACIONAL
RIO DE JANEIRO — BRASIL
SciELO
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
PUBLICAÇÃO N.° 86
t/a Comissão Rondon
PELO ÍNDIO E PELA SUA
PROTEÇÃO OFICIAL
Trabalho organizado pelo então diretor do Serviço de
Proteção aos Índios
LUIZ BUENO HORTA BARBOSA
1 edição: 1923
2.* edição autorizada pelo C. N. P. I, em 1946
1947
IMPRENSA NACIONAL
RIO DB JANEIRO — BRASIL
SciELO
LO 11 12 13 14 15 16
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
PUBLICAÇÃO N.» 86
da Comissão Rondon
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ú h. X ij
PELO índio E pela SUA
PROTEÇÃO OFICIAL
Trabalho organizado pelo então diretor do Serviço de
Proteção aos Índios
LUIZ BUENO HORTA BARBOSA
edição: 1923
2.“ edição autorizada peio C. N. P. I. em 1946
vBIBlIOIECl'’?
da
1947
lIViPRENSA NACIONAL
RIO DE JANEIRO — ERASIL
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í N 1) [ C E
Págs.
Exposição ain-escntacla ao Alinislro da Afíricultura l)r. Aligud Calmou
du L’iu c Almeida pclo C)ii-ctor do S.l’.l.. em Janeiro de 1923.... 3
“Comissão Rondou" na Ex])osição do Centenário da Independência em
1922.;. 43
I)iscur.so do Cencral RondíJii ao inaugurar a Exposição. 43
Resumo do di.scur.so do Sr. Ministro Calmou em resposta. 50
Ralavras do Rre.sidente da República I)r. Arthur da Silva Remardes.... 52
Em J)efcsa do índio — Arúgo do lupefenheiro-militar Coronel Alipio T?an-
deira, comentando o discur.so de um Deputado, publicado no Diáriif
do Congresso de 27-Xi 1-1922 .. 53
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1 <;
^llIBLIOT£Cl%
*♦ —"— %
JIm discurso ultinuimcntc ])ronuncia(Io na Câmara dos l.)c-
putados c rc])roduzido no Diário do Congresso de 27 de
dezemro ( de 1922), \'eio patentear quão profundo e exten-
sf) é entre nós o desconhecimento de todos os assuntos (|ue se relacio¬
nam com a natureza e a situaícão do problema indigena e com o (|ue
tem feito o governo para resolvê-lo, ])or intermédio da re])arti(;ão desti¬
nada a tal fim. Daí nasceu a idéia desta exposição, na (|ual se com¬
pila em breve notícia uma relação dos trabalhos mais salientes reali¬
zados pelo deiiartamcnto infblico de Proteção aos índios, e reedita-se,
mais uma vez, a enumeração de fatos e depoimentos de i)essoas com¬
petentes que refutam in liminc as falsas e desumanas teorias que
servem de base às asserções dos que pedem o xtermínio dos filtimos
rpresentantes das tribos autóctones do Brasil.
No duplo intuito de registar com a possível exatidão a natureza
e o feitio das acusações contra o íserviço e o índio, e de adotar um
roteiro para a presente explanação, transcrevem-se do mencionado dis¬
curso os trechos mais característicos, cpie passam assim a figurar como
ejMgrafes das respectivas refutações.
“Repto. Vh Ex.'ó disse o orador em resposta a um seu aparte-
ante, a mostrar que serviço a comissão de i)roteção aos índios tenha
])roduzido, de fato, e possa merecer a consideração do país (jue i)or
êle tanto se sacrifica”. E pouco depois, talvez i)ara mais acentuar o
seu pensamento de absoluta condenação ao injustiçado Serviço, afir¬
ma: “Serviço fictício, serviço de que a Nação não tem conhecimento”.
No entanto, o que se devia esperar é que a Nação tivesse conheci¬
mento dessa rei)artição e dos serviços por ela prestados, porque a
ambos fazem constantes referências .as mensagens presidenciais de
inauguração dos trabalhos parlamentares; a ambos referiu-se, a 15'
de novembro idtimo, a mensagem do Dr. Epitácio Pessoa, encerran¬
do o seu período governamental; a ambos referem-se, com maiores
detalhes, os relatórios anuais do inistério da Agricultura, além de
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outros trabalhos que têiu sido publicados no Diário Oficial c mesmo
no Diário do Congresso, como se verificou, em 1921, com o parecer
apresentado pelo Dr. Justo Chermont, relator do orçamento da Agri¬
cultura, parecer no qual o ilustre Senador Paraense reuniu valiosos
dados sôbre o que tem realizado o Serviço no interior dos Estados em
que está funcionando e enumerou os meios de que êle precisa para
estender os benefícios de sua ação às populações indigenas das demais
unidades da República.
Essas e outras fontes de informação bastaram para fazer o Ser¬
viço de índios conhecido no estrangeiro, como o atesta a mensagem
Presidencial de 1913 ao Congresso Nacional, nestes tênnos: “Pelo
órgão de cientistas notáveis, bem como no seio do congresso das raças,
reunido em Londres, foi o mesmo Serviço apreciado com os mais
francos aplausos, a que se juntaram, depois, as manifestações da im¬
prensa daquela capital, de Berlim e Paris, pelos seus representantes
mais autorizados, sendo por éstes o nobre procedimento do Brasil
])ara com os seus primitivos habitantes apontado como um exemplo
a ser imitado, para honra da civilização universal, por todos os i)aíses
onde ainda existem índios selvagens'’.
Pouco tempo depois destas manifestações provocadas pelas con¬
clusões do Congresso Lhiiversal das Raças, levantou-se em Europa
enorme clamor contra as atrocidades inflingidas aos índios ])eruanos
do Putomayo, conforme o que a respeito apurou uma Comissão Par¬
lamentar nomeada pelo governo britânico. Então mais uma vez o
nome do Brasil apareceu cercado pelas simpatias do mundo civilizado,
por se verificar que no seu território a situação do selvícola era in¬
teiramente diversa da cpie se encontrava no Peru e que o aborígene
brasileiro recebia dos poderes públicos de sua Pátria, por um serviço
permanete constituído para tal fim. proteção eficaz e bastante para
tornar im])ossível que êle fôsse vítima de cenas tão dolorosas como
as registadas no Putoma\’o. Houve mesmo o projeto de organizar-
-se uma Comissão Internacional para intervir naquele território em
defesa dos míseros íncolas, e ao que parece tal projeto deixou de ser
realizado só por não ter podido o então Coronel Rondon aceitar o
convite que lhe foi transmitido pelo nosso Ministério do Exterior
para ser um dos membros daquela Comissão.
Desses grandes acontecimentos foram eco (js telegramas publi¬
cados em 10 e 17 de agosto de 1913 pelo Jornal do Comércio, o pri¬
meiro procedente de Londres e o outro de Berlim. Dizia o primeiro:
‘A imi)rensa inglêsa publica hoje uma nota de caráter oficioso a pro-
posito da questão de Putomayo, na qual se lembram vários alvitres
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para evitar a rei)etição de talos análogos aos ((ue recenteinente foram
denunciados. Ifntre êsses alvitres faz-se especial menção da orientação
seguida pelo ílrasil a res])eito dos indios (|ue habitam o ,seu território,
tecendo-se calorosos elogios à forma ])or(|ue êsses serviços são exe¬
cutados n.a competente re])artição do Ministério da Agricultura”.
Dizia o segundo: “Jlerlim. A maior ])arte dos jornais publica
a comunicação dirigida à Legação Brasileira em Berlim a respeito do
tratamento dos indios no Brasil, cuja organização elogiam, conside-
rando-a muito i>erfeita’'.
Comentando êstes fatos, um escrito l)ublicado no Diário Oficial
do ano imediato, continha o seguinte: “Bastou-nos o ter podido scr
feita essa excei>ção no momento conveniente (a de sermos .um pais
em que o índio é ])rotegido em vez de ser i)erseguido) ])ara re.sguardar
de graves ])reiuizos uma das nossas princi])ai.s produçoes, ])ois que
alguns fabricantes alemães já haviam anunciado não comijrar a bor¬
racha produzida pelos seringais do ILitomayo, em (juanto os criminosos
denunciados não fôssem punidos. Se não fosse essa oportuna res¬
salva. certamente a insinuação feita pela Comissão Parlamentar In¬
glesa teria sido ex])lorada em nosso detrimento, em virtude de não se
terem ainda tornado bastante conhecidas de todos as conepustas es-
])cciais já realizadas pela nossa administração politica a êsse respeito”.
Muito mais recentemente, um jornal dos Estados Unidos: o Na¬
tional Geographic Magazine, citado pelo Brazilian American, número
comemorativo do Centenário da nossa Jndependêmeia, e.screcia: “Du¬
rante 33 anos o General Rondon trabalhou no longiiupio sertão . . .
Alas, o seu serviço mais meritório é sem dúvida o ejue êle realizou como
Diretor do Serviço de Proteção aos índios do Brasil, cargo no qual
a sua jjolítica de não hostilizar os índios, nem em re|)resália, e de usar
com êles de brandura, grangeou a sua amizade, preservou a sua civi¬
lização e constituiu o c|ue ])ôde chamar “a maior conser\-ação de abo¬
rígenes realizada no Nov'o Mundo de nossos dias .
K o Dr. Gilberto Grosvenor, presidente da Sociedade Nacional
de Geografia de New-York, comunicando ao mesmo general ter sido
o seu nome incluído na lista dos sócios honorários daquela cori)oração,
escreveu-lhe:
“Sinto-me feliz por ser de minhas atribuições informar- vos (jue
a Sociedade Nacional de Geografia, pelo seu corpo administrativo,
tendo em vista os esplêndidos serviços ])restados á civilização pela
vossa obra com e a favor dos al)origenes do Brasil, resolveu incluir-
-vos entre os seus sócios honorários .
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Se no estrangeiro o nosso Serviço de índios é assim conhecido e
estimado como um “exemplo a ser imitado, para honra da civilização
universar’, como poderia êle ser desconhecido da Nação e não merecer
a consideração do País? O mais provável é que tal desconhecimento,
e os sentimentos dêle decorrentes, só por ilusão tenham sido atribuídos
à coletividade Brasileira, e isso [)elo risco a que estão expostas as pes¬
soas que falam em nome de terceiros, de supor que sejam do comitente
noções e modos de ver e de sentir que na verdade lhes são privativos.
A realidade é que os moradores do interior, aos quais mais dire¬
tamente interessa a ação do Serviço de índios, têm perfeito conhe¬
cimento da sua existência e para êle apelam sempre que os assalta al¬
guma provação ou precisam de lenitivo para grandes necessidades e
aflições. Ainda agora, dentro do espaço de um mês. três pedidos vie¬
ram de pontos diferentes do interior, solicitando a proteção oficial do
Serviço para grupos de populações que se viam ameaçadas em suas
propriedades e liberdades. A mais recente delas i)rocedia de longínquo
sertão de Pernambuco, onde nunca se manifestara a ação do Serviço
mas onde nem por isso deixou de chegar a noticia da sua existência e
da eficácia da sua operosidade. E foi um sacerdote católico quem se
dirigiu, em fervoroso apêlo, ao General Rondou, rogando-lhe que es¬
tenda a proteção oficial de sua obra até àquele ponto do país e assim
corra em defesa dos legítimos interesses e dos direitos de um grupo de
pacíficos e laboriosos Carijó, agora ameaçados e perseguidos por
prepotentes senhores que lhes querem tomar as terras e os bens.
Dos outros dois pedidos, o primeiro referia-se ainda à defesa da
propriedade territorial de índios, e nos vinha da Paraíba do Norte; o
segundo, á i)erseguição e prisão injusta de alguns indivíduos, reali¬
zada ix)r autoridades públicas de outro Estado.
Como êstes, muitos outros casos podem ser citados para provar
quanta injustiça há na afirmativa de (pie a Nação não tem conheci¬
mento do Serviço e que êste não merece a consideração do país. E
como jioderia' ser isto verdade, em relação a um departamento público
(pie tem realizado, por quase todos os recantos do interior, numerosos
e memoráveis trabalhos, de muitos dos quais Resultaram profundas
modificações no asiiecto geral de \-astos territórios, que em poucos anos
perderam a aparência (pie tinham de sertões selváticos e se transfor¬
maram em regiões cobertas de povoados, de lavouras, de fábricas, de
tòda a férvida atixidade da vida civilizada?
Foi assim em São Paulo, no sertão hoje cortado pela estrada de
Ferro Noroeste do Brasil, habitado pela tribo guerreira dos Cain-
gangiies. Êsses índiQS, sob o nome de Coroados, infundiam tão grande
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terror que, em 1910, ao se fundar o Serviço de Proteção, o Ministro
da "Viação sustentava, em reuniões ministeriais, presididas pelo Pre¬
sidente da República, que o governo tinha de escolher entre a alter¬
nativa de enviar uma grande fôrça do exército para os bater e exter¬
minar ou consentir na proposta da empresa construtora de suspender
as obras de que se achava encarregada. A situação de ameaça contra
a vida dos trabalhadores e dos engenheiros, contra a segurança dos
P'ens, da linha e das obras de arte era tão grave que uni senador da
República, o Dr. Vitorino iSIonteiro, em conferência com o Chefe
da Nação, e pelos jornais, pedia a urgente intervenção da fôrça pública
para reprimir as hostilidades dos selvícolas e evitar as mortes e preiui-
^os que de outra maneira pareciam irremovíveis.
Foi, sob a pressão destes acontecimentos e do nervosismo pú- •
blico por êles causado, que o Serviço encetou os seus trabalhos na¬
quele sertão, em fins de 1910. Ein 1911, conseguiu ele suprimir as
dadas” contra os índios, isto é, as expedições organizadas por aven¬
tureiros mercenários, contratados para irem ao interior das matas em
busca dos selvícolas e exterminá-los em suas aldeias: lógo de])ois, e
como conseqüência disso, virain-se cessar as correrias dos índios contra
^ Estrada, cujos trabalhos se puderam continuar sem nov.as pertur¬
bações. Ao começar o ano imediato, 1912, completava-se a pacifi¬
cação desses selvícolas, pelas relações amistosas que se entabolarani
entre êles e os empregados do Serviço de Proteção, que para êste
fim viviam, havia mais de dez meses, no meio da floresta virgem, em
1 anchos de pau a pique cobertos de folhas de coqueiro, expostos a pe¬
rigos, privações e sacrifícios que dificilmente se podem imaginar e
rjtais dificilmente se podem descrever.
. A conseqüência imediata de tão grande triunfo da ação e dos mé¬
todos do Serviço de Proteção foi a abertura à atividade da nossa civi-
bzação de um território que tinha de frente, ao longo da estrada de
Ferro Noroeste, perto de 300 km e de fundo tôda a zona compreen-
<fida desde o Tietê até o rio Feio (Agtiapei), dêste até o rio do Peixe,
c, em grande parte, daí à margem do Paranapanema. Lugares ser¬
vidos i)or estações daquela estrada, como Presidente Alves, Legru, Pe-
nápolis, Glicério, Araçatuba e Berigui, que se não desenvolviam nem
povoavam, em quanto se sentiam ameaçados pelos índios, tomaram de
i'epente esplêndido e maravilhoso surto: em pouco tempo levantaram¬
-se verdadeiras cidades, iluminadas a luz elétrica, servidas por telefo-
ues públicos, por boas estr?.das de automovel; fundaram-se enormes
plantações de café, de cana de açúcar e de cereais até nas longínquas
paragens que ficam além do rio Feio, onde ninguém se atrevia a ir e
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não foi antes dos empregados do Serviço. A construção do prolonga¬
mento da Sorocabana até Pôrto Tibiriçá, sôbre o rio Paraná, ao longo
do sertão compreendido entre o Peixe e o Paranapanema, pôde, igual¬
mente, terminar-se sem nenhuma das perturbações que o govêrno do
Estado esperava da parte dos Caingangue, e êsse sertão se vai ràpida-
mente povoando e enriquecendo com lavouras de tôda a espécie, tudo
pacificamente conseguido, como resultado da obra realizada pelo Ser¬
viço de Proteção aos índios.
Idênticos a êstes, foram os resultados alcançados no município
de Blumenau e no território de Palmas, Estado de Santa Catarina,
com a pacificação dos Botocudo, cujas hostilidades, ora exercidas,
ora sofridas da i>arté dos colonos alemães, invasores de suas terras,
levantavam constantes celeumas na imprensa de Berlim e de Viena,
nas quais ao nosso país e ao nosso govêrno nunca faltaram os mais
atrevidos doestos e apodos .
Como êstes, podem ser citados outros insignes serviços prestados
à pacificação de vastas regiões do pais pela Proteção aos índios.
Pertence a êste número a intervenção pela qual ficaram definitiva¬
mente suprimidos, desde 1911 até hoje, os conflitos que dantes exis¬
tiam entre os Aimoré e uma colônia italiana de São iMateus, no Es¬
tado do Espírito Santo; a abertura do rio Jauaperi, no Amazonas, à
navegação e consequente aproveitamento econômico de suas riquezas
naturais, o que era vedado pela tribo guerreira que povoa as suas
matas; a possibilidade que se criou de explorar as matas de poaia,
entre os rios Sepotuba e Paraguai, em IMato-Grosso, pela aquietação
das correrias guerreiras da tribo dos Barbado, (*) que nelas habita; a
travessia e as entradas pacíficas que pela primeira vez puderam rea¬
lizar os empregados do Serviço na ilha do Bananal, no Araguaia,
graças ao entendimento com os Ja.vaé e Tapirapé; os trabalhos, que
neste instante mesmo se estão terminando, de transformação em pa¬
cífica da tribo guerreira, dos Parintintim, cujos assaltos ainda enchem
de pavor extensas regiões, cobertas de seringais e de castanhais, do
iMadeira e de seus afluentes; a dos Caingangue do rio Laranjinha, no
Paraná; a dos Cajabi, das cabeceiras do Tapajós. E isto sem falar
nas numerosas tribos trazidas a relações pacíficas com a nossa gente
e a nossa civilização, ao longo da Linha Telegráfica construída pelo
General Rondon, como os Nhambiquara, os Quêpi-quiri-uáte, os Ari-
quême, etc.; e outras junto às quais os trabalhos tiveram de ser inter¬
rompidos, por falta de recursos Orçamentários, depois de terem custado
(*) ^^ais tarde identificados à denomniação de Umutina, na sua própria língua.
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a dedicados auxiliares do Serviço de Proteção extrênuos esforços e
incalculáveis sacrifícios, como foi o caso da tribo dos Urubu, no
Estado do Maranhão, pela qual tanto se devotou o saudoso Major
Pedro Ribeiro Dantas, e o dos Patacho, do Jequetinhonha, no Estado
da Bahia.
Acabamos assim de citar os nomes de diversas tribos guerreiras
que o Serviço de índios, afrontando e vencendo inúmeros perig-os,
dificuldades e privações, foi procurar nos mais recônditos sertões do
país, para trazer a relações de amizade com a massa geral do povo
brasileiro, na qual em breve elas desaparecerão, definitivamente as¬
similadas. Foram, portanto, outras tantas regiões do nosso território
onde até então o homem civilizado não pisava, ou só pisava em tom
de guerra, matando e correndo o risco de ser morto — que se abriram
à nossa atividade, à nossa indústria, que se nos tornaram plenamente
conhecidas nos seus acidentes geográficos, nas suas riquezas naturais,
uo seu valor econômico, que, em suma, se incorporaram de fato à vida
da nação brasileira.
E isto corresponde a serviços que nada têm de fictícios e que por
sua vez não puderam ser realizados sem a execução prévia ou con¬
comitante de muitos outros, tão reais como êles, tais como a constru¬
ção de estradas de rodagem, para penetrar e atravessar os sertões que
se devassaram pela primeira vez, das quais algumas satisfazem às con¬
dições exigidas para o tráfego de automóveis; a criação dos meios
de transporte de pessoas e de cargas, por terra e por via fluvial, em-
Pcegando-se nestas, algumas vêzes ,embarcações a vapor ou a motor
de explosão; a derrubada de largos trechos de mata virgem para des¬
bravar a terra e adaptá-la aos trabalhos de lavoura, à formação de
pastos, à construção de casas, à criação de gado e dos vários animais
domésticos; a introdução nesses lugares dos primeiros exemplares de
animais úteis, destinados à procriação; bois, cavalos, jumentos, por¬
cos, cabritos, carneiros, galinhas, pombos, patos, etc.; a introdução
de árvores frutíferas, desde as bananeiras, as laranjeiras e as man¬
gueiras, até os caquis, os pecegueiros e os marmeleiros ; e muitos outros
trabalhos que. não ocorrem, ou seria de fastidiosa enumeração.
Até aqui só temos falado dos trabalhos e obras executados pelo
Serviço nos sertões habitados por tribos que viviam segregadas do
grosso da nação brasileira; mas a êsses devemos juntar os que êle
tem realizado em benefício de extensas populações_ pacíficas de nove ,
Estados, em cujo interior fundou, mantem e administra, na hora pre¬
sente, 35 estabelecimentos diversos, uns simplesmente agrícolas, outros
principalmente pastoris. Nesses estabelecimentos, as populações bra-
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sileiras que nêles vivem, encontram o ensino de primeiras letras; a
melhoria das condições higiênicas de suas moradas, de seus hábitos e
de sua alimentação; ensino dos ofícios de ferraria, carpintaria, selaria,
c outros ^essenciais aos moradores do interior; ensino de música e for¬
necimento dos respectivos instrumentos; nielhoria dos métodos de
trabalho; maior extensão dêsses trabalhos; aprendizagem do manejo
e instalação de máquinas agrárias e das destinadas ao beneficiamento
dos produtos das lavouras ; introdução de reprodutores para melhoria
das criações de gado vaceum, de suínos, de equinos ,de aves, etc.; intro¬
dução de novas espécies de forrageiras nos estabelecimentos especial¬
mente destinados, pela natureza de suas terras, à criação de grandes
rebanhos de bovinos, ou de outras espécies; e criação de novos gêneros
de atividade, como tratamento do bicho da sêda, o cortume de couros,
o aproveitamento de madeiras de lei e dos diversos produtos naturais
das florestas e do solo.
^ ^ ;,k
Estas são as melhorias e os benefícios mais fáceis de serem enu¬
merados e avaliados; mas os de mais alta valia, por entenderem com a
situação moral e intelectual das populações, por lhes ter aperfeiçoado
a constituição íntima da família, por lhes ter dado garantias de vida e
de respeito à sua dignidade de homens, de membros da comunidade
brasileira, de dignificação de suas mulheres e filhas : essas quem as
poderá tornar patentes e suficientemente sensiveis num escrito? Só
quem já conviveu com as nossas populações do interior e teve assim
ocasião de ver como elas vivem por aí expostas e entregues, sm de¬
fesa, a todos os caprichos, opressões e extorsões dos senhores e chefes
de infinitos mátises, que se apossam das terras, e às vêzes do curso
total de rios inteiros; dos cargos municipais e estaduais, que confis¬
cam em seu proveito próprio, bem como das autoridades jjoliciais, dos
tribunais, da justiça pública e das leis : só quem já viu os sofrimentos
de tôda a sorte das nossas populações do interior, e mais principal¬
mente dos índios semi-civilizados, miseros ])árias entre párias, pode
ajuizar todo o valor e alcance da proteção que o Serviço tem dado,
nesses 35 estabelecimentos, a dezenas de milhares de patrícios nossos,
aos quais garante a propriedade das terras, o proveito de suas plan¬
tações e de seus rebanhos, a remuneração de seu trabalho, a garantia
de sua liberdade e até o livramento de mal disfarçada escravidão e de
prisões injustas, feitas umas vêzes para aterrorizar as populações e
outras i)ara desviar do verdadeiro culpado a punição de crimes
nefandos.
\'êm de longe os sofrimentos dessas populações. Em 1862. um
presidente da Província, o Dr. Francisco Carlos de Araújo Brusque,
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compendiando-as em mensagem à assembléia do Pará, dizia: “Rude
embora, o índio ama a família e preza os filhos. Pois bem, é o san¬
tuário da família, é o regaço do amor paternal o terreno em que o
regatão exerce às vêzes a sua mai.s brutal ferocidade. Quando não
seduz a esposa, rapta a filha, e quase sempre arranca do grêmio da
família tenras crianças que, em seu regresso aos povoados, reparte
entre seus comparsas”.
Pois bem, o Serviço dê índios, não se limita a constatar a exis¬
tência dêstes abusos e a lamentar que êles se cometam; mas, entrando
em ação, os vai corrigindo e suprimindo, restituindo às tribos as
crianças e moças delas arrebatadas por sedução ou por violência, e que
vinham trazidas para as cidades com destino a servirem de escravas
ou a serem prostituídas; e obtendo dos juízes e tribunais mandatos de
habeas-corpus pelos quais as autoridades policiais se vêm compelidas
u cumprirem, em relação a êsses patrícios, as leis que lhes garantem a
liberdade individual . E por tal forma se tem levantado o nível moral
das tribos, o seu prestígio e estima no espírito dos sertanejos, que de
dia para dia se tornam mais numerosos e mais freqüentes os casamentos
entre índias e civilizados, coisa que antes do Serviço não havia, poi-
hue entre nós não se compreendia a pobie india senão como concubina.
Tais serviços já são bastante valiosos para não se podei dm idai
ue que a repartição que as vem realizando meieceu a consideração do
país” ; mas para citarmos tudo quanto ela tem executado em benefício
do desenvolvimento material e moral da nação, as dòi es, os sof i i-
uientos, os prejuízos que ela nos tem poupado, sei ia preciso que pu¬
déssemos enumerar cada um dos casos em que a sua ação tem evitado
assaltos, mortes e depredações contra povoados, estradas de f ei ro,
linhas telegráficas, estabelecimentos agrícolas, e até evitado quem o
diria? — que tomassem vulto reclamações diplomáticas que se esboça¬
ram, mas não puderam ir adiante, por ter o Serviço a tempo esclareci¬
do que havia um simples acidente fortuito onde se cjueria in\ entar um
assalto a mão armada. Destas circunstâncias, porém, como fazer o
respectivo çômputo e como realçar, o valor, o alcance de cada aconte¬
cimento cuja ocorrência não se verificou, por ter sido obstada pelo
Serviço? Alguém disse que feliz é o povo que não tem históiia, poi
que êsse não atra\-essou os graves transes de guerras, de incêndios e
de dôres, cuja narrativa constitue a substância dos gloiiosob anais,
-\nàlogamente, os sertões em que a vida e a atividade laboriosa trans¬
correm plàcidamente. dentro das normas da boa disciplina social, não
uiais fornecem matéria para notícias vistosas dos joi nais, pai a citação
de nomes de heróis ou de vítimas, para registo de beneméritas intei -
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venções. Não nos iludamos porem: é exatamente aí que a ação do
Serviço está produzindo os seus melhores frutos, é aí que êle mais me¬
rece a consideração do país e mais reais, menos fitícios trabalhos
executa.
Quem quer de verdade conhecer essa obra e não se contenta com
as informações escritas ou verbais que dela dão os que já a conhecem
e dela tratam, deve seguir o exemplo de um ilustre homem de letras
amazonense, o Sr. Joaquim Gondim, que acaba de fazer imprimir em
Manaus um livro, a que intitulou “Através do Amazonas”, no qual
relata as impressões das viagens (pie realizou, em 1921, pelo interior
do grande Estado do Norte. Nesse livro, há a descrição e numerosas
fotogravuras de nove estabelecimentos diversos, dos mantidos pelo
Serviço de índios em afastadas regiões daquele Estado, alguns em
pontos de fronteira com territórios de outras nações, nos quais o pa¬
vilhão brasileiro só balouça aos ventos pátrios desfraldado pelas mãos
dos empregados da tão malsinada repartição de índios.
Para julgar com inteira justiça esta repartição, é preciso tomar-
-se em consideração, além dos trabalhos e obras que ela administra
atualmente, oütros que iniciou, mas de que teve de abrir mão por
ordem superior, depois de nêles despender somas importantes e muito
esfórço.
O pensamento que presidiu à sua criação foi o de levar ao nosso
interior todos os meios que pudessem contribuir para o seu desenvol¬
vimento e para a mais pronta melhoria possivel das respectivas po¬
pulações. Nós viamos desenrolar-se sob nossos olhos o espetáculo do
contraste profundo que havia entre o modo de serem tratados os tra¬
balhadores rurais provenientes de outras terras e os nascidos na nossa.
Enquanto acjuêles eram acolhidos com afagos e amparo nas colônias
agrícolas, onde o governo proporcionava-lhcs meios e facilidades de
angariarem terra, boa morada, instrução para os filhos, etc., estes
jaziam no meio de sua imensa miséria, inteiramente esquecidos de
tòda e qualquer proteção oficial.
O Ministério da Agricultura tratou de dar remédio a tão extra¬
vagante situação, encarregando ao mesmo Serviço de cuidar do índio
e do trabalhador nacional; por isso a denominação dêste departa¬
mento era composta e indicava o duplo fim a que se propunha : pro¬
teger o aborigene e localizar, em terras que se tornariam de sua pro¬
priedade, os caipiras, os roceiros, os caboclos, a gente, enfim, em que
se vieram transformando os índios brasileiros e em que se hão de
transform.ar os que ainda hoje existem pelos nossos sertões.
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loir niissão, o Serviço tratou de fundar, de
idlO a 1914, um Centro Agrícola ein cada um dos oito Estados se¬
guintes: Maranhao, Piauí, Paraíba do Eiorte, Pernambuco, Alao-oas
Sergipe, Bahia e Rio Grande do Sul. A área total destinada a êsses
estabelecimentos subia a 10.170 hectares e êles podiam abrigar uma
população de 2.710 famílias. Das terras destinadas a tal fim, umas
foram adquiridas, em todo ou em parte, pelo Ministério da Agricultura,
com recursos tirados das verbas do Serviço; outras foram doadas
pelos respectivos governos locais.
Os trabalhos que o Serviço chegou a executar nesses estabeleci-
nientos, variaram desde os preliminares levantamentos topográficos,
que foram realizados em todos, até a divisão e demarcação dos lotes
destinados a cada família de colonos; abertura de caminhos; drena¬
gem do solo, para fins higiênicos e econômicos; desobstrução de rios;
instalação de máquinas para beneficiamento de produtos de lavoura;
construção de casas, etc.
De]K)is de 1914 essa parte da primitiva repartição foi desmem¬
brada do Serviço de Porteção aos índios e passou para o Povoamento
do Solo; mas, enquanto existirem, aqueles estabelecimentos serão outros
tantos atestados vivos do que tem sido a operosidade do Serviço^ de
índios em todos 05 pontos do interior do país onde lhe foi possível
agfrem por lhe terem sido dados para isso os meios necessários.
Outro trabalho a que se destinava o Serviço e par acuja reali¬
zação êle se aparelhou mediante a aquisição de valiosíssimo material,
é o de recolhimento de dados para a organização da carta itinerária
da República. Para preencher êsse fim, os organizadores da repar¬
tição, tendo à frente o General Rondon, proveram os principais lu¬
gares das Inspertorias nos Estados com engenheiros op agrimensores,
‘'los quais incumbia proceder aos levantamentos, expeditos ou precisos,
de acòrdo com as circunstâncias do momento, dos rios e caminhos por
onde passassem, quer fossem em demanda dos sertões para os reco¬
nhecer e explorar, quer em visita a tribos indígenas.
A êsses trabalhos filiavam-se os concernentes à demarcação e
niedição das terras que já pertenciam aos índios, ou das que viessem
^ ser adquiridas para êles, por doação ou por qualquer outra forma.
esta parte do seu programa, o Serviço tem continuado a prover,
npesar das dificuldades de todo gênero com que há de arrostar para
desobrigar-se de semelhante dever. Tais dificuldades nascem, em pri¬
meiro lugar, da quase absoluta insuficiência das verbas do Serviço,
das quais se há de tirar tudo quanto é precisa para todos os trabalhos
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a que êle ni^ta ombros; em segundo lugar, cia falta de funcionários de
que se ressente a i epai tição, depois que foi privada da grande maioria
dos que a serciam nas Inspctorias; e em terceiro lugar pela inconce¬
bível compreensão que os governos estaduais têm, ou afetam ter, do
que sao as nossas leis e os nossos princípios morais quando aplicados
aos índios.
Para que se veja até que ponto as autoridades estaduais se con¬
sideram desobrigadas de todo o dever de reconhecer e respeitar a pro¬
priedade das tribos e de acatar os compromissos contraídos com elas
ou em nome delas, basta citar os dois casos seguintes :
Num Estado do Sul, o Congresso decretou e o executivo sancio¬
nou uma lei que prescreve os meios a serem empregados para tirar á
um grupo de índios umas terras em que êles vivem há seguramente
74 anos ; c|ue lhes foram doadas por um particular, segundo consta de
documento público conhecido e ctue anda citado em papéis oficiais re¬
centes ; e nas quais o Serviço federal se acha estabelecido e empregando
dinheiros públicos, £m construção de casas, montagem de máquinas,
manutenção de escolas, etc., há mais de dez anos seguidos! (*)
Noutro Estado, êste do' Norte, o Congresso e o executivo fazem
uma lei pela qual são declaradas nulas e insubsistentes as doações de
vários lotes de terras, realizadas a favor de algumas tribos, na vi¬
gência de outra lei. E é para.notar que, na medição, demarcação
e levantamentos topográficos dessas terras, havia a Repartição fe¬
deral, devidamente autorizada pelo govêrno estadual, despendido im¬
portantes quantias dos seus orçamentos, durante vários anos: e que
os trabalhos assim realizados já haviam sido julgados e homologados
pelo govêrno do Estado, por atos especiais, de diferentes datas.
Assim, pois.’ temos o exemplo de não serem acatados pelos Estados
trabalhos federais executados nos seus territórios, a custa de grandes
sacrifícios de dinheiro e de pessoal, na boa fé de concessões consigna¬
das em leis dos mesmos Estados, leis baixadas especialmente para au¬
torizarem êsses mesmos trabalhos.
No sul, para despojarem os indios. alegam que êles são poucos e '
que a propriedade visada é grande de mais; no norte, apegain-se a
miseráveis pretextos de forma no processo das medições, como se estas
já não tivessem sido julgadas e homologadas, havia vários anos. pela
(*) Trata-se do Estado do Paraná e da generosa doação feita aos indios ainda ao
tem^ da monarquia, pelo saudoso Barão de Antonina - questão irritante que só póde ser
reMa em 194o, segundo dispositivos do Decreto-Lei n.» 7.692, de 30 de junho- CX PI '
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autoridade competente: mas o motivo verdadeiro, sabido de todos, é
que entre as terras assim reservadas para os índios, há uma coberta de
castanhais, para a qual se viraram as vistas cubiçosas de certo poten¬
tado.
Vemos, por êstes exemplos, que no Brasil os indios só podem
guardar o que é seu em quanto o que possuem é bastante miserável
para não ser cubiçado jior algum magnata. Noutros países, é exata¬
mente o contrário: se acontece descobrir-se alguma fonte de riqueza
em ])ropriedade de indios, aí é que o governo acode para dar-lhes ga-
'rantias contra possíveis esbulhos.
Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, segundo refere F.
f-eupj), a descoberta, no território dos Choctaw e Chickasaw, de cêrca
de meio milhão de geiras de terras contendo carvão, petróleo e as¬
falto, determinou que essas terras fossem medidas e excluídas do nú¬
mero das que jiodem ser arrendadas a civilizados: são conservadas
coni^propriedade das duas nações e o Governo as tem administrado
cm benefício delas.
IMas já é tempo de passarmos a outro ponto do discurso (lue deu
^'agar à presente exposição. Tomemos pois o seguinte trecho:
‘'Êsse Serviço de Proteção aos Indios, conta com verbas tão
iaustosas que chegam a causar-nos irritação .
Neste terreno, parece que o melhor caminho a seguir é comparar
as Verbas qualificadas de faustosas, com as destinadas a idêntico fim
cm outros orçamentos.
Ora, o orçamento cuja discussão na Gamara dos Deputados deu
Ocasião ao discurso que nos ocupa, consigna para a despesa total da
l^epública, em 1923, as quantias de 797.526 contos papel, e 88.482
contos ouro . Convertido tudo a papel, pelo cambio vigente, encontra-se
que o orçamento dá para a despesa autorizada no cori ente ano mais
de um milhão e duzentos mil contos.
Nesse total a verha do Serviço de Pioteçao aos índios figuia
com a parcela de 1.060 contos. Esta quantia é muito menor do que
^ milésima jiarte do valor total do orçamento da despesa.
Agora, jiara fazermos uma idéia do que isto significa, lecor-
í'amos ao último orçamento do Império . A desjiesa foi oi çada para.
1889, lei 3.397 de 24 de novembro de 1888. em 153.148 contos.
Ora, êsse orçamento consigna a verba de 220 contos para a
Catequese, a qual constava de alguns serviços especificados nas pio-
cíncias de Alato-Grosso e de Goiaz, e de auxílio paia um asilo de me-
íiinos- indígenas cm Belém do Pará.
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Procurando, como precedentemente, a relação por quociente entre
esta verba e o respectivo orçamento, achamos que ela é maior do que
um setecentos avos dêste.
Assim, pois, o Brasil, no tempo do Império gastava, só com al¬
gumas poucas tribos indígenas de duas de suas províncias, e com um.
serviço restrito na capital de outro, muito mais do seu orçamento, do
que a República consigna dos seus, nos dias de hoje, para atender às
necessidades de tôdas as tribos do seu território. Com aqueles sete¬
centos avos do seu orçamento, o Império não mantinha nenhum serviço
propriamente público, não sustentava nenhum estabelecimento nacional ;
subsidiava, apenas, ou auxiliava obras e fundações realizadas à custa
de outros fundos. Com muito menos do que a milésima parte do seu
orçamento, o Brasil de 1923 sustenta um serviço público; mantém 35
estabelecimentos diversos em vários Estados; administra, conserva e
melhora grandes propriedades do patrimônio nacional, como as fa¬
zendas do Rio Branco : realiza obras públicas de valor, como a cons-_
trução de estradas de rodagem, desobstrução de rios, para os tornar
navegáveis; aumenta o patrimônio nacional pela construção de casas,
aquisição de máquinas, de embarcações^ etc.
Tomando outro ponto de vista para esta comparação entre os
dois orçamentos, diremos.que em cada grupo de dez mil contos de
despesa geral da República, ela destina oito contos e oitocentos mil
réis para a Proteção aos índios; ao passo que o Império, de cada grupo
de dez mil contos de sua despesa, dava treze contos. Daí resulta que,
se a República guardasse em 1923 a mesma proporção de que usou o
Império em 1889, ela destacaria agora, do seu orçamento de 1.200.000
contos ,a quantia de 1. 560 contos só para trabalhos em dóis Estados.
Como, porém, o atual Serviço de índios estende a sua ação efetiva por
nove Estados, e ríão vai além por falta de recursos que incessantemente
pede, segue-se que a sua verba, em nossos dias. só para alcançar pro¬
porcionalmente ao cpe era no fim do Império, devia ser de mais de
7.000 contos. E seguramente que ainda seria deficiente, pois muito
há que fazer no Amazonas, em IMato Grosso, no Paraná, em Santa
Catarina, e tudo em Pará, Acre, Alto-Purus, Alto-Juruá, Goiaz e
outros pontos do território nacional .
Agora, o que poderemos dizer do qualificativo de faustosa dado
a essa verba de mil e sessenta contos destinada ao Serviço de índios
do Brasil em 1923 ? Teremos coragem de aproximá-la das somas que,
para análogo fim, consignam os orçamentos dos Estados Unidos e do
Canadá? Façamo-lo, por dever de ofício.
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>■■ .Ai
tribo recentemente pacificada
índios de Mato-Grosso, de
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Francis Leupp, antigo Comissário dos Negócios dos índios dos
Estados Unidos, no seu livro intitulado — The Indian and his problem
escreveu o seguinte:
“O governo tem presentemente consciência
da obrigação que lhe cabe em relação a êste povo que êle tomou sob
sua proteção. Por isso, a mesquinha verba de 10.000 dólares que foi,
até 1830, destinada à educação dos índios, veio aumentando até alcançar
a 100.000 dólares em 1870, e o orçamento escolar, continuando a
crescer com firmeza desde então, importa agora em cerca de quatro
milhões de dólares — (amounts to about four milions dollars)—”.
Convertida para moeda em que se exprime a verba total do Ser-
ciço de índios do Brasil, ao câmbio em vigor, achamos que, só para
d educação, os índios dos Estados Unidos recebem do governo de sua
Eátria quantia superior a 34.000 contos.
É preciso, além disso, ter presente que, de acordo com os números
publicados no citado livro de Francis Leupp, a população indígena dos
Estados Unidos quando muito atingirá a 300 mil pessoas; a do Brasil,
segundo a estimativa do General Rondon. subirá a um milhão e qui¬
nhentos mil.
Além disto, o índio do Brasil, todo o mundo está farto de saber,
é a expressão mais acabada do homem pobre, do homem despido de
tôda a sorte de propriedades e de bens. Em contraposição a isto: “os
livros do Tesouro dos Estados Unidos (F. Leupp, ob. cit.), mostram
que os fundos fiduciários depositados nêle a crédito, de muitas tribos,
íormam um total de cêrca de 35.000.000 dólares, e produzem uma
venda anual, na taxa de 4 a 5 por cento, superior a 1.800.000 dólares...
São os frutos das negociações de todo o gênero, com o Govêrno, desde
1837 até o presente. As vêzes o Govêrno induziu um grupo de índios
a inudar-se das terras que êles estavam ocupando e conseguio que trans¬
ladassem as suas residências para lugares prèviamente escolhidos,
obrigando-se a compensá-los com uma soma determinada; outras vê-
zes, o govêrno comprou parte de suas terras, e depositou o preço da
compra no tesouro em benefício da tribo.
^‘Há ainda duas fontes de renda para os aborígenes.
“No primeiro grupo entram as somas anualmente votadas pelo
Congresso para o sustento das tribos que não possuem fundos, ou
cojos fundos são insuficientes para as suas necessidades.
“O segundo grupo baseia-se eih negócios: procede dos produtos
de arrendamentos de terra das tribos; vendas de gado criado por f^m-
Pjegados brancos do govêrno em fazendas da tribo (estas fazendas
^ão propriedades fora dos grandes domíminos chamados reservations );
■^■enda de lotes de terras das tribos, contíguas ou próximas às cidades;
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venda de pedra, de madeira e do direito de caminho; além dos bônus
e foros de arrendamento de jazidas de ferro, de carvão, de asfalto, de
petróleo, e assim por diante'’.
Compreende-se assim como é possi\'el verificar-se nos Estados
Unidos o que F. Leupp, diz da tribo dos Osagos: “Xa verdade, êles
são o povo mais rico do mundo: se todas as coisas que lhes pertencem
fòssem vendidas, e distribuído per capita o valor da venda, cada homem,
mulher e criança, receberia provavelmente de 35 mil a 40 mil dó¬
lares” . ,
Pois, tão grandes recursos não impedem que repartições i)úblicas
venham empregar nas propriedades desses índios somas vultosas,
em obras que redundam em enormes benefícios para essas populações
de ricaços. É o que se infere de um discurso proferido na Câmara,
pelo deputado Ildefonso Albano:
“U^m dos atos mais meritórios, disse êle, do Reclamation Service,
é a construção de obras de irrigação para os índios. Assim os dire¬
tores dêsse serviço entraram em acôrdo com o Indian Department
em 1907 e já executaram várias obras irrigatórias p,ara os indígenas.
Xas terras reservadas aos índios Rlackfeet. no iMontona, estão exe¬
cutadas e em \ias de execução cinco obras dè irrigação, os canais
Cutbank, norte e sul, o canal Two IMadicine. o Badger-Fisher e o
P)ird-Creek, destinado a irrigar cêrea de 120.000 ares (48.000
hectares) .
“Também no Montana, nas reservas dos índios Flat-heat . . .
tenciona a Reclamacion Service construir importantes obras de irri¬
gação. X'^a reserva dos índios Fort-Peck há projetos para 148.000
acres; os trabalhos para irrigação dos tratos de terras ocupadas pelo»
índios Plaia, no Arizona, iá foram cuncluídos”.
Veiamos agora o Canadá, de cujo Departamento dos X’^egócios
dos índios possuímos o relatório referente ao ano de 1918, impresso
por ordem do Parlamento.
Em primeiro lugar, digamos que o total da população indígena
do Canadá é de 105.998 pessoas.
Pois bem, a propriedade pessoal desses índios, em terras, cons¬
truções, veículos, aves domésticas, etc., etc., era de 65.285.112 dólares.
E êles tiveram em 1918 a renda total de 8.418.307,10 de dólares,
para cuja soma concorreram os produtos das fazendas com o valor de
2.834.149; os salários com 2.043.137; as anuidades e juros de fundos
depositados, com 555.628; além de outras rubricas, como arrenda¬
mento de terras, venda de madeiras, etc.
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A esta população o Departamento esforça-se, segundo as suas
próprias palavras, por dar uma tal educação que faça de suas novas
gerações leais cidadãos do Canadá e habilite-os a competir com sucesso
com os seus vizinhos brancos.
Para a consecução de tal fim, o Parlamento deu ao Departamento
a verba de 734.112,33 dólares, ou sejam ao câmbio de agora, mais de
6.377 contos de réis, além de outras consignações, para os demais ser-
■'■'iços que incumbem ao Departamento, e que elevam o seu orçamento
votado no Parlamento, a 1.771.660,49 dólares, isto é, muito mais do
que 15 mil contos de nossa moeda!
Depois de lermos, compararmos e pesarmos estes números, c[ue
'déia poderemos ter de nós mesmos, que achamos faustosa a verba de
1.060 contos destinada a dar tudo, absolutamente tudo, a uma popu¬
lação de um milhão e quinhentas mil pessoas que nada possuem de seu,
nem a terra em que pisam, nem o rio cm que pescam, nem o solo que
lavram ?!
Continuando, o discurso afirma do Serviço que — “êle não é
absolutamente eficiente, não se sabe qual o paradeiro ou localização
dos índios catequizados”.
Os objetivos do Serviço não são assentados ou prescritos ao
capricho de cada imaginação, ao sabor de suas predileções, da maior
ou menor profundidade com que essa imaginação hája examinado
estes assuntos. Ao contrário disso, êles se acham claramente enume¬
rados e condensados no Regulamento que constitue a lei por cujos dis¬
positivos os empregados do Serviço têm de pautar os seus atos, a sua
inter\-enção e a sua operosidade.
Assim, a afirmação de que o Serviço nao tem sido cficicntc. é
perigosamente vaga, porque pode envolver a pretensão de julgar a sua
obra, não a com])arando com o que êle se obrigou a fazer, mas sim
eoni um outro programa que não só êle não aceitou, mas até peren¬
tória e categoricamente rejeitou e condenou.
Precisamos, pois, sair do laço armado pelo vago dos têrmos,^^e
pura isto pedimos que em vez de acusações como essa, de se dizei o
Serviço não tem sido eficiente', nomeiem-se claramente as prescrições
ttó seu Regmlamento, os pontos do seu programa em que êle, por sua
pi ópria culpa e não por falta de meios de ação, falhou à sua missão,
mosírou-se deficiente, lacunoso ou impotente.
Os que conhecem o Serviço e comparam a sua obi a com o seu pi o-
íí'ama, êsses sabem muito bem, que, para se dizei certo,pi ecisa afii-
niur-se o contrário do que foi dito, isto é: afirmar que o Ser\iço, poi
tóda a parte onde tem agido, se tem mostrado senhor de meios perfei-
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camente eficientes para, em primeiro lugar, proteger o índio, e em
segundo, conduzí-Io a incorporar-se à nação brasileira.
Quanto ao outro membro da oração, com certeza não visava afir¬
mar que ninguém sabe qual o paradeiro ou localização dos indios ca¬
tequizados .
Em primeiro lugar, não há índios catequizados pelo Serviço de
Proteção, e êste faltaria aos seus deveres se enveredasse pelo caminho
de dar ao índio, ou a quem quer que fôsse, instrução doutrinal sôbre
princípios de fé. O Serviço não procura nem espera transformar
o índio, os seus hábitos, os seus costumes, a sua mentalidade, por uma
série de discursos, ou de lições verbais, de prescrições, proibições e
conselhos; conta apenas melhorá-lo, proporcionando-lhe os meios, o
exemplo e os incentivos indiretos para isso: melhorar os seus meios
de trabalho, pela introdução das ferramentas; as suas roupas, pelo
fornecimento de tecidos, e dos meios de usar da arte de coser, à
mão e à máquina; a preparação de seus alimentos, pela introdução
do sal, da gordura,*dos utensílios de ferro, etc. ; as suas habitações; os
objetos de uso doméstico; enfim, melhorar tudo quanto êle tem e que
constitue o fundo mesmo de tôda a existência social. E de todo êsse
trabalho, resulta que o índio torna-se um melhor índio, e não um
mísero ente sem classificação social possível, por ter perdido a civi¬
lização a c]ue pertencia sem ter conseguido entrar naquela para onde
o queriam levar .
Não há índio catequizado pelo Serviço, mas há o protegido, o lo¬
calizado nas Povoações Indígenas o recentemente pacificado nos
sertões que a sua tribo dominava e preservava das invasões do ho¬
mem civilizado, a golpes de flecha ou de tacape. Quiz, a respeito dêsses,
dizer o discurso que “ninguém sabe onde êles vivem, onde estão, nem
como estão"! Pois a resposta a isso se encontra até nos títulos das
várias consignações em que, no orçamento, se divide a verba 15.“. a
do Serviço de Proteção aos índios, pois aí está declarado o número
de estabelecimentos mantidos pela repartição e a sua distribuição por
Estados .
Mas é fácil repetir aqui a relação dos postos de proteção e de pa¬
cificação, e das Povoações Indígenas, pelos quais se distribue a popu¬
lação de índios que vivem sob a direção, e voluntariamente recebem a
assistência, os auxílios e o ensino do Serviço.
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, ,, p,„ ri>lacõe« com a comissão telegráfica
os tupis do Gi-P’arana. Mato-Cirosso. b-m r Ç -
A. \lnto-Grosso ao Amazonas.
cm
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São êles:
Amazonas. 8 postos
Maranhão . 3 •”
Espírito-Santo .... 1 Pôsto
de Alinas-Gerais. 1 ”
„ São-Paulo. 2 postos
1 n - T- .
V „ ^ Povoaçao Indígena
do Paraná. 5 Postos
”” 11 ji 1 n ~ T
. 1 Povoaçao Indígena
de Santa-Catarina .... 1 Posto
’ ’ do Rio Grande do Sul 1 Povoação Indígena
■ ” ’’ Alato-Grosso . 1 ” ”
” ” ” . 10 Postos
Eptal . 35 Postos
Nesses estabelecimentos, a não ser os quê estão no início de rela-
Çoes com tribos guerreiras, como acontece neste momento com os Pa-
nntintim, os Cajabi, os Caingangue do Laranjinha, os Caliixi do Rio
Sararé, etc, encontram-se, além das mais variadas lavouras, de cereais,
de café, de cana de açúcar, etc., maquinismos para beneficiamento dos
produtos dessas lavouras; para iluminação elétrica; escolas de pri-
^iieiras letras; aprendizados de vários ofícios; criação de animais: nu-
inerosas benfeitorias, e outras melhorias que se poderiam citar .
De quase todos êles, há no Alinistério da Agricultura fotografias
bem recentes, tiradas para a Comemoração do Centenário. A não se
úiierer acreditar nessas fotografias, nem no que dizem os relatórios
^'ficiais e nem mesmo nas descrições de escritores independentes, como
® ja citado autor do ‘".Através do Amazonas”, resta o recurso, não de
se lhes negar a existência, mas de ir pessoalmente verificar a de alguns
dêles. E isto não é difícil para quem se acha no Rio de Janeiro, pois
hae daqui iiartindo, com pequeno sacrifício, podem atingír-se, em
poucas horas, os seguintes estabelecimentos;
l-° Indo a ^h■tória, pela estrada de ferro Leopoldina ou por
e dali seguindo pela estrada de ferro Vitória a Diamantina, até
Colatina ou até Resplendor . AM primeiro caso, atravessará em canoa
0 Rio Doce e, parte em automóvel ou charrete, parte a cavalo, per¬
correrá 46 quilômetros de boa estrada, no meio da mata virgem, ao
lini dos quais estará no Pôsto do Panças. A"o segundo caso, atraves-
sara ainda o Rio Doce, em canoa, e logo se encontrará no Pôsto Cuido
cm
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— 24 —
]Marlière, onde se está terminando a pacificação de um grupo de Ai¬
morés .
Uma semana, compreendendo a partida e o regresso a esta ca¬
pital, é bastante para realizar esta visita.
2. " Uma vez em São Paulo, vai-se a Bauru, pela Sorocabana
ou pela Paulista; dali, pela Noroeste, a Avai, a Penápolis ou Glicério.
No primeiro caso, com um percurso de 12 quilômetros a cavalo,
chega-se à Povoação Indígena do Araribá, onde se verão todos os
ai^erfeiçoamentos que o Serviço tem oferecido aos Guarani, ali insta¬
lados, para melhorare mo seu gênero de vida, as suas habitações, o seu
trabalho, etc.
No segundo e no terceiro caso, com um percurso maior a cavalo,
chegar-se-á aos Postos do Icatu e á-anuire onde trabalham como bons
e diligentes amigos nossos, os Caingangue que, durante tanto tempo, ,
sob o nome de coroados, foram tidos como gente feroz, inadaptável atí
nósso convívio, quase diriam; “estranhos ao verdadeiro gênero hu¬
mano !”.
Em rigor, estas visitas exigirão pouco mais de uma semana, entre
ida e volta; mas podem ser feitas em menos tempo.
3. " De São Paulo, i)ela Sorocabana, a Ourinhos; daí, por auto¬
móvel, a Jacarèzinho, no Paraná; de Jacarèzinho, a cavalo, a Santo
Antônio da Platina; depois, ainda a cavalo, pela estrada de penetração
aberta pelo Serviço para a pacificação dos Caingangue do Laranjinha.
Aqui a viagem não é tão sem cuidados, como as precedentemente
indicadas, nem o pôsto oferece as mesmas comodidades que os outros:
mas há a vantagem de se ficar conhecendo como os empregados do
Serviço trabalham em zona ocupada por índios guerreiros.
A viagem pode terminar-se em uma semana.
Ora, e de esperar que estas indicações sejam ai)roveitadas pelas
pessoas que, desejando saber “qual o paradeiro ou a localização dos
índios trazidos à civilização pelo Serviço de Proteção, não se decidem
a acreditar na existência dêsses paradeiros, nem que êles sejam tais
como se os descrevem, diretamente vê-los, em insi>eção imediata.
Continua o discurso: “Tudo nos induz a crer que êsses selvagens
brasileiros não aceitam a cultura que lhes queremos proporcionar:
fogem dos civilizados, não se incorporam ao nosso meio, têm enfim,
todos os defeitos de uma raça inferior”.
Ao depararem-se-nos casos como êste. de ainda em nosso dias
falar-se com tanto ardor e paixão contra os nossos aborígenes. com-‘
premdemos ao vivo quanta verdade e quanta propriedade havia no
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qualificativo de “questão abrasadora” dado por ilustre escritor bra¬
sileiro, João Francisco Lisboa, ao problema indígena entre nós.
É na realidade uma questão que apaixona, com certeza pelos gran¬
des interesses, princípios e sentimentos sociais que põe em jôgo e abala.
Mas, convenientemente advertidos, por nossa parte trataremos de ver¬
sa-la sem entrarmos no braseiro das contestações acadêmicas em tõrno
das teorias, tão boas como as suas vetustas predecessoras, que engen¬
dravam a crença em povos eleitos de Deus, relativas a raças louras ou
morenas; cabeças compridas ou redondas; seleção natural ou artificial;
eliminação dos fracos pelos fortes, e outros análogos argumentos com
os quais os que têm a fôrça material de seu lado, esperam justificar o
péssimo uso que dela fazem para saltear, depredar e exterminar os
Que no momento não podem defender à mão armada a sua liberdade,
os seus haveres e a sua vida.
“Os selvagens brasileiros não aceitam a cultura que lhes queremos
proporcionar’’. IMas, qual a cultura a que se faz alusão nestes têrmos ?
Quem procurou proporcionar essa cultura, e viu perdidos os seus
osforços ?
Bastaria a resposta a estas duas perguntas para facilitar muito,
ou talvez mesmo tornar desnecessária qualquer contradita àquela pro-
Posição. Porque, se a cultura que se quis inculcar ao pobre selvícola,
foi a mental de um de nossos bacharéis ou mesmo a de um simples le¬
trado; se foi a moral de um doutor em cânones, ou mesmo a de um
íidviço ou noviça de convento, se foi a prática de um mecânico ou de
^101 g-uarda-livros de banco, em qualquer dêsses casos, como se admi¬
ram de que êle a não tenha aceitado, ou antes, e melhor, que a não
tenha podido aceitar?
Mas. se em lugar de tão disparatada ação. como seria essa de que¬
rer transmudar o índio em doutor, em frade ou em banqueiro, nos li-
ruitarnios a sé) exigir dêle o possível, isto e; que adote, dos meios e
recursos da nossa civilização, os instrumentos, os jirocessos, os modos
que melhoram e aperfeiçoam a sua indústria, as suas casas, as suas
lavouras, as suas vestimentas, a constituição da sua família, e tantas
Outras coisas que não comuns a nossa vida e â dêle, então o \eiemos,
sem esforço nenhum de nossa parte, ir apropriando-se dos nossos co¬
nhecimentos, das nossas observações, das nossas maneiras de obrar,
próprias àqiiêles atos e àqueles hábitos. Irá êle se aproximando, nao
úos doutores, nem mesmo dos operários da cidade, mas dos nossos tia-
lialhadores cías fazendas, dos nossos campeiros de gado, dos nossos
loceiros ou caipiras, em suma. E nesse transito, não estara o selvícola
caminhando para nós. adaptando-se â nossa cultura, isto é. â cultura
— 26 —
geral do povo brasileiro, naquilo que ela lhe é accessível no estado em
que nós o encontramos ?
Êles aprendem e acabam adotando a nossa língua. Só com isso
quantas noções não adquirem; quantas modificações não sofre o seu
entendimento; quantos novos pontos de contato não se formam entre
a sua e a nossa alma? Êles abandonam, uns mais outros menos rapi¬
damente, o g-ênero de atividade em que fundavam a sua subsistência
e a de suas famílias, o qual era essencialmente a caça e a pesca; e em
lugar dêle adotam o que nos vêem praticar, em lavouras ou pastoreio
de gado; — contraem a noção de trabalhar sem conhecer o destino
objetivo, imediato, para Pedro ou para Paulo, do produto dêsse tra¬
balho; concomitantemente com isso, lhes vem a noção de dinheiro e
a transformação do modo de comerciar, que deixa de ser por troca
direta dos objetos, para ser mediante o sinal abstrato que representa
o valor do objeto. Aumentam rapidamente o respeito que já tinham
pela vida de seus semelhantes e não tardam em se. tornar monógamos .
Pois estas' modificações, è muitas outras que se poderiam igual¬
mente citar, não consistem, afinal, em caminharem êles para a nossa
civilização, em “se incorporarem ao nosso meio”, não pròpriamente
ao nosso meio das cidades, mas ao meio brasileiro do interior do país?
E que estas modificações se dão, quem o poderá contestar a pes¬
soas que têm convivido, durante decênios seguidos, e não por alguns
instantes fugidios, com índios de todos os sertões do Brasil; que têm
lidado tanto com tribos que pela primeira vez sáiem do fundo de suas
florestas seculares, como com as que vivem promíscuamente com os
descendentes dos europeus desde os primeiros dias do descobrimento?
Barbosa Rodrigues, qi:e esteve tantas Vêzes entre êles. cita as
palavras de bom observador”, que disse; “Esta raça só quer o
bom exemplo e o bom ensino . A natureza com ela foi pródiga na for¬
mação dos seus dotes morais; se decaiu e se aviltou, tôda a culpa
recae sóbre os que a educaram e a educam”.
A êstes dotes morais refere-se um escritor francês Ferdinand
Denis , o qual, aliás, no seu livro Brasil, tradução portuguêsa da casa
Garnier, trata sempre o índio com visível antipatia e mesmo com
dureza. Xão obstante, escreveu: “Há na existência social dos índios
certas virtudes que não se encontram no mesmo grau entre povos
adiantados na estrada da civilização. Nas freqüentes misérias da vida
.selvagem nunca o fraco era esquecido e o forte se resignava primeiro
que êle a sofrer. Não havia convenção feita, com consciência, que
pudesse resolver um chefe a apoderar-se dos bens da terra que se
reputa\ am de toda a tribo . Durante a mingua de alimentos era o
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índia do Amazonas, de tribo recentemente pacificada.
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escravo 'servido antes do mussacat. Uma das qualidades dos selvi-
colas, era a sua inviolável boa fé nas transações, particulares ou
gerais. Não há talvez exemplo de que fôsse por êles ciuebrantado um
tratado de paz celebrado com os conquistadores. Esta boa fé nos tra¬
tados se manifestava em tôdas as relações da vida; e os antigos
escritores são todos unânimes acerca da ternura, e mesmo das atenções
que entre si testemunhavam, ainda que mais de vinte familias algumas
^■ézes sob o mesmo teto habitassem”.
Tanto aqui no Brasil como fora do Brasil, chegou-se afinal, à
compreensão de que não se tem de procurar compelir o índio a trans¬
formar-se subitamente em civilicado. necessário deixá-los, diz
0 Dr. Barbosa Rodrigues, mesmo depois de aldeados, com seus cos¬
tumes, para que aos poucos os vão abandonando . E. F. Leupp,
descreve nestes termos as melhorias que Viu adotadas por uma tribo
que aceitara instalar-se perto de um estabelecimento do Depai tamento
de índios: “Eu os vi o ano passado. Já comiam os seus alimentos em
mesa e não no chão; dormiam em leitos e não em terra; suas casas
eram de boa aparência em relação ao asseio médio usado nas tribos.
hudo isto é resultado de absorção e não de educação artificial e for¬
çada” .
Idêntica a estas é a observação que regista o autor francês acima
citado, em relação aos selvicolas do rio Doce e do Belmonte. Desde
ÍO ou 20 anos estas tribos se têm achado num contínuo comércio com
colonos brasileiros, e têm sofrido as modificações que de\ iam resultai
dêste contato imediato com homens civilizados. Uma de suas primeiras
resoluções foi abandonar, ao menos em parte, o uso do singular adôi-
uo que à sua fisionomia dá tão feia aparência; alguns indi\ iduos se
resolveram a fazer pequenas lavouras; chefes que pareciam irrecon¬
ciliáveis se congregaram; reina finalmente a paz naqueles desertos.
^igânio-lo com orgulho, tudo isso se deve a um francês, Thomas Guido
^larlière, o qual se estabeleceu nas margens do rio Doce desde 1924.
I^umerosos obstáculos se apresentaram desde essa época ao bem que
Marlière intentava fazer. Ignoramos .se os referidos obstáculos estão
hoje superados; porém é uma vida generosamente sacrificada a
do homem que. a respeito dos selvagens, nao cessava de dizei aos bra¬
sileiros : ^‘Ainor e Icadade para com eles, meus amigos, c temos homens .
Os que conhecem de verdade o índio, ficam penalizados quando
vêm escritores estimados e bem intencionados fazerem-se a mjutiça
repetir descabidas acusações, como a de “ser êle inclolente e nao
gostar do trabalho”. Em seu habitat próprio^ e no seu genero de vida
primitiva, o índio dá provas de uma operosidade, de um esforço, de
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uma constância na ação, de uma resistência à fadiga, de um tino em
vencer as dificuldades, que bem raramente se encontram entre nós.
Quem já pensou, sem ficar estarrecido, à simples idéia de se ver
a isso condenado, no trabalho que é derrubar uma árvore a machado
de pedra?,No entanto, os índios faziam extensas derrubadas para as
suas plantações de milho, de mandioca, de favas, etc. E o trabalho,
a arte, a infinita paciência que êles tinham de despender para a prepa¬
ração dos seus arcos e das suas flechas; para o aperfeiçoamento das
pedras em machados e machadinhas; para fixar êsses machados em
seus cabos; i)ara as caçadas aos grandes animais, como a anta, o veado,
a onça, sem o auxílio de cães ? A delicadeza imensa no apanhar vivas
as aves, que se guardam como reservas alimentícias para os dias de pe¬
núria ; a arte e a aplicação no abrir fogo pelo atrito de duas peças de
madeira; no conservá-lo pelo maior tempo possível; na fiação de fibras
têxteis para confecção de cordas e para tecidos vários, artisticamente
enfeitados com desenhos de fios coloridos, inseridos na urdidura; os
artefatos de barro; os enfeites de pena; e admirabilíssimos outros pro¬
dutos de um gênio industrioso incansável e cheio de recursos; e até
os tocantes mimos que eram os brinquedos das crianças, os pequenos
arcos, as flechas em miniatura, tudo manipulado através de mil dificul¬
dades por aquêles homens rudes, tão mal julgados ainda hoje ?
E as transformações que introduziam em seus utensílios, com os
materiais que apanhavam dos civilizados? Os Caingangue paulistas,
trabalhando com infinita paciência, cortavam as pás e as enxadas to¬
madas aos trabalhadores da Noroeste, em lâminas, sem outro instru¬
mento senão lascas de sílex, e depois ajeitavam-nas em pontas de fle¬
cha, com tanta regularidade e perfeição que dificilmente se acreditava
não serem forjadas por um bom ferreiro. Os Botocudo de Santa
Catarina, com as lâminas de serra que tomavam aos madeireiros ale¬
mães, trabalhando-as só a pedra, faziam temerosas e belissimas pontas
de lança e de flecha, que tanto serviam para a caça dos grandes her¬
bívoros, como para a guerra. Os Caingangue paulistas, nos primeiros
dias da pacificação, tendo obtido um guarda-sol \-elho. inventaram
desmontar as suas varetas, despontá-las e utilizá-las para furar os
dentes de macaco de que faziam lindos colares, nos quais, antes disso,
êsses dentes figuravam engastados num tecido de fibra de cipó imbé.
Com as mesmas varetas êles conseguiram furar quanto níquel se lhes
dava, para enfiá-los nos colares de suas mulheres.
Êsses homens podiam ser indolentes e refratários ao trabalho?
Quantos de nós sucumbiria de fadiga e de fome se tivesse a sua sub¬
sistência dependente das longas caminhadas a que êles eram obrigados
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Indi:i da tribo dos Uaimaris, Amazonas, pacificada cm 1911
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para apanhar a cai^a de que se tinham de alimentar; ])ara tirar, em
troncos de árvores prodigiosas, os favos precisos para o seu hidro-
ínel; ou para'derrul^ar a machado de i)edra o coqueiro e lhe tirar o
palmito ?
Como essa, muitas outras opiniões errôneas correm mundo, re¬
petidas como outras tantas verdades. Assim, escreveu o mesmo esti¬
mado autor: “o indio tinha o sentimento de propriedade coletiva (da
iribo), mas não o tinha da propriedade privada-, o indio não julg-ava
fazer mal roubando”.
Isso só é verdade em se tratando da propriedade territorial. A
terra, com as matas, os rios e as caças que nela existiam, o indio não
concebia que pudesse ser deste, daquele, ou de alguns individuos: tinha-
-a como propriedade geral da tribo. ]Mas, a caça uma vez preada; o
ttreo, a flecha; os enfeites; os utensílios domésticos, panelas, vasos de
barro, purungos, cestos; os animais mansos; as aves guardadas vivas,
como reserva alimentícia; as roças e muitas outras coisas, constituiam
propriedade privada e o índio tinha na conta de ação reprovável o apo¬
derar-se alguém de alguma delas, subrepticiamente, sem o consenti-
ttiento do respectivo dono.
A primeira vista, pode parecer que há contradição entre o que se
ttfirma aqui e o que se encontra registado em muitos autores, como
fcsultado de suas observações, que dão o índio como fortemente in¬
clinado ao furto e ao roubo. Xo entanto essa contradição é simples¬
mente aparente e, se existisse, seria da mesma ordem da que nos ofe¬
recem os naturalistas, exploradores geográficos ou excursionistas cien¬
tíficos que, não obstante serem pessoas perfeitamente honestas, inca¬
pazes de furtarem um alfinete que seja nas cidades e nas moradias
ci^^ilizadas, quando se vêm numa aldeia de indios,. se podem, fazem
ttião baixa sobre todos os objetos que encontram; e se não podem, tra-
tam de se apossar dêles logrando velhacamente os respectivos donos,
isto é, dando em troca de artefatos precio.sos, coisas de mínimo valor.
Assim formam-se. ou antes, formavam-se sem dispêndio nenhum, ou
'Paase nenhuni, copiosas coleções etnográficas que figuram nos museus
de Europa, da América do Xorte, etc.
Êsses mesmos naturalistas ou excursionistas científicos, que re¬
peliriam com horror a ideia de violarem túmulos, nos nossos cemi¬
térios, não sentem a menor sombra de escrupulo em ie\oi\ei quanta
sepultura de índios a sorte lhes depara nos sei tões, e consideram-se
tmuto honrados quando se apresentam nas cidades cai i egados de des¬
pojos mortuários obtidos dessa forma.
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Se perguntássemos a um índio: Que idéia fazes destes homens
que levaram os teus arcos, as tuas flechas, os teus tecidos, os teus ricos
canitares de penas, as tuas urnas funerárias, e tantos outros objetos
preciosos do teu uso cotidiano e relíquias sag-radas? Certamente que
êle nos responderia: um desbragado ladrão, como todos os homens
da sua raça. No entanto, nós sabemos que êste juízo e esta sentença
do índio são profundamente injustos . O que houve, foi simplesmente
que o naturalista e o excursionista cientifico, não consideraram que
fôsse roubo ou furto o apoderarem-se como fizeram daquelas coisas
que pertenciam a um outro povo, a uma outra civilização .
Anàlogamenfe, o índio que se abstém de tomar e guardar para si ob¬
jetos pertencentes a outro índio, e que tem tal ação por feia e repro¬
vável, encara como ato perfeitamente legítimo o apossar-se por esper¬
teza ou por fôrça dos nossos machados, foices, facas, etc. No entanto,
se as relações entre êles e nós estreitam-se e perduram, e se nós lhes
damos exemplos de generosidade no trato e de x lisura nas transações,
rapidamente desaparecem essas práticas e êles passam a respeitar as
nossas propriedades como respeitam a sua própria, e tanto como nós
míituamente respeitamos a nossa .
A verdade, pois, é que o indio não é mais nem menos inclinado ao
furto do que a gente da nossa civilização; êles conhecem a propriedade
individual e sabem respeitá-la; o que lhes falta, nos casos enr que a in¬
fringem, como em outros que para êles são crimes, tanto como para
nós, é a idéia e concomitante prática da repressão coletiva. Um ato
dêsses, se praticado por um membro, contra outro da mesma tribo,
dará lugar a represálias da vítima e quando muito de seus parentes,
mas não dará lugar a pena decidida e aplicada pela tribo. Só quando
a violência é de membro de uma tribo contra o de outra é que a coleti¬
vidade se dá por ofendida e se acha no dever de tomar uma desforra
também coletiva, fazendo responsáveis pela ofensa todos os indivíduos
do povo a que pertence o ofensor .
Dêsse modo de compreender os fatos sociais nós mesmos viemos,
e infelizmente ainda não nos achamos tão afastados dêle, que não apre¬
sentemos freqüentes casos de dolorosa recaída!
Mas deixemos êstes aspectos, aliás interessantes, da vida do índio,
para voltarmos ao discurso que nos vinha ocupando. O selvagem bra¬
sileiro, diz êle — “tem todos os defeitos de uma raça inferior”.
Ao lermos esta sentença, não nos podem deixar de ocorrer, melan¬
colicamente, as vêzes em que já a encontrámos formulada contra o povo
brasileiro, tomado no seu conjunto. Houve mesmo um estrangeiro bas¬
tante petulante para levantar a dúvida se seriamos dignos de ocupar
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■jSciELO,
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uma ten-a tão bela e tão rica como a do Brasil, a qual, afinal, é um
patrimônio da civilização, e precisa ser devida e convenientemente la¬
vrada e aproveitada . Êle empregava contra nós a mesma teoria que,
em nosso nome, se empregaria agora contra os selvícolas . No fundo'
a razão dêle era a mesma que a nossa : O governo do país a que êle
pertencia ,possuia mais navios, mais canhões e mais soldados do que o
nosso; como nós possuímos’espingardas, bombas e metralhadoras que
os índios não possuem.
Para consolo nosso, baste-nos recordar que o mais egrégio dos
nossos homens políticos, o Patriarca da Independência, um século atrás,
brava das profundezas do seu magnânimo coração e dp seu grande
saber, pensamentos como êste “O homem primitivo nem he bom nem
^5 mau naturalmente ... Si Catão nascera entre os Satrapas da Pér¬
sia, morreria ignorado entre a multidão de vis escravos; Newton si
nascera entre os Guaranis seria mais um bípede, que pesara sôbre
a superfície da terra; mas um Guarani criado por Newton talvez que
occupasse o seu logar”.
Em outros têrmos, um ilustre estrangeiro, Elisée Réclus, na sua
nova Geografia Universal, repete esta magnífica lição contra a falsa
teoria da “inferioridade da raça”, dizendo;
Escritores do último século, notadamente Ulloa, negavam tôda
inteligência aos naturais da América do Sul; êlcs não têm discernimento
nem compreensãosão animais, são brutos” .
Tais
‘‘Muitos colonos do Brasil chamam os índios de bicho do mato.
asserções depõem sobretudo contra os que as avançam. O fato é
Que os americanos do .Sul, como os representantes de tôdas as raças
uinanas, participam de nossas fraquezas e de nossas forças ; possuem,
^’n graus diversos, nossas faculdades intelectuais e morais; levam-se
j*' ^^nlização de grandes ações e recaem em práticas ignóbeis; progri-
^ni ou decaem segundo as lutas nas quais estão empenhados, o meio
qual se acomodam e à parte de liberdade de que gozam” .
Lê-se no discurso: “Não tenhamos, por espírito de nacionalismo
piegas e incompreensível, a veleidade de querer explicar à Nação que
^ preciso proteger o selvagem” .
Em primeiro lugar, o pensamento de proteger o índio não é pri-
vo nosso, nem nos podemos vangloriar de sermos os primeiros a
quem êle ocorreu . A honra de tal precedência cabe a uma senhora, e
enhora egrégia : é o que se infere da seguinte passagem de um tra¬
io de Silvestre Rebêlo, publicado na Revista do Instituto Histórico,
tomo I :
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“Xa chegada da frota a Sevilha vieram ordens da còrte para se
venderem os índios como escravos; contudo, o piedoso coração de Isa¬
bel fêz com que esta ordem fòsse contramandada, e que os índios fos¬
sem reenviados a São Domingos, para onde se mandou também outra
ordem para que os mesmos índios fôssem aliciados com afagos e ca¬
rinhos e não perseguidos militarmente e reduzidos à escravidão’’.
Muitos outros personagens ilustres, que enchem as páginas da
história da Humanidade com os fulgores da sua glória, levantaram-se
em defesa do índio e-manifestaram-se seus amigos.
O chanceler Bacon, jxDr exemplo, num pequeno trabalho escrito
l)ara chamar os europeus a sentimentos humanos, em relação às inde¬
fesas populações do novo mundo. dizia: “Lembremo-nos de que se
somos cristãos, os outros são homens”. E noutro tópico; “Guardemo-
-nos de fazer do nosso Salvador um !Moloch, oferecendo-lhe em holo¬
causto o sangue desses homens”.
O grande Jefferson, quando presidente dos Estados-Unidos. em
1804, não desdenhou a amizade de uma tribo indigena e mandou que
0 seu ministro da gaierra escrevesse-lhe uma carta, exprimindo a sa¬
tisfação do governo de ^'ashington pelas boas relações com o povo
aborígene a quem ela se dirigia. Essa carta tinha o seguinte fecho: “O
Presidente vos envia uma cadeia dc ouro puro, o qual nunca enferruja.
Assim queira o Grande Espírito ajudar-nos a conservar resplande¬
cente, por uma longa sucessão de séculos, a cadeia da amizade da
qual a cadeia de ouro é um emblema”.
Em segundo lugar, se adotássemos o conselho de não proteger
o índio, abandonaríamos tòdas as tradições da nossa história e as
lições dos nossos maiores patrícios.
O primeiro rejeitado seria José Bonifácio, que compendiou em
cinco mandamentos, “os meios de que se deve lançar mão para a })ronta
e sucessiva civilização dos indios’’, os quais são:
1. “ Justiça, não esbulhando mais os índios, pela fôrça, das
terras que ainda lhes restam, e de que são legítimos
senhores.
2. ° Brandura, constância c sofrimento dc nossa parte, que nos
cumpre como a usurpadores e cristãos.
Abrir comercio com os bárbaros, ainda que seja com perda
da nossa parte.
4. “ Procurar com dádivas c admoestações fazer pazes com os
índios inimigos.
5. “ ^ Favorecer por todos os meios possíveis os matrimônios entre '
índios e brancos e mulatos.
3.“
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Depois seriam os nossos mais esclarecidos homens de g-o\êrno,
os quais trabalharam sem desfalecimento pela prosperidade do sel-
' icolas, desde os ])rimeiros tempos do descobrimento do Brasil até
nossos dias; seria um Caxias, que no Maranhão e no Rio Grande do
ul, em Relatório de abertura da Assembléia Legislativa, 1846, levan¬
tou a voz a favor do índio; ou um Inglês de Sousa, que a 15 de junho
í e 1889, no Instituto da Ordem dos Ad\ og’ados. formulava a seg-uinte
Pi-oposta;
“Proponho que o Instituto represente ao Congresso Xacional
sobre o imj)erioso dever e alta conveniência de regularizar, no direito
'lecionai, a situação dos aborígenes do Brasil, quer aldeados quer er-
rantes ou nômades, de modo a protegê-los eficazmente contra as vio-
^ncias e depredações de que são vitimas e a incorix)rá-los ao orga¬
nismo econômico do país como fôrça produtora, decretando legislação
^pi^opriada a êsse diijilo fim em bem dos sentimentos de Humanidade
^ dos interêsses da civilização".
Ou um Barbosa Rodrigues, que reclama^-a para os selvícolas a
pi oteção do govêrno nos seguintes têrmos;
ide H Pacificação dos Crichanás) :
“E triste vêr os índios expulsos das florestas em que se criaram,
Onde rêdes se ataram e suas malocas se ergueram.
‘Extorquidas as terras, derrubadas as suas matas, revolvidas as
siias urnas mortuárias, como viverão êles? E ainda mais, divididos,
'^^Par.sos e foragidos?. . . Que o século XIX não assista mais a êste
^Petáculo. Que se proíba a dispersão dos membros de uma tribo.
7^^ suas terras lhes sejam legahnente doadas, como é de lei, sem di-
oito de alienação. Que se cumpra o aviso, de 21 de outubro de 1850,
P^ira que não sejam dcq^is os indios usurpados do que é seu".
Essas são as \'ozes que falam em nome das melhores tradições do
’^nsso jiassado, chamando-nos ao cumprimento de um indeclinável de-
c ninguém dirá que para tanto falte autoridade a um José Boni-
' a um Caxias, a um Inglês de Sousa, a um Barbosa Rodrigues,
^ hiiitos outros que seria fácil citar.
^ i^Ias, prosseguindo na leitura do discurso, vamos encontrar o se-
sUinte; ‘74 história do Brasil ( *) não apresenta, desde que resolvamos
I'Ubl/ ^ Estados-Unidos foi instituído um Dia do índio .Americano, e por essa ocasião
só Se proclamação na qual se lê: .Agora que a glória e as nuvens do passado
e o f nas páginas dos monumentos históricos, nós não podemos esquecer o presente
raçaj nosso jiovo. Cabe-nos promover e adquirir todos os meios que tornam as
mais la ''^Çõe.s mais eficientes e mais nobres; pelos quais possamos alcançar uma vida
■"Ka, através do amor fraternal, e atingir os nobres destinos de nossa pátria, não sò-
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despir os índios das falsas vestes que os poetas lhe hajam emprestado,
um exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso
progresso’’.
Recorramos, pois, à história do Brasil, tal como a relatam os que
a tiveram de estudar pausada e cuidadosamente.
Em 1788, Domingos Alves Branco, em seu “Plano sôhre a civi¬
lização dos índios do Brasil", entendia que só à incomparável viveza
dos selvícolas e aos seus conhecimentos de ervas medicinais, devia-se
o bom êxito dos trabalhos de exploração dos cosmógrafos portu¬
gueses, ao longo das costas e no interior do país.
João ^íendes de Almeida, nas suas “Xotas Genealógicas”, es¬
creveu :
“A verdade é que os pxjbres indigenas do Brasil, que foram os
verdadeiros construtores das cidades e das povoações após a desco¬
berta, e sem os quais os portugueses teriam perdido esta conqitista,
]}OÍs que eram impotentes para a colonização de tão vasto território,
e ainda mais impotentes para o defenderem dos franceses, dos holan¬
deses, dos ingleses, a verdade é. dizemos, que os indígenas do Brasil
não mereciam dos portugueses senão o rigor e o mau trato. e. por sô-
bre-carga, o desprezo dos próprios que dêles descendem e que consen¬
tem no apagamento de todos os sinais de sua natural procedência.
“Ainda por mofina, não têm faltado e.scritores brasileiros que
em vez de reerguerem pela verdade histórica o indígena, hão preferido
aceitar e afirmar tôdas as apreciações falsas dos europeus que os vie¬
ram explorar!’’
X^outra passagem da mesma obra, volta o autor ao assunto, nos
seguintes ténnos:
“Foram com efeito só índios os edificadores das igrejas, dos con¬
ventos. dos hospitais, dos palácios, das fortalezas e dos armazéns reais.
Os governadores e os capitães-mores não conheceram outros operários
nas obras públicas. Mesmo os particulares obtinham, para o seu ser¬
viço doméstico, índios livres. Inúmeras cartas régias dão testemunho
dêsses fatos".
Azeredo Coutinho. nas Obras do bispo d’Elvas. diz: “A conquista
do Espírito-Santo foi devida a Tibireçá; a. da Bahia, a Tabira; a de
Pernambuco, a Itagiba e Piragibe. que foi premiado com hábito de
Cristo e tença; a do Maranhão, a Tomagica”.
e os meios pelos quais elas podem ser alcançadas constituiam o objeto de
no Dia do Índio .“Vniericano!
nossos pensamentos
cm
2 3
z
ficada em Wll
Tribo paci
\linas-Gcra's
rio Doce
Menina Crenaque
SciELO
35 —
E Gonçalves Dias, acrescenta:
“Êles, foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil
e grandioso; são o princípio de tcxlas as nossas coisas; são os que
deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido,
e será coroado das nossas prosperidades o dia de sua inteira rea.-
biliíação" .
Estas palavras do nosso grande i)oeta lembram-nos uma passagem
de Francis Leupp, em que também se faz menção do concurso do ín¬
dio para a formação do caráter do norte-americano. “Xossos aborí-
gicnes, disse ele. trouxeram como sua contribuição para o i)atrimônio
comum do caráter americano uma grande parte, que é admirável e
útie só precisa ser acertadamente desenvoh ida”.
Êsse é o depoimento da história verdadeira, a qual poderia aqui
fala r por centenas e centenas de páginas, se quisesse minudear o con¬
curso do índio na formação da Pátria Brasileira, na dilatação e con¬
quista do seu território para além da linha de Tordesilhas. até ao sopé
da Cordilheira dos Andes; na opugnação á conquista holandêsa e até
contra a invasão paragmaia, durante a qual a defesa nacional viu
desenrolar-se um dos seus mais épicos episódios, na resistência oposta
pelos Terena. na passagem do Aquidauana.
O concurso do índio há de ser procurado, não no desenvolvimento
das nossas cidades modernas, nas calçadas de suas avenidas gloriosas,
uo brilho das nossas obras literárias e científicas; mas sim no interior
úo ])ais. no desbravamento dos sertões e na sua preparação para receber
o homem civilizado, o europeu ou o seu descendente.
“Os Tapuias, escreveu E. Réclus, na obra já citada, eram. antes
da introdução do vapor no Amazonas, os intermediários de todo o co-
uiércio. os guias de todos os viajantes". E quantos rios não há ainda
uo nosso país. nos quais os transportes e as viagens só se fazem à
custa do esfórço. do trabalho e da habilidade dos indios ? Quem poderá
desconhecer o valor que representa para a civilização dessas regiões a
uianutenção de tal .serviço?
Quando o General Kondon, ainda no i)ósto de capitão, teve de en¬
frentar as dificuldades da travessia do pantanal, de São Lourenço a
Taquari, na construção da linha telegTáfica entre Cuiabá e Corumbá.
Venceu-as graças ao concurso voluntário e decisivo dos índios Bororo,
que lhe forneciam turmas de trabalhadores para a abertura de picadas,
levantamento e fixação dos postes, esticamento do fio, transportes,
caçadas para abastecer de carne os acampamentos e numerosos outros
serviços próprios a tão grande cometimento . Antes disso, outros
Pi-ofissionais. de reconhecida e incontestável competência, haviam jul-
cm
SciELO
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— 36 —
íí^aclo impraticável aquela obra. dada a natureza do solo. os famosos
alagados do Paraguai. Não é legátimo admitir-se, com o General
Rondon, (jue o concurso do índio foi o fator que faltou àqueles profis¬
sionais, e que a sua introdução representa por muito a mola do sucesso
depois verificado, ou antes, que representa tudo quanto podia concorrer
para êsse sucesso, além das qualidades individuais do chefe?
Anos depois \-amos encontrar êsse mesmo grande brasileiro a
afrontar as asi)erezas. os perigos e os riscos do descobrimento do Ju-
ruena e da travessia do sertão, nessa época ainda desconhecido, que se
alonga desde a crista da serra dos Parecis até as margens do Madeira.
Para tão árdua emprêsa, conta êle com o auxílio dos Pareci, que lhe
fornecem, no velho Uazá-Curiri-Gaçu. o guia que o leva ao Juruena,
e depois concorrem para salvar a espedição, abastecendo-a de alimen¬
tos, quando»ela voltava exausta de cansaço e de privações.
No ano seguinte, torna o moderno desbravador de sertões a en¬
frentar o desconhecido; transpõe o Juruena e descobre a Serra do Norte
palmilhando para isso a terra coberta de aldeias dos aguerridos e hos¬
tis Nhambiquaras. 'Um outro pareci, Tolorí, é o guia ou explorador
da vanguarda. Tôdas as manhãs parte sozinho; embrenha-se pelos
trilhos ou caminhos de índios, na direção do poente. À tarde volta,
trazendo claras e detalhadíssimas informações sôbre os acidentes, os
obstáculos e os meios de contorná-los: do terreno que tem de ser pal¬
milhado pelos expedicionários no dia seguinte. Irás, além disso, jie-
sada carga de peças venatórias, que constituem valioso e imprescin¬
dível elemento de subsistência para Rondon e seu.s comandados.
Mais um ano e nova investida contra o sertão: desta vez para
atravessá-lo definiti\-amente. até sair no Madeira. Logo no irrincipio
da expedição, morre Toloirí: perda imensa, que Rondon deplora em
palavras sentidas, respassadas de saudade, de reconhecimento pelos
serviços que lhe jrrestou o índio. Levanta-se então um terceiro pareci,
o jovem chefe Libânio Coluízorcê. que toma o pôsto em que tanto se
distinguiram os seus dois predecessores. Êste termina o reconheci¬
mento do sertão, e \'em com Rondon, pelo Amazonas e pelo Oceano,
á capital da República, que o teria de rever mais de 10 anos depois, à
testa de um troço de guerreiros de sua tribo, trazendo-lhe, no auda¬
cioso e empolgante Zicunáti, o concurso do indio aos festejos do Cen¬
tenário de nossa Independência . Cumprida a mensagem, a morte colhe-
-o em meio da enorme caminhada de regresso aos seus campos nativos
e às suas aldeias.
Por todos os sertões em que o índio vive. rAs o encontramos com»,
nos casos acima apontados, prontos a secundar-nus com o seu trabalho,
SciELO
de um colégio do
alunos
de Mato-Grosso
•U alto sertão uc
de três tribos do a»
Representantes
2 3 4 5 6 7SCÍELO 77 72 13 14 15 16 17
— 37 —
com o seu esforço e experiência, e com os seus meios de ação e de sub¬
sistência, na verdade parcos, mas eficientes. Ainda aj^ora, a Comissão
Ronclon, por um dos seus mais perseverantes auxiliares, o Major Ni-
colau B. Horta Barbosa, acaba de esticar o fio telegráfico, na exten¬
são de 360 km de Campo-Grande a Ponta-Porã, na fronteira do Para¬
guai, tendo como trabalhadores índios Terena e Caiuá. Os mesmos
Terena e os Cadiuêu, forneceram injxirtantíssimos contingentes de
trabalhadores ])ara a construção da estrada de ferro Noroeste, na parte
que vai de Três Lagoas a Pôrto-Esijerança. Os Caingangue Para¬
naenses prestaram análogo concurso para a construção da estrada es¬
tratégica de Pòrto-L^nião à cidade de Palmas, e dêles escreveu distinto
oficial, que os teve sob sua direção nessas obras: “Ao lado de traba¬
lhadores alemães, iwlacos, italianos, russos, argentinos e paraguaios,
loram considerados ótimos trabalhadores. Eram os melhores tra¬
balhadores de terra". Sem os Uapichana e os Alacuxi, não há na-
■'cgação no Alto Rio Branco e nos seus afluentes, nem rodeio de gado
lias fazendas nacionais e ])articulares daquelas regiões, São êsses
índios os campeiros daqueles rebanhos, atualmente avaliados em mais
de 200 mil rezes, assim como são os únicos lavradores e fornecedores
úe produtos agrícolas à ]»pulação da chamada güiana brasileira.
A êstes exemplos, quantos outros não se poderiam juntar? Alas
também, quanto não ficaria a relação cpie assim se fizesse, por mais
extensa que fosse, abaixo da realidade? E o (pte não teria de imperfeito
c de superficial, a representação que ])or ela se quisesse esboçar, do
concurso prestado ])elo indio para a formação da Pátria Ifrasileira e
pnra o progresso da ci\ ilização no nosso território e desenvolvimento
úti nossa população?
I’or fim, lemos no discurso; "Os antropologistas nos mostram
hnc, raças refratárias ao ])rogresso, ])ovos avessos á civíTização, no
i^^rasil e em todo o mundo, ao in\ és de serem socorridos i)elos poderes
públicos, devem ser calculada e friamente deixados aos seus próprios
úestinos".
Preferimos não desvendar, não compreender a significação in¬
teira destas ])alavras, não penetrar os i)ensamentos tremendos (jue por
acaso estejam nelas envolvidos e pretendam ser sub-entendidos. Já
^ào tantas e tão inauditas as barbaridades que se têm dito e escrito,
•is atrocidades (jue se têm preconizado e praticado contra o desgraçado
povo americano, que mais uma não espanta, embora doa, E era de
^si)erar que viesse em nome do “frio e calculista" cientismo, novo
-'loloch não menos insaciável de sangue e de carne humana do que o
'''CU predecessor.
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SciELO
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Apela-se i)ara a lição dos antropologistas para aconselhar-se a
adoção de uma providência tão horrivel como essa. Mas afinal, o que
são os antropologistas? Não serão homens como os outros, a manejar
teorias abstratas, construídas muitas vêzes sob a inspiração de inte-
rêsses subalternos e de preconceitos de raças? Não estarão êles, por
isso mesmo, mais expostos do que ninguém a se extraviarem, a erra¬
rem e a nos induzirem ao mal em vez de ao bem? Não é contra a se¬
dução do prestígio de forjadores de refalsadas teorias da natureza
dessa que nos têm querido precaver os nossos melhores patrícios, quan¬
do escrevem, como João Mendes de Almeida:
‘‘Acêrea dos índios do Brasil e em geral do homem americano, os
europêus não se cansam, desde o século de acumular êrros sôbre
erros, fábulas sôbre fábulas... O que. porém, mais deve doer ao bra¬
sileiro é ([ue. mesmo no Brasil, há muita gente que não conhece os in¬
dígenas brasileiros senão pelo que franceses, alemães e inglêses escre¬
veram e ainda escrevem".
O valor de uma ciência mede-se pelo grau de exatidão com que
as suas teorias abstratas representam a realidade, refletem os fatos
do mundo objetivo, facultam-nos previsões relativas a ocorrências
que nos possam interessar, e indicam-nos os meios de as modificar
para melhor adaptá-las às nossas conveniências: e um cientista vale
])e!o emprêgo que faz. ou aconselha que se faça, das teorias que ensina,
no sentido de servir a sociedade em que vive e para tornar mais bela,
mais cômoda, mais feliz a vida de seus semelhantes. Tornar o homem
cada vez mais moralizado, isto é, cada vez mais sociável, é a missão da
verdadeira ciência e é a função dos que a cultivam com dignidade.
Ora, a sociabilidade consiste, não em suprimir ou deixar extinguirem-
-se os fracos, os imbeles, os ^•elhos, os doentes, os aleijados, mas sim
em proporcionar a cada um dêles os meios de terem garantida a vida,
a subsistência e o bem estar.
A civilização não é uma entidade extra-terrena, à qual se devam
imolar \ ítimas humanas; ela não é um fim. mas um meio, um ai)arelho
com o qual criamos, desenvolvemos ou aperfeiçoamos uma ordem ar¬
tificial que suprima, ou pelo menos, atenue as asperezas da ordem
natural. Por ela. torna-se desnecessário, e depois condenável, a eli¬
minação dos infirmes, dos inca])azes. dos que não podem trabalhar
nem produzir: e isso tanto é verdade em relação aos indivíduos como
em relação aos povos de indústria primitiva, de pequena população e
baldos de recursos militares.
Se i)ois. a antropologia ensina coisas que não se acordam com os
dados da observação e da experiência, ou que. pior do que isso se
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opõem a esses dados, então será ela, e não os fatos, que se há de re¬
jeitar, por falsa e refalsada fonte de erro. E se há antroi)ologistas
que, falando em nome de ciência tão imprestável e perniciosa, não re¬
cuam diante do horror de verem aplicadas as atrozes conclusões de
suas teorias, mas. indiferentes aos sofrimentos que vão causar, acon¬
selham “calculada e friamente" que sejam postas em execução, então
não devem esperar que homens de coração os tomem como j.^uias e
mentores.
A nossa pátria possue, a respeito dos indios, seus filhos de civili¬
zação primitiva, uma experiência própria, que não pode ser vencida
nem se deve deixar vencer e excluir por afirmações de teoristas e de
teorias que á nossa estima e ao nosso respeito só apresentam como tí¬
tulo o nome g^rego atrás do qual se embiocam. Pois não seria ridículo
que a longa experiência de um Rondou, de quem Nordenskjõld, citado
por jMiranda Ribeiro, disse — “êle realizou um trabalho tão impor¬
tante e grandioso que dentro dêstes 50 anos \ indouros será único: o
nieti trabalho, bem como o de Roosevelt, são seus complementares":
que a longa experiência de um Rondou, forjada ao fogo de mais de
30 anos de convívio com os índios, nos sertões; que a de um Couto de
ãlagalhães: a de um Barbosa Rodrigues; e, mais modernamente, a de
um Roquette Pinto e a de um Miranda Ribeiro, para não falar na dos
empregados do Serviço de Proteção que diuturnamente andam, há
luais de dois lustros, lidando com selvícolas de todos os sertões do Bra¬
sil e de todos os graus da respectiva civilização; que tôda essa exjie-
riência hou\-esse de ser rejeitada i)ara se por em seu lugar o que em
contrário a ela afirmam antropologistas. só por serem antropologistas?!
‘‘Raças refratárias ao progresso, povos-avessos à civilização"!
^"o entanto, (juanto observadores, dos que têm privados com êles, par¬
ticiparam da oi)inião de João de Lery. que se julgava mais seguro entre
eles do que em alguns lugares de França: ou de Ives d'Evreux. que os
ceputava muito mais fáceis de civilizar do que o comum dos campónios
franceses.
Refratários ao progresso"! Xo entanto, um escritor francês o
lúr. Amedée Moure, em 1862, publicando uma notícia sôbre “OS
í-\'DIOS DA PRO\'ÍXCIA DE MATO-GROSSO", dava o seu de¬
poimento : “Êles parecem correr ao encontro da civilização, que nenhum
estorço faz para os receber. . . Bastaria dar-lhes um ])ouco de proteção
e socorros: e ter sobretudo cuidado i)ara que os seus vizinhos, os ci\ i-
lizados. não os ex])lorem, e (pie os crimes cometidos contra êles sejam
•'eprimidos de modo a imprimir-lhes o sentimento de justiça, de eqüi-
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SciELO
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dade, que deve reger tôda organização social sábia e liberalniente
instituída".
Acusações como essa, de serem avessos à ci\ ilização, substituem,
para idênticos fins, as (|ue se articulavam outrora ])or terem prestigio
para impressionar os espíritos, e às (piais se refere o General Couto
de Magalhães nestas palavras: “Para se poder matar o índio, como
se mata uma fera bravia, para poder tomar-lhe impudentemente as
mulheres, roubar-lhes os filhos, criá-los para a escravidão, e não ter
para com êles lei alguma de moral e nem lhes reconhecer direitos, era
mister acreditar que não tinham idéia de Deus nem sentimentos morais
ou de família'’.
Arouche Rendou, cpie escreveu sôbre êles na época cheia de en¬
tusiasmos e esperanças da Independência, não os tinha na conta de
avessos ao progresso: “inuitos servem nos corpos militares, disse êle,
muitos querem ser brancos, e alguns já são havidos por tais desde que,
por meio do cruzamento das raças, têm esquecido a sua origem. Tais
são muitas famílias novas, de curtas genealogias ( ^).
E qual a arte, o ofício ou o gênero de ati\ idade que ainda se não
conseguiu que aiirendessem e exercessem com proveito? Como tra¬
balhadores de machado não encontram cpiem os ipuale entre os macha-
deiros de tixlas as origens: como canoeiros, navegadores de rios, são
inigualáveis; como campeiros de gado, alcançam e excedem os nossos
mais reputados boiadeiros do Xorte e do Sul; como lavradores,
adaptam-se a todos os gêneros de cultura: no Sul o trigo, em São
Paulo, o café, no Xorte o algodão, e por tcxla a parte o milho, o feijão,
o arroz, a mandioca, a cana de açúcar, etc. Se lhes fornecemos escolas,
como as cpie o Serviço mantém nas Povoaçoes Indígenas e em certos
Postos, com facilidade ajirendem a lêr. escrever e contar. As suas mu¬
lheres aprendem a coser á mão e à máíjuina, e êles ajeitam-se aos tra¬
balhos dos motores a vapor, das serrarias me(:anicas. dos maíiuinismos
de beneficiamento de cana. de café. de manclioca, de algodão e de ce¬
reais. Se o en.sejo se lhes oferece, ei-h^s tripulantes, foguistas e pi¬
lotos de embarcações a vapor ou a gasolina, lornam-.se ferreiros,
carpinteiros, seleiros, alfaiates, enfim, oficiais de (jualquer profissão (*)
(*) Um norte-americano, .Vrthur C. Parker, ainda recentemente escreveu: _ Conhe¬
ço muitas pessoas que não querem ser tidas como mdios. -A.lgumas nunca mencionam
seus avós e ninguém pensa em perguntar por eles ; outros redondamente negam que tenham
sangue índio e afirmam que sua ascendência e francesa ou espanhola... Conhecemos sacer¬
dotes, escritores, advogados, engenheiros, escrivães, funcionários públicos, jornalistas c outros
que têm em grau proeminente o sangue indígena e que no entanto não são contados como
índios. — Êstes fatos nos levam a supor que o sangue indio está muito mais difundido do
que se imagina. — The qiiartely journal of thc Socicly of American Indiaits, vol III 19151
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TeiELO
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elementar que se lhes queira ensinar. Extratores de erva-mate, de óleo
de copaíba, de i)oaia, de castanhas, de cáncho e de numerosos outros
produtos florestais, transformam-se em trabalhadores de construção
c de conservação de estradas de ferro e de rodagem, ou de linhas tele¬
gráficas. Com a mesma facilidade aprenderam a arte de manipular
os aparelhos Morse, para receber e expedir telegramas. Xa grande
Linha de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, o General Rondon já
formou 10 telegrafistas, tirados do seio da nação Pareci; destes, uns
estão empregados como praticantes, outros como profissionais de classe.
A Estrada de Ferro Noroeste, na seção de iMato-Grosso, emprega dois
telegrafistas terenas; um outro é praticante na linha recém-cons-
truída de Campo-Grande a Ponta-Porã. E até como professôres,
dactilógrafos e ourives há exemplos dêles se aplicarem com sucesso; a
diretoria de índios possue bijouterias de prata, feitas por índios Tere-
na, do Pòsío de Proteção do P>ananal.
Enfim, o que falta para provar que os índios formam um ])ovo
eminentemente ada])tável a todos os progressos e afeito a adotar as
diretrizes da nossa civilização? E não se pense que esta conclusão
esteja afirmando um fato peculiar, exclusivo aos aborígenes do Pra-
sil : não! o que fica dito aplica-se a todos os povos autóctones do con¬
tinente de Colombo.
Dos da América do Norte, escreveu F. Leupp, na obra citada:
“Quanto mais estudamos o índio, tanto mais nos impressionamos com
a forte evidência de i)arentesco cjue há entre a maior parte de seus
traços e os de nossos remotos antepassados . A conclusão é ([ue aquilo
QUe chamamos o problema índio, é mais um ])roblema humano do que
tuna questão de raça”.
E noutra ])assagem. levando mais longe o paralelo : “. . . não obs¬
tante a analogia que há entre os costumes de tódas as raças no seu es¬
tágio primitivo, o índio possue uma individualidade distinta, e nada
patenteia isto de modo mais convincente do que a maneira pela qual
Ge sobreviveu aos sofrimentos por (jue teve de i)assar como vítima da
t^onquista.
‘■Sui)onha-.se (lue, um século atrás, um povo absolutamente es¬
tranho à nossa civilização, aos nossos hábitos e á nossa língua, tivesse
invadido as nossas costas marítimas e tocado diante de si os colonos
Pranco.s para distritos cada vez mais isolados ; tivesse destruído as in¬
dústrias de (jue subsistiam êsses colonos, e coroado tudo ])elo desar¬
mamento e encerramento dêles em vários tratos de terra nos quais êles
não se pudessem alimentar, vestir e cuidar à sua própria custa : Qual
n condição a que etariam reduzidos os norte-americanos brancos de
SciELO
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hoje? Xão obstante a vigorosa seiva da sua ascendência, certainente
êles teriam caído em fraqueza de espírito, de corpo e caráter, e esta¬
riam afogados na miséria. Xenhnma raça da Terra poderia vencer,
por forças nascidas do seu prói)rio seio, o efeito de semelhante trata¬
mento. Que os índios não tenham ficado totalmente arruinados i)or
êles, eis a melhor prova que j)odemos dar do forte traço do caráter que
lhes é próprio’’.
Estas, sim: são palavras de sadia e verdadeira sabedoria, da sa¬
bedoria que convém ser cultivada entre nós e inculcada à gente brasi¬
leira, como fonte necessária e exclusiva daquela política eminentemente
humana que José Bonifácio nos prescrevia e para a (jual nos criou
um lugar no concérto das nações livres: a sã política, é filha da moral
e da razão.
Foi nos sentimentos que a inspiram, que o poeta patrício encon¬
trou o conselho com que nos adverte no nosso descabido orgulho de
civilizado:
Foram qual hoje o rude americano
O valente romano, o sábio argivo;
Xós que zombamos deste povo insano,
Se bem cavarmos no solar nativo,
Dos antigos heróis dentro às imagens
X’ão acharemos mais que outros selvagens.
E foi também ])or êsses sentimentos que um nosso grande coevo
fés jus à admiração do mundo civilizado, justa anteciitação da glória
e do respeito que hão de cercar o seu nome pelos séculos ^■indouros a
dentro. Tais sentimentos são {luc desabrocham em obras como essas
que dão lugar a se dizer, noutras plagas: ‘*o General Rondon passou
a ser conhecido como o W illian Penn do In asil, jtela sua penetração
pacífica do sertão desconhecido de íMato-Grosso, no qual ganhou com
imenso sucesso a confiança dos aboríqenes ])elo tratamento admirável
0 pela proteção humana (pte lhes dispensou .
Tais são as tradições e as aspirações gerais da elite, não só de
nossa pátria, mas também de todo o mundo civilizado: as falsas opi¬
niões em contrário estão essencialmente condenadas à morte e ao es-
(juecimento, e muito foi (lue tivessem aparecido algum dia à luz meri¬
diana da tribuna e da imprensa.
cm
•SciELO
0 11 12 13 14 15 16
I
üjilliolcrio lín ^“^ririfuíturn Jiiuliiotria c 4oiumcrna
ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DO
ESTADO DO PARANA
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estudo exemplar cocportaaen'^
O Dir/rtor
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2 3
7 SciELO 77 72 73 74 75 75 17
A C:OMISSÃO DE LINHAS TELEGRÁFICAS ESTRATÉGICAS DE
Mato-grosso ao amazonas e o sermço de proteção aos
ÍNDIOS na exposição DO CENTENÁRIO
A IXAUGURAÇÃO DOS SEUS MOSTRUÁRIOS, OXTEM REALIZADA, COM A PRESENÇA DO
SR. PRESIDENTE D.\ REPÚBLIC.A
Os discursos dos Srs. General Rondou c Ministro Caluion. Visita à E.vposiçrw
■AS I.MPRESSÕES DO SR. PRESIDENTE DA REPUBLICA
X’o Palácio das Grandes Indústrias da Exposição do Centenário, efetuou-se
ontem, às 11 horas da manhã, com a presença do Sr. Presidente da República, a
inauguração dos mostruários organizados pelas comissões das Linhas Telegráficas
i^ie Álato-Grosso e do Serviço de Proteção aos índios, chefiados pelo Sr. General
1'london.
Todos os trabalhos expostos patenteiam, conforme acentuou no seu discurso
o Sr. Dr. ÁÍiguel Calmon, Álinistro da Agricultura, o esforço, a dedicação e o
patriotismo com que o Sr. General Rondou c os seus incomparáveis companheiros,
se têm empenhado nessa grandiosa obra de desbravamento dos nossos sertões, em
prol do melhor conhecimento e aproximação das vastissimas zonas do nosso
grande noroeste e das pojiulações indigenas que hahitam aquelas iiaragens.
O Sr. General Ronnon. após os cumprimentos da pragmática, pedindo vénia
Sr. Presidente da República, proferiu o seguinte discurso, que resume tòda
3 obra até hoje realizada pelas comissões que tem sido dirigidas por S. Ex.:
“E.xmo. Sr. Presidente da República. Os mapas, os livros, as fotografias
^ os artefatos indigenas reunidos nestes mostruários e cuja exjiosição à curio¬
sidade pública \L E.x.^ quiz honrar coin a sua presença, lembram resumida-
iiiente, 32 anos de continuos trabalhos no interior do país, a serviço de uma
'-'aiisa, de um ideal, de um veemente desejo de contribuir para o engrandecimento
Pátria Brasileira.
Êsses tralíalhos começaram em 1S90, quando o atual chefe cia Comissão Te-
•^gráfica, como ajudante do então Major Antônio Gomes Carneiro, e na qualidade
de Tenente do Estado Maior de 1.^ classe, viu abrir-se diante de si a árdua car-
leira de sertanista e de explorador geográfico.
cm
SciELO
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— 44 —
Foi a primeira oportunidade cpie se lhe ofereceu para a realização do projeto
que fromulára, quando ainda aluno da Escola Militar, de construir um dia a
Carta do seu Estado natal.
Em 13 meses de trabalhos assíduos e esforçados, o futuro herói da Lapa tinha
concluido a sua obra. em consequência da qual a linha telegráfica estendia-se de
Cuiabá à margem esquerda do Araguaia, através de um sertão nesse tempo só
habitado por tribos da Xação dos Bororo.
Eram 580 quilômetros de linha assentada e o levantamento de 600 quilô¬
metros de estrada que a Comissão chefiada pelo grande soldado republicano
apresentava como resultado de sua curta mas brilhante campanha sertanista.
Foi essa a minha escola; foi êsse o meu único Chefe e essa a primeira fase da
carreira em que se havia de emi^enhar tóda a atividade de minha vida e o meu
inquebrantável entusiasmo pelo .serviço da Pátria c da República.
De 1892 a 1898, como Chefe do 16.“ Distrito Telegráfico de Mato-Grosso,
reconstrui por completo a linha de Cuiabá ao Araguaia e retifiquei o levantamento
da região leste, numa faixa de mais de 60 quilômetros de cada lado do fio.
Foram então levantados os dois divisores do rio das ^lortes, um principal,
com o São Lourenço e outro secundário, com o das Garças.
O ano de 1899. passei-o no Rio de Janeiro, ao lado de minha família, como
auxiliar técnico da Intendência Geral da Guerra, sob a direção do General Fran¬
cisco de Paula Argolo.
Aproveitei essa circunstância para construir o mapa da região compreendida
entre os rios Cuiabá e Araguaia, com os detalhes que acabava de colher pessoal¬
mente. durante sete anos de contínuas explorações daquele trecho do território
nacional.
Em 1900 voltei ao sertão, como Chefe da Comissão Construtora da Linha
Telegráfica do Sul de ^lato-Grosso. cujos trabalhos se prolongaram até 1908 '
e atingiram as fronteiras do Paraguai e Bolívia, ahraugendo Beia-\’ista. Pôrto
-Murtinho. Coimbra. Corumbá e São Luiz de Cáceres, com o desenvolvimento de
1656 quilômetros de linha assentada.
Essa quarta fase de minha atividade, agora na camjianha do Sul e parte
do Oeste, durou sete anos c foi mais profícua do que as anteriores, pela multi¬
plicidade dos trabalhos empreendidos, já propriamente telegráficos, já especial¬
mente topográficos e já astronômicos.
Em 1907 iniciava-se a quinta fase da minha ação de sertanista. com os tra¬
balhos de construção da linha telegráfica do Xoroeste de ^lato-Grosso com
ramais para a antiga \'ila-Bela. Barra dos Bugres e Guajará-Miriin. na extensão
de 2.686 quilômetros de linha assentada.
Esta fase estendeu-se até 31 de dezembro de 1914.
Xesse periodo teve lugar a expedição Roosevelt. que, partindo da foz do rio
Apa. penetrou no sertão do Xorte, pelo rio da Dúvida, que de então para cá se
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ilustrou com o nome do ardoroso estadista americano; saiu no Amazonas e atingiu
u cidade de Manáus, com um percurso de mais de 3.000 quilômetros, dando lugar
u uma preciosa colaboração cientifica em trabalhos diversos.
Foi êste o período de mais ricas messes dentre todos quantos constituem a
vida das Comissões Telegráficas nos sertões de nossa Pátria.
Foi então que iniciámos os estudos de História Xatural, autorizados e ani¬
mados pela esclarecida e firme iniciativa do Ministro da Mação, no fecundo pe¬
ríodo governamental do benemérito Presidente Penna, criador da Comissão de
Pinhas Telegráficas Estratégicas de Mato-Grosso ao Amazonas.
A exploração metódica dos sertões e o estudo da natureza de 5iIato-Grosso
foram levados a térmo com esplêndido resultado pela plêiade de brilhantes ofi¬
ciais do Exército e de engenheiros civis e militares, a serviço da Comissão e por
dedicados professóres do nosso 5Iuseu Xacional e do Serviço Geológico, os quais
prodigalizaram a essa ohra tódas as energias do seu saber e do seu grande amor
pátrio.
Como resultado dos trabalhos de penetração no Brasil desconhecido, surgiu
3 idéia republicana de proteção aos indios. até então abandonados e entregues à
^ua triste sorte de raça vencida e espoliada.
O modo por que conduzimos as expedições através do Xoroeste matogros-
sense desjiertou a atenção do Govêrno e fêz brotar o projeto de novo tentâmem
para o levantamento do indio ao nivel da nossa civilização, da qual êle se con¬
servara arredio e como que repelido desde os tempos da conquista, depois de pas¬
sado o breve fulgor das primeiras tentativas jesuiticas.
Quis o criador do Ministério da Agricultura que eu organizasse e dirigisse
o novo serviço, como prova do apoio e dos aplausos que merecera do Govêrno
da República a diretriz qup seguiramos no tratamento das tribos indigenas do
■'■asto sertão que acabávamos de abrir à atividade pacifica e fecunda do homem
civilizado.
Tal diretriz não se traçara ao acaso de uma imposição de momento: ao con¬
trário disso, foi ela o fruto de um dever maduramente aceito como ])roduto' ne¬
cessário de convicções e de sentimentos que nos conduziram a respeitar as inde¬
fesas jiopulações feticbistas nas suas propriedades, nas suas pessoas e nas suas
instituições politicas. sociais e religiosas.
Os meus abnegados conqianbeiros de desbravamento do sertão e de explo¬
rações geográficas, aceitaram e sempre praticaram o lema inflexível que consti¬
tuiu a bandeira destas expedições; "Afrontar todos os perigos, até a morte;
rnatar — nunca!".
E foi assim que transformámos em amigas as nações de gênio belicoso dos
^ 1’ambiquara, dos Barbado, dos Ouêpi-quiri-uáte, dos Pauatê, dos Tacuatêpe.
^ Ipotê-uate, dos Urumi e dos Ariquême, como em 1893 conseguíramos em re-
lacã
'-.ao aos Bororo do rio das Garças; e foi assim que implantámos no coração
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dos Pareci, dos Bacairi, dos Jarn. dos Uriípá, dos Caripuua a inabalável
confiança na lisura das nossas intenções e no desinteresse de nossos projetos. E
assim tem o Serviço de Proteção aos índios, filho dileto da Comissão de Linhas
Telegráficas, conseguido chamar ao campo de sua ação benfazeja inúmeras tribos
umas ainda guerreiras, outras já pacificas. Os nomes de muitas dessas tribos es¬
tão aqui representados nestes artefatos e itestas fotografias; alguns são nomes que
ainda ressoam como notas de clarim e clamores de batalhas; os Caingangue, os
Botocudo, os Parintintim, lembram fulgores de va.stos incêndios de duração se¬
cular, ainda mal extintos.. .
— A l.° de janeiro de 1915, inaugurou-se a linha-tronco de Cuiahá a Porto-
-Yelho, onde a ponta do fio ainda se acha à espera do verbo vivificador que o faça
recomeçar a sua marcha através do Amazonas, em busca do Acre e de ^Manaus,
para completar o programa do eminente estadista mineiro e o projeto patriótico
do atual Diretor dos Telégrafos.
— De 1915 a 1919, última fase da grande campanha sertanista inaugurada
com o descobrimento do sertão do Juruena empregámos os nossos esforços no
levantamento geográfico de pontos e regiões importantes de ^lato-Grosso.
Estudámos então o vale do Araguaia com traVessia para o Xingu ; do Ta¬
pajós com transposição para o Sucunduri e Canumã. Completámos o leventa-
mento dos vales do Madeira e do Paraguai ; traçámos o divisor das águas do Pa¬
raná com o Taquari e o Aquidauana.
Levantámos as cabeceiras dos rios Correntes, Itiquira, Garças e São Louren-
ço, como complemento dê levantamentos anteriores dos cursos desses rios. Igual¬
mente levantámos os cursos do Arinos, do Teles Pires, antigo São Manuel ; deli¬
neámos os divisores destes rios e do Xingu com o Cuiabá e rio das Mortes. Amar¬
rámos o nosso extenso nivelamento barométrico das regiões percorridas às esta¬
cas de nivelamento da Comissão do Planalto Central, partindo de Goiaz, à da
Construção da Estrada de Ferro X^oroeste do Brasil em Pôrto-Esperança, através
do sertão intercalado entre aquela Capital e a de I^Iato-Grosso e pelos rios Cuia¬
bá, São Lourenço e Paraguai.
\'oltámos ao setor compreendido entre o, Gi-Paraná. Guaporé e o Madeira
para levantar o divisor do Machadinho com o Anari ; dêste com o Jaru ; dêste
com o Urupá e os seus respectivos cursos; Ikmu assim às cabeceiras dos rios
Branco e Preto do Jamari ; Prêto do Gi-Iaraná, Juruàzinho; Jamari, Canaã.
Pardo, Quatro Cachoeiras: Urupá, Cautário, Cautarinho. São IMiguel e Ricardo
Franco, assinalando neste último trecho o divisor do Gi-Paraná com o Guaporé.
Caracterizámos então as diferentes serras desses divisores e a extremidade
norte da cordilheira dos Perecis, determinando por interseção a ponta oriental da
Serra Pacaá-Xovo. as quais definem a grande garganta dos campos dos Urupás.
nódulo geográfico importante, de onde promanam águas que vão para o Gi-Paraná.
Madeira e Guaporé.
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]\Iais para o sul patenteámos importantes contrafortes daquela cordilheira,
aos quais demos os nomes: Uôpiane, Aleixo Garcia, Pires de Campos, Pascoal
Moreira e Antunes Maciel; regiões habitadas pelos índios Cabixi do norte, üômo,
Aruá, Purus-Borá e Macurape.
Êstes estudos orográficos completaram a descoberta de 1908 a 1909, da ori¬
gem da Serra do Norte, onde nascem os rios Xhambiquaras, 12 de outubro e Iquê,
contribuintes do Camararé, e onde vivem os Xbambiquara-Anunzê.
— De 1920 a 1922, finalmente, retificámos os levantamentos realizados no
divisor do Arinos e Paranatinga com o Cuiabá; explorámos o Culuêne, formador
do Xingu-
Estudámos a cabeceira prncipal do Paraguai e o varadouro que liga a estação
telegráfica de ^'ilhena à foz do Cabixi, que foi levantado, estabelecendo desde en¬
tão a navegação dêste rio, pelo qual começámos a prover o alto sertão do Noroeste
mato-grossense com viveres e mercadorias importados de IManaus pelo Ama¬
zonas e IMadeira, Estrada de Ferro IMadeira-lMamoré e rios Mamoré e Guaporé.
Construimos a linba telegráfica de Aquidauana a Ponta-Porã, por Campo-
-Grande, Campos da \'acaria. Brilhante e Caiuás, com o desenvolvimento de 508
quilômetros de linha assentada, completando assim o estabelecimento de linh.as
telegráficas nas fronteiras de IMato-Grosso.
Para aproveitar o imenso cabedal topográfico, astronômico e corográfico,
acumulado desde o advento da primeira Comissão Telegráfica, instalámos nesta
Capital um Escritório Central com uma Seção Cartográfica e de Desenho, cujos
trabalhos se resumem com eloqüência nestes diferaites mapas.
Construindo primeiramente as plantas dos Reconhecimentos, Explorações e
Eevantamentos diversos, formulámos depois o projeto de iniciar a cojistrução da
Carta de IMato-Grosso com os elementos até então adquiridos e pacientemente co¬
lecionados, na escala de 1: 100.000 em projeção policônica da Carta do IMundo e
está sendo impressa no Serviço Geográfico do Exército francês, inestimável
colabriração de boa camaradagem do exército da grande nação ocidental.
Para divulgação, reduzimos essa Carta à escala de 1 :300.000, em impressão
iia litografia Ipiranga de São Paulo.
-Mém dessas, construímos mais a Carta Sintética, na escala de 1:2.000.000,
"upressa no Gabinete Fotográfico do Estado-Maior do Exército; carta essa que
serviu para indicação dos trabalhos sertanejos e descobertas realizadas pela Co-
íiiissão e que foi aproveita<la na construção do Mapa do Brasil, mandado publicar
peio Governo Federal em comemoração do Centenário.
Com o mesmo intuito desenhámos cartas para ilustrar os trabalhos de Bo-
lainca. Zoologia, Geologia e de Etnografia, dos quais possuímos preciosas me-
»>orias escritas pelos distintos profissionais e cientistas que se encarregaram de
tao valiosas pesquisas.
Está também em construção a Carta de Navegação do Brasil-
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Para completar os nossos estudos cartográficos de Mato-Grosso, pesqui¬
sámos dentro e fora do país. tudo quanto as intituiqões científicas e bibliotecas
possuíam da cartografia daquele Estado, dos tempos coloniais.
Um dos resultados práticos dêsse imenso labor foi a revelaqão das minas de
sulfureto de ferro nas cabeceiras do São Lourenço; o descobrimento das de ouro
e diamante nas cabeceiras do Cabixi e Corumbiara; de manganês nas origens do
rio Manuel Correia. Serra Pires de. Campos e vale do rio Sacre; de gipsito nas
cabeceiras do Cautário; de mica no córrego do Campo, contribuinte do Pimenta
Bueno; de ferro no vale do baixo-Garças; assim como o assinalamento da exis¬
tência abundante da ipeca cinzenta no vale do Pimenta Bueno e margens do Gi-
Paraná até Urupá. nos vales do Jaru e Jamari, do Lrupá, do Cautário e do São
Miguel, muito ao norte da região onde essa rubiácea foi primeiramente conhecida
e industrialmente explorada, na célebre mata da poaia do alto-Paraguai. Do mesmo
modo foram marcadas as regiões em que a Hevea, a Bertholetia e a Castillõa
vivem em grandes associações no território ao norte do paralelo de Diamantino, e
entre os rios Araguaia e Guaporé.
Tão grande soma de trabalhos não podia, infelizmente, ser levada a têrmo
sem que pelo caminho ficassem caídos muitos dos esforçados pelejadores.
A estrada a percorrer era longa e de árduo acesso; forçoso era que muitos
tombassem para acender ao longo dela o facho do martírio, a cujo clarão a pos¬
teridade há de rever a sombra dos sacrifícios a que voluntariamente se votaram
os novos exploradores dos ínvios sertões.
É na invocação dessas memórias imortais que revemos a cada hora o travo
das privações passadas, o péso das grandes fadigas, a agonia das saudades infi¬
nitas e também os intantes gloriosos dos triunfos conquistados.
Elas tinham, pois, de comparecer aqui, onde neste momento a Xação. pelos
olhos do seu Chefe e natural representante, vê e aprecia a natureza e o valor da
obra realizada.
Em primeiro lugar, vede a imagem do imortal Gomes Carneiro; ela evoca a
lembrança, não só dos iniciadores das construções telegráficas pelo interior de
Mato-Grosso e de nossa Pátria, como também a memória dos grandes obreiros da
civilização dos nossos antigos sertões, desde os Capanemas, os Pimenta Buenos, os
Taunays, os Couto de Magalhães, os Levergers e tantos outros, até Ricardo
Franco de Almeida Serra, o tqKi mais acabado do sertanista generoso e desin¬
teressado. do explorador inteligente, esclarecido e infatigável dos tempos coloniais.
Eis agora, o saudoso república mineiro, o clarividente Affonso Peirna, em
tórno de cuja efigie grupam-se as memórias de todos os homens de Estado que.
furtando-se à fascinação das grandes cidades do nosso litoral, dedicaram um pen¬
samento e uma parte do seu esfórço em benefício do nosso hiiitcrland e dos nossos
sertanejos.
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Por fim, levanta-se a figura que representa a plêidade brilhante dos iiue
tombaram dentre as fileiras dos lutadores desta extensa campanha de 32 anos, que
tem por teatro tõda a vasta região do nosso território, donde promanam as águas
das nossas duas grandes bacias fluviais do Sul e do Xorte. <
É o Capitão Cândido Cardoso, modesto e pertinaz colaborador desta obríf.
ingente, à qual começou a servir quando ainda simples sargento, desde 1890, e'
na qual foi conquistando vagarosamente os seus gloriosos galões até cair morto,
em 1913, em pleno sertão, em meio de férvida peleja.
Pela sua humilde origem, pela sua inquebrantável constância, pelo pôsto a
que se elevou no sertão, êle conquistou o privilégio inestimável de representar
com tõda a propriedade o conjunto dos mortos das Comissões Telegráficas de
Aíato-Grosso. \'endo-o, nós lembramos os que foram, com éle os humildes
obreiros, sein cujo braço e sem cujo devotamento não nos teria sido possível lançar
nem a primeira pedra dêste edificio; a turba ativa, operosa, indispensável e anô¬
nima das praças de pret, dos trabalhadores nacionais e dos empregados dos te¬
légrafos, à qual nos reconhecemos devedores de profunda gratidão.
Mas também, como oficial, êle nos lembra êsse punhado de nomes brilhantes.,
de cooperadores inteligentes, esclarecidos, dedicados, que tão alto elevam o me¬
recimento da obra a cujo serviço se sacrificaram, desde essa grande esperançar
que foi o Alferes-aluno Francisco Bueno Horta Barbosa até Marques de Sousa,.
Botelho, o ardoroso Lyra, o geólogo Cicero de Campos, o inspetor dos telégrafos'
Salathiel Cândido de Morais Castro, o canoeiro SimpHcio, e o incomparável ca¬
cique Toloíri (*).
Associamos a esses vultos nacionais, como homenangem à solidariedade hu¬
mana, a figura enérgica do grande amigo do Brasil, o ex-Presidente american»
Coronel Theodoro Roosevelt, em tôrno do qual se grupam os colaboradores es¬
trangeiros da obra realizada no território nacional: a exploração do solo em
'benefício da cciência e da civilização levada a efeito pelos Saint-Hilaires, Castel-
rieaux, Chandlers, von den Steines e por tantos outros ilustres geógrafos e na-
hiralistas que perlustraram os sertões do Brasil e especialmente os de Mato-Grosso.
Foram êsses os obreiros, Exmo. Sr. Presidente da República! ^
É esta a obra !
Kós almejamos, como recompensa máxima de nossa vida, que a Nação nos
ceconheça dignos de uns e de outra, depois de haver reconhecido uns e outra-
"^'ignos de figurarem como simples ornamento da grande construção para a quaR
há cem anos, José Bonifácio e os seus colaboradores edificaram a liberdade po¬
ética da nossa Pátria.
jj- Sem esquecer outros valorosos colaboradores que tombaram em postos que exigiam
Ped sacrifícios a bem da Pátria, como essa grande individualidade que foi o major
cu' Pibyiro Dantas, devotado levantador do .Araguaia e explorador do rio das Mortes,
na^ rser-i-iços ao Brasil terminou em virtude dos padecimentos a que se expôs
'-omissão de Limites com o Peru.
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A vós, Exmo. Sr. Presidente, dizer, pela Xação, se nos cabe esperar tal
recompensa”.
As últimas palavras do Sr. General Rondon foram cobertas por prolongada
salva de palmas.
O Dr. Miguel Calmon, Ministro'da Agricultura, em resposta, disse que tôdas
as coisas que estavam patentes na exposição que se ia inaugurar, bem como a sin-
tese admirável que o Sr- General Rondon acabava de fazer dos trabalhos da co¬
missão de que era chefe, não constituiam motivo de admiração para as pessoas
que, como êle, orador, bem conheciam o esforço, a dedicação e o patriotismo com
que o General Rondon e os seus incomparáveis companheiros se têm dedicado a
esta grandiosa obra de desbravamento dos nossos sertões. É preciso assinalar a
importância capital que têm êsses trabalhos, que revelam a grande capacidade dos
brasileiros para a tomada da posse efetiva do extenso território de sua pátria.
As entradas dos bandeirantes, as conquistas de territórios por êles realizadas,
ficaram sem seguimento, por parte dos brasileiros, durante todo o século passado.
Surgiram então os estrangeiros à frente de comissões científicas, destinadas a
descobrimentos geográficos e etnográficos e, em nome dos seus governos e inte-
rêsses, exploraram o nosso interior. Entre tais comissões se destacam a de Mar¬
tins, a do Príncipe Ludendorf e a do Príncipe iMaximiliano da Prússia, da qual
fêz parte Bismark — que foi depois chanceler do Império Alemão.
Cabe a Rondon a glória de ter retomado êsse trabalho de exploração da terra
brasileira, em nome dos interêsses e-dos ideiais da nossa nacionalidade. Esse
é, por certo, um dos aspectos mais interessantes dessa obra e, por isso mesmo,
precisa ser devidamente realçado pela sua significação patriótica.
O General Rondon, continua o orador, procurou realçar com grande Insis¬
tência, o espirito de devotamento com que os seus companHeiros aceitaram o pro¬
grama de sacrifícios que lhes foi imposto na frase, já hoje histórica: ‘‘Sofrer
até a morte; matar, porém, nunca.
O orador, por sua vez, pode prestar o seu depoimento de que Rondon foi o
primeiro a dar o exemplo de submissão pessoal a êsse programa de sacrifícios e
abdicações.
S. Ex.a era ^linistro da Viação, por cuja pasta corriam os trabalhos das
expedições de penetração de Rondon nos sertões dos Parecis e Xhambiquaras.
A fama, não só de guerreiros, mas até de antropófagos de que gozavam os mem¬
bros desta última tribo, fazia com que todos temessem pela sorte dos destemidos
expedicionários. A esposa de Rondon. participando dos mesmos receios e vendo
que o seu marido se expunha aos maiores perigos, procurou o ^Ministro no in¬
tuito de lhe pedir uma providência qualquer que compelisse Rondon a adquirir
e a usar uma cota de malha, enquanto se encontrasse entr» -i « ,•
ciiire aqueles indios guer¬
reiros.
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Rondon declarou cjue só aceitava o alvitre, se o mesmo se pudesse adotar para
todos os seus auxiliares — oficiais e soldados. Para tanto seria necessário fazer
uma despesa avultada, superior às forças do orçamento destinado ao serviço.
Portanto, na impossibilidade de comprar cotas de malha para todos, Rondon não
aceitou a que lhe era oferecida para o seu uso pessoal, apesar dos insistentes es¬
forços do ilinistro. E Rondon continuou a passar nos sertões pelos mesmos tra¬
balhos, privações e perigos que passavam os seus mais modestos auxiliares.
Terminando a sua oração, o Sr. Alinistro Calmou felicitou o Sr. General
, Rondon, em nome do Govêrno da República e da Xação, por todos os grandes
trabalhos realizados pela benemérita comissão de Linhas Telegráficas e Serviço
de Proteção aos índios. O discurso do Sr. Alinistro da Agricultura foi viva¬
mente aplaudido pelo numeroso e seleto auditório.
Em seguida, o Sr. General Rondon, depois de apresentar ao Sr. Presidente
da República os seus auxiliares, passou a percorrer com S. Ex^. e os Srs. Mi¬
nistros, os mostruários da comissão, já no que se refere ao Serviço de Proteção
aos índios, já no que se refere aos mapas e outros dados relativos às Linhas Te¬
legráficas. De começo o Sr. Presidente teve ocasião de ver a maquete do monu¬
mento que se projeta erigir no noroeste de Mato-Grosso para nêle serem reco¬
lhidos os despojos dos mortos da IMissão Rondon, que jazem esparsos pelos ser¬
tões e em sepulturas provisórias. Êsse sarcófago (*) será representado por uma
pirâmide de granito, de sólida base. onde serão gravados, com caracteres de bron¬
ze cs nomes dos 204 mortos que tombaram em pleno sertão. Xo pórtico uma
estátua de bronze representará um indio, significando a origem e a razão de ser
do monumento.
Xa seção do Serviço de Proteção aos índios o Sr. Presidente da República
teve e.xplicaçces sôbre o uso e procedência dos muitos e curiosos artefatos indí¬
genas que ali se encontram em grande profusão, desde os adornos de penas, co-
(*) O artista nacional Sr. Eduardo Sá. autor dêsse projeto, dá dèle a seguinte des¬
crição : O monumento destinado a encerrar os restos mortais dos au.xiliares da Comissão
Rondon se comporá de um sóco formado i)or três degraus e de uma pirâmide de base qua-
drangular. apresentando um conjunto simples e severo. — O sóco guardará os despojos dos
humildes companheiros animais : cavalos, cães. bois, etc., sacrificados no desbravamento dos
sertões; e a pirâmide será a urna funerária, abrigo último dos cooperadores da grande obra
de abnegação, desde o mais modesto cidadão até o que mais assinalado se tornou entre os
obreiros da nobre causa da incorporação dos indigenas na Pátria brasileira. — Trés placas
onde figurarão esculpidos os nomes dos mortos no serviço da Comissão cobrem as faces
laterais e posterior da pirâmide, em cujo lado dianteiro, alto relêvo simbolizará o sacrifício
con.í-ciente dos que se dedicaram à proteção nacional devida aos índios, seguindo, no proceder
derradeiro, o lema da Comissão, que se lerá gravado na pedra — " ,\frontar todos os perigos,
até a morte: matar, — nunca !" — Encimando as placas, baixos relevos representarão vultos
dos precursores da obra civilizadora e também o escudo da Bandeira Nacional com a divisa
da politica moderna — Ordem e Progresso. — Sôbre os degraus, na frente do monumento, a
estatua de um indio c&çador, em atitude de atenção simpática, mostrará aos nossos irmãos
das selvas o sentimento de respeito com que devem apreciar o monumento, até que os nossos
Posteros melhor destino dém às relíquias que ao presente cumpre guardar com saudade e como
•estimulo a outros sacrifícios se porventura déles precisar a causa nacional. O monumento
sera de granito, tendo as placas e a estátua de bronze.
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lares de dentes de animais e outros produtos de sua indústria primitiva, até os
variados e l)em acal)ados objetos, já fabricados com os recursos da nossa iu-
diistria ocidental, como chapéus, cestas, arreios, sandálias, e outros.
Tudo foi demoradamente examinado pelo Sr. Presidente da República.
Pelos documentos expostos sôbre uma mesa, o Sr. Presidente da República
se inteirou do número e de outras informações sôbre as escolas, oficinas, cul¬
turas existentes nos vários estabelecimentos montados e dirigidos, no interior do
Brasil, pelo Serviço de Proteção aos índios.
.A seção cartográfica, a cargo do Sr. Capitão Jaguaribe de Matos foi tam¬
bém cuidadosamente examinada pelo Chefe da Xação, cpie recebeu informações
minuciosas e interessantes dos vários tfechos de territórios que os respectivos
mapas representam.
Terminada a visita, o .Sr. Dr- Arthur Bernardes inanifestou a sua impressão.
Disse (*) S. Ex.^ que percorrera com civica emoção tôda aquela sala onde em
cada objeto, livro ou mapa, se via um testemunho eloquente, do quanto pode
fazer jtela Pátria e pela República um pugilo de jiatriotas congregados e diri¬
gidos por um chefe, todo dedicação e pertinácia, ao serviço de uma nobre e pa¬
triótica missão. 'Ao terminar o seu exame sentra-se bem em felicitar o soldado-
-cidadão. General Cândido iMariano da Silva Rondon e seus dignos companheiros,
pela grandeza da obra realizada, podendo a todos assegurar o seu apoio, quer
oficial, quer particular.
Depois, S. Ex.^ abraçou o Sr. General Rondon. pedindo-lhe que transmi¬
tisse a seus subordinados as suas felicitações.
Ct Sr. Ministro Calmon. despedindo-se'do Sr. General Rondon, disse-lhe
que se retirava dali ainda mais brasileiro do que entrara.
(*t' O -Sr. General Rondon deu do pequeno discurso do Sr. Presidente da República
o seguinte apanhado: Xão vim aqui, disse o Exmo. Sr. Dr. A. Bernardes trazido iwr rm
simples movimento de curiosidade; vim movido pelo sentimento de um a.. .,C..
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EM DEFESA DO ÍXDIO (*)
Diário do Congresso de 27 de dezembro de 1922, página 8592.
— Fala um deputado pelo Distrito Federal:
‘‘Porque nos obrigam — diz êle — a votar aquela verba siintuária
que se repete anualmente, destinada ao serviço de proteção aos índios ?
Quais os benefícios que ao país tem proporcionado êsse dispen¬
dioso serviço?
Como obra suntiiária êle aí está para mostrar que o Brasil, à beira
da bancarrota, ainda tem recursos para catcqiti::ar indígenas incultos.
Xa seção do Serviço de Proteção aos índios o Sr. Presidente da República
forcejando debalde por adaptá-los à ciz'ili:;ação que os repele.
Repto a Ex”. (dirige-se a outro deputado) a mostrar que ser¬
viço tenha produzido a comissão de proteção aos índios. Êsse ser¬
viço conta com verbas tão faustosas cjue chegam a causar-nos irri¬
tação nesta época de verdadeira penúria.
Não tenhamos, por espírito de nacionalismo piegas c ineompre-
cnsivel a veleidade de explicar à nação que é preciso proteger o sel¬
vagem porque êle c útil à nossa cultura e necessário às conveniências
nacionais.
A história brasileira não apresenta, desde que resolvemos despir
os índios das falsas ^■estes que os poetas lhes hajam emprestado, um
exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso
progresso.
Os antroitologistas nos móstram que povos avessos à civilização,
ao invés de serem socorridos pelos poderes públicos, devem ser cal¬
culada e friamente deixados aos seus próprios destinos. Xo entanto,
senhor presidente, quando a juventude doente da metrópole brasileira,
quando o analfabetismo das cidades sobem de ponto à míngua de do¬
tações orçamentárias, vota-se na Câmara um orçamento de mais
de mil contos para serviços fictícios . . .
(*) Ao autor dêste trabalho, destinado originàriamente à imprensa jornalistica, agra¬
deço o consentimento que me deu de o inserir nesta publicação. — H. B.
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Parece-me incrivel apenas que nenhuma voz verdadeiramente bem
intencionada jamais se fizesse ouvir, para mostrar ao pais que êsse ser¬
viço de proteção aos indios não passa de escandaloso bliiff”.
Excetuando-se os grifos, que são meus, e alguns cortes, que fiz
por abreviação, sem alterar em nada o pensamento do orador, o mais
é txtualmente do discurso apontado, o qual não tem a clássica nota
de não ter sido revisto pelo autor, antes, pelo contrário, tem a de ter
sido reproduzido i)or haver saído anteriormente com incorreções .
Xão quero — é óbvio — com a transcrição acima fazer propa¬
ganda das respectivas idéias: quero, em vez disto, mostrar, não por
dilcttantismo ou imi)ertinência. mas por amor dos nossos indígenas
que tais idéias são errôneas.
Preliminarmente contesto que seja suntuária a verba destinada
ao Serviço de Proteção aos índios. Essa verba varia de 900 a 1. 000
contos e já tem sido de 500 e 600. A deste ano é de 1.060:5508000.
Ouem poderá em boa fé achar suntuosidade num serviço que gasta
apenas 1.065 contos para manter quatro povoações indígenas. 31 pos¬
tos de proteção com as suas obras e aberturas de estradas, e medica¬
mentos. e material de expediente, e todo seu pessoal, necessàriamente
numeroso ?
Oue arrojado blasfemador dirá que a nação dá com generosidade,
suntuàriamente, dando 1.065 contos para proteger unia população de
500 mil almas, que a tanto montam os nossos ídios?
Um ligeiro cálculo aritmético logo nos mostra que essa pojnila-
ção sái a 2.130 réis per capita e por ano: 246 réis menos do que a
etapa (só a etaiia) de um soldado aqui na margem do Taquari. onde
ela não é grande coisa, tanto assim que os homens desarranchados
custam a se acomodar com a comida que por êsse preço consemiem!
Assim, o pobre índio gasta por ano muito menos do que o sol¬
dado por dia, pois .o soldado além da etapa, tem a roupa,' o calçado e
o sóldo.
E ainda acham (jue êle é caro. quando tôda a gente diz e com
razão, que o soldado é barato!
Quais os serviços que ao país tem proporcionado êsse dispendio-
sissimo serviço? — interroga o vigilante censor.
Quais? Em primeiro lugar êsse serviço tem evitado a morte por
assasinios e misérias a milhares de criaturas tão nascidas para viver
como outras quaisquer.
Essa é a sua principal benemerência. Em semindo li,rv .l
, , . . . / . . , lugar ele tornou
habiraveis grandes e ubérrimas zonas airrico i i
, abandonadas
aos mdios bravos.
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SciELO
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— :}3 —
Isto se deu eni Santa Catarina, no Paraná, ein São Paulo, no Es¬
pírito-Santo e no Amazonas. Creio que se deu também em Mato-
-Grosso e no iMaranhão.
Tomando o caso mais vizinho do Rio de Janeiro, o de São Paulo,
posso de momento, e daqui onde me faltam recursos de tôda a espécie,
dar o seguinte atestado de benefícios do Serviço de Proteção aos ín¬
dios :
É sabido que havia em São Paulo uma região inteiramente de¬
sabitada i)or motivo da presença dos Caingangue.
Esta valorosíssima tribo defendeu e guardou, até 1912, uma por¬
ção tão grande de território do Estado, que se eu lhe pusesse aqui o
tamanho, arriscaria a minha palavra a ser desacreditada não só do
orador, como de muitos outros homens.
Isto pôsto, vou mostrar, conforme certidões i)assadas jjelo Sr.
Jfilio Coelho Ahlhena, escrivão de paz interino do Distrito de Pená-
polis. a diferença de preços das terras em questão antes e depois da
pacificação dos Caingangue. feita laboriosa e corajosamente pelo ser¬
viço com tão descabido ardor impugnado e deprimido.
Bento da Cruz e sua mulher — reza uma certidão — “vendem
tinia gleba de terra na fazenda IMoreiras, medindo z'iiitc c dois alqiici-
'>'cs pelo preço certo c ajustado de trezentos mil reis". Isto foi em 1910,
tlois anos antes da pacificação dos índios.
O cálculo dá para cada alqueire 13.636 réis. Outra certidão do
itiesmo Júlio Coelho \hlhena, relativa a 1914, dois anos depois da pa¬
cificação dos Índios, reza assim: A The S. Paulo Land & Lumber
Conipany vende uma gleba de terras na fazenda de Baguaçu, medindo
(^‘iiqncnta alqueires, “pelo preço certo e ajustado de ciuco coutos de
réis".
Cada akpieire custou, jiois. 100.000 réis, o que dá sôbre 13.636
ceis uma diferença que o próprio arguidor achará bem sensível. Essas
Icrras são hoje, com efeito, as mais valiosas do Estado.
Ehn outro cidadão, o Sr. Jesuíno \nanna de Camargo, escrivão
cartório do primeiro oficio da mesma comarca de Penápolis, cer-
hficou uma venda feita em 1919 de ciuco alqueires e benfeitorias pela
”tiportância de um couto de réis. Duzentos mil réis cada alqueire!
Eu poderia transcrever outras certidões de vendas feitas em 1916,
1918. não vale a iiena. porém, diante das tão expressivas que
estão .
^ Passemos, ixjr conseguinte, adiante. — O Brasil — continua o
‘ de])utado — á beira da bancarrota ainda tem recur.sos “para ca-
^'hiiizar indígenas que a civilização repele".
cm
SciELO
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— 56 --
Há nesse trecho mais de um engano. O serviço de proteção aos
índios — e isto já se tem dito centenas de vêzes — não cura absolu¬
tamente de catequese e sim de proteção, como o indica o seu próprio
nome.
A quem até agora não entendeu a diferença profunda que há
entre catequese e simples amparo; entre catequizar selvagens, isto é,
procurar convertê-lo a algum credo em matéria religiosa, política ou
outra de natureza espiritual e proteger selvagens, isto é, defendê-los
da opressão e abrigá-los da miséria;,a quem não percebeu ainda essa
diferença, é inútil apresentar mais explicações.
Quanto a dizer que a civilização repele os indígenas, é outro
engano. — Quem os repele são os homens sem coração, e nem todos.
A civilização ai)enas habitua-se com o desprezo e o sacrifício dos
índios como se habituou outrora com a escravidão dos africanos.
Quando, porém, percebe o mal que está fazendo, joga-o de si.
Estou seguindo os passos do orador.
Chegado a êste ponto repta éle a um seu colega para que lhe diga
quais os serviços que tenha produzido, a “comissão de proteção aós
índios”, que “conta com verbas tão faustosas”.
O interpelado confessa que não está em condições de responder.
Mas que culpa tem o Serviço de índios de não quererem as pessoas,
com um simples passeio ao ÍNÍinistério da Agricultura, receber infor¬
mações relativamente ao mesmo serviço?
As coisas boas que tem feito essa instituição patriótica são nu¬
merosas. Para não alongar êste artigo cito apenas algumas, além das
já mencionadas: Implantou a paz entre os colonos alemães de- Blume¬
nau e os Caingangue catarinenses; abriu diversos rios ao tráfico e ex-
]iloração dantes vedados. Fez do Araribá em São Paulo, e de São
Jerónimo, e organizou em São Lourenço (Hato-Grosso) e no Erechim
bem administradas que já lhe querem tomar e acabarão tomando São
Jerónimo, e organizou em São Lourenço (Aíato Grosso) e no Erechim
( B . G . do Sul ) duas outras, que em bre\ e serão objeto das mesmas
cobiças. Certa vez libertou cm plena mata amazônica cinco moças
que os Cumba, poi \ mgança, ha\ lam raptado e que, apesar de serem
os Índios tão mal falados, nenhum vexame ou violência dêles sofreram.
Levantou da progressiva decadência em que jaziam as fazendas na¬
cionais do Rio Branco, hoje reputadas as melhores e mais bem cui¬
dadas daquela região por pessoas'estranhas e insuspeitas como sejam
o Dr. Jmeiano Pereira da Sdva. ex-deputado pelo Amazonas o Dr-
Calvet e o Sr. Joaquim Gondui. cujas opiniões estão impre.s.sas cm
li\'ros e documentos públicos.
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'SciELO
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— 57 —
Se eii aqui de tão longe, e apenas de memória, posso dar tão boas
informações, imagine-se o qne poderia fornecer a Diretoria do
serviço!
Diz o Sr. deputado qne a história brasileira não apresenta “um
exemplo sequer de selvicola que houvesse contribuído para o nosso
progresso".
IMas será possvel que o orador ignore os serviços jjrestados à
Pátria, e portanto ao nosso progresso, por Felipe Camarão, por Ja-
guarari, por Tibireçá, por Ajuricaba. ])or Ararigboia, Tabira, Pira-
gibe, Itagiba, Caiubi e tantos outros?
O Bispo d’Elvas. pessoa sumamente entendida em história e muito
dada a assuntos politicos e financeiros, escreveu no seu Ensaio Eco¬
nômico (Tomo I das Obras) que a conquista do Espírito-Santo foi de¬
vida a Tibireçá, a da Bahia a Talnra, a de Pernambuco a Itagibe e Pi-
ragibe, a do Maranhão a Tomagica. Simão de \Msconcelos, diz, com
outras palavras, mais ou menos as mesmas coisas.
Dentre nós quem se poderá blasonar de benemerência que se com¬
pare à de íjualquer desses i)obres selvicolas tão injustamente esquecidos?
Eu estou bem certo que ninguém. Mas ainda (jue essa infeliz
raça nada houvesse feito seria motivo para abandoná-la aos seus as-
sasinos e á penúria em que na sua maior i)arte vive por culpa do civi¬
lizado. que lhe faz concorrência na caça e na pesca?
É o que desejaria o orador quando afirma que é “nacionalismo
piegas e incom])reensíver‘ proteger o selvagem com a alegação de ser
êle "útil á nossa cultura”, e “necessário às conveniências nacionais".
Para ai)oiar a sua decidida opiniãq acrescenta que “os antropolo-
gistas nos mostram que i)ovos avessos à civilização, em \ez de serem
socoiridos pelos poderes públicos, devem ser calculada e friamente en¬
tregues aos seus i)róprios destinos" .
A’ão ver que quem assim fala. é dos tais que se compadecem dos
cães que sofrem e os levam para casa lornavehnente penalizados.
Mas se os cães merecem tal piedade porque não a merecerão ho-
nicns. só por serem de civilização diferente ou inferior?
Por mim não faço verdadeiramente grande cabedal do que dizem
os antropologistas. mas dado que o fizesse, quando algum dêles me de¬
parasse uma tal lição eu o mandaria, sem dúvida alguma, cuidar de
outra vida.
E ficaria pensando que. quando os homens dizem coisas como
estas, dizem-nas da bòca para fora. no intuito, aliás vão. de parecerem
enérgicos, originais ou coisa semelhante. Estão, como se dizia na gíria
escolar do meu tempo, estão “fingindo pedra".
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— 5S —
ü árclegd censor fêz. segundo afirma, tôda a sua crítica, to¬
mando a “esmo” uma das nossas instituições suntuárias* e inúteis.
Eu só o acreditarei quando o vir dar para trás nas subvenções
para catequizadores que escravizam e difamam os nossos índios; ou
então quando ler o seu voto contra os presentes régios com que o Con¬
gresso. dando o que não lhe pertence, aumenta os haveres de quem
não precisa dessas achegas para viver faustosa e suntuàriamente.
Como era de esperar, terminou o orador tocando a tecla do anal¬
fabetismo. Antes, na sua opinião, êsses mil contos do Serviço de Pro¬
teção aos índios fossem gastos em combater o analfabetismo.
É mais um engano seu.
Xem sempre é um bem ensinar a lêr. Se Xapoleão Bonaparte
não soubesse ler, não teria passado de cabo de esquadra e com isto
imensas desgraças ter-se-iam i)oui)ado à Humanidade, além de que
a situação atual do mundo seria certamente melhor.
Se não tivessem ensinado a ler a muitos de nós. pode-se afirmar
que ã sorte da República do lírasil teria sido bem mais fagueira.
Enfim, se êsse. com certeza estimável cidadão, não tivesse apren¬
dido a ler. provavelmente não teria ensejo de dizer tantas blasfêmias
contra os nossos infelizes índios, já tão sobrecarregados de alheias
injustiças.
Z\Iargem do Taquari, 2 de fevereiro de 1923.
Alípio B.vxdeir.v.
cm
2 3 4 5 6 ^SCÍELOq 11 12 13 14 15 I6
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
PUBLICAÇÃO N.° 88 DA *‘COMISSÃO RONDON”
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0 PROBLEMA INDÍGENA DO BRASIL
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í
Conferência realizada no Atheneu de Montevideo,
a l.° de abril de 1925 por J
L. B. horta Barbosa
1®. edição: em 1926.
2®. edição autorizada pelo C. N. P. I., em 1945 com acréscimo de
outra conferência, realizada a 19/XI/913. pelo mesmo autor, em
S. Paulo, sôbre a "Pacificação dos índios Caingangue".
IMPRENSA NACIONAL - RIO DE JANEIRO - BRASIL - 1947
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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
Conselho nacional de proteção aos índios
PUBLICAÇÃO N.o 8S DA “ COM/SSÃO RONDON ”
0 PROBLEMA INDÍGENA DO BRASIL
Conferência relizada no Atheneu de Montevideo,
a l.° de abril de 1925 por
L. B. Horta Barbosa
1“. edição: em 1926.
2 \ edição autorizada pelo C. N. P. I., em 1945 com acréscimo de
outra conferência, realizada a 19/XI/913, pelo mesmo autor, em
S. Paulo, sôbre a “Pacificação dos índios Caingangue".
imprensa nacional - RIO DE JANEIRO - BRASIL - 1947
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i' J u ^
BIBLIOTECà ‘í
ÍS54fi
Ao Sr. Dr. Pedro de Toledo^ aob cuja adrdinistração dos negó¬
cios da pasta da Agricultara. Comércio e Indústria realizou-se a paci¬
ficação dos Caingangiie Paulistas e a cuja patriótica ação deve o
Serviço de Proteção aos índios e Localização de í rabalhadores Na¬
cionais os brilhantes e decisivos resultados colhidos durante o triénio
de 1911 a 1913, não só no Estado de S. Paulo como em todo o ter- •
ritório da República,
Como sinal de sua civica gratidão
São Paulo — 4-12-1913.
Oferece e dedica
O Autor.
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0 PROBLEMA INDÍGENA DO
BRASIL
Dileto amigo Erasmo Braga.
Ao teu fecundo gênio de obsequiar os amigos devo eu os dias
felizes de março e abril de 1925 que vivi em Montevidéu e em Bue¬
nos Aires no meio dos distintíssimos membros do Congress on C.
Work in South America. AU, as vivas simpatias que incessante¬
mente se manifestavam por tudo quanto é do Brasil, acabaram
dando-me a coragem de expor de viva voz o que na nossa Pátria
se tem feito, e se está fazendo, em prol dos indígenas.
Realizada a exposição, o acentuado favor que lhe dispensa¬
ram os meus novos amigos não se limitou aos aplausos e cumpri¬
mentos, mas foi até alcançar de mim a promessa de que a reduziria
a escrito e a faria imprimir. Ê do cumprimento de tal promessa que
hoje, afinal, me desobrigo, e o faço tornando explicito que êste im¬
presso tem, para mim, o simples significado de modesto tributo de
gratidão aos bons amigos daquele Congresso.
Eu os recordo todos, com a nitidez das imagens insculpidas
em nossos corações pelo mais vivo afeto. Mas, para dar à minha
manifestação a fôrça e o relevo das evocações pessoais, eu traço
aqui os nomes, a todos os títulos respeitáveis, dos Srs. Robert E.
Speer, S. G. Inman e Dr. H. C. Tucker, como sendo os dos amigos
em quem personifico as homenagens de que me reconheço devedor
aos preclaros membros do citado Congresso.
A ti, caro amigo, reservo a missão de interceder a meu favor
para que maior ainda seja a benevolência que certamente me virão
dispensar os nomeados amigos ao lhes ser apresentado êste sinal do
meu eterno reconhecimento.
E, com isto, ainda mais obrigarás ao teu
L. B.
ex-corde
Horta Barbosa
Rio,
13 de Descartes de 138.
20 de outubro de 1926.
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Exmas. Senhoras.
Meus senhores.
Que temeridade louca me arrastou a esta tribuna e me arran¬
cou da alma a consciência do meu desvalor e da minha falta de tí¬
tulos para vir tomar o vosso tempo e ocupar a vossa atenção? Cer¬
tamente que tão grande afoiteza se não teria engendrado se não
fôsse a minha esperança no ilimitado poder da vossa benevolência,
a cuja sombra protetora me agasalho como quem dela carece mais
do que do próprio ar que respira.
Mas, de duas outras forças também nasceu o impulso pode-
roso, que me eleva a esta altura onde se concentram os vossos olha¬
res, boi a primeira o veemente desejo de pôr o meu coração e a
minha mente de brasileiro em inteiro contacto e comunhão de sen¬
timentos e de pensamentos com a vossa alma de uruguaios, alma
insigne à qual devemos essa indeslembrável lição de fraternidade
internacional de restituir ao Paraguai os sacrílegos troféus da
guerra que constitue o crime inexpiável das nossas Pátrias. Foi a
segunda a ânsia de vos mostrar que também na terra do Brasil bro¬
tam e medram iniciativas generosas, inspiradas por alto e sadio
idealismo, dêsses que desabrocham, não em quimeras vazias de
préstimo, mas sim em obras pejadas de benefícios para vastas po¬
pulações e em fortes instigações endereçadas aos povos que as rea¬
lizam, para que mais sublimem a sua alma na esperança de torná-la
consoante com a própria alma da Humanidade.
Vou atingir o alvo que assim me proponho, esboçando em lar¬
gos traços o quadro da proteção fraternal que a Pátria Brasileira
instituiu, e vem praticando desde 1910, em proveito da parte autóc¬
tone da sua população, e em reparação dos tremendos erros e des¬
varios contra ela praticados pelos nossos ascendentes de origem
européia.
★ ★ ★
Aos olhos dos rudes navegadores do século XVI o Brasil
apresentou-se como vasto território, de extenso litoral oceânico.
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habitado por povos de civilização rudimentar, que só conheciam e
só empregavam instrumentos de pedra e de madeira, divididos e
subdivididos em pequenos agrupamentos entre si hostis e em per¬
pétua guerra, pràticamente indefesos e imbeles diante de homens
que, em fortes agremiações militares, manejavam o ferro e as armas
de fogo. Diante de tão formidável superioridade de meios de ata¬
que e de destruição, não tardaram os vindicios europeus a transfor¬
marem-se de hóspedes, carinhosamente acolhidos e agasalhados,
em espantosos tiranos que depressa desceram e ultrapassaram a
escala de abjeções a_ que pode conduzir o abuso da fôrça bruta a
serviço da cobiça, da luxúria e de todos os desmandos das más pai-
rões largadas a si mesmas, sem freios morais e sem tropeços mate¬
riais.
Daí nasceu, com tôda a sua dolorosa complicação, o problema
indígena do Brasil, único de que me vou ocupar aqui, embora não
exceda êle os limites de simples aspecto do vastíssimo incêndio que
devorou as terras e os povos do Continente de Colombo.
Os primeiros colonizadores que aportaram ao Brasil, logo de¬
pois da viagem de descobrimento de Pedro Álvares Cabral, não
cuidaram senão de fundar feitorias para exploração das riquezas
naturais da terra. Nenhuma atenção lhes mereceu a sorte das po¬
pulações autóctones que os acolhiam como amigos e se sõbre elas
agiram foi para as submeter à mais deletéria ação desorganizadora,
fonte viva de dissolução dos laços da fraca e incipiente ordem so¬
cial que entre elas existia.
Tal situação perdurou até a chegada dos primeiros jesuítas,
pelos fins ainda do século XVI, os quais traziam a preocupação de
conquistar as almas para a fé que professavam e de derramar entre
elas os benefícios da civilização de que eram, na época, os mais
cultos representantes e os mais esforçados defensores.
Idêntica preocupação havia levado aos confins do Oriente
outros membros da mesma ordem, entre os quais avulta a figura
gigantesca de S. Francisco Xavier. Mas, enquanto lá a obra pla¬
nejada se apresentava despida de complicações adventícias, aqui
cia teve de desdobrar-se em duas ações bem distintas, a primeira
destinada a proteger os indígenas contra os estragos e malefícios
da cobiça, da concupiscência e da desmoralização dos conquistado¬
res, e a segunda propriamente votada a modificar e desarraigar as
primitivas crenças e opiniões desses povos e a dar-lhes novas prá¬
ticas, novos costumes e novas instituições.
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Ao conjunto dessas duas ações deu-se o nome de catequese,
embora só à segunda êle se adapte com perfeita e lídima proprie-
ciade. Semelhante confusão de linguagem torna bem patente a prio¬
ridade e a dominadora supremacia que na época se atribuía ao mo¬
vimento de transformar os povos em prosélitos da fé monotéica, o
que se acreditava ser exeqüível por mutação instantânea que de¬
terminaria nos homens modificações profundas, radicais e dura¬
douras.
Na verdade êsse seria o tempo áureo das conquistas decisivas
da catequese, caso pudesse ela produzir as maravilhas que ingenua¬
mente prometia. Entre os povos americanos vigoravam ainda ins¬
tituições e costumes extremamente bárbaros que urgia serem extir¬
pados como ponto de partida de qualquer ação civilizadora a exer¬
cer-se sôbre êles. Ao número de tais instituições pertencia a do sa¬
crifício dos prisioneiros e o banquete antropófago que se lhe seguia.
Para sermos justos com êstes povos, devemos lembrar que os
monumentos históricos da nossa Espécie deixam fora de dúvida
que tais hábitos não lhes foram privativos. Ao contrário, a antropo-
lagia foi praticada por todos os povos da Terra e o sacrifício dos
prisioneiros, primitivamente em massa, e mais tarde de alguns indi¬
víduos escolhidos, vigorou até os tempos históricos. Entre os gre¬
gos temos o exemplo dos dois príncipes persas imolados como víti¬
mas propiciatórias da batalha de Salamina, e entre os romanos o
destino de todo chefe inimigo aprisionado nunca diferiu do que
César impôs a Vercingetorix.
A instituição americana, na época do descobrimento, já se
encontrava em fase que não era mais a simples antropofagia alimen¬
tar. Ao contrário disso, ela apresentava-se com os característicos
de uma grande cerimônia, efetuada com enorme pompa, na qual a
própria vítima, sempre um guerreiro tomado em luta, figurava como
personagem ativa e em grande parte voluntária. De involuntário
nêle só havia, realmente, o ato inicial, do aprisionamento. Mas de¬
pois, transportado para a aldeia dos seus adversários, o prisioneiro
era deixado em liberdade, tinha os seus movimentos livres como se
estivesse na sua própria habitação e no meio dos seus. Embora lhe
estivessem assim abertas tôdas as facilidades e todos os ensejos
para furtar-se, pela fuga, ao tranze final, êle o aguardava resoluto,
e enquanto isso participava da vida do povoado como se fôsse um
dos seus membros. Nessa espera passavam-se dias e meses, empre-
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gados na preparação das bebidas fermentadas necessárias ao ban¬
quete e, principalmente, no expedir convites e esperar que se con¬
gregassem as populações das aldeias amigas e aliadas, vindas às
vêzes de paragens longínquas.
Tão complicados e demorados arranjos passavam-se sob os
olhos daquele que tinha de ver nêles os preparativos do seu próprio
funeral e que, pelas fases a que iam atingindo, podia avaliar de
quanto já se aproximava o instante fatal. No entanto, a sua reso¬
lução conservava-se inabalável: não lhe vinha a tentação de esca¬
par ao passo derradeiro, ou, se vinha, afastava-a como idéia impor¬
tuna e mesquinha. Com a serenidade, e talvez com o interêsse de
um ator que acompanha a preparação da cêna em que se terá de
apresentar como figura central de uma ação empolgante, heróica e
bela, êle seguia de ânimo inquebrantável o evoluir dos diversos
aprestos e media a aproximação do momento em que se viria aba¬
tido, não como vítima imbele e miseranda, mas sim vencido em
combate, desafiando a ira imensa da chusma de inimigos, aglome¬
rada para participar da glória da sua morte.
Uma prática desta natureza, assim aceita por todos, sem ex¬
cluir os que tinham de nela figurar como vítimas, já pertence a uma
instituição transformada, mais evoluída e mais nobre do que a pura
antropofagia de fim estritamente alimentar. De depoimentos; de
abalizados escritores do século do descobrimento, que conviveram
com essas tribos quando ainda vigorava em tôda a sua pujança
estas bárbaras usanças, pode inferir-se que elas estavam a caminho
de desaparecer, ou pelo menos de passarem por novas transforma¬
ções que muito as haviam de restringir. Entre outros indícios que
autorizam tal juízo figura o de ser notável o número de pessoas a
quem repugnava, até provocar náuseas e vômitos, a ingestão dessas
carnes, embora reduzida a partículas mínimas, tanto quanto se
pode imaginar que um só corpo poderia fornecer a milhares de con¬
vivas.
Parece, pois, fora de dúvida que o sacrificio dos prisioneiros e
o banquete que a êle se seguia eram, entre os índios americanos, ou
pelo menos entre os do Brasil, uma instituição de caráter especial,
provàvelmente resultante da atenuação, e da tendência a desapa¬
recer, das matanças primitivas destinadas a fornecerem alimento
aos matadores. Alguma crença teria concorrido para justificar e
consolidar tal transformação, a qual teria tido pelo menos a vanta¬
gem de excluir as mulheres de figurarem como vítimas, e de tornar
de uso restrito, só exeqüível de longe em longe, em circunstâncias
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difíceis e excepcionais, o que dantes cra de uso corrente e banal,
como a apreensão de qualquer caça e a ingestão de qualquer ali¬
mento. Mas essa crença, sobrevivendo ao seu próprio destino, sus¬
tentava e prolongava o hórrido festim além de tôda medida e já
agora sem a justificativa de servir para evitar prática ainda mais
bárbara.
Infelizmente não podemos, neste terreno, sair do campo das
puras conjeturas. Os homens que se acharam em situação de son¬
dar a alma dessas populações primitivas, e de nos indicar os senti¬
mentos e os pensamentos inspiradores das suas instituições, viram-
-se desviados, pela doutrina que abraçavam, do caminho que os le¬
varia a nos prestar tão valioso serviço. Limitaram-se a descrever,
de tais criações, os movimentos visíveis, a parte material e exterior,
e em lugar de se aplicarem a descobrir e pintar o estado de alma
que as gerara, que nelas se traduzia e retratava, deram-se por in-
leiramente esclarecidos atribuindo-as ao demônio.
Forçoso é, no entanto, reconhecer que independia de qualquer
pesquisa no sentido indicado a adoção do projeto de exercer desde
logo a mais viva e incessante ação para conduzir êsses povos a aban¬
donarem o nefando uso. E de fato os jesuítas dirigiram neste sen¬
tido os seus primeiros esforços, mas não tardaram reconhecer
quanto êles eram impotentes para produzirem a transformação
desejada. A experiência desmentia as esperanças fundadas na vir¬
tude da aceitação da fé monotéica e da prática dos sacramentos re¬
dentores por ela instituídos. O que se via não eram as prometidas
mutações instantâneas que deviam apagar no neófito as chamas
das paixões e dos hábitos antigos, e em seu lugar fazer surgir o
homem novo, produto de nova geração, votado a novos estímulos, a
novas preferências e a novo destino. Ao contrário disso, o que a
observação mostrava era a persistência dos usos condenados, era a
sobrevivência da alma primitiva, que mais depressa transformava
e deformava o novo ensino até pô-lo ao nível da sua velha percepção,
do que a si mesma se transmudava até amoldar-se às exigências da
nova existência.
Desde que isso verificou, a catequese sentiu-se vencida, por¬
que todo o seu plano de ação, todo o seu impulso baseava-se na
crença peremptória de ser possível operar-se uma verdadeira rege¬
neração da alma humana, e de realizar-se ela instantaneamente como
resultado irresistível e conseqüênte à prática de certos atos de in¬
tenção divina. Recorreram então os catequistas à eficácia dos meios
cm
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puramente temporais, às repressões materiais fornecidas pela fôrça
militar dos governadores. E êstes promoveram e permitiram tão ex¬
tensas e desumanas devastações que dentro em pouco as tribos, as
que não foram exterminadas, se viram reduzidas à impotência, im¬
possibilitadas de entre si se guerrearem. Atingindo êste resultado,
estava automàticamente extirpada a bárbara usança dos banquetes
antropófagos, por se lhes ter estancado a fonte donde lhe vinha o
indispensável elemento de vida: — o prisioneiro. Mesmo em tribos
que viveram até êstes últimos tempos arredadas de comércio com
os civilizados, como a dos Nhambiquara, dos Quêpi-quiri-uáte, dos
Parintintim, e outras, e que por iso conservaram em sua primitiva
pureza as instituições e os hábitos primitivos, não mais se encon¬
tram vestígios nem memória da condenada cerimônia. Por tôda
parte havia ela desaparecido do território brasileiro, não como pro¬
duto de mudanças de opiniões e de sentimentos, provocados pela
catequese, mas sim como resultado das profundas modificações in¬
troduzidas na vida e nas relações das tribos pelo fato de se acha¬
rem elas dominadas por um poder militar infinitamente superior ao
seu, que as dizimava e dispersava pela imensa vastidão dos sertões
desconhecidos.
Nunca o princípio teológico da intervenção divina para de¬
terminar mutações sensíveis e irrecusáveis na alma humana havia
sido submetido a prova tão rude como essa; mas também nunca
teve êle desmentido mais claro e mais categórico. Por isso mesmo, a
ação dos jesuítas, embora sempre designada pela denominação de
catequeses, só impressionou os contemporâneos e só se fixou na
história pelo que teve de protetora das populações indígenas contra
os desmandos e usurpações dos colonizadores.
Infelizmente. porém, o plano de ação delineado e invariàvel-
mente seguido pelos jesuítas, encerrava o duplo inconveniente de
ser o que de mais contrário e de mais prejudicial se podia imaginar
contra os interêsses daquelas populações, e o que melhor se prestava
às interpretações malévolas de que afinal os padres nada preten¬
diam senão monopolizar em proveito da Ordem o trabalho forçado
do índio.
Semelhante plano consistia em proceder a grandes concentra¬
ções de tribos em lugares prèviamente escolhidos pelos missioná¬
rios, de acordo com as conveniências das suas ligações e comércio
com os centros civilizados. Atraídos por promessas ou compelidos
pela fôrça, os índios abandonavam as suas aldeias, os seus campos.
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as suas matas e os seus rios, onde tinham a sua vida organizada e a
subsistência garantida pelos produtos da caça e da pesca, e vinham
aglomerar-se em tôrno da casa dos padres, onde tudo lhes era es¬
tranho, indiferente ou infenso, e onde lhes faltavam os estímulos
das coisas que, por falarem ao coração e à mente, alimentam no ho¬
mem a chama da existência.
Assim despovoavam-se as terras do interior; mas com os seus
habitantes só se conseguiam formar centros populosos de vida pre¬
cária e efêmera. Novas levas tinham de descer dos sertões para en¬
cher os claros abertos nas precedentes pelas doenças, pela fome,
pela tristeza, o que tudo desfechava afinal na morte inexorável e
impiedosa.
Foi calamitosa fatalidade a transplantação das tribos de suas
rddeias para as reduções dos missionários. A conservação, delas
exigia, ao contrário, que fõssem mantidas no seu habitat, no meio
que lhes era adequado, no ambiente a que as prendiam as velhas
raízes do passado, formadas e fortalecidas pelas -tradições, pelos
hábitos e costumes transmitidos de pais a filhos através de largas
gerações. É evidente que todo projeto de transformação dêsses po¬
vos, devia antes de mais nada subordinar-se ao pensamento de ze¬
lar pela sua conservação: a obra a realizar era fazê-los subir na
escala da civilização os degraus que os separavam dos invasores
das suas terras, não era exterm.iná-los. No entanto foi no que ela
redundou: foi êsse o fruto inevitável da erradíssima política de
arrancar o índio ao seu sertão, de carregar, por assim dizer, o cate-
cúmeno para a casa do missionário, em vez de ir êste ao seu en¬
contro e de na sua própria terra, na sua própria habitação, solicitá-lo
à adoção dos sentimentos, dos ideais e das práticas que se lhes pre¬
tendiam inculcar. Nunca semelhante plano de ação fóra executado
entre outros povos, e na mesma época em que isso se fazia no Brasil,
e. em geral, na América, noutras paragens, da índia, da China e do
Japão, a boa regra de ir o missionário ao encontro do catecúmeno,
em suas aldeias e povoados, estava sendo seguida por membros
dessa mesma Ordem que aqui fundava as reduções.
O outro grave inconveniente dêsse plano resultava da neces¬
sidade, a que não podiam fugir os missionários, de proceder a gran¬
des trabalhos de lavoura, e outros, para o fim de angariar meios de
subsistência indispensáveis à manutenção das tribos concentradas
nos seus estabelecimentos. Tais estabelecimentos apresentavam
desde então, por êsse lado, o aspecto de feitorias agrícolas de fins
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idênticos aos das propriedades dos colonos e tudo concorria para
fazer acreditar que outro não era o objetivo dos padres senão gran¬
jear riquezas e poderio sob disfarce de obra religiosa e a custa do
braço do índio. Não lhes faltaram acusações neste sentido e por
tôda a parte levantaram-se contra êles ódios e prevenções dos que
só viam nêles competidores privilegiados, que monopolizavam em
proveito próprio o trabalho da mísera população escravizada. Daí
as contestações e lutas formidáveis entre a Ordem e os colonos,
lutas que desfecharam afinal no aniquilamento total da tentativa
jesuítica.
Examinada à luz dos resultados positivos, os esforços dos je¬
suítas, tanto no sentido da catequese, como no da proteção, re¬
dundaram em completo insucesso. Quanto aos primeiros, a história
não regista, de fato, o nome de um único povo brasileiro que tivesse
abraçado a fé católica e por ela tivesse vindo ao seio da civilização
e da comunidade brasileira. Quanto aos segundos, para reconhe¬
cer a que ponto fracassaram, basta ter presentes as proporções a
que atingiu o despovoamento do nosso solo. Tribos inteiras desapa¬
receram, exterminadas até o último homem; das grandes multidões
que povoavam o nosso litoral e os nossos rios só restam o nome e a
memória dos sofrimentos entre os quais expiraram; de muitas, nem
isso subsiste. E das poucas que escaparam à sinistra fogueira, o que
se vê são informes destroços recalcados para o fundo dos longín¬
quos sertões, para as cabeceiras quase inatingíveis dos grandes
cursos de água, onde vivem em triste e desamparado isolamento.
Assim as encontrou o glorioso movimento que, em 1822, fun¬
dou a independência política da Pátria Brasileira. O imortal criador
de obra de tão grande vulto, o sábio José Bonifácio de Andrada e
Silva, retomou o estudo do secular problema e numa memória inti¬
tulada Apontamentos para a civilização dos indios bravios do Im¬
pério do Brasil, indicou o caminho que havia a seguir para dar-lhe
cabal solução. O plano de ação que então traçou, baseou-o o grande
estadista em cinco princípios gerais, dos quais os dois primeiros
prescreviam: Justiça, não esbulhando mais os índios, pela fórça.
das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores, e
brandura, constância e sofrim.ento de nossa parte, que nos cumpre
como a usurpadores e cristãos.
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Examinado à luz dêsse documento, e de outros da mesma
época, o pensamento político do Patriarca da Independência do
Brasil apresenta-se como abrangendo a totalidade dos problemas
sociais que a tempestuosa e desregrada colonização européia da
América implantara em nossa Pátria. De tais problemas, dois eram
de solução urgente, pois entendiam com a própria formação do
povo para o qual se projetava levantar o edifício da unidade polí¬
tica: eram êles o da civilização dos índios e o da emancipação dos
trabalhadores de origem africana, criminosamente transportados
para o nosso Continente e nêle reduzidos ao estado de escravidão.
Compreendeu o sábio estadista que enquanto êsses problemas sub¬
sistissem, não estaria na verdade fundada a Pátria Brasileira, mas
sim um aglomerado de três povos desirmanados, os quais, embora
co-habitantes do mesmo solo, permaneceriam, em tudo mais, sepa¬
rados e divergentes, solicitados por sentimentos antagônicos e inte¬
resses opostos. Tornava-se, pois, necessário, antes de mais nada,
estabelecer as condições propícias ao surto e desenvolvimento da
fraternidade entre os elementos constitutivos do povo brasileiro e
foi nesse espírito e para isso conseguir, que o estadista da Indepen¬
dência tratou de promover ao mesmo tempo a civilização geral dos
índios e a libertação dos escravos africanos. O seu pensamento neste
tiltimo sentido, ficou registado noutra memória, a que deu o título
de Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa
do Império do Brasil sôbre a escravatura.
Nessa memória, o excelso patriota, guiado pelo seu belo afo¬
rismo de que — a sã politica é [ilha da moral e da razão, propõe
medidas para o estancamento imediato do tráfico de africanos, para
a repressão dos rigores e abusos dos senhores contra os escravos, e,
afinal, para a gradual e rápida extinção do nefando regímem.
Desgraçadamente a efervescência das paixões políticas incum¬
biu-se de inutilizar tão generoso esforço, de abafar tão magnânimo
pensamento. A assembléia constituinte foi dissolvida: José Boni¬
fácio, seus irmãos e amigos, expatriados. Com isso, a marcma dos
negócios públicos do Brasil teve outra direção, surgirain^ homens
dominados por outras preocupações e por um tempo o silêricio se¬
pultou no olvido o doloroso problema e a solução que para êle pro¬
pusera o gênio fecundo do clarivudente estadista.
Uma geração teve assim de transcorrer antes que os aconteci¬
mentos e a situação geral da consciência do mundo nos forçasse a
adotar a abolição do tráfico, e ainda outra geração teve de passar
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para dar tempo a que se formasse o sentimento popular que acabou
sublevando o Brasil inteiro contra a criminosa instituição e for¬
çando o governo a baixar a lei redentora de 13 de maio de 1888 que,
num só artigo peremptório, declarou extinta a escravidão.
Estava, pois, realizada, ao cabo de 66 anos de independência
política, uma das partes do programa formulado por José Bonifácio
para — “formar em poucas gerações uma Nação homogênea, ver¬
dadeiramente livre, respeitável e feliz”; — a outra parte, porém, a
relativa à civilização dos índios, continuava à espera do pulso po¬
deroso que a tirasse da região dos sonhos e a instalasse no mundo
das vivas realidades, isso não ocorreu no tempo do Império, em¬
bora houvesse êle podido, em seu berço, ouvir o éco da obra gran¬
diosa de Guido Marlière e tivesse visto surgir, ao longo da sua
cansada existência, um Arouche Rendon, um Machado de Oli¬
veira, um Couto de Magalhães, um Barbosa Rodrigues e outros ge¬
nerosos lutadores da causa do índio. Veio a República, e através
do vulto gigantesco do seu glorioso fundador, Benjamin Constant
Botelho de Magalhães, tornaram-se mais ouvidos os conselhos e os
apelos que à consciência nacional dirigiam os Apóstolos da Huma¬
nidade, discípulos de Augusto Comte, para que se retomasse o pro¬
grama de José Bonifácio e se o executasse com a amplitude dos no¬
vos horizontes abertos às iniciativas humanas, pelo conhecimento das
leis naturais que regulam os fenômenos políticos e morais.
Um homem houve que, retemperada nessa forja de portentosos
ideais a sua bela alma de brasileiro, foi, por um benigno Destino,
colocado em situação de poder executar quantas inspirações lhe
brotavam da mente esclarecida e do forte coração a favor da pobre
raça desprotegida e proscrita. Nessa obra veio êle despendendo os
dias da sua existência durante mais de 30 anos de convívio ininter¬
rupto com as agruras do sertão e no trato íntimo com as tribos dos
mais variados graus de civilização, desde as que já se encontravam
em promiscuidade mais ou menos estreita com os moradores das
fazendas, dos povoados ou das cidades, até as que ainda viviam
isoladas no fundo de suas florestas primitivas, em longínquas pa¬
ragens quase inaccessíveis, onde, com a pureza dos constumes e das
instituições herdadas dos seus maiores, conservavam a vida e o re¬
cato de suas mulheres e filhas, assim preservadas de contactos in¬
fames e deletérios com os maus elementos da nossa gente e da
nossa civilização.
Em tão longo e incessante tirocínio, pôde êsse homem, êsse
emérito brasileiro, o General Rondon, despertar por fim a cons-
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ciência nacional e chamar para o problema indígena a atenção dos
que na sua Pátria tinham a investidura dos altos cargos públicos.
Ocupava então o pôsto de mais destaque na magistratura do país o
Dr. Nilo Peçanha, alma de verdadeiro republicano, que sentiu ser a
índole e o destino dêsse regímem político fundar e fomentar a frater¬
nidade entre os filhos da mesma terra: e era um dos seus principais
auxiliares outro sincero republicano, o Ministro Rodolfo Miranda.
Encontrando-se assim reunidos num mesmo e feliz instante
da vida política da sua Pátria, êsses três brasileiros deram-se as
mãos c conjugaram os melhores esforços de suas naturezas, no afã
de transformarem em fúlgida realidade a parte ainda não executada
do grandioso programa de José Bonifácio.
Foi assim que, antes,de terminada a terceira geração das que
no Brasil transcorreram sob o regímen criado pelo Patriarca da In¬
dependência, abordou-se a solução racional do multissecular pro¬
blema de incorporar à nossa civilização os núcleos ainda existentes
da população autóctone da nossa terra. Consiste essa solução, no
que ela visa de mais essencial e de mais urgente, em cercar as tribos
cie garantias que as desoprimam das ameaças e dos atos de exter¬
mínio ditados pela cobiça e pelas más paixões dos civilizados. Por
isso, a primeira e a mais premente ação, tem de exercer-se sôbre os
elementos da população de origem européia, para o fim de obstar
que êles prossigam no movimento de invasão tumultuária e violenta
dos sertões habitados por índios. Só depois de criadas nessas lon¬
gínquas e rudes paragens as condições de calma e de segurança no
que de mais elementar se exige para ser possível manter-se e ex¬
pandir-se a vida humana, ó que, com proveito, se deve iniciar a obra
de aproximação que porá em contacto os representantes das duas
civilizações, com visos de a mais adiantada prevalecer e substituir a
mais atrasada. O sentimento que sustenta e guia tôda esta ação é
que semelhante obra colima atingir e melhorar a situação da parte
mais fraca, sem outro cálculo senão o de serví-la, sem outra remu¬
neração senão o de erguê-lo do profundo abatimento e da infinita
miséria em que a lançou o devastador incêndio que foi a conquista e
a ocupação das suas terras. Não é o suposto interêsse da civilização
o que se visa: mas sim o interêsse real, definido e palpável das po¬
bres populações, a cujo serviço se quer pôr essa civilização. Não é
a ambição, pouco menos do que pueril, de conquistar entre mentali¬
dades apenas balbuciantes a sombra de prosélitos para nossas dou¬
trinas e crenças; mas sim a vontade de tirar dessas doutrinas e cren-
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ças as normas e os incentivos da nossa própria conduta em proveito
dêsses a quem queremos servir. Não é a cobiça de aumentar a ri¬
queza do país pelo aproveitamento do esfôrço de tanta gente em
trabalhos cujos produtos alcançam valor venal nos mercados do
mundo: mas antes o desejo de pôr tôdas as riquezas e todo o poder
das nossas indústrias ao serviço dessa gente, para que se lhe miti¬
guem as asperezas da vida presente e as dores da miséria passada.
É, em uma palavra, obra de reparação, obra de restauração, tal
como convém a filhos de usurpadores que anseiam emendar as fal¬
tas de seus maiores, estendendo a mão poderosa, que tudo pode dar
e de nada precisa, aos filhos dos antigos oprimidos e que com êsse
gesto de fraternal inspiração esperam fazer penetrar um raio de luz
no negrume do passado sombrio.
Guiado por êste pensamento, o govêrno do Brasil criou em
1910 o Serviço de Proteção aos índios, destinado a velar pelas tri¬
bos nos sertões em que elas se encontram, de modo a livrá-las das
perseguições e esbulhos que as vinham flagelando desde os tempos
do Descobrimento; a assegurar-lhes a posse das terras que ocupam
e de que precisam como fundamento de sua própria existência: a
proporcionar-lhes meios de melhorar as condições da vida e do tra¬
balho, pela introdução entre elas do nosso modo de construir as re¬
sidências, do manejo dos utensílios domésticos, do emprêgo das
ferramentas e instrumentos de uso rudimentar, da criação e utiliza¬
ção dos animais domésticos de grande e pequeno porte; a aplainar-
-Ihes o caminho nos progressos de ordem moral e intelectual me¬
diante, não só a vigilância e a disciplina das suas relações com os
civilizados, mas também pela implantação de um ensino, tão ativo,
quanto possível, de artes, ofícios e primeiras letras.
Da ação orientada por êste plano geral deve resultar, se ela
fôr sustentada e prosseguida pelo tempo necessário, não só a con¬
servação do que resta do primitivo e flagiciado povo americano,
mas também o seu encaminhamento na trilha das sucessivas trans¬
formações morais, intelectuais e práticas, que o farão atingir por fim
o nível em que se acham as massas de trabalhadores rurais que
constituem o grosso da população brasileira. Alcançado êsse ponto,
já não haverá motivo, nem modo, de se distinguirem separações
entre os filhos de nossa terra: todos unidos, formando um só corpo,
beberão, ao som da mesma língua, o ensino comum que lhes inscul¬
pirá nos corações e nas mentes o ideal único para cujo serviço foi
argamassada a Nação pela mão poderosa de José Bonifácio.
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Para o desempenho da incumbência que lhe coube, teve o Ser¬
viço de Proteção aos índios de distribuir a população aborigene em
três grandes grupos, cáracterizados pela natureza das relações em
que se encontram com a nossa civilização. Os trabalhos a realizar e
o modo de nos conduzirmos com êles, dependem das características
gerais de cada um dêsses grupos.
O primeiro dêles é formado pelos índios que vivem promis-
cuamente com os civilizados: falam português, trabalham em fa¬
zendas, sabem lidar com dinheiro e possuem uma idéia da nossa or¬
ganização social no que ela tem de mais fundamental e de mais evi¬
dente. Contudo, ainda conservam os laços da antiga existência
tribal, embora afrouxados e tornados inconscientes em pontos es¬
senciais; praticam os velhos ritos da sua religião primitiva, mais ou
menos desfigurados e acrescidos de práticas tiradas do que vêem
nos povoados e vilas do interior, ou do que outrora lhes tentaram
ensinar sôbre o culto católico: usam dois nomes para cada indivíduo,
um da sua língua, destinado às relações internas da tribo, outro da
nossa onomástica vulgar, destinado às relações com os civilizados;
entre si, nas suas comunicações internas, nos seus cantos, nas suas
festas, empregam o seu idioma original, a tal ponto que as crianças
só muito tardíamente aprendem o português e das mulheres algu¬
mas o ignoram sempre.
Do conjunto destas e de outras circunstâncias menos salientes,
resulta que tais agrupamentos já não são mantidos nem fortalecidos
pelas forças de coesão e de disciplina que existiam na decaída orga¬
nização tribal, mas que também ainda não receberam suficiente am¬
paro da ordem social em cujo seio vivem, por ainda não terem atin¬
gido a inteira e indispensável assimilação da mentalidade corres¬
pondente.
Daí, os variados e dolorosos padecimentos morais e práticos
que os afligem; a desorganização das famílias, a degradação das
mulheres, o alcoolismo, as doenças mortíferas e repugnantes, a mi¬
séria física e por fim a morte. E para agravar tão triste situação,
ninguém, nem mesmo as autoridades públicas, se considera obri¬
gado a deveres quando trata com êles: os comerciantes ultrapassam
os limites da faculdade que se atribuem de fraudar nos preços, nas
medidas e na qualidade das mercadorias; os patrões nunca se pejam
de lhes marcar salários irrisórios e de nem mesmo de êsses serem
exatos pagadores; e as autoridades não lhes ouvem as queixas, mas
sempre recebem como provado o que contra êles alega qualquer
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civilizado. Para os amparar, os princípios e as leis sôbre que se
fundam a liberdade individual, o pudor feminino, a aquisição e a
conservação da propriedade, principalmente imobiliária, nunca se
aplicam; são disposições mortas, inexistentes.
A ação protetora a favor destes grupos faz-se em grandes pro¬
priedades territoriais para as quais êles voluntariamente afluem, à
medida que vão conhecendo as vantagens que nelas o governo lhes
oferece a título gratuito. Ali êles têm as terras de que precisam para
as suas lavouras, casas de moradia, cuidados higiênicos, tratamento
médico, escolas, auxílios de tôda natureza em seus trabalhos no
sentido de serem êstes ampliados e tornados mais produtivos, mais
proveitosos, e assistência em suas relações com as autoridades, com
os negociantes, com os civilizados, visando acobertá-los de injusti¬
ças, violências e fraudes.
Do ambiente que assim se lhes proporciona resulta, não só a
melhoria imediata das condições materiais da vida, mas também a
possibilidade de surgirem progressos de ordem moral e intelectual,
como expressão final do bem estar presente, da segurança no fu¬
turo, e do incentivo de verem cercados de estima, de respeito e de
carinhos as suas pessoas, as suas famílias e as suas instituições.
O segundo grupo é constituído por tribos que admitem rela¬
ções pacíficas, de intercâmbio comercial, com os civilizados, mas
vivem em longínquos sertões, para os lados das cabeceiras de rios
de difícil acesso, em pontos que lhes facilitam evitar a assiduidade
dos contactos desorganizadores e deletérios da nossa gente e dos
nossos povoados. Entre os índios dêsse grupo a organização tribal
subsiste ainda com vigor bastante para manter de pé o primitivo
edifício social. Entre êles domina, pràticamente inconírastado, o
idioma original: às vêzes, no meio dêles nenhum compreende o por¬
tuguês. A instituição da família e o uso das velhas práticas feti-
chistas conservam-se quase inalteráveis, com^o as viram nascer e as
deixaram as antigas gerações.
A ação protetora a favor dêste grupo consiste, antes de mais
nada, em assegurar-lhe a propriedade legal das terras em que ha¬
bita, na intenção de prevenir e afastar as futuras perturbações que
lhe adviriam dos cúpidos invasores de sertões que nunca tardam a
afluir para onde alguma possibilidade de riqueza desponta. Em se¬
guida, semelhante ação desdobra-se em esforços para desenvolver,
intensificar e tornar plenamente profícuas, as relações entre as duas
populações: aplica-se em aproximá-las uma da outra, com os cui-
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dados para que de tal aproximação só resultem benefícios para
ambas e evitem-se os males cuja irrupção o penoso e esterilizante
isolamento de dantes só conseguia adiar.
O terceiro e último grupo é constituído das tribos inteiramente
selvagens, que, não só vivem insuladas em sertões fechados ao
acesso do homem civilizado, mas também repelem, de armas na
mão, as tentativas de nossa gente no sentido de quebrar êsse insu-
lamento. São essas as tribos que conservam mais puros os costumes,
instituições e idiomas primitivos. Algumas foram encontradas pelo
General Rondon em tão completo alheamento a tudo quando res¬
peita à nossa civilização, que ainda se achavam em plena idade da
pedra, e ignoravam a existência dos instrumentos de ferro.
Do ponto de vista da ação nossa sôbre elas, há necessidade
de se as distinguir em dois grandes grupos determinados pelas con¬
dições em que se encontram os sertões que habitam. Ou êstes se
acham tão afastados dos núcleos civilizados que de todo não há
contactos entre os seus habitantes e a nossa civilização, ou, pelo
contrário, os nossos estabelecimentos já se aproximaram tanto de¬
les que esses contactos se tornam inevitáveis e são cada vez mais
numerosos e mais intensos'.
O primeiro caso não é o que reclama com maior urgência a
nossa intervenção, nem é também o que nos dará mais trabalho e
nos oferecerá maiores perigos quando soar a hora de o abordarmos.
Tais índios não têm contra nós outra prevenção, nem outra descon¬
fiança, senão a que resulta de lhes sermos desconhecidos e estra¬
nhos; mas em compensação, está em nosso poder oferecer-lhes van¬
tagens tão grandes, com os nossos instrumentos de ferro, o nosso
meio simples e facílimo de fazer fogo, a abundância e a variedade
de nossos alimentos, os nossos agasalhos, e de exercer sôbre a sua
imaginação tanta fascinação com as nossas fiadas de contas visto¬
sas e com a nossa música de gramofone ou de harmônica, que ne¬
nhuma dificuldade encontramos em desvanecer tais prevenções e
desconfianças, e de fazermos surgir em seu lugar os laços da ami¬
zade e a fôrça da ascendência livremente aceita e reconhecida.
Ao contrário dêsse, o segundo caso apresenta-se-nos inçado
de dificuldades e perigos: reclama soluções urgentes e não admite
as delongas que seriam exigidas por trabalhos preparatórios clara¬
mente indicados por um sadio conhecimento do problema. Tão más
condições resultam do fato de já se haver pronunciado o movi¬
mento de invasão das terras dessas tribos por elementos da nossa
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civilização, nos quais a perspectiva da prêsa opima abafa e extin¬
gue todo sentimento de justiça e todos os reclamos da Humanidade
a favor dos míseros despojados. Anda então acesa a guerra entre
os que defendem os seus domínios, e com êles a vida de suas mu¬
lheres e filhas, e os que os pretendem tomar e nesse intuito levam
tudo a ferro e fogo. As prevenções aqui são grandes e quase irrepa¬
ráveis, tanto de um lado como de outro. Nenhuma palavra de cle¬
mência, nenhum apêlo ao bom-senso, nenhum movimento de calma
encontra guarida num e noutro campo. Mútuamente perseguem-se,
exterminam-se e temem-se, e o terror, recrudescendo cada vez mais,
exacerba o ódio e a recíproca crueldade.
É no meio dessa fogueira que o Serviço Federal de Proteção
aos índios tem de lançar-se, com a presteza e a desenvoltura de mo¬
vimentos requeridos pela gravidade do caso que ameaça desfechar
no total aniquilamento das tribos. O seuiprimeiro esforço é sempre
no sentido dê suprimir as provocações e os assaltos de iniciativa
dos civilizados, e atrair para um ponto escolhido a atenção dos sel-
vícolas, e de tal forma apoderar-se dela e absorvê-la que de todo os
faça esquecer as antigas preocupações e os lugares em que anda¬
vam pelejando.
Mas isso não basta: é preciso mais entrar em relações amis¬
tosas com êsses índios; é preciso ter com êles contactos imediatos e
contínuos, para exercer sôbre os seus espíritos uma ação direta e
progressivamente modificadora: é preciso conquistar-lhes a amizade
e a confiança, e sôbre elas edificar um sólido prestígio moral que
no-los permita afastar definitivamente do sentimento guerreiro de
ódio e de vingança contra os seus adversários. É preciso, em uma
palavra, apaziguar os sertões, e isso tem de ser conseguido pelo
Serviço de Proteção só com o emprêgo de meios brandos, inspira¬
dos e inspiradores de sentimentos de fraternidade, com exclusão
total, e onímoda do uso de qualquer violência, de qualquer compres¬
são física, direta ou indireta: de tôda idéia, vã e contraproducente,
de ferir a imaginação do selvícola pela demonstração da superiori¬
dade dos nossos recursos militares. Como isso se consegue: como
isso tem sido conseguido pelo Serviço de Proteção em paragens sel¬
váticas de todos os Estados do Brasil, eu o explicarei descrevendo o
que se fêz num dos primeiros casos que fomos chamados a resolver
e que, por muitos motivos, teve grande repercussão em todo o país.
Na parte oeste do Estado de S. Paulo havia, ainda no quarto
lustro do regímem republicano, uma vasta região que, partindo da
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margem esquerda do Paraná e estendendo-se terras a dentro, entre
o Tietê e o Paranapanema, até compreender o curso inteiro de dois
outros rios consideráveis, o Aguapeí e o Peixe, se inscrevia nos
mapas geográficos sob o título: território desconhecido, habitado
por índios. Assim era porque ali tinha os seus domínios invioláveis
uma das tribos mais belicosas de quantas existiram em terras do
Brasil. O público dava-lhe a denominação de tribo dos Coroados,
mas a seu respeito nada mais sabia senão que era irreprimível e te¬
merosa na represália e desforra contra qualquer mal que se lhes fi¬
zesse. Uma ou mais tentativas de abordá-la. falharam por completo,
deixando de si triste e dolorosa lembrança. Haviam sido mal proje¬
tadas, sôbre bases falsas e hipóteses erróneas; haviam sido, na prá¬
tica, ainda mais mal conduzidas: era fatal, portanto, que tivessem
o fim que tiveram.
Não o entendeu, porém, assim o público. Contra tôda a justiça,
tirou dêsses fatos a conclusão de que os Coroado constituíam uma
raça à parte, à margem da Humanidade, caracterizada por excep¬
cional instinto de insociabilidade que nunca lhes permitiria entrar
em relações pacíficas e de amizade com os demais povos e com a
nossa civilização. Para fortalecer tão falsa quanto perniciosa opi¬
nião. buscou-se o prestígio da ciência, torturando-a nos seus objeti¬
vos e nos seus fundamentos, e pela voz de um doutor estrangeiro
afirmou-se que ela ensinava terem êsses e outros índios do Brasil
índole feroz e serem por isso irredutíveis a sentimentos de sociabi¬
lidade com a nação civilizada, motivo pelo qual cumpria ao Go-
vêrno dirigir contra êles a fôrça militar até exterminá-los e varrê-
los da superfície da Terra.
Já por êsse tempo iam adiantados os trabalhos de construção
da estrada de ferro que, de S. Paulo, seguia em demanda de um
ponto da margem esquerda do Paraguai, no estado de Mato-Grosso.
Lançava-se ela através da região desconhecida, habitada pela tribo
dos Coroado, e, rasgando a floresta secular, aproximava-se dia a
dia do Paraná, além do qual só encontraria o chão fácil dos vastos
descampados. Mas enquanto lá não chegava, tinha ela que se haver
com enormes tropeços decorrentes do fato de se achar em terras
dos temerosos guerreiros.
Sucediam-se os assaltos e as represálias de lado a lado. Por
tôda a parte pairava a morte e a devastação dos incêndios. A
ameaça impedia a cada instante sôbre tôdas as cabeças; o mêdo to¬
lhia os movimentos; o pavor do desconhecido, pois só a imaginação
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SciELO
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pode ver o que vai por detrás da cortina do infinito arvoredo, de¬
sorganizava o trabalho e paralizava as obras.
Foi nesta ocasião que o Serviço de Proteção, ensaiando ainda
os seus primeiros passos, pois acabava apenas de ser chamado à
vida pelos seus beneméritos fundadores, teve de comparecer para
fazer cessar naqueles sertões as lutas e estancar o sangue dos mor¬
ticínios; para extinguir o fragor das batalhas e emudecer os bra¬
dos de ódio e de vingança, e em seu lugar fazer ouvir os apelos aos
sentimentos de Humanidade de ambos os lados.
Coube a glória de arcar com as dificuldades e os imprevistos
desta súbita improvisação, e de galhardamente vencê-los, a um dis¬
tinto oficial do exército brasileiro, o tenente, hoje Capitão Manuel
Rabelo, patriota de magnânimo coração e de espírito aberto às ge¬
nerosas inspirações da verdadeira ciência, alicerce das boas e sa¬
dias construções do nosso altruísmo. Êle aplacou o ímpeto do incên¬
dio que lavrava por tôda a vastidão daquele território e manifesta¬
va-se, não só ao longo do traçado da via férrea, numa frente de
quase 300 quilômetros, mas também muito distante dali, para os
lados do Paranapanema, na zona que só mais tarde seria cortada
pela linha que hoje liga Salto Grande a Pôrto Tibiriçá. Com êsses e
outros grandes trabalhos de sua iniciativa, tornou êle possível ao
seu substituto e continuador conseguir em menos de seis meses
aquilo que todos proclamavam ser inatingível: o estabelecimento
de relações pacíficas e amistosas com a tão malsinada tribo dos
Coroado.
Tão belo resultado alcançou-se pelo seguinte processo:
Baseado em prévia exploração da floresta nos pontos em que
mais freqüentemente se manifestava a atividade dos índios, deci¬
diu-se fundar um acampamento destinado a atrair a atenção dos
selvícolas e proporcionar-lhes os meios de descobrirem as intenções
pacíficas e benévolas dos seus novos amigos. O lugar escolhido para
tal instalação foi à margem de um riacho, no passo para onde con¬
vergiam vários caminhos vindos de aldeias longínquas. Aí der-
rubou-se a mata secular, abríndo-se uma clareira retangular de
200 metros de largo por 300 de comprido. No centro dêsse quadri¬
látero, desembaraçado a fogo da galhada e troncos das árvores
caídas, consruíram-se pequenos ranchos de estipes de coqueiros
lascados ao meio, cobertos de palha e sem divisões internas. Ser¬
viam de residência ao chefe do serviço e aos seus auxiliares, num
total que nunca excedeu de dôze pessoas; de arrecadação de víveres.
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vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
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brindes e outros artigos, cozinha, refeitórios, etc. O perímetro dêsse
quadrilátero era cercado a arame farpado, além de protegido pelo
intrincado dos ramos de muitas árvores abatidas. À noite era ilu¬
minado a lampeões de querosene, que se traziam sempre acesos,
enquanto o. centro jazia em profunda escuridão. O objetivo de tais
cuidados era afastar, tanto quanto possível, as probabilidades de
um assalto dos índios, o que certamente se alcançaria tirando-lhes
os ensejos de executarem alguns dêsses passes de surpresa em que
são exímios e sem os quais os seus guerreiros, armados de arco e
flecha, nunca nos molestariam.
Êles traziam o acampamento sob estreita e incessante vigilân¬
cia, espiando noite e dia, com paciência infindável, o momento em
que um nosso descuido lhes propiciaria a desejada oportunidade
de desferirem o golpe da sua infalível estratégia. A luz do dia era-
lhes desfavorável: forçava-os a embrenharem-se na mata e a só de
longe observarem-nos, às vêzes por seus espias enrodilhados na
copa de algum coqueiro. Mas a noite fazia-os ousados e empreen¬
dedores: vinham até pró.ximo da nossa cerca, a princípio sorratei¬
ramente, enquanto esperavam surpreender-nos; depois ameaçado¬
res, soltando brados enormes e fazendo troar a mata com pancadas
dos seus tacapes temerosos, os formidáveis guarantãs, contra os
troncos das árvores. É que nos encontravam sempre vigilantes e
atentos: ao menos era essa a impressão que lhes causavam as vozes,
os cantos, as músicas que incessantemente ouviam sair do centro es¬
curo do acampamento. O que certamente os pasmava, era que nós
nem descontinuávamos a nossa vigilância, nem deixávamos trans¬
parecer a menor sombra de mêdo, mesmo nas ocasiões das mais
impetuosas ameaças. Tão grande efeito custava-nos no entanto, ao
. contrário do que pensavam, muito pequeno esforço; era só um de
Jiós que ficava a fazer funcionar o gramofone, no qual se sucediam
i-hapas adrede escolhidas para darem a impressão de haver muita
gente acordada, rindo e folgando despreocupadamente.
Ao bom efeito que sóbre êles causava o fato de não nos ame¬
drontarmos e de não repelirmos a tiros as suas ameaças, juntávamos
os presentes que íamos de dia pôr ao alcance de suas mãos, no in¬
terior da floresta. Para êsse fim seguíamos por um dos caminhos
até encontrarmos lugares em que não lhes fôsse possível suspeita¬
rem alguma cilada ou má intenção de nossa parte. Nesses lugares
fazíamos alguma construção ligeira, um girau, ou uma pequena co¬
berta de fólhas de coqueiro, e nela colocávamos os presentes, ar¬
ranjado tudo de tal forma que arraigasse em todo e qualquer en-
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rendimento humano a compreensão de se tratar de brindes volun¬
tária e muito calculadamente oferecidos, e não de objetos deixados
por acaso ou esquecimento. Tais brindes constavam de machados,
facões, tecidos, contas e outras quinquilharias. Entre êles, porém,
não devia figurar nenhuma substância alimentícia, porque o selví-
cola não se serviria dela, mas ficaria suspeitoso de que*o queríamos
envenenar.
No entanto não podíamos descurar de meio tão eficaz de cap-
rar a boa vontade dessas populações como é êsse de lhes propor¬
cionar alimentos fáceis e abundantes. A dificuldade estava em des¬
cobrirmos o meio de fazer-lhes oferta de tal natureza dando-lhes ao
mesmo tempo a segurança de que a nenhum risco se expunham acei¬
tando-a. Foi o que conseguimos alargando mais a nossa derrubada
para na terra assim desbravada plantarmos milho e abóboras, dis¬
postas as coisas de tal arte que fôsse fácil aos índios compreende¬
rem a nossa Benévola intenção. Em fins de janeiro de 1912 já essas
plantações começavam a produzir os seus frutos mais preciosos,
porque de tôda a parte afluíam òs moradores das aldeias atraídos
pela tentação de aproveitarem aquela imprevista vantagem de abas¬
tecerem-se à vontade de milho verde, alimento que lhes é familiar,
como a todos os autóctones do Brasil, onde são nativas três varie¬
dades dessa gramínea, que se distinguem pelas cõres, branca, roxo-
-escura, quase negra, e rubro-“grenat”, das respectivas espigas.
À experiência acabou convencendo-os de que nada teriam de
recear de nossa parte. Os mais corajosos vieram, pois, instalar-se,
com suas famílias, nas proximidades da roça a fim de se aliviarem
do penoso trabalho do transporte das suas colheitas para as lon¬
gínquas paragens das aldeias. Contudo, não cessava a espionagem
cm tórno do acampamento, nem as movimentadas vigílias noturnas.
A nossa coragem e a firmeza da nossa resolução de nunca usarmos
da violência, de não cedermos às ameaças, mas também de não re¬
vidarmos a elas, eram constantemente postas à prova, com tanta
pertinácia e ímpeto que nem todos nossos companheiros de acampa¬
mento conseguiam dominar-se. Era então que o gramofone nos
prestava os mais assinalados serviços, enchendo os ares de sons de
ruidosas gargalhadas e de cantos alegres que, ouvidos de longe por
pessoas ignorantes do artifício, valiam como evidentes atestados do
desprêzo que a tantos perigos votavam os que se achavam cercados.
As matas levantam-se diante de nossos olhos como grandes e
impenetráveis muralhas atrás das quais o mistério nos espreita. A
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Onn<,a,un<c dc S. Paulo.
^ I
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iTiíir;
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nossa imaginação excita-se e povoa de fantasmas e de pavores a
região que a nossa vista não pode devassar. Os enormes troncos
sombrios parecem comparsas silenciosos, inflexíveis, do frio drama
em que nos sentimos envolvidos e que prestes nos vai aniquilar.
Fôsse outro o gênio da floresta, quisesse ela desvendar-nos os
seus segredos, e veríamos que naquele momento as ameaças de
assalto, que incessantemente recrudesciam, visavam outro efeito;
~ o que pretendiam já não era o massacre, mas tirar a limpo a nossa
fidelidade aos princípios pacíficos que a nossa conduta vinha in¬
culcando. Naquelas horas, em que tudo em tôrno de nós parecia
I espirar ódio e concentrar-se na sêde de vingança, não podíamos
suspeitar que distância enorme separava o que víamos do que na
realidade se passava entre os índios. É que também lá se haviam,
por fim, formado dois partidos: um que aceitava as nossas mani¬
festações de amizade e interpretava-as como promessas em que to¬
dos se podiam fiar, de terem boa e fraternal acolhida de nossa parte;
outro, que entendia serem enganadoras as nossas atitudes e não
visarem outro fim senão o total e impiedoso extermínio da tribo. Os
homens deste último partido nada mais almejavam do que um ato
nosso que lhes desse razão, e para que o praticássemos redobravam
as provocações. Os do outro, queriam confirmar-se no seu pensa¬
mento, e punham a prova a nossa paciência e a firmeza da nossa
resolução.
Havia, felizmente, do lado dêste partido uma velha muito aca¬
tada pelo âlto valor profético que todos reconheciam existir nos seus
sonhos. E essa boa velhinha sonhou que os seus irmãos vinham ao
nosso acampamento, eram recebidos como amigos, entre festas e
alegrias, e retiravam-se carregados de coisas preciosas; machados
a cujos golpes qualquer árvore tombava sem custo: contas de tõdas
as cõres, mas sobretudo brancas, muito brancas, que em colares de
infinitas voltas realçavam a beleza das mulheres e davam às moças
graças infinitas.
Não era necessário mais, talvez mesmo nem tanto, para dar à
questão o golpe que a tinha de resolver definitivamente. E foi o que
aconteceu, quando à plena luz do sol de 19 de março de 1912, a pe¬
de coisa que muito ambicionava.
daquele arroz insosso. Foi quanto bastou para os índios também
comerem, e o fizeram com o alvoroto de quem afinal se apropria
quena guarnição daquele acampamento perdido na solidão da mata
virgem, viu, quase maravilhada, apresentarem-se no descampado
da roça, e depois encaminharem-se para o recinto cercado, nove
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homens, inteiramente desarmados, mãos livres, corpo despido e liso
da cabeça aos pés. Eram os primeiros mensageiros da paz, havia
tanto tempo esperados e, a custo de tantos trabalhos, sobressaltos e
perigos, buscados e solicitados para aquele instante feliz.
Dizer entre que transportes de alegria foram êles recebidos é
impossível: descrever como se portaram, o que admiravam, dentre
tantas coisas que viam pela primeira vez, seria longo e fastidioso.
Bastam duas referências, uma para pintar a circunspeta prudência
dêsses homens, e outra para dar idéia do valor que para êles têm os
produtos da nossa indústria, mesmo nos artigos que nos são mais
familiares e de que nos servimos desatentos.
No afã de os obsequiar e de lhes mostrarmos a grandeza da
nossa alegria, transformávamos tudo que tínhamos no acampa¬
mento em objetos de dádivas, e com êles os brindávamos. Não nos
esquecemos de comidas: mandamos vir feijão, arroz e mandiocaj
simplesmente cozidos em água, sem sal nem gordura. Êles, porém,
não os quiseram aceitar. Vendo isso, teve alguém a intuição de que
a recusa traduzia apenas a desconfiança de que se achassem enve¬
nenados os alimentos. Era necessário desvanecer tal suspeita: à
vista de todos, tomou uma colher e pôs-se a comer daquele feijão e
O outro traço entende-se com o indescritível interêsse que lhes
causou o fósforo. Quando viram a facilidade que temos em produ¬
zir a chama viva e crepitante, mostraram-se deslumbrados. Esten¬
diam as mãos calosas, espalmadas, para que víssemos os vestígios
que nelas havia do enorme trabalho que para êles era tirar uma in¬
certa e fugitiva centelha do atrito reiterado, sõbre uma peça de
madeira, da ponta de uma varêta que fazem rolar entre as duas
palmas, em incessante e rápido movimento de vai-vem. Por isso, dos
presentes que lhes fazíamos, a nenhum prezavam mais do que as
caixinhas de fósforos, e, inexperientes no modo de usá-los, catavafn
os que, por já riscados, atirávamos ao chão, pensando que ainda
serviriam. Quando, mais tarde, conheceram o dano que lhes cau¬
sava a humidade, deram para envolver as caixinhas em fôlhas sê-
cas e fibras vegetais com tão apurado cuidado que mesmo caindo na
água ficavam os palitos intactos e enxutos.
Convém aqui dizer que entre os índios encontramos em ger-
mem as instituições que em ponto grande e desenvolvidas existem
na nossa sociedade. Assim, vemos lá a separação dos ofícios: —
há uns, e são os mais pesados e os mais arriscados, da competência
dos homens e só êles os exercem: outros cabem às mulheres. Quanto
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ao fogo, por exemplo, pertence aos homens o trabalho de fazê-lo
surgir do atrito das duas peças de madeira: é da alçada das mu¬
lheres alimentá-lo e conservá-lo, o que fazem com vistas de afastar
o mais possível as ocasiões de êle extinguir-se, Há a regularização
das relações matrimoniais com a previsão de interditos para os casos
que entre nós são considerados incestuosos. Há a família em estado
de organização já muito adiantado e plenamente desenvolvidos os
sentimentos e as relações entre os esposos, pais e filhos, irmãos,
tios e primos. Há a noção e o estrito respeito da propriedade pri¬
vada para todos os objetos de uso individual, como os arços, as
flechas, os ornamentos, as tangas e mesmo para os artigos de uso
familiar, como as panelas, os balaios, as provisões de bôca, conser¬
vadas pelo processo do moquém, e outros.
A essa visita inicial, de 19 de março de 1912, seguiram-se ou¬
tras. Do nosso acampamento saíram também alguns moços deste¬
midos e ardorosos para irem às aldeias retribuir as visitas de paz e
por tõdas elas lançar a semente da boa vontade e da amizade que
havia nascido entre os dois povos. E essas relações amiudaram-se,
estreitaram-se, tornaram-se sólidas e são hoje, ao fim de treze anos
de duração inalterável, tão inabaláveis como as melhores constru¬
ções brotadas do gênio benfazejo da Humanidade.
E ali temos, num exemplo estrondoso pela notoridade com que
nêle se juntavam e culminavam as dificuldades do problema que
resolveu, mas que não ficou isolado porque idêntica solução se re¬
produziu em casos difíceis como o dos Uaimirí, dos Botocudo,
dos Barbado, dos Parintintim e de outras tribos guerreiras, como
o Serviço republicano de Proteção aos índios alcança modificar os
selvícolas dêste grupo e colocá-los em situação de receberem os be¬
nefícios da nossa civilização. Se o amparo de tal assistência não se
descontinuar, nem se extraviar por veredas divergentes do primitivo
roteiro, puro e nítido, por êle serão essas populações trazidas afinal,
sem dores nem descaídas, ao nível mental e moral em que se encon¬
tra o meio social onde se engendra a prole inteira que povoa as
terras do Brasil e nesse dia estará terminada a fusão e o caldea-
mento das raças com que sonhou José Bonifácio quando, em 1822,
lançou os fundamentos da nacionalidade brasileira.
É no seio dessa nacionalidade que se forjam os grandes ideais
de fraternidade universal que nos fazem desde já simpatizar com
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tudo quanto de grande e belo vemos nesse sentido brotar, crescer e
florir entre os povos nossos irmãos dêste Continente, do Ocidente
e da Terra inteira. De tão beneméritos pioneiros da mais alta subli¬
mação da idealidade humana nenhum excedeu ainda a vós outros,
uruguaios, pelo muito que já realizastes e estais realizando. Ainda
ontem eu ouvia, embevecido de entusiasmo, a palavra arrebatadora
de um dos vossos homens eminentes, o ex-Presidente D. Baltazar
Brum, pregar a política de paz entre os povos da Terra e ensinar o
caminho que temos de seguir para estreitarmo-nos todos nos laços
de sincera e duradoura fraternidade; ouvi-o, em seguida, descorrer
sôbre as instituições sociais que concretizam em realizações tangí¬
veis as encantadoras inspirações da alma altruística do povo uru¬
guaio. Compreendi então, mais vivamente do que nunca, que vós,
uruguaios, e nós, brasileiros, pelo coração, pela fôrça e pela capa¬
cidade de amarmos e querermos o bem, encontramo-nos em mais
estreita comunhão de aspirações do que nenhum outro elemento da
grande família humana.
A nossa obra republicana de Proteção aos índios, tal como pà-
lidamente vo-la acabo de descrever, pode ser considerada como um
esforço do povo brasileiro para acompanhar e secundar os esforços
dos povos irmãos, e principalmente do Uruguaio, de implantar no
mundo uma política guiada pelos altos interêsses da sociabilidade
liumana, inspirada pelos mais sublimes ditames da bondade e do
amor universal.
Que vós todos que me ouvis, dando vida à minha pálida pala¬
vra e tirando-a da triste forma de crisálida sob a qual vô-la apresen¬
tei, leveis daqui, bem nítida, impressa em vossos corações, a convic¬
ção de que o Brasil está cumprindo o seu dever de resgatar a imensa
dívida que herdou de seus maiores, em relação à raça oprimida dos
primitivos habitantes do Continente de Colombo.
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r.lCIJ-ICAÇAO DOS CAIXGASGUE
Xfi 13 _ o chcíc f/iierrciro Rcriiii r sua vutihcr. Ao lado a velha índia inlért’n’lc Vanuire.
SciELO
Senhores:
INTRODUÇÃO
O meu aparecimento nesta tribuna, já tantas vezes ilustrada
por oradores de talento e de vasto saber, exige de mim que comece
explicando, com tôda a lealdade, que, por me faltarem hábitos e
dotes artísticos, não poderei nunca corresponder à espectativa da¬
queles que, por ventura, aqui tenham vindo com a esperança de
ouvir uma conferência literária, abrilhantada por paradoxos fulgu¬
rantes, imagens imprevistas e sutilezas de estilo.
Nada disso poderei dar e nem mesmo aspiro a mais do que
fazer uma honesta e chã exposição de como alcançaram os funcio¬
nários do Serviço de Proteção aos índios captar a confiança e a
amizade dos Caingangue, que enchiam de pavor os sertões do
Estado de S. Paulo, compreendidos entre o curso inferior do
Fieté, o vale do Rio Feio ou Aguapeí e do Rio do Peixe, até mesmo
as margens do Paranapanema.
Direi também o que temos observado dos hábitos, da índole
e da civilização dêsses selvícolas, com a firme esperança de que
fazendo-os assim conhecidos, modifique-se a falsíssima opinião
que dantes se havia arraigado no espírito de muitos dos nossos
letrados, de ser êsse povo dotado de gênio excepcionalmente feroz,
a ponto de o tornar incapaz de merecer dos civilizados outro tra¬
tamento que não fôsse o extermínio completo a tiros de carabina.
Uma compensação, porém, haverá para a falta de interêsse
literário desta exposição : é a farta documentação de tôdas as
afirmações que forem aqui avançadas, pelas belíssimas projeções
luminosas que se irão fazendo das fotografias apanhadas em pleno
sertão pelo dedicado e incansável fotógrafo do Serviço, o Sr. Sofian
Niebler.
Dadas estas explicações, necessárias para prevenir-vos,
senhores, de que para o desempenho da tarefa que me impuz, pre¬
ciso de tôda vossa benevolência, que encarecidamente solicito,
começarei expondo a distinção que há a façer entre as diversas
tribos de índios existentes no território de nossa Pátria.
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OS ÍNDIOS E OS NOSSOS SERTÕES
Vulgarmente pensa-se, nesta Cidade, como nos demais centros
civilizados, que os indígenas brasileiros acham-se todos no mesmo
gráu de selvajaria, vivendo embrenhados nas florestas e procurando
evitar relações com os descendentes do invasor europeu, aos quais
assaltam e trucidam sempre que os apanham ao alcance de suas
flechas.
Esta opinião é tão radicalmente falsa quanto muitas outras
que por aí correm, como verdades inconcussas e muito sabidas, a
respeito de nossos sertões e de seus habitantes.
A realidade, porém, é que os indígenas brasileiros distrí-
buem-se em duas classes: destas, a mais numerosa é constituída
pelas tribos ou nações que podemos chamar de civilizadas: a
outra é formada pelos selvagens propriamente ditos, únicos, aos
quais se poderá aplicar, mais ou menos, a idéia genérica que nas
cidades se liga à denominação : índio.
Quanto aos indígenas da primeira categoria, a que acabamos
de chamar de civilizados, ainda é preciso dividi-los em dois grupos:
um dos que vivem em promiscuidade com os brancos, falando corre¬
tamente o português, trabalhando em estabelecimentos agrícolas
e pastoris, conhecendo e adotando os hábitos e costumes dos nossos
cabõclos, dos quais não se diferenciam à primeira vista; e o
outro, o dos que vivem afastados dos brancos, em tribos ainda
organizadas, conservando a linguagem e os costumes primitivos,
mas procurando freqüêntemente as nossas povoações para ven¬
derem os produtos de suas indústrias e lavouras ou para se empre¬
garem em certos serviços, como os de canoeiros. por ercmplo. e
assim poderem adquirir roupas, ferramentas, etc.
Dos que vivem em promiscuidade com os brancos, citarei os
Guarani, de S. Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul : os Caiuá,
habitantes da região Sul de Mato-Grosso, arrendada à Companhia
Mate-Laranjeira, cujos trabalhos de colheita e preparação da
herva são quase todos feitos por êles: os Terena, Cadiuéo c
outros, magníficos campeiros cujos serviços são muito disputados
pelos proprietários das grandes estâncias de criação de Mato-
-Grosso ; os Mauê do Amazonas, conhecidos como os melhores
fabricantes de guaraná, mercadoria cujo larguíssimo consumo em
Mato-Grosso, dá margem a lucros consideráveis : os Timbira do
Maranhão, e outros que seria fastidioso citar.
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Dos que fazem vida à parte, mas procuram constantemente
os brancos para com êles comerciar, citarei os Amanagé e Tembé
do Pará, que se aplicam na extração do cedro e do óleo de copaíba;
os Paricí de Mato-Grosso, que anteriormente à ação do Coronel
Rondon troxeram para o mercado quantidade incalculável de
poaia e de borracha; os Bororo do Rio das Garças, que se
empregam em trabalhos de lavoura ; os Carajá, excelentes cano-
eiros do Àraguáia e muitíssimos outros.
Conquanto trabalhadores extrenuos, êstes índios civilizados,
sempre arrastaram uma vida de misérias. Os que viviam em
promiscuidade com os brancos, condenados a uma escravidão mal
disfarçada, graças ao conhecido truque das dívidas eternas para
com os patrões, dçgradavam-se pelo abuso das bebidas alcoólicas
e pela prostituição ; os outros tinham de deixar em mãos dos
regatões , ou negociantes que os iam procurar, em épocas certas
do ano, produtos do seu trabalho (cedro, óleo de copaíba, borracha,
guaraná, castanhas do Pará, etc.) em quantidades que valiam
muitos contos de réis, recebendo por troca alguns facões, peças
de chita, aguardente e outras ninharias, cujo valor mal alcançava
a algumas dezenas de mil réis.
^ ^ E evidente que, com semelhante regime, essas míseras popu-
jaçoes nunca poderiam progredir e a nação só tinha que perder com
tal prática, que consiste em extenuar sistemàticamente o trabalhador
e a terra, para pôr nas mãos dos poucos proprietários dos hervais,
dos campos, dos seringuais, etc., somas enormes, que êles se apres¬
sam em ir gastar desregradamente nas cidades do país ou do estran¬
geiro .
Dos grandes capitais arrancados anualmente aos nossos ser¬
tões, pelo trabalho indefeso dos índios e dos nacionais, não se tira
um real sequer para a melhoria dos métodos de exploração, das
vias de comunicação, das habitações e nem mesmo dos meios de
garantir a subsistência dos pobres trabalhadores.
Lutando contra esta asfixiante situação, que já havia dolorosa-
mente impressionado o espírito dos nossos grandes sertanistas,
como os Generais Couto de Magalhães e Gomes Carneiro, o Co¬
ronel Rondon esforçava-se, numa ação tóda pessoal, por libertar
os índios da esmagadora dependência em que definhavam, garan¬
tindo-lhes, para isso, os frutos de suas lavouras e de outros tra¬
balhos, em terras cuja propriedade lhes era atribuída. Foi assim,
por exemplo, que os Paricí, antes misérrimos descobridores de so¬
em
SciELO
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berbos seringais do planalto matogrossense, viram, ràpidamente,
melhorar, primeiro, as condições materiais de sua vida, e logo depois
a moralidade e o bem estar de suas famílias.
Esta grande obra de vivificação dos sertões brasileiros, con¬
quanto se limitasse aos simples esforços de iniciativa de um homem,
ainda mesmo dotado da prodigiosa atividade e dedicação do Co¬
ronel Rondon, estava ameaçada de perecer, logo que outros deveres
o obrigassem a ausentar-se daquelas regiões ; isso mesmo já se
havia dado com os Bororo, do rio S. Lourenço, com alguns grupos
de Terena e de outros índios dos pantanais, os quais, desde que lhes
faltou a presença direta do Coronel, tiveram de ceder à compressão
dos elementos hostis, entre os quais se encravavam as terras que
lhes haviam sido doadas, e retrogradaram até a desorganização e
dispersão de que êle os havia tirado.
Não só para manter ininterrupta esta benéfica influência, como
também para difundí-la por todo o território da República, fazendo-a
abranger a totalidade das populações dos sertões, foi criado em
1910, na Presidência do Sr. Dr. Nilo Peçanha, e sendo Ministro
da Agricultura o Sr. Rodolfo Miranda, o Serviço de Proteção aos
índios e I,ocalização de Trabalhadores Nacionais.
o SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
Para dar uma idéia do modo de agir dêste serviço, dos fins a
que êle colima e dos resultados que vai obtendo, bastará lançar-se
um rápido golpe de vista sõbre a situação dos Guarani de S. Paulo,
tal como era em 1910 e como é atualmente.
Deve notar-se, em primeiro lugar, que os Guarani paulistas
apresentam o mesmo grau de civilização que os nossos caboclos :
falam correntemente o português ; são monógamos : casam-se na
igreja católica: batizam os filhos e os inscrevem no Registro Civil;
enterram os seus mortos nos cemitérios públicos e usam os mesmos
métodos de trabalho.
A diferença que os separa dos caboclos, é que êles entre si só
falam a língua guarani: ao batismo e ao nome católico sobrepõem
uma cerimônia e um nome dos antigos usos indígenas ; ao culto,
aos santos e ao padre da igreja, antepõem os ritos do maracá, o
culto do sol e da lua e a veneração pelos pagés, que êles chamam
em português de “rezadores ’.
.P^ organização política nada mais resta, e a influência
dos capitães , última sombra dos caciques e murubixabas de an¬
inho, ficou inteiramente absorvida e anulada pela influência do
Govêrno uma espécie de entidade tôda poderosa e severa para
a qual êles voltam as suas esperanças e respeitam com fervoroso
temor.
Dêsses índios existiam em 1910 vários grupos exparsos e
arrastando uma vida misérrima, em Jacutinga, município de Bauru,
em terras da fazenda de Itaporanga, em Piraju, e nas cercanias de
Itanhaem.
A primeira ação da Inspetoria do Serviço de Proteção aos
índios, em S. Paulo, teve de dirigir-se no sentido de debelar as
epidemias de varíola e de impaludismo que devastavam os grupos
de Itaporanga, Piraju e de Jacutinga, criando-se para isso, por
ordem imediata do Coronel Rondon, um hospital em Miguel Calmom
e outro em Itaporanga.
Depois de atendidas essas e outras necessidades urgentes,
aplicou-se a Inspetoria em criar para êsses Guaranis uma situação
favorável ao seu desenvolvimento material e conseqüente melhoria
moral. Para êste fim, o Govêrno Estadual reservou as terras da
fazenda do Araribá, abrangendo a área de 800 alqueires de flo¬
restas virgens.
Para aí conduziram-se os índios de Itaporanga, Piraju, Salto-
-Grande e do município de Bauru, os quais desde logo começaram
a abrir estradas e fazer derrubadas para plantações de milho, arroz,
feijão, mandióca, batatas, canas, árvores frutíferas ; criação de
porcos, galinhas, patos, etc..
A concentração dos Guarani no Araribá, começada em meados
do ano passado, deu os seguintes resultados : em dezembro
tinham.-se derrubado e plantado perto de 200 alqueires de terra ;
existiam 700 porcos : mais de 800 galinhas ; 35 cavalos e
muares ; cabras, carneiros e outras criações. Já se tinham plan¬
tado mais de 200 árvores frutíferas.
A moralidade dos índios melhorou em grau muito maior
do que o esperado pelos cálculos mais otimistas ; com facilidade
espantosa conseguiu-se, quase em absoluto, suprimir o abuso das
bebidas alcoólicas e até hoje não se deu o menor conflito, nem
mesmo algumas dessas pequenas rixas tão comuns entre populações
pouco numerosas e rústicas.
— 40 —
No entanto, a população do Araribá é constituída de cêrca de
300 indivíduos, provenientes de grupos que se olhavam com fundas
prevenções, geradas por conflitos e rixas antigas.
Os miseráveis ranchos em que êles vivdam, substituiram-se por
casas, com as divisões internas exigidas pelos bons hábitos e pela
moral doméstica.
O regime adotado na povoação consiste em se dar aos índios
absoluta garantia de propriedade sôbre todos os frutos de seus
trabalhos. Das plantações que fazem em suas roças e de suas
criações, êles dispõem inteira e livremente ; quando trabalham em
serviços promovidos pela Inspetoria, o que só fazem por livre von¬
tade, sem menor sombra de coação material ou moral, recebem um
jornal como qualquer trabalhador contratado.
Os empregados da Inspetoria só existem para manter a órdem
material, providenciar sôbre necessidades de alimentação, trata¬
mento de doentes, ferramentas, transportes, etc. ; evitar as inva¬
sões de intrusos e principalmente para zelar os materiais perten¬
centes ao Estado; além disto, procuram com os seus conselhos
incentivar os trabalhos, melhorar as plantações, conservar o asseio
e a higiene das habitações e das pessoas. Mas, em caso nenhum
êles intervêm na vida íntima das famílias ou dos indivíduos ; nas
crenças, festas e cerimônias religiosas.
Os resultados colhidos era pouco mais de um ano são tão
consideráveis, que nos animam a esperar para dentro de cinco anos.
no máximo, vermos a atual povoação indígena de Araribá trans¬
formada em centro agrícola de trabalhadores nacionais. Êste pro¬
cesso só depende de não se descontinuar, nem desmerecer a ação do
Govêrno, de modo a ser possível o estabelecimento definitivo do
ensino das primeiras letras, a criação do aprendizado prático da
agricultura, dos ofícios de carpinteiro e ^de ferreiro, bem como a
introdução dos instrumentos próprios ao aperfeiçoamento da arte.
de tecelagem, a que são muito dadas as índias e para cujo desenvol¬
vimento já se fês um.a regular plantação de algodão.
Tendo assim dado uma idéia do que são os índios que cha¬
mamos “civilizados”, e da espécie de proteção que o Govêrno Fe¬
deral, por intermédio do Ministério da Agricultura, atualmente
lhes dispensa, devemos agora passar a considerar os que denomi¬
namos de “selvagens”.
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7SCÍELO) ;l1 12 13 14 15 16
— 4 ] —
índios ÀMONTADOS
Conquanto muito menos numerosos do que os outros, são
estes indígenas os que mais preocupam o espírito público, e isso
porque algumas tribos, habitantes de restos de florestas, já premi¬
das por estabelecimentos de civilizados, vivem em estado de guerra
constante com os invasores de suas terras. Acresce que para
agravar a impressão de terror que nas cidades anda ligada ao nome
de índio, os jornais e os livros, que nunca deixam de comentar
longamente as cruezas de seus assaltos, guardam sempre o maior
silêncio sôbre as batidas que, em geral, as precedem e provocam e
das quais resultara terríveis massacres de populações inteiras!
E inútil dizer-se e repetir que esses selvagens atacam para
defender-se, e quase sempre em desforra a uma sangrenta provo¬
cação dos civilizados. Nós, nas cidades, vamos registando as
mortes que êles praticam e continuamos a ignorar os horrores que
sofrem ; nós não sabemos, por exemplo, que há bem poucos anos,
em Campos Novos do Paranapanema, Estado de S. Paulo, com¬
pletava-se a exterminação de uma nação inteira, a dos Oti, índios
absolutamente inofensivos, que nunca souberam opôr a menor resis¬
tência aos seus inumanos matadores.
As nações de selvícolas de que ainda restam algumas relíquias,
sao exatamente as que se defenderam, opondo os seus arcos e
flechas às nossas carabinas de repetição ; e por se terem defen¬
dido, nós muitas vêzes as classificámos de ferozes e exigíamos ao
Govêrno que as mandasse exterminar.
No entanto, a obser\'ação e a experiência demonstram que os
índios habitantes de florestas, nunca foram subjugados pelos meios
violentos. Êsses meios só podiam surtir efeito quando empregados
contra os dos campos, em cujos descampados a flecha de nada
vale em comparação com as armas de fogo.
Os Boróro do rio das Garças sustentaram guerra contra
Cuiabá durante quase um século. Em vão o Tenente Duarte, por
ordem do Govêrno da então província de Mato-Grosso, manteve
contra êles uma campanha sem tréguas : a guerra só terminou
quando se deu a intervenção da índia Rosa, de cuja benéfica ação
nos foi conservada a memória num trabalho encantador da esposa
do General Melo Rego.
Também os Boróro de S. Lourenço, que de primitivos aliados
dos Portuguêses tiveram de se transformar em inimigos, para
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SciELO,
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evitar o cativeiro, desde os fins do século XVIII até nossos dias
sustentaram, com vantagem, a guerra que lhes movíamos para desa¬
fogar a estrada de Cuiabá, e não sustaram as hostilidades senão
depois que o Coronel Rondon, prosseguindo na obra esboçada pelo
General Gomes Carneiro, fês cessar as batidas e substituiu-as por
manifestações de benevolência e bondade.
Ainda êstes processos de brandura, já agora empregados por
funcionários do Serviço de Proteção aos índios, conseguiram, logo
no princípio de 1911, terminar a guerra dos Aimoré que vinha desde
o tempo de D. João VI, os quais agora se acham pacificamente
tratando de lavouras, em postos criados pela Inspetoria do Espírito-
Santo, sob a deligentíssima direção do Tenente Antônio Estigar-
ríbia ; idênticos resultados colheu a Inspetoria de Goiaz, com os
Javaé, da ilha do Bananal, também classificados de ferozes ; como
o Coronel Rondon já o havia alcançado com os Nhambiquara,
talvez a inais numerosa de tôdas as nações indígenas do Brasil, e
comb o acaba de realizar com os Barbado, índios também de Mato-
-Grosso.
De todos os casos, porém, que se poderiam aqui citar, compro¬
bativos da excelência e do acerto do método preconizado pelo Di¬
retor do Serviço de Proteção aos índios, o que nos deve preocupar
mais especialmente é o dos Caingangue, de S . Paulo .
OS CAINGANGUE
A celêuma que se levantou em torno do nome dêstes índios,
não se justifica, nem pela importância numérica de sua população,
que é uma das mais resumidas, nem tão pouco por algum requinte
de crueldade, de que resultasse para êles um lugar à parte na triste
história das lutas dos selvícolas brasileiros contra os civilizados.
A explicaçãb da enorme retumbância que tiveram os assaltos
dos Caingangue, parece-me residir, principalmente, em dois fatos :
primeiro, o dêles se realizarem no Estado de S. Paulo, e segundo,
o do lamentável desfecho que teve a tentativa de catequese do
Padre Claro.
Sacerdote estimado e respeitado entre as classes cultas de São
Paulo, pelas suas altas virtudes e saber, o Padre Claro decidiu ir
quase sozinho, ao encontro dos Caingangue, com o fito de os paci¬
ficar e conduzir para o grêmio da igreja católica. Para isso fês
construir, nas cabeceiras do Feio, três canoas que tripulou com
— 43 —
Guaranis e nelas descendo o rio. ia deixando pelas ribanceiras,
onde encontrava vestigios dos índios, espelhos, facões e outros
brindes.
Por êsse tempo ainda se acreditavm que o Feio fôsse um tribu¬
tário do Tietê. O Padre Claro, que partira com essa idéia, tendo
navegado até às imediações da barra do Presidente Tibiriçá, e
notado que o curso do rio, até alí, conserváva-se paralelo ao Tietê,
concluiu que êle ia diretamente desaguar no Paraná, e, provável-
mente, por falta de víveres, resolveu daí regressar para o ponto de
partida.
No dia imediato ao em que começou a subir o Feio, foi a flo-
tilha inopinadamente assaltada pelos Caingangue, que contra ela
atiraram uma nuvem de flechas. Um desses tiros acertou no
padre ; outros mataram e feriram alguns tripulantes das canoas.
A notícia desta tristíssim.a morte causou a mais penosa im¬
pressão na população de ,S. Paulo. Daí por diante, todos os espí¬
ritos se inclinavam a aceitar as mais odiosas opiniões sôbre a feroci¬
dade excepcional dos Caingangue, pois que. raciocinando com
muito bons sentimentos, mas com nenhuma clarividência, conclui¬
ram que era preciso não existir naquelas almas nada de humano,
para assim maltratarem um homem que nunca os molestara e que
tantos sacrifícios afrontava só movido pelo desejo de lhes fazer o
bem.
O que, porém, não sabiam, nem podiam saber os moradores das
cidades, é o que agora contam os índios, explicando o motivo do
seu ato.
Di zem êles que, entre os brindes deixados pelo Padre Claro
numa ribanceira, figurava uma carabina ou espingarda, engenho
cujo maquinismo êles, nesse tempo, ignoravam completamente, a
ponto de acreditarem que êle disparava por si mesmo, automática-
mente. Daí concluiram que aquela arma havia sido alí deixada com
a intenção de matar os que dela se aproximassem, atraídos pelos
outros presentes.
Esta suposição conduziu-os logo a considerar os expedicio¬
nários, cujos passos vinham desde o princípio observando cuidado-
^amente, como inimigos perigosos, que mereciam e precisavam ser
imediatamente debelados.
Como se vê, o triste desfecho da tentativa de catequese do
Padre Claro resultou não da suposta ferocidade dos Caingangue,
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SciELO,
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mas sim- da profunda ignorância em que êles viviam a respeito das
coisas da nossa indústria, e mais da desconfiança que nutria m
pelos civilizados, em conseqüência das terríveis batidas contra
êles incessantemente organizadas por mçradores de Campos-Novos
do Paranapanema, e pelos que iam, mais recentemente, fundando
estabelecimentos nas cabeceiras do Feio e em águas da margem
esquerda do Tieté.
Esta luta impiedosa e bárbara já vinha desde os primeiros
anos da segunda metade do século passado, e quanto mais durava
mais se amiudavam, de um lado e do outro, os assaltos e os morti¬
cínios, acompanhados de crueldades cada vez maiores.
Em vão colocou o Governo estadual as suas esperanças na
catequese, subvencionada desde 1903 até hoje, que devia ser orga¬
nizada pelos frades capuchinhos, em Campos-Novos ; a situação
continuava a piorar de ano para ano. O reconhecimento e o levan¬
tamento dos rios Feio, Aguapeí e Pei.xe, pela Comissão Geográfica
e Geológica do Estado, teve de fazer-se à mão armada, e ainda
assim não se conseguiu evitar o sacrifício de vidas em ambos os
campos.
A E. F. NOROESTE E A AÇÃO DO CORONEL RONDON
À construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, cor¬
rendo pelo divisor das águas do Feio e Tieté, constituiu uma nova
fonte de hostilidades : às batidas dos bugreiros, sucediam-se os
assaltos, cada vez mais violentos, dos índios contra os trabalhadores
da estrada, e o pavor imperava por todo o sertão, onde ninguém
se encontrava sem uma carabina de repetição, de que usava dia e
noite, em descargas a esmo, para afugentar o “bugre”.
Em fins de 1910, quando apenas se começava a organizar o
Serviço de Proteçãô, a situação da Noroeste era tão premente, que
o empreiteiro oficiava ao Ministério da Viação, avisando-o de que
estava na iminência de suspender as obras de construção, por impos¬
sibilidade de conter os selvícolas e fazer parar as suas correrias.
Os Tenentes Rabello e Dantas. — O Coronel Rondon, tendo
notícia, pelos reconhecimentos preliminares dos Tenentes Pedro
Dantas e Manuel Rabelo, da excepcional gravidade do problema,
cuja solução ainda era mais dificultada pelas disposições hostis com
que os moradores da região, todos armados e em pé de guerra, rece¬
biam os empregados do serviço, resolveu partir para lá, afim de
— 45 —
estudar a questão em suas fontes diretas e alí mesmo dar a traça
que conviria seguir para conquistar a amizade dos temidos Cain-
gangue, e assim estabelecer a paz e a ordem em todo aquele vasto
sertão.
Estudada a região, não só ao longo da estrada como também
lateralmente até ao Tietê, o benemérito diretor do Serviço de Pro¬
teção aos índios assentou, com a maestria que todos lhe conhecem,
o plano da pacificação e escolheu para o realizar o Tenente Rabelo,
tendo como principais auxiliares os Tenentes Cândido Sobrinho e
Sampaio.
No plano estabelecido, o Coronel Rondon aproveitava com
admirável habilidade a circunstância de se poder contar com os
serviços de alguns Caingangues tirados do grupo já civilizado do
Estado do Paraná, por meio dos quais podíamos comunicar aos sel-
vícolas as nossas intenções pacíficas, não só por meio da palavra,
como também por certos sinais peculiares a essa nação, feitos com
o auxílio de businas e de uma espécie de hieróglifos, muitíssimo
originais, construídos com pauzinhos e pequenos ramos de árvores.
Êstes elementos, que deviam representar na campanha que
se ia iniciar uma ação decisiva, foram logo depois acrescidos dos
índios escravos de uma fazenda de Campos-Novos do Paranapa-
nema, cujo proprietário, famoso bugreiro, os havia aprisionado por
ocasião de devastadores assaltos que costumava dar às aldeias do
rio do Peixe.
Vanuire — Com êles vinha a velha índia Vanuire, que entre
todos se destacou depois pelo inexcedível zêlo e verdadeiro amor
com que se devotou àquela obra, que ela compreendia ser a salvação
das últimas relíquias de seu povo.
Uma grande dificuldade, porém, ainda estava para ser resol¬
vida, a da escolha do ponto onde conviria iniciar-se a entrada na
floresta e instalar-se o servnço.
De fato, os Caingangue, nesse tempo, faziam irrupções quase
simultâneas, numa linha de frente superior a 250 quilômetros ; de
modo que era bastante difícil descobrir-se o lugar de onde êles
irradiavam, e para onde era necessário dirigir-se a ação dos expe¬
dicionários, afim de se ter a certeza de entrar logo em contacto com
êles e nunca mais os perder de vista.
Os Tenentes Rabelo e Sobrinho — Ainda estavam, o Te¬
nente Rabelo e os seus ajudantes, nessa perplexidade, quando se
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SciELO,
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deu o assalto contra a turma 21.“ de conservação da via-férrea, o
que determinou a vinda do Tenente Cândido Sobrinho para a es¬
tação de Heitor Legru, então fortemente ameaçada.
Feito o acampamento ao lado dessa estação iniciou logo o
Tenente Cândido Sobrinho a exploração da mata que a circundava,
resultando daí a descoberta de que se achava num lugar muitíssimo
freqüentado pelos índios e por isso mesmo muito próprio para a
fundação do projetado centro de atração.
Seguindo por um dos trilhos mais batidos, foi o Tenente So¬
brinho esbarrar a 2 quilômetros da estação com o Ribeirão dos
Patos, num ponto de passagem dos selvícolas, de onde divergiam
para todos os lados numerosos caminhos com sinais evidentes de
serem muito trafegados.
Para aí resolveu êle transferir imediatamente o seu acampa¬
mento, fazendo para isto a necessária derrubada do arvoredo
secular ; depois substituiu o abarracamento inicial por um arran-
chamento de páu a pique e cobertura de folhas de coqueiro, desti¬
nado a servir de centro das operações que se haviam de desdobrar
para o interior da misteriosa floresta, que se estendia ininterrupta
para os lados do Feio, transpunha-o e daí se. derramava até o Feio
e o Paraná.
Para prender a atenção e o interêsse dos índios em torno dêsse
acampamento e assim evitar que êles continuassem a espalhar o
terror e a desorganização dos serviços ao longo da estrada de ferro,
derrubaram-se 4 alqueires de mata e féz-se uma grande plantação
de milho e feijão.
Todos êsses trabalhos se prosseguiam no meio de tremendas
ameaças dos selvícolas, os quais noite e dia cercavam o acampa¬
mento, ora tirando de suas buzinas lúgubres mugidos, que signifi¬
cavam guerra e extermínio, ora dando nas árvores com seus terríveis
porretes pancadas que provocavam, no silêncio da noite, sons pavo¬
rosos, que deixavam as almas transidas de medo à lembrança de que
a cacetadas tais nunca havia escapado com vida uma única vitima
dos assaltos daqueles temerosos guerreiros.
E a tôdas essas ameaças, no meio de tantos terrores, respon¬
diam os assediados com palavras de paz, com os cantos de festa da
incomparável Vanuire, e com os sons alegres de benevolência e de
boa amizade derramados por sôbre a soturna floresta, pela buzina
que sopravam os intérpretes paranaenses, do mangrulho construído
no alto de uma árvore.
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vSciELO) ; l 1 12 13 14 15 16
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E o Tenente Sobrinho, continuando impávido a grande obra,
embrenhava-se na floresta para os lados do Feio, seguindo o trilho
principal que de lá vinha em demanda do Ribeirão dos Patos, e
quando encontrava os pequenos ranchos de caçada dos índios,
nêles deixava-lhes presentes de roupas, machados e quinquilharias.
Depois êsse trilho foi transformado em estrada, numa extensão
de 30 quilômetros, até alcançar o rio em cuja barranca foi forçoso
fazer-se novo acampamento à espera de que se terminasse a cons¬
trução de uma ponte, sob a direção imediata do Tenente Rabelo.
Concluída a ponte, continuou a expedição para além do Feio,
alcançando em princípio de dezembro de 1911, depois de percorridos
perto de 20 quilômetros a contar daquele rio, a primeira aldeia dos
Caingangue, a qual, soubemos mais tarde, pertencia ao grupo
chefiado pelo rckakê Vauhin.
Ao pressentirem a aproximação dos expedicionários, os índios
abandonaram os seus ranchos e embrenharam-se pela mata, sem
quererem atender aos chamados dos intérpretes. O pânico, como
explica o chefe Vauhin, originou-se de que êles não esperavam,
àquela hora, em que chovia torrencialmente, a chegada da coluna
exploradora, e o inopinado dessa marcha, agravado pelo desorde¬
nado temor das mulheres e crianças, fez generalizar o medo até
aos homens, que também correram.
O Tenente Rabelo deixou nos ranchos grande quantidade de
machados, facões, cobertores e outros presentes, depois do que
regressou para o acampamento do Ribeirão dos Patos, para daí vir
apresentar-se às autoridades militares conjuntamente com os seus
esforçados ajudantes, em cumprimento de uma ordem do Minis¬
tério da Guerra.
Com 6 mêses de trabalho, o Tenente Rabelo deixava o pro¬
grama da pacificação dos Caingangue, antes considerados como
irredutíveis, nitidamente encaminhado para o feliz e desejado des¬
fecho. Craças à aplicação rigorosa do plano do Coronel Rondon,
à ausência absoluta de tôda e qualquer manifestação que pudesse
ser interpretada como hostilidade ou má vontade (basta dizer que
durante todo êsse tempo não se deu um único tiro, nem mesmo para
matar esplêndidas peças de caça que passavam quase ao alcance
da mão) e as reiteradas provas de paciência e amizade, traduzidas
pelos brindes deixados na floresta, graças a tudo isso, repito, já
muito se havia modificado a noção que os índios tinham sôbre os
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moradores do Ribeirão dos Patos e começava a despontar em suas
almas a confiança que os havia de conduzir a se fazerem nossos
amigos. Além disso, a atenção dos selvícolas tendo sido viva¬
mente solicitada para os acampamentos e trabalhos da inspetoria,
aí se concentrava, e êles, por isso. abandonavam outras excursões,
pelas quais, dantes, ameaçavam quase tôda a estrada Noroeste.
Havia-se construído um bom acampamento nos Patos, plantado
roças de milho e de feijão e rasgado, em plena floresta virgem, uma
magnífica estrada de penetração, de perto de 50 quilômetros, pela
qual ficavam abertas e fáceis as comunicações entre os índios e os
civilizados empenhados em conquistar-lhes a amizade.
O Ministro da Guerra Ordena a Retirada dos Oficiais — A
retirada brusca dos oficiais ameaçava de ruína completa todos estes
grandes trabalhos, realizados através de tantos sacrifícios, pois que
o pessoal empregado nos diversos serviços ficava do dia para a
noite entregue a si mesmo, sem a ação coordenadora de um chefe.
Para evitar êsse calamitoso desfecho de uma obra, cujo coroa-
mento já se previa para um futuro bem próximo, resolveu o Senhor
Manuel de Miranda, sub-diretor do Serviço de Proteção aos índios,
ir pessoalmente para aqueles sertões, afim de tomar as providências
necessárias à conservação do que já estava feito, até que se pudesse
designar a pessoa que devia substituir o Tenente Rabelo.
Aproveitando a ocasião aquele chefe decidiu fazer uma ins¬
peção geral de todos os trabalhos já terminados, e para isso orga¬
nizou uma expedição, a cuja frente percorreu a estrada aberta pelos
Tenentes Rabelo e Sobrinho, até a aldeia do rekatê .Vauhin.
Os habitantes dessa aldeia não haviam voltado a ocupá-la
e a nova expedição só encontrou um índio, que hoje sabemos
chamar-se "Pechê”, surdo-mudo, para alí destacado como atalaia
e guarda dos ranchos abandonados.
O Cacique Vauhin e sua emboscada — Ao divisar os expedi¬
cionários, saiu êle em desabalada carreira, e metendo-se pela flo¬
resta a dentro foi levar ao seu chefe e irmão a notícia da nova
invasão. Diz-nos agora o rekakê Vauhin que as mulheres e cri¬
anças aterrorizavam-se tanto com essas visitas, por temor de que
elas acabassem repetindo as atrocíssimas carnificinas dantes prati¬
cadas pelos “bugreiros”, que aos índios se afigurava de imprescin¬
dível necessidade providenciar para que fôsse tal invasão sustada
com a máxima urgência.
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Por isso veio êle, acompanhado de mais um guerreiro, de nome
Recandui, esperar o regresso da expedição, num ponto do caminho
ique lhe pareceu propício à emboscàda que projetara.
E quando a coluna chegou a êsse ponto os dois Caingangues
não trepidaram em assaltá-la, apesar de ser ela composta de mais
de vinte homens, todos portadores de carabinas . Das flechas,
aisparadas com espantosa rapidez e precisão, uma bateu no arção
da sela do animal cavalgado pelo Sr. Manuel de Miranda e por
pouco não lhe causou um ferimento, que seria fatal ; outra feriu o
intérprete Futoio.
Primeiro Diálogo em Caingangue — Graças à calma do chefe
da expedição, a boa ordem da coluna nada sofreu com esta surpresa
e os intérpretes Geigmon e Futoio começaram logo a falar para os
invisíveis assaltantes, repetindo os apelos à paz e os protestos de
amdzade. -Então, pela primeira vez aqueles Caingangues, respon¬
deram às palavras que lhes mandávamos dizer e travaram um longo
diálago cora os intérpretes, diálogo de que resultaram esclareci¬
mentos preciosos para o futuro da campanha pacificadora .
Contudo, entre os índios ainda havia muitos espíritos traba¬
lhados pela profunda desconfiança que nêles implantaram os 50
anos de guerra com os civilizados. Um desses decidiu vir sozinho
ao acampamento dos Patos, onde já havia chegado a expedição, e
aproximando-se do ribeirão, protegido pelo milharal, descobriu um
homem que se banhava e contra êle desferiu uma flecha. Cito êste
fato não só porque êle serve para evidenciar a audaciosa coragem
dos guerreiros caingangues. como também porque dêle resultou,
dias depois, a única morte que até hoje teve de lamentar a Inspetoria
de S. Paulo em todo o decurso dos seus arriscados trabalhos nos
sertões da Noroeste e de entre o Feio e o Peixe.
Com a retirada dos oficiais era impossível continuar a Inspe¬
toria a utilizar-se dos serviços do destacamento do Exército, que
estava às suas ordens. Era, pois, forçoso dispensá-lo ; mas dis¬
pensando-o não se podia deixar no acampamento os três ou quatro
empregados civis que lá existiam.
Sôbre tudo isto providenciou o Sr. Manuel de Miranda, man¬
dando evacuar aquêle acampamento, e recolherem-se os empregdos
e o material a Miguel Calmon.
Depois, nomeado novo Inspetor, em janeiro de 1912, tratou-se
de reorganizar o serviço para continuar a obra interrompida.
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A grande dificuldade que então se apresentava consistia em
que, tendo-se de formar todo o pessoal só com civis, ficava-se
exposto a ter, no fim de cada mês, uma interrupção dos trabalhos,
porquanto é sistema dos “camaradas” não se demorarem nos em¬
pregos mais do que o tempo necessário para ajuntar alguns mil réis,
que logo se apressam a ir gastar nas cidades ou povoações.
Para obviar a êste inconveniente assentou-se em mandar con¬
tratar no Paraná uns doze Caingangues civilizados.
Chegados êles, em fevereiro, tratou-se sem mais demora de
reinstalar o acampamento dos Patos, nessa ocasião muito freqüen-
tado pelos selvícolas que ali vinham abastecer-se de milho verde.
Então recomeçaram as vigílias : as arriscadíssimas explo¬
rações de trilhos, para a descoberta de lugares próprios para nêles
deixarem-se brindes ; as dificuldades de, à noite, conter-se o
pânico das mulheres e mesmo de alguns homens, apavorados quando
ouviam o estrugir das buzinas ou o reboar das formidáveis panca¬
das vibradas contra as árvores, por braços que se adivinhavam pos-
santíssimos : e mais o trabalho de disfarçar êsse pânico com músi¬
cas de gramofone, com os cantos de paz da Vanuire e às vêzes dos
intérpretes, chamando os temíveis visitantes, para que entrassem no
acampamento, afim de receberem machados, cobertores e colares.
Dez índios em visita ao nosso acampamento — Felizmente esta
situação não chegou a durar dois mêses. Um pouco depois do
meio-dia de 19 de março, no alto do caminho que vem do rio Feio,
apresentaram-se a peito descoberto dez guerreiros caingangues,
inteiramente desarmados e com a resolução evidente de travar re¬
lações com os ocupantes do acampamento dos Patos.
A natural excitação dos primeiros momentos só durou o tempo
necessário para a admirável Vanuire dar-se conta do que se pas¬
sava : então, correndo com entusiasmo incrível, foi ela resoluta¬
mente meter-se no grupo formado pelos caingangues e induziu-os
a acompanhá-la até o recinto do acampamento.
Recebidos com o carinho que é fácil de imaginar-se, êsses
homens foram logo vestidos e cumulados de presentes e mimos.
De tõdas as coisas que nessa ocasião lhes foram mostradas,
nenhuma lhes causou mais admiração e viva alegria do que o fós¬
foro. Quanto às comidas e ao açúcar êles. ainda lembrados da
mortandade de que haviam sido vítimas os moradores de uma aldeia
do rio do Peixe, por se terem utilizado de genêros envenenados.
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propositadamente levados para a floresta por um bugreiro de
Campos-Novos, não os aceitavam sem primeiro nós os provarmos.
Chefiava essa primeira turma o rekakê Vauhin, que por pru¬
dência havia deixado o resto do seu povo, as mulheres e crianças,
reunido além do .rio Feio, com instruções para que, caso fracassasse
a sua generosa iniciativa e êle morresse, todos se salvassem, embre¬
nhando-se na mata em rumo de oeste.
Por isso mesmo êle precisava regressar quanto antes para o
meio dos seus, afim de levar-lhes a auspiciosa notícia e assim resti¬
tuir-lhes a tranqüilidade.
A êsse primeiro grupo seguiram-se outros, e não tardou que
também viessem algumas mulheres, única manifestação verdadei¬
ramente valiosa para provar a realidade da cofifiança do índio em
seus novos amigos.
Pagando a visita do Rekakê — Também do nosso lado suce¬
deram-se as expedições e visitas às aldeias de Vauhin, onde exis¬
tiam então para mais de cem índios, seguidas de incursões para
além de Presidente Tibiriçá e da descoberta de novos cursos d água,
tão importantes como êste, aos quais se deram os nomes de rios dos
Caingangues e 19 de março. Nestas expedições, tõdas levadas a
efeito pelo destemeroso José Cândido Teixeira, auxiliar da Inspe-
toria, foram reconhecidas as situações das aldeias dos outros rekakès,
que eram, nesse ano, Congue-Hui, Cangrui, Rugrê e Charin. Fi¬
cou-se então sabendo que tõda a população dos Caingangue pau¬
listas, a qual seguramente não excede de 500 pessoas, acha-se loca¬
lizada em águas da margem esquerda do Feio e Aguapeí e que a
mais oriental das aldeias é a de Vauhin, colocada aquem do Tibiriçá,
e a mais ocidental é a de Charin, situada nas cabeceiras do ribeirão
Itauna, que desagua no Aguapeí. logo acima do salto Carlos Botelho.
Estendidas, ràpidamente, as relações de amizade a todos os
rekakês, os quais visitam freqüentemente o acampamento dos Patos,
foi-nos fácil fazer algumas observações sôbre os usos e costumes
dêsse povo, tão injustamente taxado dantes de feroz e de incapaz
de assimilar a nossa civilização.
usos E COSTUMES
O nome da ttibo — Começando agora a expôr os resultados
dessas observações, devemos, em primeiro lugar esclarecer a ques¬
tão do nome porque são designados êstes índios.
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SciELO,
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- DJ.
Até há bem pouco tempo dava-se-lhes geralmente a denomi¬
nação de “Coroados”, denominação esta radicalmente imprópria,
porquanto homens e mulheres usam o cabelo aparado à moda que
■dizemos “inglesa”, segundo a qual se penteiam muitas das nossas
crianças.
A única explicação que pode ter êsse nome reside no fato de
trazerem os meninos caingangues a cabeça raspada, deixando-se-
-Ihes ora uma orla de cabelos em volta do crâneo, ora três madeixas,
duas caindo na parte dianteira das orelhas e a terceira na nuca.
Dada a maior facilidade de se aprisionarem crianças, conjecturo
que, por aí. foram os bugreiros induzidos a supor que também os
adultos adotavam o uso do qual se poderia derivar a designação de
“Coroados”.
Mais recentemente generalizou-se a denominação de Cain-
gangue, que irivariàvelmente adotamos. Mas, os índios paulistas,
antes de entrarem em relações conosco, desconheciam esta palavra.
Parece-me que ela nos vem do vocabulário do Paraná e talvez
também pertença ao dos grupos riograndense e argentino.
A verdade é que os habitantes da floresta do rio Feio não
possuem um termo com que designem genèricamente o povo
que constituem. Na sua linguagem só encontramos a palavra
"cainqué”, que equivale ao nosso "patente" (mas só até um certo
grau de consanguinidade) cujo sentido, depois de conveniente¬
mente alargado, poderia adaptar-se àquela função.
Organização política — Quanto à organização política, os seus
laços são tão frou.xos que se é antes levado a dizer que ela não
existe. A autoridade, em cada grupo, reside num chefe apelidado
rekakê; ela se transmite por hereditariedade, quando o herdeiro
é suficientemente valente e empreendedor para se fazer respeitar
pelos demais guerreiros. .
Contudo essa autoridade só é verdadeiramente ativa e sensível
nas ocasiões dos empreendimentos difíceis e nas grandes festas,
sempre dadas em nome do chefe. Súditos, própriamente ditos, os
Caingangue não o são, pois, o rekakê trabalha como qualquer
outro homem, para prover a subsistência própria e à de suas mu¬
lheres e filhos.
Muito mais bem definida é a instituição da família. Os
homens vulgares têm uma só mulher ; os mais empreendedores,
porém, chegam a ter duas, número que nunca é excedido. Os ma-
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ridos são muito carinhosos com as mulheres, que os acompanham
por toda a parte, até mesmo nas expedições de guerra. Mães e
pais têm para os filhos uma paciência que parece ilimitada ; nunca
lhes batem e muito se afligem com qualquer sofrimento que os
façam padecer.
As mães prolongam excessivamente o período de amamentação
dos filhos, e enquanto êle dura, não os deixam sòzinhos um só ins¬
tante, levando-os para tôda a parte em que vão, ou às costas, sus¬
tentados por uma cinta de casca de cipó imbé, apoiada na testa, ou,
quando já sabem andar, pela mão.
A autoridade dos pais não cessa com a maioridade dos filhos
e estende-se mesmo até depois do casamento dêstes.
Vimos uma mãe viúva desfazer dois casamentos de sua filha,
contra a vontade desta e dos genros.
A formação dos casais obedece a leis complicadas, dependen¬
tes dos grupos e sub-grupos em que se dividem as famílias caingan-
gues.
Camens e Canherucrens — Dêsses grupos, os principais deno¬
minam-se Camens e Canherucren.s ; os casamentos só se podem
dar entre homens de um grupo e mulheres do outro : assim, por
exemplo, um homem C.amem só poderá tomar mulher Caneieru-
CREM. No entanto não se deve pensar que seja lícito o casamento
de qualquer Camem com um Canherucrem também qualquer,
porque para complicar o problema, intervem a divisão em sub-gru¬
pos, aliás bastante numerosos ; indivíduos de um certo sub-grupo
camem, só se poderão casar com os de tais sub-grupos canheru¬
crens, salvo certas exceções, que também as há nas regras caingan-
gues, para maior confusão da solução de uma questão que nos pa¬
rece dever ser tão simples.
A noção do incesto — Também são absolutamente vedados e
considerados com o mesmo horror que nos inspiram os casos de
incesto, os enlaces entre cainqnés, isto é : pais e filhos, irmãos e
irmãs, tios e sobrinhos, primos e primas.
Parece que, com o intuito de trazer sempre viva na memória a
proibição dêstes dois últimos casos, cuja infração pune-se com a
morte dos culpados, estabeleceu-se o uso dos sobrinhos chamarem
os tios de loG, (meu pai) e as tias de Iam (minha mãe), bem como
êstes só tratarem àqueles de Cochite, isto é, filhos ; anàlogamenie
os primos chamam-se de Rangré, isto é, irmãos, e tudo isto, não
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obstante existirem na língua caingangue nomes próprios para desig¬
narem êsses graus de parentesco.
Casamentos instáveis — Os casais, enquanto não têm filhos,
são instáveis ; porém, depois, tornam-se indissolúveis. As mu¬
lheres casadas guardam escrupulosamente a fidelidade conjugal e
tôdas têm um reóato que causaria profunda decepção aos nossos
levianos forjadores de hipóteses, caso pudessem êles observá-las
de perto.
Um uso interessante é o dos pais entregarem as filhas, quando
chegam à puberdade, a um dos seus cainqués, ao qual incumbe, daí
por diante, zelar por ela e sustentá-la, até a data do seu casamento.
Por êste uso, o filho mais velho que tem a seu cargo o sustento de
uma irmã, não pode contrair casamento antes dela.
O parto — Quando as mulheres sentem que se vão tornar mães,
internam-se no mato, fugindo às vistas de todos. Aí, sòzinhas,
dão a, luz aos seus filhos ; mas, apenas algum homem ou mulher
ouve os vagidos da criança precipita-se para o ponto de onde êles
partem e suspendendo o recem-nascido nos braços, dá-lhe o pri¬
meiro nome.
Aos 7 anos, mais ou menos, se a criança é menino a mãe esfre¬
ga-lhe, em determinados períodos, todo o corpo com a fôlha de uma
certa árvore, derramando-lhe água pela cabeça, com a esperança
de, por êsse m.eio, dar-lhe fortaleza de ânimo e disposição para o
trabalho ; nessa ocasião o menino recebe um sobre-nome. Noutras
ocasiões êle pode ainda receber ou tomar mais alguns apelidos, os
quais se ligam a acontecimentos notáveis de sua vida.
Terminada a cerimônia das fricções acima referidas, o menino
começa a aprender com o pai o manejo do cá, ou porrete vulgar¬
mente chamado pelos sertanejos da Noroeste de guarantam : a essa
aprendizagem junta-se a de atirar com arco e flecha e depois a das
caçadas.
Quando tudo isto está bem sabido e o rapaz mostra-se capaz
de prover à subsistência própria, então pode casar-se, coisa que se
faz sem outro aparato a não ser o do cainqué encarregado da noiva
conduzi-la até ao leito do futuro marido. Estas coisas se passam,
para a moça, quando ela chega à puberdade, época que, na falta de
contagem dos anos. pela qual se possa avaliar a idade, se conhece
por um fenômeno comum às mulheres de tôdas as raças. Mas
como as caingangues são muito precoces, acontece depararem-se
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oo —
com meninas já casadas que aparentam, ter apenas trere anos ou
ainda menos do que isto.
Cerimônias fúnebres — Quando morre um caingangue, dois
homens se postam de cócoras, um de cada lado da cabeça, tangendo
maracás, cantando e soprando-lhe constantemente nos ouvidos.
Enquanto isto, os parentes e amigos conservam-se agrupados
e silenciosos, de pé, à cabeceira. Depois dobram-lhe as pernas
sôbre a barriga e amarram-no de modo que possa ser carregado
dorso contra dorso, por um homem, que o leva para o cemitério. Aí
abrem uma cova, cujo fundo é forrado com fôlhas de palmeira à
moda das camas usadas por esses índios. Depositam o cadaver
sôbre as fôlhas, pondo-lhe ao lado os objetos, utensílios e enfeites
de seu uso, bem como muitos presentes dados para êsse fim pelos
parentes e amigos. As coisas pertencentes ao morto e que o não
acompanham na sepultura, como os animais por êle domesticados
ou os objetos que se acham, por qualquer motivo, ausentes do lugar
em que se deu a morte, são impiedosamente destruídos e queimados.
Na bôca da sepultura constroe-se um estrado ou estiva de ma¬
deira e sôbre êste estrado amontoa-se terra, não só a retirada para
a abertura da cova, como também muito mais que se escava dos
lados. Em épocas certas, no meio de festas, chamadas kiki-côia,
voltam os Caingangue a refazer êsse monte de terra, de sorte que
êle alcança, às vêzes, alturas notáveis.
As exéquias porém, continuam-se por muitos dias : homens
e mulheres, com as cabeças envolvidas em longos panos — curus —
entregam-se a um choro infindável, seguindo os ritmos de uma me¬
lopéia triste e por fim enfadonha. Enquanto dura êste chôro, os
índios não atendem a nada do que possa ocorrer em torno dêles ;
nada os faz distrairem-se daquela fúnebre ocupação.
A viúva — Se o morto deixa viúva, esta retira-se para lugar
ermo, onde, por muitos dias, que chegam às vêzes a um mês, con¬
serva-se em completo isolamento, evitando cuidadosamente lançar
as vistas sôbre qualquer pessoa, na persuasão de que o seu olhar é,
nesse período, maléfico e até mortífero. As coisas de que ela
•então pode necessitar, como as provisões, são-lhe trazidas por algum
parente ou amigo, que, precavido, os deposita longe do alcance da
perniciosa influência visual. A inclusão na sepultura de objetos
e utensílios, como arcos, flechas, machados, tecidos, colares, etc..
Justifica-se pela necessidade que dêles continua a ter o morto ; a
clestruição dos que não são ou não podem ser enterrados, faz-se
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SciELO,
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para que o defunto não os venha buscar à aldeia. No entanto
ainda há uma dificuldade ou perigo a remover : é o de que o
morto, solicitado pela saudade das pessoas que lhe são caras, en¬
tenda vir procurá-las entre os vivos e levá-las para a sua habitação
subterrânea. Porém, tão grande risco conjura-se fàcilmente, graças
a umas pintas que se fazem no rosto, nos braços e tronco, com pó
de carvão aglutinado com leite de certo cipó : a esta precaução
junta-se mais a de raspar as sobrancelhas.
O modo acima referido, de fazerem-se os enterramentos cain-
gangues é de instituição bastante recente, porquanto os homens de
hoje contam que, na sua meninice, usava-se sepultar o tronco numa
cova, enquanto que a cabeça, separada e metida num vaso de barro,
era objeto de grandes solenidades, depois das quais se a enterrava.
Esta prática antiga parece que resulta das condições em que vivia
a nação Caingangue, quando ela dominava ainda uma região muitas
vêzes maior do que aquela em que agora se acha confinada. De
sorte que seriam freqüentes as mortes ocorridas em pontos tão dis¬
tantes dos cemitérios que impossível seria transportarem-se os corpos
até êles. A dificuldade resolvia-se dando ao tronco sepultura no
mesmo lugar em que se verificava o trespasse e conduzindo a cabeça
para a aldeia, para aí receber as homenagens fúnebres.
Influenciado por êsse uso antigo, é que os Caingangue costu¬
mavam decepar os cadáveres das vítimas que faziam em seus as¬
saltos ; carregavam as cabeças para sepultá-las no meio de ceri¬
mônias. que parecem ter alguma coisa de e.xpiatórias.
A alimentação — Passando, agora, à alimentação desses índios,
examinemos em primeiro lugar os artifícios por êles empregados nas
caçadas e nas pescarias.
A mais apreciada das carnes é a da anta — zoro — que êles
apanham em laços fortíssimos, feitos de cipó imbê ou senão ma¬
tando-a a flechas, indo para isso surpreendê-la de dia em seus
retiros, guiados pelos rastos, que seguem com incrível facilidade.
Imedíatamente depois dessa, colocam a carne de macacos ou
bugios — canhere — dos quais matam enorme quantidade, por meio
do arco e flecha.
As caçadas — Para estas caçadas os Caingangue vão em
grupos. Quando descobrem um bando, fazem, por baixo das ár¬
vores em que êle se acha, uma algazarra infernal : os macaco.s
ficam com isso estatelados e é então que os homens desferem os
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seus tiros certeiros. Depois de algum tempo os sobreviventes do
bando procuram fugir, mas enquanto vão pulando de ramo em ramo,
por baixo, cs índios os acompanham em gritaria : o bando pára de
novo, como que preso pela fascinação daquela atoarda e os atira¬
dores de flecha, recomeçam a matança socegadamente. E esta
cena se repete, até terminar, quase sempre, pela extinção do bando,
Nas caçadas de porcos do mato usam os Caingangue cercar
as varas que encontram ; depois, apertando o cerco, investem
contra os animais e os abatem a pauladas : nestas batidas, é
também comum não lhes escapar uma única peça.
E’ costume dêsses índios fazerem das caveiras das antas, dos
porcos e macacos por êles caçados, espécies de rosários, ligando-as
umas às outras por meio de cipós e dependurá-las, assim, em árvores
ou no interior dos ranchos.
A pega de pássaros a laço — Para apanharem os pássaros em¬
pregam flechas de quatro pontas, ou senão, as de virote. Além
disso, usam laçá-las com auxílio de um cordel preso à extremidade
de uma vara longa e delgada. O manejo dêste laço exige grande
delicadeza de movimentos e muita paciência, porque o caçador, tre¬
pado numa árvore, quando se trata de pegar periquitos ou maitacas,
ou no chão, quando se trata de pombas, inhambús. etc., mas sempre
escondido por uma tapada de fôlhas de coqueiro, tem de passar a
laçada pela cabeça do pássaro e depois, erguendo a vara, segurá-lo
pelo pescoço. Tudo isto passa-se de modo que seria mais justo
dizer-se que os Caingangue assim “pescam os passaros.
Quando se trata de periquitos ou maitacas, êsse caçador de
“caniço” leva consigo um chamariz, ao qual faz gritar, conseguindo,
destarte reter o bando ao alcance do laço ; quando se trata de
pombas, colocam o milho de um lado da tapagem e, por essa forma,
que não é nenhuma novidade, as atrái e reune.
A vantagem dêste modo de apanhar os pássaros é que, por
ficarem êles vivos, pode-se ter nas aldeias, ao alcance da mão, uma
reserva de carne fresca, pela qual se quebra a monotonia das outras,
conservadas pelo conhecido processo do moquem .
Há certos animais que os Caingangue não comem, por exemplo,
a onça e, o que é mais adnairável, o veado. Quanto à onça, ex¬
plicam que sentem repugnância em comer essa carne por ser ela
muitas vêzes formada à custa das de algum índio ; quanto à do
veado, porém, ainda não deram uma explicação que justifique tão
inesperada abstinência.
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Troca de caças — Um uso bastante singular e que se está
perdendo rapidamente, sob a influência do que êles observam entre
os civilizados, é o do caçador nunca se utilizar da caça abatida por
suas próprias mãos ; animal que um mata outros o comem, e nisto
não há pròpriamente permuta, porque o índio entrega o fruto de
suas fadigas venatórias ao primeiro companheiro que encontra e vai
receber de outro o que há de servir para a sua alimentação.
Xirimbabos — Acontece muitas vezes apanharem êles filhotes
de pássaros, de anta, macaco, etc., os quais são entregues às mu¬
lheres, que os criara com infinitos cuidados e muita paciência.
Êsses animais, quando vingam, são tratados com mimos ilimi¬
tados por tôda a aldeia e o Caingangue se encheria de horror por
quem matasse e comesse algum dêles. Isto seria aos seus olhos
alguma coisa parecida com um ato de canibalismo ; por tal motivo,
nos primeiros tempos da pacificação, os indios censuravam-nos pelo
destino que nos viam dar às nossas aves domésticas, e foram preci¬
sos alguns meses para animarem-se a provar a carne de galinha,
da qual, aliás, já se tornaram apreciadores, com um entusiasmo que
nos parece agora excessivo.
Péssimos pescadores — Apaixonados pelo peixe, os Caingan¬
gue são, no entanto, péssimos pescadores, se é que êste nome se pode
dar a quem não emprega outros recursos senão o de esgotar algumas
lagoas formadas pelas enchentes e depois pegar à mão os pescados
nelas existentes ou esperà-los nas épocas de desova, em saltos e
corredeiras, e apanhar os que, errando o pulo, caem em sêco, ou
finalm.cnte matando a flecha algum que aparece pelas margens
do rio.
Carnes só bem cozidas - Em todos os casos os Caingangue só
se alimentam de carnes muito bem cozidas, chegando mesmo a sua
exigência sôbre este ponto tão longe que, nas mesas, recusam os
bifes de que nos servimos, por achá-los crus. Para prepararem os
seus “moquens”, usam, além dos processos geralmente empregados
nos sertões, abrir no chão uma cova que aquecem fortemente com
brasas e lenha; depois, chegado o calor ao gràu desejado, retiram
todo o combustível e colocam alí a carne a assar, préviamente en¬
volvida em folhas verdes; feito isto, estivam a abertura da cova e
cobrem tudo com uma espêssa camada de terra. A cocção dura
quase um dia inteiro, mas em compensação dá às car^s um sabor
muito mais agradável do que o obtido pelos outros meios.
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Apanha de frutos etc. — Não só de caça vivem os Caingangue,
pois a floresta fornece-lhes também grande variedade de frutos e
côcos : entre os primeiros citaremos as saborosas jaboticabas, as
pitangas, os “gragoatás”, os ananaz.es e muitos outros que seria
fastidioso nomear. Utilizam-se igualmente do palmito, que comem
cru ou guisado com carne ou com "fenhui ”, nome êste que serve
para designar as larvas de certo coleóptero, que se desenvolvem
nos troncos derrubados de uma determinada espécie de palmeira.
Desta larva, que também comem crua, são òs Caingangue tão
grandes apreciadores quanto entre nós os cavalheiros e damas de
delicado paladar o são das ostras, cruas ou preparadas, e dos cara¬
mujos vindos de França.
Roças — Além do que lhes dão as suas belíssimas florestas,
têm os Caingangue os recursos que retiram de suas roças, onde
cultivam abóboras — perrô ; uma fava branca, a que chamam
rangró ; e o milho — inhere, das variedades, roxa, branca e grená,
originais do Brasil, as quais, talvez por isto, parecem condenadas
a desaparecer, substituídas pelo grão turco, que é o que se planta
em nossas lavouras.
O milho ocupa, na alimentação dêsses índios, um lugar tão
preponderante quanto o representado pelo trigo na das populações
do velho mundo.
Quando verde, êles o comem assado, cozido ou em broas : as
canas fornecem-lhes o seu caldo açucarado, parecido com o da
extremidade superior das nossas canas de açúcar. Depois de
maduro, comem-no assado ao borralho, ou reduzido a farinha ou
em forma de pães — iamin — cujo único inconveniente, ao menos
para o nosso paladar, é ter um sabor picante, que lhe vem do fato
de pôrem o milho mergulhado em água corrente, durante alguns
dias, até alcançar a certo grau de azedume.
O kiki — Pôsto a fermentar, em grandes vasos de barro
— coeron-bang, ou em cochos escavados em troncos de jaracatia,
de mistura com mel, o milho fornece ainda o kiki, bebida de gosto
agradável, levemente alcolizada, da qual só se faz uso nos dias de
fésta.
AS CASAS DOS CAINGANGUE
Os Caingangue constroem suas casas, segundo dois tipos . o
primeiro de uma só água, o segundo de duas. Sôbre varas in¬
çadas no chão com uma inclinação de 45 graus, mais ou menos, e
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apoiadas no seu terço inferior sôbre uma viga horizontal, amarram-se
outras, também horizontais, com cipó, destinadas a representarem o
papel de ripas, e nelas se fixam fôlhas de coqueiro : tem-se assim
uma casa do primeiro tipo, a qual fica completamente desabrigada
pela frente e pelos flancos.
O outro tipo constroe-se fechando a frente do anterior, por
uma outra coberta feita segundo o mesmo processo ; uma dessas
duas cobertas, porém, excede superiormente à outra, afim de obviar
ao inconveniente da construção não possuir cumieira ; os flancos
ficam geralmente abertos, mas às vezes coloca-se em um dêles uma
terceira tapagem.
Sob a influência do que observam no nosso acampamento, já
começaram êles a modificar as suas construções, adotando esteios
e cumieiras ; mas as paredes ainda continuam a ser supridas pelo
prolongamento das coberturas até ao solo.
Em viagens ou expedições, para caçadas ou outros fins, os
Caingangue nunca pernoitam sem antes construirem alguns abrigos
rapidamente feitos, segundo o primeiro tipo.
Quando, porém, um homem viaja sozinho, o que raramente
acontece, passa as noites no alto de algum coqueiro, cujas fôlhas
enrodilha e entrelaça com tanta arte, que aí consegue, segundo
afirmam, dormir com tôda a tranqüilidade e segurança.
Para êste mister escolhem os coqueiros e não árvores, porque
alí têm certeza de não serem surpreendidos e devorados pelas
onças.
No interior dos ranchos, os Caingangue fazem as suas camas
sôbre o chão, forrado com fôlhas de coqueiro, e enquanto dormem,
têm os pés aquecidos por uma pequena fogueira e o resto do corpo
envolvido nos panos a que dão nome de curu-cuchá.
O fogo — Até a data da pacificação, êles só conheciam um
meio de fazer fogo : era rolando entre as palmas das mãos uma
vareta de madeira rija, cuja extremidade inferior aplicava-se sempre
no mesmo ponto de um pedaço, bem sêco, do pedúnculo de um
cacho de côco ; o movimento de rotação alternativa, assim impresso
à vareta, produzia na parte friccionada um pó tenuíssimo, o qual
acabava inflamando-se, depois de um extrenuo trabalho, que se
podia prolongar por muitas horas e que nem sempre dava o resultado
desejado.
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ii^l
í;.u x/rim babo de sorte...
Índia caingangue atnamcniando iini jdhotc de porco âo mato, enquanto
o garoto espera a sua vez.
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Para evitar a necessidade de repetir amiudadamente essa pe¬
nosa operação, que competia aos homens, aplicavam-se as mulheres
em consei-var o fogo obtido, alimentando para isso incessantemente
as fogueiras domésticas.
Quando saíam para caçadas ou expedições, levavam consiqo
um tição aceso e protegido com tal arte, que não havia receio de se
extinguir fàcilmente.
A paciência e aplicação dos Caingangue aos trabalhos exigidos
para a provisão das coisas necessárias à sua vida, manifestavam-se
não só na produção do fogo, como também em muitas outras
ocasiões.
Manufaturas — Assim, por exemplo, a confecção dos uten¬
sílios de uso corrente, como as pinças de madeira, para apanhar no
borralho as brôas e os grãos de milho torrado; os balaios de
vários feitios e tamanhos, tecidos com taquarinha; os pilões
abertos a fogo lento, em cepos de madeira, dirigindo-se a combustão
de tal sorte que, depois de prontos, se julgariam feitos com auxílio
de nossas ferramentas, manejadas por mão de perito carapina.
Cerâmica — O mesmo se deve dizer da fabricação dos vasos
de barro, de cõr prêta. e obedecendo á forma geral de um parabo-
lóide de revolução, forma que parecia não dever ter sido a preferida,
pela aparente dificuldade que há em os manter de pé.
Estes vasos distínguem-se em duas categorias que se diferen¬
ciam pelos formatos das bordas : — os chamados “cocron”, que
servem de panelas e chegam às vêzes, a ter capacidade de perto de
25 litros, e os "petkê”, que são os pratos dos Caingangue. Nin¬
guém pode imaginar o que custa às índias, que são as artífices
desses "cocrons” e “petkês”, bem como dos pilões, de paciência e
de habilidade, a fabricação de tais vasos, que elas fazem sem o
auxílio de nenhum instrumento, amoldando o barro só com as mãos
e os dedos ; também não é menos admirável a resignação com que
essas mulheres, muitas vêzes, vêm o seu trabalho inteiramente per¬
dido, quando, na operação final do cozimento, o barro, sob a ação
do fogo, estala e fragmenta-se.
Tecelagem — Que dizer, então, da perícia revelada por essas
mesmas mulheres, na preparação de fios de fibra de gragoatà e na
urdidura dos tecidos com que confeccionam as tangas e os "curu-
-cuchà”, panos de agasalho contra o frio, sabendo-se que todo êsse
trabalho é feito a mãos absolutamente livres, sem o auxílio, sequer,
de um dispositivo que permita ter os fios destendios ?
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No entanto, os Caingangue conseguem assim não só manufa¬
turar panos muito bem tecidos, como, além disso, fazê-los, pela in¬
serção de fios tingidos de vermelho e negro, com desenhos de fi¬
guras geométricas bem traçadas.
Colares — Dentre os artefactos usados por êstes indios, citarei
os colares, feitos, uns com as sementes de côr prêta de certo vegetal,
furadas e enfiadas num cordel de fibra de gragoatá ; outros, com
os incisivos de macacos, entremeados com presas e garras de onça
e de outros animais.
Todos êsses dentes eram antigamente encastoados em um te¬
cido : agora, porém, são perfurados com auxílio de agulhas e
depois enfiados numa linha.
Tangas, cintas e cordões — Às mulheres cobrem-se com
tangas, que lhes' envolvem inteiramente tôda a parte inferior do
tronco e descem até aos joelhos.
Às moças, além da tanga, trazem uma cinta larga, de casca de
cipó imbé, fechada em círculo e cozidas às extremidades ; de sorte
que, para a usar é preciso a pessoa erguer os braços e juntar as
mãos, enquanto uma ajudante a enfia, de cima para baixo, até
chegar ao lugar desejado.
Os homens andavam inteiramente nus, e desde meninos tra¬
ziam à cintura um cordão que a cingia em numerosas voltas : não
conseguiram ainda os empregados da Inspetoria descobrir a signi¬
ficação dêsse cordão, cuja utilidade é evidentemente nenhuma.
Armas — Quanto ao armamento, usam os Caingangue arcos
de dimensões e forças proporcionadas ao emprego a que se destinam;
assim, os de guerra, também utilizados contra as onças e antas, re¬
gulam ter dois metros de comprimento e são tão grossos que a mão
mal os pode abarcar ; os destinados a matar macacos e outros
animais de menor porte são muitíssimo mais leves, mais curtos e
finos.
Às flechas, cujo comprimento deve exceder, segundo medidas
fixas, a altura da pessoa que a fabrica e utiliza, compõem-se de
três partes : a ponta, o corpo — que é uma vareta de madeira —
e o cabo, portador das penas, feito de taquarinha.
Para as caças miúdas emprega-se a ponta feita de uma lasta
de tíbia de macaco : na guerra, e contra animais corpulentos, a
choupa de ferro. Às flechas para passarinhar são muito mais
curtas que as outras e dotadas de quatro pontas de madeira, diver-
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gentes e lisas ; ou, senão, de um batoque rombudo, cujo efeito é
derrubar o pássaro sem o ferir, só atordoado pela pancada. As
penas empregadas para dirigir o vôo das flechas são tiradas das
asas de urubus e araras.
Os Caingangue como a maioria dos índios brasileiros, não
envenenam as pontas de suas flechas.
Enfeites de penas — Para terminar esta enumeração de arte¬
factos caingangues, ainda citarei os enfeites de penas, usados pelas
crianças, enfeites de que temos conhecimento só pelas referências
que deles nos fazem os índios : e de um brinquedo chamado "nan-
dire , formado de um disco de barro atravessado normalmente por
uma haste finíssima de madeira ; fazendo-se rolar a parte superior
dessa haste entre as palmas das mãos imprimi-se ao “nandire” um
movimento de rotação que o faz funcionar como as nossas piorras.
Festas, cantos e danças ^ Em certas ocasiões os Caingangue
reunem-se para as festas, a que chamam “kiki-coia”. isto é, “o kiki
que está para ser comido", as quais consistem em cantos e danças
realizados em tôrno de monumental fogueira, e duram dias e noites
seguidas até se esgotar a provisão da bebida, prèviamente preparada
em quantidade enorme. Destas festas, a principal ou a mais sen¬
sacional é a que se realiza por ocasião do milho verde, quando se
declara a maioridade dos rapazes ou a sua capacidade para con¬
traírem casamento, e as mulheres que enviuvaram no correr do ano
são desobrigadas dos últimos deveres que ainda as ligava aos seus •
defuntos maridos e postas em condições de convolarem a novas
núpcias.
Mas tôdas as festas começam, invariàvelmente, pela ida dos
homens e rapazes já declarados maiores ao cemitério da aldeia,
para refazerem o monte de terra que corõa as sepulturas ; nesta
parte, que se faz. como tõdas as outras, entre cantos e com movi¬
mentos ritímicos, não pode figurar mulher alguma, nem menores.
Regressando à aldeia os homens, começa em tôrno da fogueira
a dança, na qual tomam parte os indivíduos de todos os sexos e
idades, com as sobrancelhas raspadas e os corpos salpicados de
pintas negras, feitas de pó de carvão misturado com leite de certo
cipó, nuns indivíduos, redondas, noutros alongadas, conforme per¬
tençam ao grupo camen ou canhmucren.
Os homens dançavam antigamente empunhando os seus arcos
ou ramos de árvores ; agora, porém, preferem apresentar-se com
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SciELO,
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os machados e foices, que lhes dá o Governo Federal por intermédio
da Inspetoria de S. Paulo.
No kiki-coia só é fixa a melopéia, segundo a qual se deve dizer
tudo o que no momento interessa, e a regra de ninguém beber o
líquido que tira com as próprias mãos do cocho ou dos cocrons;
tudo mais varia, segundo a ocasião da festa e segundo o personagem
que canta. Um índio, tendo enchido de kiki o seu petkê ou caneca,
entrega-a a outro, que pode ser homem ou mulher ; êste receben¬
do-o, bebe de um só trago o líquido nêle contido e para ali ficam os
dois frente a frente, balançando os corpos, a cantar o que se têm a
dizer.
E’ assim que se rememoram e se liquidam passados dissídios :
relatam-se peripécias de viagens, de excursões e de caçadas;
ensinam os pais aos filhos a história e as tradições da nação e, sobre¬
tudo, rememoram-se as lutas com as [ógs — estranhos ou inimigos
de outras raças, assentando-se então o plano de desforras terríveis
e vingativas.
O kiki, que se obtem não só pela fermentação do milho mistu¬
rado com mel. como já foi dito, mas também de igual infusão de
flores de coqueiro, retiradas de espatas ainda verdes, é bebido em
tão grande quantidade que alguns indivíduos ficam embriagados ;
então dizem os outros que êstes morreram-terê, e para lhes restituir
a vida empregam os cantos e as cerimônias usadas quando ocorre
uma morte qualquer.
O único instrumento de que se acompanham nos seus cantos é
o maracá, tangido pelo rekakè da aldeia em que se realiza a festa
o qual fica de parte, zelando pela boa ordem de tudo e servindo de
mestre de cerimônia.
O culto aos mortos — Tôdas as observações que pudemos
fazer dos usos e instituições dos Caingangue, principalmente nas
ocasiões decisivas dos kiki-coia, conduziram-se à conclusão de que
êles só têm um culto : o dos mortos ; que, por ora, só há entre
êles um princípio de adoração — a do fogo, do qual o rekakè, no
decurso da festa, aproxima-se várias vêzes, para, de cócoras e
sempre tangendo o maracá, dirigir-lhe alguma palavra em tom
cantado.
Os astros — Fora disso só pudemos descobrir um começo da
atenção e do interêsse pelo sol e pela lua e nenhum pelos outros
astros, que chegam até a ser confundidos numa designação comum
dada pela palavra crin. Quanto ao trovão, não exerce sôbre êles
nenhuma impressão de medo e muito menos de respeito, porque o
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X.* 6 bis — Grupo de índias, vendo-se uma mulher ainda com a sua indumentária
usual e outra com o camisolão branco ijue lhes era fornecido logo que chegavam
ao Acampamento.
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consideram como um fenômeno corriqueiro, como seja o rolar da
água, a esforçar-se em romper as nuvens e cair em chuva. E quando
perguntados sôbre a opinião que formam de outros fenômenos,
que nos parecem próprios para fascinar qualquer imaginação e
arrastá-la a criar hipóteses, êles se limitam a responder com a excla¬
mação — ma!, com a qual significam que se trata de coisa que não
sabem e não lhes interessa saber.
Nem feiticeiros, nem médicos — Entre êles não se encontram
feiticeiros, médicos ou qualquer outra forma do equivalente ao pagé
guarani ou ao bàri bororo. Os doentes são tratados pelos seus
parentes mais próximos, os filhos pelas respectivas mães, o marido
pela mulher, etc., e o tratamento consiste em sangrias na testa e nas
fontes, que se picam com pedacinhos de vidro, o substituto atual
do silex ; em massagens vigorosas e, às vêzes, violentamente exces¬
sivas ; e em atilhos, que apertam fortemente a parte dolorida do
corpo.
Onirocricia — Contudo, os Caingangue acreditam que algumas
mulheres têm o dom de adivinhar o futuro, vendo claramente du¬
rante o sono o que sucederá em projetadas expedições e caçadas.
Acreditam mais que êsses sonhos proféticos podem ser provocados,
bastando para isto ingerir a sonhadora, um pó tenuíssimo, que se
obtém pilando folhas de certo vegetal. Mas conquanto os homens
não. se dispensem de consultar êsses oráculos na vespera de ini¬
ciarem novas empresas, contudo não desistem de as levar por
diante, ainda que a resposta lhes seja desfavorável : é evidente,
porém, que neste caso a ação se ressente da falta de firmeza e de
pertinácia, necessárias para garantir-lhes o bom êxito.
Ainda a essas mulheres atribuem os índios a fôrça de poderem
sustar e desfazer as tempestades e aguaceiros que se estão formando,
por meio de sopros que elas, com os dedos em pinha, figuram tirar
da bôca e jogar contra as nuvens.
Para terminar esta exposição sôbre os costumes e instituições
dos Caingangue paulistas, falta-nos ainda considerar o modo
porque êles fazem a guerra.
TÁTICAS E ESTRATÉGIAS
Em primeiro lugar, é preciso saber-se que em todos os empie-
^^dimentos coletivos, devem figurar indivíduos dos dois grupos a
já me referi, o Camen e o Canherucren ; a um pertence iniciar
^ ^Ção, ao outro prosscguí-la até ao desfecho final.
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Dada esta explicação, vejamos como era um combate entre
dois partidos caingangues. Estando os guerreiros armados com os
"cá ', enormes e pesados porretes de madeira fortíssima, avançavam,
de um lado e de outro, estendidos em linha, os Camens dos dois
partidos, soltando gritos e insultando-se mutuamente, dando pan¬
cadas no chão ou nas árvores, tudo com o fito de atemori¬
zarem. os contrários e incentivar a própria coragem ; enquanto
isso. os Canherncrens ficavam em outra linha, à retaguarda, bran¬
dindo os "cás” e juntando seus gritos aos dos da vanguarda.
Num dado momento, chegada a exaltação ao auge, começava
o recontro, e os combatentes, ora defendendo-se, ora atacando, a
manejarem os porretes em paradas parecidas com as do conhe¬
cido *jogo do páu”, trocavám-se pancadas terríveis que, se colhiam
a cabeça do adversário, estendiam-no morto no chão ; se a uma
perna ou braço, quebravam'-no. Nisto os Camens iam se retirando
para a retaguarda e sendo substituídos pelos Canherncrens; a
pugna tornava-se então mais encarniçada, referviam os golpes tre¬
mendos, aumentava o clamor das vozes e o solo se ia juncando de
mortos e de estropiados .
Como se vê, em suas lutas intestinas, os Caingangue não
faziam uso do arco e das flechas : o pau, o temido “Guaratan”
dos civilizados do Noroeste e de Campos-Novos do Paranapanema,
era nesses casos a única arma empregada.
Nos assaltos, porém, contra os “Fogs”, isto é. contra os índios
Oti de Campos-Novos, os Ofaé de Mato-Grosso, ribeirinhos do
Paraná e os civilizados, as armas de tiro figuravam, mas, ainda
assim, só no começo da ação, para aterrorizar, desorganizar e pro¬
vocar a debandada do inimigo ; uma vez isto alcançado, o Cain¬
gangue abandonava o seu arco e empunhando o predileto “Gua¬
ratan”, saía correndo atrás do fugitivo, alcançava-o e, com uma só
pancada na cabeça, arrancava-lhe a vida.
Outra diferença entre as lutas intestinas e as exteriores, era
que nestas êles não faziam preceder o recontro de clamor de insuP
tos, como usavam naquelas ; mas, ao contrário, no meio do maior
silêncio, no máximo do imprevisto, faziam cair sôbre os assaltados
a primeira nuvem de flechas. O efeito dêsse ataque subtâneo, quass
misterioso, era fulminante e, para agravá-lo, levantava-se então
seio da floresta a gritaria enorme ; os homens já apavorados não
podiam mais refletir nem se lembrar das armas que tinham ! Os qu^
conseguiam escapar vinham depois contar que naquele assalto ti'
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